A espiritualidade dos leigos [1 ed.] 9788584912261

Com sua habitual unção, solidez e precisão teológica, o célebre autor dominicano Royo Marín faz aqui uma exposição do va

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Table of contents :
AO LEITOR
PRIMEIRA PARTE | Princípios fundamentais
CAPÍTULO I | Noções prévias
1. Espiritualidade em geral
2. Espiritualidade cristã
3. Espiritualidade leiga?
4. Leigo, secular ou simples cristão?
CAPÍTULO II | Vocação universal à santidade
1. Doutrina geral
2. A santidade nos diferentes estados
3. Meios de santificação para todos
4. O dom supremo do martírio
5. Os conselhos evangélicos
6. Exortação final
CAPÍTULO III | Em que consiste a santidade
1ª — A perfeita identificação com a vontade de Deus
2ª — A perfeição da caridade
3ª — A plena configuração com Jesus Cristo
CAPÍTULO IV | O ideal supremo: a configuração com Cristo
1. Plano divino de nossa predestinação em Cristo
2. A essência da vida cristã
3. Cristo, modelo supremo de toda perfeição
4. Jesus Cristo, causa meritória da graça80
5. Jesus Cristo, causa eficiente de nossa vida sobrenatural
6. Jesus Cristo, fonte de vida sobrenatural
7. Influxo vital de Cristo nos membros de seu Corpo místico
CAPÍTULO V | O papel de Maria na santificação do leigo
1. Maria no plano de Deus sobre os homens
2. Maria, exemplo perfeito da vida cristã secular
SEGUNDA PARTE | Vida eclesial
CAPÍTULO I A Igreja e o povo de Deus
1. O mistério da Igreja
2. O povo de Deus
CAPÍTULO II | O leigo na Igreja
1. Os leigos ou seculares
2. Função sacerdotal dos leigos na Igreja
3. Função profética dos leigos na Igreja
4. Função régia dos leigos na Igreja
5. Caráter secular dos leigos
6. Unidade na diversidade
7. O apostolado dos leigos
8. A consagração do mundo
9. O testemunho de vida
10. Nas estruturas humanas
11. Relações com a hierarquia
12. Como a alma no corpo
CAPÍTULO III | Vida litúrgica comunitária
1. Doutrina do Concílio Vaticano ii
2. A espiritualidade da Igreja
3. Natureza da liturgia
4. Crise da liturgia
5. Restauração litúrgica
6. Fins da liturgia
7. Frutos da liturgia
8. O ano litúrgico
9. Grandeza e excelência da Missa
10. Valor infinito da Missa
11. Fins da Missa
12. Frutos da Missa
13. A Missa, centro do culto católico
14. A Missa diária, fonte de santificação
15. A concelebração dos fiéis
16. A oração litúrgica
17. O Ofício Divino
18. O canto litúrgico
19. A liturgia e a pedagogia
20. A liturgia e a piedade
21. A liturgia e as devoções privadas
TERCEIRA PARTE | Vida sacramental
CAPÍTULO I | Espiritualidade batismal
1. Natureza do Batismo
2. Efeitos que produz
3. Exigências que traz consigo
4. Renovação espiritual do Batismo
CAPÍTULO II | A Confirmação do cristão
1. Natureza da Confirmação
2. Efeitos da Confirmação
3. Exigências que traz consigo
CAPÍTULO III | A Eucaristia na vida do leigo
1. A Eucaristia, sacramento da fé
2. A Eucaristia, sacramento da esperança
3. A Eucaristia, sacramento do amor
4. A presença real de Cristo
5. A Eucaristia nos une a Cristo e à Santíssima Trindade
6. Une-nos ao Corpo místico de Cristo
7. Preserva-nos do pecado
8. Desenvolve a vida cristã
9. Disposições para comungar
10. A ação de graças
11. A comunhão espiritual
12. A visita ao Santíssimo
CAPÍTULO IV | A Penitência do leigo
1. A penitência como virtude
2. O sacramento da Penitência
3. Efeitos negativos do sacramento da Penitência
4. Efeitos positivos
5. A Confissão e a psiquiatria moderna
6. Jesus, o grande perdoador
7. Exame de consciência
8. Dor pelos pecados
9. Propósito de emenda
10. Confissão dos pecados
11. A satisfação sacramental
12. Penitentes ocasionais
13. Habituados e reincidentes
14. Enfermos e moribundos
15. Escrupulosos
CAPÍTULO V | A Unção dos Enfermos
1. Natureza
2. Sujeito
3. Efeitos
CAPÍTULO VI | O sacerdote e o leigo
CAPÍTULO VII | O Matrimônio cristão
1. Essência do matrimônio
2. O contrato natural
3. O sacramento
4. Este mistério é grande
5. Fins do matrimônio
6. Erros e desvios modernos
7. Propriedades essenciais do matrimônio
8. Bens do matrimônio
9. Liturgia do matrimônio
QUARTA PARTE | Vida teologal
CAPÍTULO I | A fé do cristão
Artigo 1 — A fé em geral
Artigo 2 — O espírito de fé238
CAPÍTULO II | A esperança do cristão
Artigo 1 — Natureza da esperança cristã
Artigo 2 — Modo de viver a esperança cristã no meio do mundo
CAPÍTULO III | A grande lei da caridade
1. A caridade, resumo de toda a lei
2. O amor a Deus: motivos
3. O amor a Deus: suas características
4. O amor a nós mesmos: motivos
5. O amor a nós mesmos: suas características
6. O amor ao próximo: motivos
7. O amor ao próximo: suas características
8. O dever da esmola
9. Obras de misericórdia corporais
10. Obras de misericórdia espirituais
11. A caridade com os que sofrem
12. A caridade com os defuntos
QUINTA PARTE | Vida familiar
PRIMEIRA SEÇÃO | A FAMÍLIA CRISTÃ EM GERAL
1. A família, imagem da Trindade
2. A família, obra de Deus
3. O amor conjugal vem de Deus
4. Dignidade e grandeza da família cristã
5. A família, a sociedade humana, a Igreja
6. Inimigos da família284
SEGUNDA SEÇÃO | OS MEMBROS DA FAMÍLIA
CAPÍTULO I | Os esposos
Artigo 1 — Homem e mulher
Artigo 2 — Contribuição dos dois para o matrimônio
Artigo 3 — Direitos e deveres mútuos dos esposos
Artigo 4 — O esposo ideal
Artigo 5 — A esposa ideal
Artigo 6 — A geração dos filhos
Artigo 7 — A viuvez cristã
CAPÍTULO II | Os pais
Artigo 1 — Excelência da paternidade
Artigo 2 — O pai
Artigo 3 — A mãe
Artigo 4 — Deveres para com os filhos
CAPÍTULO III | Os filhos
1. Amor
2. Reverência ou respeito
3. Obediência
4. Ajuda material aos pais
CAPÍTULO IV | A vocação dos filhos
Artigo 1 — A vocação ao matrimônio
Artigo 2 — A vocação sacerdotal ou religiosa
Artigo 3 — A consagração a Deus no mundo
Artigo 4 — Uma palavra para as solteiras
Artigo 5 — Papel dos pais na vocação de seus filhos
CAPÍTULO V | Os irmãos
1. Amor intenso
2. União íntima
3. Ajuda mútua
CAPÍTULO VI | Os demais familiares
CAPÍTULO VII | O serviço doméstico
1. Deveres dos patrões
2. Deveres dos servidores
3. Doutrina de Pio xii sobre o serviço doméstico
TERCEIRA SEÇÃO | A EDUCAÇÃO DOS FILHOS
CAPÍTULO I | A educação dos filhos em geral
Artigo 1 — Doutrina do Concílio Vaticano ii
Artigo 2 — Rumo a uma educação autêntica453
Artigo 3 — Direito dos pais à educação de seus filhos
Artigo 4 — A educação, obra conjunta dos pais
Artigo 5 — Um programa de educação
Artigo 6 — O feminino na educação470
Artigo 7 — Educação e pessoa471
Artigo 8 — A compreensão, fator educativo472
Artigo 9 — A arte de mandar
Artigo 10 — A arte de vigiar
Artigo 11 — A arte de corrigir e castigar
Artigo 12 — A arte de estimular e premiar
Artigo 13 — O exemplo dos pais
CAPÍTULO II | A educação em particular
Artigo 1 — Educação física
Artigo 2 — Educação psicológica
Artigo 3 — Educação moral
Artigo 4 — Educação sexual
Artigo 5 — Educação social
Artigo 6 — Educação religiosa
QUARTA SEÇÃO | O LAR CRISTÃO
CAPÍTULO I | O lar, marco natural da família
1. Aspectos fundamentais do lar
2. Doutrina de Pio xii sobre o lar
CAPÍTULO II | A piedade familiar
1. Conceitos gerais
2. Qualidades da oração
3. A oração em família
4. As devoções do lar
CAPÍTULO III | Nazaré, o lar ideal
SEXTA PARTE | Vida social
CAPÍTULO I | O exercício da própria profissão
Artigo 1 — A consciência profissional
Artigo 2 — Princípios fundamentais da moral profissional
Artigo 3 — A santificação da própria profissão
Artigo 4 — A vida mística e os leigos
CAPÍTULO II | A consagração do mundo
Artigo 1 — Questões prévias
Artigo 2 — Doutrina conciliar sobre a “consecratio mundi”
Artigo 3 — Aplicação às principais estruturas humanas
Artigo 4 — No mundo sem ser do mundo
CAPÍTULO III | O apostolado no próprio ambiente
Artigo 1 — Noções prévias
Artigo 2 — Importância, necessidade e obrigatoriedade do apostolado leigo
Artigo 3 — A espiritualidade laica ordenada ao apostolado
Artigo 4 — Fins e objetivos do apostolado leigo
Artigo 5 — Diferentes formas do apostolado leigo
Artigo 6 — Formação para o apostolado leigo
Artigo 7 — Meios fundamentais do apostolado leigo
Artigo 8 — Tática ou estratégia do apóstolo leigo
Notas de Rodapé
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A espiritualidade dos leigos [1 ed.]
 9788584912261

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A espiritualidade dos leigos Antonio Royo Marín, o.p. 1ª edição — outubro de 2023 — CEDET Título original: Espiritualidad de los seglares, Antonio Royo Marín. © Biblioteca de Autores Cristianos, 1967. Madrid. nihil obstat Fr. Armando Bandera, o.p., doutor em teologia; Fr. Victorino Rodríguez, o.p., doutor em teologia. imprimi potest Fr. Segismundo Cascón, o.p., prior provincial. imprimatur + Mauro, bispo de Salamanca. Salamanca, 27 de junho de 1967. CEDET LLC is licensee for publishing and sale of the electronic edition of this book CEDET LLC 1808 REGAL RIVER CIR - OCOEE - FLORIDA - 34761 Phone Number: (407) 745-1558 e-mail: [email protected] Editor: Verônica van Wijk Rezende Tradução: Antônio Carlos Santini Revisão & preparação de texto: Juliana Coralli Pereira Diagramação: Renan Franciscon Marques Capa: Nelson Provazi Leitura de provas: Mariana Souto Figueiredo Tomaz Lemos Amaral Conselho editorial: Adelice Godoy César Kyn d’Ávila Silvio Grimaldo de Camargo

Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica, mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor e do detentor dos direitos autorais. FICHA CATALOGRÁFICA Royo Marín, Antonio. A espiritualidade dos leigos / Antonio Royo Marín; tradução de Antônio Carlos Santini — Campinas, SP: Ecclesiae, 2023. Título original: Espiritualidad de los seglares isbn: 978-85-8491-226-1 1. Cristianismo 2. Guias de vida para cristãos I. Autor II. Título CDD — 230 / 248.8

ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO 1. Cristianismo — 230 2. Guias de vida para cristãos — 248.8

Sumário

AO LEITOR PRIMEIRA PARTE |

PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS CAPÍTULO I | N .E .E .E .L

,

CAPÍTULO II | V .D .A .M .O .O .E

CAPÍTULO III | E

ª — A D ª—A ª—A

J

CAPÍTULO IV | O

C

: C

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.A .C .J

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CAPÍTULO V | O .M .M

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SEGUNDA PARTE | VIDA ECLESIAL CAPÍTULO I A I .O .O

D

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CAPÍTULO II | O

I

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I

.C .U .O .A .O .N .R .C

CAPÍTULO III | V .D .A .N .C .R .F .F

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TERCEIRA PARTE | VIDA SACRAMENTAL CAPÍTULO I | E .N

B

.E .E .R

B

CAPÍTULO II | A C .N

C

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C

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CAPÍTULO III | A E .AE

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CAPÍTULO IV | A P .A .O

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,

CAPÍTULO V | A U .N .S .E

CAPÍTULO VI | O

CAPÍTULO VII | O M .E .O .O .E .F .E .P .B .L

E

QUARTA PARTE | VIDA TEOLOGAL CAPÍTULO I | A A

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CAPÍTULO II | A A A

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CAPÍTULO III | A .A

,

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D

:

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QUINTA PARTE | VIDA FAMILIAR PRIMEIRA SEÇÃO | A FAMÍLIA CRISTÃ EM GERAL .A

,

.A

,

.O

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.D .A

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,

I

.I

SEGUNDA SEÇÃO | OS MEMBROS DA FAMÍLIA

CAPÍTULO I | O A A

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A

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A

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A

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CAPÍTULO II | O A

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CAPÍTULO III | O .A .R .O

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CAPÍTULO IV | A A

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A

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A

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CAPÍTULO V | O .A .U .A

CAPÍTULO VI | O

CAPÍTULO VII | O .D .D .D

P

TERCEIRA SEÇÃO | A EDUCAÇÃO DOS FILHOS

CAPÍTULO I | A A

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QUARTA SEÇÃO | O LAR CRISTÃO

CAPÍTULO I | O

,

.A .D

P

CAPÍTULO II | A .C .Q .A .A

CAPÍTULO III | N

,

SEXTA PARTE | VIDA SOCIAL CAPÍTULO I | O A A

—A — P

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CAPÍTULO II | A A

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” — A —N

CAPÍTULO III | O A

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NOTAS DE RODAPÉ

À Imaculada Virgem Maria, Mãe de Deus e da Igreja, modelo incomparável de espiritualidade secular, que, “vivendo neste mundo uma vida igual à dos outros, cheia de preocupações familiares e trabalhos, permaneceu constantemente unida a seu Filho, e cooperou de modo singularíssimo para a obra do Salvador; agora, assunta aos céus, cuida com amor materno dos irmãos de seu Filho que ainda peregrinam e se vêem cercados de perigos e angústias, até que cheguem à pátria bem-aventurada” (Concílio Vaticano , Decreto sobre o apostolado dos leigos, n. 4).

AO LEITOR ostaríamos de explicar brevemente ao leitor a natureza e a nalidade da obra que tem em mãos. Hoje se fala e escreve muitíssimo sobre a vida do cristão leigo em todos os seus aspectos e manifestações. À força de repeti-la, já se tornou lugar-comum a frase de que “os leigos alcançaram em nossos tempos a sua maioridade na Igreja”. Pelo menos, é um fato indiscutível que nunca lhes foi dada tanta importância, nem se proclamou tão abertamente o papel decisivo que estão chamados a desempenhar a serviço da mesma Igreja. O Concílio Vaticano dedicou aos leigos todo um magní co decreto, e falou sobre eles em vários outros documentos conciliares, sempre destacando a importância excepcional que a Igreja lhes atribui no exercício de sua própria missão apostólica. Desejando contribuir, na medida de nossas forças, para propagar entre os cristãos que vivem no mundo as magní cas orientações do Concílio Vaticano , propusemo-nos, como primeira intenção, escrever um simples comentário sobre os dois pontos que consideramos mais importantes em relação aos leigos: a vocação

universal à santidade — claramente proclamada pelo concílio na Constituição Dogmática sobre a Igreja — e a necessidade de praticar o apostolado em seu próprio ambiente, de acordo com o Decreto sobre o Apostolado dos Leigos. Porém, quando começamos a traçar o esquema daquilo que deveria ser um pequeno livro, nos demos conta de que, para oferecer aos leigos uma sintética visão de conjunto de seus direitos e deveres enquanto membros do Corpo místico de Cristo, tornava-se indispensável ampliar consideravelmente o panorama. Pouco a pouco, foram-se per lando as linhas daquilo que deveria constituir a obra que, hoje, temos o prazer de oferecer a nossos leitores. Apesar da considerável ampliação de nosso pensamento inicial, não pretendemos ser exaustivos, muito ao contrário. É verdade que — ao que nos parece — reunimos nesta obra alguns dos mais importantes aspectos de uma autêntica espiritualidade laica, sem contudo esgotar por completo a matéria. Faltam nela muitos aspectos fundamentais da espiritualidade cristã em geral — base insubstituível de toda especi cação ulterior — que de maneira alguma o leigo que aspira à sua própria santi cação poderia descuidar. Tais são, por exemplo, a doutrina da inabitação trinitária na alma do justo, a graça santi cante, a ação dos dons do Espírito Santo, a direção espiritual, etc. Estas omissões seriam de todo imperdoáveis em uma obra que pretendesse ser completa e exaustiva. Por isso consideramos este nosso livro como um simples complemento para os leigos de nossa Teologia da perfeição cristã, que foi publicada nesta mesma coleção da . Em tal obra, o leitor poderá encontrar os temas importantíssimos que faltarão nesta. Já neste livro, procuramos oferecer uma autêntica espiritualidade cristã que possa ser vivida integralmente pelos cristãos que vivem no mundo e inteiramente imersos em suas estruturas terrenas. Nada existe nele — parece-nos — que não possa ser praticado integralmente por um leigo. Ao longo de todo o nosso trabalho, sempre levamos em conta que a maior parte dos grandes mestres da espiritualidade cristã focalizaram o problema da santidade com

uma mentalidade estritamente monacal de fuga do mundo, que a tornava, por isso mesmo, inteiramente inacessível aos leigos, que se vêem forçados, por sua própria condição e estado, a desenvolver sua vida exatamente no meio do mundo e de suas estruturas terrenas. Esta objeção tem muito de verdade, e por isso tratamos cuidadosamente de não escrever neste livro uma única linha que não possa servir de orientação, ou ser vivida integralmente, pelos leigos que vivem no mundo. Entretanto, apressamo-nos em acrescentar que não escrevemos esta obra para os cristãos de “programa mínimo”. Nada encontrarão neste livro aqueles que unicamente aspirem a saber “o quanto podem aproximar-se do pecado sem pecar” — como lamenta um insigne moralista contemporâneo. Escrevemos unicamente para os cristãos leigos que aspirem seriamente a santi car-se em seu próprio estado e em meio às estruturas do mundo. Que ninguém fabrique ilusões para si mesmo: a perfeição cristã não pode ser outra, senão a do Evangelho; isto equivale a dizer que ela deve ter como base fundamental a que o próprio Cristo estabeleceu para todo aquele que queira simplesmente ser seu discípulo: negar-se a si mesmo, tomar a própria cruz de cada dia e segui-lo até o cume ensangüentado do Calvário (cf. Lc 9, 23). Uma espiritualidade cômoda e fácil, que não imponha nenhum sacrifício nem abnegação do próprio eu, que prescinda da vida de oração e da íntima união com Deus, será qualquer coisa, menos espiritualidade cristã, seja qual for o estado ou condição social de quem procura praticá-la. Por isso ninguém deverá estranhar ao encontrar em nossa obra um artigo aparentemente tão desconcertante quanto o da “vida mística e os leigos”, e outro sobre a necessidade imprescindível de “estar no mundo sem ser do mundo”, que é uma bandeira claramente evangélica (cf. Jo 15, 18–19; 17, 14–16), e que diz respeito também aos leigos, não somente aos sacerdotes ou religiosos. Outra coisa ainda queremos advertir ao leitor, com sincera e nobre lealdade.

Grande parte das páginas deste livro — e certamente as melhores — não se devem à nossa pobre criatividade. Elas são devidas aos melhores autores nacionais e estrangeiros que escreveram sobre a espiritualidade dos leigos, principalmente em nossos dias. As citações alheias, quando apresentadas em demasia, podem representar — e certamente representam neste caso — pobreza de idéias ou falta de originalidade naquele que cita; mas, por si mesmas, honram e digni cam o autor citado, visto que aceitamos e propagamos suas idéias. Em todo caso, temos total segurança de não ter cometido um só plágio, por pequeno ou insigni cante que seja. Todas as nossas citações são avalizadas com o nome de seu verdadeiro autor e a página do livro de onde foram extraídas.1 Quando a importância ou a extensão das citações assim pareciam exigi-lo, procuramos obter a permissão expressa de seus autores para reproduzi-las em nosso livro. Desde já, temos de agradecerlhes a gentileza com que no-las concederam. A nal, “venha de onde vier, a verdade será sempre do Espírito Santo”, como bem disse Santo Ambrósio. Às vezes, diante da amplitude da matéria que queríamos reunir, vimo-nos obrigados a recorrer ao procedimento esquemático, embora sempre perfeitamente claro e transparente. A maior parte desses esquemas foi preparada sob nossa direção pessoal pelos alunos da Pontifícia Faculdade de Teologia do convento de Santo Estêvão de Salamanca, e fazem parte da coleção Temas de pregação, que ali vem sendo publicada já faz vários anos. Os que se relacionam à família cristã foram elaborados sob a direção do R. Pe. Aniano Gutiérrez, seu atual diretor. E nada mais temos a acrescentar, senão rogar a nossos leitores que tenham a amabilidade de assinalar os defeitos e falhas mais importantes que encontrarem nesta nossa humilde contribuição para a espiritualidade dos leigos, com o m de corrigi-los e melhorar nosso modesto trabalho em próximas edições.

Mais uma vez colocamos estas páginas aos pés da Virgem Imaculada, Mãe de Deus e da Igreja, que em sua humilde casinha de Nazaré deu ao mundo o mais sublime exemplo de espiritualidade laica que os séculos já viram. Que ela abençoe — como mediadora universal de todas as graças — esta pobre obra, e faça fruti car abundantemente na alma dos leitores a semente evangélica, para a glória de Deus e sua santi cação pessoal.

PRIMEIRA PARTE | PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS 1. Antes de tudo, vamos estabelecer alguns princípios fundamentais que serão seriamente levados em conta ao longo de toda esta obra. Em primeiro lugar, é preciso explicar com toda a exatidão e precisão o sentido e o alcance que se deve dar aos conceitos titulares da mesma, ou seja, o que se entende por espiritualidade e por leigos. A seguir, é preciso expor amplamente o chamado ou vocação universal à santidade, que diz respeito, por conseguinte, a todos os éis batizados, e inclusive a todos os homens, seja qual for o seu estado ou condição social. Depois, é preciso concretizar em que consiste ou qual seja a própria essência da santidade cristã. Finalmente, precisamos expor cuidadosamente o ideal supremo da vida do cristão — que é sua plena con guração com Jesus Cristo — e o papel que desempenha a Santíssima Virgem no processo de nossa própria santi cação.

Vamos reunir tudo isso em cinco capítulos, que receberão os seguintes títulos: 1. Noções prévias. 2. Vocação universal à santidade. 3. Em que consiste a santidade. 4. O ideal supremo: a con guração com Cristo. 5. O papel de Maria na santi cação do leigo.

CAPÍTULO I | Noções prévias m primeiro lugar, parece-nos indispensável determinar com toda a exatidão e cuidado o verdadeiro sentido e alcance dos termos que vamos empregar continuamente ao longo de todo o nosso trabalho. Os principais giram em torno de seu próprio título ou enunciado, a saber: o que entendemos por espiritualidade e por leigo.

1. Espiritualidade em geral 2. A palavra espiritualidade exprime uma relação imediata com a vida espiritual. Mas a expressão vida espiritual pode ser tomada em três sentidos principais:2

a) Como oposta à vida material. Assim falamos da atividade espiritual do homem que pensa, raciocina e ama na ordem natural do ser humano, diferentemente dos animais, cuja alma puramente sensitiva não pode realizar nenhuma dessas funções espirituais. b) Para signi car a vida sobrenatural, enquanto distinta da vida puramente natural. Neste sentido, tem vida espiritual toda alma em estado de graça santi cante, seja qual for o estado ou condição de vida em que desenvolva suas atividades. c) Para expressar a vida sobrenatural vivida de maneira mais plena e intensa. Assim, falamos de espiritualidade ou de pessoa espiritual para signi car a ciência que trata das coisas relativas à espiritualidade cristã, ou o homem que se dedica a vivê-la intencionalmente e com a maior intensidade possível. Este é o sentido que a palavra sempre terá ao longo de nossa obra. “A palavra espiritualidade”, escreve a este propósito o Pe. Marchetti3 adquire dimensões e signi cados diversos segundo o modo de considerá-la, em ordem à concepção fundamental da vida e da religião. Tomada em sentido muito genérico, designa toda manifestação do espírito humano, toda atividade racional. A arte, a ciência, a civilização, o progresso, o culto, a expressão do belo e do verdadeiro, de qualquer modo que sejam aplicados, desenvolvem-se na esfera do espírito. A espiritualidade, entendida como atuação da faculdade racional, constitui o elemento característico da natureza humana, e fundamenta sua distinção dos animais, que, desprovidos de inteligência e de liberdade, são incapazes de todo progresso e de toda moralidade. No uso comum, atribui-se a espiritualidade somente à atividade interior, que tem por objeto a a rmação dos valores morais do homem, ou seja, a busca da verdade e o esforço para a a rmação do bem. Concretamente, a espiritualidade vem a identi car-se com o estudo e a prática da virtude, com uma vida honesta em conformidade com os princípios morais e as exigências sociais. É essencial à espiritualidade uma certa ânsia de elevação, a busca pela perfeição pessoal. São Paulo contrapõe o homem “espiritual” — rico em graça e em fé, que julga todas as coisas à luz de Deus — ao homem “animal”, que se deixa guiar pelos interesses materiais (cf. 1Cor 2, 14–15). Em todos os povos há alguma forma de espiritualidade. A aspiração do homem por sua própria perfeição na a rmação de sua capacidade espiritual tem um valor permanente e

muitas vezes decisivo. Nos momentos mais difíceis e dolorosos, quando todas as construções ideológicas, políticas e econômicas cambaleiam, o homem experimenta mais vivamente a necessidade de con ar nos valores morais e eternos do espírito. A busca da perfeição pode inspirar-se em princípios e fatores losó cos, éticos ou de caráter religioso, de onde deriva uma espiritualidade intelectual, moral ou religiosa. A história nos mostra o elemento religioso entranhado na espiritualidade como fator resolutivo e universal. Consciente de sua própria limitação, o homem se aproxima da divindade com a convicção de encontrar aquilo que falta à sua própria natureza, uma espécie de integração, um grau de nobreza e de pureza interior impossível de alcançar com os recursos pessoais. Nas diferentes religiões, Deus é concebido não só como o primeiro princípio, situado no vértice da vida, como o ser a respeito de quem nada se pode pensar de maior, mas também como causa fontal de toda verdade e de toda virtude. Por isso, o homem, preocupado com sua própria perfeição, busca-a n’Ele, na adesão a seus desígnios eternos e na participação de suas perfeições, na medida permitida a uma criatura. A busca de Deus como termo de nosso movimento perfectivo responde a uma inclinação instintiva que a razão justi ca plenamente. Deus é o Ser; nós nos aperfeiçoamos n’Ele e por Ele. Por isso todos buscam a Deus, ainda que de maneira inconsciente: “Fizeste-nos para ti, Senhor, e nosso coração está inquieto até que descanse em ti”.4

2. Espiritualidade cristã 3. Não oferece a menor di culdade precisar o sentido estrito da expressão espiritualidade cristã. Com ela se quer signi car o modo de viver característico de um cristão que procura alcançar sua plena perfeição sobrenatural. O programa fundamental dessa espiritualidade cristã consiste em chegar à plena con guração com Cristo — na medida e no grau predestinados para cada um — para louvor da glória da Beatíssima Trindade. Escutemos a São Paulo que expõe, sob imediata inspiração divina, as linhas fundamentais da vida cristã. Bendito seja o Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que em Cristo nos abençoou com toda bênção espiritual nos Céus; porquanto n’Ele nos escolheu antes da constituição do mundo para que fôssemos santos e imaculados diante d’Ele na caridade, e nos predestinou para a adoção como seus lhos por Jesus Cristo, conforme o

beneplácito de sua vontade, para louvor do esplendor de sua graça, que nos concedeu gratuitamente no amado [...] (Ef 1, 3–6). Até que todos alcancemos a unidade da fé e o conhecimento do Filho de Deus, como varões perfeitos na medida da estatura que corresponde à plenitude de Cristo (Ef 4, 13).

Não há nem pode haver outra vida cristã senão aquela que tenha por objeto a plena con guração com Cristo, na medida e no grau predestinados para cada um, em ordem à glória de Deus, que é o m último e a razão de ser de toda a Criação. Certamente, há modos muito diferentes de viver essa vida cristã segundo o estado e a condição de cada um (sacerdote, religioso, leigo). Mas todos, sem nenhuma exceção, devem tender a esse ideal supremo de sua plena con guração em Cristo para louvor da glória da Beatíssima Trindade. Todos hão de se esforçar por ser outros Cristos, isto é, ser por graça aquilo que Cristo é por natureza: lhos de Deus. Com razão escreve Dom Columba Marmion em seu admirável livro Jesus Cristo, vida da alma:5 Compreendamos que só seremos santos na medida em que a vida de Cristo se difunda em nós. Esta é a única santidade que Deus nos pede, não existe outra. Ou seremos santos em Jesus Cristo, ou não o seremos de modo algum. A Criação não encontra em si mesma um único átomo desta santidade; ela deriva inteiramente de Deus por um ato soberanamente livre de sua onipotente vontade, e por isso é sobrenatural. São Paulo destaca mais de uma vez a gratuidade do dom divino da adoção, a eternidade do amor inefável do qual ele decidiu fazer-nos participar, e o meio admirável de sua realização pela graça de Jesus Cristo.

De fato, São Paulo não encontrava na linguagem humana palavras adequadas para expressar essa realidade inefável da incorporação do cristão à sua divina Cabeça. A vida, a morte, a ressurreição do cristão: tudo deve estar intimamente unido a Cristo. E diante da impossibilidade de expressar estas realidades com as palavras humanas comuns, ele criou essas expressões inteiramente novas, desconhecidas até então, que tampouco poderiam expressá-las por completo: Morremos juntamente com Cristo: commortui (2Tm 2, 11), e com Ele fomos sepultados: consepulti (Ef 2, 6), e fomos vivi cados e plantados com Ele: convivi cavit nos in Christo (Ef 2, 5), et complantati (Rm 6, 5), para que vivamos com Ele: et convivemos (2Tm 2, 11), a m de

reinar juntamente com Ele eternamente: et consedere fecit in caelestibus in Christo Iesu (Ef 2, 6). Esta é, em suas linhas fundamentais, a espiritualidade cristã, que deve ser vivida — embora em formas e graus muito diversos — por todos os cristãos, sem exceção. As diferentes modalidades com que esta vida deve revestir-se para cada um deles, segundo seu estado e condição, serão apenas aspectos acrescentados a este esquema básico e comum a todos. Sem esta base fundamental, seria vã ilusão e lamentável extravio falar de espiritualidade sacerdotal, ou religiosa, ou leiga. Todas estas formas pressupõem e complementam a espiritualidade cristã em geral, que deve ser vivida com a maior intensidade possível por todos os cristãos sem exceção, seja qual for o seu estado e modo de vida no conjunto maravilhosamente harmônico do Corpo místico de Cristo. Voltaremos a falar amplamente sobre este importantíssimo assunto, dedicando-lhe um capítulo especial.

3. Espiritualidade leiga? 4. Aqui, propomo-nos a investigar unicamente se, dentro da espiritualidade cristã em geral, existe e se pode falar de uma espiritualidade especi camente leiga. Assinalar em que consiste ela, quais sejam suas características e principais manifestações, é o que iremos vendo em todo o conjunto de nosso trabalho. Aqui — repetimos — perguntamos unicamente se existe e se se pode falar de uma espiritualidade autêntica e especi camente leiga. Este problema, colocado alguns anos atrás sob forma de interrogação, está hoje praticamente resolvido. A resposta, quase

unânime entre os teólogos católicos, é a rmativa, embora com as especi cações e matizes indispensáveis. É conveniente, contudo, ouvir diretamente o parecer de alguns dos mais modernos e destacados tratadistas da questão. Muitos deles, como veremos, ao responderem a rmativamente, já apresentam os principais traços dessa espiritualidade especi camente leiga, tal como eles a concebem. Juntaremos a opinião de seis autores estrangeiros e outros tantos espanhóis. Como veremos, a coincidência é total. 5. Pe. Yves Congar, o.p. O famoso dominicano francês, como se sabe, é um dos principais pioneiros da teologia do laicato. Sua magní ca obra Jalons pour une théologie du laicat (1956) abriu um profundo sulco na teologia moderna e, ainda que tenha sido superada em algum ponto, não se poderá prescindir dela sempre que se queira dizer algo sério em torno do tema dos leigos. No capítulo 9 dessa obra, dedicado precisamente à “espiritualidade e santi cação dos leigos situados no mundo”, assim se expressa o Pe. Congar:6 Não entraremos no debate recentemente promovido em torno da palavra “espiritualidade”. Aqueles que, atribuindo-lhe toda a sua precisão e densidade teológicas, descartaram a idéia de uma “espiritualidade” do clero diocesano ou do laicato, receberiam facilmente nossos votos; mas aqueles que, tomando o termo em seu sentido concreto e descritivo, se esforçaram por reunir os elementos de uma “espiritualidade” do clero diocesano, do apostolado ou do laicato, nos encontrariam acolhedores e simpaticamente atenciosos. Empregaremos ou evitaremos essa palavra de modo quase indiferente. Porém, se a escrevemos entre aspas no subtítulo do capítulo, é principalmente para que aqueles aos quais ela é familiar saibam que nosso propósito é falar daquilo a que estão acostumados a entender sob esta expressão e que, sem dúvida, se poderia expressar com mais exatidão da seguinte maneira: quais são as condições particulares em que os leigos têm de santi car-se; que valores, que características implicam essas condições na vida dos leigos? Porque há uma primeira verdade que deve dominar toda a questão: existe apenas um cristianismo; e a obrigação de tender para a união com Deus em Cristo, isto é, para a santidade, longe de ser um oneroso e exclusivo privilégio de sacerdotes ou religiosos, impõe-se a todos os cristãos em razão desse único cristianismo que lhes é comum. Entretanto, as vocações são distintas, diferentes as situações e as condições de vida, diferentes os deveres concretos dos estados. De sorte que se torna verdade, ao mesmo tempo, dizer que não há nenhuma espiritualidade própria dos leigos, já que eles só têm a espiritualidade cristã comum,7 e que existe uma espiritualidade da vida laica face a

uma espiritualidade da vida sacerdotal ou da vida religiosa; já que cada uma destas vidas tem suas circunstâncias, seus deveres e suas possibilidades próprias, e a vita in Christo se encontra assim afetada por certas modalidades. Bem sabemos que o monge não é mais do que um cristão que leva até o limite as exigências do único necessário, sem cuja primazia não haveria vida cristã digna deste nome;8 igualmente se pode dizer que a vida espiritual do sacerdote é apenas a exaltação da vida cristã.9 Mas os leigos não fazem os votos da vida monástica e não têm seus benefícios, nem suas obrigações; não administram sacramentos nem exercem a paternidade espiritual do sacerdócio, com suas exigências ao mesmo tempo duras e animadoras. Por outro lado, exercem pro ssões e atividades da cidade carnal que os sobrecarregam e marcam profundamente; eles formam, homem e mulher, o casal natural em que a espécie existe de forma completa e pode se perpetuar; têm lhos que alimentam e educam até a idade em que, por sua vez, estes poderão tê-los; e isto, mais uma vez, os sobrecarrega e marca até o cerne de sua existência. Em uma palavra, é claro que seu “ser em Cristo” é da mesma essência que o dos sacerdotes e monges, mas não igual em suas circunstâncias e práticas concretas. Isto é su ciente.

6. Pe. Pietro Brignoli, s.i. Na introdução de sua esplêndida obra La spiritualità dei laici, que citaremos com freqüência, assim se expressa o ilustre jesuíta italiano: Os problemas apresentados por uma “espiritualidade própria dos leigos” podem ser reduzidos em bloco aos três seguintes:10 1) Ocorre, no sentido estritamente teológico (e não somente no empírico-descritivo), uma espiritualidade especí ca dos leigos? Ou seja: oferece-se aos cristãos que estão “no mundo” um modo próprio de se encontrar com Deus e de alcançar a perfeição da caridade que seja de imersão no mundo e de consagração no mundo? Em que sentido tal espiritualidade vem a se distinguir da espiritualidade “fora do mundo” ou de renúncia ao mundo, que caracteriza, pelo contrário, a vocação sagrada dos outros estados de vida da Igreja, a saber: o estado sacerdotal e o dos conselhos evangélicos? Veremos, na primeira parte, em relação ao “estado dos conselhos”, de que modo particular o estado laical se especi ca segundo uma modalidade própria de se encontrar com Deus, a qual quer ser, não de transcendência do mundo e de renúncia aos valores do mundo — ao menos segundo aquela modalidade de transcendência e de renúncia que se realiza no estado dos conselhos, relativa aos três votos de pobreza, castidade e obediência —, mas de imersão no mundo, e de seu uso e fruição cristã, consagrando-o (segundo todas as suas dimensões humanas e cósmicas) a Nosso Senhor Jesus Cristo.11 Se for demonstrado que tal espiritualidade própria dos leigos acontece realmente, vamos perguntar-nos, depois, que especi cações devem ser feitas a ela, a partir de um ponto de vista estritamente teológico, precisamente enquanto espiritualidade “dos leigos”.

Sobre esta ordem de problemas trataremos nos dois primeiros capítulos da segunda parte, depois de ter introduzido melhor o leitor na mesma problemática, em uma primeira parte com valor de ambientação. 2) Uma segunda série de problemas afeta a validade (ou as condições de validade) de tal espiritualidade para alcançar ou conseguir a perfeição cristã. Trataremos deles no capítulo terceiro da segunda parte. Porém, faremos ver ao leitor, desde as primeiras páginas, de que modo a espiritualidade dos leigos quer ser considerada, precisamente enquanto “no mundo” e “por meio do mundo”, como um caminho de autêntica perfeição evangélica, e não como um paliativo de segunda classe para religiosos ou sacerdotes defeituosos ou incompletos (mancati). 3) Se a espiritualidade de encarnação, própria dos leigos, se mostra como um caminho válido para alcançar a autêntica perfeição cristã, em que relação ela se encontra a respeito da espiritualidade própria do estado dos conselhos? Representa este último estado de vida a “forma pura” do cristianismo, até o ponto em que a espiritualidade dos leigos deva ser regida segundo o estilo espiritual próprio dos religiosos, ou constitui somente uma das modalidades possíveis de viver a vida cristã, ainda que seja a modalidade objetivamente mais elevada? Dessas relações de interexemplaridade ou intercomplento vamos tratar em apêndice ao volume, como notas de valor unicamente complementar.12

7. Pe. Albino Marchetti, o.c.d. No nal de sua breve mas substanciosa obra Spiritualità e stati di vita, o conhecido carmelita italiano resume seu pensamento da seguinte forma:13 Agora podemos responder, com conhecimento de causa, à pergunta sobre a possível existência de uma espiritualidade dos leigos. Na ordem prática, não cabe a menor dúvida de que os leigos podem viver uma espiritualidade muito intensa, e que, mesmo em meio ao mundo, existe grande multidão de éis que servem a Deus em espírito e verdade. A questão discutida é antes de caráter teórico, e coloca o problema de existir uma espiritualidade própria dos leigos, distinta da espiritualidade cristã. Em nosso parecer, a espiritualidade dos leigos é essencialmente a espiritualidade cristã radicada no Batismo e na adoção divina. Entretanto, ocorrem, na espiritualidade dos leigos, aspectos e atuações características. O leigo, exatamente por ser leigo, vive no mundo, tem uma família, desempenha um trabalho ou uma pro ssão. Sua vida espiritual deve harmonizar-se com este ambiente, com seus fatores favoráveis e adversos, com suas situações e tentações. Ele vive como lho de Deus no meio da Criação, pondo a serviço do Senhor tudo quanto encontra de bom e lutando contra o mal de qualquer modo ou em qualquer lugar onde se apresente.

Sua espiritualidade, pelo ambiente em que se desenvolve, impõe o combate espiritual, exige uma ascética de desprendimento e o cumprimento perfeito de seus deveres familiares, pro ssionais e sociais. O leigo se serve de todas as realidades terrenas, inclusive do dinheiro e da liberdade, mas em dependência de Deus e ordenando tudo para sua glória. Por isso ele presica praticar de modo particular algumas virtudes, tais como o espírito de fé, para conservar a orientação sobrenatural em meio aos desvios do mundo, a energia de caráter, para lutar contra as insídias do mal e os maus exemplos, o espírito de caridade e o apostolado. Santi cando-se na família, no trabalho, na pro ssão, o leigo santi ca essas atividades humanas e as restitui à sua dignidade de instrumentos de perfeição e de conquista espiritual. Não existe uma espiritualidade leiga distinta da cristã; mas a espiritualidade cristã vivida por leigos conota sua permanência no mundo e, por isso, apresenta exigências concretas e atuações próprias. Entre a espiritualidade cristã e a laical, existe uma substancial equivalência, com algumas acentuações características. A espiritualidade cristã reúne e realça os fatores sobrenaturais que motivam a relação de todos os éis com Deus; a espiritualidade laical inclui certos fatores externos que não modi cam substancialmente as condições do cristão perante Deus, mas que criam situações e atitudes particulares. A espiritualidade dos leigos não é outra coisa senão a espiritualidade cristã vivida no meio do mundo, no trabalho, na família, com todas as conseqüências que o ambiente impõe. Não existem diferenciações intrínsecas, objetivas, mas unicamente circunstâncias extrínsecas reais, que impõem um modo próprio na atuação da mesma graça da adoção divina. Como em nossos dias se tornou habitual escrever e falar da espiritualidade dos leigos, parece-nos (apesar de haver alguma resistência, não de todo injusti cada) que a expressão possa ser aceita, não no sentido de que o estado laical constitua a base de uma espiritualidade nova, mas enquanto apresenta a espiritualidade cristã com as atuações impostas por um determinado ambiente.

Como se vê, para o sábio carmelita italiano não existe entre a espiritualidade cristã e a laical uma diferença especí ca essencial, mas unicamente modal dentro da mesma espécie. Acreditamos que esta é, efetivamente, a verdade objetiva das coisas. Mas continuemos nosso percurso pelos principais autores que falaram sobre este tema, nos quais encontraremos novos aspectos e matizes para enriquecer doutrinalmente esta questão básica e fundamental no conjunto de nosso estudo. 8. Pe. Rafael Oeschslin, o.p. O ilustre dominicano suíço, autor de numerosos estudos sobre temas de espiritualidade cristã, concebe

do seguinte modo a espiritualidade laical:14 Deste modo, podemos também falar de uma espiritualidade dos leigos. Como todos os cristãos, eles receberam a vocação para a vida divina. Mas eles a desenvolvem segundo esse determinado tipo de vida para o qual a Igreja oferece um marco espiritual próprio, adaptado à condição dos homens imersos no mundo. Eles não receberam uma consagração especial que os capacitaria a exercer funções particulares no Corpo místico para difundir os meios de salvação; tampouco se obrigaram perante a Igreja pela especial consagração pessoal dos votos. Sua condição no Corpo místico é, por conseguinte, distinta daquelas dos clérigos e dos religiosos. De fato, por sua situação no Corpo místico, desenvolvem sua vida cristã a partir de certa perspectiva que será preciso determinar em relação ao centro vital deste Corpo, que é Cristo Cabeça, oferecendo-se em sacrifício. Eles participam da salvação do mundo em função de seu compromisso temporal. Os instrumentos de salvação, que são os sacramentos e a vida cristã simples e virtuosa, tudo se reveste em sua existência de uma espécie de coloração proveniente de sua condição de leigos. En m, a Igreja põe à disposição deles estruturas de vida, certos marcos ou planos espirituais destinados a alimentar sua vida de cristãos imersos no mundo. Todo este conjunto, ao mesmo tempo espiritual e corporal, temporal e de conseqüências eternas, é que dá à espiritualidade dos leigos o seu caráter próprio.

9. G. Philips. Em sua celebrada obra sobre a Missão dos leigos na Igreja, escreve o Padre Philips:15 Seria um erro considerar a espiritualidade dos clérigos como uma diminuição daquela dos monges, e a espiritualidade dos leigos como uma diminuição desta diminuição: o resultado destas diminuições acabaria por ser muito pouca coisa. Por outro lado, tal procedimento desconhece as situações de fato. Se os religiosos são os pro ssionais em busca da perfeição, não se conclui daí que todos os demais sejam simples amadores. Os grupos se diversi cam, não segundo sua concepção da vida cristã, mas segundo as particularidades de uma vocação especial e as circunstâncias de sua existência concreta. Mas este conjunto é de tal maneira premente e modela tão profundamente a alma, que resulta dele um tipo espiritual particular. Jamais ocorreria a nenhum católico subestimar a vocação dos religiosos. Eles abandonaram todos os valores temporais e, neste sentido, desprezam-nos sem os maldizer.16 E renunciam a eles em vista de um bem maior, embora continuem admitindo que os leigos devam santi car-se não fora, mas dentro de seu meio de vida, isto é, dentro do marco dos valores naturais. Eles — os leigos — devem permanecer éis a seus deveres de estado, como, por exemplo, a dedicação à sua família e ao trabalho para a prosperidade da nação. Isto não é para eles alguma desgraça nem um motivo de desprezo, mas uma obrigação sagrada. Não vivem somente no meio dos seus, mas também, em certo sentido, para os seus, participando de suas preocupações e ajudando-os a levar corajosamente a sua carga. Para isso, Cristo providenciou-lhes um sacramento, o Matrimônio, que não é possível considerar como um sacramento suspeito.17 Entretanto, a união imediata com o Esposo celeste pela consagração virginal pode ser destinada por Deus mesmo àqueles

que vivem no mundo; e ela supera em valor a imitação desta união de Cristo com a Igreja pelo Matrimônio cristão. A espiritualidade leiga não se reduz somente à mística matrimonial: tem um sentido e um alcance mais amplo. Comparada com o ideal dos religiosos, não se pode representála como um artigo rebaixado, como uma edição a preço reduzido. Trata-se de outra coisa, a saber, de uma modalidade especial que, embora não seja a suprema, ainda assim conserva seu valor, contanto que não resvale para a auto-idolatria ou para uma visão restrita. Não esqueçamos que a vida no convento não envolve unicamente um retiro espiritual, mas também uma separação local, física, materializada na clausura. Por mais mitigada que esta se encontre em nossos dias, o espírito foi conservado, e se fossem derrubados todos os muros, já não existiriam claustros. Sob este aspecto, os irmãos leigos e as irmãs leigas, que o Direito Canônico considera como “laicos”, são verdadeiros religiosos cuja morada eles compartilham com os outros. Quanto aos leigos, é sua condição cristã no mundo, sua existência e sua atividade no século, o que determina sua maneira de amar e de servir a Deus e ao próximo e, portanto, a sua espiritualidade. Esta última não se caracteriza por um objeto que seria exclusivamente ou em sua maior parte profano, mas que depende de um sujeito plenamente comprometido com a situação secular, que é aquela da imensa maioria dos homens.

10. Gustavo Thils. Em sua conhecida obra sobre a Santidade cristã, Thils concebe a espiritualidade secular18 da seguinte maneira: O tipo laical se caracteriza pelo fato de que ele trata de se santi car “no mundo” e, subsidiariamente, em uma “vocação temporal de ordem profana”. O “santo leigo”, no sentido típico, viverá em uma situação “mundana”. Ele se aperfeiçoará estando no mundo, participando das vicissitudes daqui debaixo, intervindo na vida social e política, ajudando o progresso da cultura ou das artes, atuando nessas “novas dimensões” que foram chamadas de “cósmicas”. E responderão neste mundo a uma vocação profana, não sacra. Vocação profana na família, no ensino, na indústria, nas nanças, nos trabalhos domésticos. Ao caracterizar assim o “tipo laical”, não queremos falar do laicato no sentido teológico, nem, muito menos, em sentido canônico. Simplesmente fazemos alusão a um tipo de cristão, desejoso de realizar um cristianismo pleno “dentro” de estruturas terrenas e temporais. Resulta disso uma “santidade” de um gênero também muito peculiar.

Depois de ter ouvido o parecer de alguns dos melhores especialistas estrangeiros nesta matéria, vejamos agora o que dizem alguns dos espanhóis mais conhecidos. A coincidência de

fundo é completa, mas enriquecida com matizes e detalhes muito próprios do engenho e do caráter espanhol. 11. Pe. Emilio Sauras, o.p. O ilustre teólogo dominicano, conhecidíssimo na Espanha e no estrangeiro por suas magní cas intervenções nas grandes assembléias teológicas e por sua magistral obra El Cuerpo místico de Cristo — publicada nesta mesma coleção da —, coloca do seguinte modo a questão que estamos examinando:19 Que sentido tem a palavra espécie quando se fala de uma espiritualidade secular especí ca? Se buscarmos aqui uma espécie ontológica, não a encontraremos. A espécie ontológica da perfeição cristã é uma só: a que é dada pela graça santi cante e pela caridade. Estas santi cam o sacerdote, o religioso e o leigo. Está claro, pois, que não se deve procurar uma espécie ontológica de espiritualidade leiga. Se ela existe, será moral. Uma espécie moral que não deixará de ser uma realidade pelo fato de que todos os estamentos cristãos coincidem na unidade da outra espécie. De fato, fala-se de uma espiritualidade sacerdotal e de uma espiritualidade monástica. Por que não falar também de uma espiritualidade leiga? Fala-se sobre a espiritualidade sacerdotal porque a graça santi cante e a caridade do sacerdote possuem um quid especial adaptado ao caráter da Ordem e às graças atuais com que Deus o ajuda. Fala-se da espiritualidade monástica porque a graça santi cante e a caridade do religioso recebem um quid quando se manifestam ou se depuram pelos três votos de sua pro ssão. Não existiria nada especial e de ordem sobrenatural nos leigos que justi casse a existência de uma espiritualidade especí ca para eles? Não possuiriam eles somente o que é comum, e, por sê-lo, também o possuem os sacerdotes e os religiosos, nos quais, além disso, encontramos o especí co que se acaba de citar? Sim, também eles possuem algo especial. Basta recordar duas coisas: a graça sacramental do sacramento do Matrimônio nos casados, e as graças atuais que casados e não-casados recebem para santi car a partir de dentro, ou por meio de sua vivência, os ambientes e as pro ssões em que desenvolvem sua vida. Aquela graça sacramental e estas graças atuais darão um quid característico à graça santi cante e à caridade do leigo. Nisto consistirá precisamente a espiritualidade secular. E será preciso notar que, dada a natureza desta espécie (tratar-se-á, supomos, de uma espécie moral), não deveremos estranhar as interferências. As espécies morais não possuem de ordinário a rigidez e a impermeabilidade que têm as metafísicas. O fato de que aquilo que for estabelecido como especí co do leigo, ou algo semelhante a isso, ocorra ou possa ocorrer também ocasionalmente nos sacerdotes e nos religiosos, não é uma di culdade maior contra a existência da espiritualidade especí ca que se procura.

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12. Pe. Álvaro Huerga, o.p. O conhecido professor da Universidade Pontifícia “Angelicum”, de Roma, que tantas e tão boas coisas escreveu sobre temas de espiritualidade, hesita e não se atreve a dar uma de nição especí ca da chamada “espiritualidade secular”. Ele diz o que ela não é — o que não deve ser —, mas não se atreve a apontar sua diferença especí ca positiva da espiritualidade cristã em geral. Eis suas próprias palavras:20 A meu parecer, dois postulados devem servir de ponto de partida para encontrar a diferença especí ca — aquela que constitui uma coisa em si mesma e a distingue das demais — da espiritualidade dos leigos: 1º — Não se deve colocar esta última e especí ca diferença em nenhum dos elementos analisados mais acima, a saber: nem na via — que é uma e vai para a mesma meta —, nem nas virtudes que temos chamado de “comuns” a todos os cristãos, nem na doutrina geral do Corpo místico, nem na “vida sacramental” pela qual o homem se enxerta em Cristo, participando de seu ser e de seu viver pela graça e pelas virtudes e dons que dela emanam. 2º — Será, se for, alguma coisa que se deve procurar nos matizes ou nos detalhes peculiares que se encontram na encarnação concreta destes princípios comuns, ou no esquema teológico dos “estados de vida particular”. Minhas observações sobre o comunitário não são tão obcecadas a ponto de negarem categoricamente a possibilidade de uma matização especí ca encarnada. Mesmo em se tratando de unidades morais — seria absurdo aplicar aqui os conceitos de unidade substantiva ou entitativa —, podem ser cabíveis espécies morais distintas. Mas será preciso demonstrá-lo. E, com isso, eu nada prejulgo.

13. Lilí Alvarez. Para formar uma idéia completa e cabal de seu pensamento sobre a espiritualidade própria do leigo, é preciso ler e meditar com atenção sua discutida obra En tierra extraña, dedicada integralmente a esclarecer o intrincado problema. Mas o seguinte parágrafo nos dará, talvez, a idéia-chave que ilumina e informa toda a sua teoria:21 Sem o perceber muito bem, nos encontramos diante de um fato capital na história da consciência religiosa, e que só recentemente começamos a vislumbrar: existem, efetivamente, duas formas mestras e básicas de espiritualidade. Duas formas que compreendem e dividem em si os múltiplos caminhos particulares que levam para Deus.

Eu quali caria uma delas como “ascendente” e a outra como “descendente”. A ascendente é própria do religioso: é aquela do puro oferecimento e da renúncia de si, na espera do êxtase divino, que o rouba — ou o a-rrouba — desta terra baixa, suja e apagada, até o céu da glória... como Elias arrebatado pelo carro de fogo. Esta é, se me permitem a expressão, uma espiritualidade de assunção. Já o leigo, por seus afazeres humanos — ou intramundanos —, traz Cristo para a terra. Ele O faz descer outra vez entre nós na inumerável variedade de nossas ocupações, difunde-O pela amplitude dilatada da temporalidade. Portanto, a sua espiritualidade é de encarnação. Ambas são formas plenas, autênticas e “positivas” de religação; tal como houve duas formas plenas e igualmente ásperas de ascetismo que as precederam. Esta dualidade, este casal de formas espirituais, parece-me da mais absoluta e simples evidência. E também me parece que, enquanto não as distinguirmos e não chegarmos à profunda compreensão de sua diversidade, não chegaremos ao complexo conhecimento do fato religioso, que é o que necessitamos nesta hora. Sem este conhecimento, não poderemos aquilatar nem entender, em seus matizes e mais nos impulsos, as diversas manifestações do Espírito divino que se apresentam em nosso mundo caótico e aparentemente perdido.

Mais adiante, ao alertar o leitor sobre os perigos que espreitam cada uma dessas duas dimensões — a ascendente e a descendente —, quando exacerbadas em demasia e arrancadas das dobradiças, a ilustre autora escreve:22 Esta é propriamente a espiritualidade laica. Ela está voltada para esse fervedouro de energias humanas no qual aquele que é a Vida combate para abrir caminho e estender seu reinado: o leigo é o lho de Deus dedicado e voltado para o acontecer sobrenatural terrestre. Por esta sua “direção” espiritual, o leigo é especi camente apostólico e ativo. Pertence à escola de Marta, e seu perigo é viver “demasiadamente agitado” em uma variedade de afazeres e não se voltar su cientemente para o pólo orante de seu ser. Assim como o perigo daquele que pertence à escola de Maria, o contemplativo, será que, em sua absorção pelo divino, permaneça encerrado em si mesmo e não chegue a essa abertura suprema que derrama a alma como uma fonte de amor sobre os irmãos.23

Existe, pois, segundo Lilí Alvarez, uma clara e manifesta diferenciação especí ca — ao menos modal: ascendente, descendente — entre a espiritualidade do religioso e a do leigo. O que ca mais difícil de explicar é a espiritualidade própria do sacerdote secular, pois de algum modo ele participa de ambas, sem incidir de todo em nenhuma delas. Ouçamos suas próprias palavras:24

Nesta divisão dos modos espirituais, um deles pertence aos monges e o outro é próprio do povo, dos éis; o que se mostra mais complicado de de nir é o simples clérigo secular, porque ele possui algo dos dois campos: por sua “raiz” ele pertence à espiritualidade religiosa, é um “separado” que passou pela “morte”, que “morreu” e que, no entanto, está voltado para nós: sua existência está misturada com aquela dos que estão envolvidos no tráfego diário do viver comum. Em um sentido ainda mais elevado, mais contrastado que o leigo, ele “é e não é do mundo”. Ou, dizendo com mais propriedade, “não é e é do mundo”. Ele está neste mundo, e, no entanto, não pertence em absoluto a ele. Sem o querer, ele tem de inteirar-se e estar mais “em dia” que o religioso para poder ajudar a seus paroquianos. Precisa nos “falar de Deus”, mas também tem de nos entender um pouco para que seu falar tenha sentido para nós e surta efeito. Ele tem de saber sobre Deus e sobre os homens, o que é pedir muito. Fazer frente a esta dupla ciência é coisa muito difícil; assim, ocorre facilmente que, ao saber mais sobre uma coisa, sabem menos da outra.

Convidamos o leitor a ler integralmente, por si mesmo, o esplêndido livro de Lilí Alvarez. Apesar de seus equívocos — era forçoso incorrer neles, considerando o terreno inexplorado em que pisava —, ela tem vislumbres muito certeiros, e é do melhor que se escreveu sobre a espiritualidade própria dos leigos. Sem dúvida, o melhor vindo do próprio campo secular. 14. José María Cabodevilla. Em seu magní co estudo Homem e mulher — publicado nesta mesma coleção da —, ele dedica um breve capítulo à “espiritualidade leiga”. A ele pertencem os parágrafos seguintes, nos quais se percebe o eco profundo de Lilí Alvarez:25 É mister, por conseguinte, distinguir mais de uma espiritualidade, distinguir ao menos duas: a espiritualidade que foi chamada de “assunção” — privação, segregação — e a da “encarnação” — uso, permanência no mundo. É verdade que a espiritualidade cristã de certo modo é única, pois, a nal, toda perfeição se resume, para uns e para outros, na prática do amor teologal; mas, ao mesmo tempo, é igualmente verdade que se pode e se deve apontar várias formas de espiritualidade, e não só por seu método, como também por seu conteúdo. Tais formas se distinguem pelas diferentes graças concedidas por Deus aos homens para o cumprimento de seus diferentes destinos. Destinos que, em uma primeira distribuição básica e principal, podem ser divididos em dois grupos, correspondentes aos dois tipos de espiritualidade que acabamos de mencionar: um destino de renúncia e fuga das coisas temporais, e um destino de desfrute e de imersão no mundo. Ainda que estes dois destinos inter ram parcialmente em cada uma das almas

— o religioso, ao menos o ativo, deverá praticar alguma aproximação e imersão; e o leigo também tem, em certo sentido, que se afastar do mundano —, não há dúvida de que a acentuação é muito diferente e autoriza uma classi cação de espiritualidades. Dizemos “encarnação” porque o leigo encarna Cristo na realidade deste mundo e é como o sacerdote de toda a vida natural. O leigo é também sacerdote ou mediador; não, por certo, mediador do sacrifício cultual e da administração da vida divina entre os homens, mas mediador da vida divina entre Deus e o mundo. O secular batiza o mundo, ele dá nome às coisas, tal como Adão — nomes para Deus. Deve santi car as realidades mundanas, e não só por sua pureza de intenção, mas também por sua própria ação, convencido de que Deus atua e participa de toda a sua atuação. Assim, sua espiritualidade somente será completa e satisfatória quando envolver todas as suas atividades e zer de todas elas uma prece de oblação; do contrário, somente os exercícios de estrita piedade seriam religiosos — ou re-ligantes com Deus —, enquanto o restante de sua vida permaneceria vazio enquanto profano.

E uma página à frente, a m de evitar o fácil e, ao mesmo tempo, terrível equívoco e confusão a que poderia dar lugar, se mal compreendido, o binômio “fuga-imersão”, Cabodevilla escreve acertadamente: Supõe um preconceito sumamente injusto pensar que aquele que abandona o mundo o faz tão-somente para não se contaminar por ele, assim como revelaria uma insustentável ingenuidade acreditar que aquele que permanece no mundo busca precisamente santi car seu entorno. É necessário saber que o homem que se retira para o claustro não escapa da luta, pois, por toda parte aonde for, ele leva consigo seu demônio particular; além disso, a partir de sua solidão ele pode estar conseguindo valiosos proveitos para seus irmãos. E é igualmente necessário ressaltar que o cristão resolvido a desempenhar uma tarefa salvadora no meio da cidade tem de se proteger com cuidado dos in uxos nocivos que sua fraca resistência espiritual não poderia neutralizar ou superar. É tão censurável fugir por covardia quanto cair por temeridade. O posicionamento da espiritualidade de “assunção” não pode ser realizado sob uma luz meramente negativa, de fuga do mal, mas deve ser feito do ponto de vista da fé, que proclama a in uência positiva e saudável dos sacrifícios ocultos e das vitórias anônimas e remotas, tão necessária aos que vivem ligados à terra; a mesma fé que conforta o coração daquele que sabe muito bem, ao se encaminhar para o paraíso do mosteiro, das muitas dores, vacilações e amarguras que ali o esperam. Da mesma forma, a conduta daqueles que cam no mundo, submersos nos cuidados temporais, tampouco deve ser forçosamente concebida como uma covardia, uma recusa aos convites para uma austeridade e um despojamento maiores; covardia que seria ainda mais forte que aquela presumida de quem chamaríamos de fugitivo dessas refregas e trabalhos da vida terrena. No mundo, entre os afazeres mundanos, é cabível uma atitude santa, uma ânsia puríssima de “encarnar” a Cristo. Somente em um contexto construtivo essas duas espiritualidades podem ser compreendidas justamente.

E só no interior de uma espiritualidade adequada pode achar paz e alimento su ciente a alma que, permanecendo no mundo, sabe que não é deste mundo; a alma que, sabendo que não é deste mundo, conhece sua obrigação de santi cá-lo, de oferecê-lo diariamente ao Criador. Ao distinguir estas duas espiritualidades, se realça e se torna mais fecunda a idéia do grande Corpo místico, no qual existem membros numerosos e muito diferentes, com ampla diversidade de funções (cf. 1Cor 12, 4–6).

15. Baldomero Jiménez Duque. O insigne tratadista em questões de alta espiritualidade cristã não acredita que se possa especi car a chamada “espiritualidade leiga” pelo fato de o leigo viver no mundo e ter de santi car as estruturas do mundo — já que esse trabalho, de uma forma ou de outra, é comum a todo cristão, seja ele sacerdote, religioso ou leigo —, mas nas obrigações que brotam para o leigo de sua simples condição de cristão, exclusivamente. O leigo seria o cristão tout court (nem mais, nem menos), como se diz em francês. Assim, o cristão secular não teria uma espiritualidade própria e especi camente sua, mas somente a genérica e comum que brota de sua vocação cristã, vivida no mundo sem maiores complicações. Ouçamos o próprio Jiménez Duque:26 Como, então, de nir “positivamente” o leigo como o batizado que vive seu cristianismo através de seus compromissos familiares e de seus compromissos com o mundo — pro ssionais, laborais, políticos etc.? De uma forma ou de outra, isto é algo mais ou menos comum a todo cristão que está, seja como for, fazendo parte também da sociedade terrestre. O mais e o menos não contam quando se trata de especi car o essencial. O mais ou o menos são puro acidente. Por isso, acredito que o leigo não pode ser de nido além do que já zemos: o batizado, pessoa natural e sobrenatural na Igreja, com todos os direitos e deveres que daí derivam. Este é o gênero, em jargão eclesiástico. É para o clérigo e o religioso que se deve procurar uma de nição com base em uma diferença especí ca. Uns e outros são leigos batizados; mas, dentro disso, eles são algo a mais... seja lá o que for. A partir daí, o leigo-secular será aquele que não é mais do que isso: leigo sem acréscimos, sem compromissos especiais, sacramentais ou não, sem repercussões sociológicas correspondentes que possam colorir de modo especial sua existência cristã temporal. Eu não vejo que se possa dar uma de nição positiva do leigo. E mais: isso não faz falta. Ela já existe: é a de todos, simplesmente. Os clérigos e os religiosos são aqueles que precisam acrescentar, àquela de nição, novos elementos que os diferenciem da plebe cristã em geral.

Espiritualidade leiga? Por conseguinte, é a espiritualidade cristã, sem mais. O que se deverá estudar é o especí co da espiritualidade clerical e “religiosa”. O leigo viverá simplesmente a espiritualidade que está na raiz de toda vida cristã, e que é digna dela em qualquer situação em que se encontre. As separações, as condições especiais, os problemas raros, serão mais apropriados quando se tratar dos outros. Por isso, fazer um programa de santidade leiga seria fazer o programa básico e comum a toda santidade da Igreja, sem maiores complicações. Até quantitativamente falando, o povo santo de Deus, a Igreja, é em si o “homem da rua”.

Embora haja muito de verdade nas a rmações precedentes de Jiménez Duque, não podemos, contudo, compartilhar por inteiro de sua visão do leigo na Igreja. Parece-nos que, em conjunto, sua teoria está desfocada e é essencialmente incompleta. De fato, não só a quase totalidade dos teólogos opinam de modo diferente — como já vimos e continuaremos a ver ao longo de toda a nossa obra —, mas a própria doutrina do Concílio Vaticano nos leva — cremos — a conclusões diferentes. Acaso o Matrimônio, que a imensa maioria dos leigos recebe, não supõe um especialíssimo compromisso sacramental? E será que o dever de “consagrar o mundo”, comum, de certo modo, a todos os batizados em Cristo, se realiza do mesmo modo especí co, seja a partir de dentro — isto é, vivendo-o: tarefa própria do leigo —, seja a partir de fora — isto é, pela oração, pelo sacrifício e pela renúncia: tarefa própria do monge —, seja ainda com um pé em ambos os estribos — isto é, permanecendo nele, mas sem o viver: tarefa própria do sacerdote secular? Por isso acreditamos que a teoria de nosso querido e admirado amigo não abrirá caminho entre os teólogos, apesar das distinções e restrições com que ele mesmo trata de esclarecer seu pensamento nas páginas anteriores e posteriores às que acabamos de citar. 16. Vicente Enrique Tarancón. O ilustre prelado espanhol especi ca muito bem a existência e o conteúdo fundamental da

espiritualidade secular nas seguintes páginas de uma de suas magní cas pastorais:27 “Os leigos”, dizia ele, são chamados à santidade por serem membros do povo santo de Deus. Mas a santidade consistirá para eles em viver, segundo a doutrina de Cristo e o espírito do Evangelho, a sua própria vida de leigos, e em utilizar os meios mais adequados, na ordem ascética, para dar à sua atuação no mundo o conteúdo e a nalidade sobrenatural que é própria de um membro do Corpo de Cristo. O espírito dos chamados conselhos evangélicos: pobreza, castidade e obediência, é fundamental na vida cristã, porque é o espírito de Cristo. Mas esse espírito evangélico deverá encarnar-se nos leigos de maneira diferente do que nos sacerdotes ou religiosos. Pode-se a rmar, como norma geral completamente certa, que cada um deve se santi car em seu estado e por meio de seu estado, em sua função social e por meio dela, porque a santidade há de assumir em cada um as características da própria vida, e o mesmo se deve a rmar sobre os leigos. Estes deverão santi car-se no Matrimônio e pelo Matrimônio, na pro ssão e pela pro ssão, com sua permanência no mundo e por meio dela. O Matrimônio é um sacramento que dá aos casados a graça para viverem santamente constituindo uma família. A castidade possui um matiz próprio na intimidade conjugal. Mas não será preciso que os casados renunciem a nada da vida matrimonial para encarnarem o espírito evangélico, nem para chegarem à perfeição que lhes é própria. Tudo é santo no Matrimônio, se feito na graça de Deus e em conformidade com as leis do Matrimônio cristão. As coisas materiais, os bens terrenos e as atividades temporais, podem ser um meio de santi cação; e devem sê-lo, segundo o plano divino. Os leigos não devem renunciar aos bens terrenos, mas servir-se deles segundo o plano de Deus e em benefício da sociedade, cujo desenvolvimento econômico devem procurar e estimular. Não devem renunciar às atividades temporais — políticas, etc. —, ao contrário, se comprometerão com elas para conseguir o bom governo dos povos, e se servirão dessa atuação para seu aperfeiçoamento espiritual. A pro ssão é uma função social que serve também para atender às próprias necessidades, mas que possui força santi cadora se realizada com reta intenção e inspirada pela caridade sobrenatural, porque no plano de Deus o homem está ordenado a um m sobrenatural, e tudo nele deve ter essa transcendência e buscar essa nalidade. E como esta dedicação às coisas humanas e terrenas especi ca propriamente o leigo como membro do povo de Deus, e esse é seu dever próprio como cristão, sua vida espiritual deverá estar condicionada por essa inevitável realidade.

Na mesma linha das palavras que acabamos de transcrever, Mons. Tarancón estabelece a comparação entre o sacerdote, o religioso e o leigo, concluindo seu pensamento sobre a espiritualidade própria deste último. Aqui estão suas próprias palavras: O sacerdote, que tem na Igreja uma função social e foi constituído em favor dos homens, deverá ordenar sua vida espiritual e seus atos ascéticos para esse serviço. Ele não pode se fechar em sua casa para dedicar-se à oração, descuidando o serviço espiritual a seus irmãos. O monge e o religioso de vida contemplativa deverão santi car-se pelo distanciamento do mundo e pelo ambiente recolhido de toda a sua vida. Normalmente, eles não podem deixar o retiro nem romper sua solidão pelas atividades externas, mesmo que sejam apostólicas. O leigo vive no mundo e se dedica às atividades temporais. Terá de ordenar sua vida espiritual ao cumprimento desse dever de sacralizar as coisas terrenas. É verdade que o leigo também necessita da oração, do recolhimento, da morti cação, da freqüência aos sacramentos, para manter seu espírito. Mas não pode servir para ele a norma ascética que será obrigatória para o monge, nem aquela que o sacerdote irá impor-se. É evidente que os leigos não poderão levar normalmente a vida de recolhimento e oração que os outros vivem. Está muito claro que os casados não poderão fazer muitas das morti cações que os religiosos têm como regra. Seria um equívoco propor a eles uma norma de vida que não poderiam cumprir sem deixar de atender a suas obrigações familiares, políticas, etc. E não é apenas uma questão à margem aquela que se coloca por falta de tempo ou de oportunidade. Antes, trata-se de uma orientação diferente da espiritualidade, para que realmente possam conseguir a santidade a que estão chamados. Assim como o sacerdote e o religioso devem ser antes de tudo e sobretudo sacerdotes e religiosos, e hão de subordinar todas as coisas ao cumprimento de seu dever sacerdotal ou de sua vida religiosa, assim também o leigo tem de ser antes de tudo e sobretudo autenticamente leigo. Para ele, a santidade consiste precisamente em viver a sua própria vida secular segundo o espírito evangélico, e não em imitar asceticamente o sacerdote ou o religioso. Além disso, somente assim o seu testemunho cristão será autêntico e e caz, como direi depois.

Já é su ciente. Poderíamos seguir reunindo o parecer de grande número de autores nacionais e estrangeiros sobre a questão que nos ocupa. Porém, através do resumo que acabamos de fazer, pudemos avaliar com toda a clareza que, hoje, não se pode abrigar

a menor dúvida acerca da existência de uma espiritualidade autêntica e propriamente leiga. Qual seja a sua natureza íntima e que relação ela mantém com a espiritualidade cristã em geral, são questões que estudaremos amplamente nesta obra. Aqui — como dissemos no princípio desta pesquisa —, interessava-nos unicamente averiguar se existe e é possível falar de uma espiritualidade autêntica e especi camente leiga, coisa que — parece-nos — cou absolutamente fora de qualquer dúvida.

4. Leigo, secular ou simples cristão? 17. Propomos abaixo uma questão prévia que, embora à primeira vista pareça de simples terminologia, não deixa de ter sua importância e repercussão na prática, como veremos. Como se sabe, os cristãos que vivem no mundo e cuja vida se desenvolve dentro das estruturas terrenas são designados com nomes muito diferentes. Às vezes, são conhecidos com o nome de leigos, outras como seculares, outras com o nome de simples cristãos, outras ainda como éis cristãos, etc. Qual destas denominações é a preferível, ou seja, qual é aquela que melhor caracteriza os cristãos que vivem no século, exatamente como tais? Em nosso idioma espanhol, parece-nos que a denominação preferível é a de seculares.28 Mas para deixá-lo claro, é mister examinar cada uma dessas expressões em particular, especi cando com toda a exatidão seus diferentes aspectos e matizes. a) Leigo

18. Na grande maioria dos idiomas estrangeiros e na linguagem canônica clássica, a palavra leigo prevalece sobre as demais para designar os éis cristãos que vivem no mundo. Isto porque, como veremos, é difícil encontrar nesses idiomas o matiz característico de nossa palavra espanhola seglar, que parece, entretanto, preferível à palavra leigo, sobretudo considerando o sentido pejorativo que esta última expressão adquire facilmente em nosso idioma. . , a palavra leigo parece derivar do vocábulo grego λαικός, adjetivo de λαός, que tem vários signi cados conforme o contexto que a acompanha. No Novo Testamento, ela é empregada ao menos em três sentidos diferentes:29 a) Em sentido amplo e universal, signi ca a plebe, o vulgo, o povo em geral (cf. Mt 27, 25; Mc 11, 32; Hb 2, 17, etc.). b) Em sentido mais restrito, pode designar os homens de uma mesma tribo, estirpe, raça ou nação (cf. Ap 5, 9; 7, 9; 10, 11; 11, 9; 14, 6.17.15, etc.). c) Em sentido sagrado, signi ca o povo de Deus, ou seja, o Israel escolhido por Deus, em contraposição aos gentios e pagãos. Neste sentido, aplica-se à comunidade cristã, que é o novo e verdadeiro Israel (cf. Mt 2, 6; Lc 1, 68; Jo 11, 50; At 15, 14; 1Pd 2, 9, etc.).

. , a expressão leigo pode ser tomada em três acepções principais, segundo o ponto de vista em que nos coloquemos. Ouçamos um autor contemporâneo a expor estas diversas acepções:30 O termo “leigo” possui fundamentalmente três acepções: a) Em um primeiro sentido, leigo signi ca “massa, vulgo”: o baixo povo, em contraposição à classe alta. Do ponto de vista que nos interessa diretamente, reveste-se do signi cado genérico de “povo de Deus” (λαός), em contraposição ao não-povo; e, para cada um em particular, tem o signi cado de membro da comunidade eclesial, em contraposição aos não-membros.31 b) Em uma segunda acepção, leigo designa, na Igreja, todo membro que não pertence à hierarquia eclesiástica (ou clero); isto é, que não recebeu de Jesus Cristo uma deputação particular para o culto e o governo da própria Igreja. c) Um terceiro signi cado considera o leigo em relação às diversas modalidades segundo as quais a Igreja responde ao amor de Cristo, como a Esposa ao Esposo, realizando a si mesma como povo de Deus. Neste sentido, o leigo vem a ser de nido por contraposição ao modo de se dar a Deus de uma maneira pública e estável, o cialmente sancionada pela Igreja, que é a própria do estado dos conselhos.

Segundo esta terceira acepção, que afeta de forma direta a modalidade diferente de tender amorosamente para Deus (ou “espiritualidade” diferente), deve-se dizer: plenamente leigo é o cristão que não se separa do mundo e de suas estruturas para se consagrar na Igreja a um serviço direto e exclusivo do reino, mas que, ao contrário, permanece dentro das estruturas da vida no mundo em seu próprio esforço realizado para a santidade evangélica. Diferentemente do monge, que para servir a Deus se separa do mundo, o leigo busca servir a Deus no mundo, sem se despojar de um trabalho ou compromisso ativo nas estruturas temporais.

Na linha seguida pelas palavras que acabamos de citar, acrescenta o Pe. Brugnoli as seguintes observações em vista da elaboração de uma espiritualidade especi camente secular: a) O valor da primeira acepção é apenas genérico, ou seja, comum a todo cristão como tal. Por isso mesmo, ca fora de nossa consideração todo contexto em que a palavra leigo signi que simplesmente “ el”, em relação aos não-cristãos ou in éis. b) Acerca da segunda acepção (leigo = não-clérigo), deve-se notar que a contradistinção vem a se estabelecer entre os poderes da hierarquia e os poderes cristãos básicos (sacerdotal, régio, profético, comunitário, litúrgico, de apostolado); tais poderes são evidentemente comuns a todos os cristãos, quer permaneçam no mundo, quer tenham abraçado o estado dos conselhos.32 Por isso mesmo, tal acepção não poderá ser válida para especi car os leigos em ordem à sua própria espiritualidade de encarnação, distinta tanto da espiritualidade do sacerdote como daquela dos religiosos. Acrescente-se ainda que, em tal acepção, o objeto formal da consideração é somente o âmbito dos “poderes” (ou “funções”) eclesiais, conferidos pelo céu; e não diretamente o do esforço para a perfeição da caridade, ao qual entendemos referir-nos diretamente quando falamos de “espiritualidade”. c) A terceira acepção — e somente ela —, enquanto considera o leigo em relação à sua situação “no mundo” (diferentemente dos cristãos “fora do mundo”) e a seu esforço para a perfeição (ou resposta de amor a Deus), é, por isso mesmo, apta para caracterizar direta e formalmente a modalidade própria e exclusiva do leigo — se existe alguma — de amar e servir a Deus: isto é, estando plenamente no mundo.33 Se re etimos que, em tal acepção, o ângulo de consideração é formalmente o esforço para a perfeição do amor (que se expressa com o termo “espiritualidade”) e por alcançá-la “no mundo” (isto é, na situação que especi ca o leigo em relação aos outros dois estados de vida), deve-se conceber a validade de propor uma problemática em torno da espiritualidade própria dos leigos, se com tal expressão designamos os cristãos no mundo enquanto no mundo.

. , a palavra leigo adquire facilmente um signi cado pejorativo, como sinônimo de anti-religioso, antisobrenatural e anticristão,34 coisa que não se pode aplicar à palavra secular, já que, como veremos a seguir, signi ca

unicamente a pessoa que vive no século (no mundo), em contraposição ao monge ou religioso, que vive fora ou afastado dele. Por isso, em espanhol, é muito preferível empregar a palavra secular em vez de leigo, para evitar o equívoco pejorativo desta última expressão.35 b) Secular 19. Como acabamos de indicar, em espanhol a expressão secular signi ca algo “pertencente à vida, ao estado ou ao costume do século ou mundo”.36 Com ela se designa muito bem o leigo enquanto distinto do monge ou religioso, embora também se possa aplicá-la — em parte e de algum modo — ao sacerdote secular. Em seu sentido pleno e categórico, corresponde única e exclusivamente ao “homem da rua”, ou seja, àquele que vive no mundo e permanece imerso nas estruturas terrenas, que constituem a trama de sua própria vida. A este precisamente nos dirigimos ao longo de toda a nossa obra e, por isso, quando falamos por nossa conta — ou seja, fora das citações de outros autores —, empregaremos a expressão secular preferentemente a leigo. Lilí Alvarez escreveu um artigo muito engenhoso para defender a palavra secular contra a palavra leigo, que tanto se presta ao equívoco pejorativo. Depois de notar que, em espanhol, possuímos duas palavras: secular (que também se pode aplicar, e se aplica de fato, ao sacerdote diocesano) e seglar, que vale e designa exclusivamente os simples cristãos que vivem no mundo, a original escritora escreve:37 A palavra secular, uma vez puri cada “por alto”38 de seu aspecto equívoco, é tanto mais preferível à palavra leigo por estar entendida com indubitável “tom” sobrenatural e positivo: ao dizer um secular, sabe-se automaticamente que se trata de um cristão em sua qualidade de membro da plebs sancta, de um lho do povo de Deus.39 Já a palavra leigo irradia negatividade e está igualmente, senão ainda mais, afetada de duplo sentido; ela está “por baixo”, diria; pois, ao signi car principalmente o não-sagrado (em oposição ao sagrado), o não-religioso (em relação ao religioso), seu aspecto equívoco —

ou multívoco — chega até ao âmbito do anti-religioso, como quando se diz “escolas laicas” ou “um governo laico”. Em sua acepção corrente e viva, e empregada em nossa área espiritual, ela funciona de forma redutora: signi ca aquilo que é menos. Passa a designar um cristão minguado, aguado... laicizado. Matiz muito diferente de secularizado. A secularização representa um aumento de ocupação mundana ou de retorno ao século, mas um mundo e um século que podem ser entendidos de modo sobrenatural, que podem ser vistos em uma perspectiva religiosa. Ao passo que laicização é, em sua essência — e se me permitem a expressão —, dessacralizante. Então se compreenderá por que o vocábulo leigo — e seus derivados — não podem ser condutores de clareza para nossa terminologia cristã. Contudo, é o único de que dispõem as demais línguas. (Tudo isto, note-se, à parte do esquema — muito complicado — em que está preso o signi cado técnico de leigo no Direito Canônico, o qual já é por si de complexo esclarecimento). Por isso mesmo, é lamentável que os autores espanhóis o escolham em lugar de nosso termo próprio. É isso que (os) obriga a fazer todo tipo de intrincadas distinções entre laicato, laicidade, laicismo, etc., enquanto secularidade, secularismo, corpo secular, não oferecem ilusão alguma e se mostram esplêndida e monoliticamente unívocos. Não há dúvida de que a dupla hispânica secular-seglar contém enorme poder iluminativo e simpli cador, de que nós deveríamos ser os primeiros a tirar proveito. Por este motivo, desde quando soube disto, para cada vez que uso a palavra leigo, nove vezes emprego a palavra secular.40

c) Simples cristão 20. Com a expressão simples cristão designamos também, continuamente, o leigo, ou seja, o batizado que vive sua vida no mundo, imerso nas estruturas terrenas, que procura santi cá-las e levá-las para Deus; distinguindo-o do sacerdote e do religioso, que são cristãos quali cados — por assim dizer —, ou seja, que acrescentaram às exigências comuns procedentes do Batismo aquelas que a ordenação sacerdotal ou a pro ssão religiosa incluem e trazem consigo. É indiferente, portanto, empregar a expressão simples cristão ou leigo, ainda que esta última tenha a vantagem de simpli car a terminologia, reduzindo-a a uma só palavra.

CAPÍTULO II | Vocação universal à santidade 21. Felizmente, já passaram os tempos em que a maior parte do povo cristão considerava o dever de aspirar à santidade como algo próprio e exclusivo das pessoas consagradas a Deus no estado sacerdotal ou religioso. Os melhores leigos deveriam contentar-se em cumprir com a máxima delidade possível os deveres inerentes a seu estado — entendidos, por outro lado, de maneira muito restrita e incompleta — sem aspirar a uma perfeição ou elevada santidade, que se considerava pouco menos que impossível em meio à agitação e ao tumulto das coisas do mundo. Não poderemos nos deter aqui — embora fosse muito interessante — a historiar a evolução do pensamento cristão em torno desta importantíssima questão.41 O certo é que, depois do Concílio Vaticano , já não é lícito pôr em dúvida a obrigação estrita de aspirar à perfeição que afeta a todos os cristãos, sem exceção — sacerdotes, religiosos e leigos — para responder à vocação universal à santidade anexa à simples recepção do sacramento do Batismo. Vamos expor integralmente o magní co capítulo 5º da Constituição Dogmática sobre a Igreja, a Lumen gentium, do Concílio Vaticano , que constitui a última palavra e será para sempre a carta magna da vocação universal à santidade na Igreja. Para destacar com maior clareza as idéias fundamentais do magní co texto elaborado pelos padres do Concílio Vaticano , introduziremos nele uma abundante série de subtítulos, e o ilustraremos com pequenas glosas e comentários. O texto conciliar irá sempre com caracteres tipográ cos menores.42

1. Doutrina geral 22. O concílio expõe em primeiro lugar a doutrina geral sobre a vocação universal à santidade, fundamentando-se antes de tudo na própria santidade da Igreja e no mandato expresso de Jesus Cristo. 1. Santidade da Igreja O concílio começa por proclamar a indefectível santidade da Igreja como esposa imaculada de Cristo: Acreditamos que a Igreja, cujo mistério o sagrado concílio está expondo, é indefectivelmente santa. Pois Cristo, o Filho de Deus, que com o Pai e o Espírito Santo é proclamado “o único santo”,43 amou a Igreja como sua esposa, entregando a si mesmo por ela, para santi cá-la (cf. Ef 5, 25–26), uniu-a a si como seu próprio corpo e a enriqueceu com o dom do Espírito Santo para a glória de Deus.

2. Vocação universal à santidade Esta santidade indefectível da Igreja como esposa de Cristo traz consigo a exigência de santidade em todos e cada um de seus membros, já que a Igreja, como tal, não é uma entidade aérea ou abstrata, mas uma realidade viva e concreta, formada pelo próprio Cristo como Cabeça e por todos os batizados como membros de um só Corpo místico. Ouçamos o concílio: Por isso, na Igreja, todos, tanto os que pertencem à sua hierarquia quanto os que são apascentados por ela, estão chamados à santidade, conforme diz o Apóstolo: “Porque esta é a vontade de Deus, a vossa santi cação” (1Ts 4, 3; cf. Ef 1, 4).

Como se vê, a a rmação é clara e enfática. O texto bíblico em que ela se apóia não admite tergiversações nem escapatórias de nenhum tipo. A obrigação de santi car-se afeta a todos os cristãos sem exceção, quer pertençam à hierarquia, quer simplesmente ao povo el. Entretanto, esta santidade se manifesta em múltiplas formas, dentro da unidade substancial da Igreja de Jesus Cristo. 3. Diferentes maneiras de se manifestar a santidade da Igreja

Esta santidade da Igreja se manifesta, e deve se manifestar sem cessar, nos frutos de graça que o Espírito produz nos éis. Ela se expressa multiformemente em cada um daqueles que, com a edi cação dos demais, se aproximam da perfeição da caridade em seu próprio gênero de vida.

Cada um dos cristãos, de fato, deve santi car-se em seu próprio gênero de vida: o sacerdote como sacerdote, o cartuxo como cartuxo, e o leigo como leigo. 4. Os conselhos evangélicos Entretanto, o gênero de vida mais perfeito — proclama-o mais uma vez o concílio — é o dos chamados conselhos evangélicos, que constituem a própria essência do estado religioso, mas que podem, e — como veremos oportunamente — em certo sentido devem ser praticados também pelos próprios cristãos que vivem no mundo: De maneira singular aparece na prática dos comumente chamados conselhos evangélicos. Esta prática dos conselhos — que, por impulso do Espírito Santo, muitos cristãos têm abraçado tanto de modo privado como em uma condição ou estado aceito pela Igreja —, proporciona ao mundo, e deve proporcionar-lhe, um esplêndido testemunho e exemplo dessa santidade.

Voltaremos mais adiante — com o concílio — sobre a prática dos conselhos evangélicos. 5. O preceito de Jesus Cristo Para deixar fora de dúvida a obrigação que têm todos os cristãos de aspirarem à santidade dentro de seu próprio gênero de vida, o concílio volta imediatamente seus olhos para Cristo — o divino Fundador da Igreja — retomando seu expresso mandamento de santi cação: O Divino Mestre e Modelo de toda perfeição, o Senhor Jesus, pregou a todos e a cada um de seus discípulos, qualquer que fosse a sua condição, a santidade de vida da qual Ele foi iniciador e consumador: “Sede, pois, perfeitos como vosso Pai celestial é perfeito” (Mt 5, 48).44 Ele enviou a todos o Espírito Santo, para que os mova interiormente a amar a Deus com todo o coração, com toda a alma, com toda a mente e com todas as forças (cf. Mt 12,30), e a se amarem mutuamente como Cristo os amou (cf. Jo 13, 34; 15, 12).

Este texto é de uma grande densidade de conteúdo. Nele o concílio nos recorda três coisas fundamentalíssimas:

a) O mandamento expresso de Cristo: “Sede perfeitos...”. b) A causa e ciente de nossa santi cação: o Espírito Santo, que mora na alma do cristão e o move para a plenitude do amor a Deus e ao próximo. c) A causa formal de nossa santi cação: o amor a Deus e ao próximo levado à sua plenitude. É impossível dizer mais com menos palavras. 6. A divina predestinação do cristão Os seguidores de Cristo, chamados por Deus não em razão de suas obras, mas em virtude do desígnio e graça divinos, e justi cados no Senhor Jesus, foram feitos, por meio do Batismo, sacramento da fé, verdadeiros lhos de Deus e participantes da natureza divina, e, por isso mesmo, realmente santos.

Outro magní co texto, densíssimo de conteúdo doutrinal. Nele nos é dito: a) Que nossa condição de cristãos não depende das boas obras que tenhamos praticado (ou que Deus previu que iríamos praticar), mas de um desígnio e graça de Deus inteiramente gratuitos. Esta a rmação se apóia — como se sabe — em textos bíblicos inteiramente claros e inequívocos.45 b) Que fomos justi cados gratuitamente por Cristo (cf. Rm 3, 24) em virtude de seu sangue redentor (cf. Rm 5, 9). c) Que o Batismo — sacramento da fé — nos faz verdadeiros lhos de Deus (cf. Rm 8, 15–17), dando-nos uma verdadeira participação na própria natureza divina (cf. 2Pd 2, 4) ao infundirnos a graça santi cante, que nos faz verdadeiramente santos (cf. Rm 8, 28; 1Cor 6, 11), embora em grau inicial e, por isso mesmo, perfectível. 7. As exigências do Batismo O concílio insiste imediatamente em exortar-nos à obrigação de nos santi carmos plenamente em

virtude das próprias exigências do Batismo, que afetam a todos os cristãos sem exceção, seja qual for o seu estado ou gênero de vida. Em conseqüência, é necessário que eles, com a ajuda de Deus, conservem e aperfeiçoem em sua vida a santi cação que receberam. O Apóstolo os exorta a viverem “como convém aos santos” (Ef 5, 3), e que, “como eleitos de Deus, santos e amados, se revistam de entranhas de misericórdia, benignidade, humildade, modéstia e paciência” (Cl 3, 12) e produzam os frutos do Espírito para a santi cação (cf. Gl 5, 22; Rm 6, 22).

O concílio recorda a todos os cristãos não só a obrigação de conservar a graça que receberam no Batismo (evitando, por conseguinte, qualquer pecado que possa destruí-la), mas também a de aumentá-la até seu pleno desenvolvimento, de sorte que produza os sublimes frutos do Espírito (cf. Gl 5, 22), que só se produzem em um elevado clima de perfeição e santidade. 8. A fraqueza humana e a misericórdia de Deus Porém, como todos caímos em muitas faltas (cf. Tg 3, 2), necessitamos continuamente da misericórdia de Deus, e todos os dias devemos orar: “Perdoai-nos as nossas dívidas” (Mt 6, 12).46

O concílio leva em conta a debilidade humana, que nos obriga a humilhar-nos e, ao mesmo tempo, a con ar na misericórdia e no perdão de Deus, sem desanimar jamais no caminho de nossa santi cação. 9. A santidade eleva o nível da própria vida humana Assim, é evidente que todos os éis, de qualquer estado ou condição, são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade,47 e esta santidade suscita um nível de vida mais humano até mesmo na sociedade terrena.

Novamente o concílio insiste na vocação universal à plenitude da vida cristã, acrescentando que a santi cação das almas repercute na própria sociedade humana, elevando enormemente seu próprio nível terreno. Os maiores homens e as guras mais ilustres da humanidade foram indiscutivelmente os grandes santos.

10. Modo de santi car-se Em seguida, em outro parágrafo densíssimo, o concílio ensina o modo de santi car-se, apontando os meios mais importantes e fundamentais para todos os cristãos, sem exceção. Para conseguir esta perfeição, os éis empenhem as forças recebidas segundo a medida da doação de Cristo, a m de que, seguindo suas pegadas e tornados à sua imagem, obedecendo em tudo à vontade do Pai, dediquem-se com toda a sua alma à glória de Deus e ao serviço do próximo. Assim, a santidade do povo de Deus produzirá abundantes frutos, como brilhantemente o demonstra a história da Igreja com a vida de tantos santos.

Eis aqui, comentados um a um, os grandes ensinamentos contidos neste parágrafo conciliar. 1º — Cada um deve colocar na tarefa da própria santi cação o supremo anseio de sua vida e o seu máximo interesse, empenhando todas as forças recebidas de Deus segundo a medida da doação de Cristo (cf. Ef 4, 7; Rm 12, 3; 1Cor 12, 11). Somente a este preço o cristão alcançará sua plena perfeição sobrenatural, que depois se traduzirá em um peso imponderável de glória para toda a eternidade (cf. 2Cor 4, 17). 2º — Para santi car-se é necessário seguir as “pegadas de Cristo”, e é preciso tornar-se inteiramente “conformes à sua imagem”, ou seja, con gurar-se plenamente com Ele. Não há nem pode haver outra santidade cristã diferente desta, seja qual for o estado ou gênero de vida em que a Divina Providência tenha querido colocar-nos. Falaremos longamente deste tema em outro capítulo de nossa obra (cf. nº 32 ss.). 3º — É preciso, à imitação de Cristo, “obedecer em tudo à vontade do Pai” que está nos céus. Veremos, mais adiante, que uma das fórmulas para responder à pergunta sobre o que constitui propriamente a santidade é a de conformar plenamente nossa vontade à vontade de Deus (cf. nº 29). 4º — É preciso dedicar-se por completo e com toda a alma a glori car a Deus — m último absoluto da vida cristã e de toda a Criação universal48 — e ao serviço do próximo por amor a Deus.

Trata-se novamente da grande fórmula da caridade como constitutivo — por outro ângulo de visão — da mesma perfeição e santidade cristã. 5º — A história da Igreja, cheia de santos de primeira magnitude, é uma demonstração brilhante dos grandes frutos de santidade produzidos pelo povo de Deus.

2. A santidade nos diferentes estados 23. Depois de nos ter falado da santidade da Igreja e da vocação universal de todos os seus membros à plenitude da vida cristã, o concílio expõe os diferentes matizes de que a santidade deve revestir-se em cada um dos estados ou gêneros de vida, não sem antes nos advertir cuidadosamente sobre a unidade substancial da perfeição cristã em qualquer desses estados. Eis suas próprias palavras: 1. Unidade substancial da santidade cristã Nos múltiplos gêneros de vida e ocupações, é uma só e a mesma santidade que cultivam todos aqueles que são guiados pelo Espírito de Deus, e, obedientes à voz do Pai, adorando-o em espírito e verdade, seguem a Cristo pobre, humilde e com sua Cruz às costas, a m de merecerem ser feitos participantes de sua glória. Mas cada um deve caminhar sem vacilação pelo caminho da fé viva, que gera a esperança e atua pela caridade, segundo os dons e funções que lhe são próprios.

Não existe para ninguém outro caminho de santi cação, senão o de ir ao Pai por meio de Cristo, que é nosso único caminho, verdade e vida (cf. Jo 14, 6). Sobre esta base fundamental se deve viver plenamente a vida teologal, sintetizada na fé viva, na esperança rme e na caridade ardente. Tudo o que as circunstâncias provenientes dos diferentes estados ou gêneros de vida puderem acrescentar a este princípio e fundamento não serão

mais que complementos acidentais e secundários. O essencial é isto, absolutamente para todos. 2. Espiritualidade dos pastores da Igreja Ao especi car os diferentes matizes acidentais com que se deve revestir a santidade segundo o estado ou condição de vida de cada um, o concílio começa assinalando as características da espiritualidade própria dos pastores ou hierarcas da Igreja. Em primeiro lugar, é necessário que os pastores do rebanho de Cristo, à imagem do sumo e eterno Sacerdote, Pastor e Bispo de nossas almas, desempenhem seu ministério santamente e com entusiasmo, humildemente e com fortaleza. Assim cumprido, esse ministério será também para eles um magní co meio de santi cação. Os escolhidos para a plenitude do sacerdócio são dotados da graça sacramental com que, orando, pregando e oferecendo sacrifícios, por meio de todo tipo de preocupação episcopal e de serviço, possam cumprir perfeitamente o encargo da caridade pastoral.49 Sem hesitar em entregar sua vida pelas ovelhas, e tornados modelos para o rebanho (cf. 1Pd 5, 3), estimulem a Igreja, com seu exemplo, a uma santidade cada dia maior.

3. Os sacerdotes “Os presbíteros”, continua o concílio, à semelhança da ordem dos bispos, cuja coroa espiritual eles formam,50 ao participarem de sua graça ministerial por Cristo, eterno e único Mediador, cresçam no amor de Deus e do próximo pelo desempenho diário de seu ofício. Conservem o vínculo da comunhão sacerdotal, abundem em todo bem espiritual e sejam para todos um testemunho vivo de Deus,51 à imitação daqueles sacerdotes que, no decorrer dos séculos, com freqüência em um serviço humilde e oculto, deixaram um preclaro exemplo de santidade, cujo louvor se difunde na Igreja de Deus. Enquanto oram e oferecem o sacrifício, como é seu dever, pelos próprios éis e por todo o povo de Deus, sejam conscientes do que fazem, e imitem aquele que trazem nas mãos:52 longe de serem um obstáculo as preocupações apostólicas, os perigos e os contra- tempos, devem antes, por meio deles, subir à mais alta santidade, alimentando e fomentando sua ação na abundância da contemplação para consolo de toda a Igreja de Deus. Todos os presbíteros, e em especial aqueles que, pelo peculiar título de sua ordenação, são chamados de sacerdotes diocesanos, tenham presente o quanto favorece sua santi cação a el união e generosa cooperação com seu próprio bispo.

4. Os demais clérigos Também são participantes da missão e da graça do supremo Sacerdote, de um modo particular, os ministros de ordem inferior. Acima de tudo os diáconos, que, servindo aos

mistérios de Cristo e da Igreja,53 devem conservar-se imunes a todo vício, agradar a Deus e fazer provisão de todo bem perante os homens (cf. 1Tm 3, 8–10 e 12–13). Os clérigos que, chamados pelo Senhor e destinados a seu serviço, se preparam sob a vigilância dos pastores para os deveres do ministério, estão obrigados a procurar adaptar sua mentalidade e seus corações para tão excelsa eleição: que sejam assíduos na oração, fervorosos no amor e preparados continuamente por tudo o que é verdadeiro, justo e decoroso, realizando tudo para a glória e a honra de Deus.

5. Certos leigos especializados No mesmo parágrafo que acabamos de transcrever, dedicado aos clérigos menores, o concílio fala de certos leigos que, chamados pelo bispo, se entregam por completo às tarefas apostólicas. Tais são, principalmente, os missionários leigos e, em certo sentido, também os militantes ativos na Ação Católica etc. Eis aqui o texto conciliar: Aos quais se juntam aqueles leigos escolhidos por Deus, chamados pelo bispo para se entregarem por completo às tarefas apostólicas e trabalharem no campo do Senhor com fruto abundante.54

6. Os esposos e pais Agora o concílio volta amorosamente seus olhos para o Matrimônio cristão — do qual se ocupa em muitos outros lugares, como veremos ao longo de nosso trabalho —, para assinalar os pontos fundamentais em que os esposos e pais cristãos deverão situar sua espiritualidade própria. Os esposos e pais cristãos, seguindo seu caminho próprio, mediante a delidade no amor, devem sustentar-se mutuamente na graça ao longo de toda a sua vida, e inculcar a doutrina cristã e as virtudes evangélicas nos lhos amorosamente recebidos de Deus. Desta maneira, eles oferecem a todos o exemplo de um amor generoso e incansável, contribuem para o estabelecimento da fraternidade na caridade e se constituem em testemunhas e colaboradores da fecundidade da Mãe Igreja, como símbolo e participação daquele amor com que Cristo amou sua Esposa e entregou a si mesmo por ela.55

Voltaremos a falar amplamente sobre isto ao tratar sobre a santi cação da família, na quinta parte de nossa obra. 7. Os viúvos e os leigos celibatários O concílio não se esquece de ninguém. Para todos ele tem uma palavra de estímulo e de

consolo. Aqui estão aquelas que ele dirige aos viúvos e aos leigos celibatários: Exemplo semelhante é proporcionado, de outro modo, por aqueles que vivem em estado de viuvez ou de celibato, os quais também podem contribuir signi cativamente para a santidade e a atividade da Igreja.

Em outro lugar examinaremos mais particularmente aquilo que uns e outros podem fazer em vista de sua própria santi cação e do bem de toda a Igreja. 8. Os operários Aqueles que estão dedicados a trabalhos muitas vezes cansativos devem encontrar nessas ocupações humanas o seu próprio aperfeiçoamento, o meio de ajudar seus concidadãos e de contribuir para elevar o nível da Criação e de toda a sociedade. Mas também é necessário, em sua ativa caridade, que imitem a Cristo, cujas mãos se exercitaram nos trabalhos manuais e continuam trabalhando em união com o Pai para a salvação de todos. Alegres na esperança e ajudando-se mutuamente a levar suas cargas, que eles subam, por meio de seu próprio trabalho cotidiano, a uma santidade mais elevada, inclusive com alcance apostólico.

O concílio se dirige a todos os trabalhadores em geral, mas especialmente aos que se dedicam ao duro trabalho manual. Este parágrafo não procura dar soluções para a chamada “questão social” — isto se faz em outros documentos conciliares —, mas ensinar o modo de santi car o trabalho, de acordo com o objetivo deste capítulo da “constituição sobre a Igreja”, que trata unicamente da vocação universal à santidade. E, com esta exclusiva nalidade, dá aos operários os seguintes conselhos cheios de sabedoria: a) Em suas próprias ocupações humanas, eles devem encontrar seu aperfeiçoamento espiritual — em seguida, dirá de que maneira — e ver nelas o meio de ajudar seus concidadãos e de contribuir para elevar o nível da sociedade inteira e de toda a Criação. Sublime dignidade do trabalho, mesmo do ponto de vista puramente natural e humano!

b) Para que o trabalho resulte em um poderoso meio de santi cação pessoal, é necessário uni-lo intimamente ao de Cristo Nosso Senhor, que, “sendo rico, se fez pobre por nosso amor, para que nós fôssemos ricos por sua pobreza” (2Cor 8, 9). Cristo não desprezou na terra o trabalho manual, mas o praticou com suas próprias mãos (Mc 6, 3) e atualmente continua trabalhando no céu em união com o Pai para a salvação de todos (cf. Hb 7, 25). c) Levantem os olhos ao céu com a esperança cristã, pensando que os trabalhos e incômodos desta vida pobre e transitória não podem ser comparados com o imenso peso de glória que nos aguarda lá em cima se permanecemos éis a Cristo (cf. 2Cor 4, 17). Para isso, procurem com entranhas de caridade ajudar-se mutuamente a carregar seus próprios fardos, e assim cumprirão a lei de Cristo (cf. Gl 6, 2). Vejam em seu próprio trabalho, assim sobrenaturalizado, um dos meios mais e cazes para se elevarem à mais alta santidade, e, nalmente, procurem dar a esse mesmo trabalho um alcance apostólico, mediante o apostolado do próprio exemplo e a e cácia redentora do sofrimento. Voltaremos a mencionar amplamente estas idéias expondo, na sexta parte de nossa obra, o modo de santi car o trabalho e a própria pro ssão. 9. Os pobres, os enfermos, os que sofrem, os perseguidos... Saibam também que estão especialmente unidos a Cristo, em seu sofrimento pela salvação do mundo, aqueles que se encontram oprimidos pela pobreza, pela enfermidade, pelos achaques e por muitos outros sofrimentos, ou aqueles que padecem perseguição pela justiça. A eles o Senhor, no Evangelho, proclamou como bemaventurados, “e o Deus de toda graça, que nos chamou a sua eterna glória em Cristo Jesus, depois de um breve padecer, os aperfeiçoará e con rmará, os fortalecerá e consolidará” (1Pd 5, 10).

Neste parágrafo magní co, o concílio se dirige a todos aqueles que sofrem de uma forma ou de outra, para lembrar-lhes a enorme força santi cadora da dor suportada de maneira cristã.

Deus não fez a dor. Ela é um castigo do pecado (cf. Gn 3, 17– 19). Mas Deus sabe escrever direito com linhas tortas, e soube transformar esse castigo em um dos maiores instrumentos de santi cação, mas unicamente em Cristo e por meio d’Ele. São Paulo o compreendeu perfeitamente, e por isso exclamava cheio de alegria que estava “cruci cado com Cristo” (Gl 2, 19) e que Deus o livrasse de se gloriar em outra coisa a não ser na Cruz de Cristo (Gl 6, 14). “É preciso”, acrescentava o grande Apóstolo, “participar de seus sofrimentos e nos conformar (com-formar) com Ele na morte” (Fl 3, 10). Temos de completar em nós, sobre a bigorna da dor, aquilo que falta à Paixão de Cristo por seu Corpo, que é a Igreja (cf. Cl 1, 24). Santi cando nossa dor, salvaremos inumeráveis almas: seremos grandes apóstolos de Cristo sem pronunciar uma só palavra perante os homens, mas unicamente o at voluntas tua diante do Senhor. Todos os santos assim o compreenderam. Não há nada de estranho em ouvir de Santa Teresa o seu “padecer ou morrer”, ou de São João da Cruz o seu “padecer, Senhor, e ser desprezado por vós”, ou de Santa Teresinha o seu heróico “já não posso sofrer, pois é doce para mim todo sofrimento por Deus”. Ânimo, pois, todos vós que sofreis de mil maneiras ou padeceis perseguição neste mundo! Desempenhais um papel importantíssimo na Igreja, absolutamente necessário e insubstituível. Erguei vossos olhos ao céu e bendizei a Deus, porque Ele vos visitou com a dor, à semelhança e em íntima união com o divino Mártir do Calvário e com a Virgem Co-redentora. 10. Todos os cristãos sem exceção Finalmente, o concílio resume seu ensinamento sobre a vocação universal à santidade dirigindose a todos os cristãos, e recordando-lhes, mais uma vez, a maneira de se santi carem: Portanto, todos os éis cristãos, em quaisquer condições, ocupações ou circunstâncias de sua vida, e através de tudo isso, se santi carão mais a cada dia se aceitarem tudo com fé, das mãos do Pai celestial, e colaborarem com a vontade divina, tornando

manifesta a todos, inclusive em sua dedicação às tarefas temporais, a caridade com que Deus amou o mundo.

3. Meios de santificação para todos 24. O concílio insiste na linha adotada, para inculcar em todos os cristãos os principais meios que deverão utilizar em sua própria santi cação. Eis aqui suas próprias palavras, carregadas — como sempre — de conteúdo doutrinal: “Deus é caridade, e quem permanece na caridade permanece em Deus, e Deus nele” (1Jo 4, 16). E Deus derramou sua caridade em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado (cf. Rm 5, 5). Por conseguinte, o primeiro e mais imprescindível dom é a caridade, com a qual amamos a Deus sobre todas as coisas e ao próximo por Ele. Porém, a m de que a caridade cresça na alma como boa semente e fruti que, todo el deve escutar de boa vontade a palavra de Deus e pôr em ação a sua vontade com a ajuda da graça; participar freqüentemente dos sacramentos, sobretudo da Eucaristia, e das funções sagradas; e aplicar-se assiduamente à oração, à abnegação de si mesmo, ao serviço solícito dos irmãos e à prática de todas as virtudes. Pois a caridade, como vínculo de perfeição e plenitude da lei (cf. Cl 3, 14; Rm 3, 10), rege todos os meios de santi cação, informa-os e os conduz a seu m.56 É por isso que a caridade para com Deus e para com o próximo é o sinal distintivo do verdadeiro discípulo de Cristo.

Como se vê, o programa de santi cação que o concílio propõe neste parágrafo é completíssimo. De todas e de cada uma de suas recomendações faremos um amplo eco em diferentes lugares de nossa obra.

4. O dom supremo do martírio 25. Entre os atos de dedicação e de entrega absoluta de nosso ser a Deus pela caridade — na qual consiste de modo fundamental a

santidade — não existe nenhum outro que se possa comparar ao martírio, já que por ele entregamos a Deus, por amor, aquilo que mais estimamos neste mundo: nossa própria vida. Por isso mesmo o concílio dedica um parágrafo especial ao martírio, ponderando seu supremo valor e sua e cácia santi cadora: Visto que Jesus, o Filho de Deus, manifestou seu amor entregando sua vida por nós, ninguém tem maior amor do que aquele que entrega sua vida por Ele e por seus irmãos (cf. 1Jo 3, 16; Jo 15, 13). Pois bem: alguns cristãos, já desde os primeiros tempos — e assim continuará a ser sempre —, foram chamados a dar este supremo testemunho de amor diante de todos, especialmente de seus perseguidores. Portanto, o martírio, no qual o discípulo se assemelha ao Mestre, que aceitou livremente a morte pela salvação do mundo, e se conforma a Ele na efusão de seu sangue, é valorizado pela Igreja como dom exímio e prova suprema de amor. E, se este é um dom concedido a poucos, mesmo assim todos devem estar prontos a confessar Cristo diante dos homens e a segui-lo pelo caminho da cruz, em meio às perseguições, que nunca faltam à Igreja.

De fato, o martírio é a prova suprema do amor a Deus e, por isso mesmo, o ato de caridade mais intenso que se pode realizar neste mundo. Daí sua enorme e cácia santi cadora, já que a santidade consiste na perfeição da caridade: a santidade é amor, e o amor é a plenitude da lei (cf. Rm 13, 10). Contudo, o martírio não consiste em dar a vida materialmente, e sim voluntária e amorosamente, por caridade sobrenatural. Recordemos as contundentes palavras de São Paulo: “Ainda que eu repartisse todos os meus bens e entregasse meu corpo ao fogo, se não tivesse a caridade, de nada me aproveitaria” (1Cor 13, 3). Porém, quando se entrega o corpo às chamas (como São Lourenço) ou se derrama o próprio sangue por amor a Deus, alcança-se a fórmula mais acabada da perfeição cristã que podemos oferecer a Ele nesta vida. São poucos os que alcançam a glória do martírio. Mas, como recorda oportunamente o concílio, todos os cristãos “devem estar prontos a confessar Cristo diante dos homens e segui-lo pelo caminho da cruz, em meio às perseguições”. Há casos em que a pro ssão de fé pública — mesmo com perigo da própria vida — obriga todos os cristãos sob pecado mortal.57

5. Os conselhos evangélicos 26. Imediatamente depois do martírio — ato supremo de amor a Deus — o concílio nos fala da prática dos conselhos evangélicos, sobretudo daqueles que são praticados no estado religioso, que, bem compreendidos e assimilados, constituem — como alguém disse — “um pequeno martírio a al netadas”. Aqui estão as próprias palavras do concílio: A santidade da Igreja também é intensi cada de maneira especial pelos múltiplos conselhos que o Senhor propõe aos seus discípulos no Evangelho .58 Entre estes, destaca-se o precioso dom da graça divina, concedido a alguns pelo Pai (cf. Mt 19, 11; 1Cor 7, 7), para que se consagrem somente a Deus com um coração que, na virgindade ou no celibato, se mantém mais facilmente indiviso (cf. 1Cor 7, 32–34).59 Esta perfeita continência pelo reino dos céus sempre foi considerada na mais alta estima pela Igreja, como sinal e estímulo da caridade e como um manancial extraordinário de fecundidade espiritual no mundo. A Igreja medita a advertência do Apóstolo, que, ao estimular os éis à caridade, exortaos a terem em si mesmos os sentimentos que teve Cristo, o qual “aniquilou a si mesmo, assumindo a forma de escravo [...] feito obediente até a morte” (Fl 2, 7–8), e por nós “se fez pobre, sendo rico” (2Cor 8, 9). E, como é necessário que os discípulos sempre dêem testemunho desta caridade e humildade de Cristo, imitando-a, a Mãe Igreja se alegra por encontrar em seu seio muitos homens e mulheres que seguem mais de perto o aniquilamento do Salvador, e dão sobre Ele um testemunho mais evidente ao abraçarem a pobreza, na liberdade dos lhos de Deus, e ao renunciarem à própria vontade. São pessoas que, em matéria de perfeição, se submetem a um homem por causa de Deus, muito além do ordenado, a m de se fazerem mais plenamente conformes a Cristo obediente.

Embora o conteúdo doutrinal deste parágrafo seja admirável, não vamos comentá-lo aqui, já que nossa obra se dirige exclusivamente aos leigos.60 Estes retenham unicamente o elevado apreço que a Igreja sente pelos chamados “estados de perfeição”, que se dedicam, como que pro ssionalmente, à prática cada vez mais perfeita dos conselhos evangélicos de pobreza, castidade e obediência. Não há dúvida — e a Igreja o proclamou insistentemente ao longo de todos os séculos — de que os chamados “estados de perfeição” constituem, em si, um modo de

vida mais perfeito que o dos cristãos que vivem no mundo. Contudo, tampouco se deve esquecer que, praticamente, mais do que o “estado de perfeição”, importa a “perfeição do estado”. É indubitável que existem leigos mais perfeitos perante Deus do que muitos religiosos, ainda que o estado jurídico destes, diante da Igreja, seja mais perfeito que o daqueles. “Deus não chama todos os seus lhos ao estado de perfeição, mas a todos convida para a perfeição de seu estado”, disse admiravelmente Pio em um belo discurso.61

6. Exortação final 27. O concílio conclui seu maravilhoso capítulo dedicado à vocação universal à santidade na Igreja com a seguinte exortação dirigida, mais uma vez, a todos os éis cristãos sem exceção: Ficam, pois, convidados todos os éis cristãos, e até mesmo obrigados, a buscar insistentemente a santidade e a perfeição dentro do próprio estado. Estejam todos atentos a canalizar retamente seus afetos, para que a utilização das coisas do mundo e o apego às riquezas, contrário ao espírito de pobreza evangélica, não os impeça na busca da perfeita caridade. Recordando a advertência do Apóstolo: os que usam deste mundo não se prendam a ele, porque os atrativos deste mundo passam (cf. 1Cor 7, 31).62

Desta última exortação do concílio, convém destacar o seguinte: a) O convite e inclusive a obrigação que pesa sobre todos os cristãos de procurar com o maior empenho sua plena santi cação dentro de seu próprio estado. Esta obrigação é em si grave, pois aquele que descuidasse consciente e voluntariamente de seu próprio aperfeiçoamento renunciaria igualmente a praticar o primeiro e maior de todos os mandamentos de Deus, que é o de amá-lo “com todo o coração, com toda a alma e com todas as forças” (Mt 22, 37; Mc 12, 30). Ora, a renúncia voluntária ao

cumprimento de um preceito divino (não só um conselho) constitui indubitavelmente um pecado mortal, sobretudo se esse preceito é “o primeiro e o maior de todos”. Entretanto, na prática, para não romper gravemente com esse preceito, basta manter-se habitualmente em estado de graça e procurar de algum modo ir se aperfeiçoando, mesmo que pouco a pouco e dia por dia, na vida cristã. b) Os principais obstáculos que todo cristão, mas principalmente os leigos que vivem no mundo, encontrarão no caminho de sua santi cação são dois: o uso imoderado das coisas do próprio mundo — em si mesmas tão sedutoras e atrativas para a própria sensualidade — e o apego às riquezas, diametralmente contrário ao espírito de pobreza evangélica, que, em maior ou menor grau, deve ser praticado por todos os cristãos sem exceção. A melhor defesa contra estes dois grandes obstáculos nos é sugerida pelo próprio concílio, seguindo as pegadas do Apóstolo: considerar seriamente que os atrativos do mundo passam e se desvanecem como or de um dia (cf. 1Cor 7, 31); ou, como diz ainda o mesmo São Paulo em outro lugar: “Não temos aqui uma cidade permanente, antes buscamos a futura” (Hb 13, 14). De fato, o cristão não nasceu para este mundo, mas para o outro; não para a terra, mas para o céu; não para o tempo, mas para a eternidade. c) Finalmente, note-se que, seguindo a doutrina tradicional dos grandes mestres da espiritualidade cristã e da própria Igreja, o concílio recomenda aos próprios leigos a prática do espírito dos conselhos evangélicos — não só dos três que constituem o estado religioso, mas de todos os demais conselhos evangélicos, que são muito mais numerosos —, sem cujo espírito (pelo menos) a perfeição cristã não é absolutamente possível a ninguém. Por espírito não se entende, evidentemente, a prática efetiva desses conselhos evangélicos (neste caso, o leigo deixaria de ser leigo

para se transformar em monge ou religioso), mas sim a prática afetiva, ou seja, apreciando-os internamente naquilo que valem e tratando seriamente de se aproximar o mais possível de sua prática efetiva, na medida em que ela seja compatível com as exigências inevitáveis do próprio estado e condição secular. Para nos deter somente nos três conselhos evangélicos que constituem a própria essência do estado religioso, não se pode ocultar a ninguém que o próprio leigo jamais poderá santi car-se sem ter o coração autenticamente desprendido das riquezas (a pobreza espiritual); sem praticar a castidade juvenil, conjugal ou de viúvo, segundo o próprio estado; e sem prestar obediência de todo o coração às orientações que são dadas para toda a Igreja pelo papa ou, em um setor mais restrito, por seus legítimos e autênticos pastores. Isto é tão claro, que não insistiremos mais nisto.63

CAPÍTULO III | Em que consiste a santidade 28. Depois de ter demonstrado que todo cristão é chamado à santidade, ou plena perfeição cristã, em virtude das próprias exigências de seu Batismo, convém perguntar em que consiste propriamente essa perfeição ou santidade, para a qual ele está obrigado a tender seriamente ao longo de toda a sua vida. São várias as respostas que os Santos Padres, os teólogos e os grandes mestres da vida espiritual deram a esta pergunta, ainda que todas elas coincidam no substancial, e expressem no fundo a mesma realidade, embora a partir de pontos de vista diferentes. As principais destas respostas são as três seguintes, que vamos examinar brevemente a seguir: 1ª — A santidade consiste na perfeita identi cação com a vontade de Deus a nosso respeito.

2ª — Consiste na perfeição da caridade. 3ª — Consiste na plena con guração com Jesus Cristo. Eis aqui uma breve exposição de cada uma dessas fórmulas, que — repetimos — coincidem substancialmente no fundo.

1ª — A perfeita identificação com a vontade de Deus 29. Uma das fórmulas mais apreciadas pelos grandes mestres da vida espiritual é que a santidade ou plena perfeição cristã consiste essencialmente na perfeita identi cação de nossa vontade com a vontade de Deus sobre nós. . é muito clara: Deus quer que sejamos santos como Ele é santo. Logo, somente ao identi carmonos com sua divina vontade conseguiremos nos santi car. Eis aqui alguns textos de ambos os Testamentos: “Sede santos, porque eu,

, vosso Deus, sou santo” (Lv 19, 2).

“Sede santos para mim, porque eu, que sejais meus” (Lv 20, 26).

, sou santo e vos separei das nações para

“Escolheu-nos antes da constituição do mundo, para que fôssemos santos e imaculados diante dele na caridade, e nos predestinou à adoção como seus lhos por Jesus Cristo, conforme o beneplácito de sua vontade” (Ef 1, 4–5). “Porque a vontade de Deus é a vossa santi cação” (1Ts 4, 3).

. também é evidente. Sendo Deus a santidade por essência, e estando sua divina vontade totalmente identi cada com sua própria essência divina — uma vez que em Deus não pode haver acidentes, mas todos os seus

atributos se identi cam substancialmente com sua própria e simplíssima essência divina64 —, conclui-se que não haverá para as criaturas outra santi cação possível, a não ser a perfeita concordância e identi cação de sua vontade criada com a vontade in nitamente santa de Deus. . se comprazem em repetir com insistência esta mesma doutrina. Eis aqui alguns textos escolhidos entre milhares: ) : “Toda pretensão de quem começa a oração65 (e isto não seja esquecido, pois é muito importante) há de ser trabalhar, determinar-se e dispor-se, com quanto esforço se possa, em fazer a vontade própria conformar-se com a de Deus; e, como direi depois, estai muito certas de que nisto consiste toda a maior perfeição que se pode alcançar no caminho espiritual. Aquele que mais perfeitamente o conseguir, mais receberá do Senhor, e mais à frente estará neste caminho. Não penseis que existam aqui coisas complicadas, nem coisas não sabidas e entendidas, pois nisto consiste todo o nosso bem”.66 ) : “O estado desta divina união consiste em manter a alma segundo a vontade de Deus, de maneira que não haja nela coisa alguma contrária à vontade de Deus, mas que em tudo e por todo o seu movimento haja somente a vontade de Deus”.67 ) : “Toda a nossa perfeição consiste no amor de nosso Deus, in nitamente amável; e toda a perfeição do amor divino consiste, por sua vez, na união de nossa vontade com a dele [...]. Assim, se desejamos agradar e comprazer o coração de Deus, tratemos não só de nos conformar em tudo à sua santa vontade, mas de nos identi carmos com ela (se assim posso expressar-me), de sorte que de duas vontades não cheguemos a formar senão uma única [...]. Os santos jamais se propuseram outro objetivo, senão fazer a vontade de Deus, persuadidos de que nisto consiste toda a perfeição de uma alma”.68 d) Um discípulo de Santo Afonso — — resumiu sua doutrina nestes termos: “As pessoas que fazem sua santidade consistir em praticar muitas penitências, comunhões e orações vocais, evidentemente vivem na ilusão. Todas estas coisas só são boas na medida em que Deus as quer; de outro modo, em vez de aceitá-las, Ele as detesta e castiga; de maneira que tão-somente nos servem de meios para nos unir à vontade divina. Mas temos verdadeira satisfação em repeti-lo: toda a perfeição, toda a santidade, consiste em praticar aquilo que Deus quer de nós; em uma palavra, a vontade divina é a regra de toda bondade e de toda virtude. Por ser santa, ela tudo santi ca, mesmo as ações indiferentes, quando são executadas com o m de agradar a Deus [...]. Se queremos santi car-nos, devemos aplicar-nos unicamente a jamais seguir nossa própria vontade, mas sempre a de Deus, porque todos os preceitos e todos os

conselhos divinos se reduzem, em substância, a fazer e a sofrer tudo quanto Deus quer e como Deus o quer. Assim, toda a perfeição pode ser resumida e expressa nestes termos: fazer o que Deus quer, querer o que Deus faz.69

Poderíamos continuar multiplicando inde nidamente os textos, mas não o julgamos necessário, tratando-se de coisa tão clara e evidente, que é admitida e proclamada por todos os mestres da vida espiritual, sem nenhuma distinção de escolas ou tendências.70

2ª — A perfeição da caridade 30. Os teólogos costumam expor esta mesma doutrina a partir do ângulo de visão proporcionado pela grande virtude da caridade. Para eles, a santidade não é outra coisa senão a caridade sobrenatural que atingiu um grau excelente de desenvolvimento e perfeição, variando, contudo, em cada alma segundo a medida de sua particular predestinação em Cristo. É total e absoluta a coincidência substancial deste enfoque teológico com o da plena conformidade com a vontade de Deus. Aquele que chega à perfeição do amor divino terá sua vontade totalmente identi cada com a divina, tendo chegado à plena perfeição da caridade. São fórmulas absolutamente equivalentes e mutuamente conversíveis. Vejamos brevemente o fundamento bíblico e teológico desta nova perspectiva oferecida pela santidade ou perfeição cristã. ) . Esta é uma das verdades mais claramente inculcadas na Sagrada Escritura. Eis aqui alguns textos: “‘Mestre, qual é o maior mandamento da lei?’. Ele lhe disse: ‘Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua mente. Este é o maior e o primeiro mandamento. O segundo, semelhante a este, é: Amarás o próximo

como a ti mesmo. Destes dois preceitos dependem toda a lei e os profetas’” (Mt 22, 36– 40). “Porém, acima de tudo, revesti-vos de caridade, que é o vínculo de perfeição” (Cl 3, 14). “O amor é a plenitude da lei” (Rm 13, 10). “Deus é amor, e quem vive no amor permanece em Deus, e Deus nele” (1Jo 4, 16).

) proclamou o cialmente esta doutrina em numerosas ocasiões. Eis aqui um texto recentíssimo do Concílio Vaticano : A caridade, como vínculo de perfeição e plenitude da lei (cf. Cl 3, 14; Rm 13, 10), rege todos os meios de santi cação, informa-os e os conduz a seu m. Por isso, a caridade para com Deus e para com o próximo é o sinal distintivo do verdadeiro discípulo de Cristo.71

)

expõe a razão teológica nos seguintes termos:

Diz-se de um ser qualquer que ele é perfeito quando alcança seu próprio m, que é a perfeição última das coisas. Ora, é a caridade que nos une a Deus, m último da alma humana, pois, como diz São João, “aquele que vive na caridade permanece em Deus, e Deus nele” (1Jo 4, 16). Por conseguinte, a perfeição da vida cristã é fundada especialmente na caridade.72

Voltaremos em detalhes sobre isto ao estudar, na quarta parte desta obra, a grande virtude da caridade.

3ª — A plena configuração com Jesus Cristo 31. Ainda que esta nova fórmula coincida também substancialmente com as duas anteriores (já que a plena con guração com Jesus Cristo traz consigo, indefectivelmente, a perfeição da caridade e a perfeita identi cação com a vontade divina), é, no entanto, a mais bíblica e paulina de todas elas. Com

efeito, São Paulo não tinha outra idéia xa, senão a de mostrar a todos o inefável “mistério de Cristo” (Cl 4, 3), com suas “insondáveis riquezas” (Ef 3, 8), e esse “sacramento oculto” (Ef 3, 9), no qual “habita, corporalmente, toda a plenitude da divindade” (Cl 2, 9) e no qual o cristão encontrará “sua própria vivi cação e o perdão de todos os seus pecados” (cf. Cl 2, 13), até car “completamente cheio com a própria plenitude de Deus” (cf. Ef 3, 19). Dada a extraordinária importância desta fórmula de santidade — que é, repetimos, a mais bíblica e profunda de todas —, vamos examiná-la com a máxima amplitude permitida pelo marco de nossa obra. Mas isto exige um capítulo à parte.

CAPÍTULO IV | O ideal supremo: a configuração com Cristo 32. O ideal supremo para o qual deve tender o cristão que procure seriamente santi car-se é a sua plena con guração com Cristo. Não há nem pode haver para ninguém outro tipo de santidade cristã, seja qual for o estado ou gênero de vida em que a Divina Providência tenha querido colocá-lo. Jesus Cristo é o caminho único que conduz ao Pai (cf. Jo 14, 6) e, ao mesmo tempo, a única fonte de toda perfeição e santidade (cf. Jo 7, 37– 38). Seremos santos na medida em que nos unirmos e nos parecermos com Ele. Como disse muito bem Dom Columba Marmion: “Ou seremos santos em Jesus Cristo, ou não o seremos de modo algum”. Diante da importância decisiva deste assunto, vamos expô-lo com a maior extensão permitida pelo marco geral de nossa obra.73

1. Plano divino de nossa predestinação em Cristo 33. Ao tentar expor o plano divino de nossa predestinação em Cristo, é forçoso recorrer à divina revelação e, dentro dela, à grandiosa concepção de São Paulo em sua carta aos éis de Éfeso. Eis aqui um texto fundamental, que nos dá a chave para nos aproximarmos um pouco mais deste sublime mistério: Bendito seja o Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que em Cristo nos abençoou com toda bênção espiritual nos céus; porquanto n’Ele Deus nos elegeu antes da constituição do mundo para que fôssemos santos e imaculados perante Ele na caridade, e nos predestinou para sermos seus lhos adotivos, por meio de Jesus Cristo, conforme o beneplácito de sua vontade, para louvor do esplendor de sua graça, que nos outorgou gratuitamente no Amado; n’Ele temos a redenção por seu sangue e a remissão dos pecados, segundo as riquezas de sua graça, a qual derramou de modo superabundante sobre nós em toda sabedoria e prudência, dando-nos a conhecer o mistério de sua vontade, conforme seu beneplácito, que n’Ele se propôs a realizá-lo na plenitude dos tempos, recapitulando todas as coisas em Cristo, as do céu e as da terra; n’Ele, fomos declarados herdeiros, predestinados segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho de sua vontade, a m de que todos nós que esperamos em Cristo sejamos para o louvor de sua glória (Ef 1, 3–12).

Neste texto paulino, de uma densidade de conteúdo verdadeiramente assombrosa, resumem-se as linhas fundamentais do plano divino de nossa predestinação em Cristo. Analisando um pouco o conteúdo deste texto, encontramo-nos com os seguintes dados, em torno dos quais não podemos guardar a menor dúvida, posto que se apóiam direta e imediatamente na revelação divina: 1º — A santidade a que Deus nos chama, pela graça de nossa adoção sobrenatural em Jesus Cristo, consiste em uma participação na mesma vida divina trazida pelo próprio Cristo. 2º — Deus quer fazer-nos participantes de sua própria vida divina, para que sejamos santos e para nos encher de felicidade.

3º — A santidade de Deus, identi cada com sua própria essência divina, inclui — segundo nosso modo discursivo de conceber as coisas — um elemento negativo e outro positivo: a) O afastamento in nito de tudo quanto é imperfeito, de tudo o que não é Deus (elemento negativo). b) A adesão in nita ao Bem Supremo, que é o próprio Deus (elemento positivo). 4º — A divina revelação nos facilita uma nova informação, uma nova e imensa luz sobre a santidade de Deus. Sua essência divina, in nitamente simples, se desdobra, por assim dizer, em três Pessoas distintas: Pai, Filho e Espírito Santo. A santidade de Deus consiste no conhecimento e amor mútuo que mantêm entre si as três Pessoas Divinas, ou seja, na união de Deus consigo mesmo na unidade de sua natureza e na trindade de suas pessoas. 5º — Por conseguinte, nossa santidade — participação, como é, da própria santidade de Deus — não pode consistir em outra coisa, a não ser em nos unirmos intimamente a Deus na unidade de sua natureza e na trindade de suas pessoas. Este supremo ideal supõe uma vocação sublime e um imenso amor por parte de Deus, que nos predestinou para tão incompreensível m. 6º — Deus realiza seu plano adotando-nos como seus lhos, por uma vontade in nitamente livre e cheia de amor: “Ele nos predestinou para sermos seus lhos adotivos [...] conforme o beneplácito de sua vontade” (Ef 1, 5). 7º — O pecado de Adão — herdado por todo o gênero humano — veio a destruir o magní co plano de Deus. Mas Deus se compadeceu de nós e decidiu restaurar tudo em Cristo (Ef 1, 10), decretando a encarnação redentora do Verbo.

8º — Cristo é, pois, o único caminho para ir ao Pai (Jo 14, 6), a única fonte de toda perfeição e santidade (Jo 7, 37–38). Nele habita corporalmente a plenitude da divindade (cf. Cl 2, 9). De sua plenitude todos haveremos de receber graça sobre graça (Jo 1, 16). Sem Ele não podemos fazer absolutamente nada (Jo 15, 5). Ou seremos santos em Jesus Cristo, ou não o seremos de modo algum. Sem Ele, nem mesmo podemos salvar-nos, já que “em nenhum outro há salvação, pois nenhum outro nome nos foi dado debaixo do céu, entre os homens, pelo qual possamos ser salvos” (At 4, 12). 9º — A esta sublime adoção divina estão chamados absolutamente todos os homens do mundo. Cristo é o Redentor e Salvador universal, não só dos cristãos que já crêem n’Ele, mas de toda a humanidade. São Paulo diz isto expressamente: “Deus, nosso Salvador, quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade. Pois há um só Deus, e também um só mediador entre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus, que se entregou para a redenção de todos” (1Tm 2, 4–6). É claro que, para gozar plenamente da redenção de Cristo, é preciso unir-se a Ele com a fé informada pela caridade. “Pois em Cristo Jesus não vale a circuncisão, nem vale o prepúcio, mas apenas a fé que atua pela caridade” (Gl 5, 6). 10º — Entretanto, Cristo não é o m último e absoluto da Criação. Ele é, em relação a nós, o Redentor, o Mediador, o único caminho para ir ao Pai. Mas o Pai “é maior do que Ele” (Jo 14, 28);74 e o m último da Criação é o louvor da glória da Trindade beatíssima através de Cristo e de todas as criaturas unidas a Ele. São Paulo expôs este processo de retorno de todas as coisas ao Pai por meio de Cristo em passagens admiráveis: “Ele nos predestinou [...] para o louvor do esplendor de sua graça” (Ef 1, 5–6). “Cheios de frutos de justiça por Jesus Cristo, para glória e louvor de Deus” (Fl 1, 11).

“Tudo é vosso, e vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus” (1Cor 3, 22–23). “Quando todas as coisas lhe carem submetidas, então o próprio Filho se sub- meterá a quem tudo submeteu a Ele, para que Deus seja tudo em todas as coisas” (1Cor 15, 28).

2. A essência da vida cristã 34. Considerando as linhas gerais do sublime plano de nossa predestinação em Cristo, que acabamos de resumir, escrevemos em outra de nossas obras:75 Agora se compreende, já sem di culdade, em que consistirá a própria essência da vida cristã. Fora de Cristo, o cristão é um ser irreal, um ser “inexistente”, vale o paradoxo. Desligado de Cristo, tudo quanto ele possa fazer ou tentar não tem valor algum perante Deus. Suas práticas de piedade, sua oração, seus sacrifícios e sofrimentos, etc., terão valor santi cador na medida de sua incorporação a Cristo, e nada mais. Sua própria vida trinitária — ponto de vista culminante, superior em teoria a todos os demais — não teria valor algum sem Cristo, já que Ele é o único caminho para ir ao Pai (cf. Jo 14, 6), e o Pai nos ama unicamente “porque amamos a Cristo e cremos que Ele saiu de Deus” (Jo 16, 27), e absolutamente por nada mais. Não interessam a Deus os nossos serviços, a não ser através de Cristo (cf. Cl 3, 17), nem aceita nossas petições se não as formulamos em seu nome (cf. Jo 16, 23–24). Sem Cristo, estamos completamente mortos, como o ramo separado da videira (cf. Jo 15, 4). Em uma palavra: sem Cristo não somos nada, e não podemos fazer absolutamente nada: “Sem mim nada podeis fazer” (Jo 15, 5). Pois se isso é assim — como nos garante infalivelmente a divina revelação —, a essência da vida cristã consistirá em nossa incorporação a Cristo; e seu progresso e desenvolvimento, ou seja, o processo de nossa santi cação, consistirá essencialmente em ir aumentando sem cessar esta incorporação a Cristo, até poder dizer com o Apóstolo: “Já não sou eu quem vive: é Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20). Este é o ponto central, o fundamento básico, a chave autêntica, a própria quintessência da vida cristã. Desgraçadamente, são legião as almas boas e piedosas que não o têm compreendido desta maneira. Elas se dispersam e se distraem em uma multidão de pequenos detalhes que as fazem perder de vista o grandioso plano de Deus sobre nós, suas pobres criaturas. São Paulo se desgastava em anunciar a todos o grande “mistério de Cristo” (Cl 1, 26–27) e as “insondáveis riquezas de Cristo” (Ef 3, 8), em quem nós “temos a redenção por seu sangue e a remissão dos pecados, segundo as riquezas de sua graça, a qual derramou de modo superabundante sobre nós” (Ef 1, 7–8). Ele chorava ao ver a desorientação dos homens, “inimigos da Cruz de Cristo” (Fl 3, 18), que

buscavam apagar sua sede “em cisternas furadas que não podem conter as águas” (Jr 2, 13), sem se dar conta de que “Cristo é tudo em todos” (Cl 3, 11) e de que n’Ele se sentiriam inteiramente cheios e saciados “com a própria plenitude de Deus” (Ef 3, 19). Se quiséssemos agora colocar em fórmulas breves e estereotipadas aquilo que constitui a própria essência da vida cristã, proporíamos estas três, que expressam de forma diferente uma única e mesma realidade: a) Ser outro Cristo, ou, se se preferir, Cristo novamente. b) Ser pela graça aquilo que Cristo é por natureza (Dom Columba Marmion). c) Ser para Cristo “uma nova humanidade de acréscimo, na qual renove todo o seu mistério” (Irmã Isabel da Trindade).

Tudo foi dito aqui. Em suas linhas fundamentais, não haveria nada de essencial a acrescentar. Contudo, para maior amplitude, e dada a importância decisiva desta matéria, insistiremos um pouco mais no sublime “mistério de Cristo” (Cl 4, 3) a partir de alguns outros pontos de vista.

3. Cristo, modelo supremo de toda perfeição 35. 1º — Nós já vimos — guiados pela divina revelação, principalmente através de São Paulo — que nossa santidade consiste em participar e imitar, de maneira cada vez mais perfeita, a vida íntima de Deus, uno em essência e trino em pessoas. 2º — Porém, como é evidente, para imitar a Deus é preciso conhecê-lo. Ora, o mistério da vida íntima de Deus é absolutamente impenetrável para a pobre razão humana. Esta pode demonstrar com certeza a existência de Deus uno,76 mas ignora em absoluto a trindade de pessoas. Só poderá conhecer este último se o próprio Deus se dignar revelá-lo. 3º — Esta revelação é um fato. Deus foi se revelando pouco a pouco através dos profetas do Antigo Testamento; mas a

revelação completa deste inefável mistério estava reservada ao próprio Filho: “Muitas vezes e de muitas maneiras Deus falou outrora a nossos pais pelo ministério dos profetas; nestes dias, que são os últimos, falou-nos por seu Filho, a quem constituiu herdeiro de tudo, por quem também fez os séculos” (Hb 1, 12). Foi Ele quem nos revelou abertamente o mistério da vida íntima de Deus, ao falar-nos do Pai, do Filho e do Espírito Santo (cf. Mt 28, 19), coisa inteiramente desconhecida no Antigo Testamento. 4º — Jesus Cristo é, pois, o grande sacramento, o sublime “mistério oculto desde o princípio dos séculos em Deus, Criador de todas as coisas” (Ef 3, 9), que se revelou a nós. Por isso, quem contempla a Cristo contempla também o Pai (Jo 14, 9), pois o Pai e Ele são “uma mesma coisa” (Jo 10,30) na unidade do Espírito Santo. 5º — Por conseguinte, não haverá outra maneira de imitar e reproduzir em nós a vida íntima de Deus, a não ser xando-nos em Jesus Cristo para imitar e reproduzir em nós sua própria vida, até poder dizer com São Paulo: “Já não sou eu quem vive, mas Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20). Eis aí de que maneira Cristo é para nós o único exemplo e modelo de toda perfeição e santidade. Não temos outro além d’Ele. Os santos — o próprio São Paulo — não foram mais que pobres “imitadores de Cristo” (1Cor 11, 1), e somente foram santos no grau e na medida em que imitaram a Ele. 6º — Cristo é nosso supremo modelo em sua pessoa, em suas obras e em sua doutrina: ) , já que sua liação divina natural é o protótipo e o supremo exemplo de nossa liação divina adotiva. Neste sentido, escreve lindamente Dom Columba Marmion: “Toda a

vida cristã, bem como toda santidade, se reduz a ser por graça aquilo que Jesus é por natureza: Filho de Deus”.77 “Estas realidades”, diz ainda Dom Marmion no texto citado, são precisamente aquelas que constituem a essência do cristianismo. Não entenderemos nada do que é perfeição e santidade, nem mesmo em que consiste o simples cristianismo, enquanto não estivermos convencidos de que o seu ponto fundamental consiste em sermos “ lhos de Deus”, e que essa qualidade ou estado nos são dados pela graça santi cante, pela qual participamos da liação eterna do Verbo. Todos os ensinamentos de Jesus Cristo e dos apóstolos estão sintetizados nesta verdade, todos os mistérios de Jesus se inclinam a realizá-la de forma prática em nossas almas.

) . Cristo praticou aquilo que ensinava, e ensinou aquilo que praticava (cf. At 1, 1). Contemplando suas obras, sobretudo a prática sublime de todas as virtudes, encontraremos o modelo e o exemplo acabadíssimo de toda perfeição e santidade. Não tenho, pois, que subir ao céu para ali buscar o pensamento de Deus a meu respeito; nada tenho que fazer, ó meu Jesus, a não ser contemplar-vos. Vós sois o ideal completo, no qual posso encontrar o meu [...]. Vós sois o ideal universal. Desde a criança até o Soberano Pontí ce, desde a religiosa carmelita até o homem de Estado ou o soldado; desde os apóstolos, os mártires, os doutores, até o mais modesto de nós, todos encontramos em vós o modelo de nossa perfeição e a luz de nossa vida. E vós sois o ideal de toda virtude, de toda ação e de toda condição. O ideal da caridade e da justiça, da humildade e da magnanimidade, da prudência e da fortaleza, da mansidão e da pureza, da modéstia, da abnegação, da morti cação, do zelo; do silêncio e da palavra, da oração e do trabalho, da alegria e da dor; em suma, sois o ideal da vida e da morte.78

) . Finalmente, Jesus Cristo é nosso supremo modelo e nosso exemplo de santidade e perfeição no que concerne à sua doutrina. Que doutrina a de Jesus Cristo! “Homem algum jamais falou como este!” (Jo 7, 46). As mais celebradas concepções dos chamados “gênios da humanidade” empalidecem e se esfumam diante de um só versículo do Sermão da Montanha. Sua moral

sublime, iniciada nos divinos paradoxos das bem-aventuranças, e completada no maravilhoso sermão das sete palavras que Ele pronunciou ao agonizar na Cruz, será sempre para a humanidade, sedenta de Deus, o código divino da mais excelsa perfeição e santidade. A alma que queira encontrar o verdadeiro caminho para ir a Deus tem apenas que abrir o Evangelho de Jesus Cristo em qualquer uma de suas partes, e beber a Verdade em caudais. Os santos acabam por perder o gosto pelos livros escritos pelos homens: “Eu”, dizia Santa Teresa do Menino Jesus, “nada encontro nos livros, a não ser no Evangelho. Este livro me basta”.79

4. Jesus Cristo, causa meritória da graça80 36. O mérito de Cristo em relação a nós está intimamente ligado a seu sacrifício redentor. Recordemos, ainda que de maneira muito breve, os marcos fundamentais de sua satisfação in nita, que nos mereceu e restituiu a vida sobrenatural perdida pelo pecado de Adão.81 1) Impossibilidade, para a linhagem humana, de satisfazer condignamente o pecado de Adão. Deus poderia, se assim o tivesse querido, perdoar graciosamente a dívida. Porém, exigia-se uma satisfação rigorosa, que se adequasse exatamente à dívida; e a impotência de todo o gênero humano era total e absoluta, considerada a in nita distância que separa o homem de Deus. Somente um Deus feito homem poderia transpor esse abismo in nito e oferecer à justiça divina uma satisfação plena e exaustiva. Isto suposto, a encarnação do Verbo era absolutamente necessária para a redenção do gênero humano.82 2) “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1, 14). E ao se juntarem em Cristo as duas naturezas, a divina e a humana, sob uma só personalidade divina

— a do Verbo —, todas as suas ações tinham um valor absolutamente in nito. Com o mais ligeiro sorriso nos lábios, com uma simples aspiração brotada de seu divino coração, Jesus teria podido redimir milhões de mundos. No entanto, de fato, a redenção só foi operada pelo sacrifício da Cruz. Assim aprouve ao Eterno Pai, por inescrutável desígnio de sua Divina Providência. Os teólogos se esforçarão por assinalar suas vantagens,83 mas seu fundo último permanece absolutamente misterioso e oculto a nossos olhares. 3) Cristo merece não somente para si, mas para nós, com rigoroso mérito de justiça: de condigno ex toto rigore iustitiae, dizem os teólogos. Esse mérito tem seu fundamento na graça capital de Cristo, em virtude da qual foi constituído Cabeça de todo o gênero humano; na liberdade soberana de todas as suas ações e no amor inefável com que aceitou sua Paixão para nos salvar. 4) A e cácia de suas satisfações e méritos é rigorosamente in nita e, por conseguinte, inesgotável. Isso deve produzir em nós uma ilimitada con ança em seu amor e em sua misericórdia. Apesar de nossas fraquezas e misérias, os méritos de Cristo têm e cácia superabundante para nos levar ao cume da perfeição. Seus méritos são nossos: estão à nossa disposição. Ele continua no céu a interceder por nós sem cessar: Semper vivens ad interpellandum pro nobis (Hb 7, 25). Nossa debilidade e pobreza constituem uma razão para as misericórdias divinas. Ao fazer valer nossos direitos junto aos méritos satisfatórios de seu Filho, glori camos imensamente o Pai e o enchemos de alegria, porque com isso proclamamos que Jesus é o único mediador que lhe aprouve estabelecer na terra. 5) A ninguém, pois, é lícito o desalento diante da consideração de suas misérias e indigências. As inesgotáveis riquezas de Cristo estão à nossa disposição (Ef 3, 8). “Não te chames de pobre se tens a mim”, disse o próprio Jesus a uma alma que se queixava de sua pobreza.

5. Jesus Cristo, causa eficiente de nossa vida sobrenatural 37. Todas as graças sobrenaturais que o homem recebeu depois do pecado de Adão até a vinda de Cristo ao mundo foram-lhe concedidas unicamente em atenção a Ele: intuitu meritorum Christi. E todas aquelas que a humanidade receberá até a

consumação dos séculos brotam do coração de Cristo como de sua única fonte e manancial. Já não temos gratia Dei, como a têm os anjos e como a tiveram nossos primeiros pais no estado de justiça original: a nossa, a de toda a humanidade caída e reparada, é gratia Christi, ou seja, graça de Deus através de Cristo, graça de Deus cristi cada. Essa graça de Cristo nos é comunicada de muitas maneiras, como veremos em seguida; mas o manancial de onde ela brota é absolutamente único: o próprio Cristo, sua humanidade santíssima unida pessoalmente ao Verbo. É isto que signi ca a expressão “Cristo, sobrenatural”.

causa

e ciente

da

graça

ou

vida

6. Jesus Cristo, fonte de vida sobrenatural 38. Jesus é fonte de vida. Sua santa humanidade é o instrumento unido84 à sua divindade para a produção e ciente da vida sobrenatural. E mais: essa mesma humanidade unida ao Verbo pode ser também, caso ela queira, fonte de vida corporal. O Evangelho nos diz que d’Ele saía uma força que curava os enfermos e ressuscitava os mortos: Virtus de illo exibat et sanabat omnes (Lc 6, 19). O leproso, o cego de nascença, o paralítico, o surdo-mudo e sobretudo a lha de Jairo, o lho da viúva de Naim e seu amigo Lázaro poderiam falar-nos com eloqüência de Cristo como fonte de saúde e de vida corporal. Mas aqui nos interessa considerar Cristo sobretudo enquanto fonte de vida sobrenatural. Neste sentido, devemos a vida inteiramente a Ele.

Para nos comunicar a vida natural, Deus quis utilizar instrumentalmente nossos pais carnais. Para nos comunicar sua própria vida divina, não utilizou nem utilizará jamais outro instrumento, a não ser a humanidade santíssima de Cristo. Cristo é a nossa vida: devemo-la por inteiro a Ele. Foi constituído por seu Eterno Pai como cabeça, chefe, pontí ce supremo, mediador universal, fonte e dispensador de toda graça. E tudo isto principalmente em atenção à sua Paixão, na qualidade de redentor do mundo, por ter realizado, com seus padecimentos e méritos, a salvação do gênero humano: “Aniquilou a si mesmo, assumindo a forma de escravo e fazendo-se semelhante aos homens; e na condição de homem se humilhou, feito obediente até a morte, e morte de cruz; por isso Deus o exaltou e lhe outorgou um nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus dobre o joelho tudo quanto existe nos céus, na terra e nos abismos” (Fl 2, 7–10). O Evangelho nos mostra de que maneira Cristo utilizava sua própria humanidade, em sua vida terrena, para conferir às almas a vida sobrenatural. “Filho”, diz Ele ao paralítico com sua palavra, “teus pecados te são perdoados”. Imediatamente se produz o movimento de surpresa e escândalo entre aqueles que acabavam de ouvir a expressão. “Quem é este homem que pretende perdoar pecados? Só Deus pode fazê-lo”. E Cristo, que percebe em seu interior aquele movimento de escândalo, oferece-lhes o argumento esmagador de que Ele, exatamente enquanto homem, tem pleno poder de perdoar pecados: “Que estais pensando em vossos corações? O que é mais fácil dizer ao paralítico: ‘Teus pecados te são perdoados’, ou dizer-lhe: ‘Levanta-te, toma teu leito e vai para casa?’. Pois para que vejais que o Filho do Homem tem poder, na terra, para perdoar pecados — e se dirige ao paralítico —, eu te digo: Levanta-te, toma teu leito e vai para tua casa”. E prontamente executou o que Cristo acabava de ordenar-lhe, em meio ao pasmo e à estupefação do povo.85 Sem dúvida, Cristo emprega a expressão Filho do Homem de modo plenamente deliberado. É verdade que ninguém pode perdoar pecados, a não ser unicamente Deus ou aquele que tenha recebido dele esse poder para utilizá-lo em nome de Deus. Entretanto, aquele que se atreve a perdoar pecados, não em nome de Deus, mas em seu próprio nome, e prova com um prodígio sobre-humano que efetivamente tem pleno poder para isso, deixou fora de qualquer dúvida que tem pessoalmente o próprio poder de Deus; isto é, que ele é pessoalmente Deus. Cristo é o Filho de Deus, o Autor da graça, o único que pode perdoar pecados por autoridade própria. Mas vamos de nir bem: esse Filho de Deus utiliza sua humanidade santíssima como instrumento (unido à sua divindade) para a produção e ciente da vida sobrenatural nas almas. Por isso emprega a expressão “o Filho do Homem”, como para signi car que, se, exatamente enquanto homem, Ele opera seus

milagres, perdoa pecados e distribui a graça com liberdade, poder e independência soberanos, é porque sua humanidade santíssima é em si mesma vivi cante; isto é, que ela é instrumento apto para produzir e causar a graça, em virtude de sua união pessoal com o Verbo divino.86

7. Influxo vital de Cristo nos membros de seu Corpo místico 39. Recordaremos aqui as linhas fundamentais da doutrina do Corpo místico de Cristo. Jesus Cristo é a Cabeça de um Corpo místico, que é a sua Igreja. Consta expressamente na divina revelação: “A Ele sujeitou todas as coisas sob seus pés e o pôs como Cabeça de todas as coisas na Igreja, que é seu Corpo” (Ef 1, 22–23; cf. 1Cor 12, 12 ss.). A demonstração desta razão é dada por Santo Tomás em um magní co artigo que responde à pergunta: “Se compete a Cristo, enquanto homem, ser Cabeça da Igreja”.87 Ao passar a explicá-la, o Doutor Angélico estabelece uma analogia com a ordem natural. Na cabeça humana, diz ele, podemos considerar três coisas: a ordem, a perfeição e a in uência sobre o corpo. A ordem, porque a cabeça é a primeira parte do corpo humano, a começar de cima para baixo. A perfeição, porque nela estão contidos todos os sentidos externos e internos, enquanto nos demais membros só se encontra o tato. Finalmente, a in uência sobre todo o corpo, porque a força e o movimento dos demais membros, bem como o governo de seus atos, procedem da cabeça pela força sensitiva e motora que nela domina.

Ora, todas estas excelências pertencem espiritualmente a Cristo; logo, cabe a Ele ser Cabeça da Igreja. Isto porque: a) A Ele compete a primazia da ordem, já que é o “primogênito entre muitos irmãos” (Rm 8, 29) e foi constituído no céu “acima de todo principado, potestade, virtude e dominação, e de tudo que tem nome, não só neste século, mas também no futuro” (Ef 1, 21), a m de que “tenha a primazia sobre todas as coisas” (Cl 1, 18). b) Também lhe compete a perfeição acima de todos os outros, já que nele se encontra a plenitude de todas as graças, segundo São João (1, 14): “Nós o vimos cheio de graça e verdade”. c) Cabe a Ele, nalmente, o in uxo vital sobre todos os membros da Igreja, já que “de sua plenitude todos recebemos graça sobre graça” (Jo 1, 16). São Paulo reuniu em um texto sublime estas três funções de Cristo como Cabeça da Igreja, ao escrever aos Colossenses (1, 18– 20): Ele é a Cabeça do Corpo da Igreja. Ele é o princípio, o primogênito dos mortos, de maneira que tem a primazia sobre todas as coisas [ ], porque aprouve ao Pai que nele habitasse toda a plenitude [ ] e que por Ele fossem reconciliadas consigo, paci cando pelo sangue de sua Cruz todas as coisas, tanto as da terra como as do céu [ ].

Em outra passagem, Santo Tomás demonstra que Cristo é Cabeça da Igreja em razão de sua dignidade, de seu governo e de sua causalidade.88 E a razão formal de ser Ele nossa Cabeça é a plenitude de sua graça habitual, conotando a graça de união. De maneira que, segundo Santo Tomás, é essencialmente a mesma a graça pessoal pela qual a alma de Cristo é santi cada e aquela pela qual justi ca os outros enquanto Cabeça da Igreja; entre elas só existe uma diferença de razão.89 Até onde se estende esta graça capital de Cristo? A quem ela afeta e em que forma ou medida? Santo Tomás a rma terminantemente que se estende aos anjos e a todos os

homens (exceto os condenados), embora em diversos graus e de formas muito diferentes. Assim sendo: ) C C . — Isto consta expressamente na Sagrada Escritura. Falando de Cristo, diz o apóstolo São Paulo: “Ele é a Cabeça de todo principado e potestade” (Cl 2, 10). A demonstração desta razão é dada por Santo Tomás, dizendo que onde há um só corpo, deve ser estabelecida uma só cabeça. Ora, o Corpo místico da Igreja não está formado somente por homens, mas também por anjos, já que tanto uns quanto outros estão ordenados a um mesmo m, que é a glória da fruição divina. E de toda esta multidão Cristo é a Cabeça, porque sua humanidade santíssima está pessoalmente unida ao Verbo, e, por conseguinte, participa de seus dons muito mais perfeitamente que os anjos, fazendo uir sobre eles muitas graças, tais como a glória acidental, carismas sobrenaturais, revelações dos mistérios de Deus e outras semelhantes. Logo, Cristo é Cabeça dos próprios anjos.90 ) C

C

,

. Eis como o

explica Santo Tomás: a) Dos bem-aventurados Ele o é perfeitissimamente, já que estão unidos a Ele de maneira de nitiva pela con rmação na graça e na glória eterna. O mesmo se diga das almas do purgatório, quanto à con rmação na graça. b) De todos os homens em graça Ele também o é perfeitamente, já que por in uência de Cristo possuem a vida sobrenatural, os carismas e os dons de Deus, e permanecem unidos a Ele como membros vivos e atuais pela graça e pela caridade. c) Dos cristãos em pecado Ele o é de um modo menos perfeito, na medida em que, pela fé e esperança informes, ainda estejam unidos a Ele de uma maneira atual. d) Os hereges e pagãos, tanto os predestinados como os futuros réprobos, não são membros atuais de Cristo, mas somente em potência; entretanto com esta diferença: os predestinados são membros em uma potência que deve passar a ser atual, e os futuros réprobos o são em uma potência que nunca passará a ser atual ou o será apenas transitoriamente. e) Os demônios e condenados de maneira alguma são membros de Cristo, porque estão de nitivamente separados dele, e jamais estarão unidos a Ele, nem sequer em potência. 91

40. Pois bem: De que maneira Cristo Cabeça exerce seu in uxo vital em seus membros vivos que permanecem unidos a Ele nesta vida pela graça e pela caridade? Exerce-o de muitas maneiras, que podem fundamentalmente ser reduzidas a duas: pelos sacramentos e pelo contato da fé vivi cada pela caridade. Examinemos cada um destes dois modos. )P . — É de fé que Cristo é o autor dos sacramentos.92 Tinha de ser assim, porque não sendo mais que “sinais sensíveis que signi cam e produzem a graça santi cante”, somente Cristo, o manancial e a única fonte da graça, poderia instituí-los. E Ele os instituiu exatamente para nos comunicar, através deles, sua própria vida divina: “Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10, 10). Esses

sinais sensíveis possuem a virtude de nos comunicar a graça por sua própria força extrínseca (ex opere operato), mas unicamente como instrumentos de Cristo, ou seja, em virtude do movimento ou impulso que recebem da humanidade de Cristo unida ao Verbo divino e cheia de sua própria vida. “Pedro batiza?”, diz Santo Agostinho, “é Cristo quem batiza. Judas batiza? É Cristo quem batiza”.93 Por isso a indignidade do ministro humano que confere os sacramentos — seja ele pecador, herege... — não é obstáculo algum para sua validade, contanto que tenha a intenção de fazer aquilo que faz a Igreja na administração desse sacramento. Cristo, o Homem-Deus, quis colocar a comunicação de sua divina graça por meio dos sacramentos completamente fora e acima das fraquezas e misérias humanas; isso dá a nós, cristãos, con ança e segurança absolutas na e cácia desses divinos auxílios, de modo a não haver de nossa parte nenhum obstáculo para recebê-los. Assim, é mister advertir que nós podemos, sim, colocar um obstáculo insuperável à e cácia santi cadora dos sacramentos. Nenhum sacramento é válido se não se consente interiormente em recebê-lo.94 A falta de arrependimento impede a recepção da graça no sacramento da Penitência ou no Batismo de um adulto em pecado, e o pecado mortal consciente95 impede a recepção da graça nos cinco sacramentos dos vivos, transformando-a em sacrilégio. Porém, mesmo levando em conta as disposições indispensáveis para a válida e frutuosa recepção dos sacramentos, a medida da graça que eles nos comunicarão em cada caso dependerá não só da maior ou menor excelência do sacramento considerado em si mesmo, como também do grau e do fervor de nossas disposições. Se a alma se aproxima para recebê-los com sua capacidade receptiva ampliada por verdadeira fome e sede de unir-se intimamente a Deus através da digna recepção de sua graça, ela a receberá em uma medida transbordante e pleníssima. Já se usou com freqüência a imagem da fonte e do vaso: a quantidade de água que se recolhe em cada caso não depende somente da fonte, mas do tamanho do vaso com que vamos recolhê-la. Por isso é de soberana importância a ardente preparação para receber os sacramentos, sobretudo o da Eucaristia, que nos traz não somente a graça, mas o manancial e a fonte da graça, que é o próprio Cristo. Por meio dos sacramentos, sobretudo pela Eucaristia, é que Cristo exerce principalmente seu in uxo vital sobre nós. Devemos recorrer a eles, acima de tudo, para incrementar nossa vida sobrenatural e nossa união com Deus. São as fontes autênticas da graça, que devem ser colocadas em primeiro lugar e que nenhuma outra coisa jamais poderá substituir. Existem almas que não se aperceberam disso o su ciente, e querem encontrar em outros exercícios ou práticas de devoção um alimento espiritual que está in nitamente mais longe da e cácia dos sacramentos. Constitui grande injúria a Cristo não dar o devido apreço ou relegar a segundo posto estes canais autênticos que Ele mesmo quis instituir para nos comunicar suas graças, sua própria vida divina; e constitui uma homenagem de gratidão e de amor aproximarse deles para beber com avidez, com a máxima freqüência permitida por cada um deles, da água límpida e cristalina que nos comunicam; dessa água divina que, brotando do coração de Cristo,96 corre em seguida por nossas almas e se lança, en m, até a vida eterna (Jo 4, 14). O próprio Cristo nos impele de maneira premente: “Aquele que tem sede, venha a mim e beba” (Jo 7, 37).

) . — São Paulo tem, em uma de suas epístolas, uma expressão misteriosa. Ele diz que Cristo habita pela fé em nossos corações: Christum habitare per dem in cordibus vestris (Ef 3, 17). Que signi cam estas palavras? Trata-se de uma inabitação física da humanidade de Cristo em nossas almas, à maneira da inabitação da Trindade beatíssima em toda alma em graça? Seria um grande erro pensar assim. A humanidade de Cristo vem sicamente a nossas almas no sacramento da Eucaristia, mas sua presença real, física, está vinculada de tal maneira às espécies sacramentais, que quando estas se alteram substancialmente, ela desaparece em absoluto, permanecendo unicamente na alma a sua divindade (com o Pai e o Espírito Santo), e a in uência de sua graça. Entretanto, é um fato — constatado expressamente nas palavras de São Paulo — que Cristo, de algum modo, habita pela fé em nossos corações. Santo Tomás, comentando as palavras do Apóstolo, não vacila em interpretá-las tal como soam: “Pela fé Cristo habita em nós, como se diz em Ef 3, 17. E, por isso mesmo, a virtude de Cristo se une a nós pela fé”.97 Estas últimas palavras do Doutor Angélico nos oferecem a verdadeira solução. É a virtude de Cristo que propriamente habita em nossos corações pela fé. Cada vez que nos dirigimos a Ele pelo contato de nossa fé vivi cada pela caridade,98 sai de Cristo uma virtude santi cante que tem sobre nossas almas uma bené ca in uência. O Cristo de hoje é o mesmo do Evangelho, e todos aqueles que se aproximavam dele com fé e amor participavam daquela virtude que saía dele e curava as enfermidades dos corpos e das almas: Virtus de illo exibat, et sanabat omnes (Lc 6, 19). “Como, pois, poderíamos duvidar de que quando nos aproximamos dele, mesmo fora dos sacramentos, pela fé, com humildade e con ança, sai dele um poder divino que nos ilumina, nos fortalece, nos ajuda e nos auxilia? Ninguém jamais se aproximou de Cristo com fé e com

amor sem receber os raios bené cos que brotam incessantemente desse foco de luz e de calor: Virtus de illo exibat”.99 Assim, a alma que queira santi car-se deve multiplicar e intensi car cada vez mais este contato com Cristo através de uma fé ardente vivi cada pelo amor. Este exercício altamente santi cador pode ser repetido a cada momento, in nitas vezes ao dia, diferentemente do contato sacramental com Cristo, que só pode ser estabelecido uma única vez a cada dia.100

CAPÍTULO V | O papel de Maria na santificação do leigo 41. Ainda que neste nosso trabalho não pretendamos expor todos os aspectos da vida cristã,101 mas unicamente aqueles que se relacionam mais diretamente com a vida do leigo no meio do mundo, seria de todo imperdoável a omissão de um breve capítulo dedicado a Maria, e isso por duas razões principais: 1ª — Porque a Virgem Maria, no plano atual de nossa predestinação em Cristo, é um elemento essencial (e não acidental ou secundário) de nossa santi cação, e até mesmo de nossa própria salvação eterna. Esperamos demonstrá-lo a seguir. 2ª — Porque a Virgem Maria, embora seja agora a Rainha e a Soberana dos céus e da terra, enquanto viveu neste mundo foi uma humilde mulher leiga que viveu desconhecida e oculta em uma pobre aldeia da Palestina. Assim, falando para leigos, seria imperdoável não dizer nada sobre a mulher leiga por excelência, modelo perfeito e protótipo acabadíssimo da vida cristã secular.

Com isso, já temos desenhado o plano que a seguir vamos expor abreviadamente: Maria no plano de Deus sobre os homens. Maria, exemplo perfeito da vida cristã secular.

1. Maria no plano de Deus sobre os homens 42. Comecemos por escutar a magní ca exposição de um excelente teólogo de nossos dias:102 Na estrutura da comunhão divina e humana, que é a Igreja, a Santíssima Virgem ocupa um posto especial. Ela não pode nem ser reduzida aos elementos imanentes, nem alcançar o nível daqueles absolutamente transcendentes. Maria é, ao mesmo tempo, extrema pequenez e sublime grandeza. Sob muitos aspectos, sua vida se identi ca com a de seus semelhantes, mas misteriosamente se introduz nas mais secretas intimidades da própria vida de Deus e de sua providência salví ca sobre toda a humanidade. Estes contrastes são luminosamente expressos na Sagrada Escritura. Maria é a donzela que se perturba (Lc 1, 29), a recém-desposada que corre o risco de ser repudiada em segredo por seu esposo (Mt 1, 19), aquela que desconhece a relação entre o fato de que Jesus seja Filho de Deus e, ao mesmo tempo, com enorme dor para ela, permaneça ocultamente em Jerusalém (Lc 2, 49–50), pois tem plena consciência de que, tendo-se de nido como “a escrava do Senhor” (Lc 1, 38), jamais ousaria colocar a menor di culdade para que Jesus se ocupasse de fato “com as coisas que são do serviço de seu Pai” (Lc 2, 49). E assim poderíamos prosseguir vendo como a Sagrada Escritura destaca com grande realce a pequenez da humilde serva sobre quem Deus quis pôr os seus olhos (Lc 1, 48). Porém, Deus não deposita seu olhar sobre alguém inutilmente. Se, falando de modo geral, sua palavra nunca volta vazia para Ele, “mas faz o que Eu quero e cumpre sua missão” (Is 55, 11), qual será o futuro da Palavra eterna e consubstancial que Deus envia a Maria para que nela se encarne? Eis a resposta emocionada: “Todas as gerações me chamarão bem-aventurada, porque fez em mim maravilhas o Onipotente, cujo nome é santo” (Lc 1, 48–49), e em cuja virtude se sente fortalecida para pronunciar seu corajoso at, que a associa para sempre à obra de reparação de toda a linhagem humana (Lc 1, 38; 2, 34–35; Jo 19, 25; At 1, 14).

Em Maria se acha presente toda a pequenez de uma humilde mulher do povo e toda a grandeza daquela que foi escolhida para gerar “segundo a carne” (Rm 1, 3) o Filho de Deus, “nascido de mulher” (Gl 4, 4). Maria é o instrumento e a colaboradora do Pai para “introduzir seu Primogênito no mundo” (Hb 1, 6). A “passagem” do Verbo por Maria não lhe retira sua natureza de mulher, mas a exalta até “uma dignidade, em certo sentido, in nita, porque a transforma em mãe de uma pessoa divina”.103 Deus depositou “no olhar de Maria algo de sua grandeza sobrehumana e divina. Um raio da formosura de Deus brilha nos olhos de sua Mãe”.104 A encarnação se realizou em Maria, e este mistério não pode deixar de imprimir nela a sua “marca”, e de a designar como a mulher portadora de Deus por excelência. Dentro de Maria e por seu concurso, realizou-se a suprema comunhão entre o humano e o divino, mediante a assunção de nossa natureza pelo Verbo de Deus. Este fato transcendental e único implica que Maria sempre terá um lugar destacado no organismo de comunhão entre os homens e Deus, porque este organismo não faz mais que distribuir as virtualidades de comunhão latentes no mistério fontal que se realizou nela e por meio dela. Contudo, note-se bem que não se trata unicamente de lhe reservar um lugar privilegiado nos sentimentos de piedade do povo el. Nossa intenção é reclamar para a Santíssima Virgem um lugar estruturalmente constitutivo do organismo de comunhão que é a Igreja. A piedade se fundamenta sobre esta excepcional posição de Maria e, ao mesmo tempo, serve para descobri-la, pois, “honrando a Maria, chegase a descobrir sua função superlativa na economia da salvação”.105 A rmar que a Santíssima Virgem entra estruturalmente na constituição do organismo ou Corpo da Igreja equivale a dizer que Maria desempenha na Igreja, e na salvação que a Igreja distribui, uma função essencial. “Maria e a Igreja são realidades essencialmente inseridas no desígnio da salvação que nos é oferecida através do único princípio de graça e do único Mediador entre Deus e os homens, que é Cristo. Essencialmente!”.106 Daí se deduz que “quem, agitado pelas tempestades deste mundo, se recusa a segurar a mão auxiliadora de Maria, põe em perigo a sua salvação”.107

Como o leitor pode ver pelas citações apresentadas pelo Pe. Bandera, o papel essencial de Maria na economia de nossa santi cação, e inclusive de nossa salvação eterna, não é uma opinião pessoal de um determinado teólogo, mas é a doutrina o cial da Igreja, claramente manifestada através dos últimos pontí ces, que foram os que falaram de Maria com mais precisão e exatidão teológica. Continuemos, porém, escutando a magní ca exposição teológica do Pe. Bandera:

Seria inútil objetar, contra estas a rmações, que Deus não necessita de Maria, e que a fonte de onde emana toda graça salví ca é Cristo. Porque, ao exaltar a dignidade de Maria, não pretendemos transformá-la em uma necessidade que se impõe a Deus, nem fazer dela um meio de salvação isolado de Cristo. A rmamos simplesmente que Deus assim dispôs as coisas; que foi Ele quem quis atribuir à Santíssima Virgem uma “função superlativa” na ordem da graça, e que esta atribuição feita por Deus sinaliza para nós um caminho que não temos direito de mudar por nossa conta. Ademais, as pretensas objeções, não obstante terem sido repetidas muitas vezes, carecem absolutamente de valor. Por acaso, quando dizemos que a Igreja é necessária para se salvar, a rmamos que a Igreja seja uma necessidade imposta a Deus, e que ela nos administra uma salvação distinta da de Cristo? Simplesmente dizemos que Deus nos quis salvar em Cristo mediante a Igreja, instituída pelo próprio Cristo para este m. Porém, como o homem só pode salvar-se entrando no plano de Deus, a Igreja é — para o homem, não para Deus — uma necessidade no esforço para conseguir sua salvação. A necessidade de recorrer à Santíssima Virgem em reconhecimento da função essencial que Deus lhe atribuiu é análoga à necessidade de pertencer à Igreja. Porém, dentro desta analogia, devemos destacar uma importante diferença. A necessidade de submeter-se à ação mariana não deriva da necessidade de pertencer à Igreja, mas ao contrário; isto é, Deus dispôs que a Igreja seja necessária em dependência primária de Cristo e, subordinadamente a Cristo, em dependência também de Maria. De maneira que a ação mariana situa-se em um nível superior à Igreja, mas inferior a Cristo e totalmente dependente de Cristo. Esta posição intermediária — como tudo o que é intermediário — é muito difícil de expressar em uma fórmula, porque é uma posição de contrastes, de grandeza e pequenez, de superioridade e inferioridade, de princípio e derivação. Se a mente considera somente um dos extremos, irremediavelmente o exagera em detrimento do outro. A inteligência humana sofreu graves desvios em sua tentativa de expressar o mistério de Cristo, apesar dos abundantíssimos ensinamentos bíblicos. Por isso, ninguém deve estranhar que existam di culdades em relação à Santíssima Virgem, acerca de quem a doutrina revelada é muito mais escassa. No Magistério contemporâneo da Igreja, encontramos fórmulas de contrastes que destacam um dos extremos de preferência ao outro, e fórmulas de sínteses que expressam o aspecto típico da posição da Santíssima Virgem, precisamente enquanto posição intermediária.

Depois de reunir alguns testemunhos de Pio e João em torno dessas fórmulas de contrastes e de sínteses, o Pe. Bandera conclui dizendo: Paulo chega à anunciação explícita da fórmula sintética, em que a Santíssima Virgem é proclamada Mãe da Igreja, advertindo, ao mesmo tempo, que este título assinala o lugar próprio de Maria dentro do mistério eclesial.108 Esta formulação doutrinal foi coroada com a proclamação solene de Maria Mãe da Igreja, isto é, dos pastores e dos éis, em um ato no qual a própria Igreja, representada por todos os seus hierarcas,

aplaudiu com transbordante júbilo. Este reconhecimento emocionado da maternidade de Maria sobre a Igreja faz parte do conteúdo da consciência que a Igreja, sob a ação do Espírito Santo, adquire de si mesma. Por ser mãe, a Santíssima Virgem possui toda a imanência vivi cante implicada pela função maternal. E pela mesma razão, situa-se em um nível superior, porque a maternidade expressa não só a idéia de comunhão de vida entre mãe e lho, mas também, e de maneira típica, a idéia de princípio, em virtude do qual o lho alcança aquela vida e aquela comunhão. Este é o lugar da Santíssima Virgem na Igreja: ser mãe de cada um dos éis, e da Igreja em sua totalidade.

De fato, em seu discurso de encerramento da terceira etapa conciliar, em 21 de novembro de 1964, Sua Santidade, o Papa Paulo , proclamou solenemente Maria como Mãe da Igreja. Eis aqui, textualmente, as palavras pronunciadas por Paulo nesta inesquecível sessão:109 A realidade da Igreja não se esgota em sua estrutura hierárquica, em sua liturgia, em seus sacramentos nem em suas ordenações jurídicas. Sua essência íntima, a principal fonte de sua e cácia santi cadora, deve ser procurada em sua união mística com Cristo, união que não podemos pensar separada daquela que é a Mãe do Verbo encarnado e que o próprio Cristo quis tão intimamente unida a si para nossa salvação. Assim, deve ser incluída na missão da Igreja a contemplação amorosa das maravilhas que Deus operou em sua santa Mãe. E o conhecimento da verdadeira doutrina católica sobre Maria será sempre a chave da exata compreensão do mistério de Cristo e da Igreja. A re exão sobre estas estreitas relações de Maria com a Igreja, estabelecidas de forma tão clara pela atual constituição conciliar, nos permite acreditar que este é o momento mais solene e mais apropriado para dar satisfação a um desejo que, tendo sido assinalado por nós ao término da sessão anterior, foi, por muitíssimos padres conciliares, tomado como próprio, de forma que pediram insistentemente uma declaração explícita, durante este concílio, sobre a função maternal que a Virgem exerce sobre o povo cristão. Para este m, julgamos oportuno consagrar, nesta mesma sessão pública, um título em honra da Virgem, sugerido por diferentes partes do mundo católico, e particularmente cativante para nós, pois ele expressa, com maravilhosa síntese, o lugar privilegiado que este concílio reconheceu para a Virgem da Santa Igreja. Assim, pois, para a glória da Virgem e consolo nosso, nós proclamamos Maria Santíssima Mãe da Igreja, isto é, Mãe de todo o povo de Deus, tanto dos éis como dos pastores, que a chamam de Mãe amorosa, e queremos que de agora em diante seja honrada e invocada por todo o povo cristão com este gratíssimo título.

Esta solene declaração do Sumo Pontí ce e Vigário de Cristo na terra arrancou dos padres conciliares, postos em pé, a mais longa

e emocionante ovação que se tinha ouvido na aula conciliar ao longo de toda a celebração do concílio. Muitos padres conciliares não puderam conter as lágrimas que o júbilo e a emoção zeram brotar de seus olhos enquanto aplaudiam entusiasticamente a Mãe da Igreja e o papa. A Igreja Católica em seu conjunto — representada por todos os bispos do mundo — rati cou deste modo tão impressionante o glorioso título de Mãe da Igreja, que Paulo acabava de proclamar em honra da excelsa Mãe de Deus. E já que falamos do Concílio Vaticano , convidamos o leitor a ler, meditar e saborear detidamente o magní co capítulo 8º da Constituição Dogmática sobre a Igreja, inteiramente dedicado à Santíssima Virgem. É uma lástima que, por exigência de espaço, não possamos transcrevê-lo aqui por inteiro. Mas de sua riqueza doutrinal e extraordinária densidade de conteúdo — é um verdadeiro compêndio de toda a mariologia — o leitor poderá formar para si uma idéia através do seguinte resumo esquemático que oferecemos a seguir.110 A Santíssima Virgem Maria, Mãe de Deus, no mistério de Cristo e da Igreja i. Introdução 43. 1. O Filho de Deus nasceu da Virgem Maria por obra do Espírito Santo, e os éis que se unem a Cristo devem honrar a memória da Virgem Maria, Mãe de Jesus Cristo, Deus e Senhor nosso. 2. Redimida em previsão dos méritos do Filho de Deus, do qual ela é Mãe, Maria é a lha predileta do Pai e o templo do Espírito Santo. Embora superior a todas as criaturas celestiais e terrenas, Maria está unida na raça de Adão a todos os homens, necessitados de salvação; entretanto, como Mãe de Cristo e de seus membros, reconhece-se para ela um lugar singular na Igreja, da qual é gura. A Igreja católica venera Maria como Mãe amantíssima.

3. O concílio deseja esclarecer a função de Maria no mistério do Verbo encarnado e do Corpo místico, e os deveres dos éis em relação à Mãe de Deus, sem dirimir as questões tratadas pelos teólogos. ii. Função da Santíssima Virgem na economia da salvação 4. Maria já estava presente no Antigo Testamento, esboçada profeticamente com a promessa, feita a nossos primeiros pais, da vitória sobre a serpente, e na Virgem que conceberá e dará à luz um Filho, cujo nome será Emanuel. 5. No Novo Testamento, Maria, saudada pelo anjo como “cheia de graça”, ao dar seu consentimento à palavra divina, torna-se Mãe de Deus. À desobediência de Eva, portadora da morte, responde a obediência de Maria, portadora da vida. 6. Sua união com o Filho na obra da redenção manifesta-se na visita a sua prima Isabel, na apresentação de seu Primogênito recém-nascido aos pastores e aos Magos, na cerimônia da puri cação e no encontro de Jesus no templo. 7. Na vida pública, Maria fez Jesus realizar, nas Bodas de Caná, o seu primeiro milagre; depois acompanhou seu Filho até a Cruz, associando-se ao seu sacrifício. Jesus, moribundo, entregou-a como mãe para João. 8. Presente com os apóstolos em Pentecostes, a Virgem Imaculada foi assunta à glória celestial em corpo e alma, e exaltada como Rainha do universo. iii. A Santíssima Virgem e a Igreja 9. A função maternal de Maria em relação aos éis não diminui a mediação única de Cristo, mas, ao contrário, revela a sua e cácia.

10. Ao cooperar com a obra do Salvador através de sua obediência, fé, esperança e caridade, Maria foi mãe para todos na ordem da graça. 11. A função maternal de Maria não acaba depois do consentimento da anunciação. Uma vez assunta ao céu, obtém para nós com sua intercessão a graça da salvação eterna, e por isso é honrada na Igreja com os títulos de advogada, auxiliadora, socorro e mediadora, sem nada retirar e sem nada acrescentar à mediação única do Redentor. 12. Virgem e Mãe, Maria é gura da Igreja, e, depois de ter dado à luz o seu Primogênito, cooperou para a regeneração dos inumeráveis irmãos de Cristo, isto é, dos éis. 13. Também a Igreja é mãe, porque gera nova vida para os lhos concebidos por obra do Espírito Santo e nascidos de Deus, e é virgem na integridade e na pureza da fé em seu Esposo. 14. Maria refulge como exemplo de virtude perante toda a comunidade dos eleitos, e é modelo daquele amor maternal de que devem estar animados todos aqueles que, na Igreja, cooperam para a regeneração dos homens. iv. O culto da Santíssima Virgem na Igreja 15. Segundo suas palavras proféticas, todas as gerações proclamarão Maria como bem-aventurada por ser a Mãe de Deus, e justamente por isso a Igreja promove um culto especial à Virgem, o qual, entretanto, se diferencia essencialmente do culto de adoração que se presta ao Verbo encarnado e igualmente ao Pai e ao Espírito Santo. 16. O concílio exorta a considerar em justa estima os exercícios de piedade para com Maria, transmitidos até nós pela tradição.111

Os teólogos e pregadores se abstenham igualmente de todo exagero e de todo minimalismo. v. Maria, sinal de esperança certa e de consolo para o povo peregrino de Deus 17. Também em sua glori cação Maria é imagem da Igreja, que terá sua plenitude somente quando chegar o dia do retorno do Senhor. 18. Considerando que Maria é honrada por muitos de nossos irmãos separados, especialmente entre os orientais, o concílio exorta os éis a rogar à Mãe de Deus e Mãe dos homens para que, assim como ajudou com sua assistência nos inícios da Igreja, interceda também agora junto a seu Filho até que todas as famílias dos povos estejam felizmente reunidas em um só povo de Deus, para glória da Santíssima Trindade. Até aqui, temos o resumo da doutrina do Concílio Vaticano sobre a Santíssima Virgem. Repetimos que este breve resumo esquemático não dispensa a leitura atenta de todo o capítulo conciliar sobre Maria, que constitui uma verdadeira jóia mariológica de primeiríssima ordem. Na realidade, o concílio não fez outra coisa, senão tornar-se eco de toda a tradição católica — tanto magisterial, como teológica e popular — em torno da Virgem Maria. O Magistério da Igreja publicou ao longo dos séculos inumeráveis documentos marianos;112 e todos os Santos Padres se dedicam a cantar seus louvores e grandezas.113 Quanto ao povo el, não existe nele devoção mais profunda e entranhada que esta dedicada à excelsa Mãe de Deus e nossa mãe. É o lho que sente a necessidade da mãe e se lança em seus braços com imenso carinho e con ança lial.

2. Maria, exemplo perfeito da vida cristã secular 44. Como já dissemos no artigo anterior, a Virgem Maria é a Rainha e a Soberana dos céus e da terra. É também a mediadora universal de todas as graças que receberam, recebem e receberão todos os homens do mundo — cristãos e não-cristãos — até a consumação dos séculos. E tudo isso em virtude de sua condição de Mãe de Deus e de sua associação a Cristo Redentor, na qualidade de co-redentora de toda a linhagem humana. Mas não esqueçamos que esta sublime e incomparável grandeza de Maria passou completamente despercebida neste mundo. Enquanto viveu neste desterro, a Virgem Maria foi uma pobre mulher aldeã, esposa de um carpinteiro, que levou uma vida de todo obscura e desconhecida em uma pequena aldeia da Palestina chamada Nazaré. No entanto, naquela humilde casinha nazarena, Maria se revelou — depois de Cristo — como o exemplo mais perfeito e acabado que podem contemplar os cristãos leigos que vivem no mundo. Pois Maria foi uma mulher leiga. Sem dúvida alguma — sem prejuízo de sua milagrosa maternidade divina — ela é a Virgem das virgens, o modelo incomparável das almas consagradas a Deus na vida religiosa. Mas Maria não foi monja nem religiosa. Foi, simplesmente, uma mulher leiga, que atravessou em sua vida todas as etapas que atravessa a maior parte das mulheres leigas que vivem no mundo: lha, esposa, mãe e viúva. O Senhor a fez passar por todas essas etapas da vida secular para que — entre muitas outras coisas — pudesse ser o modelo, o exemplo e o protótipo acabadíssimo de todos os cristãos que vivem no mundo.

Em outra de nossas obras, examinamos amplamente as virtudes heróicas que a Santíssima Virgem praticou ao longo de toda a sua vida, sobretudo na humilde casinha de Nazaré.114 Aqui, vamos nos limitar a reunir, em forma quase esquemática, aquelas que se relacionam de maneira mais próxima e imediata da vida dos leigos que vivem no mundo. . , ao crer sem vacilar no anúncio inaudito que o anjo lhe fez em nome do Senhor, escolhendo-a como sua Mãe; ao adorá-lo como Deus, vendo-o tiritar de frio no redil de Belém; ao obrigá-lo com seu pedido materno a fazer o primeiro milagre nas Bodas de Caná; e, sobretudo, permanecendo ao pé da Cruz, crendo com toda a sua alma que aquele grande fracassado que morria em meio a dores espantosas era o Verbo de Deus, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, que se zera homem em suas entranhas virginais. Que fé a de Maria! . , manifestada desde a infância, quando suspirava ardentemente pela vinda do Messias para a salvação do mundo; quando permaneceu tranqüila, esperando que o mistério de sua concepção virginal fosse revelado pelo próprio Deus a seu esposo São José; quando fugiu para o Egito para salvar o Menino; no Calvário, de modo especial, quando tudo parecia perdido; animando os apóstolos, depois de Pentecostes, na propagação da Igreja pelo mundo inteiro, e esperando com um desejo ardente, mas calmo e tranqüilo, a hora de se reunir para sempre com seu Filho no mais alto do céu... . em seu tríplice aspecto de amor a Deus, ao próximo e a si mesma por Deus. Seu amor a Deus, como Filha do Pai, Mãe do Filho e Esposa do Espírito Santo, foi imensamente superior ao de todos os anjos e santos reunidos. Seu amor ao próximo chegou ao extremo de cooperar com dores inefáveis para a redenção de todo o gênero humano. E o amor que devemos a nós mesmos em Deus, por Deus e para Deus, alcançou em Maria o seu máximo expoente em sua re nada delidade à

graça do Espírito Santo, que a elevou a uma tão elevada altura de santidade — e, por conseguinte, de glória eterna —, que nos é impossível compreendê-la. . , manifestada em sua sublime conversação com o anjo da anunciação; em seu silêncio e recolhimento em Nazaré, sem chamar a atenção de ninguém; nas palavras que o Evangelho recolhe da Santíssima Virgem (com o anjo, com sua prima Isabel, com seu Filho, com os servidores das Bodas de Caná, etc.), todas elas cheias de re nada prudência e sabedoria. . . — Justiça para com Deus, praticando a lei divina em máximo grau, inclusive nas coisas que não a obrigavam (como sua puri cação depois do nascimento de Jesus, a circuncisão do Menino, etc.). — E justiça para com o próximo, em sua obediência e submissão a São José, como chefe da Sagrada Família, ainda que a dignidade de Maria, como Mãe de Deus, fosse incomparavelmente superior à de seu virginal esposo. No trato com sua prima Isabel, com o casal de Caná, com os apóstolos depois da ascensão do Senhor; sempre a Virgem aparece dando a cada um o que lhe corresponde, de acordo com a justiça mais suave e carinhosa. . nos incríveis incômodos e provações de Belém, do Egito e de Nazaré, e, sobretudo, ao permanecer de pé diante da Cruz de seu Filho (cf. Jo 19, 25), em seu espantoso martírio de co-redentora. . em todos os aspectos: sobriedade na comida pobre de Nazaré, mansidão, clemência, modéstia, humildade, pureza imaculada... Todas estas virtudes, derivadas da temperança, foram praticadas por Maria em grau perfeitíssimo. São estas as sete virtudes fundamentais: três teologais e quatro cardeais. Em torno destas últimas, giram muitas outras virtudes

derivadas, que recebem em teologia o nome técnico de partes potenciais da virtude cardeal correspondente. Todas elas foram praticadas em grau heróico pela Virgem Maria, exceto aquelas que eram incompatíveis com sua inocência e santidade imaculadas (por exemplo, a virtude da penitência, que supõe o arrependimento de um pecado que a Virgem jamais cometeu). Tais são elas, entre muitas outras: a) A profunda religiosidade com que, desde pequenina, acorria ao templo para praticar o culto de Deus até nos mínimos detalhes. b) O espírito de oração e recolhimento, manifestado em Belém, no Egito, em Nazaré... c) A profunda piedade, cheia de lial ternura, com que amou a Deus, a seus pais Joaquim e Ana, e sua própria pátria terrena, cumprindo todas as prescrições legais. d) Sua gratidão pelos benefícios recebidos de Deus, como se viu no sublime cântico do Magni cat. e) Sua extrema cortesia e delicadeza, manifestadas na visita a sua prima Santa Isabel, nas Bodas de Caná, etc. f) Sua magnanimidade ou grandeza de alma, perdoando aos verdugos que cruci caram seu Divino Filho e oferecendo por eles seu espantoso martírio ao pé da Cruz. g) Sua paciência e longanimidade, superando heroicamente as grandes privações e sofrimentos a que Deus quis submetê-la durante toda a sua vida mortal. h) E, sobretudo, sua profundíssima humildade, que a levou a se considerar uma pobre escrava do Senhor no exato momento em

que o anjo lhe anunciava sua exaltação à incomparável dignidade de Mãe de Deus (cf. Lc 1, 38). Verdadeiramente, a Virgem Maria é — depois de Cristo e em perfeita dependência dele — modelo de toda perfeição e santidade, e exemplo acabadíssimo de todas as virtudes cristãs. O cristão que queira galgar até o cume da santidade deve apenas contemplar Maria, e procurar reproduzir em sua alma os traços de sua sionomia sobrenatural: “Olha e faz conforme o modelo que te foi mostrado” (Ex 25, 40).

SEGUNDA PARTE | VIDA ECLESIAL 45. Para seu consolo e sua glória, o cristão não vive sozinho e isolado no mundo, ainda que todos os seus familiares e amigos tivessem desaparecido desta pobre vida. Ele pertence a nada menos do que à Igreja, ou seja, o Corpo místico de Cristo. Está inserido n’Ele como o ramo na videira, segundo a belíssima comparação do Evangelho (Jo 15, 5). E é preciso que ele viva sua vida cristã em íntima união com Ele e com todos os demais membros de seu Corpo místico. Sua vida deve ser — além de pessoal, já que nunca pode desaparecer o aspecto individual de cada um — eclesial, isto é, deve desenvolver-se na Igreja e pela Igreja, única maneira de entrar plenamente nos planos divinos. Deus quis, de fato, que toda a nossa vida sobrenatural chegasse até nós por meio de Cristo Cabeça, através de seu Corpo místico, que é a Igreja. Por isso vamos examinar, antes de tudo, o aspecto eclesial da vida do leigo no mundo. Dividiremos nosso estudo nos seguintes capítulos: 1º — A Igreja e o povo de Deus. 2º — O leigo na Igreja.

3º — Vida litúrgica comunitária.

CAPÍTULO I A Igreja e o povo de Deus 46. Di cilmente poderíamos compreender o papel que os leigos desempenham na Igreja — que estudaremos no capítulo seguinte — se não levássemos em conta, previamente, o papel que lhe cabe na universalidade do povo de Deus. Por sorte, o Concílio Vaticano ii derramou torrentes de luz sobre ambos os extremos. Vamos reunir, embora com a extrema brevidade que nos impõe o marco geral de nossa obra, os pontos fundamentais de seu esplêndido magistério. Para focalizar desde sua própria raiz o imenso panorama que abre diante de nossos olhos o chamado povo de Deus, reuniremos em primeiro lugar, em brevíssima síntese, o conteúdo do capítulo 1º da Constituição Dogmática Lumen gentium sobre a Igreja, do mesmo Concílio Vaticano ii. 115

1. O mistério da Igreja 47. 1. Brilhando com a luz de Cristo, a Igreja, que por força do mesmo Cristo é como que o sacramento da unidade do gênero humano, quer apresentar-se aos éis e ao mundo inteiro tal qual ela é em sua natureza e missão universal.

2. O Pai Eterno, depois de criar o mundo, comunicou aos homens a vida divina, pela graça santi cante, e o dom do Espírito Santo. Como os homens a perderam pelo pecado de Adão (transmitido a todos os seus lhos pela geração natural), Ele enviou seu Filho para os redimir, chamando-os a fazer parte de sua Igreja universal. 3. Sendo ela o reino dos céus e de Cristo na terra, a Igreja realiza e perpetua visivelmente no mundo o mistério da salvação. A unidade entre os éis que lhe pertencem, constituindo um só corpo em Cristo, está fundamentada principalmente sobre o sacrifício e o sacramento da Eucaristia. Todos os homens estão chamados a esta união com Cristo, luz do mundo, de quem procedemos, por quem vivemos e para quem caminhamos. 4. O Espírito Santo desceu visivelmente sobre a Igreja no dia de Pentecostes. Por isso Ele constitui a fonte da vida que vivi ca os homens, habitando em seu coração como em um templo. É Ele quem dirige e governa a Igreja e a embeleza com seus frutos. Assim, toda a Igreja resplandece como um povo reunido em virtude da unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo. 5. O mistério da Santa Igreja está manifestado em sua própria fundação, nas palavras, nas obras e, sobretudo, na própria pessoa de Cristo. A Igreja constitui na terra o germe e o princípio do reino de Cristo, e cresce e se desenvolve na espera do reino consumado, que se veri cará na glória do céu 6. Na Sagrada Escritura, a Igreja é apresentada como aprisco e rebanho, como campo e vinha do Senhor, como edifício e templo de Deus, como cidade santa e Jerusalém celestial, como nossa mãe e como esposa imaculada de Cristo. “Contudo, enquanto a Igreja caminha nesta terra, longe do Senhor (cf. 2Cor 5, 6), considera-se como em desterro, buscando e saboreando as coisas do alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus, de modo que a vida da

Igreja está escondida com Cristo em Deus, até que apareça com seu Esposo na glória” (cf. Cl 3, 1–4). 7. A Igreja tem como Cabeça a Cristo, e constitui seu Corpo místico, onde a vida de Cristo é comunicada a todos os seus membros através dos sacramentos, especialmente a Eucaristia. É necessário que todos os membros se façam conformes a Cristo, até que Ele que plenamente formado neles (cf. Gl 4, 19). Todos formam um só corpo, porque estão uni cados e conformados a Cristo Jesus pelo Espírito, comum à Cabeça e aos membros, princípio de vida na Igreja, assim como o é a alma no corpo humano. Cristo ama a Igreja como sua esposa. 8. Sociedade hierárquica e Corpo místico, comunidade visível e ao mesmo tempo espiritual, que brota de um duplo elemento — o divino e o humano —, a Igreja repete analogicamente, de certo modo, o mistério do Verbo encarnado, cuja paixão, morte e ressurreição ela anuncia a todos os homens entre as perseguições do mundo e as consolações de Deus. Una, santa, católica e apostólica, a Igreja também necessita de puri cação, já que, inclusive, encerra em seu seio muitos membros pecadores. A Igreja se manifestará em todo o seu esplendor no nal dos tempos. Tal é, em grandes traços, o conteúdo maravilhoso do capítulo 1º da Constituição sobre a Igreja do Concílio Vaticano . Examinemos agora, com a mesma e extrema brevidade, o capítulo 2º, dedicado integralmente ao “povo de Deus”, conceito mais amplo e complementar daquele relativo à Igreja ou “Corpo místico”, que se refere mais concretamente aos batizados em Cristo.116

2. O povo de Deus

48. 1. Em todos os tempos e em todo povo, aquele que teme a Deus e pratica a justiça é agradável a Ele (cf. At 10, 35). Entretanto, Deus quer salvar os homens não de modo isolado, mas constituindo um povo. O povo israelita foi uma gura do novo povo de Deus, convocado e estabelecido por Cristo entre judeus e gentios uni cados pelo Espírito. Sob sua única Cabeça, Cristo, cada membro participa da dignidade e da liberdade dos lhos de Deus, tendo como lei a caridade e como m a dilatação do reino de Deus no mundo inteiro. Cristo, que o instituiu para ser comunhão de vida, de caridade e de verdade, se serve dele como de instrumento para a redenção universal, e o envia a todo o universo como luz do mundo e sal da terra (cf. Mt 5, 13–16). Israel já era designado como Igreja de Deus; o novo povo de Deus é a Igreja de Cristo que, com a ajuda do Espírito Santo, permanece el a Ele, e não cessa de renovar-se até que, pela cruz, possa chegar àquela luz que não conhece ocaso. 2. Cristo fez do novo povo um povo régio e sacerdotal. Todos os batizados participam do sacerdócio de Jesus Cristo pela unção do Espírito Santo. Por isso, todos os discípulos de Cristo, perseverando na oração e louvando juntos a Deus, devem oferecer a si mesmos como hóstia viva, santa e agradável a Deus (cf. Rm 12, 1) e dar testemunho de Cristo, bem como a razão da esperança na vida eterna, a todos que a pedirem. O sacerdócio comum dos éis e o sacerdócio ministerial ou hierárquico, embora di ram essencialmente, e não só em grau, ordenam-se, contudo, um ao outro, pois ambos participam a seu modo do único sacerdócio de Cristo. 3. O sacerdócio comum dos éis se atualiza pela prática dos sacramentos e das virtudes. Cada sacramento é meio de salvação e permite aos cristãos viverem orientados, cada um em seu caminho, para a perfeição daquela santidade com a qual o Pai celestial é perfeito.

4. O povo santo de Deus participa também da função profética de Cristo, difundindo seu testemunho vivo, sobretudo com a vida de fé e caridade, e oferecendo a Deus o sacrifício de louvor. O conjunto total dos éis não pode equivocar-se quando crê mediante o sentido sobrenatural da fé e em união com a Igreja hierárquica. Ademais, o Espírito Santo distribui entre os éis os seus dons e carismas para a renovação e maior edi cação da Igreja. Contudo, o juízo de discernimento de tais dons não ca ao arbítrio de cada um em particular, mas está reservado à autoridade eclesiástica. 5. Todos os homens são chamados a fazer parte do novo povo de Deus. Para reuni-los em unidade, tirando-os da dispersão, o Pai enviou seu Filho e o Espírito de seu Filho, que é princípio de unidade na doutrina, na comunhão e na oração. A Igreja, isto é, o povo de Deus, nada retira do bem temporal de cada povo, porque seu caráter universal está baseado no Espírito. Pelo contrário, tal catolicidade favorece o intercâmbio entre os diferentes membros por sua função e seu estado de vida. As mesmas Igrejas particulares, com tradições próprias, unidas no primado da Cátedra de Pedro, não são obstáculo, mas estímulo para a unidade. Os éis católicos, os outros crentes em Cristo e todos os homens do mundo são chamados à salvação na unidade do povo de Deus, que promove a paz universal. 6. A Igreja é necessária à salvação, porque o único mediador e caminho de salvação é Cristo, que se faz presente para todos nós em seu Corpo, que é a Igreja. Por isso, não poderiam salvar-se aqueles homens que, sabendo que a Igreja Católica foi instituída por Deus através de Jesus Cristo como necessária para a salvação, se negaram a entrar ou a perseverar nela.

À

À Igreja estão incorporados em plenitude aqueles que a aceitam integralmente e estão unidos a Cristo com os vínculos da fé, dos sacramentos, do governo e da comunhão eclesiástica. Não se salva, contudo, embora esteja incorporado à Igreja, aquele que, deixando de perseverar na caridade, permanece no seio da Igreja “em corpo”, mas não “de coração”. Estes, longe de se salvarem, serão julgados com maior severidade. Os catecúmenos que, movidos pelo Espírito Santo, solicitam sua incorporação à Igreja, já estão vinculados a ela por este seu mesmo desejo; e a Mãe Igreja os abraça como seus com amor e solicitude. 7. Vínculos estreitos unem a Igreja àqueles que estão batizados, ainda que não professem integralmente a fé ou não conservem a unidade de comunhão sob o sucessor de Pedro. Tais vínculos são a reverência prestada à Sagrada Escritura, a fé em Cristo, o Batismo e os outros sacramentos, além da comunhão de orações e de outros benefícios espirituais, inclusive certa verdadeira união no Espírito Santo. Todos devem esperar, orar e trabalhar para unirem-se paci camente, do modo determinado por Cristo, em um só rebanho e sob um único Pastor. 8. Inclusive aqueles que ainda não receberam o Evangelho se ordenam ao povo de Deus de diferentes maneiras. Em primeiro lugar os judeus, dos quais nasceu Cristo segundo a carne. Depois os demais, entre os quais estão os muçulmanos, que professam a fé de Abraão e adoram conosco um Deus único, misericordioso, que julgará os homens no último dia. Deus não está longe nem mesmo daqueles que buscam pelo Deus desconhecido entre imagens e sombras, já que todos recebem dele a vida, a inspiração e todas as coisas (cf. At 17, 25–28), e o Salvador quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade (cf. 1Tm 2, 4). Assim sendo, aqueles que, ignorando sem culpa o Evangelho de Cristo e sua Igreja, buscam, não obstante, a Deus com um coração sincero, e se esforçam, sob o in uxo da graça, por cumprir com obras a Sua vontade, conhecida mediante o juízo da consciência, podem conseguir a salvação eterna. E a Divina

Providência tampouco nega os auxílios necessários para a salvação a quem sem culpa ainda não chegou a um conhecimento expresso de Deus e se esforça por levar uma vida reta, não sem a graça de Deus. 9. Para a salvação de todos os homens, assim como o Pai enviou o Filho, este enviou os apóstolos, os quais constituíram a Igreja para cumprir o mandato e a missão de Cristo. Aos sacerdotes competem deveres especí cos; mas o dever de difundir a fé cabe a todos os discípulos de Cristo. Assim, pois, a Igreja ora e trabalha para que a totalidade do mundo se integre ao povo de Deus, Corpo do Senhor e templo do Espírito Santo; e para que em Cristo, Cabeça de todos, seja rendida ao Criador e Pai universal toda honra e toda glória. Esta é, esquematicamente, a doutrina do Concílio Vaticano sobre a Igreja e o povo de Deus. Agora, estudemos mais detalhadamente o importante papel que cabe ao leigo dentro da mesma Igreja e povo de Deus.

CAPÍTULO II | O leigo na Igreja 49. Vamos abordar neste capítulo um dos aspectos mais importantes e fundamentais de nossa obra, inteiramente dedicada a expor a espiritualidade própria e característica dos cristãos leigos que vivem no mundo e no meio de suas estruturas terrenas. Por sorte temos um documento o cial de inestimável valor. O Concílio Vaticano dedicou integralmente o capítulo 4º da Constituição Dogmática Lumen gentium a expor com toda clareza

e precisão o papel dos leigos na Igreja. Jamais ela havia exposto seu pensamento sobre este assunto transcendental com tanta extensão e clareza como nesse prodigioso documento conciliar. Já não se trata da opinião deste ou daquele teólogo — sempre sujeita a falhas e equívocos inerentes à fraqueza humana —, mas de um documento o cial da Igreja, no qual ela mesma propõe de maneira autêntica a doutrina católica sobre esta importantíssima matéria. Se queremos ter a mais absoluta garantia de acerto, nada temos a fazer senão recolher integralmente o magní co capítulo conciliar, ilustrando-o com pequenas glosas para chamar a atenção do leitor sobre as idéias mais importantes e fecundas. Cabalmente, é o que vamos fazer ao longo de todo este capítulo, um dos mais fundamentais no conjunto total de nossa obra. Para tornar mais clara e amena a leitura do texto conciliar, iremos dividi-lo em grande quantidade de títulos e subtítulos, e o ilustraremos com pequenas glosas e comentários que ajudarão o leitor — assim o esperamos — a ter uma maior compreensão do pensamento da Igreja. O texto conciliar irá sempre em caracteres tipográ cos menores. No nal de cada fragmento, indicaremos entre parênteses o número correspondente na Constituição Dogmática sobre a Igreja.

1. Os leigos ou seculares Como se sabe, o título o cial do capítulo 4º da “constituição sobre a Igreja” é De laicis. Em seguida, o mesmo concílio nos dirá o que se entende por leigos. Antes, porém, se dirige amorosamente a eles com o seguinte parágrafo inicial, cheio de carinho e solicitude pelos mesmos: 1. Saudação inicial 50. O santo concílio, depois de ter declarado as funções da hierarquia, volta com alegria sua atenção para o estado daqueles éis cristãos que se chamam leigos. Isto

porque, se tudo o que foi dito sobre o povo de Deus se dirige igualmente a leigos, religiosos e clérigos, entretanto, em razão de sua condição e missão, a eles se referem de modo particular certas coisas cujos fundamentos devem ser considerados com maior cuidado devido às circunstâncias especiais de nosso tempo (nº 30).

2. Importância dos leigos na Igreja 51. Os sagrados pastores sabem perfeitamente o quanto os leigos contribuem para o bem de toda a Igreja. Eles próprios sabem que não foram instituídos por Cristo para assumirem isoladamente toda a missão salví ca da Igreja no mundo, mas que sua eminente função consiste em apascentar os éis e reconhecer seus serviços e carismas, de tal sorte que todos, a seu modo, cooperem unanimemente na obra comum. Assim, é necessário que todos, abraçados à verdade, em tudo cresçamos em caridade, aproximando-nos d’Aquele que é nossa Cabeça, Cristo, de quem todo o Corpo, unido rmemente por todos os seus ligamentos, que o nutrem para a operação própria de cada membro, cresce e se aperfeiçoa na caridade (Ef 4, 15–16) (nº 30).

Como se vê, o concílio reconhece os “serviços”, inclusive os “carismas” que o Espírito Santo distribui entre os leigos segundo sua libérrima vontade — proult vult, diz expressamente São Paulo (1Cor 12, 11) —, utilizando-os para a obra comum da Igreja, que é a glória de Deus e a salvação das almas. Os pastores dirigem a obra salví ca de Cristo através dos séculos; mas sozinhos eles não são su cientes. É necessária a máxima cooperação de todo o povo cristão. E não esqueçamos que os leigos formam numericamente a quase totalidade desse povo cristão: mais de 99%.117 3. O que se entende por leigos 52. Agora o concílio nos dará uma de nição descritiva — é muito difícil uma de nição rigorosamente cientí ca ou losó ca — do leigo ou secular, que apresenta dois aspectos muito distintos, embora complementares entre si: um negativo e outro positivo. Pedimos ao leitor que preste muita atenção às palavras do concílio, pois estamos diante de um dos pontos mais básicos e fundamentais de toda a doutrina conciliar em torno dos cristãos que vivem no mundo. Com o nome de leigos são designados aqui todos os éis cristãos, à exceção dos membros da Ordem Sagrada e aqueles do estado religioso aprovado pela Igreja. Isto é, os éis que, enquanto incorporados a Cristo pelo Batismo, integrados ao povo de Deus

e tornados partícipes, a seu modo, da função sacerdotal, profética e régia de Cristo, exercem na Igreja e no mundo a missão de todo o povo cristão na parte que lhes corresponde. O caráter secular é próprio e peculiar dos leigos (nº 31).

As palavras do concílio que acabamos de transcrever são verdadeiramente admiráveis. É preciso examiná-las uma a uma, para extrair seu profundo sentido, cheio de conteúdo doutrinal. 1º — “ ”. Como já expusemos em outro lugar desta obra (cf. nº 18), a palavra “leigo” tem uma ascendência genuinamente cristã e religiosa. É verdade que, a partir do humanismo renascentista e, sobretudo, da Revolução Francesa, foi adquirindo um sentido cada vez mais pejorativo, até se tornar um sinônimo de anticlerical, e até de anti-religioso.118 Porém, em sua acepção etimológica e na mente da Igreja, ela nada tem de pejorativa; ao contrário, envolve um conceito diretamente relacionado com a religião. Com efeito, “leigo” provém da palavra grega λαικός, adjetivo de λαός, que signi ca simplesmente povo, e no sentido bíblico ou sagrado, povo de Deus, em contraposição aos gentios ou pagãos. É, pois, em si, uma expressão muito apta para designar os éis cristãos que vivem no mundo. Entretanto, empregaremos — como já dissemos no lugar citado — a palavra “seculares” de preferência a “leigos”, para evitar o sentido pejorativo e dissonante que esta última expressão afeta em nosso idioma castelhano.119 2º — . O concílio nos diz que com a palavra “leigos” se designam todos os éis cristãos que não receberam ordens sagradas nem ingressaram no estado religioso, ou seja, todos os não-clérigos e não-religiosos. Esta primeira descrição é meramente negativa. Nela nos é dito o que o leigo não é, mas não nos é explicado o que ele é. E mesmo em seu aspecto negativo ela não é de todo adequada ou exaustiva, porque os religiosos não-clérigos (os chamados “leigos”, “irmãos de obediência”, “cooperadores” ou “coadjutores”) são propriamente leigos (= não-clérigos), embora pertençam ao estado

religioso e não sejam propriamente seculares. Contudo, esta descrição negativa — ainda que incompleta e imperfeita — já é muito interessante e orientadora, uma vez que nos encaminha para uma espiritualidade que não é nem clerical nem religiosa, o que cabalmente irá caracterizar a espiritualidade própria e especí ca dos leigos. Em seguida, porém, o concílio nos dá uma esplêndida de nição positiva do leigo ou secular, que é preciso examinar cuidadosamente. Ele diz que por “leigos” se entende: a) Os éis que, enquanto incorporados a Cristo pelo Batismo... O Batismo, como veremos em detalhes no devido lugar, é a base e o fundamento mesmo de toda a vida cristã, seja qual for o estado ou condição de vida de cada um. Os leigos, do mesmo modo que os clérigos e os religiosos, são, antes e acima de tudo, éis cristãos, incorporados a Cristo pelo grande sacramento do Batismo. Este é seu principal título de glória e o fundamento de toda a sua grandeza. Tanto o simples secular quanto os religiosos, sacerdotes e mesmo os Sumos Pontí ces, são incomparavelmente maiores por serem cristãos do que por serem religiosos, sacerdotes ou vigários de Cristo na terra. Tudo o que vier depois do Batismo não será mais do que complementos — alguns deles certamente maravilhosos — da sublime graça batismal que nos incorporou vitalmente a Cristo como seus membros. b) ...integrados ao povo de Deus... Já falamos sobre isto ao acompanhar as diretrizes do mesmo concílio. O povo de Deus é formado conjuntamente por leigos, religiosos e clérigos. A partir deste ponto de vista, não existe diferença alguma entre eles: todos pertencem ao único povo de Deus, embora ocupem nele postos diferentes, e exerçam ofícios e ministérios diversos.

c) ...e tornados partícipes, a seu modo, da função sacerdotal, profética e régia de Cristo, exercem na Igreja e no mundo a missão de todo o povo cristão na parte que lhes corresponde. Estas palavras encerram um conteúdo doutrinal tão amplo e profundo que sua exposição detalhada exigiria uma obra inteira, com tão grande extensão quanto a do conjunto total da nossa.120 Forçosamente, temos de limitar-nos a um breve resumo, que contudo será su ciente para dar aos leigos uma idéia, mesmo que imperfeita, de sua incomparável dignidade como cristãos.

2. Função sacerdotal dos leigos na Igreja 53. À primeira vista, o simples enunciado que acabamos de estampar parece francamente exagerado e excessivo. No entanto, nada mais exato do ponto de vista teológico do que falar da função sacerdotal dos leigos na Igreja. É claro que é preciso especi car cuidadosamente o verdadeiro signi cado e alcance dessa expressão, à primeira vista tão surpreendente. É que existem muitas maneiras de participar do único sacerdócio de Jesus Cristo, e dele não participam do mesmo modo todos os que, por meio do Batismo, são incorporados a Cristo. Existem diferenças não somente de grau, mas também especí cas ou essenciais. Isto é o que vamos especi car em seguida, acompanhando as pegadas do Concílio Vaticano e da teologia católica tradicional. a) O sacerdócio natural do gênero humano

54. A própria Sagrada Escritura atesta a existência de uma espécie de sacerdócio natural, seja em relação a si mesmo (Abel) ou como chefe de uma família (Noé, Abraão, Isaac, Jacó...) ou de todo um povo (Gedeão, Saul, Davi, Salomão, Acaz). Existem também numerosos exemplos nas religiões pagãs. b) O sacerdócio sobrenatural Aqui, porém, interessa-nos examinar o sacerdócio unicamente do ponto de vista sobrenatural, ou seja, o da divina economia da graça. 1. O sacerdócio da Antiga Lei 55. No Antigo Testamento, resplandece claramente a qualidade sacerdotal de todo o povo escolhido. É um povo consagrado, um povo religioso, um povo de louvor e de culto. Seus sacrifícios possuíam fundamentalmente um caráter expiatório pelos pecados do povo. Contudo, resplandece também, com toda a clareza, a existência de um sacerdócio funcional, no qual se veri ca a lei de concentração progressiva sobre um só: o sumo sacerdote. A noção de sacrifício vai se espiritualizando cada vez mais através dos profetas: não se trata de dons exteriores, aqueles dos quais Deus não tem necessidade (cf. Sl 49, 7–14), mas de atos espirituais que consistem em tirar-nos da miséria — a nós e aos outros — e em nos orientar para Deus, a m de com Ele estabelecer uma comunhão eterna. 2. O sacerdócio de Cristo 56. Sabemos pela fé que Jesus Cristo-Homem é o verdadeiro, sumo e eterno sacerdote da Nova Aliança entre Deus e os homens. Aqui estão as provas: ) . — Já no Antigo Testamento se anuncia que o futuro Messias será sacerdote segundo a ordem de Melquisedec: “ jurou e não se arrependerá: Tu és sacerdote eternamente, segundo a ordem de Melquisedec” (Sl 109, 4).

Mas é São Paulo quem expõe magistralmente o sublime mistério do sacerdócio de Jesus Cristo: “Ele é nosso grande pontí ce, que se compadece de nossas fraquezas” (Hb 4, 14–15); “é o único mediador entre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus, que entregou a si mesmo para a redenção de todos” (1Tm 2, 5–6); é aquele que rasgou o decreto divino contra nós, ao cravá-lo consigo na Cruz (cf. Cl 2, 14), e o único nome que nos foi dado debaixo do céu pelo qual possamos ser salvos (cf. At 4, 12). Se quiséssemos reunir aqui todos os textos bíblicos relativos ao sacerdócio de Jesus Cristo, seria preciso copiar quase integralmente a carta de São Paulo aos Hebreus e muitos outros textos dispersos ao longo de todo o Novo Testamento. ) I . — A Igreja sempre proclamou, desde os tempos mais remotos, a doutrina do sacerdócio supremo de Jesus Cristo. Eis aqui alguns textos conciliares: Se alguém diz que não foi o mesmo Verbo de Deus que se fez nosso Sumo Sacerdote e Apóstolo quando se fez carne e homem entre nós, mas outro além d’Ele... seja anátema (Concílio de Éfeso, D. 122). Uma só é a Igreja universal dos éis, fora da qual absolutamente ninguém se salva, e nela o próprio sacerdote é o sacrifício, Jesus Cristo, cujo Corpo e Sangue estão contidos verdadeiramente no Sacramento do Altar ( Concílio de Latrão, D. 430). Por causa da impotência do sacerdócio levítico [...] foi necessário, porque assim o dispôs Deus, o Pai das misericórdias, que surgisse outro sacerdote segundo a ordem de Melquisedec, Nosso Senhor Jesus Cristo, que pudesse consumar e levar à perfeição todos os que tinham de ser santi cados (Hb 10, 14) (Concílio de Trento, D. 938).

3. O sacerdócio dos éis 57. Cristo quis comunicar sua dignidade sacerdotal — ainda que em diferentes formas e medidas — a todos os membros de seu Corpo místico, que formam uma só coisa com Ele enquanto Cabeça. Eis aqui as provas: )

. — Reunimos alguns dos mais importantes:

Deveis aproximar-vos d’Ele, como a pedra viva rejeitada pelos homens, mas escolhida e preciosa aos olhos de Deus. Vós, como pedras vivas, sois edi cados como casa espiritual

para um sacerdócio santo, para oferecer sacrifícios espirituais, aceitáveis a Deus por Jesus Cristo (1Pd 2, 4–5). Mas vós sois a “linhagem escolhida”, sacerdócio régio, gente santa, povo adqui- rido para apregoar as excelências daquele que vos chamou das trevas para sua luz admirável (1Pd 2, 9). Àquele que nos ama e nos absolveu de nossos pecados pela virtude de seu sangue, e nos fez reis e sacerdotes de Deus, seu Pai, a Ele a glória e o império pelos séculos dos séculos. Amém (Ap 1, 5–6). Digno és de tomar o livro e abrir seus selos, porque foste degolado e com teu sangue compraste para Deus homens de toda tribo, língua, povo e nação, e os zeste para nosso Deus um reino e sacerdotes, e reinam sobre a terra (Ap 5, 9–10). Bem-aventurado e santo aquele que toma parte na primeira ressurreição; sobre eles não terá poder a segunda morte, mas serão sacerdotes de Deus e de Cristo e reinarão com Ele por mil anos (Ap 20, 6).

) I . — Como se vê, a prova bíblica do sacerdócio dos éis é inteiramente segura e rme. Vejamos agora a doutrina o cial da Igreja, magni camente recolhida em um texto esplêndido do Concílio Vaticano :121 Cristo Senhor, pontí ce tomado dentre os homens (cf. Hb 5, 1–5), de seu novo povo fez um reino e sacerdotes para Deus, seu Pai (Ap 1, 6; cf. 5, 9–10). Com efeito, os batizados são consagrados pela regeneração e pela unção do Espírito Santo, como coisa espiritual e sacerdócio santo, para que, por meio de toda obra do homem cristão, ofereçam sacrifícios espirituais e anunciem o poder d’Aquele que os chamou das trevas para sua luz admirável (cf. 1Pd 2, 4–10). Por isso todos os discípulos de Cristo, perseverando na oração e louvando juntos a Deus (cf. At 2, 42–47), ofereçam a si mesmos como hóstia viva, santa e agradável a Deus (cf. Rm 12, 1), e por toda parte dêem testemunho de Cristo; e a quem lhes pedir, dêem também a razão da esperança de vida eterna que neles existe (cf. 1Pd 3, 15) (nº 10).

Como se vê, o esplêndido texto conciliar não somente con rma os dados bíblicos sobre o sacerdócio dos simples éis — como não podia deixar de acontecer —, mas oferece, com base nesses mesmos textos, um programa muito completo sobre como eles devem exercer seu sacerdócio no meio do mundo. De todas e de cada uma dessas orientações conciliares, faremos eco em seus lugares correspondentes.

) . — A explicação teológica do sacerdócio dos éis não poderia ser, a um só tempo, mais simples e mais profunda. Como diz Santo Tomás, e é doutrina comum em teologia, o caráter sacramental não é outra coisa senão “certa participação do sacerdócio de Cristo derivada do mesmo Cristo”.122 E como o Batismo e a Con rmação imprimem caráter na alma de quem os recebe, e estes dois sacramentos são recebidos por todos os éis — ao contrário do caráter do sacramento da Ordem, que somente os sacerdotes recebem —, segue-se que todos os éis participam realmente do sacerdócio de Cristo através do caráter sacramental do Batismo e da Con rmação.123 4. O sacerdócio ministerial e o dos éis 58. Entretanto, é preciso não exagerar as coisas. O sacerdócio ministerial — ou seja, aquele próprio dos que receberam o sacramento da Ordem — se distingue essencialmente (e não só em grau) do sacerdócio dos éis, ainda que este último seja muito real e verdadeiro, e de certo modo se ordene para o ministerial. Ouçamos o concílio na seqüência das palavras que acabamos de citar: O sacerdócio comum dos éis e o sacerdócio ministerial ou hierárquico, embora diferentes essencialmente não só em grau, se ordenam, contudo, um para o outro, pois ambos participam a seu modo do único sacerdócio de Cristo.124 O sacerdócio ministerial, pelo poder sagrado de que goza, forma e dirige o povo sacerdotal, realiza o Sacrifício Eucarístico na pessoa de Cristo e o oferece a Deus em nome de todo o povo. Os éis, por sua vez, em virtude de seu sacerdócio régio, concorrem para a oferenda da Eucaristia e o exercem na recepção dos sacramentos, na oração e na ação de graças, mediante o testemunho de uma vida santa, na abnegação e na caridade operante (nº 10).

Como se vê, o texto é de impressionante densidade. Nele estão perfeitamente delimitadas as funções correspondentes ao sacerdócio hierárquico e ao dos éis. Para estes últimos se diz de que maneira deverão exercer seu próprio sacerdócio, oferecendolhes um magní co programa de vida autenticamente sacerdotal-

secular. Impossível pensar em algo mais completo e perfeito. Logo o comentaremos em seus lugares correspondentes. 5. O exercício do sacerdócio comum nos sacramentos 59. Imediatamente depois do último parágrafo transcrito, o concílio expõe, em outro parágrafo admirável, de que maneira é exercido o sacerdócio comum dos éis através dos sacramentos. Eis aqui suas próprias palavras: O caráter sagrado e organicamente estruturado da comunidade sacerdotal se atualiza pelos sacramentos e pelas virtudes. Os éis, incorporados à Igreja pelo Batismo, cam destinados pelo caráter ao culto da religião cristã, e, regenerados como lhos de Deus, estão obrigados a confessar diante dos homens a fé que receberam de Deus mediante a Igreja.125 Pelo sacramento da Con rmação, vinculam-se mais estreitamente à Igreja, se enriquecem com uma força especial do Espírito Santo, e, com isso, cam obrigados mais estritamente a difundir e defender a fé, como verdadeiras testemunhas de Cristo, pela palavra juntamente com as obras.126 Participando do Sacrifício Eucarístico, fonte e ápice de toda a vida cristã, oferecem a Deus a Vítima divina e oferecem a si mesmos juntamente com ela.127 E assim, seja pela oblação, seja pela sagrada comunhão, todos têm na celebração litúrgica uma parte própria, não indiscriminadamente, mas cada um de maneira adequada. E mais: fortalecidos com o Corpo de Cristo na sagrada liturgia eucarística, mostram de um modo concreto a unidade do povo de Deus, perfeitamente signi cada e maravilhosamente realizada por este augustíssimo sacramento. Aqueles que se aproximam do sacramento da Penitência obtêm da misericórdia de Deus o perdão da ofensa feita contra Ele, e, ao mesmo tempo, se reconciliam com a Igreja, a quem feriram ao pecar, e que por sua vez colabora para sua conversão com a caridade, o exemplo e as orações. Com a Unção dos Enfermos e a oração dos presbíteros, toda a Igreja encomenda os enfermos ao Senhor sofredor e glori cado, para os aliviar e salvar (cf. Tg 5, 14–16); e inclusive os exorta a que, associando-se voluntariamente à paixão e morte de Cristo (cf. Rm 8, 17; Cl 1, 24; 2Tm 2, 11–12; 1Pd 4, 13), contribuam assim para o bem do povo de Deus. Por sua vez, aqueles dentre os éis que estão selados com a Ordem Sagrada, são destinados a apascentar a Igreja pela palavra e pela graça de Deus, em nome de Cristo.

Finalmente, os cônjuges cristãos, em virtude do sacramento do Matrimônio, pelo qual signi cam e participam do mistério de unidade e amor fecundo entre Cristo e a Igreja (cf. Ef 5, 32), ajudam-se mutuamente a santi car-se na vida conjugal e na procriação e educação da prole, e por isso possuem seu próprio dom dentro do povo de Deus, em seu estado e forma de vida (cf. 1Cor 7, 7).128 Deste consórcio procede a família, em que nascem novos cidadãos da sociedade humana, os quais, pela graça do Espírito Santo, cam constituídos lhos de Deus no Batismo, e perpetuarão o povo de Deus através do tempo. Nesta espécie de Igreja doméstica, os pais devem ser para os lhos os primeiros pregadores da fé, mediante a palavra e o exemplo, e devem estimular a vocação própria de cada um, em especial a vocação sagrada (nº 11).

O magní co texto conciliar a respeito dos sacramentos termina aqui. Em seus lugares correspondentes, voltaremos sobre todos e cada um de seus parágrafos. 6. Vocação à santidade de todo o povo cristão 60. O número 11 da Constituição sobre a Igreja, que acabamos de transcrever, termina com o seguinte parágrafo, em que o concílio antecipa brevemente a doutrina da vocação universal à santidade na Igreja, que ocupará o capítulo 5º da mesma constituição (nº 39–42), que já examinamos mais acima. Ele diz taxativamente assim: Todos os éis, de qualquer condição e estado, fortalecidos por tantos e tão poderosos meios de salvação, são chamados pelo Senhor, cada um em seu caminho, à perfeição da santidade com a qual o próprio Pai é perfeito (nº 11 nal).

O chamado universal não pode ser mais claro e completo (“todos os éis de qualquer condição e estado”), nem mais elevado e sublime o ideal que a todos é proposto: a perfeição e santidade com que o próprio Pai celestial é perfeito.129

3. Função profética dos leigos na Igreja

61. Se a função sacerdotal dos leigos na Igreja nos enchia de pasmo e estupor, não causará menor assombro sua função profética dentro da mesma. Entretanto, o concílio a rma decididamente no texto que citamos acima, em que nos dá a de nição própria do leigo ou secular: “...e tornados partícipes, a seu modo, da função sacerdotal, profética e régia de Cristo” (De laicis, nº 31). Vamos examinar este novo título maravilhoso que a Igreja atribui a todos os leigos enquanto membros do povo de Deus. 1. O que se entende por profeta 62. Na linguagem popular, entende-se por profeta “aquele que anuncia as coisas futuras”. Porém, em sua acepção bíblica e cientí ca, profeta é aquele que fala em nome de Deus, independentemente de anunciar coisas futuras, passadas ou presentes. Mas como a maioria dos profetas do Antigo Testamento prenunciavam futuros acontecimentos messiânicos, é daí que, na acepção popular, a palavra “profeta” seja equivalente a prenunciador do futuro. Repetimos, porém, que em si a missão profética prescinde do tempo e do espaço. É profeta todo aquele que fala em nome de Deus, seja qual for sua mensagem e o tempo a que se refere.130 2. Existência do profetismo em todo o povo de Deus 63. a) . — Existe grande quantidade de textos no Antigo e no Novo Testamento. Citamos uns poucos à maneira de exemplo: Depois disto, derramarei meu espírito sobre toda carne, e profetizarão vossos lhos e lhas, e vossos anciãos terão sonhos, e vossos jovens terão visões. Até sobre os servos e as servas derramarei meu espírito naqueles dias (Jl 3, 1–2; cf. At 2, 17–18). Quanto a vós, tendes a unção do Santo e conheceis todas as coisas. Não vos escrevo porque não conheceis a verdade, mas porque a conheceis e sabeis que a mentira não procede da verdade (1Jo 2, 20–21).

A unção que d’Ele tendes recebido perdura em vós, e não necessitais de que ninguém vos ensine, porque, como a unção vos ensina tudo, e é verdadeira e não mentirosa, permaneceis n’Ele, conforme vos ensinou (1Jo 2, 27).

) I . — O Concílio Vaticano proclama sem a menor vacilação ou ambigüidade a doutrina da missão profética de todo o povo de Deus: O povo santo de Deus participa também da função profética de Cristo, difundindo seu testemunho vivo, sobretudo com a vida de fé e caridade, e oferecendo a Deus o sacrifício de louvor, que é fruto dos lábios que confessam Seu nome (cf. Hb 13, 15). A totalidade dos éis, que têm a unção do Santo (cf. 1Jo 2, 20 e 27), não pode equivocarse quando crê, e manifesta esta sua prerrogativa peculiar mediante o senso sobrenatural da fé e de todo o povo quando, “desde os bispos até os últimos éis leigos”,131 presta seu consenso universal às coisas da fé e dos costumes. Com este senso da fé que o espírito de verdade suscita e mantém, o povo de Deus adere indefectivelmente à fé con ada à Igreja de uma vez para sempre (cf. Jd 3), penetra mais profundamente nela com juízo certeiro e lhe dá a mais plena aplicação na vida, guiado em tudo pelo Sagrado Magistério, e, submetendo-se a ele, já não aceita uma palavra de homens, mas a verdadeira palavra de Deus (cf. 1Ts 2, 13) (nº 12).

Em seguida, o concílio ensina a presença carismática do Espírito Santo em certas almas escolhidas, que — através desses carismas — exerceram profunda in uência na própria vida da Igreja. Recorde-se, por exemplo, a instituição da festa de Corpus Christi por meio das revelações da Beata Juliana de Cornillón; o grande incremento da devoção ao Sagrado Coração de Jesus com as revelações de Santa Margarida Alacoque, etc. O concílio declara a utilidade desses carismas para toda a Igreja, ainda que — é claro — sob o controle e a vigilância da hierarquia. Eis as próprias palavras do concílio em continuação às que acabamos de citar: Ademais, o mesmo Espírito Santo não só santi ca e dirige o povo de Deus mediante os sacramentos e os ministérios, e os adorna com virtudes, mas também distribui graças especiais entre os éis de qualquer condição, distribuindo a cada um, conforme quer (1Cor 12, 11), os seus dons, com os quais os torna aptos a exercerem os diversos trabalhos e deveres que sejam úteis para a renovação e a maior edi cação da Igreja, conforme aquelas palavras: “A cada um é dada a manifestação do Espírito para proveito comum” (1Cor 12, 7). Estes carismas, tanto os extraordinários como os mais comuns e difundidos, devem ser recebidos com gratidão e consolo, porque são muito adequados e úteis às necessidades da Igreja. Os dons extraordinários não devem ser pedidos temerariamente, nem se deve esperar deles com presunção os frutos do trabalho apostólico. Além disso, o juízo sobre sua autenticidade e seu razoável exercício pertence

a quem possui autoridade na Igreja, aos quais compete, antes de tudo, não sufocar o Espírito, mas provar tudo e conservar aquilo que é bom (cf. 1Ts 5, 12 e 19–21) (nº 12).

) . — Falando sobre a grande importância que tem para toda a Igreja o “senso da fé” (sensus dei) possuído pelos éis — que constitui, talvez, a forma mais impressionante de sua missão profética na mesma Igreja —, escreve um grande teólogo especialista na matéria:132 Na realidade, muitíssimas proposições dogmáticas de nidas ou condenadas infalivelmente pela Igreja, que hoje em dia nos parecem tão claras e até tão fáceis de provar pela Sagrada Escritura ou por razões teológicas, somente são claras supondo nosso vivo e universal senso cristão. Esse senso cristão muitas vezes foi o primeiro a descobri-las, embora depois dele viesse a re exão mais ou menos concludente para con rmá-las, e a Igreja assistida pelo Espírito Santo para de ni-las. Mas talvez não tivessem sido conhecidas nem de nidas sem o senso da fé, senso que existe de maneira especialíssima nos santos, mas que também ocorre em todas as almas que estão em graça, e, de algum modo, mesmo em todos os éis cristãos. Por isso todos os grandes teólogos reconheceram o grande valor que tem para o desenvolvimento dogmático o comum sentir dos éis [...]. Enquanto esse “senso da fé” não é encontrado senão em alguns éis isolados — ainda que sejam santos — ou em uma parte da Igreja, seu valor teológico é muito fraco. Porém, desde o momento em que ele se generaliza e chega a ser patrimônio comum dos bispos, teólogos e éis, constitui por si mesmo, e antes de toda de nição, um argumento cujo valor é equiparado ao do raciocínio teológico mais evidente. De modo que um ou outro — o raciocínio evidente ou o sentimento certo e universal da cristandade a respeito da inclusão de uma doutrina ao depósito reve- lado — é para a Igreja um critério su ciente de sua de nibilidade.

O ilustre teólogo, cujas palavras acabamos de citar, dá vários exemplos impressionantes de como esse senso da fé — esplêndida manifestação da função profética do povo cristão — in uiu, às vezes decididamente, nas próprias de nições dogmáticas do Magistério infalível da Igreja. É notável entre todos o caso da Imaculada Conceição de Maria, tenazmente defendida pelo povo cristão contra grande número de teólogos que a ela se opunham em épocas anteriores à sua de nição infalível pela Igreja. Lembrese também do caso de Santa Teresa de Jesus, reagindo energicamente — apesar de sua docilidade e obediência a seus confessores — contra a falsa doutrina de que em certos estados de

elevada oração contemplativa deve-se prescindir de meditar na humanidade de Cristo para se xar unicamente na divindade.133 Tal é, em resumo, a augusta missão profética dos simples éis no conjunto total do povo de Deus. Agora, vamos examinar brevemente a terceira função que o concílio lhes atribui — a função real ou régia — antes de continuar comentando o capítulo dedicado aos leigos na Constituição Dogmática sobre a Igreja.

4. Função régia dos leigos na Igreja 64. A terceira função que o concílio atribui aos leigos ou seculares, ao dar-nos sua de nição própria, é a real ou régia: “E tornados partícipes, a seu modo, da função sacerdotal, profética e régia de Cristo” (De laicis, nº 31). A seguir, comentaremo-la brevemente. 1. A realeza de Cristo 65. Jesus Cristo é rei. Ele recebeu do Pai o domínio sobre todas as coisas (cf. Hb 1, 2) a m de que seja a Cabeça do povo dos lhos de Deus, a Igreja, que deve estender-se por todo o mundo e todos os tempos (De Ecclesia, nº 13). O próprio Cristo apresentou a si mesmo como rei (Jo 18, 37) e como supremo Pastor (Jo 10, 11). São Paulo expõe de forma sublime esta realeza universal de Jesus Cristo em um famoso texto de sua carta aos Filipenses: Cristo Jesus [...] se humilhou, feito obediente até a morte, e morte de cruz; por isso Deus o exaltou e lhe outorgou um nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus dobre os joelhos tudo quanto existe nos céus, na terra e nas regiões subterrâneas, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor para a glória de Deus Pai (Fl 2, 8–11).

Esta realeza de Jesus Cristo alcançará seu triunfo visível mais impressionante no dia do juízo universal, quando vier sobre as nuvens do céu, com grande poder e majestade, para julgar os bons e os maus (cf. Mt 25, 31–46; 26, 64). 2. A realeza da Igreja 66. Jesus Cristo comunicou sua realeza à Igreja, que é seu próprio Corpo místico. Em primeiro lugar, à hierarquia, que d’Ele recebeu o régio poder de reger e governar o povo de Deus (cf. Mt 28, 18–20; Lc 10, 16). Esta autoridade régia, recebida do próprio Cristo, é exercida pelo papa sobre toda a Igreja universal; pelo colégio dos bispos, também sobre toda a Igreja — em unidade com o papa, e nunca sem ele —; e por cada um dos bispos em particular sobre sua própria diocese. Trata-se de um direito divino possuído pela hierarquia católica, em virtude do mandato expresso de Jesus Cristo. O Concílio Vaticano expôs com grande amplitude esta doutrina fundamental (cf. De Ecclesia, cap. 3, nº 18–29). Mas não é somente a hierarquia a depositária do poder régio de Jesus Cristo. Também os simples éis participam dele a seu modo. A Constituição sobre a Igreja enumera vários modos e aspectos desse poder régio, principalmente ao falar do papel dos leigos nas estruturas humanas (nº 36) e nas relações dos mesmos com a hierarquia (nº 37). Examinaremos tudo isto ao comentar esses textos conciliares em seu lugar correspondente.134

5. Caráter secular dos leigos 67. Imediatamente depois da própria de nição de leigo que acabamos de comentar nas páginas precedentes, o concílio explica

mais detalhadamente o caráter e a vida própria dos cristãos que vivem no mundo: O caráter secular é próprio e peculiar dos leigos. Pois os membros da Ordem Sagrada, mesmo que eventualmente possam ocupar-se dos assuntos seculares, e mesmo exercendo uma pro ssão secular, estão destinados principal e expressamente ao sagrado ministério, em razão de sua vocação particular. Já os religiosos, em virtude de seu estado, proporcionam um preclaro e inestimável testemunho de que o mundo não pode ser transformado nem oferecido a Deus sem o espírito das bem-aventuranças (nº 31).

Como se vê, este texto começa a delimitar os campos próprios e peculiares do leigo (caráter secular), do sacerdote (ministério sagrado) e do religioso (espírito das bem-aventuranças). A última frase sobre o “espírito das bem-aventuranças” tem uma grande importância doutrinal, aplicável aos próprios seculares. Como já dissemos ao falar dos conselhos evangélicos em relação aos leigos (cf. nº 27), “o mundo não pode ser transformado nem oferecido a Deus sem o espírito das bem-aventuranças”, ou seja, sem a prática, ao menos afetiva, dos conselhos evangélicos. Continua o concílio: Aos leigos corresponde, por sua própria vocação, procurar o reino de Deus ao tratar dos assuntos temporais, ordenando-os segundo Deus (nº 31).

Note-se a nalidade fundamental que o concílio atribui aos leigos: “Procurar o reino de Deus”. E isso “por sua própria vocação”. Absolutamente nada pode se antepor a esta suprema nalidade, que é idêntica e comum a todos os cristãos, seja qual for o seu estado e condição de vida. A diferença entre uns e outros consistirá unicamente no modo de conseguir essa nalidade única e comum. O modo próprio e peculiar do leigo consiste em “tratar dos assuntos temporais, ordenando-os segundo Deus”. A seguir, o concílio nos dirá amplamente de que maneira isto deverá ser realizado: Vivem no século, isto é, em todos e cada um dos deveres e ocupações do mundo, e nas condições ordinárias da vida familiar e social, com as quais sua vida está como que entretecida. Ali estão chamados por Deus para que, desempenhando sua própria pro ssão guiados pelo espírito evangélico, contribuam para a santi cação do mundo a

partir de dentro, ao modo de fermento. E assim tornem Cristo manifesto diante dos outros, primordialmente por meio do testemunho de sua vida, pela irradiação da fé, da esperança e da caridade. Portanto, de maneira singular, cabe a eles iluminar e ordenar as realidades temporais às quais estão estreitamente vinculados, de tal modo que sem cessar sejam realizadas e progridam conforme Cristo e contribuam para a glória do Criador e do Redentor (nº 31).

Este texto é um dos mais completos e acabados sobre a espiritualidade dos leigos segundo o Concílio Vaticano . Sua densidade doutrinal é tal, que cada uma de suas a rmações nos dará ocasião para um capítulo inteiro de nossa obra. Examinaremo-lo com a amplitude que merece, em seus lugares correspondentes (quinta e sexta partes desta obra).

6. Unidade na diversidade 68. “Por desígnio divino”, continua o concílio, a Santa Igreja está organizada e se governa com base em uma admirável variedade. Pois “da maneira que em um só corpo temos muitos membros, e todos os membros não têm a mesma função, assim também nós, sendo muitos, somos um só Corpo de Cristo, mas cada membro está a serviço dos outros membros” (Rm 12, 4–5). Portanto, o povo de Deus, por Ele dirigido, é uno: “um Senhor, uma fé, um Batismo” (Ef 4, 5). É comum a dignidade dos membros, que deriva de sua regeneração em Cristo; comum é a graça da liação; comum o chamado à perfeição; uma só salvação, uma única esperança e uma indivisa caridade. Não há, por conseguinte, em Cristo e na Igreja, nenhuma desigualdade em razão da raça ou nacionalidade, da condição social ou do sexo, porque “não existe judeu nem grego; não há servo ou livre; não há homem nem mulher, pois todos vós sois ‘um’ em Cristo Jesus” (Gl 3, 28; cf. Cl 3, 11) (nº 32).

Quanta atualidade têm estas palavras de São Paulo! E quão oportunamente o concílio as recorda nestes tempos em que as lutas sociais e a terrível desigualdade entre os povos constituem um dos maiores escândalos da “civilização moderna” e da chamada “era espacial”! Com razão dizia Pio , em uma de suas maravilhosas mensagens de Natal, que “somente Cristo tem a

solução dos grandes problemas que atormentam a pobre humanidade de nossos dias”. Somente o retorno à doutrina salvadora de Cristo poderá unir todos os homens do mundo, sem distinção de raças nem de cores, em um abraço estreitíssimo de entranhada fraternidade universal. Mas sigamos escutando o concílio: Ainda que, na Igreja, nem todos sigam pelo mesmo caminho, entretanto todos são chamados à santidade, e a todos coube a mesma fé pela justiça de Deus (cf. 2Pd 1, 1). Mesmo quando alguns, pela vontade de Cristo, foram constituídos doutores, dispensadores dos mistérios e pastores para os demais, existe uma autêntica igualdade entre todos quanto à dignidade e à atuação, comum a todos os éis em ordem à edi cação do Corpo de Cristo. Pois a distinção que o Senhor estabeleceu entre os ministros sagrados e o restante do povo de Deus traz consigo a solidariedade, já que os pastores e demais éis estão vinculados entre si por uma recíproca necessidade. Os pastores da Igreja, seguindo o exemplo do Senhor, ponham-se a serviço uns dos outros e do restante dos éis; estes, por sua vez, associem alegremente seu trabalho ao dos pastores e doutores. Desta maneira, todos prestarão um múltiplo testemunho de admirável unidade no Corpo de Cristo. A mesma unidade de graças, serviços e funções congrega na unidade os lhos de Deus, porque todas estas coisas são obra do único e mesmo Espírito (1Cor 12, 11). Os leigos, ao mesmo tempo que têm, pela benevolência divina, Cristo por irmão — ele que, sendo Senhor de tudo, não veio para ser servido, mas para servir (cf. Mt 20, 28) —, também possuem por irmãos aqueles que, constituídos no sagrado ministério, ensinando, santi cando e governando com a autoridade de Cristo, apascentam a família de Deus, de tal sorte que se cumpra por todos o novo mandamento da caridade. A este propósito, diz belissimamente Santo Agostinho: “Se me espanta o que sou para vós, também me consola o que sou convosco. Para vós, sou bispo, convosco sou cristão. Aquele nome lembra um dever; este, uma graça; aquele indica um perigo; este, a salvação”135 (nº 32).

De fato, são belíssimas as palavras do grande Santo Agostinho; mas não menos belo é o esforço do concílio por irmanar estreitamente pastores e éis na sublime caridade de Cristo. O concílio reconhece com alegria a altíssima dignidade dos leigos na Igreja, chamados à santidade tal como os pastores, gozando de idêntica fé e de uma “autêntica igualdade quanto à dignidade e à atuação, comum em ordem à edi cação do Corpo de Cristo”. Uns e outros — pastores e éis — “estão vinculados entre si por recíproca necessidade”. Os simples éis, enquanto cristãos, são

irmãos dos pastores, e estes, pela boca de Santo Agostinho, se gloriam mais desta fraternidade salvadora que de sua própria dignidade, que os põe em perigo perante Deus. É difícil encontrar na linguagem humana fórmulas mais suaves e cativantes que aquelas usadas pelos padres do concílio ao falarem sobre seus irmãos, os leigos.

7. O apostolado dos leigos 69. No capítulo 4º da Constituição Dogmática sobre a Igreja que estamos comentando — dedicado inteiramente aos leigos — o concílio fala brevemente do apostolado dos leigos, embora a doutrina conciliar completa sobre este importantíssimo assunto deva ser procurada no esquema especial que o mesmo concílio dedicou ao apostolado dos leigos (De apostolatu laicorum), que comentaremos amplamente na sexta parte desta obra. Aqui, limitamo-nos a recolher o magní co texto da Constituição sobre a Igreja, que é o seguinte: Os leigos, consagrados no povo de Deus e integrados no único Corpo de Cristo sob uma só Cabeça, sejam eles quais forem, estão chamados, na qualidade de membros vivos, a contribuir com todas as suas forças, aquelas recebidas pelo benefício do Criador e as outorgadas pela graça do Redentor, para o crescimento da Igreja e sua contínua santi cação. Ora, o apostolado dos leigos é participação na mesma missão salví ca da Igreja, apostolado ao qual estão destinados pelo próprio Senhor em virtude do Batismo e da Con rmação. E os sacramentos, especialmente a Sagrada Eucaristia, comunicam e alimentam aquele amor por Deus e pelos homens que é a alma de todo apostolado. Os leigos estão especialmente chamados a tornar a Igreja presente e atuante naqueles lugares e circunstâncias em que só através deles ela pode chegar a ser sal da terra.136 Assim, todo leigo, em virtude dos dons que lhe foram outorgados, se transforma em testemunha e, ao mesmo tempo, em instrumento vivo da missão da própria Igreja na medida do dom de Cristo (Ef 4, 7).

Além deste apostolado, que cabe absolutamente a todos os cristãos, os leigos também podem ser chamados de diferentes modos a uma colaboração mais imediata com o apostolado da hierarquia,137 tal como aqueles homens e mulheres que ajudavam o apóstolo São Paulo na evangelização, trabalhando muito no Senhor (cf. Fl 4, 3; Rm 16, 3 ss.). Além disso, também possuem aptidão para serem chamados pela hierarquia a exercerem certos cargos eclesiásticos, que deverão desempenhar com uma nalidade espiritual. Assim, portanto, cabe a todos os leigos a preclara tarefa de colaborar para que o divino desígnio de salvação alcance sempre mais todos os homens de todos os tempos e em todas as partes da terra. Abra-se-lhes, pois, o caminho por toda parte, para que, conforme suas possibilidades e segundo as necessidades dos tempos, também eles participem zelosamente na obra salví ca da Igreja (nº 33).

8. A consagração do mundo 70. Outra das mais importantes e indispensáveis tarefas que cabem de maneira especialíssima aos leigos é a chamada consagração do mundo (consecratio mundi); ou seja, aquela de infundir o espírito cristão em todas as estruturas terrenas nas quais os seculares estão plenamente inseridos. Como é natural, estudaremos esta importantíssima tarefa na última parte de nosso trabalho, dedicando-lhe toda a atenção merecida. Aqui, limitamonos a recolher a breve, mas muito densa exortação do concílio no texto sobre a Igreja que estamos comentando: Dado que Cristo Jesus, supremo e eterno sacerdote, quer continuar seu testemunho e seu serviço inclusive por meio dos leigos, Ele os vivi ca e impele sem cessar para toda obra boa e perfeita. Assim, aqueles que Ele associa intimamente à sua vida e missão, também os torna partícipes de seu ofício sacerdotal com o m de que exerçam o culto espiritual para a glória de Deus e a salvação dos homens. Por isso os leigos, enquanto consagrados a Cristo e ungidos pelo Espírito Santo, são admiravelmente chamados e dotados para que neles se produzam sempre os mais ubérrimos frutos do Espírito. Assim, todos os seus trabalhos, todas as suas orações e iniciativas apostólicas, a vida conjugal e familiar, o trabalho cotidiano, o descanso da alma e do corpo, se realizados no Espírito, e inclusive as provações da vida, se acolhidas pacientemente, transformam-se em sacrifícios

espirituais, aceitáveis a Deus por Jesus Cristo (cf. 1Pd 2, 5), que na celebração da Eucaristia são oferecidos piedosissimamente ao Pai junto com a oblação do Corpo do Senhor. Deste modo, também os leigos, como adoradores que atuam santamente em todo lugar, consagram o próprio mundo a Deus (nº 34).

O texto conciliar, como o leitor terá percebido, é realmente esplêndido e de grande densidade doutrinal. Ele será retomado por inteiro e comentado no capítulo especial que dedicaremos, na sexta parte desta mesma obra, à “consagração do mundo” pelos leigos.

9. O testemunho de vida 71. Di cilmente poderiam os leigos exercer sua missão apostólica na Igreja e a colossal tarefa de consagrar o mundo inteiro a Deus se não começassem seu ingente labor com o exemplo irrepreensível de sua própria vida. É bem sabido que as palavras podem mover, mas só os exemplos arrastam. O concílio se apressa a recordá-lo aos leigos no parágrafo seguinte do capítulo que estamos transcrevendo na íntegra: Cristo, o grande profeta, que proclamou o reino do Pai com o testemunho da vida e com o poder da palavra, cumpre sua missão profética até a plena manifestação da glória, não só através da hierarquia, que ensina em seu nome e com seu poder, mas também por meio dos leigos, aos quais, por conseguinte, constitui como testemunhas e lhes concede o senso da fé e a graça da palavra (cf. At 2, 17–18; Ap 19, 10), para que a força do Evangelho brilhe na vida diária, familiar e social. Manifestam-se como lhos da promessa na medida em que, fortes na fé e na esperança, aproveitam o tempo presente (Ef 5, 16; Cl 4, 5) e esperam com paciência a glória futura (cf. Rm 8, 25). Porém, não devem eles esconder esta esperança no interior de sua alma, antes devem manifestá-la, inclusive através das estruturas da vida secular, em uma constante renovação e luta com os dominadores deste mundo tenebroso, contra os espíritos malignos (Ef 6, 12). Tal como os sacramentos da Nova Lei — com os quais se alimentam a vida e o apostolado dos éis — pre guram o novo céu e a nova terra (cf. Ap 21, 1), assim também os leigos são constituídos em poderosos anunciadores da fé nas coisas que esperamos (cf. Hb 11, 1) quando, sem vacilação, unem a vida segundo a fé à pro ssão

dessa mesma fé. Tal evangelização, isto é, o anúncio de Cristo unido ao testemunho da vida e da palavra, adquire uma característica especí ca e uma singular e cácia pelo fato de que é realizado nas condições comuns do mundo (nº 35).

O concílio recorda muito oportunamente — sobretudo nas últimas palavras do parágrafo que acabamos de transcrever — a singular importância e e cácia do apostolado dos leigos precisamente porque é realizado em meio às ocupações e a agitação das coisas do mundo. Não há nada de especial em que o sacerdote ou o religioso falem e se ocupem das coisas de Deus; isto constitui, por assim dizer, seu trabalho e obrigação pro ssional; mas que esse mesmo trabalho apostólico seja realizado por um leigo, em meio a suas ocupações terrenas e en ado até o pescoço em mil preocupações humanas (pro ssão, família, relações sociais, etc.), passa a ser verdadeiramente impressionante e de extraordinária e cácia apostólica, sobretudo em relação aos que vivem afastados de Deus. Voltaremos a falar amplamente sobre isto no capítulo especial dedicado ao apostolado dos leigos, no nal de nossa obra. Em seguida, o concílio se detém no imenso labor apostólico que podem e devem realizar os leigos com os membros de sua própria família e no seio de seu próprio lar. Eis aqui suas palavras, cheias de suavidade e unção: Nesta tarefa, destaca-se o grande valor daquele estado de vida santi cado por um sacramento especial: a vida matrimonial e familiar. Nela o apostolado dos leigos encontra um exercício e uma escola insigne, se a religião cristã penetrar toda a organização da vida e a transformar cada dia mais. Aqui os cônjuges têm sua vocação própria: serem, mutuamente e para seus lhos, testemunhas da fé e do amor de Cristo. A família cristã proclama em voz muito alta tanto as presentes virtudes do reino de Deus como a esperança da vida bem-aventurada. De tal maneira, com seu exemplo e seu testemunho, ela repreende o mundo do pecado e ilumina aqueles que buscam a verdade (nº 35).

Em continuação, o concílio se dirige novamente a todos os leigos, para uma vez mais inculcar-lhes seu grande dever de apostolado por todos os meios ao seu alcance, exortando-os a um estudo cada vez mais profundo das verdades reveladas, e a pedirem a Deus o dom da sabedoria, para saberem usá-las em benefício de todos:

Por conseguinte, mesmo quando estão ocupados com os cuidados temporais, os leigos podem e devem desenvolver uma atividade muito valiosa em vista da evangelização do mundo. Porque se alguns deles podem supri-los em certas funções sagradas, segundo suas possibilidades, quando faltam os ministros sagrados ou quando estes se vêem impedidos por um regime de perseguição, e se outros esgotam todas as suas energias na ação apostólica, é necessário, contudo, que todos contribuam para a dilatação e o crescimento do reino de Deus no mundo. Por isso, dediquem-se os leigos ao conhecimento mais profundo da verdade revelada, e peçam a Deus com instância o dom da sabedoria (nº 35).

10. Nas estruturas humanas 72. Agora, o concílio estende seu olhar para todas as estruturas do mundo — cuja consagração e ordenação para Deus cabe em grande parte aos leigos — para lhes inculcar, mais uma vez, a dedicação total a esta sublime tarefa por todos os meios ao seu alcance. Eis aqui o esplêndido texto conciliar: Cristo, tendo-se feito obediente até a morte e tendo sido exaltado pelo Pai (cf. Fl 2, 8– 9), entrou na glória de seu reino. A Ele estão submissas todas as coisas, até que Ele submeta a si mesmo e toda a Criação ao Pai, a m de que Deus seja tudo em todos (cf. 1Cor 15, 27–28). Ele comunicou este poder a seus discípulos, para que também eles permaneçam constituídos em soberana liberdade, e, por sua abnegação e vida santa, possam vencer em si mesmos o reino do pecado (cf. Rm 6, 12). Mais ainda: para que, servindo a Cristo também nos outros, possam conduzir com humildade e paciência seus irmãos até o Rei, cujo serviço equivale a reinar. Também por meio dos éis leigos o Senhor deseja dilatar seu reino: reino de verdade e de vida, reino de santidade e de graça, reino de justiça, de amor e de paz.138 Um reino no qual a própria Criação será libertada da servidão da corrupção para participar na liberdade da glória dos lhos de Deus (cf. Rm 8, 21). Na verdade, é grande a promessa e excelso o mandato que foi dado aos discípulos: “Todas as coisas são vossas, mas vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus” (1Cor 3, 23) (nº 36).

Para alcançar este supremo objetivo, o concílio estimula os leigos a estudar a fundo a íntima natureza das coisas terrenas, a m de orientá-las para a glória de Deus e de Cristo; exorta-os a obter grande competência pro ssional — o cristão deveria ser o “número um” em todas as pro ssões para prestigiar seu

apostolado — e realizar as grandes orientações da Igreja sobre a justiça social, que é a base da paz e da tranqüilidade entre os povos. Ouçamos as palavras do próprio concílio: Portanto, os éis devem conhecer a íntima natureza de todas as criaturas, seu valor e sua ordenação para a glória de Deus. Até mesmo nas ocupações seculares eles devem ajudar-se mutuamente para uma vida mais santa, de tal maneira que o mundo seja impregnado do espírito de Cristo, e alcance seu m com maior e cácia na justiça, na caridade e na paz. Cabe aos leigos o lugar mais destacado no cumprimento deste dever universal. Por meio dele, contribuam e cazmente, com sua competência nos assuntos profanos e com sua atividade elevada interiormente pela graça de Cristo, para que os bens criados sejam valorizados pelo trabalho humano, pela técnica e pela cultura civil, para a utilidade de todos os homens sem exceção, e sejam mais convenientemente distribuídos entre eles, para que, a seu modo, conduzam ao progresso universal na liberdade humana e cristã, de acordo com o desígnio do Criador e a iluminação de seu Verbo. Assim Cristo, através dos membros da Igreja, iluminará sempre mais toda a sociedade humana com sua luz salvadora (nº 36).

Mais ainda: os leigos também deverão preocupar-se em “sanear” até aquelas estruturas e ambientes mundanos que podem incitar ao pecado (espetáculos, diversões, imprensa, rádio, televisão, etc.), de maneira que, longe de representar uma pedra de escândalo e um laço de perdição, contribuam para a sadia educação do povo e a prática das virtudes cristãs. Ouçamos o concílio: Igualmente, os leigos coordenem suas forças para sanear as estruturas e os ambientes do mundo quando estes incitarem ao pecado, de maneira que todas estas coisas sejam conformes às normas da justiça, e antes favoreçam do que di cultem a prática das virtudes. Atuando desta maneira, impregnarão de valor moral a cultura e as realizações humanas. Simultaneamente, o campo do mundo será mais bem preparado para a semeadura da palavra divina, e abrir-se-ão para a Igreja de par em par as portas pelas quais poderá ser introduzida no mundo a mensagem da paz (nº 36).

Em seguida, o concílio chama a atenção dos leigos para a sua dupla condição de cidadãos do Estado e membros da Igreja, ensinando-lhes a forma de distinguir e coordenar ambos os aspectos, de maneira que se guiem em tudo pelas normas da consciência cristã. É um ponto importantíssimo que o concílio expõe com singular delicadeza e acerto: Conforme o exige a própria economia da salvação, os éis aprendam a distinguir com cuidado os direitos e deveres que lhes cabem por sua pertença à Igreja, e aqueles que lhes competem enquanto membros da sociedade humana. Esforcem-se por conciliá-los

entre si, considerando que em qualquer assunto temporal eles se devem guiar pela consciência cristã, dado que nenhuma atividade humana, nem mesmo no domínio temporal, pode subtrair-se ao império de Deus. Em nosso tempo, é sumamente necessário que esta distinção e simultânea harmonia se destaquem com máxima clareza na atuação dos éis, a m de que a missão da Igreja possa responder com maior plenitude aos condicionamentos peculiares do mundo atual. Porque assim como se deve reconhecer que a cidade terrena, justamente entregue às preocupações do século, é regida por princípios próprios, pela mesma razão se deve repelir a funesta doutrina que pretende construir a sociedade prescindindo em absoluto da religião, e que ataca e elimina a liberdade religiosa dos cidadãos139 (nº 36).

Voltaremos a isto mais detidamente ao falar, na sexta parte desta obra, sobre a atuação dos leigos no campo da política humana.

11. Relações com a hierarquia 73. Outro dos aspectos mais importantes do papel que os leigos desempenham na Igreja é o de suas relações com a hierarquia. O concílio dedica a este assunto os seguintes parágrafos cheios de sabedoria: Os leigos, assim como todos os

éis cristãos, têm o direito de receber

abundantemente dos sagrados pastores os auxílios dos bens espirituais da Igreja, em particular a palavra de Deus e os sacramentos; e que eles manifestem-lhes suas necessidades e seus desejos com aquela liberdade e con ança que convém aos lhos de Deus e aos irmãos em Cristo. Conforme a ciência, a competência e o prestígio que possuem, eles têm a faculdade, e às vezes mesmo o dever, de expor seu parecer acerca 140

dos assuntos relativos ao bem da Igreja.141 Se as circunstâncias o exigem, que isto se faça através de instituições estabelecidas para tanto pela Igreja, e sempre com veracidade, fortaleza e prudência, com reverência e caridade em relação àqueles que, em razão de seu sagrado ministério, personi cam a Cristo. Os leigos, como os demais éis, seguindo o exemplo de Cristo, que com sua obediência até a morte abriu a todos os homens o ditoso caminho da liberdade dos lhos de Deus, aceitem com prontidão de obediência cristã aquilo que os pastores sagrados, enquanto representantes de Cristo, estabelecem na Igreja em sua qualidade de mestres e governantes. E não deixem de recomendar seus prelados a Deus na oração, os quais vigiam cuidadosamente como quem deve prestar contas por nossas almas, a m de que o façam com alegria, e não com gemidos (cf. Hb 13, 17). Por sua vez, os pastores

reconheçam e promovam a dignidade e responsabilidade dos leigos na Igreja. Recorram de bom grado ao seu prudente conselho, entreguem-lhes com con ança cargos no serviço da Igreja e dêem-lhes liberdade e oportunidade para atuar; mais ainda, animemnos a empreender trabalhos por iniciativa própria. Considerem atentamente perante Cristo, com amor paternal, as iniciativas, pedidos e desejos provenientes dos leigos.142 Os pastores acatarão respeitosamente a justa liberdade que corresponde a todos na sociedade civil. Muitíssimos bens se devem esperar, para a Igreja, a partir desta convivência familiar entre os leigos e os pastores; assim se fortalece nos leigos o sentido da própria responsabilidade, fomenta-se seu entusiasmo, e se associam mais facilmente as forças dos leigos ao trabalho dos pastores. Estes, por sua vez, auxiliados pela experiência dos leigos, estão em condição de avaliar com mais precisão e objetividade tanto os assuntos espirituais como os temporais, de forma que a Igreja inteira, fortalecida por todos os seus membros, cumpra com maior e ciência sua missão em favor da vida do mundo (nº 37).

12. Como a alma no corpo 74. O concílio conclui o magní co capítulo De laicis na Constituição Dogmática sobre a Igreja com este parágrafo, coroado com uma frase verdadeiramente esplêndida de um documento da antigüidade cristã: Cada leigo deve ser diante do mundo uma testemunha da ressurreição e da vida do Senhor Jesus e um sinal do Deus vivo. Todos juntos e cada um por si devem alimentar o mundo com frutos espirituais (cf. Gl. 5, 22) e difundir nele o espírito de que estão animados aqueles pobres, mansos e pací cos a quem o Senhor no Evangelho proclamou bem-aventurados (cf. Mt 5, 3–9). Em uma palavra, aquilo que a alma é para o corpo, isto devem ser os cristãos no mundo143 (nº 38).

Este é, em de nitivo, o esplêndido papel que a Igreja atribui aos éis leigos: ser no mundo e no meio de suas estruturas terrenas aquilo que a alma é para o corpo, ou seja, seu princípio vital, sua forma substancial, aquilo que o vivi ca e mantém em seu ser. Quando a alma informa o corpo, este tem vida e pode desenvolvêla em toda a sua plenitude; quando a alma se separa do corpo,

este se transforma em cadáver. Sem a in uência vivi cante dos cristãos que vivem no mundo, este rapidamente se transformaria em um cadáver putrefato pela tremenda imoralidade e total ausência de todo sentimento digno e nobre que inevitavelmente seriam apoderados dele. Em troca, se os cristãos que vivem no mundo se dedicarem a cumprir sua elevadíssima missão e se transformarem na alma do mundo, ele não perecerá por completo; ao contrário, pouco a pouco irá puri cando-se sempre mais até chegar a ser, mais que um lugar de condenação e de desterro, a antessala do paraíso.

CAPÍTULO III | Vida litúrgica comunitária 75. Como se sabe, a liturgia foi enormemente revalorizada pela Igreja em nossos dias, depois de vários séculos de decadência, que coincidiram — como tinha que ser — com a decadência da verdadeira piedade cristã no povo el. Vamos dedicar a este importantíssimo assunto toda a atenção que merece, dentro dos limites impostos pelo marco geral de nossa obra.

1. Doutrina do Concílio Vaticano ii 76. Em primeiro lugar, vamos coletar a magní ca doutrina do Concílio Vaticano em sua Constituição sobre a Sagrada

Liturgia. Não poderemos retomá-la integralmente — o leitor poderá vê-la facilmente em qualquer uma das numerosas edições que dela foram feitas —, mas unicamente os parágrafos em que o concílio exalta sua excepcional importância e seu elevado valor santi cante. Ao m de cada parágrafo, indicaremos o número da constituição a que ele pertence. 1. Reforma da liturgia e objetivos do concílio 77. “Este sacrossanto concílio”, começa dizendo, se propõe fomentar sempre mais a vida cristã entre os éis, adaptar melhor às necessidades de nosso tempo as instituições que estão sujeitas à mudança, promover tudo aquilo que possa contribuir para a união de todos os que crêem em Jesus Cristo, e fortalecer o que contribui para convidar todos os homens ao seio da Igreja. Por isso acredita que lhe cabe de um modo particular proceder à reforma e ao incremento da liturgia (nº 1).

Concentre-se o leitor na densidade doutrinal do parágrafo que acabamos de transcrever. Para conseguir os elevadíssimos objetivos a que se propõe — entre os quais se destaca em primeiro lugar o fomento da vida cristã dos éis —, o concílio julga-se no dever de propor de um modo particular a renovação da liturgia. De fato, a constituição sobre a liturgia foi a primeira que o concílio examinou e a primeira que Paulo promulgou, no dia 5 de dezembro de 1963. 2. Lugar da liturgia no mistério da Igreja 78. “De fato”, continua o concílio, a liturgia, por meio da qual se exerce a obra de nossa redenção,144 sobretudo no divino sacrifício da Eucaristia, contribui em sumo grau para que os éis expressem em sua vida, e manifestem aos demais, o mistério de Cristo e a natureza autêntica da verdadeira Igreja. É característica da Igreja ser, ao mesmo tempo, humana e divina, visível e dotada de elementos invisíveis, entregue à ação e dada à contemplação, presente no mundo e, contudo, peregrina; e tudo isso de modo que nela o humano esteja ordenado e subordinado ao divino, o visível ao invisível, a ação à contemplação e o presente à cidade futura que buscamos (cf. Hb 13, 14). Por isso, ao edi car dia a dia os que estão dentro dela para serem um templo santo no Senhor e morada de Deus no Espírito (cf. Ef 2, 21–22) até que cheguem à medida da plenitude da idade de Cristo (cf.

Ef 4, 13), a liturgia também robustece admiravelmente suas forças para pregar a Cristo, e assim apresenta a Igreja aos que estão fora, como estandarte erguido no meio das nações (cf. Is 11, 12), para que debaixo dele se congreguem na unidade os lhos de Deus que estão dispersos (cf. Jo 11, 52), até que haja um só rebanho e um só Pastor (cf. Jo 10, 16) (nº 2).

Depois deste maravilhoso parágrafo, carregado de doutrina teológica, o concílio diz que dará normas práticas sobre o crescimento e a reforma da liturgia (nº 3), e deseja que continuem a aperfeiçoá-las todos os ritos católicos legitimamente reconhecidos (nº 4). Em seguida, expõe a natureza da liturgia e sua importância na vida da Igreja nos seguintes termos: 3. A obra da salvação realizada por Cristo 79. Deus, que “quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade” (1Tm 2, 4), “tendo falado antigamente a nossos pais, em muitas ocasiões e de diferentes maneiras, por meio dos profetas” (Hb 1, 1), quando chegou a plenitude dos tempos, enviou seu Filho, o Verbo feito carne, ungido pelo Espírito Santo, para evangelizar os pobres e curar os contritos de coração (cf. Is 61, 1; Lc 4, 18), como “médico do corpo e do espírito”,145 mediador entre Deus e os homens (cf. 1Tm 2, 5). De fato, sua humanidade unida à pessoa do Verbo foi instrumento de nossa salvação. Por isso, em Cristo “realizou-se plenamente nossa reconciliação e nos foi dada a plenitude do culto divino”.146 Esta obra da redenção humana e da perfeita glori cação de Deus, preparada pelas maravilhas que Ele operou no povo da Antiga Aliança, Cristo Senhor a realizou principalmente pelo mistério pascal de sua bem-aventurada Paixão, ressurreição dentre os mortos e gloriosa ascensão. Por este mistério, “morrendo [Ele] destruiu a morte, e ressurgindo deu-nos a vida”.147 Pois do lado de Cristo adormecido na Cruz nasceu o admirável sacramento de toda a Igreja148 (nº 5).

4. A obra da salvação, continuada pela Igreja, realiza-se na liturgia 80. “Por esta razão”, continua o concílio, assim como Cristo foi enviado pelo Pai, Ele, por sua vez, enviou os apóstolos, cheios do Espírito Santo. Não só os enviou para pregar o Evangelho a toda criatura (cf. Mc 16, 15) e anunciar que o Filho de Deus, com sua morte e ressurreição, nos libertou do poder de Satanás (cf. At 26, 18) e da morte, e nos conduziu ao reino do Pai, mas também para realizar a obra de salvação, que proclamavam mediante o sacrifício e os sacramentos, em torno dos quais gira toda a vida litúrgica. E assim, pelo Batismo, os homens são enxertados no mistério pascal de Jesus Cristo: morrem com Ele, são

sepultados com Ele e ressuscitam com Ele (cf. Rm 6, 4; Ef 2, 6; Cl 3, 1; 2Tm 2, 11); recebem o espírito de adoção de lhos, “pelo qual clamamos: Abba! Pai” (Rm 8,15), e se transformam assim nos verdadeiros adoradores que o Pai procura (cf. Jo 4, 23). Igualmente, toda vez que comem a Ceia do Senhor, proclamam sua morte até que Ele volte (cf. 1Cor 11, 26). Por isso, no mesmo dia de Pentecostes, quando a Igreja se manifesta ao mundo, aqueles que ouviram Pedro e “receberam sua palavra foram batizados. E com perseverança ouviam o ensinamento dos apóstolos, reuniam-se na fração do pão e na oração, [...] louvavam a Deus, gozando da estima geral do povo” (At 2, 41–47). Desde então, a Igreja nunca deixou de se reunir para celebrar o mistério pascal: lendo “tudo quanto a Ele se refere em toda a Escritura” (Lc 24, 27), celebrando a Eucaristia, na qual “se faz novamente presente a vitória e o triunfo sobre a morte”,149 e ao mesmo tempo dando graças “a Deus pelo dom inefável” (2Cor 9, 15) em Cristo Jesus, “para louvar sua glória” (Ef 1, 12) pela força do Espírito Santo (nº 6).

Note-se a singular importância do parágrafo que acabamos de transcrever: a liturgia comunica e realiza nos éis a obra da redenção de Cristo. Como pode ser assim? O próprio concílio vai dizê-lo: 5. Presença de Cristo na liturgia 81. Para realizar uma obra tão grande, Cristo está sempre presente em sua Igreja, sobretudo na ação litúrgica. Está presente no Sacrifício da Missa, seja na pessoa do ministro, “oferecendo-se agora pelo ministério dos sacerdotes aquele mesmo que então se ofereceu na Cruz”,150 seja, sobretudo, sob as espécies eucarísticas. Está presente com sua força nos sacramentos, de modo que, quando alguém batiza, é Cristo quem batiza.151 Está presente em sua palavra, pois quando se lê a Sagrada Escritura, é Ele quem fala. Está presente, en m, quando a Igreja suplica e canta salmos, aquele mesmo que prometeu: “Ali onde estão dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles” (Mt 18, 20). Realmente, nessa obra tão grande, pela qual Deus é perfeitamente glori cado e os homens santi cados, Cristo sempre associa consigo sua amadíssima esposa, a Igreja, que invoca seu Senhor e por Ele tributa culto ao Pai Eterno. Com razão, pois, considera-se a liturgia como o exercício do sacerdócio de Jesus Cristo. Nela os sinais sensíveis signi cam e, cada um à sua maneira, realizam a santi cação do homem, e assim o Corpo místico de Jesus Cristo, isto é, a Cabeça e seus membros, exerce o culto público integral. Em conseqüência, toda celebração litúrgica, por ser obra de Cristo Sacerdote e de seu Corpo, que é a Igreja, é ação sagrada por excelência, cuja e cácia, no mesmo título e grau, não é igualada por nenhuma outra ação da Igreja (nº 7).

E ainda mais: a liturgia da terra nos põe em comunicação direta com a liturgia eterna que celebraremos com in nito gozo na pátria

bem-aventurada. Ouçamos o próprio concílio: 6. Liturgia terrena e liturgia celeste 82. Na liturgia terrena, antegozamos e participamos daquela liturgia celestial que se celebra na cidade santa de Jerusalém, para a qual nos dirigimos como peregrinos e onde Cristo está sentado à direita de Deus como ministro do santuário e do tabernáculo verdadeiro (cf. Ap 21, 2; Cl 3, 1; Hb 8, 2): cantamos ao Senhor o vínculo de glória com todo o exército celestial; venerando a memória dos santos, esperamos participar com eles e gozar de sua companhia; aguardamos o Salvador, Nosso Senhor Jesus Cristo, até que Ele, nossa vida, se manifeste, e nós também nos manifestemos gloriosos com Ele (cf. Fl 3, 20; Cl 3, 4) (nº 8).

Apesar destas sublimes grandezas, o concílio adverte sabiamente que a liturgia não esgota toda a atividade da Igreja, pois antes dela é necessária a fé e a penitência que é pregada aos in éis e pecadores. Eis aqui suas próprias palavras: 7. A liturgia não é a única atividade da Igreja 83. A sagrada liturgia não esgota toda a atividade da Igreja, pois para que os homens possam chegar até a liturgia, é necessário que antes sejam chamados à fé e à conversão: “Como invocarão Aquele em quem não creram? Ou como crerão naquele de quem não ouviram falar? E como ouvirão se não houver quem lhes pregue? E como pregarão se não não houver quem lhes envie?” (Rm 10, 14–15). Por isso a Igreja proclama aos nãocrentes a mensagem de salvação, para que todos os homens conheçam o único Deus verdadeiro e seu enviado, Jesus Cristo, e se convertam de seus caminhos fazendo penitência (cf. Jo 17, 3; Lc 24, 27; At 2, 38). E aos crentes ela deve pregar continuamente a fé e a penitência; além disso, deve prepará-los para os sacramentos, ensinar-lhes a cumprir tudo quanto Cristo ordenou (cf. Mt 28, 20) e estimulá-los a todo tipo de obras de caridade, piedade e apostolado, para que deixem manifesto que os éis, sem serem deste mundo, são a luz do mundo e dão glória ao Pai perante os homens (nº 9).

Tudo isto, sem dúvida alguma, é absolutamente necessário, e assim o proclama o concílio. Entretanto, isto em nada diminui o supremo valor da liturgia, como proclama em seguida o mesmo concílio: 8. A liturgia é o cume e a fonte da vida eclesial 84. Não obstante, a liturgia é o cume para o qual tende a atividade da Igreja, e ao mesmo tempo a fonte de onde emana toda a sua força. Pois os trabalhos apostólicos são ordenados para que, uma vez tornados lhos de Deus pela fé e pelo Batismo, todos se reúnam, louvem a Deus no meio da Igreja, participem do sacrifício e comam a Ceia do Senhor.

Por seu lado, a própria liturgia impele os pascais”, sejam “unidos no amor”;

152

éis a que, saciados “com os sacramentos

ela roga a Deus que eles “sejam éis na vida a

quanto receberam pela fé”, e a renovação da Aliança do Senhor com os homens na Eucaristia incita e arrasta os éis para a premente caridade de Cristo. Portanto, é da liturgia, sobretudo da Eucaristia, que chega até nós a graça, como de sua fonte, e se obtém com máxima e cácia aquela santi cação dos homens e a glori cação de Deus para a qual tendem as demais obras da Igreja como para seu m (nº 10). 153

Contudo, não pensemos que esses efeitos se produzem nas almas independentemente de suas disposições. É certo que os sacramentos produzem ou aumentam a graça ex opere operato (ou seja, por si mesmos) naqueles que os recebem dignamente, mas de modo algum nos que os recebem indignamente (por exemplo, o sacramento da Penitência sem o arrependimento dos pecados, ou a Eucaristia, estando em pecado mortal). Por conseguinte, é necessária a cooperação daquele que pratica a liturgia, como adverte expressamente o próprio concílio. Eis aqui suas palavras: 9. Necessidade das disposições pessoais 85. Mas, para assegurar esta plena e cácia, é necessário que os éis se acerquem da sagrada liturgia com reta disposição de ânimo, coloquem sua alma em sintonia com sua voz e colaborem com a graça, a m de não a receberem em vão (cf. 2Cor 6, 1). Por esta razão, os pastores de almas devem vigiar para que na ação litúrgica não só sejam observadas as normas relativas à celebração válida e lícita, mas também para que os éis dela participem consciente, ativa e frutuosamente (nº 11).

Tampouco vamos pensar que a liturgia — ainda que vivida nesta tríplice forma: consciente, ativa e frutuosamente — torne inúteis ou menos necessários os outros exercícios de piedade tradicionalmente aprovados e recomendados pela Igreja (por exemplo a Via Sacra, o Santo Rosário, ladainhas, novenas, exercícios de morti cação corporal, etc.), e sobretudo a oração mental pessoal; muito ao contrário, a oração privada e esses exercícios piedosos são também necessários para a plena santi cação do cristão. Isso diz expressamente o concílio na seqüência do parágrafo que acabamos de transcrever. Aqui estão suas próprias palavras, citando nada menos que o próprio Cristo e São Paulo: 10. Liturgia e exercícios piedosos

86. Contudo, a participação na sagrada liturgia não abarca toda a vida espiritual. De fato, o cristão, chamado a orar em comum, deve, não obstante, entrar também em seu quarto para orar ao Pai em segredo (cf. Mt 6, 6). E mais: deve orar sem cessar, segundo ensina o Apóstolo (cf. 1Ts 5, 17).154 E o mesmo Apóstolo nos exorta a trazer sempre a morti cação em nosso corpo, para que também sua vida se manifeste em nossa carne mortal (cf. 2Cor 4, 10–11). Por este motivo pedimos ao Senhor, no Sacrifício da Missa, que, “recebida a oferenda da vítima espiritual”, faça de nós mesmos uma “oferenda eterna” para si155 (nº 12).

O concílio prossegue: Recomendam-se encarecidamente as práticas piedosas do povo cristão, contanto que sejam conformes às leis e normas da Igreja, em particular se são feitas por ordem da Sé Apostólica.156 Também gozam de especial dignidade as práticas religiosas das Igrejas particulares que se celebram por ordem dos bispos, nos termos dos costumes ou dos livros legitimamente aprovados. Entretanto, é preciso que estes mesmos exercícios sejam organizados levando-se em conta os tempos litúrgicos, de modo que caminhem de acordo com a sagrada liturgia, derivem dela de certo modo, e para ela conduzam o povo, já que a liturgia, por sua natureza, está muito acima deles (nº 13).

Como se vê, as palavras do concílio não podem ser mais prudentes e oportunas. Cada coisa em seu lugar. A liturgia vem primeiro e acima de tudo. Mas não exclui nada daquilo que a Igreja nunca excluiu, e tampouco o exclui agora. Isto é justo e equilibrado. Em seguida, o concílio proclama a necessidade de promover a educação litúrgica do clero e dos éis, e a participação ativa destes últimos no culto católico. 11. Necessidade de uma educação litúrgica 87. A Santa Mãe Igreja deseja ardentemente que todos os éis sejam levados àquela participação plena, consciente e ativa nas celebrações litúrgicas, exigida pela natureza da própria liturgia, e à qual tem direito e obrigação, em virtude do Batismo, o povo cristão, “linhagem escolhida, sacerdócio régio, nação santa, povo adquirido” (1Pd 2, 9; cf. 2, 4–5). Ao reformar e incrementar a sagrada liturgia, é preciso levar em conta esta plena e ativa participação de todo o povo, porque é a fonte primária e necessária em que os éis hão

de beber o espírito verdadeiramente cristão, e por isso mesmo os pastores de almas devem aspirar a ela com diligência em toda a sua atuação pastoral por meio de uma educação adequada (nº 14).

E depois de recomendar e dar algumas normas para a educação litúrgica do clero, sobretudo nos seminários e casas religiosas de formação, o concílio acrescenta ao se referir ao povo el: Os pastores estimulem com diligência e paciência a educação litúrgica e a participação ativa dos éis, interna e externa, conforme sua idade, condição, gênero de vida e grau de cultura religiosa, cumprindo assim uma das principais funções do el dispensador dos mistérios de Deus, e neste ponto guiem seu rebanho não só pela palavra, mas também pelo exemplo (nº 19).

A parte expositiva sobre o valor e a importância da liturgia feita pelo Concílio Vaticano vai até aqui. Como se vê, não pode exaltá-la mais do que faz ao apresentá-la como o cume para o qual tende a atividade da Igreja e, ao mesmo tempo, a fonte de onde emana toda a sua força (nº 10). É impossível dizer algo melhor em menos palavras. A seguir, o concílio estabelece detalhadamente as normas a que se deverá submeter a reforma e atualização da liturgia católica. Não nos é possível — por falta de espaço — anotar nestas páginas as magní cas orientações conciliares, mas convidamos o leitor a meditá-las e saboreá-las com vagar em qualquer das inumeráveis edições publicadas da Constituição sobre a Liturgia. Dando como pressuposta, antes de tudo, a doutrina do concílio, vamos agora desenvolver mais detalhadamente alguns de seus aspectos mais importantes, sobretudo aqueles que se relacionam mais de perto com a espiritualidade do leigo, que constitui o objeto central de nossa obra.157

2. A espiritualidade da Igreja

88. A espiritualidade da Igreja é constituída essencialmente pela prática do culto tributado a Deus. Veremos como a nossa santi cação é ordenada para participar dessa prática do culto, e como, reciprocamente, nos santi camos por meio desta prática. A conseqüência de tudo isso é que nossa espiritualidade — a espiritualidade da Igreja — deve ser fundamentalmente litúrgica. i. O culto cristão a) O plano de santi cação estabelecido por Deus 1. Os sacramentos constituem o centro do culto cristão. a) Assim o ensinou sempre a Igreja, acrescentando que os sacramentos giram, por sua vez, em torno da Eucaristia, que em seus dois aspectos de sacrifício e de banquete constitui o centro absoluto de todo o culto cristão. b) E Santo Tomás especi ca que Deus estabeleceu toda a vida sobrenatural e a perfeição religiosa do homem sobre a base dos sacramentos. 2. Devemos, pois, analisar a estrutura da economia sacramental. a) Ela nos dará a conhecer o plano divino de nossa santi cação. b) O m último dos sacramentos será também o m ao qual se ordena nossa santi cação. 3. Finalidade dos sacramentos. a) Diz Santo Tomás que o m positivo e último dos sacramentos é “dispor e aperfeiçoar a alma em ordem ao culto divino segundo o rito da religião cristã” (Suma teológica, , qq. 62 e 63). b) O culto divino será, portanto, também o m último ao qual se ordena e sobre o qual se centra toda a obra de nossa santi cação.

b) A prática do culto 1. A prática do culto cabe aos sacerdotes. a) Em todas as religiões, o culto à divindade está reservado aos sacerdotes, designados pela sociedade religiosa para tributar a Deus a homenagem que lhe é devida. b) Na religião cristã, o único sacrifício plenamente agradável a Deus, por seu valor in nito, é o sacrifício da Cruz, no qual Jesus Cristo é ao mesmo tempo sacerdote e vítima. 2. Os éis participam do sacerdócio de Cristo pelo caráter sacramental. a) O poder de praticar e participar no culto cristão é adquirido pelos cristãos pela participação no sacerdócio de Cristo. Eles recebem essa participação no sacerdócio de Cristo pelo caráter sacramental. b) Portanto, todos os sacramentos que imprimem caráter (Batismo, Con rmação, Ordem) nos con guram com Jesus Cristo, Sumo Sacerdote. 3. Ao receber os sacramentos, o cristão ca consagrado ao culto de Deus. a) Ao receber o Batismo, o cristão recebe uma participação no sacerdócio de Cristo e ca consagrado ao culto de Deus para sempre. b) Os sacramentos se ordenam, portanto, ao culto divino ao darnos o caráter sacramental — que nos torna aptos para o mesmo —, e pela graça sacramental que, como veremos a seguir, faz com que esse culto tributado por nós seja agradável a Deus. ii. Nossa santi cação e o culto cristão

a) O culto agradável a Deus 1. Para que o culto divino seja agradável a Deus, deve ser também interior e pessoal. a) Os ritos exteriores só agradam a Deus na medida em que correspondem aos sentimentos interiores. b) Necessitamos, pois, estar unidos aos sentimentos da Igreja quando participamos da prática do culto. 2. O caráter, título indispensável da graça. a) Recebemos nossa ordenação interior a Deus — a união com Jesus Cristo e com os sentimentos da Igreja — por meio da graça santi cante. b) O caráter que nos consagra ao culto divino é um título indispensável da graça santi cante, que faz com que esse culto seja agradável a Deus. 3. Os sacramentos se ordenam ao culto divino. a) O caráter sacramental nos é dado para que possamos tributar esse culto. b) E a graça sacramental nos é dada para que o tributemos dignamente e para que ele seja agradável a Deus. b) Nossa santi cação 1. Nossa santi cação se ordena ao culto de Deus. a) Como já vimos, nós nos santi camos, e os sacramentos nos santi cam, para que possamos unir-nos ao culto público que a Igreja tributa a Deus.

b) Tal é a verdadeira ordem das coisas estabelecida pela verdadeira espiritualidade da Igreja. 2. E o culto de Deus nos santi ca. a) Esta a rmação, recíproca à anterior, é também verdadeira e muito importante, como conseqüência dela. b) Ao tributar dignamente a Deus o culto que lhe é devido, e para Ele ordenar toda a nossa vida sobrenatural, dele recebemos todo tipo de graças, pois participamos dos mistérios de Cristo o mais plenamente possível. iii. A espiritualidade da Igreja a) Espiritualidade litúrgica 1. Nossa espiritualidade deve ser fundamentalmente litúrgica. a) Já vimos que toda a nossa espiritualidade se ordena ao culto divino, e deste ela recebe seu principal alimento. b) A Igreja realiza a prática do culto divino por meio de sua liturgia, à qual devemos conformar toda a nossa vida espiritual. 2. O culto litúrgico. a) O centro do culto litúrgico é constituído pelos sacramentos, que, por sua vez, giram em torno da Eucaristia. b) Através de todo o ano litúrgico, a Igreja vai celebrando os mistérios de Cristo. c) Pela celebração litúrgica, de algum modo estes mistérios se fazem novamente presentes entre nós, cada um deles causando em nossa alma a graça que lhe é própria. 3. Vivamos intensamente a liturgia.

a) Assistamos à Missa (e às demais celebrações litúrgicas) conscientes das verdades anteriormente expostas, compreendendo seu caráter de ato cultual central, como único e verdadeiro sacrifício oferecido a Deus. b) Acompanhemos também o desenvolvimento litúrgico dos mistérios de Cristo através das diferentes festas do ano. c) Sabendo sempre que nossos atos de culto só alcançarão a perfeição quando toda a atividade da alma prestar aos ritos litúrgicos o espírito e o sentido íntimo que eles expressam exteriormente. b) Valor cultual de toda a vida cristã 1. Só conseguimos a plenitude do culto na participação dos atos especi camente cultuais da liturgia cristã. 2. Contudo, todos os atos bons de nossa vida possuem de certo modo um valor cultual. a) Para que o culto do cristão seja agradável a Deus, basta a união com Cristo pela graça e pelo caráter batismal. b) Portanto, todo cristão, sempre que age bem, participa de certo modo do culto divino. c) Esta é a dimensão mais profunda de nossa vida cristã, que deve responsabilizar todos os nossos atos, pois todos eles são atos de homenagem e tributo à divindade. Conclusão 1. Esforcemo-nos por adquirir uma séria formação litúrgica, pois ela nos fará viver plenamente o mistério do culto cristão, e assim aproveitar todas as graças que nele podemos adquirir.

2. Procuremos ser sempre conscientes de que todos os atos, até os mais insigni cantes ou necessários de nossa vida, podem ser uma homenagem e um ato de culto a Deus, com repercussão eterna para nós.

3. Natureza da liturgia 89. O homem tem o dever de orientar sua pessoa e sua vida para Deus mediante a virtude da religião. Deve reconhecer sua absoluta dependência de Deus mediante os atos de culto interno e externo: adoração, agradecimento, satisfação e petição. Este é também um dever de toda a comunidade humana. Mas o homem é um ser que consta de alma e corpo. Ele deve tomar parte por inteiro, com suas potências espirituais e membros corporais, no ato mais digno e mais propriamente seu: o reconhecimento da majestade divina e a glori cação de seu Criador. i. O que não é a liturgia a) Não é o conjunto de ritos e prescrições do cerimonial 1. Os ritos, sem a força, sem a vida que encerram, são um corpo sem alma. 2. Tudo se converteria em um conjunto de cerimônias, espetáculos, teatralidade e folhas sem fruto, pelas quais não circularia a seiva vivi cante da espiritualidade cristã. 3. A Igreja, ao insistir no cumprimento dos ritos e cerimônias, o faz para que, sob a roupagem exterior, se manifeste toda a riqueza

íntima do espírito religioso. b) Não é a ordenação eclesiástica do culto público 1. Na liturgia existem elementos estabelecidos por Cristo (de direito divino) e outros xados pela Igreja (de direito eclesiástico). 2. A liturgia considera os elementos divinos de culto (Missa, sacramentos), sob o aspecto de culto, enquanto meios para dar a Deus a glória e a honra que lhe são devidas. 3. Se a Igreja ordena e canaliza, é para conseguir a unidade e a ordem. c) Não é a arte e a beleza que nela resplandecem 1. Como são admiráveis as obras de Deus! Todas foram feitas com sabedoria. E entre estas, a liturgia cristã, semelhante a uma catedral gótica, é realizada com a beleza e a majestade cativantes de tudo o que é divino. 2. Ao mesmo tempo, porém, é a obra do esforço do homem, de séculos de história e cultura que deixaram a marca do progresso re nado da arte e da civilização cristãs. 3. Contudo, isto é apenas um ornamento exterior: a glória da liturgia está dentro dela. A beleza e a majestade de suas formas exteriores não podem constituí-la naquilo que ela é por si mesma. ii. O que é a liturgia a) De nição A sagrada liturgia é o culto público que nosso Redentor presta ao Pai como Cabeça da Igreja, e é o culto que a sociedade dos éis presta à sua Cabeça e, por meio dela, ao Pai Eterno; para dizê-lo em poucas palavras, ela é o culto integral do Corpo místico de Jesus Cristo, ou seja, da Cabeça e de seus membros (Pio , Mediator Dei).

Assim, pois, o Verbo divino, ao se encarnar no seio puríssimo de Maria, começou no mundo, através de seu sacerdócio, o culto eterno e perfeito do Pai, cuja culminação se realizou na Cruz, oferecendo-se ali como vítima imaculada pelos pecados do mundo. Esta vida sacerdotal e este culto de Cristo têm continuação em sua Igreja, seu Corpo místico, recebendo o nome de liturgia sagrada. b) Os três elementos da liturgia 1. Um elemento espiritual e invisível. a) A graça ou vida divina: alma da liturgia. Ela vivi ca toda manifestação do culto externo, irradiando toda a força e a luz do impulso do amor divino na vida cristã. b) Esta água vivi cante foi obtida para nós pela imolação de Cristo na Cruz, e nos é comunicada através do Sacrifício do Altar e dos sacramentos. c) A liturgia atualiza este sacrifício a todo instante e em cada ponto do globo, porque seu centro é a Missa; desta, os sacramentos recebem sua virtude própria, e toda ação litúrgica sua in uência santi cadora. 2. Um elemento acessório, material. a) São os objetos, cerimônias, fórmulas, gestos, etc., que formam os vários ritos litúrgicos. b) Tudo isto serve para cercar as coisas sagradas de majestade e respeito. c) Cabe ao cristão aproveitar estes elementos para que, “através das coisas visíveis, seja arrebatado até o amor das coisas invisíveis” (Prefácio de Natal).

3. Um m desse culto. a) Deus, uno e trino, em quem se fundamenta todo o edifício litúrgico. b) Jesus Cristo, mediador e eterno sacerdote, que, em nome de todo o seu Corpo místico, oferece ao Pai a “Hóstia pura, Hóstia santa e Hóstia imaculada” (Cânon da Missa). c) A Virgem, os anjos e os santos. Mas, ao celebrá-los e invocálos, a liturgia dirige todo o louvor e a glória suprema à excelsa Trindade. iii. Características da liturgia a) É cristã e católica 1. Toda ela se acha apoiada em Cristo, ressuscitado e glorioso à direita do Pai, mediador supremo entre Deus e os homens. 2. Esta mediação é exercida por Cristo em virtude de seu eterno sacerdócio. 3. A Igreja adora, dá graças, louva e suplica ao Pai através de Cristo: “Por Ele, e com Ele, e n’Ele, te seja dada [...] toda honra e glória” (Cânon da Missa). b) É social e hierárquica 1. A liturgia é a grande epopéia da Igreja militante, padecente e triunfante (Righetti). 2. Nela o indivíduo ca absorvido, embora sem perder sua própria personalidade, e é incorporado ao sentir e ao interesse de toda a comunidade cristã. 3. E, presidindo este imenso coro de louvores, de sacrifício e de oração, está Cristo, e com Ele o papa e toda a hierarquia da

Igreja, imprimindo uma ordem maravilhosa a todas estas manifestações do amor da comunidade el. c) É santi cante 1. A vida de Deus está em Cristo, e, a partir d’Ele, é transmitida à Igreja, que a comunica às almas dos cristãos por meio dos atos litúrgicos sacramentais e através de todo o culto. 2. O ciclo litúrgico é a organização que a Igreja faz da vida espiritual dos éis em função do sacerdócio e dos mistérios de Cristo. Todo tempo litúrgico e toda celebração é um sacramental que atua ex opere operantis Ecclesiae (Righetti). 3. Portanto, a liturgia não afoga a piedade particular e a oração individual. Ambas se prestam uma ajuda mútua, e a oração particular, mediante a liturgia, situa-se sobre um fundamento objetivo, dirige-se para um excelso m suprapessoal, e se eleva sobre a limitação e as contingências do meramente individual (Herwegen). Conclusão 1. Devemos amar a liturgia e estimar seu alto valor santi cante. 2. Entretanto, para dela desfrutar se requer preparação e estudo. Daí a importância da cuidadosa educação litúrgica do povo cristão para que alcance o maior e melhor fruto possível dos atos litúrgicos da Igreja, especialmente da Santa Missa. 3. A liturgia exige o sacrifício do egoísmo pessoal, o romper dos moldes estreitos de nossos pontos de vista e interesses demasiado individuais. Porém, uma vez rompidas as barreiras, o horizonte se dilata e ilumina, o indivíduo encontra a si mesmo e a Deus de maneira perfeita, e toda a beleza e o tesouro grandioso da liturgia são descobertos: liturgia e contemplação não estão em posição contrária, mas são o cume radiante da espiritualidade cristã.

4. Crise da liturgia 90. Em Jerusalém, existem algumas muralhas — restos da antiga grandeza dos judeus — onde atualmente os israelitas repatriados, sem distinção de categoria social e procedência geográ ca, vão todos os dias para chorar em altos gritos, pedindo a Deus a reintegração do povo eleito na terra prometida. Na religião católica, também existe algo a lamentar; não o desamparo de Deus ao povo cristão, mas o contrário: o abandono de Deus pelo povo cristão. É verdade que, principalmente graças ao Concílio Vaticano , hoje as coisas mudaram muitíssimo. Mas é interessante dar uma olhada naquilo que acontecia em quase toda parte até poucos anos. i. Um fato evidente a) Onde estão os outros nove? 1. Foram dez os leprosos que Jesus curou, e destes apenas um regressou para lhe agradecer o favor: um estrangeiro (Lc 17, 12– 19). 2. Os outros, alegres e contentes, foram desfrutar da nova vida em sociedade que sua cura lhes proporcionara. 3. São muitos aqueles que, ao nascer, foram limpos do pecado pelo Batismo. Destes, alguns poucos, arriscando-se a bancar o ridículo, reconhecem seu Salvador; os outros continuam chamando-se católicos, mas vivem como pagãos. b) As igrejas sem alma

1. Em sua Missa diária, o sacerdote percebe que apenas uma ou duas pessoas o acompanham, quando não unicamente o coroinha. 2. Os sinos da torre lançam em vão seus sonoros repiques; quase ninguém lhes presta atenção, cada um está na sua. 3. Além da Santa Missa, há outros cultos na Igreja. Bem o sabem os bancos mudos e as quatro senhoras de sempre. c) Cristãos das quatro cerimônias 1. Batismo, Primeira Comunhão, Matrimônio e sepultura são os únicos pontos de contato que mantêm com a religião muitos dos chamados cristãos. Fora deles, não concebem a necessidade de ir à igreja. 2. Contudo, eles se chamam “católicos”, e ser-lhes-ia uma injúria tratá-los como indiferentes ou ateus. d) Apostasia das massas? 1. Em absoluto, esta expressão talvez seja demasiado violenta. 2. Mas é evidente que a maioria dos éis não se interessa em cumprir com os deveres que lhes impõe o culto de sua religião, sobretudo quando se trata de confrontar o grupo de amigos da sala de trabalho, da fábrica ou da o cina. 3. Basta-lhes uma “prudente” prática de devoções privadas, falar com Deus a sós. ii. Por quê? Por que motivo o cristianismo dos países de tradição católica se mostra tão indiferente? a) Sem instrução 1. Em parte, pode ser que a culpa seja do sacerdote, que não se preocupa su cientemente em ensinar ao povo as mais elevadas

verdades. 2. Mas em grande parte a culpa é também do povo, que não se preocupa em aprender quando tem, de fato, meios para fazê-lo. a) Lêem todos os dias os jornais e as revistas de esportes e moda. b) Interessam-se internacional.

por

saber

os

movimentos

da

política

c) Consultam revistas cientí cas e assistem a conferências culturais. d) Mas a pouquíssimos ocorre ler livros, revistas e periódicos de cultura católica (e às vezes às escondidas). 3. Daí nasce a grande ignorância em que o católico vive em relação ao que é fundamental em sua religião. a) Ignora o verdadeiro signi cado e o valor da Santa Missa, considerando-a como uma obrigação rotineira, sem alma e sem vida. b) Ignora o simbolismo místico da liturgia: os ornamentos, o altar, os vasos sagrados... c) Ignora o porquê do Advento, da Quaresma, dos jejuns e vigílias, das festas da Igreja. 4. Daí também se originam as práticas desviadas da religião. a) A superstição, que atribui a objetos do templo e do culto poderes sobrenaturais por sua própria força. b) As devoções particulares aos santos pessoais, aos “meus santos”, que chegam a signi car mais que o Santíssimo e a Santa Missa.

b) Sem entusiasmo 1. A prática religiosa não diz nada a muitos católicos. a) Não lhes interessa aquilo que o sacerdote faz no altar. b) Não se preocupam em buscar o seu signi cado. 2. A liturgia não faz parte da vida cotidiana de muitos éis. 3. Não se considera uma obrigação tributar a Deus um culto em comum união com toda a Igreja. 4. As manifestações religiosas só acontecem: a) Nas procissões tumultuosas e atrativas, folclóricas. b) Na festa do padroeiro da vila ou da cidade. c) Nas novenas celebradas com mais ou menos pompa. 5. O barulho da rua atrai mais que o silêncio da casa de Deus. c) Excesso de ruído 1. O ritmo dos tempos não permite a prática da religião. a) Trabalha-se nos seis dias da semana e sobra um para se divertir. b) A o cina e a fábrica suprimem os dias festivos e mutilam o domingo, Dia do Senhor. c) A mulher, antigamente tão religiosa, em muitos lugares já não é a dona de casa, mas um produtor a mais na fábrica. 2. Tampouco o permite o ambiente social.

a) O respeito à opinião dos outros impõe silêncio a muitos. b) A vida moderna exige viagens, excursões, leituras, reuniões... incompatíveis com as práticas da Igreja. iii. A solução em nossas mãos Todos os cristãos, leigos e eclesiásticos, formamos uma unidade em Cristo. Portanto, cada um deve dedicar seu empenho pessoal no ressurgimento do culto. a) “Senhor, que nossos olhos se abram!” (Mt 20, 33) 1. Reconhecendo nossa impotência em orientar nossos passos para Deus, recorramos à oração, como aqueles cegos de Jericó. 2. Esta oração obriga sobretudo a todos nós que freqüentamos o templo e compreendemos alguma coisa do que ali se faz, por aqueles que não vêm nem compreendem. 3. Ainda que os muito “prudentes” nos mandem silenciar, devemos gritar sempre mais, a m de que Deus seja louvado aqui na terra. b) “Dai a César o que é de César...” 1. É verdade que devemos cuidar dos interesses de nossa casa e de nossa pessoa, mas também é verdade que devemos cuidar do louvor a Deus. 2. A liturgia somente será revalorizada quando o povo voltar a assumir nela uma parte ativa: a) Na celebração da Missa, tanto nos cânticos como no diálogo com o sacerdote celebrante; b) E nos ofícios, com o conhecimento dos Salmos e das demais partes da Escritura que neles são utilizados. Conclusão

1. O muçulmano é mais observante de seu Ramadã que o católico de sua Quaresma. Por que não procurar superá-lo? 2. Tudo isto será inútil se cada um dos leitores não assumir o sincero propósito pessoal de melhorar.

5. Restauração litúrgica 91. Nihil volitum quin praecognitum. Este conhecido axioma escolástico nos diz que para amar, para querer uma coisa, é preciso primeiro conhecê-la. A liturgia, tal como um tesouro escondido, permaneceu oculta para muitas pessoas, que ignoram sua riqueza e seu valor. Se conhecermos a liturgia, necessariamente a amaremos, porque ela possui, tanto interior quanto exteriormente, atrativos irresistíveis. Esta é uma tarefa importante em nossos dias com o senso da Igreja: levar o povo a conhecer, trazendo-o à luz, o “culto integral do Corpo místico de Jesus Cristo” (Mediator Dei). i. Preparação geral dos éis a) Teórica 1. Mediante o desenvolvimento da idéia de que a participação ativa do povo nos sagrados mistérios é a fonte primeira e indispensável do verdadeiro espírito cristão. 2. Comentando encíclicas, escritos e disposições da Igreja que versem sobre temas litúrgicos, principalmente as coisas que se

dirigem propriamente aos éis, e sobretudo a Constituição sobre a Sagrada Liturgia, do Concílio Vaticano . 3. Assinando alguma revista de tipo litúrgico, e colocando-a ao alcance de todos mediante pan etos, circulares, folhas soltas... b) Prática 1. Mediante o gosto artístico na ornamentação dos templos, feita de modo apropriado: a) Com a pobreza. Os gastos em ornamentar o templo podem ser feitos de acordo com as normas mais elementares da arte litúrgica. b) Com o verdadeiro e autêntico culto a Deus e aos santos. c) Com a educação e formação que a religião católica deve prover. 2. Organização de “semanas litúrgicas paroquiais”, onde: a) Realizem-se palestras, exposições, círculos... b) Organizem-se colóquios e diálogos, nos quais o povo possa expressar suas dúvidas e expor suas idéias. c) Promovam-se concursos literários com prêmios adequados. d) Ofereçam-se concertos de música sacra, principalmente de peças gregorianas. 3. Montagem de exposições litúrgicas em lugares públicos (salão paroquial, colégios), nas quais poderiam mostrar-se: a) Gravuras, estampas, símbolos...

b) Ornamentos, toalhas, puri cadores, palas... c) Vasos sagrados: cálices, âmbulas... ii. Ministério sacerdotal na liturgia a) Na Missa paroquial 1. É a função litúrgica por antonomásia, seu centro, ao redor do qual todos os éis devem ordenar suas práticas de piedade, uma vez que ela representa o sacrifício da Cruz. 2. É da Missa do povo que todos os éis devem participar. Para isto devem: a) Acompanhar o ordinário da Missa e suas partes variáveis através dos pequenos missais. b) Unir-se às orações e intenções do sacerdote. c) Dialogar a Missa, respondendo ao sacerdote e rezando em voz alta as partes variáveis. d) Comungar freqüentemente dentro da Missa. 3. Celebrar Missas solenes cantadas pelo povo, que também podem ser acompanhadas de cânticos populares devidamente preparados. b) Nos sacramentos 1. Educando devidamente aqueles que os vão receber, dando-lhes a conhecer os simbolismos que os representam na Escritura. 2. Administrando os sacramentos com toda a solenidade, sem distinção de pessoas ou categorias, esmerando-se nas cerimônias de ritual.

3. Fazendo ver ao povo que: a) O Batismo é o primeiro ato da redenção de Cristo sobre nós, incorporando-nos ao Corpo místico como viventes. b) A Con rmação fortalece nossas almas, dando-nos as forças necessárias para a con ssão corajosa de nossa fé cristã diante de todos os adversários, até o martírio, se necessário. c) É a Eucaristia que aperfeiçoa nossa transformação em Cristo, e exige grande reverência tanto interior quanto exterior. d) Cristo, que está sempre atuando no mundo das almas, atua de modo especial quando rati ca o que foi operado por seu ministro no sacramento do perdão. e) A Unção dos Enfermos é a puri cação suprema de todos os nossos pecados. f) A amizade conjugal permanece divinamente ordenada à propagação do Corpo místico de Cristo. g) O sacerdote é o ministro de Cristo, que nos comunica a vida através dos sacramentos e do grande Sacrifício do Altar. c) Nos sacramentais 1. Explicando ao povo que são ritos executados pela Igreja para elevar o homem das coisas exteriores até a meditação das coisas divinas. 2. Desejosa de que se transformem em valores espirituais todas as coisas, objetos, seres e nós mesmos, é a própria Igreja que abençoa:

a) As pessoas: as crianças, ao nascer, e depois em diversas ocasiões, os adultos, os noivos, as mães no parto e depois dele, os esposos, os enfermos, os moribundos. b) Os lugares e objetos destinados ao culto litúrgico: templos, cemitérios, vasos, paramentos, sinos, cruzes, medalhas, rosários, escapulários, hábitos, cíngulos... c) Tudo quanto serve para a vida do homem: casas, cozinhas, dormitórios, celeiros, lojas, estábulos, campos e montes, sementes, animais, colméias, vinhedos, olivais, poços, carruagens, veículos... d) Os centros industriais e seus produtos: fábricas, o cinas, minas, pedreiras, pontes e caminhos, estradas de ferro, telégrafos, telefones, motores, máquinas, etc. e) Os estabelecimentos culturais academias, asilos, hospitais, clínicas.

e

bene centes:

escolas,

3. Fazendo com que o povo se utilize deles com grande devoção e con ança, contrapondo-os às práticas de adivinhação, feitiços, magia e curandeirismo... iii. Magistério sacerdotal na liturgia a) Pregação 1. Das homilias, extraindo as oportunas conclusões práticas para esta ou aquela situação do povo ou da paróquia. 2. Sobre as festas principais do ciclo litúrgico e seu signi cado em nossa vida. 3. Interpretando os textos litúrgicos e o simbolismo que neles se encerra. b) Catequese

1. Educar as crianças desde o primeiro momento de seus conhecimentos com um espírito litúrgico. 2. Ensinar de forma palpável, transformando a catequese em lição de coisas e objetos litúrgicos. 3. Comentando com elas os principais pontos do ciclo litúrgico e seus tempos. 4. Preparando aqueles que irão atuar nas cerimônias do culto — acólitos e sacristães —, e isto: a) Teoricamente, mediante o ensino das rubricas, normas, disposições... b) Praticamente, mediante ensaios diante do altar ou do lugar onde será celebrada a cerimônia. c) Conferências 1. Principalmente nos tempos do Advento, da Quaresma e da Páscoa da Ressurreição. 2. Sobre a Bíblia, para que ela seja devidamente respeitada, entendida e interpretada. Conclusão 1. O ideal da educação cristã: a formação do homem segundo Cristo. E isto diante das tendências de destruição do sobrenatural. 2. Este ideal nos é oferecido pela liturgia, cujo centro é formado por Cristo e seu divino sacrifício. 3. Por isso é preciso difundir entre os éis um conhecimento exato da liturgia — o gosto sagrado pelas fórmulas, ritos e cânticos —, e atraí-los para a participação ativa nos sagrados mistérios.

6. Fins da liturgia 92. O objetivo da liturgia não é outro senão o homem: dar glória a Deus, santi cando-nos.

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Damos glória a Deus louvando-o por aquilo que Ele é, dando-lhe graças pelo que lhe devemos, pedindo-lhe perdão por aquilo em que o ofendemos e impetrando d’Ele aquilo de que necessitamos. Santi camo-nos ao aplicar em nós os méritos de Cristo. i. O louvor da glória de Deus a) O único m de todas as coisas 1. O cântico eterno na Trindade. a) Deus, in nitamente feliz desde toda a eternidade e pelos séculos dos séculos. b) O Pai diz sua Palavra eterna, o Verbo, seu in nito louvor. c) O Espírito Santo, laço indissolúvel de amor, in nito como eles, encerrando este louvor sem m. 2. Deus se decide a criar o universo. a) Não por indigência, mas por liberalidade. Não por egoísmo, mas por amor. Não por necessidade, mas por pura graça. b) E Deus criou tudo quanto existe. Os céus e a terra, os mares e as orestas, os animais e o homem. c) Mas Deus não renunciou, nem pode renunciar, ao todas as coisas devem ter n’Ele: sua glória.

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3. O cântico das coisas. a) Deus deve ser “tudo em todas as coisas” (1Cor 15, 28). Todas as coisas devem ser um eterno louvor ao seu amor, poder e sabedoria. b) “Os céus apregoam a glória de Deus, e o rmamento anuncia a obra de suas mãos” (Sl 18, 2). c) O homem não tem outro m senão ser para sempre “louvor da glória” da Trindade beatíssima (Ef 1, 6.12.14). b) Começando o ofício da eternidade 1. O cântico eterno na bem-aventurança. a) Nosso ofício eterno será cantar: “Santo, santo, santo é o Senhor Deus, o Todo-poderoso, aquele que era, que é e que vem” (Ap 4, 8). b) E prostrar-nos diante d’Aquele que vive pelos séculos dos séculos, e lançar nossas coroas diante de seu trono, dizendo: “Tu és digno, Senhor, nosso Deus, de receber a glória, a honra e o poder, porque criaste todas as coisas” (ibid., 10 e 11). c) E cantar juntamente com tudo o que existe: “Ao que está sentado no trono e ao Cordeiro, a bênção, a honra, a glória e o império pelos séculos dos séculos” (ibid., 13). 2. A liturgia, o modo mais prefeito de louvar a Deus sobre a terra. a) É o louvor de Cristo ao Pai, prolongado através de seu Corpo místico. b) É o tributo de louvor mais completo do homem a Deus, como homenagem de submissão e dependência. É

c) É a mensagem da Criação inteira, que pelos lábios do homem dá a Deus o louvor de sua glória. 3. A liturgia, louvor do homem inteiro. a) O homem louva a Deus com sua alma e suas potências. b) Com todo o seu corpo e todos os seus membros. c) Com as coisas materiais que tem a seu serviço e que entram na liturgia como símbolos. ii. Ação de graças, expiação, impetração a) Diante dos benefícios de Deus 1. Tudo devemos a Ele. a) A vida, a graça, a saúde, os bens materiais. b) Cada instante que passa, cada alegria que chega à nossa alma... 2. A liturgia, ação de graças ao Pai. a) Ação de graças in nita, por ser também de seu Divino Filho. b) Ação de graças insubstituível, pois a palavra do Verbo é a única que agrada a Deus. b) Diante de nossos pecados 1. Nossa dívida perante Deus. a) A dívida do pecado original, que herdamos de nossos primeiros pais. b) A dívida dos muitos pecados que também nós cometemos.

2. Cancelada de modo superabundante. a) Pela renovação dos mistérios redentores e expiatórios de Cristo. b) Por nossa incorporação na homenagem de Cristo ao Pai. c) Diante de nossas necessidades 1. Tudo deve vir a nós pelas mãos de Deus. a) Nascemos impotentes para tudo, de tudo temos necessidade. b) Necessidades materiais, necessidades espirituais. O homem é um indigente por natureza. 2. A liturgia, o melhor meio para pedir a Deus. a) Suas orações, além de exigirem uma atenção constante, são humildes. Nós nos colocamos diante de Deus como vassalos. b) São con antes, por usarem os meios que Ele inspirou à sua Igreja. E são perseverantes, com aquela santa insistência de toda a liturgia. E estas são as condições exigidas para a e cácia infalível da oração (cf. Suma teológica, a- ae, q. 83, a. 15, ad 2). ii. Nossa própria utilidade e proveito a) Renovando os mistérios de Cristo 1. A con guração com Cristo, único meio de santi cação. a) Nossa vida de santi cação consiste em morrer com Cristo (2Tm 2, 11) e ser sepultado com Ele (Rm 6, 4). b) A m de ressuscitar com Ele (Ef 2, 6) e ser vivi cado (Ef 2, 5) e enxertado n’Ele (Rm 6, 5).

c) E, por m, viver para sempre com Ele (2Tm 2, 11) e reinar com Ele eternamente (Ef 2, 6). 2. A liturgia, o melhor meio para nos unirmos a Cristo. a) A liturgia desenvolve completamente os mistérios da vida de Cristo. b) Incorpora-nos a eles, fazendo com que se tornem nossos mistérios. c) Aplica-nos sua vitalidade, sua força redentora, sua e cácia santi cadora. 3. A liturgia, síntese de nossa vida cristã. a) Nela encontramos o que temos de crer: os mistérios. b) O que temos de orar: as mais belas orações do cristianismo. c) O que temos de imitar: a vida de Cristo e dos santos. d) E o que temos de receber: os sacramentos. b) E cácia santi cadora da liturgia 1. Como causa exemplar de nossa santi cação. a) Os mistérios da vida de Cristo, com quem temos de nos con gurar. b) Os mistérios da Virgem, Mãe de nossa vida de união com Cristo. c) A vida dos santos, os homens que conseguiram re etir na terra o ideal divino. 2. Como meio e ciente de causar a graça.

a) Pela celebração dos sacramentos, meios ordinários estabelecidos por Cristo para nos dar ou aumentar a graça santi cante. b) Pela prática das excelsas virtudes que ela exige. c) Pela santi cação da vida diária mediante os sacramentais. 3. Como m de nossa vida em Cristo. a) Prolongar no céu nossa vida litúrgica da terra. b) Fazer de toda a Criação um cântico de louvor à glória de Deus. Conclusão 1. Para nós, o dar glória a Deus e a nossa santi cação identi cam-se. Quanto mais glória dermos a Deus, tanto mais nos santi caremos. Quanto mais nos santi carmos, mais glória daremos a Deus. 2. E este é o m da liturgia, o cântico supremo do Verbo ao Pai, e o meio mais adequado para nos santi carmos.

7. Frutos da liturgia 93. Diz Santo Tomás que é próprio de todo fruto ser uma culminação — uma coisa última —, e satisfazer o apetite com certa doçura ou prazer (Suma teológica, a- ae, q. 11, a. 3). Assim acontece com os frutos da liturgia. Mas esta árvore da Igreja tem a particularidade de não limitar seus dons a alguns privilegiados, ou a determinados períodos de tempo, mas oferecer seus frutos

sempre e a todos, e de um modo completo. Exige de nós somente uma coisa: que estendamos a mão. i. A liturgia nos ilumina a) Absolutamente a todos 1. Crianças e adultos. Na realidade, diante da liturgia todos nós devemos apresentar-nos como crianças, dispostos a nos submeter a essa bela “pedagogia da Igreja”. “Porque ocultaste estas coisas aos sábios e prudentes e as revelaste aos pequeninos” (Lc 10, 21). E ainda: “Da boca das crianças e dos lactentes zeste brotar o louvor” (Mt 21, 16). 2. Homens e mulheres. Muitas devoções privadas adquiriram um selo feminino. A liturgia, ao contrário, jamais perdeu seu caráter viril. 3. Intelectuais e ignorantes. Muitos não têm ao seu alcance a Sagrada Escritura, nem os documentos do Magistério, nem tampouco os tratados dogmáticos. Já a liturgia é acessível a todos. 4. Para todos os povos e raças. Independentemente das diversas línguas empregadas, os gestos, as melodias e os símbolos falam a todos. b) Em todo o tempo 1. Cada época do ano. a) O Advento e o Natal nos falam do mistério da encarnação e suscitam em nós sentimentos de esperança e gratidão. b) O tempo da Quaresma e da Paixão nos falam de nossa redenção e nos movem à penitência.

c) O tempo pascal e Pentecostes nos trazem a alegria da ressureição de Cristo e da presença dele e de seu Espírito perpetuamente na Igreja. É o grande mistério de morte e vida que temos de enxertar em nossa existência, morrendo para o pecado e ressuscitando de nitivamente para a graça. 2. Cada momento do dia. O Ofício Divino é o complemento litúrgico inseparável da Missa. Cada hora tem sua cor, sua oração e seu louvor. Além dos sacerdotes e religiosos, que são os embaixadores o ciais de Cristo diante do Pai, não poucos leigos compreenderam atualmente o sentido e a necessidade dessa oração de louvor ao Cristo místico. Eles rezam o breviário. 3. Cada circunstância da vida. a) Ao nascer um novo homem, a liturgia ilumina com seus ritos a todos nós que rodeamos a pia batismal. b) Durante o transcorrer da vida, com a Con rmação, a Penitência, a Eucaristia, os sacramentais. c) Na escolha de estado, com as ordens sacras e o Matrimônio. d) Na passagem para a vida eterna, também nos aguarda a liturgia com a Unção dos Enfermos. c) Não só o espírito, mas também o coração e os sentidos 1. As palavras, os gestos e as cerimônias. Tudo contribui para que, ao convencimento intelectual, acompanhem o convencimento sensível e afetivo. 2. Os símbolos, os paramentos e utensílios. Tudo se adapta à condição de espírito encarnado, própria do homem. As luzes, o círio pascal, a água batismal, as cores litúrgicas são outros tantos exemplos.

3. A arte e a música. A Igreja, mãe providente, não quis prescindir de nada que possa contribuir para o esplendor do louvor e o auxílio à nossa debilidade. ii. A liturgia nos move a) Dando-nos um maior sentido de Igreja 1. Impele-nos a viver profundamente o mistério do Cristo místico. a) Por meio de uma união maior com Cristo Cabeça. Nossa cristi cação é sem dúvida o fruto mais saboroso da liturgia. b) Por uma preocupação mais viva e consciente por todos os membros de Cristo (apóstolos, missionários, pecadores, enfermos, in éis, cristãos separados...). 2. Leva-nos a apreciar melhor as orações da Igreja. a) Por meio de um maior conhecimento da Sagrada Escritura. b) Pela paulatina adaptação ao sentir da Igreja em suas orações e aspirações litúrgicas. 3. Revela-nos o sentido das cerimônias do Sacrifício do Altar. A liturgia nos leva a: a) Conhecê-las melhor, em seus detalhes. b) Compreendê-las melhor, em seu simbolismo c) Estimá-las mais, em sua vinculação ao espírito da Igreja. b) Fazendo-nos valorizar mais os sacramentos 1. Faz da Eucaristia o centro da piedade cristã.

a) O Sacrifício da Missa é o ato litúrgico por excelência. b) Todos os sacramentos estão ordenados para a Eucaristia. c) O Ofício Divino é o complemento e o ornamento do Santo Sacrifício. 2. Vivi ca a participação nos demais sacramentos. a) Essa participação é maior e mais intensa, através de um conhecimento mais profundo dos ritos. b) Torna-se mais freqüente devido à maior valorização de sua e cácia santi cadora. c) Ajudando-nos no caminho da perfeição 1. Favorece a ascese. a) O Sacrifício da Missa vivenciado nos move a completá-lo com nossos próprios sofrimentos. b) Os exemplos de Cristo, da Virgem Maria e dos santos, através do ano litúrgico, nos impelem a imitá-los. 2. Dispõe para a contemplação. a) Ao nos colocar em contato constante com Deus, nos faz mais humildes. b) A liturgia proporciona um olhar simples e amoroso sobre os mistérios. c) Dá-nos recolhimento e espírito de oração. d) Facilita a prática das virtudes teologais. e) Une-nos estreitamente a Cristo e a Maria.

Conclusão O próprio apostolado deve ser fruto de uma intensa vida litúrgica, pois somente a vinculação profunda e entranhada a todos os membros de Cristo pode incitar e cazmente o nosso zelo apostólico. A oração de Cristo deve ser o princípio da ação com Cristo.

8. O ano litúrgico 94. Dia 1º de janeiro: “Feliz ano novo!”. Alegria em todos os semblantes; chegamos a uma nova etapa da vida. Ao mesmo tempo, uma secreta intranqüilidade: o tempo passa, escapa de nossas mãos; sentimo-nos fracos, a vida se desgasta. Primeiro domingo do Advento. Começa um novo ano, o ano do espírito, o ano da Igreja. Indiferença quase geral; é um ano desconhecido. Aproximemo-nos dele por alguns momentos, tentando penetrar o seu conteúdo: que nos oferece o ano litúrgico? i. Cristo, o Sol eterno a) Uma bela metáfora 1. O sol, centro da vida natural. a) Ele nos proporciona a luz, o calor e a força indispensáveis para nossa vida. b) Sob sua in uência se desenvolvem todos os seres vivos. c) Esta misteriosa vitalidade, que parece emanar dele, impeliu muitos povos a lhe prestar culto: o deus Sol. “A luz do sol é a sombra de Deus” (Einstein).

2. Cristo, centro de nossa vida. a) Ele nos iluminou com sua doutrina e seu exemplo: “Eu sou a luz do mundo” (Jo 8, 12). b) Vivi ca-nos por sua graça: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10, 10). c) Ele é o verdadeiro Deus eterno: “E o Verbo era Deus [...] e o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1, 1–14). 3. Assim o quis a Igreja. a) Desde seus primórdios, a Igreja se valeu desta imagem: Cristo, sol da vida sobrenatural: “Ele é o dia que irradia luz de eternidade, o dia que ilumina o dia, o verdadeiro sol que brilha com eterno resplendor” (Santo Ambrósio). b) Cristianizando assim um antigo sentimento da humanidade. c) Organizando em torno deste novo sol toda a sua vida de louvor ao Pai e de santi cação das almas: o ano litúrgico. b) E uma realidade sublime 1. O ano litúrgico. a) A Igreja herdou a missão de Jesus Cristo, missão de graça e missão de glória. Inspirada pelo Espírito Santo, ela organizou sua vida sobre a terra em forma de ciclo. b) Nele percorremos a vida de Cristo, Cabeça do Corpo místico, através de seus mistérios mais fundamentais: o Natal e a Páscoa. c) Nele nos é apresentado o exemplo diário dos membros triunfantes do Corpo de Cristo: as festas dos santos.

2. Ciclo vivi cador. a) Não se trata unicamente de rememorar a vida do Senhor ou de seus santos. b) Nem basta tampouco tentar penetrar seu verdadeiro sentido. c) É preciso que nos introduzamos no interior do mistério do Senhor, torná-lo nosso, intimamente nosso, segundo o desejo do Apóstolo: “Tende os mesmos sentimentos que teve Cristo Jesus” (Fl 2, 5). 3. Um círculo constante. a) O ano litúrgico jamais acaba em de nitivo, sempre volta a começar, sempre cheio de vida e de graça. É sempre o mesmo, e sempre novo. b) Isto nos permite corrigir as de ciências anteriores, considerar novos aspectos, viver mais profundamente os mistérios. c) Dá-nos um sentido de eternidade. Passa o ano natural, tudo morre na natureza. O ano do cristão participa da vida do céu. Os membros da Igreja se apóiam na terra, mas sua cabeça se levanta para a eternidade. ii. Ano litúrgico e vida da Igreja a) A Igreja acompanha Cristo 1. Tal como a esposa ao esposo, como o corpo à cabeça. a) A Igreja sabe que já não se pertence: “Foi comprada por alto preço” (1Cor 6, 23). b) Sua vida não pode ser outra senão a vida do Senhor.

c) Ano após ano, no percurso dos mistérios do Senhor, associamse no ciclo da liturgia todos os seus membros intimamente unidos. 2. Palavras de vida eterna. a) Os discípulos abandonavam o Mestre. Ele se dirige aos doze: “E vós?”. É Pedro — a Igreja — quem responde: “Senhor, tu tens palavras de vida eterna” (Jo 6, 67–68). b) E a Igreja jamais perdeu sua fé na e cácia vivi cante da palavra de Deus. c) E encontra na liturgia esta palavra divina em plenitude: Como a neve e a chuva caem do céu e não voltam para lá, ao contrário embriagam a terra, fecundam-na e cobrem de verdor, e dão sementes a semear e o pão para o alimento, assim acontece com a palavra que sai da minha boca. Não volta vazia para mim, mas faz tudo o que eu quero, e leva felizmente a plenitude para o lugar onde a enviei (Is 55, 10).

b) Caminho de glória 1. O Senhor já nasceu. Já conhecemos a vinda de Cristo. Sob esta luz, porém, preparamos nossa alma — no Advento — com os mesmos anseios que os justos do Antigo Testamento. 2. O Senhor ressuscitou. O sangue do Senhor já nos lavou. Porém, sob a glória de sua ressurreição caminhamos — durante a Quaresma — para que ela se manifeste mais plenamente em nós. 3. O Senhor está glori cado. Cristo glorioso está sempre diante do nosso olhar. E assim a liturgia da Igreja militante se une à da triunfante, da qual é um re exo, em torno do Pai, do Cordeiro e do Espírito. iii. Ano litúrgico e santi cação pessoal

a) Existe apenas um único espírito 1. Para todos os cristãos, existem os mesmos meios de santi cação: os sacramentos, a prática das virtudes, a oração, a penitência... 2. Não pode haver oposição entre santi cação individual e coletiva. 3. Que lugar deve ocupar o ciclo litúrgico em nossa vida interior? b) Admirável compenetração 1. Tudo gira em torno de Cristo. a) Ano litúrgico e vida interior: ambos procedem do Verbo encarnado. b) Não há divisões em nós: em tudo o que somos, somos Corpo de Cristo, membros da Igreja. Somente nela nos santi camos. c) A Igreja nos oferece o caminho para nos identi carmos com o Senhor: o ano litúrgico. 2. O ano litúrgico, símbolo da vida interior. a) Advento: santos desejos, súplicas fervorosas, puri cação, o Senhor que chega: entrada na vida de perfeição, via purgativa. b) Natal e Epifania: humildade, obediência, pobreza, amor suave, ação de graças; tudo isso sob a luz de Deus: via iluminativa. c) Septuagésima158 e Quaresma: padecimentos, humilhações, grandes provações, morte de nitiva ao pecado com Cristo na Cruz: segunda puri cação.

d) Ciclo pascal, vinda do Espírito Santo: a alma triunfa com Cristo ressuscitado, o Espírito Santo nos invade, a Trindade acusa sua presença na alma: via unitiva, mais do céu que da terra, que se consuma com a morte e o juízo do Senhor (último domingo de Pentecostes). Conclusão 1. O ano litúrgico é o ano do cristão: cada dia traz consigo a sua graça. 2. Avancemos por ele conscientes de que toda a Igreja de Deus nos acompanha. 3. Façamos dele a fonte de nossa santi cação, pedindo ao Senhor, ao Sol eterno, que nos faça participar cada vez mais plenamente da luz de seus mistérios.

9. Grandeza e excelência da Missa 95. Que signi cam essas magni cência? Que signi cam

grandes

catedrais

cheias

de

esses paramentos e essas cerimônias carregadas de majestade? Esse inspirado ardor das orações da Igreja? Signi cam que a Igreja não possui nada maior do que a Missa. i. A Missa, o maior ato da Igreja a) Renovando a grandeza do Calvário 1. O gesto supremo de Cristo.

a) Todos os atos de Cristo tiveram um valor in nito. b) Porém, em seu sacrifício sangrento, Ele quis simbolizar seu in nito amor aos homens, com o gesto supremo de dar a vida por aqueles que amava. c) E a este supremo ato de sua vida, quis unir a adoração, a propiciação, a ação de graças e a impetração in nitas. 2. Perpetuado sobre os altares até o m do mundo. a) Cristo se imolou de uma vez para sempre (Rm 6, 9). b) Porém, sob símbolos de morte — separação do corpo e do sangue —, Cristo volta a repetir sobre os altares o seu sacrifício. c) Não existe nenhum instante em que a Igreja não esteja elevando ao céu esta hóstia in nita a partir de algum ponto da terra. É o que ela possui de maior. 3. Para sua plena fruti cação. a) O sacrifício cruento de Cristo foi redentor e meritório para todos os homens, mas não aplicou imediatamente a todos nós sua virtude. b) A Missa veio, portanto, para completar o Calvário. Aquilo que Cristo ganhou, a Missa reparte para nós. c) A Missa é o maior tesouro da Igreja. b) Renovando a sublimidade da Ceia 1. Na intimidade com Cristo. a) Sentados ao redor de sua mesa, Cristo nos fez seus amigos. Ele já não esconde segredos de nós (Jo 15, 9–17).

b) Ensinou-nos a amar a todos os homens. Todos somos uma só coisa nele. c) A Missa, tal como a Ceia, é o grande momento de intimidade com Cristo. 2. Convidados ao banquete de fraternidade. a) “Se alguém tem sede, venha a mim e beba” (Jo 7, 37). b) Sua carne, verdadeira comida, e seu sangue, verdadeira bebida, são nosso alimento cotidiano e nosso viático para a eternidade. c) A comunhão é o verdadeiro complemento da Missa e a melhor maneira de aplicar seus frutos em nós. 2. Transformados em Cristo. a) Na comunhão, Cristo vem a cada um de nós com seu amor e caz, destruindo tudo o que é nosso para nos encher de sua vida. b) É o momento supremo de nossa transformação em Cristo. c) Deste modo a Igreja inteira se converte em Cristo vivo, por ter participado do mesmo pão. ii. A Missa, Deus presente entre nós a) O milagre de todos os dias 1. Um dia, houve um grande milagre na casinha de Nazaré: “O Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1, 14). 2. Diariamente, entre as mãos de milhares de sacerdotes, Deus volta a descer como ao seio da Virgem.

3. Este pensamento deveria revolucionar nossa vida. Somos testemunhas desse milagre. b) Cumprindo uma promessa 1. Que pensariam os apóstolos quando Cristo lhes disse: “Eu estarei convosco até a consumação dos séculos”? (Mt 28, 20). 2. Eles devem tê-lo compreendido no dia da Ceia. 3. São testemunhas da veracidade de Cristo os milhões de templos espalhados pelo mundo, com sua lâmpada ardendo. c) No meio de nós 1. Deveríamos sentir Cristo vivendo no meio de nós. Ele ergueu seu tabernáculo no meio de nossas cidades, de nossas aldeias... 2. Deveríamos sentir sua proteção sobre nossas vidas assim como Israel sentiu a proteção de : Como uma águia que revoa sobre sua ninhada, assim está sobre seu povo (Dt 32, 11). iii. A Missa, assembléia dos santos a) Espetáculo do universo 1. Os homens, pendentes do sacrifício. a) A virtude da religião nos obriga a adorar a Deus, dar-lhe graças, pedir-lhe favores, e oferecer-lhe expiação por nossos pecados. b) Na Missa, encontramos a maior adoração, a melhor ação de graças, a melhor impetração e a maior expiação. c) Que beleza é a da Missa! Os homens, sem distinção de línguas, sem distinção de raças... ao redor de um mesmo altar!

2. Os bem-aventurados, presentes na assembléia. a) Ao redor de nosso altar, os bem-aventurados. Os mártires, os confessores, as virgens... b) Uma mesma respiração anima seus corações. Sobre o altar está o Cordeiro imolado, e a tarefa deles não é outra senão cantar: “Santo, santo, santo...”. c) Também estão intercedendo por nós, para que possamos nos unir de nitivamente às suas vozes. 3. Os anjos, entoando louvores. a) Tal como se aproximaram de Cristo recém-nascido para cantar: “Glória a Deus nas alturas” (Lc 2, 14). b) Como se aproximaram de Cristo triunfante no deserto (Mt 4, 11). c) Agora se aproximam do altar para cantar: “Digno é o Cordeiro que foi imolado de receber o poder, a riqueza, a sabedoria, a fortaleza, a honra, a glória e a bênção” (Ap 5, 12). b) A Jerusalém celestial, consumação da Missa 1. A glória eterna do Cordeiro. a) “Eu vi no meio do trono [...] um Cordeiro, que estava em pé como imolado” (Ap 5, 6). b) “O Cordeiro sobre a montanha de Sião” (Ap 14, 1). c) O Cristo, que quis prolongar seu estado de vítima pelos séculos dos séculos. 2. Seu cortejo.

a) “Vi e ouvi a voz de muitos anjos ao redor do trono [...] e seu número era de milhares de milhares, e milhões de milhões” (Ap 5, 11). b) “Uma grande multidão, que ninguém podia contar, de toda nação, tribo, povo e língua” (Ap 7, 9). c) “E todas as criaturas que existem no céu e sobre a terra, e debaixo da terra, e no mar, e tudo quanto existe neles” (Ap 5, 13). 3. Nós, nas leiras dos santos. a) A assistência à Missa deve recordar-nos nosso futuro destino: cantar ao Cordeiro um cântico novo de eterna adoração e louvor. b) Perdidos entre o coro dos anjos e dos santos, nossa voz se erguerá até o trono de Deus. c) Que sentimentos mais profundos brotariam em nossa alma se estes pensamentos nos acompanhassem quando celebramos ou participamos da Missa! Conclusão 1. Os céus e a terra não têm nada maior do que a Missa. 2. A e cácia da Missa se prolongará eternamente no céu. 3. Vivamos com estes sentimentos já aqui na terra.

10. Valor infinito da Missa

96. Todos já nos perguntamos, alguma vez, qual poderia ter sido nossa atitude em relação a Cristo se o tivéssemos acompanhado em sua vida pública e sido testemunhas de sua morte. Muitos de vós também vos lembrareis daquela lição da história sagrada, quando os lhos de Jacó venderam José a uns mercadores do Egito e, depois, para que seu pai acreditasse que as feras o tivessem devorado, tingiram de sangue a túnica de seu irmão e a levaram para Jacó. Cada vez que um sacerdote celebra a Missa, ele mostra ao Pai, não as vestes ou uma lembrança de nosso Salvador, mas seu próprio Filho em uma verdadeira imolação. Sempre que nos unimos ao sacerdote, somos testemunhas do mesmo sacrifício da Cruz. Qual é o valor de uma Missa? É o que veremos agora. i. A Missa tem em si um valor in nito a) É o mesmo sacrifício da Cruz 1. Para Deus não existe tempo: tudo é um eterno agora. a) No momento da consagração, desdobramos diante d’Ele todo o cortejo de sofrimentos e humilhações de Cristo. b) Em cada Missa, mediante a dupla consagração, “anunciamos ao Pai a morte de seu Filho” (1Cor 11, 26). 2. É doutrina da Igreja: assim o diz o Concílio de Trento (cf. D. 940), Pio na Encíclica Mediator Dei, e o Concílio Vaticano repetidas vezes.

3. Repetem-no unanimemente os Santos Padres: “Oferecemos sempre o mesmo (sacrifício), não agora uma ovelha e outra amanhã, mas sempre a mesma” (São João Crisóstomo). 4. A própria razão teológica o demonstra: a Missa é verdadeiro sacrifício exatamente porque se identi ca com aquele da Cruz. b) É uma oblação com efeitos in nitos 1. A oblação de Cristo é um ato de valor in nito. a) Cristo é a única vítima do Sacrifício Eucarístico. b) Cristo é também o oferente principal. O sacerdote é um instrumento. A própria liturgia no-lo demonstra no momento clímax: “Isto é meu corpo”, diz o sacerdote ao consagrar o pão. c) A própria oblação é um ato da única pessoa que há em Cristo, a pessoa do Verbo. d) Assim, tudo é de valor in nito: 1º — A humanidade de Cristo unida hipostaticamente à Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. 2º — A dignidade in nita de uma pessoa divina que oferece, e o valor inestimável de cada um de seus atos. 2. Também os efeitos são in nitos. a) Não de fato, porque os efeitos criados sempre têm um limite. b) Mas em si: o Sacrifício do Altar não tem limites em sua e cácia; pode sempre estender-se a mais coisas, pode sempre ter maiores efeitos.

c) Se os efeitos são de valor in nito, com maior razão a Missa, que os causa. ii. É o homem quem impõe limites a) Em sua aplicação 1. Como sacrifício impetratório. a) A água do mar não pode ser contida em um vaso, porque este é muito limitado. b) O homem é em si nito, e, portanto, absolutamente incapaz de receber um valor in nito como o é a Missa. c) Inclusive na extensão, os efeitos da Missa se encontram limitados pelos homens: somos milhões de homens, mas não in nitos. 2. Como sacrifício expiatório. a) O homem pode morrer de sede ao lado de uma fonte; basta que não queira beber. b) Somos livres, e Deus nunca opera contra nossa vontade. c) Os condenados fecharam de nitivamente a porta para a graça; estão radicalmente incapacitados de recebê-la. b) Em seus frutos Os frutos da Missa são limitados inclusive em relação ao sujeito que os recebe, de sorte que não lhe são conferidos em toda a medida ou extensão com que poderia recebêlos. Comprova-o: 1. A prática da Igreja e o senso dos éis: são oferecidas várias Missas por uma mesma intenção. Se o fruto de uma delas fosse ilimitado, seria absurda a repetição.

2. A paridade com o sacrifício da Cruz: o sacrifício do Calvário é de valor in nito, mas se aplica de maneira limitada, segundo a ordenação de Deus e as nossas disposições. 3. A semelhança com os sacramentos: uma única comunhão bastaria para nos santi car. De fato, até mesmo um grande número delas não nos torna santos. 4. A analogia que mantém com as causas naturais: aquece-se mais aquele que mais se aproxima do fogo. c) Por nossas disposições 1. Depende unicamente de nós o grau em que os frutos da Missa nos serão aplicados. a) Não dos sacerdotes oferentes, porque estes são meros instrumentos. Cristo é o oferente principal e aquele que dá e cácia in nita ao Sacrifício Eucarístico. b) Tampouco o limita a vontade de Deus ou de Cristo. Seria contrário ao modo normal como opera a Divina Providência. Deus não taxa nem limita de forma arbitrária ou violenta os efeitos das causas segundas. c) Tampouco podem ser limitados pela intenção do sacerdote celebrante. A intenção do sacerdote não é a causa dos efeitos do sacrifício. 1º — Ao sacerdote depende aplicar o sacrifício por esta ou aquela pessoa. 2º — Suposta esta aplicação, os efeitos são totalmente independentes dele. 2. O importante é a disposição, o estar preparado para receber o fruto da Missa no maior grau possível.

3. Nossa tarefa deve ser a de cooperar com fervor no oferecimento do sacrifício em suas quatro nalidades: adorar a Deus, dar-lhe graças, pedir-lhe benefícios e satisfazer por nossos pecados. Conclusão 1. Valorizemos a Missa em seu valor in nito. a) Como ato de homenagem e adoração a nosso Criador e Pai ( m latrêutico). b) Como único sacrifício digno de Deus, que lhe dá graças como Ele merece ( m eucarístico). 2. Tirando o máximo proveito possível de seus frutos, que têm inestimável valor para nós. a) O mais e caz para conseguir o remédio nas necessidades ( m impetratório). b) O mais sublime para aplacar a Deus, a quem ofendemos com o pecado ( m expiatório). 3. Não esqueçamos que do cálice eucarístico saem e circulam todos os demais canais da graça. O Sacrifício da Missa é a perfeição e o complemento de todos os sacramentos.

11. Fins da Missa 97. Há milhares de anos a humanidade estava angustiada com o mesmo problema: Como tributar a Deus uma adoração digna de sua grandeza? Como implorar sua proteção, agradecer seus

benefícios, implorar sua misericórdia? Não somos nada diante de sua presença. Tudo o que podemos oferecer-lhe já é dele. Somente Cristo tinha o segredo que iria remediar essa situação. Um novo sacrifício, o sacrifício de um Deus que enchesse com sua in nitude a in nitude do Pai: a Santa Missa. i. Adoração ao Pai a) A adoração, um dever das criaturas 1. O que é adorar. a) É render-nos diante de Deus, reconhecendo seu domínio absoluto sobre a Criação. b) Um ato do pensamento, que conhece a in nitude divina. c) Um ato da vontade, que se dobra diante dela. 2. Devemos adorar. a) É o dever fundamental do homem, escrito no mais profundo de seu ser. b) Até mesmo os anjos glori cam o Senhor: “Santo, santo, santo...”. c) Toda a Criação canta ao Criador: “Fogo e calor, neves e geadas, luz e trevas, montes e colinas [...] bendizei o Senhor” (Dn 3, 52–88). b) A Santa Missa, adoração in nita 1. Oferenda pura aos olhos do Pai: a) Vítima e sacerdote são divinos: “Imagem de Deus invisível” (Cl 1, 15).

b) Ele busca exclusivamente a glória do Pai (Jo 7, 18). c) E se aniquila na Missa, feito obediente até a morte (Fl 2, 7). 2. Deus se inclina com agrado. a) A adoração de Cristo é absoluta: está no mesmo nível que Deus. b) Supera in nitamente a glória que recebe de todos os anjos e santos. c) Este é o holocausto de uma só Missa: um Deus que se imola para a glória e o serviço de Deus. c) A Santa Missa, adoração da Igreja 1. Cristo morre como Cabeça da Igreja. a) Para santi cá-la: “Cristo amou a Igreja e se entregou por ela [...] a m de apresentá-la a si mesmo gloriosa, sem mancha, ruga ou coisa semelhante, mas santa e sem defeito” (Ef 5, 26–27). b) E nos manda renovar seu sacrifício de louvor: “Fazei isto em minha memória” (Lc 22, 19). 2. A Igreja adora com Ele. a) Os membros devem imolar-se com a Cabeça: “Para que a oblação com que oferecem, neste sacrifício, a Vítima divina ao Pai celestial tenha seu pleno efeito, é necessário [...] que os éis se imolem a si mesmos como vítimas” (Mediator Dei). b) A liturgia o manifesta: Gloria in excelsis Deo [...]. Laudamus te, benedicimus te, adoramus te, “Santo, santo, santo é o Senhor Deus do universo...”, “Por Cristo, com Cristo e em Cristo, seja toda honra e glória”.

ii. A Missa e a expiação a) A Missa, sacrifício de redenção 1. É aplicação da virtude redentora de Cristo. 2. Bastaria uma só Missa para apagar os crimes de in nitos mundos. 3. De fato, entretanto, a reparação é limitada: a) Não por Cristo, pois onde abundou o pecado, superabundou a graça. b) Mas sim por parte do homem, que atua como ministro ou bene ciário. c) Os limites desta aplicação dependem de nosso fervor e intenção. b) Expiação da culpa 1. A Missa não perdoa nossos pecados, como a Con ssão. 2. Mas em si nos alcança a graça atual para o arrependimento de nossas faltas. c) Satisfação da pena temporal 1. Ela nos redime, ao menos em parte, das penas devidas por nossos pecados. 2. Seus efeitos podem ser aplicados às almas do purgatório. Isto é de fé (cf. D. 950). 3. Que obséquio melhor para nossos irmãos que se puri cam de suas imperfeições?

iii. Petição de graças a) Deus nos chamou à perfeição 1. Na ordem natural e na sobrenatural. 2. Está disposto a ajudar-nos com seus dons. 3. Contanto que o peçamos com fé, e por intercessão de Jesus Cristo. Todos os dons passam pela Cruz. b) A Igreja ora ao Pai 1. A Igreja tem consciência de sua pobreza. 2. Sua oração só tem e cácia unida à de Jesus Cristo. 3. Na Missa, esta união é constante. c) E cácia desta petição 1. In nita e ilimitada por parte de Cristo. 2. Limitada por nossa parte. a) Porque pedimos coisas más. b) Ou bens que não são convenientes para nós. c) Não pedimos com a necessária devoção. iv. A Missa, Sacrifício Eucarístico a) Os benefícios do Senhor 1. Ele nos pôs na existência, cumulou-nos de dons naturais. 2. Sobretudo nos fez participantes de sua divindade: somos lhos de Deus.

3. Como oferecer uma ação de graças — uma eucaristia — in nita? b) O Sacrifício da Missa, eucaristia de Cristo 1. Toda a vida de Jesus é um hino de ação de graças ao Pai. 2. Mas este hino culminou com a Última Ceia: “Tomando o pão, deu graças, partiu-o e lhes deu dizendo...” (Lc 22, 19). 3. E continua dando graças a partir do altar... a cada dia. c) O Sacrifício da Missa, eucaristia da Igreja 1. Unida a Jesus, sua Cabeça, a Igreja dá graças a Deus Pai: a) “Na verdade é justo e necessário [...] dar-vos graças...” (Prefácio). b) Por Cristo nos chegaram as bênçãos, por Cristo — na Missa — elevamos nosso hino de ação de graças. 2. Com uma eucaristia in nita. a) É vida de Deus, transformada em ação de graças substancial e in nita. b) Hino ao qual se incorpora toda a Criação, redimida por Jesus Cristo. c) Em união com a Igreja triunfante: “Tu és digno, Senhor, nosso Deus, de receber a glória, a honra e o poder” (Ap 4, 11). Conclusão 1. Somos criaturas; a Santa Missa é o meio de louvar nosso Criador.

2. Somos pecadores; unamos nossa satisfação à satisfação de Cristo. 3. Somos pobres; na Santa Missa Cristo pode conseguir tudo do Pai. 4. Somos lhos de Deus; pela Santa Missa entoamos a nosso Pai um hino in nito de ação de graças.

12. Frutos da Missa 98. Diz certa máxima que não se ama aquilo que não se conhece: o que os olhos não vêem, o coração não sente. Por isso, a Missa, a renovação da Paixão de Cristo, deve ser profundamente conhecida por todos. Só assim poderemos amá-la e receber plenamente os seus benefícios. Por isso, vamos falar de seus frutos, isto é, dos bens eternos e temporais que Deus concede aos homens em atenção ao Sacrifício do Altar. i. Classes de frutos a) Frutos generalíssimos 1. Toda a Igreja — e de certo modo o mundo inteiro —, independentemente da intenção do ministro, recebe na celebração de cada Missa o fruto próprio do sacrifício oferecido a Deus por Cristo e por sua Igreja. 2. Este fruto generalíssimo afeta a todos os éis vivos e defuntos, em virtude da Comunhão dos Santos. Assim o expressa

diariamente a liturgia no ofertório do pão: “Por todos os cristãos, vivos e defuntos”.

éis

3. Contudo, para participar desse fruto, é necessário que cada um de nós: a) Não ofereça obstáculos: Deus nunca tira a liberdade do homem, e sem nossa permissão Ele nada pode fazer. Para que Ele nos dê, temos de estender a mão. b) Mesmo não colocando obstáculos, nem todos os cristãos participam por igual desses frutos. Depende do fervor espiritual com que eles se unem à mesma. Deus dá mais a quem mais ama. b) Frutos gerais 1. É o fruto que recebem aqueles que “participam” de algum modo na celebração da Santa Missa em união com o sacerdote: diácono, subdiácono, acólitos e éis presentes. Também são frutos independentes da intenção do sacerdote celebrante. 2. Este fruto coincide substancialmente com o anterior. Existe, contudo, entre eles, uma distinção no grau de participação: aqui ela é mais íntima, mais ativa. O fruto generalíssimo cabe a nós por sermos membros do povo de Deus; o fruto geral, pela participação no sacrifício. 3. Neste sentido, quanto mais se participa do Santo Sacrifício, mais excelente é o fruto que se recebe. Assim, o acólito participa mais que o simples el, e aquele que dialoga a Missa, mais do que aquele que não o faz, embora neste ponto se deva levar em conta as disposições íntimas de cada um e o grau de fervor e devoção. Pode ocorrer que um simples el obtenha mais benefícios que o próprio diácono ou subdiácono. c) Fruto especial É

1. É o fruto que cabe à pessoa ou pessoas pelas quais o sacerdote aplica a Santa Missa. 2. Esta aplicação pode ser por vivos ou defuntos, quer seja em geral, quer por alguns deles em particular. 3. Este fruto se aplica infalivelmente à pessoa ou pessoas pelas quais se oferece o sacrifício, contanto que não ofereçam obstáculo, embora em medida e grau conhecidos somente por Deus. d) Fruto especialíssimo 1. É o fruto que cabe ao sacerdote celebrante, que o recebe ex opere operato, de maneira infalível, contanto que não ofereça obstáculo, mesmo que celebre a Missa por outros. 2. Este fruto lhe cabe em razão do próprio sacrifício que oferece em nome de Cristo, e é pessoal e intransferível. Também admite graus de intensidade segundo o grau de fervor do sacerdote celebrante. 3. O valor deste fruto é superior aos generalíssimos e aos gerais; mas não há certeza de que supere os frutos especiais, embora não faltem teólogos que o a rmem terminantemente. ii. Valor dos frutos a) Considerados em si mesmos, são in nitos 1. O Santo Sacrifício da Missa, considerado em si mesmo, prescindindo de sua aplicação a nós, tem um valor absolutamente in nito. 2. Porque o sacrifício da Ceia, o da Cruz e o do altar são especi camente idênticos. Só existe entre eles diferenças

acidentais: o da Ceia “anunciou” o da Cruz, cujos méritos nos são “aplicados” pelo do altar. 3. Além disso, também porque na Missa a vítima é Cristo, o oferente principal é Cristo e o ato de oblação é uma ação de Cristo. b) Em relação a nós, são limitados 1. Os frutos da Missa são limitados em relação ao sujeito que os recebe, de sorte que não são conferidos em toda a medida ou extensão em que poderiam ser recebidos, mas unicamente na medida e extensão de suas disposições atuais. 2. Tal como nas causas naturais, ocorre que não comunicam toda a sua força no grau máximo em que poderiam fazê-lo, mas segundo as condições e disposições do sujeito que os recebe: o fogo queima mais ou menos, conforme nos aproximemos dele. 3. Quanto aos frutos generalíssimos, gerais ou especialíssimos, é indiferente que a Missa seja aplicada por uma pessoa ou nalidade, ou por muitas, porque se recebem independentemente da intenção do celebrante. O fruto especial, se aplicado por muitos, aproveita a cada um como se fosse aplicado por ele em particular, porque o valor da Missa é in nito; ainda que o sacerdote deva aplicá-lo em primeiro lugar na intenção daquele que encomendou a Missa, ressalvando integralmente o seu direito. iii. Aplicação dos frutos a) Modo 1. Só o sacerdote celebrante pode fazer esta aplicação, em virtude dos poderes recebidos em sua ordenação sacerdotal, e não os simples éis, nem outra pessoa superior ou inferior, ainda que o superior possa ordenar-lhe esta aplicação.

2. Esta aplicação se veri ca através da chamada “aplicação da Missa”, ou seja, por um ato de vontade mediante o qual o celebrante adjudica o fruto especial da Missa a uma determinada pessoa ou a determinado m. 3. A aplicação se refere unicamente ao fruto “especial”, não ao generalíssimo nem ao geral, que são independentes da vontade do sacerdote; nem ao especialíssimo, que pertence intransferivelmente ao sacerdote. b) Objeto 1. Pode ser uma determinada pessoa viva ou defunta. Se esta não oferecer obstáculo, receberá o fruto satisfatório e impetratório da Missa celebrada por ela, além do tributo de adoração e ação de graças oferecidos a Deus em seu nome de maneira especial. 2. Também pode ser objeto de aplicação um determinado m, como o de alcançar uma graça de Deus, reparar nossos pecados, fazer uma ação de graças, etc. 3. Este m deve ser bom e honesto, do contrário é grave sacrilégio oferecer a Missa por um m mau, recaindo a responsabilidade sobre a pessoa que encomenda a Missa, pois o sacerdote não tem obrigação de averiguar qual é o m intencionado por esta. Conclusão 1. Ama a Missa, e teu coração se acenderá no amor de Deus. 2. Prepara-te digna e devotamente, e o Senhor te cumulará de abundantes frutos. 3. Participa dela tanto quanto te seja possível, e sentirás Deus vivendo em teu coração.

13. A Missa, centro do culto católico 99. Toda a vida de Cristo, o primeiro adorador, girou em torno da Missa do Calvário. Seu sacrifício foi a única Missa, que se vai transportando no tempo e no espaço a cada momento e sobre cada altar em que um sacerdote celebra sua Missa. Para a Missa converge também o culto de cada ser humano incorporado a Cristo; nela, cada um entra em cheio no plano divino. A Santa Missa é o êxtase da Igreja. i. A Missa é Cristo em sua missão mais própria a) A vida de Cristo, função sacri cial 1. “Entrando neste mundo, diz (Cristo): Não quiseste sacrifícios nem oblações, mas me formaste um corpo. Não aceitaste os holocaustos e os sacrifícios pelo pecado. Então eu disse: Eis que venho” (Hb 10, 5–6). 2. Toda a sua vida traz a marca sacri cial. Toda ela foi uma aspiração e um anseio sacerdotal de que chegasse a hora de seu sacrifício. 3. A hora da Cruz foi desejada ardentemente (Lc 22, 15), e Ele se aproximou dela com a plenitude de si mesmo (Hb 7, 27), por amor e espontaneamente (Jo 10, 18). b) Seu ato culminante, a Missa em uma Cruz

1. “Nada existe, no mundo, maior que Jesus Cristo; e nada existe, em Jesus Cristo, maior que seu sacrifício” (Bossuet). 2. A transcendência de sua obra. Essencialmente, a Missa do Calvário é a adoração in nita à Trindade, vinda de Cristo e de toda a humanidade. Ao mesmo tempo, seu sacrifício anulou a dívida in nita do pecado das criaturas e permitiu o acesso a Deus, como Pai amorosíssimo, para dar-lhe graças e pedir-lhe benefícios. 3. Elevou nosso culto ao nível do divino. Agora podemos oferecer a Deus sacrifícios dignos; agora podemos dizer a Deus: “Pai nosso...”. c) Cristo, liturgo da vida religiosa da glória 1. Cristo subiu ao altar somente “uma única vez” (Hb 7, 27), para destruir o pecado pelo sacrifício de si mesmo. “Ressuscitado dentre os mortos, já não morre mais” (Rm 6, 9). 2. Mas seu sacerdócio é perpétuo (Hb 7, 24). Tendo entrado no céu, “comparece agora na presença de Deus em nosso favor” (Hb 9, 24). 3. Este sacrifício, no qual Cristo se oferece atualmente, não é outra coisa senão a Missa. “No céu temos nossa hóstia, nosso sacerdote, nosso sacrifício” (Crisóstomo). ii. A Missa é o cristão em sua vocação mais divina a) Momento da mais profunda intimidade 1. Oferecemos (se somos sacerdotes, também sacri camos) uma vítima de valor in nito: o Corpo de Cristo.

2. Sacri camos a nós mesmos — vítimas secundárias — em uma dupla vitimação: sobre o mal que existe em nós, sacri car é destruir; sobre o bem, sacri car é sobrenaturalizar. 3. Através da Missa, podemos oferecer-nos como uma hóstia agradável ao Pai, em louvor de sua glória. b) Resumo de nossa vocação sobrenatural 1. Resgatados por Cristo, todos nós fomos predestinados para o louvor e a glori cação da Trindade (cf. Ef 1, 3 ss.). 2. Na Missa, em Cristo, com Ele e por Ele, damos glória ao Pai na única forma digna da Trindade. 3. Na Missa — acesso ao Pai — temos propiciação perfeita, eucaristia digna, impetração con ada. c) O sol de nossos atos cultuais 1. Faz da comunhão um banquete sacri cial, cujo m supremo, que participa do m da Missa, é a glori cação da Trindade, e cujo m secundário é nossa santi cação. Na medida do primeiro, o segundo se torna nutritivo. 2. É da Missa que nossas orações diárias recebem luz para as elevar e orientar, e calor para as tornar mais puras, mais cristãs, mais transcendentes. 3. Ilumina nossas atividades, orientando-as para Deus. Uma vida profundamente cristã é uma Missa constantemente celebrada. iii. A Missa, fonte da vida divina da Igreja a) Uni ca e impulsiona a comunidade orante 1. O cristão é constitutivamente um ser solidário. Por isso a sua oração repercute sobre todo o Corpo místico; arrasta as outras

consigo. Por isso o Corpo místico se apresenta como um intercâmbio de vida e energias (Pio ). 2. Esta união, que a Missa já supõe, é por ela atualizada, estreitada e vivi cada. É na Missa que a Igreja nos reúne como “na unidade de seu divino princípio vital” (Pio ) para nos oferecer ao Pai. b) Deságua no Ofício Divino 1. O Ofício Divino é o culto público e comum que o Corpo místico de Cristo tributa ao Pai, em cada hora do dia e da noite. (Voltaremos a isto). 2. Mas o Ofício Divino, intrinsecamente e em sua missão mais importante, está ordenado a preparar e continuar o Sacrifício da Missa. É dela que recebe, pois, sua virtude santi cadora e sua e cácia latrêutica. c) Assegura a ação sacramental 1. Os sacramentos foram instituídos para capacitar a alma na celebração do culto de Deus conforme o exige o rito da vida cristã (cf. Santo Tomás, Suma teológica, , q. 62, a. 5; q. 63, aa. 1–2). 2. Mas a graça sacramental emana da Paixão de Cristo ( , q. 62, a. 5), de sua imolação perene nos altares da Igreja. E, por sua vez, ordena-se, direta ou indiretamente, à eucaristia-sacrifício ( , q. 63, a. 6), em que consiste principalmente o culto divino. Conclusão 1. A Missa glori ca mais a Deus que o canto de todos os anjos e santos juntos, e mais que os sacrifícios de adoração de todos os mortais. É o único sacrifício digno da augusta Trindade.

2. Unindo-nos em espírito e verdade aos milhares de sacerdotes que, a cada momento, estão oferecendo a Missa por si e por toda a Igreja, modelamos e dilatamos nosso coração à medida do coração de Jesus Cristo, incorporados ao seu sacrifício. A união de conformidade com a vítima do Calvário é a forma mais perfeita do culto. 3. É uma pena que a ignorância deste mistério leve a omitir a Missa com tanta facilidade ou a estar ocupados, durante a mesma, em pequenas devoções que cortam essa corrente sobrenatural e interrompem este sublime concerto da Igreja. 4. A Igreja quer e estimula a piedade privada dos éis e as devoções extralitúrgicas. Mas ela quer que se conceda o primeiro lugar à sua liturgia o cial, e, dentro dela, ao Santo Sacrifício da Missa. A Missa diária, com a comunhão eucarística, é a primeira e a maior das devoções cristãs.

14. A Missa diária, fonte de santificação 100. Somente os santos chegaram a compreender um pouquinho as excelências deste augusto sacrifício. O Santo Cura d’Ars falava com tal fervor e convicção da excelência da Santa Missa, que chegou a conseguir que quase todos os seus paroquianos a ouvissem diariamente. i. Devoção das devoções a) É como o sol, que eclipsa a todos os demais astros É

1. É uma oração mais que humana. a) É o próprio Filho de Deus quem ora ao Pai. b) Na Missa, nossas orações adquirem uma e cácia in nita. c) Temos a segurança de que serão sempre ouvidas. 2. Coloca-nos em contato com os santos. a) A liturgia de cada dia é como um des le de modelos que nos vão apontando os possíveis modos de imitar o Modelo Divino. b) Esforcemo-nos por ser como eles se queremos chegar aonde eles chegaram. 3. A ela devemos subordinar todas as nossas devoções: nosso horário... b) É a fonte mais fecunda da vida cristã 1. Dela emana em caudais a misericórdia para com os pecadores. a) Luz para conhecer seus pecados. b) Dor para se arrepender. c) Coragem e força para pagar a pena merecida. 2. Os santos bebem nela o seu heroísmo. a) O amor à penitência e à abnegação. b) O amor a todos os necessitados. c) A entrega total à vontade de Deus. c) É a devoção essencial do cristianismo É

1. É uma contradição chamar-se cristão e não estimar a Missa. a) O cristão deve ser outro Cristo, outro cruci cado. b) A Missa diária é a melhor escola para aprendê-lo. c) Mas não se excluem as outras devoções, se não se opõem a esta. 2. É a arma mais e caz contra nossos inimigos. a) O demônio foge de quem assiste à Missa diariamente. b) O mundo o respeita e o teme. c) As paixões aprendem a submeter-se à razão. ii. Ao pé do Calvário a) Imolar-nos com Cristo 1. Diante do espetáculo de Cristo imolando-se por nós, quem pode se negar ao sacrifício? a) Recordemos aqueles que presenciaram as cenas do Calvário de um modo mais ou menos indiferente. 1º — Alguns acabaram por confessar abertamente a divindade do Cruci cado: o bom ladrão e o centurião. 2º — Outros voltaram para suas casas batendo no peito... b) Esta cena se repete a cada dia no altar. 1º — Não vemos correr o sangue. 2º — Tampouco vemos os milagres que estão acontecendo.

3º — Mas a fé nos diz que ali se está imolando o Filho de Deus. Seremos nós os únicos insensíveis? 2. Misturemos nossos pequenos sacrifícios ao sangue divino. a) Assim adquirirão um valor in nito. b) Eles nos serão menos custosos. c) Contribuiremos para a redenção do gênero humano. b) Oferecer-nos com Cristo 1. Eis-me aqui, ó Pai, venho para fazer tua vontade. a) Venho como discípulo ao Mestre. b) Como soldado que se põe às ordens de seu capitão. 2. O cristão não pode assistir passivamente ao Santo Sacrifício. a) Deve oferecer a si mesmo: sua inteligência, seu coração... b) Deve, como Cristo, fazer-se pão para que todos o possam comer. c) Deve unir-se ao sacerdote celebrante: concelebrar. (Voltaremos a isto). d) Deve ter seu pensamento xo nas cenas do Gólgota. c) Comecemos nossa jornada no Calvário 1. O Calvário deve ser nosso Oriente. a) Por ele nos veio a redenção. b) Daí nos vêm todas as graças atuais.

2. Temos o Calvário no altar. a) A Missa é o mesmo sacrifício da Cruz, ainda que de modo incruento. b) As graças que nela recebemos são as mesmas que receberíamos se tivéssemos assistido com devoção à morte de Cristo. 3. Seríamos néscios se não aproveitássemos esta magní ca ocasião de nos tornarmos milionários para toda a eternidade. a) Seguramente, chamaríeis de insensato aquele que não fosse capaz de sofrer um pouco de cansaço, ou agüentar o frio, para adquirir um grande tesouro. b) Na Missa, tendes todos os tesouros imagináveis. Só uma coisa é exigida: pedi-los. 4. Portanto, não será o momento mais importante do dia aquela meia hora que dedicares a ela? a) Santa Edwiges, Rainha da Polônia, jamais deixava de assistir ao Santo Sacrifício. Não lhe importava o frio, nem a chuva, nem a distância. b) São Luís, Rei da França, ouvia várias Missas a cada manhã. c) Isto porque “perder” meia hora a cada manhã é o melhor modo de economizar o tempo, dizia Ozanam: 1º — Serão evitadas as dissipações. 2º — O trabalho renderá mais. iii. A Comunhão sacramental a) É o melhor modo de viver a Missa 1. Une-nos verdadeiramente a Cristo.

a) Não só pela fé e devoção, como na oração, mas também pelo íntimo contato sacramental. b) Transforma-nos em outros Cristos: “Já não sou eu que vivo, é Cristo...” (Gl 2, 20). 2. Une-nos com Jesus Cristo Redentor. a) Recebemos Jesus Cristo como vítima por nossos pecados. b) Como remédio para todos os nossos males. b) É o melhor modo de cumprir a vontade de Cristo. 1. “Jesus”, dizia Santa Teresinha “não desce do céu até nós, a cada dia, para car no cálice de ouro, mas para encontrar outro céu: o céu de nossa alma, onde ele tem suas delícias”. 2. Assistir ao Sacrifício Eucarístico e não comungar é parar no meio do caminho. a) Se Jesus Cristo se apresenta em forma de pão, é para que o comamos. b) Se ele se entrega a nós, não lhe fechemos a porta. 3. Como Santa Teresinha compreendeu bem isto! Extenuada, sem forças para mover-se, aproximava-se para comungar: “Considero que não é demasiado sofrer para ganhar uma comunhão”. Conclusão 1. Que acolhida tão solícita e bondosa fará o Divino Mestre, nas portas do céu, para aqueles que a cada manhã lhe pagaram esse tributo de delidade e amor! 2. Jesus os reconhecerá imediatamente, por tê-los visto tantos dias a seu lado.

3. Essas almas podem estar seguras de que encontrarão um amigo na hora da morte, não um juiz.

15. A concelebração dos fiéis 101. Tema muito teológico e de e cacíssima aplicação para a vida espiritual. De certo modo, é um tema novo e pouco tratado na pregação. O Concílio Vaticano tratou dele como de palpitante atualidade. Com ele, abrem-se horizontes insuspeitados ao cristão que, deste modo, sente mais vivamente a grandeza de sua vocação cristã. i. O sacerdócio dos éis a) O fato 1. Se a graça do Redentor é essencialmente sacerdotal, todo cristão, pelo simples fato de participar dela, possui alguma característica sacerdotal. a) É um sacerdócio espiritual (Suma teológica, 2).

, q. 82, a. 1, ad

b) Do qual o leigo participa pelos sacramentos (Ibid., a. 6, ad 1). c) Principalmente pelo caráter sacramental (Ibid.,

, q. 63,

, q. 63, a. 5).

2. Logo, todo batizado participa do sacerdócio de Jesus Cristo em sentido real e verdadeiro, e não só gurado ou metafórico. É

3. É um certo sacerdócio litúrgico, não só interior. 4. É um sacerdócio que lhe confere determinada função sacerdotal em ordem ao sacrifício. b) Testemunhos 1. “Vós sois uma linhagem escolhida, sacerdócio real, nação santa...” (1Pd 2, 9). 2. “Assim como chamamos a todos de cristãos [...], assim também [chamamos] a todos sacerdotes, porque são membros de um Sacerdote” (Santo Agostinho). 3. “O caráter sacramental é especialmente o caráter de Cristo, a cujo sacerdócio estão con gurados os éis segundo os caracteres sacramentais, que não são mais que uma participação no sacerdócio de Cristo” (Suma teológica, , q. 63, a. 3). 4. “Pelo Batismo, os éis [...], devido ao caráter [...], são destinados ao culto divino, participando assim do sacerdócio de Cristo de um modo adequado à sua condição” (Pio , Mediator Dei). 5. O Concílio Vaticano falou longamente do sacerdócio dos éis (cf. Constituição sobre a Igreja, nº 10–11). ii. Os oferentes da Missa a) Jesus Cristo 1. Sacerdote principal, intervém com um ato pessoal e seu. 2. Inseparabilidade da eucaristia-sacramento e da eucaristiasacrifício. 3. A ação de Cristo nos sacramentos é atual e pessoal.

4. Logo, por um seu ato próprio, Ele se faz nosso alimento e nossa vítima. b) O sacerdote celebrante 1. Também oferece e sacri ca propriamente, mas como instrumento de Cristo. 2. É ministro de Deus, e “uma só é a razão de ministro e a de instrumento” (Suma teológica, , q. 64, a. 1). 3. O sacerdote celebrante é instrumento de Cristo para tudo o que Cristo faz. 4. Logo, sua intervenção chega a todas as partes do sacrifício: oferece e imola. c) Os éis assistentes 1. Sua assistência pessoal os obriga à união com o sacerdote. 2. Os diálogos entre o celebrante e o povo o indicam: “Ofereçamos...”. 3. Toda vez que pronunciam o “amém”, eles rati cam a obra sacerdotal de quem celebra. iii. A concelebração dos simples éis Sua incorporação ao sacrifício deve reunir as seguintes características: a) Ativa 1. Participando internamente da realização do sacrifício. a) Como diz Pio : “É preciso que todos os éis considerem como um grande dever [...] participar do Sacrifício Eucarístico [...] com todo empenho e fervor, de modo que se unam de maneira estreitíssima ao Sumo Sacerdote, e, em unidade com Ele e por Ele, ofereçam o sacrifício e se consagrem em sua união” (Mediator Dei).

b) Maravilhosa dignidade de oferentes, à qual vós sois elevados pelo caráter que os sacramentos imprimiram em vossas almas e pelo qual sois designados ao culto divino, no qual deveis participar internamente. c) Realizando vosso oferecimento pelas mãos do sacerdote, mas também juntamente com ele, no sentido de que unais vossos votos e intenções de louvor, impetração, expiação e ação de graças, aos votos e intenções do sacerdote e do próprio Cristo, a m de que sejam apresentados ao Pai na mesma oblação da Vítima. d) Vitimando-os com Cristo: disposição que coloca a alma em condições para um perfeito aproveitamento dos frutos do Santo Sacrifício. 2. Colaborando externamente nas cerimônias do rito sacri cial. a) Seguindo atentamente e com renovado interesse as rubricas rituais da magna assembléia. b) Dando exemplo de compostura e gravidade pela importância do ato, e também pela importância que tudo o que é exterior possui para ambientar e nos dispor melhor àquilo que internamente devemos realizar. c) Ensaiando, quando necessário, para conseguir o decoro e a honra que cabem às coisas do culto divino. b) Inteligente 1. Com conhecimento de causa: os éis não são autômatos, mas seres com inteligência e coração. a) Iluminando vossa mente e alimentando vossos afetos com sábios ensinamentos, que vos ajudem a penetrar o profundo

mistério da Missa: o mistério da salvação. b) Sabendo que aquilo que ides oferecer é: sacrifício de Cristo, sacrifício da Igreja, sacrifício vosso. c) Sacrifício vosso: porque aquilo que pertence ao todo, pertence à parte, e vós sois parte — e muito importante — do conjunto sacri cial. 2. Com aproveitamento de seus frutos. a) Frutos de santi cação pessoal: pelas graças que se recebem no contato íntimo e direto com Cristo, especialmente caso se comungue na Missa. b) Frutos de santi cação coletiva: pela prática da caridade em relação aos que estão necessariamente vinculados à vossa perfeita incorporação ao sacrifício. Não vos esqueçais: é sacrifício do povo el, e com o m de forjar sua unidade na participação de um mesmo pão e amor santi cador. c) Frutos de apostolado: principalmente o do exemplo de virtude e espírito de sacrifício. Pois o que fazeis no momento da Missa, deveis estendê-lo a toda a vossa atividade, em todos os momentos de vossa vida. O exemplo é o primeiro e principal fruto apostólico da participação na Santa Missa. c) Regrada 1. Porque a Missa é uma assembléia hierarquizada. a) Presidir: cabe ao ministro, o sacerdote. b) Participar: cabe ao súdito el. 2. Ocupando sempre o lugar que vos corresponde.

a) Sem vos apropriar de funções ministeriais que não são de vossa incumbência. b) Realizando aquelas que vos são atribuídas, evitando as esquisitices caprichosas que destoam da seriedade e da ordem do ato. Conclusão 1. Pontualidade: em uma assembléia onde temos uma função importantíssima a realizar, é uma grosseria chegar tarde ou sair antes da hora. 2. Ação: não vamos a ela simplesmente para ouvir e ver, mas para participar. Aquilo que recebemos na Missa deve ser o pão que alimentará todas as nossas obras.

16. A oração litúrgica 102. “É preciso rezar!”, dizia um ardoroso apóstolo depois de ver as maravilhas que o Senhor operava pelo seu ministério. É preciso rezar para que transborde nosso agradecido entusiasmo por Deus. Mas é preciso rezar com a Igreja. Nossa oração pessoal não seria su ciente. É preciso aprender a rezar liturgicamente. i. A oração, fato universal A oração mostra-se para nós como a ocupação mais própria e digna da vida humana. É uma forma que dá plenitude a toda a atividade do homem. É fruto da rme convicção da possibilidade de se relacionar com o Ser Supremo, seja ele quem for.

a) Por que os homens oram? 1. Porque eles têm de reconhecimento e gratidão.

expressar

seus

sentimentos

de

2. Porque é uma exigência intelectual. É um meio e caz para se aproximar de Deus e conhecê-lo melhor. 3. Porque a vontade sente sua dependência. Sente sobre si mesma um código que a impele para Deus. b) Como os homens oram? Cada espécie de emoção piedosa tem uma invocação. Existem, pois, muitas maneiras de orar, de orar bem e de orar mal. 1. Oram bem aqueles que rezam: a) Com con ança. É uma oração espontânea, que brota do mais íntimo do homem. b) Com humildade. É um reconhecimento de dependência e subordinação. c) Com perseverança. Existe uma oração universal que sempre ora a Deus. 2. Oram mal aqueles que rezam: a) Com impaciência. É o sentimento contrário à con ança e à perseverança. b) Com orgulho, como o fariseu do Evangelho, como se Deus tivesse obrigação de escutá-los. ii. A oração da Igreja Se toda oração é culto, por ser tributo de humildade e dependência, a oração da Igreja é a manifestação essencial desse culto; é a oração litúrgica.

a) Como nasceu a oração litúrgica? 1. Oração e liturgia: funções orgânicas da Igreja. Ambas foram elaboradas com uma lentidão secular. a) Cristo deu à sua Igreja a doutrina, o sacrifício, os sacramentos; mas não deu, como Deus zera com os hebreus, um cerimonial nem um formulário de preces. b) Foi a Igreja, com seu poder de magistério e autoridade, que criou esse culto incomparável contido em nossos livros litúrgicos. 2. A oração litúrgica nasceu com a Igreja; nas assembléias eucarísticas dos primeiros éis se fez a oração comunitária: a) Sem fórmulas concretas, como lições e orações, para a edi cação, exortação, consolação e ação de graças dos éis. b) Sempre deixavam espaço para as inspirações particulares, quer do sacerdote, quer dos éis. 3. Hoje nós já temos o livro de oração litúrgica. a) No século totalidade.

, a Igreja o considerou composto em sua

b) Para a Igreja, seu fundo é sagrado e intocável, e por isso tem sofrido poucas revisões e raros acréscimos. b) Por que a Igreja ora? 1. Porque ela é a instituição que expressa o cialmente os sentimentos religiosos da sociedade dos redimidos. Sentimentos de: a) Dependência e impotência. “Ouvi-nos, Senhor!” — é o chamado à misericórdia, que as ladainhas expressam admiravelmente. É

b) Ação de graças. “É justo e necessário, é nosso dever e salvação dar-vos graças, sempre e em todo lugar, Senhor, Pai santo...”. c) Esforço e aspiração: “Ó Deus, de quem procede todo bem, dá a teus servos suplicantes...”. 2. Porque ela é o Corpo místico de Cristo, e Cristo ofereceu, nos dias de sua vida, orações e sacrifícios (cf. Hb 5, 7). 3. Porque foi fundada para que os homens conheçam a Deus e o adorem. Sua oração é o divino formulário que o Espírito de Deus colocou em sua boca. c) Características da oração da Igreja 1. Hierárquica. Revelando um profundo senso de respeito pela dignidade e de ordem dentro da unidade cristã. a) O povo, subordinado à hierarquia. O sacerdote fala em nome de toda a Igreja dos éis: Dominus vobiscum, Oremus. b) A Igreja, subordinada à Trindade. Chegamos a Ela somente por mediação de Cristo-Homem. “Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, que convosco vive e reina...”. c) Subordinação de toda a alma aos poderes superiores. Nas coletas da Missa há numerosos e variados exemplos. 2. Sacerdotal e divina. a) A oração de Cristo pertence a seu sacerdócio. “E assim se vê que a oração com que Cristo orou pertencia a seu sacerdócio” (cf. Suma teológica, , q. 22, a. 4, ad 1). b) A oração da Igreja está unida à de Cristo no céu. “E, portanto, é perfeito o seu poder de salvar aqueles que por Ele se aproximam de Deus, e vive sempre para interceder por eles” (Hb 7, 25).

d) Efeitos da oração da Igreja 1. Apresenta-nos a Deus. A vida religiosa, que se concretiza na oração da Igreja, nos apresenta a Deus por meio de Cristo. “O ponto principal de tudo isso é que temos um pontí ce que está sentado à direita do trono da Majestade nos céus” (Hb 8, 1). 2. Oramos com as palavras do Espírito Santo. É o Espírito divino que forma a oração da Igreja. “E o Espírito Santo vem em ajuda de nossa fraqueza, porque nós não sabemos pedir o que convém” (Rm 8, 26). 3. Somos atendidos. Por esta solidariedade da Igreja, temos a certeza de que oramos bem e de que somos atendidos. “Tudo quanto pedirdes ao Pai em meu nome Ele vos dará” (Jo 16, 23). iii. Nossa oração de cristãos Nossa oração deve ser a oração da Igreja. Deve estar animada do mesmo espírito que a oração de Cristo, e pelas virtudes fundamentais: fé, esperança, caridade e religião. O próprio Cristo nos deixou uma oração que reúne todas as condições. “Quando orardes, dizei”: 1. Pai. Porque dependemos de Deus. a) Criou-nos à sua imagem e semelhança. b) Fez-nos seus lhos pelo sangue de Cristo, dando-nos a graça. 2. Nosso. Para que peçamos por todos. a) Amor ao próximo, porque é nosso irmão. b) Reverência pelo próximo, porque é lho de Deus. 3. Perdoai-nos. a) Para que vivamos sempre com humildade.

b) Para que nossa vida seja animada pela con ança. Foi o próprio Cristo que nos ensinou a dizê-lo. c) Para que sejamos perdoados. Deus nos perdoará na medida em que perdoarmos. Na medida em que amarmos. Conclusão Vivendo a liturgia, nossa alma será: 1. Mais cristã. Porque o centro de sua piedade será Cristo. 2. Mais eclesiástica. Mais unida à hierarquia da Igreja, mais dócil às suas diretivas e mais de acordo com seus sentimentos. 3. Mais católica. Porque a oração litúrgica é a oração de todo o Corpo místico, de todo o mundo cristão.

17. O Ofício Divino 103. O Ofício Divino, de maneira intrínseca e em sua missão mais importante, está ordenado a preparar e continuar o Sacrifício da Missa. É dela, pois, que recebe toda a sua grandeza, sua virtude santi cadora e sua e cácia latrêutica. i. O Ofício Divino, voz da esposa a) O Verbo eterno, cântico divino 1. No seio do Pai, o Filho é a expressão de todas as perfeições do Pai, que nele encontra a glória in nita, a plenitude da felicidade, um eterno louvor. 2. Este mesmo cântico foi cantado na terra desde o dia em que o Verbo, sem deixar de ser Filho de Deus, se fez carne.

3. Mas Cristo não está sozinho: ele une a si toda a comunidade dos homens e a associa consigo neste hino de louvor. b) A Igreja continua sua missão Mas que é a Igreja, senão a comunhão da vida de Cristo com os redimidos na vivi cação do Espírito? Nós, cristãos, já não rezamos sozinhos. 1. Reza Cristo, Cabeça do Corpo místico. a) Reza conosco, acompanhando nossa elevação ao Pai, como nosso Irmão mais velho. b) Reza por nós, elevando nossa indigência e nossa oração ao Pai, como nosso mediador e sacerdote. c) Reza em nós, incorporados a Ele e vivendo sua própria vida, como nossa Cabeça. 2. Reza o Espírito Santo, alma da Igreja. a) “O próprio Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis” (Rm 8, 26). b) Advoga em nosso favor, mas em uma ordem distinta da de Cristo: não que Ele ore ao Pai em nosso nome, mas coloca em nós o espírito pelo qual podemos clamar: Pai (cf. Gl 4, 6; Suma teológica, a- ae, q. 83, a. 10, ad 1). c) O mesmo Espírito dosa em expressões humanas o cântico in nito do Verbo: nos Salmos, inspirados sicamente pelo Espírito Santo; e em outras partes do ofício, também devidas a seu in uxo criador e septiforme. 3. Rezam todos os éis. a) Todos os batizados, que são membros da Igreja visível, rezam por Cristo, com Ele e n’Ele.

b) Aqueles que, delegados pela Igreja, recitam o Ofício Divino, são, pois, “a pessoa pública e a boca de toda a Igreja” (São Bernardo). c) É claro que esta oração, naqueles que a ignoram ou não têm consciência dela, não estreita a amizade pessoal com Deus, ainda que faça por eles o culto de adoração, de ação de graças, de propiciação e até mesmo de impetração. ii. Beleza do Ofício Divino a) Em sua estrutura geral 1. Beleza interior: o Ofício Divino é um “jardim fechado” (Ct 4, 12). Nele estão fundidos: a) A oração de Cristo, o dom do Espírito Santo. b) O “Santo, Santo, Santo” dos anjos, a alegria da Igreja triunfante, o amor da Igreja padecente. c) O sofrimento, o anseio e os méritos de tantos sacerdotes, religiosos, virgens e éis da Igreja militante. 2. Beleza exterior. a) Aquele que inspirou a Davi o desenho do templo (1Cr 28, 19) reuniu também no Ofício Divino tudo quanto existe de verdadeiro, santo e digno de ser amado. b) Nele vai sendo proposta a divina revelação, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento, o pecado do homem e sua restauração, sua elevação à ordem sobrenatural e, acima de tudo, Jesus Cristo. c) A literatura sagrada: às vezes ardente, outras majestosa, mas sempre simples e sóbria.

b) Em cada uma de suas partes 1. Os Salmos: “Meu saltério é meu prazer” (Santo Agostinho). a) Expressam os sentimentos do próprio Deus. Cantam suas perfeições e nos mostram seu coração aberto. b) São a expressão dos sentimentos e necessidades da Igreja. O Israel que elevava a Deus o culto e o louvor comunitário era o tipo da Igreja. c) Eles se adaptam a cada um. “Se o salmo ora, orai; se ele se lamenta, gemei; se ele se rejubila, alegrai-vos; se espera, esperai; e se teme, temei. Todas as coisas que neles estão escritas são o nosso espelho” (Santo Agostinho). 2. As leituras. a) As leituras bíblicas nos introduzem no espírito dos dois Testamentos, um mesmo espírito que se vai abrindo e preenchendo. b) As do santoral, com exemplos de santos tão numerosos e tão diferentes, nos dão força e ânimo. Eles foram homens fracos como nós. c) As homilias dos Santos Padres nos dão uma interpretação autorizadíssima da Sagrada Escritura, da doutrina e do sentir da Igreja. 3. As demais partes integrantes. a) Os hinos são a contribuição do homem para o louvor a Deus. b) As antífonas, responsórios, etc. espalham por toda a recitação do ofício o sentido e o sabor da festa que se celebra.

c) Na oração, condensamos o fruto do dia e o pedimos a Deus para a Igreja inteira, por meio de Nosso Senhor Jesus Cristo. c) No ciclo litúrgico 1. Durante o ano percorremos todo o mistério do cristianismo. A graça integral de Cristo encarnado volta a nos visitar e con gurar. 2. O dia inteiro é santi cado pela disposição das horas canônicas. As diversas ocupações exigirão uma acomodação, mas sempre deve permanecer o espírito de ser hóstia a cada momento. iii. Modo de rezá-lo santamente a) Preparação 1. No entendimento, é necessário algum grau de estudo daquilo que vamos rezar, pois, como diz São Bernardo, o estudo está tão longe da simples lição no coro quanto a amizade da hospedagem, e o afeto familiar do cumprimento fortuito. 2. No coração, abertura para Deus. “Abre tua boca e eu a encherei”, nos diz o Senhor pelo salmista (Sl 80 [81], 11). b) Durante a recitação 1. Intenção. a) Intenção implícita, necessária para que a oração seja pública e cumpra com o preceito eclesiástico. b) Intenção atual geral: a mesma intenção de Cristo e da Igreja — a de agradar a Deus tributando-lhe o eterno louvor. c) Intenções particulares: impetratórias ou satisfatórias, por si mesmo ou pelos outros. 2. Atenção.

a) Muito imperfeita e mínima a ser cumprida: materialmente nas palavras pronunciadas.

xar-se

b) Perfeita: dar atenção ao sentido daquilo que se recita e orar segundo o espírito. c) A mais perfeita: transcender tudo aquilo que se lê e, considerando-o como música de fundo, atualizar o louvor, o “Glória ao Pai”... 3. Devoção. a) O Ofício Divino é, em si, muito apto para encher a alma de entranhada devoção e doçura. b) O principal e fundamental é a devoção substancial, que é a atitude de entrega, experimentada sensivelmente ou não. c) O prazer espiritual é uma graça de Deus. Contudo, podemos dispor-nos para ele, merecê-lo e aproveitá-lo quando Deus nos visitar. Conclusão Agora compreendemos a transcendência do Ofício Divino na vida da Igreja e na própria santi cação. Ele nos introduz nos sentimentos da alma de Cristo. E mais: nos torna real e intimamente participantes de seus mistérios.

18. O canto litúrgico 104. O canto é tão antigo quanto a humanidade. Os homens sempre sentiram a necessidade de expressar seus sentimentos através da música.

Canções de amor. Canções de guerra. Canções tristes e alegres. Todos cantam ao compasso de seu coração. Hoje se ouve muita música. Canções estridentes, muitas vezes cheias de sensualidade, que querem expressar um amor que não passa de paixão. Nós que amamos a Deus, que desejamos servi-lo e louvá-lo, não cantaremos a Ele? Não lhe cantaremos nosso amor? Se não amamos o canto da Igreja é porque não o compreendemos. Vejamos em que ele consiste. i. Parte integrante da liturgia solene a) Tem seu próprio m: a glória de Deus 1. Assim diz a Sagrada Escritura. a) “Ao contrário, enchei-vos do Espírito, sempre em salmos, hinos e cânticos espirituais, cantando e salmodiando ao Senhor em vossos corações” (Ef 5, 18). b) O Apocalipse (cap. 4 e 5) nos revela com toda a sua grandeza a liturgia do céu. Imitemos à Igreja triunfante. c) Os Salmos contêm contínuas alusões a este tema: “Cantai a um cântico novo, cantai a a terra inteira. Cantai sua glória entre os povos” (Sl 96). 2. É o sentir da Igreja. a) A Esposa de Cristo não cessou de cantar através dos séculos a glória de Deus. b) Sua música e seu canto são a manifestação mais plena, aguda e viva do desejo humano de glori car seu Senhor. 3. A nossa condição de criaturas o exige.

a) Como criaturas de Deus que reconhecem Sua in nita grandeza e santidade. “Cantando e dando graças a Deus em vossos corações” (Cl 3, 16). b) Unidos a Cristo, que nos deu um contínuo exemplo: “Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra” (Mt 11, 25). c) Com os sentimentos que a Igreja põe em nossos lábios. “Glória a Deus nas alturas”. Te Deum laudamus. “Glória ao Pai, ao Filho...”. d) Imitando as almas santas. A Irmã Isabel da Trindade vivia exclusivamente para ser louvor da glória divina. Seu ideal: “Nada mais que a glória do Eterno”. e) Como os céus, que cantam a glória de Deus (Sl 19). O Benedicite. b) A santi cação e edi cação dos éis 1. Alimenta nossa fé autêntica e viva. a) Seu m peculiar é dar ao mesmo texto (os santos ensinamentos) uma e cácia maior. b) “Para que por este meio os éis sejam mais estimulados à devoção e se disponham a apropriar-se dos frutos da graça que correspondem à celebração dos santos mistérios” (Pio , Motu proprio de 22 de novembro de 1903). c) Santo Agostinho fala sobre os cânticos e hinos sagrados: “Aquelas vozes entravam-me vivissimamente pelos ouvidos, e por meio delas as suas verdades penetravam a mente” (Con ssões). d) O canto é um meio de formação popular, pois os elementos sensíveis servem para conduzir a alma às coisas invisíveis e espirituais.

2. Move-nos para a oração. a) O canto litúrgico é acima de tudo oração, e “a maior beleza da oração é o canto”, diz o Cardeal Gomá. b) A melodia está ali somente para dar maior realce, expressividade, calor e unção ao que se pede. c) Por isso devemos penetrar-nos pelo espírito da liturgia, harmonizar-nos com sua vibração interior. Orar com o coração. Saborear e viver aquilo que cantamos. 3. É o esplendor da religião. a) Os lábios que cantam a Deus são a expressão mais ardente e viva do afeto pelo Senhor. b) O canto é essencial para a nossa liturgia, e um meio efetivo de formação cristã e de vida espiritual. c) Pois dá maior entonação espiritual ao que se reza, para que chegue ao coração. ii. Suas qualidades a) Santidade 1. Música santa, que leva para Deus e para as coisas de Deus. a) Como a Igreja, a Esposa do Cordeiro, santa, pura e sem mancha. b) Santa, por seu objeto e das almas.

m: a glória de Deus, a santi cação

c) Pelo lugar onde é executada.

2. Porque Deus, a quem se dirige todo louvor, petição, impetração e ação de graças, é três vezes santo. 3. Encerra um rico conteúdo espiritual, sobrenatural e cristão. a) Nas palavras reveladas; nas palavras escritas e cantadas por santos. b) Nas palavras que movem e excitam à oração, piedade, amor, abnegação, sacrifício e caridade. b) Beleza de formas 1. Na música sacra, o ritmo e o colorido do pensamento, a beleza e a profundidade das palavras, escorrem como em seu próprio molde. a) A beleza da melodia é como uma alavanca que eleva os corações até as coisas mais elevadas e nobres. b) A doçura e a suavidade do canto movem à devoção. 2. Sobre o canto litúrgico, São Bernardo diz que ele deve ser “cheio de gravidade, sem ser mole nem rústico, suave sem ligeireza, que só agrade ao ouvido para mover o coração”. a) Qualidades que o canto gregoriano reúne em grau máximo. b) Canto sem rigidez e aspereza. Cheio de majestade e grandeza. 3. Pois nada in ui tanto nos ânimos, para o bem ou para o mal, como as diferentes maneiras de cantar. a) Deus, suprema beleza, merece a beleza de um belo cântico. b) Uma bela voz que canta para Deus, porque vive d’Ele. Que não procura a arte pela arte, mas a eleva a uma ordem divina, sobrenatural.

c) Universalidade 1. Através dos tempos, das idades e países. Como a Igreja Católica. a) Universalidade, que ao mesmo tempo dá unidade ao louvor solene que se tributa ao Senhor desde todos os con ns da terra. b) Que põe em união de ideais e aspirações todas as almas que o amam. c) Tal como vemos no Salmo 108: “Quero louvar-te entre os povos, ó ! E cantar-te salmos entre as nações” (v. 3). 2. Canta a hierarquia. Canta o povo simples. Por isso o gregoriano é simples, sóbrio e espontâneo, como as formas populares do canto. 3. Em todas as ocasiões e necessidades. Expressando a alegria de nossas almas, a tristeza, o temor, o abandono em Deus, o mútuo amor entre os éis. a) Nos dias de júbilo, bem como nos dias de dor e penitência. b) Nos momentos solenes do sacrifício, nas bênçãos e procissões; tanto no aleluia triunfante, como perante os despojos mortais do cristão. c) Com os Salmos, ladainhas, Evangelhos, hinos, profecias, etc. Conclusão 1. Meditemos aquilo que cantamos. Que os lábios cantem o que o coração sente. 2. Juntamente conosco ora, reza e canta toda a Igreja; com e por meio de nós.

3. Amemos o canto gregoriano, o mais popular, o que melhor ajuda a rezar, o que infunde na alma a verdadeira paz e serenidade. 4. Dirijamo-nos com alegria à Missa cantada, “que goza de particular dignidade” (Pio ) e que deve servir para expressar a Deus, cantando, nosso desejo de louvá-lo, torná-lo propício, darlhes graças e impetrar suas bênçãos.

19. A liturgia e a pedagogia 105. Está na moda a palavra “pedagogia”: ela se estende a tudo que esteja relacionado à formação do homem. Multiplicam-se as escolas, os ateneus, as academias, os centros de estudo... É preciso formar sábios! Mas ainda é pouco. O homem tem maiores aspirações. Deus o elevou a uma vida sobrenatural que também é preciso educar. A liturgia realiza esplendidamente esta pedagogia. i. A liturgia, escola de educação cristã a) A liturgia instrui 1. A instrução pode ser realizada de duas formas: a) Com a palavra viva, que explica e esclarece a verdade. b) Com os fatos, que traduzem a verdade em ação. 2. Ambos os sistemas se fundem na liturgia.

a) As verdades são enunciadas em orações ou cânticos, expressas em forma concreta e dramática nos ritos e cerimônias. b) É, pois, pensamento e ação, escola teórico-prática das verdades cristãs. b) A liturgia educa 1. Não é somente instrução. a) Um homem instruído, até mesmo um homem sábio, pode ser ruim e malvado. b) Educação é a elevação integral da vida humana. Homem educado, homem perfeito. 2. É educação. a) A liturgia é culto. “Culto” e “educação” são termos correlatos. Ao se enaltecer o culto, eleva-se o homem. b) Quanto mais se enaltece a Deus, mais o homem aperfeiçoa a si mesmo. c) Nas verdades do cristianismo 1. Floresce no dogma. a) Não é criação da fantasia nem dramatização do sentimento religioso. b) Mas a concretização das verdades dogmáticas — a base da religião cristã — em atos de religião e culto. 2. Lex credendi statuit legem suplicandi (A norma de crer estabeleceu a norma de orar).

a) Os princípios dogmáticos deram vida à liturgia. b) A verdade está destinada a mover a inteligência e a vontade. c) O dogma aceito e crido não deve permanecer no especulativo, mas assumir forma e se concretizar em atos. ii. As verdades que a liturgia ensina a) Deus 1. Uno e trino. A Trindade aparece em toda ação litúrgica. Somos lembrados dela em quase todos os domingos, especialmente os que se seguem a Pentecostes. 2. O Verbo encarnado. Encarnação, nascimento, paixão, morte e ressurreição aparecem desde o Advento até Pentecostes. E durante todo o ciclo litúrgico Ele se apresenta em sua vida de salvador e em sua atividade redentora. 3. A graça. a) A administração dos sacramentos nos inicia na vida espiritual. b) Seu simbolismo serve para aumentar nos éis o senso do divino na atmosfera do sobrenatural em que deve viver a alma cristã. b) O homem 1. A Virgem e os santos. a) Eles nos ensinam e estimulam à união com a Igreja triunfante. b) O poder e a e cácia de seu patrocínio. c) Escola e caz e persuasiva de perfeição.

2. Sufrágio pelos defuntos. a) Fazem com que nos sintamos peregrinos sobre a terra. b) Convite a meditar sobre o além-túmulo. c) Aviso e convite à oração de sufrágio — impulso nobre do coração e dever de caridade cristã. c) As coisas 1. Procissões: a rmação e manifestação do sobrenatural. 2. Toque dos sinos: a voz do espírito que chama os homens a dar a Deus o culto devido. 3. Bênçãos litúrgicas: a) Imploram-se as graças de Deus sobre o homem e as coisas (animais, frutos do campo...). b) Recordam-nos que a vida do homem e do mundo está subordinada à ordem sobrenatural. O homem sempre necessita de Deus, de suas graças, de sua bondade doadora de bens. “Sem mim nada podeis fazer” (Jo 15, 5). 4. No culto, todas as coisas possuem seu simbolismo, que convém compreender e viver com a Igreja. iii. E cácia destas verdades a) A graça santi cante 1. Na teoria. A força do mistério. a) Aquele que assiste a estes atos coloca-se em contato com esta força sobrenatural e acaba in uenciado por ela, que aperfeiçoa o homem em seu próprio ser.

b) Portanto, o ensino traz uma força sobrenatural. Deus está nele. 1º — Através de sua graça: natureza divina. 2º — Através de seus mistérios: Cristo em seus mistérios. 3º — Através de sua revelação: palavra divina. 2. Na prática. A graça tem uma força peculiar. a) Ilumina a mente, move a vontade e in ama o coração. b) Uma prova: muitas vezes, nos atos litúrgicos, encontra-se a solução para certas crises religiosas; as pessoas se tornam melhores (Paul Claudel). c) Pela graça, não só se apresentam à mente verdades especulativas, mas também a vontade, como princípio de ação e vida. É o Espírito Santo que educa e transforma, como em Pentecostes. b) O simbolismo 1. Nihil est in intellectu, nisi sit prius in sensu (Nada existe no entendimento que não tenha passado antes pelos sentidos). a) O homem recebe pelos sentidos aquilo que é objeto de estudo e ciência. b) Procede do material ao espiritual, do visível ao invisível, do simbólico ao real. 2. Este processo segue a liturgia. a) A verdade não só é anunciada, mas vivida. As cerimônias são a guração mística da graça que elas proporcionam. b) Deste fato nasce sua e cácia educativa. Reveste a verdade de todo embelezamento, que conquista forçosamente a imaginação, in ama o coração e aviva todas as potências.

c) O desenvolvimento cíclico 1. A cada ano, a Igreja nos apresenta toda a doutrina cristã. 2. Não é completa: a) Porque o tempo anual não é su ciente para todas as verdades. b) Os cristãos não assistem a todas as funções. 3. Mas é su ciente. a) Pelas verdades: são as fundamentais. b) Pelo modo. A insistência e a repetição corrigem e aumentam os conhecimentos do cristão. Conclusão 1. A liturgia é fonte de luz para os que subordinam sua meditação e leitura espiritual aos mistérios que se celebram. 2. A cada ano a fé se esclarece, a rma seu sentido teológico. A oração a traz de mãos dadas com a ciência. 3. Os mistérios sempre serão mistérios, mas seu brilho será tão vivo, que o coração se sentirá embelezado. E eles lhe darão uma idéia do gozo que sua contemplação produzirá na outra vida. 4. Isto é para ti, sacerdote: a) Deves preparar-te, impregnando-te do espírito, do sentido da liturgia, e, por meio dela, ser colocado em contato e identi cado com o Sumo Sacerdote Jesus Cristo. b) Aumenta teu zelo em explicar a liturgia, para que os cristãos convivam com o sacerdote, sintam com a Igreja e, de modo unânime, pratiquem a liturgia com a Igreja e o sacerdote.

20. A liturgia e a piedade 106. Jesus Cristo ressuscitado apareceu aos dois discípulos que caminhavam para Emaús, tristes e decepcionados com o trágico m de seu Mestre, e lhes disse que era preciso que o Messias padecesse para entrar em sua glória. E, começando por Moisés e por todos os profetas, foi-lhes mostrando tudo quanto se referia a Ele nas Escrituras. “Fica conosco”, eles lhe pediram. E, pondo-se à mesa com eles, tomou o pão, abençoou-o, partiu-o e lhos deu. Então, o reconheceram, abriram-se os seus olhos e disseram: “Não ardia o nosso coração enquanto Ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?” (Lc 24, 32). A Igreja, através de sua liturgia, vai-nos esclarecendo e manifestando, um a um, os mistérios de Deus e de nossa salvação. É assim que a liturgia fará arder nossos corações de amor e adoração ao Pai, estimulando a piedade em nossas almas. i. Noção de liturgia e piedade a) Que é a liturgia? 1. Desde toda a eternidade, o Verbo canta a glória do Pai. Feito homem, continua glori cando in nitamente ao Pai. Seu corpo é como o templo em que o Verbo continua recitando o cântico de glória e louvor ao Pai (Marmion). 2. Jesus é inseparável da Igreja, e assim, antes de partir para o céu, legou a ela os seus tesouros, méritos, satisfações e sangue de in nito valor.

3. Deste modo, a liturgia é a continuação, na terra, do louvor do Verbo. É o culto o cial e público da Igreja. b) Que é a piedade? 1. Como sinônimo de devoção, é uma entrega pronta e lial às coisas de Deus. 2. Como virtude, ela nos inclina a servir e honrar nossos pais, a pátria... E de um modo mais excelente a Deus, como Pai. 3. Como dom do Espírito Santo, é um hábito sobrenatural que aperfeiçoa a virtude da religião e gera em nós verdadeiros sentimentos liais para com Deus, nosso Pai bom e amável. 4. São Paulo escrevia: “Exercita-te na piedade, porque o exercício corporal é de pouca utilidade; mas a piedade é útil para tudo e tem a promessa da vida presente e da futura” (1Tm 4, 7–8). ii. In uência mútua Se cultivar a piedade é uma tarefa fundamental de todo cristão, e se o cristão precisa unir-se a Deus, irá encontrar na liturgia o meio mais importante e seguro para tal. a) A liturgia, fonte inesgotável de piedade 1. Porque é um exercício de constante piedade em relação a Deus Pai. a) Pois a liturgia, em sua essência, se reduz ao culto da Igreja e à prática da virtude da religião. b) Continua a glori cação do Pai, missão eterna do Verbo, que, ao se encarnar, tanto se esforçou para que os homens honrassem o Pai em espírito e verdade. c) A liturgia da Igreja aumenta a piedade dos éis:

1º — Que se vêem doce e suavemente atraídos por seus afetos liais. 2º — A Igreja canta, ora, adora, dá graças. Infunde con ança e entusiasmo para que seus lhos glori quem alegremente ao Pai. 3º — A assistência passiva aos ofícios litúrgicos é uma contradição. 2. Porque nos põe em contato íntimo com os mistérios de Jesus Cristo: a) A força santi cadora da Igreja provém dos méritos de Cristo. b) A liturgia, renovando um a um os mistérios de Jesus, estabelece em nós um contato espiritual, do qual uem como ondas de virtude santi cadora para nossa alma. Revividos esses mistérios em nós, vamos recebendo continuamente aquela força que se desprendia do corpo de Cristo e curava a todos (Lc 6, 19). c) Que efeitos admiráveis produziu e continua produzindo o contato vivo com Cristo! 1º — Foi maravilhosa a transformação veri cada nos apóstolos. 2º — “Não ardia o nosso coração enquanto Ele nos falava e nos explicava as Escrituras?” (Lc 24, 32). 3º — “Quem me tocou? [...] Alguém me tocou, porque percebi sair de mim uma força” (Lc 8, 45). 4º — Efeitos semelhantes produz no cristão o contato vivo com Cristo através da liturgia. Nossa piedade irá arder e nosso coração se in amará a seu contato, diante de seus exemplos e palavras. 3. Porque todas as formas de piedade encontram na liturgia a expressão adequada e perfeita.

a) Onde encontrar acentos mais amorosos e sempre novos? b) A liturgia exalta e louva o Deus trino como convém, com as palavras que o Espírito Santo nos ensinou. c) Todos nós nos encontramos nela, formando perfeita unidade de fé, amor e piedade. b) A liturgia vivi ca em nós a piedade íntima 1. Sem uma piedade profunda, a liturgia poderia ser para nós: a) Um prazer estético, uma arte que encheria certos espíritos de entusiasmo, pois é possível ter o espírito aberto à beleza e à fascinação da arte, e fechado ao in uxo divino. b) Um conjunto de cerimônias ocas, frias e vazias. c) Um conhecimento histórico dos ritos, que não penetra em seu simbolismo dogmático e religioso. 2. Porém, se uma piedade íntima inunda nosso espírito, então a liturgia será uma autêntica homenagem de fé, esperança e caridade para com Deus. 3. A piedade irá incorporar-nos realmente à liturgia da Igreja e fará com que seja vida em nós. Através dela, adoraremos a Deus em espírito e verdade. iii. E cácia da piedade litúrgica a) Tem a garantia de Cristo 1. Jesus assegurou que, se dois ou três se reúnem em seu nome, Ele estará no meio deles (cf. Mt 18, 20). Com maior razão, Ele

estará presente na oração da Igreja, e sua presença é garantia de graça divina. 2. “Tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, Ele vo-lo concederá” (Jo 14, 13). A oração litúrgica assina todas as suas petições por Jesus Cristo... 3. “Não sabemos pedir o que nos convém, mas o Espírito Santo intercede por nós com gemidos inefáveis” (Rm 8, 26). E sua palavra divina põe em nossos lábios acentos verdadeiramente liais. b) Tem a e cácia da Igreja 1. A oração litúrgica é a súplica o cial da Igreja, pela qual ela continua realizando o programa de glori car o Pai na terra. 2. E é e caz e poderosa diante de seu Esposo. Como é bela, santa, imaculada e agradável a voz da Igreja para Cristo! 3. Como poderá o Pai, vendo na Igreja a obra suprema do amor de seu Filho e a continuação de sua divina missão, recusar suas súplicas e orações? c) É excelente em si mesma 1. Está cheia de luz e de graça, como os mistérios em que ela se alicerça e alimenta. 2. Na medida em que penetramos o espírito da liturgia, nossa piedade é mais viva, racional e universal, pois as grandes verdades do cristianismo geram a verdadeira piedade, fruto de sólidas convicções. 3. É uma piedade autêntica e santamente severa. Examinai a sobriedade e simplicidade de suas orações, que encerram pensamentos tão belos e sublimes, tanto na alegria como na dor.

Conclusão 1. Participemos com verdadeira piedade nos atos litúrgicos, e assim realizaremos um culto autêntico e vivo ao nosso Pai celestial. 2. Na liturgia encontraremos a fonte inesgotável de novas energias, que sempre enraizarão mais a nossa piedade.

21. A liturgia e as devoções privadas 107. O Cardeal Gomá conta a respeito de um sacerdote que, ao assumir sua nova paróquia, explicava a seu bispo: “Existem ali muitas devoções, terei que trabalhar muito para restabelecer a religião”. A frase é exagerada e irônica, mas possui muito de verdade. Contudo, a Igreja tem aprovado e abençoado numerosas devoções privadas, distintas da oração litúrgica. O Concílio Vaticano insistiu nesse assunto (cf. Constituição sobre a Liturgia, nº 11–12). Que relação essas devoções privadas mantêm com a oração litúrgica, e em que medida umas e outras devem alimentar nossa vida cristã? i. A liturgia, devoção das devoções a) Devoção

É

1. “É a prontidão da vontade para se dedicar às coisas que pertencem ao serviço de Deus” (Suma teológica, a- ae, q. 82, a. 1). 2. Ela exige grande caridade, e ao mesmo tempo esta cresce com aquela (Ibid., a- ae, q. 82, a. 2). 3. Dada a debilidade de nossa mente, nossa devoção deve ser ajudada por coisas sensíveis que conhecemos para chegar às realidades divinas. Mas a devoção deve terminar sempre em Deus, e não nas criaturas. b) Devoções 1. São coisas sensíveis que servem de expressão para a devoção, e tendem a aumentá-la. São fruto e exigência da caridade, que tende a se manifestar. 2. O caráter eminentemente social do cristianismo não diminui a personalidade religiosa individual. 3. Devem ser usadas com inteligência e prudência, pois, ao se apoderarem de nosso lado mais subjetivo e pessoal, podem ou fazer nossa alma vibrar por Deus, ou — se desviadas — manternos com nossos defeitos inatos em uma espiritualidade sentimental e vazia. c) Liturgia 1. É a melhor das devoções, pois se refere diretamente a Deus, à Trindade beatíssima. 2. Nela, cada devoção ocupa seu lugar, sua hora e sua medida:

a) Os mistérios de Cristo. Uma vez renovados e contemplados em torno de sua presença eucarística no sacrário, são sua estrutura orgânica. b) As festas da Virgem Maria, associada intimamente à vida de Cristo, como nossa Mãe e Co-redentora. c) Todos os santos, venerados coletivamente e em particular: São José, os apóstolos, São João Batista, os mártires, os confessores, as virgens, as viúvas... 3. As devoções privadas obtêm sua máxima e cácia quando inspiradas e dirigidas pela liturgia. ii. Devoções à margem da liturgia a) Fora da oração litúrgica 1. Provisoriamente. a) São necessárias quando e onde a vida litúrgica é inexistente (por exemplo, nos povoados que carecem de pároco). b) São necessárias, dadas as di culdades que a liturgia apresenta, enquanto se adquire certa educação que permita compreendê-la. 2. Habitualmente. a) Seria privar-se voluntariamente do alimento substancial da vida cristã. b) Seria expor-se a viver uma vida cristã sentimental e inconsistente. c) Seria renunciar a beber nas fontes das mais profundas e duradouras alegrias. b) Durante a oração litúrgica

1. Supõe um grande desconhecimento do valor da oração da Igreja e do sentido social do cristianismo. Durante a Missa não se deve praticar nenhuma outra devoção. 2. Perdem-se os benefícios sobrenaturais da participação na oração comunitária: “Porque onde dois ou três se acharem reunidos em meu nome, ali estarei eu no meio deles” (Mt 18, 20). 3. Trazem uma e cácia mínima, na medida em que se prefere o individualismo à forte personalidade que o ato de rezar como família de Deus nos traz. iii. Devoções em torno da liturgia a) Como criadoras de seu clima 1. O caráter eminentemente social do cristianismo não diminui a personalidade religiosa individual. 2. As devoções espontâneas abrem o desejo da vida litúrgica, onde se obtém o alimento substancial. 3. Podem ser uma preparação prévia para a oração litúrgica, tendendo para esta como m. b) Como fruto de seu vigor 1. Inspiradas na liturgia. a) Recebendo dela o seu objeto de devoção: a Eucaristia, a humanidade de Cristo, a Mãe de Deus, os santos... b) Recebendo dela seu espírito e sua ordenação teológica. 1º — A humanidade de Cristo, pois não outro meio que mais excite nosso amor teológica, a- ae, q. 83, a. 2, ad 3). 2º — Os Maria, Mãe de Deus e nossa Co-redentora.

podemos encontrar e devoção (Suma mistérios da Virgem 3º — As festas dos

santos: São José, os apóstolos, São João Batista, os mártires, os confessores, as virgens, as viúvas... c) Tal inspiração litúrgica é o melhor sinal da legitimidade das devoções e a garantia de sua e cácia sobrenatural: “É necessário que o espírito da sagrada liturgia in ua bene camente sobre elas” (Pio , Mediator Dei). 1º — A devoção à Santa Cruz, que se faz presente nos lares e nos peitos cristãos, à Via Sacra, à coroa de espinhos, às sextas-feiras de cada semana, ao sangue e às chagas de Cristo, etc., têm sua inspiração e devem alimentar-se continuamente na Semana Santa, ou Semana Maior, da liturgia. 2º — As exposições, procissões e bênçãos eucarísticas, a prática das quarenta horas, visitas ao Santíssimo Sacramento..., devem nutrir-se com a riqueza que a liturgia de Corpus Christi e da Quinta-feira Santa oferece em hinos, fórmulas, símbolos e ritos. 3º — As devoções ao Sagrado Coração, à Virgem Maria e aos santos tiveram e devem ter motivos de sobra para inspiração na sagrada liturgia, e delicioso alimento para sua verdadeira canalização. Por exemplo: a Salve-Rainha e a Ave-Maria. Os mistérios marianos se derramaram no Santo Rosário, o breviário do povo, sendo por isso mesmo uma devoção de suma garantia (João , Paulo ). 2. Subsidiárias, nunca dominadoras, sendo seu digno complemento, pois as orações litúrgicas “não só têm especial dignidade, mas possuem também uma força singular e uma e cácia sacramental para alimentar a vida cristã, que não podem ser adequadamente compensadas por piedosas práticas de devoção” (Pio ). 3. Assimiladoras da vida litúrgica, dada a extensão e a riqueza desta última.

c) Como complemento subjetivo de sua sobriedade 1. Para as almas não-acostumadas a viver somente da liturgia. 2. A liturgia sempre deixa ampla margem às expansões pessoais dos indivíduos com Deus, segundo suas próprias inclinações. 3. Em grupos que não são precisamente de caráter religioso e que estão presididos por um patrono especial, modelo das virtudes concretas e particulares do grupo em questão. Conclusão 1. “A participação ativa nos sagrados mistérios e na oração pública e solene da Igreja é a primeira e indispensável fonte em que os éis podem obter o verdadeiro espírito cristão” (São Pio , : 36, p. 331). 2. Aquele que vive na escola da liturgia adquirirá uma segunda natureza, e espontaneamente serão poucas suas devoções privadas, mas muita a sua devoção e caridade. 3. Temos de alimentar nossa devoção privada com a seiva da piedade da Igreja, fonte riquíssima onde cada devoção tem sua inspiração, seu canal, seu lugar e sua hora.

TERCEIRA PARTE | VIDA SACRAMENTAL 108. O leitor logo compreenderá que foi somente por razões pedagógicas e pela inevitável necessidade de dizer as coisas uma depois da outra que estabelecemos uma aparente separação entre

a vida eclesial e a vida sacramental, assim como a estabeleceremos depois entre ambas e os restantes aspectos da vida cristã: teologal, familiar e social. Todas estas divisões reúnem aspectos parciais de uma única e idêntica realidade que deverá ser vivida simultânea e conjuntamente: a vida cristã. Mas razões pedagógicas e a impossibilidade material de dizer todas as coisas ao mesmo tempo nos obrigam — repetimos — a estudar em separado aquilo que, na prática e na vida real, forma um único conjunto harmonicamente homogêneo. Como já vimos em seu lugar correspondente, o ideal supremo da vida cristã consiste essencialmente em nossa plena con guração com Cristo. Mas os grandes meios que Cristo nos deixou instituídos neste mundo para nos unirmos e con gurarmos plenamente com Ele são, precisamente, os sacramentos, que Ele mesmo instituiu e cuja administração através dos séculos con ou à sua Igreja, constituída pelo próprio Cristo como sacramento universal de salvação.159 Os sacramentos são, pois, para o cristão, os meios primordiais e mais importantes para viver sua vida cristã e eclesial. Pois não devemos nos esquecer que na vida cristã tudo é eclesial, tudo é comum e coletivo, sem prejuízo do pessoal, que subsiste e dá sentido ao comunitário. Ouçamos o Pe. Philipon expondo admiravelmente estas idéias:160 “Para mim, a vida é Cristo”, dizia São Paulo (Fl 1, 21). “Com efeito, Deus nos predestinou à adoção como lhos seus por Jesus Cristo” (Ef 1, 5). Devemos viver, amar, sofrer e morrer em Cristo. Através de todos os acontecimentos deste mundo, Deus trabalha para “con gurar-nos com seu Filho único” (Rm 8,29). A santidade cristã é uma identi cação com Cristo. Ora, os grandes meios queridos por Deus para nos comunicar esta vida “em Cristo” são os sacramentos. Com razão sempre aprouve à tradição cristã considerá-los como canais da graça a brotar do lado transpassado de Jesus. Por eles circulam e chegam até nós todos os benefícios da redenção, adquiridos globalmente sobre a Cruz. Deus instituiu um modo novo, “supra-histórico e espacial”, para perpetuar no meio de nós a

realidade do sacrifício redentor e a ação pessoal do Salvador em cada um de nós, sobre cada uma de nossas almas. Através dos ritos simbólicos da Igreja, os sacramentos perpetuam os “gestos de Cristo”. Graças a esta ordem sacramental, o Cristo histórico, localizado no espaço e no tempo, vem a ser o Cristo de todas as nações. Jesus está sempre presente entre nós. O Cruci cado do Gólgota chama a si todas as gerações. Cabe a nós transformar nossa existência em uma ardente busca de Cristo. O tempo de nossa vida terrena que nos foi dado constitui a hora pessoal de nossa redenção. Cada um recebe da in nita plenitude a graça capital de Cristo, segundo o grau de seu próprio fervor. Mas, acima e além dos indivíduos, é todo o Corpo místico de Cristo que se forma progressivamente através dos séculos pela economia dos sacramentos. Pode ser que não se tenha deixado su cientemente claro este aspecto comunitário da vida sacramental na Igreja. Na realidade, não existe um único sacramento cujos efeitos não venham a se expandir, ao menos indiretamente, sobre todo o conjunto do Corpo místico de Cristo. Nesta hora em que os valores comunitários atraem tão fortemente a atenção dos homens, e em que, tanto no campo do pensamento religioso, da arte, da civilização, como também no dos interesses econômicos, todos os problemas se desdobram sobre um plano internacional, a Igreja, o Corpo místico de Cristo, acostumada a ver tudo na amplitude universal do plano da redenção, entra sem di culdade nas mais vastas perspectivas da solidariedade mundial. Todos os seus dogmas apresentam repercussões sociais. O dogma dos sacramentos, em particular, coloca diante de nós os mais poderosos meios de desenvolvimento e de coesão do Corpo místico de Cristo.

E um pouco mais adiante, depois de uma rápida passagem através de todos os sacramentos, o insigne dominicano ainda acrescenta: Na economia dos sacramentos, tudo reveste o sentido de uma indissociável solidariedade de todos os membros do Corpo místico de Cristo. Deus só contempla os homens no conjunto do plano da redenção. Jesus só vê cada uma de nossas almas através de sua Igreja, nas perspectivas da Cidade de Deus. Seu olhar de Cristo descobre no mundo sacramental como um prolongamento, em sua Igreja, de todos os benefícios da encarnação redentora. O Batismo lhe proporciona os membros de sua Igreja; a Con rmação designa seus defensores; a Eucaristia sustenta-os em suas lutas cotidianas; a Penitência lhes devolve a plena vitalidade depois das quedas do pecado; o Matrimônio multiplica os membros deste imenso corpo social, que se desenvolve lentamente no decorrer dos séculos da história das gerações humanas; o Sacerdócio mantém em sua Igreja da terra a ordem e a unidade; e depois, quando chega para cada um de nós a hora de abandonar este mundo, o Cristo do Batismo aparece de novo diante da alma cristã para prepará-la, por uma Unção suprema, para entrar na cidade eterna de Deus. Longe de acabar com a morte, a pertença à comunidade cristã se perpetua no céu: a Igreja militante se expande em Igreja triunfante, na unidade do “Cristo total”.

Vamos, pois, estudar com a merecida atenção este aspecto essencial e interessantíssimo de nossa vida cristã: nossa vida

sacramental.

CAPÍTULO I | Espiritualidade batismal espiritualidade batismal constitui a base e o ponto de partida de toda a espiritualidade cristã, já que signi ca e realiza o nascimento espiritual do cristão para a vida da graça. 109. O nascimento espiritual do cristão para a vida da graça se veri ca, de fato, pelo sacramento do Batismo, que por isso recebe em teologia o nome de sacramento da regeneração. Também se chama, com muita propriedade, de sacramento da adoção, porque nos infunde a graça santi cante, que nos torna lhos adotivos de Deus, e de sacramento da iniciação cristã, porque nele começa o processo de nossa vida cristã, que deverá desenvolver-se progressivamente até chegar à idade perfeita segundo a medida de nossa predestinação particular em Cristo (Ef 4, 7.13). Exporemos a natureza do Batismo, seus efeitos, as exigências que traz consigo e a maneira de renová-lo espiritualmente.161

1. Natureza do Batismo 110. É de fé que Cristo instituiu por si mesmo o sacramento do Batismo, como também os outros seis (D. 844).

Nominalmente, a palavra “batismo” vem do vocábulo grego βαπτισμός, derivado do verbo βαπτίζω, que signi ca voltar a submergir. É muitíssimo apropriado para expressar a forma com que se administra este sacramento (por imersão ou ablução com água), e o efeito principal que produz na alma: lavá-la ou puri cála de seus pecados, infundindo-lhe a graça. Em seu signi cado real, o Batismo pode ser de nido como o sacramento da regeneração espiritual mediante a ablução com água e a invocação expressa das três Pessoas Divinas da Santíssima Trindade. Nesta de nição estão reunidos todos os elementos essenciais: ) . É o gênero próximo da de nição, comum a todos os demais sacramentos. O gênero remoto de todos eles consiste em ser sinais da graça que conferem. ) . É a diferença especí ca, que distingue o Batismo de todos os demais sacramentos. Essa regeneração espiritual traz consigo muitas coisas, como veremos a seguir ao falar dos efeitos do Batismo. ) . É a matéria própria do Batismo enquanto sacramento. Sem ela, podem ocorrer os chamados batismo de sangue (o martírio sofrido por Cristo) e o de desejo (a caridade ou contrição perfeita em um pecador nãobatizado), que, embora também con ram a graça e sejam su cientes para a salvação, não são sacramentos e, por isso mesmo, não conferem o caráter sacramental. )

. É a forma própria do sacramento do Batismo, indispensável para sua validade. A invocação das Pessoas Divinas deve ser expressa (“Eu te batizo em nome do Pai, e do

Filho, e do Espírito Santo”), sem que seja su ciente batizar “em nome da Santíssima Trindade” e, menos ainda, “em nome de Cristo”.162

2. Efeitos que produz 111. O sacramento do Batismo produz no batizado uma série de maravilhas divinas. As principais são: a) Infunde a graça regenerativa, juntamente com as virtudes infusas e os dons do Espírito Santo. b) Transforma o batizado em templo vivo da Santíssima Trindade. c) Torna-o membro vivo de Jesus Cristo. d) Imprime o caráter cristão. e) Apaga o pecado original e, se existirem, os atuais. f) Remite toda a pena devida pelos pecados. Vamos examinar, um por um, todos estes admiráveis efeitos. a) Infunde a graça regenerativa 112. O sacramento do Batismo produz todos os seus efeitos simultaneamente, mas existe entre eles certa ordem de natureza e de excelência. O mais importante, aquele que é a base de todos os demais, é a infusão da graça regenerativa.

Como se sabe, a graça santi cante é una em espécie, átoma ou indivisível. Mas cada sacramento a confere com uma modalidade intrínseca especial. A modalidade própria da graça do Batismo é regenerar-nos em Cristo, ou seja, gerar-nos para a vida sobrenatural e incorporar-nos a Cristo como membros vivos de seu Corpo místico.163 “O Batismo”, escreve a este propósito o Pe. Philipon164 apresenta-se antes de tudo como uma regeneração. “Ninguém pode entrar no reino de Deus se não renascer do Alto”, ensinou Jesus (Jo 3, 3). É preciso renascer para a vida da graça “pelo poder da água e do Espírito Santo” (Jo 3, 5). O simbolismo batismal expressa muito bem esta regeneração das almas em Cristo. O homem pecador é “submergido”, “lavado”, “batizado” no sangue redentor e na morte de Cristo. Sai do banho totalmente puro, regenerado, morto para o pecado, como Cristo, e ressuscitado com Ele para uma vida inteiramente divina. É preciso colocar este sacramento no quadro primitivo da liturgia pascal para avaliar até que ponto o Batismo faz de cada cristão um ressuscitado. Toda a nossa liturgia pascal é batismal. À luz da antiga liturgia era muito fácil para os novos batizados compreender que, nesse dia de Páscoa, iam participar da morte e da ressurreição do Salvador. Agradava a São Paulo recordar estes ensinamentos aos primeiros cristãos: “Fostes sepultados com Cristo no Batismo e ressuscitastes com Ele” (Cl 2, 12). “Ou ignorais que todos nós que fomos batizados em Cristo Jesus, fomos batizados para participar de sua morte? Com Ele fomos sepultados pelo Batismo, para participar de sua morte, para que, assim como Ele ressuscitou dentre os mortos para a glória do Pai, assim também nós vivamos uma vida nova” (Rm 6, 3–4). Pela graça do Batismo, o cristão é outro deus, caminhando sobre a terra como outro Cristo, o olhar xo na bem-aventurada e imutável Trindade, onde sua vida deve eternizar-se um dia na luz da glória. Será que re etimos su cientemente nestas realidades sobrenaturais depositadas em nós pela graça do Batismo? Quem suspeita que o menor pensamento de fé pertence ao mesmo plano que a visão beatí ca, de ordem divina e trinitária; que ele seja como o olhar pessoal do Verbo comunicado a um homem? Quem imagina que o menor ato de caridade nos incorpora ao próprio movimento do Amor eterno que une o Pai e o Filho no Espírito Santo? O menor átomo de graça nos eleva in nitamente acima de todo o universo.165 Se os sera ns não estivessem também divinizados, teriam inveja da alma revestida dessa natureza divina. Colocai no prato da balança um desses meninos esfarrapados que pululam em nossas grandes cidades: se essa criança está batizada e revestida da graça divina, para fazer o contrapeso de sua grandeza sobrenatural seria preciso lançar sobre o outro prato da balança todo o sangue de Cristo derramado por ela, o próprio Filho de Deus.

Juntamente com a graça santi cante, infundem-se na alma as virtudes infusas e os dons do Espírito Santo em forma de germe ou semente (cf. D. 799–800), que mais tarde deverão crescer e desenvolver-se até nos levarem à plena perfeição cristã segundo a medida de nossa predestinação em Cristo (Ef 4, 13). Esta é a primeira das grandes maravilhas que o Batismo opera em nós: regenerar-nos para a vida sobrenatural, comunicando-nos a graça da adoção — com as virtudes e os dons —, que nos faz entrar na própria família de Deus e nos constitui herdeiros de suas in nitas riquezas. Contudo, há uma realidade ainda mais sublime. As riquezas de Deus não são o próprio Deus, e a graça batismal nos entrega em posse o próprio Deus uno e trino, que se dignou manifestar-se a nós pela divina revelação. b) Transforma o batizado em templo vivo da Santíssima Trindade 113. A inabitação trinitária é inseparável da graça santi cante. A graça é como o trono onde toma assento a Trindade Beatíssima no mais profundo de nossa alma. Ouçamos o Pe. Philipon explicando admiravelmente, no local citado, esta assombrosa maravilha: A graça introduz a alma na própria ordem da vida trinitária, permitindo-lhe, com toda a verdade, participar das operações mais íntimas da Santíssima Trindade. A fé, o lumen gloriae acima de tudo, é uma participação do Verbo; a caridade, uma participação do Espírito Santo, e o Pai nos comunica esta graça da adoção, que nos estabelece na suprema dignidade de lhos de Deus. Em seu Cântico espiritual, São João da Cruz nos leva a entrever a sublimidade de uma vida assim divinizada na alma que atingiu os cumes da união transformante, que constitui a plena expressão da graça do Batismo aqui na terra. Ele a descreve participando de certo modo do próprio ato da geração do Verbo pelo Pai, e no ato beatí co que os une um ao outro em um abraço indissolúvel, na espiração de um mesmo Amor... Quanto mais as riquezas do Batismo são contempladas à luz da fé, mais nos maravilhamos com as liberalidades divinas. E não se acredite que essa graça inicial seja passageira. A Trindade de nosso Batismo acompanha-nos todos os dias de nossa vida. O Pai está sempre ali, e a sua providência vela dia e noite sobre seus lhos de adoção. O Verbo está sempre ali para guardá-los de todo mal. O Espírito Santo está sempre ali, conduzindo-nos através de todos os sacrifícios da terra, até nosso destino eterno.

A Trindade inteira permanece debruçada sobre nós para nos cobrir com sua proteção todo-poderosa. Talvez nos tenhamos acostumado demais a considerar apenas os esforços pessoais da alma que tende à perfeição. Sem dúvida alguma, esta colaboração é necessária, mas não se deve esquecer as incessantes moções do Espírito e a ação primordial de Deus: “Se alguém me ama e guarda minha palavra”, dizia Jesus, “meu Pai o amará, e viremos a ele e nele estabeleceremos a nossa morada” (Jo 14, 23). É claro que o Verbo não vem sozinho à alma. E como o Pai e o Filho poderiam separar-se de seu Espírito de Amor? Se a Trindade inteira habita na alma do cristão, não é para permanecer inativa: “Meu Pai trabalha sempre”, disse Jesus (Jo 5, 17). Esta ação contínua da Trindade, que conserva o mundo em seu ser, opera mais profundamente ainda no mundo sobrenatural das almas. O nascimento da vida divina, que procede do Pai no Filho e mantém os dois unidos no Espírito Santo, se reproduz externamente por essas misteriosas missões divinas invisíveis, que transformam as almas à imagem da Trindade. Toda a nossa santidade consiste em nos deixarmos divinizar: Deus conduz a Deus... Quem poderia imaginar esta misteriosa e incessante ação da Trindade nas almas? Da Trindade provém todo o movimento da vida sobrenatural que anima o mundo dos espíritos puros e circula nas almas que pertencem a Cristo. Os anjos da Igreja triunfante comunicam-se com esta vida trinitária na visão do Verbo. Através das obscuridades da fé, a Igreja da terra participa desta mesma vida recebida no Batismo em nome da Trindade. Assim, na alma do batizado opera-se uma maravilhosa transformação. A graça da adoção a introduz na família das três Pessoas Divinas. Daí em diante, é nela que se desenvolverá sua verdadeira vida.

c) Torna-o membro vivo de Jesus Cristo 114. Como já dissemos, a graça santi cante, ao comunicar-nos a vida divina, nos faz templos vivos da Santíssima Trindade e membros vivos de Jesus Cristo. É o Batismo que realiza pela primeira vez nossa incorporação a Cristo como seus membros. Ouçamos de novo o Pe. Philipon:166 Se elementos puramente materiais, como a água do Batismo, são capazes, nas mãos de Deus, de se transformar em instrumentos da graça e fontes de vida, quanto mais a humanidade do Salvador, unida pessoalmente ao Verbo de Deus, pode divinizar nossas almas por seu contato redentor! Apesar de suas prerrogativas, a humanidade do Salvador não teria in uência sobre nós se não dispusesse da possibilidade de nos alcançar, a cada um de nós, por uma união real. Estes meios para nos alcançar são os sacramentos, e o Batismo tem por missão especial estabelecer esse primeiro contato do Salvador conosco. É muito importante repeti-lo: é Cristo quem batiza pessoalmente, é Ele que vem trazer-nos a vida da Trindade. Nossa fé precisa descobrir, através do ministro visível, o Cristo invisível que opera em nós. No exato momento em que Cristo se inclina do alto do céu sobre uma alma para batizá-la, Deus comunica a esta

humanidade do Salvador um poder que a eleva e a faz participar de sua ação divinizadora sobre as almas. Deus nos diviniza exclusivamente por meio de Cristo. Toda a nossa vida espiritual ca profundamente modi cada. Quando Deus escolhe seus instrumentos de ação, é sempre em vista de um m particular. Não sem um desígnio misterioso, a humanidade de Cristo é instrumento da Trindade. Deus marca em nossas almas a imagem de Cristo. Ele nos torna lhos por adoção, mas “à imagem de seu Filho único” (Rm 8, 29). Cristo se fez homem para que o homem se zesse Cristo. É fácil perceber as conseqüências incalculáveis desta verdade em toda a economia de nossa salvação. Nossa vida espiritual é uma vida divina em Cristo. Exegetas e teólogos têm destacado, sobretudo à luz de São Paulo, este caráter inseparável da união com Cristo que envolve a vida, a morte e a glória do cristão. Ser batizado é “morrer para o pecado” com Cristo, “ser sepultado com Ele” para “ressuscitar para a vida de Deus neste Cristo, que já não morre mais”, e “sentar-se com Ele no mais alto dos céus”. É isto que São Paulo chama de “revestir-se de Cristo pelo Batismo” (Gl 3, 27). Sabemos até onde isto leva: o cristão “cravado na cruz com Cristo” (Gl 2, 19). Ele participa dos mesmos sentimentos de Cristo. Para o cristão, “morrer é adormecer n’Ele”, como magni camente disse São Paulo (1Cor 15, 18). En m, depois de vinte séculos, os doutores e os santos repetem sem cessar a célebre fórmula que exprime com sublime concisão todo o ideal cristão: Minha vida é Cristo (Fl 1, 21). Não se pode ir mais longe no mistério de nossa identi cação com Ele.

d) Imprime o caráter cristão 115. Como se sabe, três dos sacramentos instituídos por Cristo — o Batismo, a Con rmação e Ordem Sacerdotal — imprimem na alma uma marca inapagável, que recebe o nome de caráter (do grego καρακτήρ: selo, marca, sinal que distingue uma coisa de outra). Essa marca impressa na alma é de tal maneira indestrutível que permanecerá eternamente, seja no bem-aventurado, seja no condenado, como sinal distintivo de ter recebido o Batismo de Cristo. O caráter sacramental nos con gura com Cristo Sacerdote, dando-nos uma participação física e formal em seu próprio sacerdócio eterno.167 Esta participação no sacerdócio de Cristo se inicia com o simples caráter batismal, amplia-se ou aperfeiçoa-se com o da Con rmação, e chega à sua perfeição com o da Ordem Sagrada.

Daí se segue que os éis cristãos, mesmo os leigos ou seculares, estão adornados com certa misteriosa dignidade sacerdotal, embora em grau muito inferior e imperfeito em relação àqueles que receberam o sacramento da Ordem. Os simples éis não podem realizar as funções propriamente sacerdotais, principalmente as relativas ao Sacrifício Eucarístico e ao perdão dos pecados; mas são envolvidos por certo resplendor do sacerdócio de Cristo, não metaforicamente, mas em sentido próprio e real (cf. 1Pd 2, 9). Já falamos mais amplamente sobre isto em outro lugar (cf. nº 53–59). e) Apaga o pecado original e, se existirem, os atuais 116. O Concílio de Trento o de niu expressamente contra os protestantes (D. 792). É uma conseqüência necessária da infusão da graça, incompatível com o pecado. Quando se trata de uma criança que ainda não chegou à idade da razão, o Batismo lhe tira somente o pecado original, que é o único que ela tem. Mas, caso se trate de um adulto com uso da razão, além do pecado original o Batismo lhe tira ou apaga totalmente todos os demais pecados que possa ter, contanto que tenha, ao recebê-lo, a atrição sobrenatural de todos eles. E os apaga e extingue de tal modo, que o batizado não tem a obrigação de confessá-los, como se nunca os tivesse cometido. Pois o sangue de Cristo se derrama sobre ele com tal plenitude que o faz morrer totalmente para o pecado e ressuscitar para a vida da graça por meio de uma verdadeira e autêntica regeneração espiritual. f) Remite toda a pena devida pelos pecados, tanto a eterna como a temporal 117. A Igreja o ensinou expressamente no Concílio de Florença: O efeito deste sacramento é a remissão de toda culpa original e atual, e também de toda a pena que é devida por culpa própria. Por isso não se deve impor aos batizados nenhuma satisfação pelos pecados passados, uma vez que, se morrem antes de cometer alguma culpa, chegam imediatamente ao reino dos céus e à visão de Deus (D. 696).

A razão fundamental destes efeitos tão maravilhosos é dada por Santo Tomás com as seguintes palavras:168 A virtude ou mérito da Paixão de Cristo opera no Batismo ao modo de certa geração, que requer indispensavelmente a morte total à vida pecaminosa anterior, com o m de receber a nova vida; e por isso o Batismo tira todo o reato de pena que pertence à velha vida anterior. Nos demais sacramentos, ao contrário, a virtude da Paixão de Cristo opera ao modo de cura, como na Penitência. Ora, a cura não requer que se retirem completamente todas as seqüelas da enfermidade.

118. Tais são os principais efeitos maravilhosos que o sacramento do Batismo produz em nossas almas. Por isso, sem dúvida alguma, o maior dia da vida do cristão é o dia de seu Batismo. Todos os dons e graças sobrenaturais que venham depois dele não serão mais que complementos da vida cristã gerada ou nascida sob as águas do Batismo. A própria ordenação sacerdotal — até mesmo o supremo ponti cado — são inferiores ao Batismo: o papa é muito maior por ser cristão do que por ser papa. São Vicente Ferrer celebrava sempre com grande solenidade o aniversário de seu Batismo. Cantava a Missa em ação de graças e, caso se encontrasse em Valência, ia até a igreja onde fora batizado e beijava reverentemente a pia batismal onde havia recebido a regeneração em Cristo. E São Luís, Rei da França, assinava os documentos reais com a fórmula “Louis de Poissy”, para recordar o lugar de seu Batismo, que o havia constituído não como Rei da França, mas como príncipe herdeiro da glória. Insistindo nos maravilhosos efeitos que produz em nossas almas o sacramento do Batismo, um notável teólogo de nossos dias o compara a uma nova Criação, incomparavelmente mais perfeita que a Criação natural; à pro ssão monástica, em virtude da qual o monge morre por completo para o mundo, a m de viver exclusivamente para Deus; à ordenação sacerdotal, já que o batizado participa realmente do verdadeiro sacerdócio de Jesus Cristo, como já explicamos em outro lugar; à morte corporal, pois é o começo de uma vida nova em Deus; e, nalmente, o compara à própria transubstanciação eucarística, já que, de algum modo, ao receber

o Batismo, o cristão se transforma em outro Cristo. Eis como ele explica esta última analogia entre o Batismo e a transubstanciação eucarística, ressalvando as respectivas distâncias:169 É um ato de imensurável profundidade, que brota dos desígnios eternos de Deus e alcança toda a eternidade, aquele ato que se realiza ao derramar-se a água da concha batismal em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo sobre a fronte do batizando — e, contudo, nenhum efeito exterior no-lo indica. Daí que nos seja tão difícil crer nestas excelências do Batismo. Nossos olhos permanecem vendados. O céu não se abre diante deles, e a voz que do céu testemunha: “Tu és meu lho muito amado, em quem tenho todas as minhas complacências” (cf. Mc 1, 11), não é perceptível ao nosso ouvido. A inabitação viva e amorosa do Espírito Santo de Deus e de toda a Santíssima Trindade na alma daquele que, até então, havia nascido somente do pó da terra, se subtrai por completo a toda percepção. As realidades terrenas ocupam o campo das aparências, mas as guras permanecem. Tal como na transubstanciação ou consagração eucarística. A criatura se transformou em algo essencialmente diferente, mas sua aparência, sua gura, conservaram-se as mesmas. Nenhuma linguagem humana pode expressar, nem inteligência alguma esquadrinhar o prodígio que “excedendo a todo conhecimento” (cf. Ef 3, 19), acaba de realizar-se nesses momentos. Um ser pecador transformou-se em um santuário. Uma criatura deserdada pela culpa de seus pais foi declarada herdeira de Deus. Aquilo que era possessão do diabo passou a ser um possuidor dos tesouros eternos. Um condenado à morte passou a ser portador da vida eterna. De um ser perdido nasceu um lho de Deus. Talvez consideremos natural que nada se possa notar. Na realidade, porém, somente mediante um novo e altíssimo mistério se pode explicar esta ausência de todo sinal exterior. Isto acontece em virtude da economia salvadora de Cristo, à qual somos admitidos precisamente pelo Batismo. Nós, à semelhança de Cristo, devemos permanecer diante do mundo como um escândalo, a m de que sejam possíveis em nós a fé e a decisão. Se não estivéssemos submersos neste mistério de Cristo, sua glória teria de manifestar-se, como, em Cristo, ela de fato se manifestou em alguns casos — no Jordão e no Tabor. A verdade é que o perigo não consiste em exagerarmos a e cácia do Batismo, mas em rebaixá-la. É verdade que as analogias com a consagração têm seus limites: a substância do pão deixa totalmente de existir, enquanto nós ainda continuamos a conservar nossa personalidade individual. A transubstanciação eucarística é sempre algo absoluto e imutável; ao contrário, o batizado pode, por sua culpa, resvalar e cair de seu estado de graça. Mas não nos teremos acostumado demais a que isto aconteça? E, se nos habituamos a não esperar mais do homem, não será exatamente porque desconhecíamos a grandeza do “dom de Deus”? (cf. Jo, 4, 10). Ah! Se tivéssemos fé! Com certeza, então, em virtude dessa fé, sairíamos ao encontro do Senhor com maior rmeza, apesar das ilusórias e perigosas marés desta vida. A fé nos sustentaria. “Eu vos

escrevi, jovens, porque sois fortes, e a palavra de Deus permanece em vós, e vencestes o mal” (1Jo 2, 14). “Esta é a vitória que venceu o mundo: nossa fé” (1Jo 5, 4). “O justo vive da fé” (Rm 1, 17). Ao falar desta fé, não nos referimos a algo que esteja longe de nós, mas à realidade de Cristo em nós, à nossa transformação em Cristo. Daí emanam a vida, a fortaleza e a vitória. Tomemos, pois, com toda a seriedade aquilo que signi ca tornar-se cristão. É o mesmo que dizer que, de algum modo, tornamo-nos Cristo. Cristo vive no batizado. Leônidas, pai de Orígenes, tinha toda razão ao se prostrar de joelhos diante de seu lho assim que este recebera o Batismo, e ao adorar o Espírito Santo que agora habitava em seu coração.

3. Exigências que traz consigo 119. Agora se compreende que uma realidade tão divina como a do Batismo traga consigo imensas exigências relativas à correspondência de nossa parte. São duas as principais, uma negativa e outra positiva: morrer de nitivamente para o pecado e começar uma vida nova, inteiramente para Deus, em Cristo Jesus. São Paulo reúne estes dois aspectos em sua Epístola aos Romanos: Nós que morremos para o pecado, como poderíamos ainda viver nele? Ou ignorais que todos os que fomos batizados em Cristo Jesus fomos batizados para participar de sua morte? Com Ele fomos sepultados pelo Batismo para participar de sua morte, para que, assim como Ele ressuscitou dentre os mortos para a glória do Pai, assim também nós vivamos uma vida nova. Porque, se fomos enxertados nele pela semelhança de sua morte, também o seremos pela de sua ressurreição. Pois sabemos que nosso velho homem foi cruci cado a m de que fosse destruído o corpo do pecado e já não sirvamos ao pecado. De fato, aquele que morre está absolvido de seu pecado. Se morremos com Cristo, também viveremos com Ele. Pois sabemos que Cristo, ressuscitado dentre os mortos, já não morre, nem a morte terá mais domínio sobre Ele. Porque, ao morrer, morreu o pecado de uma vez para sempre; mas, vivendo, vive para Deus. Assim, pois, considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos para Deus em Cristo Jesus (Rm 6, 2–11).

Vamos examinar em separado cada um destes dois aspectos. a) Morrer de nitivamente para o pecado

120. A primeira e mais elementar exigência do Batismo é a morte de nitiva para o pecado. Em um cristão consciente de sua excelsa dignidade de lho de Deus, o pecado deveria ser materialmente impossível. Ninguém daria sua vida temporal em troca de uma bijuteria de dez centavos. Não existe comparação possível entre a vida sobrenatural e tudo o que, em sua troca, nos podem oferecer o mundo, ou o demônio, ou a carne. Ouçamos o Abade Grimaud explicando de maneira grá ca e impressionante a catástrofe do pecado, que nos arranca violentamente do Corpo místico de Cristo:170 A m de compreender bem os males que derivam da ruptura com Cristo, é preciso tomar como termo de comparação aquilo que sucederia a um membro que um acidente tivesse separado de nosso corpo; por exemplo, com nossa mão imediatamente depois de ser triturado o punho. Meu punho constituía uma robusta união entre minha mão e meu braço. Do mesmo modo, no Corpo místico, o membro está solidamente unido com a Cabeça — diz São Paulo —, à qual está unido por meio dos nervos e articulações (Cl 2, 19). As articulações principais, ou seja, aquelas que garantem a solidez da união espiritual entre o membro e a Cabeça, no Corpo místico são a fé, a esperança e a caridade. Ao renascer da água e do Espírito Santo (Jo 3, 5), a alma foi criada novamente. Ela recebeu, agregando-se a seu ser natural, potências sobrenaturais que a tornam capaz de chegar até Cristo e agregar-se a Ele. Estas novas faculdades, maravilhosos órgãos da alma transformada, que lhe permitem, se assim se pode dizer, pegar a Deus, são: a fé, que lhe permite possuir a Cristo, Verdade eterna, e a Santíssima Trindade; a esperança, que dá à alma o poder de se ligar ao Bem Supremo que possuirá; e a caridade, que provê para a alma a possibilidade de alimentar-se do Amor. Por estes três laços, o membro solidamente ligado à Cabeça torna-se um só com Ele, da mesma maneira que minha mão, fortemente unida a mim pelo pulso, constituía, antes da ruptura acidental, uma só coisa comigo.

Depois de explicar que a caridade é como o nervo e a artéria principal que nos une com Cristo e nos comunica sua vida divina, continua o Abade Grimaud: Quando acontece o acidente que rompe meu pulso, pode ocorrer que minha mão não que completamente separada de meu braço. A artéria foi cortada, e também o nervo. Mas cam os tendões — a fé e a esperança —, e minha mão ca tristemente pendurada. O pecado mortal, funesto acidente na vida sobrenatural, de modo idêntico corta a

ligação do membro à Cabeça. Mas raramente os ligamentos cam inteiramente cortados ao primeiro golpe; a caridade sempre ca rompida, e com ela a artéria e o nervo espirituais; mas a fé e a esperança permanecem normais. De fato, o pecador que acaba de consentir em uma tentação conserva sua fé em Cristo e o desejo do céu. “Deus é tão bom”, diz ele em seu íntimo, “que me perdoará”. Até acontece que certas almas pecam dizendo: “Pequemos... não haverá maior inconveniente para mim, pois em seguida me confessarei”. Cálculo insolente, mas que demonstra, mesmo quando se rompeu a amizade divina, que não se renunciou nem à fé, nem à esperança. A partir deste momento, tal como minha mão ca unida a meu braço por tendões, o pobre pecador, membro seccionado, ca pendurado, miserável, como um farrapo, do Corpo de Cristo, do qual não cou completamente separado. É o ramo seco e sem vida que está sobre o tronco: É o sarmento que não produz fruto (Jo 15, 5), o qual será lançado fora [...] e o pegarão e o lançarão ao fogo (Jo 15, 6). Diante da terrível ameaça da vingança divina, o membro separado não tem outra escolha a fazer: chamar em seu auxílio a Cabeça misericordiosa que, de imediato, em virtude de seus méritos como Cabeça, reintegrará o pecador em seu lugar no Corpo místico. Ai! Quantos membros de Cristo imprudentemente separados d’Ele deixam de recorrer a tão prudente medida! Se ninguém cuidar de minha mão, ela permanecerá pendurada da ponta de seus ligamentos, como em uma visão de horror. Igualmente, ao perseverar em sua malícia, muitíssimos pecadores, órgãos mortos, pendem do tronco do Corpo místico sem cuidar de sua reintegração. Por esse motivo terão a mesma sorte que a mão cortada: chegarão até a putrefação... À medida que a putrefação cumpre seu trabalho, os tendões que mantinham a mão suspensa do braço acabam destruídos. Chega o dia em que são cortados. Conta-se que certos caçadores, para comerem suas perdizes devidamente assadas, penduram-nas pelo pescoço ou por uma pata; segundo dizem, a ave está no ponto quando cai ao solo. Assim acontece com os ligamentos que mantinham o pecador sujeito ao Corpo místico: a esperança, em primeiro lugar, e em seguida a fé, acabam por romper-se. O infeliz terminará completamente separado de Cristo. Chega-se a constatar, efetivamente, que depois de perseverar no mal durante certo tempo, o pecador deixa de esperar pela recompensa eterna: “O céu não é para mim!”, diz ele interiormente. É o m da esperança. Esse mesmo pecador termina por não crer em Deus: “Se Deus existisse, seria ele tão exigente?... Religião não é coisa dele”. É a perda da fé. Aquele que um dia fora membro do Cristo glorioso transformou-se em um farrapo infecto: semelhante, na ordem espiritual, àquilo que a pobre mão é na ordem material, cujos últimos tendões se romperam e que jaz no solo transformada em horroroso volume infecto.

Na ordem dos infortúnios, não existe nada que se possa comparar ao estado de uma pobre alma em pecado mortal. Santa

Teresa — que o tinha visto por especial graça do Senhor — a rma que “não há trevas mais tenebrosas, nem coisa tão escura e tão negra, em que ela não esteja muito mais”. E umas linhas mais abaixo, escreve a insigne reformadora do Carmelo: “Sei de uma pessoa a quem Nosso Senhor quis mostrar como cava uma alma quando pecava mortalmente. Diz essa pessoa que lhe parece que, se o entendessem, não seria possível que alguém pecasse, ainda que tivesse de passar pelas maiores di culdades para fugir das ocasiões”.171 Por sorte, enquanto o pecador viver neste mundo, a sua tragédia, embora imensa, não será irreparável. “Tudo tem solução nas mãos que sabem criar”. É verdade que a justi cação de um pecador é um milagre maior que a criação do mundo, mas não escapa ao poder, nem, muito menos, à misericórdia in nita de Deus. Ouçamos o Abade Grimaud expor esta indizível maravilha:172 Que emoção não seria produzida se um santo que tivesse o dom de milagres — um Vicente Ferrer, um Cura d’Ars, um Dom Bosco —, ao se encontrar com um pobre estropiado, fosse procurar, a seu pedido, no monte de lixo, a mão apodrecida, e, fazendo o sinal da cruz, voltasse a uni-la ao pulso, para glória da Santíssima Trindade? Acorreria a multidão para ver essa mão restituída à sua anterior força e beleza, viva, ativa, ordenada, ocupando seu lugar na ordem geral do organismo. Para não ser carregado em triunfo, o taumaturgo teria escapulido... São poucos os casos de mãos restituídas a seu anterior estado de saúde. Tais fatos caram célebres na história. Nosso Senhor, em dia de sábado, cura um homem que tinha a mão direita seca: “Disse ao homem: ‘Estende tua mão’. Estendeu-a, e a mão cou sã” (Lc 6, 6.10). São João Damasceno, acusado falsamente, fora condenado pelo califa a ter a mão direita cortada. “Mas a Santíssima Virgem, defensora da inocência, correu em socorro de seu servo el, e sua mão, devolvida ao braço, cou tão bem unida como se jamais tivesse sido separada” (Breviário romano). Esses grandes milagres nos enchem de admiração. Contudo, são muito pouca coisa ao lado deste outro, que consiste em devolver a seu lugar no Corpo mítico o membro apodrecido que se havia separado. Milagre incessante, que Cristo repete milhares de vezes a cada dia, e que se chama perdão dos pecados. Santo Agostinho disse: “Fazer um justo de um injusto é uma obra maior do que criar o céu e a terra” (In Io., 72). Quando Deus fez o mundo, simplesmente tirou do nada os seres da natureza, que eram bons; mas, ao reintegrar um membro corrompido no

Corpo místico, Ele eleva um ser mau até a participação de sua divindade. A misericórdia in nita deve desdobrar o máximo de seu poder para assegurar tal resultado. E, não obstante, basta invocar sinceramente a Cabeça e submeter-se a ela para ser nela reintegrado. Tal perdão nos é concedido tão facilmente, que nos parece ser ele recebido devido a nós mesmos, quando é pura generosidade de nossa Cabeça adorável. Igualmente, nós o pedimos com uma facilidade que só tem comparação com a audácia com que pecamos. Como somos loucos! Se compreendêssemos o horror de nossos crimes e a imensidade do perdão, com que cuidado fugiríamos, como os santos, da mínima falta; com que contrição iríamos à absolvição! Se considerássemos que por nossos próprios meios — membros apodrecidos — seríamos impotentes para reviver, e que Deus não teria obrigação de nos reconstituir, quão grande agradecimento manifestaríamos a Deus por nos ter feito de novo agradáveis a Ele em seu muito Amado, devolvendo-nos a vida que desfrutávamos em Cristo antes de nossa falta! Alguém se pergunta com assombro por que a justiça divina abandona seus di- reitos contra esses membros voluntariamente arrancados, como se fosse impotente para agir contra um pecador que, a seu pedido, Cristo chama para si. Como não se sobrepõe a Deus o seu desagrado, não obstante a repugnância que lhe inspira um ser em avançado estado de corrupção, ao ponto de o perdoar e amar? Tal atitude é resultado do compromisso assumido pelo Pai com base no contrato rmado por seu Filho no Gólgota. Cristo “cancelou o documento do decreto rmado contra nós, que nos era contrário; eliminou-o de nitivamente ao encravá-lo na cruz” (Cl 2, 14). A Paixão desarmou a Deus. O Filho do Homem, ao preço de sua morte, adquiriu direito absoluto sobre todos os pecadores. Eles constituem seu capital, pertencem a Ele. A partir do momento em que se cobrem debaixo de seu manto, cam salvos. Cristo não repele nenhum daqueles que se voltam para Ele, por repugnantes que sejam... Quantas ações de graças devemos oferecer ao nosso amado Chefe, o qual nos “fez reviver com Ele, perdoando-nos todos os pecados”! (Cl 2, 13). E lembremos que a maior desgraça que nos pode acontecer é sermos separados d’Ele: Não permitais que jamais sejamos separados de Vós (liturgia da Missa).

Morrer de nitivamente para o pecado: eis a primeira exigência fundamental que traz consigo o grande sacramento do Batismo. Mas ela não constitui, nem de longe, o ideal supremo do cristão. A meta nal está muito mais acima e, para alcançá-la, é preciso começar a viver uma vida nova, inteiramente para Deus em Cristo Jesus. É isto que veremos em seguida, de forma breve. b) Viver com Cristo em Deus 121. O apóstolo São Paulo, depois de nos lembrar que pelo Batismo estamos mortos para o pecado, exorta-nos a permanecer

vivos para Deus em Cristo Jesus (Rm 6, 11). E falando das exigências que traz consigo nossa ressurreição em Cristo, escreve: “Se ressuscitastes com Cristo, buscai as coisas do alto, onde Cristo está assentado à direita de Deus; pensai nas coisas do alto, não nas da terra. Porque estais mortos, e vossa vida está escondida com Cristo em Deus” (Cl 3, 1–3). Infelizmente, são legião os cristãos que não vivem assim. Absorvidos inteiramente pelas coisas da terra, raramente erguem seus olhares ao céu. Sua vida é puramente humana e natural, sem horizontes sobrenaturais, sem ideais de perfeição, sem anelos de santidade. Para eles, o principal é a saúde do corpo, ganhar dinheiro, ampliar seus negócios, rodear-se cada vez mais de comodidades. Alguns conseguem tornar-se milionários e se consideram felizes, sem perceber que muito prontamente — talvez antes do que eles suspeitam — descerão ao sepulcro, e então terá acabado para sempre a grande farsa deste mundo. O cristianismo tem exigências terríveis para os espíritos mundanos, mas que não podem ser mais doces e razoáveis para aqueles que vislumbraram, ainda que imperfeitamente, o grande mistério de Cristo e a sublime elevação e grandeza da alma que consegue vivê-lo em toda a sua plenitude e com todas as suas conseqüências. Diga o mundo o que quiser, os espíritos mais seletos, a verdadeira aristocracia da humanidade é constituída, sem dúvida alguma, pelos santos. Precisamente eles, que souberam colocar debaixo de seus pés tudo aquilo que o mundo reverencia e aplaude. Sempre será verdade que “a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus” (1Cor 3, 19). O cristão, consciente de sua divina grandeza e da sublimidade de seus destinos eternos, deveria passar pelo mundo como um sonâmbulo, como peregrino e estrangeiro a todas as coisas da terra: “Não temos aqui uma cidade permanente, mas vamos em busca da futura”, diz o apóstolo São Paulo (Hb 13, 14). E São Pedro nos adverte a vivermos neste mundo “como peregrinos e estrangeiros, abstendo-

nos dos apetites carnais que combatem contra a alma” (1Pd 2, 11). Toda a nossa preocupação deveria centrar-se, efetivamente, em viver intensamente nossa graça batismal, empreendendo uma vida nova inteiramente “escondida com Cristo em Deus” (Cl 3, 3), e caminhando de virtude em virtude, até ver a Deus no santo monte de Sião (cf. Sl 83, 8), isto é, até nossa plena transformação em Cristo. Na realidade, com isso não faríamos mais que cumprir a exigência mais profunda e interior de nosso Batismo cristão.

4. Renovação espiritual do Batismo 122. Como se sabe, o Batismo é um dos três sacramentos que, por imprimirem um caráter ou sinal indelével na alma, não podem ser repetidos no mesmo sujeito. A repetição real do Batismo em um sujeito já batizado constitui um sacrilégio, como declarou expressamente o Concílio de Trento (D. 996), a não ser que se trate de um Batismo duvidoso e que a repetição seja feita sob condição: “Se não estás batizado...”. Porém, se não se pode receber duas vezes o Batismo em sua realidade sacramental, podese recebê-lo espiritualmente muitas vezes — tal como se pode receber espiritualmente a Sagrada Eucaristia —, e essa recepção espiritual do Batismo pode produzir em nossa alma efeitos sobrenaturais muito grandes, contribuindo poderosamente para nossa própria santi cação. A este propósito, escreve com grande acerto um grande teólogo contemporâneo:173 Não é possível a reiteração do Batismo, mas sim uma proveitosa renovação dele. Há um reviver da graça batismal que chega às maravilhas do Batismo.

Aquilo que os homens não podem deter, o que foge com o tempo, o que a culpa parece manchar quase por necessidade do tempo, o que só se pode conservar na recordação, na saudade e no desejo, isso é possível para Deus mediante o prodígio de uma constante renovação. Alguém pode deplorar que o Batismo só possa ser recebido uma única vez. Pode estabelecer uma comparação com o cristianismo primitivo e considerar o que falta para nós, que somos cristãos muito antes de ter consciência do que isto signi ca, diante daqueles que tiveram de chegar a ser cristãos pouco a pouco, mediante todo o esforço de sua vontade, até que o grande dia da Páscoa de sua vida lhes trouxesse esse momento incomparável. Com razão se pode a rmar: se tivéssemos precisado ou podido lutar para nos tornarmos cristãos, teríamos considerado com maior estima e guardado com mais cuidado a nossa dignidade batismal. Mas não queremos deixar de destacar o seguinte: que, entretanto, a vivência do Batismo não chega jamais a abarcar toda a realidade do Batismo. O Batismo é uma realidade permanente em nós e ilimitadamente capaz de renovação. Jamais poderemos, com nossas forças espirituais e morais, medir todo “o comprimento e a largura, a sublimidade e a profundidade” (cf. Ef 3, 18) da e cácia do Batismo em nós. O profeta Eliseu disse a uma mulher que tinha apenas um pouco de azeite: “Levanta-te. Pede a teus vizinhos todas as vasilhas que puderes e, em seguida, derrama o azeite em todas essas vasilhas”. E ela assim o fez. E quando todas as vasilhas estavam cheias, ela disse a seu lho: “Dá-me mais uma vasilha”. O lho respondeu a sua mãe: “Já não há nenhuma”. E então o azeite parou de uir (2Rs 4, 3–6). Se ela tivesse sabido preparar mais vasilhas, aquele maravilhoso caudal não teria cessado de manar. No caso, a vasilha é a disposição, a receptividade. Quanto maior capacidade receptiva tivermos para receber a graça de Deus, tanto mais graça receberemos. Mesmo quando cada um de nossos recipientes não for grande, isto é, mesmo que não possamos recolher muito de uma vez, podemos, entretanto, procurar sempre por um novo recipiente de aspirações e petições, e sempre serão cheios até em cima quantos recipientes nós consigamos. Toda petição é atendida. “Se tu conhecesses o dom de Deus!...”. É conhecida de todos os éis a prática da comunhão espiritual. Assim é chamado o desejo de receber o Santíssimo Sacramento do Altar. É ensinamento geral que também este desejo consegue a união com Jesus Cristo mediante a graça, conforme o seu grau de intensidade. É chamada de “espiritual” apenas porque a obra da graça e da comunhão se realizam invisivelmente, não por ser puramente “imaginária”. Porém, a poucos éis ocorrerá que o mesmo se possa dizer dos demais sacramentos, e que também os outros sacramentos possam ser recebidos espiritualmente. E precisamente nos demais sacramentos isso seria mais importante que na comunhão, já que esta é o único sacramento que se pode e deve receber todos os dias... O cristão está completamente vinculado aos sacramentos. Mas isto não signi ca que somente a recepção atual visível de um sacramento possa alcançar essa graça. Também se obtém a graça de um sacramento mediante um contato espiritual com ele. E, em princípio, isto pode ser a rmado sobre todos os sacramentos, tanto aqueles que foram recebidos como os que ainda o serão.

A comunhão espiritual pode ser uma antecipação da próxima comunhão sacramental, mas também pode ser uma renovação da última. Olhando igualmente para frente ou para trás, a parábola da vasilha de azeite tem aplicação ilimitada. Todo el receberá graças mediante a recepção de um sacramento, sempre que com fé e con ança ele recorde que recebeu em si uma inesgotável fonte de graças. De fato, deveríamos assim estar sempre dando graças a Deus, pela manhã, ao meio-dia e à noite. Na medida em que damos graças, sempre as receberemos, e não o contrário, como geralmente acontece no mundo. Como já dissemos, o cristão está vinculado aos sacramentos, e com isso também à sua caudalosa riqueza. Ele é realmente “a árvore plantada junto à torrente das águas” (Sl 1,3), que jamais seca.

CAPÍTULO II | A Confirmação do cristão 123. Depois do sacramento do Batismo, que nos gera em Cristo, vem o da Con rmação, que nos fortalece n’Ele. O sacramento da Con rmação tem uma importância extraordinária na vida do cristão, inclusive na do cristão leigo. Alguém quis ver na Con rmação, juntamente com o Matrimônio, o sacramento mais próprio e típico dos leigos.174 Mas este ponto de vista, de forma geral, não foi admitido pelos teólogos, já que do sacramento da Con rmação necessitam igualmente todos os cristãos, e constitui inclusive um requisito prévio para a lícita ordenação sacerdotal (cf. cân. 974, 1º), coisa que não se requer necessariamente no sacramento do Matrimônio. A verdade é que se deve buscar no sacramento da Con rmação um dos pilares mais rmes para exigir do leigo o exercício do apostolado, como veremos em seu lugar correspondente. Exporemos a natureza, os efeitos e as exigências que traz consigo o grande sacramento da Con rmação.

1. Natureza da Confirmação 124. Se quisermos dar uma de nição ampla e completa do sacramento da Con rmação, podemos empregar a seguinte fórmula: Sacramento instituído por Nosso Senhor Jesus Cristo no qual, pela imposição das mãos e a unção com o crisma sob a fórmula prescrita, se dá ao batizado, juntamente com a graça corroborativa, a plenitude do Espírito com seus dons, e se imprime nele um caráter especial para fortalecê-lo na fé e confessá-la corajosamente como bom soldado de Cristo. Vamos explicar um pouco os termos desta de nição, que nos dá a conhecer de forma bastante completa a natureza íntima do sacramento da Con rmação. ) , como os outros seis. É de fé, expressamente de nido pelo Concílio de Trento (D. 844). )

, . — Estas palavras indicam a matéria própria do sacramento da Con rmação. O bispo é o ministro ordinário que impõe as mãos (assim como antes ele havia consagrado o crisma); porém, em circunstâncias especiais, pode administrá-lo qualquer sacerdote devidamente autorizado. ) . — Esta fórmula constitui a forma própria do sacramento. Na Igreja Católica latina, é a seguinte: Eu te assinalo com o sinal da cruz e te con rmo com o crisma da salvação, em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.175 Na Igreja Católica grega, a fórmula é a seguinte: Sinal do dom do Espírito Santo.

Ela é válida em seu rito, segundo declarou Bento

.176

) . — É o sujeito receptor deste sacramento. Somente os batizados podem recebê-lo validamente, já que o Batismo é a “porta para os demais sacramentos”, e sem ele não se pode receber nenhum outro. Além disso, a Con rmação irá aumentar e fortalecer a graça batismal: logo, é preciso recebê-la antes. ) . — É o efeito mais típico deste grande sacramento, que tem por objeto fortalecer ou corroborar a graça batismal do cristão. A seguir voltaremos a este tema. ) . — Como vimos, o Batismo já nos infunde o Espírito Santo, juntamente com a graça santi cante, as virtudes infusas e os dons do Espírito divino. Mas o sacramento da Con rmação realiza esse mesmo efeito de maneira mais plena e perfeita que no Batismo. Por isso a Con rmação é o grande complemento sacramental do Batismo, embora em grau inferior à Eucaristia, que é o verdadeiro m para o qual se ordenam todos os demais sacramentos, recebidos ou ainda por receber. ) . — É de fé, expressamente de nido pelo Concílio de Trento (D. 852). O caráter da Con rmação é distinto daquele que o Batismo imprime, e tem por objeto con gurá-lo mais plenamente com o sacerdócio de Jesus Cristo, ainda que não tão perfeitamente como aquele que imprime o sacramento da Ordem Sacerdotal, que constitui quem o recebe em autêntico sacerdote e ministro de Jesus Cristo. )

-

. — É a nalidade procurada pelo sacramento quanto a seus efeitos internos e manifestações externas. Em virtude da graça e do caráter da Con rmação do

cristão, ele ca destinado por ofício à corajosa manifestação e defesa da fé, até o martírio, se necessário.

2. Efeitos da Confirmação Ao estudar sua natureza, acabamos de apontar também seus principais efeitos. Agora, porém, vamos examiná-los um pouco mais detalhadamente. a) Confere a graça roborativa, própria deste sacramento 125. Os sacramentos foram instituídos por Cristo para nos dar ou aumentar a graça santi cante. Esta graça é essencialmente única, em espécie átoma, indivisível. Mas cada sacramento a infunde com um matiz ou cor especial, de maneira semelhante à luz, que se decompõe em sete cores distintas ao atravessar um prisma de cristal. Ora, o matiz (ou cor) próprio do sacramento da Con rmação é aquele de nos dar a graça roborativa, que robustece a alma e lhe dá a energia sobrenatural de que necessita para viver com maior plenitude a vida cristã iniciada no Batismo, e confessar corajosamente a fé contra seus inimigos ou impugnadores, até derramar o próprio sangue (martírio), se preciso for. b) Confere plenissimamente o dom do Espírito Santo 126. A alma já o possuía em virtude da graça batismal, que traz consigo o mistério inefável da divina inabitação e, por isso mesmo, o dom do Espírito Santo. No sacramento da Con rmação, porém, a alma o recebe de maneira mais plena e perfeita, à semelhança de Maria e dos apóstolos na manhã de Pentecostes. A Con rmação é como o Pentecostes de cada cristão.

“O rito batismal”, contemporâneo,177

escreve

nesta

linha

um

autor

se aperfeiçoa com outro rito, ao qual chamamos hoje de Con rmação. Os Atos dos Apóstolos já contêm alusões a ritos diferentes. Pedro e João descem à Samaria e rezam por aqueles “que estavam batizados somente em nome do Senhor”, a m de “receberem o Espírito Santo” (cf. At 8, 14–17). Imposição de mãos, unção com o crisma; este rito completa a iniciação cristã, fazendo do batizado um adulto na vida cristã. Receber o Espírito Santo. Os Padres falam de uma nova efusão, de uma plenitude maior, semelhante àquela que se derramou sobre os apóstolos no dia de Pentecostes. Este dom encheu os apóstolos de força, da virtude do Espírito. Eles pregaram com convicção, com audácia, com “segurança em si mesmos”, diríamos hoje. Seu testemunho foi viril, animoso, perseverante até o martírio. Esta é a idéia dominante da graça sacramental da Con rmação.

c) Confere com maior plenitude os dons do Espírito Santo 127. Também pelo Batismo, o cristão possuía os dons do Espírito Santo, mas não com a virtude e a força que se adquire com o sacramento da Con rmação. Se o cristão con rmado não oferece obstáculos à graça e não resiste culpavelmente às inspirações internas do Espírito divino, seus preciosíssimos dons atuarão em sua alma de maneira cada vez mais clara e intensa, levando-o de grau em grau até o cume da perfeição ou santidade cristã.178 E deste modo: ) lhe proporciona uma espécie de conaturalidade com as coisas de Deus, fazendo-o saborear, com inefável prazer, “as coisas do alto, não as da terra” (Cl 3, 1–2), dando-lhe um sentido de eternidade que o faz ver todas as coisas através de Deus, como por um instinto sobrenatural e divino. ) proporciona à alma el uma penetração profundíssima nos grandes mistérios da fé: a inabitação trinitária, o mistério redentor, nossa incorporação a Cristo, o in nito valor da Missa, etc.; levando-o a vivê-los com grande intensidade e perfeição.

) o ensina a julgar retamente as coisas criadas, vendo nelas uma pegada ou vestígio de Deus que anuncia sua beleza e bondade inefáveis. Com este dom, São Francisco de Assis via o irmão lobo, a irmã or, a irmã fonte. É a “ciência dos santos”, que será sempre uma loucura diante da incrível ignorância do mundo (cf. 1Cor 3, 19). ) marca a orientação que devemos seguir em cada caso para entrar nos desígnios eternos de Deus sobre nós. São palpites, golpes de vista intuitivos, cujo acerto e oportunidade os acontecimentos se encarregam de manifestar mais tarde. ) tem por objeto excitar na vontade, por inspiração do Espírito Santo, um afeto lial por Deus, considerado como amorosíssimo Pai, e um sentimento de fraternidade universal para com todos os homens enquanto nossos irmãos e lhos do mesmo Pai, que está nos céus. Também nos faz sentir uma ternura especial pela Virgem Maria, Mãe da Igreja e nossa dulcíssima Mãe. ) brilha na fronte dos mártires e na prática silenciosa e heróica das virtudes da vida cristã ordinária, que constituem o “heroísmo do pequeno”, freqüentemente mais difícil e penoso que aquele das grandes coisas. ) , en m, enche a alma de respeito reverencial diante da majestade in nita de Deus, deixando-a disposta a morrer mil vezes antes de ofendê-lo pelo pecado. d) Imprime um caráter especial indelével 128. Este caráter ou recebe validamente o pecado mortal, já que transforma o batizado

marca indelével é impresso na alma que sacramento (ainda que o recebesse em o caráter pode ser separado da graça) e em soldado de Cristo, dando-lhe o poder

de confessar com fortaleza e como que por ofício a fé em Cristo, e lutar com valentia contra os inimigos da mesma fé, até o próprio martírio, se necessário. “Na Con rmação”, escreve Thils,179 Cristo confere primeiramente uma graça de “força”, à semelhança do poder do Espírito que invadiu os apóstolos no dia de Pentecostes. Para captar o matiz desta a rmação, é preciso recordar que o Novo Testamento dá algumas vezes o nome de dynamis, força, ao Espírito de Cristo ressuscitado. O termo “dinamismo”, um tanto profanado, recorda sua etimologia. “Mas descerá sobre vós o Espírito Santo”, diz Cristo, “e sereis revestidos de sua força; e sereis minhas testemunhas” (At 1, 8). “Espírito Santo” e “força espiritual” gozam de uma equivalência prática. E em virtude desta equivalência, a Con rmação foi chamada de sacramento do Espírito Santo. De fato, o Espírito Santo habita em nós quando estamos em graça, e a Igreja exige de seus lhos o estado de graça para receber a Con rmação. Nela não se recebe o Espírito como no Batismo, mas como uma forma da presença deste Espírito, uma graça particular deste Espírito, a dynamis, a “força” cristã, à semelhança daquela que certo dia inundou os apóstolos. A Con rmação é o dom de Pentecostes renovado no decorrer dos tempos. Esta força santi cadora do Espírito é concedida para “manifestar” o cristianis- mo, para dar testemunho doutrinal, para dar o testemunho supremo do martírio. A partir daí se pressente facilmente toda a importância, para a edi cação do Corpo místico de Cristo, de os con rmados assumirem sua missão de arautos da autoridade de Deus. E, de fato, comprovamos que os apóstolos, cheios do Espírito Santo, pregam, convertem, batizam e fazem milagres. Igualmente, os con rmados são doravante responsáveis pela verdade cristã e pela Igreja de Cristo. Daí a imagem tão conhecida de “soldados de Cristo”. Seu testemunho é autêntico, primeiro porque é portador da virtude do Espírito, e, além disso, porque está implicado no testemunho da Igreja, pelo caráter sacramental de que falamos anteriormente. O con rmado é verdadeiramente uma “testemunha” do Senhor. Oxalá todos os con rmados pudessem estar conscientes disso nos momentos mais decisivos de sua vida pro ssional.

e) Robustece a fé do cristão e o fortalece para sua defesa 129. Também já apontamos isto ao falar da natureza deste grande sacramento. Também os cristãos não-con rmados podem e devem confessar corajosamente sua fé a todo momento; mas o con rmado dispõe de um reforço especial para fazê-lo com grande energia e intrepidez, como se vê claramente nos mártires do cristianismo. Ouçamos de novo a Thils no local já citado: É

Vemos por que a Con rmação aperfeiçoa o cristão. É um verdadeiro sacramento da idade adulta, o sacramento da virilidade espiritual. Esta expansão, esta rmeza que o jovem adquire é dada pelo Espírito Santo com sua graça, espiritualmente, para a alma con rmada. Adulto na fé, o homem necessita de virilidade espiritual; a Con rmação a assegura de modo sacramental. E esta virilidade se mostrará em seu testemunho: na vida familiar, pro ssional, cívica, nas ocupações profanas e, especialmente, nas obras apostólicas às quais prestará sua contribuição. Mas também aqui convém recordar aquilo que já dissemos de todos os sacramentos. A graça do sacramento não apaga todos os defeitos de caráter, não suprime todas as falhas do temperamento, não substitui o esforço pessoal. Os “con rmados” podem ser covardes, tíbios, medrosos, escravos do respeito humano. Está garantida para eles a ajuda do Espírito, mas, salvo exceção, ela não se impõe de modo inelutável. Toda graça é “oferecida” à livre adesão, inclusive a graça da força espiritual. Não se deve confundir, repetimos mais uma vez, a certeza da ajuda divina, que nos é dada em todo sacramento, com o caráter irresistível e quase inevitável desta ajuda. Podemos recusar o socorro divino, venha-nos ele com ou sem o rito sacramental; podemos ignorá-lo, segundo nossa disposição espiritual. A força do Espírito nos é proposta com a mansidão do Espírito.

O sacramento da Con rmação, com efeito, dá direito às graças atuais que durante toda a vida sejam necessárias para a con ssão e a defesa da fé, sob a condição, porém, de que o con rmado não ofereça obstáculo voluntário à sua recepção. Somente em casos excepcionais a graça de Deus salta os obstáculos que se opõem a ela, como ocorreu com São Paulo; de ordinário, porém, Deus oferece sua graça com tanta energia quanto suavidade, respeitando inteiramente nossa liberdade pessoal.

3. Exigências que traz consigo Sendo a Con rmação o sacramento da virilidade cristã, sobretudo com relação à fé, as principais exigências que traz consigo se relacionam diretamente com essa grande virtude teologal. São principalmente estas quatro: confessá-la, propagá-la, defendê-la e, se necessário, morrer por ela. Examinemo-las brevemente uma por uma:

130. 1. . — O cristão con rmado tem de confessar pública e corajosamente sua fé cristã, pisoteando o ridículo respeito humano — aquele “o que vão dizer” dos homens. Não existe atitude mais vil e vergonhosa que a do cristão covarde na con ssão clara e aberta de sua fé diante do mundo. “A atenção ao que vão dizer”, já escrevemos em outra de nossas obras180 é uma das atitudes mais vis e indignas de um cristão, e uma das mais injuriosas para Deus.181 Para não “desgostar” a quatro minhoquinhas indecentes que vivem em pecado mortal, conculca-se a lei de Deus e sente-se vergonha de se mostrar como discípulos de Jesus Cristo. O Divino Mestre nos adverte claramente no Evangelho que negará diante de seu Pai celestial a todo aquele que o tiver negado diante dos homens (Mt 10, 33). É preciso assumir uma atitude franca e decidida diante d’Ele: “Aquele que não está comigo, está contra mim” (Mt 12, 30). E São Paulo a rma de si mesmo que não seria discípulo de Jesus Cristo se procurasse agradar aos homens (Gl 1, 10). O cristão que quiser santi car-se deve deixar de lado em absoluto aquilo que o mundo possa dizer ou pensar. Ainda que o mundo inteiro grite e encha-o de zombaria e desprezo, deve seguir adiante com inquebrantável energia e decisão. É melhor assumir desde o primeiro momento uma atitude inteiramente clara e inequívoca, para que não caiba a ninguém a menor dúvida sobre nossos verdadeiros propósitos e intenções. O mundo nos odiará e perseguirá — advertiu-nos o Divino Mestre (Jo 15, 18–20) —, mas se ele encontra em nós uma atitude decidida e inquebrantável, acabará deixando-nos em paz, dando o jogo por perdido. Somente contra os covardes que vacilam ele volta sempre à carga para novamente arrastá-los para suas leiras. O melhor meio de vencer o mundo é não ceder um único passo, a rmando com força a nossa personalidade em uma atitude decidida, clara e inquebrantável de renunciar para sempre a suas máximas e vaidades.182

131. 2. . — É o grande dever do apostolado que afeta a todo cristão, mas de maneira especial ao cristão que recebeu o sacramento da Con rmação. Dada a importância deste dever, vamos estudá-lo de modo ampliado na sexta e última parte desta obra, para onde remetemos o leitor. 132. 3. - . — O cristão con rmado não deve ter medo de sair corajosamente em defesa de sua fé quando esta é atacada em sua presença e existe alguma esperança de poder vencer o adversário. Quando este for tão numeroso e audaz a ponto de se

ver claramente que toda defesa será inútil e, talvez, contraproducente, conviria aguardar uma ocasião mais propícia para exercitá-la. Porém, ainda neste caso, é preciso que nosso silêncio não seja equivalente, de modo algum, a uma aceitação tácita do ataque contra a fé, mas temos de manifestar claramente a nossa inconformidade com aquelas idéias, embora renunciando a uma polêmica estéril que, diante da má-fé e da absoluta obstinação do adversário, nesse momento resultaria inoportuna ou contraproducente. Logo se compreende que a defesa da fé exige do cristão uma adequada formação religiosa, no nível de sua personalidade e condição social. É verdadeiramente vergonhoso que o cristão tenha de bater em retirada diante dos que atacam sua religião e sua fé, não por força dos argumentos contrários — que jamais podem sustentá-la contra as verdades de Deus —, mas por pura ignorância e falta de formação do cristão que devia defendê-la. 133. 4. , . — Sabe-se que pode ocorrer o caso em que tenhamos a obrigação de confessar claramente nossa fé cristã, mesmo que esta con ssão nos acarrete a perda da própria vida. Isso acontece, por exemplo, quando em tempos de perseguição religiosa o cristão é interrogado sobre sua fé pela autoridade competente. Ele não pode de modo algum negar sua fé, ainda que sua con ssão explícita lhe acarrete o martírio. É claro que existem casos em que não é obrigatória a manifestação externa da fé, podendo-se ocultá-la ou dissimulála, sempre que esta ocultação ou dissimulação não equivalha a uma negação. Assim sendo: a) Em tempo de perseguição religiosa, se a autoridade pública zesse um edito geral ordenando que os cristãos manifestassem publicamente a sua fé, ninguém está obrigado a obedecer (mesmo que no edito se dissesse que o não comparecimento seria entendido como uma renúncia à sua religião), porque essa pretensa lei é completamente injusta e não pode obrigar ninguém em consciência. Por isso, em tempo de perseguição religiosa, os sacerdotes ou simples éis podem esconder-se e até fugir, conforme as palavras de Cristo: Se vos perseguem em uma cidade, fugi para outra (Mt 10, 23), con rmadas por

seu próprio exemplo (Jo 8, 59; 10, 39) e pelo de seus apóstolos (2Cor 11, 33; At 12, 8– 11). Excetua-se o caso dos pastores (bispos, párocos...), cuja fuga expusesse seus éis a grave perigo de apostasia; neste caso, teriam de permanecer ali, embora com grave perigo para sua vida, a exemplo do Bom Pastor, que deu a vida por suas ovelhas (Jo 10, 11 ss.). b) O católico que come junto de não-católicos ou indiferentes não está obrigado às orações da bênção da mesa, etc., porque essas preces não são obrigatórias (ainda que muito recomendáveis), e sua omissão não supõe negação ou desprezo da fé, embora ele estivesse fazendo um ato de nobre valentia ao confessar publicamente sua religiosidade (por exemplo, fazendo o sinal da cruz antes de começar a comer), que além disso atrairia o respeito e a admiração dos circunstantes. Porém, se ele suspeitasse que essa simples ação suscitaria zombarias e ataques à religião por parte dos circunstantes, seria melhor omiti-la. Não se deve confundir a prudente dissimulação da fé, que pode ser lícita em circunstâncias especiais, com a vileza e a covardia do respeito humano, que já condenamos mais acima.

CAPÍTULO III | A Eucaristia na vida do leigo 134. Ao expor, na segunda parte desta obra, a vida litúrgica comunitária, já falamos amplamente sobre o papel excepcional da Eucaristia, tanto como sacrifício quanto como sacramento, no conjunto de toda a nossa vida cristã. Entretanto, insistiremos um pouco mais na Eucaristia como sacramento, já que a Sagrada Comunhão constitui para o cristão a fonte primária na qual deve beber sua própria vida espiritual. Dada a imensa amplitude da matéria, exporemos seus principais aspectos de forma esquemática, embora perfeitamente clara e transparente.183

1. A Eucaristia, sacramento da fé

135. A Eucaristia é o centro do cristianismo. Tudo gira em torno dela: 1. A arte. a) Os templos maravilhosos que enchem a terra. b) A pintura nas catacumbas e fora delas; os quadros dos grandes artistas (A Ceia, de Da Vinci; A disputa do sacramento, de Rafael...). c) A ourivesaria, com suas ligranas: as custódias... as obras dos irmãos Arfe. d) A música, com suas peças gregorianas e a polifonia clássica: Palestrina, Vitoria... e) A literatura universal. Nossos grandes poetas: Lope de Vega, Góngora, Frei Luís de León, Juan de la Encina... Os autos sacramentais: Tirso de Molina, Calderón... 2. As multidões. a) As grandes procissões de Corpus Christi. b) Os congressos eucarísticos: cidades mobilizadas; nações que se misturam... Dois milhões de pessoas na procissão de encerramento do congresso de Barcelona. 3. O indivíduo. a) A Primeira Comunhão: o encantamento das crianças, a alegria da família... b) O Viático: o ancião moribundo faz um esforço, senta-se na cama... recebe o Viático e permanece numa paz transbordante.

E tudo isto por quê? Por uma pequena “hóstia”... por “um pouco de pão”...? A Eucaristia é um “mistério de fé”... i. A Eucaristia exercita a fé a) Todos os mistérios exigem de nós um ato de fé 1. Con ados na palavra de Deus, cremos naquilo que não vemos. O mistério é uma verdade oculta. Por isso, o assentimento a um mistério exige um ato de fé (ato do entendimento e da vontade, pelo qual aceitamos uma verdade com evidência extrínseca ou testi cada). 2. Cremos no mistério da Trindade porque Deus o revelou. Igualmente no mistério da encarnação. 3. Não conseguimos explicar o mistério (esta é sua condição de mistério), mas não vemos nele nenhuma contradição com a razão. b) A Eucaristia exige um intensíssimo ato de fé 1. É preciso crer contra aquilo que nos dizem os sentidos: Visus, tactus, gustus in te fallitur (Adoro te devote). Para o tato, o olho e o paladar, depois da consagração (assim como antes), sobre o altar existe pão e vinho, nada mais. 2. Temos de crer somente pela palavra de Deus: Sed auditu solo tuto creditur (Mas cremos no que ouvimos): Hoc est enim corpus meum (Lc 22, 19). 3. Dura provação a dos apóstolos na Sexta-feira Santa: o grande fracasso de seu Mestre... sua divindade ocultou-se por completo. Contudo, na Eucaristia está oculta não só a divindade, mas também a humanidade e os resplendores que a rodeiam: At hic latet simul et humanitas.

4. E, todavia, é preciso crer que Cristo está na hóstia e em cada uma de suas partículas. Os sentidos não o alcançam, mas a fé nos dá esta certeza: Praestet des supplementum... c) Deus ajuda nosso ato de fé na Eucaristia com milagres 1. Nós cremos pela autoridade de Deus, que não pode enganar-se nem nos enganar. Mas Deus se dignou operar milagres — “fatos sensíveis e extraordinários que superam todas as forças da natureza” — para con rmar nossa fé na realidade eucarística. 2. Eis aqui alguns deles plenamente comprovados: a) Em Bolsena (1263), durante a Missa, a hóstia, ao ser partida, destila gotas de sangue que empapam corporais e puri cadores. Santo Tomás e São Boaventura o comprovaram. b) Muitas vezes aparece um Menino na hóstia: foi assim com Pascásio Radberto ( 120, 1320) e em Caravaca, em 1227. c) Algumas abelhas — narra Pedro de Cluny — esculpem uma custódia de cera branca, na qual depositam uma hóstia que um sacrílego roubou e perdeu. d) Em Quito, 1649, algumas formigas constroem uma custódia de grãos de trigo em torno de uma hóstia profanada. ii. A Eucaristia aumenta a fé a) Intensivamente: por via de mérito Os hábitos sobrenaturais infusos aumentam, não pela mera repetição de atos, mas pela maior intensidade com que são realizados. 1. Este mistério concentra as maiores di culdades de nossa fé. Exige os maiores sacrifícios para nossa inteligência.

É

2. É o ato de fé mais completo: a Eucaristia é o compêndio de todos os mistérios revelados. Requer, portanto, um ato de fé intensíssimo. 3. Não existe tributo de fé mais sublime que o de crer em Jesus Cristo, oculto enquanto Deus e enquanto homem sob os véus da hóstia. Intervêm a inteligência, a vontade, os sentidos... todo o ser. b) Extensivamente: pelo magistério de Cristo 1. É o depósito de nossa fé: na Eucaristia possuímos a Jesus e, com Ele, o passado, o presente e o futuro. a) O passado: guras e profecias que anunciam Jesus... A vida de Jesus... Sua pregação... b) O presente: Jesus é o centro da economia atual sob o tríplice aspecto da presença real, do sacrifício e da comunhão. c) O futuro: a Eucaristia é penhor de vida eterna: Futurae gloriae nobis pignus datur. 2. Contém o Verbo que fala: a) Cristo é a própria Verdade (Jo 14, 6) e veio ensiná-la (1Jo 5, 20). b) Veio dar-nos a vida eterna, que consiste em conhecermos a Deus e a Cristo, a quem Ele enviou (Jo 17, 3). c) Ele é antes de tudo Mestre (Rabi): “Vós me chamais Mestre, e o dizeis bem, pois o sou” (Jo 13, 13). E este magistério continua na Eucaristia. Santo Tomás diz que todo o efeito que Cristo tentou produzir em sua vida mortal, e de modo especial em sua Paixão, é o efeito próprio e especial da Eucaristia naquele que comunga ( , q. 79, a. 1). É

d) A comunhão é a individualização do magistério de Cristo. É preciso saber escutar o que nos é dito: sobre a vaidade do mundo (sombra que passa: 1Cor 7, 31), a grandeza de nossos destinos eternos, a renúncia a nossos egoísmos... c) Sensivelmente: pela experiência do divino 1. Os gozos inefáveis da Eucaristia con rmam nossa fé: Gustate et videte (Sl 33, 9). Dão-nos a “experimentação” da fé pelo amor. Isto é possível pela caridade. “Que a unção da caridade que recebestes permaneça em vós, e já não tereis necessidade de mestre, porque a unção vos ensinará todas as coisas” (1Jo 2, 27). 2. A Eucaristia nos dá “o sentido de Cristo”, porque nela nos é dada uma fé ardente que se in ltra até as últimas rami cações da vida. 3. Dá-nos o recta sapere, a sabedoria do viver cristão, que ajusta nosso pensamento e nosso viver com aquilo que Cristo nos pede. 4. Por isso era tão viva a fé dos santos (creriam eles que a noite é dia antes de duvidar da mínima verdade da fé). 5. Todos poderíamos chegar a essas alturas se soubéssemos comungar bem.

2. A Eucaristia, sacramento da esperança 136. 1. A esperança na vida humana: é a força que dá vida a todas as nossas atividades:

a) Tudo quanto fazemos, nós o fazemos com a esperança de conseguir algum bem; em última instância, a felicidade. b) Aquele que trabalha a terra espera alcançar o fruto de seu trabalho. Aquele que estuda, espera chegar ao conhecimento da verdade. Aquele que ora, espera alcançar os bens sobrenaturais. Aquele que se diverte, espera encontrar um descanso em sua diversão... 2. Se deixais de lado a esperança: a) Desaparecerá o trabalho e os frutos do trabalho. b) Desaparecerá o estudo e os progressos da civilização e da cultura. c) Não haverá mais oração, e será inútil levantar os olhos para o céu. d) Destruireis a vida e o mundo se transformará em uma sementeira de suicidas. i. Que é a esperança? a) Em si mesma 1. É um desejo ardente de alcançar um bem que ainda não possuímos e cuja consecução apresenta-se a nós como possível e, ao mesmo tempo, como difícil. 2. Motivos em que ela se fundamenta: são as forças com que contamos para conseguir a obtenção desse bem. Podem ser: a) Sobrenaturais, caso se trate de bens sobrenaturais: a graça, virtudes infusas, auxílios especiais de Deus... b) Naturais, quando se trata de um bem puramente natural: 1º — Pessoais: capacidade moral, forças físicas, riquezas... 2º — Não-

pessoais: ambiente social, amizades... b) Divisão geral da esperança 1. Pode ser natural ou sobrenatural, conforme sejam naturais ou sobrenaturais os motivos em que se fundamenta. 2. Diferença entre as duas: a) Esperança humana: uma tempestade surpreende César em alto mar, em uma barquinha; aquele que a guia treme ao ver o perigo de soçobrar. “Não tenhas medo, César vai contigo”. Mas a tempestade continuou. A esperança humana é falível. b) Esperança divina: Uma tempestade surpreende Cristo em alto mar, em uma barquinha. Os discípulos tremem... Então, levanta-se o Senhor, estende sua mão e a tempestade cessa... A esperança divina é infalível. ii. Que signi ca a esperança ordenada à vida eterna? a) Em si mesma 1. Santo Agostinho diz que, na edi cação da vida espiritual, o alicerce é a fé; a esperança são as paredes, e a caridade é seu coroamento e complemento. Logo, a esperança é como o impulso que nos faz subir... 2. Podemos de ni-la como a virtude teologal da expectativa da vontade na vida eterna mediante o auxílio de Deus. b) Em seus diversos objetos 1. O bem que a esperança pretende alcançar é: a) Primeiramente Deus, enquanto sumo bem. b) Secundariamente:

1º — Positivamente: qualquer bem, natural ou sobrenatural, ordenado à consecução do sumo bem. 2º — Negativamente: evitar todo mal que nos possa impedir a consecução deste bem. 2. O motivo em que se fundamenta: a onipotência misericordiosa de Deus. iii. A Eucaristia, sacramento da esperança. a) Em razão do objeto para o qual ela tende 1. O objeto primário é Deus, enquanto sumo bem. Na Eucaristia, nos é apresentado Deus feito homem; o mesmo que será o termo de nossa felicidade. 2. O objeto secundário positivo da esperança são os demais bens ordenados à vida eterna. Na Eucaristia nos é dado não um bem, mas a raiz de todo bem, e em vista da vida eterna... Futurae gloriae nobis pignus datur. 3. O objeto secundário negativo: evitar todo mal. Cristo, presente em nossas almas pela Eucaristia, é a luz que afugenta as trevas do mal. Quando Ele estende sua mão, acalmam-se as tempestades das paixões desenfreadas... b) Em razão do motivo em que se fundamenta 1. Na Eucaristia, não só nos é dado um auxílio de Deus, mas o próprio Deus, feito pão de misericórdia e alimento para nossa peregrinação. 2. Deus opera em nossa natureza, não destruindo-a, mas aperfeiçoando-a, revestindo-nos interiormente de seu poder, como a injetar-nos a força divina de que necessitamos para conseguir a vida eterna.

3. Esta infusão de forças divinas se realiza de modo eminente na recepção da Eucaristia, mediante a qual Deus vem até nossas almas: a) Como alimento de que necessitamos para atingir o m de nossos anseios. É o único alimento que nos pode dar forças su cientes para chegar até o m. “Aquele que come deste pão viverá eternamente” (Jo 6, 51). b) Da assimilação deste alimento brota a graça que nos dá o ser e o poder de operar e merecer na ordem sobrenatural, e nos torna possível alcançar a vida eterna. c) Brotam todas as virtudes morais infusas, que enriquecem e ampliam nossa capacidade, e a sobrenaturalizam. d) Da atuação destas virtudes segue-se o domínio sobre as paixões e desordens de nossa natureza, que são a causa de todo pecado. “O sangue de Jesus nos puri ca de todo pecado” (1Jo 1, 7). e) Além disso, enriquece nossas forças com o caudal de todos os merecimentos dos santos e dos justos, que se tornam um conosco em virtude deste sacramento: “Porque o pão é um, somos muitos em um só corpo, pois todos participamos desse único pão” (1Cor 10, 17). c) Porque alimenta nossa esperança ao longo de toda a vida 1. Ajuda no começo da vida: ao chegar ao uso da razão, quando começamos a ser responsáveis por nossos atos, Jesus Cristo nos é entregue para nos guardar e conduzir à vida eterna. 2. Ajuda em todos os transes e em todas as responsabilidades da vida: é o “pão dos fortes”, que leva a superar todas as adversidades e a valorizar todas as alegrias sub specie aeternitatis, à luz da eternidade.

3. Ajuda ao moribundo: o Viático é a a rmação da esperança. Quando já não há nada mais a esperar dos homens, da ciência, dos amigos..., espera-se tudo de Cristo, que vem oculto na Eucaristia. 4. Exemplo de Santo Tomás de Aquino: ao receber o Viático, ele se pôs de joelhos e disse: “Eu te recebo, preço do resgate de minha alma, alimento de meu peregrinar, por cujo amor estudei, trabalhei, vigiei, preguei e ensinei...”. d) Logo, a Eucaristia é o sacramento da esperança 1. Une-nos ao próprio Deus, objeto de nossa esperança. 2. E o próprio Deus forte se torna a força de nossas almas para que cheguemos à posse dele, que é a vida da vida eterna.

3. A Eucaristia, sacramento do amor 137. 1. O homem necessita de amor. Ele o sabe, ele o sente e o procura sem cessar. O amor o move em tudo, até ao ódio. 2. Mas... há esgotos de amor, e há mananciais puríssimos. Os santos bebem a água divina da Eucaristia, que é o sacramento do amor por causa de sua origem, por sua essência e por seus efeitos. i. Origem do sacramento da Eucaristia: o amor a) Previsão eterna

1. O pecado do homem suscitou a Encarnação. Deus se fez homem: o máximo amor de Deus em vez do máximo castigo. 2. A Eucaristia prolonga a Encarnação e seus benefícios de redenção e mediação. Cristo ainda está entre nós, com uma presença real, não simbólica. b) Origem temporal 1. O amor ao Pai e aos homens é tudo na vida de Cristo. Mas está sublimado nos momentos eucarísticos: a Ceia (sacramento); a Cruz (sacrifício). 2. Qui, pridie quam pateretur: no dia anterior à sua Paixão. A recordação de seu máximo sacrifício, de seu máximo ato de amor. “Ninguém tem amor maior que aquele que dá sua vida...” (Jo 15, 13). 3. A Ceia: o momento de maior intimidade de Cristo com os seus. Seu testamento: “Amai-vos... como Eu...”. Um novo mandamento (Jo 13, 34–35). Em seu discurso da Última Ceia, Jesus repete este mandamento dezessete vezes. E Cristo não se subtraiu a ele: amou... até dar sua vida por eles; até car para sempre com eles. 4. Nesta hora do amor, Ele instaura a máxima invenção do amor: a Eucaristia. ii. A essência do sacramento da Eucaristia: o amor A essência deste sacramento é constituída pela presença real de Cristo nas espécies sacramentais. a) Pela presença real de Cristo 1. Quem está na Eucaristia?

a) Cristo: o Verbo encarnado, em quem o Pai se compraz. O Filho Unigênito: Deus. E “Deus é amor” (1Jo 4, 8). b) Cristo: o Homem; o mais perfeito “Filho dos homens”. O amor em todo homem, eixo de sua vida. No Homem dos homens: Ecce homo (Jo 19, 5). 2. Por que está ali? a) Porque veio para dar a vida aos homens: “Se não comerdes da carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis vida em vós” (Jo 6, 53). b) Porque Ele nos ama profundamente. E o amor exige a presença do amado. b) Nas espécies sacramentais 1. Ele instituiu este sacramento sob estas espécies — de pão e vinho — para poder comunicar-se intimamente conosco em forma de alimento completo, transformando-nos nele e nos tornando um com Ele (Santo Tomás, liv. , Sent. d. 8, q. 1, a. 1, qc. 2c). 2. Já vistes uma mãe mordiscando seu lhinho como se desejasse incorporá-lo de novo em suas entranhas? É o amor humano em sua mais alta expressão. Pois aquilo que o amor humano pressente, mas não pode realizar, é isto que Jesus Cristo realizou: transformou-se em alimento para que o comamos e vivamos dele. 3. Nada é tão próprio da caridade como comunicar-se intimamente com o amado, e celebrá-lo com uma ceia ou refeição. A Eucaristia é o maior banquete de Cristo com os homens. c) Correlações entre a Eucaristia e a caridade 1. A Eucaristia: É o sacramento dos sacramentos, o mais excelente de todos. Usamos a expressão “sacramento” para a

Eucaristia, assim como “a Virgem” para Maria. Cantamos ao “Amor dos amores”... A caridade: “Mas a mais excelente das virtudes é a caridade” (1Cor 13, 13). 2. A Eucaristia: é o m dos demais sacramentos (Suma teológica, , q. 65, a. 3). A caridade: é o m das demais virtudes (Ibid., 1).

a- ae, q. 44, a.

3. A Eucaristia: é a perfeição das perfeições, porque contém a perfeição suprema e a fonte de todas as graças: Jesus Cristo. “A Eucaristia é chamada de sacramento da caridade porque é o vínculo da perfeição” (Ibid., , q. 73, a. 3, ad 3). A caridade: é igualmente o “vínculo da perfeição” (Cl 3, 14) porque une o homem a Deus: suprema perfeição da alma. 4. A Eucaristia: é para os demais sacramentos como a rainha para seus servidores (como a substância para os acidentes). A santidade dos demais sacramentos é causal e de sinal. A santidade da Eucaristia é, além disso e principalmente, o manancial de toda santidade: Jesus Cristo (Ibid., , q. 60, a. 1c e ad 3; q. 65, a. 3c). A caridade: Igualmente. a) Por ser virtude teologal: Deus é seu único objeto e motivo próprio. As não-teologais: seu objeto e motivo são algo criado. b) Superior, porém, à fé e à esperança: “A caridade olha para Deus para nele descansar, não para dele receber algo (Ibid., aae, q. 23, a. 6).

iii. Efeitos do sacramento da Eucaristia: o amor 1. Porque confere a graça santi cante: a vida de Deus. E “Deus é amor” (1Jo 4, 8). Ele faz de nós “amor”. 2. Por sua graça especí ca. “O efeito deste sacramento é a caridade, não só quanto ao hábito, mas também quanto ao ato que é excitado neste sacramento” (Ibid., , q. 79, a. 4). E isto somente pelo m da maior união com Deus. Máxima união = máximo amor: “Aquele que come [...] viverá por mim” (Jo 6, 58). 3. Comungamos com todas as virtudes da alma de Cristo. A maior delas é o amor. 4. Por meio do amor — efeito da Eucaristia — nós nos transformamos em Cristo: “Pela virtude deste sacramento se faz certa transformação do homem em Cristo pelo amor, e este é o efeito próprio deste sacramento” ( Sent., d. 12, q. 2, a. 2, sol. 1). 5. Causa a vida eterna: a vida do Amor. “Aquele que come deste pão viverá para sempre” (Jo 6, 52). “Ele quis que fosse o penhor de nossa futura glória e de nossa eterna felicidade” (Concílio de Trento). Conclusão 1. A vida cristã não é possível sem intensa vida eucarística. 2. Os demais sacramentos se ordenam para a Eucaristia e conferem a graça em ordem a ela. 3. As demais virtudes cristãs são meritórias enquanto informadas pela caridade, e esta, por sua própria essência de amor sobrenatural, deve gravitar sobre a Eucaristia. 4. Como a Eucaristia é a máxima doação de Deus ao homem, a doação proporcional do homem a Deus se faz pela caridade,

tornada incandescente pelo contato eucarístico.

4. A presença real de Cristo 138. 1. “Tendo Jesus amado os seus que estavam neste mundo, amou-os extremadamente até o m” (Jo 13, 1). Até as últimas exigências e possibilidades do amor. 2. Jesus nos dá a nota fundamental de toda amizade: o desejo de viver com a pessoa amada para sempre, sem interrupção. 3. Por isso Ele institui a Eucaristia. Neste sacramento: a) Ele se faz presente entre nós enquanto esperamos pela convivência de nitiva do céu. b) Ajuda-nos a alcançar essa gloriosa e inamissível posse de Deus, consumando a redenção junto com a Igreja. c) Pede-nos que correspondamos ao amor de seu coração, presente na Eucaristia. i. Jesus Cristo está presente, vive no sacrário a) O milagre da consagração do pão e do vinho Como Cristo se faz presente na Eucaristia? 1. Ao pronunciar o sacerdote as palavras da consagração, ocorre a misteriosa transubstanciação.

2. Toda a substância do pão e do vinho, e somente ela, se transforma em toda a substância, e somente ela, do Corpo e do Sangue de Cristo. 3. Do pão e do vinho não restam mais que todos os acidentes, e somente eles. b) A realidade profunda do mistério eucarístico 1. Quem está presente na Eucaristia? a) O próprio Jesus Cristo, cuja vida os Evangelhos nos contam. b) Aquele que agora vive glorioso, sentado à direita do Pai, contemplado pelos bem-aventurados no céu. 2. Como é essa presença? (D. 883). a) Real. Independentemente de nossa fé, vontade ou imaginação; mesmo que não o percebamos, nem o honremos. Ele está ali. b) Verdadeira. Não é apenas um sinal, como a bandeira o é da pátria. c) Substancial. Não apenas segundo seu poder ou graça, como na administração do Batismo ou da Con rmação. 3. O que essa presença substancial encerra? a) Seu corpo, com suas chagas da cruci xão, mas agora em estado glorioso. “Jesus Cristo, ressuscitado dos mortos, já não morre” (Rm 6, 9). b) Sua alma, bela, santa, inundada de alegria e de paz. 1º — Com seus re nados sentimentos de amizade, compreensão e compaixão... 2º — Com sua inteligência iluminada pela bem-

aventurada visão da Trindade e de todo o universo. Nada escapa ao seu olhar. c) E esta natureza humana subsiste na pessoa do Verbo, a quem os anjos adoram na eternidade. O Deus e Senhor do universo está na pequena hóstia do sacrário. ii. Jesus Cristo está presente por amor Ele quer ajudar-nos e cazmente a alcançar nosso céu: a) Com seu exemplo e seu poder Que faz Jesus presente na Eucaristia? O mesmo que em sua vida mortal: 1. Obedece. a) Obedecia antes a Maria e a José. “Era-lhes submisso” (Lc 2, 51). b) Agora obedece: 1º — Ao Pai: “Eu faço sempre o que é de seu agrado” (Jo 8, 29). 2º — A seus ministros: atendendo às palavras da consagração. 2. Vive pobremente. a) Antes não tinha onde reclinar a cabeça (Mt 8, 20). b) Agora: esses sacrários paupérrimos, uma caixa de madeira, sem ores, sem luzes!... 3. Está sozinho. a) Antes, muitos o abandonaram: “Também vós quereis ir embora?” (Jo 6, 67). b) Agora: tantos sacrários abandonados! 4. Atrai as almas.

a) Antes, era às vezes seguido por uma grande multidão (Jo 6, 2). b) Também agora é seguido por muitas almas sedentas de sua graça: esses milhões de éis dos congressos eucarísticos! A todos eles, podem referir-se as palavras do Evangelho: “O Mestre está aí e te chama” (Jo 11, 28). 5. Penetra os corações. a) Antes, Ele revelou seus segredos à samaritana. b) Ajoelha-te com freqüência, sem pressa, diante do sacrário, e Ele te ensinará a conhecer-te e a conhecê-lo. 6. É um taumaturgo. a) Os Evangelhos narram 38 milagres e se referem a muitos outros. b) Em nossos dias: lembrai os milagres de Lourdes e Fátima ao abençoar os enfermos a partir da custódia! B) Com sua graça Para que Jesus está presente na Eucaristia? 1. Ele não precisa de nós. Os anjos o adoram em nosso lugar. Mas nós temos urgente necessidade de nos aproximar da fonte de todas as graças. “Se alguém tem sede, venha a mim e beba” (Jo 7, 37). 2. Quantas graças! a) Ele nos sustenta na vida espiritual: 1º — Aumentando nossa fé. Nos aperfeiçoamos ao crer não só na divindade invisível oculta na humanidade, mas também em sua humanidade oculta no sacramento (Suma teológica, , q. 75, a. 1).

2º — Aumenta nossa esperança, ante a proximidade de quem está ali “para que tenhamos vida, e a tenhamos em abundância” (Jo 10, 10). 3º — In ama-se nossa caridade. Devemos corresponder ao amor que o mantém prisioneiro no sacrário; amor com amor se paga. b) Ele nos ajuda a levar os fardos da vida humana. Consola-nos em nossos trabalhos, desenganos e fracassos. “Vinde [...] e eu vos aliviarei” (Mt 11, 28). iii. Que nos pede Jesus, presente na Eucaristia? a) O amor de Jesus é el 1. Mas não quer impô-lo à força. Ele nos pede: “Permanecei no meu amor” (Jo 15, 9). 2. Se atendemos ao seu chamado, nossa vida será fecunda em santidade. “Aquele que permanece em mim (pela fé e pelo amor) e eu nele (pela graça), esse dá muito fruto” (Jo 15, 5). b) Correspondamos com delidade ao amor de Jesus 1. Ajoelhados diante do sacrário, supliquemos: “Fica conosco, Senhor” (Lc 24, 29). Nós precisamos de ti, Pão vivo, para não morrer de fome. a) Que seriam nossas cidades e aldeias, hospitais e colégios, sem a presença de Jesus Cristo? Do Bom Samaritano que consola e cura, do Bom Mestre que ensina a pureza, a humildade e a obediência? b) Que seriam nossas igrejas sem os sacrários? Vejamos as capelas protestantes, sem a presença real de Jesus Cristo: vazias, frias, tristes...

c) Que seria nossa vida cristã longe de Cristo? Ramo seco, preparado para o fogo. 2. Que Jesus eucarístico mantenha aceso em nós o fogo do amor a Deus e ao próximo. Nunca o esqueçamos: “Sem mim nada podeis fazer” (Jo 15, 5).

5. A Eucaristia nos une a Cristo e à Santíssima Trindade 139. 1. Amas a Cristo? E sabes o que é amar a Cristo? Aquele que ama procura pelo amado ansiosamente, sem descanso. Gostaria de ser um com o amado. 2. Amas a Cristo?... Olha, a luz do sacrário te chama, em um pestanejar de emoções, porque ali no sacrário, na hóstia, está Cristo, e te chama à “comum-união” com Deus. 3. Não sabes que “comendo” a Cristo te tornas um com Ele? Amas a Cristo? Então procura unir-te a Ele na Eucaristia. i. A Eucaristia é o sacramento da “comum-união” a) Une-nos a Cristo 1. Cristo está na Eucaristia. É de fé: foi dito por Ele, que é a própria verdade. Ali está Cristo inteiro: ) : Santíssima, gloriosa em suas chagas, triunfante em seu corpo glorioso. Luz, vida, amor. E cou na hóstia para nos transfundir sua vida — como a cepa ao ramo. Que seiva mais excelente é o sangue de Cristo!

) : Todo um Deus encerrado em um pouco de pão... Estranho, misterioso, mas está ali. Uma boa mãe dizia a seu lhinho, ao apontar-lhe a hóstia: “Olha, ali está Deus...”. E o menino olhava com os olhos bem abertos. Só via uma “bolacha branca”, mas... sua mãe não podia enganá-lo, porque o amava. A Igreja — tua Mãe — (e também o próprio Deus) dizem a ti: “Ali está o Senhor”. 2. Ao comungarmos, Ele se faz um conosco. Ele continua sendo Deus, e tu, homem, mas homem de Deus. Um com Ele. É difícil de compreender, mas fácil de experimentar para aquele que sabe amar. a) Tem semelhança com o alimento, que se assimila e incorpora ao organismo; mas aqui é ao contrário. Cristo nos assimila a Ele, faz-nos “deiformes”, transforma-nos em Deus. “Eu sou o alimento das grandes almas: crê e come-me; porque não me mudarás em ti como o alimento de teu corpo, mas tu te mudarás em mim” (Santo Agostinho. Con ssões, liv. 7, cap. 10). b) É como o ferro que se leva ao fogo e se torna incandescente. Somos ferro duro e frio. Ao contato de Cristo, nossa humanidade se tornará fogo de caridade divina. c) É como a cera derretida caindo pela vela; ela se adere e forma uma unidade com ela. O fogo e o amor de Cristo nos amolecem, nos “conformam” e nos fazem um com Ele: nos faz “deiformes”. Algo assim acontece na Eucaristia. Mas tudo é um débil resplendor... Somente no céu, quando a união for perfeita, veremos e viveremos sem metáforas esta íntima união. 3. E, como na hóstia está Cristo, Deus e homem verdadeiro: ) : “O Verbo se fez carne”. Deus Filho possuiu carne de homem e viveu trinta e três anos com os homens. Mas Ele “nos amou até o m”, e permaneceu conosco

para sempre. Ali!... O sacrário é a embaixada do reino dos céus, com um Embaixador real que se faz um com aqueles que se aproximam para recebê-lo. Ele é a vida de Deus em nossas almas. ) : A humanidade santíssima também está na hóstia: Hoc est corpus meum. O contato íntimo com Ele vivi ca nosso ser. Somos mais afortunados do que aqueles que só podiam tocar a orla de seu manto. Mas seu corpo é um corpo glori cado: “Formosura que leva a omitir a palavra humana” (Angela de Foligno). Participação da sua vida no céu. b) Une-nos à Santíssima Trindade 1. As Pessoas da Santíssima Trindade são inseparáveis: uma só essência, um só Deus verdadeiro. Ali onde está uma delas, estão necessariamente as outras duas. É o mistério da circuminsessão divina: “O Pai e eu somos uma mesma coisa”. O Espírito Santo é a expressão in nita de seu amor. Se a essência divina não os uni casse, o amor o faria: acaso podem estar separados aqueles que se amam?... 2. Por isso a alma se transforma em templo da Trindade. E o coração de carne participa — pela união substancial com a alma — do louvor e da glória presentes no culto da Trindade. 3. Por isso a alma se torna céu. A mesma vida da Trindade na alma. Este é o grande mistério que nos fará felizes no céu. A luzinha de nossa inteligência é demasiado fraca para compreendêlo... a) O Pai está em nós, fazendo-nos sentir sua paternidade, amando-nos profundamente em seu Filho e dando-nos um redentor: “Este é meu Filho muito amado...”. Ele nos apresenta a seu Filho, que é caminho, verdade e vida... b) Jesus está presente — mesmo depois de desaparecidas as espécies — pela irradiação de seu amor. Ele nos preencheu,

vivemos nele (como peixe no oceano; como esponja submersa que tem todos os seus poros preenchidos). Já não é possível deixar de pensar e de viver como Ele. Luz, ilumina até as coisas humanas. E como ilumina as inteligências! As almas eucarísticas “sabem” muito sobre Deus. É uma participação na luz beatí ca... c) E o Espírito Santo, amor do Pai e do Filho: Vinculum caritatis; amor e fogo que puri ca a escória do homem para divinizá-lo: “Vem, Espírito Santo, enche os corações de teus éis e acende neles o fogo de teu amor...”. A Eucaristia é para nós um eterno Pentecostes... ii. Meios para conservar e tornar fecunda a união a) Cuida do decoro da casa de Deus “Não sabeis que sois templo de Deus?...” (1Cor 3, 16). 1. Foge das faltas leves, e não só do pecado mortal. Tens convidados em casa? Como trabalhas com afã! Tens a Deus em tua alma? Arranca, corta, rasga..., mas que Deus se agrade em ser teu hóspede. 2. Gostas que as ores enfeitem o teu lar...; apresenta a Jesus as ores de tua virtude. Estas lhe agradam mais que aquelas do altar, porque não murcham. Para consegui-lo, procura a irrigação de sua graça. b) Torna consciente a presença de Jesus 1. Deixas de lado os teus convidados? E deixas, o dia inteiro, Cristo em um canto de tua alma! É uma falta de cortesia que se paga caro: Ele se calará, e viverás tristemente sozinho... 2. Já vistes uma criança adormecida nos braços de sua mãe? Ela é feliz — experiência sensível do calor materno — mas não sabe disso. Se ela soubesse o quanto vale ter uma mãe! Tua união

eucarística será tanto mais frutuosa quanto mais consciente a zeres. c) Vive tua união com Deus 1. Em teu trabalho, junto a Ele, com espírito redentor, sem perder a união... 2. No sofrimento: “A Eucaristia é o sacramento da Paixão de Cristo no sentido de que o homem é consumado em sua união a Cristo cruci cado” (Suma teológica, , q. 73, a. 3, ad 3). Ela te dará força, vigor e até — sem tendências doentias — amor pela cruz. “Cada dor é um beijo que o cruci xo nos dá, e um novo traço de semelhança que temos com Jesus” (Mons. Gay). 3. Na alegria: “Alegrai-vos sempre no Senhor” (Fl 4, 4). Como soam vazias as descompassadas gargalhadas dos maus!... Tu, alegre — porque Cristo vive em ti —, alegre na criatura, porque te ajuda a ir para Deus. Cristohóstia, o centro de tua alegria. 4. En m... um com Cristo: em todo trabalho, em todo momento, sempre! Lema urgente: “Meu viver é Cristo”. “Em Cristo vivemos, nos movemos e somos”. Conclusão São Filipe Néri mandou que dois acólitos saíssem com velas acesas para acompanhar uma pessoa que, ao comungar, deixava imediatamente o templo. Não te esqueças disto: Cristo, Deus, quer que sua presença esteja iluminada com dois castiçais: a fé — crer fortemente em sua in uência viva e fecunda — e a caridade, para corresponder ao seu amor in nito. Fé e amor hão de tornar fecunda a tua união, até que a vejas e sintas perfeitamente no céu.

6. Une-nos ao Corpo místico de Cristo 140. 1. Missa solene em uma grande catedral; um príncipe cristão se aproxima da mesa sagrada. Missa em uma pobre igreja de uma aldeia afastada; na mesa sagrada, uma velhinha. Muito longe, em um remoto rincão da selva, celebra-se uma Missa; um pobre selvagem se aproxima pela primeira vez da mesa sagrada... Todos recebem o mesmo Corpo de Cristo. 2. O príncipe, a velhinha, o selvagem... são um mesmo “corpo”, pois participam do mesmo pão. i. O Corpo místico Esta é uma expressão metafórica que encerra uma profunda realidade. Todos nós que estamos na verdadeira Igreja formamos um só “organismo espiritual”, do qual a Cabeça é Cristo. a) Membros deste organismo 1. Em ato. a) Os bem-aventurados, unidos indissoluvelmente a Cristo na glória eterna. b) Os justos, unidos a Cristo pela graça: 1º — Almas do purgatório: já asseguraram o prêmio. 2º — Justos na terra: lutam para assegurar o prêmio. c) Os pecadores, unidos a Cristo pela fé, mas sem a vida divina da graça: membros mortos.

2. Em potência: Aqueles que não têm a graça nem a fé, mas que são capazes de receber ambas, já que estão elevados à ordem sobrenatural: todos os demais homens do mundo. b) Cristo, princípio de união destes membros Pela Eucaristia nós nos incorporamos a Cristo; e por Cristo nos unimos ao Corpo místico de uma maneira misteriosa, mas realíssima. ii. Jesus-hóstia nos une ao Corpo místico a) Pela Eucaristia nós nos incorporamos a Cristo 1. “Quem come minha carne e bebe meu sangue permanece em mim e eu nele” (Jo 6, 56). 2. “Aquele que come deste pão viverá eternamente” (Jo 6, 58). 3. “Se não comerdes a carne do Filho do Homem [...] não tereis a vida em vós” (Jo 6, 53). a) Refere-se à vida da graça. b) Ao receber a Cristo, somos “assimilados” à sua própria vida. b) Por meio de Cristo nos unimos ao Corpo místico 1. Todo membro que se une à cabeça também se une aos membros que dela dependem. 2. “Eu neles [...] para que sejam perfeitos na unidade” (Jo 17, 23). 3. “Embora muitos, somos um só corpo, pois participamos de um único pão” (1Cor 10,17). 4. “Para que o amor com que tu me amaste esteja neles, e eu neles” (Jo 17, 26).

5. Todos estamos unidos em caridade, “como muitos grãos de trigo formam o pão” (Santo Agostinho). iii. Conseqüências 1. Nos une a Maria. a) A Encarnação — que tornou possível a Eucaristia — é obra de Maria: Fiat. b) O sangue e a carne de Jesus são inteiramente de Maria. Se houvesse uma comunhão de Maria!... Na verdade, ela quase existe. c) A maternidade espiritual de Maria se consuma na Eucaristia: os dois lhos de Maria estão intimamente unidos... 2. Nos une aos anjos. a) É o pão dos anjos. b) Os anjos se nutrem do Verbo. c) A humanidade de Cristo os extasia. d) A alegria particular de nosso anjo da guarda quando comungamos. 3. Nos une aos bem-aventurados. a) Eles vêem, e nós não; mas possuímos realissimamente a mesma coisa. b) A alegria que uma boa comunhão produz nos bemaventurados... Eles o vêem no Verbo... “Há grande alegria no céu” (cf. Lc 15, 7). 4. Nos une às almas do purgatório.

a) Podemos comunicar-nos com nossos queridos defuntos. b) O dogma da Comunhão dos Santos. c) O meio: a oração, os sufrágios. Sobretudo a Missa e a Comunhão: 1º — A Missa: é o que diz o Concílio Tridentino (D 950): “Recebe o poder de celebrar a Missa pelos vivos e defuntos” (ordenação sacerdotal). 2º — A comunhão: nós oferecemos o sangue redentor de Cristo, o preço in nito do resgate. 5. Nos une a todos os cristãos. a) É o grande sacramento da fraternidade. — A Eucaristia e o mandamento do amor. — Os primeiros cristãos e a fração do pão. — Nunca somos tão irmãos: o mesmo sangue... b) A Eucaristia e o apostolado: e cácia de uma Comunhão para converter um pecador, salvar um moribundo, aliviar as almas do purgatório... c) É o grande sacramento da caridade. — Nada se perde na Igreja: dentro de mil anos, talvez, um raio de luz, irradiando de nossa Comunhão, salvará uma alma e a lançará nos braços de Deus por toda a eternidade.

7. Preserva-nos do pecado 141. 1. A vida do homem é um contínuo combate na luta por sua existência. São muitos os inimigos que o rodeiam. Ele usa de todos

os meios para conservar a saúde do corpo. E o instinto de conservação quer superar todas as di culdades... 2. Também nossa alma, vivi cada pela graça, se vê ameaçada e atacada, assim como nosso corpo. Conhecemos a necessidade que temos de lutar para viver na graça. O pecado venial nos enfraquece, e o pecado mortal nos tira a vida da alma. É preciso preservar-se contra eles. i. A Eucaristia preserva dos pecados futuros Santo Tomás o prova pela analogia que existe entre a vida natural e a sobrenatural (Suma teológica, , q. 79, a. 6). a) No corpo 1. Duas causas produzem a morte do corpo: a) Uma intrínseca: o princípio de corrupção. b) Outra extrínseca: a ação de agentes externos. 2. Remédios contra esta morte: a) Intrínsecos: alimentos, medicamentos... b) Extrínsecos: cuidados, vigilância, toda arma defensiva e ofensiva. b) Na alma 1. Duas causas produzem a morte da alma: a) Intrínseca: más paixões. b) Extrínseca: maus exemplos do mundo e sugestões do demônio. 2. Remédios contra esta morte: um dos principais é a Eucaristia, já que ela nos

preserva: a) Dos pecados veniais, que debilitam as forças da alma. b) Dos pecados mortais, que ocasionam a morte na ordem sobrenatural. ii. Preserva e perdoa os pecados veniais 1. Eles são um estorvo para a união com Deus. a) Porque supõem uma desordenada orientação para o bem criado, que nos desvia um pouco de Deus. Eles retardam, esfriam e debilitam o afeto amistoso e o fervor que nos une a Deus. b) São um verdadeiro mal, uma mancha que des gura a alma e nos priva de muitas graças. c) Daí a necessidade e a conveniência de nos puri carmos totalmente. 2. Nos preserva dos pecados veniais: a) Porque o corpo, ao se alimentar, recupera as forças perdidas. b) A Eucaristia é o alimento da alma e a fortalece. 3. A Eucaristia perdoa os pecados veniais (Ibid., 5).

, q. 79, a. 4 e

a) Indiretamente: enquanto a Eucaristia, por sua própria natureza e força ingênita, move aquele que comunga a realizar atos de amor, apagando-lhe a culpa e a pena. b) Diretamente ex opere operato. O m da Eucaristia é a união da alma com Cristo, o amor: os pecados veniais se opõem ao amor. A Eucaristia apaga os pecados veniais: o fogo destrói a frieza...

iii. Preserva dos pecados mortais a) A Eucaristia nos preserva dos pecados mortais (D. 875) 1. São João diz (6, 35 ss.): É o pão da vida que preserva da morte. 2. É alimento que fortalece o coração do homem, consolida-o e con rma-o na vida espiritual. 3. É luz que nos mostra com clareza quem são os nossos inimigos. 4. É medicamento que cura as enfermidades e as destrói antes que se desenvolvam. b) A Eucaristia nos defende contra os inimigos mortais 1. Confere uma graça abundantíssima; é uma ajuda contra os ataques do mundo com seus escândalos e seduções. 2. É escudo de proteção contra os ataques do demônio, já que ela é a representação da Paixão, pela qual ele foi vencido. 3. Nos torna fortes contra nossa própria carne: comunica-nos a vitalidade do próprio Cristo. iv. Perdoa os pecados mortais inconscientes a) Pecado mortal consciente Quem se encontra em pecado mortal consciente não pode receber a graça pela Eucaristia: 1. Não tem vida espiritual e não pode tomar alimento espiritual (está morto, e os mortos não comem).

2. Não pode se unir a Cristo; tem afeição pelo pecado mortal (ama desordenadamente as criaturas no lugar de Deus). 3. Cometeria um pecado horrendo: o sacrilégio: “Quem come o pão e bebe o cálice do Senhor indignamente, será réu do Corpo e do Sangue do Senhor” (1Cor 11, 27). 4. A comunhão sacrílega é uma horrível antítese: amor e desamor ao mesmo tempo. b) Pecado mortal inconsciente 1. Aquele que recebe a Cristo em pecado mortal inconsciente (por exemplo, por se ter esquecido de que o cometeu) não comete sacrilégio: a) Não há verdadeiro sacrilégio sem perceber que se o comete. b) Poderia a alma que se julga livre do pecado achar a morte onde Deus pôs a vida? c) A misericórdia de Deus é in nita. 2. A Eucaristia apaga esse pecado mortal inconsciente que o mantém afastado de Deus, e comunica-lhe a vida da graça e a graça do sacramento. a) Porque o pecado, considerado materialmente, não é obstáculo para a graça; se assim fosse, o Batismo e a Penitência seriam inúteis. b) É a má vontade que se opõe à graça... c) Mas é necessário, ao menos, que se tenha a dor de atrição sobrenatural (sem arrependimento não há perdão). Por isso a Igreja faz preceder a recepção da Eucaristia por atos de contrição e penitência: Con teor... Misereatur... Ecce Agnus...

Conclusão Comunhão freqüente. Daqui se deduz a necessidade que temos de nos aproximar com freqüência da mesa eucarística. Assim nos ensina a Igreja. 1. O Concílio de Trento (D. 94) deseja que, a cada dia, os éis comunguem na Missa. São Pio também o aconselha (D. 1981). 2. Jesus Cristo comparou a Eucaristia ao pão e ao maná (Jo 6, 59), dando a entender que a Eucaristia é tão necessária à vida da alma quanto o pão e o maná para a vida do corpo. 3. Mas é necessário aproximar-se dignamente, para que todo o seu fruto seja produzido. Se muitas vezes não o conseguimos, é por falta de preparação.

8. Desenvolve a vida cristã 142. 1. Tu que estás lendo isto: re ete um momento comigo. Acima desta vida “natural” de negócios, oportunidades, diversões, prazeres, sofrimentos, amores e ódios, existe outra vida muito mais elevada e mais digna, “sobrenatural”: a vida cristã. 2. Vives tua vida cristã? Ao longo dos anos tu a desenvolveste? Conheces os meios de progresso? i. A vida cristã a) É vida

1. Nasce com o Batismo, que nos dá a graça santi cante com todo o cortejo de dons sobrenaturais. 2. Cresce e se desenvolve por meio dos sacramentos, pela prática das virtudes, pela oração. 3. Pode morrer pelo pecado mortal ou fossilizar-se pelo venial. 4. Mas, por natureza, deve ser progressiva: “Sede perfeitos como é perfeito o vosso Pai, que está nos céus” (Mt 5, 48). b) É cristã 1. Emana de Cristo. Ele a ganhou para nós no Calvário. 2. Ele é o modelo, o exemplo que devemos reproduzir em nossas vidas. 3. Por conseguinte, é sobrenatural: a) Em seus princípios: a graça, presente de Deus, não-merecido. b) Em seus efeitos: atos meritórios para a vida eterna. c) Em seu m: Deus sobrenatural. Visão beatí ca. ii. A Eucaristia e seus efeitos na alma A Eucaristia é um alimento espiritual que produz em nossas almas os mesmos efeitos que produz no corpo o alimento corporal (Suma teológica, , q. 79, a. 1). a) Sustenta 1. Porque é pão. A Eucaristia é o pão da alma. O efeito imediato do pão é o sustento daquele que o come. “Este é o pão que vem do céu, a m de que não morra aquele que o come [...]. Se alguém comer deste pão, viverá eternamente” (Jo 6, 52). É

2. É pão de união com a Vida. Coniunctio, diz Santo Tomás. “Quem come minha carne e bebe meu sangue permanecerá em mim e eu nele” (Jo 6, 57). b) Desenvolve 1. A vida sobrenatural não conhece a lei do retrocesso. Se o sofre, é por imposição do pecado e suas conseqüências. 2. A vida sobrenatural aumenta até a total expansão no céu, até chegar “à idade da plenitude de Cristo” (parábola do grão de mostarda: Mt 13, 31–32). 3. Doutrina de Santo Tomás: a) O Batismo, ato inicial da vida divina no homem. b) A Eucaristia, sua perfeição e complemento ( a. 2; , q. 79, a. 1, ad 1).

Sent., d. 8, q. 1,

c) Refaz 1. A vida sobrenatural tem seus desgastes, tal como a vida física; não pelo uso e pelo exercício da mesma, mas: a) Pela ação da vontade mal inclinada. b) Pelo pecado. c) Pela inatividade das forças sobrenaturais. “Quem não progride, retrocede”. 2. É fonte de todas as graças. a) Causa a graça ex opere operato, como o fogo queima por si mesmo. b) Dá-nos o Autor da graça.

3. Com a graça cresce todo o organismo sobrenatural. a) A graça, fundamento e raiz de todas as virtudes e dons; sobretudo das virtudes teologais: 1º — A fé: Eucaristia, sacramentum dei. 2º — A esperança: “Dá-nos um penhor da glória futura”. 3º — A caridade: sacramento do amor. Deus caritas est. b) Paralelismo perfeito entre o crescimento da graça e a vida sobrenatural. 4. Remédio contra o pecado venial. “Pela Eucaristia são apagadas nossas faltas diárias” (Concílio de Trento: D. 875). d) Deleita 1. Cristo anuncia a instituição da Eucaristia sob a gura de um banquete: “Um homem preparou uma grande ceia”. 2. A tradição cristã sempre deu à Eucaristia o nome e o caráter de um banquete. E o banquete produz bem-estar, alegria, prazer de viver... 3. A Eucaristia produz prazer espiritual. Assim se expressa Santo Tomás: “Em virtude deste sacramento, a alma se refaz espiritualmente ao se sentir deleitada e como que embriagada pela doçura da bondade divina” (Suma teológica, , q. 79, a. 1, ad 2). Conclusão 1. Cristãos, comungai! 2. E se vos dessem mil reais a cada vez que comungásseis... E não percebeis que, na realidade, vos é entregue uma fabulosa fortuna?... um tesouro rigorosamente in nito, que vos torna

milionários, não para setenta ou oitenta anos, mas para toda a eternidade?... 3. Ah! Se tivéssemos fé!... “Se conhecesses o dom de Deus!” (Jo 4, 10).

9. Disposições para comungar 143. Nos números anteriores, vimos a decisiva importância da Eucaristia na vida cristã. Porém, para extrair dela sua máxima e cácia santi cadora, é preciso preparar-se de modo conveniente para receber em nossas almas esse divino alimento e bem o assimilar depois de recebê-lo. É o que vamos examinar neste número e no seguinte.184 É preciso distinguir uma dupla preparação: a remota e a próxima. a) Preparação remota. O grande pontí ce São Pio , pelo Decreto Sacra Tridentina Synodus, de 20 de dezembro de 1905, resolveu para sempre a histórica controvérsia sobre as disposições requeridas para receber a Sagrada Comunhão. O papa determinou que, para receber frutuosamente a comunhão freqüente e mesmo diária, são requeridas somente as seguintes condições: a) Estado de graça (do contrário seria um sacrilégio). b) Reta intenção, ou seja, que não se comungue por vaidade, rotina, etc., mas para agradar a Deus e santi car a alma. É

c) É muito conveniente estar limpo de pecados veniais, mas não é absolutamente necessário: a comunhão ajudará a vencê-los. d) Recomenda-se a diligente preparação e a ação de graças. e) Deve-se proceder com o conselho do confessor. Não se pode privar da Comunhão freqüente, e até mesmo diária, a ninguém que reúna estas condições. De qualquer modo, é evidente que as pessoas que queiram progredir seriamente na perfeição cristã devem procurar intensi car ao máximo estas condições. Sua preparação remota deve consistir em levar uma vida digna de quem comungou pela manhã e voltará a comungar no dia seguinte. É preciso insistir principalmente em deixar de lado todo apego ao pecado venial, sobretudo o plenamente deliberado, e em combater a maneira tíbia e imperfeita de agir, o que supõe a perfeita abnegação de si mesmo e a tendência à prática do mais perfeito para nós em cada caso, consideradas as circunstâncias. b) Preparação próxima. São quatro as principais disposições próximas que a alma fervorosa deve buscar excitar em si mesma, implorando-as a Deus com humilde e perseverante insistência: ) . — Cristo sempre a exigia como condição indispensável antes de conceder uma graça, mesmo de tipo material (milagre). A Eucaristia é por antonomásia o mysterium dei, já que nem a razão, nem os sentidos nada percebem nela. Santo Tomás recorda que na Cruz se ocultou somente a divindade, mas no altar desaparece inclusive a humanidade santíssima: Latet simul et humanitas. Isto exige de nós uma fé viva transpassada de adoração.

Porém, a fé é absolutamente indispensável, não só no sentido do assentimento vivo ao mistério eucarístico, mas também em ordem à virtude vivi cante do contato com Jesus. Temos de considerar em nossas almas a lepra do pecado e repetir com a fé vivíssima do leproso do Evangelho: “Senhor, se queres, podes limpar-me” (Mt 8, 2); ou como a do cego de Jericó — menos infeliz com a privação da luz material do que nós com a cegueira de nossa alma: “Senhor, que eu veja” (Mc 10, 51). ) . — Jesus Cristo, antes de instituir a Eucaristia, lavou os pés de seus apóstolos para lhes dar o exemplo (Jr 13, 15). Se a Santíssima Virgem se preparou para receber em suas entranhas virginais o Verbo de Deus com aquela profundíssima humildade que a fez exclamar: “Eis aqui a escrava do Senhor” (Lc 1, 38), que devemos nós fazer em semelhante conjuntura? Não importa que nos tenhamos arrependido perfeitamente de nossos pecados e que atualmente nos encontremos em estado de graça. A culpa foi perdoada, possivelmente também o reato da pena (se zemos a devida penitência), mas não desaparecerá jamais o fato histórico de termos cometido aquele pecado. Não nos esqueçamos, seja qual for o grau de santidade em que atualmente nos encontremos, de que fomos resgatados do inferno e somos ex-presidiários de Satanás. O cristão que tenha experimentado, alguma vez em sua vida, a desgraça de cometer um só pecado mortal, deveria estar sempre aniquilado de humildade. Pelo menos, ao nos aproximarmos para comungar, repitamos por três vezes, com sentimentos de profundíssima humildade e vivíssimo arrependimento, a sublime fórmula do centurião: Domine, non sum dignus... ) . — É preciso que a recordação de nossos pecados nos leve à humildade, mas não ao abatimento, que seria uma forma disfarçada de orgulho. Jesus Cristo é o grande perdoador, que acolheu com in nita ternura a todos os pecadores que dele se aproximaram em busca de perdão. Ele não mudou de

atitude; é o mesmo do Evangelho. Aproximemo-nos dele com humildade e reverência, mas também com imensa con ança em sua bondade e misericórdia. Ele é o Pai, o Pastor, o Médico, o Divino Amigo, que quer estreitar-nos contra seu coração palpitante de amor. A con ança o dobra e o vence: não pode resistir a ela, pois lhe rouba o coração... ) . — Esta é a disposição que afeta mais diretamente a e cácia santi cadora da Sagrada Comunhão. Esta fome e sede de receber Jesus sacramentado, que procedem do amor e quase se identi cam com ele, amplia a capacidade da alma e a dispõe para receber a graça sacramental em grandíssimas proporções. A quantidade de água que se colhe da fonte depende, em cada caso, do tamanho do vaso que se leva. Se nos preocupássemos em pedir ardentemente ao Senhor esta fome e esta sede da Eucaristia e procurássemos intensi cá-la com todos os meios ao nosso alcance, rapidamente seríamos santos. Santa Catarina de Sena, Santa Teresa de Jesus, Santa Micaela do Santíssimo Sacramento e muitas outras almas santas tinham uma fome e uma sede tão devoradoras de comungar, que se teriam exposto aos maiores sofrimentos e perigos para não perderem por um só dia o divino alimento que as sustentava. Temos de ver precisamente nestas disposições, não somente um efeito, mas também uma das causas mais e cazes de sua elevada santidade. Recebida com desejos tão ardentes, a Eucaristia aumentava a graça em suas almas em um grau incalculável, fazendo-as avançar a passos largos pelos caminhos da santidade. Na realidade, cada uma de nossas comunhões deveria ser mais fervorosa que a anterior, aumentando nossa fome e sede da Eucaristia. É que cada nova Comunhão aumenta o caudal de nossa graça santi cante, e nos dispõe, em conseqüência, a receber o Senhor no dia seguinte com um amor não só igual, mas muito maior que o da véspera. Aqui, como em todo o processo da vida

espiritual, a alma deve avançar com um movimento uniformemente acelerado; algo parecido com uma pedra que cai com maior rapidez à medida que mais se aproxima do solo.185

10. A ação de graças 144. Para o grau de graça que o sacramento nos há de aumentar ex opere operato, é mais importante a preparação que a ação de graças. Pois esse grau está relacionado com as disposições atuais da alma que se aproxima para comungar, e, por conseguinte, têm de ser anteriores à Comunhão.186 De qualquer modo, a ação de graças também é importantíssima. “Não percais tão boa oportunidade de negociar como é a hora depois de ter comungado”, dizia com razão Santa Teresa de Jesus para suas monjas.187 Cristo está presente em nosso coração, e Ele nada deseja tanto como nos encher de bênçãos. A melhor maneira de dar graças consiste em identi car-se pelo amor com o próprio Cristo, e oferecê-lo ao Pai, com todas as suas in nitas riquezas, como suavíssima oblação pelas quatro nalidades do sacrifício: adoração, reparação, petição e ação de graças. É preciso evitar a todo custo o espírito de rotina, que esteriliza a maior parte das ações de graças depois de comungar. São legião as almas devotas que já têm sua ação de graças previamente concebida — com base em rezas e fórmulas de devocionário — e só cam tranqüilas depois de recitá-las mecanicamente. Nada de contato íntimo com Jesus, de conversação cordial com Ele, de fusão de corações, de petição humilde e profunda das graças de que necessitamos hoje, que talvez sejam completamente diferentes

daquelas de que vamos precisar amanhã. “Eu não sei o que dizer ao Senhor”, elas respondem quando são estimuladas a abandonar o devocionário e se entregar a uma conversa amorosa com Ele. E assim não tentam sequer sair de sua rotineira formalidade. Se o amassem de verdade e se esforçassem um pouco em ensaiar um diálogo de amizade, silencioso, com Seu amantíssimo coração, logo experimentariam repugnância e náuseas diante das fórmulas do devocionário, compostas e escritas pelos homens. A voz de Cristo, suavíssima e inconfundível, ressoaria no mais profundo de sua alma, educando-a no caminho do céu e estabelecendo nela aquela paz que “supera todo entendimento” (Fl 4, 7). Outro meio excelente de dar graças é reproduzir em silêncio algumas cenas do Evangelho, imaginando que somos nós os protagonistas diante de Cristo, que está ali realmente presente: “Senhor, aquele que amas está enfermo” (dizem as irmãs de Lázaro em Jo 11, 3); “Senhor, se queres, podes limpar-me” (o leproso em Mt 8, 2); “Senhor, que eu veja” (o cego de Jericó em Mc 10, 51); “Senhor, dá-me sempre dessa água” (a samaritana em Jo 4, 15). “Senhor, aumenta a nossa fé” (o pai do lunático em Mc 9, 24); “Senhor, ensina-nos a orar” (um discípulo em Lc 11, 1); “Senhor, mostra-nos o Pai, e isto nos basta” (o apóstolo Filipe em Jo 14, 8); “Senhor, a quem iremos? Tu tens palavras de vida eterna” (o apóstolo São Pedro em Jo 6, 68). Como Nosso Senhor se alegrará ao ver a simplicidade, a fé e a humildade dos novos leprosos, cegos, enfermos e ignorantes, que se aproximam dele com a mesma con ança e amor que seus irmãos do Evangelho! Como será possível que deixe de atender, se Ele é o mesmo de então — não mudou de condição — e nós somos tão miseráveis, e ainda mais que aqueles do Evangelho! Não há nada que comova tanto o seu Divino Coração como uma alma sedenta de Deus que se humilha reconhecendo suas chagas e misérias, e lhe implora o remédio para elas.

. — É conveniente prolongar a ação de graças ao menos por meia hora. É uma espécie de irreverência e indelicadeza para com o Divino Hóspede tomar a iniciativa de terminar o quanto antes a visita que Ele se dignou fazer-nos. Não fazemos assim com as pessoas do mundo que nos merecem algum respeito, mas esperamos que elas dêem por terminada a entrevista. Jesus prolonga sua visita à nossa alma durante todo o tempo em que permanecem substancialmente, sem alterações, as espécies sacramentais, e embora não se possa dar uma regra xa a este respeito — depende da força digestiva de cada um —, pode-se indicar uma meia hora como o termo médio em uma pessoa

normal. Permaneçamos todo esse tempo aos pés do Mestre, ouvindo seus divinos ensinamentos e recebendo sua in uência santi cadora. Somente em circunstâncias anormais e extraordinárias — um trabalho ou uma necessidade urgente, etc. — preferiremos abreviar a ação de graças em lugar de abrir mão da Comunhão, suplicando então ao Senhor que supra com sua bondade e misericórdia o tempo que não lhe possamos dar naquele dia. Em todo caso, não se deve fazer o desjejum — se for possível sem grave incômodo — senão depois de meia hora após ter recebido a Sagrada Comunhão.188

11. A comunhão espiritual 145. Um grande complemento da Comunhão sacramental que prolonga sua in uência e assegura sua e cácia é a chamada comunhão espiritual. Consiste essencialmente em um ato de fervoroso desejo de receber a Eucaristia e em dar ao Senhor um abraço muito apertado, como se realmente Ele acabasse de entrar em nosso coração. Esta prática piedosíssima, abençoada e estimulada pela Igreja, é de grande e cácia santi cadora e tem a vantagem de poder ser repetida inúmeras vezes durante o dia. Algumas pessoas a associam a uma determinada atividade que se tenha de repetir muitas vezes (por exemplo, ao rezar a Ave-Maria quando o relógio bate as horas). Nunca se louvará su cientemente esta excelente devoção; mas evite-se cuidadosamente a rotina e a pressa, que põem tudo a perder.

12. A visita ao Santíssimo

146. Esta é outra excelente prática que as pessoas desejosas de se santi car não omitirão um só dia. Consiste em passar um momentinho — repetido várias vezes ao dia, se possível — aos pés do Mestre, presente na Eucaristia. A hora mais oportuna é ao entardecer, quando a lampadazinha do Santíssimo começa a prevalecer sobre a luz da tarde que se vai.189 Nesta hora misteriosa, tudo convida ao recolhimento e ao silêncio, que são excelentes disposições para ouvir a voz do Senhor no mais íntimo da alma. O melhor procedimento para realizar a visita é expandir livremente o coração em fervoroso colóquio com Jesus. Para isso, não é preciso ter estudo nem eloqüência alguma, mas unicamente amar muito o Senhor e ter com Ele a con ança e a simplicidade infantil de uma criança com seu pai amantíssimo. Os livros podem ajudar a certa classe de espíritos, mas de nenhum modo poderão superar a espontaneidade e a simplicidade de uma alma que abre de par em par o seu coração aos e úvios de amor que emanam de Jesus Cristo Sacramentado.

CAPÍTULO IV | A Penitência do leigo 147. A ordem lógica dos sacramentos é esta: primeiro o Batismo, que nos regenera em Cristo, e sem o qual não se pode receber nenhum outro sacramento; em segundo lugar, a Con rmação, que reforça e fortalece em nossas almas a graça batismal, dando-nos a energia sobrenatural de que necessitamos para confessar e defender valentemente nossa fé cristã; e, em terceiro lugar, a Eucaristia, que alimenta nossa alma com o divino manjar do Corpo de Cristo, e à qual se ordenam, como a seu m, todos os demais sacramentos.

Se o cristão permanecesse sempre el a esta tríplice graça sacramental, o sacramento da Penitência não teria razão de existir. Porém, por infelicidade, a fraqueza e a debilidade humanas são tão grandes que o homem desfalece com freqüência no caminho empreendido e cai de bruços no solo. A misericórdia de Deus previu essa falha da miséria humana e providenciou o remédio oportuno para nos levantar de nossas quedas, inclusive para nos ressuscitar novamente para a vida da graça, se tivéssemos experimentado a espantosa desgraça de perdê-la pelo pecado mortal. Tal remédio recebe o nome de sacramento da Penitência (cf. D. 894). É de fé — como já dissemos ao falar dos outros sacramentos — que Cristo instituiu os sete sacramentos que a Igreja reconhece e administra, entre eles o sacramento da Penitência (cf. D. 844 e 911). O sacramento da Penitência coloca uma série de problemas interessantíssimos para todos os cristãos, mas sobretudo para os leigos que vivem no meio das estruturas do mundo. É impossível reuni-los todos aqui, em sua extensão e amplitude. Recorrendo, porém, ao sistema esquemático, como temos feito em outras ocasiões, esperamos oferecer ao leitor seus aspectos mais fundamentais, em uma linguagem sintética, mas su cientemente clara e expressiva.190

1. A penitência como virtude 148. Contemplemos por um momento a cena da mulher pecadora arrependida, chorando aos pés de Cristo (Lc 7, 36–50). “São-lhe perdoados seus muitos pecados, porque muito amou” (Lc 7, 47). O arrependimento é um ato da virtude da penitência, movida pela caridade, sob o in uxo de uma graça atual de Deus.

i. Que é a virtude da penitência? a) Não é a simples mudança de vida ou a alteração do conselho anterior 1. Isto é o que defendia Lutero: “A única coisa que vale é uma vida nova, a mudança de parecer e de propósito”. 2. Quantas vezes ocorrem, aos pecadores e incrédulos, juízos de reprovação de suas más ações, e propósitos que não passam de simples movimentos humanos, sem levar Deus em conta absolutamente! 3. A opinião protestante acerca da natureza da penitência vista unicamente como mudança de parecer e de propósito está expressamente rejeitada pelo Concílio de Trento (cf. D. 896 e 914). b) Não é a vergonha diante de nossa própria abjeção 1. Nem este sentimento, nem qualquer outro motivo puramente humano e natural pode ser capaz de nos justi car perante Deus. 2. Os demônios e os condenados têm esse ódio e vergonha em relação à sua própria maldade, mas lhes falta precisamente a conversão humilde para com Deus, o ódio ao pecado por ser ofensa a Deus: jamais hão de querer arrepender-se. c) De nição de penitência 1. Como hábito: “A virtude sobrenatural pela qual o homem se arrepende do pecado cometido, por ser ofensa a Deus, com o propósito de emenda”.

2. Como ato: “A dor moderada (segundo a reta razão, que o impede de cair no desespero) pelos pecados passados, enquanto ofensa a Deus, com a intenção de fazê-los desaparecer”. 3. Como vemos, a penitência, quer como virtude, quer como ato, sempre leva em conta a dor e o arrependimento dos pecados enquanto ofensas a Deus. É isto que especi ca essencialmente esta virtude e o ato correspondente à mesma. ii. Necessidade de praticá-la a) Os que não possuem esta virtude 1. Nosso Senhor Jesus Cristo: sua alma santíssima, por causa da união hipostática com o Verbo, era absoluta e intrinsecamente impecável. 2. É quase seguro que a Virgem Maria, que por especial privilégio de Deus não cometeu jamais sequer um mínimo pecado venial, careceu desta virtude, e, desde sempre, jamais teve necessidade de praticar nenhum ato de penitência. 3. Não a possuem os bem-aventurados do céu, nem os condenados do inferno. Os primeiros porque, em virtude de sua visão beatí ca, são intrinsecamente impecáveis. Já os segundos não a possuem devido à sua obstinação e seu estado de condenação, que lhes impede o arrependimento. b) Os que precisam dela 1. A penitência é absolutamente necessária, com necessidade de meio — isto é: absolutamente indispensável —, para a justi cação do pecador adulto. Sem um movimento de retorno a Deus, é impossível que se possa justi car o pecador que se afastou d’Ele.

2. Também por necessidade de preceito natural e divino, é necessário o ato de penitência para aquele que está em pecado mortal. 3. É convenientíssimo que o pecador se arrependa imediatamente após ter caído. A permanência voluntária no pecado mortal implica certo desprezo por Deus e o perigo da condenação eterna, caso lhe sobreviesse a morte nesse estado. iii. O espírito de penitência a) Em que consiste 1. É a atitude habitual da alma no sentimento de contrição; a repetição, o mais contínua possível, de atos de arrependimento, fazendo com que cheguem a impregnar toda a nossa vida, como uma atmosfera divina. 2. “Se dizemos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos, e a verdade não está em nós” (1Jo 1, 8). Se fomos perdoados, isto não impede que continuamente repitamos a Deus: “Embora inteiramente perdoado, não deixarei de repetir com gratidão que me pesa na alma haver-te ofendido, e desejo remediar o mal cometido”. 3. Para as almas que aspiram à perfeição, este espírito de penitência é necessário, e é um dos meios mais excelentes para se elevar com prontidão a uma maior santidade. b) Excelências do espírito de penitência 1. Evita a tibieza e nos mantém em humildade e generosidade. A compunção e a tibieza não podem coexistir em uma alma. 2. É fonte e origem de uma viva caridade para com Deus e o próximo:

a) Com Deus: pois a habitual contrição perfeita é um dos atos mais puros e delicados ordenados pelo amor sobrenatural, e, ao apagar nossas culpas, nos torna mais gratos a Deus. b) Com o próximo: torna-nos indulgentes e misericordiosos em nossos julgamentos e na conduta em relação aos outros. Quem conhece bem a si mesmo não despreza seus irmãos. 3. É um baluarte seguro contra as tentações. A vigilância contínua sobre nossa própria conduta, a oração perseverante, o espírito de humildade, a aversão ao pecado e a busca sincera e amorosa de Deus são as armas dadas pelo espírito de compunção, e fazem com que a tentação encontre sempre a alma armada e alerta, e em uma disposição totalmente contrária à aceitação do pecado. c) Como adquiri-lo 1. Pedindo-o humildemente a Deus. “Deus onipotente e misericordioso, que para o povo sedento zeste brotar da pedra uma fonte de água viva, arranca de nosso coração lágrimas de arrependimento para que choremos nossos pecados e assim mereçamos o perdão por vossa misericórdia” (Oração para pedir o dom das lágrimas: Missal). 2. Considerar com sinceridade e coragem o abismo de nossa maldade. Mesmo o menor pecado é um mal enorme se o consideramos à luz da verdade e em contraste com a imensa bondade de Deus para conosco. Recordemos o exemplo dos santos. 3. Recordar tudo aquilo que nossa alma custou a Cristo. “Não te amei entre risos”, disse um dia Nosso Senhor a Santa Ângela de Foligno. O Calvário, o corpo ensangüentado de Cristo, suas mãos e pés perfurados, a coroa de espinhos, as cusparadas em seu divino rosto e sua morte ignominiosa na Cruz, nos devem

recordar quão seriamente Deus encara o pecado e até que extremo Ele nos amou. Conclusão 1. Não permaneçamos um só instante no pecado. Assim que nossa consciência nos der essa terrível notícia, façamos um ato perfeito de contrição. 2. O ato de arrependimento perfeito nos obtém a graça antes da absolvição sacramental, se estivermos dispostos a nos confessar o mais cedo possível. 3. Se estamos em graça, estimulemos em nós e façamos crescer o espírito de compunção.

2. O sacramento da Penitência 149. Falemos agora sobre o sacramento da Penitência. Primeiro, faremos algumas considerações gerais sobre sua existência. Em seguida, especi caremos sua natureza, estudando a matéria e a forma deste sacramento. Finalmente, falaremos sobre sua obrigatoriedade ou necessidade. i. Existência do sacramento da Penitência a) A Penitência é um verdadeiro sacramento instituído por Jesus Cristo 1. Assim o ensina a Igreja, que condenou todo aquele que disser “que a Penitência na Igreja Católica não é verdadeira e propriamente sacramento instituído por Cristo Senhor” (D. 911).

2. Consta, efetivamente, na Sagrada Escritura que Cristo conferiu à Igreja o poder de perdoar pecados. a) “Em verdade vos digo: tudo o que ligardes na terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado no céu” (Mt 18, 18; cf. Mt 16, 19). b) “Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados, lhes serão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, lhes serão retidos” (Jo 20, 22–23). 3. A Sagrada Escritura registra também a prática desse poder pelos apóstolos e seus discípulos. a) “Cristo nos reconciliou consigo e nos con ou o ministério da reconciliação” (2Cor 5, 18). b) Em várias passagens dos Atos dos Apóstolos e das epístolas aparecem os apóstolos exercendo o poder de ligar e desligar (1Cor 5, 3–5; 1Tm 1, 19 ss.; 2Cor 2, 6–11, etc.). 4. A razão desta instituição é percebida facilmente por nós, pobres pecadores: a conveniência de um sacramento pelo qual nos sejam perdoados os pecados que cometemos depois do Batismo. b) Características deste sacramento 1. Este poder se estende a todos os pecados sem exceção alguma. a) Ao conferir este poder à Igreja, Cristo o deu sem nenhuma limitação: Tudo quanto ligardes... Aqueles a quem perdoardes... b) Assim o ensina e o praticou sempre a Igreja, perdoando todo tipo de pecados, mesmo os mais graves e horrendos, quando as disposições do sujeito são adequadas.

2. O poder de perdoar os pecados foi conferido aos apóstolos, e passa deles para seus sucessores (os bispos) e para os sacerdotes (D. 894 e 920). 3. Este poder é exercido por meio de um ato judicial. a) Para “ligar e desligar”, isto é, para absolver ou não, se requer um julgamento prévio, pelo qual o juiz possa conhecer com certeza o estado e as disposições do penitente. b) Por isso a Igreja exige a con ssão dos pecados: se não se conhece a causa, não se pode sentenciar (cf. D. 899 e 917). ii. Natureza do sacramento da Penitência a) Forma do sacramento 1. É constituída pelas palavras da absolvição pronunciadas pelo sacerdote. a) Assim a Igreja o ensina expressamente: “A forma deste sacramento são as palavras da absolvição que o sacerdote profere quando diz: ‘Eu te absolvo’, etc.” (D. 896). b) Diz Santo Tomás que os sacramentos produzem aquilo que signi cam. Logo, a forma, que é a parte mais importante do sacramento, são essas palavras do sacerdote pelas quais se signi ca o efeito deste sacramento, que é o perdão dos pecados (Suma teológica, , q. 84, a. 3). 2. Essas palavras devem ser pronunciadas vocalmente pelo sacerdote. Pois as palavras do sacerdote são utilizadas por Deus como instrumento para produzir na alma do penitente a graça sacramental. 3. E sobre o penitente presente. Basta aquilo que os teólogos chamam de presença moral, isto é, aquela que permite entabular

uma conversação entre duas pessoas, embora seja em alta voz. b) Matéria do sacramento 1. Em geral, são matéria remota do sacramento da Penitência todos os pecados cometidos depois do Batismo. a) Os anteriores ao Batismo caram perdoados por ele. b) A matéria próxima de um sacramento faz parte do mesmo e, por isso, deve ser algo bom. Na Penitência, a matéria próxima são os atos de contrição e satisfação do penitente, que versam sobre os pecados cometidos. Por isso se diz que esses pecados são matéria remota, mas enquanto detestados e destruídos. 2. São matéria necessária os pecados mortais ainda não confessados. 3. Os pecados veniais são matéria su ciente, mas livre. a) Matéria su ciente: isto é, que bastam para que exista verdadeiro sacramento. b) Mas não é obrigatório confessá-los (embora seja muito conveniente), pois há outros meios para o perdão dos pecados veniais. 4. Os pecados mortais ou veniais já confessados constituem matéria su ciente, mas livre. a) Portanto, bastam para que exista verdadeiro sacramento, mesmo quando não sejam acompanhados de outros pecados atuais. b) Não é obrigatório confessá-los, pois já estão perdoados. c) Entretanto, é muito conveniente confessá-los, pois excitam maior dor e arrependimento, e se perdoa algo da pena que

devemos por eles. iii. Necessidade do sacramento da Penitência a) Obrigatoriedade do sacramento 1. O sacramento da Penitência é meio necessário para a salvação daqueles que pecaram mortalmente depois do Batismo. a) “Para os que caíram depois do Batismo, este sacramento é tão necessário quanto o próprio Batismo para os ainda não regenerados” (D. 895). b) A razão disso é que nenhuma pessoa pode recuperar a graça perdida se não se aplicam a ela os méritos de Cristo; e, por instituição do próprio Cristo, os méritos de sua Paixão só podem ser aplicados àqueles que pecaram gravemente depois do Batismo mediante o sacramento da Penitência. 2. Se não se puder receber realmente o sacramento, basta o desejo, ainda que implícito, contido no ato de perfeita contrição, porque Deus não pede coisas impossíveis a ninguém. b) Quando obriga 1. Por direito divino, a con ssão dos pecados obriga a quem está em pecado mortal: a) Em perigo de morte, pela obrigação que todos os homens temos de nos salvar. b) Quando se vai receber um sacramento que exige o estado de graça. c) Se surge uma tentação tão forte, que só é possível resistir pelo sacramento da Penitência, pois todos os meios possíveis devem ser utilizados para evitar o pecado.

2. Porém, além do preceito divino, existe um preceito eclesiástico de se confessar ao menos uma vez ao ano. a) Esta obrigação inclui a todos os cristãos réus de pecado mortal. b) E pode ser cumprida em qualquer época do ano, embora seja conveniente fazê-lo juntamente com o preceito da comunhão pascal. Conclusão 1. Cumpramos elmente o preceito da Con ssão anual, que nos impõe a Igreja, mãe amorosa, para nos ajudar a viver na graça. 2. Aproximemo-nos do sacramento da Penitência sempre que tivermos cometido um pecado mortal, para recuperar a graça, tesouro in nito de valor maior que todas as riquezas e prazeres do mundo. A qualquer momento a morte pode nos surpreender... 3. Convém confessar-se freqüentemente, ainda que não tenhamos pecado mortalmente. Recebemos do sacramento um aumento da graça e uma ajuda especial para evitar o pecado.

3. Efeitos negativos do sacramento da Penitência 150. Recordemos a parábola do lho pródigo (cf. Lc 15, 11–32). Um dia, insolentes, pedimos a Deus a “nossa herança” e nos afastamos dele, acreditando poder encontrar a felicidade fora de seus braços.

Que cou para nós da “nossa herança”? Vimo-nos afastados da sociedade dos lhos de Deus e banidos de suas promessas. Por m reconhecemos nosso erro: “Pai, pequei contra o céu e contra ti...”. E nosso Pai nos perdoa (“lançou-se ao seu pescoço e o cobriu de beijos”) e nos reveste da graça (“trazei a túnica mais rica e vestio”). A Con ssão, que constitui um novo encontro com o Pai, tem como efeito nos reconciliar com Ele em dois aspectos: o negativo — o perdão dos pecados e a remissão da pena — e o positivo — a infusão da graça. Aqui, tratamos do aspecto negativo. i. O perdão dos pecados a) O pecado mortal 1. Como Deus o castiga. a) Um único pecado dos anjos foi su ciente para que Deus os condenasse para sempre, transformando-os em demônios. b) Por um só pecado de nossos primeiros pais, Deus os expulsou do paraíso e mergulhou a humanidade inteira em um mar de lágrimas, sofrimentos e mortes. c) Um só pecado é su ciente para ir ao inferno por toda a eternidade. 2. Como o combate. a) Dá ao mundo o seu Unigênito, em quem deposita toda a sua complacência. b) Sacri ca-o sobre o Calvário, de uma vez por todas, e diariamente sobre os altares, para que nos aproveitemos de seus

frutos. c) Estabelece o tribunal da misericórdia, onde o sangue de Cristo “nos puri ca de todo pecado” (1Jo 1, 7). 3. Como o perdoa na Con ssão. a) Na Con ssão, perdoa todos os pecados mortais cometidos depois do Batismo, por numerosos e hediondos que sejam. b) Esses pecados perdoados não voltam a aparecer nunca mais, ainda que o pecador recaia no pecado. c) Os pecados mortais podem ser perdoados sem o perdão dos veniais, mas não o contrário. b) O pecado venial 1. Não nos separa de Deus. a) É apenas um pequeno desvio em nosso caminho para Deus. b) É um pequeno apego às criaturas que não nos coloca de costas para Deus. c) Existem alguns deles sumamente pequenos, quase impossíveis de evitar, nos quais o justo cai sete vezes por dia (Pr 24, 16). Mas também existem aqueles de certa importância, que devemos evitar cuidadosamente. 2. Mas predispõe a cair no mortal. a) “Aquele que despreza as coisas pequenas, pouco a pouco se precipitará” (Eclo 19, 1). b) Vai esfriando nosso amor a Deus, até chegar o momento em que cometer um pecado mortal será considerado tão pouco quanto cometer um venial.

c) Não nos acarreta a pena eterna, mas a pena temporal, que pagaremos nesta vida ou na outra. 3. A Con ssão os perdoa. a) No Catecismo, indicam-se nove maneiras de perdoar o pecado venial. Todas elas supõem o arrependimento. b) Mas a melhor e mais segura maneira é submetê-lo ao tribunal da Penitência. c) Setenta vezes sete 1. Os braços que estão sempre abertos. a) Deus não se cansa de esperar. Todas as tardes, examina o horizonte para ver se voltamos a seus braços: “O Senhor [...] usa da paciência para convosco. Não quer que alguém pereça, mas que todos venham à penitência” (2Pd 3, 9). b) Seu tribunal é tão benigno, que o confessor não se chama juiz, mas Pai. c) Somente exige de nós o arrependimento: “Se o malvado se retrai de sua maldade [...], viverá e não morrerá. Todos os pecados que cometeu não serão lembrados” (Ez 18, 21–22). 2. Para perdoar até mesmo os maiores pecados. a) “Ainda que vossos pecados fossem como escarlate, cariam brancos como a neve. Ainda que fossem vermelhos como a púrpura, se tornariam brancos como a lã” (Is 1, 18). b) Deus não estabeleceu limites para sua misericórdia. 3. Uma vez e mil vezes.

a) Com a expressão “setenta vezes sete”, o Senhor quis signi car sua vontade de perdoar sempre que o pecador se aproxime arrependido. b) Sua misericórdia é in nita, e antes o pecador se cansa de pecar do que o Senhor de perdoar. c) Deus quer a volta do pecador: “Por minha vida, diz o Senhor , não me alegro com a morte do ímpio, mas que ele mude de caminho e viva” (Ez 33, 11). ii. O perdão da pena a) A pena eterna 1. O pecado mortal nos traz a morte e o desterro da pátria celeste. a) “A alma que pecar, essa perecerá” (Ez 18, 4). b) “O salário do pecado é a morte” (Rm 6, 23). c) “Nem os fornicadores, nem os idólatras, nem os adúlteros [...] possuirão o reino de Deus” (1Cor 6, 9–10). 2. A Con ssão nos devolve à vida e nos restitui à pátria. a) “O dom de Deus é a vida eterna” (Rm 6, 23). b) “Já não há, pois, condenação para os que são de Cristo Jesus” (Rm 8, 1). c) “Se o malvado se afasta de sua maldade [...], viverá e não morrerá” (Ez 18, 21). 3. De maneira total e completa.

a) Porque a Con ssão nos restitui a graça santi cante, que automaticamente nos faz lhos de Deus e herdeiros do céu. b) Porque já não serão levadas em conta as iniqüidades anteriores: “A impiedade do ímpio não lhe será estorvo no dia em que se converter de sua iniqüidade” (Ez 33, 12). c) “Não será lembrado nenhum dos pecados que cometeu” (Ez 33, 16). b) A pena temporal 1. Além da pena eterna, o pecado tem uma pena temporal. a) Vemos isto na Sagrada Escritura, onde Deus castiga os justos com penas temporais. b) Sua existência consta pela autoridade da Igreja, que proclama como dogma de fé a existência do purgatório (cf. D. 456, 777, 840, etc.). 2. A Con ssão nem sempre perdoa toda a pena temporal. a) Deus perdoa a nossos primeiros pais a sua culpa, mas lhes impõe penas terríveis (cf. Gn 3, 16–19). b) Natã diz a Davi: “ morrerás [...] mas morrerá o 14).

perdoou o teu pecado. Não lho que te nasceu” (2Sm 12, 13–

c) A Igreja o de niu (D. 922). 3. Nem todas as seqüelas do pecado. a) As seqüelas do pecado são os maus hábitos naturais contraídos pela repetição de atos pecaminosos.

b) O sacramento da Penitência, ao infundir a graça e as virtudes infusas, contribui para extirpá-las, não como regeneração, mas como remédio. c) Porém, não costuma suprimi-las de uma vez. Por isso resulta muito penoso para o recém-convertido a prática da virtude. Conclusão 1. Demos graças a Deus, que quis instituir um meio tão simples para nos livrar do inferno e voltarmos a seus braços. 2. Andemos até o tribunal da Penitência, tão depressa como quando tivemos a desgraça de cair no pecado. 3. Procuremos dar satisfação pelas penas temporais devidas a nossos pecados.

4. Efeitos positivos 151. Na vida, muitas coisas se perdem e jamais se recuperam. Se perdemos um braço, uma perna, um olho, os perdemos para sempre. Quando perdemos a amizade de Deus, a graça santi cante, que devemos fazer? Desesperar-nos? Não. Cristo nos deu um meio para recuperar aquilo que vale in nitamente mais do que um membro do corpo. Pela Con ssão, podemos recuperar o próprio Deus. O sacramento da Penitência nos perdoa os pecados, mas além disso

ele nos dá: a) A graça santi cante: uma participação na própria vida divina. b) Devolve-nos os méritos de nossas boas obras, aos quais havíamos perdido todo direito. c) Alguns auxílios, algumas armas especiais que nos tornam mais fortes diante dos inimigos de nossa alma. Eis aqui os três principais efeitos positivos de uma boa Con ssão. i. Vida divina no coração do homem a) Uma energia de ordem sobrenatural 1. Uma verdade muito grande se encerra neste ditado alemão: “Os homens neste mundo só se preocupam em ter bens e dinheiro; e quando os conseguem, deitam-se para morrer”. 2. Quereis ser milionários, mas milionários de verdade, de algo que vos acompanhe sempre, e que não que nos bancos deste mundo? Basta que vos mantenhais em contato permanente com a central divina: a energia da graça. 3. A graça é um dom sobrenatural que Deus concede a nós para nos fazer seus lhos e herdeiros do céu. 4. A graça é essa energia, essa riqueza que nunca nos abandona. A graça nos ilumina no caminho do céu; com ela conseguiremos a felicidade que jamais tem m. b) Graça comum e graça sacramental 1. Não são duas espécies distintas. A graça é una e indivisível. É uma participação na própria natureza divina, que é simplíssima.

2. Contudo, deve existir alguma diferença entre ambas que nos dê a razão de sua existência. a) Chamamos de graça comum ou ordinária a graça santi cante, que se adquire ou aumenta independentemente dos sacramentos. É a graça santi cante, simplesmente. Costuma ser chamada “graça das virtudes e dos dons”. b) Graça sacramental é aquela conferida pelos sacramentos com um matiz especial. Acrescenta à graça comum um modo intrínseco diferente, com uma exigência de auxílios atuais em ordem aos efeitos e ns próprios do sacramento. c) Novamente em contato com a videira 1. A característica ou matiz próprio da graça do sacramento da Penitência é ser curativa ou reparadora. 2. Pelo pecado, havíamos rompido o contato com Deus. Éramos ramos separados da videira (cf. Jo 15, 6). 3. O sacramento volta a estabelecer essa união. Em virtude da absolvição sacramental, volta a circular em nossa alma a “seiva divina” da graça. 4. Estávamos mortos, e a absolvição nos ressuscita. A Penitência e o Batismo são, em si, sacramentos de mortos, comunicam a primeira graça. 5. Se estamos na graça de Deus quando nos confessamos, a absolvição atua como um sacramento de vivos, conferindo a segunda graça, tornando mais fortes os laços que unem os ramos com a videira. ii. O que estava perdido volta a ser nosso

a) As boas obras realizadas na graça 1. Nem todas as nossas obras têm valor sobrenatural. O pecado é um mal que arrebata a graça, a vida da alma na ordem sobrenatural: obras mortíferas. 2. Nem mesmo todas as boas obras possuem esse valor para a vida eterna. É bom dar uma esmola, mas, estando em pecado mortal, isto é apenas naturalmente bom: são obras mortas. 3. Somente as boas obras realizadas em estado de graça são meritórias diante de Deus. E estas se perdem pelo pecado (obras morti cadas), mas são recuperadas ao receber novamente a graça de Deus. b) O pecado mortal e a boa Con ssão 1. Passas muitos anos vivendo na graça, fazendo obras de caridade; não importa se os homens não sabem disso: Deus anota tudo. Ah! Mas tens a desgraça de cometer um só pecado mortal, e tudo se perdeu! 2. De que te valeu ser bom por tanto tempo se, agora, cas sem nada? Escuta: a) Para que Deus tenha compaixão de ti e te dê a graça do arrependimento; para que Ele mova teu coração e voltes a amá-lo sobre todas as coisas. b) Para que, mediante uma boa Con ssão, voltem a pertencer-te todos os méritos de tuas boas obras anteriores. 3. Aquelas obras já passaram, não existem mais; mas permanecem na aceitação divina — para Deus, tudo está presente. Pela Penitência, essas obras, o mérito delas, recuperam o poder de conduzir-te à vida eterna.

4. O grau em que essas obras são revividas depende de tuas disposições atuais. Até podem ser em maior grau e intensidade, se o movimento para a penitência e o desagrado pelo pecado forem mais intensos que antes. iii. Armas do sacramento da Penitência O sacramento da Penitência confere a quem o recebe dignamente alguns auxílios especiais para não recair no pecado, para melhor vencer os inimigos de nossa alma. 1. A Con ssão tem razão de ser em si mesma, um valor substancial próprio, independentemente da Comunhão. Ela confere a graça santi cante se estávamos em pecado, ou nos aumenta a graça se já a possuíamos. 2. Juntamente com a graça comum, ela confere a graça sacramental própria: o direito aos auxílios atuais em ordem aos efeitos e ns do sacramento. 3. O pecador pode abusar destes auxílios, mas então dependerá dele o que acontecer. “Aquele que ama o perigo, nele perecerá” (Eclo 3, 27). 4. A Con ssão produz um duplo efeito na ordem do bem sobrenatural: a) Apaga todos os pecados cometidos, juntamente com a pena devida por eles: — A pena eterna, de maneira total e completa. — A temporal, total ou parcialmente, conforme as disposições. b) Confere uma graça superabundante para desfazer todos os danos causados pelo pecado. É uma luz poderosa para discernilos, uma grande fortaleza para evitá-los no futuro.

Conclusão A melhor defesa é o ataque. Assim, a Con ssão freqüente é importantíssima. 1. Há menos poeira em uma casa que se limpa com freqüência do que naquela que só é varrida uma vez por ano. 2. Aquele que se confessa com freqüência não o faz porque tem muitos pecados, mas para não os ter. 3. Nunca te esqueças de que, além do cancelamento do pecado, a Con ssão é acumulação de energias, medida preventiva para as lutas do futuro.

5. A Confissão e a psiquiatria moderna 152. O sacramento da Penitência: pedra de escândalo do catolicismo. Como é profunda a repulsa em confessar nossas de ciências, em manifestar nosso interior! Será possível que Cristo tenha unido e condicionado sua graça à realização de um ato tão antinatural? É a pergunta de muitos cristãos, o muro em que tropeçaram muitos hereges. À luz da psiquiatria atual, vejamos se é uma oposição ou antes uma conveniência aquilo que ocorre entre a Con ssão e as exigências da alma humana.

i. Sentimento de culpabilidade a) Testemunho dos psiquiatras 1. Existência do sentimento de culpabilidade. a) É uma verdade de experiência elementar, reconhecida por psiquiatras e psicanalistas. b) É a conseqüência de uma desordem, ao menos psicológica, que o sujeito procura ocultar a si mesmo e aos demais, relegando-a ao subconsciente. c) E apesar disso continua inquietando incessantemente o seu psiquismo. 2. Três formas principais. a) Consciência clara de culpabilidade: quando se trata de uma desordem que se tenta esquecer, mas, no entanto, é perfeitamente conhecida. b) Sentido indeterminado de culpabilidade: uma vaga inquietação, uma sensação de que “alguma coisa não está certa”, sem poder lembrar de que se trata. c) Culpabilidade anormal: uma inquietação totalmente infundada. É o sentimento de culpabilidade do escrupuloso e de tantas consciências infantis deformadas por uma educação equivocada. 3. Sua in uência no psiquismo. a) Interiormente: excitabilidade.

inquietação,

constante

desorientação,

b) Nos casos extremos: neuroses, que exigem um tratamento especial.

c) Em relação à vida social: inadaptação, sofrendo e fazendo sofrer. b) A culpabilidade no cristão 1. A consciência do pecado não é uma anormalidade psíquica. a) Assim a quali caram não poucos especialistas modernos: um sentimento irracional, que é preciso eliminar, algo mórbido, anormal e infundado. b) Ao contrário, a consciência de culpabilidade brota do senso moral, que é algo conatural ao homem, não um acréscimo desagradável e incômodo. c) É também conseqüência da consciência religiosa, impressa no interior de todos os homens. 2. O sentido cristão do pecado. a) Para o cristão, o pecado é antes de tudo a oposição a Deus. Alguém é pecador ao confrontar Deus por meio de uma desobediência. b) Deste modo, quanto mais se aprofunda no conhecimento de Deus, tanto mais o cristão penetra no reconhecimento de suas faltas. c) E daqui brota, sem nenhuma causa patológica, a angústia cristã, a consciência de ser objeto da cólera divina. ii. Valor psicológico da Con ssão a) A Con ssão, libertação natural 1. Torna-nos conscientes da desordem que nos perturba.

a) O prévio exame nos dá a oportunidade de concretizar esse vago sentimento de culpa. b) Deste modo, faz-se violência à censura interior, que tende a submergir no subconsciente tudo aquilo que não nos agrada: o pecado. c) O confronto cara a cara com a culpa esquecida ou semiesquecida contribui para estabelecer — em uma ordem puramente natural — nossa paz interior. 2. Entregamos nossas preocupações. a) Este é outro elemento fundamental da libertação psicológica: a manifestação a outrem daquilo que perturba a consciência. b) Não é algo naturalmente repulsivo; a isto nos inclinam nossas próprias tendências quando não foram deformadas pela herança ou pela educação. c) Não é outro o fundamento principal da psicanálise, que deste modo veio corroborar a prática milenar da Igreja. b) A Con ssão, libertação sobrenatural 1. Os elementos naturais não bastam. a) Situamos o pecado em uma ordem religiosa e sobrenatural. b) Portanto, a psicanálise e a con ssão — sob seu aspecto puramente natural — não conseguem eliminar a consciência de culpabilidade religiosa. c) É necessária uma libertação religiosa, e esta somente nos é proporcionada pela Con ssão como sacramento.

2. Reconhecimento de nossa culpabilidade diante de Deus. a) Na Con ssão — é o que nos diz a fé — não estamos diante de um homem; é o próprio Deus que se constitui nosso con dente. b) Essa humilhação diante do Senhor restaura em nós o equilíbrio: em virtude da graça, passamos de objeto de cólera a objeto de amor. 3. Nossa libertação em Cristo cruci cado. a) Na ordem natural, parece comprovado o “princípio de agressividade”, uma tendência a lançar sobre o outro a nossa culpabilidade, a m de reparti-la com ele. b) Na ordem sobrenatural, esta tendência foi saciada: o próprio Deus se tornou acessível a nossas culpas e morreu vítima delas. c) E é exatamente a Con ssão sacramental que nos põe em contato com essa libertação religiosa, aberta pela entrega de Cristo na Cruz. iii. Con ssão e consulta psiquiátrica a) Diferenças psicológicas 1. Em razão da nalidade do sujeito. a) Na Con ssão, o penitente busca primariamente o perdão de suas culpas e a infusão sobrenatural da graça. Secundariamente, o conselho do sacerdote. b) Na consulta, o paciente almeja a aquisição de seu equilíbrio psíquico. 2. Em razão da matéria.

a) Na Con ssão: as ações sob uma consideração moral, diante de Deus. b) Na consulta: os sofrimentos psíquicos, o aspecto patológico. b) Aplicações práticas 1. Para o confessor. a) A prudência pastoral encontra apoio nos conselhos da psiquiatria: suavidade, compreensão, caridade para com o penitente; b) Conhecimento da psicologia humana, das reações dos diferentes temperamentos e caracteres, das enfermidades psíquicas, etc. c) Consciência dos limites do campo sacramental: o confessionário não é uma clínica. Em casos patológicos, deverá recorrer ao especialista. 2. Para o psiquiatra. a) Reconhecer a vertente religiosa da culpabilidade. Nem tudo é patologia. b) Saber utilizar a força psicológica da Con ssão quando o desequilíbrio psíquico tem sua raiz em uma desordem de caráter religioso. 3. Para o penitente. a) Con ança na e cácia da Con ssão: e cácia natural e sobrenatural. b) Sinceridade e abertura ao confessor: é o segredo da paz de consciência.

c) Constância nas con ssões e nos confessores. Conclusão 1. A Con ssão não é uma prática arbitrária e antinatural. 2. Responde às necessidades da alma que busca a paz de consciência. 3. Ao instituir este sacramento, Cristo elevou uma tendência natural sadia. 4. A ciência moderna con rmou a sabedoria do Senhor e de sua Igreja.

6. Jesus, o grande perdoador 153. Como é difícil perdoar! Às vezes, estamos dispostos a conceder o perdão. Nossa vontade o quer. Contudo, existe uma onda de repugnâncias afetivas que no-lo impedem ou, pelo menos, o di cultam. Porque é difícil para nós perdoar — para nós! —, Cristo teve o cuidado especial de nos mostrar que para Ele não é difícil conceder o perdão. Nossos corações são humanos. Seu coração é o do Filho de Deus. Além disso, Cristo quis ensinar-nos como devemos conceder nosso perdão àqueles que nos ofenderam. Nós, que somos lhos de Deus pela graça. i. Uma doutrina

a) A ovelha perdida 1. A parábola. “Quem dentre vós, tendo cem ovelhas, e tendo perdido uma delas...?” (Lc 15, 3 ss.). a) Prontidão em procurar a ovelha perdida: “... não deixa as noventa e nove no deserto e vai em busca da perdida, até que a encontre?”. De cá para lá; subindo montes e descendo vales... É a realidade psicológica do pastor de pequeno rebanho. b) Extrema delicadeza com a ovelha extraviada. Não bate nela nem a maltrata. Pega-a com cuidado. Coloca-a sobre os ombros e volta a deixá-la no redil: “... e uma vez encontrada, coloca-a com alegria em seus ombros”. c) Alegria por tê-la encontrado: “... e volta para casa [...]. Alegrai-vos comigo, porque achei a ovelha perdida”. É o regozijo de quem encontra algo que havia perdido. Um regozijo que necessita de expansão, pois é por essência comunicativo. 2. Sentido da parábola. “Eu vos digo que haverá mais alegria no céu por um pecador que zer penitência, do que por noventa e nove justos que não necessitam de penitência”. a) Não é que Cristo valorize mais um pecador convertido do que noventa e nove justos. Ninguém duvida que a alegria proporcionada por noventa e nove ovelhas — noventa e nove justos, éis a Deus — seja maior que a proporcionada pela ovelha encontrada — o pecador reconciliado. b) O sentido da alegria de Cristo é profundamente psicológico. É um fato enraizado profundamente em nossa psicologia: nós nos alegramos mais com os acontecimentos novos e felizes do que com os antigos e ordinários. c) A alegria de Cristo pelo pecador reconciliado é essa alegria do que foi achado de novo. Não maior, porém mais viva e atual que

as demais alegrias. b) O lho pródigo 1. Atitude do lho. “Um homem tinha dois lhos, e disse o mais jovem deles ao pai...” (Lc 15, 11 ss.). a) Exigência: “Pai, dá-me...”. Não é uma petição feita com carinho, lamentando-se por ter de fazê-la. É uma petição taxativa, urgente e ameaçadora. Está iniciada por um imperativo seco: “Dáme!”. b) Ânsia de liberdade: “... e partiu para um país distante”. Existem muitas realidades psicológicas encerradas na atitude do pródigo. A paixão não quer freios, nem conselhos, nem remorsos. Com freios, conselhos e remorsos a paixão já não é um gozo transbordante. c) Viver dissolutamente: “... e ali dissipou todos os seus bens vivendo dissolutamente”. No ardor da paixão, com as ocasiões que se ofereciam a ele, dilapidou e dissipou toda a sua herança até car na miséria. É um dado da experiência quase diária. 2. A atitude do pai: “Quando ainda estava longe, o pai o viu e, compadecido, correu até ele, lançou-se a seu pescoço e o cobriu de beijos...”. a) Bondade e misericórdia. Quando o pai reconheceu seu lho, seu coração não agüentou mais. Não pôde conter-se para esperálo. Impelido pela veemência da comoção que experimentava, correu até seu lho e o abraçou apertadamente. b) Perdão. Quando o pai segurou o lho, este começou a balbuciar aquelas frases de pedido de perdão: “Pai, pequei contra o céu e contra ti, já não sou digno de ser chamado teu lho”. Mas o pai, cobrindo-o de beijos, não o deixou continuar em seus protestos de arrependimento.

c) Alegria: “Trazei logo a roupa mais preciosa [...]. E começaram a fazer uma grande festa”. O pai já não pode conter sua alegria, e esta se manifesta nas ordens dadas aos criados. Este lho havia morrido e ressuscitou. Havia-se perdido e foi encontrado. ii. Um exemplo: Cristo Nestas duas parábolas, Cristo se gurou maravilhosamente como o grande Perdoador. Entretanto, ele quer reforçá-lo ainda mais. Quer dar-nos exemplos vivos. a) A mulher adúltera “Mestre, esta mulher acaba de ser surpreendida em adultério. Na lei, Moisés nos mandou apedrejar tais mulheres; tu, que dizes disto?” (Jo 8, 3–6). “Então, levantando-se, Jesus lhe disse: ‘Mulher, onde estão os teus acusadores? Ninguém te condenou?’. Ela respondeu: ‘Ninguém, Senhor’. Jesus disse: ‘Eu tampouco te condeno; vai e não peques mais’” (Jo 8, 10–11). b) Zaqueu “Eis aqui um homem rico, chamado Zaqueu, chefe dos publicanos...” (Lc 19, 1 ss.). “Zaqueu, desce depressa, porque hoje me hospedarei em tua casa [...]. Hoje veio a salvação para tua casa, porque também este é lho de Abraão, pois o Filho do Homem veio para buscar e salvar o que estava perdido”. c) A pecadora arrependida “E eis que chegou uma mulher pecadora que havia na cidade...” (Lc 7, 37 ss.). “E voltando-se Jesus para a mulher, disse a Simão: ‘Vês esta mulher? Por isso eu te digo que seus muitos pecados lhe são perdoados, porque ela muito amou’ [...]. E disse a ela: ‘Teus pecados te são perdoados; tua fé te salvou, vai em paz’”. iii. Uma exigência: perdoar a) Uma parábola “Assim se assemelha o reino dos céus a um rei que quis acertar as contas com seus servos. Ao começar a acertálas, apresentou-se um que lhe devia dez mil talentos” (Mt 18, 23 ss.).

Quando o rei viu a seus pés aquele servo, não pôde deixar de comover-se profundamente. “Movido o senhor de compaixão...”. É um quadro insuperável que Cristo nos faz da bondade deste rei com seu vassalo devedor. É uma imagem maravilhosa em que Cristo nos mostra como é a bondade de Deus para com seus devedores. “Mas apenas saiu este criado da presença do rei, encontrou um de seus companheiros que lhe devia cem denários; e agarrando-o pela garganta, sufocava-o dizendo: ‘Paga o que me deves’”. Ao se encontrar com o devedor, seu companheiro de servidão, exatamente no momento em que lhe tinha sido perdoada uma dívida tão grandiosa, ele deveria mover-se pelos mesmos sentimentos de perdão. No entanto... b) Um ensinamento “E irritado, (o rei) entregou-o aos tribunais até que pagasse toda a dívida. Assim fará convosco o meu Pai celestial, se não perdoardes a cada irmão de todo o coração”. Conclusão Existem umas palavras do Senhor, anteriores a esta parábola do servo ingrato, que são uma conclusão magní ca. Nelas se resume todo o ensinamento de Jesus Cristo sobre este ponto: “Senhor, quantas vezes hei de perdoar a meu irmão? [...]. Não digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete” (Mt 18, 21– 23), ou seja, sempre, sem nenhuma limitação.

7. Exame de consciência 154. Toda a nossa vida está sendo gravada em um lme sonoro e em cores. Tudo está ali: o bom e o mau. Deus prometeu premiarnos até pelos atos mais insigni cantes feitos por causa dele:

mesmo um copo de água (Mt 10, 42). Mas também nos disse que nos pedirá contas até mesmo de uma palavra ociosa (Mt 12, 36). Por outro lado, o confessor é um homem; com o poder divino de perdoar ou condenar, mas um homem. Assim, para julgar, não lhe basta conhecer nosso arrependimento, ele tem de conhecer nossos pecados, todos eles. i. O exame de consciência É a cuidadosa inquisição dos pecados que serão confessados ao sacerdote no tribunal da Penitência, a m de obter sua absolvição. a) Exame dos pecados 1. O exame é necessário. a) Para cumprir o grave preceito divino de dizer ao confessor todos os pecados, pelo menos os mortais (cf. D. 917). b) Davi, para sentir a dor por seus pecados, não se arrependeu até que o profeta Natã o colocasse diante de seu pecado (2Sm 12, 13). c) Para poder propor uma emenda mais e caz, ao tremer diante de nossa miséria e conhecer os pontos fracos de nossa alma. 2. O exame versa sobre: a) As faltas cometidas com pensamentos, palavras, atos e omissões. E sobre seu número, gravidade e in uência sobre outras pessoas (crianças, etc.). b) Matéria necessária do exame são todos os pecados mortais, com as circunstâncias que os mudam de espécie (cf. D. 917). c) Sobre os duvidosos, o melhor é confessá-los como duvidosos; sem se cansar demais em um esforço de memória que poderia

des gurar o pecado tal como ele aconteceu. Entre as pessoas piedosas e escrupulosas, solucionar as dúvidas a seu favor. O Senhor é bom e ama a boa vontade. b) Com cuidado 1. Tal como exige um assunto no qual se trata com Deus, e, além disso, de algo muito importante para nós — a nossa restauração. 2. Nem super cial, nem escrupuloso, mas sério e honrado, na medida certa: a) Do tempo decorrido desde a Con ssão anterior. b) Da condição das pessoas. O Senhor exige cinco daquele a quem dá cinco. c) Das circunstâncias da própria vida. Aquele que tem muitas ocasiões de pecado necessita de mais exame, para que o pecado não vá adquirindo nele um aspecto de coisa natural e deixe de ser percebido em um ligeiro exame. Aqueles que têm maiores responsabilidades, etc. 3. Alguns fazem o exame por escrito. Está certo. Este método ajuda a recordar, a não omitir nada na Con ssão, e deixa o espírito tranqüilo e livre para exercitar-se mais em atos de pesar. c) Modo de fazê-lo 1. Que Deus nos dê uma ajuda. a) Pedir luzes a Deus para conhecer as nossas culpas, para recordar as muitas faltas com que o ofendemos e julgá-las conforme sua importância. b) Considerar o amor e o esmero com que devíamos servir a Cristo. Depois, cada falta já aparecerá em sua devida

transcendência, não tanto como coisas feitas ou omitidas, mas como deserções do amor de Deus. Cristo nos olha como olhou para Pedro: com um olhar triste, mas cheio de ternura e compaixão. 2. Nosso papel. a) Reconcentração, um olhar para dentro, com a devida calma, com serenidade, lealmente. b) Ir comparando nossa vida, atos, palavras, pensamentos e sentimentos com a vontade de Deus sobre cada um. Cada um tem atualmente um diferente grau de amizade com Deus, e, conforme esse grau, assim é a exigência de examinar nossa conformidade com Ele. Daí os dois pontos seguintes. ii. O exame dos lhos pródigos 1. Aqueles que, depois de arruinar o patrimônio de Deus, por m regressam à casa paterna. 2. Também aqueles que, mesmo considerando-se de Deus, não se preocupam muito com sua amizade com Ele; essa grande multidão de cristãos cuja máxima inquietação religiosa, mais do que serem perfeitos, é a de pecar menos. Por isso sua Con ssão — pouco freqüente — é um julgamento diante do tribunal de Deus, e seu exame, um rigoroso inventário de seus pecados. Vejamos algumas de suas disposições internas. a) Con ança. Recordamos as ofensas feitas a Deus, mas a esse Deus que a parábola do lho pródigo revelou. b) Esmero. É preciso dizer todos os pecados mortais. Deus já os conhece, mas quis dar seu perdão e sua graça por meio de um homem, o sacerdote.

c) Magnanimidade. Que não é soberba, nem ausência de pesar por aquilo que estamos examinando, mas tampouco inibição. Deus é Pai. d) Coragem. Sem medo de ver pecado onde ele existe de fato, ainda que o amor-próprio resista a julgar aquilo como pecado. iii. O exame das almas interiores Referimo-nos àqueles que se esforçam por viver uma união íntima com Cristo. Por isso a sua — freqüente — Con ssão e seu exame são uma revisão de forças com Cristo, uma pesquisa dos pontos fracos, uma indicação das fraquezas. a) Uma iluminação da sionomia da alma 1. Ver ali as manchas pretas. a) Os pecados veniais que se cometem com plena consciência: uma murmuração grosseira, alguma desobediência, etc. b) Os pecados de fraqueza pouco ou mal conhecidos. Estes, sem um exame atento, pouco a pouco nos prenderiam fortemente. c) Como se poderia e deveria ter correspondido melhor à graça. 2. Acima de tudo a orientação do coração. a) Mais que uma enumeração detalhada das faltas veniais, convém examinar o princípio de onde elas geralmente procedem em nós. Pergunta-te: Onde está meu coração? b) Uma orientação que domina, inspira e dirige teu ser. Pode ser o pecado capital que faz guerra à tua vida interior; ou a coisa que mais tem exercido in uência nos últimos dias, desde a Con ssão anterior: desejos de elogios, ressentimentos, etc.

c) Isto dá ao confessor a facilidade de poder aconselhar-te concretamente, e não com fórmulas demasiado gerais. E para nós, dá um modo de prevenir a rotina e intensi car o pesar e o propósito. b) Disposições interiores 1. Sinceridade. Nem querer desculpar-nos, nem nos esforçar por ver faltas onde elas não existem. 2. Humildade. Que não signi ca dizer: “Sou o mais desprezível”, e esperar senti-lo. Mas ver a falta de correspondência a Deus, aquilo que é minha realidade: o pecado. E lembrar que sem Ele não somos nada. 3. Serenidade. Com freqüência, a perturbação é amor-próprio desordenado, querer edi car por nós mesmos. 4. Sem excesso de minúcias. As forças humanas são limitadas. Por outro lado, arrancar um vício traz consigo um progresso geral na perfeição, especialmente se esse defeito que escolhemos é fundamental. Preocupar-se com muitas coisas tem o perigo de perder-se na superfície delas. Conclusão 1. Existem con ssões sem proveito, talvez indignas, e às vezes nulas, porque, descuidando o exame, falta o verdadeiro pesar e propósito. 2. O exame de consciência, além de preparar a Con ssão, vai nos dando um conhecimento profundo e certeiro de nós mesmos. 3. E é um excelente meio de aproveitamento e santi cação, sobretudo quando nossa atitude é rati cada por uma graça sacramental que cura, cicatriza, sustenta e impulsiona.

8. Dor pelos pecados 155. A recepção do sacramento da Penitência é de uma e cácia santi cadora extraordinária, mas se trata de um ato transitório que não pode ser repetido continuamente. Por isso, o que deve permanecer habitualmente na alma é a virtude da penitência e o espírito de compunção, já que são eles que irão manter em nós os frutos do sacramento. Esta virtude e essa dor devem manifestar-se pelos atos que lhes são próprios; em si mesmos, porém, são uma atitude habitual da alma que nos mantém no pesar por ter ofendido a Deus e no desejo de reparar nossas faltas. Este espírito de compunção é necessário a todos os que não viveram em perfeita inocência — isto é, mais ou menos a todas as pessoas do mundo. i. Necessidade e classes a) É necessária 1. Por ser uma disposição fundamental. a) Cuja falta absoluta: 1º — Se é com advertência: faria sacrílega a Con ssão. 2º — Se inadvertida: faria inválida a absolvição, por falta de matéria próxima. b) Que, juntamente com o propósito de emenda, nos traz o maior fruto possível na recepção do sacramento. 2. Requerida pela própria natureza deste sacramento. a) Santo Tomás ensina (Suma teológica,

, q. 84, a. 2):

1º — Que a matéria remota deste sacramento são os pecados. 2º — Que a matéria próxima são os atos do pecador repelindo os pecados. 3º — Que as formas sacramentais recaem diretamente sobre a matéria próxima, não sobre a remota. b) Daí se segue que, quando falta a matéria próxima (mesmo que sem culpa), não existe sacramento. b) Pode ser de duas classes 1. Dor de atrição. a) É a dor dos pecados, concebida por um motivo sobrenatural, mas inferior à caridade perfeita, por exemplo, a baixeza do pecado perante Deus, o medo do inferno, etc. b) Procede do amor sobrenatural de esperança ou de concupiscência, pelo qual desejamos a Deus como Sumo Bem para nós. c) Não justi ca por si mesmo. Mas é su ciente para receber validamente a absolvição e, assim, car justi cado. 2. Dor de contrição. a) É a dor e a repulsa pelos pecados cometidos enquanto ofensa a Deus, com o propósito de se confessar e não voltar a pecar. b) Procede do amor de caridade ou amizade para com Deus, pelo qual se busca antes de tudo a honra e a glória de Deus. c) Esta dor justi ca por si mesma o pecador, ainda que ordenada ao sacramento, cujo desejo ele traz consigo, ao menos implicitamente. ii. Frutos e meios de obtê-la

a) A dor pelos pecados produz frutos abundantes 1. A intensidade do arrependimento, nascido sobretudo dos motivos da contrição perfeita. Estará em razão direta com o grau de graça que a alma receberá com a absolvição sacramental. 2. Com uma contrição intensíssima, a alma poderia obter não só a remissão total de suas culpas e da pena temporal que por elas teria de pagar nesta vida ou no purgatório, mas também um considerável aumento da graça santi cante, que a faria progredir rapidamente pelos caminhos da perfeição. 3. Quando este sentimento de contrição é profundo e habitual, ele proporciona à alma uma grande paz, conserva-a na humildade e é um meio excelente de puri cação, pois a ajuda a morti car seus instintos desordenados, fortalece-a contra as tentações e a impele a empregar todos os meios a seu alcance para reparar os seus pecados e garantir sua perseverança no bem. 4. Este espírito de compunção é próprio de todos os santos: todos se sentiam pecadores diante de Deus. E é também o espírito que anima a Igreja, a Esposa de Cristo, enquanto realiza neste mundo a ação mais sublime e santa: a Santa Missa, na qual se pede repetidas vezes pelo perdão dos pecados. b) Principais meios para adquirir o espírito de compunção 1. A oração. a) Por se tratar de um dom de Deus altamente santi cador, que somente se alcança por via impetratória. b) A Igreja coloca ao nosso alcance belíssimas fórmulas, entre as quais se destaca o Miserere (Salmo 50).

2. A contemplação dos sofrimentos de Cristo. a) Motivados por nossos pecados. b) E por sua in nita misericórdia em acolher o pecador arrependido. 3. A prática voluntária de morti cações e austeridades. a) Realizadas com espírito de reparação, reconhecendo nossa miséria. b) Realizadas com espírito de união com Cristo, cujos méritos são os únicos que possuem valor de redenção, e sem os quais nossos esforços seriam vãos. iii. É muito difícil fazer um ato de contrição perfeita? a) Parece que não 1. Diz Santo Tomás: “É claro que o bem é mais poderoso que o mal; porque o mal só opera em virtude do bem”. “Logo, se a vontade humana se afasta do estado de graça pelo pecado, com maior facilidade pode afastar-se do pecado pela graça” (Suma contra gent., liv. 4, cap. 71). 2. Parece originar-se da in nita bondade e misericórdia de Deus. b) Por via de comparação com o sacramento do Batismo 1. Cristo, ao instituir o Batismo, deu abundantíssimas facilidades para sua administração: água natural, qualquer pessoa... 2. Estas facilidades obedecem ao fato de que o Batismo é o mais necessário de todos os sacramentos por Ele instituídos. 3. Porém, o ato de contrição perfeita é ainda mais necessário que o próprio Batismo e que a própria Penitência sacramental para a

imensa maioria dos homens (existem hoje no mundo mais de dois bilhões de pagãos que não estão batizados, nem sabem que existe o sacramento da Penitência). Logo, parece que se deve concluir que, com a ajuda da graça atual, não será muito difícil fazer um ato de contrição perfeita. Conclusão 1. É de máxima importância procurar a maior intensidade possível na dor dos pecados, para conseguir recuperar o mesmo grau de graça, ou talvez um maior, que aquele que se possuía antes do pecado. 2. Sempre convencidos, porém, de que esta graça da contrição perfeita é um dom de Deus, que somente se pode impetrar pela via da oração, devemos humilhar-nos diante da Divina Majestade, implorando-a com insistência por intercessão de Maria, mediadora de todas as graças.

9. Propósito de emenda 156. É importantíssimo saber com toda a exatidão em que consiste o propósito de emenda, pois, por falta dele acabam inválidas — quando não sacrílegas — numerosas con ssões. Quantas con ssões inválidas, ou pelo menos quase inúteis, há entre as pessoas piedosas, por não levarem em conta estas coisas tão elementares! i. Sua natureza a) O que é

1. O propósito de emenda é a vontade deliberada e séria de não voltar mais a pecar. 2. É claro que não basta um simples “eu queria”, mas é necessário um rme e enérgico “eu quero”. E este sem nenhuma condição. 3. Entretanto, não se exige uma promessa estrita, um voto. b) Divisão 1. O propósito de emenda pode ser formal ou explícito, e virtual ou implícito. 2. Formal é aquele que se formula explicitamente por um ato distinto da contrição. 3. Virtual é aquele que está incluído implicitamente no ato de contrição, pelo qual se rejeitam todos os pecados passados, presentes ou futuros. c) O “porquê” do propósito de emenda 1. Para ir para o céu? Claro. Mas... isso não acaba sendo um pouco egoísta? 2. Por medo do inferno? Também é claro. Mas... não parece também um pouco egoísta? 3. Pelo céu e por amor a Deus? Isto é muito mais aceitável, mas ainda não é o melhor... 4. Só e exclusivamente por amor a Deus? Isto é o mais perfeito. Ademais, isto nos aproxima mais do céu e nos afasta do inferno. ii. Sua necessidade a) Sem ele é impossível o perdão dos pecados

1. Porque sem ele não existe verdadeiro arrependimento do pecado. 2. Portanto, sem propósito de emenda é impossível conseguir o perdão dos pecados fora da Con ssão, ainda que se faça um ato de contrição perfeita. 3. Mas também é impossível na Con ssão sacramental, porque sem esse propósito tampouco pode existir a simples dor de atrição, que é a condição mínima para que os pecados possam ser absolvidos. b) A Igreja o disse 1. No Concílio de Trento foi declarado expressamente: “A contrição [...] é uma dor da alma e detestação do pecado cometido, com o propósito de não pecar daí em diante” (D. 897). 2. Logo, sem esse propósito de não voltar nunca mais ao pecado, não há possibilidade de perdão, nem fora, nem dentro da Con ssão sacramental. c) Além disso, tem de ser assim 1. Porque é evidente que não está verdadeiramente arrependido de seus pecados aquele que não tenha o rme propósito de evitálos no futuro. 2. E, sem um verdadeiro e sincero arrependimento, não é possível obter o perdão dos pecados. Sem ele, a Con ssão seria inválida se realizada de boa-fé, e sacrílega se o penitente percebe claramente que não tem o verdadeiro propósito de emenda. 3. É preciso notar, entretanto, que não se requer que o propósito seja formulado de maneira explícita. Basta, em absoluto, o propósito implícito. Apesar de tudo, o primeiro é mais

conveniente para conseguir segurança e certeza de ter feito uma boa Con ssão. iii. Qualidades a) Deve ser rme 1. O penitente, no momento de arrepender-se, deve estar completamente decidido a não voltar a pecar no futuro, e de tal modo que, se no momento de se confessar, ou imediatamente depois, surgir para ele a ocasião de pecar, iria rejeitá-la no ato, sem a menor vacilação, suportando, se necessário, todos os males possíveis. 2. Por outro lado, não se requer que o penitente esteja rmemente convencido de que irá cumprir seu propósito. A sinceridade do propósito atual é compatível com a dúvida sobre seu cumprimento. 3. É compatível, inclusive, com a quase certeza moral de que, por sua debilidade ou fraqueza, voltará a cair. É claro, contudo, que as freqüentes e contínuas recaídas em um mesmo pecado levam a duvidar seriamente da sinceridade do propósito de emenda. b) Deve ser universal 1. O propósito deve estender-se a todos os pecados mortais, sem excluir nenhum deles. 2. Não é necessário, nem mesmo conveniente, que sejam citados um por um: basta rejeitar a todos eles em conjunto. Em circunstâncias especiais, pode ser conveniente que, além desta extensão universal, exista alguma mais concreta e especial sobre os pecados a que o pecador se sente mais inclinado. 3. Tratando-se de pecados veniais, não é absolutamente necessário que o propósito seja universal. Para a validade do

sacramento é su ciente que o propósito recaia sobre os pecados veniais de que ele se acusa expressamente na Con ssão. c) Deve ser e caz 1. Isto não signi ca que, para a validade do propósito, seja indispensável que seja cumprido de fato no futuro. 2. Signi ca unicamente que o penitente quer, com vontade séria e formal, empregar os meios necessários para evitar os pecados futuros: fugir das ocasiões, perdoar as injúrias, abrir mão dos ódios e inimizades, restituir o alheio, freqüentar os sacramentos, fazer oração... 3. Pois aquele que realmente quer o querer os meios para consegui-lo.

m, forçosamente tem de

Conclusão 1. Logo, aquele que se confessa sem o verdadeiro propósito de emenda não tem verdadeiro arrependimento de seus pecados, e sem ele é absurdo e contraditório esperar o perdão de Deus. 2. Em vão diremos a uma pessoa que temos grande pesar por lhe termos causado um mal, se estamos dispostos a voltar a causá-lo na primeira ocasião que se nos apresenta. 3. Além disso, embora nos seja fácil enganar um homem, quem é tonto o bastante para pretender enganar a Deus?

10. Confissão dos pecados

157. “A religião católica”, diz um escrito calvinista, “tem uma instituição tão sublime, tão consoladora, que poderia conquistar o mundo inteiro onde quer que existam homens que sofrem por algo mais que o golpe e a ferida: é a Con ssão” (Jokai). A verdadeira liberdade é a da alma, e não há pior escravidão que a do pecado. Horácio chama de ignorantes àqueles que, em vez de curar suas chagas, escondem-nas, de forma a agravar o seu estado. Tudo isto, fonte de verdadeira liberdade e libertação, é a Con ssão bem-feita. i. Do conhecimento ao amor a) Natureza da Con ssão É a acusação voluntária dos próprios pecados cometidos depois do Batismo, feita pelo penitente ao legítimo sacerdote, em ordem a obter a absolvição dos mesmos, em virtude do poder das chaves. 1. Acusação voluntária. a) Não é a simples manifestação dos pecados; menos ainda com a intenção de escusar-se ou, no pior dos casos, de se deleitar em sua narração. É a posição humilde e louvável do réu convicto e arrependido diante de seu legítimo juiz. b) Esta auto-acusação deve ser livre e espontânea, isenta de toda coação, no foro interno e no externo. 2. Os pecados cometidos depois do Batismo. a) Os pecados constituem a matéria própria e remota do sacramento. A matéria próxima são os atos do penitente rejeitando seus pecados. Sobre eles recai a absolvição, a forma do sacramento.

b) Os pecados anteriores ao Batismo são apagados ao receber tal sacramento, junto com o pecado original. 3. Em ordem à absolvição dos mesmos. a) Carece de valor sacramental se feita para outros ns, por exemplo, para pedir conselho, desafogar sua alma, zombar do sacerdote... b) Esta é uma condição essencial. O ato recebe sua especi cação pelo m. b) Utilidade e necessidade da Con ssão 1. Até mesmo os ímpios (Voltaire, Rousseau...) a proclamaram como bené ca e até necessária, como estupendo remédio para a imoralidade humana. O temor e a vergonha de manifestar seus pecados retrai e afasta os homens dos vícios. Assim se expressam esses homens. 2. É doutrina de fé católica que a con ssão dos pecados é necessária por instituição divina, ou seja, por disposição do próprio Cristo. Eis aqui a de nição dogmática do Concílio de Trento: Se alguém disser que, para a remissão dos pecados no sacramento da Penitência, não é necessário, por direito divino, confessar todos e cada um dos pecados mortais de que, com a devida e diligente premeditação, se tenha memória, mesmo os ocultos e os que são contra os últimos mandamentos do Decálogo, e as circunstâncias que alteram a espécie do pecado [...] seja anátema (D. 917).

Circunstâncias que alteram a espécie são, por exemplo, o roubo de um objeto sagrado, a quebra do voto de castidade, o estado da pessoa com quem se pecou, etc. 3. A Con ssão é um julgamento formal, embora sem scal nem testemunhas. Mas, para que o juiz emita um parecer, é preciso que ele conheça a causa com toda a exatidão. E aqui é o réu quem

deve informar detalhadamente ao juiz sobre todo o seu processo, e só depois disso o juiz irá absolvê-lo, não sem antes impor-lhe a pena. c) Di culdades na Con ssão 1. Vergonha. a) É o temor inato de manifestar nossos pecados íntimos a uma pessoa alheia à nossa vida e, ordinariamente, a nosso ambiente e ideologia. b) Do ponto de vista lógico, ela não tem razão de ser. Nesta matéria, o sacerdote é mais experimentado e douto, sabe até onde pode chegar a natureza humana e, com toda a segurança, não o surpreenderá esse pecado que tanto te acovarda. A Con ssão cará sempre em segredo, selada pelo rigorosíssimo sigilo sacramental. 2. Rotina. a) É o extremo oposto, próprio da Con ssão freqüente. A alma se acostuma a esta ascese de um modo material e rotineiro, e a dor e o arrependimento costumam ser débeis, para não dizer nulos. b) É fácil superar este grave obstáculo, que paralisa uma das mais abundantes fontes de santi cação, evocando novamente os pecados da vida passada que provocaram maior pesar, embora já confessados. 3. Falta de respeito. a) Não esqueçamos que se trata de um sacramento instituído por Cristo, e de cuja utilização depende em grande parte a nossa salvação ou santi cação.

b) A Con ssão deve ser somente dos pecados pessoais, deixando os do próximo, e sem exceder-se em circunstâncias e detalhes supér uos. Deve-se tratar o confessor como ministro de Cristo, e seus conselhos devem ser recebidos como provenientes d’Ele. ii. Confessai-vos bem a) Verbalmente. 1. Em circunstâncias normais, a Con ssão deve ser assim. É natural. Além da longa tradição e do preceito estabelecido pelo Concílio de Florença (cf. D. 699), a palavra é o meio próprio e mais usual de expressão do homem. 2. Não obstante, esta propriedade não é essencial e pode faltar em casos especiais, sem detrimento do sacramento. Assim ocorre quando o penitente é mudo, ou o confessor é surdo, ou ambos de língua diferente. Quando houver o grave perigo de omitir algum pecado por extraordinária vergonha ou esquecimento, permite-se fazê-la por escrito, manifestando verbalmente a culpabilidade: “Eu me acuso do que está escrito aqui”. b) Com sinceridade. 1. É o mínimo que se pode pedir. “Nobreza obriga”. A Con ssão é um julgamento onde não há outro acusador ou testemunhas, a não ser o próprio penitente. Por outro lado, ao juiz, ao confessor, só interessa conhecer os pecados para perdoá-los. Toda adulteração ou mentira iria em prejuízo do interessado. 2. Acusar-se de algum pecado grave não cometido, alterar ou omitir de propósito as circunstâncias que o modi cam ou especi cam, constitui um sacrilégio e torna inválida a Con ssão. Mentir na Con ssão, mesmo em matéria livre ou até fora de matéria própria, é uma notável irreverência para com o sacramento, embora não vá além dos limites do pecado venial

caso se trate de matéria livre (ou seja, somente de pecados veniais ou de mortais já bem confessados anteriormente). c) De todos os pecados. 1. Integridade material. a) É preciso expor todos e cada um dos pecados, para que o sacerdote conheça tudo quanto deverá absolver, manifestando a culpabilidade e o arrependimento de todos eles. b) Contudo, “ninguém dá o que não tem”, e a ninguém se deve exigir mais do que pode dar. Portanto, existem circunstâncias que eximem desta integridade material. 1º — Impotência física: enfermidade extrema, falta de tempo diante de um perigo iminente, impossibilidade de falar e escrever, ignorância inculpável... 2º — Impotência moral: grave perigo de quebrar o sigilo, perigo de escândalo extrínseco, grandes escrúpulos de consciência... 2. Integridade formal. a) Mesmo quando, pelos motivos apontados, não se puder veri car a integridade material, o penitente deve arrepender-se de todos os seus pecados e, inclusive, estar disposto, se não existirem tais circunstâncias, a manifestá-los todos. b) Quando desaparecerem os motivos legítimos que impediram a manifestação de determinados pecados em con ssões precedentes, existe a obrigação de submetê-los ao julgamento sacramental. Conclusão 1. “Levantar-me-ei e irei a meu pai...” (Lc 15, 18). Assim como o lho pródigo, com essa premeditação, sinceridade e con ança, temos de comparecer ao tribunal da penitência de Deus, nosso Pai.

2. Certamente nos custa; somos homens. Mas, presta atenção: este ato de sinceridade, de arrependimento, vale para nós o perdão divino. 3. Quanto custou a Deus a satisfação de nossos pecados! E quão pouco Ele nos pede para obter o perdão!

11. A satisfação sacramental 158. Os Evangelhos narram: “Ele o recebeu com alegria [...]. Senhor, dou a metade de meus bens aos pobres, e se defraudei alguém em alguma coisa, devolvo-lhe o quádruplo” (Lc 19, 1–10). Todos nós somos Zaqueu. Pecamos e ofendemos o Senhor. Podemos satisfazer a Deus por nossos pecados? Sim. O exemplo de Zaqueu no-lo demonstra. Unamos nossas obras aos méritos de Cristo, com as penas impostas pelo confessor. i. Que é a satisfação sacramental? a) Uma ação penal 1. Restabelece os direitos de Deus conculcados pelo pecado. É um ato de justiça. a) Porém, enquanto ato próprio do homem, não é de estrita justiça, por falta da devida igualdade entre Deus e os homens. Sempre camos em dívida. b) É uma parte potencial da justiça estrita: a virtude da penitência. 2. Para expiar a pena temporal conseqüente.

a) A satisfação é exigida pelos dois aspectos fundamentais do pecado: a culpa ou ofensa a Deus, e a pena ou castigo que lhe corresponde. b) A culpa desaparece com o arrependimento ou contrição do pecador. c) A pena temporal deve ser cumprida neste mundo ou no purgatório. A satisfação sacramental a suprime ou, pelo menos, a diminui. b) Imposta pelo confessor. 1. Porque é o juiz quem há de ditar, em nome de Deus, a pena devida. 2. Porque as penas que o penitente impõe a si mesmo não podem ter caráter judicial, nem são sacramentais. c) Para reparar a ofensa feita a Deus. Sendo Deus in nito, de certo modo a ofensa é in nita. Como o homem pode satisfazer? Encontramos a resposta: 1. Na Sagrada Escritura. Nela se promete a remissão dos pecados para as obras de penitência: “Se o ímpio se afasta de sua iniqüidade e pratica o direito e a justiça, viverá” (Ez 33, 19). “Produzi, pois, frutos dignos de penitência” (Lc 3, 8). 2. A principal satisfação foi oferecida por Cristo na Cruz. O pecador deve unir sua satisfação à de Cristo. 3. Deus é mais misericordioso que qualquer homem. E, já que é possível satisfazer a um homem, logo, também é possível satisfazer a Deus.

4. Ainda que a distância seja in nita, basta que o homem dê o que puder, pois a amizade não exige a equivalência acima da medida do possível. ii. Necessidade da satisfação sacramental a) Necessária para a validade e a licitude do sacramento. 1. Porque faz parte da matéria próxima constitutiva do sacramento. a) Esta satisfação é absolutamente necessária no propósito ou aceitação, de modo que o sacramento é inválido sem ela. b) Porém, o efetivo cumprimento é necessário somente para a integridade do sacramento, não para sua validade. Se não se cumpre por uma omissão culpável, comete-se um pecado, grave ou leve, conforme fosse a penitência; mas não voltam a reviver os pecados pelos quais fora imposta a satisfação. b) O confessor pode e deve impô-la. 1. Que ele pode, con rma-se pelo poder de ligar e desligar concedido por Cristo à sua Igreja. “Eu te darei as chaves do reino dos céus, e tudo quanto ligares na terra será ligado nos céus” (Mt 16, 19). 2. Que ele deve, veri ca-se por tríplice razão: a) Porque é ministro de Deus. Assim, deve fazer tudo que esteja a seu alcance para conseguir a integridade do sacramento. b) Porque é juiz. Deve impor o castigo correspondente e proporcional à culpa prometida (penitências vindicativas). c) Porque é médico. Por isso deve curar as feridas existentes e prevenir as futuras (penitências medicinais).

c) O penitente tem de aceitá-la e cumpri-la. 1. Aceitá-la. O pecador se permitiu um prazer contra a lei de Deus; é justo que sofra uma pena ou castigo para compensar o mesmo. 2. Cumpri-la. Não basta a simples aceitação, é necessário o seu cumprimento. E isto em qualquer de seus três graus. a) Esmola. Neste aspecto se incluem todas as obras de misericórdia. b) Jejum. Com isto se indicam todas as obras de morti cação. c) Oração, que compreende todas as práticas de piedade. d) Às vezes, a obrigação de cumprir a penitência pode cessar. 1. Quando se torna física ou moralmente impossível. 2. Quando se obtém legitimamente a comutação por outra penitência. 3. Quando o penitente se esqueceu dela por completo. Mesmo neste caso, ele deve fazer ou rezar alguma coisa em substituição da penitência esquecida. iii. Efeitos a) Suprime total ou parcialmente a pena temporal devida pelos pecados. 1. Ex opere operato. Porque constitui um dos atos da matéria próxima do sacramento. a) Essencialmente, em sua aceitação. b) Integralmente, em seu cumprimento.

2. Ex opere operantis. Toda boa obra tem ainda o valor que o sujeito lhe dê com seu favor e sua devoção. Ordinariamente é inferior à anterior. b) Cura as marcas e seqüelas deixadas na alma pelos pecados passados, e previne os futuros. 1. As obras satisfatórias impostas pelo confessor, em igualdade de circunstâncias, são mais e cazes que as realizadas por conta própria. 2. Afastam grandemente do pecado e tornam o penitente mais cuidadoso e vigilante. Conclusão 1. Cumpramos a penitência sempre em estado de graça, pois esta é a raiz do mérito e da satisfação. 2. Ao satisfazer por nossos pecados, conformamo-nos a Cristo Jesus, que satisfez por eles. Vem d’Ele toda a nossa su ciência. E assim temos uma prova certíssima de que “se juntamente com Ele padecemos, também juntamente com Ele seremos glori cados” (Rm 8, 17).

12. Penitentes ocasionais 159. A ocasião é um problema moral. O sacerdote não tem o poder de perdoar os pecados à sua vontade. Existe um código de normas muito estrito, ao qual ele se deve ater. Ego te absolvo... Mas, às vezes, esse código proíbe a absolvição. Vejamos a quem, e em que condições.

i. Noções fundamentais a) Pecador ocasional 1. De nição: “Aquele que vive em um ambiente ou em circunstâncias que constituem para ele uma ocasião contínua ou freqüente de pecado”. 2. Ocasião de pecado é: “Uma pessoa ou circunstância externa que oferece oportunidade e provoca ou induz a pecar”. a) Não é o mesmo que perigo, ainda que tenham alguma relação. O perigo é tudo aquilo que impele a pecar, seja interno ou externo ao pecador. b) Não se deve confundir a ocasião com as paixões desordenadas, ou com a fragilidade do penitente; estas são intrínsecas a ele. b) As ocasiões de pecado Há múltiplas divisões, mas nos interessam principalmente as seguintes: 1. Em razão da in uência. a) Próxima, se in ui fortemente e quase sempre no pecado (por exemplo, a convivência com a pessoa cúmplice). b) Remota, se somente in ui levemente ou raras vezes (por exemplo, o simples andar pela rua). 2. Em razão da causa. a) Voluntária ou livre, se pode ser facilmente evitada (por exemplo, a assistência a um espetáculo). b) Necessária ou involuntária, se não se pode evitá-la física ou moralmente (por exemplo, a permanência de um lho da família em casa).

3. Em razão do pecado ao qual impele. a) Grave, se impele a pecado grave (por exemplo, a luxúria). b) Leve, se impele a pecado leve (por exemplo, a mentir com freqüência sem prejuízo para ninguém). ii. A ocasião voluntária próxima de pecado grave a) Princípios gerais 1. Se é ocasião voluntária de pecado grave, existe a obrigação de evitá-la. a) Aquele que permanece intencionalmente e sem razão su ciente em uma ocasião próxima e voluntária de pecado grave, mostra que não tem vontade de evitar o pecado, no qual, de fato, cairá facilmente. b) É grave ofensa a Deus, contínua e permanente, da qual não se livrará o pecador até que se decida e cazmente a romper com aquela ocasião de pecado. 2. A respeito da Con ssão. a) Não pode ser absolvido se não se propõe seriamente a romper com ela, porque de outro modo não teria arrependimento de seus pecados. b) Se já o prometeu várias vezes e não o cumpriu, não deve ser absolvido de ordinário, até que o cumpra de fato. c) E de outro modo a absolvição seria inválida e sacrílega. b) Os casos práticos 1. Jovem que tens fotogra as obscenas ou livros e revistas imorais, rasga-as o quanto antes! Tens obrigação grave de fazê-lo,

porque, se não o fazes, voltarás a cair. 2. Comerciante, industrial que falsi cas mercadorias ou vendes produtos adulterados... 3. Esse espetáculo tão atraente!... “Hoje, não, mas amanhã, sim, resistirei”. É a vontade frouxa daqueles que cedem a cada passo. Não podes colocar-te em uma ocasião voluntária. Como sabes que vais dispor de um amanhã? iii. A ocasião necessária próxima de pecado grave a) Obrigações 1. Deves evitá-la, custe o que custar. a) É o princípio geral. Obrigação grave. b) Não abuses da misericórdia divina. “A paciência de Deus só se estende sobre cada homem em certa medida, e uma vez completada, já não há compaixão” (Santo Agostinho). 2. Se não podes, deves procurar mudá-la em remota. a) Não comeces pelo “não posso”. Isto é coisa de frouxos e covardes. b) Lembra-te... Deus respondeu a São Paulo: “Basta-te a minha graça” (2Cor 12, 9). 3. Não te é pedido o impossível. a) Não se exige de ti o desaparecimento da causa necessária, pois isto não depende de ti. b) Mas que faças tudo que está ao teu alcance para evitar o pecado. É

c) Dispões da oração, que tudo pode. É Deus que dá a força diante da tentação. b) Meios para mudar a ocasião próxima em remota 1. Naturais. a) Evitar, na medida do possível, o trato com a pessoa ou objeto que constitui a ocasião de pecado. Podemos aplicar o adágio: “O que os olhos não vêem, o coração não sente”. b) Renovação freqüente do rme propósito de nunca mais pecar. 2. Sobrenaturais. a) Maior freqüência aos sacramentos. É o remédio mais seguro e e caz contra todo tipo de pecados. — A Con ssão não somente apaga nossos pecados, mas nos dá forças e energias para nos preservar dos futuros. — A Sagrada Comunhão. Recebemos real e verdadeiramente o Cordeiro de Deus, que tira os pecados do mundo. b) Oração freqüente e devota, pedindo a ajuda de Deus. A graça foi prometida infalivelmente à oração revestida das devidas condições. Santo Tomás assinala quatro: que se peça algo para si, necessário para a salvação, piedosamente e com perseverança (Suma teológica, a- ae, q. 83, a. 15, ad 2). 3. Deus é el e não permitirá que ninguém seja tentado acima de suas forças (1Cor 10, 13). c) Outras ocasiões

1. Restam: a) As remotas de pecado grave, sejam elas necessárias ou voluntárias. b) As próximas e remotas de pecado leve. 2. Não há obrigação grave de romper com elas. É impossível! “Teríamos de sair deste mundo” (1Cor 5, 10). 3. Mas devem ser afastadas, tornar-se mais remotas. Conclusão 1. Recair é pior que cair. a) É o ensinamento de Cristo, quando diz ao paralítico recémcurado: “Olha que foste curado; não voltes a pecar, para que não te suceda algo pior” (Jo 5, 14). b) Cada pecado aprofunda mais a tendência que todos temos para o mal desde o pecado original. Os pecados criam em nós disposições para o mal. 2. Persevera! a) Não basta começar, é preciso perseverar. Só persevera quem se decide rmemente a mudar de vida. b) Para grandes males, grandes remédios: evita todo tipo de perigos, e com energia. Se tua situação se arrasta... rompe com ela. c) A coroa do paraíso é prometida aos que começam, mas é dada unicamente a quem persevera até o m.

13. Habituados e reincidentes 160. Chama-se de penitente habituado aquele que, movido por uma tentação diabólica ou paixão desordenada, contraiu o costume de pecar, repetindo os mesmos pecados, e se aproxima da Con ssão pela primeira vez. Chama-se de penitente reincidente o pecador habituado que já confessou várias vezes o mesmo pecado, sem ter dedicado nenhum — ou quase nenhum — esforço para emendar-se. Vejamos, à luz da revelação e da teologia moral, o tratamento concreto e adequado com que o sacerdote deve procurar a saúde de tais enfermos. i. Aos habituados a) A absolvição conecta a alma com Deus 1. Tu és escravidão, morte, o começo do inferno. Um abismo de pecados te separa do Ser, do Amor, da Verdade, do Bem. 2. A absolvição sacramental, selando o teu arrependimento, te conecta novamente com Deus. “Deus não quer a morte do pecador, mas que se converta e tenha vida” (Ez 33, 11). 3. “Vai e não peques mais” (Jo 8, 11). “Deixa a tua condição e aprende a amar a Deus como Ele quer ser amado” (São João da Cruz). b) Serás um campo de batalha 1. Teu adversário, o diabo, te buscará para devorar-te. “Fica alerta e vigia” (1Pd 5, 8). 2. O reino dos céus padece violência.

a) Quanto mais tenderdes a viver conforme as leis do espírito, mais verás manifesta em ti a oposição entre carne e espírito. b) Conduz pouco a pouco, sem claudicar, à espiritualização das potências sensíveis e carnais mal-acostumadas. O combate será trágico, sofrerás crises, inclusive desequilíbrios... é a ocasião para a reparação, o amor e o triunfo. c) Entre a luta e a crise, a saúde de tua enfermidade: a criação de tua verdadeira personalidade em Cristo. 3. Reveste-te com as armas da luz. a) Não estás sozinho, tu és Cristo. Ele combate em ti contra o inimigo que se esconde em ti. “Basta-te a minha graça, porque é na fraqueza que o meu poder se revela por completo” (2Cor 12, 9). b) Tu és Igreja, exército. Teu combate é espetáculo para Deus, para os anjos e os homens. Anjos, sacerdotes, religiosos, crianças, enfermos, bem-aventurados... oferecem, oram, sofrem por ti e contigo. c) Tens armas: a fé; a Eucaristia — pão dos fortes; a morti cação — “castigo meu corpo e o escravizo” (1Cor 9, 27); a oração — “pedi e vos será dado” (Mt 7, 7). c) Mas é preciso triunfar a todo custo 1. Tua missão é amar. “Seus muitos pecados lhe são perdoados, porque muito amou” (Lc 7, 47). 2. Tens uma possibilidade deí ca: a graça te fez lho de Deus. Com tua vontade, deves formar em ti um Cristo. Cristo será a tua tarefa poética, a pujança de teu ser: “Para mim, viver é Cristo” (Fl 1, 21).

3. Edi carás o corpo total. “Completo em minha carne o que falta às tribulações de Cristo por seu corpo, que é a Igreja” (Cl 1, 24). Tu és redenção: tua derrota reduziria as forças do Corpo místico. Teu triunfo vivi cará seu sangue. ii. Aos reincidentes a) Que pecam com frieza 1. Em caso de manifesta indisposição do penitente (não-decidido a romper com o pecado). O sacerdote, com grande caridade, deve dizer-lhe o seguinte: a) Minha absolvição seria inválida e sacrílega. Não iria mudar tua situação em relação a Deus, mas inclusive a deixaria pior. b) Não feches as portas para ti. 1º — “De que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro, se perde a sua alma?” (Mt 16, 26). 2º — Todos que se acham em pecado estão mortos e são escravos de sua morte; estão mortos como escravos, e escravos como mortos” (Santo Agostinho, Serm. 134, De ver. libert.). 3º — “Com a tua dureza e coração impenitente, acumulas para ti um tesouro de ira para o dia da ira e da revelação do justo juízo de Deus” (Rm 2, 5). c) Vamos esperar dois ou três dias. Eu vou rezar por ti. Enquanto isso, pede a Deus que te mova a dar o passo (este último, no caso de o penitente não ter dado sinais de arrependimento depois das considerações). 2. Se ele der sinais especiais de arrependimento (con ssão espontânea, acusação humilde, aceitação alegre da penitência...).

a) Com a absolvição, o pecado vai receber “um golpe mortal”. b) Deus voltou a lançar-te a corda no poço onde estavas caído. O arrependimento é uma graça, uma corda que Deus te joga. Não voltes a cair de novo, pois poderia acontecer que a corda não chegasse mais. c) Não sejamos “daqueles que se afastam da fé para sua perdição, mas dos que perseveram éis para ganhar a alma” (Hb 10, 39). 3. Em caso de séria dúvida de suas disposições. a) Se não há necessidade de absolvê-lo sub conditione, convém adiar a absolvição, para que se recapacite e se prepare convenientemente. b) Se há necessidade urgente (perigo de morte, vai casar-se, haveria em conseqüência grave prejuízo, infâmia, escândalo, afastamento dos sacramentos): 1º — Esforços do confessor para conseguir as disposições mínimas no penitente; 2º — Dar a absolvição sub conditione, advertindo o penitente de que o valor da absolvição dependerá de ele estar, ou não, realmente arrependido de seus pecados. b) Que pecam por fragilidade 1. Com a absolvição, “já livres do pecado, tornastes-vos servos da justiça [...]; servos de Deus, tendes por fruto a santi cação, e por m a vida eterna” (Rm 6, 18–23). a) Como militar no exército, o desertor é condenado à morte. Deus esqueceu tua covardia e te reabilitou. b) Perdeste o mérito anterior. Chora, mas sem desânimo. É tão belo começar de novo!...

c) Aprende a perdoar setenta vezes sete. Julga teu irmão com magnanimidade. Não te escandalizes com as quedas de teu próximo. Nunca pronuncies uma sentença de nitiva contra ninguém. 2. Os maus hábitos permanecem como uma segunda natureza. a) Deves impor o domínio de tuas faculdades espirituais. Que teus atos re exivos submetam as potências carnais aos desejos providenciais, para estabelecer uma harmoniosa cooperação entre ti e Deus. b) “Ainda não resististes até o sangue em vossa luta contra o pecado” (Hb 12, 4). “Jejuaste, vigiaste, te deitaste no chão, açoitaste teu corpo? Se não chegaste até aí, ainda te falta muito” (Santo Cura d’Ars). 3. Convence-te de que é possível vencer. Não peças a Deus que te arranque o aguilhão da paixão, mas torna-te digno de sua graça, pois “basta-te a minha graça, porque é na fraqueza que o meu poder se revela por completo” (2Cor 12, 9). Conclusão 1. Aplicar os remédios da Igreja com o tom particular que cada penitente exige. 2. Aplicar a cirurgia quando esta seja necessária para a cura. Assim o ensinou Cristo (Mt 5, 29–30). 3. Juntamente com a fealdade do pecado, sempre apareçam para o penitente as enormes perspectivas que a graça de Deus oferece. Ela garante o triunfo e nos reabilita para nossa vocação em Cristo.

14. Enfermos e moribundos 161. Não trataremos aqui dos enfermos habituais, nem dos casos de enfermidade passageira, já que todos estes podem receber os santos sacramentos como qualquer pessoa sadia, com as reservas devidas a cada caso particular. Centraremos nossa atenção naqueles que caíram em enfermidade grave e nos que dão sinais inequívocos de que já se encontram às portas da eternidade. i. Enfermos graves a) Diante de um ser querido que cai enfermo 1. Preocupamo-nos em devolver-lhe a saúde por todos os meios possíveis. 2. Com freqüência, porém, esquecemos o principal: prepará-lo para um possível trânsito para a eternidade. 3. Negamos a ele a maior demonstração de carinho: proporcionar-lhe um auxílio espiritual junto com a medicina corporal. 4. Quando se prevê a impossibilidade da cura de um enfermo, o melhor que se pode fazer é, com prudência, dizer isto a ele, para que se disponha cristãmente a deixar este mundo, e chamar um sacerdote para que o ajude a encontrar Deus em seus últimos momentos. b) Comunicar-lhe a gravidade de seu estado O enfermo deve preparar sua partida, deixando em ordem todos os seus negócios. Nada que esteja manchado pode entrar na glória eterna.

1. Esta advertência ao enfermo é um dever do qual nos será pedida estrita conta, porque dela talvez dependa a salvação ou o desespero eterno de sua alma. a) É um dever de piedade: virtude que visa ao bem total do próximo, sobretudo se é nosso parente. b) É um dever de caridade: para com Deus, que pede nossa colaboração na salvação das almas; e para com o enfermo, que espera encontrar a felicidade além da morte. c) É um dever de justiça: virtude pela qual se dá a cada um o que é seu, e toda alma foi criada para gozar de Deus na eternidade. 2. Este dever cabe: a) Aos familiares. Infelizmente, costumam ser os mais omissos neste ponto; querem enganar o pobre enfermo, erguendo uma criminosa muralha em torno dele: 1º — Por uma piedade malentendida: não querem assustá-lo com a visita do ministro de Deus. 2º — Por algum interesse existente: se o enfermo, antes de morrer, faz o testamento ou restitui o que não é seu, talvez eles quem sem nada. 3º — Por falsas idéias acerca da misericórdia de Deus e dos “méritos” do parente enfermo: “É tão bom o pobrezinho!”. E não praticava a religião. b) Ao médico de cabeceira. Diante da perspectiva de morte próxima ou suspeita de morte repentina, o médico ca obrigado a, prudentemente, dizer a verdade. 1º — Está obrigado por dever pro ssional a dar seu prognóstico para que o enfermo e os seus saibam o que fazer.

2º — Está obrigado pela lei natural a evitar o mal a seus semelhantes. Quem sabe quantos dissabores se seguiriam no caso de o enfermo não dispor suas coisas quando ainda em estado de lucidez! 3º — Está obrigado por caridade a cooperar com Cristo para a salvação das almas no que ele puder; no caso, com uma advertência em tempo hábil. c) Aos amigos. Pode acontecer, e infelizmente isso se repete muito na história, que os amigos se oponham à entrada do sacerdote na moradia do enfermo. Não percebem que a amizade exige, antes de tudo, o bem da pessoa amada, mesmo quando se tenha de enfrentar familiares ingratos ou indiferentes à sorte daquele que se vai. c) Avisar em tempo ao sacerdote Esta santa prática teve força de costume entre nossos avós; hoje descuidou-se muito, talvez porque o barulho e a pressa da vida atual impeçam que se concentre no transcendental. Contudo, é preciso voltar ao antigo costume, porque o sacerdote: 1. É o único que possui a su ciente formação teológica para saber o que convém em cada caso. a) Quer se trate de um pecador público (um amancebado, por exemplo). b) Quer seja alguém que esteja obrigado a devolver a riqueza mal adquirida. c) Ou então um caso de obstinação, de um segredo de honra ou de tantas outras coisas que passam pelos arcanos da alma. 2. É quem costuma ter maior in uência sobre as consciências, e pode, mesmo no m da vida, endireitar um caminho torto. 3. É quem possui de Cristo os plenos poderes para comunicar a graça pela administração dos sacramentos.

ii. Moribundos O enfermo se encontra em seu último transe. A maior obra de caridade que se pode fazer a ele é chamar o sacerdote, para que o assista em sua saída deste mundo. a) Moribundo com uso de suas faculdades Para este tipo de moribundos, o sacerdote dá a absolvição de modo absoluto, sempre que ocorram estas condições: 1. Se o enfermo é capaz de recebê-la, isto é: a) Se está batizado. b) Se tem o uso da razão e faz a con ssão de seus pecados. 2. Se o enfermo tem desejo de recebê-la: a) Dando sinais de arrependimento (golpes no peito, por exemplo). b) Mandando ele mesmo buscar o sacerdote, mesmo que o enfermo esteja inconsciente quando ele chegar. b) Moribundo que perdeu o uso de suas faculdades A estes, o sacerdote dará a absolvição chamada de sub conditione, que consiste em absolver sob a fórmula: “Se és capaz...”. 1. Razão desta absolvição. a) A Igreja, con ante na misericórdia de Deus e nas leis da natureza, supõe que aquele que parece estar morto possa ser capaz de fazer um ato de vontade. b) Por esse ato de vontade, o moribundo pode corresponder à graça de Deus e receber validamente o sacramento da Penitência. 2. Casos em que se dá esta absolvição.

a) Morte repentina, ou por acidente, de pessoas que levavam bem a sua vida cristã. Em seu modo de viver, manifestaram o desejo de se salvar. b) Qualquer leve indício de arrependimento que o moribundo tenha dado, embora não tivesse vivido muito cristãmente e mesmo que tenha recusado o auxílio sacerdotal em seus últimos momentos conscientes. c) Nos hereges e cismáticos, validamente batizados em suas seitas, se nelas estiveram de boa-fé, e caso se suponha que não teriam repelido a ajuda do sacerdote católico, julgando-a necessária para sua salvação. Conclusão 1. Contribui para a salvação das almas, avisando o sacerdote sempre que souberdes de um doente grave. 2. Até que chegue o ministro do Senhor, atendei o enfermo ou moribundo, rezando, com ele ou por ele, atos de arrependimento. 3. Se o que se fez pelos corpos terá grande recompensa (cf. Mt 25, 31–40), quanto mais o que se fez pela felicidade eterna de uma alma!

15. Escrupulosos 162. Na vida do homem, podemos distinguir duas ordens: a natural e a sobrenatural. a) Na ordem natural, quanto mais delicada for uma enfermidade ou dor que afeta o corpo, tanto maior há de ser o esmero e o

cuidado em procurar um médico, um doutor ou um cirurgião para sua cura. b) Na sobrenatural, quanto maiores forem os problemas que as almas apresentam, com maior esforço e atenção devem ser tratados pelo confessor ou diretor espiritual, que têm de levar a saúde para as almas. Os escrupulosos espirituais são almas atormentadas que necessitam de um tratamento especial e delicado em seu padecimento. Vejamos. i. O escrúpulo a) Problemas que apresenta 1. Um problema de tipo psicológico. Comprova-se no escrupuloso a obsessão de uma idéia, de uma lembrança, de uma indecisão naquilo que faz, pensa, diz e deseja. 2. Um problema de ordem moral, que afeta a responsabilidade. 3. É uma enfermidade da inteligência que, no ponto duvidoso, não consegue distinguir o verdadeiro a) Do falso. b) Da sensibilidade, que se perturba com a dúvida. c) Da vontade, que perde o domínio da inteligência e da ação. 4. Não se deve confundi-lo: a) Com a obsessão. Possuem um fundo comum, mas o escrúpulo causa desassossegos de espírito, remorsos. A obsessão, não. b) Com a delicadeza. O escrúpulo vê coisas onde elas não existem. A delicadeza as vê onde realmente existem, mesmo que

sejam muito pequenas. b) Em relação às potências de atenção 1. Em uma pessoa moral, permitem realizar atos positivos nos quais o entendimento se detém, e impede a entrada de idéias parasitas na consciência. 2. No escrupuloso, as idéias parasitas são as que dominam, e ele pensa sempre no mesmo ou em várias idéias simultâneas que o obsedam a contragosto. c) Em relação com a responsabilidade 1. É certo que nossos atos dependem de nós, que suas conseqüências nos acompanham, e que temos de prestar contas de suas repercussões à nossa consciência. 2. A pessoa escrupulosa também pensa assim. Mas não sabe xar o desenvolvimento de tais repercussões, e não pode evitar a angústia que a invade ao se perguntar sem descanso se terá cedido a alguma má intenção. ii. Sua cura À proporção que sejam destruídas as suas causas, assim será obtida a cura. Podem-se distinguir: causas siológicas e causas psíquicas. a) Causas siológicas 1. O trabalho da medicina é importantíssimo. Deve-se analisar o fundo hereditário da pessoa, suas predisposições somáticas à emotividade, etc. 2. O enfermo deve se submeter a um saudável regime de vida: conselhos de higiene geral, fortalecimento do sistema nervoso,

tratamentos médicos que acalmem suas reações emotivas, etc. 3. O médico, portanto, poderá prestar grande ajuda na descoberta dos elementos siológicos que perturbam as faculdades do escrupuloso. b) Causas psicológicas 1. O trabalho do diretor espiritual é de capital importância. O que se deve buscar para o paciente é seu apaziguamento moral. 2. Deve-se seguir um critério ao mesmo tempo compreensivo, bondoso e rme; se faltar uma destas condições, a cura resultará impossível. 3. Não discutir com o paciente sobre a realidade ou futilidade de seus temores: isto é o mesmo que açoitar o ar, pois sua perturbação mental consiste na impossibilidade de se deixar convencer por completo com base em princípios objetivos. 4. A verdadeira ajuda consiste em fazê-lo compreender que os valores espirituais íntimos podem subsistir a despeito das obsessões. “Onde estáveis quando meu coração era atormentado?”, dizia Santa Catarina de Sena ao Senhor, depois de ser tentada contra a pureza. “Estava em teu coração! E exatamente porque eu ali estava, esses maus pensamentos te desagradavam”. 5. Tática e caz, que há de consistir em: a) Não exigir que deixe de pensar naquilo que obscurece o seu entendimento (seria aconselhar a um enfermo que se cure por conta própria). b) Não o obrigar a obedecer cegamente (se o curado).

zesse, estaria

c) Ao contrário, de forma positiva, impor-lhe exercícios sobre um ponto diferente daquele que o enlouquece. A vontade se fortalece operando nas regiões em que domina, ao invés de se esgotar em uma luta esterilizadora contra inimigos que não desistem em seu esforço. iii. Escrúpulos da Con ssão e da Comunhão a) Privação dos sacramentos 1. Um enfermo só pode ser privado dos sacramentos por razões graves. 2. Muitas vezes, acreditamos agir bem ao suprimir as causas próximas da crise do enfermo: os sacramentos (Con ssão e Comunhão), que costumam ser motivo de perturbações extremadas; na realidade, porém, nos equivocamos. 3. Presta-se um alívio momentâneo ao enfermo, ao assumir por nossa conta a responsabilidade de retirar-lhe a obrigação de se confessar e comungar; contudo, isto não o cura. b) Privação da Comunhão 1. Costuma-se negar sistematicamente este sacramento para corrigir uma das causas próximas que atormentam o enfermo. 2. Com isso, coloca-se o escrupuloso em uma atmosfera arti cial de exceção e se encerra o enfermo em sua própria obsessão. 3. O verdadeiro remédio para esta enfermidade da alma é, ao contrário, a vida de Cristo comunicada através da Eucaristia. c) Privação da Con ssão 1. Também se costuma dispensar por completo o escrupuloso da Con ssão, sob o pretexto de sua irresponsabilidade. Ou se impõe

a ele a Comunhão freqüente sem a Con ssão como remédio espiritual de sua enfermidade. 2. Agindo assim, os escrúpulos podem parar de aumentar, mas não são reduzidos. E se coloca o escrupuloso em um ambiente espiritual de irresponsabilidade, que, rebaixando o domínio do escrúpulo, o inibe do cumprimento de outras obrigações pelas quais é responsável. 3. Ao contrário, deve-se recomendar a Con ssão a intervalos regulares, procurando: a) Não ser arrastado pelo domínio obsedante do paciente (por exemplo, que quer confessar-se todos os dias). b) Obrigando-o a aplicar os esforços ascéticos em outros pontos, e ordenando ao escrupuloso que faça atos efetivos de contrição ou de caridade antes de comungar — mas que não deixe de comungar. Conclusão 1. O escrupuloso é quem mais necessita da ajuda dos outros. Esta ajuda lhes deve ser dada mediante a oração, a compreensão, a bondade, a paciência. 2. Cristo sofreu e padeceu com mansidão e amor por todos nós. Sigamos seu exemplo, sem pessimismos, sem mau humor, diante dessas almas tão atormentadas.

CAPÍTULO V | A Unção dos Enfermos

163. A Unção dos Enfermos é um grande sacramento, cuja importância e soberana e cácia, infelizmente, é desconhecida pela grande maioria dos cristãos. Para muitos deles, inspira inclusive grande temor, como se fosse um sinal manifesto de morte iminente. Talvez contribua um pouco para esta psicose o nome com que era designado até recentemente: a Extrema-Unção. O Concílio Vaticano prefere chamá-lo simplesmente de Unção dos Enfermos, suprimindo o adjetivo que tanto alarmava os espíritos pusilânimes.191 Exporemos brevemente a natureza, o sujeito e os efeitos deste grande sacramento.

1. Natureza 164. O sacramento da Unção dos Enfermos pode ser de nido da seguinte forma: Um sacramento instituído pelo próprio Cristo, pelo qual, mediante a unção com o óleo sagrado sob a fórmula prescrita, se confere ao enfermo em perigo de morte a graça sacramental, apagam-se de sua alma os últimos traços e seqüelas do pecado e, às vezes, é-lhe outorgada a própria saúde corporal, se for conveniente para o bem de sua alma. A de nição é um pouco longa, mas tem a vantagem de reunir todos os elementos essenciais. Vamos explicá-la palavra por palavra. ) . — É uma verdade de fé expressamente de nida pela Igreja, como já dissemos ao falar dos demais sacramentos (cf. D. 844). Com relação à Unção dos Enfermos, o Concílio de Trento promulgou o seguinte cânon dogmático:

Se alguém disser que a Extrema-Unção não é, verdadeira e propriamente, um sacramento instituído por Cristo, Nosso Senhor (cf. Mc 6, 13) e promulgado pelo bemaventurado apóstolo São Tiago (Tg 5, 14), mas somente um rito aceito pelos Padres, ou uma invenção humana, seja anátema (D. 926).

De fato, o Evangelho de São Marcos nos informa que os apóstolos — enviados pelo próprio Cristo a pregar dois a dois pelos povoados da Palestina — “expulsavam muitos demônios e, ungindo com óleo a muitos enfermos, curavam-nos” (Mc 6, 13). Indubitavelmente, ainda não temos de ver aqui o sacramento da Extrema-Unção, mas um rito que insinuava e pressentia o futuro sacramento (cf. D. 908). A promulgação o cial, por assim dizer, do sacramento da Unção dos Enfermos foi feita — como diz o Concílio de Trento — pelo apóstolo Tiago. Em sua epístola católica (5, 14–15), escreve São Tiago: Algum de vós está enfermo? Mande chamar os presbíteros da Igreja e orem sobre ele, ungindo-o com óleo em nome do Senhor; a oração da fé salvará o enfermo, e o Senhor o fará levantar-se, e os pecados que tiver cometido lhe serão perdoados.

A tradição católica sempre viu nestas palavras a proclamação de um verdadeiro sacramento, e como unicamente Cristo pode instituir os sacramentos, segue-se que o apóstolo São Tiago se limita a promulgar um sacramento já instituído de antemão por seu Senhor e Mestre. O Concílio de Trento acolheu esta doutrina, declarando-a dogma de fé no cânon que acabamos de citar. ) , . — Estas palavras expressam a matéria própria do sacramento. Este óleo sagrado é simplesmente azeite de oliveira bento pelo bispo ou por um sacerdote autorizado para isso (cf. cân. 945). O bispo costuma benzer o óleo para a Unção dos Enfermos durante as cerimônias da Quinta-feira Santa. Desde então, o óleo bento constitui a matéria remota do sacramento (como a água natural é a matéria remota do Batismo). A matéria próxima é a unção do enfermo com o óleo sagrado

(como a matéria próxima do Batismo é a ablução do batizado com a água batismal). ) . — É a forma do sacramento, que deve ser administrado por um presbítero. Tal fórmula, na disciplina atual,192 é a seguinte: Por esta santa unção e piedosíssima misericórdia, te perdoe o Senhor tudo quanto pecaste pela vista, audição, olfato, paladar, palavra, tato e maus passos. O sacerdote vai ungindo cada um dos membros citados ao pronunciar a fórmula correspondente a ele. ) . — É o sujeito receptor da Sagrada Unção. Falaremos novamente sobre isto em breve. ) . — Como se sabe, todos os sacramentos produzem ou aumentam a graça santi cante no sujeito que os recebe com as devidas disposições; mas cada sacramento a produz com um matiz especial que distingue acidentalmente uma graça sacramental de outra também sacramental. O matiz próprio e peculiar da graça sacramental da Unção dos Enfermos é curar plenamente o enfermo das enfermidades espirituais produzidas pelo pecado. Ouçamos o Doutor Angélico explicando esta doutrina com sua habitual lucidez:193 Como o sacramento causa o que signi ca, seu principal efeito deve ser tomado de sua própria signi cação. Ora, a Extrema-Unção se administra à maneira de um medicamento, como o Batismo se emprega à maneira de uma ablução; e os medicamentos são usados para combater uma enfermidade. Logo, este sacramento foi instituído principalmente para curar a enfermidade produzida pelo pecado. Se o Batismo é uma regeneração espiritual, e a Penitência uma ressurreição, a ExtremaUnção vem a constituir uma cura ou medicina espiritual. E assim como a medicina corporal presume a vida do corpo no enfermo, assim também a medicina espiritual pressupõe a vida espiritual. Por isso este sacramento não se administra contra os pecados que privam da vida espiritual — que são o pecado original e o pecado mortal pessoal —, mas contra aqueles outros defeitos que levam o homem a adoecer espiritualmente, e lhe subtraem as forças para realizar os atos da vida da graça e da glória. E esses defeitos não são mais que certa fraqueza ou inaptidão, que o pecado

atual ou o original deixaram em nós. E contra essa debilidade o homem recupera as forças mediante a Extrema-Unção.

Como Santo Tomás acaba de nos dizer, este sacramento deve ser recebido em estado de graça (como a Con rmação ou a Eucaristia), já que se trata de um sacramento de vivos, não de mortos (como são o Batismo e a Penitência). Às vezes, porém, pode ocorrer que este sacramento atue como se fosse sacramento de mortos e dê a graça santi cante a quem carecia dela. Por exemplo: se uma pessoa morre de repente sem ter podido confessar algum pecado grave, o sacramento da Extrema-Unção ainda pode devolver-lhe a vida da graça e salvar sua alma, contanto que sejam reunidas estas duas condições: 1ª — Que o aparentemente morto ainda não o esteja realmente.194 2ª — Que o enfermo tenha, ao menos, o arrependimento de atrição de seus pecados, já que sem arrependimento é impossível o perdão de qualquer pecado, seja mortal ou venial. Daí a necessidade urgentíssima de chamar um sacerdote quando se produz uma morte repentina, seja qual for a causa que a tenha determinado (um infarto de miocárdio, um acidente automobilístico, etc.), para que lhe administre em seguida o sacramento da Extrema-Unção. Disso pode depender nada menos que a salvação eterna do presumido morto. )

. — É outro efeito maravilhoso do sacramento da Unção, que a seguir estudaremos com mais calma. ) ,

, -

, . — Nem sempre acontecerá, e por isso este efeito secundário pode falhar, e de fato muitas vezes falha. Outras vezes, porém, comprovou-se com assombro que imediatamente após receber a Unção, o enfermo começou a melhorar até recuperar por completo a saúde corporal.

2. Sujeito 165. O Concílio Vaticano ampliou consideravelmente o número de cristãos que podem receber o sacramento da Unção dos Enfermos. Antes do concílio, costumava-se administrá-lo somente aos enfermos ameaçados de um perigo próximo e extremo de morte (quase in extremis, como indicava o próprio nome do sacramento). Porém, levando em conta que um dos efeitos secundários do sacramento é, como já dissemos, devolver a saúde corporal ao enfermo — se for conveniente para sua alma — não parece razoável reservar a administração deste sacramento unicamente aos enfermos pouco menos que agonizantes, quando poderiam recuperar a saúde somente com um verdadeiro milagre. Levando em conta, além disso e sobretudo, que este sacramento enche o enfermo de graças sobrenaturais e apaga nele as marcas e seqüelas de seus pecados passados, parece muito lógico e conveniente administrá-lo a qualquer enfermo verdadeiramente grave, ainda que o perigo de morte não seja iminente, nem mesmo provável; basta que seja realmente possível diante de qualquer complicação que possa apresentar-se. Eis as próprias palavras do Concílio Vaticano :195 A “Extrema-Unção”, que também, e melhor, pode ser chamada de “Unção dos Enfermos”, não é só o sacramento de quem se encontra nos últimos momentos de sua vida. Portanto, o tempo oportuno para recebê-lo se inicia quando o cristão já começa a estar em perigo de morte por enfermidade ou velhice.

Contudo, é mister não exagerar nas facilidades que o concílio oferece. Seria um abuso evidente que um enfermo a igido por uma simples gripe ou por uma cólica de rim quisesse receber a Extrema-Unção. É preciso haver certo perigo de morte, mesmo que não seja de todo seguro e iminente.

3. Efeitos Ao expor sua natureza, já falamos dos principais efeitos deste sacramento, mas insistiremos um pouco mais neles. Os principais são os seguintes: 166. 1º — . A razão é evidente. Trata-se de um sacramento de vivos (como a Con rmação, a Eucaristia, a Ordem e o Matrimônio), cujo efeito e nalidade imediata é aumentar a graça em um sujeito que já a possui de antemão. Contudo, às vezes — como já explicamos — o sacramento da Unção dos Enfermos (ou qualquer outro sacramento de vivos) pode atuar como se fosse um sacramento de mortos (como o Batismo e a Penitência), caso em que ele confere a graça santi cante a quem não a possuía, por têla perdido por um pecado mortal. Para que isto suceda, é preciso, como já dissemos, que o enfermo tenha ao menos a dor de atrição de todos os seus pecados e não possa confessar-se (por exemplo, por já ter perdido a consciência). Quando atua normalmente como sacramento de vivos, a intensidade ou grau de graça que ele confere depende das disposições daquele que o recebe: para maior fervor e devoção, maior grau de graça santi cante. 167. 2º — . É o efeito mais típico e característico do sacramento da Unção. Como se sabe, o sacramento do Batismo apaga totalmente da alma, não só o pecado original, mas todos os pecados mortais e veniais que possam encontrar-se na alma do adulto que o recebe, sem deixar o menor traço deles. De sorte que, se ele morrer logo depois do Batismo, entrará imediatamente no céu, sem passar pelo purgatório.

Outra coisa muito diferente ocorre com o sacramento da Penitência. De ordinário, àquele que se confessa de seus pecados com o devido arrependimento e recebe a absolvição sacramental, sempre são perdoadas duas coisas: a culpa contraída perante Deus pelos pecados e, ao menos, parte da pena temporal devida pelos mesmos pecados. Se seu arrependimento fosse tão intenso que chegasse a obter o perdão de toda a pena temporal, a absolvição sacramental equivaleria a um segundo Batismo, e a alma poderia voar imediatamente para o céu sem passar pelo purgatório. Mas este último caso ocorre raras vezes. Via de regra, mesmo depois de receber a absolvição sacramental, ca uma parte da pena temporal devida pelos pecados, que deverá pagar nesta vida, pelas obras de morti cação e penitência, ou na outra, no purgatório. Além disso, ca na alma aquilo que em teologia se denomina marcas e seqüelas do pecado, tais como as más inclinações, a debilidade ou o pouco vigor da vontade para lutar contra as tentações, etc. Ora, o sacramento da Unção tem por objeto, entre outras coisas, apagar totalmente da alma essas marcas e seqüelas dos pecados passados, o que conforta enormemente o enfermo para resistir com facilidade e energia aos últimos assaltos do inimigo bem no limiar da eternidade. Neste sentido, nunca se avaliará su cientemente a excepcional importância do grande sacramento da Unção. 168. 3º — . Este maravilhoso efeito do sacramento da Unção — que equivaleria de fato a um segundo Batismo — não é admitido por todos os teólogos, mas a discrepância obedece — parece-nos — ao fato de confundirem aquilo que deveria ocorrer pela própria virtude do sacramento com o que costuma ocorrer de fato, por falta das devidas disposições de quem o recebe. A questão de iure nos parece inteiramente indiscutível; de facto, ao contrário, raras vezes o sacramento da Unção produz este efeito tão maravilhoso, equivalente a um segundo Batismo. Ouçamos um grande teólogo contemporâneo explicando admiravelmente esta doutrina:196

Continuando a obra de puri cação iniciada pela Penitência, a Extrema-Unção estabelece o homem em uma santidade sem mancha, que torna sua alma imediatamente capaz da visão da Trindade, reservada aos corações puros. A liturgia da ExtremaUnção, na admirável oração que se segue às unções, pede a remissão plenária dos pecados e o retorno à plenitude da saúde para a alma e o corpo. “Pela graça do Espírito Santo, nós te pedimos, Redentor nosso, que cures todas as fraquezas deste pobre enfermo. Cura todas as suas enfermidades; perdoa-lhe todos os seus pecados; faz com que cessem todas as dores de sua alma e de seu corpo; devolvelhe uma perfeita saúde espiritual e corporal — plenamque et exterius sanitatem misericorditer redde — a m de que, pelo auxílio de tua misericórdia, restabelecida a posse de suas forças, possa retomar o cumprimento de todos os seus deveres”. Mesmo depois de uma vida culpável, o cristão que recebe com as devidas disposições o sacramento dos moribundos vai direto ao céu sem passar pelo purgatório.197 Extrema-Unção opera com a mesma plenitude de graça que o sacramento Con rmação em relação ao Batismo. Os Padres e os doutores da Igreja gostam descobrir nele a “consumação” da obra puri cadora de Cristo. Nada de marcas

A da de do

pecado: tudo foi perdoado e puri cado.198

E um pouco mais abaixo, insistindo na necessidade de que o enfermo receba o sacramento estando em plena lucidez, como manda a Igreja,199 continua o Pe. Philipon:200 É da mais alta importância que o cristão receba a Extrema-Unção em plena lucidez, desperto em sua fé, em abandono consciente à vontade divina, em um ato de amor perfeito. Nesta hora suprema, a Penitência já absolveu todos os pecados mortais. Se ainda permanecem na alma algumas faltas veniais, o fervor da comunhão eucarística recebida como viático apagará tudo. E se ainda houver, por inadvertência ou boa-fé, outros pecados mortais ou veniais pesando sobre a consciência, o sacramento dos moribundos os fará desaparecer. Porém, seu efeito principal, característico, não consiste nisso; ele se refere a outra nalidade. A Extrema-Unção não está diretamente ordenada ao perdão da culpa, mas à destruição, até suas raízes mais tenazes, dos restos de uma vida de pecado (cf. D. 909). As quatro grandes feridas causadas na alma pelo pecado original e enraizadas mais profundamente em nós por cada uma de nossas faltas pessoais, deixam o moribundo em uma verdadeira debilidade. Com freqüência, a alma está mais enferma que o corpo. A ignorância cobre de trevas a inteligência diante do mistério de Deus. A malícia, sobretudo, infeccionou a vontade, empurrando para o mal a sensibilidade através da concupiscência desordenada ou debilitada perante o dever. A Extrema-Unção vem precisamente devolver, a todas as faculdades do homem, a sua energia original, a espontaneidade do amor a Deus, própria de Seus lhos, e uma fortaleza invencível na hora das últimas lutas por Cristo. Este sacramento confere ao cristão que vai morrer tal plenitude de graça, que todas as debilidades da alma são curadas. Ele pode enfrentar os combates da mais esmagadora agonia com um vigor indestrutível. As inclinações para o

mal, procedentes dos hábitos culpáveis e viciosos, não são necessariamente suprimidas pela graça do sacramento, mas a Extrema-Unção comunica à alma cristã tal participação do poder vitorioso de Cristo sobre o pecado e a morte, que a alma já não se dobra mais diante do pecado. Estabilizada em sua fé, seu olhar contempla, com uma certeza tranqüila, a eternidade que a aguarda. Sua con ança, mesmo diante da recordação de suas faltas passadas, não diminui em nada. A alma se lança com abandono sobre a misericórdia divina, sabendo que Deus é o mais terno dos pais, e que chegou para ela a hora de amá-lo face a face em uma alegria sem m.

169. 4º —

, . Às vezes, não convém que morra o enfermo que recebe a Extrema-Unção. Talvez ainda não tenha chegado ao grau de perfeição a que Deus o tem predestinado, ou sua presença neste mundo seja necessária para o bem da Igreja ou de seus familiares. Neste caso, o sacramento da Unção — que alivia sempre as dores corporais — lhe devolverá até mesmo a saúde plena do corpo. É um dos efeitos secundários que o sacramento produz ou pode produzir por si mesmo. De fato, muitíssimas vezes se comprovou que, imediatamente depois de receber este sacramento, o enfermo começa a melhorar até recuperar por completo sua saúde corporal. Ouçamos o Doutor Angélico, que explica com admirável clareza este e os demais efeitos da Extrema-Unção em um texto esplêndido que, em parte, já citamos:201 Como o corpo é o instrumento da alma, e o instrumento está a serviço do agente principal, necessariamente a disposição do instrumento há de ser tal qual ela corresponde ao agente principal; por isso o corpo se dispõe tal como convém à alma. Neste sentido, da enfermidade da alma, que é o pecado, deriva algumas vezes a enfermidade para o corpo por justa permissão divina. E esta enfermidade corporal, na verdade, é ocasionalmente útil para a saúde da alma: na medida em que o homem suporte humilde e pacientemente a enfermidade corporal, isto lhe é computado como pena satisfatória. Outras vezes, é também um impedimento da saúde espiritual, ou seja, quando as virtudes estão impedidas por causa dela. Por isso foi conveniente que se desse algum remédio espiritual contra o pecado quando a enfermidade corporal procedesse dele; e por esta medicina espiritual algumas vezes se cura a enfermidade corporal; isto é, quando for conveniente para a salvação. E esta é a nalidade do sacramento da Extrema-Unção, sobre o qual diz São Tiago: “Alguém dentre vós está

doente? Mande chamar os presbíteros da Igreja e orem sobre ele, ungindo-o com óleo em nome do Senhor; e a oração da fé curará o enfermo” (Tg 5, 14–15). E não vai contra a virtude do sacramento o fato de que, algumas vezes, os enfermos aos quais ele é administrado não se curem totalmente da enfermidade corporal; em certas ocasiões, a saúde corporal, mesmo para quem recebe dignamente este sacramento, não é útil para a saúde espiritual. Porém, embora não seja seguido pela saúde corporal, não recebem o sacramento inutilmente. Pois, como é administrado contra a enfermidade do corpo considerada como conseqüência do pecado, vê-se claramente que também será administrado contra outras seqüelas do pecado, tais como a inclinação para o mal e a di culdade para o bem; e com maior motivo, já que estas enfermidades da alma estão mais próximas do pecado que a enfermidade corporal. Semelhantes enfermidades espirituais certamente serão curadas pela Penitência, na medida em que o penitente, pelas obras de virtude das quais se serve para satisfazer, afasta-se dos males e se inclina ao bem. Mas, como o homem, por negligência ou pelas várias ocupações da vida, ou também pela escassez de tempo ou coisas semelhantes, não cura tais efeitos pela raiz e perfeitamente, providencia-se saudavelmente para que este sacramento consiga tal cura e ele se livre da pena temporal, de modo que, ao sair a alma do corpo, nada exista nele que possa impedir para sua alma a percepção da glória. Por isso diz São Tiago que “o Senhor te aliviará”. Também acontece que o homem não conheça ou não recorde todos os pecados que cometeu, a m de apagar cada um deles pela penitência. Além disso, existem pecados cotidianos que acompanham continuamente a vida presente, dos quais é conveniente que o homem se puri que por este sacramento na hora de partir, com a nalidade de que não haja nada nele que impeça a percepção da glória. Por isso São Tiago acrescenta: “Se está em pecado, lhe será perdoado”. Tudo demonstra que este sacramento é o último e, de certo modo, aquele que consuma toda a cura espiritual, servindo de meio para que o homem se prepare para receber a glória. E por isso ele se chama Extrema-Unção.

O Doutor Angélico vai até aqui. Por seu lado, o Concílio Vaticano acrescenta uma idéia muito luminosa e sublime: o sacramento da Unção, dignamente recebido, faz sentir sua in uência para o bem de todo o povo de Deus. Eis as próprias palavras do concílio:202 Com a Unção dos Enfermos e a oração dos presbíteros, toda a Igreja encomenda os enfermos ao Senhor paciente e glori cado, para que os alivie e os salve (cf. Tg 5, 14– 16), e inclusive os exorta a que, associando-se voluntariamente à paixão e morte de Cristo (cf. Rm 8, 17; Cl 1, 24; 2Tm 2, 11–12; 1Pd 4, 13), contribuam assim para o bem do povo de Deus.

Isto é, simplesmente, uma modalidade — especialmente e caz — daquilo que queria expressar São Paulo quando escrevia aos

Colossenses: “Eu me alegro nos meus padecimentos por vós, e completo em minha carne o que falta às tribulações de Cristo por seu corpo, que é a Igreja” (Cl 1, 24).

CAPÍTULO VI | O sacerdote e o leigo 170. Já se repetiu insistentemente que nestes últimos tempos os leigos alcançaram sua “maioridade”. Nada mais certo se, com isso, se quer dizer que em nenhuma outra época da história os leigos tiveram uma consciência tão viva de sua autêntica e real pertença à Igreja como Corpo místico de Cristo, e das grandes responsabilidades que isso traz consigo em sua vida particular, familiar e social. Mas também podem ocorrer — e de fato ocorreram — interpretações exageradas dessa “maioridade” dos leigos, como se eles pudessem tornar-se independentes quase por completo da hierarquia da Igreja, não só em suas atividades pro ssionais — o que ninguém discute —, mas também quando os leigos atuam no campo do apostolado propriamente religioso ou espiritual. A verdade — tanto aqui como em tudo mais — está em um meio-termo sereno e equilibrado. Ou, se quiserem, em uma exata compreensão do verdadeiro signi cado e alcance dessa “maioridade” alcançada pelos leigos. Ninguém está mais distante que a Igreja de querer controlar com exclusividade o ímpeto apostólico dos leigos. Ao contrário, impele-os a despertarem em si mesmos o espírito de iniciativa, e de se lançarem no campo apostólico com todos os meios a seu

alcance. Mas isto não é obstáculo para que a Igreja — que conhece como ninguém a variedade e a complexidade dos problemas que o mundo moderno apresenta cada dia à sua ação pastoral — oriente e guie essa iniciativa dos leigos, fazendo-os passar pelos canais mais oportunos para obter o máximo rendimento apostólico na grandiosa tarefa de ampliar e dilatar por todo o mundo o Corpo místico de Jesus Cristo. O Concílio Vaticano insistiu mais de uma vez na necessidade de sincronizar a iniciativa dos leigos — que ela fomenta e deseja sinceramente — com as sábias orientações da hierarquia em vista do resultado que se procura. Recordemos alguns dos textos conciliares mais expressivos. 1º — O capítulo 4º da Constituição Dogmática sobre a Igreja — o mais importante dos documentos emanados pelo concílio — dedica o número 37 a especi car as relações entre a hierarquia e os leigos: Os leigos, como todos os éis cristãos, têm o direito de receber com abundância, dos sagrados pastores, os auxílios dos bens espirituais da Igreja, em particular a palavra de Deus e os sacramentos. Manifestem eles suas necessidades e seus desejos com aquela liberdade e con ança que convém aos lhos de Deus e aos irmãos em Cristo. De acordo com a ciência, a competência e o prestígio que possuem, eles têm a faculdade, e às vezes ainda mais, o dever de expor seu parecer acerca dos assuntos concernentes ao bem da Igreja. Isto seja feito, se as circunstâncias o exigirem, através de instituições para isso estabelecidas pela Igreja, e sempre com veracidade, fortaleza e prudência, com reverência e caridade para com aqueles que, em razão de seu sagrado ministério, personi cam a Cristo. Os leigos, como os demais éis, seguindo o exemplo de Cristo, que com sua obediência até a morte abriu a todos os homens o ditoso caminho da liberdade dos lhos de Deus, aceitem com prontidão de obediência cristã aquilo que os pastores sagrados, enquanto representantes de Cristo, estabelecem na Igreja em sua qualidade de mestres e reitores. E não deixem de recomendar seus prelados a Deus na oração, os quais vigiam cuidadosamente como quem deve prestar contas por nossas almas, a m de que façam isto com alegria, e não com gemidos (cf. Hb 13, 17). Por sua vez, os sagrados pastores reconheçam e promovam a dignidade e a responsabilidade dos leigos na Igreja. Recorram de boa vontade ao seu prudente conselho, entreguem-lhes com con ança cargos a serviço da Igreja e dêem-lhes liberdade e oportunidade para atuar; mais ainda, animem-nos até mesmo a empreender

obras por iniciativa própria. Considerem atentamente perante Cristo, com amor paternal, as iniciativas, os pedidos e os desejos provenientes dos leigos. E quanto à justa liberdade que cabe a todos na sociedade, os pastores respeitosamente a acatarão. São de esperar muitíssimos bens para a Igreja desta convivência familiar entre os leigos e os pastores; assim se fortalece nos leigos o sentido da própria responsabilidade, estimula-se seu entusiasmo e se associam mais facilmente as forças dos leigos ao trabalho dos pastores. Estes, por sua vez, ajudados pela experiência dos leigos, estão em condições de julgar com mais precisão e objetividade tanto os assuntos espirituais como os temporais, de forma que a Igreja inteira, robustecida por todos os seus membros, cumpra com maior e cácia sua missão em favor da vida do mundo (nº 37).

2º — Isto no que se refere às relações entre os leigos e os bispos. Referindo-se mais concretamente a essas mesmas relações entre os leigos e os simples sacerdotes — com os quais, evidentemente, hão de ter uma convivência mais freqüente e direta —, em seu Decreto sobre o Ministério dos Presbíteros (nº 9), o Concílio Vaticano adverte: Os sacerdotes do Novo Testamento, embora desempenhem no povo e pelo povo de Deus, em razão do sacramento da Ordem, um ofício excelentíssimo e necessário de pais e mestres, são, contudo, juntamente com os éis, discípulos do Senhor, que, pela graça do Deus que os chama, foram feitos participantes de seu reino. Regenerados como todos na fonte do Batismo, os presbíteros são irmãos entre seus irmãos, como membros de um só e mesmo Corpo de Cristo, cuja edi cação foi con ada a todos (cf. Ef 4, 7.16). Por conseguinte, é mister que, sem buscar seu próprio interesse, mas o de Jesus Cristo (Fl 2, 21), de tal forma presidam os presbíteros, que conjuguem seu trabalho com os éis leigos, e se comportem no meio deles a exemplo do Mestre, que não veio para ser servido entre os homens, mas para servir e dar sua vida em resgate de muitos (Mt 20, 28). Que os presbíteros reconheçam e promovam a dignidade dos leigos e o papel próprio que lhes corresponde na missão da Igreja. Honrem também cuidadosamente a justa liberdade que a todos compete na cidade terrestre. Ouçam de boa vontade aos leigos, considerando fraternalmente os seus desejos e reconhecendo sua experiência e competência nos diversos campos da atividade humana, a m de que, juntamente com eles, possam conhecer os sinais dos tempos. Sabendo discernir se os espíritos vêm de Deus (cf. 1Jo 4, 1), descubram com senso de fé, reconheçam com alegria e estimulem com diligência os multiformes carismas dos leigos, tanto os humildes como os mais elevados. Ora, entre outros dons de Deus que se encontram abundantemente nos éis, são dignos de especial cuidado aqueles por meio dos quais muitos são atraídos a uma vida espiritual mais elevada. Igualmente, entreguem aos leigos com con ança organismos a serviço da Igreja, deixando-lhes liberdade e campo de ação, e até mesmo convidando-os oportunamente a que também empreendam obras por sua conta. Finalmente, os presbíteros estão colocados no meio dos leigos para conduzir todos eles à unidade da caridade, amando-se uns aos outros com caridade fraterna, adiantando-

vos em honrar-se mutuamente (Rm 12, 10). Por conseguinte, cabe a eles harmonizar de tal maneira as diversas mentalidades que ninguém se sinta estranho na comunidade dos éis. Eles são defensores do bem comum, cujo cuidado detêm em nome do bispo, e, ao mesmo tempo, são intrépidas testemunhas da verdade, a m de que os éis não sejam arrastados de um lado para outro por qualquer vento de doutrina. À sua solicitude especial se recomendam aqueles que se afastaram da prática dos sacramentos, e mesmo, talvez, da própria fé, dos quais não deixarão de se aproximar como bons pastores. Levando em conta as prescrições sobre o ecumenismo, não se esqueçam dos irmãos que não gozam de plena comunhão eclesial conosco. Tenham ainda, como con ados a si, todos aqueles que não reconhecem a Cristo como seu Salvador. Quanto aos próprios éis, tenham a consciência de que estão comprometidos com seus presbíteros, e amem-nos com carinho lial, como seus pastores e pais; igualmente, participando de seus cuidados, ajudem seus presbíteros no que for possível, pela oração e pela ação, a m de que estes possam superar melhor suas di culdades e cumprir de modo mais frutuoso os seus deveres (nº 9).

Como se vê, por estes e outros textos conciliares que poderíamos citar, a Igreja hierárquica quer positivamente e busca com solicitude a ajuda dos leigos no campo do apostolado e em muitas outras atividades de sua missão salví ca universal. A hierarquia não pode nem quer prescindir dos leigos; mas estes em nenhum caso podem, tampouco, prescindir da hierarquia, se querem ter a garantia absoluta, não só de não errar, ao se extraviar do caminho reto, mas também de atuar com plena segurança segundo a vontade de Deus. Da parte do sacerdote, con ança, orientação, diálogo aberto, generosidade para com o leigo. Por parte do leigo, respeito por sua excelsa dignidade de ministro de Deus, afeto sincero, obediência às suas orientações, colaboração entusiasta e desinteressada. Tais são, em breves palavras, as normas fundamentais que devem regular as relações entre o sacerdote e o leigo. Aqui, como em tudo, deve-se pôr em prática o grande tríptico de todo diálogo generoso e fecundo: “No necessário, unidade; no duvidoso, liberdade; e, em tudo e sempre, caridade”.

CAPÍTULO VII | O Matrimônio cristão Neste capítulo, vamos limitar-nos a expor a doutrina geral sobre o matrimônio como contrato natural e como sacramento, reservando para a quinta parte desta obra tudo que se refere à santi cação do leigo por meio da família, que estudaremos com muita amplitude. Doutrina geral sobre o Matrimônio 171. O imortal Pontí ce Pio iniciou sua maravilhosa encíclica Casti connubii — que ainda constitui a “carta magna” do Matrimônio cristão segundo o Magistério da Igreja — com estas palavras carregadas de conteúdo doutrinal:203 Quão grande seja a dignidade do Matrimônio casto, veneráveis irmãos, pode-se inferir sobretudo do fato de que Cristo Nosso Senhor, Filho do Pai Eterno, assumida a carne do homem decaído, quis não só que este princípio e fundamento da sociedade doméstica, e mesmo da comunidade humana, fosse incluído de maneira peculiar nesse desígnio amantíssimo que levou a efeito a total restauração de nossa linhagem, mas também que, depois de o ter devolvido à primitiva integridade da instituição divina, fosse elevado a verdadeiro e grande sacramento da Nova Lei, e por isso con ou toda a sua disciplina e cuidado à sua Esposa, a Igreja.

Assim, examinaremos, à luz da razão natural e sobretudo da divina revelação, a essência e as propriedades essenciais do matrimônio como contrato natural e como sacramento da vida cristã.

1. Essência do matrimônio

172. Procurando especi car em que consiste a essência própria do matrimônio, que dá origem à família, é preciso distinguir entre o ato mesmo de contrair matrimônio — matrimônio in eri, segundo a terminologia eclesiástica — e o estado matrimonial — matrimônio in facto esse —, que é a conseqüência vitalícia que resulta daquele ato. É preciso distinguir também entre o matrimônio como contrato natural, que afeta a todos os homens do mundo, sejam eles cristãos ou pagãos, e como sacramento, que afeta unicamente aos batizados em Cristo. Vamos, pois, detalhar ambas as coisas em separado. a) Como contrato natural 1º — A essência do matrimônio in eri, ou seja, considerado ativamente no momento de contraí-lo, consiste no mútuo consentimento pelo qual os esposos se entregam e se aceitam em ordem aos atos necessários para a geração dos lhos. Isto é o que diz expressamente o Código o cial da Igreja no seguinte cânon: O matrimônio produz o consentimento entre pessoas hábeis segundo o direito, legitimamente manifestado; consentimento que não pode ser substituído por nenhum poder humano. O consentimento matrimonial é o ato da vontade pelo qual ambas as partes dão e aceitam o direito perpétuo e exclusivo sobre o corpo em ordem aos atos que são, por si, aptos para gerar prole (cân. 1018).204

Comentando esta doutrina o cial da Igreja, escreve Pio encíclica sobre o matrimônio:205

em sua

Embora o matrimônio em sua natureza tenha sido instituído por Deus, a vontade humana tem também a sua parte, e por certo nobilíssima; pois todo matrimônio,

enquanto união conjugal entre determinado homem e determinada mulher, nasce exclusivamente do livre consentimento de ambos os esposos; este ato livre pelo qual ambas as partes concedem e aceitam o direito próprio do matrimônio é tão necessário que não existe poder humano que o possa suprir.

2º — A essência do matrimônio in facto esse, ou seja, considerado passivamente quanto ao estado que dele deriva, consiste no vínculo permanente que surge entre os cônjuges do legítimo contrato matrimonial. É o que insinua a própria Sagrada Escritura quando diz: “Por isso o homem deixará seu pai e sua mãe, e se unirá à sua mulher, e os dois serão uma só carne” (Gn 2, 24); e o declara expressamente o Código Canônico ao dizer que o matrimônio é “uma sociedade permanente entre varão e mulher para gerar lhos” (cân. 1082 §1),206 e é uma conseqüência natural e espontânea da conclusão anterior. O matrimônio consiste mais no vínculo do que no contrato, ainda que ambas as coisas sejam essenciais ao mesmo. O contrato é a causa que produz o matrimônio; mas este, como estado de vida, consiste propriamente no vínculo permanente que resulta do contrato. b) Como sacramento Como se sabe, Cristo Jesus elevou à excelsa categoria de sacramento o mesmo contrato matrimonial celebrado entre batizados. É doutrina de fé, proclamada expressamente pelo Concílio de Trento no seguinte cânon: Se alguém disser que o Matrimônio não é verdadeira e propriamente um dos sete sacramentos da lei do Evangelho, instituído por Cristo Senhor, mas inventado pelos homens na Igreja, e que não confere a graça, seja anátema (D. 971).

A diferença fundamental entre o matrimônio como simples contrato natural e como sacramento consiste em que, como simples contrato natural ele se limita a estabelecer, entre as pessoas não-batizadas que o contraem, o vínculo permanente e perpétuo próprio do matrimônio legítimo — e, por isso mesmo, válido perante o próprio Deus; enquanto que, como sacramento,

confere a graça santi cante aos batizados que o contraem, além de estabelecer entre eles o vínculo permanente e perpétuo que é conferido, em todo caso, pelo contrato natural válido. Enquanto sacramento, o Matrimônio consta de matéria e forma, como todos os demais sacramentos. Na matéria, cabe distinguir a remota e a próxima. Assim: ) é constituída pelos corpos dos contraentes — homem e mulher —, enquanto servem para a geração dos lhos. ) consiste na mútua entrega dos corpos, manifestada pelas palavras ou sinais equivalentes dos esposos no ato de contrair o Matrimônio. ) consiste na mútua aceitação dos mesmos, expressa do mesmo modo. Como se sabe, os ministros do sacramento são os próprios contraentes que, no momento de dar seu consentimento matrimonial, realizam uma verdadeira e augusta função sacerdotal, dando-se mutuamente a graça santi cante um ao outro. Somente eles podem realizar essa augusta função, já que o sacerdote que assiste à cerimônia do enlace matrimonial não é ministro do sacramento, mas unicamente a testemunha autorizada da Igreja, e que, em seu nome, abençoa o Matrimônio que realizam entre si os próprios contraentes. Por isso, em determinadas circunstâncias, o Matrimônio é válido e lícito, inclusive como sacramento, sem a presença de nenhum sacerdote que o abençoe.207 O Matrimônio é propriamente o sacramento dos leigos, ao ponto de nenhum sacerdote, nem mesmo o Romano Pontí ce, poder administrá-lo no sentido próprio e canônico da palavra: somente os contraentes se administram mutuamente este “grande sacramento”, como o chama com razão São Paulo, enquanto simboliza a união de Cristo com a Igreja (cf. Ef 5, 32).

Dada a importância do contrato matrimonial, que constitui a essência mesma do matrimônio, inclusive como sacramento, vamos examiná-lo um pouco mais devagar em seu duplo aspecto, ou seja, como contrato natural e como sacramento.

2. O contrato natural 173. O consentimento de ambos os contraentes legitimamente manifestado — que constitui a própria essência do contrato matrimonial — é a causa e ciente do matrimônio, e é de tal maneira necessário, que sem ele não pode haver matrimônio válido e, por isso mesmo, nenhum poder humano pode supri-lo, nem mesmo o do Romano Pontí ce. E mais: a rmam os teólogos que nem Deus poderia suprir o consentimento livre dos contraentes, já que nem o próprio Deus pode alterar a essência mesma de uma coisa (por exemplo, fazendo com que dois e dois não sejam quatro), pois é absolutamente impossível que uma coisa seja e não seja, ao mesmo tempo, ela mesma.208 Falando da importância e transcendência deste mútuo consentimento que dá origem ao matrimônio, escreve magni camente o Cardeal Gomá:209 Qual é a causa do matrimônio? O contrato entre o homem e a mulher, isto é, a convenção, o pacto em que marido e mulher se obrigam a algo que é da essência do matrimônio. É um consentimento, uma convergência de pensamento e vontade no vínculo matrimonial, em conformidade com a lei e entre pessoas legítimas, de onde se origina este laço perene a que chamamos matrimônio. E a que se obrigam o homem e a mulher em virtude do contrato matrimonial? À doação mútua de si mesmos, de seu corpo, de seu coração, até de seu espírito, naquilo que legitimamente exigem os ns da união conjugal. Oh! Todos conhecemos os momentos solenes da vida humana; mas, exceto pelo do voto sacerdotal ou religioso, não há nenhum — nem o da morte de um ente querido, nem o

das emoções dos grandes triunfos, nem aquele em que se diz ao homem pela primeira vez: “És pai” — que possa ser comparado àquele momento em que o sacerdote diz ao candidato ao matrimônio: “Queres esta mulher aqui presente para tua legítima esposa?”. “Sim, quero”, diz o homem. “Sim, quero”, diz a mulher. É o consentimento mútuo, expressão do contrato matrimonial. Deste contrato nasce um vínculo, uma ligação profunda: é o matrimônio. Que é isso que quiseram este homem e esta mulher? Eles quiseram, em um ato de suprema liberdade, pôr em jogo a sua liberdade. Quiseram, em um ato de soberano domínio de si mesmos, abdicar desse domínio e entregá-lo à outra parte pactuante. Quiseram ambos submeter, não sua cerviz, mas seus corpos e suas almas, ao jugo do matrimônio, porque pactuaram e decidiram constituir uma sociedade conjugal. Já não são livres: são cônjuges, porque estão sujeitos ao mesmo jugo; são esposos, porque se prometeram e se deram um ao outro. A doação mútua de si mesmos! Como o homem é avarento de suas coisas! Tão avarento, sobretudo de si mesmo! Quem é o homem — diz a Sagrada Escritura — que não ande atrás de riquezas? Quem é o homem, dizemos nós, que dá as riquezas que possui? É grande coisa, diz um Santo Padre, alguém renunciar ao que tem; mas coisa muito maior é alguém renunciar àquilo que é. E no matrimônio — ó homens!, ó mulheres! — dais ao outro, não a posse, mas o sujeito dela: renunciais não ao que possuís, mas ao que sois. Ouvi a palavra do Apóstolo: “A mulher não tem poder sobre seu corpo, mas o marido; igualmente, o marido não tem poder sobre seu corpo, mas a mulher” (1Cor 7, 4). Desde que decidiram constituir a sociedade conjugal, nem o homem nem a mulher são mais donos de si mesmos, no que se refere aos ns do matrimônio. A partir desse momento, o homem e a mulher, que gozavam da autonomia que dá a plena posse de sua pessoa, perderam esta autonomia. O marido tem uma mulher, e a mulher tem um marido; mas isto que, até certo ponto, dilata os limites da própria personalidade, que encontrou seu complemento para determinados ns, cerceia a liberdade sob formas às vezes dolorosíssimas para a fraca natureza humana. Esposos, vós vos submetestes ao jugo do matrimônio? Então, devereis viver debaixo de um mesmo teto: tereis uma mesma mesa e um mesmo leito, no dever moral de sofrer um ao outro, de ajudar um ao outro, de vos esvaziar um no outro, até mesmo de scalizar um ao outro, se o exige um direito que o outro cônjuge talvez venha a esquecer. E, saindo do âmbito de vossas relações pessoais, tereis de ser, ambos, os pilares de vossa casa, com toda a fadiga que isso implica: buscar o pão e prepará-lo para o alimento vosso e de vossos lhos; cuidar do corpo, do coração e da inteligência de vossos descendentes; trabalhar e, se possível, ampliar vossa propriedade; dedicar todas as forças para o sustento de vossa casa, seja ela grande ou pequena, cuja estabilidade talvez seja posta em perigo pelas mil contingências da vida. Estas, e muitas outras, são as grandes responsabilidades que derivam do contrato matrimonial. Notai, porém, algo gravíssimo, que se refere à própria natureza do contrato, quando são cristãos aqueles que pactuam o matrimônio. Este pacto ou convenção, que não

rebaixa os limites do direito natural quando os pactuantes não pertencem à sociedade cristã, tem entre os lhos da Igreja toda a dignidade e força de um sacramento. É um sacramento-pacto, um convênio sacramental, isto é, algo material e sensível a que Jesus Cristo vinculou à graça divina em ordem ao vínculo conjugal e a seus ns.

Vamos examinar agora — ainda que brevemente — este novo aspecto do Matrimônio cristão.

3. O sacramento 174. O Matrimônio entre cristãos batizados constitui um verdadeiro sacramento, e isto o eleva a uma sublime e incomparável dignidade. O imortal Pontí ce Pio , em uma das audiências concedidas aos recém-casados, dizia-lhes paternalmente:210 Nunca tendes considerado, queridos esposos, como entre os diversos estados, entre as diferentes formas de vida dos cristãos, só existem duas para as quais Nosso Senhor instituiu um sacramento? São elas o sacerdócio e o matrimônio. Vós admirais, sem dúvida, as grandes legiões das ordens e congregações religiosas de homens e mulheres que brilham com tanto bem e com tanta glória na Igreja. Porém, a pro ssão religiosa — cerimônia tão comovedora e rica de profundos simbolismos, também sublimemente nupcial, embora goze de todos os grandes louvores com que Nosso Senhor e a Igreja têm exaltado a virgindade e a castidade perfeita; e por muito eminente que seja o posto ocupado pelos religiosos e religiosas que se consagram a Deus na vida e no apostolado católico —, a própria pro ssão religiosa, dizemos, não é um sacramento. Ao contrário, até o mais modesto matrimônio, celebrado talvez em uma pobre e remota ermida de aldeia ou em uma humilde e desnuda capela de um bairro operário, dos esposos que terão de voltar imediatamente ao trabalho, diante de um simples sacerdote, em presença de poucos parentes e amigos: este rito sem esplendor nem pompa exterior se coloca, em sua dignidade de sacramento, ao lado da magni cência de uma solene ordenação sacerdotal ou consagração episcopal, realizada em uma catedral majestosa, com abundância de ministros sagrados e de éis, feita pelo próprio bispo da diocese, refulgente com todo o esplendor de seus paramentos ponti cais. A Ordem e o Matrimônio, sabeis muito bem, coroam e fecham o número dos sete sacramentos.

Enquanto sacramento, o Matrimônio confere a graça sacramental aos que o recebem sem oferecer óbice,211 e o direito às graças atuais para cumprir elmente os ns do matrimônio. Ouçamos Pio expondo estes maravilhosos efeitos do Matrimônio cristão:212 Uma vez que Cristo constituiu como sinal da graça o próprio consentimento conjugal válido entre os éis, a condição do sacramento se acha tão intimamente unida com o Matrimônio cristão, que entre batizados não pode existir nenhum verdadeiro Matrimônio sem que, por isso mesmo, seja sacramento (cf. cân. 1012).213 Por conseguinte, quando os éis prestam tal consentimento com ânimo sincero, abrem para si mesmos o tesouro da graça sacramental, de onde podem extrair as forças sobrenaturais para cumprirem el, santa e perseverantemente, até a morte, seus deveres e obrigações. Pois este sacramento, naqueles éis que, como se costuma dizer, não oferecem obstáculos, não só aumenta o princípio permanente da vida sobrenatural, ou seja, a graça santi cante, mas também acrescenta dons peculiares, bons impulsos da alma, germes de graças, aumentando e aperfeiçoando as forças da natureza a m de que os cônjuges possam não só entender, mas saborear intimamente, conservar com rmeza, querer e cazmente e pôr em prática tudo o que se refere ao estado conjugal e a seus ns e obrigações; nalmente, concede-lhes o direito de pedir o auxílio atual da graça tantas vezes quantas necessitam para cumprir os deveres deste estado.

Magní co presente de bodas que Jesus faz aos contraentes cristãos! Assemelha-se a um talão de cheques, assinado com seu próprio sangue redentor, pelo qual o Salvador do mundo se compromete a dar aos novos cônjuges todas as graças de que necessitam ao longo de toda a sua vida, para o digno desempenho de seus deveres e obrigações como esposos e pais. E nas angústias e imprevistos da vida — tão freqüentes neste vale de lágrimas — os esposos cristãos podem apresentar-se diante do sacrário e dizer ao Senhor — com profunda humildade, sim, mas com íntima con ança: “Senhor, necessito de tua ajuda neste transe doloroso: venho cobrar-te um dos cheques com que me presenteaste tão generosamente no dia de meu matrimônio”. E não duvidem os esposos que, se assim o zerem e se se trata de algo verdadeiramente necessário para o digno desempenho de suas obrigações de esposos e pais, obterão infalivelmente a graça

solicitada: “O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão” (Mt 24, 35), nos diz o próprio Cristo no Evangelho. Insistindo nos efeitos maravilhosos do Matrimônio como sacramento, escreve magni camente o Cardeal Gomá:214 Quando decaiu o primeiro matrimônio, mudando-se em tronco de uma raça prevaricadora; quando a história humana afrontou esta instituição com toda sorte de degradações, e a fraqueza do homem se manifestou, mais do que em qualquer outra coisa, na corrupção dos caminhos da carne, como diz a Bíblia em uma forte expressão, levando a peçonha do mal ao próprio manancial da vida, que em seus começos Deus havia santi cado, não era justo que este Deus restaurador e redentor re zesse com sua graça aquilo que a miséria humana pervertera? Assim o fez Jesus Cristo: de seu coração, do qual brotaram os sacramentos da Igreja, diz um Santo Padre, brotou o sacramento do Matrimônio, santi cando-o pela unção do sangue do Filho de Deus. Como deveria recolher-se o nosso espírito ao ver, não já Deus abençoando o primeiro casal no paraíso, mas o sangue do Filho de Deus gotejando sobre o vínculo conjugal, elevando esta união natural às alturas da vida sobrenatural! Já não se poderá apagar do Matrimônio a marca do sangue de Cristo. Entre cristãos, é impossível instituir um pacto conjugal e subtraí-lo à santidade do sacramento. É da essência do Matrimônio entre batizados ser um pacto sacramental, ou um sacramentopacto — chamai-o como quiserdes. Um matrimônio civil não é matrimônio: é concubinato, é contubérnio, é torpe consórcio. Toda a tradição reconheceu na união matrimonial cristã o caráter de sacramento: “A graça divina penetra esta união”, diz Tertuliano, “e a defende contra os ataques e a impureza”. “O Matrimônio foi santi cado por Jesus Cristo”, diz Santo Ambrósio. “No Matrimônio cristão”, diz Santo Agostinho, “vale mais a santidade do sacramento que a fecundidade das entranhas”. Nos antigos sacramentários, as cerimônias do Matrimônio tinham como cabeçalho: Sacramentum matrimonii. Contra Lutero e Calvino, que tiveram o cinismo de dizer que “contrair Matrimônio, arar a terra e fazer sapatos não são coisas mais sagradas uma que a outra”, o Concílio de Trento lançou anátema sobre quem negasse ao Matrimônio a razão de sacramento. E vede o profundo simbolismo cristão da união conjugal. São Paulo no-lo manifesta com palavras que dão a sensação do sublime: Sacramentum hoc, diz ele, magnum est, ego autem dico in Christo et in Ecclesia (Ef 5, 32): É grande este sacramento, mas eu o digo em Cristo e na Igreja. Isto é, o Matrimônio cristão já não tem apenas a grandeza que poderíamos chamar como constitucional de ordem natural, mas é o símbolo da união da natureza humana à pessoa do Verbo na encarnação, e da união mística de Cristo com sua Igreja.

Insistiremos um pouco mais sobre este sublime simbolismo do Matrimônio cristão como representação da união de Cristo com a Igreja.

4. Este mistério é grande 175. O grande apóstolo São Paulo, falando do matrimônio aos éis de Éfeso, escreve — como acabamos de recordar — estas profundíssimas palavras: “Este mistério (sacramento) é grande, mas entendido como de Cristo e da Igreja” (Ef 5, 32). Não se trata de uma frase retórica nem de uma brilhante metáfora, que contudo é desprovida de conteúdo teológico. Muito ao contrário, ela expressa do modo mais profundo e interiorizado aquilo que se possa dizer sobre o Matrimônio cristão. De fato, a Bíblia inteira não é outra coisa senão a história do amor de Deus pela pobre humanidade. Tanto no Antigo como no Novo Testamento, por meio dos profetas e dos apóstolos, e até mesmo do próprio Cristo Redentor, quando Deus se dirige à humanidade, emprega com uma freqüência repetitiva a linguagem nupcial do marido com sua mulher. A intenção manifesta de Deus é a de “unir-se em matrimônio” com a humanidade, principalmente através do Verbo encarnado. Por conseguinte, toda união humana — sobretudo a união tão íntima e profunda do matrimônio — imita, representa e expressa a seu modo o drama de amor que caracteriza as relações de Deus com a humanidade caída e redimida. “As intenções de Deus na criação do homem e do matrimônio”, escreve a este propósito Henri Oster,215 parecem, com clareza, ter sido as seguintes: o homem, criado “à imagem de Deus”, devia ser uma pre guração de Cristo. O Filho de Deus devia encontrar no homem a forma adequada que lhe permitisse, no momento da encarnação, ser a própria revelação de Deus. O mesmo sucede no matrimônio. Querendo realizar com a humanidade uma “aliança” em que a maior participação possível na vida divina lhe fosse comunicada, e nela toda a Criação, Deus criou o matrimônio para que, chegando o dia da aliança, houvesse uma forma adequada que revelasse e atualizasse esta aliança. Há, pois, um “primeiro”

homem, que não é Adão, mas Cristo, do qual Adão não é mais que uma “sombra”! (Rm 5, 14). E existe um “primeiro” matrimônio, que não é o matrimônio entre os esposos humanos, mas aquele que Deus contrai com a humanidade, isto é, concretamente, a união de Cristo e da Igreja. Não é, pois, uma construção arbitrária do espírito que se tenha chegado a comparar a aliança de Deus e da humanidade com a união que existe entre os esposos; é até preciso inverter os termos, já que a união dos esposos só encontra seu sentido último “comparada” com este “matrimônio” de Deus com a humanidade.

Esta maravilhosa analogia entre ambos os matrimônios — o de Cristo com a Igreja e o dos esposos entre si — leva a extremos verdadeiramente surpreendentes, porque não somente se veri ca que em ambos os matrimônios ocorre a entrega mútua e total dos cônjuges entre si, mas que ambos possuem inclusive a mesma nalidade procriadora e educadora dos lhos. Vamos ouvir um autor contemporâneo expondo estas idéias tão sublimes e elevadas:216 Em primeiro lugar, contemplando o protótipo do Matrimônio cristão — a união de Cristo e da Igreja —, claramente se percebe que se trata de uma doação mútua. Cristo não só se entregou a seus inimigos pela vida da Igreja, mas se entregou e se entrega continuamente à mesma Igreja. Dá-lhe todo o seu corpo e todo o seu sangue, toda a sua pessoa de Verbo encarnado com todas as graças, das quais ele é fonte permanente, para que a Igreja absolva, para que consagre e realize a união, para que Cristo, todo inteiro, seja garantia de doação para todos. E, por seu lado, a Igreja não cessa de oferecer ao Senhor o corpo que ela forma com todos os seus membros, os cristãos, com todas as coisas da terra que ela santi ca, com todos os bons pensamentos, todos os bons desejos, todas as boas ações, a m de que cada vez mais intimamente ela esteja nele e Ele nela. Doação recíproca: é o que ambos os cônjuges colocam no próprio começo de sua vida comum. Direito dado ao outro, por cada um deles, sobre o corpo; alienação do que é de um, aquisição do que é do outro; cada um vive para o outro, cada um vive no outro. Como também Cristo e a Igreja, porque a união entre Cristo e a Igreja é tão íntima, que cada um é imanente no outro: Cristo vive na Igreja, e a Igreja vive em Cristo. Doação dos corpos que implica a unidade das duas vidas, das duas pessoas. Doação que não tem valor se não é livre. Assim como Cristo se ofereceu livremente à Igreja e não aceita nenhuma oferenda que não seja livremente consentida, assim também os dois esposos. Seu mútuo consentimento constitui a própria essência do contrato, o qual, entre batizados, é o próprio sacramento. Consentimento interno, sem dúvida, pois não existe consentimento que não o seja, mas consentimento manifestado exteriormente mediante sinais evidentes e de maneira recíproca. Na Igreja, a vida sacramental, o sacrifício, todos os sacramentos expressam, de maneira sensível, a união mútua de Jesus Cristo àquela que Ele fez sua esposa, e desta a Cristo.

Se consideramos o m do matrimônio, a mesma conformidade entre as duas uniões aparece como um traço insigne do contrato matrimonial. A tradição cristã sustenta, de fato, que o matrimônio é dirigido, em primeiro lugar, à procriação e educação dos lhos; a seguir, à ajuda de ambos os esposos, que devem enfrentar juntos todas as di culdades e todas as tarefas da vida. Ora, a união de Cristo e da Igreja implica exatamente o mesmo m. Por que Cristo instituiu a Igreja? Por que a instituiu de maneira a fazer dela o seu Corpo místico? Não é para poder, nela e por ela, gerar cristãos e educá-los na vida nova, a vida que vem do Pai? É a Ele, de fato, é ao Filho que incumbe a tarefa de distribuir a vida, cuja fonte é o Pai. Mas como esta vida deve ser comunicada a homens, inclusive a vida sobrenatural, Cristo entende que ela lhes chega pela doação de uma mãe. Com efeito, toda a procriação dos homens se caracteriza por isto: nasceram de uma mãe. Deus quer respeitar esta ordem e, na determinação dos meios de salvação e de perfeição, ele colocou este lar de graça, que é um lar de ternura: um seio materno. Segue-se daí que o m primordial da união de Cristo e da Igreja é a geração e a educação dos lhos de Deus. E para a realização desta nalidade, que rege toda a vida de intimidade recíproca, é necessário que, tal como os dois esposos, Cristo e a Igreja não cessem de ajudar-se mutuamente. A Igreja se apóia em Cristo. Poderia ela conseguir qualquer coisa, em sua missão divina, sem a e cácia permanente deste apoio? Ela tem consciência desta verdade de fé, con rmada pela experiência quase duas vezes milenar de lutas, fraquezas e triunfos, verdade esta revelada por Cristo: “Sem mim, nada podeis fazer”; assim, ela não se esquece que, sem este abandono a Cristo, todo esforço é vão, e toda esperança, uma ilusão. Mas também é preciso dizer: Cristo se apóia na Igreja. Sem este apoio, completar-se-ia aqui embaixo a redenção? Existe um empreendimento, uma graça, uma oferta qualquer de salvação que seja feita sem a Igreja? Não é a Igreja quem empresta incessantemente a Cristo os braços, os espíritos, os corações, sem os quais não somente nada seria completado, mas nada se começaria na terra em vista do reino? Não é também e sobretudo ela quem lhe oferece cada dia os suores, os sofrimentos, a morte de tantos heróis obscuros, para que a Paixão de sua Cabeça resplandeça na paixão de seus membros?

Assim, como se vê, existe uma perfeitíssima analogia entre o Matrimônio cristão e a união indissolúvel de Cristo com sua Igreja. Esta união é o protótipo, o exemplar, o “supremo análogo” do Matrimônio cristão, que eleva este último a uma altura e dignidade sublimes. Com razão dizia São Paulo: “Este mistério é grande, mas entendido como de Cristo e da Igreja” (Ef 5, 32).

5. Fins do matrimônio 176. Ao falar dos ns do matrimônio, é preciso distinguir cuidadosamente entre o m primário e o secundário. O Código Canônico assinala com toda precisão ambos os ns no seguinte cânon: A procriação e a educação da prole é o m primário do matrimônio; a ajuda mútua e o remédio para a concupiscência são o seu m secundário (cân. 1013 §1).217

Vamos examinar em separado cada um destes ns. a) Fim primário Como acabamos de dizer, o m primário do matrimônio é a geração e educação dos lhos. Esta é a doutrina o cial da Igreja, proclamada por ela através dos séculos e con rmada e rati cada em toda a sua força e rigor pelo Concílio Vaticano .218 Ela se apóia — como não podia deixar de ser — direta e imediatamente na Sagrada Escritura. Já no início da humanidade, Deus instituiu o matrimônio como contrato natural, com as seguintes palavras que não admitem a menor dúvida ou tergiversação: Procriai e multiplicai-vos, e enchei a terra (Gn 1, 28). Logo, esta é a sua nalidade primária e fundamental. Este m é tão necessário e essencial que, se no momento de contrair o matrimônio, ele fosse excluído positivamente por ambos os cônjuges, ou por um só deles, o matrimônio seria completamente nulo e inválido diante de Deus (cf. cân. 1086, §2).219 E esta é a razão pela qual é ilícito e imoral todo uso do matrimônio que exclua voluntariamente — e não por defeito da própria natureza — o efeito natural a que se ordena por si, ou seja, a geração dos lhos.220 Porém, é preciso levar em conta que o dever primário do matrimônio não se refere somente à geração dos lhos, mas também à sua educação como homens e como lhos de Deus.

Santo Tomás expressou admiravelmente esta dupla nalidade no seguinte texto, modelo de precisão e exatidão:221 O matrimônio foi instituído principalmente para o bem da prole, não só para gerá-la, já que isto pode correr também fora do matrimônio, mas, além disso, para conduzi-la a um estado perfeito, pois todas as coisas tendem a que seus efeitos alcancem a devida perfeição. Podemos considerar na prole duas perfeições, a saber: a perfeição da natureza, não só quanto ao corpo (educação física), mas também a respeito da alma mediante aquelas coisas que pertencem à lei natural (educação moral), e a perfeição da graça (educação religiosa).

Insistindo nestas mesmas idéias, escreve Pio sobre o matrimônio:222

em sua encíclica

O bem da prole, entretanto, não está completo com a procriação, mas deve-se juntarlhe outro, que consiste na sua devida educação. Na verdade, o sapientíssimo Deus teria olhado pouco pela prole gerada e, conseqüentemente, por todo o gênero humano, se não tivesse dado, àqueles mesmos a quem havia concedido o poder e o direito de gerar, também o direito e o dever de educar. De fato, ninguém pode ignorar que a prole não basta a si mesma, não podendo prover sequer as coisas que afetam a vida natural, e muito menos as que tocam à ordem sobrenatural, mas que durante muitos anos necessita do auxílio, do ensino e da educação dos demais. E está claro que, por mandato da natureza e de Deus, este direito de educar a prole compete em primeiro lugar àqueles que, gerando, iniciaram a obra da natureza, e aos quais está terminantemente vedado expor à ruína certa o já iniciado, deixando-o imperfeito. Ora, a esta tão necessária educação dos lhos se deu atenção da melhor maneira possível no matrimônio, no qual, achando-se os pais ligados por um vínculo indissolúvel, eles contam sempre com a cooperação e a ajuda de ambos.

Mais adiante, em seu lugar próprio, falaremos amplamente da educação natural e cristã dos lhos. b) Fim secundário O m secundário do matrimônio, segundo a doutrina o cial da Igreja, é “a ajuda mútua dos cônjuges e o remédio para a concupiscência” (cân. 1013, §2).223 Na Sagrada Escritura, alude-se expressamente a estes secundários do matrimônio:

ns

“E Deus disse: Não é bom que o homem esteja só, vou fazer-lhe uma ajuda adequada a ele [...], e da costela que tomara do homem, Deus formou a mulher, e a apresentou ao homem” (Gn 2, 18.22).

“Mas, se não podem guardar a continência, casem-se, pois é melhor casar-se que abrasar-se” (1Cor 7, 9).

Ouçamos de novo a Pio matrimônio:224

em sua encíclica sobre o

Existem também, tanto no matrimônio quanto no uso do direito conjugal, ns secundários, como a ajuda mútua, o fomento do amor recíproco e a aquietação da concupiscência, cuja consecução não está proibida de modo algum aos cônjuges, contanto que que a salvo a intrínseca natureza do ato e, por conseguinte, sua devida ordenação ao m primário.

Explicando as duas nalidades secundárias mais importantes, ou seja, a ajuda mútua e o remédio para a concupiscência, escreve com sua habitual clareza o Doutor Angélico:225 Em segundo lugar, no tocante ao m secundário do matrimônio, que consiste nos serviços mútuos que os cônjuges devem prestar-se nos assuntos domésticos. Efetivamente, assim como a razão natural dita que os homens vivam associados, já que ninguém se basta para prover às múltiplas necessidades da vida, razão pela qual se diz que o homem é “naturalmente político”, igualmente, a respeito das coisas que fazem falta à vida humana, umas competem aos homens e outras às mulheres. Por isso, a própria natureza impele a que se estabeleça certa sociedade entre o homem e a mulher, e nisso consiste o matrimônio.

Isto em relação à ajuda mútua. Vejamos agora o que ele diz em relação ao remédio para a concupiscência: De duas maneiras podem ser aplicados remédios contra a concupiscência. A primeira é pela parte da própria concupiscência, a m de coibi-la em sua raiz; e, sob este aspecto, o matrimônio provê o remédio em virtude da graça que ele confere. A segunda se relaciona a seu próprio ato, e isto de dois modos. Um deles, fazendo com que tal ato, ao qual se inclina exteriormente a concupiscência, que imune de torpeza, e isto se obtém pelos bens do matrimônio, que coonestam a concupiscência carnal. O outro modo, impedindo os atos torpes, já que, pelo fato de car satisfeita a concupiscência com o uso do matrimônio, deixa de incitar a outras corrupções. Por isso diz o Apóstolo que “é melhor casar-se que abrasar-se” (1Cor 7, 9). E embora seja verdade que os atos da concupiscência contribuam por si mesmos para exacerbá-la, entretanto, enquanto sejam ordenados pela razão, conseguem reprimi-la; pois “de atos semelhantes são gerados disposições e hábitos semelhantes” (ou seja, segundo a reta ordem da razão).226

6. Erros e desvios modernos 177. Pelo que acabamos de dizer, pode-se deduzir que é preciso pensar em certas teorias modernas que advogam por uma mudança de valores nos ns do matrimônio, tal como até agora a tradição cristã os entendeu, no sentido de estabelecer como m primário do mesmo o amor recíproco dos cônjuges, que alcançarão seu máximo expoente na união carnal. A procriação, mais que um m primário — dizem — não é mais que uma conseqüência do amor entre os cônjuges, que seria o verdadeiro m primário e essencial. A Igreja rejeitou explicitamente semelhantes novidades, que, segundo a lógica, levariam às maiores aberrações (por exemplo, a impotência generativa não seria impedimento dirimente do matrimônio, e o onanismo poderia ser praticado por qualquer leve pretexto, etc.). Consta nos ensinamentos de Pio em diferentes ocasiões, e na declaração formal e terminante do Santo Ofício e do Concílio Vaticano . Ouçamos Pio

:

A verdade é que o matrimônio, como instituição natural, por disposição divina, não tem como m primário e íntimo o aperfeiçoamento pessoal dos esposos, mas a procriação e educação de uma nova vida. Os outros ns, mesmo sendo procurados pela natureza, não se acham no mesmo nível que o primário, e menos ainda lhe são superiores; ao contrário, estão a ele essencialmente subordinados. Precisamente para cortar de modo radical todas as incertezas e desvios que ameaçavam difundir erros no tocante à hierarquia dos ns do matrimônio e de suas mútuas relações, nós mesmos redigimos há alguns anos (em 10 de março de 1944) uma declaração sobre a ordem guardada por tais ns, indicando que a própria estrutura interna da disposição revela o que é patrimônio da tradição cristã, aquilo que os Sumos Pontí ces ensinaram repetidamente e o que foi xado na devida forma pelo Código de Direito Canônico (cân. 1013, §1). E pouco depois, para corrigir as opiniões contrárias, a Santa Sé publicou um decreto no qual declara que não se pode admitir a sentença de certos autores recentes que negam que o m primário do matrimônio seja a procriação

e educação da prole, ou ensinam que os

ns secundários não estão essencialmente

subordinados ao m primário, mas são equivalentes e independentes dele.227

Eis aqui o texto integral do decreto do Santo Ofício a que alude o papa nas palavras que acabamos de citar: Nestes últimos anos, publicaram-se alguns escritos acerca dos ns do matrimônio e da relação e ordem que eles guardam entre si, os quais a rmam que a geração da prole não é o m primário do matrimônio, ou que os ns secundários deste não estão subordinados ao m primário, mas que são independentes do mesmo. Nestes escritos, alguns apontam um determinado m primário para o matrimônio, e outros apontam outro; por exemplo, o complemento e a perfeição pessoal dos cônjuges mediante uma plena comunhão de vida e de ação; ou o mútuo amor e a união dos cônjuges, que se deverá fomentar e aperfeiçoar pela entrega psíquica e corporal da própria pessoa; e muitos outros nesse estilo. Às vezes, nesses mesmos escritos, dá-se às palavras empregadas nos documentos eclesiásticos (tais como m primário e secundário) um sentido que não está em harmonia com aquele comumente atribuído pelos teólogos. Esta nova maneira de pensar e se expressar veio a semear erros e a fomentar incertezas. Para repelir a todos eles, os eminentíssimos e reverendíssimos padres desta Suprema Sagrada Congregação, encarregados da tutela das coisas da fé e dos costumes, em sessão plenária havida na quarta-feira, 29 de março de 1944, resolveram que, à dúvida proposta: “Se é possível admitir a opinião de alguns modernos que negam que o m primário do matrimônio seja a geração e educação da prole, ou ensinam que os ns secundários não estão essencialmente subordinados ao m primário, mas são igualmente principais e independentes”, se devia responder negativamente. No dia 30 do dito mês e ano, Sua Santidade aprovou e mandou publicar este decreto.228

O Concílio Vaticano repetiu mais de uma vez — como não podia deixar de ser — esta doutrina o cial da Igreja. Eis aqui alguns textos inteiramente claros e inequívocos na Constituição sobre a Igreja no Mundo Atual, promulgada por Paulo em 7 de dezembro de 1965: “Por sua índole natural, a própria instituição do matrimônio e o amor conjugal estão ordenados para a procriação e a educação da prole, nas quais culminam como em sua própria coroa” (nº 48). “O matrimônio e o amor conjugal estão ordenados por sua própria natureza à procriação e educação dos lhos. Assim, os lhos são excelentíssimo dom do matrimônio, e contribuem grandemente para o bem de seus próprios pais” (nº 50). “No dever de transmitir a vida humana e educá-la — dever que deve ser considerado como

sua missão própria —, os cônjuges sabem que são cooperadores do amor de Deus Criador e como que seus intérpretes” (nº 50). “Entre os cônjuges que assim cumprem a missão que Deus lhes con ou, são dignos de menção muito especial aqueles que, de comum acordo e com prudência, aceitam com magnanimidade uma prole numerosa para educá-la dignamente” (nº 50).

É impossível falar mais claramente e de maneira mais categórica e inequívoca. O concílio não somente proclama uma vez mais a doutrina tradicional da Igreja acerca do m primário do matrimônio, mas elogia de maneira especial aqueles esposos que, consideradas as circunstâncias — “de comum acordo e com prudência” —, aceitam uma prole numerosa para educá-la dignamente. As teorias que se opõem a esta doutrina estão manifestamente fora do pensamento o cial e do desejo expresso da Igreja de Cristo.

7. Propriedades essenciais do matrimônio 178. No mesmo cânon 1013,229 e imediatamente depois de apontar os ns do matrimônio — primário e secundário —, o Código Canônico indica as propriedades essenciais do mesmo: A unidade e a indissolubilidade são propriedades essenciais do matrimônio, as quais obtêm no Matrimônio cristão uma rmeza peculiar em virtude do sacramento (cân. 1013, §2).

A consiste em que não pode haver união matrimonial legítima se não é de um só com uma só. Exclui por direito natural a poliandria simultânea (ou seja, uma só mulher com vários maridos) e também a poligamia (um só marido para várias mulheres).

No Antigo Testamento, a poligamia simultânea já estava proibida pela lei divina; porém, por razões e circunstâncias especialíssimas, Deus dispensou o cumprimento desta lei a alguns patriarcas e, através deles, a todo o povo. Mas na lei evangélica a poligamia simultânea está absolutamente proibida, e a antiga dispensa foi revogada para sempre pelo próprio Cristo (cf. Mt 19, 3–9).

A signi ca que não se pode dissolver jamais o vínculo matrimonial legitimamente estabelecido e consumado pelo ato conjugal, a não ser pela morte de um dos cônjuges ou pelo chamado “privilégio paulino”, em favor do cônjuge pagão que se converte ao cristianismo e não pode continuar convivendo com o cônjuge in el sem ofensa ao Criador.230 A indissolubilidade do matrimônio rati cado e consumado é exigida pelo próprio direito natural. Nenhuma autoridade humana pode dissolvê-lo, já que o proibiu expressa e terminantemente o próprio Cristo quando disse: O que Deus uniu, o homem não separe (Mt 19, 6). A cláusula “salvo em caso de fornicação” (Mt 19, 9) não se refere à ruptura do vínculo conjugal, mas somente à separação dos cônjuges quanto à vida marital, mas permanece intacto o vínculo, que por si mesmo é indissolúvel.231 Declarou-o expressamente o Concílio de Trento no seguinte cânon dogmático: Se alguém disser que a Igreja erra quando ensinou e ensina que, conforme a doutrina do Evangelho e dos apóstolos (Mc 10; 1Cor 7), não se pode desatar o vínculo do matrimônio em razão de adultério de um dos cônjuges; e que nenhum dos dois, nem mesmo o inocente que não deu motivo para o adultério, pode contrair novo matrimônio enquanto viver o outro cônjuge, e que adultera o mesmo aquele que, depois de repudiar a adúltera, se casa com outra, como aquela que, depois de repudiar o adúltero, se casa com outro, seja anátema (D. 977).

A Igreja não admitiu nem admitirá jamais o divórcio no sentido de ruptura do vínculo matrimonial legitimamente estabelecido e consumado. Não se veri cou jamais um só caso ao longo de toda a história,232 nem se veri cará jamais, por muito que evoluam os tempos e os costumes, já que está envolvida a expressa e terminante proibição do próprio Cristo. O que pode ocorrer, sim, — e de fato tem ocorrido muitas vezes — é a declaração de

nulidade de um matrimônio celebrado invalidamente pela existência de algum impedimento dirimente que se descobriu posteriormente. Nestes casos, a Igreja não anula o matrimônio, mas simplesmente o declara nulo e inválido desde o primeiro momento, ou seja, declara que não houve tal matrimônio, porque aquele impedimento dirimente, descoberto após sua celebração, o tornou impossível. Não é a mesma coisa anular um matrimônio válido (coisa que a Igreja não pode, nem jamais fez) e declarar nulo um matrimônio que foi inválido desde o primeiro momento. Este último caso pode ocorrer, e de fato ocorreu muitas vezes. Não podemos nos deter expondo com mais delongas estas propriedades essenciais do matrimônio, que já examinamos amplamente em outra obra publicada nesta mesma coleção da .233

8. Bens do matrimônio 179. Da essência do matrimônio e de suas propriedades essenciais brotam os chamados bens do matrimônio, dos quais falou Santo Agostinho, e que se tornaram clássicos na teologia católica. São três: o bem da prole, o bem da mútua delidade e o do sacramento, que se refere principalmente à sua absoluta indissolubilidade. A Igreja colheu o cialmente esta terminologia no Decreto para a União com os Armênios, promulgado por Eugênio no Concílio de Florença (1438–1445). Eis o texto da declaração conciliar: O sétimo sacramento é o do Matrimônio, que é sinal da união de Cristo e da Igreja, segundo o Apóstolo, que diz: Este sacramento é grande, mas entendido em Cristo e na Igreja (Ef 5, 32). A causa e ciente do Matrimônio, regularmente, é o mútuo consentimento expresso por palavras presenciais. Ora, um tríplice bem se atribui ao

Matrimônio. O primeiro é a prole, que se deve acolher e educar para o culto de Deus. O segundo é a delidade que cada cônjuge deverá guardar para o outro. O terceiro é a indissolubilidade do Matrimônio, porque signi ca a indissolúvel união de Cristo com a Igreja. E mesmo que por motivo de fornicação seja lícita a separação do leito, não o é, contudo, contrair outro Matrimônio, já que o vínculo do Matrimônio, legitimamente contraído, é perpétuo (D. 702).

Voltaremos a falar de forma mais ampla sobre estes bens do matrimônio em seus lugares correspondentes, ou seja, ao falar da “santi cação da família”.

9. Liturgia do matrimônio 180. O sacramento cria o estado de matrimônio. Seu conteúdo não acaba aí: é sinal da união de Cristo e da Igreja. Esta união — Cristo-Igreja — deve ser manifestada diante do mundo em suas vidas, tal como é simbolizada na liturgia sacramental.234 i. Interpretação dos ritos a) Entre os pagãos .

. Acontece no decorrer de um banquete.

a) “Te prometes em matrimônio?”, perguntava o noivo. “Me prometo!”, era a resposta. b) O noivo entregava à noiva um anel, que ela aceitava como sinal de delidade. c) O ósculo da paz vinha completar a mútua entrega entre os desposados.

. . Começava com a vestição da noiva e a imposição do véu das mulheres casadas: a) Pela manhã, a noiva era apresentada por sua dama de honra para emitir os consentimentos. Uma vez pronunciados, eram assinados por testemunhas. b) A entrega da esposa acontecia com a união das mãos dos esposos. c) Oferecia-se um sacrifício aos deuses familiares e começava o banquete festivo. b) Na Igreja primitiva 1. “Os cristãos se casam como todo mundo” (Diálogos a Diogneto 5, 6). 2. São conscientes de que seu Matrimônio foi santi cado interiormente pelo Batismo e representa uma união mais elevada: a de Cristo com a Igreja. 3. “Convém que homens e mulheres se casem e contraiam sua união com o parecer do bispo, a m de que o Matrimônio se faça segundo o Senhor, e não segundo a paixão” (Santo Inácio, Carta a Policarpo). 4. Na arqueologia cristã, encontramos freqüentemente a Cristo — ao invés da dama de honra ou “prônuba” — presidindo a dextrarum iunctio sobre os Evangelhos. c) Ritos atuais 1. Monição: a) Os sacramentos — ações divinas — devem ser realizados dignamente.

b) A Igreja procura que seus isso...

lhos o recebam dignamente. Por

c) ...o sacerdote que preside à celebração — encarnando a Igreja, e em nome de Deus — inquire se existe algum impedimento que invalide o sacramento. 2. Essência do sacramento. a) No sacramento, nos são apresentados três graus, em ordem crescente: 1º — Aceitação do outro cônjuge, com o desejo de se unir a ele: “Sim, quero”. 2º — Oferecimento da própria pessoa e dos próprios bens ao outro cônjuge (o Matrimônio traz consigo a renúncia de si mesmo pelo bem do outro): “Sim, me entrego”. 3º — Recepção da pessoa e dos bens do outro cônjuge em substituição da própria pessoa e dos próprios bens: “Sim, eu o recebo”. Aqui o sacramento foi realizado pelos dois esposos. Os demais ritos não são mais que uma explicação e prolongamento deste. b) “Eu”, diz aquele que preside, unindo as mãos dos desposados, “da parte de Deus Todo-poderoso... e da Santa Mãe Igreja, vos uno em casamento; e con rmo este casamento entre vós, em nome do Pai...”. 3. Bênção das alianças: a) A aliança é símbolo de delidade: Ut gura, pudicitiam custodiat. Entregaram-se um ao outro para serem um indissoluvelmente. A nenhum dos dois será lícito o contato com outra pessoa. O anel, recordando esta “aliança” entre ambos os esposos, protege contra essas relações indevidas. É

b) É gura do amor mútuo. O marido, oferecendo-a à esposa, fez-lhe a entrega de sua vontade, sede do amor. A esposa a recebeu, deixando que ele a colocasse, aceitando esse amor. 4. Simbolismo das arras: As arras, juntamente com as alianças, expressam in signo a união sacramental. Ao oferecê-las espiritualmente na secreta da Missa, oferecem a Deus suas próprias vidas, doravante unidas para sempre. 5. Orações: As duas orações que se seguem à entrega das arras — estilo moçárabe?; comparar com a recitação do Pater Noster neste rito — guardam perfeita harmonia e inspiram uma oração dos éis. 6. Cobertura dos esposos com o véu: a) Recitado o Pater Noster, o sacerdote se dirige aos esposos. Sua atenção recai sobre a esposa, a quem propõe o exemplo das mulheres bíblicas: — seja prudente com seu marido e lhe seja submissa, como Rebeca; — seja amável para ele, como Raquel; — casta e el, case-se em Cristo; — e seu Matrimônio resplandeça como um jugo de amor e de paz. b) Os esposos selam sua aliança com Cristo na Comunhão. Ele os abençoa com a delidade e em sua descendência, e lhes outorga a vida eterna. ii. Catequese do sacramento na assembléia

1. Este sacramento é uma graça cuja realização é orientada pela catequese contida nos ritos sagrados. O sacramento supõe, além de uma graça para os esposos, uma pregação adaptada à assembléia. 2. Ao abençoar o sacramento, a Igreja outorga aos esposos uma missão paralela à sua própria neste mundo, incluída na “missão dos éis”. 3. Missão dos esposos: a) Dentro da Igreja: 1º — Apresentar diante dos demais, partindo de sua união sacramental, uma síntese da história da salvação. Evidentemente, o Matrimônio recorda: — a união de Deus com seu povo; — a união de Cristo com sua Esposa; — a união de nitiva que a Igreja, como cortejo dos justos (Mt 25, 1–3), espera selar nas bodas do Esposo. 2º — A fórmula do sacramento é uma síntese de toda a liturgia atual: — Deus falou a seu povo no Sinai, o povo respondeu à palavra de , e rati caram seu diálogo com um sacrifício. — Na Nova Aliança, Cristo fala aos homens pelos ministros da ação sagrada, e a assembléia, como resposta, aclama a palavra de Cristo; e ambos se unem com o Sacrifício Eucarístico. — No Matrimônio — participação e símbolo da Eucaristia — o esposo fala, a esposa fala, e este mesmo diálogo é um sacramento.

b) Missão diante dos não-cristãos: ação ad extra da Igreja. A união da caridade entre os esposos deve ser para os não-cristãos um símbolo, como efeito que é da íntima união que existe entre Cristo e sua Igreja. Conclusão “Glória ao Esposo celeste, que por seu amor desposou a Igreja e a puri cou com sua cruci xão. Jamais existiu uma Esposa como a que o Primogênito desposou. Ele a ganhou antes de todas as coisas, e em sua morte ofereceu o banquete das bodas. Subiu sobre o madeiro, e ela estava a seu lado. Abriu o seu lado, e ela foi lavada com seu Sangue. A Esposa ergueu a voz e disse: Santo, santo, santo é o Filho, e em tudo semelhante ao Pai” (liturgia siríaca do Matrimônio).

QUARTA PARTE | VIDA TEOLOGAL 181. A vida sobrenatural do cristão está submetida à lei do progresso: deve sempre crescer e adiantar-se em perfeição. A fonte primária da vida da graça está nos sacramentos, principalmente na Eucaristia, que contém não só a graça, mas o próprio manancial de onde ela brota: o coração de Cristo. Depois dos sacramentos, porém, a vida cristã se aperfeiçoa com o exercício e a prática das virtudes cristãs, em especial pelas virtudes teologais: fé, esperança e caridade, que constituem a própria essência da vida cristã. Por isso, depois de ter falado da vida sacramental do cristão, a ordem lógica das idéias nos leva a falar de sua vida teologal. Ouçamos Dom Columba Marmion expondo admiravelmente estas idéias:235 Toda vida tende não somente a se manifestar pelos atos que lhe são próprios e que emanam de seu princípio interior, mas também a crescer, a progredir, a expandir-se, a

aperfeiçoar-se. A criança que acaba de nascer não permanece sempre criança: a lei da natureza é que ela cresça e se desenvolva até chegar a ser homem perfeito. A vida sobrenatural não escapa a esta mesma lei. Nosso Senhor teria podido, se quisesse, elevar-nos, em um instante, depois de um ato de adesão de nossa vontade, ao grau de santidade e glória que havia destinado a nossas almas, como efetivamente ocorreu com os anjos. Porém, não o quis assim para nós. Ele estabeleceu que, embora seja verdade que seus méritos sejam a causa de toda santidade, e sua graça o princípio de toda vida sobrenatural, contribuamos sem cessar com a nossa parte na obra de nossa perfeição e de nosso progresso espiritual. O tempo que passamos nesta vida sob a fé nos foi concedido exatamente para esta nalidade. Devemos afastar, em primeiro lugar, todos os obstáculos que se opõem à vida divina em nós e, ao mesmo tempo, cumprir ou realizar os atos destinados a desenvolver esta vida, até o termo nal, qualquer que seja ele, estabelecido no momento da morte. É a isto que São Paulo chama de “chegar à idade perfeita de Cristo” (Ef 4, 13). Os sacramentos são as principais fontes do acréscimo da vida divina em nós. Eles operam em nós ex opere operato, como o sol produz a luz e o calor: é necessário unicamente que nenhum obstáculo se oponha entre nós e sua operação. A Eucaristia é, entre todos os sacramentos, aquele que mais aumenta em nós a vida divina, pois nele recebemos o próprio Cristo em pessoa: bebemos no próprio manancial das águas vivas... Agora, o que quero mostrar são as leis gerais em virtude das quais podemos aumentar em nós, fora dos sacramentos, a vida da graça... Eis aqui como o Concílio de Trento expõe a doutrina sobre o assunto (cf. D. 803): “Uma vez que somos puri cados e nos tornamos amigos de Deus e membros de sua família (pela graça santi cante), nós nos renovamos dia a dia — como diz São Paulo (2Cor 4, 16) — caminhando de virtude em virtude (Sl 83, 8) [...]. Crescemos pela observância dos mandamentos de Deus e da Igreja no estado de justiça em que nos colocou a graça de Cristo. A fé coopera para nossas boas obras (Tg 2, 22), e assim progredimos na graça que nos faz justos aos olhos de Deus. Porque está escrito: ‘O justo (isto é, aquele que possui, pela graça santi cante, a amizade de Deus) se justi que sempre mais’ (Ap 22, 11); e em outro lugar: ‘Progredi no estado de justiça até a morte’ (Eclo 18, 22). Este aumento da graça é o que pede a Igreja quando ora deste modo: Aumentai, Senhor, em nós a fé, a esperança e a caridade (13º domingo depois de Pentecostes)”. Como vedes, o santo concílio nos indica, juntamente com as obras, o exercício das virtudes, principalmente das virtudes teologais, como fonte de nosso progresso na vida espiritual, da qual a graça constitui o princípio.

Vamos, pois, expor, com a máxima amplitude que nos permite o marco geral de nossa obra, a vida teologal do cristão leigo.

CAPÍTULO I | A fé do cristão 182. Escrevendo esta obra para cristãos já crentes, que aspiram a viver em plenitude a vida sobrenatural em meio às estruturas do mundo, nas quais se encontram imersos, não é preciso dizer que não entra em nosso plano o aspecto apologético da fé — ou seja, os motivos que temos para crer236 — mas unicamente a maneira de vivê-la cada vez com maior intensidade. Comecemos por notar, antes de tudo, que uma coisa é ter fé, e outra muito diferente é viver da fé. No primeiro caso, basta aceitar, sem a menor restrição ou reserva, todas as verdades que Deus se dignou revelar-nos e que nos propõe a Igreja Católica com seu Magistério infalível, ao qual é impossível errar. Este simples fato, ter fé, é um grande dom de Deus, já que “ninguém pode acolher a pregação evangélica, como é mister para conseguir a salvação, sem a iluminação e inspiração do Espírito Santo, que dá a todos a docilidade para acolher e crer na verdade”, como diz o Concílio Vaticano , citando o de Orange (cf. D. 1891). O Concílio de Trento diz expressamente que “a fé é o princípio da salvação humana, o fundamento e a raiz de toda justi cação” (D. 801) e, por conseguinte, de toda santidade. Mas uma coisa é ter fé (simplesmente) e outra muito diferente — repetimos — viver de fé, ou seja, ajustar toda a nossa vida e todas as nossas atividades à luz e às normas emanadas da fé. Só então se cumpre em nós aquela expressão tantas vezes repetida nas Sagradas Escrituras: “O justo vive da fé” (Rm 1, 17; Gl 3, 11; Hb 10, 38, etc.). Vamos, pois, examinar as principais características que devem revestir uma vida de fé em qualquer cristão batizado. Dividiremos

nosso estudo em dois artigos: 1º — A fé em geral. 2º — O espírito de fé.

Artigo 1 — A fé em geral 183. Dada a amplitude da matéria, vamos expô-la de forma esquemática, ainda que su ciente.237 1. O dom da fé a) Virtude sobrenatural 1. A fé é um princípio ativo, uma fonte de operações sobrenaturais, que têm a Deus por objeto imediato: uma virtude teologal. 2. É uma virtude infundida liberrimamente por Deus na alma, sem nenhum mérito da parte dela (cf. Ef 2, 8). 3. É um dom que transforma nossa inteligência, elevando-a e capacitando-a para o divino. b) Inteligência, vontade e graça 1. A indigência de nossa razão. a) Assim como o céu supera a terra, assim também as verdades divinas ultrapassam a capacidade de nossa inteligência. Carecemos de olhos para as coisas de Deus. b) A razão é como um aparelho de rádio: possui vários comprimentos de onda, as ciências naturais e matemáticas, a

metafísica; mas lhe falta a onda do sobrenatural. c) Com a fé, Deus nos concede olhos para a obscuridade do divino, o comprimento de onda necessário para estabelecer contato com o mundo sobrenatural. 2. O lugar da vontade na fé. a) A inteligência tem por objeto a verdade evidente, e o dado da fé permanece em si mesmo obscuro. Como acalmar esta inquietação de nosso entendimento? b) É a vontade que, com sua in uência, nos move para o assentimento rme e livre. c) Surgindo deste modo o ato de fé sobrenatural, “ rme persuasão daquilo que se espera, convicção do que não vemos” (Hb 11, 1). 3. A moção divina. a) A vontade se move por impulsos de um bem sobrenatural. Quem a impele neste salto amoroso até o divino? b) Somente a graça de Deus pode salvar esta distância in nita. c) A admirável conjunção entre inteligência, vontade e graça levará São Paulo a exclamar: “Pois de graça fostes salvos pela fé, e esta não vem de vós, pois é dom de Deus” (Ef 2, 8). c) A fé, culto à verdade 1. Não cremos por meio da luz interior que brota da verdade revelada. O objeto permanece inevidente e obscuro. 2. Cremos por meio da luz que emana da autoridade de Deus, que fundamenta uma certeza superior à das mais sublimes ciências humanas.

3. Deste modo, a fé constitui um ato de culto: a) Pelo qual submetemos nossa inteligência à sabedoria de Deus, que não pode enganar-se. b) Pelo qual reconhecemos e amamos com nossa vontade a bondade de Deus, que não pode enganar-nos. c) Pelo qual comprometemos toda a nossa vida em um ato de suma con ança para com o Senhor. ii. Fé e vida cristã a) O nascimento de um novo ser 1. A fé nos incorpora a Cristo, que habita pela fé em nossos corações (cf. Ef 3, 17). 2. A fé nos incorpora à Igreja: “Há um só corpo e um só espírito [...], um só Senhor, uma só fé, um só Batismo” (Ef 4, 4–5). 3. A fé nos une na tarefa comum de estender o Corpo místico do Senhor, “até que cheguemos todos à unidade de fé e do conhecimento do Filho de Deus” (Ef 4, 13). b) A aventura de cada dia 1. A fé transforma nossa existência cotidiana. a) Mostrando-nos o mundo em sua verdadeira vertente: a vertente de Deus. b) Ajudando-nos a estimar “tudo o que há de verdadeiro, de honorável, de justo, puro, amável, louvável e virtuoso” (Fl 4, 8). c) Mantendo livre o nosso espírito na adversidade: “Justi cados assim pela fé [...] nos gloriamos até nas tribulações” (Rm 5, 1–3). À

2. À luz da ressurreição. a) Pela fé “gememos nesta nossa tenda, desejando revestir-nos de nossa habitação celestial” (2Cor 5, 2). b) Pela fé fundamentamos nossa esperança, “porque esta é a vontade do Pai, que todo aquele que vê o Filho e nele crê, tenha a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia” (Jo 6, 40). c) A fé por si mesma pede seu aperfeiçoamento na visão beatí ca: “Agora vemos por um espelho e obscuramente; então, veremos face a face” (1Cor 13, 12). iii. Rumo a uma fé viva a) Fé e caridade 1. Do conhecimento ao amor. a) O Senhor não se conforma com uma fé inoperante: “Nem todo o que diz: ‘Senhor, Senhor’, entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai” (Mt 7, 21). b) Deseja apoderar-se da vontade pela caridade: “E se tivesse tanta fé a ponto de transportar montanhas, se não tivesse a caridade, eu nada seria” (1Cor 13, 2). c) Até conseguir a total transformação em Cristo, que é obra do amor. 2. A fé daqueles que vivem na caridade. a) É uma fé operante, que derrama sua luz ao redor de si. b) É uma fé sedutora, que atrai as almas para Cristo. c) É um testemunho vivo da vitalidade do cristianismo.

b) Um paradoxo: a fé sem obras 1. Ingratidão constante. Nós recebemos o dom supremo da fé. Sabemos qual é a vontade de Deus. Nossa resposta: contínuas in delidades às exigências da fé. 2. Que é que se recrimina à Igreja com mais freqüência? O escândalo dos que têm fé: a) O escândalo do cristão ambicioso por dinheiro e poder. b) O escândalo do cristão que espezinha a justiça. c) O escândalo do cristão que despede o pobre com um “Deus te ajude, irmão”. 3. O risco da fé sem obras. a) O homem carnal não sente as coisas de Deus. A fé vai se esfriando... b) Não somente negocia o denário da fé, mas o põe em perigo de perder-se. c) Crise de fé na juventude. Dúvidas imprudentes, que podem levar à apostasia ou perda total da fé. Conclusão 1. Como escolhidos de Deus, possuidores do dom da fé, nossa primeira obrigação é dar graças ao Pai das luzes por sua misericórdia. 2. Milionários do sobrenatural, cultivemos o presente do Senhor: é preciso amar nossa fé, cuidar dela, protegê-la, desenvolvê-la na oração e no estudo. 3. Incorporados pela fé a Cristo e à sua Igreja, sejamos membros vivos e operantes, e não pedras de escândalo, peso morto do Corpo do Senhor.

4. Mimados pela graça da eleição, sejamos sempre atentos àqueles que ainda não receberam a luz da verdade, para que também eles encontrem o caminho da salvação.

Artigo 2 — O espírito de fé238 184. Uma das condições mais indispensáveis para alcançar a perfeição cristã, em qualquer estado ou gênero de vida, mesmo em meio às estruturas do mundo, é a de se esforçar continuamente por viver em uma atmosfera sobrenatural, sendo guiados em tudo pelas luzes da fé, e não por simples razões humanas. Desgraçadamente, são legião os cristãos que se orientam quase exclusivamente pelas luzes da simples razão natural, e ajustam sua conduta a motivos puramente naturais e humanos. Estão muito longe de serem justos no sentido profundo que esta palavra tem na Sagrada Escritura, já que segundo ela o justo vive da fé (Hb 10, 38), e a ela conforma escrupulosamente seu pensamento e sua conduta. Os princípios fundamentais pelos quais se rege e governa uma alma dão origem às diferentes classes de espíritos, ou seja, aos diversos estilos ou maneiras de se conduzir na prática. Tal diferença, de fato, tem sua origem nas diversas maneiras habituais de conhecer e julgar todas as coisas. Assim: a) Àquele que costuma avaliar tudo por razões puramente naturais, diz-se que está dominado pelo espírito humano. Este pode oferecer duas diferentes modalidades dentro de sua própria esfera: caso seja regido unicamente pelo conhecimento e apetite meramente sensitivo, leva uma vida sensual e merece justamente o quali cativo de animalis homo, que lhe atribui São Paulo (cf. 1Cor 2, 14); caso costume julgar segundo sua simples razão

natural, leva uma vida meramente natural e merece o apelido de naturalis homo, que coincide com um racionalismo ou naturalismo prático, que nada tem a ver com a ordem e a vida sobrenatural. b) Àquele que costuma ver a avaliar tudo à luz da fé, ou seja, por razões e motivos sobrenaturais, se diz que age ao modo divino, porque a luz da fé é certa participação da ciência de Deus em nós, que nos leva a julgar e agir segundo Deus. Este é aquele que tem espírito de fé e recebe o nome de justo na Sagrada Escritura. O Concílio de Trento — como vimos no artigo anterior — ensina que “a fé é o princípio da salvação humana, o fundamento e a raiz de toda justi cação, sem a qual é impossível agradar a Deus e chegar ao consórcio de seus lhos” (D. 801). E os mestres da vida espiritual são unânimes em a rmar que a fé é o fundamento positivo da perfeição e da santidade. O Concílio Vaticano con rmou mais uma vez esta doutrina no esplêndido texto que se segue, dirigido justamente aos cristãos que vivem no mundo:239 É necessário que os leigos avancem por este caminho de santidade com espírito decidido e alegre, esforçando-se por superar as di culdades com prudente paciência. Nem as preocupações familiares, nem os demais assuntos temporais devem estar alheios a esta orientação espiritual da vida, conforme a exortação do Apóstolo: Tudo quanto fazeis, por palavra ou por obra, fazei tudo em nome do Senhor Jesus, dando por Ele graças a Deus Pai (Cl 3, 17). Tal vida exige o contínuo exercício da fé, da esperança e da caridade. Somente com a luz da fé e com a meditação da palavra divina é possível reco- nhecer sempre e em todo lugar a Deus, em quem vivemos, nos movemos e existimos (At 17, 28); buscar sua vontade em todos os acontecimentos, contemplar a Cristo em todos os homens, próximos ou estranhos, e julgar com retidão sobre o verdadeiro sentido e valor das realidades temporais, tanto em si mesmas como em relação ao m do homem.

Vamos, pois, examinar em que consiste o espírito de fé, sua grande e cácia diante de Deus e os principais obstáculos que lhe são opostos.240

1. Em que consiste o espírito de fé 185. O espírito de fé consiste em ter uma convicção tão viva e profunda das verdades reveladas por Deus, que nos faz viver continuamente em uma atmosfera sobrenatural, levando-nos a perder, por assim dizer, o instinto do humano para nos guiar em tudo pelo instinto do divino. Assim como nossa alma é o princípio vital de nosso corpo, o espírito de fé é o princípio que informa todas as atividades da alma que o possui. O espírito de fé não se traduz somente por alguns atos passageiros, mesmo que sejam muito freqüentes; ele consagra todo o conjunto da vida do cristão, fazendo circular o espírito de Jesus Cristo em todos os seus pensamentos, palavras, ações e afetos, apoderando-se de todo o seu ser, penetrando nele e transformando-o. Quando nos deixamos levar e dirigir por este sopro divino, somos verdadeiramente lhos de Deus, segundo o oráculo de São Paulo: “Aqueles que são movidos pelo Espírito de Deus, esses são lhos de Deus” (Rm 8, 14). O homem de fé, o homem justo, o lho de Deus, está animado pelo Espírito Santo, que é o espírito de Jesus Cristo. Já não é o homem quem vive, é Cristo que vive nele (cf. Gl 2, 20). É o próprio Cristo quem nele pensa, fala e age. Que dignidade! Que mérito e que santidade a do homem de fé! Separada do espírito que a vivi ca e a faz agir santamente, a fé é um corpo sem alma, uma fé morta, como repete com insistência o apóstolo São Tiago (Tg 2, 17.20.26). Viver da fé signi ca olhar todas as coisas naturais e sobrenaturais como as vê o próprio Deus, do ponto de vista de Deus, que é conhecido por meio da divina revelação. É considerar as honras e os opróbrios, a pobreza e a riqueza, os prazeres e os sofrimentos, etc., não à luz de nossa pobre razão, nem das falsas máximas do mundo, mas à luz infalível da verdade revelada, que nos leva a ver e julgar todas as coisas como as vê e julga o próprio Deus. Daí se conclui que, se por um lado a simples posse da fé é comum entre cristãos, o espírito de fé, infelizmente, é muito raro. Se não tivéssemos fé, nada faríamos em vista de nossa santi cação; mas se tivéssemos uma fé viva, faríamos tão pouco como fazemos? Se não tivéssemos fé, jamais nos aproximaríamos para comungar; mas se tivéssemos uma fé viva, seriam tão frias e distraídas as nossas comunhões em meio às chamas do coração de Cristo?

O espírito de fé nos santi ca interiormente, colocando a verdade em nossos pensamentos, a santidade em nossos afetos e o mérito em nossas ações, por muito insigni cantes que sejam em si mesmas. 186. a) . — São Pedro compara a fé a uma “lâmpada que brilha em lugar tenebroso, até que reluza o dia, e o luzeiro se levante em nossos corações” (2Pd 1, 19). Quando amanhecer o grande dia da eternidade, sua luz resplandecente absorverá a luz da fé, porque é de menor intensidade; mas até que chegue esse dia, permaneceremos nas trevas. Que aconteceria a um homem que tivesse de caminhar em plena noite, sem luz alguma, por um caminho margeado de precipícios? Por vezes ele tomaria as sombras por realidades, temendo onde nada havia para temer, e outras avançaria tranqüilo e con ante pela borda de um abismo, precipitando-se nele quando acreditava pôr o pé em lugar rme e seguro. Eis aqui a triste imagem de um grande número de cristãos imperfeitos, cuja fé vacilante apenas irradia alguns pálidos re exos sobre o caminho em que pisam. Nada de estranhar que sofram tantas quedas e vivam com tamanha cegueira espiritual. Alguns chegam a considerar como um bem aquilo que, na realidade, é um mal, e se regozijam quando devem chorar. Como são diferentes aqueles que trazem sempre nas mãos a tocha da fé e se orientam por sua divina claridade! Estão ao abrigo de todo erro em matéria de salvação. Apreciam todas as coisas naquilo que em realidade valem, e as vêem tal como em realidade são, porque as vêem na luz divina e, por assim dizer, com os próprios olhos de Deus. 187. b) . — Como é a inteligência que produz no coração os sentimentos — ignoti nulla cupido: ninguém deseja o desconhecido —, se nossos conhecimentos, unidos pela fé aos conhecimentos de Deus, participarem de sua infalível verdade, nossos sentimentos, brotando da mesma fonte que os seus,

participarão de sua in nita santidade. Amaremos o mesmo que Ele ama, e exatamente porque o ama; desprezaremos o que Ele despreza, etc. Amor e ódio, temor e desejos, tudo em nós estará em perfeita ordem. Por isso a fé puri ca o coração (At 15, 9) e o santi ca, ao mesmo tempo que preserva o espírito de todo erro funesto. A fé nos mostra o nada das criaturas e afasta delas o nosso afeto; ela nos leva a entrever o tudo de Deus e nos afeiçoa a este Bem Supremo, no qual consiste inteiramente a nossa saúde espiritual. Podemos dizer com o régio profeta Davi, no mais verdadeiro dos sentidos: “O Senhor é minha luz e minha salvação” (Sl 26, 1). 188. c) . — O espírito de fé torna meritórias todas as nossas ações, por pequenas e insigni cantes que sejam em si mesmas. Isto porque as ações são produzidas pelos pensamentos e afetos, e, por isso mesmo, recebem todo o seu valor do princípio de onde emanam: “Se a raiz é santa, também os ramos” (Rm 11, 16). São Paulo faz realçar admiravelmente a diferença entre dois cristãos, um dos quais se guia pela fé em toda a sua conduta, e outro que segue apenas os movimentos de sua natureza. O alicerce de suas obras, enquanto cristãos, é o mesmo, já que “ninguém pode colocar outro alicerce, senão aquele que já está posto, que é Jesus Cristo” (1Cor 3, 11). Porém, enquanto o homem de fé levanta o seu edifício sobre este alicerce divino com base nos mais ricos materiais — ouro, prata e pedras preciosas —, o outro só emprega em sua frágil construção madeira, feno e palha leve. Que magní ca recompensa aguarda o primeiro, e que desoladora decepção espera pelo segundo! A justiça de Deus, como um fogo devorador, provará essas obras. As obras da fé e da caridade brilharão como o ouro que passou pelo crisol; mas nada restará daquelas que não tiveram outra motivação, a não ser a natureza e a vaidade: “Em seu dia, o fogo revelará e provará qual foi a obra de cada um. Aquele cuja construção subsistir, receberá o prêmio; e

aquele cuja obra for consumida, sofrerá o prejuízo” (1Cor 3, 13– 15). Tudo é meritório na vida do justo, precisamente porque ele vive de fé. Se faz oração, é em espírito de fé; se fala, se lê, se escreve, é em espírito de fé; se alimenta seu corpo ou concede algum descanso à sua inteligência, é sempre em espírito de fé. Todos os acontecimentos de sua vida, agradáveis ou dolorosos: a saúde, a enfermidade, a honra, o menosprezo..., tudo ele orienta nos termos da fé. E assim aumenta sem cessar o tesouro de seus merecimentos: todas as suas obras são obras de santi cação, justamente porque todas elas provêm da fé. 2. E cácia do espírito de fé 189. Qualquer cristão que avalie segundo sua própria debilidade as grandes di culdades que deve superar para chegar à perfeição, inevitavelmente irá desanimar. Porém, reanimar-se-á e encher-se-á de con ança se considerar a enorme fortaleza que pode encontrar no espírito de fé autenticamente vivido. Existe algum obstáculo em matéria de santi cação que não possa ser vencido por um homem que pode tudo diante do coração de Deus e de seu próprio coração? Em relação a Deus, para dele obter todos os auxílios e socorros necessários; em relação a si mesmo, para se determinar a todos os sacrifícios que a graça lhe pede, por maiores e mais custosos que sejam. Ora, é absolutamente certo que este duplo poder está vinculado ao espírito de fé. 190. a) . — Jesus Cristo prometeu de maneira solene e formal que jamais será negado algo à oração animada por uma fé viva. Ouçamos suas palavras e tenhamos fé nele: “Em verdade vos digo que, se tiverdes fé e não duvidardes, não só fareis o que z com a gueira, mas se disserdes a este monte: ‘Arranca-te e lança-te ao mar’, isso aconteceria. Tudo quanto pedirdes com fé na oração, vós o recebereis” (Mt 21, 21–22).

“Pedi e vos será dado, buscai e achareis, chamai e vos será aberto. Porque quem pede, recebe; quem procura, acha; e a quem chama se abrirá. Pois quem de vós dá uma pedra a seu lho, quando este lhe pede pão? Ou se pede um peixe, lhe dá uma serpente? Se vós, pois, sendo maus, sabeis dar boas coisas aos vossos lhos, quanto mais vosso Pai, que está nos céus, dará boas coisas a quem as pede!” (Mt 7, 7–11).

A estas palavras de Cristo, pouco meditadas, embora mil vezes ouvidas, acrescentamos as do apóstolo São Tiago, inspirado pelo Espírito Santo: Se algum de vós se considera carente de sabedoria, peça-a a Deus, que a concede a todos generosamente e sem reprovação, e lhe será concedida. Mas peça com fé, sem nenhuma vacilação, pois quem vacila é semelhante às ondas do mar, movidas pelo vento e levadas de um lado para outro. Um homem assim não pense que receberá alguma coisa de Deus (Tg 1, 5–7).

Fixemo-nos no raciocínio do apóstolo: se nossa oração é feita com uma fé vacilante, ela é inútil: nada obterá de Deus. Ao contrário, ela é absolutamente infalível se a fazemos com fé viva, sem nenhuma vacilação: nihil haesitans. Deus, nosso Pai, nada deseja tanto quanto encher-nos de suas graças e bênçãos. In nitamente rico, ele tudo prometeu à oração. Entretanto, quantas orações resultam inúteis e estéreis! Grave problema que tem, contudo, uma fácil solução. Por acaso preenchemos as condições às quais está vinculada a e cácia infalível da oração? Somos homens de fé viva, que pedem as graças de que necessitam sem a menor vacilação: nihil haesitans? Sabemos perfeitamente quais são as condições que a oração deve reunir para elevar-se até Deus e fazer uma suave violência ao seu coração onipotente: respeito, humildade, atenção, fervor, perseverança.241 Mas todas estas qualidades se resumem evidentemente na fórmula do apóstolo São Tiago, aprendida do próprio Cristo: “Pedi com fé viva, sem nenhuma vacilação”. Creiamos de fato na presença, na santidade e na in nita grandeza do Mestre adorável a quem dirigimos nossa oração; pensemos em nosso nada diante dele, em nossa indignidade como pecadores, e não será necessário dizer-nos: “Rebaixai-vos, humilhai-vos até o

pó da terra”, pois o respeito exterior de nosso corpo não será mais que a expressão el da profunda religiosidade de que nossa alma estará cheia. Tenhamos fé na importância soberana dos negócios que tratamos com Deus, e nosso espírito, por muito leviano que seja, permanecerá recolhido, cativado, xo, pela seriedade deles. Nossa oração já não será a insigni cante homenagem de nossos lábios, uma vez que se levantará de nosso coração como a chama de uma fogueira ardente. Seria possível pedir com frieza uma coisa tão terrível com esta: “Livrai-nos, Senhor, da condenação eterna e acolhei-nos entre os vossos eleitos?”.242 Creiamos nas promessas d’Aquele que é a eterna Verdade. Estejamos rmemente convencidos de que Jesus Cristo não pronunciou palavras desprovidas de sentido quando disse: “Pedi e recebereis, buscai e achareis, batei e vos será aberto”; e seja qual for a prova à qual Ele quer submeter nossa constância, não cessemos de pedir, e acabaremos obtendo por nossa santa importunação aquilo que Ele parecia recusar-nos no início de nossa oração (cf. Lc 11, 5–8). Que grande verdade é esta: é a fé quem ora — des orat, diz Santo Agostinho —, e é ela quem dá à oração essa força vitoriosa, à qual o próprio Deus se digna submeter sua onipotência divina! Os milagres operados por nosso Salvador são a prova mais esplêndida disso. Ele sempre os concedeu segundo a fé daqueles que os pediam: “Vendo a fé daqueles homens, Jesus disse ao paralítico: ‘Con a, lho’” (Mt 9, 23). “Ouvindo-o, Jesus se admirou e disse aos que o seguiam: ‘Em verdade vos digo: não encontrei semelhante fé em ninguém de Israel [...]. Faça-se contigo conforme creste’” (Mt 8, 10–13). “Ó mulher, é grande a tua fé! Faça-se contigo como tu queres” (Mt 15, 28). “Por que temeis, homens de pouca fé?” (Mt 8, 26). “Por que sois tão tímidos? Ainda não tendes fé?” (Mc 4, 40). “Então, Ele tocou seus olhos, dizendo: ‘Faça-se em vós segundo a vossa fé’”. “Não temas, crê somente” (Mc 5, 36). “Se podes! Tudo é possível àquele que crê” (Mc 9, 23).

Não há espaço para a menor dúvida. A fé viva é capaz de transportar montanhas e obter de Deus qualquer graça que lhe seja pedida, por grande e impossível que pareça; contanto, naturalmente, que seja para a maior glória de Deus e o bem das almas. 191. b) imenso dom da fé viva e os te-

. — O

souros da graça que ela traz consigo resultariam completamente inúteis se nós não correspondêssemos elmente a suas divinas exigências. Mas como obter de nós esta indispensável delidade? Uma vez mais, pela fé viva. De fato, ela opera com tanta força sobre nossa vontade, que nos eleva acima de nós mesmos e nos faz rebaixar de certo modo as fronteiras do impossível. Que pode haver de mais fascinante que os motivos que nos são apresentados pela fé viva? Às vezes, ela nos arrasta pelo temor, e suas ameaças são tão terríveis que bastam para subjugar e encadear nossas paixões. Um Deus inimigo, um Deus vingador, uma morte de réprobo, um inferno eterno: como não tremer de espanto? E para escapar a um destino tão terrível, como não achar suaves as penas da vida virtuosa, as austeridades da penitência? Outras vezes, a fé viva nos anima e estimula com a esperança cristã, a cuja certeza nada falta, como tampouco à grandeza de suas promessas. Torrentes de delícias, um reino de glória, uma felicidade que nada deixará a desejar, nada a temer. À vista de tamanha perspectiva, o coração se in ama, e nos esquecemos por completo dos trabalhos e penalidades do caminho, para xar nossa atenção unicamente no ditoso m. O mesmo se deve dizer de outros generosos sentimentos que a fé viva nos inspira. Por isso, nos grandes triunfos obtidos pelas santas personagens da Antiga Lei, São Paulo louvava unicamente a rmeza e a vivacidade de sua fé (cf. Hb 11). E se nos xamos no próprio São

Paulo, que prodígios de coragem e magnanimidade a fé viva operou nele! Desde os começos da Igreja até nossos dias, que sublimes virtudes e que heróicos comportamentos produziu a fé viva nos melhores cristãos! A história dos apóstolos, dos mártires, das virgens, de todos os santos, acaso seria outra coisa, senão a história da fraqueza triunfando gloriosamente por meio da fortaleza e energia da fé? Foi a fé viva que sustentou tantos cristãos em circunstâncias delicadas, nas quais um mau passo os teria precipitado no abismo; foi ela que levou tantos outros a romper os laços da carne e do sangue para correr com toda a liberdade para a conquista do céu para si e para seus irmãos. Todos os grandes sacrifícios, todas as imolações de si mesmo que atribuímos a essa enérgica caridade mais forte do que a morte (cf. Ct 8, 6) e a essa rme esperança que nada pode confundir (Rm 5, 5), nós os atribuímos antes de tudo à fé, que é o princípio da esperança e do amor. Deixemos, pois, de alegar nossa fraqueza para aliviar nossa frouxidão e covardia. Se quisermos servir-nos dela, teremos na fé viva tudo quanto necessitamos para vencer o mundo com suas seduções e atrativos; a carne com suas blandícias e bajulações; e o demônio com suas falácias e enganos. Apesar do contrapeso de nossas inumeráveis misérias, por meio da fé viva podemos nos elevar até o cume mais alto da perfeição e da santidade, sempre contando com o auxílio onipotente de Deus, que ela mesma nos alcançará infalivelmente. 3. Obstáculos contra o espírito de fé São três os principais obstáculos que o espírito de fé encontra para se desenvolver plenamente em uma alma crente: a irre exão, o espírito do mundo e as próprias inclinações naturais. 192. a) fé é para o justo

. — Nós aprendemos com São Paulo que a

É

aquilo que a alma é para o homem: sua própria vida. É a vida da inteligência, pela verdade que a ilumina; é a vida do coração, pelos sentimentos de justiça que nele faz nascer; é a vida das obras, porque as torna meritórias para a vida eterna. Mas, para que ela produza efeitos tão venturosos, é preciso que a fé viva atue realmente sobre o espírito, sobre o coração e sobre as obras. A irre exão, por sua vez, debilita muito e inclusive destrói inteiramente esta preciosa in uência. Tertuliano diz que a fé é um conhecimento abreviado de tudo quanto existe de mais estimulante e urgente. De fato, que há de mais urgente que um céu a ganhar, um inferno a evitar, uma alma imortal a salvar? Que há de mais emocionante que um Deus amando os homens até o ponto de se encarnar, viver e morrer por eles; que um Deus feito vítima e ordenando-nos a comer sua carne e beber seu sangue divino? Será que estes inefáveis mistérios não têm fogo su ciente para derreter o gelo de nossos corações e nos abrasar de gratidão e de amor? Sim, mas é preciso pensar nisso. Que impressão poderão exercer sobre nosso coração estas grandes verdades, por mais sublimes que sejam, se não as apresentarmos ao nosso espírito por meio da mais atenta e profunda re exão? A Sagrada Escritura compara a fé a um escudo ou couraça e a uma espada (Ef 6, 16–17). Mas o escudo ou couraça só protege aquele que se cobre com ele, e de nada serviria a espada se não a tirássemos da bainha para repelir o inimigo. Não é a virtude da fé em si mesma enquanto hábito, mas sua prática e acionamento, que lhe proporcionam toda a sua força e seu mérito. Ordinariamente, porém, é a re exão que impulsiona a fé a traduzir-se em obras. Todo cristão crê na eternidade, mas só o cristão re exivo se pergunta continuamente: “De que vale isto para a eternidade?”. Assim se explica que a própria palavra de Deus, cuja e cácia era para os santos mais penetrante que uma espada de dois gumes (cf. Hb 4, 12), se converte para nós quase em letra morta. Os santos a meditavam continuamente, e nós jamais a aprofundamos; eles viviam em perpétuo recolhimento, e nós nos derramamos continuamente para o exterior. Deixamos

que a fé permaneça em nosso espírito como um fato sem conseqüências. Só de quando em quando consideramos as grandes verdades que ela nos propõe; mas à maneira de um homem leviano que dirige um olhar passageiro e super cial a um espelho e em seguida se esquece daquilo que viu (cf. Tg 1, 23–24). 193. b) . — Todos nós sofremos sua in uência, talvez sem nos darmos conta disso. A razão e o bemestar temporal: eis aqui os ídolos de nosso século. O racionalismo e a moleza conseguiram introduzir-se até mesmo na piedade de nossos dias. Caso não nos lembremos sem cessar dos juízos de Jesus Cristo, em contraste radical com os do mundo, nós nos surpreenderemos com freqüência adotando os pensamentos do mundo e sua própria linguagem sobre as riquezas e a pobreza, a honra e o menosprezo, os diversos acontecimentos felizes ou infelizes. Por acaso será algo raro ouvir pretensos cristãos falando com grande estima das insignes bagatelas que apaixonam os mundanos, lamentando o que o mundo lamenta, felicitando aqueles a quem o bem-estar e as riquezas lhe sorriem? Até parece que eles preferem as bem-aventuranças do mundo às do Evangelho, que lhes são diametralmente opostas. Se desprezam, às vezes, os falsos bens do mundo, é por razões losó cas, mais do que pelo espírito de fé. “Jesus Cristo o disse, Jesus Cristo fez assim” — seria preferível que esta razão tivesse maior peso que todas aquelas outras razões reunidas. A célebre expressão dos discípulos de Pitágoras: Magister dixit, “o mestre o falou”, era em sua boca uma insensata adulação; mas aplicada a Jesus Cristo, deve ser um axioma incontestável para seus discípulos, porque “o céu e a terra passarão, mas as palavras de Cristo permanecerão eternamente” (Mt 24, 35). Permaneçamos, pois, atentos à palavra do Mestre, e acomodemos nossa vida às suas divinas lições. Ele disse: “É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus” (Mt 19, 24). Ele disse: “Ai de vós que

agora rides, porque gemereis e chorareis!” (Lc 6, 25). E, ao contrário: “Bem-aventurados os pobres, os que padecem fome, os que choram, os que sofrem perseguição” (Lc 6, 20–22). A razão natural pode dizer-nos que estes divinos oráculos devem ser explicados, adoçados, interpretados com menos rigor do que soam materialmente; que não se pode compreender como é possível encontrar paz na guerra, glória nas humilhações, alegria no sofrimento. Mas lhe demos atenção; ouçamos a Jesus Cristo, nosso Mestre: Ele assim o disse, e não o teria dito se não fosse verdade. O verdadeiro discípulo do Salvador cega a si mesmo, voluntariamente, para ver melhor, renuncia à prudência da carne para seguir a do espírito, faz-se louco para ser verdadeiramente sábio: porque “a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus” (1Cor 3, 19). 194. c) . — Não é nada estranho que a natureza reaja diante da própria imolação que o espírito de fé lhe prepara e exige. Compreende muito bem que tudo está perdido para ela se damos ouvido às verdades de fé e tratamos de ajustar a elas a nossa conduta. Será preciso renunciar aos prazeres e satisfações que tanto ama, morrer ao mundo e a si mesmo, trazer na própria carne a morti cação de Jesus Cristo... Ao simples pensamento de tamanha cruci xão da carne e de seus apetites, imposta a todo aquele que queira pertencer ao Filho de Deus (cf. Gl 5, 24), tudo se perturba e se inquieta na imaginação e nos sentidos, e quando se trata de pôr em prática estas verdades tão incômodas, achamos obscuro — diz São Francisco Xavier — aquilo que nos tinha parecido claro e evidente no fervor da oração. Só se compreende a necessidade de vencer-se quando chega a hora do combate; o amor-próprio inventa mil razões para ao menos adiar os sacrifícios que tanto medo lhe dão. Que faz, então, o homem interior, o homem livre, dono de si mesmo, que governa suas ações e não se deixa arrastar por elas? Em todo momento e circunstância, ele começa por interrogar sua fé a m de se orientar e se conduzir conforme ela indicar. De fato,

isto é o que se deve fazer, porque, se deixamos a natureza tomar a iniciativa, com sua extraordinária habilidade para entrar com a sua própria, ela complicará as questões mais simples, e atrairá para ela as potências da alma, enganando-as; e quando a fé se apresentar para impor sua autoridade, encontrará o entendimento já prevenido, e a vontade vencida ou vacilante, com o que di cilmente poderá reconquistar seu império. É importantíssimo vigiar diligentemente sobre nosso próprio coração e suas primeiras impressões, a m de dirigir todos os seus movimentos para a luz da tocha da fé. É extremamente útil fazer com que todas as nossas obras e decisões sejam precedidas por uma palavra de fé, um oráculo divino, conforme a própria advertência do Espírito Santo: “A todo empreendimento preceda o conselho” (Eclo 37, 20).

CAPÍTULO II | A esperança do cristão 195. A segunda das virtudes teologais — a terceira em dignidade — é a esperança cristã. É uma virtude de grande valor que, infelizmente, está hoje em crise na maior parte do mundo, assim como a fé e a caridade. Quando se esfria a fé — ou desaparece por completo pelo ateísmo, pela in delidade ou pela apostasia —, é forçoso que também diminua ou desapareça totalmente a esperança. Quem não crê em Deus, nem na imortalidade da alma, nem na vida futura, que irá esperar desta vida, a não ser a corrupção e a morte eternas? Daí provém a angústia da vida, a di culdade de encontrar sentido para a vida do homem sobre a terra, o desespero e o suicídio, a que conduzem logicamente as doutrinas existencialistas e atéias.

Afortunadamente, o cristão tem motivos extremamente rmes para abandonar-se nos braços de Deus com a mais suave e íntima con ança em sua bondade e providência in nitas. A esperança brota espontânea e naturalmente, como belíssima or de primavera, que “já mostra na esperança o fruto certo”243 ali onde existe uma fé viva e uma ardente caridade. O Concílio Vaticano , em seu Decreto sobre o Apostolado dos Leigos, diz logo depois de falar da fé: Aqueles que possuem esta fé vivem com a esperança da revelação dos lhos de Deus, lembrados da Cruz e da Ressurreição do Senhor. Escondidos com Cristo em Deus, e livres da escravidão das riquezas, durante a peregrinação desta vida, ao mesmo tempo que aspiram aos bens eternos, dedicam-se generosamente e por inteiro a dilatar o reino de Deus e a animar e aperfeiçoar a ordem das coisas temporais com o espírito cristão. Em meio às adversidades desta vida, encontram fortaleza na esperança, pensando que os padecimentos do tempo presente nada são em comparação com a glória que há de se manifestar em nós” (Rm 8, 18).244

Vamos, pois, estudar esta grande virtude teologal e expor o modo como deve vivê-la o cristão leigo em meio ao mundo onde desenvolve sua vida. Dividiremos nosso estudo em dois artigos: 1. Natureza da esperança cristã. 2. Modo de vivê-la no meio do mundo.

Artigo 1 — Natureza da esperança cristã

Antes de tudo, daremos algumas noções teológicas sobre a esperança cristã, que sempre é necessário levar em conta.245 1. Noções fundamentais 196. 1) A esperança é uma virtude teologal, infundida por Deus na vontade, pela qual con amos com plena certeza que alcançaremos a vida eterna e os meios necessários para chegar até ela, apoiados no auxílio onipotente de Deus. O objeto material primário da esperança é a eterna bemaventurança, e o secundário, todos os meios que a ela conduzem. O objeto formal é o próprio Deus, enquanto bem-aventurança objetiva do homem, conotando a bem-aventurança formal ou visão beatí ca. E o motivo formal de esperar é a onipotência auxiliadora de Deus, conotando a misericórdia e a delidade de Deus às suas promessas. 2) A esperança reside na vontade, já que seu ato próprio é certo movimento do apetite racional para o bem, que é o objeto da vontade.246 3) A caridade e a fé são mais perfeitas que a esperança.247 Em absoluto, a fé e a esperança podem subsistir sem a caridade (fé e esperança informes), mas nenhuma virtude infusa pode subsistir sem a fé.248 4) A esperança tende com absoluta certeza para seu objeto.249 Isto quer dizer que, embora não possamos estar certos de que conseguiremos de fato nossa salvação eterna — salvo alguma revelação especial (D. 805) —, podemos e devemos ter a certeza absoluta de que, apoiados na onipotência auxiliadora de Deus (motivo formal da esperança), não pode surgir para nós nenhum obstáculo intransponível para a salvação — ou seja, não surgirá da parte de Deus, mas pode ocorrer por nossa parte. Trata-se,

pois, de uma certeza por inclinação e por motivo, não por um prévio conhecimento infalível, nem por um evento ou execução malsucedida.250 5. Os bens deste mundo também recaem sob o objeto secundário da esperança, mas unicamente enquanto nos possam ser úteis para a salvação. Por isso Santo Tomás diz que, fora da salvação da alma, não devemos pedir a Deus nenhum outro bem, a não ser em vista da mesma salvação.251 6. A esperança teologal é impossível nos in éis e nos hereges formais, porque nenhuma virtude infusa subsiste sem a fé. Podem possuí-la (embora informe) os éis pecadores que não tenham pecado diretamente contra ela. Ela se encontra propriamente nos justos da terra e nas almas do purgatório. Não a possuem os condenados ao inferno (pois nada podem esperar), nem os bemaventurados no céu (pois já estão gozando do Bem In nito que esperavam). Por esta última razão, tampouco a teve Cristo aqui na terra (uma vez que era bem-aventurado, mesmo sendo um viator).252 7) O ato de esperança (mesmo o informe) é, por si só, honesto e virtuoso (contra o que a rmavam Calvino, Miguel Baio, os jansenistas e Kant, os quais defendiam que todo ato de virtude pela esperança do prêmio é egoísta e imoral). Isto consta expressamente na Sagrada Escritura,253 e a razão teológica pode demonstrá-lo, já que a vida eterna é o m último sobrenatural do homem; logo, agir com o olhar posto neste m não só é honesto, mas necessário. A doutrina contrária está condenada pela Igreja (D. 1303). 8) Por isso mesmo, não existe nesta vida nenhum estado de perfeição que exclua habitualmente os motivos da esperança. Tal foi o erro dos quietistas e semiquietistas, condenados respectivamente pela Igreja (D. 1227.1232.1327 ss.).

O erro dos jansenistas e quietistas ao a rmar que o agir pela esperança é imoral ou imperfeito baseia-se em imaginar que, com isso, desejamos a Deus como um bem para nós, subordinando Deus à nossa própria felicidade. Não é assim. Como explica o cardeal Cayetano:254 “Aliud est concupiscere hoc mihi, et aliud concupiscere propter me”. Desejamos Deus para nós, mas não por causa ou em razão de nós, mas por Ele mesmo. Deus continua sendo o m do ato da esperança, e não nós. Ao contrário, quando desejamos uma coisa inferior (por exemplo, o alimento material), nós o desejamos para nós e por nós: nobis et propter nos. É completamente diferente.

2. Pecados contra a esperança 197. Santo Tomás explica que à esperança se opõem dois vícios. Um por falta: o desespero, que considera impossível a salvação eterna, e provém principalmente da acídia (preguiça espiritual) e da luxúria; e outro por excesso, a presunção, que se reveste de duas formas principais: a que considera a bem-aventurança como exeqüível pelas próprias forças, sem a ajuda da graça (presunção herética), e a que espera salvar-se sem arrependimento algum (pecado contra o Espírito Santo). A presunção costuma provir da vanglória e da soberba.255 3. Grandeza da esperança cristã 198. Insistindo na importância e na grandeza da esperança cristã, escreve com acerto o Pe. Noble:256 Que riqueza de vida nos traz esta virtude teologal! A fé nos leva a conhecer a Deus, ainda que misteriosamente e à distância; não passa do conhecimento, certamente muito imperfeito. A esperança não aumenta esse conhecimento, mas nos aproxima de Deus, nos impele para Ele por meio do anseio, da aspiração por vê-lo e participar de sua beatitude. Pois este soberano Bem — temos certeza — será nosso. Logo, a vida não é algo sem saída; não corremos para um precipício de morte. Os infortúnios serão reparados; os sofrimentos, consolados, e as alegrias crescerão in nitamente. Desaparece a atroz perspectiva de perder aqueles que amamos, de naufragar completamente sozinhos, sem eles, na noite eterna. Isto é seguro, está prometido e jurado: nós os encontraremos mais amorosos que nunca. Não morreremos. Muito além do túmulo está a vida esplêndida. Somos eternos. Vamos para o céu, para a felicidade sem igual, para o reino de nossa verdadeira pátria, para a casa de nosso Pai.

Artigo 2 — Modo de viver a esperança cristã no meio do mundo 199. Tal como dizíamos sobre a virtude da fé — e depois repetiremos sobre a caridade —, uma coisa é ter esperança, e outra muito diferente é viver dela. Têm esperança todos os que crêem em Deus e não são réus de presunção ou desespero, que são, como já vimos, os dois pecados que se opõem à esperança, por excesso ou por falta. Mas os que vivem da esperança são somente aqueles que conseguem iluminar todo o conjunto de sua vida terrena com a luz resplandecente que brota desta grande virtude teologal. Entretanto, aqui como em tudo, é preciso proceder paulatinamente e de modo gradual. Não se pode exigir o mesmo grau e a mesma intensidade de esperança de um cristão que acaba de se converter — abandonando, talvez, uma longa vida de pecados — quanto de outro já adiantado na vida espiritual ou daquele que está quase a ponto de galgar a montanha da perfeição cristã. A esperança, como qualquer outra virtude, pode e deve crescer e desenvolver-se cada vez mais. Vamos, pois, descrever as principais fases de seu desenvolvimento através das diferentes etapas da vida espiritual.257 1. Os iniciantes 200. Aqueles que ainda se encontram nos primeiros passos de uma vida cristã que se esforçam por viver a sério, procurarão viver a esperança da seguinte forma: ) em algum dos dois obstáculos contrários à esperança: a presunção e o desespero. Para

evitar o primeiro, devem considerar que, sem a graça de Deus, não podemos absolutamente nada na ordem espiritual: sine me nihil potestis facere (Jo 15, 5), nem ao menos ter um bom pensamento ou pronunciar frutuosamente o nome de Jesus (1Cor 12, 3). Levem em conta que Deus é in nitamente bom e misericordioso, mas também in nitamente justo, e dele não se zomba (Gl 6, 7). Está disposto a nos salvar, mas sob a condição de que cooperemos voluntariamente com sua graça (1Cor 15, 10) e trabalhemos em nossa salvação com temor e tremor (Fl 2, 12). Contra o desespero e o desânimo, recordarão que a misericórdia de Deus é incansável em perdoar o pecador arrependido, que a violência de nossos inimigos jamais poderá superar o auxílio onipotente de Deus, e que, se é verdade que nada podemos por nós mesmos, com a graça de Deus seremos capazes de tudo (Fl 4, 13). É preciso reerguer-se animadamente das recaídas e retomar a marcha com maior brio, aproveitando a ocasião da própria falta para redobrar a vigilância e o esforço: “Todas as coisas contribuem para o bem daqueles que amam a Deus”, diz o apóstolo São Paulo (Rm 8, 28); e Santo Agostinho se atreve a acrescentar: etiam peccata: “Até mesmo os pecados”, enquanto são uma ocasião para que a alma se torne mais vigilante e precavida. )

:

a) Para desprezar as coisas da terra. — Tudo aqui é sombra, vaidade e engano. Nenhuma criatura pode encher plenamente o coração do homem, no qual Deus colocou uma capacidade in nita. E mesmo no caso de que pudessem satisfazê-lo por completo, seria uma felicidade fugaz e transitória, tal como é a própria vida do homem sobre a terra. Prazeres, dinheiro, honrarias, aplausos; tudo passa e desvanece como fumaça. Tinha razão São Francisco de Borja: “Nunca mais servir a um senhor que possa morrer”. A nal de contas, “que

aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro se vem a perder sua alma para toda a eternidade?” (Mt 16, 26). b) Para consolar-se nos trabalhos e amarguras da vida. — A terra é um lugar de desterro, um vale de lágrimas e de misérias. A dor nos acompanha inevitavelmente desde o berço até o sepulcro; ninguém escapa a esta lei inexorável. Mas a esperança cristã nos recorda que todos os sofrimentos desta vida não são nada em comparação com a glória que há de se manifestar em nós (Rm 8, 13) e que, se sabemos suportá-los santamente, estas momentâneas e ligeiras tribulações nos preparam o peso eterno de uma sublime e incomparável glória (2Cor 4, 17). Que consolo tão inefável experimenta a alma atribulada ao contemplar o céu através do cristal de suas lágrimas! c) Para se animar a serem bons. — A prática da virtude custa muito. É preciso deixar tudo, renunciar aos próprios gostos e caprichos, e é necessário repelir os contínuos assaltos do mundo, do demônio e da carne. Sobretudo no princípio da vida espiritual, esta luta contínua se faz muito dura. Mas que enorme alento se experimenta ao erguer os olhos ao céu! Vale a pena esforçar-se um pouco durante os breves anos do desterro, a m de se assegurar bem a posse eterna da pátria. Mais adiante, quando a alma vai-se adiantando pelos caminhos da união com Deus, os motivos do amor desinteressado prevalecerão sobre os da própria felicidade; mas nunca serão abandonados por completo (erro quietista), e mesmo os maiores santos encontram na nostalgia do céu um dos mais poderosos estímulos para seguir adiante, sem desfalecer, na via do heroísmo e da santidade. 2. As almas adiantadas 201. À medida que a alma vai progredindo nos caminhos da perfeição, procurará cultivar a virtude da esperança, intensi cando ao máximo sua con ança em Deus e em seu divino auxílio. Para isso:

)

. — Somos sustentados pela divina e amorosíssima providência de nosso bom Deus. Nada nos faltará se con armos nele e se dele tudo esperarmos: a) Nem na ordem temporal: “Olhai os lírios do campo [...]; olhai as aves do céu [...]; quanto mais vós, homens de pouca fé?” (Mt 6, 25–34). b) Nem na ordem da graça: “Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10, 10). “Segundo as riquezas de sua graça que Ele derramou sobre nós superabundantemente” (Ef 1, 7–8). Por isso: ) . — “Quando orardes, não faleis muito [...], pois vosso Pai celestial sabe das coisas de que necessitais, muito antes que vós lho peçais” (Mt 6, 7–13). A fórmula do Pai-Nosso, oração incomparável, que brotou dos lábios do Divino Mestre, será a sua predileta, juntamente com aquelas outras do Evangelho: “Senhor, aquele que amas está enfermo...; se queres, podes limpar-me...; fazei que eu veja...; ensina-nos a orar...; aumenta a nossa fé. ; eles não têm vinho. ; mostra-nos o Pai, e isso nos basta”. Quanta simplicidade e sublimidade no Evangelho, e quanta complicação e arti cialidade em nós! A alma tem de se esforçar por conseguir aquela ingênua con ança, simples e infantil, que arrancava milagres do coração do Divino Mestre. )

. — Que valem todas elas diante de um sorriso de Deus? “Desde que conheci a Jesus Cristo, nenhuma coisa criada me pareceu bela o bastante para olhá-la com cobiça” (Pe. Lacordaire). Diante do pensamento da soberana formosura de Deus, cuja contemplação nos embriagará de felicidade na vida eterna, a alma renunciará de boa vontade a tudo que é terreno:

coisas exteriores (desapego total, amor à pobreza), prazeres e diversões (formosuras enganadoras, gozos transitórios), aplausos e honrarias (ruído que passa, incenso que se dissipa), vencendo com isso a tríplice concupiscência, que a tantas almas mantém sujeitas à terra, impedindo-as de voar para o céu (1Jo 2, 16). )

. — Nada poderá detê-la se ela quiser seguir adiante a todo custo. Deus, que a chama a uma vida íntima de união com Ele, estende-lhe sua mão divina com a garantia absoluta de sua onipotência, misericórdia e delidade a suas promessas. O mundo, o demônio e a carne lhe declararão guerra sem descanso, mas “os que con am no Senhor renovam suas forças, abrem as asas como águias e voam velozmente sem se cansar, e correm sem se fatigar” (Is 40, 31). Com razão dizia São João da Cruz que, com a verde libré da esperança “se agrada tanto ao Amado da alma, que é justo dizer que dele alcança tudo quanto ela espera”.258 A alma que seguir animadamente o seu caminho, apesar de todas as contrariedades, com toda a sua con ança posta em Deus, chegará sem dúvida alguma ao cume da perfeição. 3. As almas perfeitas 202. É nelas que a virtude da esperança, reforçada pelos dons do Espírito Santo, alcança sua máxima intensidade e perfeição. Eis aqui as principais características de que elas se revestem: ) . — Nada é capaz de desanimar um servo de Deus quando se lança a um empreendimento em que a glória divina está interessada. Dir-se-ia que as contradições e obstáculos, longe de diminuí-la, intensi cam e aumentam sua con ança em Deus, chegando até a audácia. Lembrar, por exemplo, os obstáculos que teve de vencer Santa Teresa de Jesus para a reforma carmelitana, e a rmíssima segurança do êxito com que ela empreendeu aquela obra superior às forças humanas, con ando unicamente em Deus. Eles chegam, como disse São

Paulo a respeito de Abraão, “a esperar contra toda esperança” (Rm 4, 18). E estão dispostos em todo momento a repetir a heróica frase de Jó: “Mesmo que me matasse, esperarei nele” (Jó 13, 15). Esta con ança heróica glori ca imensamente a Deus e é de enorme merecimento para a alma. ) . — É uma conseqüência natural de sua total con ança em Deus. Nada é capaz de perturbar o sossego de seu espírito. Zombarias, perseguições, calúnias, injúrias, enfermidades, fracassos..., tudo resvala sobre sua alma como a água sobre o mármore, sem deixar a menor marca, nem alterar minimamente a serenidade de seu espírito. Certa vez, deram ao Santo Cura d’Ars, de improviso, uma tremenda bofetada; ele, porém, se limitou a dizer, sorrindo: “Amigo, a outra face vai car com ciúmes”. São Luís Beltrão tomou inadvertidamente uma bebida envenenada, e permaneceu completamente tranqüilo ao percebê-lo. São Carlos Borromeu continuou imperturbável a reza do Santo Rosário ao receber o disparo de um arcabuz, cujas balas passaram raspando em seu rosto. São Jacinto da Polônia não se defendeu ao ver-se alvo de horrenda calúnia, esperando que Deus esclarecesse o mistério. Que paz, que serenidade, que con ança em Deus supõem estes exemplos heróicos dos santos! Dir-se-ia que suas almas haviam perdido contato com as coisas deste mundo e permaneciam “imóveis e tranqüilas como se já estivessem na eternidade” (Santa Elisabete da Trindade). ) . — É um dos sinais mais claros da perfeição da esperança. A natureza sente um horror instintivo pela morte; ninguém deseja morrer. Somente quando a graça se apodera profundamente de uma alma, começa a dar-lhe uma visão mais exata e real das coisas, e ela começa a desejar a morte terrena para começar a viver a verdadeira vida. É então que lançam o morior quia non

morior, de Santo Agostinho, que depois foi repetido por Santa Teresa e São João da Cruz — “muero porque no muero” —, e que constitui um dos mais ardentes desejos de todos os santos. A alma que continua apegada à vida da terra, que olha com horror para a morte que se aproxima, mostra com isso, bem claramente, que sua visão da realidade das coisas e sua esperança cristã ainda são muito imperfeitas. Os santos — todos os santos — desejam morrer o quanto antes para voarem ao céu. ) , . — Os santos desejam morrer para voarem ao céu; na realidade, porém, sua vida do céu já começa na terra. Que lhes importam as coisas deste mundo? Como diz um precioso responsório da liturgia dominicana, os servos de Deus vivem na terra somente com o corpo; mas sua alma, seu anseio, sua alegria, já estão xos no céu. É, simplesmente, a tradução daquele nostra autem conversatio in caelis est: nossa cidadania está nos céus (Fl 3, 20), que constituía a própria vida de São Paulo.

CAPÍTULO III | A grande lei da caridade 203. Chegamos a um dos aspectos mais básicos e fundamentais de toda a vida cristã, de certo modo o mais importante de todos. Em uma obra monográ ca sobre a caridade cristã, publicada nesta mesma coleção da , nós escrevemos as seguintes palavras:259 A ninguém se oculta a transcendência soberana da virtude da caridade no conjunto da vida cristã. A caridade constitui a plenitude dessa vida, seu critério diferencial, sua perfeição consumada. O tratado teológico da caridade coincide no fundo com o tratado da vida cristã integral, já que a caridade é a alma da moral cristã, da vida eclesial e litúrgica, da mística, da pastoral e do apostolado. O império da caridade abarca em

absoluto todo o campo da vida cristã. Já se disse — não sem verdadeiro fundamento — que ela constitui a própria essência do cristianismo. Em todo caso, é certo e indiscutível que ela constitui a nota dominante da mensagem evangélica, toda ela penetrada de caridade.

De fato, não podemos ter a menor dúvida sobre isto. Se quiséssemos reunir aqui todos os textos da Sagrada Escritura — tanto do Antigo como do Novo Testamento — que exaltam, acima de tudo, a grande virtude da caridade, não terminaríamos nunca.260 Limitar-nos-emos a alguns daqueles que brotaram dos próprios lábios do Cristo Redentor e de seus dois grandes apóstolos: São João, o discípulo amado, e São Paulo, o Apóstolo dos Gentios. Um deles, doutor da lei, tentando-o perguntou-lhe: “Mestre, qual é o maior mandamento da lei?”. Ele lhe disse: “Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua mente. Este é o maior e o primeiro mandamento. O segundo, semelhante a este, é: Amarás ao próximo como a ti mesmo. Destes dois preceitos dependem toda a lei e os profetas” (Mt 22, 35–40).

Este único texto, na boca do próprio Cristo, deixou esta questão superada para sempre. Mas, para maior fartura, citaremos alguns textos de São João e de São Paulo, entre os muitíssimos outros que poderíamos citar deles e dos demais apóstolos: “Mas, acima de tudo, revesti-vos de caridade, que é vínculo de perfeição” (Cl 3, 14). “O amor é a plenitude da lei” (Rm 13, 10). “Agora permanecem estas três coisas: a fé, a esperança, e a caridade; mas a mais excelente delas é a caridade” (1Cor 13, 13). “Que Cristo habite pela fé em vossos corações e, arraigados e alicerçados na caridade, possais compreender, em união com todos os santos, qual é a largura, o comprimento, a altura e a profundidade, isto é, conhecer a caridade de Cristo que supera toda ciência, para que sejais cheios de toda a plenitude de Deus” (Ef 3, 17–19). “Aquele que não ama, permanece na morte” (1Jo 3, 14). “Deus é amor, e quem vive no amor permanece em Deus, e Deus nele” (1Jo 4, 16).

É inútil continuar citando textos. Toda a Sagrada Escritura, e principalmente o Novo Testamento, está destilando amor e caridade. O próprio Cristo insistiu tanto nisto que, para gravá-lo

de maneira inesquecível em nosso coração, disse duas coisas de extrema transcendência: 1ª — Que no Juízo Final seremos examinados antes de tudo — embora não exclusivamente, é claro — sobre a caridade no aspecto que se refere ao próximo (cf. Mt 25, 34–46). 2ª — Que seu mandamento novo — ou seja, o mais tipicamente evangélico — é que nos amemos uns aos outros como Ele nos amou (cf. Jo 13, 34). É claro que o amor ao próximo constitui o segundo preceito da mesma caridade — como nos disse expressamente o próprio Cristo (Mt 22, 39) —, já que o primeiro é diretamente o amor a Deus (ibid., vv. 37–38). Ademais, ninguém pode amar ao próximo com amor de caridade se esse amor não tem por motivo formal o amor a Deus. Temos de amar a Deus por Ele mesmo, e ao próximo por Deus. Por isso o amor ao próximo faz parte da virtude teologal da caridade, coisa que seria impossível se o amor ao próximo tivesse algum motivo formal diferente do amor a Deus. Neste caso teríamos saído da esfera teologal, e nosso amor ao próximo seria puramente humano e natural, e de maneira alguma um amor de caridade, que é sempre estritamente sobrenatural e teologal. De fato, a caridade teologal é uma só virtude, em espécie átoma indivisível, como explica admiravelmente Santo Tomás.261 Ainda que seu objeto material — ou seja, o objeto sobre o qual recai — seja constituído de objetos tão variados e diferentes entre si (Deus, nós e o próximo), o motivo do amor de caridade — que é a razão formal uni cadora e especí ca — é sempre único e o mesmo: Deus. Por isso o amor de caridade que professamos ao próximo ou a nós mesmos tem o nível e a categoria de virtude teologal (ou seja, que se refere ao próprio Deus, como a fé e a esperança). Ao contrário, quando amamos o próximo ou amamos a nós mesmos por algum outro motivo, que não seja o próprio Deus (por exemplo, por simpatia natural, por companheirismo, por

compaixão de suas desgraças e misérias, etc.), não fazemos um ato de verdadeira caridade, mas unicamente um ato de lantropia, de altruísmo, etc., incomparavelmente inferior à caridade, e sem nenhum valor sobrenatural (ou seja, em ordem direta e imediata à vida eterna). Dizer que o amor ou alguma outra coisa puramente natural, tem valor e mérito em ordem à vida eterna é uma doutrina herética, expressamente condenada pela Igreja contra pelagianos e semipelagianos.262 Vamos, pois, estudar com a máxima simplicidade possível a grande virtude teologal da caridade em seu tríplice aspecto material: Deus, nós e o próximo. Forçosamente, teremos de proceder de forma esquemática, dada a enorme amplitude da matéria e os estreitos limites que o marco geral de nossa obra nos impõe.263

1. A caridade, resumo de toda a lei 204. Convento de franciscanos. Um irmão agoniza. Toda a sua vida a serviço de Deus e dos religiosos como alfaiate. Feita a encomendação da alma, ele acrescenta: “Que me tragam a chave do céu”. Trouxeram um livro intitulado A chave do céu. O ancião moveu negativamente a cabeça. Oferecem-lhe o cruci xo... o Rosário... as Constituições, etc... Não é nada disso que ele pede. Mas outro irmão adivinha seu pensamento e lhe traz a agulha com que havia trabalhado tantos anos... O rosto do ancião tornou-se radiante... e, com o sorriso nos lábios, entregou sua alma ao Senhor. Ele viveu no amor; fez tudo — heroísmo calado do trabalho de cada dia — por amor. E o amor — a caridade — o tornou agradável a Deus. Aquele que ama agrada a Deus; caridade cristã

= santidade. Eis o resumo de toda a lei: a santi cação pelo amor. O amor é a plenitude da lei (Rm 13, 10). i. O que se costuma pensar da santidade a) O santo, fabricante de milagres 1. Um dia, solicitaram a um colégio um missionário para uma festa nacional: “Mas que tenha barbas”. Exige-se o acidental como necessário; não nos agradam os santos sem milagres, assim como nos decepcionam os missionários sem barbas. 2. Mas o milagre é apenas um adorno da alma virtuosa. É um presente de Deus — só Ele pode alterar as leis da natureza — para certas almas. Mas muitos santos não zeram milagres. Inclusive, para fazê-los, Deus poderia servir-se de um pagão ou de um pecador, porque o homem é somente um simples instrumento do poder de Deus. b) O santo, herói espetacular de lenda 1. Pecado de sonhadores. Desejam as grandes façanhas: ser herói nacional... e não prestam à pátria o trabalho leal de cada dia. Sempre esperando fazer algo grande pelo Senhor... e não vivem com espírito magnânimo as coisas pequenas de cada dia. 2. Outros: Fazem jejuns, morti cações... mas como quem apresenta uma fatura a Deus. E em seguida, o gesto hierático junto aos “pobres pecadores”. Pura farsa. c) Urge corrigir 1. Isto é falso: o erro — as trevas — desorienta; a verdade — a luz — marca caminhos de verdadeira grandeza... em todos os sentidos, e mais ainda no religioso. É preciso clarear o horizonte da vida cristã.

2. Desanima: As almas simples — a mãe sacri cada, o trabalhador humilde, o estudante... as vidas prosaicas — não têm milagres, nem heroicidades. Não há tempo para pensar “nessas coisas” dos santos. E tendo a Deus tão perto, o ignoraram: “A santidade não é para eles” (!). 3. Santo é aquele que pratica a virtude em grau heróico (diferente de espetacular); ser el a cada segundo. “Antes morrer do que pecar” (Domingos Sávio). Delicadeza em tudo o que deve fazer... “Mas acima de tudo isto, revesti-vos de caridade, que é o vínculo da perfeição” (Cl 3, 14). ii. A caridade, vínculo de perfeição a) A perfeição cristã consiste na caridade 1. Distinguindo conceitos: Caridade não é lantropia (ato humanitário) nem esmola (efeito da caridade). É amor sobrenatural: a Deus, a nós mesmos e aos homens por Deus, em Deus e para Deus. Quanto mais amor, mais perfeição cristã. É o grande preceito de Deus e o traço distintivo dos cristãos. 2. E é de sentido comum. Perfeito = o acabado; um quadro é perfeito quando o artista pôs nele toda a sua alma até a última pincelada. E o m do homem — a perfeição — é chegar a Deus. Podemos tornar-nos agradáveis a Ele por meio das boas obras; crer e esperar nele: união na fé e na esperança da glória prometida. Mas a caridade une intimamente já agora; é corrente de amizade cheia da vida divina. É algo inefável, do qual o amor humano é um re exo extremamente pálido. b) A caridade torna fecunda a vida do cristão 1. O amor não é ocioso; enche a vida de atividade. A caridade orienta o cristão inteiramente para Deus. Como a mãe — porque ama — vive para o lho. A vida cristã: tarefa de amor. A caridade: o motor de todas as ações.

2. “Ama e faz o que quiseres” (Santo Agostinho). Aquele que tem a caridade cumpre a lei. É o primeiro mandamento: “Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com toda a tua mente” (Mt 22, 37); porque nele se encerra todo o programa cristão de vida individual e social. Quem ama sempre agrada a pessoa amada. 3. As melhores obras e sacrifícios, sem caridade, não valem nada; são sino que soa, mas sem conteúdo. É necessário um canal — a caridade: amor que leve nosso viver a Deus. Ele é a argamassa que une o edifício da perfeição cristã. Por isso, às vezes, tantas edi cações que pareciam sólidas caem estrepitosamente; não havia caridade. iii. A caridade em nós a) É obrigatória 1. Está ordenada sob preceito: “Amarás a , teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com toda a tua força, e trarás dentro do coração todos estes mandamentos que hoje te dou” (Dt 6, 5–6). “O maior e o primeiro mandamento” (Mt 22, 38). 2. Porque a caridade consiste no cumprimento da lei. “Se me amais, guardareis meus mandamentos” (Jo 14, 15). 3. E se a santidade é amor, caridade, ninguém ca dispensado dela. Quem não pode amar? Não é privativo de alguns; é para todos os cristãos. O Concílio Vaticano acaba de recordá-lo em sua Constituição Dogmática sobre a Igreja (cap. 5). b) Não deve ser uma planta raquítica

1. Há cristãos de espírito cansado; vegetando na mediocridade. E há o mandato divino que exige o crescimento contínuo: “Sede perfeitos como é perfeito o vosso Pai celestial” (Mt 5, 48). 2. E Deus não ordena coisas impossíveis: a caridade, por si, não pode encontrar um limite insuperável: a) Nem por parte dela mesma: pois é participação no amor in nito de Deus. Que perspectiva! Um mar sem margens... b) Nem por parte de Deus: pois manda, deseja, e move sempre rumo a um amor maior. c) Nem por parte da alma: pois sua capacidade cresce a cada novo impulso de amor. Só deixará de crescer quando chegar ao céu; ali desfrutará para sempre daquilo que conquistou na terra. c) Programa de vida: entregar-se ao Amor, a Deus 1. Tirando os obstáculos... a barreira que nos impede de viver nele. a) O pecado mortal: destrói totalmente nosso amor a Deus. Expulsão violenta e sacrílega do Hóspede Divino. b) O pecado venial: esfriamento da amizade. Manchas na alma. Deus não encontra acolhida nela. Não vai embora, mas se sente incômodo. Como o visitante em uma casa suja, desorganizada, de gente grosseira. c) As imperfeições: indelicadezas. Tudo está em ordem, mas nos esquecemos de sua presença. Quanto é preciso ajustar! Sempre reti cando nossa intenção... sempre buscando a Deus. 2. Esforçando-se a cada dia:

a) Com atos de amor mais intensos. O termômetro somente sobe quando a temperatura cresce: procurar intensi car nosso amor a Deus. b) Com atos mais atuais: repetir muitas vezes, apresentar-lhe nosso amor sincero; com pensamentos e obras. Sempre que possamos, até chegar a viver em seu amor. c) Com atos mais universais: procurar fazer tudo por amor; aquilo que mais custa ou repugna... Não poderemos evitar todas as faltas veniais, mas, ao menos na intenção — e lutando por consegui-lo —, querer tudo fazer na caridade de Cristo. 3. E, para tudo isto — somos servos inúteis — recorramos a Ele. Falar com Deus sobre nossas necessidades: oração. E, sobretudo, recorrer às fontes em que está contido o mesmo amor divino: os sacramentos, os meios ordinários de nossa santi cação, principalmente a Eucaristia, o grande sacramento do Amor... Conclusão Programa difícil, mas necessário. Não se enganar com ilusões de falsa santidade. Viver na caridade, crescendo a cada dia, afastando-nos daquilo que nos distancia de Cristo... levando em conta aquilo que diz São Paulo: “Se, falando línguas de homens e de anjos [...]; se tendo o dom de profecia [...] e se, repartindo todos os meus bens [...] não tenho caridade [...] não sou nada, de nada me aproveita” (1Cor 13, 1–2).

2. O amor a Deus: motivos 205. 1. A novidade, a primeira coisa que atrai os homens de maneira irresistível. Sobretudo a juventude.

a) Na vida moderna: a grande propaganda de um lme: “estréia”; de qualquer espetáculo: debut; de um livro: “novidade literária”. b) Sempre foi assim, é algo espontâneo: em uma corrida, interessa ver o primeiro. Na classi cação da liga esportiva... na série de normas do prefeito... Instituiu-se até solenizar as “primeiras pedras”! c) É que nós percebemos que o primeiro deve ser o mais importante e fundamental. 2. Curiosa diversidade de matérias e curiosa “classi cação” a dos mandamentos, lei natural e divina. a) Comecemos pelos últimos mandamentos. fundamentais na vida social, familiar, pessoal!

Como

são

b) Os do meio... são tão básicos, que a vida humana seria um caos sem eles. c) Imaginai que, certa manhã, ao levantar-nos, nos comunicaram que o Decálogo já não está em vigor. Seria preciso restaurá-lo com extrema urgência, e o Estado, prevendo uma catástrofe, teria de impô-lo sob pena capital. d) Ora, se assim são com os últimos, como será o primeiro, o primeiro “classi cado”, diante de Deus, que sabe muito bem o que é de nosso interesse e aquilo de que necessitamos? e) E, se ainda fosse pouco: não vos lembrais que, segundo Jesus Cristo, existe um mandamento que é o resumo de toda esta lei e dos conselhos dos profetas (Mt 22, 36–38), e que este é exatamente o primeiro? i. Diferentes classes de amor

a) Nem todo amor tem a mesma dignidade 1. Na linguagem usual, “amar” às vezes tem um sentido de “gostar”, “apetecer” (amor ao vinho, amor pela natureza). 2. Em geral, amor é a tendência que acompanha todo “agrado por um bem”. 3. Propriamente se “ama” quando se quer bem a uma pessoa. (Assim, a mãe ama a seu lho, o jovem àquela vai ser sua esposa, o garoto a seu amigo...). b) Os teólogos distinguem três amores 1. Amor de concupiscência: aquele que utiliza e se serve da coisa ou da pessoa amada para satisfazer as próprias necessidades e apetites. 2. Amor de benevolência: aquele que deseja algum bem para a pessoa amada (pois somente pessoas amam dessa forma, e a histérica que assim ama a seu cão incorre em uma aberração). 3. Amor de amizade: é o amor de benevolência quando ele é mútuo. Assim, chamam de amizade ao amor a Deus, aos familiares, aos amigos... a) Com amor de concupiscência, amamos: — As coisas de que necessitamos: alimento, roupas, casa, dinheiro, um automóvel... — A uma pessoa quando, de modo mesquinho, queremos usá-la a nosso serviço, sem nos importarmos com seu bem. Alguns amam assim... “amantes”, ultrajando com esta palavra tudo o que ela signi ca: nobreza, entrega, desinteresse, sacrifício, delicadeza...

b) O amor autêntico se baseia, então, na : — Algum idealista extremado poderia crer que colocar a raiz do amor na comunicação de um bem é colocar um egoísmo radical no motivo do amor: amamos o que nos convém. Então, o amor seria um egoísmo re nado. — Mas não se deve confundir: o que nós amamos é o bem conveniente, não por ser conveniente, mas formalmente por ser um bem. O fato de que, de algum modo, ele seja meu (egoísmo radical) é apenas a condição sine qua non para que eu o possa amar; mas o que me move é que se trata de um bem. — Assim, o verdadeiro e nobre amor — ainda que na ordem natural — prefere o bem maior para a pessoa ou pessoas que ama, ao seu próprio bem menor. Uma condição natural e um motivo secundário é que o bem dessas pessoas seja, de algum modo, próprio (por exemplo: o bem dos lhos é, de algum modo, próprio dos pais). ii. Por que devemos amar a Deus Como o respondia bem aquela pequena monja leiga, sem discursos nem livros, mas com grande sentido cristão: “Porque Ele o merece, porque nos ama e porque precisamos dele”! a) Porque Ele o merece em si mesmo 1. Deus é em si in nitamente amável. Este é o motivo formal: sua intrínseca bondade. 2. Todas as perfeições, bens ou bondades, as belezas de todas as criaturas (e como nos atraem!) estão contidos nele, em grau eminente. 3. Se a força do amor deve ser proporcional à dignidade daquilo que amamos, “a medida do amor a Deus é amá-lo sem medida” (São Bernardo).

b) Porque Ele nos ama in nitamente (As etapas de seu amor para conosco são cinco). 1. A Criação. a) Não pensamos neste fato. Entre todos os seres possíveis (in nitos), Ele quis a mim! Imaginemos que Deus está vendo um lme: vê des lar todos os seres possíveis e diz: “Este!”. E aquele ser vem à existência. E “esse” era eu, eras tu. b) Deus nos amou desde a eternidade. Nossa mãe nos ama, mas apenas há alguns anos. “Eu te amei com um amor eterno” (Jr 13, 3). “Ele nos amou primeiro” (1Jo 4, 10). 2. Elevação à ordem sobrenatural: a) Pela graça: “Vejam que amor nos demonstrou o Pai: sermos chamados lhos de Deus. E o somos de fato” (1Jo 3, 1). b) Os príncipes da terra se ufanam do “sangue real”, e nós temos “sangue divino”. Filhos de Deus e herdeiros de sua glória, eternamente. 3. A redenção. a) Em Adão todos pecamos. E depois disso, “se dizemos que não temos pecado, mentimos” (1Jo 1, 10). b) “Ele nos amou e enviou seu Filho, vítima expiatória por nossos pecados [...] para que vivamos por Ele” (1Jo 4, 9–10). Um súdito comete um crime e é condenado à morte. O lho do rei se oferece para substituir o réu e é justiçado em seu lugar. Absurdo, não é? E não é isso que rezais no Credo? Que ação de graças aquela de Barrabás ao ver Cristo na Cruz... no lugar dele! “Ele me amou e se entregou à morte por mim” (Gl 2, 20). “Tanto Deus amou o mundo...” (Jo 3, 16). “Ninguém tem maior amor...” (Jo 15, 13).

4. A Eucaristia. “Tendo amado os seus, amou-os até o m” (Jo 13, 1). Para que não nos reste nenhuma dúvida de que Ele ama a cada um em particular... 5. O céu à vista. Estamos em um vale de lágrimas, mas... setenta ou oitenta anos, e o céu por toda a eternidade: um mar de alegria, sem fundo nem margens. c) Porque precisamos dele, “agora e na hora de nossa morte” 1. “Tudo passa... só o amor vale” (Santa Teresinha). “Se eu tiver o dom de profecia [...] e tanta fé até o ponto de transportar montanhas, mas não tiver caridade, nada sou” (1Cor 13). 2. Sem Deus não podemos fazer absolutamente nada que tenha valor eterno (cf. Jo 15, 5). 3. Na hora de nossa morte, Deus será nosso juiz. É conveniente que nos tornemos muito amigos dele... iii. “Como retribuirei ao Senhor por tudo o que ele fez por mim?” “Amor com amor se paga”. a) Amor afetivo: o amor a Deus sem medidas é um preceito (Mt 22, 37–38). b) Amor efetivo: porque “obras é que são amores, e não as boas razões”. Evitar o pecado, ser bom, cumprir os deveres do próprio estado...

3. O amor a Deus: suas características É

206. 1. Temos in nitos motivos para amar a Deus. É inconcebível que Deus não seja mais amado. 2. Além disso, é uma obrigação: o primeiro e o maior dos preceitos. Nele estão contidos todos os outros: “Ama e faz o que quiseres” (Santo Agostinho). 3. Que temos de fazer para amar a Deus? Como saberemos se o amamos? 4. Ouçamos as palavras de Cristo, contemplemos Maria: aquela que mais amou a Deus. Ouçamos e observemos os santos: os grandes amigos de Deus. 5. Duas partes: amor afetivo e amor efetivo, que não são duas coisas diferentes, mas dois aspectos de uma mesma realidade: como as duas faces de uma moeda. i. Amor afetivo Temos de amar a Deus como a um Pai, pois Ele quis “que sejamos chamados lhos de Deus, e nós o somos” (1Jo 3, 1). a) Características gerais Devemos ter as mesmas características do amor de Deus por nós, na medida do possível para uma criatura. 1. Amor lial. a) Deus nos ama como a lhos. É a grande revelação de Cristo. Ele mesmo, ao se despedir, chama os discípulos de Filioli, meus lhinhos (Jo 13, 33). “Pois não recebestes o espírito de servos para recair no temor; ao contrário, recebestes o espírito de adoção, e por isso clamamos: Abba! Pai!” (Rm 8, 15). b) Portanto, nosso amor deve ter a con ança, a ternura e a sinceridade de um lho para com seu pai.

c) Se caímos ou somos pecadores, aí está a cena do lho pródigo (Lc 15, 11–31): “Irei a meu pai!”. d) Assim o compreenderam os santos: Enquanto Santa Teresinha costurava, caíam-lhe as lágrimas porque pensava que Deus é nosso Pai. 2. Amor contínuo. a) O amor que Deus tem por nós é eterno. Estávamos em seu coração antes que o mundo existisse. E agora seu olhar amoroso acompanha cada passo de nossa existência. b) Para corresponder a essa eternidade de amor, temos de lhe dedicar cada minuto de nossa vida. c) Como não podemos estar continuamente pensando nele, ofereçamos-lhe todas as nossas boas obras, renovando este oferecimento de vez em quando, e assim a nossa vida se transformará em um gigantesco ato de amor. Cultivar a presença de Deus. 3. Amor desinteressado. a) O amor que Deus tem por nós causou gratuitamente todo o bem que temos, e o muito que temos rejeitado. b) Nosso amor a Deus não pode ser assim, pois dele nos vem tudo, e precisamos pedir sempre as suas graças. Além disso, temos de desejar o prêmio e a perfeição de nosso amor: a visão beatí ca. c) Mas podemos amar a Deus com desinteresse. “Não me move, meu Deus, para querer-te...”. “Não lhe digo nada; eu o amo” (Santa Teresinha).

d) O desinteresse de tudo é o que dá estabilidade ao nosso amor. No cume do monte santo, só o amor permanece. b) Graus de amor a Deus 1. Os pecadores. Aquele que está em pecado mortal não ama a Deus. O pecado é o sinal infalível da inimizade com Deus. Mesmo que as pessoas digam que determinada pessoa é muito boa. Amor e pecado se excluem como a luz e as trevas. 2. Os principiantes. a) Luta sincera contra o pecado mortal. b) Conhecimento rudimentar sobre Deus e os motivos de o amar. c) A morti cação de si mesmo é pouco enérgica. d) Como as crianças, buscam os consolos sensíveis que Deus dá. 3. Os adiantados. a) Decidiram seriamente amar a Deus, e para isso lutam contra o pecado venial e suas paixões. b) Buscam a presença de Deus e se comprazem nela. c) Amam o próximo efetivamente e praticam a caridade conforme Paulo a descreve: 1Cor 13, 4. d) Desejam a solidão, que os põe em comunicação com Deus. 4. Os perfeitos. a) Não falemos de pecado, mas só de amor. b) Sua preocupação: “Unir-se a Deus e gozar dele” (Suma teológica, a- ae, q. 24, a. 9). “Pois meu exercício agora é

somente amar” (São João da Cruz). “Não tenho grandes desejos, exceto o de amar até morrer de amor” (Santa Teresinha). c) Mantêm absoluta conformidade com a vontade de Deus. d) O amor os abrasa e os consome como um fogo suave. ii. Amor efetivo “Se alguém me ama, guardará minha palavra...” (Jo 14, 23). Porque “obras é que são amores, e não as boas razões”. São muitas as palavras que Cristo nos disse. a) Viver na graça 1. “Permanecei no meu amor” (Jo 15, 9). Somente a graça conserva este amor para nós. 2. A graça nos faz viver continuamente nossa liação divina. 3. Viver na graça exige romper com muitas coisas: deixar aquele lugar, aquela companhia, reparar aquela injustiça... 4. Só a conservaremos com a vida de oração e a freqüência aos sacramentos. b) Cumprir com as obrigações do próprio estado 1. Em trinta anos, Cristo só nos deu uma lição: santi car o trabalho. 2. Temos de cumprir nossa obrigação: o operário trabalhando, o chefe dando ordens com caridade, a mãe educando os lhos e cuidando do lar... 3. O amor exige que isso seja cumprido com espírito religioso. a) O egoísmo não é amor a Deus.

b) Todas as nossas obras devem trazer o selo de Deus, como o faziam Jesus, Maria e José. c) O amor ao próximo 1. “Dou-vos um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros” (Jo 13, 34). Este foi o testamento de Cristo. 2. O Juízo Final será um exame da caridade: “Destes-me de comer, de beber” (Mt 25, 31–41). 3. O amor ao próximo é o sinal da perfeição do amor: “Sabemos que passamos da morte para a vida, porque amamos a nossos irmãos” (1Jo 3, 14). 4. Para Santa Teresinha, uma das principais graças recebidas foi compreender o preceito do amor ao próximo. Uma religiosa se aproxima de um rico egoísta pedindo esmola para seus órfãos. O rico olha-a com desprezo e lhe cospe na cara. A religiosa: “Isto foi para mim; agora uma esmola para meus órfãos”. Isto é caridade. 5. O Catecismo enumera catorze obras de misericórdia, mas existem muitas mais. Nossa oração deve chegar até aqueles que não conhecem a Deus. d) Amor ao sofrimento 1. “Quem quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mt 16, 24). 2. Cristo prometeu a seus amigos o sofrimento nesta vida, para que se assemelhem a Ele, para que expiem suas faltas e para que se puri quem como o ferro no crisol. 3. Os santos compreenderam bem isso: “Padecer e ser desprezado por Ti” (São João da Cruz). “Padecer ou morrer”

(Santa Teresa). “Não morrer, mas padecer” (Santa Madalena de Pazzi). 4. Ou os santos estavam loucos, ou estamos nós. Eles: padecer. Nós: gozo, prazer, diversão... Conclusão 1. Ama-se pouco a Deus: muitos vivem continuamente em pecado; fogem de suas obrigações; desconhecem a lei da caridade e têm uma sede insaciável de prazeres pecaminosos. 2. E o amor de Deus é o único que dá e cácia à nossa vida. É a varinha mágica que transforma tudo em ouro. 3. “No entardecer da vida, tudo passa; só o amor permanece” (Irmã Isabel da Trindade). 4. Aproveitemos o presente, quando Deus nos é dado como Pai, para quando nos visitar como Juiz.

4. O amor a nós mesmos: motivos 207. 1. Agora, vamos falar do amor que devemos a nós mesmos. 2. Mas, este tema não parece inútil? A nal, toda a atividade do homem não é realizada por causa do amor que ele tem a si mesmo? a) Por que trabalham? b) Por que roubam?

c) Por que pecam? Tudo é feito ou para conservar a vida ou para vivê-la comodamente e com os maiores prazeres; isto é, por amor a nós mesmos. 3. Entretanto, esse amor egoísta é equivocado, é falso. Vejamos os verdadeiros motivos que devem mover-nos a amar a nós mesmos, e que não são apenas a saúde ou a posição social; e muito menos o prazer pecaminoso. Motivos do amor a nós mesmos a) Fomos criados à imagem e semelhança de Deus264 1. Não amamos a fotogra a de uma pessoa querida por nós? 2. Não amamos e reverenciamos uma estampa, imagem ou relíquia do santo preferido? 3. E nós somos imagens de Deus. Mas imagens vivas, de muito mais valor que as fotogra as e as estampas. 4. E se é preciso amar a Deus sobre todas as coisas, devemos amar a nós mesmos por sermos “sua imagem, sua representação”. b) Deus preceituou o amor a nós mesmos 1. Indiretamente: nos mandamentos, cujo cumprimento nos preserva dos perigos que ameaçam a alma, o corpo e as coisas necessárias para ambos (fama, honra, bens, etc.). 2. Diretamente: no preceito do amor ao próximo “como a nós mesmos” (Mt 22, 39). Mas temos de nos amar com amor sincero e sem falsi cações. c) Somos de Deus

1. Nosso ser é de Deus. Devemos amar a Deus e, por isso, a todas as suas coisas. 2. Não olhamos com grande estima as coisas das pessoas que amamos? 3. O amor a uma pessoa pode ser medido pelo apreço que temos por suas coisas. Nós pertencemos a Deus. Logo, devemos amarnos na medida e proporção com que amamos a Deus. Deus não ignora nada do que ocorre em sua “fazenda”. Pode olhar para nosso amor, para nossa conduta, com gosto e agrado por pertencermos a suas “posses”? d) Somos portadores de imensos valores 1. Com relação à alma (que é objeto primário deste amor a nós mesmos): a) Foi criada por Deus. b) Foi elevada à ordem sobrenatural. c) Foi redimida por Cristo. d) Está ordenada à bem-aventurança. Conseqüências: Portanto: 1º — Odiar o pecado. 2º — Antepor a salvação e santi cação da alma a todas as outras coisas: “Buscai primeiro o reino de Deus” (Mt 6, 38). 3º — Conservar e aumentar a graça, mesmo às custas de toda coisa material. 4º — Cultivar as virtudes cristãs. 2. Com relação ao corpo (objeto secundário do amor a nós mesmos): a) É o instrumento da alma para a prática de muitas virtudes. É

b) É templo (com a alma) do Espírito Santo. 1º — Os que estão em pecado não o são. Mas já o foram. Não tens amor e reverência por um objeto ou uma jóia que pertenceu a teus pais? Se não são templos atuais, já o foram e podem voltar a sê-lo pelo arrependimento e pela Con ssão. 2º — Os que estão na graça: quanto amor a nosso corpo! Por quê? — Nosso corpo é sagrado, porque nele habita Deus: devemos a ele um profundo amor. — Nosso corpo está “inundado” de Deus: não podemos ultrajálo nem o profanar. — Nosso corpo é mansão favorita e desejada por Jesus Cristo. Devemos respeitá-la mais que ao templo, mais que ao sacrário, mais que ao cálice que “contém” a Cristo, mas não o conhece nem o ama. c) Será glori cado (por redundância da glória da alma). Conseqüências. 1ª — Estamos obrigados a adotar os meios ordinários necessários para conservar os bens do corpo: a saúde, a vida, a integridade, etc. 2ª — Contudo, estes bens corporais só devem ser procurados e conservados na medida em que são agradáveis a Deus e necessários para a alma. 3ª — Devemos, inclusive, ter ódio ao corpo e castigá-lo se for obstáculo para a graça. Neste caso, porém, é verdadeiro amor: assim como o pai que castiga para o bem de seu lho.

Conclusão 1. Devemos ter um grande amor a nós mesmos, mas com base em motivos sobrenaturais, não egoístas e pecaminosos. Levemos em conta que todo pecado vai contra esse amor que devemos a nós. 2. Lutar contra a preguiça e a negligência na aquisição de bens espirituais, não antepondo jamais o material ao espiritual. Nem tampouco antepor o bem espiritual dos outros ao nosso próprio bem espiritual, embora devamos antepor o seu bem espiritual ao nosso bem material (cf. Suma teológica, a- ae, q. 26, aa. 4–5). 3. Respeitemos a nós mesmos: recebemos a Deus em nossos corações: sejamos puros e limpos para não lançar fora de nós o nosso Divino Hóspede. 4. Amemos verdadeiramente o nosso corpo, fazendo dele a morada do Espírito Santo, para que habite em nós eternamente.

5. O amor a nós mesmos: suas características 208. 1. Existe um preceito divino de amar a si mesmo por caridade. “Amarás ao próximo como a ti mesmo” (Mt 22, 29). 2. Mas existem muitas maneiras de amar a si mesmo. Vamos expor as três principais; a) Uma delas é pecado e origem de todos os pecados: o egoísmo, o amor desordenado de si mesmo.

b) Outra é legítima, mas imperfeita: o amor natural de si mesmo. c) E outra é perfeita e obrigatória: o amor sobrenatural, que procede da autêntica caridade para consigo mesmo. i. O amor desordenado de si mesmo a) É a causa de todos os pecados265 1. O pecador, por seu próprio prazer: a) Não se incomoda em quebrar a lei de Deus. b) Nem em fazer ofensas gravíssimas à honra e à fama do próximo. c) Nem em expor a saúde de seu corpo a todos os perigos. d) Nem em atentar contra a salvação eterna de sua alma. 2. Além disso, todo pecado é uma ofensa a Deus e a seu amor: a) Porque colocamos nosso capricho acima da vontade divina. b) Daqui nasce precisamente a imensa gravidade deste pecado. b) Ao pecar, o homem comete um atentado contra o amor que deve a si mesmo 1. Porque ele se causa um gravíssimo dano: a perda da graça, in nito tesouro. 2. Porque na realidade fazemos um ato de ódio contra nós mesmos. “Se bem odiaste, amaste; se mal amaste, odiaste” (Santo Agostinho).

3. Somente nos amamos de verdade quando nos amamos em Deus, por Deus e para Deus. c) É preciso estar disposto a renunciar a tudo antes que cometer um só pecado mortal deliberado 1. A saúde, as riquezas, a própria vida... 2. Ainda que nos dissessem que com ele fecharíamos para sempre as portas do inferno. 3. Ainda que com ele pudéssemos tirar todas as almas do purgatório. 4. Não ofender a Deus é incomparavelmente mais importante! 5. Se, para cometer um pecado, tivéssemos de pagar um milhão de moedas de prata... E não nos damos conta de que agora pagamos um tesouro rigorosamente in nito: a graça de Deus e sua amizade. ii. O amor natural a si mesmo a) São bens lícitos 1. Se são procurados moderadamente. 2. Com plena subordinação aos bens da alma. 3. Estes bens são: a) Para o corpo: a saúde, o bem-estar, a longa vida... b) Para a alma: a ciência, a honra, a glória, o bom nome... b) É preciso sacri cá-los sem hesitação 1. Diante do bem espiritual próprio:

a) Não se pode cometer um pecado para recuperar a saúde do corpo. b) Nem para evitar a perda do bom nome: aborto. 2. Diante do bem espiritual alheio: a) Assistir a um moribundo que morreria sem sacramentos sem o nosso auxílio. b) Expor-se ao contágio de uma enfermidade por batizar uma criança. 3. Diante do bem comum: o soldado deve morrer pela pátria, se necessário. c) Antepor a salvação e os bens espirituais aos naturais signi ca: 1. Em relação à alma: a) A ciência necessária para salvar-se. b) Praticar as virtudes necessárias à salvação. c) Todas as obrigações da perfeição sobrenatural. 2. Em relação ao corpo: a) Procurar sua saúde por meios ordinários. Não há obrigação em recorrer aos extraordinários (por exemplo, grandes gastos que arruinariam a família). b) Conservar os bens externos de bom nome e honra. c) Sem causa razoável, não é lícito ceder os próprios direitos ao bom nome.

d) Dar uma direção à vida e ao trabalho. 1º — Conseguir um meio de vida. 2º — Para evitar o ócio. 3º — Pela obrigação de cooperar para o bem comum. d) Pode-se pecar contra o amor natural a si mesmo 1. Por todos os excessos do amor legítimo a si mesmo: a) Excessivo egoísmo nas coisas lícitas. b) Gula espiritual (por exemplo, servir a Deus somente pelos consolos que esse serviço proporciona). c) E, sobretudo, demasiado apego aos bens naturais. 2. Por falta ou negligência: a) Espiritualmente: por descuido do necessário para salvar-se. b) Corporalmente: descuidando da saúde corporal. 3. Portanto, jamais devemos sacri car o menor bem espiritual de nossa alma, por todos os bens naturais do corpo ou do mundo inteiro. iii. O amor sobrenatural a si mesmo Somos obrigados a amar a nós mesmos com amor sobrenatural de caridade. a) Em relação ao corpo 1. Porque sua natureza é obra de Deus. 2. Porque ele é chamado a cooperar para nossa eterna bemaventurança. É

3. É preciso submetê-lo totalmente ao espírito: a) Com uma vida séria, reta, moderada. b) E, se isto não é su ciente, à força de golpes e morti cação. c) Reduzi-lo à servidão — seja lá como for! — não é um ato de ódio contra ele, mas de verdadeiro e autêntico amor. 1º — “Meu pobre corpo”, dizia São Francisco de Assis, “eu te trato mal porque te quero muito e quero que sejas eternamente feliz”. 2º — E São Pedro de Alcântara, depois de morto, apareceu a Santa Teresa e lhe dizia: “Bendita penitência, que tão grande glória me proporcionou!”. 4. O ideal supremo (não obrigatório, e aconselhamento) é oferecê-lo a Deus como vítima:

nunca

sem

a) Por um imenso amor a Deus. b) Por si mesmo... por amor ao próximo. c) Até mesmo como ato supremo de amor a nosso corpo. Como brilhará no céu o corpo de um mártir! 5. Ao contrário, os pecadores, que agora lhe proporcionam todo tipo de prazeres pecaminosos, estão preparando para ele um castigo terrível e eterno no outro mundo. b) Em relação à alma 1. Evitar o pecado mais insigni cante. 2. Em caso de ter caído por desgraça, levantar-se o quanto antes pelo arrependimento e pela Con ssão.

3. Propiciar-lhe o maior dos bens: o máximo aumento de glória eterna, mediante nossa plena santi cação. Conclusão O resumo da caridade em relação a nós mesmos está nestas poucas palavras: tendência constante para a santidade! Que é a mesma coisa que uma perfeita imitação de nosso divino exemplo: .

6. O amor ao próximo: motivos 209. 1. O preceito: a) No Antigo Testamento, Deus determina um preceito a seu povo em troca de sua amorosa proteção: Amarás ao próximo como a ti mesmo (Lv 19, 18). b) No Novo Testamento, Ele o rati ca e eleva. Cristo diz: Douvos um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros como eu vos tenho amado (Jo 13, 34). 2. Seu alcance: a) Parábola do bom samaritano (Lc 10, 30–37). b) Até onde se estende esse amor? 1º — A todos os seres capazes da amizade de Deus: anjos, santos, almas do purgatório, homens éis e in éis, santos ou pecadores, amigos ou inimigos. 2º — Não aos demônios e condenados: são incapazes de gozar da amizade de Deus. 3. Vejamos agora quais são os motivos deste amor ao próximo: É

i. É um grito da natureza a) Aquele que ama procura seu semelhante 1. Este semelhante nós o encontramos em todos os homens; são criados por Deus à sua imagem e semelhança. 2. O sangue humano procede de uma mesma fonte. 3. Este sangue encontra em cada corpo que vivi ca o mesmo motor: uma alma inteligente, livre e imortal. b) O homem procede de um único pai Se vos remontais à Criação, ireis encontrar-vos com um único homem. Dele descende toda a humanidade. a) É nosso pai, na linhagem dos seres humanos. Porém... b) Ele vos apontará para Deus, de quem recebe sua vida e toda paternidade. c) Logo, somos todos irmãos 1. Pelo corpo: formados todos do mesmo barro. 2. Pelo sangue: derivado de uma única origem. 3. Pela inteligência: irradiação e selo misterioso de Deus, que nos impele para a verdade. 4. Pelo amor: que nos impele para o Bem. 5. Pelo destino nal: a volta ao Primeiro Princípio. 6. Não devem amar-se mutuamente os lhos do mesmo pai, os irmãos? Amar o próximo é o grito da natureza. ii. É um preceito divino

a) Jesus Cristo veio recordar ao homem o grande dever da caridade fraterna 1. O amor ao próximo é natural ao homem. a) Mas falta ao homem primitivo a fortaleza para dar-se, pois o egoísmo o cega. b) Ele se esquece dos laços de parentesco universal que o unem à família humana. c) Transforma-se no homem sem amor, no “desamorado” (Rm 1, 31). 2. Cristo desperta a natureza adormecida no egoísmo. a) Excita-a e ergue-a com seu sublime exemplo. b) Prega-lhe o “novo mandamento” que havia esquecido. 1º — “Ama a teu próximo como a ti mesmo” (Mc 12, 31; Mt 19, 19; Lc 10, 27). 2º — “Dou-vos um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros” (Jo 13, 34). b) O preceito de Cristo é “novo” 1. Não só porque o homem o tinha esquecido. 2. Mas também porque Jesus Cristo lhe deu novo sentido e realidade: a) No Antigo Testamento: “Ama-o como a ti mesmo” (Lv 19, 18). b) No Novo: “Como eu vos tenho amado” (Jo 13, 34), até o sacrifício, até a cruz, até a morte. É

3. É novo porque o amor ao próximo foi elevado a virtude teologal: tem por objeto ou motivo formal o próprio Deus, não mais a nós mesmos. a) Ama-o como a Deus. 1º — Um escriba aproximou-se de Jesus: “Qual é o primeiro mandamento?”. E Cristo: “Amarás a Deus com todo o teu coração [...] e o segundo é semelhante ao primeiro: Amarás a teu próximo como a ti mesmo” (Mt 22, 36–40). 2º — Outro dia: “Se ofereces um dom no altar [...] e te lembras de que teu irmão está ofendido, deixa a oferenda e vai reconciliarte com ele, e volta para apresentar tua oferenda” (Mt 5, 23–24). 3º — Não existe contradição: formam um só mandamento. Nos dois nos é ordenado amar a Deus: em si mesmo ou no próximo. b) A razão do amor ao próximo, diz Santo Tomás, é o próprio Deus (Suma teológica, a- ae, q. 25, a. 1). Do contrário, não seria amor de caridade, mas puramente natural. iii. O próximo é Cristo a) Jesus Cristo, Nosso Senhor Ele criou entre os homens laços mais estreitos, nobres e divinos que os naturais. 1. Ao encarnar-se, faz-se nosso semelhante e nos transforma em irmãos de um Deus. 2. Com sua morte, gera-nos para uma vida nova. 3. Dá-nos uma participação criada de sua divindade mediante a graça. 4. Eleva-nos à dignidade de lhos adotivos de Deus.

5. Logo, se somos lhos de Deus, somos também irmãos de Jesus Cristo: “Filho, eis a tua Mãe” (Jo 19, 27). Logo, se é nossa Mãe, nós somos irmãos de Cristo. 6. Co-herdeiros com Cristo de sua eterna bem-aventurança (Rm 8, 17). b) O homem, alter Christus 1. Assim Ele mesmo a rmou: a) “O que zerdes ao menor dos meus, a mim o fazeis” (Mt 25, 40). b) “Eu sou a videira, vós os ramos...” (Jo 15, 15). c) “Saulo, Saulo! Por que me persegues? [...] Eu sou Jesus, a quem tu persegues” (At 9, 4–5). 2. Todos os homens formam em Cristo um só “Corpo”... Somos membros de um “Corpo místico”, cuja cabeça é Cristo. 3. Cada cristão está unido a Cristo, e por meio dele participa da vida de Cristo. 4. Cristo quis ocultar-se atrás de cada cristão: somos véus que encobrem Jesus Cristo. 5. Como todos os homens devem viver uma vida em Jesus Cristo, assim também deve reinar entre eles um único amor: amor a Deus, que se encarna e vive em cada próximo. a) Como compreenderam e viveram isto os santos e mártires do cristianismo! Até em seus carrascos eles viam a Cristo, que os queria coroar com a glória do martírio. b) Um estivador do Porto de Marselha passa junto a um sacerdote: “Eu te odeio”. E o sacerdote: “Se soubesses quanto eu

te amo!”. 6. O cristão é “templo”, sacrário vivo de Deus (1Cor 3, 16; 2Cor 6, 16). Conclusão 1. A caridade para com o próximo é um mandamento, não um conselho. 2. Ama-o como a um também teu irmão.

lho de Deus, irmão de Jesus Cristo e

3. Pede a Deus que te aumente a fé. Só por meio dela verás e amarás a Cristo no próximo.

7. O amor ao próximo: suas características 210. A respeito da caridade com o próximo, em suas exigências práticas, cabem vários posicionamentos: 1. Um deles, extremo: ignorá-la. É o egoísmo desenfreado. 2. Outro, médio, mas também falso: confundi-la. a) Por excesso: valorizar a caridade pelo maior número e barulho de nossas “obras de caridade”. b) Por falta: com meras obras de plano muito baixo.

lantropia natural, em um

3. O terceiro e verdadeiro: o conhecimento exato e também prático de suas exigências. Exame pessoal e re exivo: Em qual destas três posições está a nossa caridade? São Paulo nos vai dizê-lo como em uma ta de cinema. Escutai. (Texto de 1Cor 13). i. A caridade supera todos os carismas266 a) Por que São Paulo apresenta esta comparação? 1. Porque os éis de Corinto exibiam muitos desses dons, principalmente o dom de línguas. Era muito apreciado por eles. 2. Os carismas são, em linhas gerais: dons extraordinários concedidos por Deus para a instrução ou utilidade do próximo (por exemplo, o dom de milagres, de curar os enfermos, de línguas, etc.). b) As virtudes cristãs As virtudes cristãs são bem mais importantes que os carismas. Isto porque: 1. As virtudes trazem consigo a graça, e com ela todos os mistérios cristãos. 2. São “hábitos operativos”, dizem os teólogos; isto é, um reforço para realizar o bem de forma mais fácil, agradável e pronti cada. 3. Por conseguinte, elas são a avenida limpa e reta que nos conduz à vida eterna: elas mesmas nos empurram, se não tropeçamos, até o ponto de chegada. c) Os carismas 1. Certamente não são hoje tão abundantes como nos primeiros tempos, essas assistências e manifestações especiais do Espírito

Santo: dom de línguas, discernimento de espíritos, profecias, etc. 2. Mas permanece o motivo para estabelecer a comparação. Hoje, São Paulo nos diria: a) Vosso moderno dom de línguas, que tanto entende de conferências, assembléias, discursos, quando na verdade é a caridade em obras que “nos impele”; ou vosso inveterado dom de criticar as obras bene centes que os outros fazem sem contar convosco, etc. b) Vossa demasiada “prudência” — que erra por excesso —, que se ocupa em discernir meios, modos e maneiras de chegar ao próximo, enquanto se morre de fome ou, pelo menos, se sofre sem alívio. c) Vossos absurdos profetismos, que boicotam toda boa iniciativa alheia, porque “é impossível”, “não irão entendê-la”, “fracassará”... antes mesmo de começar... 3. Sem a caridade, nada valem, ainda que sejam dons extraordinários ou obras de grande efeito propagandístico; ainda que sejam de Deus, e nós acreditemos atuar por Deus e para o bem do próximo. Tudo isso, sem a caridade, é como um “bronze que soa” — mera lantropia — ou “címbalo que retine” — muitas grandes obras de “caridade de vitrine” (cf. 1Cor 13, 1). ii. Características da caridade para com o próximo São Paulo as enuncia em seu maravilhoso capítulo 13 da Primeira Epístola aos Coríntios: 1. “É paciente, não se irrita” a) A paciência cristã não é esse encolher de ombros diante das contrariedades e “agüentar até melhores tempos”... nem aquele “o que se há de fazer?”... b) A virtude da paciência é a “resistência”, mas positiva — agradável a Deus —, que se sobrepõe à indiferença, às

contrariedades, aos maus tempos, à ingratidão, porque descansa em Deus. c) Por isso mesmo, a caridade não se irrita; os fatores humanos não podem mudar o plano de Deus. 2. “É benigna” a) Se golpeamos o bronze, ele soa. O rio segue seu curso desde que um obstáculo não o interrompa. Os animais obedecem a seus instintos... b) A caridade supera tudo isso: se é verdadeira, será benigna, isto é: 1º — Sempre fará seus benefícios, contra a corrente, maldições e ingratidões. 2º — Agirá com mansidão e benignidade, assim como Deus deixa cair os raios bené cos do sol sobre bons e maus. O que é meu é de Deus e, nele, de todos. Não mais “obras de caridade” que esbofeteiem o necessitado! 3. “Não é invejosa... nem se ensoberbece” a) Dá o óbolo da viúva (Lc 21, 2) sem invejar as volumosas oferendas dos ricos que aparecem nos jornais. A caridade não é um leilão. b) Nem se ensoberbece: enchei um balão, ele vai subindo, todos acompanham seu curso, e, de repente, acabou: ridiculamente explode ou vai perder-se em um local desconhecido. A benignidade é uma corrente contínua que alimenta e preenche — sem inchar — a verdadeira caridade. 4. “Tudo suporta... não é interessada” a) “Ah! Padre! Sim, zemos tudo isso, mas veja que cara-de-pau: nem muito obrigado!”.

b) Então, desperdiçaste tua caridade, porque esta tudo suporta: a paciência, a benignidade, lhe dão esse impassível fundo divino que tolera todos os golpes de ingratidão. c) Por isso mesmo, não é interessada. Não vês que o “muito obrigado” talvez seja a única coisa que esse pobre socorrido possa dar-te? E que ganhas tu se esse pobre te agradecer em seu coração? Os únicos juros da caridade — o cem por cento — são de outra ordem: “Vem, bendito de meu Pai” (Mt 25, 34). 5. “Tudo desculpa... não é descortês... tudo espera” a) Um grau a mais de caridade-ouro. Para teus ressentimentos, para teus mexeriqueiros que prejudicam a resposta a teus benefícios, a caridade imediatamente dá uma desculpa. Não só tolera com os dentes cerrados, mas com um franco sorriso de perdão. b) Por isso mesmo, ela não é descortês. Em tuas relações sociais, a cortesia não exige de ti desculpar muitas grosserias? E serás tão descortês com um pobre que não recebeu educação igual à tua, e por quem se apresenta como ador o próprio Cristo? “A mim o fazias...”. É somente dele que tudo esperas. c) Como homem, tu sabes quanto custa um sorriso de perdão. Mas olha para o Cruci cado: “Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem” — e faz uma comparação. 6. “Compraz-se na verdade...” a) A verdadeira caridade teria de chegar até ela. Hoje a verdade parece desterrada do mundo: chantagens políticas, sociais, negócios sujos, quadrilhas, hipocrisias, ngimentos... b) A caridade manifesta a verdade: simples: não jactanciosa; reta: sem astúcias, sem pensar mal do próximo; essa verdade que não se alegra com a injustiça, a mais perniciosa falsidade.

c) Acima de tudo, a caridade se compraz com a verdade. Manifesta-a aqui na terra e se compraz eternamente com ela: em Deus, a Suprema Verdade. 7. “Por isso a caridade jamais passará” As profecias têm o seu m, as línguas cessarão, a ciência se desvanecerá. Mas a caridade “jamais passará”. É imortal e eterna, como o próprio amor de Deus. Acima dos carismas, virtudes e dons, brilhará eternamente o amor.

8. O dever da esmola 211. 1. Escuta a divina narrativa de Rute e Booz. Booz possuía seus trigais nas colinas de Belém. Rute, a jovem moabita, pede permissão para respigar atrás dos segadores... E Booz disse a seus servos: “Deixai, de propósito, sem lhe dizer nada, que caiam de vossos feixes algumas espigas para que ela as recolha” (Rt 2, 15– 16). 2. Nós, os cristãos do século , estamos obrigados a dar esmola? O que determina e a que nos obriga este preceito? i. Necessidade da esmola a) Hoje existem pobres? 1. Não é preciso dizer nada. Venham comigo aos subúrbios de uma cidade. a) Ali vocês os têm: o ancião de olhos tristes, a mulher malvestida, o menino raquítico...

b) Ali estão: na dobra de uma esquina, porque não possuem um teto onde se proteger. Os deserdados do indispensável para viver. c) Aqueles que a sociedade moderna quali cou de “classe baixa”. d) E estes não são os únicos. Existem outros que não pedem por pudor: o operário que mal ganha para viver, o vizinho que faliu... 2. A própria sociedade moderna é que os gera. a) Estimulando a comodidade e o luxo de uns poucos. b) Construindo grandes edifícios, cinemas e salões de festa com todo o luxo para receber somente os ricos, e onde se queima o dinheiro em uma noite. c) Não se ocupando em elevar o nível econômico e cultural do pobre... d) Forçosamente, tudo isso faz com que um setor de pessoas, os pobres, sejam escravos daqueles que querem viver com um luxo sem limites. b) A necessidade de remediar essas pessoas é urgentíssima 1. Para os próprios pobres. a) Porque seu estado é devastador. Levam uma vida indigna de seres humanos. b) São tratados de forma pior do que os escravos da sociedade pagã. Estes eram cuidados por seus senhores como algo pessoal, ao menos como hoje se cuida das máquinas. Já os pobres de nossa sociedade, nem mesmo isto. c) Sua pobreza os deixa à margem do precipício moral.

d) Têm direito a que seja restabelecida para eles a justiça social. Enquanto isso, porém, impõe-se o dever de ajudá-los. 2. Para a manutenção da ordem e da paz social. a) Estas massas famintas são matéria muito pronta para toda corrupção social. b) Humanamente, elas não têm nada a perder, e se vendem a qualquer causa que se insinue. c) Por isso os bairros da classe baixa sempre foram uma sementeira de revoluções. d) Presta atenção! Se hoje, tu que podes, não abres voluntariamente a mão da parte que lhes é devida por justiça e caridade, amanhã irão tomar violentamente os teus bens e a tua vida. A história conta isso com máxima clareza. c) Não basta dar esmola, é preciso dá-la por caridade 1. Não basta a simples compaixão natural. a) A mera compaixão de nitivos.

lantrópica não pode produzir frutos

b) Pode ser que, de momento, atendamos às suas necessidades, mas não chegamos ao coração do pobre; entre ele e nós existe um abismo de gelo. 2. Somente a esmola feita por amor ao próximo tem sentido cristão. a) Quando damos esmola pensando que aquele é nosso irmão, que é um lho de Deus, alargam-se as fronteiras da misericórdia. b) Então, o pobre sentirá que das nossas mãos para as dele passa não só o pão, mas o fogo da caridade, que chega ao coração.

c) Somente quando se socorre o pobre por amor se encurtam as distâncias. d) Mais que problema econômico, é um problema de amor. Uma demonstração de carinho... 3. A esmola feita por caridade produz efeitos de eternidade. a) São Paulo a recomenda aos éis, porque “Deus se compraz com tais sacrifícios” (Hb 13, 16). b) O centurião Cornélio recebeu a recompensa da fé porque suas “orações e esmolas foram lembradas diante de Deus” (At 10, 16). c) “A água apaga a chama, a esmola expia os pecados” (Eclo 3, 33). d) O próprio Cristo disse: “Dai em esmola o que tendes e tudo será puro para vós” (Lc 11, 41). e) Cristo a coloca como condição para alcançar a perfeição cristã: “Se queres ser perfeito, vende tudo o que tens, dá-o aos pobres e terás um tesouro nos céus” (Mt 19, 21). f) A Igreja a recomenda como meio de atrair as misericórdias divinas. ii. Obrigações graves impostas pelo preceito da esmola a) Do lado do necessitado, há obrigação de socorrê-lo conforme as circunstâncias 1. Quando o pobre está em extrema necessidade (ou seja, quando morrerá sem nosso socorro): a) Estamos obrigados a abrir mão até daquilo que é necessário para a conservação de nosso nível social.

b) A caridade exige que amemos mais a vida do próximo que nossos bens exteriores. c) Em extrema necessidade, tudo é comum quanto ao uso. Nesta situação, o pobre, sem pecado, pode tomar os bens de quem os possui para conservar a própria vida. 2. Quando a necessidade é grave (enfermidade, situação de fome...): a) Há obrigação de socorrê-lo, mesmo que se venha a perder algo do necessário para viver folgadamente, conforme o estado social. b) Segundo isto, os médicos, advogados, etc. atenderão gratuitamente aos clientes pobres. 3. Quando a necessidade é comum (a grande maioria dos pobres): a) Deve-se abrir mão do que sobra, depois de atendidas as próprias necessidades conforme a posição social. b) Ninguém pode acumular dinheiro às custas do sacrifício e da fome dos outros. Por isso, ai dos contrabandistas e comerciantes do mercado negro que se aproveitam das crises nacionais!... b) Da parte do possuidor de bens, sempre é preciso abrir mão do supér uo 1. Existem bens supér uos? a) São supér uos os bens que sobram, uma vez atendidas com folga as próprias necessidades. b) A existência desses bens é clara quando existem pessoas que esbanjam dinheiro sem necessidade... quando o capital aumenta

de modo desproporcional... latifúndios sem exploração...

quando

se

possuem

grandes

2. O desprendimento desses bens é questão de justiça e caridade. ) propriedade;

, atendendo às exigências da função social da

1º — Leão na Rerum novarum: “Uma vez atendidas as necessidades e o decoro, é obrigação fazer doação daquilo que sobra aos necessitados”. 2º — Isto porque, “quanto ao uso, o homem não deve ter as coisas como próprias, mas como comuns, de modo que facilmente as comunique nas necessidades dos demais”. 3º — Pelo próprio direito natural, as coisas se ordenam primariamente a satisfazer as necessidades de todos os homens, não só de alguns poucos. 4º — Tudo isto acaba de ser lembrado por Paulo em sua maravilhosa encíclica Populorum progressio. Voltaremos a falar amplamente sobre ela. b) Também o exige a , completando assim os deveres de justiça. 1º — A Igreja pressiona os ricos com o “gravíssimo mandamento de que dêem o supér uo aos pobres” (Leão ). 2º — A Igreja ameaça os ricos “com o juízo divino, que há de condená-los a suplícios eternos se não socorrem às necessidades dos pobres” (Quod apostolici muneris, de 1878, por Leão ). 3º — Pois, como diz o apóstolo São Tiago em sua carta (2, 13), “será julgado sem misericórdia aquele que não faz misericórdia”. c) É doutrina ensinada pelo próprio Cristo. 1º — Terrível sentença para aqueles que não a praticarem (Mt 25, 34–36). 2º — A pregação de Cristo se resume no amor a Deus

e ao próximo... 3º — Os pobres são os prediletos de Cristo... (Mt 5, 3; Lc 4, 18).

9. Obras de misericórdia corporais 212. 1. Em primeiro lugar, é necessário desfazer um preconceito muito corrente: a) Não se trata de sobrecarregar tua consciência impondo-te fardos excessivos... b) Reclamas de que te cobrem por todos os lados: impostos, associações com cotas mensais, pobres e necessitados, carestia de vida, etc. 2. Trata-se, entretanto, de dizer-te a verdade: a) Existe muita miséria no mundo: tu mesmo és testemunha. b) Nos subúrbios da cidade, o pobre não tem comida nem moradia digna... c) Chorando, a mãe de família tem de deixar seus lhos por muitos dias, porque não tem o que lhes dar para comer... 3. Trata-se também de dizer-te que existe um preceito de caridade que obriga a aliviar o próximo nas necessidades de sua alma e de seu corpo: obras de misericórdia espirituais e corporais. i. Necessidades corporais do próximo a) Visitar os enfermos Pode ser um trabalho heróico:

1. Ajudando-os pessoalmente, cuidando de suas chagas sem repugnância, ministrando-lhes medicamentos... 2. Atendendo-os até em seus caprichos, sem levar em conta suas impertinências, com um sorriso nos lábios. 3. Mais heróico ainda se se dedica inteiramente a vida ao cuidado dos enfermos: religiosas, enfermeiros... 4. Prepará-los para morrer bem: que grande obra de caridade! b) Dar de comer ao faminto e de beber ao sedento 1. Aqui entra o preceito da esmola, de lei natural: socorrer o necessitado... 2. É necessário ver o próprio Cristo no pobre que pede alimento. O pobre estende a mão, e Deus recebe a esmola... 3. Não pertence a ti aquilo que possuis enquanto vires o indigente em extrema necessidade: nestes casos extremos, tudo é de todos. 4. É um costume muito louvável e cristão dar aos pobres aquilo que sobra — mas não o que se desperdiça — e mesmo prepararlhes comida com essa intenção. 5. Que exemplo o das famílias que, em determinados dias, convidam algum pobre para participar de sua própria mesa! São Luís de França trazia 120 pobres, todos os dias, para participarem de sua mesa... 6. Tudo isto te convida a re etir: a) Talvez vivas de banquete em banquete... b) Ou satisfazendo teus caprichos e gostos...

c) Ou desprezando com indiferença o pobre que te pede um bocado de pão por amor de Deus... “Deus o proteja! Talvez outro dia!”. Nestes casos, o nome de Deus é um escândalo e uma profanação. d) Considera a miséria alheia como tua e tem entranhas de misericórdia. c) Vestir o nu Também és testemunha: 1. Os farrapos rasgados do pobre da rua, exposto às inclemências do tempo: frio, neve, chuva... 2. O pobre embaraçador, que talvez seja teu vizinho. 3. A família que faliu e decaiu de sua posição. 4. Re ete: a) Prestar-se a socorrer essas necessidades é uma grande obra de misericórdia. b) Talvez te julgues um bom cristão, mas vê que isso não combina com o luxo insaciável, com os caprichos da moda... Um vestido para a manhã, outro para a tarde e outros para cada estação... c) Procura vestir uma criança pobre no Natal, na Páscoa, ou por motivo de uma Primeira Comunhão... d) Não te esqueças de que, agindo assim, dás roupa ao próprio Cristo, nu em seus irmãos, os pobres. d) Dar pousada ao peregrino 1. Antigamente a hospitalidade era uma coisa sagrada. 2. Hoje existem muitas possibilidades:

a) O pobre da rua não tem casa: sua cama, o chão duro debaixo das pontes, em uma esquina do caminho, uma caverna, uma choça... b) Nos subúrbios vivem famílias em uma única e indigna moradia. Vidas humanas espremidas como gado... 3. Pensa o que podes fazer nesta obra de misericórdia. a) Proporciona ao pobre um modo de vida decente, ajuda a sustentá-lo nos centros bene centes, nos asilos... b) Não digas que não há lugar em tua casa quando te pedem alojamento... Não te diz nada esse luxo e comodidade excessiva de tua casa, que constitui a admiração de teus amigos, e talvez o escândalo dos pobres? e) Libertar os cativos 1. Tem pouca aplicação hoje em dia: a) Não são tão arbitrárias as prisões... b) Nem tão más as condições dos cárceres... 2. Mas pode ser aplicado em alguns casos: a) Evitando a condenação de muitos inocentes... b) Corrigindo as causas que podem levá-los à prisão: 1º — Pais e mães de família culpáveis por seus criminosos, bandidos, desavergonhados...

lhos serem

2º — Companheiros que são causa de muitos crimes por seus maus conselhos... f) Enterrar os mortos

1. O cadáver do cristão é um templo onde habitou o Espírito Santo. 2. Vai ressuscitar um dia para o céu. 3. Por isso existe a obrigação de lhe dar uma digna morada no cemitério. 4. Tem grande respeito e veneração no cemitério: é o lugar de repouso, o dormitório dos mortos. 5. Honra-o com velas, ores, lápides cristãs... 6. Faz assim com os pobres: assiste a seu enterro até o cemitério... ajuda a pagar os gastos: muitos não podem comprar o ataúde... 7. Mas, acima de tudo, reza pelos mortos, pelos teus e pelos próximos, pelo túmulo desconhecido e abandonado. ii. Como devemos fazer estas obras de misericórdia a) Amor a Deus 1. Aquele que ama verdadeiramente a Deus realiza estas obras espontaneamente. 2. Seria contraditório dizer que amamos a Deus e não amamos o próximo (1Jo 4, 20). a) As obras são o sinal e a prova do amor... b) “O amor faz grandes coisas quando existe de verdade: se nada faz, é sinal de que não existe o amor” (São Gregório). E Santo Agostinho: “As provas do amor são as obras”. b) Espírito cristão

1. O cristão é outro Cristo... Cristo é nosso irmão: os pobres são irmãos de Cristo... “Porque tive fome e me destes de comer...”. 2. Cristo, modelo supremo: a) Seus milagres, além do poder, manifestam sua misericórdia: às vezes em torno das necessidades corporais, outras, das espirituais... b) Inclina-se a remediar nossos males: 1º — Espirituais. Com ações: Madalena, Zaqueu, etc. Com palavras: as parábolas do bom pastor, a ovelha perdida, o lho pródigo... 2º — Corporais. Saía dele uma força que curava a todos; aproximava suas mãos dos enfermos; cegos, leprosos, paralíticos... mortos... Para todos Ele tem palavras de consolo... “Passou pelo mundo fazendo o bem” (At 10, 38). 3. Não desprezes o pobre que te pede “uma esmola por amor de Deus”. Dá-a “por Deus, por Cristo”, e depois despede-o com amor: “Vai com Deus!”. c) Administra bem aquilo que dás 1. Assim poderás fazer obras de valor: se és muito rico, funda obras pias e bene centes, hospitais, asilos, patronatos, o cinas, etc., oferecendo trabalho ao necessitado. 2. Se não podes tanto, pensa como podes remediar as necessidades do próximo. Não gastes o dinheiro inutilmente... 3. Os pobres são benfeitores de seus benfeitores. Nada enriquece tanto quanto a esmola. “A bênção do pobre é a bênção de Deus” (Ozanam).

10. Obras de misericórdia espirituais 213. 1. Mais importantes que as corporais — embora estas também o sejam — são as obras espirituais de misericórdia: a alma vale muito mais do que o corpo. 2. Tal como ocorria com o grupo corporal, elas são muito numerosas na realidade: tudo quanto se faça impelido pela caridade, em benefício espiritual do próximo, é uma obra de misericórdia espiritual. 3. Entre elas, porém, destacam-se as sete que os catecismos costumam listar, expressamente recomendadas em grande quantidade de passagens da Sagrada Escritura. São as seguintes:267 a) Ensinar a quem não sabe 1. É uma esplêndida obra de caridade, que Deus recompensará com generosidade. Pode ser exercida por amor a Deus mesmo no que se refere à cultura humana (por exemplo, ensinando a leitura ao operário analfabeto, à jovem doméstica, etc.); mas ainda mais na ordem sobrenatural, ensinando o caminho do céu a tantos infelizes que o ignoram. 2. São variadíssimas as formas de praticá-la: a) Atuando como catequista nos catecismos paroquiais, nas escolas noturnas, etc. b) Publicando ou divulgando livros, folhetos, revistas e páginas de propaganda religiosa.

c) Esforçando-se por elevar o nível cultural e moralizador do cinema, do teatro, do rádio, da televisão, etc. A in uência destes meios modernos de propaganda é imensa: eles mudaram a mentalidade do mundo. d) A grande maioria das pessoas, carentes de cultura e de personalidade, não sabem discorrer por conta própria acerca dos grandes problemas da vida: pensam, sentem e falam sobre eles por meio do jornal, da novela, da revista, do aparelho de rádio ou de televisão. Utilizar estes meios modernos de propaganda para a difusão da verdade é um dos mais excelentes e e cazes atos de caridade cristã que podemos realizar em benefício do próximo (Concílio Vaticano ). b) Dar bom conselho a quem dele necessita 1. Quantas pessoas irresponsáveis e irre exivas encontramos a cada passo! Não perceberam a transcendência temporal e eterna de certos atos que realizam com a maior naturalidade do mundo, como se se tratasse de uma coisa trivial. 2. Uma palavra amável, um bom conselho dado a tempo e oportunamente, podem deter uma alma à borda do abismo em que iria arrojar-se, ou pode abrir horizontes desconhecidos para a generosidade latente em uma inteligência ou coração desorientados. 3. A Santa Igreja invoca a Virgem Maria na ladainha lauretana sob este suave título: Mãe do bom conselho, rogai por nós. c) Corrigir os que erram 1. A correção fraterna, ou seja, a advertência carinhosa e em privado, feita ao próximo culpável para afastá-lo de seu mau caminho, é uma das maiores obras de misericórdia que se pode praticar em seu favor. Sobre ela, deve-se levar em conta:

a) Que a correção fraterna é obrigatória por direito natural e por direito positivo divino (cf. Mt 18, 15–17). b) Que sua matéria são os pecados ou erros já cometidos, ou os futuros que se pudessem evitar com ela. c) Que deve ser feita por qualquer pessoa que possa in uir e cazmente sobre o próximo culpável, seja ele superior, inferior ou de igual condição social. d) Que, para ser conveniente e obrigatória, deve ser necessária (ou útil), possível e oportuna. Às vezes, em um dado momento, pode acabar sendo inoportuna e contraproducente, e nesse caso deve-se esperar para fazê-la em circunstâncias mais favoráveis. 2. Em todo caso, deve-se fazê-la sempre de forma muito caridosa, paciente, humilde, prudente, discreta e delicada. Não se trata de humilhar o corrigido, mas ajudá-lo a sair de seu mau estado ou o estimular a ser melhor. d) Perdoar as ofensas 1. É outra das maiores obras de misericórdia para com o próximo, e talvez a mais necessária e indispensável de todas para aquele que a pratica. De fato, o próprio Cristo nos adverte, no Evangelho, que seremos medidos por Deus com a mesma medida que adotarmos para com o próximo (Lc 6, 38). Aquele que não perdoa a seu próximo pode acarretar para si mesmo o terrível dano da condenação eterna (cf. Mt 6, 14–15). 2. Cristo nos deu o sublime exemplo desta sua divina doutrina: poderiam nos falar longamente sobre isto a samaritana, a adúltera, Zaqueu, o publicano Mateus, Maria Madalena, Pedro, o bom ladrão e tantos outros pecadores que foram perdoados por Ele. Jesus chegou a oferecer seu perdão ao próprio Judas (Mt 26, 50). E disse expressamente: “Aquele que vem a mim, eu não o lançarei fora” (Jo 6, 37). À

3. À imitação de Cristo, os santos alegravam-se imensamente ao perdoar os seus inimigos. Eis alguns exemplos: a) Santa Teresa esfregava as mãos de prazer quando cava sabendo de alguém que a perseguia ou caluniava: “Dedicava-lhes um amor particular”, diz ela mesma. b) Santa Joana de Chantal perdoou de tal maneira àquele que matou seu marido, que chegou a ser madrinha de Batismo de um de seus lhos. c) O Santo Cura d’Ars respondeu imediatamente a um desalmado que acabava de lhe dar uma terrível bofetada: “Amigo, a outra face vai car com ciúmes”. Que sublime! 4. Assim agem e falam os verdadeiros santos. Em todo caso, não nos esqueçamos de que seremos medidos por Deus com a mesma medida que nós adotemos para com nosso próximo. Aquele que não perdoa “de todo o coração” (Mt 18, 35) não obterá para si o perdão de Deus (cf. Mt 6, 14–15). e) Consolar os tristes 1. Quem não ca triste alguma vez? A tristeza é uma paixão que se experimenta diante da presença do mal que recaiu sobre nós. 2. Há cada vez mais tristeza no mundo, porque há cada vez mais misérias e menos amor para aliviá-las. São legião as almas que perderam o entusiasmo pela vida e jazem sepultadas em tristeza e abatimento mortal. 3. Algumas palavras carinhosas e amáveis, brotadas do íntimo do coração, podem devolver a paz e a alegria de viver a muitas dessas almas destroçadas, sobretudo se aquele que consola se inspira em motivos sobrenaturais. Não há nem pode haver consolo mais radical e profundo que um olhar para o céu através do cristal de nossas lágrimas...

f) Sofrer com paciência os defeitos de nossos próximos 1. A paciência é uma virtude indispensável para a convivência humana pací ca. 2. Todos temos uma multidão de defeitos que incomodam nosso próximo, e é preciso que saibamos tolerar-nos mutuamente se não queremos transformar a vida social em contínua ocasião de amarguras e desgostos. 3. São Paulo insiste na necessidade de suportar-nos uns aos outros com caridade, solícitos em conservar a unidade de espírito mediante o vínculo da paz (Ef 4, 2–3). g) Rogar a Deus pelos vivos e defuntos 1. A caridade cristã deve ser universal, ou seja, deve estender-se a todas as criaturas capazes de conhecer e amar a Deus. Por isso não pode excluir absolutamente ninguém, exceto os demônios e condenados ao inferno, que não amam nem querem amar a Deus. 2. Mas é evidente que, em relação à imensa maioria dos homens que ainda vivem neste mundo e, inclusive, em relação às almas do purgatório, só podemos praticar nossa caridade pela via da oração, único meio para nos colocar em contato com eles. 3. Logo, a oração pelos vivos e defuntos é uma excelente obra de misericórdia, mas também uma exigência indeclinável da caridade cristã. 4. Com relação aos vivos, sem excluir absolutamente ninguém, temos de rezar especialmente pelos mais necessitados (os pagãos, os hereges e pecadores, os moribundos, etc.) e pelos mais próximos de nós (parentes, amigos, compatriotas, etc.). 5. Temos de rezar também por nossos benfeitores, e até mesmo por nossos inimigos,

para exercer sobre eles a sublime vingança do cristão: devolver o mal com o bem. 6. Com relação às almas do purgatório, devemos oferecer nossas orações e sufrágios por todas em geral, mas de maneira especial por nossos familiares e amigos, e por aqueles que talvez estejam ali devido aos maus exemplos que receberam de nós. Mas isto veremos mais detidamente em outro artigo.

11. A caridade com os que sofrem 214. 1. A dor é um beijo de Deus nas almas. Sobre cada um de nós, tal como sobre Cristo, foi escrito: “É necessário que padeça tudo isto para entrar em sua glória” (Lc 24, 26). 2. Deus está perto daquele que sofre, mas quantos fecham a porta diante desse novo chamado! Tudo vai bem quando a pessoa é feliz; com a dor, surge a primeira interrogação diante de Deus. 3. Só existem dois caminhos: ou sofrer por Deus ou rebelar-se contra Ele. E aqui começa nossa missão junto àquele que sofre. 4. “Cristo está em agonia até o m do mundo. Não podemos dormir” (Pascal). É Ele quem sofre em seus membros. Como o anjo no Getsêmani, devemos nos aproximar dele para o consolar. i. Aqueles que sofrem a) No corpo 1. Dor da enfermidade, vendo o corpo transformar-se em ruínas...

2. Dor da pobreza: mães que esperam o dinheiro que não chega quando os lhos pedem pão... 3. Presidiários, sem lar, sem pátria... b) Na alma 1. Viúvas sem ilusão, sem horizonte... 2. Lares vazios... Um caráter difícil... 3. Remorsos, vergonha, desespero... Pessoas que sacri caram a justiça, a honra, a própria fé... 4. Dor da separação quando a morte chama; da perseguição, do abandono... ii. Nossos deveres para com os que sofrem a) Ver Cristo neles 1. Cristo continua sendo pobre, como em Nazaré, traído como no Getsêmani. “Porque tive fome... estive enfermo...”. 2. Não havia lugar em suas carnes para todas as chagas, nem em sua alma para todas as amarguras. O cálice de sua dor estava transbordante, e Ele precisou de um Cireneu. É isto que são aqueles que sofrem: Cireneus com Cristo a caminho do Calvário e... da ressurreição. 3. Relíquias da Cruz de Cristo, adoradas em preciosos relicários. Um enfermo em sua cama, um operário em seu duro trabalho, uma criança abandonada, um inocente perseguido... Esta é a verdadeira Cruz de Cristo. b) Que faríamos a Cristo? É

1. É Ele quem diz: Tenho fome, tenho sede... Não deixará sem recompensa nem mesmo um copo d’água... “porque tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; fui peregrino e me acolhestes; estava nu e me vestistes; doente, e me visitastes; preso, e viestes ver-me” (Mt 25, 35). 2. Pobre Cristo sofredor, carregado com a cruz de tantos homens que não o querem levar! Nós não vamos ajudá-lo? Levemos, pois, a nossa própria cruz, e ajudemos os nossos irmãos... 3. Cristo quer consolar a todos: Ex iis quae passus est didicit oboedientiam (Hb 2, 18). Entendeu como é duro obedecer quando o sofrimento se impõe. E para quê? Ut misericors et (ibid., 17). O sofrimento fez dele o salvador e o consolador de todos os infelizes. E hoje Ele escolhe a ti para que realizes essa suave exigência de seu coração. iii. Maneiras de ajudá-los a) Ensinando-lhes o verdadeiro sentido da dor 1. Quantas lágrimas inúteis e sem fruto! Cruzes de maldição, cravadas mais profundamente no ombro que as repele! Não basta sofrer: é necessário saber sofrer. 2. Cristo elevou o cristão a uma ordem divina; elevou também sua dor. Que graça para a alma que Ele escolhe para ser também redentora! Mas não é redentor aquele que está em pecado, nem aquele que sofre sem pensar no Redentor. 3. Nada se perde no Corpo místico: mais cedo ou mais tarde, tudo terá sua ressonância. Aí está o verdadeiro horizonte de quem sofre, não os estreitos limites de si mesmo. b) Consolando-os

1. A dor no abandono é atroz. Cristo levou os discípulos até o Getsêmani e eles adormeceram... Precisou de um anjo... 2. A Virgem sentiu em seu coração o doloroso chamado de seu Filho. Então, não pôde ajudá-lo, mas agora o ajuda em todos os que sofrem. 3. Deus escolhe a ti para que leves esta mensagem de alegria, que não é tu mesmo, nem a tua esmola, mas acima de tudo a presença de Cristo e o consolo de Maria. Quando surgir na alma desesperada a pergunta: “Por que a dor?”, que eles ouçam Cristo a dizer-lhes: “Por que eu fui traído, escarnecido, morto em uma cruz?”. Era preciso para redimir o mundo, e temos de completar em nós o que ainda falta para sua redenção (cf. Cl 1, 24). c) Amando-os 1. O ideal é “sofrer com os que sofrem e alegrar-se com os que se alegram”. E só o amor pode fazer isto. 2. Também nós temos nossa dor e nossas preocupações. Mas Cristo, a caminho do Calvário, se esquece de sua Cruz para consolar aquelas piedosas mulheres. 3. Que a possibilidade de tamanho fruto não seja frustrada por nossa negligência: a) A dor puri ca nossos pecados e os dos outros. Ela faz falta para restabelecer o equilíbrio da balança divina, desequilibrada pelo pecado. b) A dor faz pensar no destino eterno: tudo ia bem. Não precisávamos de Deus... Mas quando tudo desaparece, só Ele resta. c) A dor nos con gura com Cristo, tornando palpável o nosso nada.

Conclusão 1. Diante da nossa dor e da alheia, pensemos: a) Ainda existem muitas áreas não redimidas no mundo e na própria alma. Portas que não se abrem, a não ser pelo forte chamado do sofrimento. b) “O sofrer passa; o ter sofrido bem jamais passará” (Cura d’Ars). 2. Trata-se de entrar na glória, não como simples herdeiros, mas como conquistadores. É preciso combater: horas de angústia, de preocupação. 3. Mas deve ser uma dor consciente, aceita com alegria, por Cristo. 4. E aí está a missão do cristão: amar como Cristo amou, até se esquecer da própria dor. Ajudar com sua esmola, mas que o coração a acompanhe. Levar como uma mensagem de alegria a presença de Cristo, de Maria... Abrir diante de quem sofre o imenso horizonte da dor cristã redentora.

12. A caridade com os defuntos 215. a) Atualidade do tema 1. Precisamente porque as preocupações da vida chegaram a nos absorver tanto, esquecemo-nos facilmente de nossos defuntos. 2. Porque, erroneamente, quando uma pessoa morre cristãmente, muitos julgam ser mais piedoso supor que ela foi para o céu,

dispensando-se assim dos sufrágios. 3. Porque os cemitérios cristãos e as “necrópoles” pagãs recebem cada dia 250.000 novos cidadãos, dos quais: a) Alguns, poucos, passarão imediatamente ao céu. b) Outros — não sabemos quantos — descerão ao inferno. c) Mas é crível que a imensa maioria deverá sofrer profunda puri cação no compasso de espera do purgatório. b) Sentido positivo do tema 1. Ajudar as almas do purgatório é uma das obras de caridade mais excelentes. 2. É um modo de recordar o lado efêmero de nossa passagem por este mundo, e um forte estímulo para nos prepararmos mais conscientemente para a hora da morte. 3. É um modo de continuar com os sentimentos de piedade e gratidão que, em vida, tivemos por aqueles que se foram. i. Podemos ajudá-los a) Está de nido pela Igreja 1. Concílio de Trento: “As almas retidas no purgatório podem ser ajudadas pelos sufrágios dos éis e, principalmente, pelo Santo Sacrifício do Altar” (D. 983). 2. O Concílio Vaticano nº 49–50).

novamente o con rmou (De Ecclesia,

b) É uma verdade incluída no dogma da Comunhão dos Santos

1. Existem três províncias confederadas do reino de Cristo, três regiões ou estágios na única Igreja: a) A Igreja militante, dos que vivemos na terra, lutando contra o demônio, o mundo e a carne por nossa salvação eterna. b) A padecente, integrada por todos os que se puri cam no purgatório. c) E a triunfante, o céu, o reino dos bem-aventurados. 2. Estas três regiões estão em ininterrupta comunicação, e o o condutor que as enlaça é a oração: a) Tanto a oração expressa: aquela formulada por um ato da mente e da boca, pedindo a Deus um bem; b) Como a oração que os teólogos chamam de interpretativa: o clamor e a exigência perante a misericórdia de Deus, dos méritos dos santos e de toda ação boa feita em estado de graça. 3. A corrente divina que vivi ca estes três estágios é a caridade — o amor a Deus, ou ao próximo por Deus —, que é o vínculo de perfeição. 4. Os geradores desta corrente divina são: a) Os méritos superabundantes de Nosso Senhor Jesus Cristo, que nos são aplicados principalmente pela Santa Missa e pelos sacramentos. b) Os da Santíssima Virgem, nossa Mãe e Co-redentora. c) Os do exército inteiro dos santos e bem-aventurados. d) Mas também nossas próprias orações e boas obras: nada se perde daquilo que se faz em Deus e por Deus.

5. Somente os condenados estão desconectados: é inútil e ímpio rogar por eles. ii. Devemos ajudá-los a) Pelos motivos gerais da caridade universal 1. Os habitantes do purgatório são nossos irmãos, lhos de Deus e herdeiros da mesma glória. 2. Estão em grande necessidade: portanto, ajudá-los é obrigatório por caridade, já que sofrem tormentos atrozes e não podem fazer nada por si mesmos. 3. Ninguém pode escusar-se desta ajuda: todos podem prestá-la, até mesmo os pecadores, pois em seus lábios a oração tem e cácia impetratória (não meritória). b) Por motivos especiais: a piedade e a justiça o reclamam 1. A piedade: todos temos deveres de afeto e serviço a nossos familiares (pais, irmãos, parentes...) e até à pátria. Quem não tem algum parente falecido? 2. A justiça: a) Porque eventualmente podem ser obrigações estritas impostas ao herdeiro pelo testador. b) Porque às vezes é o melhor modo de agradecer. c) Porque talvez algumas almas estejam no purgatório devido, em parte, ao nosso escândalo ou mau exemplo, e não há meio melhor para reparar o dano causado. c) Por motivos particulares: nosso próprio interesse o exige

1. Nesta vida, atraímos muitas graças para nós mesmos por esta obra de caridade: a) De Deus, por ter procurado sua maior glória. b) De Cristo, que deseja livrá-las de tal pena e levá-las para reinar consigo: pede apenas a esmola de nossa oração. c) De Maria, Mãe deles e nossa, e de todos os santos, que se alegram com cada novo irmão que lhes nasce para o céu. d) Das próprias almas que, uma vez libertadas, intercederão e cazmente por nós. 2. No purgatório: porque é crível que, na aplicação dos sufrágios, seremos medidos com a mesma medida com a qual tivermos medido os outros na vida presente. 3. No céu: porque cedemos às almas do purgatório o valor satisfatório e impetratório de nossas orações, mas o mérito é nosso: ao dar qualquer tipo de esmola, na verdade somos nós que enriquecemos. iii. Meios e cazes a) Princípio teológico Como pena do pecado, Deus exige uma compensação dolorosa ou algo que traga consigo o fruto da dor. A justiça de Deus exige que o sofrimento volte a equilibrar aquilo que o prazer desordenado desnivelou. b) Em particular 1. A Santa Missa, fruto e renovação da Paixão de Cristo. Ela tem, em si, um valor in nito, mas se aplica em medida limitada. 2. A Comunhão, estímulo vivíssimo de nossa caridade e merecedora de múltiplas indulgências.

3. A oração (Rosário, Via Sacra, etc.), meio universal e e cacíssimo, ao alcance até dos pecadores. Possui duplo valor: impetratório (perante a misericórdia e a liberalidade divinas) e satisfatório (perante sua justiça). 4. Todo sacrifício e esmola, todo trabalho oneroso que, animado pela caridade, é de grande valor satisfatório.

QUINTA PARTE | VIDA FAMILIAR 216. Um dos elementos mais importantes e fundamentais da espiritualidade do leigo é constituído, sem dúvida alguma, pela santi cação própria e dos seus, no seio de sua própria família natural. A santi cação da família é de tão capital importância que, sem ela, não se poderia nem mesmo conceber uma autêntica e verdadeira espiritualidade secular. Por isso estudaremos este fundamentalíssimo aspecto com a máxima amplitude que nos permite o marco geral de nossa obra. Para proceder com a maior ordem, clareza e precisão que nos for possível, dividiremos o amplíssimo panorama da família em quatro seções fundamentais: 1ª — A família cristã em geral. 2ª — Os membros da família cristã. 3ª — A educação dos lhos. 4ª — O lar cristão. Cada uma destas seções terá suas divisões correspondentes em capítulos, artigos ou números, segundo o permita ou exija a matéria correspondente.

PRIMEIRA SEÇÃO | A FAMÍLIA CRISTÃ EM GERAL Nesta primeira seção, examinaremos à luz da razão natural e, sobretudo, da divina revelação, os principais aspectos que manifestam a sublime grandeza e santidade da família cristã conforme o seguinte programa: 1. A família, imagem da Trindade. 2. A família, obra de Deus. 3. O amor conjugal vem de Deus. 4. Dignidade e grandeza da família cristã. 5. A família, a sociedade humana e a Igreja. 6. Inimigos da família.

1. A família, imagem da Trindade 217. Se quiséssemos remontar à escala analógica dos seres até a origem fontal e ao modelo divino da família cristã, teríamos que elevar-nos, tremendo de respeito, ao insondável mistério da vida íntima de Deus. De fato, a divina revelação nos deu a conhecer aquilo que a simples razão humana, entregue a si mesma, jamais teria podido suspeitar. Existe em Deus uma trindade de pessoas que, sem

nenhum prejuízo para sua essencial e simplíssima unidade, constituem uma autêntica e verdadeira família divina. O Pai, por uma misteriosa geração intelectual, gera um Filho que é o esplendor de sua própria essência, a Idéia in nitamente perfeita que forma de si mesmo, Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro; e da mútua e amorosíssima contemplação entre ambas as Pessoas Divinas brota — por via de procedência — o Espírito Santo, Amor substancial, Laço de união, Beijo in nito, que fecha o ciclo trinitário e consuma as três Pessoas Divinas na unidade de uma mesma e única essência. Tal é, em suas linhas fundamentais, o mistério da família divina que constitui a vida íntima de Deus. In nitamente feliz em si mesmo,268 e sem que as criaturas pudessem acrescentar-lhe absolutamente nada, Deus, contudo, não quis encerrar-se em um eterno isolamento no seio de sua própria essência. Sabemos que “Deus é amor” (1Jo 4, 8.16), e o amor é em si mesmo difusivo. A Criação é um ato libérrimo por parte de Deus, já que não tinha obrigação alguma de criar,269 mas está em perfeita consonância e harmonia com a natureza difusiva do amor. Entre todas as criaturas, somente o homem e o anjo foram criados à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26). Esta imagem, na ordem puramente natural, consiste em que o homem, à semelhança de Deus, está dotado de inteligência e vontade. Santo Agostinho, com sua habitual perspicácia, soube expressá-lo em um texto esplêndido. Falando com o homem, escreve a Águia de Hipona:270 Nada te separa do animal, exceto o entendimento; não queiras gloriar-te de outra coisa. Presumes tua força? És superado pelas feras. Glorias-te de tua rapidez de movimentos? Pois até as moscas te vencem nisto. Orgulhas-te de tua beleza? Muito maior existe nas plumas do pavão real! Onde está o teu verdadeiro valor? Em ser imagem de Deus. E como és imagem de Deus? Por tua alma e teu entendimento.

De fato, as criaturas irracionais participam da perfeição divina unicamente enquanto têm o ser, e essa tão remota semelhança se chama pegada ou vestígio de Deus, como o rastro que o

caminhante deixa ao pisar na neve. As criaturas racionais — o homem e o anjo —, enquanto dotadas de entendimento e de vontade, constituem uma imagem natural de Deus. Homens e anjos, nalmente, enquanto participam da mesma natureza divina pela graça, são chamados, e são propriamente, imagem sobrenatural de Deus, ou seja, do Deus uno e trino que a divina revelação nos dá a conhecer. Ora, um re exo admirável desta imagem e semelhança de Deus, tanto na ordem natural quanto na sobrenatural, nós o encontramos no seio da família cristã. Ouçamos a Pio :271 O homem, obra-prima do Criador, é feito à imagem de Deus (Gn 1, 26–27). Ora, na família, esta imagem adquire, por assim dizer, uma peculiar semelhança com o modelo divino. Tal como a unidade essencial da natureza divina existe em três Pessoas distintas, consubstanciais e coeternas, assim também a unidade moral da família humana se atualiza na trindade do pai, da mãe e de sua prole.

Um autor contemporâneo — acertadamente a este propósito:272

Eloy

Devaux



escreve

Que o homem seja criado à imagem divina, indica acima de tudo a sua possibilidade de doação, e exige a presença de um companheiro a que se doar. Somente em uma sociedade humana de membros entregues um ao outro, com o dom mais pleno, se aperfeiçoa a imagem da Trindade. “Deus quer que a unidade do gênero humano represente o mais elmente possível a unidade das Pessoas Divinas. Em Deus, o Filho procede do Pai, e o Espírito Santo aparece como o fruto, a coroa e o cetro de sua união”.273 Para a Trindade, fazer o homem à sua imagem é criar o casal humano fecundo. Não se trata, contudo, de que essa fecundidade deva limitar-se a um único lho, já que se trata de multiplicar-se e encher a terra (Gn 1, 28). É preciso, ao contrário, que o absoluto divino se re ita por toda parte em uma multidão de imagens de cientes, não só no esposo e na esposa, no pai e na mãe, no lho ou na lha, mas também no irmão e no amigo. Todas estas relações de amor, com seus matizes próprios, são necessárias para representar a riqueza uni cada do Deus-Amor, necessárias também para assegurar a felicidade do homem.

E um pouco mais abaixo, ainda acrescenta o mesmo autor: O homem e a mulher são de tal modo complementares que devem chegar, sob a moção do amor divino, a formar um único ser humano completo, concreto, apesar de sua dualidade irredutível: dois, mas uma só carne à imagem de Deus, uno em três pessoas.

Desta sublime doutrina — da Trindade Beatíssima como protótipo e modelo da família cristã — derivam, imediatamente e sem esforço, conseqüências transcendentais para a espiritualidade dos leigos em torno deste primeiro aspecto de sua vida familiar. Vejamos algumas delas:274 A vida familiar intradivina é o modelo de toda vida familiar; a família trinitária é e deve ser o modelo e o ideal de todo lar constituído. Ergamos nossos olhos para esta bem-aventurada família divina que Jesus nos revelou. Isso não é buscar o nosso modelo alto demais, já que os homens devem imitar a vida do próprio Deus, e é justamente para re etir essas perfeições da vida divina em seus costumes que os lhos de Deus recebem a graça (cf. Mt 5, 48; 2Cor 3, 18). Grande revelação cristã, e que aparece na vida trinitária: a alegria não se encontra em ter, mas em dar. Não na apropriação nem na divisão, mas no gozo em comum de todos os bens. “Não há nenhuma alegria sem participação”, diz o Filósofo. “Há maior felicidade em dar que em receber”, disse Jesus (At 20, 35). “Tudo aquilo que não se dá, se perde”, acrescenta um provérbio hindu. Em Deus nada se perde, porque tudo se dá. O Pai não retém nada para si. Não existe nada maior nele do que o ser Pai, e é na doação de si mesmo, gerando a seu Filho de seu todo, que se realiza a sua paternidade. É dando sua vida que Ele a encontra; sem o Filho, o Pai não existe. Tampouco o Filho tem em si qualquer coisa de próprio, além de ser Filho, aquele que tem tudo do Pai e não pretende possuir como próprio nada além de sua feliz atitude de dependência con ante e lial face a face com o Pai. E o Espírito Santo, que procede de ambos, não tem outra alegria exceto a de ser o laço de amor entre ambos; e está inteiramente, sem divisão, em cada um deles. Oh! Que admirável família e que alegria nela contemplar as leis que tornam um lar alegre, o protótipo das regras imutáveis que podem fazer de uma vida familiar uma vida feliz! A comunidade perfeita na posse dos bens, já dissemos. A alegria do Pai é a alegria do Filho; a alegria do Filho é a alegria do Pai; e a alegria que se proporcionam mutuamente é a alegria do Espírito Santo, é o Espírito Santo. Igualmente, as famílias criadas só serão felizes se as pessoas que as compõem souberem imitar a total generosidade das Pessoas Divinas, se souberem colocar para sempre a sua felicidade na alegria dos que estão unidos a elas... A sabedoria (mundana), na vaidade de sua loucura, deseja fazer da “autarquia”, da independência, uma condição de felicidade. A contemplação de teu esplendor, Trindade Bem-aventurada, nos revela que a felicidade da vida está em depender, em permanecer vinculado. E da indissolubilidade, da intimidade do vínculo, depende a intensidade e a totalidade da felicidade. Para assegurar nossa alegria, “para que nossa alegria permaneça”, é que exiges a indissolubilidade e a unidade de nossos matrimônios. O Amor, para ser tal, exige a eternidade.

Contemplando-vos, Trindade Divina, admiramos que a vida bem-aventurada consista não na busca do bem pessoal, mas da entrega de si; que uma família somente seja feliz na medida em que cada um se esqueça de si mesmo e só exista para os outros membros de seu lar.

2. A família, obra de Deus 218. O relato bíblico da Criação culmina e atinge seu máximo expoente na formação do primeiro homem e da primeira mulher, com a imediata instituição divina do matrimônio como contrato natural, que dá origem à família humana. Ouçamos a própria palavra de Deus: Então, Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem e à nossa semelhança, para que domine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre o gado e sobre os animais da terra, e sobre todo animal que se move sobre ela”. E Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus os criou, e os criou varão e fêmea. E Deus os abençoou, dizendo-lhes: “Procriai e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a, dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre o gado e sobre tudo quanto vive e se move sobre a terra” (Gn 1, 26–28). Tomou, pois, Deus o homem e o pôs no Jardim de Éden para que o cultivasse e guardasse, e lhe deu este mandato: “De todas as árvores do paraíso podes comer, mas não comas da árvore da ciência do bem e do mal, porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás”. E disse Deus: “Não é bom que o homem esteja só; vou fazer-lhe uma ajuda adequada a ele”. E Deus trouxe para diante do homem todos os animais do campo e todas as aves do céu que ele formara da terra, para ver como os haveria de chamar, e para que o nome de todos os seres vivos fosse aquele que ele lhes desse. E o homem deu nome a todo o gado, e a todas as aves do céu, e a todos os animais do campo; mas entre eles não havia para o homem uma ajuda semelhante a ele. Então, Deus fez cair sobre o homem um sono profundo; e, adormecido, tomou uma de suas costelas, fechando o local com carne, e da costela que tomara do homem, Deus formou a mulher, e apresentou-a ao homem. O homem exclamou: “Isto sim, é osso de meus ossos e carne de minha carne. Ela se chamará varoa, porque do varão foi retirada”. Por isso o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher, e virão a ser os dois uma só carne (Gn 2, 15–24).

Comentando esta sublime página do Gênesis, escreve com sua peculiar maestria o insigne Cardeal Gomá:275 Foi o próprio Deus que fez a família. Por isso ela traz em suas entranhas algo da imutabilidade e da eternidade do próprio Deus, dentro da variabilidade das coisas humanas. A mesma família, através dos séculos, mudará seu modo de ser: se organizará em tribo ou se desmembrará em grupos irredutíveis; será nômade ou estável; sofrerá deformações ou transformações na ordem civil, política ou econômica, conforme os povos. Naquilo, porém, que a natureza lhe deu como constitucional, e Deus rati cou ao criá-la, a família perdurará tanto quanto a vida humana no mundo. Deus havia formado Adão do barro da terra, não sem antes ter pronunciado uma palavra solene, majestática, como para dar a entender a elevação do ser que iam produzir as suas divinas mãos: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança”... Mas Adão estava sozinho no paraíso, e Deus ia constituí-lo como chefe de uma família. Não era pai, porque não tinha lhos, nem os podia ter; não era esposo, porque não tinha esposa; não era irmão, porque era único e não tinha pai. “Não convém que o homem esteja só”, disse Deus. “Façamos para ele uma ajuda semelhante a ele”. E sob as frondes do paraíso, à ordem de Deus, veio a Adão um sono, um fecundo êxtase, porque dele haveria de extrair sua própria fecundidade. O primeiro homem, nas iluminações daquele misterioso torpor, veria a Deus, o mesmo Deus que acabava de lhe insu ar o espírito vital e enchê-lo da vida divina; vê-lo-ia aproximar-se e arrancar dele algo próximo do coração e transformá-lo em um ser como ele, esplêndido, também cheio da vida de Deus, da justiça, da santidade, da retidão da verdade. E veria em seguida, no distanciamento dos tempos, milhares e milhões de seres humanos que giravam em torno dele e dela — daquela que fora formada de um osso de seu lado —, e que diziam através das gerações: Pai! Mãe! E Adão percebia que ele e ela eram o puro manancial de onde brotava a vida humana, que devia engrossar suas águas, que encheriam toda a terra. E Adão despertou e viu a seu lado — formosa, com a formosura da virgindade presente, com a formosura da maternidade futura e, sobretudo, com a formosura que nos agrada ao nos vermos retratados — a nova criatura humana que devia ser complemento de seu ser e de sua vida. Momento único na história da humanidade, em cuja evocação Lacordaire cava absorto, o momento do despertar do primeiro homem para se encontrar com os encantos da primeira mulher! O pensamento primevo de Adão penetrou nos mistérios da vida humana, sentiu o alvoroço da futura paternidade no fundo de sua alma, e os Jardins do Éden, os próprios anjos do céu, viram o primeiro sorriso que se produziu naquele idílio, perfumado com os aromas da santidade e da inocência humanas que acabavam de sair das mãos de Deus. E o próprio Deus se apresentava ao primeiro casal para abençoar o primeiro himeneu, e assentar os alicerces da primeira família humana: Abençoou-os, dizendo: Crescei e multiplicai-vos: eis aqui a glória da família. E enchei a terra: eis aqui a glória da sociedade humana que resultará da família. Esta é a elevada origem da família: obra do pensamento, das mãos, das divinas complacências do Supremo Criador. Por isso a família não morrerá enquanto durarem

os séculos humanos. Por isso, nos séculos convulsos da história, como nos dias de Noé e nas prevaricações de Sodoma, como na derrocada do Império Romano e como na Revolução Francesa, e nos furores da Rússia soviética de hoje, quando virdes o mundo transformar-se em pântano, ou erguer-se o gênio da destruição social que, como o anticristo do Apóstolo, “se levanta sobre tudo o que se chama Deus, ou é adorado como Deus” (2Ts 2, 4), temei os atentados contra a santidade da família, contra os direitos e deveres de seus indivíduos, contra sua forma circunstancial de ordem civil ou política, mas não temais pela instituição mesma da família. Esta ressurgirá das ruínas sociais, curará as feridas que lhe causarem as revoluções ou o transbordamento das paixões humanas. Deus não consentirá que sua obra seja destruída. Jamais faltarão ataques contra a própria essência da família. Nunca faltarão portavozes do amor livre, dos matrimônios sem lhos, da emancipação destes em favor da tutela do Estado, da redução de todo indivíduo humano à categoria de um número que se incorpore diretamente, como a molécula ao corpo, à grande massa social. Mil vezes leis opressoras puderam debilitar o fato e ofuscar o conceito da família. Mas as violências não duram; e Deus conduz de tal forma as coisas humanas, que a família reconquista o lugar de grandeza e respeito que o próprio Deus lhe assinalou no mundo humano.

3. O amor conjugal vem de Deus 219. Sem chegar aos excessos do maniqueísmo — que condenava o matrimônio como pecaminoso —, é preciso reconhecer que houve épocas na história da Igreja em que o amor conjugal e o próprio matrimônio eram considerados como um estado de vida radicalmente imperfeito, ao qual, por isso mesmo, deveriam renunciar generosamente todos os que aspirassem seriamente à perfeição cristã. “A Patrística”, escreve a este propósito Cabodevilla,276 é farta em frases depreciativas para o estado conjugal. Nele, alguns Padres não vêem mais que as realizações carnais, que se apressam em chamar de grosseiras. A concupiscência, que é uma ordem de criação, aparece como concupiscência malsã, e o prazer nos torna impuros. Boa parte do pensamento espiritual da Idade Média bebeu dessa corrente ameaçadora e quase maniqueísta.

A Igreja, no entanto, jamais incorreu em tamanhas aberrações doutrinais: “É preciso confessar”, escreve ainda Cabodevilla,277 que a Igreja, em seu supremo Magistério, sempre defendeu a dignidade e a santidade do matrimônio, e agelou com determinação os desvios excessivamente “puristas” dos encratitas, gnósticos, montanistas, novacianos e priscilianistas que foram surgindo ao longo da história. Todos eles execraram o matrimônio como obra do diabo e propugnaram a perfeita continência como requisito de salvação. Contra todos eles ergueu-se oportuna e enérgica a voz da Igreja, já desde o Concílio de Nicéia, motivada pelos exageros de Orígenes. O corpo é bom, seu uso é honesto; e a liturgia nupcial, magní ca e laudatória. O contrário é heresia.

É precisamente no amor conjugal onde se pode dizer que Deus está presente de maneira necessária e especialíssima, sobretudo no momento em que se vai gerar uma vida nova, já que a alma a ser infundida no novo ser procede diretamente de Deus por criação, como ensina a doutrina católica (D. 2327). Neste sentido, até em suas exigências mais instintivas e vitais, o amor humano revela sua origem religiosa e sua vocação divina. Não é de estranhar que o Pe. Mersch pôde escrever estes esplêndidos parágrafos em elogio ao amor:278 Ousemos começar por um elogio do amor. É um dever. Os sacerdotes do Senhor estão aqui para reivindicar aquilo que pertence ao Senhor. Ora, o amor é d’Ele, vem d’Ele: Amor ex Deo natus est. Seríamos culpáveis de prevaricação se deixássemos que arrancassem a auréola desta coisa divina. As infâmias dos homens, as vilezas a que foram levados pelo espírito impuro, a própria concupiscência, não muda em nada a essência das coisas. O amor vem de Deus. Em seu amor pelos homens, Deus teve a con ança e o respeito de remeter-se a eles para a conservação de sua espécie. Ao criá-los com o instinto da conservação individual, depositou em seu ser outra tendência quase igualmente enérgica, e quase formando um mesmo corpo com eles. Falamos do amor conjugal, do instinto de conservação da espécie. Sobre a palavra instinto, convém não se equivocar. Ela é usada aqui somente para expressar o quanto esta tendência é espontânea, não para limitá-la à psicologia inferior. Este amor, por ser essencialmente humano, é ao mesmo tempo uma reação corporal e um ato da alma e da vontade. Ele é antes de tudo um ato da alma, porque o homem é, antes de tudo, espírito; porque a alma é, no homem, aquilo que o torna homem... É preciso notá-lo de uma vez para sempre: quando se trata do homem, falar de um ato da espécie é falar de um ato necessária e superiormente espiritual. Entre nós, o papel do amor é muito elevado. Enquanto as demais atividades naturais só produzem coisas, ele

é chamado a gerar o homem, e dele Deus espera aqueles que serão seus adoção.

lhos de

Em nenhuma outra atividade — de ordem natural, como claramente se compreende — está comprometida a este ponto a cooperação divina. A ação procriadora implica, por assim dizer, uma cooperação criadora, já que o lho, seu termo, não pode existir sem alma, e só Deus pode criar as almas. Desde já, o que vamos dizer parecerá estranho. Mas não é mais que um modo particular de apresentar uma verdade inteiramente tradicional, e esta verdade, vista por este ângulo, é demasiado necessária para que a deixemos de mostrar. Em nenhum lugar — sempre na ordem natural — Deus está tão presente como ali. Porque em nenhuma parte é tão imediata a sua atividade. Além disso, por si mesmo, por sua natureza, o amor é uma coisa sagrada e um elemento de religião. Desde já, também se vislumbra a conveniência de que, na religião revelada, fosse o matrimônio um sacramento. Amor ex Deo natus est. Então, o amor é coisa de Deus. Pecar contra ele é pecar contra Deus, e é exatamente ali onde o próprio Deus está mais presente — repitamo-lo — na ordem natural. Pecar contra o amor é também pecar contra a raça, contra esta humanidade que Deus fez à sua semelhança, e que Ele amou até o ponto de entregar seu Filho único. De fato, o amor é o ato da espécie, já que está essencialmente destinado a perpetuá-la, de modo que por ele, no indivíduo, é a espécie que se realiza e atua, na medida em que ela pode ser realizada e atuar.

4. Dignidade e grandeza da família cristã 220. Pelo que já dissemos, já se vislumbra com toda a clareza a soberana grandeza e a sublime dignidade da família como algo sagrado mesmo do ponto de vista puramente natural, prescindindo do caráter sacramental do Matrimônio cristão. Por muito pobres que sejam os contraentes, em uma aldeia humilde, sem fausto nem acompanhamento de ninguém, o matrimônio é uma maravilha do amor de Deus pelos homens. A família é

imagem da Santíssima Trindade, como já vimos acima. Os pais são os colaboradores da obra criadora, redentora e santi cadora da Trindade. O matrimônio — sobretudo o cristão — possui algo de divino em seus princípios (é um sacramento) e é eterno em suas conseqüências (vai formar os futuros cidadãos do céu). O Cardeal Gomá escreveu a este propósito belíssimas páginas em sua celebrada obra La familia. Transcrevemos a seguir alguns parágrafos admiráveis:279 Olhai para a família. Dizei-me se, fora dos amores divinos da caridade, existe amor mais santo, mais pleno e mais fecundo que o amor dos esposos, o amor paternal, o amor lial, e este outro suave amor que nasce deles, o amor que os irmãos têm entre si. O amor é unitivo, e destes grandes amores que crescem com o mútuo contato, forma-se esta aliança de seres humanos, a família, verdadeira unidade de amor, que não tem nada semelhante no mundo, e que é o tipo de todas as associações de amor, mesmo o de ordem sobrenatural. Assim, a Igreja é a família de Jesus Cristo; e as ordens religiosas são outras tantas famílias, nas quais os indivíduos se chamam e se tratam como irmãos, e chamam de pai ou patriarca ao seu fundador; e as almas santas são as esposas de Deus, a quem chamamos Pai todos os que constituímos a grande família cristã. E como conseqüência destes amores, vede as grandes dores da família produzidas pela ruptura dessas cadeias de ouro que unem os seus membros, pelo rasgão que a separação, a enfermidade e a morte causam naqueles que viveram no mesmo lar e fundiram suas vidas no crisol tornado rubro pelos amores recíprocos. Que são as grandes dores da humanidade, senão a multiplicação das grandes dores da família? Assim, nessas catástrofes que chamamos de guerras, terremotos, fomes, esfacelamento das famílias, extinção dos lares queridos, está a dor do pai, do lho, do irmão, que se somam e multiplicam para encher toda a terra com sua voz. E se Deus pôs algum prazer no mundo, para que saibamos o que é prazer, e esperemos pelo prazer eterno que reservou para nós, onde o encontraremos — fora dos abraços da criatura com seu Deus —, senão na mansão dos prazeres honestos, que é a família? Ó mãe, que estreitas teu lhinho contra teu peito! Não trocarias tua felicidade por uma coroa de rainha. Ó pai, ó mãe, que sentistes os estremecimentos do castíssimo abraço que destes a vossos lhos já crescidos! Dizei-me se encontrastes felicidade que se assemelhasse à que sentistes. Ó esposos! Um dia, Deus quis ditar um poema, o Cântico dos Cânticos, no qual fossem descritas as delícias do amor espiritual entre Deus e o homem; e os heróis do poema foram dois esposos; e Deus teceu a trama com as cenas da vida conjugal; a própria forma do poema acabou sendo um epitalâmio, isto é, um cântico ao amor (Sl 132 [133], 1). Como é doce e venturoso viver entrelaçados pelo amor ao amor e à felicidade dos esposos! Ó irmãos! Que coisa deliciosa é viverem unidos muitos irmãos! — eu vos direi com o profeta cantor (Sl 132 [133],1). Como é doce e venturoso viverem abraçados pelo amor de fraternidade, colados como a hera orgulhosa em redor do senil tronco dos pais!

Vós, os pais, que já vistes os vossos lhos voarem de vosso lar; lhos, que chorais a morte ou que ansiais pela presença de vossos pais; irmãos, que fostes dispersos pelos acasos da vida; dizei-me se não guardais no fundo de vossas almas, como em um vaso sagrado, algumas gotas daqueles suavíssimos prazeres de família, cujo aroma aspirais para serdes reconfortados nas horas tristes da vida! Dizei-me, vós que sois cristãos, se nos momentos de desamparo não tendes sonhado com a renovação de uma felicidade coletiva, junto daqueles que um dia foram a vossa família, naquela mansão de eterna felicidade que é o céu! Mas todos estes fatores de grandeza da família são de ordem puramente natural. A família cristã é a obra de Jesus Cristo, e, como tal — uma vez que Jesus Cristo sobrenaturalizou tudo na vida humana —, foi elevada a uma divina grandeza de verdade. Insistamos no caráter religioso da família que já temos insinuado. A família, já o dissemos, é uma obra direta de Deus. E Ele, que quis engrandecê-la, desejou reservar-se o segredo e o poder desta grandeza. Porque na família existe algo que não pode subsistir — ao menos não com a perfeição e a durabilidade que exige a própria constituição da família —, sem um peculiar auxílio de Deus: é a santidade e a indissolubilidade do vínculo conjugal, sobre o qual se assenta a família, e a têmpera de alma, a constância heróica para superar as duras provas da vida em família, condição exata de sua coesão e estabilidade. Para cada caso em que a honradez natural dos cônjuges saiba evitar os perigos que oferecem à família os naturais eclipses da afeição mútua e as fraquezas que são lhas das contradições domésticas, haverá mil casos em que irão claudicar o coração e a vontade dos esposos, se não contarem com o auxílio especial de Deus. É que Deus, sendo o autor, quer assim ser o único sustento da família, fazendo nela, para si mesmo, uma inabitação especial em função dos elevados destinos desta instituição. Ai dos lugares onde Deus não tem o seu lugar! A história da família moderna, com todas as suas decadências, nos diz que o próprio Deus, e somente Deus, é quem dá à família a sua legítima grandeza.

221. Resumindo agora, em uma sintética visão de conjunto, os principais valores que fundamentam a dignidade e a grandeza da família cristã, oferecemos ao leitor um esquema publicado na coleção de Temas de pregação pela Faculdade de Teologia do Convento de Santo Estêvão de Salamanca, sob nossa direção pessoal.280 1. Quando xais vosso olhar nos hábitos dos monges, talvez vos assaltem pensamentos sombrios em torno do formidável problema do além:

a) Eles — os monges — vivem para Deus, são bons; vão salvarse... b) Nós — os do mundo — somos imperfeitos, talvez maus; talvez sejamos condenados... c) Eles — os monges — renunciaram a tudo, prometendo pobreza, castidade, obediência... d) Nós não renunciamos a nada: bem-estar, prazer, liberdade... 2. Entretanto, nada mais falso e anticristão que a negação da sublime grandeza da família cristã. Através destas palavras, queremos estimular a todos que sentem a vocação matrimonial: não é mais santo aquele que foge do mundo, mas aquele que mais agrada a Deus. Isto porque a família é grande: a) Se se considera a origem e o autor da mesma. b) Se penetramos nas entranhas de sua constituição. c) Se avaliamos sua transcendência social. i. Grandeza da família cristã em relação a Deus a) É santa 1. Porque Deus é seu autor. a) Santo = celestial, divino (quasi non terrenus). b) Deus, por sua própria natureza, é o ser santíssimo. c) Tudo que sai das mãos de Deus tem de ser santo, porque a Criação é um lampejo da divindade. d) E Deus criou a família humana: “Façamos o homem... crescei e multiplicai-

-vos”. Por isso ela é santa: “E nos fez à sua imagem e semelhança”. 1º — A família cristã é um re exo da grande família de Deus... 2º — A família cristã é a maior semelhança com a obra de Deus: símbolo da união de Cristo com sua Igreja. 2. Porque Cristo a santi cou. a) Com sua presença: aprovando-a em Nazaré, em Caná... b) Com sua redenção: elevando o contrato matrimonial a sacramento. c) Com seu preceito: abolindo para sempre o libelo de repúdio. 3. Por serem santos os seus membros. a) Os pais são os “sacerdotes” do lar: ministros do sacramento do Matrimônio, oferecem — devem oferecer — a Deus todos os dias o sacrifício de seus desvelos, de sua dor... b) Os lhos: regenerados pelas águas batismais, transformam-se em lhos de Deus. Presença divina que se torna mais efetiva quando pais e lhos vivem na graça, concordes em Cristo... c) Santos os seus membros, porque, mesmo quando enfermos, têm o preço de sangue, resgatados da escravidão para a santidade. 4. Porque a família é o grande templo de Deus. a) Santas são as boas obras da família. b) Santas são as tradições que protegem aquele lar. c) Santo é o próprio lar, porque nele Deus quer ser glori cado. b) É meio de santi cação

1. Escola de perfeição. a) Cristo elevou o matrimônio a sacramento para santi car a aliança entre o homem e a mulher. b) Desde então, a santidade da família está vinculada ao cumprimento dos deveres do próprio estado. 2. Muitas virtudes são exercitadas! a) O amor: nada de sensualidade nem de egoísmo disfarçado. Como entende São Paulo em sua carta aos Efésios: “Como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela” (Ef 5, 25). b) Abnegação: o sofrimento calado da esposa... o trabalho desconhecido, oculto, do pai de família... c) Humildade: submissão mútua... obediência voluntária... respeito carinhoso... d) Temperança e fortaleza: nos prazeres lícitos... na luta pela vida... e) Prudência e justiça: sois seres racionais com direitos e deveres... 3. O céu na terra. a) A Igreja abençoa o matrimônio e ensina que quem cumpre seus deveres matrimoniais se conforma à vontade de Deus. De fato, os casados se santi carão se souberem viver seu próprio “grande sacramento” (Ef 5, 32). b) A vida familiar (quando todos vivem na graça de Deus) é uma iniciação certa da felicidade eterna: paz, gozo, união, profunda alegria... Que panorama diferente quando se vive em pecado!...

ii. Grandeza da família em si mesma Isto se compreende ao valorizar os bens do matrimônio. a) Os lhos 1. A criação foi boa. Deus ordenou: “Crescei...”. Deus quer a conservação do gênero humano. 2. Os lhos são fruto desse preceito: a) São algo bom porque agradam a Deus. b) Um lar sem lhos é como um jardim sem ores. b) A união ou delidade 1. O coração humano precisa amar. Vedes uma pessoa retraída: amai-a e ela se entregará totalmente a vós. Só necessita que alguém corresponda a seu amor. 2. No Matrimônio cristão assegura-se o amor. No lar cristão sempre se acha uma esposa ou mãe com seus lhos, intimamente compenetrada pela chama sagrada do amor. c) O sacramento 1. Unindo para sempre essas vidas. Não estamos sozinhos no mundo!... 2. Proporcionando as graças necessárias para o desempenho de sua missão e para a salvação da alma. iii. Grandeza da família em relação à sociedade a) A família, princípio da sociedade 1. As nações dependem dos povos.

2. Os povos, das famílias. Destruí o lar e tereis destruído a sociedade. Pais, como é grande e nobre a vossa missão na terra! b) A família, fundamento da paz social 1. Os homens se afanam em busca da paz social. 2. Só na família cristã se pode encontrar a solução: a paz familiar trará a paz dos povos. 3. O grande remédio do mundo? A família cristã. Não se pode conceber uma grandeza maior.

5. A família, a sociedade humana, a Igreja 222. A família é a célula da sociedade humana, sem a qual esta última se tornaria impossível; e, em certo sentido, é superior ao Estado e anterior a ele por sua própria natureza. “São três”, escreve a este propósito Pio

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as sociedades necessárias, distintas, mas harmonicamente unidas por Deus, no seio das quais nasce o homem. Duas sociedades de ordem natural: a família e a sociedade civil; e outra de ordem sobrenatural, a Igreja de Cristo. Antes de tudo, a família, instituída imediatamente por Deus para um m próprio, que é a procriação e educação da prole, é uma sociedade que tem, por isso mesmo, prioridade de natureza e, por conseguinte, certa prioridade de direito em relação à sociedade civil. Contudo, a família é uma sociedade imperfeita, porque não tem em si todos os meios para o próprio aperfeiçoamento; enquanto isso, a sociedade civil é uma sociedade perfeita, pois encerra em si todos os meios para o próprio m, que é o bem comum temporal; daí se conclui que, a este respeito, ou seja, em ordem ao bem comum, a

sociedade civil tem preeminência sobre a família, que nela encontra sua conveniente perfeição temporal. A terceira sociedade, na qual o homem nasce por meio do Batismo para a vida divina da graça, é a Igreja: sociedade de ordem sobrenatural e universal, e sociedade perfeita, porque contém todos os meios para seu m, que é a salvação eterna dos homens, sendo, portanto, suprema em sua ordem.

A grandeza da família — sobretudo da família cristã — brota precisamente do fato de que dela procedem a sociedade civil e a própria Igreja. Ela, a família, proporciona ao Estado novos cidadãos, e para a Igreja novos lhos de Deus, que perpetuam através dos séculos a própria existência de ambas as sociedades. Suprimi a família e tereis dado um golpe mortal na sociedade civil e na própria Igreja de Cristo. Com razão o Cardeal Gomá pôde escrever em sua celebrada obra sobre a família:282 Não toqueis na família a pretexto de ser ela uma sociedade microscópica dentro da sociedade universal dos homens. O mal da família é o mal da sociedade; a morte da família é a morte da sociedade; tal como o mal e a morte das células vivas do corpo humano são a enfermidade e a morte do mesmo corpo. Deus quis que a sociedade não fosse somente o resultado da justaposição de muitas famílias, mas que se unissem entre si como por um princípio vital e se solidarizassem para os grandes ns da vida humana. Por isso o dano que se causa à família é um dano que se faz à sociedade.

E isto que se diz da sociedade civil também pode ser aplicado à própria Igreja enquanto sociedade sobrenatural. Sem a família, a Igreja seria impossível por falta de membros que a constituíssem. Por isso a Igreja sempre defendeu a instituição familiar e sustentou através dos séculos uma luta titânica contra seus inimigos, tanto na ordem dos princípios como na dos fatos. E a família, por um natural instinto de conservação e por dever de gratidão, tornou-se sempre uma espécie de santuário, onde a religião tem, depois do templo material, suas manifestações mais profundas, doces e e cazes.

*** 223. Ampliando um pouco estas idéias, oferecemos ao leitor, a seguir, em forma esquemática, um breve confronto entre a

comunidade em geral e a comunidade familiar e entre a família e o Estado.283 a) Comunidade em geral . : Comunidade é um organismo social que se refere aos homens no aspecto pessoal e íntimo. Assim, vemos que existem: 1. Laços de sangue: família, raça... 2. Vinculação a determinado solo: aldeia, cidade, terra... 3. Uniões na pro ssão em que vivem: fábrica, o cina... .

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1. Pode-se estabelecer uma dupla causa, que dá origem a duas classes de estruturas sociais fundamentalmente distintas: a) A comunidade brota das inclinações primárias e em virtude da natureza humana ou das relações pessoais do homem. b) A sociedade agrupa os homens somente enquanto são participantes de um m, e nele estão interessados. 2. Todo corpo social — exceto as sociedades anônimas — compreendem ao menos dois elementos: a) Um societário, fundamentado na solidariedade. b) Outro comunitário, que repousa sobre “valores comuns” e em uma “vida idêntica”. 3. A comunidade tende a apagar todo limite e subordinação ao grupo, já que tende a identi car por inteiro. A sociedade exige de seus membros o máximo de subordinação: o cumprimento estrito dos estatutos... Daí, a tendência ao absolutismo.

4. Não são incompatíveis: a) Comunidade e sociedade mal se conhecem de forma perfeitamente de nida. b) Toda comunidade, ao se estabilizar e se entender, organiza-se: a família tem uma hierarquia de pessoas, direitos... c) A sociedade, ao progredir, se interioriza mais ou menos em comunidade: existem laços de amizade e de colaboração entre os sócios. 5. Contra F. Tonnies. É falso a rmar que a razão e a vontade (re exão e liberdade), inclusive o m, in uem na origem e no desenvolvimento da sociedade, e não na comunidade. b) A comunidade familiar . É a comunidade dos pais com seus lhos, a comunidade mais natural e necessária, juntamente com o matrimônio indissolúvel, do qual procede. a) Não é uma associação produzida pelo interesse, uma sociedade, mas uma verdadeira e autêntica comunidade. Deve fomentar os valores próprios de uma comunidade, como o amor, a delidade, o respeito e a con ança. b) É natural, já que nasce espontaneamente onde quer que existam homens. Não espera que o Estado lhe proponha um estatuto jurídico. c) É necessária, já que a própria natureza humana reclama a família como uma necessidade. .

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a) Tanto o direito natural quanto a moral cristã reconhecem um único fundamento da família: o matrimônio unitário e indissolúvel. b) Rejeitam-se os matrimônios temporários, o concubinato... c) A família e o Estado .

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“A família tem uma prioridade de natureza em relação à sociedade civil” (Pio ). a) Com uma prioridade de natureza: ela é anterior a toda legislação que lhe dê um título legal ou regule suas condições de existência. b) Com prioridade real: já que primeiro somos membros de uma família, antes de sermos cidadãos de uma nação; uma nação é um agrupamento de famílias. c) Com uma prioridade lógica: o bem comum da sociedade depende e supõe assegurado o bem comum da família. d) Rejeitam-se as teorias que a rmam: — Que a humanidade havia vivido primeiramente como um rebanho, e depois surgiu a família. — Que o homem nasce cidadão e, por este motivo, pertence antes de tudo ao Estado. .

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a) Por conseguinte, a família tem uma prioridade de direitos em relação à sociedade civil.

b) O m designado para a família manifesta, por natureza, esta superioridade. Isto se vê pelo seu duplo m: — Busca o bem comum da espécie humana pela procriação e educação dos lhos. Se os lares fossem estéreis, que seria da nação, e o que faria ela? — Busca o bem comum da sociedade familiar, que está constituído pelo bem coletivo do grupo, compartilhado entre todos os seus membros: esposos e lhos. c) Contudo, a sociedade civil possui, até certo ponto, um direito que vai ainda além do simples reconhecimento das condições naturais da família. Assim, vemos que ela pode controlar, harmonizar, coordenar, defender e promover as riquezas de todas as ordens do conjunto de famílias. .

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a) Não é imperfeita quanto a seu m e missão próprios. b) A expressão “comunidade imperfeita” signi ca três coisas: — Que as outras comunidades, em especial a Igreja e a sociedade civil, têm nalidades e missões mais gerais, mais elevadas e, por isso mesmo, mais perfeitas que as da família. — Como o imperfeito está subordinado ao perfeito, assim também a família está subordinada à Igreja e à sociedade políticoestatal em suas respectivas esferas. — Contudo, a família não é simples parte do Estado, pois é anterior ao mesmo Estado. Isto é, não é fundada pelo Estado, mas tem sua origem natural.

6. Inimigos da família284 224. A família é a primeira sociedade natural, tipo e princípio das demais sociedades. É o santuário dos ideais nobres e o reduto onde se refugiam as forças salvadoras do mundo. Se a destroem, desaparece a própria sociedade. A sementeira não nasce onde não se semeou o grão, e o grão do qual brotam a cidade, a região e a nação é a família. Por isso a família sempre foi tão perseguida pelo gênio da destruição. Como iriam respeitá-la as forças do mal, se ela é como que a viga da sociedade, o sustento da religião, a forja dos homens honrados, o germe de toda grandeza humana — o mais profundamente humano depois do próprio homem? O mal é grave, porque os inimigos da família são traidores. Existem duas classes deles. Alguns são externos, difundidos na atmosfera social em que a família se desenvolve, tal como os micróbios causadores de uma epidemia. Outros são internos, tal como as enfermidades que se produzem como por geração espontânea no seio de nosso organismo, e causam a morte em tempo mais ou menos longo. Vamos denunciar os principais entre ambos os grupos, com a maior brevidade possível. . 1º — A corrupção dos costumes sociais 225. Quando se produz uma superexcitação daquilo que o Apóstolo chama de sensus reprobus — o sentido depravado da vida (Rm 1, 28) —, chega-se a cometer as maiores torpezas com a maior naturalidade. Pervertem-se os valores da vida, o prazer é considerado como o maior bem apetecível, o meio se transforma em m. Recorde-se os dias de Noé, de Sodoma e Gomorra, da Babilônia, da Roma decadente. Hoje, por desgraça, as coisas não

melhoraram. Dir-se-ia que a maior extensão da cultura, o maior nível de vida e as invenções do engenho humano não zeram mais do que difundir e aprofundar nos povos a marca da besta do Apocalipse (Ap 16, 2). Este ambiente de corrupção e de pecado, que caracteriza a época moderna, repercute forçosa e perniciosamente na família, causando a decadência e a corrupção de algum membro essencial da família, quando não a da própria instituição matrimonial. Daí sobrevêm as grandes desordens que apontaremos em seguida. 2º — O celibato vicioso 226. O celibato virtuoso — dos sacerdotes e religiosos, da virgindade voluntária no mundo — é um grande bem e uma fonte inesgotável de bênçãos para a sociedade. Porém, a raça dos celibatários viciosos é uma das maiores pragas da sociedade contemporânea. A Sagrada Escritura os retrata de corpo inteiro quando diz sobre eles: Vinde e gozemos dos bens presentes. Apressemo-nos a gozar ardentemente das criaturas, como na juventude. Fartemo-nos de generosos vinhos e de perfumes, e não nos escape nenhuma or primaveril. Coroemo-nos de rosas antes que elas murchem, e não haja prado algum em que a nossa voluptuosidade não passe. Nenhum de nós falte a nossas orgias, que por toda parte o rastro de nossas leviandades, porque esta é a nossa porção e a nossa sorte (Sb 2, 6–9).

Note-se um fenômeno que é constante na história: quando os costumes se corrompem, o número de lares decai. Buscam-se de modo desenfreado os prazeres carnais, sem aceitar os ônus e as responsabilidades anexas ao matrimônio. Não é possível maior degradação e abjeção. 3º — Os matrimônios tardios 227. Embora ocorram honrosas exceções, esses matrimônios tardios — sobretudo por parte do homem — costumam ser uma simples conseqüência da desordem anterior. No ocaso da

virilidade, vêm a se refugiar, como navios desarvorados pela tempestade, uns homens que já não encontrarão em seu coração uma só gota de amor puro, nem na substância de sua vida aquela força que produz vidas verdejantes. Costumam juntar-se nesses lares de outono o frio dos corações e o raquitismo de vidas gastas. 4º — O afã excessivo das riquezas 228. O dinheiro é um poderoso fator do progresso dos povos, sobretudo do progresso material. Mas não devem ser invertidos os fatores da vida, colocando a riqueza como seu principal objetivo. Viver para ser rico, e ser rico para gozar a vida é uma grande desordem e o princípio de todas as decadências de ordem material, moral e social. A riqueza como lei de vida é a mãe do re namento, porque só se acumula a riqueza para gozá-la: a avareza acumuladora e tacanha é um fenômeno de exceção, e o re namento gera, em geral, a corrupção dos costumes, o esgotamento dos caracteres e a dissolução das sociedades. Tudo isso repercute na família por duas razões: a primeira, porque o afã desmedido por riquezas é uma força centrífuga, que desloca o centro de gravidade de muitas famílias — que é o lar —, ao transferir toda a atividade do chefe da casa, quando não de vários membros dela, para o centro da empresa ou da indústria. Quantos maridos milionários vão destruindo pouco a pouco o seu lar porque “não têm tempo” para dar a devida atenção à sua mulher e a seus lhos, arrastados como estão pela ânsia de ganhar mais e mais dinheiro a todo custo! Eles não percebem que são verdadeiros escravos de si mesmos — estão destruindo sua própria saúde para acumular um dinheiro do qual não poderão desfrutar, porque chegará para eles, excessivamente prematuro, o infarto do miocárdio — e que estão destruindo, ao mesmo tempo, a paz e a felicidade de seu lar, que exige, indispensavelmente, o calor e a atenção do marido e do pai...

A segunda razão é que esta ânsia desmedida por riquezas ataca a própria raiz da família, que é o matrimônio. É graças a esta ânsia que se pactuam os matrimônios de conveniência, com os quais se juntam fortunas, não seres humanos, e nos quais se dá mais atenção à soma do dinheiro que à união dos espíritos. Às vezes, é um jovem esperto que está de olho na fortuna da rica lha única, para viver folgado, em vez de procurar uma mulher de seu nível, com menos riqueza “adjetiva” e mais prendas pessoais — sobretudo mais amor. Ou é o solteirão que decide se casar para juntar outra riqueza à sua, e não outro coração, a m de se defender do frio da velhice. Ou é um homem de nanças abaladas que buscará remédio para elas, e não a inteligência e a virtude necessárias para constituir um lar. Matrimônios desiguais em idade, em posição, educação, no conceito de vida, talvez até nas crenças religiosas... dos quais não se pode esperar humanamente mais que uma história de dissabores conjugais ou de escândalos, e uma geração de lhos deseducados pelo abandono ou pelo mau exemplo. 5º — O luxo desenfreado 229. É uma conseqüência da excessiva ânsia por riquezas. O luxo sem freios, que pode manifestar-se na casa e nos móveis, nas vestes e no penteado da mulher, no estilo de vida de uma família, etc., quase sempre provoca um desequilíbrio entre a vida e as coisas acessórias do viver. Este desequilíbrio pode manifestar-se de diversas formas: a) Na forma econômica, quando os gastos desnecessários superam a capacidade de riqueza de quem sustenta esse luxo em sua forma suntuosa. b) Na forma social, quando se excede nos custos ou na forma as normas correntes da sociedade em que se vive.

c) Na forma moral, quando as roupas ou a decoração da casa tendem por sua natureza — independentemente, talvez, das intenções de quem a usa — a incentivar a concupiscência da carne. Note-se a analogia gramatical entre “luxo” e “luxúria”. O luxo, em qualquer uma de suas formas, é um grande inimigo da paz e da felicidade da família. Muitas vezes, de pronto, já impediu a simples formação de uma família: o jovem que aspira a constituir um ninho feliz com uma jovem afeiçoada ao luxo desmedido, renuncia a casar-se com ela por não poder manter o estilo de vida que ela pretende ter. O luxo terá murchado uma esperança em or, uma ilusão, e terá matado uma família. E quando — como ocorre tantas vezes — sobrevém uma crise nos negócios ou na indústria que alimentava o luxo, um corte de capital por fraude alheia, a enfermidade ou a morte de quem carregava o peso daquele estilo de vida, levando embora “a chave do cofre”, etc., etc., e o luxo devorou antecipadamente as reservas de capital, chega-se ao descrédito, talvez à ruína, quiçá à dissolução da família. Outra hipótese ainda mais infeliz. A ânsia de luxo se apoderou da mãe e das lhas. O pai não teve mão rme para cortar o abuso, e talvez o estimulou com suas covardes complacências. De imediato, a família vê a economia abalada por qualquer uma das mil causas que podem levar à falência. Que sucederá se o temor de Deus não sustentar a família infeliz? Sucederá o que costuma suceder: um abismo chama por outro abismo. Entre o luxo e a luxúria não há mais que um passo, que pode salvar a ambição de uma mulher. E de um caixa vazio até o antro dos jogos ou ao roubo descarado não há mais que um passo, que pode salvar o desespero do marido. Quantos exemplos a vida diária nos oferece destas catástrofes familiares! 6º — A mania da emigração para a cidade ou para um país estrangeiro Este é outro grande inimigo da família. Não se pode negar que, às vezes, a emigração do campo para a cidade, ou mesmo para o estrangeiro, é imposta pelas

condições infra-humanas em que se desenvolve a vida dos camponeses e aldeães. Outras vezes, porém, é o esnobismo, a “moda” que tudo decide. E não são raros os casos em que, na mobilidade da vida moderna, facilitada pelos rápidos meios de comunicação e de transporte, a jovem do interior encontra a ruína de sua honestidade; os lhos, um meio de fugir da orientação do pai ou do controle da mãe; os pais, uma cômoda maneira de se desobrigar dos deveres que lhes incumbem; e toda a família é capaz de perder o sentido da tradição e da religião, que são os fatores decisivos da força das famílias e dos povos. Terá visto o leitor o grande lme espanhol Surcos? É apenas uma história realista, entre outras mil, desses espantosos cataclismos familiares produzidos pela ânsia sem controle de se mudar a qualquer custo do campo — onde viviam pobres, mas felizes — para a cidade, que os destroçou material e moralmente. 7º — O trabalho da mulher e das crianças fora do lar 231. Existem casos, infelizmente, em que a injusta distribuição das riquezas e a injustiça social manifestada em muitas classes sociais obrigam a mãe e, às vezes, até as crianças pequenas, a passar longas horas fora do lar, empregados em trabalhos impróprios para seu sexo ou sua idade, a m de incrementar o salário insu ciente do marido. Leão clamou, na Rerum novarum, contra este abuso evidente que obriga muitas pobres mães de família a deixarem seu lar, onde os pequeninos cam privados de amor e de cuidados. Até mesmo o trabalho de muitas jovens operárias nas indústrias modernas representa para elas, em troca de umas moedas semanais, um notável prejuízo em sua formação como futuras esposas e mães. Isto se o convívio com as outras e o forçoso tratamento com operários de outro sexo não lhes tenham causado outros estragos mais graves. Na fábrica começa a ruína de muitas futuras famílias...

8º — As leituras, os espetáculos e as “reuniões sociais” 232. Nenhuma destas três coisas é, em si, imoral, nem está proibida aos leigos. Mas quantas vezes, através destas coisas, acabam destroçados os lares cristãos e não-cristãos! ) . — Livros exóticos pseudocientí cos, novelas imorais, revistas pornográ cas disfarçadas, às vezes, de “arte”, “modas”, “atualidade”, etc., etc. A leitura é o alimento da alma, e aquele que lê veneno, envenena sua alma. Quantos jovens, sobretudo, perderam os bons costumes e até a fé cristã por esse tipo de leituras, que circulam com freqüência mesmo em muitas famílias que se consideram cristãs, e até católicas fervorosas! ) . — Existem aqueles muito sadios e convenientes. Mas quantos lmes de cinema ensinam a arte de ser criminoso, de roubar impunemente, de não dar importância ao adultério ou ao suicídio — se é que não procuram justi cá-los plenamente —, de ridicularizar o matrimônio honesto!, etc., etc. Quantas obras teatrais — sem falar no gênero “teatro de revista”, com freqüência tão vulgar e grosseiro — trazem à vista do espectador cenas de grande crueza, ou tratam de legitimar as mais repugnantes desordens morais! Mesmo na suposição de que não tenham nada de imoral, assistir com demasiada freqüência a estes espetáculos transporta a imaginação para um mundo irreal e fantástico, que contrasta com a realidade, doce ou amarga, da vida cotidiana, e apaga o espírito de família, que brota da convivência e do amor. ) . — Sem dúvida, existem aquelas irrepreensíveis. Mas também é verdade que a vida mundana — quando não francamente imoral — é estimulada em grande número por centros mais ou menos luxuosos, onde, a pretexto de cultura, de esporte, de arte ou simples lazer (cafés, bares, clubes, bailes populares, cassinos, etc.), reúnem-se homens e mulheres de

todas as classes sociais — conforme a categoria dos centros —, que se transformam em locais de absorção das forças da família. Não é preciso ponderar os prejuízos que com isso se causa ao lar: perda de tempo precioso para a formação da família, facilidades para a vida frívola e de aventuras, gastos desnecessários, e às vezes altíssimos; comodidades passageiras que não se encontram na própria casa e cujo desfrute mata o carinho pelas suaves e serenas alegrias do lar; talvez o jogo, com seus enormes perigos; talvez o estímulo para esse mal temível que é o alcoolismo, e outros mil cuja enumeração exaustiva não terminaria nunca. . Até agora, temos examinado alguns dos inimigos externos da família. Vejamos agora alguns dos mais importantes inimigos internos. A sua enumeração não poderá de modo algum ser completa. Além dos gravíssimos atentados contra a essência mesma do matrimônio, de seus ns e propriedades essenciais (o onanismo conjugal, o aborto voluntário, o divórcio, a separação total ou parcial dos cônjuges, o abandono da educação dos lhos, etc.), assinalaremos os seguintes abusos, que constituem outros tantos inimigos internos da família: 1º — A familiaridade excessiva no seio do lar 233. Familiaridade deriva de “família” e, neste sentido, à maior familiaridade deveria corresponder um maior espírito de família. Porém, quando a familiaridade é excessiva, ou seja, quando supõe um atentado contra o respeito devido aos pais ou aos mais velhos, ou às conveniências sociais ou à dignidade das relações entre os membros da família, constitui um grande perigo para ela. É familiaridade excessiva, para citar alguns casos, o recato reduzido nas conversas dos pais diante dos lhos, ou dos pais com os lhos; certos modos de se acariciarem promiscuamente uns aos

outros, que facilmente podem excitar a sensualidade própria ou alheia, tanto mais grave quando se trata de pais e lhos, ou de irmãos entre si; as familiaridades e “con anças” excessivas do chefe da casa ou dos lhos maiores com os serviçais domésticos, que podem acabar em uma in delidade conjugal ou em uma verdadeira catástrofe que desonre toda a família; en m, tudo aquilo que possa dissipar o suave perfume de doce severidade e mútua reverência, que são causa e efeito das nobres maneiras e das virtudes cristãs. 2º — A frivolidade 234. A frivolidade é a inconstância, o borboletear da vida; é a inteligência deixada para depois, a vontade sem eixo que a sustente, o senso estético sem educação; é o coração vazio de toda grandeza, inchado de vento, que utua como esses balões cheios de gás leve e que, rompido o o que os segura, seguem o rumo do vento, que sopra onde quer. Pobre lar é o lar frívolo, formado por seres frívolos! Tudo nele trará a marca da leviandade, da inconstância. Nada haverá nele que constitua um verdadeiro valor humano. A mãe frívola, talvez o pai; frívolas as lhas, talvez os lhos. Frívolas as conversas, as preocupações, as leituras, as ocupações. Modas, espetáculos, viagens, esportes; a revista ou crônica da imprensa mais ou menos picaresca, quando não escandalosa; fofocas e enredos da pequena ou alta sociedade; mordidas mais ou menos venenosas nas vidas alheias; chás, bailes de debutantes, festinhas, tertúlias sem substância... isso é tudo. Que se pode esperar de tais “lares”? Então, devereis car em casa como frades cartuxos, com o pensamento xo na morte? Claro que não. Jamais deve faltar em vossas casas a alegria cristã, nem é lícito negar a vós e a vossos lhos o necessário e honesto lazer. O que condenamos aqui é a vida inútil, passada entre ninharias e contínuas vaidades, quando há tantas coisas importantes a serem

cuidadas dentro e fora de vossa casa: a ordem da própria casa, o aumento da riqueza por meios honestos, os deveres de religião e bene cência, e até mesmo a necessidade de distrações sadias para afugentar o “tédio da vida”, que jamais conseguireis evitar com todas as vossas bagatelas, já que sois maiores que todas elas. 3º — A falta de autoridade dos pais 235. Produziu-se em nossa época uma tremenda crise de autoridade em todos os níveis da vida, inclusive no próprio seio da Igreja Católica. A pretexto da “dignidade da pessoa humana”, da “liberdade de consciência” — entendidas, claro, segundo o critério de cada um, e não no sadio sentido em que as proclamou, por exemplo, o Concílio Vaticano —, hoje se observa em toda parte o fenômeno universal da quebra da autoridade. É uma verdadeira epidemia que invadiu tudo: a sociedade civil, os organismos que a integram, a o cina, a escola, a universidade e, sobretudo, a família. Se duvidais, vede alguns exemplos. Trata-se de um menino. É voluntarioso por temperamento, como costumam ser os meninos. Ele cometeu, não uma pequena travessura infantil, mas uma falta voluntária que exige correção e castigo. Intervém o pai, sancionando a falta... mas a mãe, “boazinha”, consegue anulá-la, fazendo quebrar a autoridade do pai. O lho rebelde saiu-se bem e se tornou senhor da situação com a fraqueza do pai. Outro exemplo. O pai deu ordens severas que contrariaram a vontade da mãe: não irão a tal espetáculo, nem se realizará a viagem programada, nem serão feitas certas compras que vão além da capacidade econômica do orçamento familiar. Mas a mãe se alia com suas lhas e o pai tem de sofrer o assédio de queixas, impertinências e caras fechadas, que não acabarão até que sua autoridade seja quebrada, em prejuízo da mesma e dos interesses da casa.

Outras vezes, é o pai quem desautoriza diante dos lhos a autoridade da mãe quando esta, no desempenho de sua autoridade materna, havia tomado uma decisão justa e razoável, que devia ter sido respeitada e con rmada pelo pai. Outras vezes, são o pai e a mãe que, conscientemente, abdicam de sua autoridade paterna. As moças estão na idade de casar-se, os lhos devem procurar um bom casamento. Abrem-se as portas da casa, e entra nela aquele que talvez seja o mensageiro da infelicidade de vossas lhas, e saem dela os lhos que talvez aprendam a fácil carreira do noctambulismo, que já tem preparadas todas as quedas e rebaixamentos da juventude inexperiente. 4º — A falta de religião no lar 236. Este é, sem discussão, o pior e o mais terrível inimigo interno da família. A família natural tem Deus por autor e Jesus Cristo por regenerador. Não se pode lançar Deus para fora de casa sem destruir a família em seu próprio alicerce. Olhai para uma família sem Deus. Se é rica, as comodidades da vida irão fomentar o egoísmo de todos e facilitar os gozos terrenos, que encherão suas almas de fastio, como se vê na experiência diária. Nada de sacrifícios pelos outros, de ternuras, de mútua abnegação. Cada um terá o seu plano, seu amigo ou sua amiga, e o lar se transformará em simples hotel, aonde se vai algumas vezes para comer, e outras para dormir... Se é pobre, o trabalho duro e a escassez do salário com freqüência os levarão ao desespero, por não saberem erguer os olhos ao céu. O ódio e o rancor os lançarão na violência e na luta de classes preconizada pelo marxismo. Às vezes, acreditarão encontrar na suprema desventura do suicídio o m de todas as suas desventuras anteriores...

Que será dos deveres conjugais sem o freio da moral cristã? Sem Deus por testemunha, a in delidade conjugal, o onanismo, o aborto criminoso não encontrarão nenhum obstáculo. Sem a força de Deus, cairá das mãos dos pais a vara da autoridade que deve reger a família, e os lhos viverão por sua conta, saltando como potros indomáveis toda cerca que pretender contê-los. Não. Sem Deus não existe, nem pode existir, um lar verdadeiro nem uma autêntica família. Talvez o próprio exemplo de outras famílias cristãs, ou o próprio atavismo que nos arrasta sem que o percebamos, no ambiente em que vivemos, farão com que a família sem religião conserve algo de sua dignidade e grandeza em seu ambiente religioso. Com o tempo, porém, e em ambiente similar ao seu, perecerá irremediavelmente. Aí está o exemplo de tantas famílias degradadas ou pulverizadas pelo espírito de irreligiosidade. Aí está a família pagã de todos os tempos.

SEGUNDA SEÇÃO | OS MEMBROS DA FAMÍLIA 237. Depois de ter examinado as características gerais da família cristã, vamos estudar agora, mais particularmente, cada um dos membros que a compõem. Dividiremos nossa exposição nos seguintes capítulos: 1. Os esposos. 2. Os pais.

3. Os lhos. 4. A vocação dos lhos. 5. Os irmãos. 6. Os demais familiares. 7. O serviço doméstico.

CAPÍTULO I | Os esposos 238. O primeiro elemento de toda família, natural ou cristã, é constituído pelos esposos. São como o tronco comum da árvore familiar, do qual brotarão depois as ores e os frutos, que são os lhos. Exatamente porque os esposos constituem o tronco único e comum da árvore familiar, não podem ser incluídos em nenhum grau de parentesco. De fato, o primeiro grau de parentesco em linha vertical ascendente é constituído pelos pais, e em linha vertical descendente, os lhos; em linha colateral, o primeiro grau é constituído pelos irmãos. Qual é, pois, o grau de parentesco que corresponde aos esposos? Propriamente falando, nenhum. A Sagrada Escritura nos diz expressamente que “o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá a sua mulher, e os dois virão a ser uma só carne” (Gn 2, 24; Mt 19, 5). Por isso, a seguir, o Santo Evangelho acrescenta: “De maneira que já não são dois, mas uma só carne” (Mt 19, 6). Nos esposos, portanto, dá-se o estranho e sublime paradoxo de que não são parentes, de tão parentes que são. Formam uma só coisa, um só tronco comum; e é evidente que ninguém pode ser parente de si mesmo.

Por isso, o amor e a compenetração que devem ter mutuamente os esposos são o mais íntimo e profundo de todos os amores humanos, como símbolo e representação do amor indissolúvel com que Cristo ama sua Igreja (cf. Ef 5, 25). O amor ao esposo ou à esposa deve ocupar o primeiro lugar depois de Deus. Na ordem da intensidade, deve estar até mesmo acima do amor aos próprios pais, ainda que na ordem objetiva estes últimos devam ocupar o primeiro lugar, já que a eles nós devemos a vida.285 Eis aqui o plano que vamos expor neste capítulo dedicado aos esposos: 1. Homem e mulher. 2. Contribuição dos dois para o matrimônio. 3. Direitos e deveres mútuos dos esposos. 4. O esposo ideal. 5. A esposa ideal. 6. A geração dos lhos. 7. A viuvez cristã.

Artigo 1 — Homem e mulher 239. Antes de expor os direitos e deveres recíprocos e especiais do marido e da mulher, é conveniente lançar um rápido olhar — em forma esquemática — sobre as principais características do homem e da mulher, que fazem deles dois seres distintos e, ao mesmo tempo, complementares entre si.286

Deus criou a luz, o céu, os mares, todos os animais que povoam a terra. Também, e em último lugar, Deus decidiu criar o homem à sua imagem e semelhança. E os criou homem e mulher. O homem, no princípio, tinha se sentido sozinho, mas Deus lhe presenteou com uma companheira. E deu-lhes um mandamento: “Procriai e multiplicai-vos, enchei a terra” (Gn 1, 28). Esta é a perspectiva do autor sagrado. O homem e a mulher não são uma coisa independente. Eles se ordenam um para o outro, complementam-se mutuamente; assim os criou Deus. i. Homem e mulher, dois seres distintos a) Na ordem psicológica 1. O homem possui uma natureza contraditória, feita de luta, ambição e fracasso: a) O homem procura atuar, avançar, in uir, sair de si mesmo. Aspira a transformar. Sua psicologia é centrífuga, ativa. b) A mente do homem vai para o objetivo. Em seu pensamento domina o conceito. Ele é teorético. O homem pensa no futuro, não lhe basta o presente. c) Em sua vida afetiva dominam o apreço e o desprezo. São próprios do homem os sentimentos objetivos. Guia-se pela inteligência. É tenaz e batalhador. A luta é seu elemento de vida. Aspira pelo êxito e, amiúde, deságua no fracasso. Sua missão é de trabalhador e transformador. 2. Nesta linha, a característica mais representativa da mulher é sua capacidade unitária de interiorização: a) A mulher é receptiva. Não tende a agir e procurar, mas a ser procurada e a que atuem sobre ela. É centrípeta.

b) A mulher vai para o subjetivo. Nela domina a imagem. Não lhe agradam as abstrações. Prefere o presente. c) Em sua vida afetiva predominam o amor e o ódio. Os sentimentos pessoais. Guia-se pelo coração. Ama profundamente a vida. Sua missão no mundo é cuidar. b) Na ordem ético-humana 1. O homem se mostra revestido dos seguintes caracteres: a) É capaz de heroísmo, mas não de um heroísmo sem brilho e continuado. Diante da dor ele se irrita e lhe declara luta abertamente. b) O homem é dividido em si mesmo. Não lhe basta esse “tu” pessoal, como basta à mulher. Procura mais a luta e o triunfo. A ação. c) O amor é apenas uma parte do homem, não absorve toda a sua atividade, como na mulher. 2. Principais características ético-humanas da mulher: a) Capacidade de sofrimento. A mulher suporta por muito tempo um sofrimento continuado. Possui grande capacidade de resistência. Sabe esperar. b) Relação com o “tu”. A mulher centra mais a sua atenção no ser humano, no “tu”, do que nas coisas. Ama mais o que é pessoal. c) Capacidade de amor e sentimento de humanidade. A mulher possui em seu coração a predisposição para o amor. c) Na ordem religiosa É

1. É um fato que a mulher sempre se mostrou mais inclinada ao religioso que o homem. a) Mais vinculada às coisas, descobre em suas profundezas o seu secreto poder de alusão. Percebe melhor o invisível no visível. É mais permeável ao espírito. O homem ca mais distraído, não sente essa atração secreta. b) A férrea lógica do homem encontra um obstáculo no mistério. A mulher, acostumada a viver entre imposições, não tem di culdade em crer. Não tem por que pedir razões à fé quem tampouco tem o costume de pedi-las à vida, ao amor, ao homem. c) O homem, mediante seu trabalho e sua técnica, acredita conhecer tudo, e, às vezes, pensa que não tem necessidade da fé nem da religião. A mulher, em sua vida simples e sacri cada, está mais preparada para acolher o transcendente. 2. Contudo, a postura da mulher talvez seja mais super cial, menos consistente. O homem religioso o é com toda a sua alma, com todas as conseqüências. Sem meias-tintas. Profundamente. ii. Homem e mulher, dois seres complementares a) É uma necessidade de suas características diferentes e parciais 1. Em primeiro lugar, o sexo: esta realidade impele insistentemente o homem e a mulher para a união. Ambos buscam esse outro ser que seja ao mesmo tempo semelhante e dessemelhante: complementares. 2. O homem necessita da mulher: ela lhe dá a consciência de si mesmo, a rma-o em seu ser. O homem faz com que a mulher possua uma personalidade mais plena, mais robusta e equilibrada. Desperta nela as ocultas energias masculinas que estão latentes em toda mulher.

3. Complementam-se mutuamente nos diversos níveis: a) No psicológico, a mulher dá ao varão um pouco de interiorização, de unidade íntima; o homem dá a mulher um pouco de agilidade e de adaptação ao mundo que os rodeia. b) Na ordem humana, o homem precisa de um pouco de espera paciente, decisiva na vida do homem. Dela dependerá, às vezes, que essa vida se apague ou ressuscite. Mas o homem também tem aqui o seu papel: dar à vida religiosa da mulher mais profundidade, mais seriedade, mais verdade. b) Deus ordenou-os para essa união complementar 1. Vemos isso claramente no momento da criação de Adão e Eva. Deus não os cria como algo independente. Eles se ajudarão, se unirão. a) “Não é bom que o homem esteja só, vou fazer-lhe uma ajuda semelhante a ele” (Gn 2, 18). Pois o homem estava sozinho entre todos os animais da terra: “Não havia para o homem uma ajuda semelhante a ele” (Gn 2, 20). b) E Deus apresentou-lhe a mulher: “Isto, sim, é osso de meus ossos e carne de minha carne [...]. Por isso o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher; e serão os dois uma só carne” (Gn 2, 23–24). 2. E o Eclesiástico nos diz: “Aquele que tem mulher possui um grande bem, uma ajuda conveniente a ele e uma coluna em que se apoiar [...]. Onde não há mulher, o homem anda gemendo e errante” (Eclo 36, 26–27). Conclusão

1. A coordenação entre homem e mulher alcança sua ordenação hierárquica ao culminar na íntima associação matrimonial. 2. A mulher, como desposada, no nível pessoal, permite ao homem atingir o domínio do espírito sobre o corpo; por meio da maternidade dela, o homem vive sua paternidade; por meio de sua companhia, o homem chega à perícia no trabalho. 3. Homem e mulher apóiam-se reciprocamente, aliviam-se, consolam-se, complementam-se. Por natureza, ordenam-se um para o outro.

Artigo 2 — Contribuição dos dois para o matrimônio 240. O matrimônio é um contrato: a) Bilateral: entre um homem e uma mulher capazes de contraílo. b) Sui generis: exige que recordemos aquilo com que ambos devem contribuir para o matrimônio. Procederemos esquematicamente, dada a amplitude da matéria. Mais abaixo, voltaremos às principais sugestões que faremos aqui.287 i. Dons naturais a) Físicos 1. Corpo.

a) O m primordial do matrimônio é a geração dos lhos. Para isso eles se dão os corpos. Com todas as forças intactas. b) O amor carnal não é todo o amor; mas é, de certo modo, a recompensa do amor; às vezes, é a salvaguarda do amor. 2. Beleza. a) Afeta especialmente a mulher. Se, no primeiro momento, a beleza foi a causa exterior e visível da aproximação, agora deve contribuir para manter a união. b) Deus embelezou a mulher por razões sábias e profundas. A causa principal é a da família. 3. Idade. a) Aquela em que ambos estejam biológica e emocionalmente preparados. O homem, em geral, deve casar-se com mais idade que a mulher, porque alcança seu desenvolvimento físico mais tarde e vai ser o chefe da família... b) Entretanto, a excessiva diferença de idade traz a mútua descon ança, a falta de compreensão... 4. Saúde. a) Muitas vezes, a felicidade, o equilíbrio e a segurança da família dependem da saúde. b) Também depende dela a saúde dos lhos. Por isso a Igreja proíbe ou desaconselha o matrimônio entre familiares, conforme o grau de parentesco. b) Espirituais 1. Inteligência. É

a) É um dos principais dons internos em ordem à fusão dos corações. b) Deve ser utilizada antes de tudo para o progressivo conhecimento mútuo. O grau de compreensão depende do conhecimento. E no grau de compreensão estão a utilidade da vida de família e a capacidade de tornar agradável a vida familiar. 2. Vontade. a) Nenhuma outra faculdade é mais preciosa para a felicidade do lar. Afeta tanto o homem como a mulher. De nada serve o dom de conselho, nem saber o que se deve fazer, se não se age nesse sentido. b) É preciso continuar educando esta faculdade. Seu primeiro efeito é a energia. Mas a verdadeira energia é suave. A moleza leva à violência. 3. Coração. a) A mulher tem necessidade, acima de tudo, de ser cercada de solicitude. O homem, de ser animado e apoiado pelo coração da mulher. O coração é um dos grandes recursos da mulher. b) Da unidade de corações nascem ou brotam as mútuas alegrias, as mesmas esperanças. As di culdades se tornam menos pesadas. Apoiados, os dois avançam melhor no caminho. ii. Dons adquiridos a) Em ambos 1. Amor conjugal. a) Primeiramente, deve ser sobrenatural. Não basta o amor meramente humano; muito menos o passional.

b) Amor conjugal: existe a obrigação de viverem juntos: “O homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher” (Gn 2, 24). c) Existem hoje muitos perigos para este amor conjugal esfriar. Não esqueçamos que isso traz conseqüências funestas: perigo de in delidade... 2. Con ança mútua. a) “Casado” e “casamento” signi cam plena con ança entre ambos. b) Esta con ança signi ca fé nas promessas feitas, e a certeza de poder apoiar-se no outro (fonte de alegria e força). 3. Acordo quanto ao ideal. a) A união dos corações e das almas; a segurança e a possibilidade de um lar cristão dependem da “comunidade” dos ideais. b) Esta exigência de comum união de ideais traz consigo: — Comunidade de critérios acerca do sentido transcendente da vida: “De que vale ao homem ganhar o mundo inteiro se perde a sua alma?” (Mt 16, 26). — Comunidade sobre o ideal do matrimônio: fecundidade e educação. 4. Responsabilidade. a) Vossa vocação é serem pais. É a missão primordial do matrimônio. b) Vossa santa missão é dedicar-vos aos para os lhos.

lhos: tudo e sempre

c) Esta vocação exige grande responsabilidade. “Deverão prestar contas” (Lc 16, 2); “Que zeste de teus lhos?” (cf. Gn 4, 9–10). 5. Espírito de sacrifício. a) As di culdades e sacrifícios da vida familiar são inumeráveis. b) O egoísmo transforma a vida matrimonial em uma verdadeira “luta pela vida”. c) A moeda com que se compra a felicidade são os prazeres sacri cados. O lema deve ser: “Viver para os outros”. Escuta este valor inestimável: “Melhor que o forte é o paciente” (Pr 16, 32). b) No esposo 1. Amor ao trabalho. a) O trabalho é uma obrigação universal (Gn 3, 19; 2Ts 3, 10). b) Se “do trabalho dos operários saem as riquezas da nação” (Rerum novarum, nº 34), de seu trabalho deve sair a riqueza da família. Não só riqueza material, mas também espiritual e até mesmo sobrenatural: o trabalho digni ca a pessoa humana, santi ca, forma o caráter. 2. Capacidade de governo. a) Compete ao pai o comando, a direção do lar. b) Este direito não deve ser cedido a ninguém. Exerça-o, porém, com suavidade, como pai (Ef 6, 4; Cl 3, 21). c) Esta capacidade inclui a educação pessoal dos lhos. E também a correção séria (Eclo 30, 9–13), com energia (Pr 13, 24). 3. Segurança econômica.

a) Cabe ao homem solucionar o problema econômico da família. b) De seu aporte econômico depende em grande parte o bom funcionamento da família: felicidade e segurança, a educação dos lhos... c) Na esposa 1. Arte culinária. a) Um dos dons adquiridos mais úteis e importantes para o bom andamento da casa é o dom de cozinhar. “Não só de pão vive o homem” (Mt 4, 4)... mas também de pão. b) Em todos os tempos, a comida ocupou um lugar preferencial no destino dos lares. c) Ela não deve esquecer que o marido e os lhos esperam legitimamente uma comida bem-preparada para reparar suas forças. 2. Puericultura. a) É um dever maternal o cuidado da primeira infância. b) A boa higiene e a alimentação sadia evitarão muitas enfermidades e até mortes infantis. c) A mulher deve se capacitar com as contribuições da ciência neste campo. 3. Talento artístico para a casa. a) Grande número de detalhes contribui para multiplicar os encantos do lar. b) Eliminar da casa o sentido do belo é transformá-la em um cárcere.

iii. Dons sobrenaturais 1. Espírito de fé. “Se tivésseis fé” (Mt 17, 20), tudo seria possível. É a vossa poderosa alavanca. 2. Espírito de oração. “Onde quer que dois ou três se reúnem em meu nome” (Mt 18, 20). A oração uni ca. 3. Consciência sacramental. O sacramento: fonte de vida e amor sobrenaturais. O Matrimônio-sacramento: fortalece, suaviza a convivência.

Artigo 3 — Direitos e deveres mútuos dos esposos Sem contar o dever primário e fundamental do matrimônio, que é a geração dos lhos — que estudaremos mais abaixo —, os principais direitos e deveres mútuos dos esposos são três: amor íntimo, ajuda mútua e delidade mútua. Vamos examiná-los em separado. 1. Amor íntimo Antes de falar do amor íntimo que os esposos se devem reciprocamente, é conveniente recordar algumas noções sobre a natureza e a psicologia do amor em geral. Procederemos de forma esquemática.288

)N 241. O amor é o grande mistério da vida. Deus é amor (1Jo 4, 16), e tudo quanto existe participa desse amor. O amor é a corrente criadora que ui de Deus e sustenta o mundo. O amor é também a fonte de energia de toda atividade humana. O instinto fundamental do homem é a realização de seu ser. O amor é um anelo em direção ao todo, à perfeição total. i. Natureza do amor a) O amor em si mesmo . : o objeto do amor é o bem; amar é querer o bem. Toda potência para o bem é sujeito de amor. As potências apetitivas do homem são a porta por onde se abre a passagem para o bem, para o amor. .

.

a) Inato e elícito. O inato brota em toda a natureza: é o instinto universal de conservação, são pegadas do Criador. O elícito é fruto do conhecimento. Este último pode ser: b) Sensitivo e racional. O primeiro é o amor sensível, presente em toda atividade passional. O segundo — espiritual — é a atividade da vontade que, segundo sua direção, pode ser amor de: c) Concupiscência ou benevolência. O primeiro quer o bem para si mesmo. O segundo o quer para a pessoa amada. Amor egoísta e amor de amizade. .

, enquanto atividade da vontade:

a) Amizade: acrescenta ao ato de amor certa disposição que consiste em uma maneira permanente de se relacionar com outra

pessoa, e com reciprocidade. b) Dileção: é o amor com prévia eleição — racional —, conforme indica seu próprio nome. c) Caridade: tomada como ato — pois ela também pode ser um hábito, como na amizade —, realça o caráter de perfeição: amor de alto preço (caritas, de carus). É o amor a Deus, o amor em Deus e o amor por Deus. . . O homem é uma unidade substancial de alma e corpo. Toda a sua atividade está impregnada de racionalidade. O amor nunca é puramente sensível ou puramente racional; é amor humano, em grau maior ou menor. Dentro da ordem racional, no amor de amizade mais re nado sempre se percebem certos traços de egoísmo; no egoísmo sempre existe alguma generosidade. b) Causas do amor 1. A causa única do amor é o bem (real ou aparente, mas sempre sob a razão do bem). É absolutamente impossível amar o mal enquanto mal, porque o objeto da vontade — da qual brota o amor — é o bem, assim como o objeto da visão é a cor, ou o do paladar é o sabor. Tudo o mais in ui na medida em que se descobre o bem, no grau em que ele se relaciona conosco. Só se pode amar o bem. Mas não se ama tudo o que é bom, porque não se conhece, porque ele não penetrou no pequeno mundo cujo centro somos nós. 2. O conhecimento do bem é uma condição necessária. Amor e conhecimento se impulsionam mutuamente, mas é o conhecimento que dá o primeiro passo. 3. A semelhança entre amante e amado causa, mantém e desenvolve o amor, já que o amor implica conveniência, adaptação, conaturalidade, proporção entre ambos:

a) Na amizade, a semelhança é mútua, no mesmo nível: os amigos são como um em dois, eles se amam como a si mesmos. b) No amor egoísta, a semelhança se relativiza: um dos dois tem aquilo de que o outro necessita. c) Efeitos do amor . . O amor uni ca. O amor egoísta acrescenta ao nosso bem o bem daquele que amamos. A amizade é em si mesma um nexo; o amigo é outro eu. . . O amado ocupa a mente e o coração do amante. No amor de concupiscência, tende-se a penetrar na intimidade do amado. O amor de benevolência considera como próprios os bens do amado. . . O amor aliena o pensamento. No amor de amizade, o afeto sai do amante para o amado; o amor de egoísmo sai de algum modo em busca de um bem ainda ausente. . . Ou seja, ardor, fervor, intensidade e veemência. O amor egoísta arde de ciúmes contra aquilo que possa perturbá-lo: ciúmes do marido, do ambicioso. O amor de amizade é o guarda el do bem do amigo. .

. Ocorre em dois âmbitos:

a) Moral: o amor aperfeiçoa ou rebaixa, devido ao seu caráter de fazer sair para o amado. O amor de Deus é o que mais aperfeiçoa o homem; o pecado, o que mais o rebaixa. b) Físico: numa ordem orgânica, a intensidade do amor causa, gradualmente, liquefação, fruição, languidez ou delírio, e ardor ou ebulição.

. : agimos sempre por um m, por amor de um bem real ou aparente. Ninguém pode amar o mal enquanto mal, como já vimos acima. )O 242. Depois desta análise tão penetrante da natureza e da psicologia do amor, devida ao gênio intelectual do Doutor Angélico, é mais fácil compreender o verdadeiro alcance do amor mútuo que os esposos devem ter entre si. Em português, a palavra “matrimônio” tem exatamente as mesmas letras que “amor íntimo”. É uma coincidência puramente casual, mas expressa admiravelmente a natureza e as próprias entranhas do matrimônio em relação aos esposos entre si. Esse “amor íntimo” constitui, efetivamente, o primeiro, o mais grave e, ao mesmo tempo, o mais doce e entranhável dos deveres que ambos os esposos devem mutuamente um ao outro. Este amor tem de ser muito sincero e intenso, porque assim como, pelo vínculo matrimonial, tornaram-se corporalmente uma só carne (Mt 19, 5–6), devem constituir uma só alma e um só coração. Por isso São Paulo exorta repetidamente, em suas epístolas, a este amor dos cônjuges entre si. Eis alguns textos belíssimos: “Vós, maridos, amai vossas mulheres como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela. Os maridos devem amar suas mulheres como a seu próprio corpo. Quem ama sua mulher, ama a si mesmo; e ninguém jamais aborrece sua própria carne, antes a alimenta e abriga, como Cristo à Igreja [...]. De resto, cada um ame sua mulher, e ame-a como a si mesmo, e a mulher reverencie a seu marido” (Ef 5, 25–33). “As casadas estejam sujeitas a seus maridos como ao Senhor; porque o marido é a cabeça da mulher, como Cristo é a cabeça da Igreja, seu corpo, da qual Ele é o salvador. E assim como a Igreja está sujeita a Cristo, assim as mulheres a seus maridos, em tudo” (Ef 5, 22–24). “As mulheres sejam submissas a seus maridos como convém, no Senhor. E vós, maridos, amai as vossas mulheres e não vos mostreis ásperos com elas” (Cl 3, 18–19).

Este amor não deve ser somente afetivo ou sentimental, mas também efetivo e prático. Enquanto afetivo, não deve ser fundamentado na simples beleza corporal, que murcha muito depressa, nem nos meios de fortuna, posição social etc., que nada acrescentam às qualidades pessoais, mas nos dotes permanentes da alma, principalmente na virtude e na nobreza de coração. Enquanto efetivo, deve traduzir-se em mútua harmonia e compreensão, em ajuda nas necessidades, em assumir reciprocamente os fardos, em evitar o próprio egoísmo, as palavras injuriosas, as discussões domésticas, a rispidez no trato e, sobretudo, os ciúmes infundados, que são a ruína da paz conjugal. Ouçamos o suave São Francisco de Sales, ao exortar com seu estilo inimitável o mútuo amor entre os esposos cristãos:289 Exorto de maneira especial aos casados o amor mútuo de que tantas vezes fala o Espírito Santo na Escritura. Ó esposos, com isso não vos quero dizer: “Amai-vos mutuamente com afeto natural”, pois isto também os animais o fazem; nem tampouco quero recomendar-vos que vos ameis com afeto humano, pois até os pagãos praticaram esse amor; mas exortar-vos com o grande Apóstolo: “Esposos, amai vossas esposas como Cristo ama a Igreja” (Ef 5, 25); esposas, amai vossos maridos como a Igreja ama a Cristo. Deus apresentou Eva ao nosso primeiro pai Adão e lha deu por esposa. Também Deus, meus amigos, com sua mão invisível, fez o nó do sagrado laço de vosso matrimônio e vos entregou um ao outro. Por que não vos tratais com amor santo, sagrado, divino? O primeiro efeito deste amor é a união indissolúvel de vossos corações. Quando se juntam dois pedaços de madeira de abeto, formando um encaixe, se a cola for na, a união chega a ser tão sólida que as peças se romperão em outra parte, mas nunca no local da juntura. Deus uniu o homem e a mulher mediante o sangue de ambos, para que antes se separe o corpo da alma que o esposo da esposa. Esta união, muito mais que corporal, deve ser uma união de corações, de afeto e de amor... Conservai, pois, maridos, um amor terno, constante e cordial por vossas esposas; a mulher foi formada da costela mais próxima ao coração do primeiro homem,290 a m de que este a amasse cordial e ternamente. As fraquezas e enfermidades de vossas esposas, tanto espirituais quanto corporais, não devem ser causa de desprezo de vossa parte, mas devem estimulá-los a uma doce e amorosa compaixão, pois Deus as criou de tal maneira que, submetidas a vós, isso redunde em benefício da honra e do respeito mútuo, e, ao mesmo tempo que sejam vossas companheiras, vós façais as vezes de chefes e superiores.

Vós, mulheres, amai terna e cordialmente, com afeto respeitoso e reverente, os esposos que Deus vos deu; para isso Ele os dotou de um sexo mais vigoroso e forte, e quis que a mulher estivesse submissa ao homem, sendo osso de seus ossos e carne de sua carne (cf. Gn 2, 23), formada de uma costela dele, extraída de sob seus braços em sinal de que ela deveria viver debaixo do poder do marido. Toda a Sagrada Escritura vos recomenda esta submissão, e a apresenta como suave, não somente manifestando desejos de que vos submetais a eles com amor, mas também recomendando a vossos esposos que se conduzam com ternura e suavidade: “Esposos”, diz São Pedro, “conduzi-vos com toda a prudência para com vossas esposas, como se se tratasse de um vaso frágil, honrandoas a todo momento” (1Pd 3, 7).

E um pouco mais adiante, no mesmo capítulo, acrescenta o Santo Bispo de Genebra que certas manifestações externas desse amor mútuo ajudam muito para o conservar e estimular. Eis as suas próprias palavras: A estreita união de amor e delidade gera familiaridade e con ança; por isso os santos e as santas usaram muito de carícias no matrimônio; carícias amorosas, mas castas; ternas, mas sinceras. Isaac e Rebeca, o matrimônio mais casto do Antigo Testamento, foram observados através de uma janela enquanto se acariciavam, de tal maneira que, mesmo que não houvesse nada de desonesto naquilo, Abimelec julgou que se tratava de marido e mulher (cf. Gn 26, 8–9). São Luís, tão rigoroso com seu corpo quanto terno com sua esposa, foi censurado por ser pródigo em tais carícias, mas ele mereceria antes ser elogiado, por saber esquecer seu espírito severo para atender às pequenas coisas necessárias à conservação do amor conjugal; ainda que estas simples provas de amizade pura e franca não atem os corações, pelo menos os aproximam e facilitam a mútua compreensão e a convivência.

Eis agora alguns preciosos pensamentos do imortal Pontí ce Pio em seus famosos discursos aos recém-casados:291 1. Antes de tudo, os esposos se devem amor mútuo. As graças sobrenaturais outorgadas no sacramento do matrimônio ajudarão a conservar e aumentar este amor. 2. O amor conjugal deve ser terno: os santos costumavam ser muito carinhosos em seus matrimônios. Isto porque, embora o amor dos esposos deva ser muito mais que apenas carnal, Deus aperfeiçoa a natureza, não a destrói; e o amor segundo Deus deve conservar toda a sua beleza. 3. O afeto puramente natural não basta para suportar alegremente todo o peso do matrimônio. 4. É a caridade cristã que melhor ensina quão solícito deve ser o amor conjugal.

5. O amor não deve ser a busca egoísta de satisfações sensuais, mas puro, superior à juventude e aos fugazes atrativos dos sentidos, e cheio de pequenas surpresas para ajudar o esposo ou a esposa. 6. Que não se diga que os casados se distinguem dos que ainda não o estão pela maior desatenção com que tratam suas mulheres. 7. Ainda que a nalidade das núpcias e, com ela, as próprias núpcias, cessem na morte, o amor dos cônjuges continuará na outra vida. 8. Maria e José são o exemplo de esposos ideais.

De sua parte, o Concílio Vaticano , em sua Constituição sobre a Igreja no Mundo Atual, também dedica um precioso parágrafo ao amor conjugal. Eis suas próprias palavras:292 Muitas vezes a palavra divina convida os noivos e os casados a que alimentem e estimulem o noivado com um casto afeto, e o matrimônio com um amor único.293 Muitos de nossos contemporâneos também exaltam o amor autêntico entre marido e mulher, manifestado de várias maneiras segundo os costumes honestos dos povos e das épocas. Este amor, por ser eminentemente humano, já que vai de pessoa para pessoa com o afeto da vontade, envolve o bem de toda a pessoa e, portanto, é capaz de enriquecer com especial dignidade as expressões do corpo e do espírito, e de enobrecêlas como elementos e sinais especí cos da amizade conjugal. O Senhor se dignou sanar este amor, aperfeiçoá-lo e elevá-lo com o dom especial da graça e da caridade. Um amor assim, associando ao mesmo tempo o divino e o humano, leva os esposos a um dom livre e mútuo de si mesmos, comprovado por sentimentos e atos de ternura, e impregna toda a sua vida.294 Mais ainda: por sua própria atividade generosa, cresce e se aperfeiçoa. Portanto, supera em muito a inclinação puramente erótica que, por ser um cultivo do egoísmo, se desvanece rápida e lamentavelmente. Este amor se expressa e aperfeiçoa singularmente com a ação própria do matrimônio. Por isso, os atos com que os esposos se unem íntima e castamente são honestos e dignos, e, executados de maneira verdadeiramente humana, signi cam e favorecem o dom recíproco, com o qual se enriquecem mutuamente em um clima de alegre gratidão. Este amor, rati cado pela mútua delidade e, sobretudo, pelo sacramento de Cristo, é indissoluvelmente el, em corpo e mente, na prosperidade e na adversidade, cando excluído dele todo adultério e divórcio. O reconhecimento obrigatório da igual dignidade pessoal do homem e da mulher, no mútuo e pleno amor, evidencia também claramente a unidade do matrimônio, con rmada pelo Senhor. Para enfrentar com constância as obrigações desta vocação cristã, exige-se uma insigne virtude; por isso os esposos, revigorados pela graça para a vida de santidade, cultivarão a rmeza no amor, a magnanimidade de coração, e o espírito de sacrifício, pedindo-os assiduamente em oração.

Agora, vamos considerar algumas coisas que podem contribuir para estimular e aumentar esse mútuo amor entre os cônjuges, e algumas outras que poderiam comprometê-lo e colocá-lo em sério perigo. )P 243. São muitas as coisas que poderiam contribuir para estimular e aumentar o amor íntimo que deve reinar entre os cônjuges. Aqui, temos de contentar-nos em indicar algumas das mais importantes. Parece-nos que são as seguintes: a harmonia das almas, a con ança mútua e a união na oração. Pio falou maravilhosamente sobre cada um destes temas em seus famosos discursos aos recém-casados, dos quais vamos transcrever, a seguir, alguns fragmentos. a) A harmonia das almas 244. Em seu discurso aos recém-casados pronunciado na festa de Santa Cecília, patrona da música, no ano 1939, o grande pontí ce assim se expressou:295 Enquanto ressoa em vossos corações o hino eterno e sempre novo do amor cristão, a Igreja celebra hoje a festa de uma jovem romana, Santa Cecília, tradicional patrona da música. É para nós uma ocasião oportuna para vos dizer algumas palavras sobre a importância de uma concorde e constante harmonia entre o esposo e a esposa. Talvez pensaríeis que é inútil recomendar-vos harmonia nestes dias em que o acordo perfeito de vossos corações ainda ignora as dissonâncias. Mas não sabeis que, com o uso, até o melhor instrumento musical logo se desa na, sendo preciso a ná-lo freqüentemente com o diapasão? Assim também sucede com a vontade humana, cujas intenções estão sujeitas a decair. A primeira condição da harmonia entre os esposos e da conseqüente paz doméstica é uma constante boa vontade de ambas as partes. Porque a experiência cotidiana ensina que, nas dissensões humanas, como diz nosso grande Manzoni, “a razão e a sem-razão não se separam com um corte nítido o bastante para que as partes recebam somente uma, ou somente a outra”. E a Sagrada Escritura, embora compare a mulher má ao jugo mal ajustado de um boi (Eclo 26, 10), que ao mover-se atrapalha o seu trabalho, e assemelha a mulher litigiosa ao telhado que deixa passar goteiras na estação do frio (Pr 27, 15), também faz notar que o homem iracundo provoca as disputas (Eclo 28, 11). Olhai em torno e aprendereis, com o exemplo dos outros, que as discórdias conjugais

nascem com maior freqüência da falta de con ança recíproca, de condescendência e de perdão. Assim aprendereis a doçura do acordo entre os esposos. “Em três coisas”, dizem os Santos Livros, “se compraz a minha alma, pois agradam a Deus e aos homens: a concórdia entre os irmãos, o amor dos próximos e um marido e uma mulher bem unidos entre si” (Eclo 25, 1). Vós, queridos esposos, defendereis esta preciosa harmonia com todo cuidado contra os perigos de discórdia externos e internos; sobretudo contra dois deles: as descon anças, demasiado prontas para nascer, e os ressentimentos, lentos demais para morrer. No exterior, a obsessiva malícia de terceiras pessoas, mãe da calúnia, talvez introduza na pací ca harmonia conjugal a nota perturbadora da suspeita. Escutai de novo a advertência da Sagrada Escritura: “A língua de um terceiro lançou fora de casa mulheres de ânimo viril e as privou do fruto de suas fadigas. Quem lhe dá ouvidos nunca estará tranqüilo” (Eclo 28, 19–20). Não é verdade também que a falsa vibração de um único instrumento basta para destruir toda a harmonia de uma música? Mas as breves dissonâncias, que em uma execução musical ofendem ou, pelo menos, surpreendem o ouvido, vêm a resultar em um elemento de beleza quando, com hábil modulação, elas se resolvem no acorde esperado. Assim deve acontecer nos enfados e desgostos passageiros, que a debilidade humana torna sempre possíveis entre os esposos. É preciso resolver prontamente essas dissonâncias, é preciso fazer ressoar as modulações benévolas de almas prontas para o perdão, e assim voltar a encontrar o acorde, por um instante comprometido, naquela tonalidade de paz e amor cristão que hoje encanta vossos jovens corações. O grande apóstolo São Paulo vos dirá o segredo desta harmonia, conservada ou pelo menos renovada cada dia em vosso lar doméstico: “Se experimentais movimentos de ira”, adverte ele, “não cedais a suas sugestões: que o sol não se ponha sobre vossa ira” (Ef 4, 26). Quando as primeiras sombras da noite vos convidam à re exão e à oração, ajoelhai-vos um junto do outro, diante do cruci xo que velará vosso sono durante a noite. E juntos, com sinceridade de coração, repeti: “Pai nosso, que estais nos céus... perdoai-nos... como nós perdoamos”. Então se calarão as notas falsas do mau-humor, as dissonâncias se resolverão em uma perfeita harmonia, e vossas almas recomeçarão unidas seu cântico de reconhecimento a Deus, que vos entregou um ao outro.

b) A con ança mútua 245. Em seu discurso de 12 de novembro de 1941, Pio falou sobre a con ança mútua entre os esposos. Eis aqui seus principais parágrafos:296 Mais de uma vez, renomados escritores representaram em seus relatos, em suas novelas, em seus dramas, o estado moral paradoxal, às vezes mesmo trágico, de dois excelentes esposos, nascidos para se entenderem perfeitamente, mas que, por não se abrirem um ao outro, vivem a vida comum como estranhos, deixam nascer e crescer em si mesmos

incompreensões e mal-entendidos que pouco a pouco perturbam e exaurem sua união, e não raro a encaminham por uma via de tristes catástrofes. Tal condição espiritual dos cônjuges não existe apenas nas invenções novelescas: veri ca-se e encontra-se, em graus diversos, na vida real, mesmo entre bons cristãos. Qual será a sua causa? Talvez seja aquela forma de timidez natural, que faz com que certos homens e mulheres sintam uma repugnância instintiva em manifestar seus íntimos sentimentos, em comunicá-los a alguém. Talvez seja uma falta de simplicidade, que nasce de uma vaidade, de um orgulho oculto, acaso inconsciente. Em outros casos, uma educação defeituosa, excessivamente dura e demasiado exterior, terá acostumado a alma a dobrar-se sobre si mesma, a não se abrir e não se con ar por medo de ser ferida naquilo que tem de mais profundo e delicado. Ora, queridos lhos e lhas, esta con ança mútua, esta abertura de coração, esta simplicidade recíproca em comunicar-vos vossos pensamentos, vossas aspirações, vossas preocupações, vossas alegrias e tristezas, é uma condição necessária, um elemento, até mesmo um alimento essencial de vossa felicidade. Diante de vossos novos deveres, vossas novas responsabilidades, uma união puramente exterior de vossas vidas não pode bastar para que consigam colocar vosso coração em uma viva disposição que responda à missão que Deus vos con ou ao inspirar-vos a fundar uma família, e para que possais permanecer na bênção do Senhor, persistir em sua vontade e viver em seu amor. Para vós, viver no amor de Deus é sublimar em Seu amor o vosso afeto recíproco, que não deve ser apenas benevolência, mas aquela soberana amizade conjugal de dois corações que se abrem mutuamente, querendo e desejando as mesmas coisas, e se estreitam e unem cada vez mais no afeto que os anima e os move. Se deveis sustentar-vos mutuamente, e dar-vos a mão, e apoiar-vos para fazer frente às necessidades materiais da vida, um dirigindo a família e assegurando-lhe com o trabalho os meios necessários para seu sustento, a outra cuidando e vigiando todas as coisas no andamento familiar interno, muito mais convém que vos completeis entre vós, que vos socorrais e presteis ajuda mútua para superar as necessidades morais e espirituais de vossas duas almas e daqueles que Deus con ará à vossa solicitude, as almas de vossos queridos anjinhos. Porém, de que modo chegaríeis a dar esse mútuo sustento e ajuda se vossas almas permanecessem estranhas uma à outra, conservando cada um, zelosamente, seus próprios segredos de negócios, de educação ou de contribuição para a vida comum? Não sois como dois arroios que nascem das fontes de duas famílias cristãs e correm pelo vale da sociedade humana para confundir suas águas límpidas e fecundar o jardim da Igreja? Não sois como duas ores que associam suas corolas e, à sombra da paz doméstica, se abrem e se falam com a linguagem de suas cores e com a expansão de seus perfumes? Não diremos que esta mútua abertura de coração deva ser sem limites; que sem restrição de nenhum tipo se deva expor e abrir, um diante do outro, em alta voz, tudo quanto passou ou passa por vossa mente, ou despertou vosso pensamento e vossa

atenção. Existem segredos invioláveis, que a natureza, uma promessa ou uma con dência cerram e fazem emudecer nos lábios. Antes de tudo, vós podeis, um e outro, chegar a ser depositários de segredos que não vos pertencem: um marido médico, advogado, o cial, funcionário do Estado, empregado em uma administração, saberá ou poderá saber de muitas coisas que o segredo pro ssional não lhe permite comunicar a ninguém, nem mesmo a sua mulher; e esta, se é sábia e prudente, irá demonstrar-lhe a própria con ança respeitando escrupulosamente e admirando seu silêncio, sem nada tentar para penetrar nele. Recordai que no matrimônio não foi suprimida a vossa responsabilidade e imputabilidade. Contudo, mesmo naquilo que se refere pessoalmente a vós, pode dar-se o caso de con dências que seriam feitas sem utilidade e não sem perigos, que poderiam tornar nociva e perturbar a união, em vez de fazê-la mais concorde, mais alegre. Um marido e uma mulher não são confessores: ireis encontrar os confessores nas igrejas, nos tribunais da Penitência, onde, por seu caráter sacerdotal, estão elevados a uma esfera superior à própria vida de família, à esfera da realidade sobrenatural, e dotados do poder de curar as chagas do espírito; ali podem receber qualquer con dência, inclinar-se sobre qualquer miséria. Eles são os pais, os mestres e os médicos de vossas almas. Porém, fora desses segredos pessoais e sagrados, da vida interior e exterior, vós deveis pôr em comum vossas almas, como para formar das duas uma só alma. Acaso não é de suma importância para dois noivos que se assegurem de que suas vidas são tais que se possam concordar e colocar-se plenamente em harmonia? Se um dos dois é sincero, profundamente cristão, e o outro — como pode ocorrer, infelizmente — pouco ou nada crente, pouco ou nada cuidadoso dos deveres e das práticas religiosas, compreendereis bem que entre essas duas almas permanecerá, apesar de todo o seu amor, uma penosa distância, que não se harmonizará inteiramente, a não ser no dia em que se veri que, em seu mais pleno sentido, a palavra de São Paulo: “O marido não-cristão é santi cado pela mulher, e a mulher não-cristã é santi cada pelo marido cristão” (1Cor 7, 14). Quando, ao contrário, um ideal de vida comum já une os dois cônjuges, e ambos são, pela graça santi cante, lhos de Deus e moradas do Espírito Santo, então é possível e agradável con ar-se reciprocamente alegrias e tristezas, temores e esperanças, planos e desígnios sobre a ordem interna da casa, sobre o futuro da família, sobre a educação dos lhos: tudo isso os dois pensarão entre si, e irão prever, procurar e realizar com con ada concórdia. Então, quando for necessário, o mútuo amor e o comum espírito cristão tornarão fumaça toda discordância, e se mudarão em ajuda e força para vencer as dúvidas e as vacilações de uma timidez natural, insegura sobre seus passos; e para dominar aquelas inclinações e hábitos de isolamento, ou de se voltar para o próprio ânimo, que facilmente criam e alimentam um silencioso desagrado — não se desviarão diante do esforço necessário para tal violência e vitória, porque sua importância será compreendida. Deste mesmo amor, de onde nasce o desejo da íntima fusão de vossas vidas, tomareis o ardor e a coragem para as oportunas modi cações e convenientes adaptações de vossos gostos, de vossos costumes, de vossas preferências ou predileções naturais, deixando de ceder às insinuações do egoísmo e da indolência. Não será isto que a Providência de Deus, que vos uniu, pede à generosidade de vosso coração, àquele

espírito de verdadeira comunidade de vida, que toma como próprio o que agrada à pessoa com quem se vive? Não está, por acaso, conforme à intenção divina de vossa união terdes interesse por tudo quanto interessa a vosso marido ou a vossa esposa? A indiferença e a falta de cuidado estão entre as piores das incontáveis formas do egoísmo humano. Nada possibilitará entre vós a mútua con ança quanto o interesse verdadeiro, simples, sincero, cordial, sentido e manifestado por tudo o que deseja a pessoa com quem compartilhais a vida. Aquela carreira, aqueles estudos, aquele trabalho, aquele ofício, aquele emprego, não serão os vossos, ó esposas, e não dirão nada a vós; mas são a carreira, os estudos, o trabalho, o ofício, o emprego de vosso marido, pelos quais ele se apaixona e derrama seu suor, aos quais ele liga os sonhos de seu futuro, as esperanças de um melhoramento familiar e pessoal; e poderia isto não ter importância para vós? E a vós, esposos, é verdade que não vos faltam graves preocupações pro ssionais; porém, diante dos mil cuidados de vossa mulher para tornar mais confortável o interior de vossa habitação comum, para torná-lo mais tranqüilo; diante de seus esforços para vos agradar cada vez mais, em tudo; diante de sua atenta inquietação pela educação dos lhos, pelas obras bene centes e de utilidade religiosa e social, caríeis frios, esquecidos, até mesmo grosseiros e mal-humorados? Mas a boa família que acabais de iniciar é lha de vossas duas famílias que vos zeram crescer, vos educaram e instruíram; de certo modo, cada um de vós entrou na família do outro, família que, de agora em diante, já não é estranha, e até podeis chamá-la de vossa, porque junto àquele lar encontrastes vossa companheira ou vosso companheiro. Não esqueçais, pois, aqueles vossos a ns, aquele pai, aquela mãe que vos deram sua querida lha ou seu lho; tomai parte em tudo que lhes interessa, tanto em suas alegrias como em seus lutos; esforçai-vos por compreender suas idéias, seus gostos e maneiras; demonstrai com o afeto o vínculo que vos liga a eles. Também naquela família o vosso coração deve abrir-se e entrar em uma generosa e con ante entrega de ânimo e de pensamentos. Seria uma pena para vosso marido, para vossa mulher, se vos mantivésseis esquivos e desinteressados por essas pessoas e pela casa que é a deles! Se o coração aberto foi chamado e exaltado, por todos os escritores que através dos séculos descreveram e cantaram os elogios da amizade, como o fundamento do vínculo que une dois amigos no afeto, ainda mais ele será exigido na vida conjugal, como vértice do santuário da paz e da alegria doméstica, onde um coração que se abre a vós — e ao qual vos foi concedido poder abrir o vosso a todo momento, seja pela manhã, ao meio-dia ou ao m de vossa jornada — é sempre fonte e alento daquela felicidade que, mais do que na simples amizade, se desfruta no matrimônio vivido de maneira cristã. Que Deus, queridos recém-casados, vos conceda com sua graça fazer frente, com ânimo sempre mais generoso, aos pequenos sacrifícios que eventualmente exige o pleno desfrutar de tamanha felicidade.

c) A união na oração

246. Eis aqui, sobre este importantíssimo assunto, alguns belos parágrafos de Pio , dirigidos aos recém-casados:297 Grande virtude é a devoção, salvaguarda de toda obra! Mas o seu gesto mais belo e comum é a oração, que para o homem, constituído de espírito e corpo, é o alimento diário do espírito, como o pão material é o manjar cotidiano do corpo. E tal como a união faz a força, a oração em comum tem maior e cácia sobre o coração de Deus. Por isso Nosso Senhor abençoou particularmente toda oração feita em comum, proclamando a seus discípulos: “Digo-vos, ainda, que se dois de vós se unem em oração sobre a terra e pedem alguma coisa, ser-lhes-á concedida por meu Pai, que está nos céus. Porque onde há duas ou três pessoas reunidas em meu nome, ali estou eu no meio delas” (Mt 8, 19–20). Mas que almas poderão encontrar-se mais real e plenamente reunidas em nome de Jesus para orar, que aquelas nas quais o Santo Matrimônio imprimiu a imagem viva e permanente da sublime união do próprio Cristo com a Igreja, sua amada esposa, nascida no Calvário de seu lado aberto? União grande e frutuosa, queridos recém-casados, é esta que vos põe de joelhos, os dois juntos, diante de Deus, que vos deu um ao outro, para pedir-lhe que conserve, aumente e abençoe a fusão de vossas vidas. Se todos os cristãos que oram em seu próprio e particular recolhimento também devem dar, em sua vida, um espaço para a oração em comum, que lhes recorda que somos irmãos em Cristo e que estão obrigados a salvar suas almas, não isoladamente, mas ajudando-se mutuamente, com quanto mais razão vossa oração não pode separar-vos como eremitas e recolher-vos em solitária meditação, de modo que nunca vos encontreis juntos diante de Deus e de seu altar! E onde irão apertar-se e fundir-se em um os vossos corações, as vossas inteligências, as vossas vontades, de modo mais profundo, forte e sólido que na oração dos dois, na qual descerá a própria graça divina para harmonizar todos os vossos pensamentos e todos os vossos afetos e anseios? Que doce espetáculo ao olhar dos anjos é a oração dos esposos que erguem seus olhos ao céu e invocam sobre si e sobre suas esperanças o olhar e a mão protetora de Deus! Na Sagrada Escritura, poucas cenas igualam a comovedora oração de Tobias com sua jovem esposa Sara: conhecedores do perigo que ameaçava sua felicidade, põem sua con ança ao se elevarem, diante de Deus, acima dos olhares baixos da carne, e se animam com a lembrança de que, lhos de santos, não lhes cava bem unir-se “à maneira dos gentios, que não conhecem a Deus” (Tb 8, 4–9). Também vós, como Tobias e Sara, conheceis a Deus, que sempre faz surgir o sol, ainda que nublado, sobre vossa aurora. Por muito cheias e carregadas de ocupações que possam estar vossas jornadas, sabei encontrar ao menos um instante para ajoelhar-vos juntos e começar o dia elevando vossos corações para o Pai celestial e invocando sua ajuda e sua bênção. Pela manhã, no momento em que o trabalho cotidiano vos chama imperiosamente e vos separa até o meio-dia, e talvez à tarde, quando depois de leve refeição trocais um olhar e uma palavra antes de vos separar, não esqueçais nunca de rezar pelo menos um simples Pai-Nosso ou uma Ave-Maria, e dar graças ao céu por aquele pão que vos

concedeu. A jornada, longa, talvez penosa, vos manterá um longe do outro, mas, próximos ou distantes, estareis sempre sob o olhar de Deus; e acaso não se alçarão os vossos corações, com devotos e comuns anseios até Ele, em quem permanecereis unidos, e que velará sobre vós e sobre vossa felicidade? E quando cai a tarde, terminado o duro trabalho do dia, e vos reunis no interior das paredes domésticas com a alegria de gozar um pouco um do outro e de comunicar-vos os acontecimentos da vossa jornada, naqueles momentos de intimidade e repouso, tão preciosos e doces, dai a Deus o seu devido lugar. Não temais: Deus não virá como inoportuno para perturbar vosso con ante e delicioso colóquio; ao contrário, Ele, que já vos escuta e em seu coração vos preparou e permitiu aqueles instantes, irá torná-los, sob seu olhar de Pai, mais suaves e reconfortantes. Em nome de Nosso Senhor, vos suplicamos, queridos recém-casados: esforçai-vos por conservar intacta essa bela tradição das famílias cristãs: a oração da noite em comum, que reúne ao m de cada dia, para implorar a bênção de Deus e honrar a Virgem Maria com o Rosário de seus louvores, a todos os que vão dormir sob o mesmo teto: vós dois e, depois que tiverem aprendido de vós a unirem suas mãozinhas, os pequenos que a Providência vos con ou, e também, se para vos ajudar em vossos trabalhos domésticos o Senhor os pôs a vosso lado, vossos criados e colaboradores, que também são vossos irmãos em Cristo e têm necessidade de Deus. E se as duras e inexoráveis exigências da vida moderna não vos permitirem ampliar esse tão piedoso meio de bênção e ação de graças ao Senhor, e de lhe acrescentar, como gostavam de fazer nossos pais, a leitura de uma breve vida de santo, do santo que a Igreja nos propõe todos os dias como modelo e protetor particular, não sacri queis por completo, ainda que seja rápido, esse momento que dedicais juntos a Deus, para louvá-lo e apresentar-lhe vossos desejos, vossas necessidades, vossos sofrimentos e preocupações, do presente e do futuro.

2. Ajuda mútua 247. A ajuda mútua dos cônjuges é um dos ns secundários do matrimônio (cf. cân. 1013, §1),298 disposto e ordenado pelo próprio Deus quando disse no paraíso terrestre: “Não é bom que o homem esteja só, vou fazer-lhe uma ajuda semelhante a ele” (Gn 2, 18). E embora seja completamente falso — como declarou a Igreja repetidas vezes299 — que o matrimônio seja mais perfeito que a virgindade ou o melhor estado a que o homem possa aspirar, como se se tratasse de um complemento siológico e psicológico exigido por sua natureza humana e constituição orgânica, não há dúvida de que — exceto para sublimar ambas as coisas a serviço de uma vocação mais elevada (sacerdotal, religiosa ou virgindade no mundo), que sempre será patrimônio de alguns poucos — o homem encontra no matrimônio o complemento

natural que exige a sociedade familiar em ordem à geração dos lhos e da ajuda recíproca dos cônjuges. As manifestações desta ajuda mútua são muito variadas, e seria impossível reuni-las todas aqui. Além disso, dependem das circunstâncias especiais de cada família, e não é possível dar, portanto, normas universais que valham para todas, indistintamente. Contudo, apontaremos duas das mais freqüentes, e cuja aplicação é mais constante: a mútua compreensão e a mútua colaboração. a) Mútua compreensão 248. A ajuda mútua entre os cônjuges deve manifestar-se acima de tudo em uma mútua compreensão. O esposo deve esforçar-se por compreender a psicologia feminina, concretizada pessoalmente em sua mulher, e a esposa terá especial cuidado em conhecer a psicologia masculina tal como ela se encontra em seu marido. Sem esta mútua compreensão, a felicidade do matrimônio é de todo impossível, e até pode comprometer a paz familiar, com grave prejuízo para os lhos. Muitas mulheres não sabem compreender, por exemplo, que o homem é feito para trabalhar e ser o sustento material da família. As longas horas que, para isso, ele precisa passar ordinariamente fora do lar, tornam-se para elas — por falta de compreensão — um verdadeiro martírio. Se ao m da jornada, ao voltar cansado de seu trabalho, o esposo prefere descansar um momento, lendo o jornal ou vendo televisão, a esposa incompreensiva se exaspera e irrita pensando que seu marido não a trata como merece ou deixou de amá-la completamente. Por sua vez, muitos maridos não se dão conta de que a mulher necessita acima de tudo de amor, e que para o demonstrar, devem superar eventualmente sua própria fadiga e suas preocupações pro ssionais. Na atitude de ambos existe muito de egoísmo e mútua incompreensão.

Em sua celebrada obra Hombre y mujer, Cabodevilla escreveu todo um capítulo consagrado a este tema. Eis aqui alguns de seus principais parágrafos:300 Entre as possíveis desavenças conjugais, merece especial menção e espaço aquela que provém dos “ciúmes” da esposa em relação ao trabalho de seu marido. Uma recém-casada me contava a penosa impressão que lhe tinha causado ver seu companheiro, no primeiro dia, sair a caminho de suas ocupações pro ssionais. Ela bem sabia que aquelas jornadas de convivência ininterrupta da lua-de-mel teriam de acabar; mas uma coisa é sabê-lo teoricamente, e outra, diferente, é experimentá-lo. Quando ele fechou a porta atrás de si, aquela pancada soou com tristíssima ressonância no coração da jovem esposa. “Sou uma boba; isto é normal, ele tem de trabalhar; logo voltará”. Mas todos os argumentos de consolo, mil vezes repetidos, não conseguiam apagar o eco daquele golpe da porta ao se fechar. Foi uma manhã desagradável. Foi muito áspera a solidão. A esperança de que ele voltaria para o almoço não podia competir com o desespero de saber que de novo ele iria partir depois de comer, e outra vez no dia seguinte, e assim toda a semana, todo o ano, a vida inteira. A casa se tornava grande, quase estranha; fazia frio. Era aquela coisa terrível, sufocante, até sicamente dolorosa, que tão bem conhecem os humanos: a solidão. Mas não era unicamente a solidão. Havia também uma imprevista revelação: para o marido existiam outras coisas, anteriores, que não eram ela. Como não percebera isso antes? Pois não; foi preciso que as vibrações da batida de uma porta despertassem esse tão fácil quanto assombroso pensamento. A mulher sabia muito bem que ele tinha de sair para trabalhar. Reconhecia que, graças ao trabalho dele, poderiam viver. Entretanto, esse trabalho, que era um trabalho intelectual, impediria seu marido de pensar nela, enquanto ela ocupava nele toda a sua lembrança e os seus sonhos: seus mínimos e simples trabalhos mecânicos lhe permitiam ter a cabeça sempre funcionando; essas mesmas tarefas eram uma permanente referência a ele, desde passar sua roupa até o arranjo de ores que ele preferia. Ele, não. Ele continuaria investigando a vida de Fouché, acumulando dados e organizando chas, obsedado pela sutil trama diplomática de uma corte desaparecida, distraído, distraído, distraído... Certamente, a mulher não tolera competidores. Não só qualquer outra mulher é uma rival, mas também qualquer idéia, qualquer preocupação ou tarefa que sejam estranhas a ela. É verdade que o ofício do marido representará para ela uma desagradável competição, na medida em que esse trabalho absorva as íntimas energias e o entusiasmo de seu companheiro. Com isto, ca claro que aqui não nos referimos a esse tipo de pro ssões impessoais que não comprometem o entusiasmo e a determinação interior daquele que as desempenha. Nestes casos, a esposa poderá sofrer com a solidão em que a ausência do homem a deixa entregue, e também padecerá pelas companhias que o rodeiam e por tudo o que lhe impede de dedicar a ela o seu pensamento, mas não estará ciumenta da natureza desse trabalho. O que dói à mulher é especialmente a tarefa à qual seu marido consagra seu mais íntimo fervor, como costuma ocorrer em certos trabalhos cientí cos, nanceiros ou artísticos. É curioso ver como aquelas atividades viris que antes, ainda

solteiras, haviam atraído a admiração e o afeto da mulher, servem para, uma vez casadas, causar-lhes desgostos e chateações. A m de evitar tais obstáculos, que podem chegar a azedar e tornar sofrida a vida conjugal, é preciso, em primeiro lugar, que o varão compreenda aquilo que tantas vezes temos repetido: que o amor é tudo para a mulher, enquanto ele considera esse amor como somente uma parte mais ou menos importante de sua vida, parte que se integra dentro de um quadro geral, onde sua vocação especi camente masculina de descobrir e conquistar o mundo exige uma ardente dedicação. Maurois a rma que todo varão digno deste nome ama seu trabalho acima de qualquer outra coisa no mundo, até mesmo a mulher que ele ama.301 Assim sendo, Maurois — que foi profundamente feliz em seu casamento, ainda que o tenha concebido excessivamente como uma grata colaboração — representa um caso extremo de paixão pelo trabalho; confessa que ele imaginava a bem-aventurança metido em seu laboratório e escrevendo sem esforço uma grande novela inacabável. A opinião de Maurois pode ser exagerada, mas não há dúvida de que todo homem consagrado com entusiasmo a uma ocupação que lhe é agradável extrai dela alegrias que não são inferiores aos prazeres do coração; a mulher comum, a quem basta seu amor para ser feliz, não poderá compreender isto facilmente, não conseguirá entender que um esposo, plenamente feliz no campo do amor carnal e espiritual, conserve grandes porções de sua alma ansiando por outras satisfações. Ocorre que o homem pode se entregar a uma idéia, a uma abstração, a uma causa, enquanto a mulher só pode se entregar com espontaneidade a um ser vivo e concreto; por isso ela não costuma ser sensível aos estímulos não-encarnados que pedem por um varão. Tudo isso deve induzir a mulher a aceitar como natural e imutável, e não como uma lesão do amor, a apetência varonil por deleites que nada têm a ver com as realidades afetivas que para ela constituem seu mundo completo. A mulher deve tolerar sem queixas nem amargura que seu marido dedique a seu trabalho muitas horas e muitos anseios, aquelas horas que ela somente sabe dedicar a atender, recordar ou esperar o marido; aqueles anseios que ela destina por inteiro, sem exceção, a seu marido. E que obrigações cabem ao esposo em tal estado de coisas? Qual deve ser sua cooperação para que esta situação natural e neutra não se transforme em uma situação lamentável, para que, ao invés de produzir uma dissidência conjugal, se consiga uma harmonia ainda mais rica? O marido deve se dedicar em interessar sua mulher pelo trabalho que realiza, pelas alegrias ou dissabores pro ssionais que lhe afetam. Deve superar essa idéia nociva de que ela não tem capacidade para estar associada à esfera dos assuntos masculinos. Se seu trabalho é de índole artística, deverá cultivar a sensibilidade dela até conseguir que se faça plenamente receptiva; se seu trabalho pertence a um ramo das ciências, e muito especializado, é claro que não há motivo para iniciá-la em abstrusos problemas técnicos, mas deve, antes, saber interessá-la no aspecto psicológico ou social de sua pro ssão. Para evitar aquela desdita tão freqüente do casal sem interesses comuns, sem temas comuns de conversa além dos lhos e das pequenas coisas da vida diária, para impedir a deplorável ruptura do marido embebido em seus próprios empreendimentos, com a mulher reduzida a suas pequenas tarefas domésticas, é necessário que o esposo

saiba tornar sua companheira participante de todos os seus projetos, combates e esperanças. Não existe amor tão sólido como aquele que está fundamentado em uma total identi cação de vida. Se reconhecemos a importância que o trabalho tem em uma vida masculina, facilmente podemos imaginar a transcendência que, para o amor mútuo, supõe a incorporação da esposa nos cuidados e esforços do trabalho do homem. A este esforço do marido em associar sua consorte à sua própria pro ssão, deve corresponder, na esposa, uma atitude de docilidade e admiração. Ser dócil signi ca que ela não deve opor nenhuma resistência ao esforço dele, e que deve colaborar com prazer na conversa, embora tenha que deixar de lado outros assuntos que lhe dizem respeito mais diretamente. A admiração signi ca que ela deve desenvolver uma sincera estima pelo trabalho de seu esposo. Charmot costumava dizer que o melhor da esposa é sua pureza de coração; se o homem quer destruir o amor, basta ferir brutalmente esses belos sentimentos; igualmente, o melhor do marido é sua afeição ao trabalho; se a mulher não se importa em deixar de ser amada, basta afastar o marido dos trabalhos que lhe dão honra. A mulher deve, acima de tudo, permitir de bom grado que o esposo saia de casa com alegria para seu trabalho, para a realização de seus projetos viris. Somente assim ela poderá conseguir que ele volte ao lar com renovado amor, para os braços de uma esposa compreensiva que sabe compartilhar com ele tudo aquilo a que dedica suas energias.

Esta mútua compreensão entre marido e mulher não se refere unicamente às tarefas pro ssionais que cabem a cada um deles, mas a mil detalhes da vida diária que surgirão a cada momento. Somente o verdadeiro amor conjugal, mescla de sacrifício, abnegação e delicadeza, saberá encontrar em cada caso a expressão exata dessa mútua compreensão que é, ao mesmo tempo, a condição indispensável e a garantia mais perfeita da paz e da felicidade do lar. b) Mútua colaboração 249. A mútua compreensão entre os cônjuges os levará, espontaneamente e sem esforço algum, à mútua colaboração em todos os aspectos da vida familiar. Pio soube expressá-lo com grande delicadeza em um de seus admiráveis discursos aos recémcasados. Eis suas palavras:302 É um jugo de graças para vós, queridos esposos, o grande sacramento do Matrimônio, que, diante do sacerdote e no altar de Cristo, vos uniu com vínculo indissolúvel em uma vida a dois, para que caminheis juntos aqui embaixo e vos ajudeis reciprocamente,

colaborando em sustentar o peso da família, dos lhos e de sua educação. Na vida da família, alguns são deveres próprios do varão, e outros da mulher e mãe; mas nem a mulher pode permanecer inteiramente estranha ao trabalho do marido, nem o marido à preocupação da mulher. Tudo o que se faz em família deve ser de algum modo fruto da colaboração, obra comum, em certo grau, dos dois esposos. Que signi ca “colaborar”? Signi caria, talvez, a simples soma de forças, operando cada um por sua conta, como quando engatam duas locomotivas a um trem demasiado pesado, e elas reúnem sua energia para arrastá-lo? Esta não é uma verdadeira colaboração; ao contrário, em cada uma das máquinas, o maquinista e o foguista — ou o maquinista e seu ajudante nas modernas locomotivas de tração elétrica — colaboram em sentido próprio, material e conscientemente, para assegurar a boa marcha. Cada um deles faz seu trabalho peculiar, mas não sem se preocupar com seu companheiro; ao contrário, vão compassando sua ação com a do outro, conforme o que este necessita e pode esperar dele. A colaboração humana deve ser feita com a mente, com a vontade e com a ação. Com a mente, porque na realidade só as criaturas inteligentes podem colaborar entre si, unindo sua livre atividade. Aquele que colabora não somente acrescenta seus esforços por conta própria, mas os adapta aos de outras pessoas, para os acompanhar e fundir em um efeito comum. A colaboração consistirá, portanto, em subordinar organicamente o trabalho de cada pessoa a um pensamento comum, rumo a um m comum que irá ordenar e proporcionar tudo em si mesmo, de modo hierárquico, e cujo desejo comum aproximará todas as inteligências em um mesmo interesse, estreitando os ânimos em uma recíproca afeição, movendo-os a aceitarem a renúncia à própria independência, para adaptá-los a todas as necessidades que a consecução daquele objetivo possa exigir. Em um pensamento, uma fé e uma vontade comuns está a raiz de toda verdadeira colaboração, a qual será tanto mais estreita e fecunda quanto mais intensamente operarem o pensamento, a fé e o amor, e mais vivamente persistirem na ação. Compreendereis por isso que a colaboração, envolvendo a mente, a vontade e o trabalho, nem sempre é coisa fácil de realizar perfeitamente. Junto a esta grande idéia da união e cooperação das forças, com esta íntima convicção do m a ser alcançado, com esta ânsia ardente de consegui-lo a todo custo, a colaboração também supõe a mútua compreensão, a estima sincera e o sentido da participação necessária daquilo que os outros fazem e devem fazer para o mesmo m, uma ampla e judiciosa condescendência para considerar e admitir as inevitáveis diversidades entre os colaboradores, não para aborrecer-se com elas, mas para aproveitá-las. E, para isso, também faz falta aquela abnegação pessoal que sabe se superar e ceder, em lugar de querer que prevaleça em tudo o próprio parecer e de reservar-se os trabalhos que mais agradam e dão prazer; e que sabe até mesmo não se recusar, às vezes, a desaparecer e ver como o fruto do trabalho de uma pessoa pode se perder, por assim dizer, no anonimato, no incógnito indistinto do proveito comum. Contudo, por difícil que pareça uma colaboração tão íntima e concorde, ela é indispensável para o bem ordenado por Deus na família. São duas pessoas, o homem e a mulher, que caminham juntos e se dão a mão, ligando-se com o vínculo de um anel; nó amoroso que mesmo o paganismo não hesitou em chamar de vinculum iugale. Pois o

que é a mulher, senão a ajuda do homem, aquela a quem Deus concedeu o sagrado dom de fazer o homem nascer para o mundo, aquela cuja irmã mais velha, “humilde e mais elevada criatura, termo xo de eterno conselho” [Dante, Paraíso], devia dar-nos o Redentor do gênero humano e se regozijar com Seu primeiro milagre, o nó conjugal das Bodas de Caná? Deus estabeleceu que para o m essencial e primário do vínculo conjugal, que é a geração dos lhos, cooperassem o pai e a mãe, com uma colaboração livremente aceita e desejada, submetendo-se a tudo que um m tão magní co possa supor como sacrifícios, e pelo qual o Criador torna os progenitores como que participantes daquela suprema potência com a qual criou do barro o primeiro homem, reservando para Si a infusão do spiraculum vitae, o sopro da vida imortal, como a se fazer supremo Colaborador na obra do pai e da mãe, já que Ele é a causa do operar, e opera em todos os que operam.303 Por isso Ele se alegra, ó mães, quando esqueceis todas as penas para exclamar com o nascimento de uma criança: Natus est homo in mundum: Nasceu um homem para o mundo! (Jo 16, 21). Realizou-se em vós aquela bênção que, no paraíso terrestre, Deus deu em primeiro lugar a nossos pais, e repetiu depois do dilúvio ao segundo pai do gênero humano, Noé: “Crescei e multiplicai-vos, e enchei a terra” (Gn 1, 28; 8, 17). Porém, além da vida física e de sua saúde, vós deveis colaborar para sua educação na vida espiritual, porque, naquela tenra alma, as primeiras impressões deixam profundas marcas, e o m principal do matrimônio não é apenas procriar os lhos, mas também educá-los e fazê-los crescer no temor de Deus e na fé, para que, na colaboração que deve penetrar e animar inteiramente a vida conjugal, encontreis e gozeis daquela felicidade da qual a Divina Providência preparou tantos germes, fecundando-os com sua graça na família cristã. Mas tampouco o pensamento e o cuidado de uma criança, cujo nascimento coroou e consagrou a união dos dois esposos, bastariam para levá-los a colaborar por toda a vida, de um modo automático e espontâneo, se faltasse ou diminuísse a vontade e o propósito cordial de colaborar. O propósito nasce da vontade; o propósito deve ser precedido pela convicção da necessidade da colaboração. Acaso compreende bem esta necessidade aquele que entra na vida conjugal com a intenção de, nela, levar e conservar zelosamente sua própria liberdade, e nada sacri car de sua independência pessoal? Antes, isto não é caminhar para os piores con itos, sonhar e arrogar-se uma situação impossível e quimérica na realidade da vida comum? Convém compreender e aceitar, ao mesmo tempo, de modo sincero e pleno, com amor e condescendência, e não só com resignação, esta condição capital da vida escolhida; então, é preciso abraçar generosamente, com valentia e alegria, tudo que torne possível, concorde e gentil esta colaboração, inclusive o sacrifício de gostos, preferências, desejos ou costumes pessoais, até a monotonia diária de trabalhos humildes, obscuros e penosos. Vontade de colaborar. Que é preciso querer? É preciso querer e procurar esta cooperação; é preciso amar o trabalho conjunto, sem esperar que ele vos seja oferecido, pedido ou imposto; é preciso lançar-se para frente, saber dar os primeiros passos, estabelecer um princípio de fato; é preciso desejar vivamente a continuação desses primeiros passos, quando necessário, e perseverar com atenção intensa e vigilante para encontrar o modo de reunir realmente vossas duas atividades, sem desânimos nem impaciências, se a contribuição ou a ajuda da outra parte talvez pareçam insu cientes

ou desproporcionais, não correspondendo aos próprios esforços; sempre animados pela decisão de jamais considerar elevado qualquer preço que sirva para vos proporcionar a concórdia tão indispensável, desejável e proveitosa para cooperar e tender ao bem da família. Propósito cordial de colaborar. Isto é, aquele propósito que não se aprende nos livros, mas é ensinado pelo coração, que ama o acordo e o concerto ativo no governo e no andamento do lar doméstico; aquele propósito que é recíproca afeição, mútua atenção e solicitude pelo ninho comum; aquele propósito que observa para aprender, que aprende para fazer, que faz para estender a mão um ao outro; en m, aquele propósito que é uma lenta e mútua educação e formação conjugal, necessária para duas almas que se educam reciprocamente para chegarem a conseguir uma colaboração íntima e verdadeira. Se antes de viverem juntas, sob o mesmo teto, cada uma das duas almas viveu seus dias e se formou por conta própria; se uma e outra procedem de duas famílias que, embora semelhantes, nunca serão idênticas; se cada uma traz, portanto, para a morada comum maneiras de pensar e de sentir, de agir e de se relacionar que, à primeira vista, nunca entrarão em acordo, em plena e total harmonia, vós percebeis bem que será necessário, antes de mais nada, para que se coloquem em acordo ao agir, conhecer-se mutuamente mais a fundo do que tinha sido possível durante o tempo do noivado; investigar e discernir, a cada caso, as virtudes e os defeitos, as capacidades e as de ciências, não tanto para promover críticas e disputas, ou para se impor pessoalmente, vendo somente as manchas negras naquele ou naquela com quem se uniu a própria vida, mas para se dar conta daquilo que pode esperar, daquilo que talvez tenha de ser compensado ou suprido. Uma vez conhecidos os passos com os quais será preciso acertar os vossos, virá a exigente tarefa de modi car, adaptar e harmonizar os pensamentos e os costumes; tarefa que o afeto recíproco fará progredir insensivelmente, e não será perturbada por transformações, mudanças e sacrifícios, que não recairão exclusivamente sobre uma das partes, mas cada uma delas assumirá sua porção com muito amor e con ança, pensando no próximo amanhecer do dia em que a alegria do completo acordo entre as duas almas, na mente, na vontade e na ação, alegrará e aliviará o fruto pleno e suave da colaboração na prosperidade e felicidade da família. Aqui embaixo, todos os homens são peregrinos de Deus (1Cor 5, 6), dirigindo-se para Ele pelo caminho dos viventes; mas sobre o itinerário repetido da vida conjugal, mais de uma vez a diferença de caracteres dos dois caminhantes transforma a viagem de um deles em exercício de virtude tão grande, que o elevou às luzes da santidade.

c) Obstáculos a serem evitados Vejamos agora quais são os principais obstáculos em que pode tropeçar esta recíproca e profunda ajuda entre os cônjuges. Os principais são: o egoísmo e a diversidade de caracteres.304 i. O egoísmo É

250. É preciso atacar com energia o egoísmo, que é o maior inimigo da felicidade doméstica. Um casal é feliz quando cada um dos cônjuges, ao contraí-lo, propõe-se não a ser feliz, mas a fazer o outro feliz. É preciso trabalhar valorizando pouco o que se faz, sem viver discutindo e medindo quem faz mais. Tudo o que se faz em família deve ser obra da colaboração dos esposos, que não devem permanecer estranhos ao trabalho do outro cônjuge, embora cada um tenha sua missão própria. A colaboração dos esposos muitas vezes exige a renúncia aos próprios gostos e idéias. Não se deve insistir naquilo que separa, mas no que une. Os sacrifícios que a união impõe devem ser feitos com alegria. É preciso adquirir o hábito da paciência. Interessar-se por aquilo que interessa ao outro cônjuge; e será uma demonstração de delicadeza interessar-se por sua família. O amor-próprio gostaria que a outra parte se submetesse plenamente aos próprios caprichos, mas é necessário sacri car-se pela harmonia conjugal. Deve-se dissimular os defeitos do cônjuge não só diante dos outros, mas de si mesmo e no seio da própria consciência. O dom mútuo é no matrimônio um princípio de expansão e fonte de vida, e se embeleza quando se veri ca o intercâmbio entre duas almas cheias de vida sobrenatural. Os esposos não poderão ajudar-se espiritualmente se permanecerem fechados entre si. É preciso vencer o hábito do isolamento e a timidez, ou o orgulho, que impedem a con ança conjugal. “Viver sua vida” e conservar a independência no matrimônio é um modo sinistro de egoísmo. Às vezes, por não se abrirem plenamente, dois esposos vivem como estranhos um para o outro. ii. A diversidade de caracteres 251. É natural entre os esposos certa diversidade de caracteres, mas estas não devem ser obstáculo para seu perfeito entendimento. Às vezes, serão o campo de luta da virtude, e úteis para ganhar o céu. É difícil suportar os contrastes de caráter, gostos e idéias, e silenciar a tempo; porém os casados devem fazer

o propósito de renunciar desde o princípio a seus próprios gostos para acabar com a divisão desde o começo. Ceder em questões fúteis em benefício da paz. Que pensarão os lhos sobre as desavenças conjugais? A discrepância religiosa entre os esposos causa uma penosa dissonância, que só acaba quando se consegue a unidade na fé. Por isso, a Igreja sempre desaconselha os matrimônios entre cônjuges de religião mista ou com disparidade de cultos. Os pequenos desentendimentos da vida diária devem ser perdoados rapidamente. Às vezes, no matrimônio, há oportunidade para praticar o perdão heróico. Porém, em geral, deve-se adquirir o hábito do perdão imediato, sincero e pleno. O perdão não exclui o restabelecimento da justiça ou do direito lesado, pois sem a reparação da justiça não é possível uma paz duradoura. Contudo, a entrega dos esposos tem certos limites, traçados pela própria lei de Deus, que não é lícito ultrapassar. Há ocasiões em que a moral impõe a rigidez, e não é lícito ceder à vontade do cônjuge, que deve ser afastado do pecado com energia e constância. Não existe no matrimônio a liberdade moral para quebrar a lei de Deus pelo capricho de um dos cônjuges, nem pelo comum acordo dos dois. Voltaremos a isto em seu lugar próprio. 3. Generosidade crescente na entrega e colaboração 252. Exporemos esta subseção de forma esquemática e com uma visão sintética de conjunto.305 O matrimônio constitui uma realidade moral no tempo, sendo suscetível a mudanças, como progresso ou decadência. Ele passa por diferentes etapas ao longo de uma vida que começou naquele dia das bodas.

Muitos anos de vida em comum. Acontecimentos que marcarão. Transformações de toda ordem: psicológicas, físicas, etc. Mas serão sempre esposos diante de Deus. Um mesmo sacramento. Convicção da entrega de ambos. Sentimento desse dever, que para os cristãos é consciência e reconhecimento do soberano domínio de Deus sobre o mundo. i. Diferentes etapas 1. É difícil notar uma delimitação concreta na vida matrimonial, dividindo-a em etapas, períodos ou outra divisão qualquer. Os módulos a que nos vamos ater são suscetíveis de mudanças e adaptações múltiplas. 2. Do ponto de vista cronológico, poderiam ser estabelecidas três passagens: a) Recém-casados, matrimônio jovem com a recente recordação da lua-de-mel. b) Maturidade plena, momento álgido, encarnado na luta diária para levar adiante uma família. c) A paz e a serenidade da senectude, representada pelos esposos já anciãos. Chegou o descanso e, com ele, as recordações... 3. Através destas três passagens e dentro do Matrimônio cristão e católico, vamos delinear este primeiro ponto, que traz consigo a delidade: a generosidade na entrega. a) Generosidade entre os jovens esposos 1. Vantagens: a) As ores que a jovem esposa levou no grande dia ainda permanecem frescas. Todas elas recordam o grande

acontecimento. Cada dia tem sua novidade. b) Os defeitos, se existem, “irão sendo limados com o tempo...”. Estão dispostos a esquecer tudo. c) Aquela preparação matrimonial permanece viva na memória. Tem-se consciência do novo estado. A coisa vai bem. 2. Inconvenientes: a) A própria juventude dos cônjuges inclui certa irresponsabilidade, que se deixa notar em muitas atividades. b) Um equivocado sentido da liberdade leva-os a pensar que tudo está permitido no novo estado... c) Chegam também as primeiras desilusões. “Ele logo se irrita, e quando noivos não era assim...”. Agora, a compreensão entre ambos é mais necessária. b) Matrimônio em seu apogeu 1. Maravilhosa perspectiva dos cônjuges já maduros. Anos de experiência de sua vida matrimonial. 2. A presença dos lhos adoça a luta cotidiana. É preciso impulsioná-los para frente. Alguns, já maduros, vão-se de nindo na vida. 3. Essa luta traz consigo preocupações e dores de cabeça: a) O esposo sente em sua carne o preceito divino: “Ganharás o pão com o suor de teu rosto” (Gn 3, 19). b) A esposa, como el guardiã, acudirá para preencher os vazios inevitáveis...

4. Dias difíceis, em que a felicidade do lar parece cambalear. Agora é o momento da grande generosidade; entrega e con ança de um ao outro. c) Bodas de ouro 1. Chegou a hora do descanso. O olhar se volta para trás e contempla os anos passados. Sempre juntos, nos momentos agradáveis e amargos... 2. Homenagem sincera aos que os bene ciaram com um ideal abençoado por Deus. 3. Ou, talvez, silêncio e abandono em torno deles. Esquecimento e incompreensão. Não importa: estão ali os dois, esposos como no primeiro dia: a) Amam-se como então, mas com amor mais puro, livre de egoísmos. b) A entrega mútua é total, sem nada pedir em troca. Perfeitamente compenetrados em um amor mais forte. ii. Entrega e delidade a) A delidade, garantia da entrega 1. A delidade entre ambos, como meta a que conduz a entrega. Fidelidade, o tesouro preferível a qualquer outro. 2. Produz nos esposos a medida da felicidade: a unidade. Muda em doçura a austeridade jurídica do contrato. 3. Constância e perseverança no amor, pela realidade cotidiana do dom recíproco. 4. O espírito cristão “assegurará vossa recíproca delidade com o afeto mútuo, fundamentado no amor de Deus” (Pio ).

b) A entrega precisa ser cultivada 1. Entrega de coração em ambos, como símbolo e imagem da vontade: a) Do coração nascem os primeiros anseios, as primeiras palavras que serviram para se encontrarem e iniciar uma relação. b) Deve estar sempre aberto na vida comum. Um coração fechado diminui a alegria e a paz. 2. E às vezes chega também a desilusão por esse mesmo coração: a) A sensibilidade pode diminuir, e de fato assim ocorre muitas vezes. b) Talvez um coração afetuoso não se veja correspondido em grau semelhante. E isso dói. c) “Você me importuna, deixe-me em paz!”. Frase que se ouve com bastante freqüência. Os afetos nem sempre são correspondidos... iii. Generosidade e colaboração a) Em geral 1. Ambos os esposos, como fruto de seu amor. Generosidade e abertura de espírito. Subordinação de ambos a um m comum. 2. A raiz dessa aplicação mútua reside em um pensamento, uma fé, uma vontade comum. 3. É necessário aceitar, sincera e plenamente, este caráter da vida escolhida, e não basta com resignação: a) Sacri cando gostos e preferências.

b) Suportando pacientemente a monotonia dos trabalhos humildes e cansativos. b) Dimensões 1. Estudo sério do cônjuge: Investigando e discernindo as virtudes e defeitos. Prevenindo-se sobre o que cabe, ou não, esperar dele. 2. Compreensão e estima: a) Estima sincera e conhecimento da contribuição que os outros trazem. b) Condescendência em apreciar as diferentes qualidades do outro. c) Nunca o desprezo ou o desdém: seria contrário ao espírito cristão. 3. Vencer e ceder: a) Não pretender que prevaleça em tudo o próprio critério. Também os outros podem estar com a razão. b) Ocultar, se necessário, o fruto próprio do trabalho, em benefício da pequena comunidade familiar e, sobretudo, de sua utilidade. 4. Colaboração cordial: a) Ditada pelo coração, que ama a concórdia no andamento do lar. b) Magní co cenário que apresentam os esposos dedicados a um mesmo trabalho, e com rosto alegre!...

c) Saber dar o primeiro passo nessa colaboração, não esperando que o outro o faça. d) Sem desânimos ou impaciências. Animados pela idéia de que nada vale mais, nem é tão desejável como a concórdia do lar. Conclusão 1. Podíamos fazer notar muito mais acerca desta entrega. Mil aspectos dos quais passamos por alto, e o espaço nos impede de incluir. O senso comum e a sinceridade consigo mesmo irá suprilos oportunamente. 2. A vida é luta, em qualquer aspecto que seja considerada. Não podem faltar as virtudes na sociedade conjugal. Contudo, a graça, aquela mesma graça que receberam no dia das bodas, continua atuando. E com ela tudo é possível. 4. Mútua delidade 253. Vamos examinar agora um dos mais sagrados e mútuos deveres dos esposos, o mais importante de todos para a paz e a felicidade do lar: a mútua, exclusiva, absoluta e eterna delidade que juraram entre si ao pé do altar, ao contraírem um vínculo que os uniu para sempre no Senhor. Esta delidade mútua deve ser externa e interna, dos corpos e das almas. O mundo se contenta com a delidade puramente externa e corporal; mas a moral cristã exige também a interna e espiritual, que se estende aos próprios pensamentos, afetos e desejos. Dada a amplitude esquemática:306

da

matéria,

i. Que é a delidade conjugal

procederemos

de

forma

1. O matrimônio consiste em um contrato, um pacto voluntário feito entre duas pessoas. Isso impõe aos contraentes alguns direitos e deveres mútuos. A mútua lealdade dos cônjuges no cumprimento do contrato matrimonial; essa resposta à vocação intrínseca, ao amor, é o que se chama de delidade conjugal. 2. Não é a delidade de obrigação — penosa, triste, dura —, mas a delidade vocacional, de nida pelo amor. 3. Não um amor meramente passional — sexual, do instinto cego —, mas amor de amizade, que penetra as últimas camadas dos sentimentos: corpo, mente, coração. 4. Não deve negar a liberdade — seria uma escravidão do mais fraco —, isto é: a) Nem violar o mundo interior do companheiro. b) Nem manter uma fria indiferença. 5. Possui duas facetas ou vertentes: a) Negativa: ajuda recíproca para evitar tudo o que possa conculcar a santidade do matrimônio. b) Positiva: esforço combinado para desenvolver todas as virtualidades dessa realidade dinâmica, que não se conforma com uma segurança inerte. Toda vocação se realiza em seu progressivo desenvolvimento. ii. Erros contra a delidade . : seja o ato externo — patente, manifesto —, seja somente de desejo — subterrâneo, velado.

. esposo.

(emancipação total da mulher): desobediência ao

a) Social: distanciando-se dos cuidados familiares. b) Econômico: administrando a casa às custas do marido. c) Fisiológico: livrando-se arbitrariamente das cargas conjugais e maternais. . : certa conveniência cega de caracteres e conformidade de gênios: simpatia... . : o matrimônio estaria, então, ligado tão-somente à sociedade civil. Em conseqüência, autoriza o divórcio e a dissolubilidade. iii. Refutação dos erros .

:

a) A Sagrada Escritura: “Não adulterarás” (Ex 20, 14). “Todo aquele que olhasse para uma mulher com mau desejo por ela, já adulterou em seu coração” (Mt 5, 28). b) Razão: Vai contra a própria natureza, como diz o nobre sentimento dos esposos. É uma traição e uma ruptura do que foi pactuado. .

:

a) Por autoridade: “As casadas estão sujeitas a seus maridos como ao Senhor” (Ef 5, 22–23). Santo Agostinho expressa o mesmo com sua célebre frase: “Hierarquia do amor”. b) A igualdade de direitos deve ser admitida no que se relaciona à pessoa e à dignidade humanas, e nas coisas derivadas do pacto nupcial e anexas ao matrimônio. Não no restante: exige-o o bem-

estar e a unidade da sociedade doméstica. Em qualquer sociedade deve haver autoridade. No matrimônio, a autoridade suprema corresponde ao esposo. . : seria um pacto absolutamente instável e exposto a contínuas e inquietantes suspeitas. .

:

a) Não é um contrato meramente civil. Por sua origem: Deus. Por seu m: gerar e educar lhos para o céu. Por seu próprio ofício: cooperar com a onipotência divina, como vínculo da vida. b) Contra o divórcio e a dissolubilidade: — Por autoridade divina: “Não separe o homem aquilo que Deus uniu” (Mt 19, 6). — Razão: Iria contra a dignidade da pessoa humana (sobretudo da mulher); contra os esposos e os lhos (a educação...); contra o amor (em si, duradouro); contra a sociedade (não é um contrato meramente privado); contra a moralidade (do direito natural e do caráter sacramental), etc. Além disso, em caso extremo, solucionase pela separação não-vincular. iv. Perigos que afetam a delidade .

da carne: fraca e frágil.

2. : pode decair em fastio, indiferença e, conseqüentemente, em desamor. . : o amor legítimo é magnânimo e sabe deixar uma margem à sadia liberdade. . discrição.

: suspeição, mesquinhez, impertinência, em vez de

. : divulgação de contraceptivos, de livros prejudiciais, restrição antinatural da natalidade, espetáculos obscenos, certas liberdades nas relações sociais... . : com freqüência a mulher vive mais tempo junto de outros do que do marido (o ateliê, a o cina, a fábrica...). v. Modo de proceder .

:

a) Vigilância sobre os sentidos e o coração (Eclo 9, 12–13). b) Sinceridade e compreensão mútua: comunidade psíquica perfeita. c) Caridade: é o melhor aglutinante dos espíritos. “Que todas as vossas obras sejam feitas com caridade” (1Cor 16, 14). .

:

a) Não adotar uma tática demasiado racional: rouba a espontaneidade e a sinceridade nas reações. b) Não se apegar aos lhos de modo pegajoso: eles têm direito à alegria. c) Não consentir nos impulsos instintivos de rancor. d) Não se enganar a respeito da pureza da própria dor: trazemos muito egoísmo dentro de nós. e) Amar, amar apesar de tudo: “Pois o marido in el é santi cado pela mulher, e a mulher in el é santi cada pelo marido” (1Cor 7, 14). Conclusão

1. Amar é respeitar a liberdade daquele a quem amamos. Do amor surge a delidade. Esta é adesão e desapego. 2. É preciso saber conjugar estes dois aspectos: — adesão, o amor de concupiscência subordinado ao de amizade. — desapego, para salvar ao mesmo tempo a rotina mortal do amor no exercício da virtude. 3. A delidade era algo natural antes do pecado original. E continua sendo, porque o amor aspira à exclusividade e à perpetuidade; mas para isso necessitamos da graça. 4. Sem amor de caridade não existe delidade: porque a delidade se propõe primeiramente a um ser ideal e, depois, a um ser concreto e limitado, coalhado de de ciências. 5. A delidade exige em sua integridade: unidade, castidade, caridade (íntimo afeto da alma, ajuda recíproca) e obediência (dignidade e submissão da esposa).

*** Depois desta visão panorâmica de conjunto da delidade conjugal, reuniremos algumas idéias de Pio em seus magní cos discursos aos recém-casados, que vêm con rmar e completar algumas das idéias que acabamos de expor esquematicamente.307 1. A lei da delidade 254. O matrimônio é uno e indissolúvel. Já no Antigo Testamento fora promulgada a lei de delidade, aliás integral (cf. Ex 20, 14; Lv 18, 20). O adultério era castigado com a morte dos dois culpáveis (cf. Lv 20, 10; Dt 22, 22). Na decadência do Império Romano, a família se dissolveu com o divórcio e a

imoralidade mais desenfreada. Restabelecer a dignidade da família foi o grande mérito do cristianismo. 2. Vantagens da delidade e os prejuízos de sua falta 255. A beleza das Bodas de Ouro dos esposos sempre éis. A delidade conjugal é um bem preferível a qualquer tesouro. Os homens espiritualmente sadios e honrados não procedem ordinariamente de lares perturbados pela discórdia e pela in delidade. A indissolubilidade do matrimônio preserva de inconstâncias. A delidade é a base e a medida da felicidade do lar. Ver o cônjuge traidor e in el é uma viuvez mais triste que a morte. In uência da traição conjugal na educação dos lhos. Da falta de delidade nascem suspeitas, censuras, descon anças. O divórcio — que a Igreja jamais aceitará — tem grande parte da culpa na decomposição moral da família atual. 3. Qualidades da delidade 256. Deve ser de corpo e de espírito. Esta última se viola por pequenos atos interiores, porque a lei cristã proíbe até mesmo os pecados de desejo. A delidade deve acontecer no dom mútuo dos corpos, das inteligências e dos corações. É in el aquele que, sem sair do lar, ama outro ou outra com o coração; e mais ainda aquele que se permite outro laço simultâneo. É in el aquele que, mesmo uma única vez, se subtrai ao domínio exclusivo do cônjuge. A delidade deve ser íntegra e absoluta, interior e exterior. As pequenas quebras conduzem a grandes danos. 4. Provações da delidade 257. As provações da delidade conjugal podem sobrevir sem culpa dos dois cônjuges. Há no matrimônio separações involuntárias e forçosas, nas quais existe um perigo para a rmeza do amor, porque o coração sente a necessidade de amar e ser amado; e, nas longas separações, é tentado a buscar compensações ilegítimas para a ausência. Uma forma de separação forçada é a É

enfermidade, que impõe a continência perfeita. É preciso ser quando a separação obriga à continência.

el

5. Causas freqüentes da in delidade 258. As principais são três: a leviandade, a severidade excessiva e os ciúmes. ) . Sem sentir escrúpulos, o marido leva sua jovem mulher a espetáculos indecorosos, acreditando diverti-la sem malícia; mas ela — e ele — aprenderam ali a não dar muita importância às in delidades que constituem a trama de muitos lmes e representações teatrais condenáveis. O mesmo se diga das leituras perigosas ou nocivas (certos romances, revistas, ensaios literários ousados, etc.). Pouco a pouco vão-se in ltrando, na inteligência e no coração, idéias malsãs, e se produz, quase insensivelmente, uma verdadeira mudança de mentalidade que pode levar a uma catástrofe. Muito imprudente é também o marido que permite à sua mulher seguir todas as extravagâncias da moda, mesmo que esta seja francamente descarada e imoral, o que atrairá sobre ela o olhar e os desejos alheios... ) , ou o exagerado rigor, também podem levar ao mesmo resultado funesto. Podem transformar o lar doméstico em uma casa triste, sem luz nem alegria, sem distrações sadias e santas, sem amplos horizontes de ação. Um lar assim poderia terminar nas mesmas desordens da leviandade. Quem não prevê que, quanto mais rigorosa seja a severidade, tanto mais violenta ameaça ser a reação? A vítima desta tirania — o homem ou a mulher, talvez o próprio opressor — eventualmente sentirá a tentação de romper com a vida conjugal. ) . Talvez seja este o maior obstáculo para a delidade. O ciúme torna a vida conjugal intolerável. A traição do

cônjuge incita também à queda o cônjuge até então el. As relações de imprudente cordialidade dos casados com terceiras pessoas podem ser a principal fonte de uma in delidade posterior. É preciso ter especial cautela durante a ausência do cônjuge. Cautela com os chamados “amores castos e platônicos” entre aqueles que não são casados. Existem simpatias naturais que, em si, não ofendem a delidade; mas convém viver em guarda contra certas intimidades secretamente voluptuosas. As “simpatias intelectuais” podem ajudar a uma conversão para o bem; porém, na maioria das vezes, servirão para o mal e a in delidade. Há uma distância muito curta entre a falta pública de pudor e a verdadeira in delidade. À medida que se sente simpatia por um estranho, começa-se a sentir desprezo ou mal-estar em relação ao legítimo cônjuge ou às suas coisas. As di culdades que uma esposa apresenta no cumprimento de seu dever conjugal por causa de uma virtude mal compreendida ou por temer a prole, podem levar o outro à in delidade. 6. Cautelas 259. A delidade é um dom de Deus. Às vezes é difícil, mas a graça não é negada a quem luta. Foi dada aos esposos uma graça inicial na recepção do sacramento, e Deus continua dando graças atuais às quais se deve corresponder. Buscar a defesa da união conjugal na humildade e na prudência, sob a proteção de Deus: outros cairão com mais virtudes que nós. O galanteio é o primeiro passo para a traição. Ver na indissolubilidade do matrimônio, mais do que um jugo, a con rmação divina de um afeto imutável. O contrato matrimonial tem uma série de precisões jurídicas; mas a delidade não deve fazer conta desses detalhes formais, e deve suavizar pelo amor a rigidez e a austeridade do contrato. 7. Conduta

260. Ajudar aqueles que atravessam alguma provação em sua delidade conjugal. A delidade não representa nenhum problema nos primeiros dias ou anos do matrimônio, mas, quando já perdida a beleza e a juventude, vão-se conhecendo os defeitos, a pobreza intelectual, a disparidade de caracteres, etc. A caridade convida o cônjuge inocente a suportar tudo e a calarse para reconquistar o culpável. Ato heróico é aceitar o lho que foi fruto de uma in delidade. Não recorrer prematuramente a uma separação: com freqüência a reconciliação é possível. Em certos casos, é verdade, a lei permite a separação do inocente, mas o vínculo matrimonial não se dissolve nem mesmo para a vítima: nenhum dos dois pode contrair novo matrimônio enquanto viver o outro cônjuge. A renúncia a certas liberdades no matrimônio é necessária para se assegurar o céu. Manter viva a recordação do cônjuge ausente e adotar um meio-termo entre o excessivo sentimentalismo e a excessiva rigidez. Manter com o esposo uma correspondência epistolar freqüente e afetuosa.

Artigo 4 — O esposo ideal 261. Não se trata de um conceito utópico. O esposo ideal, assim considerado, é factível não só naqueles que, pela prática heróica das virtudes, alcançaram a santidade no matrimônio. Também está incluído nessa série de homens que, obscura, mas dignamente, levam adiante seu estado de casados. O conceito de esposo ideal, como aqui o entendemos, traz consigo, não a prática de alguma qualidade isolada, mas um

conjunto de qualidades que constituem a condição indispensável para um bom esposo. Registremos também que este conceito está enquadrado naquilo que entendemos por Matrimônio cristão; e, por último, considerando o esposo em sua projeção horizontal, deixando de lado outra noção que não seja esta. Vamos proceder em um plano esquemático e de conjunto.308 Voltaremos com mais vagar sobre isto em seu lugar adequado. i. Esposo como parte do matrimônio a) Amor sincero 1. “Amai vossas esposas [...], nesse amor se con rma a delidade, glori ca-se a prole” (Pio ). 2. Amor fundamentado na graça do sacramento. Perfeito conhecimento da sacramentalidade matrimonial. 3. Amor não-passional, não só humano: amor em toda a sua plenitude cristã. 4. A discrição, a delicadeza, a educação... tudo isso constitui uma auréola de amor entranhado por sua esposa. 5. Ouçamos Pio

falando aos esposos cristãos:

O esposo deve amar profundamente a sua esposa e honrá-la, manifestando em público a sua estima por ela, e não só no profundo do coração, mas com mostras exteriores de carinho. Para a honra da esposa e da família, o esposo deve procurar sobressair-se e destacar-se na própria pro ssão. O esposo goste que a esposa se vista com decente elegância, conforme requerido por seu nível social. No amor à esposa está a tutela da castidade conjugal e da paz. Não deve portar-se com excessiva rigidez, nem com excessiva condescendência. O homem deve reconhecer o trabalho da mulher no lar, não procurando os defeitos, mas os detalhes agradáveis e as atenções, superando a rotina e o cansaço, e demonstrando gratidão pelas atenções e desvelos da mulher.

O marido seja, em seu amor, constante, condescendente e el. Dê à esposa o exemplo da própria virtude, e não se permita, em matéria de delidade, aquilo que não permitiria a sua mulher.

b) Fidelidade 1. O bom esposo tem consciência do matrimônio como contrato indissolúvel, de caráter legítimo e perpétuo. Os demais contratos podem ser rescindidos ou emendados. Este contrato, não. Ninguém é capaz de rompê-lo. 2. Não esquecerá quais são os limites exatos dentro dos quais está obrigado: a) Os perigos a que está exposto: as familiaridades perigosas com outras pessoas, ausências prolongadas, etc. b) A gravidade da falta neste caso. O matrimônio é um sacramento, e ele é ministro desse sacramento. c) Tomará as precauções necessárias: sempre serão poucas, por numerosas que sejam. c) Vida conjugal 1. Reconhece que o primeiro ano do matrimônio, com todos os seus atrativos, trará consigo outros muitos, que seguramente não serão tão agradáveis. 2. O contato contínuo trará consigo muitas outras di culdades. Caracteres diferentes, circunstâncias especiais para cada um: “Não estou a m...”. 3. Irá considerar tudo isso, e tomará precauções: a) Estudando bem sua esposa e conhecendo-a a fundo.

b) Tendo considerado que seu noivado era uma preparação para o matrimônio. c) Pensando que a graça sacramental continua atuando nesses momentos. d) Cedendo no que é justo, mas jamais no injusto ou pecaminoso. Ao nal, será evitado um mal maior. Ouçamos Pio : Carecem de sentimento moral os homens que permitem a suas mulheres as faltas de pudor. O marido age mal ao levar sua esposa a espetáculos indecorosos, mesmo sem má intenção, e é imprudente ao permitir a sua esposa todas as extravagâncias da moda. Tampouco poderia concordar com o desejo da esposa de usar mal o matrimônio, sob qualquer pretexto.

d) Esposo e cristão 1. “No recurso con ante a Deus encontrareis as bênçãos sobrenaturais” (Pio ). 2. Considerará a Cristo como rei do lar. O modelo de Nazaré lhe será indispensável. São José, el esposo e guardião da Sagrada Família. 3. Saberá dar exemplo nas práticas religiosas. a) Assistência à Missa, na prática da religião católica. b) Prática freqüente dos sacramentos. c) Reza do Rosário: importantíssimo fator para a união de todo casal cristão. “A família que reza unida permanece unida” (Pe. Peyton). ii. Conhecimento de seus direitos a) Cabeça e chefe da família

1. Na santidade, por meio da graça, os cônjuges podem estar unidos com Cristo de um modo igual. 2. Sua condição, contudo, é diferente na Igreja e na família. “Quero que saibais que a cabeça de todos os homens é Cristo, e a cabeça da mulher é o marido, e a cabeça de Cristo é Deus” (1Cor 11, 3). 3. O marido deve estar consciente desta hierarquia, na qual ele ocupa o primeiro lugar. Em abstrato, não existe diferença entre os cônjuges; porém, ao formar uma sociedade, a matrimonial, existe essa diferença. Ouçamos novamente a Pio : Entre homem e mulher não existe em abstrato diferença de dignidade, mas sim quando formam uma sociedade. Na família, como em toda sociedade, existe um chefe: o pai. Nas modernas condições de vida, muitas vezes os cônjuges possuem paridade de nível: por exemplo, exercendo uma pro ssão igualmente remunerada. Assim se perde o sentido da hierarquia familiar. Mas o homem não deve subtrair-se ao dever da autoridade, que, como toda autoridade legítima, vem de Deus.

b) Autoridade Como conseqüência do anterior, a autoridade pertence primariamente ao esposo. Mas este deve exercê-la em nível de esposo, não de autocrata ou tirano: a) Evitando as palavras e atitudes duras e grosseiras. b) Autoridade que esteja baseada em uma autêntica delicadeza, aquela que sua esposa espera dele. c) Sem excluir a doçura. Ao contrário, procurando que esta seja sua marca própria. d) Logicamente, uma autoridade que esteja impregnada de amor. É lei do matrimônio. Ouçamos a Pio : A autoridade e submissão no matrimônio são adoçadas com o amor cristão. Assim, o homem exerça a autoridade com moderação e delicadeza, irmanando a doçura com a rmeza. Aqueles que exercem a autoridade servem àqueles a quem mandam. São José é

o melhor modelo no exercício da autoridade, embora a Virgem lhe fosse superior em dignidade e santidade. É preciso fazer-se amar para se fazer obedecer, e dominar a si mesmo para dominar os outros. Tornar-se crianças com as crianças, sem comprometer a autoridade paterna. Que não haja nenhuma sombra de ressentimento ou de vingança pessoal na imposição da autoridade com os lhos.

iii. Consciência de seus deveres a) Trabalho 1. Recordará fundamentalmente o preceito divino: “Ganharás o pão com o suor de teu rosto” (Gn 3, 19). 2. Esse pão não é de seu uso exclusivo. A esposa tem direito a exigir-lhe o necessário para o bom andamento do lar. 3. Na medida do possível, não permita o trabalho dela fora do lar. 4. Quanto ao mais: a) Não seja excessivo em suas exigências. b) Considere que os gastos do lar devem ser antepostos a seus pequenos gostos, por legítimos que sejam. Fala novamente Pio

:

O primeiro dever do pai é assegurar para a esposa e os lhos o pão de cada dia. O homem tem a primazia, o vigor, os dons necessários para o trabalho (cf. Gn 3, 19). Deus reservou para a mulher as dores do parto, os trabalhos da lactação e da primeira educação dos lhos. Na maternidade, a mãe passa por situações difíceis em que ela põe em perigo a própria vida. Somente nos povos pagãos se pode conceber uma mulher sobrecarregada de trabalho enquanto o marido indolente está ocioso. O homem casado não deve expor seu dinheiro a negócios arriscados, jogando com o futuro de toda a família. O papel do homem não se limita ao exercício de sua pro ssão. O marido colabora com a mulher na missão que ela tem no lar, pois também o marido tem a responsabilidade pelo funcionamento da casa. Existem na casa mil pequenas tarefas que somente o homem, mais forte e hábil que a mulher, pode realizar. Nos momentos difíceis em que até as próprias crianças devem ajudar em casa, o pai deve dar o exemplo, redobrando seu esforço.

b) Compreensão 1. “Dentro do recinto de vossa casa, não vos detenhais em calcular, medir ou comparar quem mais se cansa ou ca sobrecarregado” (Pio ). 2. Muitas vezes, a origem das grandes desavenças costuma ser esta: a falta de compreensão por parte dele. 3. Considere que ela também tem sua tarefa, que não é menos dura pelo fato de ser feminina: a) Mostrar-se agradecido. O trabalho dela costuma ser calado, sem brilho. b) Como antes, insistimos na necessidade de carinho por parte dela. c) Física e psicologicamente, é mais fraca. Muitas vezes necessita do apoio de seu esposo... c) Exemplo 1. A responsabilidade sempre é maior no esposo. Ele será o autêntico espelho onde os lhos irão olhar-se. 2. O exemplo arrasta e, se é a cabeça quem age, sua in uência será maior. 3. Nas virtudes, que são obrigatórias e comuns para ambos, não terá direito a exigir nada que não tenha cumprido antes. 4. Para alcançar esse ideal, será de muita ajuda pensar que aquela graça sacramental, recebida na celebração do Matrimônio, continua atuando sobre o lar. Foi o presente de casamento do Senhor.

iv. Aplicações práticas Peca gravemente o marido que trata sua mulher com dureza, como se fosse uma escrava; obriga-a a trabalhos impróprios à sua condição e sexo; lhe dirige insultos graves (por exemplo, o de meretriz, adúltera, etc.); a impede de cumprir seus deveres religiosos (gravíssimo pecado), ou a prática da piedade para com os familiares dela, ou a caridade com os pobres, etc.; e também se quer obrigá-la a usar mal do matrimônio, ao que a esposa deve se opor com todos os meios a seu alcance, pois seu marido não tem nenhum direito de obrigá-la a pecar.

Artigo 5 — A esposa ideal 262. A Sagrada Escritura tem frases belíssimas dirigidas ao esposo em relação à sua esposa: “Alegra-te com a companheira de tua mocidade. Cerva caríssima e graciosa gazela; seus amores sempre te inebriem e suas carícias sempre te satisfaçam” (Pr 5, 18– 19). Existe uma grande diferença entre as funções do esposo e as da esposa. Enquanto o papel do marido é o de prover e defender a família, a esposa deve transformar o lar em um local agradável; deve ser o ímã que o atraia para ele e o doce vínculo que ligue os corações, para o qual tudo no lar se dirija respeitosa e profundamente. Vamos examinar, em uma sintética visão de conjunto — depois voltaremos mais amplamente sobre isso —, as principais qualidades que a esposa deverá ter para cumprir com este m tão elevado, do qual depende a felicidade do lar.309 i. Dons naturais da esposa a) Graças exteriores

1. Deus criou a mulher bela, não para si mesma, mas com objetivos desejados por Ele, e destinados, a nal, a redundar em Sua glória. Podemos dizer que a beleza da esposa está orientada para a causa da família e, por isso mesmo, para a de Deus. 2. Estas graças foram a causa exterior e visível da aproximação entre os futuros esposos. Depois deverão contribuir para manter a união; a mulher deve procurar agradar seu marido. b) Inteligência 1. É necessário compreender o marido. Na medida em que realiza isso, ela poderá ser-lhe útil e tornar a vida dele agradável, assim como o fará sofrer em proporção ao desconhecimento que tenha de suas necessidades. 2. Interessar-se por aquilo que preocupa o marido. Deve ter o talento de saber ouvir. O marido experimentará um especial prazer nisto. 3. Chegar a ser sua conselheira. A direção do lar deve ser um trabalho comum, mas cada um ocupando o lugar que lhe corresponde. c) Vontade 1. Formar uma vontade enérgica. A intervenção da esposa deve ser decisiva em muitos momentos. 2. Essa energia não exclui a doçura; deve utilizar o enorme potencial de seu carinho. Ouçamos Pio : Desde a Criação, a mulher é a companheira do homem e a sua auxiliar (cf. Gn 2, 18– 22). Deve estar sujeita ao marido (Ef 5, 22), sem pretender usurpar o cetro da família. Seu amor ao esposo deve ser submisso, no que a Virgem Maria lhe um dá um exemplo sublime. A mulher moderna se dobra à submissão caseira com di culdade, e a avalia como uma injusta dominação, pois as mulheres — dizem

— são iguais aos homens. Não vos deixeis enganar por tais teorias. A mulher não deve suportar a autoridade do marido: ame-o respeitosamente. Seja paciente com as exigências do esposo. Alegre-se a mulher ao ceder em pequenos detalhes a seu anseio por independência em benefício do amor conjugal. A verdadeira independência da mulher está em sua liberdade para se defender contra as insídias do mal. Às vezes, o dever conjugal pode exigir da mulher o dom de sua própria vida.

d) Deve ser o coração da família 1. Crie um clima de cordialidade na casa. 2. Seja a ponte de união entre os componentes do lar. 3. Amor, doçura, fortaleza, abnegação: eis suas principais virtudes no lar. 4. Ouçamos os sábios conselhos de Pio

:

A Virgem Maria é o mais sublime modelo de tudo isso. O caráter áspero da mulher afasta o marido do lar, com grave prejuízo para a família; sem a doçura de caráter da mãe, e com sua dureza, o lar é um tormento. Infeliz da família onde a mãe não hesita em manifestar que a vida conjugal é um sacrifício para ela. A Sagrada Escritura faz grandes elogios à mulher forte (Pr 31, 10–31). A mulher é mais corajosa que o homem diante da dor. De seu próprio sacrifício, a mulher aprende a ter compaixão pelos outros. A abnegação pela felicidade do esposo é uma das principais virtudes da boa esposa. O marido descansa de seu duro trabalho na alegria e na doçura de sua esposa.

ii. Talentos adquiridos a) A arte culinária 1. Ao voltar do trabalho, o marido espera com legítima impaciência pelos alimentos que irão restaurar suas energias gastas. A esposa não deve descuidar sua esmerada preparação. 2. O prazer de comer é um dos legítimos prazeres da humanidade. A esposa deve ter os conhecimentos necessários para preparar uma comida que seja do agrado do esposo e dos lhos, e seja isto uma demonstração de seu sincero amor e abnegação por eles.

b) Outros cuidados domésticos 1. A conservação e o asseio da casa devem atrair a atenção e a atividade da esposa para fazer do lar um local agradável e acolhedor, no qual a família encontre o espaço adequado para sua convivência. 2. Extraordinária importância da puericultura. A criança é um ser muito frágil que necessita de muitos cuidados. Em nossa época, a mulher não deverá contentar-se com certos costumes ancestrais, muitas vezes em aberta contradição com os princípios da moderna medicina. Leia e estude um bom tratado de puericultura. iii. Virtudes da esposa a) Fidelidade conjugal 1. O matrimônio repousa por completo sobre o respeito inviolável ao contrato subscrito ao pé do altar. 2. A perspectiva desse inferno antecipado, que vem a ser o lar atraiçoado, deve bastar à esposa para afastá-la da tentação de ceder às solicitações proibidas. 3. São muitos os inimigos que se erguem contra a delidade. A esposa procurará não dar motivo a ninguém para pensar mal. Além disso, evite as leituras e espetáculos em que a delidade conjugal é pisoteada e ultrajada. “A esposa cristã”, escreve a este propósito P. Schlitter,310 el às leis da prudência, foge do perigo. Evita as leituras excitantes, os bailes comprometedores, as representações indecentes. Os princípios do mundo, tão indulgente com as covardias humanas, a subvertem [la sublevan]; por isso ela oportunamente os combate, e defende energicamente as máximas do Evangelho. Ela é cortês, benevolente, agradável na sociedade; mas sabe manter-se dentro dos justos limites. Depois de Deus, a quem ama ardentemente, o homem a quem jurou delidade será o objeto de todos os seus afetos. Evita tudo que pudesse excitar sua legítima

suscetibilidade ou despertar em seu peito a menor sombra de suspeita. E, para cortar o mal pela raiz, vigia atentamente sobre seus pensamentos e desejos; sabe que, conforme os ensinamentos do Divino Mestre, se os deixar divagar e repousar sobre objetos proibidos, já se torna culpável de in delidade em seu coração (cf. Mt 5, 28). Como deverá comportar-se a mulher cristã diante de atenções e provocações perigosas? Vamos ouvir Pablo Combes acerca deste ponto delicado: “Uma esposa”, diz ele, “pode ser objeto de atenções que ultrapassam os limites da cortesia e são um ultraje para a mulher que os recebe. Um homem pode ir além ao ponto de manifestar-lhe sentimentos que não tem direito de declarar, nem ela de escutar... Em tais casos, a mulher sabe qual é sua conduta. Não deve deixar-se levar pela indignação ou pela cólera; ao contrário, mostrar-se digna e tranqüila. Deve responder, conforme as circunstâncias, nestes termos, ou semelhantes: ‘Com certeza não re etistes sobre o quanto me rebaixa o que acabais de dizer-me, e por isso eu vos desculpo. Mas sabei que me julgastes mal, e que sou inteiramente incapaz de faltar ao menor de meus deveres de esposa. Não me deis o desgosto de ter que vos repetir isto’. Semelhante declaração, feita com clareza e com decisão, tem como conseqüência, geralmente, impedir toda tentativa ulterior. Caso se repetisse, e a esposa não pudesse remediá-lo apenas com seus protestos, então — mas só então e na falta de outros recursos — seria o caso de levá-lo ao conhecimento do marido, a m de tomar, de acordo com ele e sem um inútil escândalo, as medidas necessárias para dar m a este assédio”.

b) Aceitação dos deveres conjugais 1. A esposa deve levar em conta, como ensina São Paulo, que não deve jamais negar a seu marido o cumprimento do dever conjugal. Não pode expor o cônjuge ao perigo de procurar uma compensação culpável. 2. O desejo da maternidade é para a esposa o clamor da natureza. As di culdades não devem atemorizá-la. Da aceitação desta missão emanarão sua nobreza e grandeza, seus méritos e sua eterna recompensa. c) A esposa, sol e centro do lar Ouçamos Pio

:

O lar tem um sol próprio: a esposa. É ela que há de iluminar e tornar agradável a atmosfera do lar, que depende mais dela que do homem. Se a mulher se afasta do lar, este resfria e morre. O homem jamais pode suprir a mulher no lar. A esposa dedique um cuidado especial em tornar a casa agradável. Fazendo assim, a mulher adquire méritos não só para a terra, mas para o céu, pois é um exercício da virtude cristã. A mulher deve ser especialmente o sustento da alegria do lar. É muito duvidoso que seja o ideal a mulher casada exercer uma pro ssão fora do lar. Quando tiver de sair para trabalhar

fora, deve procurar que a vida do lar não seja totalmente destruída. Não obstante, os duros trabalhos da mãe fora do lar aumentarão a estima de seus lhos, se ela procurar ser uma mãe cristã.

iv. Meios sobrenaturais a) Importância Não há razões que tenham e cácia su ciente para impor o culto do bem de modo perseverante a uma esposa que não atue inspirada por motivos sobrenaturais. O sacramento do Matrimônio dará à esposa a graça de estado para levar a cabo a sua missão. b) Alguns dos mais importantes 1. O espírito de fé. A esposa deve apoiar-se em Deus, não contando apenas com sua própria fraqueza. 2. A piedade pessoal. A irradiação da esposa na família não se apóia tanto em seus dotes naturais, quanto na irradiação de sua vida interior. 3. A Santa Missa. Participe dela com a freqüência que suas obrigações o permitirem, unindo-se mais estreitamente a Cristo com a Comunhão. 4. A imitação da Virgem. A esposa que meditar suas virtudes e a invocar, sentir-se-á compreendida por aquela que sofreu suas mesmas di culdades e sofrimentos, cumprindo os mesmos deveres e experimentando provações ainda maiores. O Rosário diário rezado em família deve ser a homenagem tributada à Rainha do Céu para que ela derrame suas bênçãos sobre a família. c) Fala a Sagrada Escritura “A mulher forte, quem a encontrará? Vale muito mais que as pérolas [...]. Erguem-se seus lhos e a aclamam bem-aventurada. Muitas lhas zeram proezas, mas tu superas a todas elas. Enganosa é a graça, fugaz a formosura; a

mulher que teme a Deus, esta é louvada” (Pr 31, 10 ss.). Esta é a meta; nossas forças são limitadas, mas tudo podemos n’Aquele que nos conforta. v. Aplicações práticas A mulher pode pecar gravemente se, com brigas ou insultos, excita seu marido à ira ou à blasfêmia; se deseja governar a casa com desprezo por seu marido; se lhe desobedece gravemente, a não ser que o marido se exceda em suas atribuições ou lhe peça alguma coisa imoral (por exemplo, o mau uso do matrimônio); se é negligente na administração e no cuidado da casa, de modo que resultem graves perturbações para a família; se se entrega a diversões e passatempos mundanos, com grave descuido de suas obrigações de esposa e mãe; se exaspera seu marido com sua ânsia de luxo ou com seus gastos excessivos; se é frívola e mundana, e muito lhe agrada chamar a atenção de pessoas estranhas à família, desonrando de seu marido, etc.

Artigo 6 — A geração dos filhos 263. Como já vimos ao expor a natureza e os ns do sacramento do Matrimônio (cf. nº 172 ss.), o m primário do Matrimônio é a geração e a educação dos lhos. É doutrina tradicional da Igreja, sancionada o cialmente no Código Canônico, e lembrada reiteradamente em nossos dias pelos últimos pontí ces e pelo Concílio Vaticano . Recordemos em primeiro lugar aquilo que diz o Código Canônico: 1. A procriação e a educação da prole é o m primário do Matrimônio; a ajuda mútua e o remédio da concupiscência é seu m secundário. 2. A unidade e a indissolubilidade são propriedades essenciais do Matrimônio, as quais obtêm no Matrimônio cristão uma peculiar rmeza em razão do sacramento (cân. 1013).311

Vejamos agora alguns textos inteiramente claros e explícitos do Concílio Vaticano : “Por sua índole natural, a instituição do matrimônio e o amor conjugal estão ordenados por si mesmos à procriação e à educação da prole, em que culminam como sua coroa própria. Desta maneira, o marido e a mulher, que pelo pacto conjugal já não são dois, mas uma só carne (Mt 19, 6), com a união íntima de suas pessoas e atividades se ajudam e sustentam mutuamente, adquirem consciência de sua unidade e a realizam cada vez mais plenamente. Esta íntima união, como mútua entrega de duas pessoas, como também o bem dos lhos, exigem plena delidade conjugal e sua indissolúvel unidade”.312 “O matrimônio e o amor conjugal estão ordenados por sua própria natureza para a procriação e educação da prole. Sem dúvida, os lhos são o dom mais excelente do matrimônio, e contribuem sobremaneira para o bem dos próprios pais”.313 “No dever de transmitir a vida humana e educá-la, o que deve ser considerado como sua missão própria, os cônjuges sabem que são cooperadores do amor de Deus Criador e como que seus intérpretes”.314

Como se vê, a doutrina o cial da Igreja não pode ser mais clara e diáfana. Era preciso que o Concílio Vaticano voltasse a recordála com toda clareza e exatidão para fazer frente a certas teorias modernas que colocavam no mesmo plano — e, às vezes, até em plano superior e prevalente — os ns secundários do matrimônio — ajuda mútua dos cônjuges e remédio para a concupiscência —, como se eles bastassem por si sós para legitimar o ato conjugal sem o orientar para o m primário, de qualquer modo em que isso se desse, inclusive adotando procedimentos ou meios contraceptivos. A Igreja rejeitou explicitamente semelhantes novidades, que levariam logicamente às maiores aberrações morais, sobretudo a plena justi cação do onanismo conjugal, expressamente reprovado na Sagrada Escritura (cf. Gn 38, 9–10). Sobre isto, ouçamos de novo o imortal Pontí ce Pio

:315

A verdade é que o matrimônio, como instituição natural, por disposição divina, não tem como m primário e íntimo o aperfeiçoamento pessoal dos esposos, mas a procriação e educação de uma nova vida. Os outros ns, embora sejam tentados pela

natureza, não se acham no mesmo m que o primário, e menos ainda lhe são superiores; antes, estão a ele essencialmente subordinados. Exatamente para cortar de modo radical todas as incertezas e desvios que ameaçavam difundir erros relativos à hierarquia dos ns do matrimônio e de suas mútuas relações, nós mesmos redigimos há alguns anos (10 de março de 1944) uma declaração sobre a ordem que guardam tais ns, indicando que a própria estrutura interna da disposição natural revela o que é patrimônio da tradição cristã, aquilo que os Sumos Pontí ces têm ensinado repetidamente e o que foi xado na devida forma pelo Código de Direito Canônico (cân. 1013, §1). E pouco depois, para corrigir as opiniões contrárias, a Santa Sé publicou um decreto em que se declara que não se pode admitir a sentença de certos autores recentes, que negam que o m primário do matrimônio seja a procriação e a educação da prole, ou ensinam que os ns secundários não estão essencialmente subordinados ao m primário, mas são equivalentes e independentes dele.316

Antes de prosseguir, temos de fazer ao leitor uma observação. Oxalá pudéssemos deixar de expor nesta obra — dedicada à espiritualidade própria dos leigos — esta matéria em si mesma tão delicada. Porém, em nenhuma outra matéria relativa às obrigações matrimoniais reina entre os leigos uma desorientação maior do que no tocante à reta utilização do matrimônio. São legião os casados que não têm idéias claras sobre o que é lícito ou pecaminoso em suas relações conjugais. Muitos deles têm uma consciência completamente deformada, com escrúpulos sobre certas coisas que mal têm importância e, ao mesmo tempo, quebrando com a maior tranqüilidade os seus deveres conjugais mais sagrados. Urge dar remédio a este lamentável estado de coisas, e esta é a nalidade que aqui intentamos. Vamos expor os direitos e deveres conjugais da maneira mais sóbria e discreta possível, sem sacri car, não obstante, a clareza e a integridade das informações de que os leigos necessitam. E levando em conta que nossa obra busca ajudar os leigos não só a conseguir a salvação eterna de suas almas, mas viverem intensamente a espiritualidade cristã dentro de seu estado e condição social, vamos insistir no modo de santi car o próprio ato matrimonial, e expor a doutrina católica vigente sobre o controle da natalidade. Falaremos da licitude do ato conjugal, de sua obrigatoriedade, circunstâncias,

atos complementares, abuso do matrimônio, santi cação do ato conjugal, castidade matrimonial e controle da natalidade.317 1. Licitude do ato conjugal 264. Vamos expor a doutrina católica em forma de conclusões: Conclusão 1. O ato conjugal, entre legítimos cônjuges, não só é lícito, mas até meritório diante de Deus, quando reúne as devidas condições. Expliquemos o sentido e o alcance dos termos da conclusão: O , ou seja, a união carnal dos esposos em ordem à geração dos lhos. , isto é, entre aqueles que contraíram matrimônio validamente, quer como sacramento (os batizados), quer como simples contrato natural (os não-batizados). , ou seja, não só não envolve pecado algum, nem mortal, nem venial. , já que com ele se cumpre um preceito divino (Gn 1, 28) e se pratica um ato de justiça (1Cor 7, 3–5). Porém, para que seja meritório, exige-se como condição indispensável estar na graça de Deus, já que o pecador, privado dela, é incapaz de mérito sobrenatural. , nas formas que explicaremos em seguida. Eis as provas da conclusão: ) . O uso legítimo do matrimônio está preceituado por Deus, tanto no Antigo Testamento: “Procriai e multiplicai-vos” (Gn 1, 28), como no Novo: “O marido conceda o que é devido à mulher, e igualmente a mulher ao marido” (1Cor 7, 3). Logo, a licitude desse ato ca fora de toda dúvida.

) . A Igreja sempre ensinou esta doutrina contra os erros e heresias contrários. Eis aqui, por exemplo, a declaração expressa do Concílio Bracarense (a. 561): “Se alguém condena as uniões matrimoniais humanas e se horroriza com a procriação dos que nascem, conforme falaram Maniqueu e Prisciliano, seja anátema” (D. 241). ) . O ato conjugal constitui o próprio objeto do contrato matrimonial (cân. 1081, §2);318 e como o matrimônio é, em si mesmo, lícito e honesto, também o será o ato a que se ordena por sua própria natureza. Contudo, para que o ato conjugal seja lícito e meritório, deve reunir determinadas condições. Exporemo-las nas conclusões seguintes. Conclusão 2. Para que o ato conjugal seja perfeitamente lícito, é necessário que seja feito de forma apta naturalmente para a geração, com nalidade reta, e guardando as devidas circunstâncias. Notar que estas condições são exigidas para que a licitude seja total, isto é, para que o ato conjugal não envolva nenhuma desordem, nem mesmo venial. Para evitar o pecado grave, não é mister guardar certos detalhes, referentes sobretudo às circunstâncias do ato. Vamos explicar com detalhes cada uma das três condições requeridas para a licitude total. a) 265. Quer dizer que o ato deve ser realizado de forma que, em si mesmo, seja naturalmente apto para gerar prole, mesmo que, na realidade, esta não seja gerada por circunstâncias independentes do próprio ato. A razão é que “os atos de si aptos para gerar a

prole” constituem, como já vimos, a essência mesma do contrato matrimonial.319 A forma apta em si para a geração requer essencialmente três coisas: a) a penetração do membro viril na vagina da mulher; b) a efusão seminal dentro da mesma, e c) a retenção do sêmen recebido por parte da mulher. Em falta de qualquer destas três coisas, o ato já não é, em si, naturalmente apto para a geração. A falta voluntária e deliberada de qualquer destas três condições constitui pecado mortal. Eis as razões que o provam: ) (penetração na vagina) a geração natural é impossível. Só caberia a fecundação arti cial, que está expressamente rejeitada e proibida pela Igreja, mesmo que se empregue para ela o sêmen do verdadeiro marido, obtido por um procedimento lícito (por exemplo, por polução involuntária).320 Ora, um ato realizado de tal forma que não seja apto em si para a geração natural vai diretamente contra a própria nalidade do contrato matrimonial, e isto é intrínseca e gravemente imoral. ) (efusão seminal) o ato conjugal coincide com o chamado abraço reservado, que foi expressamente rejeitado pela Igreja.321 Não consta com certeza — ainda que insignes moralistas o a rmem terminantemente — a gravidade desse ato (talvez pudesse ser reduzido a atos impudicos incompletos, dos quais falaremos mais adiante), mas é muito difícil que possa ser realizado sem perigo próximo de polução e sem que os cônjuges resvalem pouco a pouco até o onanismo total. Na prática, por conseguinte, deve ser rejeitado, ao menos como extremamente perigoso. ) completamente

(retenção do sêmen recebido), a geração é impossível. Por isso, qualquer lavagem,

movimento, etc., que tenha por nalidade expulsar o sêmen recebido com o m de evitar a geração, é intrínseca e gravemente imoral. Outra coisa seria se não pudesse retê-lo por enfermidade ou con guração orgânica defeituosa, sem intervenção nenhuma da vontade. Advertências 1ª — Os esposos estéreis podem realizar licitamente o ato conjugal, já que a fecundidade não depende do próprio ato — que é idêntico em qualquer caso —, mas da natureza, que não atua mais. Não importa se a esterilidade provenha da idade, de uma enfermidade, de uma operação cirúrgica praticada para outro m, etc., contanto que possam realizar normalmente o ato conjugal, mesmo sabendo que resultará completamente estéril. 2ª — São lícitas as relações conjugais durante o tempo de gravidez — em razão dos ns secundários do matrimônio e da obrigação de justiça para com o outro cônjuge. Embora devam ser praticadas com a devida moderação para não prejudicar a vida nova que está sendo formada. ) 266. Como ensina a moral cristã, todo ato humano deve ser ordenado para um m honesto e, em de nitivo, para o m último do homem. Aplicando este princípio ao ato conjugal, resulta o seguinte: 1º — caso se intente com ele a consecução do m primário do matrimônio, que é a geração da prole, ou cumprir a obrigação de justiça para com o outro cônjuge. Ouçamos Santo Tomás explicando esta doutrina:

Assim como os bens do matrimônio, habitualmente considerados, o tornam honesto e santo, algo parecido sucede com a intenção atual dos mesmos, ao fazerem uso do matrimônio, em relação aos dois bens relacionados com tal uso. Assim, pois, quando os cônjuges realizam aquele ato movidos pelo desejo de ter lhos ou de pagar o débito devido um ao outro, que pertence à delidade, eles se escusam em absoluto de pecado.322

2º — quando — sem excluir a nalidade primária — tem-se como intenção algum dos ns secundários, a saber: o remédio para a concupiscência, própria ou do cônjuge, ou o estímulo do amor conjugal. Ouçamos Pio

explicando esta doutrina:

Nem se deve dizer que agem contra a ordem da natureza os esposos que fazem uso de seu direito de modo reto e natural, mesmo que, por causas naturais, seja pela idade, seja por determinados defeitos, uma vida nova não possa se originar dele. Existem, de fato, tanto no matrimônio como no uso do direito conjugal, outros ns secundários, como o mútuo auxílio, o fomento do amor mútuo e a mitigação da concupiscência, cuja consecução de modo algum está proibida aos esposos, sempre que que a salvo a natureza intrínseca daquele ato e, em conseqüência, sua devida ordenação ao m primário.323

Note-se, entretanto, que para que os ns secundários do matrimônio tornem plenamente lícito o ato conjugal, é preciso que se subordinem ao m primário, não só no sentido de que não se oponham a ele — o que tornaria completamente ilícito o ato conjugal —, mas no sentido da subordinação positiva ao m primário ou à obrigação de conceder seu direito ao outro cônjuge. Ouçamos de novo Santo Tomás: Por apenas dois motivos os cônjuges fazem uso do matrimônio sem cometer pecado algum, a saber, para gerar lhos e para pagar o débito devido um ao outro; fora de tais casos, pecam sempre, ao menos venialmente.324

E, ao responder à objeção de que não parece pecar aquele que busca no ato conjugal um meio de evitar a fornicação, responde o Doutor Angélico: Se um cônjuge procura pelo ato matrimonial evitar a fornicação do outro, não comete pecado algum, já que é uma maneira de pagar o débito, o que pertence à delidade; ao

contrário, se pretende evitar a própria fornicação, há nisso certa super cialidade, que constitui pecado venial; e o matrimônio não foi instituído para isto, a não ser por certa “condescendência” (1Cor 7, 6), a qual se relaciona aos pecados veniais.325 Na prática, contudo, aquele que procura diretamente por algum dos ns secundários do matrimônio, procura também implicitamente o primeiro, já que aqueles se ordenam a este por sua própria natureza.

3º — o uso do matrimônio só pelo prazer que ele produz ou por algum outro m extrínseco ao matrimônio, mesmo que honesto em si mesmo. a) Que o uso do matrimônio só pelo prazer constitui pecado venial, é doutrina totalmente certa e segura por expressa declaração da Igreja. De fato, Inocêncio condenou a seguinte proposição laxista: “O ato do matrimônio, praticado só pelo prazer, carece absolutamente de toda culpa e de defeito venial” (D. 1159). Santo Tomás explica com as seguintes palavras a razão pela qual esta desordem não passa de venial: Ainda que aquele que usa do matrimônio só por prazer não re ra o prazer a Deus, tampouco coloca neste prazer o m último de sua vontade (o que seria pecado mortal), pois do contrário iria buscá-lo indiferentemente em qualquer parte (e não só com sua mulher).326

b) Que tampouco seja lícito buscar exclusivamente em tal uso um m extrínseco ao matrimônio, embora honesto em si mesmo (por exemplo, a saúde corporal), Santo Tomás o explica com as seguintes palavras: Suprimida a causa, suprime-se o efeito; mas a razão de que seja honesto o uso do matrimônio são os bens deste; logo, se se prescinde deles, não é possível escusar de pecado o ato matrimonial.327

E, referindo-se concretamente ao motivo de conservar ou recuperar a saúde, ele escreve no mesmo artigo: Embora pretender a conservação da saúde não seja algo mau em si, torna-se mau, contudo, ao buscá-lo valendo-se de um meio que,

em si, não está ordenado para tal m; como sucederia a quem procurasse batizar-se buscando unicamente a saúde corporal. O mesmo devemos a rmar acerca do ato matrimonial no caso proposto.328 De modo que os ns extrínsecos ao matrimônio, embora sejam honestos em si mesmos, não justi cam o ato conjugal, a não ser que se subordinem inteiramente aos ns próprios do matrimônio; ou seja, sob a condição de que sejam procurados além desses ns próprios, que devem ser colocados em primeiro lugar, já que somente por eles se torna honesto o uso do matrimônio. 4º — buscar o prazer sensual excluindo positivamente do mesmo ato conjugal a sua ordenação ao m primário (onanismo). Voltaremos a falar de modo mais amplo sobre isto.329 Também é pecado mortal realizar o ato conjugal pensando e desejando uma terceira pessoa, que não seja o próprio cônjuge. Vai diretamente contra a mútua delidade, que se estende inclusive aos atos meramente internos. ) 267. Como se sabe, a moralidade dos atos humanos não depende só do objeto ou de seus ns, mas também das circunstâncias. Quais sejam aquelas que afetam o ato conjugal, veremos mais abaixo. Conclusão 3. Para que o ato conjugal seja meritório diante de Deus, é preciso que às condições exigidas para sua licitude se juntem as necessárias para o mérito sobrenatural. É uma coisa clara e evidente que se exigem em primeiro lugar as condições necessárias para sua licitude; nunca pode ser meritório aquilo que constitua um verdadeiro pecado, mortal ou venial.

Também é inteiramente claro, pela natureza das coisas, que se requeiram, além disso, as necessárias para o mérito sobrenatural. Entre as condições para o mérito sobrenatural, a principal de todas é o estado de graça por parte daquele que realiza o ato, pois os que estão em pecado mortal estão incapacitados para o mérito sobrenatural, por estarem em absoluto desprovidos da raiz do mérito, que é precisamente a graça santi cante. Ouçamos Santo Tomás explicando as razões que tornam meritório o ato conjugal devidamente realizado:330 1ª — “Todo ato mediante o qual se cumpre um preceito é meritório se feito em virtude da caridade (por conseguinte, em estado de graça). Ora, no uso do matrimônio se cumpre um preceito, como diz São Paulo aos de Corinto: ‘O marido pague o débito à sua mulher, e a mulher ao marido’”. Logo, é meritório. 2ª — “Todo ato de virtude é meritório. Ora, o uso do matrimônio é um ato de justiça, já que se chama ‘pagar o débito’”. Logo, é meritório. 3ª — “Já que nenhum ato deliberado é indiferente,331 ou o uso do matrimônio é sempre pecado, ou é um ato meritório para quem está em graça. É meritório o uso do matrimônio sempre que a virtude é o móvel que a ele induz, seja a justiça, para pagar o débito, seja a religião, a m de gerar lhos para o culto divino. Porém, se tal uso se veri ca por impulsos da sensualidade contida dentro dos bens do matrimônio, de tal sorte que exclua em absoluto o desejo de aproximar-se de outra mulher que não seja a sua, é pecado venial; ao contrário, se a sensualidade ultrapassa certos limites, de modo que está disposto a realizá-lo com qualquer mulher, então é pecado mortal. De fato, ao determinar-se a operar, a natureza o faz segundo a ordem da razão, caso em que será virtuosa, ou prescinde de tal ordem, e então incorre na desordem da sensualidade”.

Contestando a objeção de que o mérito, assim como a virtude, pressupõe di culdade, e o ato matrimonial não implica di culdade, mas prazer, escreve com profundidade o Doutor Angélico: “O incômodo do trabalho é exigido para o mérito do prêmio acidental; ao contrário, para o mérito do prêmio essencial se exige a di culdade concernente à ordenação do meio ao devido m, e esta se encontra também no ato matrimonial” (que pode facilmente desviar-se do reto m se não for energicamente ordenado para ele) (ibid., ad 4).

2. Obrigatoriedade do ato conjugal

268. 1. A lei. O ato conjugal, realizado nas devidas condições, não só é lícito, mas até obrigatório quando o cônjuge o pede razoavelmente. Vamos estabelecer a doutrina católica em algumas conclusões. Conclusão 1. Quando o próprio cônjuge pede razoavelmente o ato conjugal, é obrigatório concedê-lo por justiça e sob pecado mortal. Eis aqui as provas: )

. São Paulo escreve expressamente:

O marido conceda o que é devido à mulher, e igualmente a mulher ao marido. A mulher não é dona de seu corpo: é o marido; e igualmente o marido não é dono de seu próprio corpo: é a mulher. Não vos defraudeis um ao outro, a não ser de comum acordo, por algum tempo, para vos entregar à oração, e de novo voltai à mesma ordem de vida, a m de que Satanás não vos tente pela incontinência (1Cor 7, 3–5).

Não é possível falar de maneira mais peremptória e categórica. ) . A razão desta obrigação é o contrato matrimonial, em virtude do qual os esposos se entregarão mutuamente o direito sobre o próprio corpo em ordem aos atos aptos em si para a geração dos lhos. Trata-se, pois, de uma verdadeira obrigação de justiça e em matéria grave, cujo descumprimento, sem uma causa razoável que o escuse, constitui um verdadeiro pecado mortal. Por isso costuma-se designar esse ato com o nome de débito conjugal, porque constitui uma verdadeira dívida, obrigatória em justiça. Também pelo lado da caridade se percebe claramente a obrigação de não negar ao cônjuge o ato conjugal quando pedido razoavelmente, já que, do contrário, ele seria colocado em grave perigo de incontinência solitária ou de adultério. Por tudo isso, os cônjuges, sobretudo as esposas, não devem jamais negar-se ao cumprimento de seu dever quando a outra parte o peça ou o deseje razoavelmente.

269. 2. Condições da petição. Para que a concessão do débito conjugal estabeleça uma verdadeira obrigação de justiça, o pedido deve revestir-se das seguintes condições: ) , ou seja, dentro dos limites do direito alheio. Não existe nenhum direito a praticar o ato em forma de onanismo e, por conseguinte, não há obrigação de aceder a esse desejo imoral. ) , ou seja, que suponha um verdadeiro pedido ou um desejo a que não se quer renunciar. Não se considera séria quando, ao pedir-lhe que desista, concorda imediatamente com isso sem nenhum aborrecimento. ) , ou seja, como correspondente a um ato humano realizado na devida forma e como Deus manda. Não se exige, contudo, que a petição seja expressa, ou seja, formulada com palavras; basta a tácita ou interpretativa (por algum sinal de manifestação), sobretudo tratando-se da mulher que, muitas vezes, não se atreve a pedi-lo por natural vergonha ou pudor, ainda que o necessite para evitar o perigo de incontinência. De qualquer modo, embora a obrigação de conceder o débito seja em si grave, admite exigüidade de matéria e algumas exceções, como veremos. 270. 3. Exigüidade de matéria ocorreria se um dos cônjuges se negasse uma ou outra vez por se encontrar indisposto ou por outra causa razoável (por exemplo, para transferi-lo para uma hora mais oportuna), contanto que o outro cônjuge não esteja em perigo atual de incontinência e não leve a mal a negativa ou o retardamento. Porém, se houver algum destes inconvenientes, deveria ceder a seu desejo, ainda que resulte incômodo e desagradável. Da injusta negação costumar provir grandes desgostos, resfriamento do amor, perigo de incontinência, pecados

solitários, adultérios e outros graves transtornos. Não esqueçam as esposas que, em geral, torna-se muito mais difícil para o marido abster-se desse ato do que para a mulher; por isso não devem medir pelas próprias as necessidades alheias. 271. 4. Exceções. As principais causas que escusam da obrigação de conceder o débito conjugal são as seguintes: ) , realizado nas condições que autorizam a separação da mútua convivência (cf. cân. 1129 e 1130).332 O adúltero que não guardou a delidade prometida a seu cônjuge pode ser repelido por este. O culpável não pode exigir o débito, mas pode pedi-lo sem direito a ele, e tem a obrigação de concedê-lo caso o peça o cônjuge inocente. Porém, uma vez perdoado o culpável, já não se pode voltar a negar-lhe o débito, a não ser que volte a cometer adultério. ) (por exemplo, por completa embriaguez), porque esta petição não constitui um ato humano, além do grave perigo de gerar lhos ineptos, surdos-mudos, etc., como ocorre com extrema freqüência se o ato se realiza em estado de embriaguez. A mulher não é uma escrava do homem para satisfazer seus instintos, mas uma companheira do marido, com os mesmos direitos e deveres em ordem aos ns do matrimônio. ) . Se o cônjuge quer realizar o ato matrimonial de maneira ilícita (por exemplo, praticando o onanismo ou diante de outras pessoas, com escândalo das mesmas, etc.), não só é possível, mas obrigatório negar-se a isso. A razão é que o contrato matrimonial se circunscreve aos atos aptos em si para a geração, realizados na devida forma, e não àqueles que o homem, por sua própria iniciativa, destitua dessa nalidade com o m exclusivo de satisfazer suas paixões desordenadas. Voltaremos a isto ao tratar do onanismo conjugal.

) , que atenta contra a reta ordem da razão e supõe uma carga intolerável para o outro cônjuge; por exemplo, quando quer realizá-lo várias vezes em um mesmo dia, ou não se abstém em épocas perigosas para a mulher, etc. Ainda que neste caso não se possa dar uma norma geral válida para todos os casos — já que depende muito da saúde e das forças dos cônjuges —, segundo os melhores médicos e ginecologistas, não é prejudicial o uso do matrimônio duas vezes por semana, e até algo mais se se trata de cônjuges sadios e fortes, excetuando-se os tempos em que a própria natureza indica a abstenção. Porém, os de constituição débil e doentia não podem realizar o ato mais de uma vez por semana sem prejuízo de sua saúde corporal. Convém que os cônjuges se acostumem à maior moderação e parcimônia que lhes seja possível. ) , sobretudo se se trata de doenças venéreas (gonorréia, sí lis, etc.), pelo grandíssimo perigo de contrair a mesma repugnante enfermidade ou de prejudicar gravissimamente os lhos que pudessem ser gerados. O cônjuge si lítico tem a obrigação de abster-se do uso do matrimônio até que, a juízo de um médico competente, tenha desaparecido todo perigo para o outro cônjuge ou para a prole. Isto escusaria uma causa muito grave (por exemplo, o perigo da incontinência), mas com prévia advertência ao cônjuge sadio sobre o perigo de contágio, e sendo livremente aceito por ele.333 Porém, não constituem causa su ciente para negar o débito conjugal as moléstias e incômodos ordinários que trazem consigo a gestação, o parto ou o cuidado dos lhos, já que são inseparáveis dos deveres de esposos e pais que foram aceitos ao contrair o matrimônio. Tampouco escusa o ter experimentado dores extraordinárias no primeiro parto, inclusive com risco de morte; a experiência ensina que tais dores e perigos diminuem notavelmente em partos sucessivos.

) . Está proibido sob pecado grave praticar o ato conjugal, sem consultar o médico, nas duas primeiras semanas que seguem o parto. E, em geral, sob pecado leve nas quatro semanas subseqüentes, pelo perigo para a esposa. Portanto, a esposa não está obrigada a prestar o débito, geralmente, senão seis semanas depois de ter dado à luz. Conclusão 2. Em si, não existe obrigação alguma de pedir o débito conjugal; mas às vezes pode surgir o dever de pedi-lo por caridade para com o outro cônjuge. 272. Como já dissemos, ambos os cônjuges têm direito a pedir o débito conjugal, mas não têm obrigação de usar desse direito, embora estejam obrigados a atender ao cônjuge se ele o pedir. Porém, pode ocorrer que a caridade obrigue a tomar a iniciativa; por exemplo, quando se percebe que o outro o deseja ou necessita e não se atreve a pedi-lo por pudor ou delicadeza (caso freqüente na mulher). Outro caso que aconselharia a iniciativa seria a necessidade de estimular o amor conjugal (por exemplo, depois de um desgosto familiar que o esfriou). Conclusão 3. Por mútuo acordo e livre consentimento, podem os cônjuges abster-se licitamente do ato conjugal por uma temporada, e mesmo por toda a vida. 273. Esta conclusão é mero corolário da anterior, porque, se nenhum dos dois cônjuges tem obrigação de pedir o débito (embora, sim, de o conceder), podem livremente entrar em acordo para que nenhum dos dois o peça. Assim ocorreu com o matrimônio santíssimo da Virgem Maria e de São José. A abstenção temporária é altamente bené ca para a saúde do corpo e o proveito espiritual da alma, por isso São Paulo a recomenda, como vimos na primeira conclusão (cf. 1Cor 7, 5). A perpétua, ao contrário, raramente será conveniente, pelo risco de incontinência, esfriamento do amor conjugal, etc. Porém, se

houver alguma razão especial que a aconselhasse (por exemplo, a prática perfeita da virtude da castidade), poderiam tomar essa determinação, contanto que seja inteiramente voluntária e livre de ambas as partes, e sem que se suponha uma decisão irrevogável, caso se apresentem di culdades em seu cumprimento. 274.5. Na prática, a obrigação do débito conjugal deve impelir cada um dos cônjuges a satisfazer o desejo razoável do outro mais que o seu próprio desejo. Assim: 1º —

deve procurar:

a) Não usar de seu direito de maneira impetuosa e veemente, mas suave e carinhosa, como exige a dignidade de sua consorte e a santidade do matrimônio. b) Use de seu direito discretamente, ou seja, não com demasiada freqüência, nem mesmo nos primeiros meses do matrimônio; embora, por outro lado, evite o perigo da própria incontinência ou de sua mulher. c) Eleve este ato natural a uma altura nobre e cristã, dando-lhe o sentido que deve ter: a geração dos lhos e o estímulo para o amor mútuo entre os cônjuges. Não o torne abjeto como se se tratasse unicamente de um meio lícito para satisfazer uma paixão bestial. 2º —

, por seu lado, procure:

a) Facilitar a seu marido o exercício de seu direito, prestando-se a isso sem manifestar desgosto nem incômodo, sempre que ele o pedir razoavelmente. b) Pode tomar a iniciativa por sua parte, sobretudo caso se encontre em perigo de incontinência ou compreende que seu marido não se atreve a pedi-lo por delicadeza.

c) Procure cooperar para o ato com a maior naturalidade; se possível, faça coincidir o momento culminante (orgasmo) com o de seu marido, pois isso contribui e cazmente para a geração e o crescimento do amor conjugal. 3º — procurem escolher para esse ato o dia ou os dias em que estejam mais dispostos física e espiritualmente. a) Fisicamente. Está demonstrado, de fato, que grande número de anormais foram gerados em dias em que um dos cônjuges tinha feito uso de álcool. Medite-se sobre o grave dano que se acarreta a uma criança quando as células germinais, que formam e desenvolvem seu organismo, foram intoxicadas pelo álcool ou, ao menos, tornadas menos e cientes. O lado mais terrível do caso é que o dano causado à criança jamais poderá ser remediado. Não só o álcool dani ca as células germinais, mas também os chamados narcóticos, tais como a nicotina, a mor na, a cocaína, etc. O estado de excessiva fadiga física, de comoção ou sobressalto, de profundo desgosto, etc., também pode in uir lamentavelmente na geração de um lho inepto ou enfermo. Tampouco é aconselhável o ato conjugal depois de uma excessiva alimentação. b) Espiritualmente. Deve-se procurar que o cumprimento de um dever tão grave e cheio de responsabilidades seja rodeado de tudo quanto possa contribuir para sua maior e ciência e para enobrecêlo e digni cá-lo. Tranqüilidade de espírito, sossego interior, alegria cristã, amor profundo pelo próprio cônjuge, elevação de ideais, absoluta retidão de intenções, etc., são preciosos elementos que contribuem poderosamente para elevar o ato conjugal — que representa em si uma função animal — à altura da dignidade humana e do cumprimento de um dever cristão. 3. Circunstâncias As principais circunstâncias que afetam o ato conjugal são: o lugar, o tempo e o modo. Vamos explicá-las

brevemente. a) Lugar 275. Compreende-se facilmente que um ato em si tão íntimo deve ser realizado sempre em lugar secreto. Assim o exige a simples decência e a necessidade de evitar o escândalo. Ordinariamente, isto obriga sob pecado mortal. Cuidem sobretudo os pais de afastar de sua própria habitação os lhos já mais crescidos (desde os três ou quatro anos, e ainda antes se possível). E quando o pequeno espaço da casa não permitir o absoluto isolamento, procurem com todas as forças não serem ocasião de escândalo e ruína espiritual para seus lhos. b) Tempo 276. O ato conjugal pode ser ilícito em determinadas épocas, em razão do grave dano que poderia ocasionar ao próprio cônjuge ou à prole que deve nascer. Assim: 1º — que seguem imediatamente o parto, está gravemente proibido o uso do matrimônio — como já dissemos — ao menos sem prévia consulta médica. E normalmente será pecado venial realizá-lo nas quatro semanas subseqüentes, pelo perigo que supõe para a esposa. Em geral, devem deixar passar seis semanas depois do parto para retomar a vida conjugal. 2º — é lícito o ato conjugal, mas deve ser realizado com moderação e suavidade para não provocar o aborto. O perigo é maior durante os três ou quatro primeiros meses, e do sétimo em diante. Caso se tentasse provocar o aborto, seria cometido pecado mortal, mesmo que não se conseguisse; e caso conseguissem, além disso incorreriam em excomunhão reservada ao bispo local (cân. 2350, §1).334

3º — é também lícito, já que em si não envolve nenhum perigo para a criança, como acreditavam os antigos. E caso se produza uma nova gravidez e se torne impossível o aleitamento materno, cabe recorrer ao aleitamento arti cial. 4º — é lícito o ato conjugal, mas é conveniente abster-se por razões de decência e por se tornar algo perigoso para a mulher. Contudo, ordinariamente o perigo é leve; por isso qualquer motivo escusaria de todo pecado, mesmo leve. 5º — por uma nova gravidez, em conseqüência de enfermidade da mulher, não tornaria gravemente ilícito o ato conjugal, se houver motivo proporcional para isso (por exemplo, perigo próximo de incontinência); além de ser incerta a concepção, com freqüência se equivocam nesta avaliação os médicos mais experientes. De qualquer modo, o cônjuge sadio deveria abster-se, se possível, por caridade e amor a sua mulher. 6º — podem realizar licitamente o ato conjugal, mas com grande suavidade e moderação. Realizado de forma impetuosa, pode provocar sua morte instantânea, como se comprovou muitas vezes. Advertências Não há proibição alguma para o ato conjugal por razões de tipo religioso (por exemplo, quaresma, advento, dia festivo, dia de Comunhão, etc.). Mas os cônjuges podem, se quiserem, abster-se por morti cação em algum desses tempos, embora sem nenhuma obrigação. Por razões de decência, é conveniente abster-se pouco antes de se aproximarem da Sagrada Comunhão ou pouco depois de tê-la recebido. c) Modo 277. A posição natural, que a própria natureza ensina, é a mais decente, a mais sadia para ambos os cônjuges e a que melhor favorece a geração. Contudo, não passaria de pecado venial

qualquer outra posição que torne possível a geração. Existindo alguma causa razoável (por exemplo, no último período da gravidez), não seria pecado algum. 4. Atos complementares 278. Além do ato matrimonial propriamente dito, permitem-se aos cônjuges as coisas mais ou menos relacionadas a ele, mas com determinadas condições. Em geral, pode-se estabelecer os seguintes princípios fundamentais: 1º — É lícito tudo o que se faça em ordem ao devido m do ato conjugal (a geração dos lhos) e que seja necessário ou conveniente para facilitar esse ato. 2º — Não passa de pecado venial aquilo que se faça fora desse m, mas não contra ele. Ver-se-á isto mais claramente com os exemplos que daremos abaixo. 3º — É pecado mortal qualquer coisa que se faça contra esse m, seja solitariamente, seja com a cumplicidade do outro cônjuge. Elas se reduzem praticamente a três coisas: o onanismo, a sodomia e a polução voluntária (ou que põe em perigo próximo dela sem causa que o justi que). Tendo em conta estes princípios, é fácil deduzir as aplicações práticas: 1ª — (toques, beijos, abraços, olhares, conversas excitantes, etc.), contanto que não envolvam perigo próximo de polução e sejam feitos com a intenção de realizar o ato principal ou de estimular o amor conjugal. A razão é que, sendo lícito o m, também o são os meios que se ordenam naturalmente à sua melhor consecução. Porém, facilmente pode haver nestas coisas pecado venial, sobretudo se realizadas de modo desenfreado ou se trate de coisas enormemente obscenas.

2ª — , esses mesmos atos também são lícitos, quando reúnem estas duas condições: a) se excluem o perigo próximo de polução; e b) se feitos com uma nalidade honesta (por exemplo, estimular o amor conjugal). Realizados por pura sensualidade, seriam pecado venial, a não ser que envolvam perigo próximo de polução, pois então seriam gravemente ilícitos. 3ª —

durante o ato conjugal, procurá-lo imediatamente depois (com toques próprios ou de seu marido), porque este é um complemento natural desse ato, ao qual a mulher tem o mesmo direito que o marido, além de que o orgasmo da mulher auxilia a geração, embora não seja estritamente necessário. Porém, não poderia fazê-lo se o marido tivesse atuado de maneira onanística, porque então não seria complemento natural do ato e se reduziria a uma inútil polução gravemente pecaminosa. Pela mesma razão, não é lícito ao marido procurar o prazer pleno depois de uma união sem orgasmo, porque representaria uma inútil e torpe polução (pecado mortal). 4º — , do ato conjugal são lícitos entre os cônjuges, contanto que não envolvam o perigo próximo de polução. A razão é que é lícito pensar, desejar ou sentir prazer em uma ação em si lícita para eles. 5. Abuso do matrimônio 279. Assim se entende qualquer pecado cometido contra o direito matrimonial, seja por omissão (por exemplo, negando-se a conceder o débito ao cônjuge que o pede razoavelmente), seja por comissão, isto é, usando do matrimônio de forma indevida, ou seja, realizada de modo que se impeça por iniciativa própria o m primário do matrimônio, que é a geração dos lhos. Já falamos dos pecados de omissão ao expor a obrigatoriedade do ato conjugal realizado na devida forma. Aqui vamos falar do

onanismo conjugal, que constitui o maior abuso e o pecado mais grave que os cônjuges podem cometer entre si. 280. 1. O onanismo. A palavra “onanismo” provém do pecado cometido por Onan, consistindo em realizar o ato conjugal ejaculando fora, com o m de evitar a geração. O Senhor enviou a morte para Onan como castigo de seu crime hediondo (Gn 38, 9– 10). 281. 2. Classes. Há duas classes de onanismo: o natural e o arti cial. O primeiro é o praticado por Onan na forma como já descrevemos. O segundo, pratica-se de muitos modos; por exemplo, com o uso dos chamados preservativos, pessários oclusivos, vaginas arti ciais introduzidas antes do ato, substâncias químicas que destroem os espermatozóides, irrigações vaginais para expulsar o sêmen recebido, etc., etc. 282. 3. Malícia. Vamos expô-la na conclusão seguinte: Conclusão. O onanismo conjugal, sob qualquer forma em que se pratique, constitui sempre pecado mortal. Eis as provas: ) . O Senhor enviou a morte para Onan porque “o que ele fazia era mau diante de seus olhos” (Gn 38, 10). Não se castiga ninguém com a morte por um simples pecado venial. ) . A Igreja sempre reprovou como intrinsecamente imorais os procedimentos onanistas, e declarou repetidas vezes que não é lícito recorrer a eles jamais, sejam quais forem as razões ou pretextos que se invoquem para os coonestar. Ouçamos Pio promulgando mais uma vez a doutrina católica em sua magní ca encíclica sobre o matrimônio:

Havendo alguns que manifestamente se afastaram da doutrina cristã ensinada desde o princípio e transmitida em todo tempo, sem interrupção, e acreditando eles agora que sobre tal modo de proceder se devia pregar solenemente outra doutrina, a Igreja Católica, a quem o próprio Deus con ou o ensino e a defesa da integridade e honestidade de costumes, colocada em meio a esta ruína moral, para conservar imunes de tão ignominiosa mancha a castidade da união conjugal, em sinal de sua divina delegação, eleva sua voz por nossos lábios e promulga mais uma vez que qualquer uso do matrimônio em cuja prática o ato ca destituído por astúcia própria de sua natural força procriadora vai contra a lei de Deus e contra a lei natural, e os que agem de tal modo se tornam réus de grave delito.335

)

. As razões são muito claras:

1ª — O onanismo se opõe diretamente ao matrimônio e à delidade conjugal.

m primário do

2ª — Vai diretamente contra a natureza e, por isso mesmo, é intrinsecamente mau, já que a união conjugal se ordena, em si, à geração dos lhos, e não pode ser destituída dessa nalidade por iniciativa própria sem contrariar em absoluto a ordem natural das coisas, estabelecida pelo próprio Deus. 3ª — Na maioria das vezes, produz graves transtornos psíquicos nos cônjuges, e não remedia por completo, antes excita mais a concupiscência, contra o m secundário do matrimônio. 4ª — Se o onanismo fosse lícito, a imoralidade seria enormemente estimulada entre os homens, e se ocasionaria um mal gravíssimo a todo o gênero humano. 283. 4. Cooperação com o onanismo. Ocorre com freqüência que somente um dos cônjuges (em geral o homem) é o culpável das práticas onanistas contra a vontade do outro, que rejeita com indignação esse abuso. O cônjuge inocente sempre peca ao prestar sua cooperação com o pecado do outro? Para resolver com acerto esta angustiosa questão — que tem atormentado tantas pobres vítimas da sensualidade alheia —, é

preciso distinguir entre cooperação formal e material e entre onanismo natural e arti cial. ) é sempre intrinsecamente imoral e jamais pode ser dada, sob nenhum pretexto, nem mesmo para salvar a própria vida. Coopera formalmente aquele que aceita e goza do onanismo do outro cônjuge, seja explicitamente, aprovando o delito com a palavra ou com os fatos, seja implicitamente ou de maneira indireta (por exemplo, queixando-se do número de lhos, das dores do parto, etc.) e, com isso, induzindo e cazmente o marido a realizar o ato conjugal de maneira onanística. ) , ou seja, a de quem presta sua colaboração com desgosto, desagrado e exasperação, é também ilícita em si, já que se trata de uma ação intrinsecamente imoral, com a qual nunca se pode cooperar de maneira imediata, como ensina a moral cristã. Porém, cabe distinguir entre o onanismo natural (por retração intempestiva) e o arti cial (empregando instrumentos contraceptivos). De acordo com isto: 1º — não é lícito cooperar jamais, porque se trata de uma ação intrinsecamente imoral desde o princípio. A mulher é obrigada a resistir e defender-se de seu marido como se se tratasse de um invasor estranho,336 e se, apesar de sua resistência, é abusada à força, deve repelir o consentimento interior ao prazer que se produza. 2º — do marido, a mulher poderia cooperar materialmente com motivo grave (por exemplo, para evitar graves desgostos ou maus-tratos, pelo perigo da própria incontinência ou adultério do marido, etc.).337 A razão é que essa ação começa sendo lícita para ela (embora não para o marido, por sua intenção perversa), e só por culpa do marido acabará de modo ilícito e pecaminoso. Porém, mesmo neste caso, ela tem de manifestar reiteradamente a seu marido o seu desgosto e

desaprovação, e fazer todo o possível para levá-lo a desistir de sua conduta imoral. É claro, a mulher não tem obrigação de conceder o débito a seu marido onanista e não peca ao se negar terminantemente a ele. 3º — ao pecado de sua mulher — muitíssimo mais rara — é preciso considerar que, se o pecado dela consistir em loções ou outros procedimentos posteriores ao ato conjugal, o marido poderia prestar sua cooperação material, já que o ato, no que depende dele, é lícito e correto; mas tem a obrigação grave de dissuadir sua mulher de tamanha imoralidade — inclusive interpondo sua autoridade marital —, como dissemos ao falar da cooperação da mulher ao onanismo do marido. Porém, se o pecado da mulher consistisse em algum procedimento anterior ao ato (por exemplo, por introdução de um pessário ou tampão, ou de uma vagina arti cial, ou de substâncias químicas que destroem os espermatozóides, etc.), o varão não pode prestar-se jamais a realizar um ato que é intrinsecamente imoral desde o princípio. 284. 5. Normas para o confessor. Na prática, o confessor deve ater-se às seguintes normas: 1ª — Não pode absolver o varão onanista que não esteja arrependido de seu mau proceder e disposto a não voltar a reincidir. Tampouco a mulher que coopera formalmente (por exemplo, alegrando-se com o proceder do marido para se ver livre dos trabalhos da maternidade, realizando loções vaginais com o m de expulsar o sêmen, etc.). 2ª — Pode absolver a mulher que coopera materialmente com o onanismo do marido, contanto que de sua parte não exista nenhuma culpa, nem mesmo indireta (por exemplo, queixando-se de ter tantos lhos, etc.) e que manifeste a seu marido, seriamente e repetidas vezes, o seu desgosto e desaprovação por seu iníquo proceder. 3º — O bem comum exige que, de ordinário, não se

deixe em sua boa-fé os cônjuges que ignoram a malícia do onanismo.338 O conjunto de circunstâncias, no entanto, talvez aconselhe em algum caso deixá-los em sua boa-fé se, de acordo com as regras gerais de admoestação aos penitentes, se prevê com fundamento que de nada aproveitaria a advertência (por exemplo, pela mentalidade rude do penitente), e seria até mesmo perniciosa ao transformar em formais os atuais pecados materiais. Mas não é fácil para o confessor admitir a boa-fé dos cônjuges nesta matéria tão grave, e ele não deve esquecer as seguintes palavras de Pio em sua encíclica sobre o matrimônio, escritas imediatamente depois de condenar o onanismo conjugal: Por conseguinte, conforme pede nossa suprema autoridade e o cuidado pela salvação de todas as almas, encarregamos os confessores e todos os que se dedicam à orientação das mesmas, que não permitam aos éis entregues a seu cuidado nenhum erro acerca desta gravíssima lei de Deus. Mais ainda, que se conservem imunes a estas falsas opiniões, e que de modo algum sejam condescendentes com elas. E se algum confessor ou pastor de almas, Deus não o permita, induzir a estes erros os éis que lhe foram con ados, ou ao menos os con rmasse neles com sua aprovação ou doloso silêncio, tenha presente que deverá prestar estrita conta ao Supremo Juiz por ter faltado a seu dever, e a ele se aplique aquelas palavras de Jesus: “Eles são cegos que guiam a outros cegos, e se um cego guia a outro cego, ambos caem no fosso” (Mt 15, 14).339

285. 6. Causas e remédios do onanismo. Fazemos nossas as palavras de um autor contemporâneo:340 O onanismo se origina do conceito pagão sobre a vida temporal: que os cônjuges procurem as delícias do matrimônio, mas fujam de seus encargos; e assim, ou procuram evitar uma prole numerosa, ou também fugir dos incômodos da gestação e do parto da esposa. A este conceito deve-se opor o conceito cristão sobre a vida temporal, que é o caminho para a pátria celeste, um tempo de provação e de luta. Contra o temor de uma prole numerosa, é preciso aumentar a fé na Divina Providência de nosso Pai celestial, que alimenta as aves do céu e veste os lírios do campo. Para aqueles que se horrorizam diante dos perigos do parto que o médico prevê para eles, é preciso dizer: a) Os médicos costumam exagerar tais perigos. b) A arte médica sabe preveni-los (e os meios para isto são cada dia mais abundantes e e cazes). c) Com o número de lhos, vai-se tornando mais forte o amor conjugal. d) O feto exerce sobre a mãe uma saudável in uência geral, que cura a mãe de muitas enfermidades, etc. e) Em geral, a gravidez freqüente não cria nenhum perigo para a mãe nem para os lhos. f) São muito mais freqüentes os perigos do onanismo que os da gravidez, e ele tem conseqüências mais tristes que uma prole numerosa. g) O matrimônio está ordenado para a geração, e não se viola impunemente

esta lei da natureza.341 h) Fisiologicamente, é necessário para a saúde guardar castidade e pureza, ou usar legitimamente o matrimônio. i) Se, em algum caso, tanto a abstenção do uso do matrimônio como a exposição da esposa a um perigo de morte parecem aos cônjuges uma espécie de martírio, recordem que esta é a vida do cristão, a quem, eventualmente, não resta outro recurso senão sofrer o martírio ou precipitar-se em um estado de condenação. Mas o martírio sofrido por Deus e por suas santas leis, sob qualquer forma que se sofra, é sempre extremamente fecundo e nos traz imensos bens.

A este propósito, agrada-nos transcrever aqui este belo texto de Pio : Porém, objetar-se-á que tal abstinência é impossível, que tal heroísmo é impraticável. Ireis ouvir e ler com freqüência esta objeção por parte daqueles que, por dever e por competência, deveriam estar em condição de julgar de modo muito diferente. E como prova, apresenta-se o seguinte argumento: “Ninguém está obrigado ao impossível, e não se imagina nenhum legislador razoável que queira, com sua lei, obrigar também ao impossível. Mas para os cônjuges é impossível a abstinência durante um longo período. Logo, não estão obrigados à abstinência. A lei divina não pode ter este sentido”. Deste modo, de premissas parciais verdadeiras, se deduz uma conseqüência falsa. Para convencer-se disto, basta inverter os termos do argumento: “Deus não obriga ao impossível. Mas Deus obriga os cônjuges à abstinência se sua união não pode ser realizada segundo as normas da natureza. Logo, nestes casos a abstinência é possível”. Como con rmação de tal argumento, temos a doutrina do Concílio de Trento, que ensina o seguinte no capítulo sobre a observância necessária e possível dos mandamentos, referindo-se a uma passagem de Santo Agostinho: “Deus não manda coisas impossíveis; mas, quando manda, adverte para que faças o que puderes e peças aquilo que não podes; e Ele ajuda para que possas” (D. 804). Por isso, na prática de vossa pro ssão e em vosso apostolado, não vos deixeis confundir por tantos discursos sobre a impossibilidade, nem no que toca ao vosso julgamento interno, nem no que se refere à vossa conduta externa. Não vos presteis jamais a coisa alguma que seja contrária à lei de Deus e à vossa consciência cristã! É fazer uma injustiça contra os homens e as mulheres de nosso tempo julgá-los incapazes de um continuado heroísmo. Hoje, por numerosos motivos — talvez sob a pressão da dura necessidade, e às vezes a serviço da injustiça — pratica-se o heroísmo em um grau e extensão que nos tempos passados se julgaria impossíveis. Por que, então, este heroísmo, se verdadeiramente as circunstâncias o exigem, teria que deter-se nas fronteiras assinaladas pelas paixões e pelas inclinações da natureza? É claro: quem não quer dominar a si mesmo, tampouco o poderá; e quem acredite dominar-se contando apenas com suas próprias forças, sem buscar sinceramente e com perseverança a ajuda divina, enganar-se-á miseravelmente.342

6. Santi cação do ato conjugal

286. Já zemos referência a este aspecto do ato conjugal ao explicar de que maneira ele não só é lícito — sempre o é entre casados, quando se ajusta às leis morais que o regulam —, mas até virtuoso e meritório quando se reúnem as devidas condições para ele. Mas insistiremos um pouco mais neste aspecto tão atrativo e positivo do ato conjugal: sua verdadeira e autêntica santidade quando se realiza precisamente para entrar nos desígnios e planos de Deus, e como expressão do mútuo amor de caridade que deve unir estreitamente os cônjuges em corpo e alma. a) O ato conjugal pode e deve ser um ato de caridade 287. Sem perder sua índole e seu caráter profundamente humanos, o ato conjugal deve ser elevado pela graça e pela intenção dos esposos até o plano estritamente sobrenatural, transformando-se em um verdadeiro ato de caridade altamente meritório e santi cador ordenado à vida eterna. “Não se trata” contemporâneo,343

escreve

a

este

propósito

um

autor

de despojar esta relação íntima de seu caráter de espontaneidade, ou de fazer dele uma espécie de rito submetido a leis estranhas ao amor, nem de paralisar o impulso que leva os esposos um para o outro. Sendo ele como o orescimento do amor, requer o maior fervor. Porém, é preciso que esta espontaneidade seja a do amor que se entrega e que se realiza ao ir além de si mesmo; ato de uma pessoa livre, e não o imperioso e frenético impulso do instinto. É necessário que, até o m, seja o amor que se manifeste, seja ele quem dirija e sublime o instinto. É mister que os momentos de maior êxtase sejam, entretanto, em sua riqueza e plenitude humana, o orescer de um profundo movimento da alma, que é como um aspecto do misterioso amor que impele os seres humanos uns para os outros, para constituir o Corpo místico de Cristo. Assim entendida, a união dos corpos vem a ser, no sentido mais belo da palavra, um ato de caridade que eleva as almas e, unidas, as aproxima de Deus. Ato eminentemente religioso, no qual não deve haver lugar para a menor negativa de si mesmo, para o menor falso pudor, para o menor capricho pessoal. Ato que requer, às vezes, sacrifícios íntimos, renúncias ocultas, só conhecidos por Deus, e dos quais surge como uma nova graça de união nos matrimônios que não realizaram aquilo que deveriam ter sido: “sacramento” do amor, do qual é preciso aproximar-se com uma contida emoção e um profundo respeito.

b) Não é possível a submissão da carne sem uma vida teologal 288. Dirigindo-se aos sacerdotes, o ilustre conferencista de Notre Dame de Paris, Pe. Carré, . ., protesta contra um juridicismo moral que se contenta em recordar a lei, sem formar positivamente a consciência dos cônjuges e sem fornecer os remédios adequados. É preciso ganhar a batalha por elevação, consentir (con-sentir) a Deus e à vida de Deus em nós, formando em nós uma alma “teologal”. Eis alguns fragmentos da obra que citamos:344 Compreendeis como tais verdades nos impõem uma consideração teologal do matrimônio. Por isso mesmo, sugerem-nos que não existe saída para os inevitáveis problemas que conhece o matrimônio de dois pecadores redimidos fora de uma formação teologal das consciências. Nunca protestaremos o su ciente contra o estreito moralismo que introduziu no confessionário uma casuística complicada, que se baseia em interrogatórios, com freqüência indiscretos, neste campo em que se conjugam as mais fortes tendências do ser humano e uma vocação à santidade. Enervam as consciências, limitando-se a recordar brutalmente aos esposos as “leis” de seu estado, e comprovar seus atos e atitudes para distinguir, com este espírito, o que está permitido e o que está proibido. Igualmente lamentável é o diálogo, tão freqüente durante o tempo pascal, em que o sacerdote faz depender a sua absolvição da promessa de que, doravante, será respeitada a castidade conjugal. Recordar leis e exigir a submissão material a elas, sem formar juízo sobre aqueles a quem elas afetam, e sem propor, ao mesmo tempo, os remédios apropriados, pode ocasionar em algumas vidas um mal irreparável. Quando falamos em formação “teologal” das consciências, consideramos o consentimento dado a Deus e à vida de Deus em uma pessoa, do qual acabamos de tratar. Ensinamos aos cristãos casados que sua existência conjugal não pode ser vivida fora da caridade e de uma prática sacramental regular.345 Em especial, para aqueles que se colocam o problema carnal e dominam com esforço essa realidade invasora, nós a rmamos que não existe nenhuma solução e caz independente da união com Deus e de uma vida cristã total. Para quem busca, em todos os demais planos da existência, uma vida, senão egoísta, pelo menos satisfeita, não se pode exigir que ele se restrinja precisamente no terreno onde a paixão fala com mais força. Convidai-o a reti car em toda a linha — o que signi ca: tender à qualidade dos sentimentos, crer no valor do sacrifício, preocupar-se com o próximo, converter-se em apóstolo — ao mesmo tempo que se alimente da vida de seu Deus.

Os esposos cristãos que mantêm essa continência concordam em dizer que o domínio de si mesmo está visivelmente ligado ao amor de Deus e à recepção da Eucaristia. Fazeios prometer, portanto, que irão alimentar-se com a Hóstia, e então se tornarão capazes de respeitar a lei. Em geral, só chegarão a ser capazes pouco a pouco. Por que motivo o moralismo também levou alguns confessores a perderem o sentido das possibilidades reais dos pecadores e o sentido da paciência do Salvador? Não é por terem cometido vários atos repreensíveis neste campo da pureza que se deva manifestar a intransigência do sacerdote. A lei parece impraticável e desumana enquanto se encontra inserida no amplo conjunto de uma vida pecadora, da qual a redenção quer fazer uma vida santa. O espírito é evangelizado mais rapidamente que a carne, e o desequilíbrio que daí se segue não é indício de falta de sinceridade. A graça cura a natureza, o que a rma a lentidão de seus progressos.

c) Tudo deve ser santo no matrimônio 289. Como já vimos acima, o primeiro dos deveres mútuos dos esposos é o amor íntimo e perpétuo que juraram um ao outro diante do altar. O amor conjugal, elevado pela graça até a ordem sobrenatural, é santo e santi cador, sobretudo quando alcança seu ponto culminante na união corporal em ordem à geração dos lhos, que constitui o m primário do matrimônio. De tal maneira que o ato conjugal, realizado em graça e segundo as leis de Deus, não somente é bom e meritório, mas se transforma em um meio autêntico e um instrumento de santi cação para os cônjuges. Ouçamos um autor contemporâneo que expõe com acerto estas mesmas idéias:346 O sacramento produz a efusão da vida divina, do amor divino, enquanto os esposos procuram amar-se e se esforçam por consegui-lo. Se o amor diminuir por sua culpa, também a vida divina decrescerá em ambos, ou só naquele que ama menos. A vida divina cessa por completo ao morrer o seu amor por meio do adultério ou do divórcio, e brota de novo se ressuscitar. Assim sendo, os esposos se esforcem por evitar essa diminuição ou essa morte, se querem que a nova fonte de vida divina e de caridade, que o sacramento do Matrimônio fez brotar neles, não seque nem diminua. E para que seu amor a Deus vá aumentando, não devem sacri car o amor conjugal, despojando-o daquilo que poderia enriquecê-lo, porquanto um e outro amor devem vir juntos, inseparáveis. Todo ato e palavra, toda atitude e desejo, todos os gestos dos esposos que signi cam e atualizam seu compromisso de querer-se, que mantêm, renovam ou aumentam a entrega de si mesmos, expressando e estreitando sua união, participam da causalidade do sacramento: produzem a graça. Produzem-na por si mesmos, como aquele “sim” do dia de suas bodas; “sim” que eles prolongam e

realizam. Assim os esposos continuam sendo, de modo derivado e secundário, mas muito real, os ministros de seu sacramento. Cada um deles conserva em relação ao outro esta função de ministro dispensador das graças de Cristo e de agente de santi cação que teve no primeiro momento de seu matrimônio. Nesta perspectiva, as tarefas materiais dos esposos, que ocupam o melhor do dia, todas elas, sendo cumpridas em favor da comunidade conjugal, têm o seu valor santi cador e uni cador. Os afazeres domésticos, o cuidado com as crianças, o trabalho pro ssional: tudo vem a ser um meio de união com Deus, pois tudo concorre para favorecer a união dos esposos. Nesta perspectiva, igualmente, a união dos corpos também aparece como meio de união com Deus. Esta a rmação pode parecer ousada. De fato, para certos cristãos, o ato conjugal lhes causa uma inquietação interior, deixando-lhes como que um ressaibo de pecado. É que tal união pode dar margem, e dá de fato, para as piores desordens. São os cristãos que ainda vivem “segundo uma antiga tradição que dissocia o ‘sagrado’ do ‘profano’, negando a entrada de Deus em todos os atos de nossa vida”. Como se São Paulo não tivesse dito, ao falar do matrimônio, como também de certos alimentos então considerados impuros: “Deus os fez para que os éis, conhecedores da verdade, os tomem com ação de graças. Porque toda criatura de Deus é boa, nada havendo de censurável se se toma dando graças, pois a palavra de Deus e a oração tudo santi cam” (1Tm 4, 3–5). Assim, pois, o ato conjugal é bom ao se conformar com a natureza do matrimônio tal como Deus o instituiu. É também santo e meritório quando a graça divina o embebe e sublima, e é um seguro canal de graça, de vida divina, pois a união dos corpos é muito mais que “o contato de duas epidermes”, e muito mais que um meio para os esposos procurarem, com a satisfação do instinto, o prazer carnal querido por Deus. É até mesmo “muito mais que um simples modo de transmitir a vida”.347 Ele é e deve ser a entrega extrema e sem reservas de toda a pessoa dos esposos, o símbolo e a síntese do amor total, a tradução carnal da união das almas, o meio de aumentar nos esposos o santo amor, de reforçar sua união e, ao vir o lho, que é seu termo normal, alcançar toda a sua profundidade. Por expressar e favorecer o amor e a comunidade de vida, sinal e caz do sacramento, o ato conjugal participa, como o amor, e por meio dele, da sacramentalidade do matrimônio. Nos esposos em estado de graça santi cante, ele também aumenta a graça; mas já sabemos em que condições. Aumenta-a conforme cumpra essas mesmas condições. Por isso os esposos procurarão que este ato seja um ato humano, e não um ato quase bestial; que seja um “ato de pessoa livre, e não um imperioso e frenético impulso do instinto”.348 Não se trata de privar a união corporal do prazer, nem de tirar dela seu caráter de livre efusão e espontaneidade, mas de “orientá-la profundamente segundo a ordem do amor”, para que seja “um ato verdadeiramente contemplativo,349 um grande ato de amor pela alma com quem desejamos unir-nos com todo o nosso ser”.350 “Até o m o

amor deve manifestar-se, dirigindo e sublimando o instinto”.351 “Em vez de deixar que a carne se torne a senhora, relegando para um canto escuro de nossa alma toda a nossa capacidade de ternura, chamemos por ela com todo o anelo, despertemos o melhor de nós mesmos, elevemos resolutamente nossa alma para o Senhor, que deseja esta profunda união, santi cando-a e tornando-a fecunda. Então, o instinto não será mais um amo imperioso e brutal, mas um bom diretor da aspiração religiosa, que, manando do fundo da alma, intuitivamente o dominará, dirigirá e sublimará. O momento de maior êxtase dos sentidos poderá ser um momento privilegiado de união em Deus e com Deus”.352

Assim, que bem claro que o ato conjugal, realizado na graça de Deus e de acordo com as leis ditadas pela moral cristã, não somente nada tem de vergonhoso ou de simples concessão à fraqueza e à debilidade humanas, mas é um ato positivamente bom, santo e meritório da vida eterna. O fato de que muitos casais pratiquem este ato contra ou à margem da moral cristã — transformando-o em um ato pecaminoso que pode levá-los à sua eterna desventura — em nada compromete ou invalida a bela doutrina positiva que acabamos de expor. 7. A castidade no matrimônio 290. É um erro — muito difundido, infelizmente — acreditar que o matrimônio é “o túmulo da castidade”. Os casados também podem e devem praticar — embora de forma diferente dos nãocasados — a bela e sublime virtude da castidade. Vamos expor, de forma esquemática, mas muito densa, esta bela doutrina.353 A castidade é uma virtude muito esquecida nos matrimônios atuais. Com demasiada freqüência, é considerada um obstáculo para a felicidade conjugal. Vemos com horror como se multiplicam os meios contraceptivos e como seu uso se estende a todas as classes sociais. As causas deste esquecimento são a função meramente negativa que se costuma atribuir à castidade, e a progressiva perda do sentido ascético de luta contra a carne, própria da vida cristã, assim como também o impacto produzido pelas doutrinas

psicanalíticas. “Por que temos de reprimir”, dizem elas, “um instinto que brota da natureza?”. i. A castidade em geral a) Ensinamento da Sagrada Escritura 1. A castidade é uma virtude necessária para entrar no reino: “Não vos enganeis: nem os fornicadores... nem os adúlteros... nem os efeminados, nem os sodomitas... possuirão o reino de Deus” (1Cor 6, 9–10). 2. Indiretamente, é objeto dos preceitos do Decálogo: “Não adulterarás” (Ex 20, 14). “Não desejarás [...] a mulher de teu próximo” (Ex 20, 17). 3. A razão de ser da castidade está radicada no fato de que nosso corpo é templo do Espírito Santo. “Não sabeis que vosso corpo é templo do Espírito Santo?” (1Cor 6, 19). 4. Para aqueles que seguem a concupiscência estão reservados grandes castigos (cf. 2Pd 2, 8–10). b) Natureza da castidade “É a virtude sobrenatural que modera o apetite sexual segundo o ditame da razão iluminada pela fé”.354 1. É virtude: porque é uma força regulada pela razão. 2. Sobrenatural: a) Por sua origem: é infundida por Deus. A virtude natural se adquire pelo exercício. b) Por seu m: ordena-se à perfeição sobrenatural do indivíduo. c) Por seu motivo formal: moderar o apetite sexual segundo do ditame da razão iluminada pela fé.

3. Que modera o apetite sexual: a) Porque permite o senhorio do espírito sobre a carne. b) Porque orienta o prazer da carne para o m estabelecido por Deus. c) Porque humaniza o gozo sexual, submetendo-o aos postulados da razão e da fé. c) Graus da virtude da castidade 1. Castidade virginal: abstenção voluntária e perpétua de todo prazer sexual. 2. Castidade juvenil: abstenção de todo prazer carnal antes do matrimônio. 3. Castidade conjugal: virtude que regula, segundo o ditame da razão e da fé, os prazeres lícitos dentro do matrimônio. 4. Castidade vidual: abstenção de todo prazer carnal depois do matrimônio. ii. A castidade conjugal a) Ensinamento da Sagrada Escritura 1. Proíbe-se o adultério, tanto o consumado como o simples desejo: “Ouvistes o que foi dito: não adulterarás. Mas eu vos digo que todo aquele que olhar para uma mulher, desejando-a, já adulterou com ela em seu coração” (Mt 5, 27–28). 2. Admite-se a continência dentro do matrimônio. Nos Atos dos Apóstolos, São Paulo se apresenta instruindo um casal “sobre a justiça, a continência e o julgamento futuro” (At 24, 25).

3. Entretanto, não se aconselha a continência perpétua no matrimônio. É o mesmo São Paulo quem diz, na Primeira Carta aos Coríntios, dirigindo-se aos esposos: “Não vos defraudeis um ao outro, a não ser de comum acordo, por algum tempo, para vos entregar à oração” (1Cor 7, 3–5). b) Conteúdo da castidade conjugal .

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a) Orienta o gozo carnal momentâneo para a união espiritual permanente. b) Exige delidade perpétua a ambos os esposos. c) Ordena o uso do matrimônio para o m assinalado por Deus: a geração. O ato sexual será lícito na medida em que se ordene à procriação, ainda que esta não aconteça de fato por causas naturais. d) Modera o uso legítimo do matrimônio quando as limitações econômicas, etc., não permitirem dar educação adequada a uma prole numerosa. e) Exige continência quando um dos esposos se encontra ausente ou se acha impossibilitado por enfermidade. f) Aconselha continência em épocas de oração e penitência. .

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a) Nos relacionamentos com pessoas estranhas, proíbe gravemente: 1º — O adultério e qualquer tipo de relação sexual. 2º — A fecundação arti cial heteróloga, “por se tratar de um verdadeiro adultério” (Pio ). b) Nas relações de ambos os esposos, proíbe gravemente:

1º — O onanismo e todo ato sexual que, pela forma de realizálo, não se ordene à geração. 2º — O uso de contraceptivos e preservativos, por se oporem à consecução do m primário do matrimônio. 3º — A fecundação arti cial homóloga entendida em sentido restrito. c) Meios para praticar a castidade conjugal 1. O cultivo de uma espiritualidade matrimonial retamente concebida, com freqüência aos sacramentos e oração, predominantemente comunitária, de ambos os esposos. Na Sagrada Escritura, encontramos uma advertência no exemplo de Tobias e Sara, que iniciaram sua vida matrimonial orando juntos (Tb 8). 2. O conhecimento dos maravilhosos efeitos que traz consigo a prática desta virtude, e das calamidades, até mesmo físicas, que sua viciação acarreta. O onanismo e o uso freqüente de contraceptivos são considerados pela medicina como altamente prejudiciais para o organismo. d) Frutos da castidade conjugal 1. A prática da castidade no matrimônio puri ca o amor conjugal, fazendo pouco a pouco do amor, predominantemente carnal, um verdadeiro amor de caridade. 2. Espiritualiza e dá sentido sobrenatural aos atos sexuais, tornando possível uma união de caridade no nível da carne. 3. Favorece a mútua e desinteressada entrega dos esposos e os prepara para verem nos lhos o fruto abençoado de sua união.

4. Dá sentido ascético à vida familiar, formando assim um clima ideal para a educação cristã dos lhos. 5. A castidade possui, pois, no matrimônio, uma missão altamente positiva. Trata-se de proibir o ilícito, mas também e principalmente de espiritualizar, de dar sentido sobrenatural ao que é lícito. É uma virtude difícil: ela se opõe a um dos instintos mais fortes do homem; mas sua prática é um meio extremamente e caz para conseguir a felicidade conjugal, porque “felizes são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a guardam” (Lc 11, 28). 291. Para encerrar esta bela matéria, transcreveremos a seguir um belo discurso de Pio aos recém-casados, pronunciado em 6 de dezembro de 1939, exatamente sobre a “castidade conjugal”:355 Unidos recentemente pelas sagradas promessas, às quais correspondem novos e graves deveres, viestes, queridos recém-casados, junto ao Pai comum dos éis, para receber suas exortações e sua bênção. Hoje queremos dirigir vossos olhares para a dulcíssima Virgem Maria, cuja festa da Imaculada Conceição a Igreja vai celebrar depois de amanhã; suavíssimo título, prelúdio de todas as suas outras glórias e privilégio único, até o ponto de parecer identi cado à sua própria pessoa: “Eu sou”, disse ela a Santa Bernadete na gruta de Massabielle, “a Imaculada Conceição”. Uma alma imaculada! Quem de vós, ao menos em seus melhores momentos, não o desejou ser? Quem não ama aquilo que é puro e sem mancha? Quem não admira a brancura dos lírios que se vêem no cristal de um límpido lago, e os cumes nevados que re etem o azul do rmamento? Quem não inveja a alma cândida de uma Inês, de um Luís Gonzaga, de uma Teresa do Menino Jesus? O homem e a mulher eram imaculados quando saíram das mãos criadoras de Deus. Depois, manchados pelo pecado, tiveram de começar com o sacrifício expiatório de vítimas sem mancha a obra da puri cação, que só foi tornada e cazmente redentora pelo “sangue precioso de Cristo, como de um cordeiro imaculado e sem defeito” (1Pd 1, 19). E Jesus Cristo, para continuar sua obra, quis que a Igreja, sua esposa mística, fosse “sem mancha nem ruga [...] mas santa e imaculada” (Ef 5, 27). Ora, queridos recém-casados, tal é o modelo que o grande apóstolo São Paulo vos propõe: “Ó homens”, ele adverte, “amai vossas mulheres como Cristo amou a Igreja (cf. Ef. 5, 25), porque o que torna grande o sacramento do matrimônio é sua relação com a união de Cristo e da Igreja” (cf. Ef 5, 32). Acaso pensareis que a idéia de uma pureza sem mancha se aplica exclusivamente à virgindade, sublime ideal a que Deus não chama todos os cristãos, mas somente as almas eleitas. Certamente vós conheceis essas almas, mas, embora admirando-as, não

acreditastes que fosse essa a vossa vocação. Sem cair no extremo da renúncia total aos prazeres terrestres, vós, seguindo a vida ordinária dos mandamentos, tendes o legítimo anseio de vos ver cercados por uma gloriosa coroa de lhos, fruto de vossa união. Mas o estado matrimonial, querido por Deus para o comum dos homens, pode e deve ter sua pureza sem mancha. É imaculado diante de Deus todo aquele que cumpre com delidade e sem negligência as obrigações do próprio estado. Deus não chama todos os seus lhos ao estado de perfeição, mas convida todos eles à perfeição em seu estado: “Sede perfeitos”, dizia Jesus, “como é perfeito o vosso Pai celestial” (Mt 5, 48). Vós já conheceis os deveres da castidade. Eles exigem uma real valentia, às vezes heróica, e uma con ança lial na Providência; mas a graça do sacramento vos foi dada precisamente para fazer frente a esses deveres. Portanto, não vos deixeis desviar por pretextos demasiado em voga e por exemplos, infelizmente, freqüentes demais... Não esqueçais nunca que o amor cristão tem um m muito mais elevado que aquele que pode se constituir em uma fugaz satisfação. En m, escutai a voz de vossa consciência, que vos repete interiormente a ordem dada por Deus ao primeiro casal humano: “Crescei e multiplicai-vos” (Gn 1, 22). Então, segundo a expressão de São Paulo, “o matrimônio será em tudo honrado, e o tálamo sem mancha” (Hb 13, 4). Pedi esta graça especial à Virgem Santíssima no dia de sua próxima festa. Tanto mais que Maria foi imaculada desde sua concepção para vir a ser dignamente a Mãe do Salvador. Por isso a Igreja assim reza em sua liturgia, onde ressoa o eco de seus dogmas: “Ó Deus, que pela imaculada concepção da Virgem preparaste para teu Filho uma morada digna d’Ele!...”. Esta Virgem Imaculada, que chegou a ser mãe por outro privilégio único e divino, pode, portanto, compreender vossos desejos de pureza interior e vossa aspiração aos prazeres da família. Quanto mais vossa união for santa e afastada do pecado, tanto mais Deus e sua Mãe puríssima vos abençoarão, até o dia em que a Bondade Suprema una para sempre, no céu, aqueles que se amaram cristãmente neste mundo.

8. O controle da natalidade 292. O cumprimento das leis morais que regulam o ato próprio do matrimônio para transmitir a vida aos lhos muitas vezes se torna muito difícil para não poucos esposos. Di culdades de ordem econômica, do espaço estreito da habitação, talvez de saúde física por parte da mulher e outros muitos desse tipo colocam para os esposos um gravíssimo problema, que muitas vezes se revela inteiramente sem solução. Os últimos Sumos Pontí ces e o próprio Vaticano o reconhecem, mas dão ao mesmo tempo os

princípios fundamentais para sua reta solução segundo as exigências da moral cristã. Como se sabe, o Concílio Vaticano recordou, uma vez mais, os princípios fundamentais da doutrina católica tradicional sobre esta difícil e delicada questão. Mas a decisão nal — ou seja, a adaptação dessa doutrina tradicional aos problemas colocados na época moderna, principalmente pela tremenda explosão demográ ca de nossos dias — reservou-a para si o Sumo Pontí ce Paulo , que encomendou um estudo profundo deste problema a uma ampla comissão formada por eminentes teólogos, médicos, economistas, sociólogos e inclusive casais católicos. Vamos, pois, examinar a doutrina dos últimos pontí ces anteriores ao concílio, a do próprio Concílio Vaticano e as últimas declarações de Sua Santidade o Papa Paulo . Pio xi 293. Em sua magní ca Encíclica Casti connubii — que ainda constitui a “carta magna” do Matrimônio cristão —, o imortal Pontí ce Pio proclama em tons contundentes a doutrina católica sobre o reto uso do matrimônio, e condena solenemente qualquer procedimento que tenda arti cialmente a destruir o ato matrimonial de sua nalidade procriadora; admite unicamente, como o único procedimento lícito, o uso desse direito nos dias agenésicos — além da abstenção total, é claro — para controlar a natalidade quando graves razões obriguem os esposos a esse controle. Eis aqui as próprias palavras de Pio , que já citamos em parte:356 Não existe razão alguma, por grave que possa ser, capaz de fazer com que aquilo que é intrinsecamente contrário à natureza se transforme em algo naturalmente conveniente e decoroso. Estando, pois, o ato conjugal ordenado por sua natureza para a geração da prole, aqueles que em sua realização o destituem arti cialmente desta força natural procedem contra a natureza e realizam um ato torpe e intrinsecamente desonesto. Não admira, por conseguinte, que até mesmo as Sagradas Escrituras testi quem o ódio implacável com que a Divina Majestade detesta, acima de tudo, este crime nefando,

tendo chegado, às vezes, a castigá-lo com a morte, segundo recorda Santo Agostinho: “Porque se coabita de modo ilícito e torpe mesmo com a legítima esposa, quando se evita a concepção da prole. Era isto que fazia Onan, lho de Judas, e por isso Deus o matou” (cf. Gn 38, 8–10). Já que alguns, afastando-se manifestamente da doutrina cristã, já ensinada desde o princípio e sem interrupção, pretenderam recentemente que se deveria implantar solenemente uma doutrina diferente sobre este modo de agir, a Igreja Católica, a quem o próprio Deus con ou o ensino e a defesa da integridade e honestidade dos costumes, em meio à ruína das mesmas, para conservar imune desta torpe chaga a castidade da aliança conjugal, como sinal de sua divina missão, eleva sua voz através de nossa palavra e promulga de novo que todo uso do matrimônio, em cuja prática o ato que privado, por malícia humana, de sua força natural de procriar a vida, infringe a lei de Deus e da natureza, e aqueles que assim zerem contraem a mancha de um grave delito.

Como se vê, as palavras do Vigário de Cristo não podem ser mais claras e terminantes. O tom solene que ele emprega, falando “em nome da Igreja Católica” e “como sinal de sua divina missão” para “promulgar de novo” a doutrina católica tradicional, levou um bom número de teólogos a pensar que o papa fez uso de seu magistério infalível, estabelecendo uma verdadeira de nição ex cathedra.357 Entretanto, o próprio Pio reconhece, na mesma encíclica, que pode ocorrer o caso de um cônjuge que não seja culpável pelo onanismo do outro, e admite, além disso, a legitimidade do uso do matrimônio quando, por causas puramente naturais (ou seja, independentes da malícia ou de um artifício humano) seja impossível a geração de um novo ser (por exemplo, por esterilidade natural, dias agenésicos, etc.), contanto que o ato se desenvolva com toda normalidade e integridade, como se tivesse de ser fecundo. Uma coisa é a natureza não ter mais sua capacidade, outra coisa é o homem distorcer arti cialmente os seus ns. Eis as palavras do papa:358 A Santa Igreja também sabe perfeitamente que não poucas vezes um dos cônjuges, antes que cometer pecado, sofre-o quando, por uma causa de extrema gravidade, permite uma perversão da reta ordem, sem que ele mesmo a queira, cando por isso sem culpa, sempre que, mesmo neste caso, leve em conta a lei da caridade e procure afastar e distanciar o outro do pecado.

Tampouco se pode dizer que procedem contra a natureza aqueles cônjuges que fazem uso de seu direito de um modo reto e natural, mesmo quando, por causas naturais, seja de tempo, seja de outros defeitos, não pode nascer dele uma nova vida. É que existem também, tanto no próprio matrimônio quanto no uso do direito conjugal, os ns secundários, tais como a ajuda mútua, o estímulo do amor recíproco e o sossego da concupiscência, cuja consecução não está proibida de modo algum aos cônjuges, contanto que que a salvo a intrínseca natureza do ato e, por conseguinte, sua devida ordenação ao m primário.

Pio xii 294. Em seu famoso discurso às obstetras de Roma, o imortal Pontí ce Pio con rmou integralmente os ensinamentos de seu predecessor, a rmando que essa doutrina não mudará nunca, por ser a expressão el da própria lei natural e divina, sobre a qual a Igreja não tem jurisdição alguma, nem pode, em conseqüência, alterá-la jamais. Eis as próprias palavras de Pio :359 Nosso predecessor Pio , de feliz memória, em sua Encíclica Casti connubii, de 31 de dezembro de 1930, proclamou de novo solenemente a lei fundamental do ato e das relações conjugais: que é imoral toda tentativa dos cônjuges no cumprimento do ato conjugal, ou no desenvolvimento de suas conseqüências naturais, que tenha por m privá-lo da força inerente a ele e impedir a procriação de uma nova vida; e que nenhuma “indicação” ou necessidade pode mudar uma ação intrinsecamente imoral em um ato moral e lícito. Esta prescrição continua em pleno vigor tanto hoje quanto ontem, e será a mesma amanhã e sempre, porque não é um simples preceito de direito humano, mas a expressão de uma lei natural e divina.

Como se vê, a razão invocada por Pio sobre a irrevocabilidade desta doutrina tradicional por parte da Igreja não admite a menor dúvida, nem uma possível escapatória. Trata-se de uma lei natural e divina, sobre a qual a Igreja não tem jurisdição alguma, nem pode, por isso mesmo, dispensá-la jamais. Caso se tratasse de uma determinação positiva da lei eclesiástica (como é, por exemplo, a do jejum ou abstinência em determinados dias), a Igreja poderia modi cá-la ou até mesmo revogá-la por completo se assim o julgasse conveniente. Tratando-se, porém, de uma lei natural e divina, a Igreja não pode fazer absolutamente nada. Poder-se-á discutir se este ou aquele procedimento (por exemplo, o

uso da pílula anovulatória) atenta ou não contra a ordem natural — e é isto, precisamente, o que está estudando a comissão nomeada por Paulo , a m de examinar o problema do controle da natalidade;360 porém, a Igreja somente poderá autorizar seu uso caso se possa demonstrar com certeza que esse procedimento ou qualquer outro que a ciência venha a descobrir, deixa intacta a lei natural e divina. Do contrário, a Igreja jamais cederá, porque não pode ceder sem trair a sacrossanta missão que Cristo lhe con ou de salvaguardar no mundo a lei natural e divina que regula a moralidade e os bons costumes, conservando-a intacta. Respondendo exatamente à pergunta sobre ser lícito, ou não, o uso de medicamentos com progesterona (substâncias anovulatórias), Pio distinguiu cuidadosamente entre uma aplicação terapêutica dos mesmos para curar uma enfermidade da mulher alheia ao propósito esterilizante — que seria lícita — e o emprego destes medicamentos com a intenção e a nalidade esterilizante, que não se poderia aceitar do modo algum. Eis aqui as suas palavras:361 A resposta depende da intenção da pessoa. Se a mulher toma este medicamento com vistas, não a impedir a concepção, mas unicamente à uma indicação médica, como um remédio por causa de uma enfermidade do útero ou do organismo, ele provoca uma esterilização indireta, que pode ser lícita segundo o princípio geral do duplo efeito. Mas é ilícita quando se trata de impedir a ovulação a m de preservar o útero e o organismo das conseqüências de uma gravidez que não é capaz de suportar.

João xxiii 295. João colocou-se — como não podia deixar de ser — na mesma linha de seus predecessores ao falar do crescimento demográ co e do desenvolvimento econômico em sua magistral Encíclica Mater et Magistra. Eis as próprias palavras do pontí ce:362 Nestes últimos tempos, surge a cada passo o problema da relação entre os aumentos demográ cos, o progresso econômico e a disponibilidade de meios de subsistência,

tanto no plano mundial, como nas comunidades políticas em vias de desenvolvimento econômico. No plano mundial, observam alguns que, segundo cálculos estatísticos considerados sérios, a família humana, dentro de poucos decênios, chegará a números muito elevados, ao passo que o desenvolvimento econômico prosseguirá com ritmo menos acelerado. Daqui concluem que a desproporção entre o povoamento e os meios de subsistência, num futuro não longínquo, se fará sentir de maneira aguda, se não se tratar devidamente de limitar o aumento demográ co. Nas comunidades políticas em fase de desenvolvimento econômico, observa-se, com base nas estatísticas, que a rápida difusão de medidas higiênicas e de cuidados sanitários reduz muito a mortalidade, sobretudo infantil; ao mesmo tempo que a percentagem de natalidade, que nessas comunidades costuma ser elevada, tende a permanecer constante, ou quase constante, pelo menos durante um período considerável de anos. Cresce, pois, notavelmente, o excesso dos nascimentos sobre os óbitos, não aumentando na mesma proporção a e ciência produtiva dos respectivos sistemas econômicos. Torna-se impossível que nas comunidades em fase de desenvolvimento econômico melhore o nível de vida; antes, é inevitável que piore. Por isso, e a m de impedir que se chegue a situações de mal-estar extremo, há quem julgue indispensável recorrer a medidas drásticas para evitar ou diminuir a natalidade. A verdade é que, situado o problema no plano mundial, não parece que a relação entre o incremento demográ co, por um lado, e o desenvolvimento econômico e a disponibilidade dos meios de subsistência, por outro, venham a criar di culdades, ao menos por agora ou num futuro próximo. De todos os modos, são demasiado incertos e oscilantes os elementos de que dispomos para podermos chegar a conclusões seguras. Além disso, Deus, na sua bondade e sabedoria, espalhou pela natureza recursos inesgotáveis, e enriqueceu o homem com uma inteligência tão penetrante, que lhe permite utilizar os instrumentos aptos para colocar estes recursos a serviço dos bens necessários à vida. Por isso, a solução fundamental do problema não deve ser procurada em expedientes que ofendem a ordem moral estabelecida por Deus, e que atacam os próprios mananciais da vida humana, mas num renovado esforço cientí co e técnico, por parte do homem, no sentido de aperfeiçoar e estender cada vez mais o seu domínio sobre a natureza. Os progressos já realizados pelas ciências e técnicas abrem, nesta direção, horizontes ilimitados. Sabemos que, em determinadas áreas e em certos países em fase de desenvolvimento econômico, apresentam-se realmente di culdades graves, devidas à existência de uma organização econômica e social de ciente que não oferece meios de vida proporcionais ao índice do incremento demográ co, e devido também à insu ciência da solidariedade entre os povos. Todavia, mesmo em tais casos, devemos a rmar claramente desde já que estes problemas não se podem encarar, nem estas di culdades se podem vencer, recorrendo a métodos e meios que são indignos de um ser racional e só encontram explicação num conceito puramente materialista do homem e da vida.

A solução acertada encontra-se apenas num progresso econômico e social que respeite e fomente os genuínos valores humanos, individuais e sociais, em conformidade com a moral, com a dignidade e o imenso valor da vida humana, e, juntamente, numa colaboração em escala mundial que permita e fomente a circulação ordenada e fecunda de conhecimentos úteis, capitais e pessoas. Sobre este assunto, temos de proclamar solenemente uma grave declaração: a vida humana deve ser transmitida por meio da família, fundada no matrimônio uno e indissolúvel, elevado para os cristãos à dignidade de sacramento. A transmissão da vida humana foi con ada pela natureza a um ato pessoal e consciente, sujeito, como tal, às leis sapientíssimas de Deus: leis invioláveis e imutáveis, que é preciso acatar e observar. Por isso, não se podem usar aqui meios, nem seguir métodos, que serão lícitos somente quando se tratarem da transmissão da vida nas plantas e nos animais. A vida humana é sagrada: mesmo a partir da sua origem, ela exige a intervenção direta da ação criadora de Deus. Quem viola as leis da vida, ofende a Divina Majestade, degrada-se a si e ao gênero humano, e enfraquece a comunidade de que é membro. Por estes motivos, é de suma importância que as novas gerações recebam, com a formação cultural e religiosa adequada que é dever e direito dos pais proporcionar-lhes, também uma educação sólida do sentimento de responsabilidade em todas as manifestações da existência, particularmente no que diz respeito à fundação da família, à transmissão da vida e à educação dos lhos. Deve-se inculcar-lhes uma fé viva, e uma profunda con ança na Divina Providência, para se disporem a suportar fadigas e sacrifícios no cumprimento de tão nobre missão, muitas vezes difícil, qual é a de colaborar com Deus em transmitir a vida humana e educar a prole. Para educar, nenhuma instituição dispõe de recursos tão e cazes como a Igreja, que, também por este motivo, possui o direito de exercer a sua missão com plena liberdade.

Concílio Vaticano ii 296. O Concílio Vaticano proclamou mais uma vez a doutrina católica tradicional, embora variando um pouco a terminologia. Levando em conta a sua orientação eminentemente pastoral, ele evita a distinção jurídica dos ns do matrimônio em primários e secundários, insistindo na unidade substancial do matrimônio, mas proclamando explícita e abertamente que “o matrimônio e o amor conjugal estão ordenados por sua própria natureza para a geração e a educação da prole”. Neste sentido, a coincidência entre a doutrina tradicional e a do Vaticano é total e absoluta. Eis os textos

conciliares relativos a este assunto na Constituição Gaudium et spes, sobre a Igreja no Mundo Atual:363 “Por sua própria índole, a instituição matrimonial e o amor conjugal estão ordenados para a procriação e educação da prole, que constituem como que a sua coroa. O homem e a mulher, que, pela aliança conjugal ‘já não são dois, mas uma só carne’ (Mt 19, 6), prestam-se recíproca ajuda e serviço com a íntima união das suas pessoas e atividades, tomam consciência da própria unidade e cada vez mais a realizam. Esta união íntima, já que é o dom recíproco de duas pessoas, exige, do mesmo modo que o bem dos lhos, a inteira delidade dos cônjuges e a indissolubilidade da sua união” (nº 48). “Este amor — o dos cônjuges — tem a sua expressão e realização peculiar no ato próprio do matrimônio. São, portanto, honestos e dignos os atos pelos quais os esposos se unem em intimidade e pureza; realizados de modo autenticamente humano, exprimem e alimentam a mútua entrega pela qual se enriquecem um ao outro com alegria e gratidão” (nº 49). “O matrimônio e o amor conjugal ordenam-se por sua própria natureza à geração e educação da prole. Os lhos são, sem dúvida, o maior dom do matrimônio e contribuem muito para o bem dos próprios pais. O mesmo Deus que disse: ‘Não é bom que o homem esteja só’ (Gn 2, 88) e que ‘desde a origem fez o homem varão e mulher’ (Mt 19, 14), querendo comunicar-lhe uma participação especial na Sua obra criadora, abençoou o homem e a mulher dizendo: ‘Sede fecundos e multiplicai-vos’ (Gn 1, 28). Por isso, o autêntico cultivo do amor conjugal, e toda a vida familiar que dele nasce, sem pôr de lado os outros ns do matrimônio, tendem a que os esposos, com fortaleza de ânimo, estejam dispostos a colaborar com o amor do Criador e Salvador, que por meio deles aumenta cada dia mais e enriquece a sua família” (nº 50).

Entretanto, nem a lei de Deus nem a Igreja exigem dos cônjuges que tenham todos os lhos biologicamente possíveis. Muito ao contrário, o concílio reconhece abertamente que os esposos “podem encontrar-se em situações nas quais o número dos lhos, ao menos por certo tempo, não pode aumentar”. Nestes casos, os esposos deverão “de comum acordo”, com plena “responsabilidade humana e cristã” e de acordo com sua consciência, “ajustada à lei divina e ao Magistério da Igreja”, empregar os meios declarados lícitos pela lei moral para o controle da natalidade. Mas jamais poderão proceder “arbitrariamente”, como se qualquer procedimento fosse lícito para conseguir esse m. Eis aqui, em toda a sua integridade, o texto conciliar que alude a esta gravíssima questão:

“Os esposos sabem que no dever de transmitir e educar a vida humana — dever que deve ser considerado como a sua missão especí ca — eles são os cooperadores do amor de Deus Criador e como que os seus intérpretes. Desempenharão, portanto, esta missão com a sua responsabilidade humana e cristã; com um respeito cheio de docilidade para com Deus, de comum acordo e com esforço comum, formarão retamente a própria consciência, tendo em conta o seu bem próprio e o dos lhos já nascidos ou que prevêem que virão a nascer, sabendo ver as condições de tempo e da própria situação, e tendo, nalmente, em consideração o bem da comunidade familiar, da sociedade temporal e da própria Igreja. São os próprios esposos que, em última instância, devem diante de Deus tomar esta decisão. Mas, no seu modo de proceder, tenham os esposos consciência de que não podem agir arbitrariamente, mas que sempre se devem guiar pela consciência, que se deve conformar com a lei divina, e ser dóceis ao Magistério da Igreja, que autenticamente a interpreta à luz do Evangelho. Essa lei divina manifesta a plena signi cação do amor conjugal, protege-o e estimula-o para a sua perfeição autenticamente humana. Assim, os esposos cristãos, con ados à Divina Providência e cultivando o espírito de sacrifício (cf. 1Cor 7, 5), dão glória ao Criador e caminham para a perfeição em Cristo quando se desempenham em seu dever de procriar com responsabilidade generosa, humana e cristã. Entre os esposos que deste modo satisfazem à missão que Deus lhes con ou, devem ser especialmente lembrados aqueles que, de comum acordo e com prudência, aceitam com grandeza de ânimo educar uma prole numerosa. No entanto, o matrimônio não foi instituído só em ordem à procriação da prole. A própria natureza da aliança indissolúvel entre as pessoas e o bem da prole exigem que o mútuo amor dos esposos se exprima convenientemente, aumente e chegue à maturidade. E por isso, mesmo que faltem os lhos, tantas vezes ardentemente desejados, o matrimônio conserva o seu valor e indissolubilidade, como comunidade e comunhão de toda a vida” (nº 50). “O concílio não ignora que os esposos, na sua vontade de conduzir harmonicamente a própria vida conjugal, encontram freqüentes di culdades em certas circunstâncias da vida atual; que se podem encontrar em situações em que, pelo menos temporariamente, não lhes é possível aumentar o número de lhos e em que só di cilmente se mantêm a delidade do amor e a plena comunidade de vida. Mas quando se suspende a intimidade da vida conjugal, não raro se põe em risco a delidade e se compromete o bem da prole; porque, nesse caso, cam ameaçadas a educação dos lhos, e a coragem necessária para aceitar os que virão. Não falta quem se atreva a dar soluções imorais a estes problemas, sem recuar sequer perante o homicídio. Mas a Igreja recorda que não pode haver verdadeira incompatibilidade entre as leis divinas que regem a transmissão da vida e o desenvolvimento do autêntico amor conjugal. Com efeito, Deus, Senhor da vida, con ou ao homem o nobre encargo de conservar a vida, para que o desempenhassem de um modo digno do mesmo homem. Esta deve, pois, ser salvaguardada, com extrema solicitude, desde o primeiro momento da concepção; o aborto e o infanticídio são crimes abomináveis. A índole sexual humana e o poder gerador do homem superam de modo admirável o que se encontra nos graus

inferiores da vida; daqui se segue que os mesmos atos especí cos da vida conjugal, realizados segundo a autêntica dignidade humana, devem ser objeto de grande respeito. Quando se trata, portanto, de conciliar o amor conjugal com a transmissão responsável da vida, a moralidade do comportamento não depende apenas da sinceridade da intenção e da apreciação dos motivos; deve também determinar-se por critérios objetivos, tomados da natureza da pessoa e dos seus atos; critérios que respeitem, num contexto de autêntico amor, o sentido da mútua doação e da procriação humana. Tudo isto só é possível se se cultivar sinceramente a virtude da castidade conjugal. Segundo estes princípios, não é lícito aos lhos da Igreja adotar, na regulação dos nascimentos, caminhos que o Magistério, explicitando a lei divina, reprova.364 Todos, nalmente, tenham bem presente que a vida humana e a missão de a transmitir não se limitam a este mundo, nem podem ser medidas ou compreendidas unicamente em função dele, mas que estão sempre relacionadas com o eterno destino do homem” (nº 51).

Como se vê, a doutrina do concílio não pode ser mais clara e decisiva. Mais uma vez, con rmou a doutrina tradicional católica sobre o controle da natalidade, remetendo-se, inclusive expressamente, à doutrina dos últimos pontí ces, como se pode ver na nota conciliar que acabamos de transcrever no rodapé. Entretanto, como o mesmo concílio diz expressamente na nota que acabamos de citar, a magna assembléia não pretendeu por si mesma propor soluções concretas para o angustioso problema do controle da natalidade, deixando a responsabilidade de nitiva ao juízo do Santo Padre. O mundo espera com ansiedade a decisão nal daquele que tem a representação máxima de Cristo na terra. Entrementes, o concílio incentiva os cientistas a seguirem investigando para esclarecer e resolver este problema. Eis as palavras do próprio concílio: Os cientistas, particularmente os especialistas nas ciências biológicas, médicas, sociais e psicológicas, podem prestar um grande serviço para o bem do matrimônio e da família se, juntando os seus esforços, procurarem esclarecer mais profundamente as condições que favorecem a honesta regulação da procriação humana (nº 52).

Um pouco mais adiante, no mesmo documento, referindo-se à cooperação internacional no tocante ao crescimento demográ co, o concílio lança um alerta contra uma abusiva intervenção do

Estado no controle da natalidade, deixando ao reto juízo dos pais, guiados por sua própria consciência, levando-se em conta a lei divina, a decisão sobre o número de seus lhos. Eis o texto conciliar: Visto que muitos a rmam que o aumento da população mundial, ou ao menos de algumas nações, deve ser absoluta e radicalmente diminuído por todos os meios e por qualquer espécie de intervenção da autoridade pública, o concílio exorta todos a que evitem as soluções, promovidas privada ou publicamente, ou até por vezes impostas, que sejam contrárias à lei moral. Porque, segundo o inalienável direito ao casamento e à procriação da prole, a decisão acerca do número de lhos depende do reto juízo dos pais e de modo algum se pode entregar ao da autoridade pública. Mas como o juízo dos pais pressupõe uma consciência bem formada, é de grande importância que todos tenham a possibilidade de cultivar uma responsabilidade reta e autenticamente humana, que tenha em conta a lei divina, consideradas as circunstâncias objetivas e temporais; isto exige, porém, que por toda a parte sejam melhoradas as condições pedagógicas e sociais e, sobretudo, que seja dada uma formação religiosa, ou ao menos uma íntegra educação moral. Sejam também as populações judiciosamente informadas acerca dos progressos cientí cos alcançados na investigação dos métodos que ajudam os esposos na determinação do número de lhos, cuja segurança esteja bem comprovada e de que conste claramente a legitimidade moral (nº 87).

Note-se a importância destas últimas palavras do concílio para julgar, por exemplo, acerca da licitude ou ilicitude das famosas pílulas anovulatórias. A Igreja ainda não se pronunciou sobre isto;365 porém, em todo caso, não admitirá sua administração a não ser depois que se demonstre que seu uso está em concordância com a ordem moral; coisa que não só ainda não foi demonstrada, mas sobre a qual, ao contrário, grande número de eminentes moralistas abrigam sérias dúvidas. E não se diga — segundo um princípio muito acariciado pela moral probabilística — que outros moralistas de fama disseram que o uso de anovulatórios para regular a natalidade não é intrinsecamente mau, porque a aplicação do probabilismo teria de supor — como diz muito bem o jesuíta Pe. Lobo366 — que a Igreja não tivesse falado claramente sobre a matéria. Em nosso problema, não só temos os ensinamentos claros dos últimos papas, mas o próprio Paulo — como veremos a seguir — a rmou, em 29 de outubro de 1966, que tais normas ainda continuam em vigor. Não se trata tampouco de um preceito eclesiástico, do qual se poderia escusar

por uma razão proporcionalmente grave, mas é a proposição de uma lei natural assim como é entendida pela Igreja, o que não exclui para o futuro a possibilidade de um conhecimento mais perfeito dessa mesma lei natural. É prudente esperar pelo ditame de nitivo da Igreja, sem se adiantar em dar soluções precipitadas que talvez se tenham de reti car mais adiante, com grave dano para as almas. Paulo vi 297. Embora a decisão de nitiva sobre o relatório apresentado pela comissão investigadora de cientistas ainda não tenha sido pronunciada por Paulo ,367 contudo o Papa Montini tem falado repetidas vezes sobre a questão de que nos ocupamos, deixando entrever, talvez, o que deverá dizer quando pronunciar seu parecer de nitivo. Vamos reunir algumas das mais expressivas manifestações de Paulo . No discurso aos cardeais e bispos de todo o mundo, em 23 de junho de 1964, ele lhes dizia: O problema está aí. Todos falam dele: é o problema do controle da natalidade. Problema grave em sumo grau, que afeta as próprias fontes da vida humana. É problema sumamente complicado e complexo. A Igreja reconhece seus múltiplos aspectos, isto é, suas múltiplas competências, entre as quais sobressai, certamente, a dos cônjuges, sua liberdade, sua consciência, seu amor e seu dever. Mas a Igreja também tem de a rmar sua responsabilidade própria, ou seja, a lei de Deus por ela interpretada, ensinada, fortalecida e de nida. E a Igreja terá de proclamar essa lei de Deus à luz das verdades cientí cas, sociais e psicológicas, que nestes últimos tempos tiveram amplíssimos estudos e documentações. Terá de considerar atenta e abertamente este desenvolvimento tanto teórico como prático da questão. Ela se acha em estudo, que esperamos concluir logo, com a colaboração de muitos insignes estudiosos. Logo daremos as conclusões do mesmo, na forma que se julgar mais adequada ao objeto de que se trata e à nalidade a ser atingida. Porém, enquanto isso, dizemos francamente que por ora não temos razões para considerar superadas e, portanto, sem força para obrigar, as normas dadas por Pio xii a este respeito. Portanto, devemos considerá-las válidas, ao menos até que, em consciência, nos sintamos obrigados a trocá-las ou modi cá-las.

E ainda acrescenta:

Em matéria de tamanha transcendência e gravidade, parece conveniente que os católicos sigam uma lei única, aquela que a Igreja propõe com sua autoridade. E parece oportuno, portanto, recomendar que ninguém se permita, por ora, pronunciar-se em termos diferentes da norma vigente.

É interessante destacar que a comissão nomeada por Paulo para estudar a fundo esta questão delicada e transcendental foi integrada por cerca de 60 membros, pertencentes a mais de 22 nações dos cinco continentes, distribuídos do seguinte modo: 9 franceses, 8 belgas, 7 norte-americanos, 5 africanos, 2 espanhóis (o jesuíta Pe. Zalba e o Doutor López Ibor), e os demais, um de cada respectiva nação. Quanto às pro ssões — já que somente a terça parte era de eclesiásticos —, pertenciam às seguintes: teólogos, moralistas, sociólogos, psicólogos, médicos, economistas, estadistas, demógrafos, departamentos de planejamento em geral, movimentos familiares, psiquiatras, matemáticos, biólogos, neurologistas e lósofos. Eles foram presididos no início por dois bispos: o auxiliar de Mogúncia (Alemanha) e o de Saint Paul, dos Estados Unidos. Atualmente, a comissão foi ampliada com mais membros, todos eles bispos, e a presidência foi mantida com o pró-prefeito da Congregação da Doutrina da Fé, Cardeal Ottaviani. Esta comissão — que, como se vê, não podia ser mais séria e competente — fez entrega ao papa do resultado de seus trabalhos em 26 de junho de 1966. Paulo estudou detidamente o volumoso informe de 800 páginas em sua residência de verão de Castelgandolfo e no Vaticano, dedicando a isso o melhor de seu tempo e de suas forças. Mas o problema é tão complexo, e são tão graves e delicadas as suas implicações e interferências com os diferentes campos da moral, da medicina, da economia, da demogra a, etc., que em seu discurso de 2 de novembro de 1966, perante os membros do Congresso da Sociedade Italiana de Obstetrícia e Ginecologia, Paulo declarou que ainda não podia dar sua resposta de nitiva a esse angustioso problema. Leve-se em conta — para compreender este adiamento — a enorme responsabilidade do papa diante do fato de ter que se pronunciar

sobre um gravíssimo assunto que afetará a vida e os costumes dos 600 milhões de católicos que existem atualmente no mundo, e que sem dúvida irá repercutir em todo o restante da humanidade. O papa não pode dar uma nova solução até que esteja de todo seguro de que é perfeitamente assimilável à moral católica, inspirada na lei natural e divina, que é absolutamente intocável. Ouçamos o próprio Paulo expondo, no citado discurso, as causas de sua cautela e postergação:368 Existe um ponto em que as duas competências — a nossa e a vossa — poderia pôr-se em contato e dialogar conjuntamente. Queremos dizer, a questão da regulação da natalidade. Questão extremamente ampla, questão delicadíssima e questão na qual nós mesmos, por suas implicações religiosas e morais, estamos autorizados e até mesmo temos a obrigação de tomar a palavra. Questão de atualidade. Sabemos que se espera de nós uma palavra decisiva acerca do pensamento da Igreja sobre esta questão. Porém, como é óbvio, não o podemos fazer nesta oportunidade. Recordaremos aqui, unicamente, o que já temos exposto em nosso discurso de 23 de junho de 1964, e é isto: o pensamento e a norma da Igreja não mudaram: são aqueles vigentes no ensino tradicional da Igreja. O concílio ecumênico, há pouco celebrado, contribuiu com alguns elementos de juízo, utilíssimos para integrar a doutrina católica sobre este importantíssimo tema, mas não de modo a alterar seus termos substanciais. Antes, eles são aptos para ilustrá-los e para provar, com argumentos autorizados, o sumo interesse que a Igreja atribui à questão concernente ao amor, ao matrimônio, à natalidade e à família. Por isso, a nova palavra que se espera da Igreja sobre o problema da regulação dos nascimentos ainda não foi pronunciada, pelo fato de que nós mesmos, tendo-a prometido e reservado para nós, quisemos submeter a um atento exame as exigências doutrinais e pastorais que surgiram ao longo destes últimos anos a propósito deste problema, estudando-as em confronto com os dados da ciência e da experiência que nos foram apresentados de todos os campos, especialmente de vosso campo médico e do demográ co, para dar ao problema sua solução boa e verdadeira, que só pode ser aquela integralmente humana, ou seja, a moral e cristã. Temos acreditado assumir objetivamente o estudo de tais exigências e dos elementos de juízo. Este parece ser o nosso dever; e tratamos de cumpri-lo do melhor modo, nomeando uma ampla, variada e competentíssima comissão internacional, a qual, em suas diversas seções e em outras longas discussões, realizou um grande trabalho e nos remeteu suas conclusões. Estas, parece-nos, ainda não podem ser consideradas de nitivas, pelo fato de que apresentam graves implicações com outras questões numerosas e signi cativas, tanto de ordem doutrinal quanto pastoral e social, que não podem ser isoladas umas das outras, mas exigem uma avaliação lógica no contexto da questão submetido a este estudo. Mais uma vez, este fato indica a enorme complexidade e a tremenda gravidade do tema relativo à regulação dos nascimentos, e impõe à nossa responsabilidade um estudo suplementar, ao qual, com grande reverência por aqueles que já dedicaram tanta

atenção e trabalho, mas com enorme senso das obrigações de nosso ofício apostólico, estamos atendendo resolutamente. E este é o motivo que tem retardado nossa resposta e que deverá adiá-la ainda por algum tempo. Enquanto isso, como já dizíamos no citado discurso, as normas até agora ensinadas pela Igreja, completadas pelas sábias instruções do concílio, reclamam el e generosa observância; e não podem ser consideradas como não-obrigatórias, como se o Magistério da Igreja estivesse agora em estado de dúvida, quando está em um momento de estudo e re exão a respeito de tudo quanto foi considerado digno de atentíssima consideração. Isto quer dizer, senhores, que talvez devamos encontrar-nos de novo para continuar o discurso sobre um tema de tamanha importância. Desde já, porém, expressamos nossa con ança em vossa autorizada compreensão e em vossa livre colaboração acerca de uma norma que se converte para todos como ótima e sagrada, muito mais que nossa própria autoridade, a própria lei de Deus, e muito mais que todo interesse particular, o supremo interesse da vida humana, vista em sua integridade, em sua dignidade e em seu destino.

Conclusão 298. Este é o atual estado da questão. Como se vê, até agora continua de pé, com toda a sua força de obrigação, a doutrina tradicional da Igreja, que não foi modi cada pelo Concílio Vaticano nem pelo Papa Paulo . Não sabemos se um estudo mais profundo de todas as “graves implicações” de que fala o papa, no texto que acabamos de transcrever, obrigará a modi car alguns dados relativos ao problema. O que podemos assegurar, sem medo de nos equivocarmos, é o seguinte: 1º — A Igreja jamais autorizará as práticas onanísticas, naturais ou arti ciais. Elas estão expressamente reprovadas pela lei natural e pela própria Escritura (cf. Gn 38, 8–10), e a Igreja não tem autoridade nem jurisdição alguma sobre essas leis naturais e divinas. Como declarou expressamente Pio no texto que já citamos, “essa prescrição continua em pleno vigor tanto hoje como ontem, e será igual amanhã e sempre, porque não é um simples preceito de direito humano, mas a expressão de uma lei natural e divina”.

2º — Quanto à licitude ou ilicitude da famosa pílula anovulatória — sobre a qual a Igreja ainda não se pronunciou —,369 dependerá de que se chegue a demonstrar que ela entre, ou não, na ordem normal da natureza humana integralmente considerada. Caso se possa demonstrar com toda a certeza que ela não atenta contra a ordem natural, a Igreja lhe dará livre passagem, embora limitando, talvez, o seu uso quando uma verdadeira necessidade exija não aumentar o número dos lhos, segundo a consciência dos próprios cônjuges, não ao seu arbítrio, mas segundo as normas retas e objetivas da moral cristã, como diz o Concílio Vaticano no texto que citamos acima. Se, ao contrário, se chegar a demonstrar que o uso dessas pílulas é antinatural, a Igreja jamais as autorizará, porque nada pode autorizar contra as leis naturais e divinas. Todo o nó da questão está centrado nesta pergunta: o uso da famosa pílula é, ou não, conforme a lei natural? A resposta a rmativa ou negativa a esta pergunta determinará a licitude ou a ilicitude da pílula anovulatória ou de qualquer outro procedimento que a ciência e a técnica modernas possam descobrir. 3º — Enquanto isso — para repetir as mesmas palavras do Concílio Vaticano e de Paulo —, “não é lícito aos lhos da Igreja, fundamentados nestes princípios, ir por caminhos que o Magistério, ao explicar como lei divina, reprova a respeito da regulação da natalidade” (Concílio Vaticano), e a ninguém é lícito esquecer que “as normas ensinadas até agora pela Igreja, completadas pelas sábias instruções do concílio, reclamam el e generosa observância”, já que “se convertem para nós em ótimas e sagradas pela própria lei de Deus e pelo supremo interesse da vida humana” (Paulo ).

Artigo 7 — A viuvez cristã

Em uma obra dirigida à espiritualidade dos leigos — de todos eles em geral — não podia faltar um breve artigo dedicado à viuvez cristã. Por lei inevitável da vida — e salvo acidentes imprevistos, que produzem a morte dos dois cônjuges ao mesmo tempo — todos os matrimônios acabam com a morte de um dos dois, cando o outro cônjuge na amarga condição humana produzida pela viuvez. Examinaremos em primeiro lugar, brevemente e em forma esquemática, o problema geral da viuvez.370 Depois voltaremos com mais detalhes sobre alguns de seus aspectos mais importantes. . 299. A morte do cônjuge é algo muito duro. É um golpe desferido na medula da alma. Representa para o sobrevivente o sofrimento mais atroz e, humanamente, a perda de signi cado de tudo que se tinha nas mãos. Entretanto, tudo continua tendo sentido. Inclusive o amor, esse amor para o qual a morte signi cou apenas uma história a mais. Ao falar da viuvez, o pensamento espontaneamente se orienta e se xa na viuvez feminina. É a mais comum e a que coloca problemas mais agudos. É sobre ela que versam as linhas seguintes. i. A viuvez na Bíblia e na Igreja a) Na Sagrada Escritura 1. É impressionante a linguagem da Bíblia sobre os desvalidos. Deus ordena repetidamente respeitar as viúvas e favorecê-las: Ex 22, 21–22; Dt 24, 17; 27, 19; Is 1, 17, etc.

2. Deus é pai e defensor das viúvas e dos órfãos: Dt 10, 18; Sl 67, 6, etc. 3. No Evangelho, encontram-se magní cos louvores às viúvas — lembrar de Ana, a profetisa: Lc 2, 36 ss. — e Cristo mostra por elas uma especial benevolência: ressuscita o lho da viúva de Naim (Lc 7, 12 ss.). 4. São Paulo a rma (1Cor 7, 40) que é beatior, mais feliz a mulher que, uma vez morto o seu marido, permanece viúva, do que aquela que se casa de novo. b) Na Igreja 1. “Embora a Igreja não condene as segundas núpcias, indica sua predileção pelas almas que querem continuar éis ao esposo e ao simbolismo perfeito do sacramento do Matrimônio” (Pio ; cf. também 1Cor 7, 8). 2. As viúvas sempre foram objeto de solicitude por parte da Igreja desde seus primeiros tempos (cf. 1Tm 5, 5–10 e At 6, 1). a) Tinham funções especiais. Exerciam na Igreja — ao modo de diaconisas — um ministério de caridade e catequese. b) Órgãos de bene cência eram criados para elas, e ditavam-selhe normas transpassadas de bondade. ii. Signi cado e atitudes perante a viuvez a) Atitudes equivocadas .

:

a) Aquela que procura por todos os meios esquecer sua condição, sob o pretexto de que é humilhante; ela excita a comiseração e

coloca-se em um estado do qual gostaria de fugir, e até apagar a lembrança. b) Aquela que aproveita a viuvez para se despojar da reserva e prudência que convêm às mulheres sozinhas, e se abandona às vaidades de uma vida fácil em busca de prazeres. A viúva “que leva vida livre, mesmo estando viva, já está morta” (1Tm 5, 6). . : Diante da imensidade da amargura e da angústia em que ca mergulhada, protesta e se rebela contra o destino e contra o Deus que consente em sua infelicidade. . : Perde a vontade de viver, nega-se a sair do sofrimento, cai em uma melancolia doentia e declara inútil todo esforço, incluída a própria oração. b) Sentido cristão da viuvez 1. A morte, longe de destruir os laços do amor humano e sobrenatural contraídos pelo matrimônio, pode aperfeiçoá-los e reforçá-los. a) O amor conjugal subsiste com seus anseios de eternidade, como subsistem os seres espirituais livres que se prometeram um ao outro. b) Quando o cônjuge morto entra na intimidade de Deus, Deus o despoja de todas as debilidades e egoísmos, e convida aquele que cou na terra a adotar uma disposição de ânimo mais pura e espiritual. 2. Ainda que pareça paradoxal, à ausência do esposo pode-se associar “uma presença dele mais íntima, mais profunda e mais forte. Uma presença que também será puri cadora; porque aquele que já vê a Deus face a face não permitirá aos seres queridos o redobrar-se sobre si mesmos, o desalento e a entrega inconsciente” (Pio ).

3. Com a morte, ainda permanece vivo — e mais perfeito, talvez — o simbolismo do matrimônio: a viúva representa a fase atual da Igreja militante, privada da visão de seu Esposo, com o qual permanece unida, e caminha para Ele, impelida pelo amor, na fé e na esperança. c) Valor propiciatório da viuvez 1. A viúva oferecerá seus sufrágios e suas boas obras — o holocausto de uma vida santa — por seu esposo defunto, para ajudá-lo a gozar o quanto antes da visão de Deus. 2. Até mesmo aquela que teve de sofrer incompreensões e maus tratos da parte do esposo — e cuja morte pode parecer-lhe uma providencial libertação — não terá outros sentimentos, a não ser os de Cristo para com os pecadores: o perdão voluntário e a generosa intercessão. 3. Para conservar a paz interior e fazer frente a todas as obrigações de seu estado, a viúva cultivará com esmero sua vida espiritual. São Paulo descrevia a viúva como “aquela que pôs sua esperança em Deus e persevera dia e noite em súplicas e orações” (1Tm 5, 5). iii. Deveres familiares, sociais e apostólicos da viúva a) Vida do lar 1. A viúva distribuirá entre seus lhos, se os tiver, o afeto sensível que dedicava a seu marido, evitando vãs lamentações e sem se deixar amedrontar pelas perspectivas sombrias do futuro. 2. Reunirá em uma única mão, em uma única palavra, a rmeza do pai e a exibilidade carinhosa da mãe. 3. Entregar-se-á generosamente à tarefa educadora, continuando unida em espírito a seu marido, que lhe sugerirá em Deus as

medidas que deverá tomar, que lhe darão autoridade e clarividência. b) Deveres sociais e apostólicos 1. Envolverá sua vida em um clima de austeridade e se mostrará exteriormente rodeada de uma reserva mais marcante, porque participa plenamente no mistério da cruz, e a gravidade de seu comportamento atrairá sobre si o selo de Deus. 2. Por isso ela tem uma mensagem para os homens que a rodeiam: é aquela que vive da fé, que não vai atrás de prazeres, aquela que conquistou, mediante sua dor, o acesso a um mundo mais sereno e sobrenatural. 3. Nas horas mais austeras, nas tentações de desalento, ela evocará a casta Judite que, ao depositar em Deus a sua con ança, se expôs aos mais graves perigos para salvar seu povo. 4. Pensará sobretudo na Virgem Maria, também viúva, e cuja oração, vida interior e abnegação atraíram as bênçãos de Deus sobre a primeira comunidade cristã. 5. E quando sentir que declina a sua força física, quando se vir pobre e impotente, recordará as palavras de Cristo ao ver os ricos depositando suas oferendas no cofre e, depois deles, uma pobre viúva que lançava duas pequenas moedas: “Em verdade vos digo que esta pobre viúva doou mais do que todos” (Lc 21, 2–3). Conclusão 1. Cuidado com o orgulho, que pode fermentar em certos estados de viuvez pretensiosa. Santo Agostinho adverte a viúva: “Chamei Rute de bem-aventurada, e Ana ainda mais bem-aventurada, porque aquela se casou duas vezes, e esta logo cou viúva, e assim viveu por muitos anos; mas não concluas que tu és melhor que Rute” ( 40, 435).

2. Mesmo na viuvez, para as almas corajosas e castas, resta uma alegria: “A alegria”, ensina Santo Tomás, “é produzida pelo amor, seja por causa da presença do bem-amado, seja porque o objeto que é amado goza de seu próprio bem e o conserva” (Suma teológica, a- ae, q. 28, a. 1). 3. “O tempo é curto [...]. Aqueles que possuem mulher vivam como se não a tivessem; os que choram, como se não chorassem; os que se alegram, como se não se alegrassem [...] e aqueles que desfrutam do mundo, como se não desfrutassem, porque a aparência deste mundo passa” (1Cor 7, 29–32). Depois desta sintética visão de conjunto, vamos insistir um pouco mais em alguns dos aspectos mais importantes da viuvez cristã. .

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300. É preciso reconhecer, antes de tudo, que a morte de um dos cônjuges quase sempre representa para o outro uma verdadeira tragédia humana, sobretudo se é ela quem ca sozinha no mundo e em idade ainda não demasiado avançada. Se o fato ocorre em plena juventude, e com lhos pequenos, a tragédia adquire aspectos verdadeiramente assustadores. Nestes casos, só cabem duas atitudes extremas: o desespero materialista, que não resolve nada e tudo agrava imensamente, ou a visão cristã da realidade, triste em si mesma — é claro —, mas cheia de luz e de esperança em um horizonte sempre próximo, embora à primeira vista possa parecer demasiado distante... Porém, que radical mudança de perspectiva conforme se tenha uma ou outra visão da inexorável realidade! Nada diremos sobre a primeira atitude de desespero. Nada resolve — repetimos — e tudo agrava imensamente. Em alguns casos extremos, pode até incluir a incrível aberração do suicídio.

Muito diferente é a atitude do cônjuge cristão, que sabe elevar seus olhos ao céu para contemplar com os olhos da fé — mesmo que seja através do cristal de suas lágrimas — o verdadeiro alcance da situação criada pela tragédia humana que acaba de experimentar. A este propósito, vejamos o magní co texto de um autor contemporâneo:371 Quantas coisas já se disseram sobre a viuvez e quantas ainda restam por dizer! Isto porque — é preciso reconhecer — o mais importante que seria preciso dizer a todas as viúvas, nós nos atrevemos a dizer apenas a umas poucas. A “boa nova”, que devemos gritar sobre os telhados, mal ousamos murmurá-la ao ouvido. Isto porque, ao abordar este assunto com uma perspectiva cristã, tem-se a impressão de que se vai correr o risco de acender uma luz que vai chocar, contrariar, perturbar... e cegar mais do que iluminar. A menor expressão da mensagem de Cristo está in nitamente acima de todos os sentimentos humanos. Certamente que não os destrói, mas eleva-os ao in nito; não os suprime, mas os supera e transcende imensamente. Acaso, porém, não acaba sendo escandaloso falar de superação e transcendência quando se trata do amor conjugal e da dor da viuvez? Em certo sentido, sim. Ninguém pode expulsar esta dor ou escapar dela; permanece inevitavelmente dentro da alma. Por isso é preciso transformá-la especialmente por dentro. É necessário dizer sem rodeios que, do ponto de vista humano, a viuvez é uma desgraça irreparável que afeta e marca toda uma vida. Mas, do ponto de vista cristão, é uma etapa rumo a uma renovação maravilhosa do amor. Do ponto de vista humano, é uma separação; na perspectiva cristã, é a preparação para um novo reencontro. É uma fase dolorosa e puri cadora da intimidade conjugal. É um momento, um período, uma travessia nesse grande desdobramento do amor que vai desde o primeiro consentimento até o eterno reencontro. É um morrer para uma vida nova, uma ruptura carnal para um reencontro espiritual, uma separação temporal para entrar em uma intimidade eterna. Um trânsito, uma travessia: uma Páscoa. Uma travessia necessária. Porque não se pode entrar na vida eterna, nos afetos espirituais, sem pagar o preço desta dolorosa travessia. Não existe outro caminho para a vida eterna a não ser a Cruz de Cristo. Todos os nossos amores terão de passar por ela para entrar em sua glória. Toda a nossa vida, toda a vida conjugal em particular, é uma lenta educação, uma providencial progressão, uma exigência cada vez maior de desprendimento para um novo reencontro. A viuvez não é outra coisa, senão a última etapa dessa progressão do homem e da mulher até a perfeição de sua intimidade. Não inteiramente a última, na realidade; mas certamente a penúltima. Porque mais além está o céu, a ressurreição, o eterno reencontro. Não para recomeçar os laços terrestres; não

para uma nova etapa deste peregrinar terrestre em que os laços da carne preparam, suportam e condicionam a intimidade do amor, mas para descobrir essa vida do espírito em que a alma envolve seu corpo e o assume como pura expressão de seu amor. Toda a vida conjugal é uma tensão rumo a esse estado de nitivo em que o homem e a mulher não serão atraídos um para o outro pelo instinto que brota das profundezas carnais, mas pelo espírito que brota das profundezas de Deus. A viuvez é uma etapa, mas também uma prova de nitiva na progressão do amor até seu término bem-aventurado. Isto não pode ser feito sem nós. O amor é livre em todos os seus caminhos — o amor humano e, ainda mais, o amor divino. Por isso mesmo, tratase aqui, precisamente, de um pleno consentimento ao desconcertante plano de Deus, à vontade de Deus, ao próprio Deus. É uma aceitação concreta de uma vida de amor plenamente abandonada em suas mãos. Não é uma renúncia a amar, não é a aceitação de uma ruptura. É a aceitação de preferir a Deus sobre todas as coisas, para dele receber, como e quando Ele queira, aquilo que nos é mais caro neste mundo: a presença daquele a quem amamos; com a certeza — em meio às trevas da noite — de que isso será ainda melhor que tudo o que saberíamos fazer por nós mesmos. A este preço nós o receberemos de Deus: não é a terra quem no-lo dá, mas é o céu quem no-lo promete. Nossa vida está no céu. Esta radical mudança de todas as perspectivas terrestres é essencial para o estado do cristão. Aquele que o repele, que quiser reter em suas próprias mãos toda a sua felicidade, fecha o céu para si mesmo... e escapa-lhe a própria terra. É um homem sem esperança. Ao contrário, aquele que consente nisso entrou no caminho estreito que conduz à vida. Todo cristão, religioso ou secular, no matrimônio ou no sacerdócio, é chamado a entrar nesta perspectiva de nitiva que ordena todas as realidades terrestres para o reino dos céus, todas as intimidades terrestres para as eternas. Mas nós resistimos por longo tempo a entrar nesta luz de nitiva. Refazemos inde nidamente projetos sem consistência, que em nada levam em consideração os desígnios de Deus. Por isso, a viuvez no centro da vida, ou nos obriga a reconhecer que o amor não tem futuro e a vida não tem sentido, ou que ela tem exatamente este sentido: uma preparação lenta, progressiva e dolorosa para as realidades invisíveis. Portanto, na Igreja, a viúva tem um papel e uma missão especial que lhe foram reconhecidos desde o princípio. Ela encarna e realiza diante de nós, por sua própria situação, esta tensão continuamente ativa da vida presente em direção ao além. Sua vida conjugal e familiar parece humanamente destroçada; mas ela traz em seu coração e realiza em sua fé uma nova vida de intimidade. É a ruína de um destino aos olhos de quem não compreende como das mesmas ruínas brotam, diante de uma luz superior, os elementos de uma nova construção que se ergue até o céu. Por esta solidão na qual não está inteiramente sozinha, por sua dor em que não vive sem esperança, por esse amor destroçado que se reveste de uma vida nova, a viúva é, na presença de todos, o testemunho da vida eterna. Ela encarna, em toda a sua vida, a passagem dolorosa da morte para uma transformação radiante de vida, que é a condição cristã de todas as

pessoas e de seu próprio amor. Ela traz para a Igreja a atualidade irresistível do mistério de Cristo. Como toda vocação, a dela também é para a Igreja. Mostra em sua própria vida um dos aspectos do mistério de Cristo. Isto é verdade — sabemos muito bem — aplicado à intimidade conjugal. “Este mistério é grande”, diz São Paulo, “mas entendido como de Cristo e da Igreja” (Ef 5, 32). A intimidade do esposo e da esposa traz consigo uma magní ca semelhança e uma misteriosa participação nas próprias relações de Cristo Jesus com a humanidade resgatada em sua Igreja. E isto continua verdadeiro, mais verdadeiro que nunca, na viuvez que — como já dissemos — é uma etapa da condição conjugal. Superação, em certo sentido, em relação ao sacramento do Matrimônio, que regula e santi ca a intimidade presente dos esposos; mas também cumprimento espiritual de seus laços, cumprimento que tem seu sentido em relação a Cristo e a sua Igreja. A viúva mostra à Igreja as duas atitudes fundamentais que devem ser sempre as suas em relação a Cristo, seu Esposo: a intimidade no invisível e a espera infalível do eterno reencontro.

Esta visão cristã da viuvez, cheia de luz e de esperança, afeta igualmente o homem ou a mulher que caram sozinhos no mundo com a morte do doce companheiro de sua vida. Mas é conveniente que olhemos em separado a cada um deles, pois a viuvez no caso do homem ou da mulher não é inteiramente a mesma coisa. . 301. A morte da esposa sempre representa um rude golpe para o coração de um esposo amoroso e el. Na imensa maioria dos casos, esta ferida jamais irá cicatrizar-se por completo. O tempo, que consegue introduzir profundas mudanças em tudo o que é em si transitório, sem dúvida alguma irá suavizar a indescritível amargura da primeira época de solidão e desamparo. Mas a nostalgia do ser amado que se foi irá aninhar-se para sempre nas mais íntimas profundezas do pobre coração humano. José María Cabodevilla escreveu a excelente página que se segue, em sua celebrada obra Hombre y mujer:372 É um duro golpe. É um golpe desferido na medula da alma. Quando dois esposos se querem de verdade, a morte de um deles representa para o sobrevivente a pena mais atroz. Humanamente, supõe a perda do signi cado de tudo quanto trazia entre as mãos. Nada mais tem sentido. Trabalhar para quê? Para quem? Para que viver? A própria vida mostra-se partida ao meio, vazia, desprovida de toda razão de ser. É uma vida que não chega a ser vida. Elle a demi vivante e moi mort à demi, confessa Booz no inesquecível poema de Victor Hugo:

Já faz tempo que aquela com quem tenho vivido abandonou minha casa, Senhor, pela tua. Mas ainda estamos misturados um ao outro, ela está meio viva, e eu, meio morto. Mas nada mais tem sentido? Tudo continua tendo sentido, inclusive o amor, esse amor para o qual a morte signi cou apenas uma história a mais... Aqui estão, pois, as palavras que talvez sejam úteis a alguém: quando um esposo morre, nada está perdido. O companheiro que sobrevive pode continuar dando à sua vida um elevado sentido, o mesmo sentido que possuía a antiga convivência: fazer o outro feliz. Agora que morreu o ser a quem mais querias, podes dedicar-te a fundo ao seu serviço. Ele espera, desde o outro mundo, a tua ajuda preciosa para melhorar sua situação, para passar à bem-aventurança. E quando teus sufrágios — que não se reduzem a uma série de obras piedosas, mas abarcam tua conduta por inteiro, cujos méritos, pela excelência do grande Corpo místico, podem ser proveitosos para ele em sumo grau — já não lhe forem de nenhuma utilidade direta, porque já alcançou seu posto imutável e feliz à direita do Pai, mesmo então não seria indiferente a teus bons ofícios: poderá com eles, se por meio deles te encomendas à sua poderosa e muito concreta intercessão, concederlhe a alegria de ser-te útil. E também a alegria de comprovar que sua lembrança inclina o teu espírito a uma piedade maior, a um maior desapego, a uma aceitação mais generosa... Permanece a tristeza humana. Fica uma inquietação pelos lhos, sobretudo se os lhos ainda são pequenos, necessitados de um equilíbrio materno-paternal em sua educação. Permanecem as di culdades: agora será preciso reunir em uma única mão, em uma única palavra, a rmeza do pai e a exibilidade carinhosa da mãe; talvez ele tenha que prover necessidades materiais de um ou de outro tipo. Permanecem também as tentações: a tentação da melancolia insana, a tentação da inveja ruim, a tentação de procurar satisfações fúteis. A tentação de declarar inútil toda oração. A oração. Convém pedir assim como Ele nos ensinou: “O pão de cada dia”. Nada mais. O pão com as lágrimas da viúva, para cada jornada penosa e incerta. Talvez o pão do esquecimento, ou o pão de uma recordação mais doce, mais serena. A oração, que procede da fé e aumenta a fé. Desvela-se então no profundo do coração uma porção a mais do grande mistério nupcial de Cristo: o cônjuge que ca aqui embaixo representa a fase atual da Igreja, privada da visão de seu Esposo. E a alegria? Será possível outra alegria, diferente deste pálido contentamento, medíocre, de convalescença, que consiste em resignar-se cada dia com uma con- formação mais serena? Sim, para as almas corajosas e castas foi reservada outra espécie de alegria muito positiva e muito vinculada ao amor. “Porque a alegria”, ensina Santo Tomás, “é produzida pelo amor, seja pela presença do bem-amado, seja também porque o objeto que é amado goza de seu próprio bem e o conserva”.373 Quando a primeira alegria já não é possível, sempre permanece a segunda, superior, invulnerável, bendita.

. 302. Por mais rude que seja o golpe sofrido pelo coração do homem ao perder a doce companheira de sua vida, é preciso reconhecer que é ainda muito mais funda a ferida produzida no coração da mulher ao perder seu marido. Só porque este é um lugar-comum, não deixa de ser menos verdadeiro que a sensibilidade da mulher para a dor é muito mais na e aguda que a do homem. Já foram escritas muitas coisas boas para consolar as viúvas e orientá-las nos passos que devem dar em razão de sua tremenda desgraça humana, sobretudo se ainda são jovens e mães de algumas crianças pequenas. O imortal Pontí ce Pio dedicou um de seus mais belos discursos para expor a “espiritualidade da viuvez”.374 Na bela obra do Pe. Schlitter, Guía de la mujer cristiana, todo o livro 11 é dedicado a este mesmo assunto.375 Porém, em ordem à perfeição cristã — objeto de nossa obra, dirigida exatamente à santi cação dos leigos em todos os estados em que possam encontrar-se — é magní co e precioso o capítulo que São Francisco de Sales dedica às viúvas em sua Vida devota. A ele pertencem os seguintes parágrafos:376 Para ser verdadeiramente viúva, são requeridas as seguintes condições: 1. Que não seja somente viúva quanto ao corpo, mas também ao coração; isto é, que ela esteja resolvida, de maneira decidida, a conservar-se no estado de viuvez, pois as viúvas que o são unicamente enquanto aguardam a ocasião de voltarem a se casar, estão separadas dos homens pela privação dos prazeres carnais, mas permanecem unidas a eles pela vontade do coração.

Depois de aconselhar as viúvas a, com a aprovação de seu diretor espiritual, rati carem com um voto o seu propósito de não voltarem a se casar, a m de aumentar o mérito de sua viuvez diante de Deus, continua o suave Bispo de Genebra: 2. É necessário que a renúncia ao segundo matrimônio seja feita simplesmente para poder encaminhar com maior pureza todos os afetos da alma para Deus, unindo em tudo e por tudo o próprio coração ao de sua Divina Majestade; se o desejo de deixar os

lhos ricos ou qualquer outra intenção mundana move a viúva a permanecer em seu estado, pode ser que ela seja louvada, mas não segundo Deus, pois diante de Deus só é digno de louvor aquilo que se faz por Ele. 3. Além disso, é necessário que a viúva, para ser verdadeiramente viúva, viva separada e voluntariamente alheia a passatempos mundanos. A viúva que vive entre delícias — diz São Paulo (1Tm 5, 6) — é uma morta em vida. Querer ser viúva e se comprazer com galanteios, carícias e afagos; querer participar de bailes, danças e festins; querer usar perfumes, adornos e enfeites; tudo isso é indício de uma viúva que vive quanto ao corpo, mas está morta quanto à alma... “Chegou o tempo da poda; a voz da pomba já deixou de ser ouvida em nossa terra”, diz o Cântico dos Cânticos (2, 12). O afastamento da super cialidade mundana é necessário a quem quiser viver piedosamente, mas é necessário sobretudo à verdadeira viúva, que, como casta pombinha, acaba de chorar e lamentar a perda de seu marido... As lamparinas cujo azeite é aromático desprendem um odor muito delicado quando suas chamas se apagam; da mesma maneira, as viúvas cujo amor foi puro durante o matrimônio espalham agradável perfume de virtude quando sua chama se extingue, isto é, quando seus maridos rendem tributo à morte. Amar o marido enquanto ele vive é coisa muito comum nas mulheres; porém, amá-lo depois de morto é um amor reservado somente às verdadeiras viúvas. Esperar em Deus enquanto o marido lhes serve de sustento não é coisa incomum; mas esperar em Deus quando falta o apoio dele é coisa digna de louvor; assim é que se conhece a verdadeira virtude, mais no estado de viuvez do que no matrimônio. A viúva com lhos necessitados de orientação e direção, sobretudo no que diz respeito a suas almas e ao encaminhamento de suas vidas, não pode nem deve abandoná-los, pois o apóstolo São Paulo diz claramente que estão obrigadas a cuidar deles para torná-los semelhantes a seus pais e suas mães, acrescentando: “Aquele que não tem cuidado dos seus, e principalmente dos que fazem parte da família, é pior que um in el” (1Tm 5, 8). Mas se os lhos não estão na idade em que necessitam de orientação, então a viúva deve concentrar todas as suas forças e todos os seus pensamentos em aplicá-los ao crescimento no amor de Deus [...]. Que a oração seja o exercício permanente da viúva; seu amor deve estar consagrado a Deus por inteiro, e só a Ele devem ser dirigidas suas palavras de amor. Assim como o ferro, impossibilitado de sentir a atração do ímã quando há um diamante perto dele, é fortemente atraído pelo ímã tão logo o diamante seja retirado, o coração da viúva, que não podia dedicar-se por completo a Deus, nem seguir os atrativos de seu divino amor durante a vida do marido, depois da morte dele deve correr velozmente ao odor dos perfumes celestiais, à imitação da Esposa sagrada, dizendo: “Ó Senhor, agora que sou toda minha, aceita-me como toda tua: Atraí-me para ti; correremos ao odor de seus ungüentos (Ct 1, 3)”. A prática das virtudes própria de uma viúva santa inclui a perfeita modéstia, a renúncia a honrarias, a dignidades, a tertúlias, a títulos e a toda espécie de vaidades; o serviço dos pobres e enfermos, o consolo dos a itos e a formação das jovens para a vida devota, chegando a ser um exemplo perfeito de virtude para as casadas. Limpeza e

simplicidade sejam os enfeites de seus vestidos; humildade e caridade, os ornatos de suas ações; suavidade e mansidão, o adorno de sua língua; modéstia e pudor, a melhor pompa de seus olhos, e Jesus Cristo cruci cado seja o único amor de sua vida.

São Francisco de Sales termina sua bela exortação às viúvas com esta prudente advertência: A verdadeira viúva não deve criticar nem censurar aquelas que se casam em segundas, terceiras ou quartas núpcias, pois, em certos casos, Deus assim o dispõe para sua maior glória. E é necessário lembrar sempre esta doutrina dos antigos: nem a viuvez, nem a virgindade têm maior mérito no céu do que aquele que a humildade lhes atribui.

. 303. As últimas palavras da longa citação de São Francisco de Sales que acabamos de transcrever colocam o delicado problema das novas núpcias, que poderiam ser contraídas depois da dissolução do primeiro vínculo matrimonial pela morte de um dos cônjuges. Vamos examinar brevemente esta questão. Desde já, a Igreja não proíbe contrair novas núpcias ao se dissolver o vínculo do matrimônio anterior (ou anteriores). O Código Canônico diz expressamente o seguinte no cânon 1142: Embora seja mais honrosa uma viuvez casta, entretanto são válidas e lícitas as segundas e ulteriores núpcias, permanecendo em vigor o que se prescreve no cânon 1069, §2.377

O fato de considerar como “mais honrosa uma viuvez casta” do que passar a segundas ou ulteriores núpcias tem seu fundamento imediato na Sagrada Escritura. São Paulo diz expressamente em sua Primeira Carta aos Coríntios: Quisera que todos os homens fossem como eu; mas cada um tem de Deus a sua própria graça: este, uma; aquele, outra. Entretanto, aos casados e às viúvas eu digo que é melhor para eles permanecerem como eu. Mas, se não podem guardar a continência, casem-se, pois é melhor casar-se que abrasar-se (1Cor 7, 7–9).

E um pouco adiante, ele acrescenta no mesmo capítulo: A mulher está ligada durante todo o tempo da vida de seu marido; mas, desde que dorme seu marido, ca livre para se casar com quem quiser, mas só no Senhor. Porém,

será mais feliz se permanecer assim, conforme meu conselho, pois também acredito ter o espírito de Deus (1Cor 7, 39–40).

Porém, é na Primeira Carta a Timóteo que São Paulo expõe todo um programa de vida para as viúvas que queiram permanecer santamente em seu novo estado, e exorta a que se casem outra vez as jovens viúvas que sejam incapazes de manter uma vida casta e dedicada ao serviço da Igreja. Eis suas próprias palavras: Honra as viúvas que o são de verdade. Se a viúva tem lhos ou netos, ensine-os antes de tudo a reverenciar os seus e a retribuírem a seus pais, pois isto é muito agradável na presença de Deus. Aquela que é verdadeiramente viúva e desamparada, ponha em Deus a sua con ança e insista noite e dia em súplicas e orações. Aquela que leva uma vida livre, embora viva, está morta. Inculca-lhes isto para que sejam irrepreensíveis. Se alguém não olha pelos seus, sobretudo os de sua casa, negou a fé e é pior que um in el. Não seja escolhida nenhuma viúva com menos de sessenta anos, mulher de um único marido,378 recomendada por suas boas obras, na criação dos lhos, na hospitalidade com os peregrinos, lavando os pés aos santos, socorrendo os atribulados e na prática de toda boa obra. Mas não admita viúvas jovens, porque, ao sentirem os atrativos da paixão contrária a Cristo, quererão casar-se outra vez, incorrendo em reprovação por terem faltado à primeira fé. Além disso, tornam-se ociosas e andam de casa em casa; e não só ociosas, mas também mexeriqueiras e curiosas, falando o que não devem. Quero, pois, que as jovens se casem, criem lhos, governem sua casa e não dêem ao inimigo nenhum pretexto de maledicência, porque algumas já se extraviaram para seguir Satanás. Se alguma el tem viúvas em sua casa, dê-lhes assistência, e a Igreja não seja sobrecarregada, para que esta possa assistir àquelas que são viúvas de verdade (1Tm 5, 3–16).

Como se vê, o espírito cristão, claramente manifestado por São Paulo e pela recomendação da Igreja, inclina-se de preferência por uma viuvez casta, sem excluir, não obstante, a licitude e a validade de novas núpcias. Em alguns casos até mesmo será recomendável contrair novo matrimônio. Não somente diante da di culdade de se conservar perfeitamente casto — o que para alguns, especialmente os viúvos jovens, pode representar um verdadeiro problema —, mas por outras causas muito nobres e dignas de serem levadas em conta, principalmente aquelas ligadas a uma melhor educação humana e cristã dos lhos. É um assunto que deve ser examinado com atenção em cada caso, decidindo-se nalmente por aquilo que, diante da própria consciência, pareça mais digno e conveniente na presença do Senhor. Parecem-nos

muito sábias e oportunas as seguintes palavras do célebre orador de Notre Dame de Paris, Pe. Carré, dirigindo-se às viúvas:379 Um segundo matrimônio é permitido pela Igreja. Este simples fato deveria tranqüilizar aquelas que sonham com isso e, ao mesmo tempo, se interrogam com inquietação sobre sua legitimidade. O sacramento deixa de existir com a morte de um dos cônjuges. Isto não quer dizer que uma viúva não possa prolongar os efeitos de sua graça conjugal, esforçando-se por crescer na caridade. Com isso ela se antecipa, de algum modo, a seu futuro estado, e coloca em seu amor santi cado novas razões para amar e louvar a Deus mais intensamente, assim como O ama e louva aquele que a precedeu lá em cima. Deste modo se manifesta uma admirável delidade àquele que entrou na vida sem m. Mas não ca excluído outro caminho. A fundação de um novo lar pode estar muito de acordo com a vontade de Deus para muitas de vós. Pode suceder que os ns do matrimônio — procriação e educação dos lhos, desenvolvimento humano e cristão por meio da vida em comum, exercício e domínio das paixões — impulsionem com força, por um ou outro motivo, rumo a um novo lar. Nada o impede e, para algumas, é até mesmo desejável. Sem nenhuma dúvida, aqui os casos ou as condições são muito diferentes. Distinguem-se cuidadosamente entre aquelas que, esperando voltar a se casar, têm essa possibilidade; aquelas que, participando de semelhante desejo, defrontam-se com grandes di culdades para sua realização; aquelas que, nunca tendo sonhado com essa eventualidade, encontram-na um dia na encruzilhada da vida, buscando com ânsia pela luz. Sim, as condições são diferentes. Existem atitudes psicológicas, afetivas e mesmo espirituais que não poderiam acomodar-se a um caso bem determinado. Não esqueçamos o aspecto personalíssimo de todo destino, os inumeráveis matizes que cada existência concreta apresenta a quem a observa com respeito. Jamais existe novo matrimônio simplesmente: existe este projeto, este novo matrimônio, como também este matrimônio e este estado de viuvez. Contudo, os conselhos que o sacerdote propõe, acredita ele, são válidos para cada uma de vós. Estes conselhos podem ser resumidos do seguinte modo: um novo matrimônio deve ser meditado e decidido sob dupla luz: a da vontade de Deus, que se escuta no silêncio da oração e na con ança do amor; e a do ideal entrevisto durante o primeiro matrimônio e que o segundo não deve negar. E aqui, ainda acrescento: pouco importa a escolha que se fará ou não se fará nesta encruzilhada de caminhos. Se os acontecimentos vos orientam para um novo lar, o maior de todos os dons estará em uma vontade cotidiana de impregnar de caridade o amor humano, de viver esse lar na presença do Pai com uma fé sempre crescente. Se as circunstâncias são desfavoráveis, não vos reproveis por terdes querido abandonar uma solidão que outras, ao vosso redor, aceitaram sem espírito de retorno; não tínheis prontamente as mesmas certezas, e depois aprendestes muito com essa humilde disponibilidade às decisões da Providência.

Finalmente, a única questão — bem o compreendeis — consiste em não deixar vazia ou vacante, no plano espiritual, a duração passageira ou de nitiva da viuvez. A prova é um reencontro com Deus, um convite a prestar-lhe atenção. Não existe uma só entre vós — e penso sobretudo nas viúvas jovens, incertas diante do futuro ou inseguras sobre a legitimidade de uma nova união — que não esteja solicitada pelo Senhor a uma generosidade maior diante d’Ele. Isto é o essencial. Qualquer que seja o estado a que sejais chamadas para continuar a estrada da vida, as horas atuais são graves. Por muito importante que seja aos vossos olhos a orientação que deveis assumir, uma coisa é ainda mais importante: o Senhor vos tornou “sinal”; o amanhã deve ser, de toda maneira, diferente do ontem. O amanhã deve ser mais e mais de Deus.

CAPÍTULO II | Os pais 304. A ordem cronológica normal nos leva dos esposos aos pais. A mais elevada função dos esposos é aquela que tem seu desfecho na paternidade. A geração e educação dos lhos constitui, como se sabe, o m primário do matrimônio. No capítulo anterior, dedicado aos esposos, já nos ocupamos da geração dos lhos e dos problemas, às vezes gravíssimos, que ela traz consigo. Aqui, vamos examinar a relação dos pais com seus lhos. Em uma seção à parte, dedicaremos particular atenção ao importantíssimo problema de sua educação cristã. Dividiremos este capítulo em quatro artigos: 1. Excelência da paternidade. 2. O pai. 3. A mãe. 4. Deveres para com os lhos.

Artigo 1 — Excelência da paternidade 305. A paternidade, ou seja, o fato de trazer um novo ser ao mundo, é uma das maiores maravilhas da Criação. Deus reservou para si a obra colossal da criação do primeiro homem e da primeira mulher; não podia ser de outra maneira, já que só a onipotência divina podia dar o ser a quem ainda não existia nem podia dar existência a si mesmo: o nada não pode produzir absolutamente nada. Uma vez, porém, criado o primeiro casal humano, Deus o dotou dos elementos necessários para se reproduzirem inde nidamente, embora nunca sem uma especial intervenção Sua em cada caso. De fato, o homem é constituído de alma e corpo. O corpo se forma da misteriosa união de duas células: uma paterna e outra materna. Mas a função dessas duas células jamais poderia dar origem a um homem se Deus não criasse em cada caso uma alma e a infundisse naquela matéria ainda informe. A geração de um ser humano requer, pois, forçosamente, uma tríplice intervenção: o pai e a mãe proporcionando a matéria do corpo, e Deus criando e infundindo a alma. Sublime dignidade dos pais, associados nada menos que à ação onipotente de Deus ao criar uma alma do nada; e tremenda responsabilidade a daqueles esposos que, podendo e devendo ter lhos, impedem caprichosamente a Deus a criação de uma alma destinada à eterna felicidade! Escreve a este propósito um autor contemporâneo:380 São dois os atos que necessariamente devem concorrer na formação de um lho. Um deles é realizado pelos pais, e o outro por Deus, segundo as leis sapientíssimas que o Criador estabeleceu na natureza. Os pais dão ao novo lho duas células vivas, que eles formaram vitalmente de sua própria substância, e nas quais está incluída como em precioso relicário toda uma herança material, siológica, psicológica e, de algum modo, espiritual.

Deus, por sua parte, dá ao novo lho uma alma, que Ele criou pessoalmente em cada caso, sem con ar a ninguém esta missão, a qual encerra a riqueza da vida, da imagem e semelhança de Deus, e está destinada a viver da mesma vida sobrenatural do Senhor e a gozar de sua própria felicidade enquanto lho. Se Deus cria esta alma, da união das duas células que procedem dos pais forma-se uma, que se torna independente, já que vive e se desenvolve sob a direção, o impulso e a atividade vital da alma do novo lho. Se Deus, em um determinado caso, se negasse a criar esta alma, então resultaria totalmente frustrada a ação dos pais. O Senhor estabeleceu que, em circunstâncias normais, sempre e quando os pais, nas condições devidas de sanidade e madureza vital, realizarem a união das duas células, Ele criaria a alma do novo lho, mesmo no caso de que fosse realizada com grave ofensa daquilo que é santo, em razão do pecado de quem não tem direito a tal ato naquele momento. Assim, via de regra, cada vez que se torna frustrada a geração de um lho, é porque não ocorreram os requisitos e as condições siológicas necessárias. É conseqüência imediata do que acabamos de expor, em primeiro lugar, a grande dignidade dos pais, que concorrem juntamente com Deus para uma ação tão transcendente como é a geração de um novo lho. Outra conseqüência é a santidade com a qual os pais terão de santi car seus corpos e almas, que tão intimamente irão penetrar no interior do santuário divino do poder de dar a vida. Uma terceira conseqüência [...] é que Deus e os pais vivem em seus lhos, na realidade corporal e espiritual de seu ser e de sua vida. Deus vive no lho com a alma que saiu de suas mãos criadoras, iluminada com a luz da razão e fortalecida com a vida e a vontade livre. Os pais vivem em seus lhos com o que lhes deram de seu próprio ser, e que se manifesta na sionomia, nas formas características do corpo, em certa maneira peculiar de andar, de se mover, de reagir, etc. Também se revela na ordem psicológica, com as singularidades de temperamento e caráter, e até com a herança de qualidades de ordem intelectual, artística e moral. É verdade que o novo lho se forma sob a ação de sua própria alma, que dá vida a seu corpo; mas esta ação se acha condicionada pelas disposições que os pais depositaram nos cromossomos da primeira célula. Disposições que os entendidos chamam de genes. Disposições que, segundo a experiência de cada dia, apesar de serem comprovadas, ainda possuem muito de misterioso e desconhecido. Esta é a forma mais e caz, real e ontológica com que os pais vivem em seus lhos, e com que o corpo dos pais passou ao corpo dos lhos para viver neles.

Esta é também a forma com que a alma dos pais se engenhou para penetrar na vida de seus lhos. Certamente, a alma dos pais não cria a alma de seus lhos, mas somente Deus, de maneira pessoal e em cada caso, como já explicamos. Não fosse assim, estaria nas mãos dos pais a realidade dos lhos, e a experiência nos atesta que os pais devem receber em absoluto aquilo que Deus lhes dá. Porém, a alma dos pais, dando vida a seus corpos e a todos os seus órgãos, certamente deixou neles algumas marcas ou disposições, que fazem com que o corpo e os órgãos de seus lhos tenham características especiais. Assim, pois, imprimindo estas disposições características em seu próprio viver, ao transmitirem o fruto de sua vida, transmitem também tais disposições, as quais, vitalizadas pela alma do novo lho, reagirão de maneira parecida com a de seus pais. Isto é análogo ao que acontece com um órgão musical. É o ar que faz vibrarem seus tubos, mas são as características dadas a eles com o material de que foram construídos — madeira, prata, metal, sua longitude e seu diâmetro — que faz com que tenham um ou outro som.

Insistindo nestas mesmas idéias, escreve com grande acerto o Pe. Figar:381 Quando um gênio conseguiu aprisionar uma das forças que brotam da natureza, ou descobrir um raio de luz que brilhava desde o princípio, invisível, no seio da matéria, ele é exaltado e engrandecido, e a ele são dados os mais altos títulos, e tributadas as mais delicadas honrarias. E dizemos: “É um sábio, um gênio, um descobridor, um luminar! Tiveram a sorte de deter-se para considerar o fenômeno, surpreenderam sua atividade e passaram a ser imortais”. Se algum desses gênios tivesse podido produzir uma gota de água, uma or, um fruto maduro, ter-lhe-iam atribuído dons divinos ou pactos diabólicos, não julgando possível a produção de coisas semelhantes apenas pelas forças naturais. E acaso se pode comparar uma gota de água, uma or, um fruto, a presença de um raio de luz, a indicação de uma onda elétrica, o curso de uma corrente magnética, com a criação de uma vida? A vida não é maior que tudo o que existe na Criação, em toda a Criação? E como essa vida se sucede a cada dia, e, para criá-la, não se necessite mais do que aplicar as leis da natureza a seus ns, ela mal é tomada em consideração. Bem disse Santo Agostinho que o insólito, mesmo que nada valha, ou que valha muito pouco, nos surpreende. E o cotidiano, ainda que seja de elevado valor, não chega a chamar nossa atenção. A vida é a maravilha humana. E o Pai que a gera possui a força mais prodigiosa de todas as forças e, ao mesmo tempo, a mais elevada e eminente de todas as perfeições.

Finalmente, reunimos a seguir algumas idéias do imortal Pontí ce Pio sobre a grandeza do matrimônio, principalmente por sua augusta missão da paternidade:382

1. Grande dignidade a do casal, por mais pobre que seja. A família é imagem da Santíssima Trindade e a extrema maravilha da Criação de Deus. Os pais são colaboradores da obra criadora, redentora e santi cadora da Trindade. O matrimônio tem algo de divino em seus princípios e de eterno em suas conseqüências. 2. Grandeza e responsabilidade do ofício dos pais. A Sagrada Escritura lhes dedica grandes elogios tanto no Antigo como no Novo Testamento. Os cônjuges são sacerdócio santo, possuem uma participação sacerdotal (cf. 1Pd 2, 5) devido àquela participação sacerdotal a que o anel nupcial os elevou diante do altar. 3. O matrimônio tem como m a geração e a educação dos lhos. Ele dá novos cidadãos à pátria, embora a sociedade humana não esteja constituída diretamente pelos cidadãos, mas pelas famílias. E, acima de tudo, dá novos lhos à Igreja, preparando a ação dos sacerdotes que, mediante o Batismo, gera almas para a vida divina. Desta forma, os pais asseguram a perenidade da Igreja. E como na família cristã os lhos de Deus se regeneram, a família está, nalmente, destinada a dar novos cidadãos ao céu. 4. Como o m essencial e primário do matrimônio é a geração e educação dos lhos, o matrimônio não deve ser contraído por egoísmo, mas para perpetuar a vida. Deus o quer para aumentar a multidão de seus lhos escolhidos. Desde toda a eternidade, o Criador ama os homens que Ele traz à vida. Os lhos são seres destinados ao céu, para ali glori carem a Deus e acompanharem seus pais na felicidade. 5. Os pais são os cooperadores da ação criadora do Pai, que preparam um corpo para acolher as almas que Deus cria e que fecundarão o jardim da Igreja.

6. O cumprimento do dever da prole tem suas di culdades, às vezes gravíssimas, porque a vida não se transmite sem sacrifício dos pais. Estes são colaboradores livres, que poderão se opor a que as almas cheguem à vida, porque Deus transfere sua paternidade aos esposos, para propagar a vida por meio deles. É verdade que, com o “sim” matrimonial, a esse convite vai anexa uma grande responsabilidade: pois os lhos são um dever e uma honra. 7. Os lhos são uma honra. A fecundidade é uma bênção de Deus para o lar, e os lhos devem ser esperados e acolhidos como dons de Deus. Não só é preciso recusar a dor que signi ca um novo berço, mas sacri car a ele o egoísmo, e aspirar por uma família numerosa. Muitos berços glori cam a família diante da Igreja e da pátria. A prole dá à família um re exo da eternidade. É uma honra assegurar na descendência a continuidade da linhagem. Uma vez examinada, embora tão brevemente, a excelência soberana da paternidade em geral, vamos estudar agora, com mais detalhes, o papel que devem desempenhar na família o pai e a mãe como tais, e seus deveres comuns em relação aos lhos.

Artigo 2 — O pai 306. É preciso fazer um chamado urgente às consciências de tantos pais de família que, hoje mais do que nunca, estão expostos a esquecer sua santa missão, certamente a mais nobre que os homens podem exercer no plano natural. Procederemos de forma esquemática.383 1. O pai, membro da família 1. A família é a menor comunidade que brota da natureza humana. Nasce orientada para um m: o

bem comum. Ao mesmo tempo, porém, nasce como produto espontâneo do amor. 2. Os componentes fundamentais da família são dois: a) Os pais: amando-se com amor de profunda amizade, desejamse mutuamente, identi cando-se de tal maneira que aquilo que é de um, é também do outro. Por isso Deus disse: “O homem e a mulher se tornarão uma só carne”. b) Os lhos compõem o segundo elemento. E também são fruto do amor, já que são a expressão encarnada do mútuo amor de seus pais. 3. Como comunidade, a família necessita de uma autoridade. a) Ainda que os componentes de qualquer sociedade busquem coletivamente o bem comum, eles diferem entre si individualmente. Daí a necessidade de uma autoridade que sintetize em uma vontade comum todas as vontades particulares. b) E se é indispensável a autoridade em qualquer sociedade, ainda que, em abstrato, os membros sejam iguais entre si, com maior razão ela é necessária na família, onde os componentes são desiguais pela natureza da mesma. 2. O pai, chefe da família .

e com a mais inquestionável soberania:

a) Por sua origem: Deus, “de quem procede toda paternidade nos céus e na terra” (Ef 3, 15), o constituiu chefe supremo da família. b) Por seu objeto e nalidade: dar a vida e cuidar dela. É a origem fontal da vida humana. O pai, a semente; a mãe, o jardim que a recebe.

c) Por sua autoridade: não tem outro limite senão o respeito concedido à criança pelo soberano Senhor do lho e do pai. .

:

a) Representa a Deus na família, preside-a em seu nome. b) Diariamente deve oferecer o sacrifício de sua vida e de seu esforço pessoal para conduzir os seus até Deus. .

:

a) Por direito divino: “Como Cristo é a cabeça da Igreja, assim o marido é a cabeça da mulher” (Ef 5, 23). b) Por direito natural: evidentemente, na família o poder pertence ao que tem força su ciente para defendê-la e bastante razão para governá-la. 1º — Força: a mulher, ainda que seja heróica, é tímida por natureza, necessita sempre de um defensor. 2º — Razão: a mente do homem tem mais amplitude, mais constância e mais imparcialidade que a da mulher, qualidades exigidas para o exercício da soberania. — Amplitude. O homem possui mais idéias abstratas. Conhece mais fatos particulares que a mulher, que, por sua própria constituição, é menos intelectual e mais sentimental. — Constância. O homem, sendo intelectual, é menos impressionável, e por isso tem mais capacidade de arrazoar. A mulher, ao contrário, varia rapidamente em seu juízo devido à sua extrema sensibilidade. — Imparcialidade. Enquanto o homem costuma julgar livre de impressões, a mulher decide antes movida pelo sentimento que

pela razão. .

:

a) Por direito divino: “Ouve, meu lho, a instrução de teu pai, e não desprezes os ensinamentos de tua mãe” (Pr 1, 8). “Escuta teu pai, aquele que te gerou” (Pr 23, 22). b) Por direito natural: entre os pais e o lho existe um laço físico. Nenhuma outra autoridade se fundamenta em princípios mais naturais. .

:

a) Como convém à motivação genética da família. Sua causa foi o amor, logo, seu desenvolvimento se desdobrará pelo amor. b) Unida ao varão em uma só carne, a mulher irá compartilhar solidariamente esta autoridade, mas subordinando-se a ele para qualquer decisão familiar. c) Não se deixe dominar pelas razões de seus tampouco as despreze.

lhos, mas

3. O pai, sustento e defensor da família .

:

a) O primeiro dever do pai é assegurar para a esposa e para os lhos o alimento, as roupas e a moradia. b) O homem tem a primazia, o vigor, os dons necessários para o trabalho, e por isso Deus lhe disse: “Ganharás o pão com o suor de teu rosto” (Gn 3, 19). c) Sendo mais forte e hábil que sua mulher, deve ajudá-la nas múltiplas tarefas da casa.

. : Com grande acerto, o homem é simbolizado pela coluna, pela bigorna e pelo coração. 1. Coluna. Sustenta o edifício familiar com as virtudes e o ambiente propício. Evitará a excessiva familiaridade, frivolidade e irreligiosidade. a) Familiaridade. Certamente procurará que exista entre eles uma íntima con ança, mas não tão excessiva que prejudique a autoridade hierárquica. b) Frivolidade. Cuidará para que o ambiente familiar goze de uma alegria sadia e de unidade. Esta se conseguirá unicamente por meio de uma convivência familiar, suave e amável, mas isenta de todo tipo de frivolidades. c) Irreligiosidade. Restaurará o lar — talvez transformado em refúgio de caprichos, fonte de enfraquecimento da vontade — em uma escola que ensine as exigências divinas e humanas. 2. Bigorna. É ele quem suportará e afastará o contínuo martelar dos inimigos externos, que tentam demolir a família com suas ideologias errôneas, corrupção de costumes, modas, cinema, imprensa, falsos amigos... 3. Coração. Com seu amor expressivo, unido à sua autoridade, abrigará os seus, dando-lhes con ança e segurança no interior do lar. 4. O pai, guia da família .

:

a) A ele cabe o comando da nave, a direção do lar. Não ceda nunca este governo. “A ninguém cedas este direito” (Eclo 33, 20– 24).

b) Seu governo será de pai: com serenidade, porque é a cabeça; com rmeza, porque é a primeira força; com amor, porque é a vida da família, e os laços do amor não podem ser tocados sem amor. .

:

a) Moralmente: 1º — Todos nós nascemos com más inclinações: é uma pena que pesa sobre os lhos de Adão. E para orientar os lhos é preciso ensiná-los a agir por si mesmos, apoiando-se sempre nas sábias e prudentes razões de seus progenitores. 2º — O castigo deve ser empregado como o último auxílio, quando razões e correções não dão resultado. Mas sempre com moderação. 3º — O prêmio expressará acima de tudo a aprovação, embora também possa servir como estímulo para conseguir o bem. b) Psicologicamente: 1º — Produzindo nos lhos uma vontade forte, ordenada para a formação da própria personalidade. 2º — E uma vontade boa, que os impulsione a amar o bem dos semelhantes. 3º — Uma inteligência sadia, acostumada a pensar antes de agir. 4º — Ajudando-os a compreender o mistério da vida sexual e da vida afetiva. c) Religiosamente: 1º — A educação religiosa também deve ser realizada pelo pai, sobretudo com o exemplo, já que ela é mais duradoura e profunda

que a conseguida pela mãe. 2º — Revestirá o lar de uma religiosidade agradável que, sem deixar de ser séria e doutrinal, seja tolerável e sugestiva. 3º — É necessário que ele estimule também a recepção dos sacramentos, a prática diária do Rosário familiar e o estudo freqüente dos ensinamentos da Igreja nas noitadas familiares, vividas com amenidade e interesse. 307. Ampliando algumas das idéias que acabamos de expor, e acrescentando algumas outras, oferecemos ao leitor umas páginas admiráveis do Cardeal Gomá, em sua celebrada obra La familia.384 Entre os nomes que assumem os maiores poderes e responsabilidades, não há nenhum igual ao nome do pai. É grande o rei que tem em suas mãos a regência de milhões de súditos; grande é o conquistador que, com a força de seu gênio e o poder de sua espada, alargou os limites de sua pátria; grande é o sábio, que pôde arrancar os segredos da es nge da natureza. Maior que todos eles, porém, é o pai, pelo poder físico que Deus lhe concedeu de criar uma vida nova, pelos tesouros de afeição especí ca que escondeu em seu peito. Pela transcendência incalculável de sua ação no mundo moral. E para que comeceis a admitir comigo a grandeza da paternidade, olhai como o mundo todo, os céus e a terra, estão cheios dela. Subi aos céus e descei aos abismos, e em toda parte encontrareis o pai. Pai universal e eterno é Deus, de quem vem toda paternidade, como diz o Apóstolo, e que desde a eternidade produz o ato gerador de seu Filho, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, e a quem saudamos na oração cotidiana: “Pai nosso”. Pai é Cristo Jesus, saudado por Isaías como “Pai da raça futura”, que gerou a todos nós para a vida espiritual de lhos de Deus. Pai universal foi Adão, a quem Deus fez pai no mesmo dia de sua criação, ao conferir-lhe o poder e o mandato da paternidade, e de quem saiu todo homem (Hb 2, 11). Pais sois todos vós que recebestes de Deus a participação em seu grande e tremendo poder da paternidade. E como se não bastasse para esta grandeza a paternidade no sentido estrito da palavra, olhai como o nome de pai chega a toda parte onde haja um poder criador, de ordem física ou moral. Ao Vigário de Cristo nós chamamos Santo Padre; chama-se de padre o sacerdote e o religioso; de patriarcas aqueles homens do Velho Testamento que viram os lhos de seus lhos até a terceira e quarta geração; os beneméritos da nação são os pais da pátria; os que ampararam os necessitados são os pais dos pobres. Até ao diabo, criador do mal e da mentira, o próprio Jesus chama de pai: “Vós”, diz ele aos fariseus, “tendes por pai o diabo” (Jo 8, 44), como se o Senhor quisesse com isso signi car o aspecto grande e terrível do nome e do papel do pai. Acima de tudo, porém, é o próprio Jesus que nos revela toda a

grandeza de ternura, providência, generosidade e inteligência amorosa que se encerra na palavra pai. Isto porque jamais existiu no mundo um lho que tenha falado de seu pai com maior efusão, gratidão, con ança e amor do que Jesus ao falar do seu, o Pai Eterno. Seria interessantíssimo um estudo do texto evangélico a este respeito. “Eu faço as coisas que agradam ao Pai”, diz o Senhor. “A doutrina que vos ensino não é minha, mas do Pai que me enviou”. “Quando orardes, dizei: Pai nosso, que estais nos céus”. “Olhai as avezinhas do céu: não semeiam, nem colhem, nem am; e o Pai celestial as alimenta e veste”. Quando já tinha diante dos olhos a silhueta da Cruz, na qual devia morrer no dia seguinte, Jesus repete e invoca com freqüência o nome de seu Divino Pai; jamais se disse na terra o nome de pai com maior sublimidade e ternura quanto Jesus o disse no sermão da Última Ceia: “Pai Santo”, dizia ele, “santi ca-os, consagra-os”. “Pai santo, conserva-os em meu nome, já que os deste a mim”. “Pai, que todos sejam um, como tu e eu somos um”. Naquela mesma noite, no Jardim do Getsêmani, Jesus dizia ao Pai, no horror de sua desolação: “Pai, se é possível, afasta de mim este cálice”. E cravado na Cruz, ainda pronunciava com indizível amor o nome de seu Pai: “Pai, perdoa-os, pois não sabem o que fazem”. “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito...”. Estais vendo: onde quer que se concentrem, nas coisas divinas ou humanas, os poderes mais fortes e ampliados, as profundas in uências, as afeições doces e intensas, ali encontrareis o nome de pai que as representa e sustenta. O pai é como a origem fontal da vida humana; a mãe é antes o sagrado receptáculo que a estimula. O pai traz a semente viva; a mãe é a terra que a fecunda e transforma em tronco vivo. A geração, obra solidária do pai e da mãe, é atribuída ao pai como princípio ativo: “Adão gerou...”. “Estas são as gerações de Noé...”, diz-nos a Bíblia. Transmissor da paternidade de Deus, ele o é também da autoridade. Por si só, a paternidade traz consigo preferência e hierarquia. Quer consideremos a propagação da espécie, quer a vejamos acoplada aos lhos, formando a sociedade paternal, quer levemos em conta o regime doméstico, o pai é o aristos, o primeiro poder na família e, por isso mesmo, a primeira autoridade, porque de seu lado está a atividade geradora, a razão de ser do regime e do governo, e a força e o engenho para o sustento dos associados. Quando Deus criou Adão, não quis fazer dele apenas o pai de todos os homens segundo sua vida física, mas o cumulou, com esta paternidade, de toda autoridade, de magistério, de sacerdócio e de império. Sem o pecado, talvez Adão tivesse sido rei, pontí ce e mestre de toda a humanidade. Por isso, embora tenha sido a mãe Eva quem primeiro pecou, não contraiu a responsabilidade capital de Adão, porque era este, como pai, a cabeça física, moral e jurídica de toda a humanidade. Pela grandeza desta responsabilidade pode-se medir a magnitude dos poderes da paternidade. Mesmo depois da queda, os pais, que derivaram de Adão a paternidade, conservam gloriosíssimos restos daquele primitivo poder... O nome de pai traz consigo outros títulos de dignidade. Como Deus o associou ao poder de produzir a vida humana no mundo, fê-lo assim participante de sua honra e de seus supremos direitos sobre os lhos.

Primeiramente, de sua honra. Fílon, mestre judeu, acreditava que as primeiras palavras do quarto mandamento da lei de Deus: “Honrarás teu pai...” eram as últimas palavras da primeira tábua, onde se registram os preceitos relativos à honra devida a Deus. Assim Deus teria equiparado, senão igualado, a honra dos pais à sua própria honra. Seja qual for o valor desta opinião, em muitas páginas da Bíblia encontramos uma espécie de paralelismo entre a honra que Deus quer para si e aquela que ordena tributar aos pais. Leia-se estes textos: “Ouvi, lhos, os preceitos do vosso pai, e colocai-os em prática para que sejais salvos” (Eclo 3, 1). “Quem honra a seu pai, ver-se-á cumulado de alegria em seus ouvidos às suas súplicas” (Eclo 3, 6).

lhos, e Deus dará

“Quem honra a seu pai viverá uma vida longa” (Eclo 3, 7). “O homem que teme o Senhor respeita seu pai e sua mãe, e é-lhes submisso como a senhores de sua vida” (Eclo 3, 8). “Filhos, obedecei a vossos pais no Senhor, porque é uma coisa justa” (Ef 6, 1). Estas e outras passagens da Escritura revelam que Deus fez de sua honra solidária com a dos pais. É a suprema paternidade que, ao comunicar uma participação de seus poderes ao pai, decretou que lhe sejam tributadas as devidas honras, e Deus as recebe como próprias através da paternidade humana. Em segundo lugar, o pai é participante dos supremos direitos de Deus sobre os lhos. Deus associou ao pai o seu direito de bênção sobre eles. Somente Deus pode abençoar, diz com razão Dupanloup, ou aqueles que exercem um ministério sagrado em nome de Deus. Os reis não abençoam, nem os magistrados, mas somente os pais e os sacerdotes. A bênção é algo profundamente amoroso e fecundo, como o próprio ato inicial da paternidade, e é uma de suas funções mais elevadas. Por isso, na verdadeira religião, em Israel como na Igreja, especialmente nos tempos de fé, os lhos, que receberam a vida do pai, buscam com ansiedade a sua bênção, à qual Deus vinculou os bens desta mesma vida. Lembre-se da interessantíssima história dos gêmeos Esaú e Jacó: o providencial estratagema da mãe deste último para arrancar do ancião Isaac a bênção suprema, à qual estavam vinculadas todas as glórias e esperanças de uma raça, e os gemidos de dor do primogênito, Esaú, ao se ver suplantado pelo irmão menor. Na maternal astúcia de Rebeca, querendo que fossem pronunciadas sobre seu lho predileto as sagradas palavras da bênção paterna, e no afã com que Esaú procura na montanha a peça de caça a ser oferecida ao pai cego, em troca da mesma bênção, mostra-se a convicção de que Deus, juntamente com a paternidade, depositou no seio do pai a força para atrair sobre os lhos as bênçãos do céu. Entre nós, cristãos, a bênção paterna não tem o mesmo sentido profundo que a bênção patriarcal tinha para o povo de Deus. Esta era uma ação sacerdotal pela qual Deus, el às suas promessas de bênção feitas àquela raça, transmitia dos pais aos lhos todo o

caudal de suas misericórdias para com ela. Agora, o sacerdote nos abençoa em nome de Jesus, o bendito do Pai, sobre quem veio a plenitude da bênção com a plenitude da divindade. Mas Deus não diminuiu a dignidade do pai na nova lei. “Quem ousaria dizer que a bênção paterna, na lei da graça, tenha perdido o seu poder?”, diz Dupanloup. “Não acredito nisso. Creio que a vida, que a conservação das raças e a prosperidade das famílias ainda podem encontrar nela a mesma segurança que a bênção dos velhos patriarcas; além do que, segundo o espírito e o caráter da graça evangélica, creio que desta bênção dos pais cristãos sai, mais abundante que em outras épocas, uma graça sobrenatural para produzir, aumentar e perpetuar nas famílias cristãs não somente a vida, mas, o que é ainda mais precioso, o bem viver e o tesouro hereditário das virtudes domésticas e das esperanças celestiais”. Quem dera que se reavivasse o antigo costume de os pais abençoarem os lhos, sobretudo nos momentos solenes de suas vidas, e no transe soleníssimo, para o pai e para os lhos, de deixar ele o mundo para lhes legar o tesouro das tradições domésticas! Mas pobres dos pais de hoje! Como iriam abençoar seus lhos se a muitos desses pais falta o sentido de Deus? De onde iriam tirar o amor e o poder fecundo, e a graça de Deus que torna bons os seus lhos, se trazem pensamento e coração vazios de Deus, ou se forem, talvez, inimigos de Deus? Que os pais indiferentes ou extraviados busquem outra vez em Deus o sentido de sua dignidade, e com ele extraiam para seus lhos, do seio do Pai das misericórdias, as bênçãos que os tornem prósperos no tempo e na eternidade; porque está escrito que “a bênção do pai sustenta as casas dos lhos” (Eclo 3, 11). Isto será como o complemento e a graça de sua paternidade. A própria ação de abençoar irá iluminar a consciência do pai com a clara idéia de seu poder.

Artigo 3 — A mãe 308. Em sua belíssima obra La madre, o Cardeal Mindszenty narra uma história emocionante. Um pai reúne seus lhos, de diferentes idades, e lhes propõe uma espécie de jogo ou de disputa entre eles: “Cada um vai escolher qual é a palavra mais bela que se pronuncia no mundo”. As crianças pequenas e os rapazes maiores cam em silêncio e começam a pensar qual seria essa palavra mais bonita. Cada um a escreve em um papel. O pai realiza o escrutínio e declara vencedor aquele que escrevera

esta frase: “A palavra mais bela do mundo é a palavra mãe!”. Esta havia sido escrita pelo menino de sete anos.385 A mãe! Aí está, de fato, a palavra mais suave e penetrante que podem pronunciar os lábios humanos. É também uma das mais sagradas. A maternidade possui algo da grandeza e da santidade do próprio Deus. Alguém já disse que até a mulher decaída “é santa enquanto mãe”. “Quereis saber o que é uma mãe? Contemplai esses dois meninos que brincam no meio da rua. Subitamente, em suas correrias infantis, tropeçam um no outro e os dois caem de bruços no chão. Um deles encontra imediatamente uns braços carinhosos que o levantam, mãos suaves que lhe acariciam o rosto, lábios ardentes que, à força de beijos, secam-lhe as lágrimas: ele tem mãe! O outro, pobrezinho, espera em vão. Sozinho, ele se ergue pouco a pouco, sacode com tristeza a poeira de suas roupas e vai con ar à parede mais próxima seus soluços afogados: é um pobre órfão, não tem mãe!” (José Selgas). “Sempre que sintais um bom impulso no coração, o desejo de enxugar umas lágrimas, de socorrer uma desgraça, de partilhar vosso pão com o faminto, de vos lançar à morte para salvar a vida do próximo... voltai-vos e achareis ao vosso lado, como o anjo da guarda que vos inspira o pensamento, a sombra querida de vossa mãe” (Emilio Castelar).

309. Vamos agora recrear os ouvidos do leitor com uma das mais belas páginas que jamais foram escritas sobre a grandeza e a dignidade da mãe. O leitor culto terá adivinhado que nos referimos a Severo Catalina, em sua magní ca obra La mujer. Aqui está.386 1. Recordais porventura os anos de vossa infância? Recordais aquelas horas tranqüilas em que, com a alma livre de pesares e o coração de inquietudes, deixáveis repousar a cabeça no regaço de uma mulher? Recordais a ternura com que aquela mulher vos acariciava, estreitava vossas mãos infantis e imprimia sem se ruborizar os seus lábios em vossa fronte cheia de candura? Recordais quantas vezes ela enxugava vosso pranto e vos adormecia docemente ao eco suave de uma balada de amor?

Oh! Sim, vos lembrais! Nós que ainda temos a ventura de ver essa mulher sobre a terra, invocamos seu nome com carinho todas as horas. Seu nome está escrito no coração: é o nome mais terno de todos quantos o dicionário encerra. O simples nome de representa para nós aquela mulher em cujo seio bebemos o dulcíssimo néctar da vida, em cujo regaço deixávamos repousar nossa cabeça, aquela mulher que nos acariciava, que apertava nossas mãos entre as suas, que beijava nossa fronte, que enxugava nosso pranto, e que, por m, nos balançava em seus braços ao eco suave de uma balada de amor. Mil vezes felizes os que ainda podemos contemplá-la com os olhos da realidade! E vós, que tendes perdido vossa mãe, também podeis vê-la se tendes coração e sentimento. Podeis vê-la no sonho dourado de vossa felicidade. Se o astro da noite envia sobre a terra o seu pálido resplendor, gurai-vos que o brilho pálido deste astro é o olhar tranqüilo e carinhoso que vossa mãe vos dirige do céu. Se vedes na região do rmamento uma nuvenzinha branca que utua como tênue gaze sustentada por dois anjos em suas extremidades, é a alma de vossa mãe que, ao tarvos, sorri com carinho lá do céu. Se ao cair de uma tarde melancólica ouvis no vale um vago eco que se perde ao longe, e que não é o cantar das aves nem o murmúrio da fonte, ajoelhai-vos: é o farfalhar da oração que vossa mãe eleva por vós. Se em noite de estio cheia de paz uma brisa consoladora acaricia vossa fronte, e não é a brisa dos campos nem o hálito embalsamado das ores, estremecei de prazer: é o beijo de pureza e ternura que lá do céu vos envia vossa mãe. Mesmo que a morte a arrebate, a mãe nunca deixa de existir para vós que tendes coração e sentimento. 2. Povos que rebaixastes a dignidade da mulher, que a considerastes como um ser quase desprezível, vinde! A razão vos chama ao juízo. O ser que vilipendiais deu vida a vossos heróis e a vossos sábios. Quando vossos heróis e vossos sábios, quando os Alexandres e os Homeros, os Césares e os Virgílios cruzavam os inseguros dias da infância, uma mulher os alimentava com o suco de seu peito; uma mulher os adormecia com a canção de seu amor. Quando seus lábios começaram a articular sons, uma mulher os ensinou a pronunciar os nomes veneráveis para vós e neles imbuiu as vossas crenças. E lhes disse que existia uma pátria que deviam adorar; uma pátria que eles logo ilumina- ram com o brilho de suas conquistas ou com o mágico esplendor de seu talento.

Detratores sistemáticos daquilo que chamais de sexo frágil: recordai que tivestes mãe, ou que ainda a tendes! Vós que negais absolutamente a virtude da mulher, recordai-vos de vossa mãe! Vós que não sentis o coração bater de entusiasmo diante do nome e da memória de vossas mães, apartai-vos, afastai-vos! Mas não vades aos campos, pois ali as ternas avezinhas beijam suas mães no ninho; ali o manso cordeirinho brinca de alegria junto à ovelha. Não vades aos bosques, pois ali podeis ver a pantera chamar seus acariciando seus lhinhos.

lhotes e a leoa

E não é bom que a leoa e a pantera dos bosques, e a ovelha e a ave dos prados, ensinem ao homem as leis imutáveis da natureza, sendo ele a primeira gura no grande panorama da Criação. Fugi para onde o sol não ilumine, para onde encontreis um espaço virgem, jamais atravessado pela respiração de um ser vivente. Pois aonde quer que cheguem os raios do sol, aonde quer que exista um ser organizado e sensível, ali reinará majestosamente a idéia da maternidade. 3. Conta-se que encomendaram a um pintor um quadro onde se manifestassem ao mesmo tempo o amor e a pureza. E o artista transferiu para a tela a imagem de uma mulher que trazia nos braços o lho de suas entranhas. Aquele pintor era um sábio. Os braços de nossa mãe são o trono do amor e da pureza, onde nos alvores da vida do homem brilha a sua majestade de rei da Criação. Nesses primeiros anos de vida, a mãe será para nós uma segunda Providência. Nos anos da meninice, a mãe é nossa primeira mestra; ela nos ensina diariamente a erguer as mãos ao céu e bendizer o Deus das graças. Por ela aprendemos a coordenar as palavras de nossas primeiras orações, desses primeiros hinos que a alma eleva à Rainha dos Anjos. Nos anos da adolescência, ela nos aponta as trilhas da virtude, avisa-nos dos precipícios e, talvez, enxugue a primeira lágrima de fogo que faz assomar às nossas pálpebras um amor que não é o seu. Oh! O amor materno não arranca lágrimas de fogo. Ele produz o pranto paci cador que refresca a alma, como o orvalho na terra, como o zé ro nas ores. Nos anos da juventude, consola nossa amargura, perdoa nossos extravios e é a amiga que nunca nos engana, a amante inalterável e el que nos ama sem cálculos e sem interesse, sem falsidade e sem ciúmes.

Ela é a única mulher que, sem se envergonhar e sem nos envergonhar, pode beijar nossa fronte e estreitar-nos em seu seio. Ela é aquela que compartilha conosco os infortúnios e os males; aquela que vela nosso sono; aquela que conta como segundos as horas de nosso padecer, que cerra nossas pálpebras no instante supremo. En m, é o único ser, depois de nosso pai, que não admite consolos por nossa perda, porque se inunda no mar sem margens do intenso egoísmo da dor. Se é indubitável que os pais ocupam na terra o lugar da divindade, concluamos por declarar o ateísmo como absurdo e inconcebível. Não pode existir um ser racional que negue sua mãe; se este existir, deve ser considerado como uma exceção. As exceções, tratando-se da linhagem humana, são chamadas por outro nome: monstros. Seu número é pequeno, por sorte. Se consultamos a história da humanidade, acharemos milhares de páginas ao lado de dois Neros. Para cada monstro, ou seja, para cada homem em cujo peito não se abrigue o amor maternal, há gerações sem conta que prestam homenagem à santa lei esculpida pela mão de Deus no coração dos mortais, e pela mão de Deus no imortal código do Sinai. Nesta dupla lei, natural e positiva, está escrito o amor materno. O amor materno é o mais puro e sublime de todos os nossos amores. Um autor profundo e sentencioso nos legou esta máxima que encerra uma grande verdade: a mulher que, com suas virtudes e suas graças, cativa nossa cabeça e nosso coração, é aquela que mais amamos; a mulher a quem nos unimos com o vínculo do matrimônio é a que amamos melhor; a mãe é a única mulher que amamos sempre.

Passando agora do campo literário ao doutrinário e teológico, vamos oferecer ao leitor a melhor exposição sobre a grandeza, os direitos e os deveres da mãe que pudemos encontrar entre a multidão de autores consultados.387 1. O grande privilégio da maternidade 310. Deus comunicou à humanidade dois privilégios: o primeiro é o sacerdócio, o segundo é a maternidade. Deus propaga a vida sobrenatural por meio do sacerdócio. Deus propaga a vida natural pela maternidade. Por meio dos dois, conjuntamente, continua sua Criação, realiza seu reinado eterno. Todos os eleitos serão nascidos da mulher e do Espírito Santo ao mesmo

tempo. A glória de Deus receberá maior ou menor extensão conforme o sacerdócio e a maternidade forem instrumentos mais ou menos dóceis de seu amor. Devemos acrescentar que, se a santidade depende mais do sacerdócio que da maternidade, no entanto o número dos santos e, de um modo indireto, o seu valor, dependem antes de tudo da maternidade. Assim, toda mulher pode dizer com a Santíssima Virgem: Magni cat anima mea Dominum [...] quia fecit mihi magna qui potens est (Lc 1, 46.49). O Senhor fez por mim, em mim, comigo, grandes maravilhas. Em Maria Deus criou Jesus Cristo, e em mim criou os membros místicos de Jesus Cristo.

2. O mistério da maternidade 311. A maternidade é um grande mistério. Não somente escapa por completo à nossa análise e à nossa inteligência essa comunicação da vida que faz nascer uma pessoa de outra semelhante a ela; não somente a nalidade que preside à formação completa e ordenada dos diferentes órgãos do corpo na obscuridade inconsciente do seio materno é uma maravilha, frente à qual o espírito ca estupefato; mas, além disso, a maternidade é um grande mistério em si mesma, como dignidade e prerrogativa da mulher.

3. Duas teorias antagônicas 312. Hoje, nós nos encontramos diante de duas teses. Uma delas, à primeira vista, parece mais verossímil que a outra, porque não envolve nenhum mistério espiritual. Consiste em a rmar que a maternidade é uma simples função siológica. A segunda, aquela que vamos desenvolver, em um primeiro momento parece paradoxal, porque vai até o fundo das coisas. Consiste em a rmar que a maternidade é sobretudo uma função espiritual. Escolher a primeira ou a segunda dessas teses tem enormes conseqüências. Caso se decida que a maternidade termina com a geração do corpo, ou que também exerce direitos sobre a alma, adota-se ou o desprezo ou o respeito soberano pela mulher. Daí resulta um conceito abjeto ou elevado sobre o amor, sobre o noivado, o matrimônio, a família e a sociedade. Cada uma dessas coisas veneráveis que, em suma, constituem a vida humana, se de ne de modo nobre ou vulgar conforme a idéia que alguém forma sobre a maternidade. A mulher é somente um instrumento de prazer? Então, o amor é uma forma de paixão; o noivado, um meio de sedução; o matrimônio, uma exploração; a família, um encontro passageiro; a sociedade, uma organização da libertinagem. A mulher é para o homem um instrumento de expansão de si mesmo e de domínio? Então, a mulher é para ele um negócio; o matrimônio, uma tirania; a vida de família, uma escravidão; a sociedade, um comércio de interesses. Ao contrário, a mulher é uma colaboradora, de cuja submissão ao homem não se deduz a abdicação de seus direitos espirituais? Então, o amor é uma admiração recíproca e um desejo de elevação; o noivado, uma vocação para um ideal sobre-humano; o matrimônio, uma cooperação para o reinado de Deus; e a família é uma sociedade quase divina, o fundamento indispensável da sociedade humana, enquanto o Estado não é mais que um protetor das famílias.

Depois de vinte séculos de cristianismo, vivemos numa época em que se enfrentam novamente os partidários destas duas teses sobre a mulher casada: de um lado, o paganismo; do outro, o cristianismo.

4. As teorias materialistas 313. Não vejo aparecer nem resplandecer a supereminente dignidade da mãe de família nem no comunismo russo, nem no socialismo internacional, nem em todo o paganismo. É o Estado que todos exaltam acima de tudo. Ao Estado pertencem a criança e sua educação. A mulher está a serviço do Estado. Ela é uma máquina viva de que o Estado necessita transitoriamente para multiplicar os cidadãos. Ele a explorará em benefício da cidade, dando-lhe subsídios, bem-estar, higiene, assistência médica e até, em caso de necessidade, uma estimulação religiosa e uma legislação favorável à proliferação. Vai levá-la a acreditar que, cumulada de bens naturais, deve ser feliz. Na realidade, porém, o que ele faz é reduzi-la à escravidão. E, devido a uma sobrevivência inconsciente do velho cristianismo, a fecunda união livre, ou a poligamia, não se estabelecem de imediato, por serem mais favoráveis ao domínio do Estado. Os teóricos e romancistas russos não são os únicos a quererem livrar o matrimônio do “jugo das teologias”, como dizem eles (referindo-se a uma conceituação espiritual da vida). Multiplicam-se os profanadores do amor cristão, como Norman Haire e Bertrand Russel.388 Às vezes, são ouvidos alguns ecos dessas teorias nas conversas mundanas. Zombam das mulheres que aceitam a carga da maternidade. Parece que ser mãe é uma vergonha. E quantos dos próprios lhos têm idéias errôneas sobre este ponto! A seu modo de ver, seus pais não conquistaram uma honra dando-lhes a vida. Algumas vezes esses lhos se sublevam contra o próprio dom da vida. Consideram-se como vítimas de um gozo egoísta de seus pais; não compreendem por que devem agradecer o terrível dom da existência àqueles que, a nal de contas, a seu juízo, não buscaram mais que a satisfação de seu instinto. Eles repetem as máximas de certos lósofos, ou os versos de alguns poetas do pessimismo, nos quais se proclama que os pais são joguetes do “gênio da espécie”; cegamente escravos de sua vontade, ver-se-iam obrigados, por uma condição natural, a estabelecer as condições dos nascimentos. A vida que assim aportariam seria ao mesmo tempo um fardo e um espantoso perigo. É isto que se ouve nos salões e se lê em alguns romances. Todas essas teorias têm como ponto de partida uma idéia vulgar sobre a geração. A mulher é rebaixada ao papel de simples propagadora da vida física. Esse envilecimento da mulher resulta do desconhecimento da função espiritual da maternidade. Devemos, pois, estabelecer nossa doutrina com grande cuidado. Menos para refutar a enchurrada de heresias modernas que para ajudar os pais a elevarem sua própria vida ao nível de sua dignidade.

5. A função espiritual da maternidade 314. A função espiritual da maternidade se assenta sobre o fundamento da observação positiva, da razão e da fé. É verdade, de fato, que a mãe não gera somente um corpo vivo, um organismo pelo qual circula o sangue e no qual o cérebro manda no sistema

nervoso, mas um ser espiritual, cujo destino está fora do tempo e cuja consciência só depende de Deus. É demasiado simples dividir o homem em duas partes: o corpo e a alma; e atribuir à mãe a geração do corpo, e a Deus a criação da alma. Essa separação do ser humano suscita uma centena de problemas falsos. Na realidade, a mãe concebe e gera o ser, que é “uno”. E ainda que a alma, por ser espiritual, não esteja formada de células prolíferas, ela está sob a dependência da geração materna, porque não é puro espírito; não é um anjo associado a um pequeno animal, mas um espírito carnal.389 Consideramos apenas o primeiro estágio da maternidade e já vemos aparecer os primeiros sinais da função espiritual da mãe. Nada do que a mãe faz é feito sem a colaboração de Deus. E isto desde que se inicia a primeira atividade materna. Por outro lado, a palavra “colaboração” é insu ciente para expressar esse ato único pelo qual a mãe, atuando por mandato de Deus, faz nascer uma criança, corpo e alma, tal como sai do movimento dos lábios um pensamento encerrado em uma palavra. Minha boca dá corpo à idéia, e a idéia dá sentido às palavras; não obstante, sou eu que falo, e não um espírito nem um corpo, separados ou associados. Assim a mãe dá um corpo à alma, mas a alma, sem esse corpo, não teria razão de ser, nem existência, nem caráter humano, nem pecado original, nem concupiscência, nem paixões, nem poder de vida. E o corpo sem essa alma tampouco teria razão de ser, nem existência, nem inclinação moral, nem poder de vida. São “um”, como aquele que fala. Ora, é a mãe que gera, e não Deus. Então, é a mãe quem produz neste mundo o ser racional espiritual, completo. Insisto sobre o ponto especial de que a ação humano-divina da geração não termina somente na substância do corpo, nem mesmo na da alma. Ela chega até à própria personalidade, isto é, àquilo que é no homem a parte mais elevada, o cume dominante, a fonte da moral e do espiritual. Este princípio é primordial. Talvez nem suspeitemos das conseqüências que a negação desta verdade poderia conter. Elas são morais, sociais e políticas, mas também existe uma que poderíamos chamar de dogmática. De fato, de que tratava aquela disputa do século , entre São Cirilo de Alexandria e Nestório, à qual o Concílio de Éfeso deu m? Tratava-se de decidir se a Santíssima Virgem era Mãe de Deus, ou somente mãe da natureza humana de Deus em Cristo. Sem dúvida, sendo o Verbo eterno, Maria não gerou a natureza divina. No entanto, o Concílio de Éfeso de niu, contra Nestório, que o Verbo não deixava de ser lho da Virgem, porque esta era a Mãe da pessoa encarnada. Ora, essa pessoa era o Verbo de Deus. Então, Maria era Mãe de Deus.390 Para que fosse de outro modo, teria sido preciso que a humanidade de Jesus pertencesse a uma pessoa humana distinta do Verbo — coisa que a fé declara como herética — ou que a maternidade não se estendesse além do efeito puramente físico da geração; isto é, não além do corpo humano — o que leva igualmente à heresia. A conclusão é evidente. Se, na geração humana, se separa a pessoa da natureza, a mulher deixa de ser mãe do homem. Os hereges nestorianos não chegaram a tanto; não se atreviam a pretender que Maria não fosse ao menos a mãe de Jesus ou de Cristo; apenas acreditavam poder a rmar que ela não era mãe de Deus, incorrendo em erro sobre a unidade do ser. A de nição da maternidade divina os confundiu. Ora, em

Maria, o concílio exaltava indiretamente todas as maternidades. Estas, como aquela, chegam pela carne até o espírito. A pessoa que dá sua carne e seu sangue na obra da geração, produz, como Deus e com Deus, outra pessoa à sua imagem e semelhança, outra pessoa que merece ser amada até o perigo de morte. Pertencem, pois, à mãe não somente os membros físicos da criança, sabiamente preparados para servirem de órgãos para a inteligência, mas ao mesmo tempo a própria inteligência da criança, sua imaginação, seu coração, sua vontade.

6. Transcendência eterna da maternidade 315. Acrescento que a maternidade tem por nalidade não a existência temporal, mas a vida eterna. É uma colaboração com o Criador para um m, que não pode ser outro, senão o próprio m da Criação, ou seja: Deus. Somente se é mãe para dar lhos a Deus. Não se fornecem à natureza novos recrutas para a vida humana, que são con ados à bondade onipotente da Providência para que esta possa continuar e terminar a execução de seus magní cos desígnios. O gênio da espécie é uma cção. De fato, existe na audácia da maternidade uma espécie de submissão necessária a um gênio in nitamente mais forte, mas esse gênio é o da Sabedoria providencial. Esta Sabedoria impele a humanidade a empreender, com todos os seus recursos, uma grande obra: a glória de Deus, o reinado de Cristo, onde os seres humanos, demasiado fracos para serem grandes por si mesmos, são transformados em aptos para uma glória e uma felicidade in nitas.

7. Direitos da mãe sobre seus lhos 316. O sentido da maternidade dá à mulher direitos essenciais sobre a pessoa do lho, os quais não se opõem certamente aos de Deus, já que Ele é o princípio da própria maternidade; mas são direitos que nenhum poder humano pode reivindicar em lugar da mãe. O Estado não é “dono e senhor” da criança; ele não criou sua alma nem gerou seu corpo; seu m imediato é muito inferior ao da maternidade. Somente no caso em que a mulher não tivesse contribuído mais que com uma guração siológica na geração, ele poderia apoderar-se do espírito. Porém, por não ser ele o autor da vida, ca reduzido a uma função subalterna e a desempenhar um serviço auxiliar em relação à família.

8. O amor lial é instintivo, natural e santo 317. Esses princípios da ciência e da razão estão con rmados, além disso, pelo funcionamento imutável do instinto. A criança, espontaneamente, mantém com sua mãe relações que são de ordem espiritual. Para ela, é verdadeiramente a mãe de seu coração e de sua alma, não somente de seu corpo. Aqui não falamos do que ela deve ser por justiça moral, mas do que é de fato e independentemente de toda vontade. Aí veri camos a vontade criadora de Deus. O grito do amor pela mãe brota naturalmente de todos os peitos humanos. Quanto maior o sofrimento do homem, quanto mais ameaçadora se apresenta a morte, tanto mais cruza as sombras da noite o clamor desesperado do coração daquela que foi mãe. Escutem a voz da criança! É da alma ou do corpo? Dirige-se ao corpo ou à alma? É

evidente que os vínculos que a geração forjou são feitos com sentimentos da alma. Eles também são chamados de “vínculos de sangue”. Mas esta é uma metáfora para indicar a imutável resistência dos vínculos do amor.391 O amor lial e o amor eterno são os únicos que o tempo não desgasta nem debilita. Todos os outros são mais violentos e mais efêmeros. Estes são suaves, quase insensíveis e inalteráveis. São aquilo que a natureza fabricou de mais perfeito, mais puro, mais próximo ao cristianismo. Até nos homens que se deixaram invadir pela lama das ruas e pelo ódio ao próximo, existe sempre uma ilha de amor onde crescem lírios de piedade para com sua mãe. Outro tanto se pode dizer da ternura das mães. Se o lho tem uma in nita con ança em sua mãe (sendo sua mãe para ele toda a Providência), por sua vez o coração materno foi lavrado por Deus como um órgão do amor divino. Esses sentimentos recíprocos são de uma ordem diferente daqueles da carne. Deus não quis criar somente um organismo no seio materno, mas estabelecer relações espirituais entre os membros de uma mesma família. As vicissitudes da vida dão testemunho disso. Nas quedas culpáveis, assim como nos reveses que esmagam, a presença da mãe, visível e até mesmo invisível, é a que sempre dá sua luz suave e sua força para a alma mergulhada na sombra. Aqui, porém, existe algo mais belo. O amor que une a criança com sua mãe não é só o mais profundo dos amores, mas o mais santo. Mesmo que ele se aposse de todo o ser, os sentidos têm menor participação do que nos outros amores; quando as naturezas são normais, ele não está sujeito à corrupção. Ele nunca rebaixa: eleva, puri ca, santi ca. E mais: é a imagem mais perfeita que possuímos do amor que Deus tem por nós. Isto não realça o seu caráter sagrado? Esta verdade deve ser posta em evidência. Quando o profeta Isaías dirigiu a seu povo estas palavras: “Sião dizia: me abandonou. O Senhor me esqueceu!”, respondeu: “Acaso uma mulher pode se esquecer do seu lho de peito, ou não ter piedade do fruto de suas entranhas? Porém, mesmo que as mães esquecessem de seus lhos, eu nunca vos esquecerei! Trago o teu nome gravado nas palmas de minhas mãos” (Is 49, 14–16). E mais adiante: “Como um homem a quem sua mãe consola, assim eu vos consolarei [...] e sereis consolados em Jerusalém” (Is 66, 13). Davi, cheio de con ança, canta a misericórdia de Deus nestes termos: “Meu pai e minha mãe me abandonaram, mas o Senhor me acolheu” (Sl 26, 10). O Sábio nos assegura que o Altíssimo “se compadecerá de nós, mais do que uma mãe”: Miserebitur tuim agis quam mater (Eclo 4, 11). É evidente que essas palavras não teriam nenhum sentido para nós se a maternidade, que nos envolve com tão incomparável ternura durante toda a vida, não fosse aquilo que nosso coração pode imaginar de mais elevado, mais santo, mais forte, mais

estimulante, mais paci cador, mais suave, mais divino. Ah! Como nós estamos longe das abjeções da carne! Estamos muito próximos das sublimidades de Deus. E acaso poderíamos compreender algo do papel de bondade que a Virgem Maria desempenha em relação a nós? Poderíamos ter uma idéia exata de sua onipotência sobre Jesus Cristo se a natureza e a experiência não nos tivessem ensinado que a maternidade é uma fonte de amor que nada cansa, e que seus assaltos ao coração do Filho sempre acabam triunfando, ainda que ele seja um Deus ofendido? Onde São Bernardo teria encontrado tão numerosas e magní cas palavras sobre Maria se sua mãe não lhe tivesse revelado as doçuras inefáveis do amor maternal? E Santo Estanislau Kostka dizia: “Maria, como eu poderia não a amar? Ela é minha mãe!”. Também ele pôde pronunciar palavras como estas porque gozou em família das ternuras de uma mãe querida. Estamos no interior do foco de um sol cujo calor e luz iriam desaparecer se se apagasse a chama do coração materno. Não é a revelação do amor de Deus que nos levou a compreender o amor da mãe, mas é o amor de nossa mãe que nos fez compreender o que é o amor de Deus.

9. Nas religiões pagãs 318. Assim, mesmo fora do catolicismo, Deus, que não se revelou aos pagãos por meio dos profetas, nem pelos apóstolos, deixou-lhes contudo, na natureza, como o declara São Paulo, testemunhos que lhes permitissem elevar-se até Ele. Suas perfeições invisíveis, seu eterno poder e sua divindade, desde a criação do mundo, se fazem visíveis à inteligência por meio de suas obras (cf. Rm 1, 20). Existe, porém, uma obra que pode convencer os pagãos da bondade de Deus, tanto como os castigos lhes inspiram a idéia de sua justiça, e o rmamento a de seu poder: é a maternidade. Ouçamos, por exemplo, a oração de um homem do povo, idólatra, que ia em peregrinação a Pandharpur, cidade santa da Índia. Ele se chamava Tukaran. As grandes multidões indianas o seguiam entusiasmadas enquanto ele cantava seus hinos. Sem dúvida, dirigia-se ao ídolo. Mas toda a profundidade dos sentimentos humanos que animavam sua oração se unia, por assim dizer, ao estado de alma de um cristão fervoroso. Para representar a si a divindade, um dos símbolos favoritos desse hindu era o lho que repousa no seio de sua mãe. Quanto mais pequenino e mais impotente é o lho, mais ele se abandona nos braços de sua mãe. Assim a alma deve aninhar-se no seio de Deus. Tukaran cantava: “Uma mãe não espera que lhe ponham o lho nos braços; espontaneamente se dirige para ele. Sem esperar que ele peça, a mãe oferece guloseimas a seu lho; não tem nenhum prazer em comê-las pessoalmente. Sente as penas de seu lho e se agita por causa delas como o arroz que seca sobre a paelha. Ela não pensa em si mesma e não suporta que alguma coisa possa atingir seu lho. Quando a criança está enferma, a mãe se dedica inteiramente a ela. E, não obstante, não existe generosidade como a de Narayana.392 Eu o aprendi por experiência própria e não posso duvidar disso jamais. Acudi em meu auxílio, ó mãe! Por que esperais? Não tenho paciência para esperar, sinto-me abatido porque vos perdi. Consolai-me, porque estou completamente perturbado.

Um lho diz a sua mãe quando tem fome e sede, e ignora o trabalho exigido para o aliviar. Assim, ó Deus, tomai sobre vossos ombros toda a carga e protegei-me. Eu sou inútil, abjeto e culpável; vais considerar tudo isso agora? Tendes atendido todas as súplicas que vos foram dirigidas: confessai, pois, que sois mãe, ó Panduranga! Se nos tomais em vossos braços, nunca mais vos abandonaremos. Tukaran diz: ‘Colocai em nossos lábios um bocado de amor divino’”.393 Ora, aqui estamos em plena religião pagã. Que é que dá à oração do pobre hindu uma verdade tão emocionante e uma revelação tão pura? O sentimento que ele tem da grandeza espiritual de uma mãe. Basta-lhe transpor para Deus, por indução inteiramente espontânea, as virtudes que o Criador depositou no coração materno, para conceber em seguida a bondade in nita d’Aquele que nos disse: “De tal modo Deus amou o mundo, que lhe deu seu Filho único” (Jo 3, 16), entregando-o para remir todos os homens. Deus instituiu a família, não só como um fundamento da sociedade, mas como fundamento da vida sobrenatural. Ela nos ajuda a compreender as íntimas conexões que nos ligam à Santíssima Trindade por meio de Jesus Cristo, nosso irmão, e de Maria, nossa mãe.

10. A educação dos lhos 319. Talvez, porém, ainda não tenhamos dito o mais importante sobre o caráter espiritual e quase divino da maternidade. A formação do corpo da criança no seio materno é apenas uma pequeníssima parte da geração total. A geração começa por um período siológico de nove meses, mas compreende também todo o crescimento da vida humana. Assim, abarca uma série de anos. A criança não pode viver por seus próprios meios. O desenvolvimento espiritual do ser humano, que tem seu ponto de partida nas primeiras manifestações do conhecimento e da fala, tampouco é estranho à geração maternal. Pelo contrário, é a sua parte mais importante. A educação é uma geração continuada. E, com toda a exatidão, pode-se dizer que a geração espiritual pertence à mãe ainda mais que a gestação corporal, sobre a qual sua inteligência teve tão pouca in uência. Para prová-lo, vamos servir-nos sobretudo de uma comparação. A Bíblia diz que Deus criou o mundo em seis dias. É certo que Deus não criou o mundo já acabado. Dos germes primitivos saiu lentamente, no decorrer dos séculos, toda uma evolução progressiva da matéria e da vida. E, supondo que o mundo crescesse durante milhões de anos a mais, Deus não deixaria de ser o Criador desse mundo inteiro. Por quê? Porque tudo o que poderia existir nesse mundo total seria simplesmente o desenvolvimento do germe criado, e nada seria introduzido no interior deste mundo que fosse criado por outro ser além de Deus. Em suma, a duração do tempo da evolução não modi ca em nada a natureza dos seres nem sua dependência natural. Passemos a outra comparação. Jesus Cristo fundou a Igreja. É uma verdade de fé. Estamos bem convencidos de duas coisas: primeiro, que a Igreja progride no tempo e

cresce sem cessar com novos membros, e mesmo com novas de nições dogmáticas. Da Igreja primitiva, tal como existia no momento da ascensão, para a Igreja de hoje, houve uma considerável mudança. E, no entanto, cremos que a Igreja, tal como ela é em pleno século , e como será no nal dos tempos, é inteiramente obra de Jesus Cristo. Quando Cristo morreu, aparentemente não tinha feito nada. Era preciso tempo para que esse nada se transformasse em tudo. Jesus Cristo é o autor da totalidade. Aquilo que estava à vista no ano 33 não correspondia absolutamente ao poder nem à dignidade da Igreja.

11. A maternidade de Maria 320. Apliquemos esta verdade à maternidade da Virgem Maria. A Santíssima Virgem deu à luz Jesus em Belém. Terminou sua maternidade com o nascimento daquele corpinho ou apenas estava começando o seu trabalho? Não há dúvida de que Belém era apenas o começo. Isto prova que Maria é mãe de todo o Cristo, tal como o conhecemos pelo Evangelho. Ela é a mãe do Salvador; é a mãe de Cristo Rei; é a mãe de Deus no céu; por isso ela atua como Rainha onipotente. Mais ainda: ela é a mãe dos homens. Segundo a teologia, ela o é realmente, e não apenas por sentimentalismo. Ora, sua maternidade dos homens é puramente espiritual, embora o seja por uma verdadeira geração. Esta não seria possível se Maria já não fosse a mãe de Cristo no momento em que Jesus redimiu os homens com seu sangue, quando lhes deu sua carne como alimento, quando enviou o Espírito Santo, quando criou o Corpo místico. Maria é mãe dos membros porque sua maternidade se estende a toda a vida de Cristo. Se a reduzíssemos à geração dos primeiros meses, esta seria destruída. Porque Jesus não quis ter mãe apenas para se encarnar, mas para dar-se, por esse meio, um Corpo místico. A mãe do corpo mortal também era a mãe do Corpo místico. Entre esse corpo físico, tão pequeno e tão aniquilado, que Jesus o comparou ao grão que morre na terra, e esse Corpo espiritual, tão grande e glorioso que atrai a si toda a Criação, existe simplesmente o crescimento no tempo. Porém, uma vez mais, isto não modi ca a unidade do ser. Assim, Maria é a mãe de todo o gênero humano. Ela realmente gerou espiritualmente toda a humanidade.

12. A maternidade cristã 321. Pois bem, esta doutrina se aplica a todas as maternidades. De fato, poderíamos dizer que as mães cristãs não são mães de um pequeno cristão, mas somente de um pequeno ser humano, inconsciente e manchado pelo pecado original? Que estupidez tão dolorosa é fazer da mãe unicamente a propagadora do pecado e do sofrimento, inerente a toda carne! No entanto, se a maternidade consistisse somente em um ato e em um tempo, o do nascimento corporal, seria preciso concordar com isso.

A maternidade se inicia pelo corpo e só termina com a perfeição consumada da alma. Ela integra toda a vida, porque abarca a totalidade do ser. A maternidade é um dinamismo cujos efeitos se produzem todos os dias, e não termina até o céu, na plenitude da ação. Assim, quando a mulher se casa, e em seguida concebe um lho, e quando, por m, o dá à luz, ela cumpriu, por assim dizer, apenas o primeiro ato do grande drama de sua vida materna. Se esse ato já fosse o desenlace, seria muito triste. Contudo, nesse momento todos se regozijam, porque no dia seguinte ela será mãe de um batizado, de um lho de Deus, de uma criança em estado de graça, e da qual o sacerdote terá expulsado o demônio. O segundo ato é a explicação do primeiro, transforma-o em útil e bené co. A partir do Batismo, a vida que a mãe transmitiu segue seu curso normal, remando sobre o profundo lago da vida sobrenatural. Essa vida, que parecia um dom fatal, já vale a pena de ser vivida. Logo depois a mesma mulher será a mãe de um primeiro comungante. Nesse dia, em que Cristo une sua carne à de seu lho, sua maternidade completará o terceiro ato. Para chegar até essa hora divinamente bela, ela aceitou o Matrimônio indissolúvel, esse sacramento da união de Cristo com a Igreja; já sabia ela que o preço de suas castas renúncias, de seus contínuos sacrifícios, era a encarnação de Cristo em seu lho, o prolongamento da vida de Cristo em um membro de sua própria carne por meio da Comunhão, a extensão do Corpo místico em seu lho. Ah! Como se glori ca sua maternidade quando o lho se transforma em sacerdote de Jesus Cristo! Mãe de um sacerdote, de um salvador, de um redentor, de um mediador, de outro Cristo. Mas a morte, que algumas vezes arrebata a mãe da presença sensível de seu lho, é também um ato da maternidade. É o desenlace. A mãe sabia que colocava aquele lho no mundo para que morresse; ela o havia entregado à morte, que devora todos os vivos. Essa perspectiva não a deteve. Pois a morte não passa de uma passagem, a crise de um momento, um passo que deve ser dado necessariamente para que se cumpram os ns do matrimônio. A mulher somente é mãe para ser a mãe de um eleito, de um santo, de um bem-aventurado. E se essa felicidade não fosse o término da geração, não estariam bem justi cados nem o matrimônio, nem a fecundidade; ao perderem o seu m, perderiam também sua razão de ser. Para quê todos esses prelúdios físicos da maternidade, às vezes desagradáveis, se esta não tivesse um m espiritual? A mãe nunca é mais mãe de seu lho como quando o tem no céu. Todo mundo sabe que, durante a eternidade, subsistirão com harmoniosa intensidade as relações espirituais esboçadas aqui na terra. Lá em cima, a família revive livre de todas as travas que a paralisavam. Os santos do céu têm suas mães. Não há dúvida de que a glória será compartilhada com aquelas que os deram ao Senhor. E quando nos dizem que, para obter com mais abundância e segurança as graças de Jesus Cristo, é preciso dirigir-se à Santíssima Virgem, que fará o mesmo que fez em Caná — apenas um sinal a seu Filho para ser obedecida —, também deveriam dizer-nos, a meu modo de ver, que nossas orações têm maior probabilidade de serem atendidas favoravelmente pelos santos

quando invocamos suas santas mães no céu. O raciocínio que é válido para a Mãe de Jesus, sem dúvida deve também ser válido para todas as santas mães, já que se fundamenta no poder moral da maternidade.

13. Conclusão: sublime dignidade da maternidade 322. As mães deveriam sentir-se orgulhosas do papel que Deus lhes entregou. Neste século, as mães aspiram à honra de serem eminentes nas atividades que até agora pareciam reservadas aos homens. É possível que a alcancem. Mas que são para elas esses méritos próprios dos homens, ao lado da glória que os homens não têm a possibilidade de conquistar, a glória da maternidade? É verdade que essa função social inclui grandes sujeições; mas ela é também fonte da mais elevada nobreza e do maior poder. Depois de vinte séculos de cristianismo, chegaram os tempos em que as mulheres devem unir-se em poderosas associações contra o renascimento pagão, que mais do que nunca ameaça aviltar a maternidade. Os leigos se perguntam de que forma podem empreender campanhas de Ação Católica. Aqui está uma forma, que nos parece das mais simples e mais urgentes: reivindicar os direitos da família. Mas não seria conveniente começar desde a primeira educação essa campanha em favor da suprema grandeza da maternidade? Seria muito conveniente propor esse ideal às jovens. Contudo, é preciso fazer com que também os jovens saibam disso. Tenhamos o cuidado, isso sim, de não nos desviarmos do m que nos propusemos alcançar. Não é tanto a maternidade que se deve exaltar quanto a função espiritual da maternidade. Consideramos necessário para os costumes de uma sociedade que o homem fundamente suas relações com a mulher sobre o respeito à sua dignidade. Deste princípio dependerá o valor espiritual de um país, e, por conseguinte, de sua prosperidade. Ora, esse princípio faz parte das mais importantes lições de uma educação cristã da juventude. Já tentamos esboçar o plano dessas lições. Pareceu-nos que Deus nos deu a Mãe de Jesus para nos permitir ensinar com maior facilidade e com mais segurança o magní co destino da mulher. Maria foi virgem e mãe. Toda jovem é chamada a reproduzir, dentro do possível, a gura de Maria; mesmo na maternidade, a pureza deve ser seu privilégio. E todo jovem deve respeitar absolutamente essa vocação especial da jovem; e mais ainda, deve ajudá-la nesse ideal quando as circunstâncias o obriguem a isso. Acreditamos que esse primeiro ensinamento é necessário para a educação do coração e dos sentidos.

Artigo 4 — Deveres para com os filhos 323. Embora tenhamos aludido com freqüência, através das páginas dedicadas ao pai e à mãe, a seus direitos e deveres para com os lhos, é preciso examinar agora, de maneira mais completa e sistemática, esses mesmos direitos e deveres. Neste artigo, falaremos unicamente dos deveres dos pais em relação a seus lhos. Daquilo que se relaciona a seus direitos, vamos ocupar-nos no capítulo dedicado aos lhos, ao falar dos deveres dos lhos, que são cabalmente os direitos dos pais, devido à natural correspondência e inevitável reciprocidade que sempre existe entre direitos e deveres. Os deveres e obrigações dos pais para com seus lhos são de gravíssima importância familiar e social, já que de seu cumprimento ou negligência depende em grande parte o bom andamento da família e da sociedade. Vamos sintetizar em um princípio fundamental os principais deveres e obrigações dos pais para com seus lhos, que depois iremos examinando com vagar, um a um. O princípio fundamental é o seguinte: Por direito natural e divino, os pais têm a gravíssima obrigação de amar seus lhos, cuidar corporalmente deles, dedicar o máximo empenho em sua educação religiosa, moral, física e civil, e oferecer-lhes um futuro humano proporcional a seu estado e condição social. 324. Em primeiro lugar, vamos explicar brevemente cada um dos termos deste

princípio fundamental, que depois examinaremos com detalhe em todas as suas partes. ... O direito natural é evidente pelo simples fato da geração, que estabelece entre pais e lhos um vínculo natural indissolúvel e eterno. O direito divino consta de modo claro e explícito em grande número de passagens da Sagrada Escritura, tanto do Antigo como do Novo Testamento. Não chegaríamos ao m se quiséssemos reunir aqui os textos inumeráveis. ...

... É uma coisa tão evidente, que não necessita de demonstração. Os lhos são como um prolongamento dos próprios pais e seus próximos mais imediatos. Ora, tanto a lei natural como a lei divina positiva obrigam todos nós a nos amarmos, e ao próximo como a nós mesmos. Por outro lado, não existe dever mais doce e profundo para os pais que o de amar seus lhos com todas as suas forças. As exceções monstruosas servem para con rmar a lei geral e universal. ... ... Este dever também é tão claramente de ordem natural, que até os próprios animais — incapazes de amar, propriamente falando, por carecerem de razão e vontade — cumprem instintivamente o dever natural de cuidar e alimentar a seus lhotes até que possam sustentar-se por si mesmos. No homem, esse instinto natural ca sublimado pela razão, pela vontade e pela fé. ...

, , ... Este é um dos deveres paternais mais sagrados e invioláveis. Como se sabe, o m primário do matrimônio é a geração e educação da prole (cân. 1013).394 Pouco valeria trazer os lhos ao mundo caso se descuidasse depois de sua educação cristã. Para muitos deles, sua vinda ao mundo representaria o começo de sua eterna desventura, e se deveria

repetir sobre eles as tremendas palavras que Cristo pronunciou em alusão a Judas: “Melhor seria que não tivesse nascido” (Mt 26, 24). A Igreja dedicou a este sacratíssimo dever um cânon especial em seu código o cial: “Os pais têm a gravíssima obrigação de procurar com todo o empenho a educação de seus lhos, tanto religiosa e moral como física e civil, e de prover também o seu bem temporal” (cân. 1113).395 ...

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. Como o homem consta de alma e corpo, e foi elevado por Deus à ordem sobrenatural, é evidente que, além da alimentação corporal e de sua educação cristã e integral, cabe aos pais o dever natural de assegurar-lhes um futuro humano adequado à sua condição social, para fazer deles homens úteis a este mundo e futuros cidadãos do céu. Examinados simplesmente os termos do princípio fundamental, vamos agora desenvolvê-lo ponto por ponto. Dada, porém, a complexidade de problemas colocados pela educação dos lhos em todos os seus aspectos fundamentais, examinaremos em seção à parte a grande tarefa da educação dos lhos. 1. Amar os lhos 325. Os pais devem amar seus lhos com um amor intensíssimo, que tenha as seguintes características: afetivo, efetivo, prudente, natural e sobrenatural. Vamos examiná-los de maneira brevíssima.396 1) Afetivo ou interno, desejando sinceramente para eles o maior bem corporal e espiritual, neste mundo e no outro. Em conseqüência, podem pecar gravemente se odeiam deliberadamente a seus lhos, se os maldizem ou lhes desejam algum mal, se os ofendem gravemente, provocando sua ira (Ef 6, 4); se os tratam com grande dureza e severidade, de sorte que vivam atemorizados; se os açoitam ou batem neles por motivos

fúteis, se os expulsam de casa ou tornam sua vida impossível nela. Entretanto, podem e devem, quando há motivo para isso, repreender severamente seus lhos e castigá-los com moderação para que se emendem, como veremos mais amplamente no lugar apropriado. 2) Efetivo ou externo, de modo que não se limitem a um amor puramente sentimental ou romântico, mas façam tudo quanto está ao seu alcance para proporcionar o bem temporal e eterno de seus lhos. Neste ponto, podem pecar gravemente os pais que, por sua própria negligência, não afastam de seus lhos os males que podem sobrevir a eles, ou não lhes proporcionam os bens correspondentes a sua condição e estado. 3) Prudente, ou seja, regulado pela razão e apoiado na fé. Peca-se contra este princípio quando o amor é: ) , isto é, quando são amados com idolatria, concedendo-lhes tudo quanto queiram, ordenada ou desordenadamente, satisfazendo a todos os seus caprichos, nunca os contradizendo em nada, etc., o que não é amor verdadeiro, mas grande equívoco e imprudência, que fará a ruína e a infelicidade dos lhos. ) , ou seja, amando algum dos lhos com uma preferência injusta em relação aos demais, suscitando a inveja e o mal-estar destes últimos. Se algum dos lhos merece especial amor por sua bondade, serviços, etc., que os pais procurem não o demonstrar excessivamente perante os outros, para não excitar o ódio e a discussão entre os irmãos. 4) Natural. A experiência nos ensina que todo mundo ama a obra de suas mãos, e até os animais amam e defendem com ardor os seus próprios lhos. Os pais não poderiam deixar de amar a seus lhos com intensíssimo amor natural sem renegar sua própria condição de pais.

5. Sobrenatural. O amor natural deve ser completado por um profundo amor sobrenatural, porque seus lhos o são também de Deus e estão chamados a uma felicidade inefável, sobrenatural e eterna. Os pais tornarão efetivo este amor sobrenatural por seus lhos na medida em que se tornem colaboradores do Deus Salvador na santi cação de seus lhos, como antes o foram do Deus Criador em sua geração natural. 2. Cuidar dos lhos corporalmente 326. Como princípio fundamental, neste aspecto pode-se de nir o seguinte: Desde o momento exato da concepção e, por conseguinte, desde antes de nascer, o lho tem direito a receber de seus pais os socorros de ordem material que lhe permitam seu pleno desenvolvimento físico. A razão disto é que, desde o momento da concepção, ele começa a ser pessoa humana,397 com todos os direitos naturais inerentes à mesma; e o primeiro destes é o direito à própria existência física. Este direito primário e fundamental do correlativamente deveres

lho estabelece

primários e fundamentais em seus pais. Eis os principais: a) Trazê-lo ao mundo. Não há nem pode haver nenhuma razão de caráter individual, familiar, eugênico ou social que autorize cometer o crime do aborto voluntário, nem mesmo o chamado terapêutico, ou por indicação médica, para salvar a vida da mãe. É um crime repugnante (assassinato de um ser inocente e indefeso), que não se pode cometer jamais, sob nenhum pretexto. Já falamos amplamente sobre isto em outro lugar, ao qual remetemos o leitor.398

Neste ponto, pode pecar gravemente a mãe grávida que se coloca em risco de aborto com trabalhos ou esforços físicos excessivos, saltos, longas caminhadas, banho nos pés com água muito fria ou muito quente, etc. O mesmo se diga do marido que, com seus maus-tratos, golpes, uso desordenado do matrimônio, graves desgostos, etc., pode provocar este mesmo efeito em sua esposa. b) Alimentá-los. Esta obrigação deve estender-se ao menos até que o lho possa cuidar de si mesmo, e de ordinário até sua completa emancipação. Nos primeiros meses de sua vida, este dever cabe de modo muito especial à mãe, mediante a função santa e sublime do aleitamento de seu próprio lho. O amor da mãe pelo lho é intensi cado pelo aleitamento, muito mais que pela gestação e pelo parto. Ouçamos um autor contemporâneo que explica este sacratíssimo dever natural:399 O primeiro dever da mulher é alimentar seu lho com o leite de seus peitos e completar deste modo a obra da gestação [...]. O pequeno ser que a mãe trouxe em seu seio durante nove meses não se torna verdadeiramente seu, mesmo sendo feito de sua carne e de sua vida, antes de ter mamado durante muito tempo o “sangue branco” de que nos falava tão admiravelmente Ambroise Paré; e o lho já grandinho jamais se separa de sua ama-de-leite, que ele costuma chamar de sua mãe. Mater non quae genuit, sed quae lactavit (mãe não é aquela que gerou, mas a que amamentou). Todos sabem que o aleitamento traz consigo grandes penas e sacrifícios; mas estes, tal como as dores do parto, transformam-se em suaves e inefáveis alegrias. É um peso ingrato, difícil, mas que sempre parecerá leve à mulher que ama seu lho e quer cumprir com os deveres da maternidade. Que satisfação tão íntima e profunda, em troca das correntezas de leite, ao ganhar os beijos e carícias do pequenino! “A mãe natureza (ou melhor: Deus, o autor dela)”, diz delicadamente um autor antigo, “colocou as mamas à altura dos membros torácicos (e junto ao coração) a m de que a mãe possa sustentar e abraçar seu lho ao mesmo tempo que o alimenta”. A amamentação materna é uma obrigação indicada pela natureza, prescrita pela moral e recomendada pela higiene.400 Na realidade, é o último ato da geração humana, seu necessário complemento. Ela é tão favorável para a mulher quanto para a criança, e preserva de diversos acidentes: não debilita seu temperamento; ao contrário, o fortalece. Com tais vantagens, por que o aleitamento materno é hoje tão depreciado e preterido? Por que tantas mães procuram mil maneiras de livrar-se dele? Por que, uma vez terminado o parto, acreditam que também acabou a maternidade, e descarregam sobre pessoas estranhas, a seu serviço, todos os cuidados reclamados por seu recém-nascido?

Para este deplorável costume, demasiado espalhado entre a classe alta, seria preciso apresentar várias razões não muito elogiáveis. Não se cria porque se deseja evitar toda sujeição penosa e constante; porque o mundo, o baile, o teatro, reclamam por nós; porque a criança destrói a juventude, a beleza; deforma o busto, etc. Acima de tudo, porém, pretendem achar desculpas em razões mais confessáveis, físicas ou médicas.

De fato, não se pode negar que, às vezes, é impossível para a mãe aleitar seu próprio lho. Nestes casos de verdadeira impossibilidade física ou moral, é preferível recorrer ao aleitamento arti cial que entregá-lo a uma ama-de-leite, porque isto, ainda que seja mais sadio do ponto de vista siológico, envolve um risco para a vida psicológica da criança, que ama sua ama-de-leite como se fosse sua verdadeira mãe, e corre-se o risco de que, juntamente com o alimento, a criança receba também os primeiros germes viciosos. Se não se pode encontrar uma ama-deleite de toda con ança e probidade moral, é preferível recorrer ao aleitamento arti cial; os inconvenientes higiênicos que afetam o corpo são de muito menor importância que os morais, que podem destroçar a alma. c) Acolhê-lo no próprio lar. Isto é evidente, pelo mesmo direito natural. Pode haver casos, porém, em que isto seja física ou moralmente impossível (por exemplo, por absoluta falta de recursos, pela grave infâmia em que incorreria a mãe solteira, etc.). Nestes casos, poder-se-ia entregar o lho a pais adotivos ou interná-lo em uma instituição bene cente (orfanatos, abrigos, etc.), porque, embora isto seja uma desgraça, é melhor que perecer de fome ou de miséria. Interná-lo no abrigo por simples comodidade, para car livre de encargos ou por outros motivos ainda mais inconfessáveis, constituiria para os pais um verdadeiro crime contra seus lhos — pelo perigo de infâmia que ocorreria para eles (malnascidos) — e um verdadeiro pecado diante de Deus. d) Satisfazer suas necessidades corporais. Os principais socorros a que o lho tem direito são: o alimento, as vestes, a habitação, os cuidados higiênicos, a assistência médica em suas enfermidades,

etc., ou seja, todo o necessário para sua conservação e desenvolvimento normal. 3. Oferecer-lhes um futuro humano 327. Os pais têm a grave obrigação de preparar para seus lhos um futuro digno e decoroso, dentro de sua esfera e categoria social. Este dever precisa traduzir-se principalmente: ) , que deverá constituir a herança dos lhos, já que, como diz São Paulo, “não são os lhos que devem entesourar para os pais, mas os pais para os lhos” (2Cor 12, 14). Por isso mesmo, pecam gravemente os pais que dissipam sua fortuna em vícios, luxos excessivos, negligência culpável nos negócios, etc., em prejuízo do futuro e do bem-estar humano de seus lhos. ) , segundo suas possibilidades econômicas e condição social. Em geral, convém que os jovens camponeses continuem o trabalho de seus pais no campo, melhorando a técnica e os procedimentos de cultivo, mas sem ceder ao atrativo e à sedução da cidade, tão cheia de perigos. Os artesãos, fabricantes, industriais, etc. prestarão excelente serviço à pátria e ao bem comum fazendo com que seus lhos aperfeiçoem o negócio de seus pais e aumentem a produção, sem se deixarem arrastar pela néscia vaidade de “estudar para uma carreira”, o que está criando um con ito de in ação universitária quase insolúvel. E mesmo os jovens que pertencem às classes mais abastadas fariam bem em escolher pro ssões técnicas e especializadas, a menos que uma verdadeira vocação intelectual os impulsione para a universidade. Nota sobre os lhos ilegítimos 328. A moral laica, racionalista e anticatólica sempre fez uma grande campanha para explorar o sentimentalismo e a compaixão

face aos lhos do pecado, equiparando-os a todos os legítimos e recriminando à Igreja por ter lançado contra eles, como um estigma, a desventura de sua origem obscura. Não é preciso dizer quão falsa e perniciosa seja esta atitude, e quão abjeta é a calúnia lançada contra a Igreja, que manifesta sua benevolência e sua compaixão por estes pobres infelizes, admitindo sua legitimação, legislando sobre ela (cf. cân. 1116)401 e equiparando-os aos legítimos para os efeitos canônicos (cân. 1117),402 exceto em raras exceções.403 O lho ilegítimo não tem culpa de sua infeliz situação, mas seus pais a têm, e ele carrega as conseqüências — assim como aquele que nasce em uma família pobre não tem a culpa, mas é pobre. Os pais têm a obrigação de alimentar seus lhos ilegítimos, na forma como indicamos em outro lugar,404 e não podem interná-los em um abrigo ou orfanato, a não ser por absoluta falta de recursos ou para evitar a infâmia da mãe solteira que não possa contrair matrimônio com o pai culpável (por exemplo, por já estar casado). Caso se trate de pais solteiros, o melhor modo de reparar seu pecado é contrair matrimônio para legitimar o pobre lho, que não tem culpa de nada. Por outro lado, está claro — e assim o reconhecem todos os códigos civis do mundo — que os lhos ilegítimos não têm direito à mesma posição social e à mesma herança devida aos lhos legítimos. Seria uma injustiça contra estes últimos obrigá-los a repartir por igual o seu legítimo direito à herança com um meioirmão introduzido em casa pela porta falsa. À primeira vista, isto envolve certa crueldade para com o pobre lho ilegítimo, que não tem culpa de sua infeliz situação; mas seria um verdadeiro escândalo e um abuso manifesto se fossem equiparados em tudo aos lhos legítimos como se nada tivesse acontecido. Daqui se depreende a monstruosidade do crime cometido pelos pais, pois a

pobre vítima inocente tem de carregar com a afronta e as conseqüências do pecado cometido unicamente por eles.405

CAPÍTULO III | Os filhos 329. Depois de ter falado sobre os esposos e os pais, a ordem lógica das idéias nos leva a falar dos lhos. Os lhos são a bênção de Deus sobre os esposos, que os transforma em pais. São o fruto do amor dos pais e signi cam para eles uma relação de causa e efeito. São, en m, as ores primaveris que vêm encher de luz e de alegria o amável jardim do lar. Entre pais e lhos existe uma estreita e íntima solidariedade, que estabelece uma série de direitos e deveres mútuos orientados para o m natural e sobrenatural da família. Como já falamos dos deveres dos pais — que são correlativamente os direitos dos lhos —, agora cabe-nos falar unicamente dos deveres dos lhos, que coincidem, naturalmente, com os direitos dos pais. Os deveres dos lhos para com seus pais podem resumir-se nestes quatro fundamentais: amor, reverência ou respeito, obediência e ajuda material quando estes necessitarem. Vamos examinar cada um deles em particular.

1. Amor 330. Os lhos têm a obrigação de amar profundamente a seus pais, já que, depois de Deus, devem a eles a própria vida, que é o

bem que fundamenta e torna possíveis todos os demais. Por isso a ordem da caridade para com o próximo estabelece que, em caso de necessidade, os pais devem ser antepostos a todos, inclusive à própria esposa e aos próprios lhos. Porém, exceto o caso de extrema necessidade, a ordem normal da caridade é esta: a) Os próprios cônjuges, unidos em uma só carne. b) Os lhos, que são um prolongamento dos pais. c) Os pais. d) Os demais consangüíneos e a ns, conforme o grau de seu parentesco.406 Ao falar da virtude da piedade, explicando as principais razões teológicas pelas quais os lhos devem amar a seus pais, Santo Tomás escreve com sua habitual clareza e lucidez:407 O homem se torna devedor dos outros segundo a excelência e segundo os benefícios que deles recebeu. Por ambos os motivos, Deus ocupa o primeiro lugar, por ser sumamente excelente e ser o princípio primeiro de nossa existência e de nosso governo. Depois de Deus, os pais e a pátria são também princípios de nosso ser e governo, pois deles e nela nascemos e fomos criados. Portanto, depois de Deus, é aos pais e à pátria que nós mais devemos. E como cabe à religião prestar culto a Deus, assim, em grau inferior, pertence à piedade prestar culto aos pais e à pátria. Neste culto aos pais se inclui o de todos os consangüíneos, pois são consangüíneos exatamente por procederem todos de pais comuns. E no culto à pátria se inclui o dos concidadãos e dos amigos da pátria. Portanto, a todos estes se refere principalmente a virtude da piedade.

O amor que os lhos devem a seus pais deve ser afetivo ou interno, desejando-lhes toda espécie de bens e pedindo a Deus por eles; e efetivo ou externo, falando-lhes afetuosamente, consolando-os em suas tribulações, defendendo-os contra os que os perseguem, etc. Ouçamos o insigne Cardeal Gomá, que expõe admiravelmente este primeiro grande dever dos lhos: o profundo amor aos

pais:408 O primeiro dos deveres liais é o amor. O lho é resultado do amor dos pais pelo tríplice conceito da geração, da alimentação e da educação. O pai gera o lho por amor. Ressalvadas as diferenças, podem-se dizer de cada um dos pais as palavras que diz Dante sobre a geração do Filho de Deus: “O Filho que o Pai gera amando”. É por amor que o alimenta; só o amor pode impor ao pai e à mãe os sacrifícios de todo tipo que estes se impõem para alimentar os seus descendentes. É por amor que os educa, porque fora da lei do amor não existe força alguma que obrigue um ser humano ao duro trabalho de gerar outro ser humano até levá-lo à perfeição na ordem intelectual e moral. Ao amor que desce das alturas da paternidade em tão variadas formas, somente com amor o lho pode corresponder, porque só o retorno do amor é equivalente à dádiva do amor. Em troca de sua paternidade soberana e radical, Deus exige do homem o máximo amor de seu coração e de sua vida: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças, e de todo o teu entendimento” (Lc 10, 27). Depois de Deus — porque depois de sua paternidade vem a paternidade dos pais —, o lho deve levar de volta a eles todo o aroma de amor que sua vida seja capaz de exalar. E jamais o lho irá igualar a seus pais nas reciprocidades do amor. O amor dos pais pelos lhos é maior que o destes por aqueles, observa Santo Tomás.409 A razão disto é que o amor dos pais é ativo e generoso, com plenitude de dádivas. É todo o peso da paternidade, que tende a perpetuar-se e, para isso, não se deixa reprimir por reservas nem egoísmos. Ao contrário, o amor dos lhos é antes passivo: o lho espera tudo dos pais, porque sabe — a própria natureza lhe diz — que os pais existem inteiramente para eles. Existe no amor dos lhos algo de egoísmo inconsciente e irre exivo que não lhes permite dar-se aos pais com a totalidade e a abnegação com que os pais se dão a eles. É que, por uma lei da natureza, o lho tende, por sua vez, a transformar-se em pai; mas o pai já cumpriu sua missão e se apega à vida que se desprendeu de sua própria vida. Este excesso normal — se assim podemos dizer — do amor dos pais em relação ao dos lhos, reclama destes a cada dia maiores esforços para lhes corresponder. E como os serviços do amor do pai para com o lho são múltiplos, assim também devem ser, reciprocamente, os do lho para com os pais. Amor de adesão profunda e cordial, de afeição terna e sincera. Amor que dite palavras suaves, através das quais os pais compreendam que têm a seu redor corações que pulsam em uníssono com o seu. Amor solícito que saiba adivinhar o pensamento dos pais e adiantar-se a seus desejos. Amor incapaz de causar-lhes uma leve pena, e poderoso para aliviarlhes todas elas. Amor que abra todos os dias os lábios do lho para rogar a Deus pelos autores de seus dias. Amor que saiba agradecer a correção dura e até mesmo beijar a mão que castiga. Amor que dissimule os defeitos dos pais, que saiba ser discreto para corrigi-los e, ainda mais, para ocultá-los à vista dos de fora. Para o lho, ninguém é mais próximo que os pais: por isso ninguém deve ser mais amado que eles. Somente o amor de esposo e pai poderão, no coração do lho, relegar a um segundo plano o amor

devido a seus pais. O de esposo, porque é um amor que brota da unidade moral, pois já não são dois, mas um só; o de lho, porque até certo ponto, pela lei acima citada, o pai está mais próximo do lho que o lho do pai. Eqüidistante do pai e do lho em linha de parentesco, o homem que é ao mesmo tempo pai e lho, pode dizer-se com razão mais consangüíneo do lho que do pai. Mesmo assim, no fato de sua própria paternidade, ele deve encontrar motivos para intensi car o amor a seus próprios pais. A eles deve que, por sua vez, tenha podido ser pai, e talvez com eles tenha aprendido a ser um bom pai.

Conseqüências de ordem moral Pecam gravemente os lhos: 331. a) : se lhes têm ódio ou os desprezam interiormente; se lhes desejam a morte para viverem mais livremente ou herdar seus bens, etc. (gravíssimo pecado); se são tão desalmados que se alegram com as adversidades deles ou se entristecem com sua prosperidade; se nunca rezam por eles; se não se preocupam com que recebam a tempo os últimos sacramentos e, por sua negligência, morrem sem eles (gravíssimo pecado); se depois de sua morte não lhes aplicam sufrágios, ou estes são demasiado escassos de acordo com suas possibilidades, etc. b) : se os tratam com dureza e os ofendem gravemente com palavras ou chegam ao monstruoso extremo de agredi-los (gravíssimo pecado); se não atendem às suas necessidades ou lhes negam a saudação ou a palavra; se não os visitam quando estão gravemente enfermos; se os entristecem ao ponto de derramarem lágrimas por sua conduta escandalosa, sua rebeldia ou desobediência habitual, etc.

2. Reverência ou respeito Depois do amor mais terno e profundo, os lhos devem a seus pais uma grande

reverência ou respeito, que deve ter dupla manifestação: interior e exterior. . — Reconhecendo e aceitando a dignidade superior dos pais, sua excelência preeminente em relação aos lhos e sua indiscutível autoridade sobre eles, recebida do próprio Deus através da mesma ordem natural. .

— Esta reverência e respeito se manifestam:

a) Com palavras. Não somente evitando os arrebatamentos de cólera, as arrogâncias verbais, as grosserias, as ameaças, as zombarias, as risadas, etc., que constituem um insulto à autoridade e à dignidade dos pais, e que um lho jamais tem o direito de se permitir, mas também manifestando com palavras cheias de carinho o respeito e a reverência que seus pais merecem. b) Com atitudes. Além dos sinais exteriores impostos pelos costumes do país, os lhos também devem dirigir-se a seus pais para pedirem conselho, sobretudo antes de uma decisão importante: vocação, relações pré-matrimoniais, etc., ainda que, no que se refere à escolha de estado, eles são inteiramente livres e não têm obrigação de seguir o critério de seus pais, como veremos ao falar da vocação dos lhos. “De todos os deveres dos Cardeal Gomá410

lhos”, escreve a este propósito o

Deus só quis registrar nas tábuas da lei a honra devida aos pais: “Honrarás a teu pai e a tua mãe” (Ex 20, 12). É um dever perpétuo, como o amor. Talvez não haja uma condição ou estado de vida cujos deveres tenham sido concretizados mais minuciosamente, nem justi cados com maior quantidade de argumentos na Divina Escritura, do que os deveres dos lhos quando se trata do respeito e da honra que devem a seus pais. No capítulo terceiro do Eclesiástico, registram-se até doze motivos para este dever lial. Ei-los aqui: — Não se salvam os lhos que não respeitam os pais.

— Deus constituiu os pais como seus representantes, e transferiu para eles seu pátrio poder. — O lho que honra seus pais tem nisto uma garantia do perdão de seus pecados e de que sua oração será ouvida. — Quem honra a seus pais é como aquele que acumula um tesouro. — O lho que honra a seus pais alegrar-se-á, por sua vez, em seus lhos. — Quem honra seus pais viverá longos anos. — A própria natureza nos inclina a esta honra, porque nos diz que os pais são como senhores de seus lhos. — É abençoado por Deus quem tributa a seus pais a devida honra. — A bênção do pai dá rmeza à casa dos lhos que souberam respeitá-lo; sua maldição os arruína. — A honra e a infâmia do pai são a honra ou a infâmia do lho. — Deus livra de toda tribulação os lhos que honram a seus pais. — É amaldiçoado por Deus e infame aquele que despreza seus pais (cf. Eclo 3, 2–18). Este sentido imprecatório contra os lhos que não honram a seus pais por vezes atinge, nos Livros Sagrados, os limites da execração e do anátema: “O olho daquele que despreza o pai e que falta ao respeito para com a mãe, arranquem-no o corvo da torrente e comam-no os lhotes da águia” (Pr 30, 17). “A quem maldiz seu pai e sua mãe, apagar-se-á a sua lâmpada no meio das trevas” (Pr 20, 20). O corvo é um animal atroz, lúgubre, voracíssimo; ele esvaziará as órbitas dos olhos dos maus lhos. Aqui, a lâmpada é o símbolo da felicidade próspera, da própria vida, da sucessão gloriosa; tudo irá perder o lho que, com gestos ou palavras, escarnecer de seus pais. Esta linguagem severa não deve espantar-nos. Os pais são os representantes de Deus para os lhos; por meio deles lhes veio a vida e, com ela, todos os demais bens. Os pais representam a autoridade e a força. Eles são mestres natos da verdade e do bem para seus descendentes. Por eles é exercida a Providência de Deus. Sob todos estes aspectos, os lhos, ainda que tão intimamente unidos a seus pais, estão separados deles por uma enorme distância, e só podem olhá-los com o profundo respeito com que se contemplam as coisas de Deus. Por isso, as faltas de respeito com os pais sempre foram consideradas como uma impiedade e uma espécie de sacrilégio. Além disso, o respeito aos pais tem alto valor social. Deus quis manifestar-se e como que projetar-se na família por meio dos pais, para que o homem aprendesse desde sua infância as lições de reverência, hierarquia, sujeição e ordem, sem as quais nem mesmo

se concebe a sociedade. Se Deus não tivesse feito da família a primeira escola de respeito, teria faltado à sociedade a única coisa capaz de sustentá-la, que é o nervo que liga o mundo moral a Deus. Deus é o vigor universal das coisas: a sociedade humana é o que é porque, através dos pais, impôs aos lhos as grandes idéias que são o suporte da vida social. Pais e lhos devem pensar neste valor social do respeito: os pais, para merecê-lo; os lhos, para não o infringir. A sociedade é uma família imensa, onde as diferentes autoridades não são mais que uma participação e como que um desenvolvimento da dignidade paterna; os súditos, os lhos da grande família, deverão inclinar-se perante a autoridade social. No dia em que a família não for mais a o cina do respeito, terá chegado a ruína da sociedade. Por isso, sem dúvida, Deus, que fez o homem naturalmente social, quis dar-lhe na família uma escola natural e íntima de respeito, e quis salvaguardá-la com preceitos e gravíssimas sanções. Hoje encontra-se em baixa este fortíssimo e delicadíssimo valor da família que chamamos de respeito. Falta para a maioria dos pais a gravidade, a dignidade, a posição; e os lhos crescem na mesma medida em que os pais decrescem, e daí se origina toda a irreverência. Os pais são os representantes de Deus porque Ele quis que o fossem; mas não sabem representá-lo, porque não crêem n’Ele ou não vivem d’Ele. E Deus é a suprema fonte de respeito. Talvez por isso estejam vacilando os fundamentos da sociedade. Toda a força repressiva que possa ser utilizada pela autoridade social para manter os cidadãos em seus deveres será sempre ine caz, senão contraproducente, quando falharem as lições de respeito que devem ser dadas e recebidas na família.

Insistindo na enorme desordem que hoje se percebe em muitas famílias, mesmo cristãs, por esta falta de respeito dos lhos, escreveu com grande acerto o Pe. Figar, há vários anos, as seguintes palavras que hoje seria preciso reproduzir corrigidas e ampliadas em proporções alarmantes:411 Esta grandeza (dos pais), comparável somente à grandeza de Deus, anda menosprezada e esquecida, ao ponto de quase se ter vergonha dela. Perdeu-se aquele apreço, aquela veneração e aquela respeitosa homenagem que teve em outros tempos e que deveria ter sido mantida sempre. A vulgaridade do tratamento veio acabar com as distâncias que existiram entre o pai e os lhos, e entre o pai e os demais homens, e que vieram a ser, não mais uma dignidade, mas uma ofensa. Preza-se hoje por uma camaradagem entre todos — camaradagem que se avaliou como uma virtude social, pela aproximação entre todas as classes e pela aproximação entre uns e outros —, uma democracia tão funesta para os de cima quanto prejudicial para os de baixo. O homem não pode romper aquilo que a natureza estabeleceu, e ela implantou a subordinação mais absoluta dos lhos aos pais. Esta subordinação não é uma escravidão — ainda que a paternidade abusasse dela —, mas uma homenagem de reconhecimento pelos bens recebidos [...]. Até os animais conhecem a necessidade desta subordinação e a ela se submetem de bom grado.

Infelizmente, porém, mudaram-se os costumes, e no lar o pai é um solene “camarada”. Seus direitos estão limitados pelas liberdades da prole. Aquele santo distanciamento entre eles já não existe mais. Desapareceu aquela posição reverente a partir da qual o pai dava suas ordens e delas irradiava uma suave autoridade de ordem interna e externa. Fragilizou-se aquele costume de os lhos virem receber o pai e dar-lhe as boasvindas, mesmo que sua ausência não tivesse sido longa, mas de algumas horas. Assim como, se se coloca as engrenagens de um relógio fora de seu lugar próprio, estorva-se o seu funcionamento regular e a indicação da hora, assim ocorre com a autoridade relaxada e aviltada, e com a subordinação negada... Cria-se nos lares tal desordem e confusão, que cada vontade anda por seu lado e capricho, sem coordenação nem união, preparando sua ruína de nitiva, que já se começa a notar. Os indivíduos de uma família já não são pais e irmãos, mas hóspedes que se toleram, e sofrem porque não podem mudar de domicílio e pousada. E o fariam com gosto e alegria, se estivesse ao seu alcance. É preciso voltar aos direitos da paternidade e exercê-la com todo o vigor necessário para manter a ordem natural. O lar é a cidade em miniatura; é seu modelo, como também sua origem. E se as águas saltam lamacentas do manancial, hão de correr ainda mais turvas com os detritos recolhidos em seu caminho.

3. Obediência 333. O terceiro grande dever dos lhos para com seus pais é o de uma perfeita obediência, dentro dos limites ditados pela razão natural iluminada pela fé. Por desgraça, a obediência que os lhos devem a seus pais atravessa em nossos dias uma gravíssima crise, como, em geral, a obediência dos súditos a qualquer autoridade legítima. O desmedido culto do próprio eu; a dignidade da pessoa humana, entendida por cada um à sua maneira; a liberdade incondicional que hoje se reclama para tudo e para todos, mesmo naquelas esferas em que não se pode ceder de modo algum, e outras causas semelhantes, têm produzido uma tremenda crise de obediência que afeta, em proporções alarmantes, a família, a sociedade civil e a própria Igreja. Urge dar remédio a este estado de coisas antes que a convivência humana entre seres racionais se transforme em uma

desordem parecida com a de uma verdadeira manada de feras incontroláveis. Como a obediência consiste por de nição em uma virtude moral que torna a vontade pronta para executar os preceitos do superior,412 vamos expor em primeiro lugar a necessidade imprescindível de uma autoridade familiar, na qual se conjuguem harmoniosamente a energia e o amor. ) 334. Procederemos de forma esquemática, dada a amplitude da matéria.413 1. Sem autoridade, a vida familiar é impossível. Os lhos devem obediência a seus pais. A este dever corresponde o direito de serem dirigidos para a verdade e o bem integral do corpo e da alma. 2. Mas apenas a autoridade não basta para inspirar con ança, nem para criar o ambiente de mútua estima que faz falta na família. É necessário o amor, que torna aceitáveis a autoridade e a obediência. Na prática, entretanto, surgem con itos. Por atender às exigências da autoridade, as relações podem causar atritos. Por seguir os ditames de um amor mal entendido, chega-se a perder o controle sobre os lhos. É preciso saber conjugar deveres e direitos, autoridade e amor, obediência e liberdade. i. Orientada para o bem a) Os pais devem dirigir seus lhos 1. De acordo, acima de tudo, com o m último de todo ser humano: a alegre fruição de Deus, conquistada pela virtude aqui na terra.

2. Atendendo a cada momento aos ns particulares e concretos do lho: a) Em geral, seu bem-estar biológico, psíquico e espiritual. b) Em particular, educando o lho no cultivo do que é nobre e belo. 3. Pela autoridade, os pais dirigem seus lhos: a) Estes têm a obrigação de obedecer-lhes, pois igualmente devem conseguir o m a que estão destinados. b) Tal obediência não pode ser absoluta, pois o superior máximo do lho não é o pai, mas Deus. Por isso os pais não podem exigir que seus lhos façam algo que possa ofender a Deus. Além disso, a obediência tem outras limitações, que examinaremos a seguir. b) A autoridade é necessária e imprescindível 1. Porque o lho não pode conhecer por si mesmo aquilo que lhe convém, sobretudo quando é criança ou adolescente. 2. Porque deve receber apoio externo para procurar o bem, mesmo quando sabe o que lhe convém. Não basta conhecer a virtude para ser virtuoso. 3. Porque sua ação particular deve ser focada no bem comum da família, que constitui o ambiente apto para superar o egoísmo. c) Mas não é absoluta nem perpétua 1. Está determinada em tudo pelo bem comum da família. a) Devem ser excluídos os caprichos, os posicionamentos instáveis e os aprio-

rismos, que procedem da incompreensão e geram timidez, impotência diante da vida, etc. b) Deve ser enérgica e clara, para que o que se apoiar.

lho sempre saiba em

c) Não pode ser igual para todos, pois cada um consegue seu m em diversidade de circunstâncias e de disposições interiores. d) Este bem comum familiar é ao mesmo tempo o bem próprio do lho. 2. Deve diminuir à medida que o lho cresce em conhecimento e em experiência: a) Porque se torna cada vez mais capaz de conhecer o que é bom para ele. b) Porque, por sua vez, o lho chegará a dispor de sua vida pessoal e, então, deverá contar consigo mesmo em ordem ao bem comum de uma nova família. Então, não haverá sentido em uma continuação da autoridade paterna. 3. Passa ordinariamente por períodos de crise: a) Quando o lho chega à puberdade, encontra-se com problemas que muito di cilmente poderá con ar a seus pais. Somente se encontrar neles o calor de um amor sincero e intenso, oportunamente manifestado, sentirá facilidade e alegria em abrirse. Voltaremos a este ponto importantíssimo. b) Nessas mesmas etapas da vida, o descontentamento e a insatisfação podem levar a romper com tudo o que está estabelecido. Contudo, o amor pode superar esse estado de ânimo, orientando-o para a atividade construtiva. ii. Comunicando o bem

a) O amor uni ca 1. Faz com que os pais vejam no lho um ser humano e um lho de Deus, com o qual devem compartilhar o bem moral e material. 2. Consegue do lho um movimento espontâneo de adesão a seus pais, que inclui a piedade e a mais na obediência. b) Mas existem muitos amores 1. Um amor instintivo está necessariamente na base das relações entre pais e lhos. Mas não basta: a) Porque é egoísta. Tende antes a aproveitar-se dos bens alheios em benefício próprio. b) Além disso, é muito limitado. Esgota-se em um círculo muito pequeno. 2. Um amor natural cultivado amplia os horizontes, mas tampouco é su ciente: a) Não perdoa facilmente os defeitos alheios, sempre presentes nas relações sociais, sobretudo em um âmbito tão reduzido como o da família. b) Não basta para superar a di culdade da obediência, porque examina tudo sob critérios puramente humanos. 3. Só o amor sobrenatural — caridade — pode criar o ambiente familiar perfeito: a) Pela caridade, os pais dão ordem a seus lhos e estes obedecem, porque uns e outros querem viver na amizade de Deus, em santidade. b) A autoridade em que se baseia não se apóia em gostos, inclinações ou ins-

tintos, mas na vontade divina, re etida em seus preceitos. c) A caridade “cobre uma multidão de pecados” (1Pd 4, 8), fazendo com que as limitações dos pais e as imperfeições dos lhos não sejam obstáculo para a paz familiar. Conclusão 1. Deve-se rejeitar a teoria que pede independência total para a criança. Na realidade, isto só iria prejudicá-la, pois de modo algum está preparada para decidir por si mesma. Com isso não se rejeita a aconselhável prática pedagógica de cultivar progressivamente o sentido de responsabilidade da criança desde bem cedo. 2. Autoridade e amor são dois aspectos necessários na vida familiar, mas o amor inclui e supera a autoridade. Os pais devem preferir ser antes amados que temidos. Autoridade e amor reunidos devem orientar o lho para que ele possa guiar-se cada vez mais por si mesmo em uma vida virtuosa. ) 335. Examinados, ainda que tão brevemente, o fundamento e as principais características da autoridade familiar, vejamos agora quais são as principais obrigações dos lhos, do ponto de vista da obediência que devem a seus pais. Para isso, ouçamos mais uma vez o insigne Cardeal Gomá ao expor com sua serenidade e seu habitual equilíbrio os fundamentos losó cos e teológicos da obediência dos lhos a seus pais:414 Outro dos deveres dos lhos para com seus pais é a obediência. Isto porque o lho não só é derivado dos pais, e por isso lhes deve amor e assistência; nem é somente seu subordinado, pelo fato da geração, devendo-lhes honra e respeito; mas, pelo simples fato de ser lho, é dependente deles, e por este título deve obedecer-lhes. Notemos, antes de tudo, que os deveres da obediência não pesam sobre os lhos com o mesmo caráter e duração que os demais. O amor, a gratidão com afeto e com obras, e o

respeito obrigam os lhos em caráter perpétuo, porque são deveres que nascem da própria natureza da paternidade e da liação. Seja qual for a condição e a idade dos lhos, serão sempre nascidos de seus pais e a eles subordinados pelo fato indestrutível da geração. Mas só serão dependentes e submissos a seus pais em razão da debilidade em que nasceram e que os liga a eles por esta lei universal, segundo a qual todos os seres devem buscar sua perfeição. Quando a perfeição foi atingida, vem naturalmente a emancipação. O lho deve ser obediente porque não nasce nem pode nascer emancipado. Esta a rmação poderia parecer uma simploriedade, mas contém uma verdade que é o ponto cardeal dos direitos dos pais sobre os lhos na ordem da educação e do regime doméstico, e dos correlativos deveres dos lhos neste particular. O lho nasce débil de corpo e alma, e nasce em um lar; são os dois pontos em que se fundamentam seus deveres de obediência. Por nascer débil e não-educado, deve submeter-se às leis de uma rígida disciplina; e esta é inútil sem a obediência. Por nascer no interior do lar de seus pais, e estes terem nele, por direito natural, jurisdição e poder de regime, na forma indicada em outro lugar, o lho, mesmo na hipótese de uma formação completa, é obrigado, enquanto formar parte da família, a sujeitar-se ao regime dos pais e a obedecer-lhes. Aqui já se manifesta a diferença entre o dever da obediência e os demais deveres. Enquanto estes pesam sobre o lho de maneira perpétua e obrigam sempre com igual intensidade, já o da obediência não. O lho ca isento dela pela emancipação, entendendo-se como emancipado, em ordem ao direito natural — sem considerar a emancipação legal, cujas condições podem variar conforme as nações e as épocas —, quando ele chegou à plenitude de sua formação e deixou de fazer parte do lar paterno. Quando se veri carem estas duas condições, estarão desfeitos os vínculos da obediência que os lhos devem aos pais. Outra característica do dever de obediência, que o distingue dos demais deveres: este não só cessa com o tempo, mas também não obriga com a mesma intensidade. À medida que o lho se forma pelo trabalho educativo dos pais, vai conquistando progressivamente os direitos à liberdade. A passagem da obediência para a liberdade não é brusca como por um salto. Assim como o artista arranca paulatinamente a estátua do mármore, até lhe dar, por assim dizer, uma personalidade autônoma, assim também, no esforço combinado da autoridade dos pais e da obediência dos lhos, estes chegam à posse de sua liberdade. Esta é a lei que preside ao desenvolvimento e à perfeição de todos os seres.

Isto, no campo simples e claro dos princípios. Na realidade da vida e nos múltiplos casos que ela oferece, é bem difícil indicar os limites entre a autoridade dos pais e a obediência dos lhos. Nos códigos das diferentes nações, a questão da emancipação dos lhos resolve-se de maneiras distintas. Mais variados ainda são os

procedimentos de pedagogia doméstica, alguns deles inclinandose, decididamente, em favor da autoridade dos pais, e outros afrouxando as rédeas para os lhos. Na sociedade doméstica, como em toda sociedade, a razão e a lei cristã condenam igualmente os abusos da autoridade e os da liberdade. A Escritura tem palavras terríveis contra os lhos que negam a seus pais a devida obediência; como também reprova aquela autoridade dos pais que pode exacerbar a ira dos lhos ou deixá-los com o ânimo debilitado. O bom senso dos pais e a sujeição racional dos lhos deverão conjugar-se de tal forma que não seja comprometida a obra educadora por falta ou por excesso de autoridade de uns ou de liberdade dos outros. Ressalvados estes princípios, que regulam as relações de dependência dos lhos em relação a seus pais na ordem ontológica, nunca, e ainda menos hoje — quando por toda parte sopram ventos de liberdade, e toda autoridade renunciou covardemente a seus poderes —, se exortará bastante aos lhos o cumprimento de seus deveres de sujeição a seus pais. Os motivos são graves e numerosos. Ei-los aqui: Os lhos são dos pais: são uma posse magní ca que a generosidade de Deus lhes concedeu. Quando Eva deu à luz seu primeiro lho, Caim, ela exclamou: “Adquiri um homem por Deus” (Gn 4, 1). “Caim” equivale a “posse” ou pertença. O domínio que os pais têm sobre seus lhos não é um senhorio: Deus reservou para si estes direitos fundamentais. Mas os pais são as causas segundas de que Deus se valeu para dar a vida aos lhos, e os constituiu plenipotenciários de Deus em ordem à sua formação. Como poderiam os pais fazer homens perfeitos segundo Deus se os lhos pudessem subtrair-se à autoridade de seus pais, representantes de Deus? E mais: o lho não pode cuidar de si mesmo quando vem ao mundo. Não pode valer-se de sua razão, vazia de verdade e vacilante; nem de sua vontade, à qual falta uma orientação; nem de seu próprio corpo, sujeito a todo tipo de indigências. Por tudo isso, o lho deve inserir-se em uma força de ordem física, intelectual e moral; enxertar-se no velho tronco da humanidade para chegar a ser homem. Acaso ele se enxertará em uma família alheia, ou talvez diretamente na árvore social? Mas, então, como se poderia tomar à força dos pais a sua legítima posse? E com que autoridade, a não ser a deles, se poderia sujeitar a liberdade dos lhos? Onde encontrariam os lhos a suavidade do amor, absolutamente necessária para tocar, sem os destruir, os recursos morais de sua terna existência? Além disso, o pai e também a mãe — ressalvados os direitos de regime do pai, porque na questão do poder pátrio os códigos modernos são injustos ao negá-lo à mãe

enquanto vive o pai — são os chefes natos da família e do lar onde o lho vê a primeira luz. O lho nasce, digamos assim, em território submetido à jurisdição dos pais. Por que os lhos não deveriam submeter-se ao poder dos pais, administrativo, judicial, coercitivo, como deve ser todo poder pleno, dentro do círculo de suas atribuições? E se a família é a semente da sociedade e a escola das virtudes sociais, onde, a não ser em família, a liberdade do lho deverá submeter-se à força da autoridade para aprender a obedecer e, um dia, oferecer à sociedade o dom de uma vida disciplinada, única forma das vidas úteis? E quem, na família, poderá disciplinar a vida do futuro cidadão, a não ser os pais, com a força suave e tremenda de sua autoridade? Por isso é que Deus quis, com preceitos gravíssimos, sustentar a autoridade dos pais diante dos lhos e dobrar diante dela a liberdade dos lhos: “Ouvi, lhos, os preceitos do pai, e colocai-os em prática, para que sejais salvos” (Eclo 3, 1–2). Se a salvação do lho depende dos mandamentos do pai, gravíssima será a obrigação moral de obedecer-lhe. “Quem teme a Deus honra seus pais e serve, como a seus senhores, aqueles que o geraram” (Eclo 3, 8); isto é, a melhor maneira de honrar os pais é, não só oferecendolhes os sinais exteriores de respeito, mas dobrando sua vontade a seus preceitos, “como a senhores” (“como a deuses”, traduz um intérprete), porque neles Deus está representado, e resplandece o domínio de Deus.

Insistindo na enorme crise de obediência que hoje se observa em toda parte, sobretudo no seio do lar, já escrevia com acerto, há anos, o Pe. Figar:415 A obediência deve renunciar a seu próprio julgamento. Não seria uma virtude se assim não fosse. O que agora se inocula não é assim, nem renuncia à sua vontade. Sabemos de onde vem essa rebeldia que se nota nas crianças e nos maiores, e que constitui uma ofensa diária aos pais. Os lhos rebeldes arrazoam intensamente, contestam com desprezo e se opõem a tudo quanto lhes é ordenado com uma orgulhosa obstinação, como se seu próprio juízo tivesse de prevalecer. Os lhos estão sempre armados contra os preceitos de seus pais. Como agora se diz, eles têm a vida organizada em seus ombros, e essa organização há de prevalecer tão logo se quebrem todos os preceitos. As atitudes são muitas e tão variadas que já não se podem contar. Às vezes, utilizam o mutismo, um mutismo desesperador para quem lhes dá ordens, fechando-se em si mesmos, não havendo nenhum modo de entrar em conversa com eles. Esse mutismo forma ao mesmo tempo duas classes de lhos: os de corpo mole e os lentos. O de corpo mole caminha a reboque, opõe contra a ordem um desleixo calculado, e não anda por seu próprio impulso, ou pelo movimento determinado pela ordem, mas se deixa arrastar, resistindo o quanto pode. O lento faz as coisas com tal lentidão, com uma preguiça tão acomodada, que o próprio tempo se chateia entre suas mãos, e os trabalhos cam sempre, ou por acabar, ou mal-acabados. Outras vezes, é o descaramento, pois já são muitos os que olham para seus pais e, sem pestanejar, os contestam cruelmente, com palavras impróprias e torpes, com a voz alterada e ríspida, negando-se em absoluto e protestando ou adiando a ordem para a

hora e o tempo que lhes pareça bem, sem se importarem com a tristeza e o desgosto que ocasionam. Já lhes voltaram as costas e não se importam mais. Outros vão mais longe. Chegam à ofensa manifesta, encarando-os para apontar suas fraquezas, seus defeitos e erros, com voz grossa, desa adores, justi cando sua própria conduta pela conduta dos pais, e tornando-se donos da verdade com um escandaloso alarde. Alguns zombam com a palavra e os gestos, considerando como tolices certas ordens, em particular as que se referem às roupas e aos amores, como se pudessem variar, em cada tempo e em cada época, os preceitos da moral e a santidade dos costumes. Não aceitam nem podem aceitar que se neguem a seus caprichos, ou vigiem sua honestidade, ou coloquem limites para suas libertinagens... E que diremos daquele outro grande pecado que se tornou natural em nossa sociedade, pois cada dia se repete mais, de os lhos agredirem seus pais? Aos olhos dos crentes é um ato repugnante; aos olhos da consciência é um ato horroroso, e aos olhos de Deus é um ato que não pode car sem castigo. A própria sociedade que presencie ou vem a conhecer semelhante ato, apesar de seu reduzido escrúpulo em matérias morais, se sente como acovardada e encolhida em presença de semelhantes acontecimentos. Guardemos silêncio, é melhor, pois não conseguimos conceber que isto possa acontecer...

) 336. Entretanto, a obediência que os lhos devem a seus pais não é incondicional e absoluta, mas tem suas legítimas limitações. Além das já apontadas mais acima, eis aqui uma lista resumida das principais limitações da obediência devida aos pais.416 1. Para as ordens ilegítimas: Os pais não têm jurisdição nem autoridade alguma sobre a moral cristã e, em conseqüência, os lhos devem negar-se a obedecer quando lhes ordenem alguma coisa contrária a ela: roubar, vingar-se, freqüentar más companhias... “Pois é preciso obedecer antes a Deus que aos homens” (cf. At 4, 19). 2. Para as ordens legítimas: A autoridade dos pais não é absoluta nem universal: limita-se ao governo da família e à educação dos lhos. Neste ponto, os lhos têm a obrigação de obedecer: a) Às decisões dos pais referentes à administração da casa e dos assuntos domésticos.

b) Aos conselhos ou ordens que dizem respeito à salvação eterna ou a seu futuro humano: serem éis às práticas de religião, freqüência à escola, fuga das ocasiões perigosas, etc. 3. Quanto à duração: a) Se o amor e o respeito devido aos pais devem continuar ao longo de toda a existência, não se pode dizer que os lhos também tenham a obrigação de obedecer aos pais enquanto estes forem vivos. b) A autoridade paterna cessa, e com ela o dever de estrita obediência, quando o lho já adulto (maioridade, matrimônio) adquiriu assim a plena responsabilidade de seus atos. c) Entretanto, enquanto o lho maior de idade permanecer sob o teto paterno, está obrigado a continuar obedecendo, pelo menos nas coisas relacionadas ao regime de vida da família: horário das refeições, de recolher-se... 4. Quanto à escolha de seu estado de vida: a) Não estão obrigados a obedecer a seus pais, embora devam pedir seus conselhos e seu parecer. Razão: 1º — Porque nas coisas ligadas à conservação do indivíduo e da espécie, todos os seres humanos são iguais, não existindo superior nem inferior. 2º — Porque a vocação a um estado particular (matrimônio, sacerdócio, celibato) é um ato da Providência que transcende a autoridade dos pais. b) O lho que deseja ingressar na vida religiosa ou abraçar o estado sacerdotal pode fazê-lo livremente, mesmo contra a

vontade de seus pais. Excetuam-se: 1º — Aqueles que, por sua ausência, deixariam seus pais em grave necessidade, da qual só poderiam sair com o trabalho e o cuidado do lho. 2º — Não são su cientes as razões puramente sentimentais de carinho, idade avançada... “Quem ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim, não é digno de mim” (Mt 10, 37).

4. Ajuda material aos pais 337. Este é outro importante dever dos lhos para com seus pais, que vamos examinar com a atenção que merece. Como já escrevemos em outro local,417 pode ocorrer que assim como nos anos de sua infância os lhos não podem sustentar-se por si mesmos sem a ajuda de seus pais, nos dias de sua velhice os pais não possam sustentar-se por conta própria sem a ajuda dos lhos. Nestes casos, é muito justo e razoável que os lhos — inclusive os casados ou emancipados — socorram seus pais em tudo que seja preciso. O dever de cuidar dos pais nestes casos obriga gravemente os lhos, não só por piedade e caridade, mas por uma exigência indeclinável da própria lei natural. A Sagrada Escritura ordena de maneira emocionante este dever de cuidar dos pais idosos: Filho, acolhe a teu pai em sua velhice e não lhe dês tristezas em sua vida. Se ele chega a perder a razão, mostra-te indulgente com ele e não o afrontes por estares na plenitude de tua força, pois a piedade com o pai não será deixada no esquecimento. E, em vez do castigo pelos pecados, terás prosperidade.

No dia da tribulação, o Senhor se lembrará de ti, e tal como se derrete o gelo no dia temperado, assim os teus pecados se derreterão. Aquele que abandona seu pai é como um blasfemador, e será maldito pelo Senhor quem irrita sua mãe (Eclo 3, 14–18).

Este dever natural é de tal grandeza e gravidade, que o lho ou a lha deveriam suspender temporariamente sua própria entrada na vida religiosa se seus serviços ou trabalhos fossem o único meio possível de atender a seus pais necessitados. Santo Tomás explica este ponto com sua habitual lucidez, distinguindo entre a conduta do lho ou da lha antes e depois de seu ingresso na vida religiosa. Eis as suas palavras:418 Temos de fazer distinção entre dois casos: o daquele que ainda está no século e o de quem já professou na religião. Aquele que ainda está no século, se seus pais necessitam de sua ajuda para viver, não deve abandoná-los e entrar na vida religiosa, pois iria romper com o preceito de honrar os pais. Há quem diga que, mesmo neste caso, poderia licitamente abandonar seus pais, entregando a Deus o seu cuidado. Mas quem re etir atentamente verá que isto seria tentar a Deus, pois, tendo os meios humanos para socorrê-los, deixa-os expostos a um evidente perigo, com a esperança do auxílio divino. Se, ao contrário, seus pais podem viver sem sua assistência, então é lícito para ele abandoná-los para entrar na religião. Pois os lhos não estão obrigados a sustentar os pais, a não ser em caso de necessidade, como já foi dito. Aquele que já professou na vida religiosa se considera como morto para o mundo. Portanto, para sustentar os pais ele não deve abandonar o claustro, no qual está sepultado com Cristo, e misturar-se de novo com os assuntos da vida secular. Contudo, está obrigado — sempre ressalvada a obediência ao superior e sua condição de religioso — a se esforçar piedosamente para encontrar um meio pelo qual seus pais sejam socorridos.

A razão da ajuda material que os lhos devem prestar a seus pais é exposta por Santo Tomás em outro local, com as seguintes palavras:419 De duas maneiras se deve algo aos pais: direta ou indiretamente. Em si, ou diretamente, deve-se aos pais aquilo que lhes corresponde como tais, ou seja, reverência e submissão, como superiores que eles são e, de algum modo, princípios do lho. Indiretamente, ou em determinadas circunstâncias, deve-se aos pais o que lhes cabe por algum motivo extrínseco. Assim, por exemplo, se estão enfermos, deve-se visitá-los e procurar que recuperem a saúde; se são pobres, deve-se sustentá-los; e na mesma linha lhes são

devidas outras coisas incluídas no dever de submissão ou de serviço. Por isso diz Túlio que a piedade (para com os pais) exige serviço e respeito, entendido por serviço todo tipo de cuidados, e por respeito a honra ou reverência, pois — como diz Santo Agostinho — respeitamos ou cultivamos os homens honrando-os, lembrando ou convivendo com eles.

Insistindo neste gravíssimo dever dos lhos de cuidar materialmente de seus pais quando necessitem de sua ajuda, escreve o Cardeal Gomá:420 “Como poderia o lho não se dedicar completamente ao pai se o exige um dever elementar de reciprocidade?”. “Sustenta-os assim como eles te sustentaram”, diz o Sábio. A honra que lhes deves — diz Santo Ambrósio — não é somente de respeito, mas de generosidade. Alimenta teu pai, alimenta tua mãe. Ainda que dês tudo de si à tua mãe, não lhe pagarás as dores e tormentos que ela padeceu por ti, nem o alimento que com terníssima piedade ela te doou, dirigindo seus peitos para teus lábios; nem lhe pagarás a fome que suportou por ti, deixando de comer o que poderia prejudicar o leite que ela te reservava; por ti ela sofreu vigílias, por ti ela chorou; e tu poderias vê-la em necessidade? Ó lho, que terrível juízo enfrentas se não cuidas de teus pais! Pensa que deves o que tens a quem deves o que és.

CAPÍTULO IV | A vocação dos filhos 338. Por sua excepcional importância no seio da família cristã, examinaremos em separado, embora com a brevidade a que somos obrigados pelo marco geral de nossa obra, o grave problema da vocação dos lhos, que deve ser cuidadosamente respeitada pelos pais e por todo o restante da família. O plano que seguiremos neste capítulo é o seguinte: depois de apontar o verdadeiro sentido e alcance da palavra vocação, examinaremos uma a uma as diferentes “vocações” que podem afetar os lhos e o papel que corresponde aos pais em relação a elas, obedecendo ao seguinte esquema:

1. A vocação ao matrimônio. 2. A vocação sacerdotal ou religiosa. 3. A consagração a Deus no mundo. 4. Uma palavra para as solteiras. 5. Papel dos pais na vocação de seus lhos. 339. Em primeiro lugar, especi quemos o verdadeiro sentido e alcance da palavra vocação. a) Etimologicamente, ela provém da palavra latina vocatio, um deverbal derivado do verbo vocare, que signi ca “chamado” ou “ato de chamar”. Todo aquele que é chamado para alguma coisa, diz-se dele que tem vocação para ela. b) Do ponto de vista teológico, entende-se por vocação o chamado que Deus faz a cada homem em particular para um estado ou modo de vida, segundo os planos de sua Divina Providência. O chamado de Deus para determinado estado de vida é algo que não pode ser discutido por ninguém que saiba que a Divina Providência se estende absolutamente a todas as coisas, por mínimas e insigni cantes que sejam.421 O Evangelho nos assegura que Deus alimenta as aves do céu, que não semeiam nem ceifam, e veste as ores do campo com um esplendor que Salomão não pôde atingir em toda a sua glória (cf. Mt 6, 26–30). Ele tem contados até os cabelos de nossa cabeça (Mt 10, 30), e nem um só deles se perderá sem seu expresso consentimento (cf. Lc 21, 18). Como, pois, Deus iria ignorar um assunto de importância tão grave e capital como o estado de vida com que Ele quer que o sirvamos neste mundo para merecer com Ele a vida eterna? Vamos, pois,

examinar uma a uma as diferentes “vocações” que afetam os diversos estados de vida que o homem pode adotar neste mundo. Dentro de cada um desses estados cabem atividades muito variadas (por exemplo, dentro do estado matrimonial se pode ser médico, advogado, engenheiro, empregado, guarda-civil, etc.); mas não nos interessam aqui estas diferentes atividades ou pro ssões. Vamos ocupar-nos somente do estado ou modo de vida que caracteriza toda a existência humana de determinada pessoa.

Artigo 1 — A vocação ao matrimônio 340. Ainda que, como veremos, de acordo com a doutrina o cial da Igreja, a vocação ao matrimônio não seja a mais excelente de todas — acima dela estão as outras três — é, contudo, e de longe, a mais freqüente e numerosa de todas elas. Na imensa maioria das famílias não se dá nenhuma outra. Por isso vamos examiná-la amplamente e em primeiro lugar. Antes de tudo, temos de a rmar, sem a menor dúvida, que existe e se dá por parte do próprio Deus uma verdadeira vocação (= chamado) ao matrimônio, tal como para a vida sacerdotal ou religiosa ou para o estado de virgindade voluntária no mundo. Tu ris porque te digo que tens “vocação matrimonial”? Pois a tens: é uma vocação.422

Esta “vocação” ou chamado de Deus para o matrimônio afeta a imensa maioria das pessoas. São pouquíssimas — proporcionalmente — aquelas que são objeto de uma vocação divina para outro estado de vida, diferente do matrimônio.

Esta “vocação” ao matrimônio se manifesta ordinariamente — como nas demais vocações — por certa inclinação ou tendência física e psicológica para esse determinado estado, que nos leva a ver, com maior ou menor clareza, que seja este o nosso caminho, ou seja, a senda que temos de seguir para servir a Deus em nossa peregrinação terrena até a pátria eterna. A imensa maioria dos homens, contudo, nem sequer considera o problema divino de sua vocação — ou seja, aquilo que Deus quer deles nesta vida —, decidindo-se pelo matrimônio pelo simples impulso de suas paixões ou pela atração física que experimentam por determinada pessoa, com a qual se dispõem a compartilhar sua vida. Esta é uma das razões mais poderosas que explicam tantos e tantos matrimônios infelizes e desgraçados como há no mundo: a irre exão estouvada e passional com que se lançaram à aventura, sem o mínimo controle da razão e da fé. Examinemos, pois, serenamente, os principais problemas que os jovens devem considerar e resolver à luz da razão e da fé, em torno de sua provável vocação matrimonial: 1. Averiguar se verdadeiramente a possuem. 2. A escolha da pessoa com quem vão unir-se para sempre. 3. As relações pré-matrimoniais. O desenvolvimento amplo e exaustivo destes três problemas ocuparia um livro inteiro, tão extenso como o conjunto de toda a nossa obra. Temos de nos limitar forçosamente a algumas breves e simples indicações. 1. Averiguar se existe verdadeira vocação matrimonial 341. Um ilustre autor contemporâneo escreveu, em uma obra excelente, as seguintes páginas, que temos o prazer de transcrever aqui:423

Aquele que aspira a formar um lar deve começar fazendo-se esta pergunta: Deus me chama ao matrimônio? Porque o matrimônio é vocação, isto é, chamado: é isso o que signi ca vocação. Deus chama ao matrimônio porque tem o direito de chamar. Deus é dono absoluto do homem porque o criou, trouxe-o à existência e o está conservando nela; está como que criando-o continuamente. Deus, dono do homem, proprietário do homem, pode dispor dele, e de fato dispõe. A todos os homens ele assinala uma meta que devem alcançar: a salvação da alma, a felicidade eterna; e traça-lhes o caminho que devem seguir para chegar ao objetivo: seu serviço, seus mandamentos. Esta é a vocação geral que Deus faz a todos os homens. Mas a cada um Ele dá um destino particular, uma missão especial a ser desempenhada neste mundo, e um grau de glória, prêmio correspondente à delidade com que o homem desempenhe na terra o destino assinalado por Deus. É a vocação particular. Deus deu um mandato geral aos homens: crescei e multiplicai-vos, e enchei a terra. É um mandato ordenado à conservação da espécie humana, e obriga à espécie, à multidão; não é um mandato ordenado à conservação do indivíduo; por isso ele não obriga a todo homem em particular. O mandato de Deus é cumprido, e a maioria dos homens se casa. A prova de que Ele não obriga a todos os homens é que Jesus Cristo, puri cador e digni cador do matrimônio, propõe um gênero de vida mais perfeito: a virgindade. Por isso cada um dos homens deve interrogar-se: Em que estado Deus me que- rerá? Qual será a minha vocação? É transcendental acertar a vocação de Deus e segui-la. E isto é para tua sorte eterna. É verdade que Deus não te impõe um preceito grave de seguir a vocação particular. Mesmo que a conhecesses claramente e não a seguisses, não cometerias um pecado mortal. Deus não te ordena com a ameaça do castigo eterno, contenta-se em manifestar a ti o Seu desejo, como ao jovem rico do Evangelho: Si vis... se queres. Porém, embora Deus não te ordene, não deduzas que seguir ou não a vocação divina careça de importância. Se não a segues, certamente não te sentarás no trono de glória que tinha preparado no céu para ti. É

É impossível: Ele o tinha preparado nos coros dos virgens, e não foste virgem; no grupo dos casados, e não foste casado. Certamente não conseguirás o grau de santidade que Deus esperava de ti; conseqüentemente, o grau de glória com que te teria premiado. Grande perda é esta, mas não é a única. Se és in el à vocação de Deus, te salvarás? Conseguirás entrar no céu, embora não ocupes o trono de glória que Deus teria desejado para ti? Podes temer com boa razão. Todos os estados de vida têm graves deveres que o homem deve cumprir se quiser alcançar a salvação eterna. O cumprimento desses deveres é custoso; exige-se muita graça de Deus para ser el a eles. Quando o homem escolheu o estado de vida que Deus desejava, tem o direito de exigir a Deus essa ajuda. — Senhor, tu me disseste para ir por este caminho. Nele eu encontro di culdades. Tu, que me manifestaste tua vontade, tens de dar-me a graça para cumpri-la. E Deus lhe dará essa ajuda, ainda que seja extraordinária. Porém, se o homem se dedicou a seguir outro caminho diferente daquele que Deus lhe apontava, encontrará as di culdades anexas aos deveres desse estado; e multiplicadas, porque Deus não o tinha feito para isso. Ele necessita de mais ajuda de Deus. E ele a terá? Deus é misericordioso, mas o homem não poderá alegar direitos para exigi-la, pois lhe responderá: — Eu te aconselhei a ires por esse caminho? E pressupondo isto, é preciso perguntar: o homem se salvará? Pode ser que sim, mas o perigo existe — e grande. Aquele que não é el à vocação de Deus, mesmo na terra, se expõe a ser um fracassado. Quando Deus assinala para uma pessoa um destino especial, dá-lhe qualidades de que precisa para desempenhá-lo com perfeição. Tem de ser assim: quem quer o m tem de obter os meios para consegui-lo. Se Deus te quer casado, dar-te-á as qualidades de que necessitas para ser um casado perfeito. Se não te quer nesse estado, não tem obrigação de dá-las a ti; provavelmente não as terás e serás um infeliz.

Quando um osso está deslocado, sente-se dor e mal-estar até que o osso volte a seu lugar. Um homem que não segue a vocação de Deus não está no lugar que lhe corresponde; sentirá di culdades e sofrimentos por toda a vida. Não será feliz. A felicidade é efeito da ordem. Onde há desordem não pode haver felicidade. A ordem consiste em estar cada coisa em seu lugar, e o in el à vocação de Deus está ocupando um lugar que não lhe corresponde. Por isso não pode ser feliz. O industrial se queixa de que seus negócios vão mal, e o pro ssional de não ter clientela, e talvez renegue a Deus por não o ajudar. E seria preciso perguntar-lhe: Sabes se era este o lugar que Deus tinha reservado para ti na sociedade? Ora, se não quiseste fazer a vontade de Deus, por que te queixas dele? A mesma re exão pode ser feita com a mulher e o homem casados que reclamam de sua sorte: Deus te queria como casado? Queria que te casasses com esta pessoa? Não lances a Deus a culpa de tua infelicidade; a culpa é tua. A convicção de que o matrimônio é uma vocação de Deus, e que ela está sendo cumprida, infunde ânimo para assumir os deveres que ele impõe, pois o homem sabe que a ajuda de Deus está sempre à sua disposição e tem o consolo de que está se santi cando. Ao contrário, a convicção ou a dúvida de que Ele não o queria ali é uma fonte de malestar; é quebrar as asas da alma, um eterno pesadelo que rouba a paz interior e, por conseguinte, a felicidade. A própria sociedade sofre quando os cidadãos que a compõem estão fora de seu centro. A sociedade é como uma imensa máquina, e cada homem é uma peça dessa máquina. Para que ela funcione normalmente, sem atritos nem tropeços, é necessário que todas as peças estejam no lugar que lhes corresponde. Se alguma delas está fora de lugar, a máquina trabalha com di culdade. Se são muitas as peças descentradas, a máquina pára. Por que se percebem tantas de ciências na vida da sociedade? Porque dentro dela há muitos homens que ocupam postos que não eram para eles; porque não possuem aptidões. São peças fora do eixo. Por ter tal importância temporal e eterna seguir a vocação de Deus, os jovens sensatos estão preocupados em conhecê-la. Medem o alcance que tem o acertar ou não neste assunto.

Sabem o que é salvar a alma. Adivinham o que é ter um grau de glória eternamente. Sabem que o matrimônio é para santi car-se, e que não o conseguirão se Deus não quiser que vivam nele. Buscam no matrimônio a felicidade, e sabem que não a encontrarão se Deus lhes reservar outro destino. Prevêem o que signi ca viver desencaixados, fracassar nos negócios; e temem o que lhes sucederá se não atinarem com o lugar que Deus pre xou para eles. Mas são poucos os jovens que sentem essa inquietação. A maioria se lança às cegas ao matrimônio. Se lhes perguntais por que não pensam em sua vocação, irão dar-vos as respostas que se ouvem de pessoas irre exivas e inconscientes, mesmo que se chamem cristãs: — Todos os estados são bons. Em todos eles se pode servir a Deus. É verdade que todos os estados são bons, considerados em si mesmos, porque todos foram instituídos por Deus; mas nem todos os estados são bons para todas as pessoas. Para cada um, é bom aquele que Deus lhe tem preparado, e os demais não são bons. É verdade que em todos os estados se pode servir a Deus; mas tu não podes servir a Deus, como Ele quer que o sirvas, em todos eles. Irás servi-lo bem naquele estado para o qual te fez e no qual Ele quer que vivas. São muitos os jovens — e ainda mais as jovens — que se lançam de cabeça no matrimônio sem re etir por que motivo se casam. Se fôssemos perguntar a muitas garotas, e elas respondessem com sinceridade, iriam dizer-nos: — Eu me caso porque as outras se casam; e eu não vou ser diferente. — Caso-me porque as solteironas me dão horror. Passam pelo ridículo, e eu não posso agüentar isso. — Caso-me porque estou farta de viver sujeita a meus pais, e, casando-me, terei liberdade e serei dona de mim mesma. — Eu me caso porque me entusiasma andar de braços dados com um marido bonito, para que as outras me admirem e invejem. Eu me casei, e elas não. — Caso-me porque tenho vontade de me divertir e, acompanhada do marido, poderei entrar em qualquer lugar, olhar tudo e desfrutar de tudo. — Caso-me porque desde muito pequena meus pais me repetiram que tenho de casarme, e me apeguei a esta idéia. — Eu me caso porque um rapaz veio ao meu encontro, e não vou desperdiçá-lo.

Como as outras o procuram! — Caso-me porque não encontro carinho em casa, co abandonada. Querem a todos os meus irmãos mais que a mim, e eu procuro quem me queira. — Caso-me — não faltará quem o diga — porque o dia do casamento é ideal: vestida de branco, a marcha nupcial, avançar devagarinho, bem devagar, enquanto todos te olham e comentam... e depois as fotogra as... e os jornais que falam de ti: a encantadora, a simpática, a belíssima senhorita... e isso em letras de imprensa para que todos leiam e vejam o retrato... e depois a viagem de núpcias... o avião... Baleares, Canárias... e o lme em cores... Isto é maravilhoso, muito estupendo. É por isso que me caso. Essas e muitas outras respostas, algumas bem estranhas, irão dar-vos as jovens... e os jovens. E nessas respostas falta a única razão poderosa, aquela que nunca deve faltar: — Eu me caso porque Deus o quer; porque esta é a minha vocação. É necessário que te detenhas a pensar seriamente em qual é a tua vocação. Escolher um estado é necessário e é difícil, porque existe um obstáculo muito grande que nos impede de formular os julgamentos com sinceridade: as paixões. Quando estão vivas, as paixões obrigam a inteligência a dizer aquilo que lhes agrada. São lentes que apresentam os objetos com a cor que elas têm. Como é diferente a maneira como julgamos uma pessoa quando sentimos por ela o carinho da amizade ou a aversão da antipatia! Balmes tem um capítulo maravilhoso em El criterio, onde ele descreve a in uência do coração sobre a inteligência. Todos deveriam conhecê-lo.424 E na escolha do estado e da consorte estão em jogo muitas paixões que di cultam o acerto: a ambição, a cobiça, e sobretudo o amor. Por ser transcendental, é difícil fazer uma escolha acertada. Santo Inácio de Loyola, homem prático e prudente, e acima de tudo santo, orienta toda a engrenagem de seus Exercícios espirituais para resolver com acerto este problema: a escolha de estado. Para isso ele vai conduzindo a alma por diferentes estados afetivos até conseguir afastar dela, ao menos por um pouco de tempo, toda in uência passional; para que nesses momentos de lucidez, em que resplandece sem nuvens o sol da verdade, ela veja claramente a vontade divina. E que seja este o primeiro conselho para os jovens que buscam retamente por sua vocação: retirar-se para praticar na solidão os exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola. O retiro dos exercícios lhes ensinará diferentes modos de fazer uma escolha sadia e reta; mas esses modos devem ser empregados com a disposição de espírito que se consegue ao praticar os exercícios.

Examina com sinceridade se Deus te deu as qualidades necessárias para alcançar os ns e cumprir com os deveres próprios de cada estado. Se te falta alguma disposição essencial, convence-te de que Deus não te chama para isso, pois estava nas mãos dele concedê-la a ti, devia concedê-la, e não a concedeu. Consulta pessoas competentes que conheçam bem as condições de cada estado e que te conheçam interiormente. Sim, interiormente, porque há coisas muito íntimas das quais nem os próprios pais suspeitam, e elas podem ser um impedimento insuperável para um determinado estado, e o evidente sinal da vontade de Deus para outro. Não te guies unicamente pelo gosto ou desgosto, pois é possível uma repugnância natural por um gênero de vida que Deus quer para ti. Ele não quis a Paixão para seu Divino Filho? Mas tampouco deixes de escutar a voz de tua natureza, que, quando não há desordem, é um eco da voz divina, porque foi Deus quem fez a natureza com suas boas tendências e aspirações. Moça, sentes uma força que te arrasta para o lar, uma inclinação que reclama imperiosamente a maternidade; consideras-te feliz ao pensar em lhos que te abraçam e te beijam e te chamam de mãe; experimentas uma grande satisfação quando acreditas que farás felizes ao teu esposo e aos teus lhos, mesmo à custa do próprio sacrifício? Sentes isto? É Deus quem te aponta a trilha que deves seguir. Começa a caminhar por ela. No nal encontrarás o lar feliz que Deus preparou para ti. Algo semelhante pode escutar o jovem no fundo de sua natureza. Trata, pois, de conhecer a vontade de Deus, pede-lhe com insistência que te ilumine, pois Ele é a fonte da luz; e mesmo que não empregue contigo meios extraordinários para te mostrar o caminho, como fez com algumas pessoas, Ele pode esclarecer a visão de tua alma para que o descubras sem vacilar. Se, depois de usar dos meios que estão a teu alcance, ainda te equivocares, poderás viver com a consciência tranqüila, poderás apresentar-te con adamente diante de Deus, e Ele te premiará. Ainda nesta vida Ele te proporcionará os meios necessários para que te santi ques no estado que escolheste. Deus quer dedicação e sinceridade.

Nada temos a acrescentar a este enfoque tão certeiro e claríssimo do primeiro problema. Vejamos, agora, como se resolve o segundo.

2. A escolha da pessoa 342. Este é um dos problemas mais difíceis que se colocam aos jovens com vocação para o matrimônio. A escolha deveria ser feita com grande serenidade e sossego de espírito, ponderando lentamente os prós e os contras à luz da fé, da razão e do coração; infelizmente, porém, na imensa maioria dos casos, este último se adianta — impelido muitas vezes pelo cego ímpeto passional —, impedindo ou, pelo menos, di cultando enormemente o controle sereno e equilibrado da razão e da fé. Para proceder com garantia de acerto — repetimos — seria preciso levar em conta os dados que nos proporcionam a fé cristã, a simples razão natural e o coração humano. Vejamos mais particularmente o papel que corresponde a cada uma destas fontes de informação. a) A fé cristã 343. Escrevemos nossa obra para cristãos que aspiram a servir a Deus no estado de vida a que Ele os destina e, mediante isto, santi car-se plenamente, e alcançar depois a vida eterna. Por conseguinte, não deve estranhar a ninguém que comecemos pela fé o exame das condições que deve reunir a pessoa com a qual o jovem procura unir sua vida para sempre. Uma única coisa deve ser considerada a este respeito, embora se desdobre, a seguir, em duas facetas: que se trate de uma pessoa católica praticante. Examinemos em separado ambos os aspectos. 344. 1º — . Como se sabe, a Igreja proíbe os chamados matrimônios mistos (ou seja, entre um católico e um batizado não-católico) e, com razão ainda maior, os contraídos com disparidade de cultos (ou seja, entre um católico e uma

pessoa não-batizada). O “matrimônio misto” constitui impedimento impediente do matrimônio, ou seja, o torna completamente ilícito (embora válido), a não ser com a correspondente dispensa, que a Igreja concede com di culdade e com muitas reservas (cf. cân. 1060–1064).425 A “disparidade de cultos” constitui impedimento dirimente do matrimônio, ou seja, torna completamente inválido e nulo o matrimônio que se pretenda contrair com esse impedimento, a não ser que se obtenha a correspondente dispensa, que a Igreja concede com grandíssima di culdade (cf. cân. 1070–1071). É verdade que a Sagrada Congregação Pro doctrina dei ultimamente suavizou algumas das disposições contidas nos citados cânones. Mas insiste em dissuadir os católicos a contraírem matrimônio com pessoas não-católicas (mesmo que sejam batizadas), e mantém a obrigação — ao menos para a parte católica — de fazer tudo quanto esteja ao seu alcance para batizar e educar catolicamente todos os lhos que nasçam de seu matrimônio com a pessoa acatólica.426

Compreende-se facilmente a razão desta preocupação da Igreja em impedir ou em colocar grandes obstáculos para esse tipo de matrimônio. Quando dois corações estão divididos e separados entre si por uma barreira tão íntima e profunda como a de professar uma religião diferente, é quase impossível que não se produzam, mais cedo ou mais tarde, atritos inevitáveis, quando não choques verdadeiramente catastró cos. A religião é demasiado importante para não ser levada em conta em primeiríssimo lugar quando se trata de dar um passo tão importante e decisivo como o de contrair matrimônio com uma pessoa que não professa nossas próprias crenças religiosas. Por muito que ambos os cônjuges se amem, por re nada que seja a sua educação e delicadeza, por maior que seja o respeito que professem mutuamente, é quase impossível que o problema da educação católica dos lhos — sempre exigida pela Igreja, já que é de direito divino e não pode ser dispensada de modo algum — deixe de produzir um clima de mal-estar para o cônjuge nãocatólico, que pode voltar atrás em todas as promessas anteriores e

mergulhar o matrimônio em uma verdadeira tragédia de alcance incalculável. Não existe a menor dúvida: se não se quer viver a aventura, quase inevitável, de um matrimônio infeliz e desgraçado, é preciso renunciar em absoluto — por doloroso que seja para o coração humano em determinado caso — a contrair matrimônio com qualquer pessoa que não professe nossas próprias crenças religiosas, seja qual for sua educação e categoria social, mesmo que se trate de um príncipe ou de um deslumbrante personagem de fama mundial. 345. 2º — . Não basta que a pessoa escolhida seja o cialmente católica por estar batizada no seio da Igreja e jamais a ter abandonado externamente, nem ter sido excomungada. Se, contudo, ela a abandonou praticamente, no sentido de que não pratica a religião ou o faz com absoluta indiferença — por exemplo, somente para fazer o gosto de seu prometido ou prometida, mas sem o sentir de verdade interiormente — também se deve desaconselhar, em absoluto, esse matrimônio, que com toda a probabilidade terá como desfecho uma verdadeira tragédia. De fato, o Matrimônio cristão está submetido a leis muito severas, cuja observância chega freqüentemente a constituir verdadeiro heroísmo. Como poderá atingir esse heroísmo aquele católico teórico a quem a religião mantém praticamente despreocupado? É quase impossível que ele não procure obrigar seu cônjuge a deixar de lado aquelas leis tão incômodas, instigando-o com isso a viver em uma perpétua angústia de consciência, ou a pensar em uma separação conjugal que traria consigo o fracasso total do matrimônio e a correspondente tragédia para os lhos.

É preciso prevenir estas catástrofes quando ainda se tem tempo para evitá-las, ou seja, durante o tempo do noivado. Com serenidade de juízo, antes que o coração interponha uma neblina, impedindo a clareza da visão, é preciso examinar cuidadosamente, à luz da razão e da fé, se a religiosidade da pessoa com quem se pretende contrair matrimônio é autêntica e sincera ou se é um

pretexto e paliativo para atrair a pessoa amada, sem ter raízes profundas em sua inteligência e em seu coração. Salvo raríssimas exceções, neste último caso, terá de desistir de contrair um matrimônio que quase certamente acabará em uma verdadeira tragédia. A falsa ilusão que alguns jovens se fazem sobre uma futura “conversão” do católico não-praticante acaba quase sempre em uma grande desilusão, quando não em uma “conversão às avessas”: a pessoa fervorosamente católica acaba por resfriar seu fervor e, quem sabe, sua própria fé, ao contato permanente e glacial da pessoa não-praticante. b) A simples razão natural 346. A segunda fonte de informação que os jovens devem consultar, imediatamente depois da fé cristã, sobre as qualidades que deve reunir aquela pessoa com a qual pretendem unir-se em matrimônio, é a simples razão natural, inteiramente isolada da in uência perniciosa das paixões humanas. Eis aqui as principais qualidades que devem ser examinadas diligentemente à luz da simples razão natural, não ofuscada pelas paixões: 347. 1ª — . É um dado importante. Por razões óbvias de caráter siológico e moral, é conveniente que o varão seja um pouco mais velho que a mulher. Seria ideal uma diferença de cinco anos em favor do varão. Em todo caso, deve-se procurar, pelo menos, que a mulher não supere o varão em mais de um ou dois anos. Salvo casos verdadeiramente excepcionais, contrair matrimônio com uma mulher mais velha que o varão em dez ou doze anos seria uma verdadeira loucura. É quase certo que esse matrimônio resultará em verdadeiro fracasso. Tampouco convém começar os relacionamentos de modo demasiado prematuro. Um noivado precoce — o rapaz com dezoito anos, ela com quinze ou dezesseis — quase nunca dá bons resultados. Não somente devido à longa espera até que ele garanta o futuro humano da família — coisa inteiramente indispensável antes de

contrair matrimônio —, mas também porque esses amores precoces costumam trazer funestas conseqüências em todos os aspectos da vida: perda de tempo, sentimentalismos exaltados, sérios perigos para a pureza juvenil, rupturas inesperadas depois de vários anos de relacionamento, etc. etc.

O noivado não deve ser longo: um ano e meio é tempo mais que su ciente para os noivos se conhecerem mutuamente — se cuidarem disso seriamente, em vez de perder tempo em bagatelas e frivolidades, como ocorre tantas vezes — e ver se serão capazes de completar-se física e moralmente para constituir um lar cristão e feliz. Por isso os relacionamentos pré-matrimoniais não deveriam começar — salvo em casos excepcionais — senão um ano, ou no máximo dois, antes de poderem contrair o matrimônio. 348. 2ª — . A Igreja não proíbe o matrimônio entre enfermos. Referindo-se a possíveis lhos ineptos, Santo Tomás a rma que “é melhor nascer doente do que não nascer em absoluto”,427 já que um enfermo pode, da mesma forma que um sadio, alcançar a vida eterna, que é um bem imenso e o m último para o qual o homem foi criado. Entretanto, é compreensível que certas enfermidades devam dissuadir de contrair matrimônio aquele que padece delas, ou a pessoa que quisesse contraí-lo com ele. A lepra, a sí lis, a tuberculose em grau avançado e outras enfermidades contagiosas, assim como a incapacidade de ter lhos — não só a impotência, que é impedimento dirimente do matrimônio, mas qualquer outra enfermidade que torne sumamente perigosa a concepção ou o parto —, devem dissuadir de contrair um matrimônio que está destinado, quase inevitavelmente, a uma verdadeira tragédia para os cônjuges ou para os lhos.

349. 3ª — verdadeira imoralidade

. Seria um grande erro — além de

— contrair matrimônio com uma pessoa tendo por motivo único ou principal sua alta posição econômica. Os matrimônios contraídos com base nesta “razão” única ou predominante sempre acabam muito mal. Onde não existe amor, compenetração de corações, elevação de objetivos, enfoque cristão da vida, que se pode esperar, a não ser uma verdadeira catástrofe? Mas se isto é verdade, também o é o fato de que não se deve contrair

matrimônio com um homem — e dizemos homem, porque deve ser ele, e não ela, a resolver este problema — que não tenha assegurado por seus próprios meios um futuro econômico digno, que permita, ao menos, manter o mesmo nível social em que ela vivia no seio de sua própria família. A conhecida frase — “contigo, pão e cebola” — ca muito bem no cinema ou no romance, mas é uma verdadeira insensatez quando se pretende transportá-la para a vida, tal como se apresenta de fato na crua realidade. O fracasso de grande número de matrimônios se deve, sem dúvida alguma, à questão econômica; seja por não a ter levado em conta su cientemente, seja por tê-la considerado em demasia.

350. 4ª — . Tampouco se pode deixar de lado este importantíssimo fator. Se, seja lá por qual razão, se vê claramente que não será possível estabelecer um diálogo afetuoso, cordial e permanente com a família do futuro cônjuge, a solução correta que se impõe é renunciar a este matrimônio, pois é quase impossível que acabe bem. Não se pode pretender — enquanto antinatural e anticristão — que alguém queira que um dos futuros cônjuges renuncie ao amor de sua própria família ou rompa o convívio afetuoso com ela para agradar a seu marido ou a sua mulher que não simpatiza com essa família, ou essa família com ela. Se não se consegue, antes do matrimônio, estabelecer a sério uma verdadeira amizade com a família do futuro cônjuge, conviria renunciar a esse matrimônio antes que seja demasiado tarde.428 Existem casos excepcionais — por exemplo, o capricho “classista” de uma família de alta posição social que não vê com bons olhos a condição humilde de uma jovem cristã e exemplar, que poderia fazer seu lho feliz, e muito mais feliz, quem sabe, do que outra pessoa de sua própria condição social, etc. —, mas, em geral, deve-se desaconselhar um matrimônio que não possa começar de outra maneira, a não ser com a ruptura de um dos contraentes com sua própria família natural. É preciso excetuar — repetimos — o caso de um capricho irracional por parte dessa família, o que constituiria uma intolerável intromissão na plena liberdade dos lhos para escolher a pessoa com quem julgam honradamente e por razões válidas — não unicamente passionais — que podem constituir um lar honrado, cristão e feliz. De qualquer modo, se houvesse um grande desnível social entre ambos os futuros esposos, conviria que o cônjuge de posição social

mais elevada fosse ele, e não ela. As razões para isso são tão óbvias que não é preciso apontá-las.

351. 5ª — . Esta é uma das condições mais importantes em que os noivos devem se apoiar cuidadosamente. O noivado é exatamente para isto: para se conhecerem mutuamente e verem se será possível encaixar ambas as vidas até o ponto de constituir não duas, mas uma só vida, segundo os planos do próprio Deus: “Por isso o homem deixará o pai e a mãe e se unirá a sua mulher, e serão os dois uma só carne. De maneira que já não são dois, mas uma só carne” (Mt 19, 5–6). Para isso não se requer — embora fosse o ideal — que a educação, os gostos, as inclinações, o modo de ser e comportar-se em sociedade, etc., sejam absolutamente idênticos em ambos os futuros cônjuges; mas é indispensável que as diferenças, se elas existirem, sejam puramente acidentais ou de tal natureza que, com um pouquinho de boa vontade por parte dos dois, possam facilmente encaixar-se para conseguir um conjunto harmonicamente complementar e feliz. Mas se as diferenças de caráter, gostos, inclinações, etc., forem tão profundas e substanciais que se possa prever com fundamento que nunca será possível essa perfeita sincronização e encaixe, seria preciso renunciar sem a menor dúvida a um matrimônio que certamente acabará infeliz e desgraçado a curto ou longo prazo. Esta é uma das razões mais poderosas e profundas para que os dois noivos — em acordo comum e cavalheiresco — renunciem a unir suas vidas em um matrimônio que iria lavrar, com toda a segurança, sua própria desgraça e infortúnio. c) O coração humano 352. A escolha acertada da pessoa com quem se pretende unir para sempre a própria vida não pode ser feita unicamente com as luzes da fé e da simples razão natural; também é preciso que intervenham, indispensavelmente, as exigências do coração humano. A fé e a razão dirigem e assinalam o caminho a seguir;

mas o impulso irresistível para a pessoa amada corresponde e deve ser dado pelo coração. Como poderia ser de outra maneira? Acaso o matrimônio não é a expressão mais nobre e elevada do amor humano entre duas pessoas que se querem bem?429 Note-se, porém, que o amor humano é um ato da vontade racional; não do coração orgânico, embora na linguagem popular se costume atribuir a ele devido à profunda repercussão que têm em nossa víscera cardíaca as vibrações do amor. Podem distinguir-se três principais acepções da palavra amor, e é preciso levá-las em conta para a escolha completa e cabal da pessoa amada: amor instintivo, racional e cristão. Digamos uma palavra sobre cada uma destas acepções. 353. 1. . Traduzido em linguagem popular, o amor instintivo se expressa em uma fórmula conhecida de todos os noivos: eu gosto. Ao pronunciá-la à primeira vista — ou seja, ao sentir a primeira atração por uma pessoa —, essa expressão se refere quase exclusivamente à sua presença física, à sua beleza ou atração corporal: ainda não houve tempo para se xar em outras qualidades superiores. A imensa maioria dos jovens — eles e elas — colocam esta condição em primeiríssimo lugar e acima de todas as demais. Com freqüência é somente ela que decide tudo. É a famosa “ echada”, que produz na maioria deles uma ferida dulcíssima, voluntariamente incurável. Ora, pôr em primeiríssimo lugar ou de modo exclusivo esse amor instintivo para dar um passo tão grave e irreversível como é o de contrair matrimônio para toda a vida, constitui indubitavelmente um grande erro e uma verdadeira loucura. É certo, certíssimo, que o amor instintivo — inclusive em sua versão nitidamente sexual — é um fator muito importante, que se deve levar em conta para uma acertada escolha de consorte. Uma pessoa que se mostre repulsiva, ou de quem simplesmente não se goste sob este ponto de vista, jamais deve ser escolhida, ainda que reúna outras excelentes condições.430 Jamais nos esqueçamos de que o m primário do matrimônio é a geração e educação dos lhos; e mal se pode imaginar o primeiro aspecto deste m sem sentir

uma atração física, inclusive sexual, pela pessoa amada. Porém, na atitude de colocar esta tendência em primeiríssimo lugar — como faz a maioria dos jovens imprudentes e irre exivos — há um verdadeiro abismo, cujas conseqüências costumam ser fatais, nem mesmo ao cabo de longos anos, quando a beleza corporal começar a murchar, mas, com enorme freqüência, depois de poucos meses de casados.

Considere-se, pois, este amor instintivo como um dos fatores determinantes de uma escolha boa e acertada. Mas, por favor, que não seja colocado em primeiro lugar. Será excelente se ele vier acompanhado pelas demais condições fundamentais; mas seja deixado de lado sem a menor vacilação se estiver isolado dessas condições ou, o que seria ainda pior, se essa atração corporal surgiu em uma suja camaradagem, com uma atitude frívola, super cial, leviana e provocadora, como infelizmente ocorre tantas vezes. 354. 2. . É aquele que — além da tendência instintiva — fundamenta-se nas qualidades que estudamos ao falar do papel da razão natural. É muito mais nobre e elevado que o anterior, e é preciso levá-lo muito em conta para uma escolha acertada. Sua fórmula popular é muito simples: eu o quero, porque reúne as condições que garantem nossa mútua felicidade humana. Não é preciso insistir em coisa tão clara e evidente. 355. 3. . É aquele que, sem excluir os dois anteriores — a graça nunca destrói a natureza, mas sempre a eleva e aperfeiçoa —, vê na pessoa amada as condições ideais para constituir com ela um lar autenticamente cristão, que lhes sirva de estímulo e impulso para alcançar a perfeição cristã e educar cristãmente os lhos, a m de assegurar sua felicidade temporal e eterna. Este amor cristão procede antes de tudo das luzes da fé. O instinto puramente sensitivo nada sabe sobre ele. Tais são, acreditamos, as principais condições naturais e sobrenaturais que deve reunir a pessoa com quem se pretenda unir para sempre a própria vida. É difícil que uma determinada pessoa

reúna todas elas. Sempre será preciso resignar-se à falta de uma ou de algumas delas, sob pena de não poder contrair matrimônio. Mas é necessário procurar em de nitivo que não faltem as três ou quatro fundamentais. Para apontá-las, não é difícil encontrar nas condições examinadas a verdadeira hierarquia de valores: antes de tudo, a religiosidade sincera e autêntica, e depois a tríplice aptidão física, econômica e moral para assegurar na medida do possível a paz e a tranqüilidade do futuro lar cristão. 3. Os relacionamentos pré-matrimoniais 356. Centenas de livros foram escritos a respeito do noivado ou dos relacionamentos pré-matrimoniais dos futuros esposos. Aqui, não é possível deter-nos na exposição ampla e detalhada das orientações de que necessitam os jovens nessa época tão bela, mas também tão perigosa e difícil, de sua vida. Vamos limitar-nos a algumas indicações sumárias, embora verdadeiramente básicas e fundamentais. Na realidade, a norma fundamental que deve presidir um relacionamento pré-matrimonial verdadeiramente digno e cristão pode ser reduzida a apenas duas palavras: cavalheirismo cristão. Nada mais. A primeira palavra, cavalheirismo, é uma condição de ordem puramente natural. A segunda palavra, cristão, pertence à ordem sobrenatural. Tudo se resume nestas duas palavras. Mas é preciso revolver um pouco o conteúdo profundo dessa fórmula tão breve e simples. a) Cavalheirismo 357. Esta palavra, do modo como soa, afeta naturalmente o homem. Mas conserva toda a sua validade se aplicada à mulher, substituindo-a por esta outra inteiramente equivalente: dignidade.

Que queremos dizer ao empregar aqui a palavra cavalheirismo aplicada a ele, ou a palavra dignidade aplicada a ela? Simplesmente, que a conduta humana que ele deve observar em relação a ela deve ser a de um autêntico cavalheiro, no sentido mais nobre e elevado da palavra; e a conduta dela em relação a ele deve ser aquela que corresponde à re nada delicadeza e dignidade de uma mulher. Este cavalheirismo ou dignidade da parte de ambos exige, como programa mínimo, o seguinte: 358. 1º — . Esta condição é absolutamente indispensável para se conhecerem mutuamente, o que é — já o dissemos — a nalidade fundamental do noivado. Na imensa maioria dos noivados — por muito longos que sejam — quase nunca se chega a esta plena sinceridade mútua. Cada um dos futuros esposos procura mostrar ao outro aqueles aspectos de sua personalidade psicológica e moral que podem agradar-lhe e atraí-lo, ocultando cuidadosamente aqueles que podem causar má impressão. Falta uma grande sagacidade psicológica para descobrir ou entrever — sobretudo com base em reações instintivas e imprevistas — a verdadeira personalidade moral da pessoa com quem estamos tratando; e a imensa maioria dos jovens — eles e elas — não têm essa penetrante sagacidade psicológica. Se acrescentamos a isto o fato de que o amor é cego e quase nunca consegue ver os defeitos da pessoa amada, ou pelo menos os diminui consideravelmente — às vezes ao ponto de justi cá-los —, avalie-se que será difícil para os futuros esposos se conhecerem mutuamente de verdade antes de contrair matrimônio, se não desenvolverem seus relacionamentos pré-matrimoniais com base em uma sinceridade psicológica completa, sem a menor vacilação ou hipocrisia. Sem chegar à caricatura ridícula e exagerada daquele esposo que, na noite de núpcias, diante dos olhos assombrados de sua esposa, retirou a dentadura, um olho de cristal e uma perna de pau, quantos jovens chegam ao matrimônio ignorando quase por

completo a verdadeira índole psicológica e moral da pessoa com quem se uniram indissoluvelmente para sempre? No que diz respeito a ambos, para dar esse passo transcendental com garantias de acerto, para assegurar sua paz e felicidade futuras, não há nada que os futuros esposos devessem procurar com tanto empenho durante sua época de noivado, como chegarem a se conhecer de verdade tal como são, com base em uma sinceridade plena e absoluta, que deixasse transparecer, como se fosse de cristal, sua própria e autêntica personalidade moral, sem pintura nem maquiagem de nenhum tipo. Note-se bem — parece-nos quase ocioso lembrá-lo — que esta sinceridade completa de que estamos falando se refere exclusivamente às características psicológicas e morais dos futuros cônjuges (religiosidade, temperamento, caráter, gostos, inclinações, etc.), mas de maneira alguma ao prévio conhecimento sexual mútuo, como a rmam tantas teorias perversas e anticristãs. Isto não pode ser feito, nem é necessário de modo algum, sob nenhum pretexto. Voltaremos amplamente sobre isto ao falar, mais abaixo, do aspecto cristão dos relacionamentos pré-matrimoniais.

359. 2º — . É outra condição indispensável para o cavalheirismo dele ou a dignidade dela. O noivo não deve pensar em nenhuma outra mulher além de sua noiva. E a ela está terminantemente proibido pensar em qualquer outro homem além de seu noivo. Deve começar já durante o noivado aquela delidade re nada que, durante o matrimônio, ambos os cônjuges deverão guardar mutuamente e para sempre. O noivo que “sai” com alguma outra mulher além de sua noiva — em presença ou ausência da mesma —, ou a noiva que admite facilmente a “camaradagem” de algum outro homem além de seu noivo, perderam por completo o cavalheirismo ou a dignidade. Que se pode esperar em torno da futura delidade conjugal — absolutamente indispensável para a felicidade do lar — de homens e mulheres que desde o noivado já começam a faltar com essa delidade, ao menos no aspecto puramente psicológico e afetivo, se é que não chegam ainda mais longe, até o passional e sensual? Na realidade — embora pareça paradoxal — esta mútua delidade entre os noivos deve começar antes do noivado, e inclusive antes de se conhecerem. Um excelente autor soube explicar com grande acerto este aparente paradoxo. Eis aqui as suas palavras:431 É belo, é justo ser el por antecipação à futura noiva, àquela que será a mãe de seus lhos. É justo conservar para aquela de quem se deseja as primícias da carne, as

primícias do sangue, e, segundo a excelente frase de São Paulino de Nola, unir-se virgem à virgem escolhida. É conhecida a bela expressão: “As núpcias estão escritas no céu”. Desde toda a eternidade, Deus sabe, porque para Ele tudo está no presente, que este será o marido daquela. Desde o nascimento, sem o saber, o jovem cresce para um determinada jovem, e igualmente esta para ele. Antes de se conhecerem, antes de se verem, a vida de um pertence ao outro. Ainda separados, já são uma só carne. Portanto, devem conservar-se íntegra e zelosamente um para o outro; é uma delidade que eles devem a si mesmos, que devem ao próprio sentimento do amor. Esta concepção das coisas está de acordo tanto com a estética quanto com a moral. É difícil de guardar e de praticar, não pretendemos negá-lo. Nenhum ideal se alcança facilmente; a única coisa necessária é que tenha um atrativo poderoso e belo.

360. 3º — . A época do noivado — já o repetimos várias vezes — é para que os noivos se conheçam mutuamente e comprovem se poderão chegar a constituir um lar cristão e feliz. Se no trato habitual e contínuo eles percebem claramente que o encaixe de suas vidas é muito difícil ou pouco menos que impossível, farão muito bem — como já dissemos — em pôr-se os dois de acordo, de modo cavalheiresco, para romper aquelas relações que não poderiam levar a nenhum resultado feliz. Nestas condições, esta ruptura estaria irrepreensivelmente dentro da ordem correta de um noivado cavalheiresco e normal. Mas se a ruptura se produzisse por motivos fúteis e sem substância: por uma simples discussão, por um impulso de mau humor, por frívola inconstância, por ter encontrado “um partido melhor” de índole puramente sentimental ou econômica, pelas chamadas “conveniências sociais”, ou por outros ainda mais baixos e inconfessáveis, e se deixasse plantada no meio da rua a pessoa com quem havia tido relações sérias e longas — quanto mais longas, pior — em vista de um futuro matrimônio, que já estava prática e formalmente aceito por ambos, isto constituiria uma incrível falta de cavalheirismo ou de dignidade, que privaria para sempre a pessoa culpada do direito de ocupar um lugar entre pessoas decentes e honradas. Isso não pode ser feito sob nenhum pretexto.

b) Cristão 361. Até aqui viemos examinando — sem esgotá-las, longe disso! — as principais condições que se requerem para o cavalheirismo humano de um noivado. Agora, vamos completá-las com aquelas que exige o cavalheirismo cristão, já que é para cristãos que escrevemos o conjunto total de nossa obra. As principais são as seguintes: 362. 1ª — . Com isto nós não nos referimos às simples normas de educação humana — que consideramos supostas antecipadamente —, mas única e exclusivamente à conduta moral que os noivos devem observar em seus relacionamentos pré-matrimoniais. Antes de tudo, é preciso ter idéias claras sobre o verdadeiro conceito do amor e sobre a hierarquia de valores entre o corpo e a alma do cristão. Sem estes conceitos prévios não se entenderia nada do que vamos dizer. É inteiramente claro e evidente que amar a uma pessoa é desejarlhe e fazer-lhe o bem. E odiar a uma pessoa é desejar-lhe e fazerlhe o mal. Isto é absolutamente indiscutível para qualquer pessoa simplesmente sensata, ainda que não seja cristã. Não é menos claro e evidente que a alma vale muito mais do que o corpo, já que chegará um dia em que este morrerá e o levarão ao cemitério, enquanto a alma é eterna e, por conseguinte, sobreviverá à destruição do corpo. Isto, que é inteiramente claro para qualquer pessoa inteligente que saiba demonstrar a imortalidade da alma, adquire uma certeza rmíssima no cristão, que tem fé e sabe que depois desta pobre vida mortal — fugaz e transitória — espera por nós uma vida eterna, feliz ou desgraçada. Ora, considerando-se estes princípios indiscutíveis, é muito fácil extrair em seguida suas principais conseqüências. Se os noivos se querem bem — ou seja, se eles se amam de verdade, com autêntico

e verdadeiro amor —, devem procurar, antes de tudo e sobretudo, não se fazer mutuamente o menor dano, sobretudo na ordem espiritual relacionada com a alma. Se o fato de se causar um pequeno dano corporal seria um atentado indiscutível contra o verdadeiro amor, como se deveria quali car um prejuízo espiritual voluntariamente causado contra a pessoa amada, mesmo que isso fosse apenas levá-la a cometer, para nos agradar, um simples pecado venial? E se esse prejuízo fosse verdadeiramente grave, e fosse exigido em nome do amor (!), não teríamos de classi car como louca e insensata a pessoa culpável de semelhante desvio mental, além de não ter a menor idéia — cega pela paixão e pelo egoísmo — daquilo que exige e reclama a mais elementar correção humana e cristã? Não podemos nos deter aqui na exposição completa e detalhada do que é lícito ou ilícito — do ponto de vista da moral cristã — nos relacionamentos pré-matrimoniais dos futuros esposos. Existe, no entanto, uma norma simpli cadora capaz de resolver por si só a imensa maioria dos casos concretos. É esta: os noivos ainda não são esposos; por conseguinte, não podem agir na condição de esposos, mas unicamente de noivos. Que pensaríamos de um seminarista que se dedicasse a dizer a Missa antes de ser ordenado sacerdote? Ora, concretamente, o que é que se proíbe e o que não se proíbe aos noivos exatamente como tais, ou seja, exatamente enquanto ainda não são esposos, mesmo tratando-se de noivos formais que pensam seriamente em contrair matrimônio? Sem entrar em detalhes impróprios a esta obra, podemos responder com su ciente clareza e universalidade a ambas as perguntas. 363. a) , , não só os atos sexuais — como é inteiramente claro e evidente, já que são estes, precisamente, que constituem o m primário do matrimônio, ou seja, aquilo que é típico e exclusivo dos verdadeiros esposos —, mas todas aquelas manifestações de amor (carícias, beijos,

abraços, etc.) cuja origem ou nalidade seja a paixão sensual. Tudo o que proceder da paixão sensual, ou que tenha por objeto e nalidade excitá-la em qualquer dos dois noivos, ou em ambos ao mesmo tempo, é-lhes rigorosamente proibido pela moral cristã, sejam quais forem os costumes e práticas contrárias do ambiente que os rodeie. A conduta imoral dos outros não nos autorizará jamais a imitá-la ou reproduzi-la em nós. Cada um terá de responder diante de Deus pela própria conduta, não pela conduta dos outros (a não ser que se tenha dado motivo para ela, por exemplo, em razão de escândalo direto ou indireto, intencionalmente ou não, mas prevendo-o de algum modo). A moral cristã é a moral do Evangelho; não a do lme, da novela ou do ambiente anticristão e imoral que possa rodear-nos. 364. b) todas aquelas manifestações de carinho que não procedam da paixão sensual nem tenham por nalidade excitá-la, nem ponham em perigo próximo de excitá-la, ainda que não se pretenda diretamente tal excitação. Até onde se pode chegar com base neste princípio, depende de muitas circunstâncias, que é preciso levar em conta em cada caso, sobretudo do grau de serenidade ou de excitabilidade da própria pessoa ou o da pessoa amada. Pois poderia se dar o caso — e com muita freqüência se dá — de que aquilo que não é excitante para ela acaba sendo para ele (ou ao contrário, ainda que este último seja menos freqüente); é preciso levar em conta não só que nenhum dos noivos tem o direito de pecar, mas tampouco o tem — e ainda menos pela grande falta de caridade que isso iria supor — de levar o outro a pecar, sob qualquer pretexto. Em geral, tratando-se de pessoas normais, uma simples carícia, um beijo suave e carinhoso, sem pôr nele nenhuma paixão sensual, é perfeitamente lícito entre noivos normais que pensam seriamente em contrair um futuro matrimônio.

Aplicando com serenidade e prudência estes dois princípios tão claros e simples, resolve-se toda a complicada casuística do lícito e ilícito nos relacionamentos pré-matrimoniais. Essas manifestações amorosas procedem de uma intenção sensual? Ou têm por nalidade excitá-la? Ou põem em grave perigo de excitá-la, ainda que não procure por isso diretamente? Então, elas são ilícitas, e é preciso abster-se delas, por muito doloroso que seja. Mas, procedem elas unicamente de um carinho honesto? E não se busca, direta ou indiretamente, excitar a sensualidade? E não há perigo — ou muito remoto e não-intencional — de excitá-la? Então, são lícitas e podem ser permitidas sem mais complicações.

De qualquer modo, nesta matéria tão difícil e escorregadia, sempre será pouca, por maior que seja, a precaução e a prudência que se ponha em evitar tudo o que seja pecado ou possa facilmente levar a ele. Via de regra, os noivos que se permitem tudo que é lícito, logo acabarão roçando o ilícito, se é que não cairão nele plenamente. O noivado é uma etapa da vida difícil e perigosa, que exige muito domínio de si e um grande espírito de sacrifício. O amor, o verdadeiro amor, deve ser demonstrado precisamente no controle e na abnegação de si mesmo para não causar o menor dano espiritual à pessoa amada. Aquele que, tendo em vista satisfazer sua própria sensualidade, não vacila em destroçar a alma dessa pessoa, está bem claro que não a ama de verdade: é um egoísta que busca seu próprio prazer, mesmo ao custo de causar grave dano espiritual — o maior de todos os possíveis — à própria pessoa a quem diz amar. Não existe maior absurdo nem maior contradição. 365. 2ª — . Não basta simplesmente não causar dano à pessoa a quem amamos; é preciso procurar fazer-lhe todo o bem possível. O positivo vale muito mais que o negativo, embora este último seja a condição prévia para aquele. O lar cristão está ordenado para ser uma escola de santidade. Um dos ns do matrimônio é ajudar-se mutuamente — os esposos entre si, os pais com seus lhos e estes com seus irmãos — a conseguirem a suprema nalidade da vida, que é a salvação eterna e a santidade própria de seu estado.

Este sublime trabalho de mútuo aperfeiçoamento moral entre os esposos deve começar já na época do noivado. Cabe sobretudo a ela ajudar seu noivo a ser cada dia um homem e um cristão melhor. Em geral, a mulher se sente mais inclinada à piedade e é mais espiritual que o homem; por isso ele necessita do estímulo e da ajuda da mulher amada para progredir com generosidade e alegria pelos caminhos de Deus. A prática de piedade mais recomendável aos noivos é a freqüência aos sacramentos. Como se mostra belo e sublime o espetáculo de um jovem casal de noivos que se aproximam juntos para receber diariamente a Sagrada Comunhão! Que forças da Eucaristia para resistir às tentações juvenis e impulsionar às alturas, onde brilha o sol nem nenhuma nuvenzinha que empane seu esplêndido e radiante fulgor! Se os noivos ainda não chegaram à Comunhão diária, ao menos confessem e comunguem juntos com freqüência — por que não todos os domingos? E procurem rezar juntos, diariamente, alguma breve oração à Virgem para que ela abençoe seus amores e os faça muito felizes agora e em seu futuro lar. Alguns noivos cristãos costumam rezar uma Ave-Maria ao começarem e terminarem o momento diário de conversa. Como é possível que entre essas duas Ave-Marias não se desenvolva tudo dentro da mais deliciosa e delicada correção cristã?

366. 3ª — . Dizíamos, ao falar do simples cavalheirismo humano, que ele devia manifestar-se acima de tudo por uma sinceridade mútua, completa e total, a m de se conhecerem a fundo e verem se será possível o encaixe de ambas as vidas em um futuro lar. Ora, é preciso que esse exame prévio da maneira de pensar de ambos os futuros cônjuges se estenda principalmente aos grandes problemas morais que sem dúvida serão apresentados pelo matrimônio. Cada um dos futuros esposos deve obter do outro a promessa e a segurança formal de que jamais atentará contra os ns do matrimônio, nem procurará conseguir dele nada do que a moral cristã proíbe. Sem esta garantia prévia, obtida por autêntica convicção daquele que a faz — não só porque assim o deseja a outra parte, ainda que no momento a promessa seja sincera —, não se deve vacilar um instante em romper o relacionamento e renunciar a um matrimônio que levaria, infalivelmente, a uma

vida de contínuo pecado e angústia e, probabilidade, à condenação eterna.

nalmente, com enorme

Quantas jovens esposas se vêem obrigadas a chorar, durante toda a sua vida, lágrimas de sangue por não se terem assegurado, antes do matrimônio, sobre o modo de pensar e as verdadeiras intenções de seu futuro esposo em torno destes problemas morais tão básicos e fundamentais! Essas lágrimas, infelizmente, agora são demasiado tardias. Melhor teria sido se tivessem tido que derramá-las apenas por um período mais ou menos longo, por terem rompido a tempo aqueles relacionamentos tão queridos, antes de se verem na triste necessidade de derramá-las a vida inteira, sem esperança de remédio.

Artigo 2 — A vocação sacerdotal ou religiosa 367. Muitíssimo menos freqüente que a vocação ao matrimônio, mas muito mais elevada que ela — segundo a doutrina o cial da Igreja —, pode surgir no seio de uma família cristã a vocação ao sacerdócio ou à vida religiosa. A vocação sacerdotal afeta unicamente o homem, como se sabe. A vocação religiosa pode afetar também às mulheres. Vamos examinar brevemente, em separado, ambas as vocações. 1. A vocação sacerdotal 368. A vocação mais elevada e sublime a que um cristão pode ser chamado nesta vida é sem dúvida alguma a vocação sacerdotal. Em virtude dos augustos poderes que confere o sacramento da ordem àquele que o recebe validamente, o sacerdote pode realizar, quantas vezes quiser, a inefável maravilha de mudar um pouco de pão e vinho no Corpo e no Sangue de Cristo, e de abrir de par em par as portas do céu ao pecador que, um instante antes da

absolvição, tinha abertas para si as portas do inferno eterno. Não existe realeza nem dignidade alguma — humana ou angélica — comparável à do legítimo ministro de Jesus Cristo. Mas ninguém pode pretender escalar essas alturas por uma própria determinação de escolha, e sim pelo expresso chamado de Deus. Isto é o que diz clara e expressamente a Sagrada Escritura, de modo que a este respeito não se pode admitir nenhuma dúvida: “Não fostes vós que me escolhestes, mas eu que vos escolhi” (Jo 15, 16). “E ninguém tome esta honra para si, senão aquele que é chamado por Deus, como Aarão” (Hb 5, 4).

Este chamado de Deus costuma assumir formas muito diferentes. Às vezes aparece na consciência do candidato com toda a clareza e evidência; outras vezes, é obscuro e misterioso, mas ao mesmo tempo muito verdadeiro e real. Uma vez ou outra, ele se deixa sentir com força depois dessas eventualidades que o mundo chama de “decepções”: a morte ou o abandono da pessoa com quem se pensava contrair matrimônio, etc. Outras vezes ele se impõe à consciência de forma categórica e imperativa; outras, não passa de um suave convite, insinuante e persuasivo. Porém, seja qual for a forma que ele adote ou a força com que se imponha, nunca força a liberdade humana, que permanece sempre perfeitamente a salvo, mesmo quando recai sobre ela a graça e ciente de Deus, que produzirá infalivelmente o seu efeito, mas liberrimamente aceito pelo homem. A ação de Deus, quando quer absolutamente uma coisa, é de uma e cácia tão soberana, que produz não somente a coisa intencionada, mas até mesmo a própria liberdade com que o homem a aceita de maneira plenissimamente voluntária.432 Quando surge no seio de uma família cristã uma vocação sacerdotal, estamos em presença de uma especialíssima predileção de Deus que deveria encher todos os seus membros de profunda

gratidão. Caiu sobre toda a família uma imensa bênção de Deus, que se prolongará ao longo de toda a vida do futuro sacerdote. É incrível a cegueira de tantas famílias que se julgam muito cristãs e católicas e, no entanto, experimentam tremenda comoção e terrível desgosto quando um de seus lhos lhes anuncia que se sente com vocação sacerdotal. Isto ocorre com relativa freqüência, sobretudo entre famílias de posição econômica elevada ou de alta classe social. Não existe maior cegueira e desorientação que considerar pouco menos que uma desgraça exatamente aquilo que deveria enchê-las de um júbilo indescritível. Saibam os pais que, assim como não podem obrigar seus lhos a contrair matrimônio ou a contraí-lo com uma determinada pessoa que eles desejam, tampouco têm qualquer direito a impedir que algum de seus lhos se consagre a Deus no estado sacerdotal ou religioso. Igualmente, os lhos não têm obrigação nenhuma de obedecer a seus pais neste ponto, e podem com toda liberdade diante de Deus abandonar, contra a vontade de seus pais, a casa paterna para ingressar no seminário ou em uma ordem religiosa. Entretanto, é conveniente que não dêem esse passo sem contar com a prévia aprovação de um diretor espiritual prudente e experimentado, que serenamente levará em conta todo o conjunto de circunstâncias diante de Deus. O Concílio Vaticano insistiu repetidas vezes neste sacratíssimo dever que têm os pais de respeitar a vocação própria de seus lhos, de modo muito especial a vocação sagrada. Eis aqui alguns textos: “Devem os pais, pela palavra e pelo exemplo, ser para os lhos os primeiros arautos da fé, e favorecer a vocação própria de cada um, especialmente a vocação sagrada”.433 “Os esposos cristãos são cooperadores da graça e testemunhas da fé um para com o outro, para com os lhos e com os demais familiares. Eles são os primeiros que anunciam aos lhos a fé, e os educam. Formam-nos, pela palavra e pelo exemplo, para a vida cristã e apostólica. Ajudam-nos com prudência a escolher a sua vocação e fomentam com todo o cuidado a vocação de consagração porventura neles descoberta”.434

No Decreto sobre a Formação Sacerdotal, o Concílio Vaticano a rma que é obrigação de todos os cristãos fomentar as vocações sacerdotais. Eis suas próprias palavras:

O dever de fomentar as vocações pertence a toda a comunidade cristã, que as deve promover sobretudo mediante uma vida plenamente cristã; para isso concorrem especialmente, quer as famílias, que animadas pelo espírito de fé, de caridade e piedade, são como que o primeiro seminário, quer as paróquias, de cuja vida fecunda participam os mesmos adolescentes. Os mestres e todos aqueles que, de algum modo, se ocupam da educação das crianças e dos jovens, principalmente as associações católicas, de tal forma procurem cultivar o espírito dos adolescentes a si con ados, que eles possam sentir e seguir de bom grado a vocação divina. Os sacerdotes manifestem o máximo zelo em favorecer as vocações; e pela sua própria vida humilde, laboriosa e levada com alegria, assim como pela mútua caridade sacerdotal e fraterna cooperação, atraiam a alma dos adolescentes para o sacerdócio.435

Para apreciar devidamente a importância e a gravidade deste chamado da Igreja para que as vocações sacerdotais sejam incentivadas por todos os cristãos e por todos os meios a seu alcance — entre os quais ocupa lugar de destaque a oração (cf. Lc 10, 2) e o sacrifício —, tenha-se em conta que o número de sacerdotes atualmente existente é extremamente insu ciente nos territórios de missão. Esta escassez de vocações sacerdotais vai se tornando cada vez mais aguda devido ao enorme e rápido crescimento demográ co da população mundial — já se falou em uma espécie de “incêndio biológico” no mundo, apesar de tantas práticas contraceptivas incompatíveis com a moral cristã — que determina uma desproporção cada vez maior entre o número de sacerdotes existentes e aquele que deveria existir para atender a tão numerosas e crescentes necessidades apostólicas. 2. A vocação religiosa 369. Tudo o que acabamos de dizer a respeito da vocação sacerdotal é perfeitamente aplicável, mutatis mutandis, à vocação religiosa, que pode afetar também à mulher, diferentemente da sacerdotal, que é própria e exclusiva dos homens. Já escrevemos amplamente sobre a vocação religiosa em outra obra publicada nesta mesma coleção da .436 Aqui, queremos insistir unicamente na imensa bênção de Deus que supõe para uma família cristã o fato de que um dos lhos ou lhas sinta o chamado divino para a vida religiosa e corresponda a ele com el

generosidade. Podem estar bem seguros de que, se perseverarem até a morte em sua magní ca vocação — a mais elevada que pode ocorrer para a mulher, embora não para o homem437 —, não somente atrairão sobre sua família um sem-número de bênçãos do céu, mas eles mesmos encontrarão nesta vida o cem por um e, depois, a vida eterna. Não é possível alimentar a menor dúvida sobre isto, já que consta da própria palavra de Cristo: Em verdade vos digo que não há ninguém que, tendo deixado casa, ou irmãos, ou irmãs, ou mãe, ou pai, ou lhos, ou campos, por amor de mim e do Evangelho, que não receba o cêntuplo, já neste século, em casas, irmãos, irmãs, mães, lhos e campos, com perseguições, e a vida eterna no século futuro (Mc 10, 29–30).

Artigo 3 — A consagração a Deus no mundo 370. Pode ocorrer o caso — e ocorre com relativa freqüência — que determinada pessoa, homem ou mulher, queira sinceramente consagrar-se por inteiro a Deus e não sinta, no entanto, a vocação sacerdotal ou religiosa. Neste caso, não há inconveniente algum em consagrar sua própria virgindade em meio ao mundo, quer ingressando em um instituto secular, quer permanecendo simplesmente no seio do próprio lar. Diremos, em separado, umas palavras para cada uma destas modalidades. 1. Os institutos seculares 371. A partir principalmente da Constituição Provida Mater Ecclesia, promulgada por Pio no dia 2 de fevereiro de 1947, proliferaram profusamente na Igreja os chamados institutos

seculares, que por expressa declaração da própria Igreja constituem um autêntico e verdadeiro estado de perfeição, embora não de maneira tão íntegra e completa como o estado religioso ou as chamadas sociedades de vida comum (por exemplo, os padres lazaristas ou as Filhas da Caridade). Os membros dos institutos seculares, admitidos como tais pela Igreja, vivem no mundo, mas professam os conselhos evangélicos com o m de adquirir a perfeição cristã e exercer plenamente o apostolado. Eles constituem — repetimos — um estado de perfeição no século, menos perfeito que os anteriores, mas juridicamente aceito por ter sido aprovado e reconhecido pela Igreja. Seus elementos constitutivos são: incorporação ao instituto com vínculo perpétuo ou temporário (mas renovável periodicamente); pro ssão dos conselhos evangélicos; voto privado, ou pro ssão, de celibato e de castidade perfeita; e voto privado, ou promessa, de obediência e de pobreza. Tais votos ou promessas devem ser emitidos segundo as constituições do próprio instituto secular. Muitos dos membros desses institutos seculares — em alguns, obrigatoriamente todos eles — vivem em comunidade, fora do próprio lar, e podem ser transferidos livremente por seus superiores para outra cidade ou nação. Nestas condições, sua vida se diferencia da vida dos religiosos apenas no traje secular, que costumam conservar. Bem diferente é a condição daqueles membros de institutos seculares que vivem em meio ao mundo, em sua própria casa e exercendo sua própria pro ssão civil. Estes são plenamente leigos, os quais, no entanto, abraçaram um estado de perfeição juridicamente reconhecido pela Igreja com base na prática dos conselhos evangélicos, na medida e no grau compatíveis com seu estado nitidamente secular. 2. A virgindade voluntária no mundo

372. Ainda é possível uma nova fórmula de consagração a Deus em meio ao mundo, distinta daquela que corresponde aos institutos seculares de que acabamos de falar: a virgindade voluntária, oferecida a Deus em ordem à plena perfeição cristã no seio de seu próprio lar. A este propósito, é preciso ler e meditar detidamente a magní ca encíclica de Pio sobre a sagrada virgindade, à qual aludimos mais acima. Ele a escreveu precisamente com a dupla nalidade de expor uma vez mais a doutrina tradicional da Igreja e refutar algumas opiniões menos corretas que procuravam ganhar espaço com incrível ignorância e temerária imprudência. Em seguida, reunimos alguns parágrafos do precioso documento de Pio .438 Ele começa por lembrar a origem divina da virgindade consagrada voluntariamente a Deus: A sagrada virgindade e a perfeita castidade consagrada ao serviço de Deus contam-se sem dúvida entre os mais preciosos tesouros deixados como herança à Igreja pelo seu Fundador.

Depois de invocar o testemunho dos Santos Padres sobre a excelência e o mérito da virgindade, diz o papa que este tesouro não é privativo unicamente do estado religioso ou sacerdotal, mas também oresce no meio do mundo e entre os próprios leigos: Mas ela oresce igualmente entre muitos dos que pertencem ao estado laical, uma vez que há homens e mulheres que, sem viverem em estado público de perfeição, zeram o propósito ou mesmo o voto privado de se abster completamente do matrimônio e dos prazeres da carne para mais livremente servir ao próximo, e mais fácil e intimamente se unirem a Deus. Dirigimo-nos com coração paterno a todos e cada um desses muito amados lhos e lhas, que de algum modo consagraram a Deus seu corpo e sua alma, e exortamo-los vivamente a con rmarem sua santa resolução e a pô-la em prática com diligência.

A seguir, o papa fala extensamente sobre as vantagens e excelências da virgindade sobre o matrimônio. Pertencem a esta seção os seguintes parágrafos:

Julgamos oportuno, veneráveis irmãos, mostrar agora mais exatamente por que motivo o amor de Cristo leva as almas generosas a renunciarem ao matrimônio, e quais são os laços misteriosos que existem entre a virgindade e a perfeição da caridade cristã. Já as palavras de Jesus Cristo, que mencionamos acima (cf. Mt 19, 10–12), davam a entender que a perfeita abstenção do matrimônio liberta os homens dos pesados encargos e deveres deste. Inspirado pelo Espírito Santo, o Apóstolo das Gentes dá o motivo desta libertação: “Quero que vivais sem inquietação [...]. O que está casado está cuidadoso das coisas que são do mundo, de como há de agradar a sua mulher, e está dividido” (1Cor 7, 32–33). Note-se, porém, que o Apóstolo não repreende os maridos por estarem cuidadosos das esposas, nem as esposas por procurarem agradar aos maridos; mas nota que estão divididos os corações entre o amor do cônjuge e o amor de Deus, e que estão demasiado absorvidos pelos cuidados e obrigações da vida conjugal para poderem entregar-se facilmente à meditação das coisas divinas. Porque o dever do casamento prescreve claramente: “Serão dois numa só carne” (Mt 19, 5). Os esposos estão ligados um ao outro tanto na infelicidade como na felicidade (cf. 1Cor 7, 39). Compreende-se, portanto, porque as pessoas que desejam dedicar-se ao divino serviço abraçam o estado de virgindade como libertação, quer dizer, para poderem mais inteiramente servir a Deus e contribuir com todas as forças para o bem do próximo. Por exemplo, o admirável missionário São Francisco Xavier, o misericordioso pai dos pobres São Vicente de Paulo, o zelosíssimo educador da juventude São João Bosco, e a incansável “mãe dos emigrantes”, Santa Francisca Xavier Cabrini, como poderiam eles suportar tantos incômodos e trabalhos, se tivessem de prover às necessidades corporais e espirituais de seu cônjuge e de seus lhos?

Pio continua expondo amplamente as grandes vantagens da virgindade consagrada a Deus e seus excelentes frutos (obras de apostolado, caridade perfeita, testemunho de fé, ornamento da Igreja, etc.). Em seguida, refuta plenamente os erros contrários a esta doutrina o cial da Igreja, e termina extraindo as conseqüências práticas da mesma, dando normas muito claras e concretas sobre o modo de guardar a perfeita virgindade — ainda que em nível secular e no meio do mundo —, com o m de alcançar através dela a plena perfeição da caridade, que constitui a própria essência da santidade cristã. É preciso — repetimos — reler com freqüência e meditar detidamente as preciosas páginas desta magní ca encíclica de Pio , que constitui como que a “carta magna” da virgindade em pleno século .

Artigo 4 — Uma palavra para as solteiras 373. Embora grande parte das coisas que vamos dizer neste artigo se possa aplicar também aos solteiros que — sem ter vocação sacerdotal ou religiosa — tenham escolhido voluntariamente esse estado para melhor servirem a Deus no meio do mundo, nós nos dirigimos preferencialmente às solteiras por razões muito fáceis de compreender. O homem pode contrair matrimônio sempre que quiser; a mulher, nem sempre, ainda que algumas vezes ela o proponha. Que pensar? Qual é sua situação diante de Deus e diante do mundo? Que devem fazer aquelas mulheres que tentaram casar-se ou, pelo menos, não teriam recusado o matrimônio caso se tivesse oferecido a elas a ocasião de contraí-lo convenientemente? Aqui, tratamos desta classe de solteiras, e a elas nos dirigiremos carinhosamente ao longo de todo este artigo. Com freqüência o mundo, desdenhoso e cruel, costuma empregar um aumentativo de mau gosto para designar esta classe de pessoas: são as solteironas, no sentido pejorativo da palavra. Aplicar esta palavra nesse sentido desdenhoso a toda pessoa celibatária, já avançada em idade, é uma injustiça revoltante e uma manifesta falta de caridade. Isto porque existem várias classes de solteiras, e é preciso distinguir cuidadosamente a qual delas nos referimos antes de empregar esse aumentativo tão pouco honroso. Não conhecemos nada mais completo, cristão e profundo em torno dos problemas colocados pela vida solteira cristã, que a magní ca obra do Abade Carlos Grimaud, com o título Solteras.439 A seguir, oferecemos dela um breve extrato, em forma quase esquemática. É

1. Diversos tipos de solteiras É preciso distinguir cuidadosamente quatro tipos de solteiras completamente diferentes ou, pelo menos, com diferenças muito acentuadas entre si: as generosas, as tímidas, as desgraçadas e as inábeis. 374. 1. . São aquelas que renunciaram voluntariamente ao matrimônio por amor ao reino dos céus (cf. Mt 19, 12). Em sua juventude, talvez tenham sentido as tendências de seu ser feminino, que reclamavam o amor e a maternidade, porque o celibato não é — certamente — uma aspiração natural, mas inteiramente o contrário. Porém, um amor mais elevado as atraiu para si, e elas compreenderam a enorme superioridade da virgindade, abraçando-a voluntariamente. Estas não são propriamente solteiras, mas virgens voluntariamente consagradas ao Senhor, mesmo no seio de seu próprio lar. E já falamos sobre elas no artigo anterior, e nada temos a acrescentar aqui. Na mesma situação, ou muito parecida, encontram-se aquelas que, tendo ingressado em um convento ou instituto religioso, viram-se na obrigação de abandoná-los por razões de saúde ou por outras causas inteiramente independentes de seu desejo e vontade. O mesmo se diga daquelas que não puderam realizar seu ideal de vida religiosa por terem de atender a seus pais idosos, ou aos irmãozinhos desamparados, ou por uma injusta e anticristã oposição dos parentes, etc., etc. Todas estas podem realizar em seu estado de voluntário celibato o ideal das almas virgens consagradas ao Senhor e, por esse caminho, chegar ao mais elevado cume da perfeição e da santidade cristãs.

375. 2. . São aquelas que não se atrevem a enfrentar o matrimônio e se refugiam voluntariamente na vida de solteira por timidez ou covardia. São vários os motivos que as impulsionam para isso: )

. Temperamentos formados no hábito de fugir ao sofrimento tendem a exagerar de modo terrível as

di culdades da vida. Transformam um grão de areia em uma montanha insuperável. “Eu me casaria de boa vontade, mas... e se meu marido morrer? E se ele fracassar em seus negócios? E se nosso caráter não combinar? E se nossos lhos carem doentes? Não, é melhor não me casar”. E, de fato, cam solteiras para sempre. ) . Muitas almas temerosas sentem um horror instintivo a tudo que é de nitivo. Nunca se decidem a nada de irrevogável: “Nunca acabam de acabar”, dizia Santa Teresa sobre outro assunto. Essas almas inimigas do de nitivo não descon am de que, fugindo dele, vão criando-o sem cessar. Não querendo decidir-se a uma união perpétua, vão criando para si uma solteirice perpétua para a qual talvez Deus não as chamasse. ) . Formadas em um ambiente excessivamente mimado, retraem-se do matrimônio para não deixar “papai e mamãe”. A culpa desta atitude tão absurda sempre recai sobre os pais, sobretudo no caso de se tratar de uma lha única. Existem mães tão insensatas e egoístas que chegam a dizer a sua lha: “Se me abandonas, vou morrer. Além do mais, nunca serás tão feliz quanto o és a meu lado”. E a mocinha — tão estúpida quanto sua “mamãe” — acede aos desejos egoístas desta, sem se dar conta de que está afundando seu próprio futuro. ) . O desprezo pelo homem ou a excessiva timidez diante dele, o espírito de independência, o horror aos deveres conjugais, o medo dos sofrimentos da maternidade ou o trabalho de educar, etc., levam-nas a renunciar ao matrimônio e car perpetuamente solteiras. 376. 3. . Em vez de falar em desgraça, talvez fosse mais exato falar dos misteriosos planos da Providência de

Deus sobre determinada alma. O certo é que muitas permanecem solteiras: )

. Não são su cientemente belas para atrair um jovem e se casar. Deus sabe por quê. Nada resolverão com o desespero. Talvez esperasse por elas no matrimônio um terrível calvário, e Deus quisesse afastá-las disso... ) . Sendo graciosas e atraentes, uma saúde precária ou uma enfermidade incurável pode impedir-lhes a vida conjugal. Repetimos o mesmo que para as anteriores. ) . Com freqüência, a pobreza é obstáculo para seu matrimônio. São poucos os jovens de alma nobre que sabem sacri car o material diante dos bens espirituais, incomparavelmente mais preciosos e elevados. Aquelas assim desprezadas ergam seus olhos ao céu e esperem n’Aquele que chamou de bem-aventurados os pobres e quis santi car a pobreza com seu próprio exemplo heróico. ) . Trazem a vergonha de uma desonra familiar da qual não são pessoalmente culpadas (por exemplo, seu pai está na prisão como ladrão ou assassino; sua mãe abandonou o lar fugindo com outro homem, etc.). ) . Seu noivo as abandonou, ou morreu em um acidente trágico ou no campo de batalha... Amavam-se com tal ternura, que lhes parece impossível poder amar a outro homem como a ele, e renunciam para sempre ao matrimônio, que constituía toda a sua alegria. Em sua inexperiência juvenil, ignoram que o tempo tudo apaga, até as dores e amarguras que parecem mais irreparáveis. A todas essas almas vítimas da desgraça, gostaríamos de levar uma palavra de consolo. Repetimos que nada irão remediar com o desespero: ao contrário, iriam piorá-lo terrivelmente. Devem

superar cristãmente sua infelicidade humana. Não duvidem nem por um momento de que Deus é nosso Pai e não permite absolutamente nada que não seja para nosso bem maior, ainda que no momento nos cause uma profunda ferida no coração. Levantem seus olhos ao céu e digam com toda a força e convicção de sua alma: “Assim Deus o quis; bendito seja Deus!”. 377. 4. . Antes deveriam ser chamadas de culpáveis por sua própria situação. Fazer-se amar é uma arte cheia de nuras e delicadezas: não é fácil triunfar sem generosos esforços. Por essa falta de habilidade e delicadeza, fracassam muitas destas: ) : extravagâncias, modas avançadas, pinturas e maquiagens postiças, frivolidade, coquetismo, super cialidade... Vão e vêm facilmente com muitos garotos, mas, exatamente por isso, nenhum rapaz sério jamais se aproximará delas para pretendê-las em matrimônio. ) . São aquelas que pisam no terreno da falta de vergonha. Descaradas e desenvoltas, seus enfeites, seu tom de voz, seus gestos e sinais, sua linguagem de baixo calão, sua extremada familiaridade com todos... tudo nela se mostra provocativo. Terão muitos “admiradores” circunstanciais e interessados... mas carão solteiras ou contrairão matrimônio com rapazes tão insensatos como elas, que as abandonarão por outra na primeira ocasião que se apresente. Ai daquelas que procuram “pescar” um noivo com base em uma sedução do tipo sensual!... Não se inveje sua sorte, sobretudo se conseguem o que pretendem. ) . Sempre sonharam com um “príncipe encantado”. Todos os demais lhes pareciam desprezíveis. O príncipe não chegou a tempo... e caram solteiras para sempre. ) . Criadas em sua casa, em um ambiente de mimo — se for lha única

—, ou de injusta predileção — se tem mais irmãos —, tudo precisa girar em torno delas. Elas se esquecem de que o matrimônio é uma generosa entrega para fazer felizes o esposo e os lhos, mais do que para a própria felicidade. Jamais o compreenderão assim e jamais conseguirão casar-se com qualquer homem que tenha um pouco de senso comum para rejeitar o repugnante egoísmo dessa pobre moça. ) . Hoje em dia, infelizmente, não é raro o caso de uma jovem enamorada de um homem com o qual é impossível contrair matrimônio: já está casado. Quantas pobres secretárias, mecanógrafas, operárias, camponesas, etc., são seduzidas pouco a pouco por seu chefe, patrão, etc., e acabam por se enamorar perdidamente dele! Não percebem que esse amor é impossível e, estimulando-o, constroem seu próprio infortúnio e o de toda uma família legitimamente constituída diante de Deus. Sua responsabilidade é gravíssima, e a única solução possível e urgente é romper pela raiz com esse amor criminoso, mesmo à custa dos maiores sacrifícios afetivos e econômicos. Não há outro remédio, custe o que custar. Procurem afastar-se para sempre do perigo e talvez cheguem a tempo de enamorar-se de um jovem com o qual possam contrair um legítimo matrimônio, o que jamais conseguirão por aqueles caminhos criminosos e extraviados. 2. As amarguras das não-casadas Vamos reunir aqui as principais causas que fazem sofrer as não-casadas — às vezes, ao ponto de encher sua vida de verdadeira amargura —, a m de remediar ou prevenir seus tristes e lamentáveis efeitos, sobretudo quando não se resignam à vida de solteiras e vêem nela uma irremediável desgraça, em vez de uma disposição da Divina Providência, sem dúvida alguma para seu maior bem. Estas amarguras, que as fazem sofrer horrivelmente, são principalmente as seguintes:

378. a) . O ser humano foi feito para viver em companhia. Sendo sociável por natureza, sente um horror instintivo à solidão — salvo raríssimas exceções patológicas ou vocacionais —, que considera como uma desgraça. Se são várias as irmãs solteiras que vivem sob o teto de um mesmo lar, suavizase muito o problema da solidão, até praticamente desaparecer por completo. Mas se a solteira é a única em sua casa, ou tem de conviver com um irmão ou irmã casada, o problema de sua solidão pessoal se manifesta muitas vezes, sem que possa ser resolvido inteiramente com as atenções e o carinho de seus irmãos ou sobrinhos. 379. b)

. Escreve Grimaud:

Será possível compreender o sofrimento de uma mulher que, tendo desejado com toda a sua alma a vida conjugal e as alegrias da maternidade, comprova, quase com certeza, que não lhe será possível conseguir nenhuma delas? Um desengano, uma decepção, são tanto mais fortes quanto mais realizável e mais sensata era a esperança que se perde. Para a jovem, o desejo da maternidade não constitui um sonho louco, anormal ou culpável; ao contrário, é uma tendência legítima, honrosa, santi cante. E eis que ela se vê forçada a renunciar a esse desejo. Assim, por toda a sua juventude, ter-se-á inclinado a perseguir um objetivo que jamais alcançará em sua idade madura, e há de chorar para sempre em sua velhice. As mais profundas aspirações desta natureza ver-se-ão frustradas em de nitivo. Que oceano de amargura encerra a única palavra que serve de título ao presente capítulo! Insaciada!

380. c) . Muitas solteiras não têm problemas econômicos a resolver. Elas herdaram de seus pais bens materiais su cientes para passar comodamente o resto de sua vida sem se preocuparem com trabalho; seus pais se preocuparam com isso para que ela não tivesse de trabalhar mais tarde. E o que à primeira vista parecia suavizar sua triste situação de solteira forçada, ao contrário a piora terrivelmente. Oxalá tivesse de passar longas horas fora de seu lar solitário para ganhar honradamente o pão de cada dia! O trabalho lhe serviria de distração e aliviaria muitíssimo a amargura de sua solidão. Ao contrário, a ociosidade proporciona alimento abundante para sua

imaginação, que lhe vai pintando cada vez com nuvens mais negras o futuro incerto, escuro e sem saída. 381. d) . Sozinhas, insatisfeitas, desocupadas... a tentação virá sozinha. Talvez se desviem perigosamente (más leituras, espetáculos inconvenientes, busca de um marido a qualquer preço...). Talvez elas diminuam sua piedade, freqüentem menos os sacramentos, esfriem sua própria fé. Em casos extremos, podem chegar a experimentar uma espécie de rebeldia contra Deus, que as levará ao pecado e até às portas do desespero ou do suicídio. Em todo caso, virá a crise dos quarenta anos, com suas profundas transformações físicas e suas crises afetivas... Que fazer em circunstâncias tão terríveis? Jamais desanimar. Levante seus olhos ao céu e, longe de esfriar sua piedade, intensi que-a cada dia mais e mais. Entregue-se por inteiro a Deus, que, Pai amorosíssimo, sempre se compadece dos órfãos e abandonados. A Virgem Maria, que jamais abandona a quem a invoca com lial con ança, lhe estenderá sua mão de mãe e fará com que o sorriso de felicidade e de paz volte a esboçar-se nos lábios daquela que, em má hora, se julgou desgraçada para sempre. Com tão poderosos auxílios, com passo rme e decidido, sob o olhar de Deus, a mulher solteira empreenda o verdadeiro caminho de sua vocação. 3. A solução cristã 382. O cristianismo tem soluções para todos os problemas da vida humana, inclusive para quem apresenta o problema da vida solteira involuntária; mas é preciso, como condição indispensável, que se queira aceitar essa solução. Humanamente, nada se pode fazer contra uma vontade rebelde que se fecha sobre si mesma, negando-se a aceitar qualquer sugestão que não coincida com sua própria concepção caprichosa. São quatro os principais elementos que integram essa solução cristã: a própria

interessada, a família, a religião e a sociedade. 383. a) . Antes de tudo, é preciso convencer-se de que cada um é o fator mais decisivo de sua própria felicidade ou desventura. A relativa felicidade que se pode alcançar neste mundo consiste em um estado de equilíbrio interior e de plena conformidade com aquilo que cada um tem, apagando em nós o desejo daquilo que não podemos alcançar. Enquanto continuarmos desejando o absolutamente inalcançável, é de todo impossível estabelecer a paz e a tranqüilidade em nosso espírito, condição indispensável para ser feliz. Para conseguir esse equilíbrio e serenidade de espírito, nada melhor que incrementar em grande escala a vida de piedade: Comunhão diária, oração fervorosa, entrega total ao serviço de Deus. É preciso avivar a fé, dar-se conta de que somos uns pobres desterrados, condenados a viver longe da verdadeira pátria, a única em que encontraremos, algum dia não muito distante, uma felicidade plena e completa que jamais poderemos alcançar neste vale de lágrimas, mesmo que tudo saia segundo os nossos gostos e caprichos. Aceitar a vontade de Deus a nosso respeito, não com resignação, mas com um sorriso nos lábios: eis aí o segredo da própria felicidade, na forma puramente relativa que se pode alcançar neste mundo. É preciso ter fé. Que a solteira não se esqueça de que aqui na terra a felicidade não é exclusiva e inerente ao matrimônio. Antes, ela reside na plena aceitação da vocação ou do lugar designado por Deus para cada um. Se não tem vocação religiosa, a entrada para um convento não iria resolver seu problema: iria agravá-lo ainda mais. Somente uma visão sobrenatural da vida dará um curso normal para ela. A oração será o seu sustento; sua força, a Eucaristia. 384. b) . Apesar de sua infecundidade física, a solteira cristã pode exercer uma função maternal em casa. A irmã mais

velha, suplente da mãe desaparecida. A solteira, sustento de seus pais idosos. A tia, discreta colaboradora da mãe na educação de seus sobrinhos. Se ela quiser, quanto amor, quanta ternura maternal pode colocar em tudo isto! 385. c) oferece um vastíssimo campo para uma tarefa absorvente e grandiosa que somente uma solteira abnegada e virtuosa poderia desenvolver. Catequese, visita aos pobres e enfermos, zeladora de associações religiosas, auxiliar do sacerdote nas obras paroquiais, apostolado nos subúrbios, hospitais e cárceres, Conferências de São Vicente de Paulo, Ação Católica, etc., etc. Aqui está uma breve lista de atividades apostólicas de incalculável valor a que a solteira cristã pode dedicar-se plenamente, e que jamais poderia realizar — ou, pelo menos, em tão grande proporção e escala — se tivesse contraído matrimônio. 386. d) . Também a sociedade civil pode oferecer à solteira um amplo campo de atividades nobres e elevadas, ainda que não sejam do tipo estritamente religioso: enfermeira, assistente social, obras bene centes, etc. Acaso pode ser chamada de fracassada uma existência que se emprega em ocupações tão nobres e abnegadas? Todos estes elementos constituem — repetimos — a solução cristã para o problema humano das solteiras. Bem entendida, a vida de solteira da mulher constitui “um novo valor do mundo contemporâneo”. Deixa de ser um fracasso, um estado psicológico doentio, e se transforma em uma opção que se apresenta — entre outras — para a mulher atual. A virgindade — inclusive aquela imposta pelas circunstâncias, mas plenamente aceita em nível virtuoso — é superior ao matrimônio e, em certo sentido, mais fecunda que ele. Só é estéril quem vive sem amor. O amor é sempre criativo e portador de vida. O corpo limita e achata a pessoa humana: só o espírito oferece o in nito. Solteira ou casada, somente a mulher egoísta que se dobra sobre si mesma é uma autêntica fracassada.

Artigo 5 — Papel dos pais na vocação de seus filhos 387. Ao falar da vocação sacerdotal ou religiosa, já dissemos alguma coisa sobre o papel que cabe aos pais em relação à vocação de seus lhos, seja ela qual for. Mas insistiremos um pouco mais, dada a grande importância deste assunto. O papel dos pais em relação à vocação de seus lhos pode ser resumido na seguinte fórmula: aconselhar retamente os seus lhos, respeitando sua total liberdade na escolha de estado. Este é um dos deveres mais sagrados dos pais, que tem sua origem no direito natural, que toda pessoa tem, de escolher o estado ou o modo de vida a que se sinta chamada por Deus, seja ele qual for. A este respeito, o imortal Pontí ce Leão

observa:

Não há dúvida que, na escolha do gênero de vida, está no poder e no arbítrio de cada um assumir um dos dois partidos: ou seguir o conselho de Jesus Cristo sobre a virgindade, ou ligar-se com o vínculo do matrimônio.440

Os pais podem e devem aconselhar seus lhos deste gravíssimo assunto, sem nenhuma intenção egoísta, pensando unicamente no bem dos próprios lhos. Mas não podem, de modo algum, imporlhes a sua vontade, coagindo a liberdade de seus lhos. A razão disso é que, nas coisas relativas à conservação do indivíduo e da espécie, todos os seres humanos são iguais, sem que haja superior nem inferior. Todos podem dispor de sua própria vida como lhe aprouver, sem outras limitações além daquelas que impõem a lei de Deus e o cumprimento de sua divina vontade. A vocação para um estado particular de vida (matrimônio, sacerdócio, vida religiosa, virgindade no mundo) é um ato da Providência Divina que rebaixa e supera a autoridade dos pais.

Entretanto, poderia ocorrer o caso de que o lho pecasse gravemente por não ouvir o conselho de seus pais, quando estes o aconselhem reta e imparcialmente sobre a não-conveniência de contrair matrimônio com determinada pessoa verdadeiramente indigna. Pode acontecer, de fato, que o lho ou a lha, seduzidos pela efêmera beleza corporal ou por razões materialistas de fortuna, nome, etc., procure contrair matrimônio com certa pessoa, de tal modo que claramente se prevê que irá acabar em infortúnio e desdita irreparáveis. Neste caso, os pais podem e devem tentar dissuadir seu lho ou lha de contrair esse matrimônio, embora sempre por meios lícitos e sem coagir, em última instância, a liberdade do interessado. Seria outra coisa se este conselho fosse dado por puro capricho ou com intenções egoístas (sentimentalismo, classismo, etc.), sem nenhum fundamento objetivo. Neste último caso, o lho não teria obrigação alguma de obedecer a seus pais. Quanto ao lho ou lha que deseja ingressar na religião ou abraçar o estado sacerdotal, pode fazê-lo livremente, mesmo contra a vontade irracional e anticristã de seus pais. Quando Deus concede a uma família a honra incomparável de chamar um de seus lhos ou lhas à dignidade sacerdotal ou ao estado religioso, os pais têm a gravíssima obrigação de não estorvar os planos divinos, do contrário se expõem a comprometer seriamente sua própria salvação eterna, como também a de seus lhos. “Sem dúvida alguma”, diz a este propósito Pio

,441

diante de um desejo de vida sacerdotal ou religiosa, os pais têm o direito — e em certos casos o dever — de assegurar-se de que não se trata de um simples impulso da imaginação ou um sentimento que anseia por um belo sonho fora de casa, sem uma deliberação séria, ponderada, sobrenatural, examinada e aprovada por um sábio e prudente confessor ou diretor espiritual. Mas se à realização de tal desejo eles quisessem impor retardamentos arbitrários, injusti cados, irracionais, isto seria lutar contra os desígnios de Deus; e ainda pior se buscassem provar ou experimentar sua solidez ou rmeza com provas inúteis, perigosas, ousadas, que arriscariam não somente desanimar uma vocação, mas também pôr em perigo a própria salvação da alma.

Insistindo nestas idéias, escreve com grande acerto o insigne Cardeal Gomá:442 Quais são os direitos dos pais na questão da vocação? Pobres pais! Eles vos querem como à própria vida. Eles vos trouxeram ao mundo e vos criaram entre mil cuidados; eles vos contemplam encantados com a beleza dos anos juvenis, o peito aberto às esperanças mais risonhas. E uma bela manhã, com meias palavras — porque sabeis que ireis causar-lhes um profundo desgosto —, fazeis que eles compreendam que Deus vos chama, e que quereis abraçar a vida religiosa. Eu compreendo que os pais, nesses momentos, cegados como estão pelo amor que têm por vós, sintam em seu coração o terrível aperto que causam os graves desgostos, e se não vos dão uma negativa completa, respondam com evasivas e retardamentos que só farão agravar este problema, que o amor humano e, às vezes, o egoísmo, causa em muitas famílias. Pois bem: com toda a reverência que vossos pais me inspiram, digo que eles não são juízes na matéria da vocação de seus lhos, porque podem ser parciais, e o são em muitos casos. Já expusemos o âmbito do direito dos pais e os limites do pátrio poder. Eles não têm jurisdição sobre vossas almas, que não são deles, mas de Deus, que as deu a vós e que vos chama para Ele. E mais: eles se expõem a pecar gravemente se impedem vossa entrada na vida religiosa (ou no seminário), como diz o Concílio de Trento. Uma vez que vos tenham submetido a provas, não segundo o capricho deles, mas segundo aconselhe a prudência cristã, caso se note que vossa vocação é clara, eles devem dar-vos o sim que deles solicitais. Não o dão para o matrimônio, que é uma boa coisa? Por que não para a religião, que é uma coisa melhor? Não o dariam para conseguir uma fortuna? E que fortuna pode ser maior do que ser escolhido por Deus para uma vida de perfeição? Alegam eles que vos perderão, que terão de separar-se de vós, que ides entrar em uma vida de privações? Direi somente aos bons pais: contai o número de criaturas felizes no matrimônio, e contai as que encontrardes nos claustros, hospitais e casas de educação. Extraí a proporção e dizei com justiça onde se encontra a verdadeira felicidade. E não ireis negála ou regateá-la a vossos lhos e lhas.

Em todo caso, não esqueçam os pais que o assunto da vocação é um assunto estritamente pessoal dos lhos, e que, por direito natural e divino (cf. Lc 9, 59–62), está colocado completamente à margem de seu poder paterno. Os lhos podem e devem pedir-lhes conselho, sobretudo para contrair matrimônio com determinada pessoa, quando os lhos podem facilmente deixar-se enganar por impulsos de paixão. Mas se lhes negam obstinadamente seu consentimento para se consagrarem a Deus no estado sacerdotal ou religioso, os lhos sempre podem — e ordinariamente deverão

— abandonar sem permissão a casa paterna, e seguir o chamado de Deus contra a vontade de seus pais. Assim zeram muitos santos canonizados pela Igreja, entre os quais gura nossa incomparável Santa Teresa de Jesus.443

CAPÍTULO V | Os irmãos 388. Outro dos aspectos familiares que se deve levar muito em conta, caso se trate de viver uma autêntica espiritualidade laica, é aquilo que se refere ao relacionamento com os próprios irmãos que vivem junto a nós, sob o teto acolhedor do mesmo lar. Em outra de nossas obras, escrevemos o seguinte:444 Frater, “irmão”, equivale a fere alter, “quase outro”, como um prolongamento de nós mesmos. A verdadeira fraternidade funde os corações em um só, assim como os corpos procedem de uma mesma carne comum. Ele é nossa carne, disse Judá a seus irmãos, para dissuadi-los de matar a seu irmão José (Gn 37, 27). E o magní co salmo da fraternidade começa a cantar suas belezas e seus encantos com estas palavras: “Vede como é bom e agradável os irmãos viverem juntos!” (Sl 133). Porém, se não há nada mais doce e agradável que a verdadeira fraternidade, nada existe mais terrível e devastador do que o ódio e a rivalidade entre os irmãos. Recordem-se os nomes de Caim e Abel, Esaú e Jacó, José e seus irmãos: sua história se repete e se repetirá até o m dos séculos. Quando os ciúmes, a ambição ou a ira conseguem romper a unidade afetiva entre os irmãos, com freqüência não é só uma família que acaba destruída: às vezes, é todo um povo e toda uma civilização. A que se devem os desastres de mil guerras de sucessão?

Em virtude do vínculo natural indestrutível, e das exigências da piedade e da caridade fraterna, os irmãos se devem mutuamente amor intenso, íntima união e ajuda mútua. Vamos especi car isto com um pouco mais de detalhes.

1. Amor intenso 389. Os irmãos devem uns aos outros, antes de tudo, um íntimo e profundo amor, que chegue à plena concórdia e à união dos corações. Descrevendo a natureza do amor fraterno, escreve com singular acerto o Cardeal Gomá:445 O amor dos irmãos é inconfundível. É mais sereno que o dos esposos; mais igual e nivelado do que o professado mutuamente por pais e lhos; mais suave, pleno e desinteressado que o de simples amizade. O amor de verdadeiros irmãos tem como traços especí cos a intimidade, a con ança, a efusão, a serenidade, a liberdade; mas acharíamos nele alguma coisa dos outros amores fortes, pois não por acaso os irmãos nasceram do mesmo abraço conjugal, e cresceram juntos na mesma atmosfera dos amores do pai e da mãe. Sem dúvida, por essa plenitude e suavidade do amor fraterno, os bons irmãos conservam no mais sagrado de seu peito a lembrança dos felizes dias de família, e já velhos procuram-se pelos caminhos da vida, para se remoçarem nas antigas recordações, talvez para se contarem novas histórias, que esconderão do esposo, do lho ou do amigo, ou para dizer suas penas e pedir conselho naquilo que não irá con ar a ninguém, senão ao irmão ou à irmã. Assim o amor fraterno é “bom e agradável”, útil e prazeroso, bonum et iucundum, diz o salmista. Bom, porque é força e luz, em nível pessoal e social; agradável, porque é o bálsamo da vida daqueles que souberam ser irmãos com verdadeiro amor de fraternidade. Por isso Jesus Cristo quis que o amor social cristão tivesse todas as características do amor fraterno, situado no plano superior da vida sobrenatural. Ele mesmo se tornou o Irmão mais velho de todos os homens: “Primogênito entre todos os irmãos” (Rm 8, 29). Desde os próprios tempos apostólicos, a universalidade dos cristãos foi apelidada com o doce nome de “irmãos”: fratres. Ainda hoje, o pregador da palavra de Deus saúda seus ouvintes com a bela expressão: Meus irmãos... No começo do cristianismo, os apóstolos exortavam os éis ao amor de fraternidade: “Amai a fraternidade” (1Pd 2, 17); “Permaneça em vós a caridade da fraternidade” (Hb 13, 1).

O amor recíproco dos irmãos deve cercar-se de atenções e delicadezas contínuas. Não basta acolhê-lo no fundo do coração; é preciso que ele se manifeste com freqüência no exterior, ao menos na forma de um bondoso sorriso, de uma palavra amável, de um pequeno presente, um pequeno sacrifício que nos impomos alegremente em favor do irmão ou da irmã. Quando é sincero e profundo, o amor sabe inventar mil modos para se manifestar no

exterior, da forma mais oportuna, em determinado momento ou nas mais variadas circunstâncias.

2. União íntima 390. Além do amor afetivo e efetivo, e como sua conseqüência necessária, deve reinar entre os irmãos a mais doce, íntima e profunda união. Com freqüência, infelizmente, considera-se o irmão como um desmancha-prazeres. Quase nunca saem juntos. Ocultam-se cuidadosamente os “planos”. Não há intimidade com ele. São aqueles que “estragam a noite”. Nada mais distante do ideal. Os irmãos, entre si, devem ser os melhores amigos. Com o amigo fala-se abertamente sobre aquilo de que se gosta ou desagrada. Quem reúne melhores condições para ser nosso amigo do que nosso próprio irmão? Nenhum amigo pode estar mais interessado em nós do que ele. Que companhia pode ser melhor? Quem irá compartilhar mais intimamente nossas alegrias e nossos sofrimentos do que aquele que traz em suas veias o nosso próprio sangue? Esta união e mútua compenetração entre os irmãos adquire características e traços diferentes conforme se trate do irmão em relação à irmã ou da irmã em relação ao irmão. 1º — são — devem ser — para suas irmãs a sua melhor defesa, sua melhor companhia e sua melhor ajuda: ) . Ninguém se atreverá a tocar em tua irmã, mesmo que seja a tua melhor amiga. Não conheces ninguém que deu algumas bofetadas em defesa de sua irmã? Alguma vez não ouviste dizer: “Cuidado que ela tem um irmão”?...

) . Para sair à rua, ir aos espetáculos, etc. Quem se atreve a incomodar uma garota acompanhada de seu irmão? Quantas garotas não têm amigos, não podem comparecer a lugares lícitos onde poderiam encontrá-los, por não terem um irmão que as acompanhe! ) . Acabamos de insinuar isto. A mulher carece de certos recursos sociais que o homem possui facilmente. Por isso o irmão pode ajudar a irmã a buscar seu próprio futuro, proporcionando-lhe ocasiões de conhecer amigos, freqüentar ambientes, etc., nos quais possa encontrar o doce companheiro de sua vida (na suposição de que se sinta chamada ao matrimônio, como acontecerá na imensa maioria das vezes). 2º — são — devem ser — para o irmão o seu melhor con dente, o melhor freio para suas paixões juvenis, a sua mais re nada delicadeza. ) . A ela se recorre nos momentos de crise e dissabores juvenis, que talvez não compreendessem por completo os próprios pais, que pertencem a outra época e talvez tenham vivido em ambientes muito diferentes. Feliz daquele que, nos momentos difíceis de sua vida, pôde abrir o coração a uma irmã prudente e compreensiva, que soube derramar nele umas gotas de bálsamo e consolo, que em vão se teria buscado encontrar em outra parte! ) . Quem tem uma irmã a quem adora com todo o seu coração, facilmente olhará com respeito para todas as outras garotas. Gostarias que tratassem tua irmã como teus instintos passionais te impelem a tratar as demais garotas? O amor verdadeiro e cristão pela irmã pode ter uma in uência decisiva no amor e no relacionamento com a própria noiva.

) . A bondade da irmã, e até mesmo seu sacrifício, demonstrado em coisas pequenas (lavar a roupa, passar, limpar a casa ou objetos pessoais, etc.) podem exercer, e quase sempre exercem de fato, uma profunda in uência no coração do irmão, que se enche de ternura e delicadeza, contagiado pelo sublime exemplo de sua irmã.

3. Ajuda mútua 391. O amor intenso e a profunda união entre os irmãos não podem car encerrados na zona do puramente afetivo e sentimental. Devem ser traduzidos, havendo o caso, na mais completa e desinteressada ajuda mútua em todas as áreas da vida. ) , os irmãos devem ajudar-se mutuamente a serem cada dia melhores. Uma palavrinha amável, um conselho discreto e oportuno, uma simples insinuação cheia de carinho e, acima de tudo, a lição constante e calada do próprio exemplo podem exercer — e de fato quase sempre exercem — uma in uência decisiva na conduta do irmão ou da irmã. Que felicidade pode ser maior do que ser o instrumento de Deus para salvar a alma do irmão, que talvez se teria perdido para sempre sem nossa heróica abnegação, nossa oração ardente e nosso carinho fraterno? ) , temos de compartilhar alegremente com nossos irmãos todos aqueles bens materiais que possam contribuir para tornar mais amável a vida deles, mesmo que seja privandonos de alguma coisa útil ou conveniente para nós. Nossos irmãos são nossos principais próximos depois de nossos pais; e o nível da caridade exige que os coloquemos acima de nossos amigos, nossas associações, nossos clubes e nossa equipe de futebol.

Essa ajuda mútua, tanto na área espiritual quanto no campo material, deve ser pronta, sacri cada, desinteressada e total. ) . Que o irmão não tenha necessidade de pedi-la: poderia se tornar humilhante. Mais ainda se ele se visse obrigado a pedi-la duas vezes. Uma demora injusti cada poderia causar um grande dano (sobretudo moral) no coração do irmão ou da irmã. ) . Em favor do irmão, é preciso chegar até o sacrifício, não só dos bens materiais, mas até da própria vida. Acaso não tem acontecido muitas vezes o exemplo impressionante de dois irmãos que pereceram ao mesmo tempo, porque um deles se lançou à água, sem saber nadar, para salvar o outro que se afogava? Era seu irmão que precisava dele, e não pensou em nada mais! ) . Acima de tudo, deve-se demonstrar esse desinteresse em relação aos bens materiais. Qualquer chantagem é sempre criminosa; mas entre irmãos o crime chega ao seu mais repugnante paroxismo. Aquele que se aproveita da necessidade de seu irmão para fazê-lo assinar um documento que jamais assinaria em condições normais é um ser miserável, digno do desprezo mais absoluto. ) . Nada de conta-gotas. É preciso ajudar o irmão de uma maneira total, até o máximo de nossas possibilidades; não com alguma coisa, mas com tudo. É claro que esta ajuda ao irmão — tratando-se sobretudo de bens materiais — deve ser regulada não só pelo carinho fraterno, mas também pela prudência cristã que, como se sabe, deve reger o exercício das demais virtudes.446 Assim, por exemplo, se nossa ajuda material tivesse de servir apenas para fomentar os vícios e desordens de um irmão pervertido, é claro que deveríamos abster-

nos de ajudá-lo dessa forma, encaminhando nossa ajuda e nossos esforços para afastá-lo do mau caminho, que o levaria à sua eterna perdição. 392. Levando em conta estes princípios, deve-se concluir que pecam gravemente: 1º — Os irmãos que se odeiam interiormente; ou se manifestam isso ao negar-lhes o cumprimento, a palavra, etc. Além do pecado contra a fraternidade, quase sempre se acrescenta o de grave escândalo para os demais. 2º — Aqueles que, por questões de herança, testamentos, partilhas, negócios, etc., mantêm graves rixas e altercações, com escândalo dos vizinhos, mesmo que não cheguem a odiar-se interiormente. 3º — Os que não se ajudam em suas necessidades materiais, podendo fazê-lo, ou os que são para os irmãos, com sua conduta depravada, motivo de escândalo, de infâmias ou de ruína espiritual.

CAPÍTULO VI | Os demais familiares 393. A família natural não se limita aos esposos, pais, lhos e irmãos. Ela se estende também a todos os ascendentes em linha reta ou colateral: avós, netos, tios, sobrinhos, sogros, genros ou noras... A todos eles deve estender-se nosso carinho familiar, nossa compreensão e, sobretudo, nossa caridade cristã.

O egoísmo humano soube se expressar em uma multidão de refrãos de mau gosto relativos à família (“Parentes são os dentes, e mordem a gente”; “Cunhado não é parente”; “Duas coisas matam a gente: vento pelas costas, sogra pela frente”, etc., etc.). Não é preciso dizer o quanto tudo isso é irracional e anticristão. Deixando de lado os deveres positivos para com os demais familiares — já que, mantendo as devidas distâncias, devem ser em tudo semelhantes aos que já descrevemos entre pais, lhos e irmãos —, insistiremos um pouco nos deveres negativos, principalmente na necessidade de evitar a todo custo a ruptura com esses familiares, demasiado freqüente, infelizmente, quando entram em choque questões de amor-próprio ou de interesses materiais. Exporemos brevissimamente esta matéria, de forma quase esquemática.447 i. Situação de muitas famílias a) Quantas famílias divididas entre si em razão de heranças, disputas, negócios!... b) Quanta hipocrisia, às vezes, nas relações com os familiares! Cortesia aparente entre eles... e críticas mordazes, invejas, rancores mal dissimulados em sua ausência. c) Às vezes se vê no parente o ser mais antipático e desagradável, muitas vezes sem maior fundamentação que o próprio egoísmo, o orgulho, a avareza ou a própria incompreensão. ii. Como surge o problema a) As relações familiares 1. Existem dois tipos de famílias: a) A família-núcleo: pais, lhos não-emancipados, irmãos.

b) A família ampliada: pais, lhos casados, os demais parentes. 2. A família-núcleo tem uma série de fatores que fomentam e facilitam a união e a concórdia dos corações. a) Afetivo: todos os amores se centralizam em torno do conjugal, paternal, lial e fraternal, que são os mais íntimos e profundos na ordem puramente humana. b) Material: a família-núcleo constitui, em si, uma só unidade econômica. c) Autoritário: todos estão submetidos à suprema autoridade do pai, que cuida e se preocupa com todos. 3. A família ampliada não tem essa unidade: a) Afetiva: os lhos casados têm de compartilhar o amor lial com o conjugal e o paternal, que são mais fortes do que aquele. O mesmo se diga, e com maior razão, dos demais parentes, ainda mais afastados do tronco comum. b) Material: cada grupo familiar constitui uma nova unidade independente. c) Autoritária: a autoridade única do pai desaparece. Permanece apenas um vínculo afetivo e moral, que nunca deve se romper por completo. b) Os vínculos entre os parentes São de tipos muito diferentes: .

:

a) Possuem um “ar de família” no siológico e no psicológico. b) Possuem uma história comum, idênticas glórias e desonras... c) Com freqüência, inclinações, virtudes e vícios semelhantes.

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:

O sangue comum e os gostos parecidos suscitam o amor mútuo. Mas a proximidade e a convivência podem ser ocasião de rivalidades, ciúmes... .

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Existe um patrimônio comum, negócios familiares, etc. Mas às vezes é preciso dividi-lo, separar as partes, etc. .

, jurídicos e sociais:

a) O amor aos parentes deve ser maior que aos estranhos, por lei natural e por caridade cristã. b) A própria lei civil obriga a isso. Testamento, direitos de herança, ajuda aos pais, etc. c) Os costumes sociais, as festas, o luto, os convites... são abundantes no mesmo sentido. c) A ruptura 1. Não costuma ocorrer por razões procedentes dos vínculos de sangue, que nunca se transforma em água. 2. Às vezes, pode provir dos vínculos educativos e afetivos. O mal-estar começa com a inveja infantil; mais tarde virá o ressentimento, as discussões freqüentes, talvez os primeiros sinais do ódio secreto ou público. 3. Em geral, quase sempre procede dos vínculos materiais. Ao se separarem os membros da família, cada um deseja o melhor ou a maior parte: testamentos, heranças, partilhas... 4. Mas os deveres morais, jurídicos e sociais permanecem: são independentes de nosso egoísmo e de nossas paixões.

iii. Os remédios São de dois tipos: naturais e sobrenaturais. Não esqueçamos que, além de homens, tratam-se de cristãos. Exporemo-los em estilo direto e pessoal. a) Naturais, anteriores à ruptura 1. Acostuma-te a colocar-te no lugar de teu parente. Ele tem lhos, necessidades... Que farias no lugar dele? Nesta suposição, que gostarias que ele zesse por ti? 2. Cultiva a nobreza e a dignidade pessoal. Cada um tem suas próprias qualidades e defeitos. Não te compares com ninguém. Somente Deus sabe quem é melhor ou pior. Com freqüência as aparências enganam. 3. Quando venceres, não ras nem humilhes a ninguém. Tu mesmo prepararias o terreno para a revanche alheia. 4. Não te deixes cegar pelo dinheiro. A melhor herança para teus lhos é a paz e a serenidade de consciência, sem invejas nem ressentimentos contra ninguém. O dinheiro, somente, não dará a felicidade aos teus. Educa teus lhos nestes sentimentos e os farás mais felizes do que se deixasses para eles uma grande fortuna material. 5. Quanto tiveres um negócio, um testamento que outorgar, etc., prevê todas as eventualidades para evitar um futuro pleito. Consulta advogados, notários, etc., enquanto estais em paz. 6. Não tenhas preferências injustas entre teus familiares. No mesmo grau e condição de parentesco, todos devem ser iguais para ti; a não ser, naturalmente, que algum deles esteja mais necessitado de tua ajuda que os outros. Sê delicado e jamais ofendas a ninguém.

7. Incentiva tuas convicções morais. Há pessoas boas que, nesses assuntos, se comportam como se fossem perversas. Governa-te com a cabeça, com senso moral e responsabilidade cristã. 8. Estimula os vínculos afetivos com todos os teus familiares. Felicita-os por ocasião de seu onomástico, no Natal, etc. Não deixes passar demasiado tempo sem lhes oferecer alguma demonstração de carinho: uma visita pessoal, uma carta aos ausentes... b) Naturais, depois da ruptura 1. Jamais deves tomar a iniciativa da ruptura. Aconteça o que acontecer. É preciso manter a paz e a concórdia familiar a qualquer preço. 2. Não respondas à ofensa com a mesma moeda. Se as duas partes se ofendem mutuamente, torna-se muito difícil a solução amistosa. Se perdoas de coração e o manifestas assim com grandeza de alma, obrigarás o outro a reconhecer seu erro e sua falta. Em todo caso, tu terás cumprido com tua grave obrigação diante de Deus. 3. Sempre que possível, não leves o assunto aos tribunais. Escuta o que diz São Paulo, inspirado pelo Espírito Santo: E algum de vós que tem um litígio com outro ousa entrar em juízo diante dos injustos, e não diante dos santos? Acaso não sabeis que os santos irão julgar o mundo? E, se tendes de julgar o mundo, sereis incapazes de julgar essas outras causas menores? Não sabeis que temos de julgar até mesmo os anjos? Pois muito mais as coisas desta vida. Quando tiverdes desentendimentos sobre estas coisas da vida, estabeleceis como juízes aqueles que a Igreja não considera? Para vossa confusão eu vos falo deste modo. Não há entre vós nenhuma pessoa prudente capaz de ser juiz entre irmãos? Em vez disto, o irmão pleiteia com o irmão, e isso diante de in éis? Já é lamentável que tenhais pleitos uns com os outros. Por que não preferis sofrer a injustiça? Por que não o serdes prejudicados? Em vez disso, sois vós que cometeis injustiças e despojais, e isso entre irmãos. Não sabeis que os injustos não possuirão o reino de Deus? (1Cor 6, 1–9).

O terrível discurso de São Paulo contra os pleitos está plenamente justi cado. Mesmo que alguém tenha razão, um acordo de paz é mais cristão, e até mais humano. Recorda a maldição da cigana: “Que tenhas pleitos, e os ganhes”.448 4. Quando o conjunto de circunstâncias insuperáveis torne necessário o recurso aos tribunais, adota-o sem paixão e, sobretudo, sem rancor, disposto a todo momento ao acordo pací co, mesmo cedendo algo de teu direito. E procura que teus lhos não herdem nenhum ressentimento entre os parentes, mesmo que estes se comportem injustamente. Não penses jamais em vingança. Aquele que se vinga não faz a ninguém tanto mal como a si mesmo, já que contrai grande dívida diante de Deus e de sua própria consciência. c) Sobrenaturais Além destes argumentos que nos são ditados pela simples razão natural, o cristão tem muitos outros mais fortes, procedentes da revelação divina. Os principais são a lembrança de nossa comum liação divina e as exigências da caridade cristã, que constituem a própria essência do cristianismo. 1. Somos todos lhos de Deus e temos de imitar o nosso Pai do céu, tão bom que “faz o sol nascer sobre bons e maus, e chover sobre justos e pecadores” (Mt 5, 45). E esse Pai tão bom disse solenemente: “Com a mesma medida com que medirdes aos outros, vós sereis medidos” (Mt 7, 2). 2. A caridade deve recair sobre todos os homens sem exceção, mas tem exigências especiais em relação aos próprios parentes: “Se alguém não olha pelos seus, sobretudo os de sua casa, ele negou a fé e é pior que um in el” (1Tm 5, 8). 3. Nosso maior tesouro é Deus. E as ofensas dos outros não nos podem tomar esse tesouro. Ao contrário, podemos perdê-lo para sempre pelos pecados que acaso cometamos, se pretendemos reparar a todo custo “nossa honra” ou “nossos bens”. Por todos

os ângulos, o caminho mais proveitoso para todos é o do perdão e da paz.

CAPÍTULO VII | O serviço doméstico 394. Parece um anacronismo falar do serviço doméstico às vésperas de seu total desaparecimento. O mundo de hoje e a mentalidade moderna já não aceitam a condição de servo aplicada a nenhuma pessoa humana. Embora sejam muito complexas e variadas as causas que determinaram esse estado de coisas, seria interessante averiguar se o trato humilhante — às vezes inteiramente tirânico e sub-humano — que muitos servidores receberam de seus patrões não foi um dos fatores mais decisivos que levaram a este resultado. Hoje, os senhores precisam fazer o papel de serventes, talvez por não terem sabido exercer outrora o verdadeiro papel de pais. Conhecemos o caso de uma família cristianíssima que considera suas quatro serventes como membros extensivos da própria família. Em seu lar, todas as noites se reza o Santo Rosário, mas nunca sem que estejam presentes todas as serventes, que se sentam em cadeiras idênticas às dos lhos. Uma das serventes está enferma, de cama, há vários anos, com uma enfermidade incurável. Jamais aceitaram levá-la para um hospital. Sua casa é a de seus senhores, que a visitam carinhosamente todos os dias — a senhora passa longas horas com ela — e tiveram a delicadeza de instalar no quarto da doente um televisor que lhe sirva de distração. É possível, como dizíamos, que dentro de poucos anos se extinga para sempre o serviço doméstico; mas talvez jamais se tivesse chegado a este resultado se todas as famílias do mundo se parecessem um pouco com a que acabamos de citar.

Os direitos e deveres dos senhores são, ao contrário, deveres e direitos dos servidores; o direito próprio é sempre correlativo ao dever alheio.

São Paulo resumiu maravilhosamente os direitos e deveres dos patrões e criados em diferentes lugares, distribuídos ao longo de suas cartas. Eis aqui alguns dos textos mais importantes: “Servos, obedecei a vossos amos segundo a carne, como a Cristo, com temor e tremor, na simplicidade de vosso coração; não como quem serve debaixo do olhar, como buscando agradar ao homem, mas como servos de Cristo, como quem cumpre de coração a vontade de Deus, servindo de boa vontade, como quem serve ao Senhor e não a homens; considerando que a cada um o Senhor retribui o bem que ele zer, tanto ao servo como ao livre. E vós, senhores, fazei o mesmo com eles, deixando de ameaças, considerando que nos céus está o Senhor, tanto deles quanto vosso, e que nele não há acepção de pessoas” (Ef 6, 5–9). “Que os servos estejam submissos a seus senhores, agradando-os em tudo, não os contradizendo nem defraudando em nada, mas mostrando-se éis em tudo para fazer honra à doutrina de Deus, nosso Salvador” (Tt 2, 9–10). “Servos, obedecei em tudo aos vossos senhores segundo a carne, não debaixo do olhar, como quem procura agradar aos homens, mas com simplicidade de coração por temor ao Senhor. Tudo o que façais, fazei-o de coração, como obedecendo ao Senhor e não aos homens, considerando que do Senhor recebereis por recompensa a herança. Servi, pois, ao Cristo Senhor. Aquele que age injustamente receberá a paga de sua injustiça, pois nele não há acepção de pessoas”. “Senhores, provede a vossos servos o que é justo e eqüitativo, considerando que também vós tereis um Senhor nos céus” (Cl 3, 22–25; 4, 1). “Vós todos sois lhos de Deus pela fé em Jesus Cristo. Todos que fostes batizados vos revestistes de Cristo. Já não há judeu nem grego, não há escravo ou livre, homem nem mulher, porque todos sois um em Cristo Jesus” (Gl 3, 26–28).

Como se vê, a razão fundamental que São Paulo invoca para estabelecer as relações entre senhores e criados é nossa comum liação adotiva em Cristo, e a necessidade de servir a Deus na pessoa de nossos semelhantes. Este princípio, bem assimilado, basta para deduzir todo o conjunto de obrigações recíprocas entre patrões e criados. Porém, para mais detalhes, reunimos a seguir, em forma esquemática e em estilo direto, os principais deveres entre uns e outros, que constituem, inversamente, os correspondentes direitos.449

1. Deveres dos patrões 395. São os direitos dos servidores. Alguns se referem à ordem puramente natural, outros à sobrenatural. a) Relativos à ordem natural 1º —

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a) É questão de justiça, e sua falta obriga à restituição. b) Não os enganes no tratamento. Não te aproveites de sua necessidade atual para explorá-los. Seria um crime monstruoso. c) Não adies a entrega do prometido. O salário defraudado clama ao céu (Tg 5, 4). 2º — . a) Geralmente são seres infelizes que muitas vezes procuram alguém que os compreenda e ame. Seus pais não o souberam ou não o quiseram... b) Se agem mal, corrige-os com doçura e boas maneiras. Talvez não lhes falte a boa vontade. Um descuido involuntário não é um crime. c) Se cumprem bem suas tarefas, procura estimulá-los, agradecendo-lhes. Irão dobrar seu trabalho e esforço. Como sabem agradecer umas palavras de ânimo e consolo! 3º —

.

a) São pessoas humanas, com tudo o que isto signi ca. b) Não são insensíveis. Apreciam muito a consideração ou a falta de consideração com que são tratados. Costumam pagar com a

mesma moeda; respeitam a quem os respeita, amam a quem os ama. c) Não lhes imponhas trabalhos que excedam suas forças, nem que os oprimam. Organiza o trabalho de modo que possam ter momentos de descanso. 4º —

.

a) A Providência os coloca em vossas mãos. A partir desse momento, sois o pai e a mãe deles. Vigiai suas amizades, suas leituras, suas diversões, etc. Deus vos pedirá conta deles. b) São eles que irão cuidar de vossos lhos pequenos. Por amor ao lho, vigiai os que cuidam dele. A força do bom ou do mau exemplo é envolvente nas crianças pequenas... e também nas maiores. b) Relativos à ordem sobrenatural Fundamento: São lhos de Deus, assim como os patrões (Gl 3, 26). Possuem uma alma imortal e um m sobrenatural. Isto vos obriga a facilitar-lhes: 1º —

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a) Antes de entrar no serviço eram bons cristãos; tinham todos os dias um momento de oração. Agora, os patrões não lhes dão permissão. Não há tempo... Que escândalo e que responsabilidade diante de Deus! b) Saibam os patrões que têm a obrigação de lhes facilitar os meios. 2º — . a) É um preceito grave da Igreja que obriga a todos os católicos. b) Na hora da Missa, deve-se preparar uma viagem ou uma caçada... Resumindo: a servente não pode ir à Missa. Grande responsabilidade a de seus patrões!

3º —

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a) Convencê-los, com doçura e carinho, a viverem cristãmente, confessar-se e comungar com freqüência, e fugir das ocasiões de pecado, etc. b) Espetáculo sublime: o Rosário familiar em companhia dos criados.

2. Deveres dos servidores 396. São os direitos dos patrões. Eis os principais: .

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a) Simples, sem barganhas, queixas, resistências... b) Alegre, como quem está servindo ao próprio Cristo, não aos homens (Ef 6, 7). c) Afetuosa, como a de um lho para com seus pais. .

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a) A autoridade vem de Deus (Jo 19, 11). b) Se eles se excedem em algo, procura desculpar. Um momento de ira, de irre exão... c) Pensando que servis a Deus em vossos patrões. .

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a) Nos segredos que te con em.

b) Em salvaguardar os interesses dos patrões. c) Em não lhes causar prejuízos em seus bens, nem em sua reputação.

3. Doutrina de Pio xii sobre o serviço doméstico Depois desta breve visão de conjunto, reuniremos o índice sistemático do imortal Pontí ce Pio em seus famosos discursos aos recém-casados. Neles, abordou com freqüência o tema de que nos ocupamos. Eis suas principais idéias:450 397. Princípios. É freqüente a necessidade de ter que utilizar a ajuda alheia nas tarefas do lar. Em geral, nós necessitamos uns dos outros. A pro ssão de criado não humilha o homem. Todos nós, homens, somos servidores de Deus, mas na ordem da graça fomos elevados à dignidade de seus lhos. A doutrina do Corpo místico concilia a diversidade e a hierarquia entre os homens — diferentes membros — com estreita relação entre si — um mesmo Corpo. Patrões e empregados são membros de um mesmo Corpo místico, cuja cabeça é Cristo; são lhos de Deus e irmãos entre si. Diante de Deus não existem patrões e criados. Todos têm um Senhor em comum: Deus. Deus é o único Patrão do mundo: todos os demais somos servos. O próprio Cristo se aniquilou, assumindo a forma de servo. O papa é “servo dos servos de Deus”. Para Deus, a única coisa que importa é que aqueles que mandam e aqueles que servem cumpram bem o seu respectivo dever, pois o Senhor julgará a cada um conforme os seus méritos e culpas. O fato de que patrões e criados sejam iguais perante Deus não apaga entre eles as naturais diferenças sociais, nem diminui sua autoridade.

398. Comportamento dos patrões com os criados. Os servos eram duramente tratados na Antigüidade pagã, mas o cristianismo mitigou essa dureza. É notável a união que se nota entre patrões e criados entre os primitivos mártires da Igreja. Se patrões e criados são irmãos, devem haver entre eles relações de fraternidade; não só de justiça, mas de cordialidade. A sociedade entre patrão e criado não é mero contrato de trabalho: é a entrada de um estranho na convivência familiar para, de certo modo, fazer parte da família. Sua introdução equivale, em certo sentido, a uma adoção. O pai ou a mãe dos criados ou criadas de certo modo delegam aos patrões a sua autoridade paterna em relação a seus lhos. A patroa deve ser como uma mãe para sua criada, no material e no espiritual. Os patrões são responsáveis pelos criados como pelos lhos. Deve-se informar-se bem antes de admitir um servente, pois deste dependerá em boa parte a educação dos lhos e o andamento geral da casa. Toda a autoridade do patrão vem de Deus: não se ensoberbeça. Não precisa ser excessivamente exigente com a perfeição dos trabalhos dos criados. Devem demonstrar carinho e não usar de ameaças, pois mais que o salário eles são gratos pelas palavras cordiais. Não se perde o próprio decoro tratando bem aos criados, muito pelo contrário. Especial importância tem o tratamento na primeira vez que um criado chega para servir. Seria bom começar as obras externas de caridade pelos próprios criados, pois às vezes os patrões são externamente pródigos, e esquecem as necessidades — que não são menores — dos seus criados. Os criados devem participar da oração com a família. É preciso dar-lhes tempo e condições para cumprirem seus deveres de piedade. Devem promover entre eles a vida cristã, a educação e a instrução sobrenatural, e permitir-lhes um refúgio para as horas de descanso. Cuidado com a moralidade nas relações entre criados É

e criadas na casa em que existirem. É preciso educar os lhos no respeito às criadas e prevenir os males... Prudência nas conversas diante dos criados devido ao dano que lhes podem causar inconscientemente, semeando entre eles a inveja e o rancor. A imprudência das palavras diante da gente simples do povo teve grande in uência nos desmandos da Revolução Francesa. O povo é inexoravelmente lógico, e extrai as conseqüências daquilo que vê nas atitudes dos grandes. 399. Comportamento dos criados. Os criados acabam por se inteirar dos defeitos e virtudes da casa, e chegam a ter in uência decisiva no andamento dela. Cumpram seu trabalho com diligência, não defraudem os patrões, não revelem os segredos domésticos, afastem-se da insolência, da murmuração, de semear descontentamento, impiedade ou desonestidade entre os lhos. Causam danos a murmuração e a maledicência dos serventes. O segredo de certos lhos mal-educados está nas liberdades e imprudências de certos criados. Que eles sirvam os patrões como quem serve a Deus. Como são belas as relações cristãs entre patrões e criados, e daquele velho criado que talvez tenha servido a duas gerações no mesmo lar.

TERCEIRA SEÇÃO | A EDUCAÇÃO DOS FILHOS 400. Chegamos a um dos temas culminantes da santi cação do leigo por meio da família cristã. A educação cristã dos lhos é de importância tão capital e decisiva no seio do lar, e mesmo no interior de toda a sociedade humana, que sem ela seria de todo impossível não só a santi cação dos pais, mas também a dos lhos e, por conseguinte, da sociedade humana em geral, já que esta

sociedade não é, de nitivamente, senão agrupamento orgânico de todos os correspondentes.

o resultado do seus membros

Como já indicamos em outra parte, sem a educação cristã dos lhos a vinda deles ao mundo, mais que um feliz acontecimento e uma bênção de Deus, deveria ser considerada como verdadeira desgraça e o começo de sua eterna desventura: “Mais lhe valeria não ter nascido”, disse o próprio Cristo sobre o traidor Judas (cf. Mc 14, 21). Por isso a Igreja, nossa mãe, perfeitamente consciente dessa gravíssima obrigação dos pais, declarou reiteradamente que “a geração e educação da prole é o m primário do matrimônio (cân. 1013, §1).451 Não basta, pois, para cumprir esse m primário, a simples geração dos lhos: é preciso, além disso, educá-los cristãmente para assegurar-lhes sua felicidade temporal e eterna, como lhos de Deus que eles são. Assim, vamos examinar este assunto transcendental com o maior cuidado e a máxima extensão que nos permite o marco geral de nossa obra. Vamos inspirar-nos principalmente nos ensinamentos do Concílio Vaticano , dos últimos grandes pontí ces que governaram a Igreja e de numerosos autores modernos. Para os resumos esquemáticos — quando assim o exigir a extensão da matéria —, vamos servir-nos da coleção de Temas de predicación elaborados na faculdade de teologia do Convento de Santo Estêvão de Salamanca. Dividiremos esta seção em dois longos capítulos, subdivididos em seus artigos correspondentes. O primeiro capítulo será dedicado a expor os princípios fundamentais da educação em geral. No segundo, vamos expor aqueles relacionados aos diferentes aspectos da educação em particular.

CAPÍTULO I | A educação dos filhos em geral Como acabamos de indicar, neste primeiro capítulo exporemos os princípios fundamentais da educação dos lhos em geral, reservando para o capítulo seguinte os detalhes concretos de cada um dos aspectos da educação em particular. Eis os pontos fundamentais que vamos examinar neste capítulo: 1. Doutrina do Concílio Vaticano . 2. Rumo a uma educação autêntica. 3. Direito dos pais à educação de seus lhos. 4. A educação, obra comum dos pais. 5. Um programa de educação. 6. O feminino na educação. 7. Educação e pessoa. 8. A compreensão, fator educativo. 9. A arte de mandar. 10. A arte de vigiar. 11. A arte de corrigir e castigar. 12. A arte de estimular e premiar. 13. O exemplo dos pais.

Artigo 1 — Doutrina do Concílio Vaticano ii 401. Como se sabe, o Concílio Vaticano promulgou uma magní ca Declaração sobre a Educação Cristã da Juventude, que todos os educadores devem reler e meditar constantemente se querem acertar em sua gravíssima e delicada tarefa. Diante da impossibilidade de citá-la integralmente aqui, oferecemos ao leitor o esquema da mesma, que não dispensa, entretanto, a leitura direta e completa dessas preciosas páginas.452

*** Proêmio. Suma importância da educação na vida do homem. Maior facilidade e necessidade da educação no mundo de hoje. Missão da Igreja na educação integral do homem. 1. Direito de todo homem à educação. É preciso colaborar para que a educação seja dada a todos os homens. Luta contra o analfabetismo. É necessária uma educação integral, isto é, física, moral, intelectual, sexual, social e religiosa. 2. Finalidades características da educação cristã: não só a completa formação humana, mas também o desenvolvimento pessoal da fé, da oração e da participação no culto, o progresso da vida do homem novo em Cristo, o envolvimento comunitário e apostólico. 3. Direitos e deveres dos pais e importância da família na educação. Deveres e direitos da sociedade civil e da Igreja. 4. Para educar, a Igreja se vale sobretudo dos meios próprios (catequese, liturgia, etc.). Mas também usa outros meios (escolas,

associações, meios de comunicação social) que são comuns a todos os homens. 5. Importância da escola e da vocação para o ensino. 6. Direito da família à escolha da escola. Dever do Estado de dar subvenções às escolas, de modo que que assegurado a aplicação desse direito. Dever do Estado de promover e supervisionar a escola, com isenção de todo monopólio. 7. Necessidade de que a Igreja ajude os jovens que freqüentam escolas não-católicas, por meio do testemunho dos mestres, da ação apostólica dos condiscípulos e do ministério daqueles que ensinam a doutrina da salvação. Necessidade de assegurar uma educação que esteja de acordo com os princípios morais e religiosos próprios das famílias. 8. Importância da escola católica, que deve criar um clima propício ao desenvolvimento harmonioso da vida cristã. Direito da Igreja de fundar e dirigir escolas católicas de todo tipo e grau. Necessidade de uma severa preparação pro ssional e de uma autêntica ação apostólica dos professores nessas escolas. Dever dos pais de con ar seus lhos às escolas católicas, conforme as circunstâncias de tempo e lugar. 9. É preciso levar em conta os diferentes tipos de escolas (pro ssionais, técnicas, sociais, para adultos, etc.), que são particularmente exigidas pela situação atual. Exortação aos pastores e aos éis para que ajudem as escolas católicas e supram as necessidades daqueles que carecem de meios econômicos, ou se vêem privados da ajuda e do afeto da família, ou vivem afastados do dom da fé. 10. Importância das faculdades e das universidades católicas, nas quais as diferentes disciplinas são cultivadas segundo princípios e métodos próprios, com a liberdade própria da pesquisa cientí ca e em um clima de abertura aos novos problemas e investigações. Ali

onde não houver uma faculdade teológica, seja instituído ao menos um instituto ou cátedra de teologia. Também nas universidades católicas, procure-se a criação de residências e centros para a assistência da juventude universitária. 11. Importância das faculdades de ciências sagradas, as quais deverão cuidar da formação para o ensino nos centros de ciências eclesiásticas, do conhecimento cada vez mais profundo da revelação divina, do diálogo com os irmãos separados e da resposta aos problemas colocados pelo progresso cultural. 12. Necessidade de coordenar as escolas católicas, as diversas faculdades das universidades e as universidades entre si. Conclusão. O concílio manifesta sua gratidão a todos aqueles que se dedicam ao ensino, exorta-os à perseverança e, além disso, convida os jovens a se dedicarem a essa tarefa.

*** O esquema do magní co documento conciliar sobre a educação cristã da juventude vai até aqui. Sem prejuízo de reunir em seus lugares próprios citações mais completas de suas diferentes partes, procederemos agora à exposição dos grandes princípios que devem presidir todo o processo educacional da juventude, sobretudo no seio do lar, e em seus auxiliares mais imediatos.

Artigo 2 — Rumo a uma educação autêntica453

402. Ao nascer um homem, suas in nitas possibilidades se acham reduzidas à mais absoluta impotência. Ele necessita de tudo para tudo. Na humanidade, que se supera à base da luta e do esforço através dos séculos, descobrimos facilmente certo paralelismo com o progresso que deve seguir o indivíduo desde seu nascimento até que se coloque à altura das circunstâncias de sua época — até que se torne um homem de seu século. Isto já evidencia o esforço que exige toda educação — desenvolvimento —, junto com sua transcendência. A humanidade precisou de muitos milênios para chegar ao século ; a educação coloca a criança, em muito pouco tempo, no século atual. i. Sentido da educação a) Natureza 1. Etimologicamente, educação deriva de dois termos latinos: a) Educare = criar, nutrir, proteger, ensinar. b) Educere (mais provável) = fazer sair, extrair, conduzir, dirigir. Ambas se ajustam a seu sentido real: processo que se situa entre o nascimento e o ser “homem”. 2. Modernamente, foram atribuídos muitos outros signi cados a este termo: processo de adaptação; meio de desenvolver a e ciência social; desenvolvimento da personalidade; educação para a cultura, para a felicidade, etc. Cada um inclui diferentes aspectos. 3. Educação signi ca, pois, “desenvolvimento e incremento organizados de todas as potências morais, intelectuais e físicas do

ser humano, por e para seus usos individuais e sociais, dirigidas para a união dessas atividades com seu Criador como m último”. 4. A tarefa da educação é construir no interior da criança uma organização de conhecimentos e habilidades, hábitos e atitudes, virtudes e ideais, para a realização da nalidade de sua vida. É um crescimento, um desenvolvimento; é cristalização dos poderes potenciais da criança. 5. Em sentido amplo, abarca o conjunto de in uências que o indivíduo sofre no período de sua formação. Em sentido estrito, limita-se às intervenções dos meios sociais de educação organizada: família, Estado e Igreja. b) Fins da educação 1. Fim primário: orientar o indivíduo até colocá-lo em situação favorável para que ele alcance seu m último: Deus. Todo homem tem a mesma missão: salvar-se. Em torno desta idéia-eixo deve girar toda a educação. Para isso: a) O educando deve conhecer tudo quanto a revelação diz a este propósito. b) Igualmente em relação ao que ensina a razão: imortalidade da alma, insu ciência de qualquer felicidade intramundana, etc. 2. Fins secundários: visam ao aperfeiçoamento integral da vida humana, que é física e espiritual, intelectual e moral, individual, doméstica e social. a) Alguns objetivos: formar homens inteligentes, espiritualmente vigorosos, cultos, sadios, vocacionalmente preparados, sociais, patriotas...

b) Em qualquer dos campos indicados, o educador deve atuar em harmonia e a serviço do m primário de toda educação. c) Alguns desvios 1. Poder pátrio absoluto: diante da progressiva liberdade que toda educação sadia vai concedendo ao educando, esta teoria postulava tal autoridade no pai, que fazia do lho um perpétuo servidor. Assim aconteceu em: a) China: os lhos deviam obediência absoluta. A mulher se emancipava do próprio pai para submeter-se ao pai do marido. Os direitos do pai eram quase ilimitados: castigar, vender, hipotecar, inclusive matar. b) Roma: o pater familias tinha direito sobre tudo que estava à sua volta: mulher, lhos, netos, escravos, etc. Podia castigar, matar, vender, hipotecar, casar, divorciar, dispor de seus bens e daqueles adquiridos por seus descendentes. c) Não sobrevive alguma coisa deste modo de viver nesses educadores que se julgam com direito de mandar ou proibir o educando conforme o seu capricho? 2. Direito da criança a uma liberdade absoluta. Estamos no extremo oposto. É um desvio surgido em nossa época, fruto legítimo do liberalismo que nos envolve. Postula-se uma liberdade absoluta — para o homem e para a criança — como direito fundamental da pessoa humana. Exige neutralidade no ensino e na educação familiar. Contudo: a) A educação não consiste em posicionar-se entre dois poderes em luta a m de atrair o indivíduo para seu lado, mas em conduzir até um m nobre e elevado que, dada a elevação do gênero humano à ordem sobrenatural, não pode ser outro senão o de lhe assegurar sua felicidade temporal e eterna. O educador pode e

deve inculcar no educando os princípios que conduzem a esse m, para que o educando o alcance por si mesmo. b) A natureza está ferida. O educador pode e deve recorrer a uma disciplina sabiamente traçada, em conformidade com os direitos e deveres do educando, sem renunciar aos meios e cazes da pedagogia. ii. Fatores educativos a) Instituições formais 1. A família: a) “O m próprio da família é a procriação e a educação dos lhos” (doutrina o cial da Igreja). b) Somente na família se pode realizar o sentido pleno da educação. c) Os pais têm poder sobre o lho, embora não arbitrário. d) O direito de educação da família é inviolável. 2. O Estado: a) Enquanto cidadã, a criança ca sob os direitos do Estado. 1º — O Estado tem o direito de supervisionar a educação das crianças. 2º — Por ser uma sociedade perfeita, está obrigado a compensar as de ciências e a proporcionar meios adequados. b) A intervenção do Estado ocorrerá sempre em harmonia com a Igreja e a família. Ele chega à criança por meio da família, “quando chegar a faltar, física ou moralmente, o trabalho dos pais por defeito, incapacidade ou indigência” (Pio ).

3. A Igreja: a) A Igreja é educadora por vontade expressa de Cristo: “Ide, pois, ensinai a todos os povos [...] ensinando-os a observar tudo quanto eu vos ordenei” (Mt 28, 19–20). b) “A educação pertence à Igreja, especialmente em razão de seu duplo direito” (Pio ). 1º — Tem a autoridade suprema para ensinar a fé divina. 2º — É mãe espiritual: deve gerar, nutrir e educar as almas na vida sobrenatural por meio dos sacramentos e do ensino. c) Portanto, é um direito e uma obrigação da Igreja “dedicar-se à educação de seus lhos em todas as instituições, tanto públicas como privadas, e não só no que diz respeito ao ensino puramente religioso, mas em qualquer ramo do saber” (Pio ). A Igreja pode e deve vigiar o ensino. A este respeito, ver o cânon 1362 e ss.454 b) Fatores não-formais 1. São todos aqueles nos quais a educação se produz de maneira incidental: ambiente, bibliotecas, companheiros, teatro, imprensa, cinema, televisão... 2. Dadas as possibilidades de educação — boa ou má — que esses meios oferecem, impõe-se uma vigilância por parte das instituições formais. Conclusão 1. Nenhuma criança é tão boa, que não corra o perigo de degenerar, nem tão má que não se possa corrigi-la. É muito possível que esteja certo o “Não podemos com ele” de tantos pais diante de seus lhos, mas não porque a criança seja incorri-

gível, senão pela debilidade e incapacidade dos pais, ou pela utilização de métodos inadequados. 2. É possível que somente um pequeno percentual de pais e mães tenham capacidade para educar convenientemente os seus lhos, como a rmam os inimigos da família e da Igreja para justi car a educação exclusiva do Estado. Mas isto apenas demonstra a necessidade urgente de educar os mais responsáveis pela educação das crianças, que são os seus pais. 3. Ao usar bons métodos, o bom educador avaliará as possibilidades do educando; ele fará do pequeno um “homem”, um “ lho de Deus”, um “santo”.

Artigo 3 — Direito dos pais à educação de seus filhos 403. Como se sabe, o comunismo e os Estados totalitários pretendem que a educação dos lhos pertença em primeiro lugar — quando não exclusivamente — ao Estado ou à sociedade civil, e não aos pais desses lhos. Esta monstruosa doutrina, abertamente oposta ao mais claro e evidente direito natural dos pais, foi rejeitada mil vezes pela Igreja através dos papas e dos concílios. Certamente, o Estado tem a obrigação de contribuir para a educação dos lhos, não só no aspecto intelectual — criando escolas, institutos, universidades, etc. —, mas também no aspecto moral, velando pela moralidade pública, respeitando e amparando a livre prática da religião, etc., mas de maneira alguma pode atribuir-se a exclusividade na educação dos lhos, que corresponde em primeiro lugar, por direito natural, aos próprios

pais, sob a amorosa tutela e direção da Igreja, que é nossa mãe espiritual. Ouçamos em primeiro lugar o Concílio Vaticano , que expõe, em um parágrafo admirável, a quem e em que grau e medida cabe a educação dos lhos:455 Os pais, que transmitiram a vida aos lhos, têm uma gravíssima obrigação de educar a prole e, por isso, devem ser reconhecidos como seus primeiros e principais educadores.456 Esta função educativa é de tanto peso que, onde não existir, di cilmente poderá ser suprida. Com efeito, é dever dos pais criar um ambiente de tal modo animado pelo amor e pela piedade para com Deus e para com os homens que favoreça a completa educação pessoal e social dos lhos. A família é, portanto, a primeira escola das virtudes sociais de que as sociedades têm necessidade. Mas é sobretudo na família cristã, ornada da graça e do dever do sacramento do Matrimônio, que os lhos devem ser ensinados desde os primeiros anos, segundo a fé recebida no Batismo, a conhecer e a adorar Deus e a amar o próximo; é aí que eles encontram a primeira experiência, quer da sã sociedade humana, quer da Igreja; é pela família, en m, que eles são pouco a pouco introduzidos no consórcio civil dos homens e no povo de Deus. Caiam, portanto, os pais, na conta da importância da família verdadeiramente cristã na vida e progresso do próprio povo de Deus.457 O dever de educar, que pertence primariamente à família, precisa da ajuda de toda a sociedade. Portanto, além dos direitos dos pais, e de outros a quem os pais con am uma parte do trabalho da educação, há certos deveres e direitos que competem à sociedade civil, enquanto pertence a esta ordenar o que se requer para o bem comum temporal. Faz parte dos seus deveres promover de vários modos a educação da juventude: defender os deveres e direitos dos pais, e de outros que colaboram na educação, e auxiliá-los; segundo o princípio da subsidiariedade, ultimar a obra da educação, se falharem os esforços dos pais e das outras sociedades, tendo, todavia, em consideração, os desejos dos pais; além disso, fundar escolas e instituições próprias, na medida em que o bem comum o exigir.458 Finalmente, por uma razão particular, pertence à Igreja o dever de educar, não só porque deve também ser reconhecida como sociedade humana capaz de ministrar a educação, mas sobretudo porque tem o dever de anunciar a todos os homens o caminho da salvação, de comunicar aos crentes a vida de Cristo e ajudá-los, com a sua contínua solicitude, a conseguir a plenitude desta vida.459 Portanto, a Igreja é obrigada a dar, como mãe, a estes seus lhos uma educação que preencha toda a sua vida do espírito de Cristo; ao mesmo tempo, porém, colabora com todos os povos na promoção da perfeição integral da pessoa humana, no bem da sociedade terrestre e na edi cação de um mundo con gurado mais humanamente.460

404. Esta é a doutrina o cial e tradicional da Igreja, recordada mais uma vez pelo Concílio Vaticano . Seria tarefa facílima

apresentar aqui dezenas de testemunhos dos papas e dos concílios, repetindo a mesma doutrina através dos séculos. Ouçamos tãosomente, em brevíssimo resumo, algumas idéias de Pio , distribuídas ao longo de seus maravilhosos discursos aos recémcasados:461 Os lhos são entregues em depósito aos pais, e pertencem antes a Deus que a eles. Dos pais é que os lhos devem receber três coisas: o ser, a nutrição e a educação. A boa educação dos lhos é a melhor garantia de felicidade na eternidade. Todos nascemos com o pecado original, e mesmo as crianças de boa condição natural necessitam de uma educação cuidadosa. Na intenção divina, os pais são os primeiros educadores de seus lhos, sob a direção do sacerdote, que se completam na tarefa educativa, porque existem duas paternidades: a espiritual, do sacerdote, e a carnal, do pai de família. Ninguém pode substituir plenamente os pais na educação de seus lhos; e a educação dada pelos próprios religiosos não dispensa os pais de seus deveres imediatos na educação. Eles são os responsáveis diante de Deus. A má educação recebida no lar não chega a ser plenamente corrigida no colégio. Em lugar de dissipar o tempo com distrações perigosas, os pais devem empregá-lo com seus lhos. Os esposos devem viver para o bem de seus lhos. Seu próprio bem-estar depende do deles, e a felicidade dos lhos depende em grande parte da educação que tiverem recebido dos pais. Para educar sabiamente os lhos, ajudam as graças especiais recebidas no sacramento do Matrimônio. O papel educativo dos pais muitas vezes é impedido pela preocupação de buscar o alimento diário. Então, devem con ar os lhos a mestres dignos de con ança, bons sacerdotes, catequistas, religiosos e religiosas. Os religiosos serão ótimos colaboradores dos pais. Os esposos fornecem, nos lhos, as pedras vivas para que os sacerdotes façam deles lhos da Igreja. A infância dos lhos ganha muito com a espera do semeador até que chegue a hora da colheita. Porém, é decisiva a importância das primeiras impressões, rece- bidas na educação materna. É preciso iniciar a educação desde a mais tenra idade.

405. Até aqui, o imortal pontí ce Pio . Para encerrar esta parte, reunimos a seguir alguns pensamentos muito bonitos de um grande educador contemporâneo que se dirige aos pais:462 No pensamento de Deus, uma criança é um santo em or. Quer o queirais, quer não, vós sois os colaboradores de Deus. Já o fostes na obra admirável da “criação” de vossos lhos. Deveis sê-lo também na obra não menos bela de sua “educação”. Educar É

procede de duas palavras latinas: ex ducere — tirar de, fazer brotar de. É fazer de uma criança — e, se possível, com sua colaboração cada vez mais consciente, à medida que cresce em idade — um homem, um cristão, um santo. Em outros termos, é fazer resplandecer, com a graça do Senhor, a efígie de Cristo sobre seu rosto de homem. Não se fale em utopia. Se tivéssemos fé ao menos como um grão de mostarda!... Recordemos as palavras de São Paulo sobre o ideal cristão: “Vivo, mas não eu, é Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20), e a brilhante a rmação de São João: “Somos chamados lhos de Deus, e o somos de fato” (1Jo 3, 1). A criança é um “valor” de preço in nito con ado por Deus ao espírito, ao coração e às mãos dos pais; um valor humano, um valor divino, um valor eterno. “A cada alma que se educa, educa-se o mundo” (Elisabeth Léseur). A grandeza de vossa missão! Preparar fermentos que façam crescer o mundo e o ajudem a ser mais feliz e melhor. Existe uma graça especí ca dos pais para a educação de seus lhos, e normalmente é deles que Deus quer valer-se, desde já, para moldar seu coração e sua inteligência [...]. Não há ação mais saudável que aquela de dar aos pais uma consciência clara da nobreza de sua missão [...]. A tarefa da educação é delicada, porque supõe ao mesmo tempo amor e desprendimento de si, doçura e rmeza, paciência e decisão. Ora, estas qualidades — com freqüência em contraste — exigem do educador não só coração, mas também bom senso, juízo e equilíbrio [...]. A educação é uma ciência e uma arte das mais delicadas. Para os animais, basta o instinto; para o homem, é necessário um esforço de inteligência e re exão [...]. Embora a tarefa da educação seja difícil e delicada, é necessário estar alerta contra todo desânimo, contra todo pessimismo. É verdade que não existem panacéias universais, assim como não há crianças idênticas. Mas existem, entretanto, princípios gerais cuja aplicação evita muitas decepções. É preciso buscar conhecer esses princípios, frutos da experiência, da observação, e também de um estudo profundo da natureza psicológica da criança através dos diferentes estágios de sua evolução [...]. Em certas horas difíceis, o pensamento de que Deus é o supremo dono das almas vos sugerirá chamá-lo em vosso socorro. Tendes certo direito à sua ajuda, e sua ação completará, no mais íntimo da alma de vossos lhos, os esforços que zerdes para agir segundo o seu amor. Recordai também os protetores de vossos lhos. Seu poder depende de vossa invocação: Nossa Senhora, que é, no sentido mais profundo da palavra, Mãe de suas almas; seu anjo da guarda; o santo que lhes destes por patrono; e, depois, todos esses avós dos quais talvez ignoreis o nome, a história e, ainda mais, as virtudes e os méritos, e que gozam todos, ou quase todos, da maravilhosa felicidade de “passar seu céu fazendo o

bem sobre a terra”. E vossos lhos, já herdeiros de suas virtudes, se bene ciariam com sua intercessão na medida em que peçais que eles intervenham.

Artigo 4 — A educação, obra conjunta dos pais 406. Dada a amplitude deste aspecto da educação dos lhos, vamos expô-lo em uma visão esquemática de conjunto.463 Mais abaixo voltaremos com mais detalhes sobre alguns de seus pontos fundamentais. Pais, pensai que gravita sobre vós uma responsabilidade muito grande. Em vossas mãos está o futuro de vossos lhos e de toda a pátria. Tendes a obrigação de educar não só o humano, mas também o cristão. A educação é a “elevação do homem para Deus”. Este deve ser a meta suprema de todo trabalho educativo. i. Os pais, “comunidade educadora” a) A educação, tarefa dos pais 1. A educação é o prolongamento, o desfecho da procriação. Ambas são um mesmo trabalho, já que a procriação é a comunicação dessa mesma vida humana que a educação deve desenvolver e ampliar. 2. Este dever e este direito dos pais a educar seus fundamenta na experiência e na razão:

lhos se

a) Já que o número dos educandos no seio do lar — sempre poucos, mesmo em famílias numerosas — torna possível sua formação individual integral.

b) Costuma ser fácil vigiar e controlar o ambiente do lar, tanto no que se refere às coisas quanto às pessoas. c) Os traços peculiares do masculino e do feminino se completam e compensam mutuamente nos educadores e, na maioria das vezes, nos educandos. d) A vida da sociedade familiar é uma realidade sem artifício, que reúne as pulsações do menor organismo social, econômico e também cultural e religioso, onde se desenvolvem os sentimentos caritativos, e os interesses e as virtudes sociais e econômicas. e) Os pais, achando-se física e espiritualmente mais perto de seus lhos que qualquer outra pessoa, conhecem como ninguém o caráter de cada lho e possuem — na maioria das vezes — uma invejável intuição pedagógica em relação a cada um deles. b) É uma obra em comum 1. A educação familiar achará seu perfeito equilíbrio se o equilíbrio e a simbiose dos sexos na educação são respeitados, mantidos e favorecidos, já que, se a educação fosse exclusivamente: a) Masculina, estaria regulada pela inteligência. Reinaria nela uma ordem mecânica, da qual se excluiria toda sensibilidade. b) Feminina, seria uma educação excessivamente sensível e de ciente em ordem e inteligência. 2. A boa educação exige que o lho receba ao mesmo tempo a in uência paterna e materna. 3. Se a concepção do lho deve ser, no plano divino, a conseqüência de uma união de amor entre os esposos, com mais

razão deve persistir esse amor no decorrer dos anos de formação. 4. Os dois sexos, em virtude de suas próprias qualidades particulares, estão ordenados um ao outro, de modo que essa mútua coordenação exerce sua in uência sobre todas as múltiplas manifestações da vida humana e social (Pio ). ii. Matizes desta obra em comum a) Antes do nascimento 1. A educação de um lho começa vinte anos antes de seu nascimento, com a educação de sua mãe, já que a mãe pode ajudar a vir a ser: a) Aquilo que o lho deve ser, sendo ela mesma. b) Tranqüilo e sorridente, permanecendo ela calma e sorridente. c) Forte, puro e bom, sendo ela corajosa, afastando pensamentos doentios e sendo bondosa com todos. 2. As melhores condições físicas e psicológicas são aquelas que derivam do fato de o lho ser muito desejado pela mãe. b) Depois do nascimento .

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a) Depende da mãe que o pequeno saiba ler aos cinco ou seis anos. O livro de onde aprenderá a discernir o bem ou o mal será o rosto da mãe com suas diferentes expressões. b) Nesses primeiros anos, o papel do pai deve ser menos destacado que o da mãe. Para isso é necessário que: 1º — Não tente dominar prematuramente o papel da mãe, criando uma popularidade fácil.

2º — Exerça sua autoridade indiretamente, na forma de aprovação plena. 3º — É conveniente, contudo, que algumas vezes se ocupe deles para que se habituem. .

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a) Por parte do pai: 1º — O pai deve exercer uma autoridade forte e imperiosa, ao mesmo tempo que tranqüila e serena. Não se deve esquecer, deste modo, que não é mau que a justa cólera do pai se traduza às vezes com alguma violência quando a criança já for maior; que a calma rme e a suavidade de uma reprimenda resultarão mais e cazes que uma atitude alvoroçada do pai aborrecido; e que é progressiva a chegada à maioridade. Por isso o lho só deve obediência total durante algum tempo, até que seja capaz de dirigir a si mesmo nas situações menos importantes. 2º — O pai tem o dever especial de dar a todos os seus um espírito de generosidade. 3º — Se o pai quer levar a educação a bom termo, dele se exige: que desempenhe melhor o ofício de pai que o de sua pro ssão. Antes de ser advogado ou médico, ele é pai. Não se esqueça disso. Que ele seja educador por meio de suas próprias virtudes: fé, lealdade, honra, trabalho, caridade... As palavras podem mover, mas só os exemplos arrastam. E que é importante que o lho seja prevenido por ele antes que se produzam os acontecimentos que o consagrarão como homem. Voltaremos a isto ao falar da educação sexual. 4º — O pai deve ter o espírito de tradição, mas uma tradição aberta e compreensiva, já que é um dos fundamentos mais importantes da educação. 5º — A família é como que o corpo místico do pai, assim como a Igreja o é de Cristo. O pai é a cabeça. Assim, é dele que os membros receberão sua coesão; nele viverão e por ele farão prosperar o patrimônio de que são herdeiros.

b) Por parte da mãe: 1º — A mulher casada deve ser, acima de tudo, a educadora de seus lhos. Mais do que ninguém ela exercerá sua missão de amor e de educação junto deles. 2º — A mãe, ao lado do marido, deve oferecer ao coração dos lhos essa ternura harmoniosa e serena, afastada tanto da tirania quanto da idolatria. Por isso: — a educação do coração cabe principalmente à mãe; — a mãe não perde tempo quando, à noite, se detém um pouco ao lado do lho em sua cama; — é importante que a lha seja prevenida pela mãe antes que se produzam os acontecimentos que a consagrarão como mulher. 3º — A mãe deve ser inspiradora de con ança, e procurará ser também: — a iniciadora das orações do lho; — a consciência viva do lho; — a sua educadora das virtudes teologais e morais. 4º — Cabe às mães interessar seus esposos pela vida do comunicando-lhe suas descobertas e intuições pessoais.

lho,

5º — Acima de tudo, a mãe deve superar-se para chegar a compreender a inevitável evolução que devem ter as relações com seus lhos. ) 407. Nessa tarefa conjunta do pai e da mãe na educação de seus lhos, existe algo que é preciso evitar a todo custo: a diferença de É

critérios, a desunião nos procedimentos educativos. É preciso, e absolutamente necessário, chegar a um entendimento perfeito, à união e ao acordo absolutos entre o pai e a mãe, se não queremos estragar infalivelmente a educação dos lhos no seio do lar. Ouçamos os sábios conselhos de um grande educador de nosso tempo:464 “A união faz a força”. O antigo axioma se comprova mais no lar doméstico do que em qualquer outra parte. A força da autoridade reside na união dos agentes da educação: o pai e a mãe. Vamos distinguir três tipos de autoridade paterna, do ponto de vista do entendimento mútuo ou de sua falta: 1º — O tipo de entendimento. 2º — O tipo de não-entendimento. 3º — O tipo de entendimento contrário. 1º —

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Aqui, o pai e a mãe são unidos: pensamentos, sentimentos e ação são idênticos entre eles. A criança tem a impressão dessa perfeita harmonia. Se ela não compreende a análise, ao menos sofre sua ascendência. É impossível opor papai e mamãe. Impossível convencer um contra o outro. Impossível, inclusive, discernir uma dupla pessoa moral. Não há mais que uma cabeça, um coração, um braço. Aquilo que mamãe pensa é exatamente o que diz papai. O que mamãe quer, papai também o quer. Ambos têm a mesma maneira de proceder. Por outro lado, eles têm uma igual ternura. Em semelhantes condições, a educação está garantida. A mãe pode exercer seu papel de bondade sem inconvenientes. Estará sustentada pela energia de seu esposo. O pai pode se mostrar severo, sem medo de fechar o coração de seu lho: ali está a mãe para o dilatar. 2º —

-

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Neste outro lar, o entendimento não existe. Entretanto, sua falta não chega até a luta de um contra o outro. O pai se contenta em abster-se. Não contradiz a esposa: abandona-a a si mesma. Em vão ele é solicitado por sua esposa para que colabore com ela; seja por cansaço resultante de outras tarefas, seja por preguiça natural, ou simplesmente por exagerada con ança na su ciência materna, ele não traz nenhuma cooperação para a dura tarefa educativa.

Educação comprometida. Encontramo-nos em presença de males assinalados por esta regra: “Onde não há sanção, não há autoridade”. De fato, a sanção, em seu aspecto de severidade, é tarefa do pai de família. A ele pertence, com a força física, o papel de força coercitiva na educação. A autoridade da mãe está mais ou menos desgastada pela multiplicidade de ordens e recomendações, pelo contato imediato de todo momento, pela condescendência que impõe a debilidade do subordinado e pelo sorriso que não se pode excluir dos lábios maternos. Existe, pois, uma traição por parte do chefe da família ao não dar ordens quando o dever o exige, como o de sustentar sua auxiliar, tão dedicada e sobrecarregada, quando ela lhe implora. A criança tem a exata percepção da ausência paterna. Astuta como é nessa idade, se mostrará correta em presença do pai, e atrevida quando só tiver uma mulher à sua frente. 3º —

.

Em educação, o contrário do entendimento é um vício muito mais grave que a abstenção de sua participação. Aquela, pelo menos, era a paz. Neste caso, é a guerra. A mãe proíbe, o pai concede. O pai ordena, a mãe anula. A esposa pensa de certa maneira, o marido tem opinião contrária. Ele só quer severidade, ela pratica a indulgência. Um condena, a outra perdoa. Se existe um inferno sobre a terra, com segurança ele é desencadeado entre esses dois seres que mantêm um mesmo lar. Imaginai o que será a educação dos lhos em tais condições!... A quem escutar, a quem obedecer? De que atitudes irá zombar? Tudo é ordem, contra-ordem, disputa e luta interna... Sob que outro regime encontrareis semelhante desordem? Imagina-se um capitão a proibir aquilo que seus tenentes ordenam? O responsável por uma obra anulando as recomendações de seus contramestres? O chefe da estação mandando parar todos os trens depois do sinal de partida dado pelo subchefe? O médico prescreve a dieta, a enfermeira empanturrando o enfermo de comida? A dona da granja povoa seu galinheiro; o dono exterminará as aves? Se em toda administração se levanta a oposição entre depositários e titulares de uma mesma autoridade, que êxito se pode esperar da empresa? Que colaboração? Que paz no interior da casa? Tal é, no entanto, a triste realidade em numerosos lares, teatro de semelhantes escândalos. Adeus, educação!

) 1. A hierarquia conjugal, lei da natureza

408. Como conseguir o entendimento? Acaso não é possível prever a divergência de opiniões entre os esposos afetivamente unidos? Seguramente que sim. A oposição de pensamentos não é um indicador de desacordo de vontades. Não é, às vezes, o desejo de maior perfeição aquilo que causa a diferença de opiniões entre cristãos fervorosos? A solução do problema remonta a duas ocasiões: a origem da humanidade, por um lado, e a origem do cristianismo, pelo outro. De qualquer maneira, ela está na fórmula tão combatida em nossos dias: a subordinação da esposa ao marido. A sociedade conjugal é uma hierarquia, não uma anarquia, como gostam de considerar nossos contemporâneos, quando preconizam a igualdade revolucionária entre os esposos. Quando criaram a mulher, as três Pessoas Divinas tiveram o prazer de de nir sua obra: “Façamos para ele (o homem) uma auxiliar semelhante a ele” (Gn 2, 18). Uma auxiliar, esta é a condição da mulher. Ela é a ajudante do homem. Ora, o ajudante é por essência um agente subordinado ao operador principal. Quando o cirurgião junta a si uma auxiliar, é a enfermeira a principal operadora no procedimento cirúrgico? Não a vedes atenta a assistir ao médico com docilidade e diligência? Acaso ela opõe sua opinião à do técnico? Sim, pode ocorrer, mas nesse caso ela se dobrará à dele: o médico sempre terá a última palavra. A natureza, isto é, seu Autor, fez a divisão dos dons para a educação da criança. Para a mãe, a intuição dos meios de educação. Para o pai, a razão que controla e preserva do erro. Tudo isso para o espírito. Para a vontade, concedeu à mãe a doçura conveniente para o manejo do ser frágil, débil e muitas vezes impotente. Para o pai, a força que assegura o andamento da empresa até seu nal. É como um feixe que reúne na sociedade conjugal os dois elementos da ação divina. “Em Deus”, nos diz a Sagrada Escritura, “a sabedoria se estende poderosa de um extremo a outro, e a tudo governa com suavidade” (Sb 8, 1). A educação é uma obra mista. Mas nessa mistura de força e doçura, quem será o mais forte, senão aquele que contribui com a força? O homem tem a força do pensamento. Portanto, sua opinião prevalecerá. Ele tem também a força de vontade, o que assegura a preeminência de sua energia. Não se propõe aqui uma questão de vaidade ou brutalidade. A prudência e o amor procuram impor-se.

A intuição feminina está sujeita a grandes erros que a razão masculina evitará ou reformará. A doçura materna degenera facilmente em fraqueza; a vontade masculina do pai evitará, também nisto, muitos erros e prejuízos, dos quais a vítima direta é a criança mimada. Abdicar da autoridade que a natureza lhe impõe signi caria, no pai de família, um enfraquecimento no amor devido a sua esposa e a seus lhos. “Na ordem humana das coisas da terra, o que mais manifesta a grandeza de Deus”, escreve o Pe. Félix, “é a paternidade, e o que mais se fez à imagem da suavidade de Deus é a maternidade; de modo que, quando nossos olhos se abrem com o primeiro olhar e nossos corações palpitam no primeiro amor, encontram ao lado da cama aquilo que é mais venerado e o que existe de maior, mais amável e mais doce: nosso pai e nossa mãe, ou seja, a paternidade e a maternidade. Porém, estas duas coisas, tão perfeitamente belas e santas, Deus não as criou para recreação de nossos olhos e consolo de nosso coração. O Criador destinou-as para uma função digna delas, e lhes impôs como supremo dever uma tarefa em que ambas se complementam: a obra incomparável da educação”.465

2. A hierarquia conjugal, lei sobrenatural 409. A seu devido tempo, a fé ergue a sua voz. Com uma precisão ainda maior que a da natureza, ela proclama o homem como chefe da mulher e faz da subordinação da esposa uma das leis fundamentais do cristianismo. “O homem é o chefe da mulher”, diz o Texto Sagrado. “Como a Igreja está subordinada a Cristo, que as esposas sejam obedientes em tudo a seus esposos”. “Que se mostrem submissas a seus esposos, como ao próprio Deus” (Ef 5, 22–24). Com uma autoridade tão ampla, cabe ao esposo cristão o dever de uma dedi- cação sem limites para com sua esposa. Já dissemos tudo isso ao recordar que São Paulo quer ver o esposo amar sua companheira de tal forma que sirva a todos os seus interesses com a mesma abnegação dedicada por Cristo ao serviço da Igreja, sacri cando-se por sua esposa até o último alento. “Homens, amai vossas esposas como Cristo amou sua Igreja, imolando-se por ela [...]. Cuidadoso em mostrá-la resplandecente de glória, isenta de toda mancha, sem uma sombra”. “Amai-a”, prossegue São Paulo, “como amais ao vosso próprio corpo”. “Que cada um ame a sua esposa como a si mesmo” (Ef 5, 25–30).

A ignorância da ciência da educação é causa de mal-entendidos entre os esposos. É a causa mais compreensível. Se tanto um como outro não adquiriram a ciência da educação, como podem os esposos estar de acordo em todos os seus aspectos? Se um dos cônjuges foi zelosamente instruído nessa difícil ciência, mas o outro desconhece até a primeira palavra, como entender-se? Dois engenheiros se associam. Conhecem a pro ssão apenas de nome. Ninguém os viu na faculdade. Como cada um contribui com concepções diferentes para a obra comum, é impossível a unidade de visão entre dois principiantes que ignoram tudo que diz respeito à técnica própria de sua arte. Em que se pode traduzir o seu esforço, a não ser no fracasso? Por outro lado, eis duas pessoas que saem da mesma escola. Suas inteligências se formaram pelo mesmo molde. Durante o tempo em que os dois anteriores perderam em altercações, estes dois condiscípulos concluíram a tarefa em perfeita harmonia.

Artigo 5 — Um programa de educação 410. Como acaba de nos dizer o autor citado no artigo anterior, são legião — infelizmente — os pais que desconhecem quase em absoluto a técnica da educação de seus lhos. Absorvido o marido pela necessidade de ganhar para todos o pão de cada dia, e a mãe entregue às múltiplas tarefas do lar, mal se dedicam alguns minutos diários à educação dos lhos, se é que não deixam de lado por completo este gravíssimo dever, acreditando que “já serão educados no colégio ou na escola”. Incorrem com isso em um tremendo erro que pode trazer conseqüências fatais e irremediáveis. O colégio, a escola, o instituto, a universidade são complementos preciosos e indispensáveis para a educação integral e completa dos lhos. Mas o trabalho principal,

fundamentalíssimo, pertence antes de tudo e sobretudo aos pais dos educandos. Para acertar em sua difícil e delicadíssima tarefa, é preciso antes de tudo que os pais saibam para onde vão e que meios deverão empregar para educar seus lhos de maneira humana e cristã. Precisam traçar seu plano, no qual estejam registrados os princípios fundamentais da educação cristã. Os dois — o pai e a mãe — devem conhecer perfeitamente as linhas fundamentais desse plano e pô-lo em prática de comum e perfeito acordo, sem se contradizerem mutuamente, o que seria muito pernicioso para os lhos, já que semeia entre eles a confusão, a dúvida e a descon ança de seus próprios pais. Vamos expor a seguir as linhas fundamentais do plano educativo a ser levado em conta pelos pais, sob pena de jamais conseguirem a educação autêntica e cristã de seus lhos. Inspiramo-nos na obra que citamos no artigo anterior, cujas principais idéias transcrevemos textualmente, ainda que com algumas emendas e retoques.466 1. Necessidade de um programa 411. Mais de um pai de família se veria perturbado, mais de uma mãe emudeceria se lhes formulasse esta pergunta: — Qual é vosso programa a respeito da educação de vossos lhos? — Um programa? Por acaso é necessário? — Citai-me — eu lhes responderia — uma empresa qualquer que não exija um programa. Não entendo por “programa” uma dessas folhas que nos entregam na entrada de um concerto, um libreto, um prospecto saído das impressoras, mas uma idéia nitidamente concebida, um

projeto bem determinado, um m a que se queira chegar e os meios adequados para alcançá-lo. Onde se encontrarão os sócios de uma empresa comum que se ponham ao trabalho sem saber com certeza o que hão de fazer, nem a colaboração que cabe a cada um? Um empresário qualquer irá deslocar-se ao lugar onde realizará seu trabalho, à frente de vinte operários, ignorando se o que deve construir é uma pista ou um túnel? Um arquiteto manterá dúvidas sobre aquilo que lhe é encomendado? Hesitará entre uma granja ou uma igreja? Ao subir à cátedra, um professor irá se perguntar se deve desenvolver um assunto de matemática ou de história? Um coronel dará suas ordens sem saber se dirige o ataque ou a defesa?

2. Programa pela metade 412. Por mais super cialmente que atuem todos os pais e mães de família, eles têm um esboço de programa. Trata-se, em alguns casos, de um hábito bom que decidiram inculcar na criança, alguns defeitos que resolveram não tolerar nela, e uma discreta quantidade de virtudes com as quais querem dotar o jovem discípulo. Porém, podem ser classi cados como programa esses propósitos isolados, esses vagos projetos? Com certeza, se julgásseis permitido dizer que uma parede é uma casa, um soldado é um exército ou que uma fatia de pão é um almoço. O frágil projeto de fazer de vosso lho um homem honrável é, seguramente, um dos pontos do programa de educação; mas não constitui por si mesmo todo o programa. Para uma casa, são necessárias suas quatro paredes; para um exército, todos os seus soldados, e para um almoço, o seu cardápio completo. “Que minha lha me ame, é tudo o que lhe peço”, diz a mãe. “Que meu rapaz seja trabalhador; o resto não me preocupa”, declara um homem de negócios. Consiste nisso um programa de formação moral?

3. Falso programa 413. Falso programa é aquele que prepara pelo avesso a obra que deve ser realizada. Impõe o vício em lugar da virtude; deforma a alma humana em lugar de embelezá-la. É a antítese da educação. Exemplo: A avareza como programa de uma educação. Tomemos, por exemplo, uma educação totalmente orientada para a aquisição da fortuna. A criança é induzida ao trabalho, endurecida pelas privações, habituada ao sofrimento, com a única perspectiva de tornar-se rica. O dinheiro! O dinheiro, condição de felicidade neste mundo! Será enraizada no lho a ideia básica de que o homem só começa a viver no dia em que possa descansar sobre seus milhões. Outro exemplo: A ambição como programa. “Nosso lho será ministro! Primeiramente, deputado. A seguir, senador. Por m a pasta ministerial...”. Desde os primeiros anos se imprime um impulso no sentido das honrarias: vibrantes exortações paternas, lisonjeiras insinuações por parte da mãe. Na realidade, enganos. Traições para indivíduos chamados a outras destinações. Que julgamento irão merecer seus educadores, uma vez que tenham atravessado o umbral da eternidade?

4. O verdadeiro programa 414. A lei de Deus: eis o autêntico programa da educação da criança. Ao determinar para a criatura humana o término de sua carreira na terra, o Criador já lhe traçou o caminho. A Sabedoria divina atribuiu à Onipotência a tarefa de completar sua obra. Colocar o lho no caminho da eternidade bem-aventurada é para a família o programa de educação por excelência, naquilo que ele encerra de substancial. Ora, a lei divina que a ele conduz é dupla: 1ª — A lei natural. 2ª — A lei sobrenatural.

Todas as outras decorrem destas duas normas gerais da conduta humana. Com uma e outra — tão perfeita é a harmonia que as rege — forma-se uma só: a lei da moral cristã.

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1. A lei natural 415. A lei natural não é outra coisa senão o conjunto dos deveres que são revelados ao homem por sua reta razão. Ao constituí-lo livre em seus atos, Deus dotou o homem de uma inteligência semelhante à tocha que ilumina seus passos na noite. A razão diz à criatura humana: “Tal coisa é permitida, esta outra é proibida. Isso está bem, isso está mal. Esta ação é boa, esta outra é má”. E é assim que ela avisa ao viajante aqui de baixo, no íntimo de si mesmo, a orientação do bom caminho que deve tomar, assim como a direção errada que deve evitar. 2. As mães de família e a lei natural 416. É verdade que a lei natural se manifesta no homem em virtude de sua reta razão. Entretanto, esta revelação não se opera sem a assistência de outra pessoa. As mães, com um zelo que nunca esmorece, prestam esse serviço aos recém-chegados a este mundo. Ouve-as repetindo a toda hora: “Deve-se... deve-se... deve-se dizer isto, fazer aquilo, pensar desta maneira, estar animado de tais sentimentos...”. O que é esta terceira pessoa do indicativo presente do verbo dever, senão a expressão do dever que constitui o próprio fundamento da de nição da lei natural: “o conjunto dos deveres que são revelados ao homem por sua reta razão”? A luz

abrirá caminho pouco a pouco na inteligência dos pequenos, devido principalmente ao ministério da mãe de família. Primeiramente a aurora, depois o amanhecer, en m a claridade plena. Santo Tomás nos faz notar que a lei natural nos oferece de início uma lei geral: a do discernimento entre o bem e o mal. A criança já goza deste privilégio desde os primeiros alvores de seu espírito. O bebê agiu mal, mamãe levanta o dedo, abre muito os seus olhos, frange a testa, assume um ar severo. A consciência diz ao bebê que ele agiu mal. Ao contrário, depois de um ato de obediência, mamãe sorri, acaricia a bochecha tenra, aperta em seus braços o jovem discípulo; desta vez o bebê compreende que agiu bem. A alma humana é um instrumento saído das mãos de um bom operário: dá a nota exata, mas é necessário saber tocá-lo. As mães, artistas musicais de primeira ordem, conseguem de cada instrumento todos os sons do bem moral e exercitam o lho, com admirável destreza, para obter de seu espírito todas as notas da virtude.

. Sem dúvida, vós perguntais se é possível adaptar a lei natural a um programa. Fora de dúvida, esta é a idéia — direis — mas uma idéia tão geral ou tão fragmentária que escapa às condições de um programa, seja por sua própria generalidade, seja pela in nidade dos detalhes que ela comporta. A objeção é excelente. Respondo a ela. Já admitistes que a lei natural é o programa da educação natural, a qual não é mais que a educação da criança conforme as prescrições morais que a reta razão impõe. Ora, a lei natural (ou moral, ou ainda a moral natural, acumulando sinônimos) em todas as épocas foi concretizada pela ciência da moral em quatro virtudes que compartilham de todas as prescrições da lei natural: prudência, justiça, fortaleza e temperança. O programa natural da educação abarca, pois, tudo aquilo que é matéria destas quatro virtudes, também incluídas as que lhe são anexas.

Se preferis, este programa comporta todas as regras da prudência, da justiça, da fortaleza e da temperança. Tal é o motivo — provavelmente agora o entendeis melhor — pelo qual a teoria racional da educação tem por base as quatro virtudes cardeais. Elas constituem a síntese dos deveres do homem na ordem natural, porque são as mesmas que formam a base das prescrições que sua reta razão revela ao homem com o caráter de obrigação; por um lado, a teoria; por outro, a prática.

3. Defeitos a serem evitados 417. São dois os defeitos que prejudicam de modo particular o programa natural da educação: 1º — A omissão, mesmo involuntária, de qualquer dos artigos da lei natural. 2º — A abdicação voluntária de alguns deles. ) . Ao formar a criança nas diversas prescrições da lei natural, omitir é deixar outras tantas lacunas no programa da educação. Por distração ou por negligência, por esquecimento ou por preguiça, podeis ter deixado de moldar a criança em algumas das virtudes exigidas pelo sentido das coisas morais; talvez seja a urbanidade, a humildade, a discrição, a benevolência pelos outros; a criança crescerá ferindo as virtudes que constituem a dignidade e o encanto do homem. Será grosseira, vaidosa, indiscreta. A lei natural não é uma abstração. Observai-a em sua face negativa, e isto vos será mais visível. Considerai os numerosos defeitos que ela condena; não lhe negareis sua condição de programa. ) . A abdicação de que falamos aqui é a exclusão, feita com propósito deliberado, de certas prescrições da lei moral...

“Que Pedro satisfaça a gula a seu gosto”, diz o pai de família, “contanto que trabalhe rme e chegue a ter uma posição”. “Que Luísa seja coquete, contanto que seja franca; não posso agüentar seu hábito de mentir!”, exclamará a mãe.

Tu, pai de família, não tens o direito de sacri car a virtude da temperança à do trabalho; nem tu, mãe de família, de sacri car a virtude da modéstia à da sinceridade. Ambos sois simples mandatários da lei divina, tanto sobre um ponto quanto sobre o outro; não sois legisladores. Vós vos tornais culpados perante Deus da mesma maneira que um empregado da loja que deixasse que o patrão fosse roubado em uma mercadoria, desde que pagassem o justo valor sobre outra. 4. Meios a serem empregados 418. 1º — , como primeiro meio. Ela é indispensável a um pai e a uma mãe, cuja função se radica em ensinar a lei moral e moldar os costumes da criança segundo seus preceitos. A lei moral é semelhante à lâmpada elétrica, que ilumina abaixo do poste, atenua sua luz mais longe, deixa o transeunte em uma semi-escuridão vinte metros atrás e, por m, mais longe, deixa-o nas trevas. Os princípios primários, já o dissemos, são inteiramente claros e evidentes. A segunda série oferece uma evidência menor. A terceira pode deixar-nos em di culdade. A última é matéria de controvérsia até entre os próprios sábios. Sim, a lei natural é a síntese dos deveres que brilham no espírito humano; porém, não é exatamente nas primeiras zonas que a claridade se faz nítida para todos os olhos. A moral é uma ciência: é preciso recorrer ao ensino para nela se tornar um mestre.

2º — conduta.

e o exame de sua própria

O mais sábio dos homens não pode eximir-se do exame sobre a sua prática. Fazei este exame, pais, e vos surpreendereis com a quantidade de defeitos de que vosso trabalho padece. Porém, a este sentimento de humilhação, imediatamente sucederá outro: a alegria que vos causarão os êxitos originados de uma reforma adequada. 3º — . Terceira tarefa. Ninguém é juiz de sua própria causa: o olho de um amigo notará aquilo que vossa própria vista não percebe à força de vê-lo sempre. Não tenhais medo de deixar amadurecer as espigas que vos escaparam: vosso feixe estará completo. De quantos erros vos afastará o serviço de um observador que adotastes! Quantos remorsos vos serão evitados com o correr dos anos! 4º — . Este é o “conselho do amigo”. Ler! Ler! Ler! Ler biogra as instrutivas, espelhos onde vos conhecereis ainda melhor. Manancial de idéias felizes das quais ireis apropriar-vos. Tesouros com os quais podereis enriquecer-vos sem empobrecer a quem os oferece. Vosso coração transborda de ternura pelas jovens vidas sobre as quais pretendeis derramar algo mais que o afeto. Mas que podeis dar-lhes? Não o sabeis? Vós o encontrareis ao ler. Vidas de heróis, de contemporâneos, de crianças surpreendidas pela morte antes que seus pais tenham podido terminar sua tarefa. Nestes tempos foram escritas algumas muito interessantes e instrutivas. Elas se oferecem a vós, pais; estão destinadas a vós. Sobretudo a vida dos santos. Não podeis saber a que altitude o Espírito de Deus tem o desígnio de elevar a alma do lho que vos foi con ado.

Em todo caso, é um grande erro não ler a vida dos santos, sem a esperança de os igualar. Todos os atiradores vos dirão que, para acertar a mosca, é necessário apontar mais alto.

5. Mirar no futuro 419. E já que falamos de dirigir a pontaria, eu vos rogo, pais, que mireis bem mais longe do berço. Além da roupinha e das calças curtas. Colocai-vos cada dia em presença da avaliação que, dentro de quarenta anos, fará sobre vós esse ser de quem sois os supremos benfeitores. Completai com o zelo na educação o mais magní co dos dons: o dom da existência. Será eternamente para vossa memória a auréola no pensamento de um lho ou uma lha, e, ainda mais, em seu coração. Nenhum lho pode avaliar, nem mesmo discernir, a abnegação de um pai e uma mãe dedicados sem reservas à sua tarefa. Essa mesma impossibilidade produz no espírito do adulto um fenômeno análogo ao da impressão do sol que fere o olho com seus raios diretos; a intensidade da claridade é tal, que a retina ca ofuscada. “Se eu tivesse que desejar um pai, seria ele. Um amigo, seria ele”, declara o jovem Bu on, falando de seu pai. Montaigne conserva como uma relíquia o velho capote de seu pai. Sua alegria é vesti-lo: “Eu me envolvo em meu pai!”, exclama.

Que dizer das mães quando elas derramaram plenamente a sua solicitude! Contemplai o Marechal Kitchener através das possessões inglesas para onde o arrastavam suas campanhas militares durante toda a sua vida. Em qualquer ponto do globo onde se encontrasse, enviava a cada dia uma pequena or para sua mãe, que estava na Inglaterra. Às vezes, as remessas cavam paradas muitos dias no mesmo lugar, por falta de correio. Não importava! A or do dia havia sido cortada e depositada em seu envelope. Tão religioso, tão delicado era o afeto lial de André Carnegie, que teve escrúpulos de casar-se enquanto sua mãe vivia, pelo temor de compartilhar seu coração entre sua

esposa e sua mãe. A venerável dama prolonga amplamente seus dias e, por m, quando morre, André Carnegie conta sessenta e cinco anos... Então ele se casa; e Deus lhe dá uma lha. Mas a bênção temporal não foi esquecida lá em cima. Começando com a posse de dois francos e cinqüenta centavos, o lho da Senhora Carnegie ultrapassou rapidamente o milhão. “Honra teu pai e tua mãe para viver uma longa vida sobre a terra” (Ex 20, 12).

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1. A lei sobrenatural 420. “Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças, e a teu próximo como a ti mesmo”. Eis a lei sobrenatural. “Nestes dois preceitos”, declarou-nos Nosso Senhor Jesus Cristo, “está encerrada toda a lei de Deus” (Mt 22, 35–40). Por que esta segunda lei de Deus? E por que ela se limita ao amor? A resposta é muito simples. Uma lei é uma ordem de conduta correspondente a uma situação. Apresenta-se uma dupla situação: a de homem, ou homem, e a referente à natureza divina, ou lho de Deus.

lho de

Como homens, nos está prescrito pelo Criador agir em conformidade com a retidão de nossa razão. Como lhos de Deus, nos foi dada a ordem muito suave, muito agradável e nobre, de amar a Deus como a um pai e a nossos semelhantes como irmãos, lhos de nosso Pai celestial, assim como nós. 2. A lei cristã, fusão de duas leis divinas

421. Igualmente, é muito simples a concepção da fusão das duas leis divinas. Assim como o rio poderoso, ao encontrar seu a uente, incorpora-o e apresenta um único curso de água, assim a caridade, lei sobrenatural, assimila de certa forma a lei natural e a torna sobrenatural sem lhe tirar seu caráter próprio. Praticar a lei natural por amor sobrenatural a Deus é operar a junção, é realizar a fusão. Nada mais razoável que praticar a lei natural para se conduzir como um homem honesto, porém, ainda mais para agradar a Deus quando se tem a honra de ser seu lho adotivo. Assim se observa a lei da caridade. É como o servidor que o rei elevou à condição de amigo, de lho adotivo e herdeiro. Ele continuará obedecendo ao monarca; já não será, no entanto, com a intenção de receber um salário de servidor, mas para amar a seu pai e contentar seu benfeitor. O príncipe absorveu o servidor mercenário. 3. Educação natural e educação sobrenatural 422. Que farão as mães? Gostarão de ter que dar duas educações, segundo duas leis diferentes? Naturalmente. Continuarão repetindo ao lho as fórmulas conhecidas: “Devese... É necessário... É razoável... Convém...”, expressões que invocam os direitos da lei natural, as conveniências da razão e as exigências da dignidade humana. Mas, com um golpe de asas, como a andorinha que se lança até as regiões superiores da atmosfera, acrescentarão: “Mas fazei isto por amor a Deus”, e eis que o lhote chega às altitudes do sobrenatural. Satisfez de um só golpe as duas leis divinas: a da natureza e a da graça.

Educação natural e educação sobrenatural. Custa grande esforço a transição de uma para outra? O “pequeno” já não está familiarizado com o dever do amor lial? Simplesmente lhe é pedido que olhe mais alto e repita em favor de seu Pai dos céus aquilo que ele já pratica por seu pai da terra. Instruído sobre a lei sobrenatural, ele sabe mais do que o gênio de Aristóteles tenha descoberto. Sua mãe não lhe ensinou o Pai-Nosso?... 4. A dupla prática da lei sobrenatural 423. Vamos, porém, ao detalhamento da lei sobrenatural. Ela inclui um duplo exercício: 1º — A prática do próprio amor a Deus. 2º — A prática de todas as demais virtudes por amor Deus.

lial a

Minha demonstração será simples: “Vos agradaria muito”, diria eu às mães, “que o pequeno seja bajulador, sorridente, vos acaricie, beije e vos faça demonstrações de ternura, não é verdade?”. Porém o Pai celestial também gosta disso!... Agrada-lhe muito que sua pequena criança da terra lhe demonstre seu amor e lhe envie seus beijos ao céu, lhe entregue seu coração e expresse seus ternos sentimentos.

Ao se fazer homem, Deus não conheceu na terra delícias mais saborosas que as carícias dos pequeninos: “Deixai que as crianças venham a mim [...] e, abraçando-as, abençoou-as” (Mc 10, 13– 16). Dirigi, pois, assiduamente os pensamentos, o afeto, as ofertas dos inocentes para Aquele que os dotou de um de seus anjos, portador de suas ternuras até o trono.

Porém, vós esperais desses seres queridos algo mais que sentimentos, palavras e gestos. São necessários os atos. Reclamais por esses atos a toda hora, como o testemunho ainda mais expressivo do afeto lial. Eles trazem todos estes nomes:

obediência, submissão, docilidade, temperança, moderação no prazer, morti cação, abnegação. O Pai celestial tem a mesma exigência: também Ele pretende que o amor varie suas roupagens e se apresente sob a graça de cada uma de suas virtudes. A teologia traduz essa exigência tão justa pela fórmula bem conhecida: Caritas imperat omnes virtutes: “A caridade manda em todas as demais virtudes”. Ela é a principal; todas as virtudes estão às suas ordens. A alegria do coração de Deus, esta é a senha. O prazer de Deus varia a cada instante; a caridade sempre desperta, sempre ativa, ordena imediatamente à virtude sobre a qual se xa o desejo de Deus. Põe em ação toda virtude sobre a qual se pronuncia a vontade divina, como o pianista que toca com seus dedos todas as teclas do piano, com os olhos xos na obra que ele interpreta. O sábio Suárez vos ensinará que a caridade assim praticada é a autêntica perfeição do cristão. Ele a chama apretiative summa: “soberana em seu valor”, e a resume nesta breve fórmula: Velle placere Deo in omnibus: “Querer agradar a Deus em tudo”.467 O amor perfeito é estar decidido a agradar a Deus em tudo o que Ele pede. Nesta única fórmula, tendes a síntese de toda a moral sobrenatural. Como em um cheque de um milhão, existem nessa promessa inumeráveis objetos que podeis comprar.

5. A condição para o amor a Deus neste mundo 424. Guardemo-nos de esquecer a condição para a caridade na terra. Esta virtude é essencialmente militante, assim como no céu ela será inteiramente triunfante. Ela “produz méritos” durante a vida presente. E será recompensada na futura. É mais ou menos sofrida durante nossos anos mortais. Só terá alegrias na vida imortal. O sacrifício é sua arma de combate: trata-se de colocá-la desde cedo na mão da criança.

Feliz do jovem cristão que a mãe corajosa armou como cavalheiro desde que saiu do berço! Ela lhe abriu a arena da santidade. Encaminhou-o na senda da felicidade a partir deste mundo. A vida é menos dolorosa para quem está familiarizado com o sofrimento, do que para um sensível que se agarra a todo espinho da caminhada. Concordo que é duro para um coração de mãe encaminhar seu lho na via do Calvário desde seus primeiros passos; porém, seguindo a tal Chefe, a quem faltará o ânimo? Somente as mulheres têm a coragem de seguir a Jesus, com seus lhos, até a cruz. Jesus está ali, elas sabem disso. Está ali, na Eucaristia, a fonte da caridade militante. Uma antiga experiência já demonstrou a rápida transformação operada nos comungantes de seis e sete anos. “Jesus e eu nos amamos de tal modo!”, declara o jovem Guy de Fontgalland. “Em minhas comunhões, Ele me fala... Eu o escuto... E o saboreio”. “Quando meu coração sofre em demasia, con o nele: pulsando tão forte que me parece que vai soltar-se, digo a Jesus: Calma, tu que estás aí dentro”. Aos doze anos, o pequeno predestinado receberá sua coroa. É um herói, há muito tempo habituado à luta: “A palavra mais bonita para dizer ao bom Deus é sim”. Gloriosa acolhida para o sacrifício. O jovem aluno do Trocadero fora precedido em um ano por outra paroquiana na mesa sagrada. Sua maneira de comungar, como se vê nos escritos de Ana de Guigné, comovia. Ao voltar da mesa da Comunhão, nada existia

para ela: estava completamente absorta em Deus, e era necessário guiá-la como uma cega para encontrar seu lugar. Dir-se-ia uma custódia viva. Em várias oportunidades foi vista como que trans gurada. “Confessava ingenuamente: ‘Quando estou concentrada, o pequeno Jesus me fala’. E que te diz Ele? ‘Que me ama muito’. ‘Como é bom, mamãe; como sou feliz! O bom Jesus me disse que Ele me quer muito mais ainda do que eu o amo’”. Ao mesmo tempo prática e corajosa, a caridade desta pequena criatura estava longe de se mostrar como simples afeto do coração. “Podemos sofrer alguma coisa por Jesus”, acrescentava, “já que Ele sofreu por nós”. “Existem muitas alegrias na terra, mas não duram; o que dura é a satisfação de ter feito um sacrifício”. “Uma vida longa é um benefício, porque permite sofrer muito por Jesus Cristo. Eu os ofereço a Maria, para que no céu ela os dê a Jesus”. Semelhante generosidade será privilégio de algumas crianças em particular? Julgai: Uma jovenzinha, certo dia, com um grande cruci xo na mão, tendo explicado a encarnação e a redenção a crianças de cinco a sete anos, lhos de operários comunistas que nunca haviam ouvido falar de religião, cou sozinha com um dos menores que, como a organizar o ensinamento recebido, perguntou-lhe, apontando o Cristo: “Então, é verdade que este Senhor morreu por mim?”. “Mas, claro, pequeno”, respondeu a catequista, um pouco surpresa. “Ah! Então, se é assim, eu também quero morrer por Ele”.468 6. Defeitos que devem ser evitados 425. Dois defeitos principais:

1º — O esquecimento da lei do amor a Deus. 2º — A esterilidade desse amor. ) . Muitos pais se limitam à lei natural. Inculcam na criança virtudes puramente humanas: probidade, honestidade, lealdade, sinceridade, justiça, misericórdia, ser serviçal, etc. Seu zelo não vai além disso. Em seus bons tempos, os pagãos, nossos avós distantes, não zeram menos. Esses pais talvez sejam “judiciosos” à antiga, mas não cristãos. Não falo dos tristes adeptos do laicismo contemporâneo, simples ressaibo dos tempos bárbaros, com exclusão de Júpiter. Penso nos educadores “naturalistas”. Existem diferentes graus. Apontarei somente aqueles que praticam esse erro sem ter consciência dele. Deus está ausente de suas vidas. O dia transcorre sem que um tal pai, como o é Deus, receba algum afeto, alguma recordação, alguma oferenda, por insigni cante que seja. Educam a criança do modo como eles mesmos vivem. Ficaríeis satisfeitos, pais e mães, se desde o amanhecer até o m do dia vosso lho não tivesse para vós nem um olhar, um sorriso ou um pensamento? Protestaríeis por causa da ingratidão! Quem se impôs mais trabalhos e sacrifícios, para receber apenas indiferença? Quem deu mais? Quem provê suas necessidades a cada dia, a cada hora, com mais abnegação? Faço coro convosco. Estou inteiramente de acordo. Mas, dizei-me: Deus lhes terá dado menos? Ele não fez sacrifícios maiores em seu favor? Não é Deus o sustento de cada um de seus órgãos? Se Ele se retirasse, o hálito expiraria no mesmo instante no peito de vosso lho. Seu coração deixaria de pulsar! Verdade elementar. Que conclusão tirais? Amor, reconhecimento, alimento de um coração cujos afetos devem subir ao céu, como da urna perfumada sobe a fumaça do incenso.

) . Mãe piedosa, cuidado com o recife que vos ameaça: “O amor sem as obras”.

Sabeis distinguir entre amor-sentimento e amor feito abnegação, amor de afeto e amor de ação, de benevolência e de benefício. Não são duas virtudes diferentes, mas dois atos diferentes de uma mesma virtude. Uma é o nal da outra; a segunda é a prova da primeira. Que diríeis das árvores frutíferas de vosso pomar se dessem apenas frutos?

ores, e nunca

7. Meios a empregar 426. Entre muitos outros, os dois seguintes garantirão o êxito de vosso programa sobrenatural: 1º — Recordar ao lho o dever de amor lial para com Deus. 2º — Praticar pessoalmente essa obrigação com fervor. ) . De tempos em tempos, no decorrer do dia, sugeri-lhe a oferenda de seus atos a Deus. Não vos limiteis a “entregar vosso coração ao bom Deus” ao despertar. Excelente prática, mas, privada de seu acompanhamento, permitiria supor que o bom Deus teria ganhado para o restante do dia o presente que lhe foi feito... Uma cortesia pela manhã, outra pela noite: isto é su ciente para agradar a Deus? O Catecismo não nos ensina que sua presença é constante, tanto ao meio-dia como às sete da manhã? Não que seja necessário levar as coisas ao extremo. A teologia ensina que somente a caridade “habitual” é exigida. Ela ensina ao cristão, por outro lado, a multiplicar durante o dia os atos dessa virtude. Seria uma torpeza nefasta deixar a criança na obsessão com sugestões piedosas. Iríeis afastá-la, enfastiando-a, do mais doce dever para o coração do homem. Dai preferência aos atos sobre as fórmulas. Em lugar de fazer a criança recitar uma quantidade de atos de amor, fazei-a realizar suas obras. Pedi a ela o cumprimento de seus deveres por amor a Deus, seus sacrifícios cotidianos por amor a Deus.

É

É o amor prático, traduzido em atos. ) . Aqui está um recurso muito mais e caz. Aquilo que pedis aos outros, fazei-o vós mesmos. Este foi o método de Jesus Cristo. O Mestre “começou por fazer, depois ensinou”: coepit facere et docere (At 1, 1). Como poderíeis lembrar ao lho um dever no qual nunca pensais? Que ascendência tereis sobre aqueles que vos seguem, se não caminhais adiante deles? Não conheço tarefa mais santi cante que a de santi car a criança. Não é sabido que “o pequeno” imita sua mãe? Ireis negar que entre ambas as almas se opera uma verdadeira transfusão? Apoiado no regaço materno durante sete anos, o coração dessa criatura assumirá a temperatura de sua mãe: frio, morno ou ardente. Examinai ao vosso redor e respondei. In uência única no mundo! Tarefa gloriosa, mas terrível! Bendita, se é santa! Lamentável, se for malsã! Por que semelhante verdade não está escrita com letras de ouro diante dos olhos de toda educadora da juventude feminina? Será que conseguimos em um dia um coração de mãe? Por acaso é em um dia que alcançamos uma alma de mãe? Do berço ao leito nupcial o caminho a percorrer é tão breve, que não permite à mãe atingir a altura moral que ela mesma desejaria para seu lho. “O homem continua sendo por toda a vida aquilo que ele foi sobre os joelhos de sua mãe antes dos sete anos” (Joseph de Maistre).

Ouvi Lamartine falando de sua mãe: Para nós, Deus era como um dos nossos. Havia nascido conosco com nossas primeiras e mais inde nidas impressões. Não nos lembrávamos de tê-lo conhecido, não houve um primeiro dia em que nos falara sobre Ele. Sempre o tínhamos visto entre nós. Seu nome esteve em nossos lábios com o leite materno, nós o conhecemos com nossos balbucios. Os joelhos de nossa mãe tinham sido durante muito tempo o altar da família. A piedade que emanava de cada respiração, de cada um de seus atos, de seus gestos, nos envolvia, por assim dizer, em uma atmosfera de céu na terra.

Tal mãe possuía um programa pleno e verdadeiro: “Deus!”. Agradar a Deus em tudo pelo acatamento de sua santa vontade. Deus, pólo da alma humana, para quem, como a agulha imantada, deve voltar-se toda vontade da terra. No nal de uma carreira feminina tão conscientemente percorrida, a piedosa educadora deixa as coisas presentes com o coração transbordante de alegria. “Eu a tinha deixado por alguns dias, radiante de felicidade, de esperança e de vida” acrescenta Lamartine. Eu estava em Paris. Certa manhã, ao entrar no banho, achou a água demasiado fria; estando sozinha, abriu a torneira de água quente; saiu um jorro fervente que bateu em cheio no seu peito; ela desmaiou. Acudiram ao seu grito, mas era tarde demais... Levaram-na para o leito, onde recobrou a consciência. Sofreu dois dias, orou constantemente, alegrou-se por minha ausência, por evitar para mim, dizia ela, o espetáculo de seu m, e morreu pronunciando meu nome em sua agonia. Minha mulher, que velava sozinha, disse-me que ela repetia sem cessar, em sua última noite, estas palavras: “Como sou feliz! Como sou feliz!”. Perguntaram-lhe: “Por quê?”. “Por morrer resignada e pura”, respondeu.469

Artigo 6 — O feminino na educação470 427. A formação, se quer ser completa, deve atingir o homem inteiro. Não cabe nenhuma dissociação. Alma e corpo devem ir juntos na grande tarefa educativa. Uma educação que ignore algum aspecto da pessoa a ser formada é uma educação

condenada desde a medula, ao menos por um grave pecado de omissão. E não há dúvida de que, em toda educação, o elemento feminino desempenha um papel primordial e decisivo. Deixá-lo de lado já seria, desde o princípio, deixar truncada a formação. Aqui, feminino não é sinônimo de mulher, ainda que a inclua. É mais amplo. Estende-se a tudo o que poderia ser contraposto à violência descontrolada, à energia sem freios, ao egoísmo pertinaz, etc. i. O ser humano, essa maravilhosa dualidade a) Combinação unitária 1. É preciso ter muito presente que os traços peculiares que caracterizam o varão e a mulher jamais se encontram em estado puro e absoluto. 2. Não existe a mulher nitidamente feminina, nem o homem completamente masculino. Existem unicamente seres humanos com características de um e de outro sexo, combinadas em diferente proporção. 3. “Não somos homem nem mulher”, dizia Katherine Mans eld. “Somos um compêndio dos dois”. 4. Esta mistura universal nos leva a descobrir espontaneamente elementos e fatores femininos no homem. Elementos que precisam ser educados. b) Desigualdade na unidade 1. É óbvio que esta dualidade integradora do ser humano se encontra em uma desproporção sensivelmente acentuada: o elemento masculino manifesta-se muito mais no homem. Na É

mulher, predomina de longe o feminino. É natural que sejam assim. a) O homem é mais cerebral. A mulher é mais regida pelo coração. O homem possui maior carga passional. A mulher é mais afetiva. b) O amor preenche toda a vida da mulher. O homem é mais parcial. Por isso a capacidade de entrega é muito maior e mais profunda na mulher. O homem se expande mais para o exterior: trabalho, pro ssão... 2. Na formação, é preciso levar isto em conta. O homem necessitará do feminino para contrabalançar as forças e conseguir uma formação equilibrada. A mulher necessita do viril para alcançar sua perfeição de mulher. ii. Para um formação harmoniosa e perfeita a) Dois extremos defeituosos 1. Toda perspectiva e atitude unilateral da vida, e em face a ela, é míope e falseia a realidade. Ao menos em parte. O mesmo acontece na formação. 2. O ideal da formação, como o próprio ser a formar, encerra em si um elemento masculino e outro feminino. A combinação mútua e harmoniosa de ambos terá como resultado uma formação universal, equilibrada e cabal. 3. Estes dois elementos poderiam ser assim contrapostos: a rmação de si mesmo e entrega; força e amor; rmeza e acomodação; energia e delicadeza; concentração e expansão, etc. 4. A educação exclusivista de um destes dois elementos causa, como conseqüência inevitável, uma formação de ciente. Todo exclusivismo é defeituoso.

a) Nos caracteres marcadamente masculinos se dá com freqüência certa dureza e um desprezo orgulhoso do próximo. Sua rmeza é acompanhada de rigidez e obstinação. Sua energia, de inconsideração. Sua integridade, de frieza e até de apatia. Atitude que encerra um oculto temor e fraqueza diante da comunidade humana. Teme se perder na correnteza ao assumir um vivo interesse pelos outros. Por isso mesmo, uma postura que não resolve o problema da existência humana. b) Outro extremo, não menos perigoso, é próprio das naturezas excessivamente femininas: Tipos amáveis, comunicativos, simpatizantes, aos quais falta o elemento de a rmação pessoal e da vontade in exível. Carentes de um grande princípio de auto-a rmação espiritual e moral, são presa de sua compaixão descontrolada diante dos desatinados instintos altruístas. Submetem-se cegamente aos desejos e necessidades do próximo, em vez de socorrê-los de um ponto de vista sólido e libertá-los da tirania de sua própria situação: “Ai dos misericordiosos que não se encontram em uma altura superior à sua misericórdia!” (Nietzsche). Uma mulher demasiado maternal jamais poderá ser uma boa mãe. Entregue à sua pura maternidade, fracassaria em sua pessoa e em sua tarefa educativa. b) Postura de equilíbrio 1. Somente a utilização mútua e harmoniosa dos dois elementos terá como fruto uma formação equilibrada e perfeita. 2. A compensação e integração de um pelo outro é necessária para a formação de um homem capaz de fazer frente à missão integral da vida.

3. Unicamente por meio da força oposta destes dois elementos, as tendências da alma — força e amor, a rmação pessoal e entrega de si — adquirem seu pleno desenvolvimento. E o homem se arma contra seus próprios perigos ocultos. 4. Conservar-se independente dos homens e, ao mesmo tempo, profundamente ligado a eles e suas necessidades, é o verdadeiro corolário da formação. Preservar-se-á, ao mesmo tempo, de um isolamento doentio e de uma escravidão social. Desenvolverá as forças da alma em sadio equilíbrio. 5. Para que um ser humano alcance sua harmoniosa plenitude, é necessário que ele reúna em sábia medida — sabiamente desmedida — um conjunto de qualidades típicas de um e de outro sexo. 6. Pois uma mulher excessivamente feminina é tão inapta para o bom amor como um homem demasiadamente masculino. A melhor ternura maternal é aquela que inclui um pouco de ternura paterna. E vice-versa. 7. Se a “ética masculina do dever” não “amor”; se o “trabalho” não conhecer “cuidado”, a vida do homem será apenas avançar de uma nalidade para outra, mas em sua totalidade.

estiver radicada no alguma forma de um penoso e inútil que estará frustrada

c) O valor feminino, indispensável para uma formação equilibrada e perfeita 1. O homem necessita do feminino, da mulher, para uma formação harmoniosa e integral: a) A união do homem e da mulher produz uma nova unidade completa. E completa a cada um dos componentes dessa unidade.

b) Completa ao fermentar e provocar o desdobramento de elementos preexistentes que, sem esse contato, não iriam adquirir um feliz desenvolvimento. c) Sem a delicadeza e a simpatia clarividentes da mulher, a força de vontade do homem nada pode construir de duradouro. d) Se a força masculina não se associa à suavidade e ao detalhe femininos, o homem, com toda a sua “aparência”, se assemelhará a um menino desamparado e recalcitrante. e) A mulher é para o homem orgulhoso a permanente lembrança de sua imperfeição; para o egoísta, um constante convite a superar-se. f) O homem de caráter verdadeiramente rme chegará à mais completa e segura realização de sua natureza masculina, não com a imitação do “super-homem”, mas mediante o “eternamente feminino”. 2. Isto não signi ca que a força cega e elementar da bondade e da simpatia, do tato e da delicadeza, etc., garantam ao homem sua própria virilidade. Não. Antes, ele irá alcançá-la na harmoniosa união destes elementos femininos com a contrapartida dos masculinos, que — como é natural — devem prevalecer nele. Conclusão 1. Alguns homens ainda desprezam a mulher. Algumas mulheres lamentam sua feminilidade e reclamam por uma “missão” masculina, que é apenas arti cial. Sim, homens e mulheres são iguais em dignidade, mas diferentes e complementares. 2. É urgente que a mulher volte à sua missão especí ca. Ela foi feita para a entrega e a redenção. Necessita desabrochar sua feminilidade. Ela deve, no mundo atual — um mundo

“masculino”, reino da matéria todo-poderosa —, trazer e gerar o humano. 3. Diante da preponderância exigente e invasora da matéria, no mundo da injustiça e da crueldade, ela deve ser testemunho do poder da oferenda e do amor redentor.

Artigo 7 — Educação e pessoa471 428. A pessoa é a base da vida social, moral e religiosa, ou seja, de toda a vida humana. É natural que seja assim, pois o homem é o que é exatamente por ser pessoa. A pessoa vai se realizando existencialmente no tempo. A pessoa nos é dada como um princípio necessitado de atualização. Para realizar essa tarefa convenientemente, a educação é o marco mais adequado. Mas tal educação será feita de acordo com o conceito que se tenha da pessoa. Por isso, primeiro daremos o verdadeiro signi cado de “pessoa” e, depois, passaremos a examinar diversos tipos de formação da pessoa. i. A pessoa a) Fundamentação losó ca 1. É substância completa. A pessoa é o homem todo. Não é somente seu corpo, ou somente sua alma. É ele todo. Por isso não se pode localizá-la em um membro ou em uma parte de seu ser total. 2. Individual e solitária. A pessoa é única em cada um e, ao mesmo tempo, distinta de todas as outras.

3. Racional e com vontade própria. O homem maneja idéias e é senhor de sua atividade. Aqui se origina a dignidade humana e a fundamentação de todos os direitos e deveres do homem. b) Qualidades dinâmicas 1. Autodeterminação. O homem é senhor de seu destino. É capaz de determinar o sentido de sua atividade, orientá-la, inibi-la, atenuá-la ou destruí-la. 2. Autonomia. Diante dos outros, ele se a rma como diferente ou independente. A pessoa é um recinto inviolável. 3. Social. O homem existe diante dos outros, mas com os outros. A sociabilidade é conatural ao homem, que, como tal, deve confessar: Homo sum, et nihil humani alienum puto: “Sou homem e nada de humano considero alheio a mim”. 4. Imagem de Deus. A alma humana é uma semelhança de Deus Criador. Além disso, se o homem é por natureza imagem de Deus, pela graça — pela economia sobrenatural — ele é lho adotivo de Deus. 5. Projetada para a eternidade. Não há maneira de entender a pessoa se a abstraímos desta dimensão. Onde se realizam nossos desejos insatisfeitos, que são imensos? ii. Falsas teorias em torno da pessoa a) Naturalismo 1. Conceito de pessoa. O homem é um produto da natureza. A natureza é o clima de nitivo para o homem, e a norma para se conduzir na vida é a razão. As idéias religiosas são uma emanação da sociedade. Esse naturalismo se manifestou em todas as épocas da história.

2. Sua educação. Segundo o naturalismo, a grande educadora é a própria natureza. É preciso educar o homem para fazer frente às circunstâncias e para conhecer o lado prático da vida. Atualmente, a teoria dos “re exos condicionados”, segundo a qual todos os sentimentos são reações dos nervos, invadiu o campo da educação naturalista. b) Socialismo 1. Conceito de pessoa. O indivíduo é produto do grupo, subordinado aos ns e aos desejos da sociedade. A sociedade é a norma do correto e do idôneo. A religião é um dos fatores destinados a socializar o homem por completo. 2. Sua educação. O homem aprende “fazendo”. O principal fator é o trabalho manual e industrial, pois se trata de formar uma sociedade de trabalhadores. O homem é uma peça da engrenagem social, e só assim ele se encaixará convenientemente. c) Comunismo 1. Conceito de pessoa. O homem é essencialmente um produto da matéria. A origem do homem, seu passado e seu presente podem ser interpretados como uma evolução da matéria. Todas as atividades humanas estão condicionadas pela “luta de classes”. O homem é uma partícula do Estado comunista, desprovido de toda transcendência. 2. Sua educação. O princípio da educação comunista é promover o desenvolvimento dos meios econômicos pela aquisição da cultura e do conhecimento comunista. A teoria comunista vê a educação como um longo processo, cujo conteúdo e método consiste em adestrar todos em sua ideologia materialista e atéia. d) Avaliação destas teorias

1. Em geral, elas partem de um falso conceito sobre a natureza humana. Para nós, o homem é a pessoa acima descrita. 2. São posturas unilaterais. Só desenvolvem fatores de seu interesse. Nesse setor, esses tipos de educação nos oferecem alguns elementos apreciáveis, válidos para nossas investigações. Mas sua concepção total é falsa e incompleta. 3. A educação é exigida pela pessoa. Não se pode marginalizar nenhum valor. Uma educação cristã da pessoa é integral. iii. O verdadeiro âmbito da educação a) Educação religiosa 1. Existem algumas verdades fundamentais que todo homem deve conhecer. Acima de tudo, sua condição de ser transcendente ao mundo. 2. Os ensinamentos da Igreja oferecem o expoente mais completo, e aquele que leva a uma solução tanto dos problemas individuais quanto sociais. 3. Este conteúdo é integrado por todas as verdades e dogmas que se encontram em nossa fé. Não se pode renunciar a nenhum deles se não queremos renunciar à própria fé. Aquele que nega um único dogma, nega a todos. b) Educação intelectual 1. O conhecimento é a mais simples e, ao mesmo tempo, a mais complexa das experiências humanas. O processo cognitivo parte das coisas para conseguir uma elaboração de idéias e conceitos. 2. A educação intelectual não consiste em uma acumulação de conhecimentos. As diversas operações implicadas no conhecimento — formação de idéias, juízos e raciocínios — devem

desenvolver-se mediante disciplinas adequadas, que são anteriores à nossa atividade mental. 3. A este fator externo é preciso acrescentar a assimilação pessoal. O homem é livre, e sua atividade intencional deve ser realizada mediante o esforço por se realizar livremente. c) Educação moral 1. O homem possui algumas tendências e orientações que às vezes o tornam imoderado. Por um lado, temos o caráter — conjunto de hábitos controlados pela aquisição de princípios morais imutáveis; por outro, o temperamento, conjunto de inclinações íntimas que brotam da constituição siológica. 2. A formação moral é uma conseqüência da religiosa. É necessário dar ao homem todos os elementos que integram o seu ser. Esta formação não é um complemento da educação intelectual, mas o resultado da prática da virtude e da luta pelo bem. 3. Atualmente, atribui-se grande importância à formação do caráter. Em de nitivo, trata-se de construir uma estrutura organizada dentro de alguém, por meio de princípios morais que proporcionem uma meta e um signi cado para todas as atividades humanas. 4. O temperamento, enquanto fator básico do homem, deve ser considerado em todas as suas implicações somáticas. Só assim o indivíduo se realizará com mais e cácia e segurança. d) Educação física 1. Já que o corpo é parte integrante do homem, deve-se levar em conta o desenvolvimento harmonioso de suas faculdades. Desta maneira evitaremos todo exclusivismo.

2. A consecução de uma vida sicamente reta e do bem-estar depende da formação e do desenvolvimento de hábitos de higiene, saneamento, exercícios, nutrição, moderação e domínio de si mesmo. Conclusão 1. Trata-se de implantar na educação um humanismo integral. O verdadeiro humanismo cristão é teocêntrico. 2. Não educamos a pessoa para fazer dela um mito, mas para desenvolvê-la harmoniosamente conforme sua natureza, para sua missão na vida. 3. Voltaremos a falar de modo mais amplo sobre cada um dos elementos integrantes da educação integral.

Artigo 8 — A compreensão, fator educativo472 429. Se sempre se desejou que os pais tenham uma perfeita preparação no campo da educação para comunicá-la a seus lhos, nunca como hoje eles tiveram maiores facilidades para conseguila. Não somente é uma necessidade, mas uma obrigação que os pais conheçam as situações “estranhas” pelas quais seus lhos hão de passar. Estando convenientemente preparados, os pais compreenderão melhor os seus lhos na difícil idade juvenil.

Muitos pais têm um conceito bastante inexato de sua responsabilidade, pois não possuem sequer a preparação para cumprir sua missão, ou não querem compreender os adolescentes. 1. Os incompreendidos a) A crise da adolescência e da primeira juventude 1. Se sempre deve existir a compreensão entre pais e lhos, esta necessidade se torna mais peremptória na adolescência. 2. O anseio pela compreensão é uma das características fundamentais desta idade. 3. O adolescente é o pássaro que, cativado pela irresistível atração da primavera, se dispõe a abandonar o ninho do lar. Nesses primeiros vôos, experimentará a desorientação e o terror das primeiras quedas. 4. Em seus primeiros balbucios, o adolescente não encontra nada sólido. Tudo ui e utua. Ele ainda ignora o que é e o que deve ser. Em meio a esta insegurança, qualquer atrito com seus pais causa nele uma profunda dor. 5. Não quer que atrapalhem suas idéias juvenis, mas suporta de bom grado que o orientem na oportunidade adequada. 6. Entregou-se a ideais com um entusiasmo juvenil. Tinha depositado sua con ança em certas pessoas e instituições. Cheio de esperança, aguardava o amanhecer de uma nova era e, ao se defrontar com a realidade, sente-se decepcionado. 7. A correnteza dos acontecimentos seguiu um leito inesperado. Ao seu redor, ele só vê a cruel realidade, precursora de um futuro ainda mais calamitoso.

8. Com o despertar do “eu”, vem juntamente o sentimento de uma reconcentração solitária. Ele se vê repentinamente segregado de todos os outros. 9. Experimentará em si mesmo a fase negativa ou idade das impertinências. Nesta, aparecem diversos elementos: a) Sensibilidade exagerada. Dá demasiada importância aos atritos ordinários. b) Obstinação e teimosia. Ele se fecha e não dá ouvidos à razão. b) Resistência dos pais a essa crise 1. Aos adolescentes se lhes impõe à força o pensamento próprio dos adultos, de forma arti cial, em nível de abstração, incubando assim todo germe de rebelião. 2. Como a forma de expressar seu caráter e formalidade é diferente daquela dos adultos, são julgados rebeldes, ou não os compreendem. 3. Os pais se queixam de que seus lhos não os escutam. Por sua vez, os lhos se queixam de que seus pais não os entendem. 4. Até a idade dos onze ou doze anos, os pais haviam compreendido seus lhos, porque os condiziam a seu gosto. 5. Passando desta idade, surgem nos adolescentes idéias próprias que em muito diferem do pensamento de seus pais. ii. A compreensão a) Âmbito da compreensão 1. Com freqüência os pais não percebem que seus lhos cresceram e mudaram. É difícil fazê-los compreender que já não são criancinhas e que é preciso agir de outra maneira.

2. A compreensão signi ca não desprezar as idéias dos outros quando podem ser valiosas, mas ser exigentes ao vislumbrarem o pecado. 3. A compreensão é amor; amor que chega até o abandono da própria vontade quando se vê que a razão está do lado dos lhos. 4. É fazer um esforço para amar tudo o que pode ser bom. 5. Saber ser pacientes. Fechar os olhos sob a condição de ter em vista um bem maior; mas que isso nunca pareça um derrotismo. 6. Devem ter consideração por sua ânsia de solidão, que aparece neles como algo vital. 7. Quando os adolescentes reivindicam a liberdade, o que eles buscam é conduzir a si mesmos para o bem. Isto não quer dizer que se deve deixar que façam tudo o que passe pela cabeça deles. Levando em conta os desejos legítimos, está-se em boa posição para dialogar. 8. Deve-se consentir certa amplitude em todos os aspectos. Entretanto, é preciso ter certeza de que a con ança concedida será usada retamente. b) Modo de agir 1. É antipedagógico que os pais se unam aos demais lhos contra o transgressor. 2. Somente aqueles que encarnam um ideal elevado, manifestado nos diversos momentos da vida diária, são capazes de educar. É um elemento importantíssimo, que os jovens avaliam com preferência.

3. Quando tiverem de impor a autoridade com rmeza, evitem as palavras amargas, toda atitude ofensiva, e as discussões duras. 4. Existe um binômio essencial na educação dos adolescentes: con ança e compreensão. Desta forma, os jovens vão crescendo e se tornando melhores, porque se sentem atraídos pela simpatia. 5. “Que vosso tom de voz não seja imperativo em excesso. Às vezes, fechar a boca de alguém é também fechar o seu coração” (G. Courtois). Conclusão 1. Depois do que foi dito, temos de compreender o grande tato que se deve ter para dar uma educação adequada. 2. Quando os lhos, já maduros, derem prova de seu êxito na educação, irão bendizer sem cessar a compreensão de que foram alvo por parte de seus pais. 3. Também os pais experimentarão grande alegria ao verem como colaboraram para a educação de seus lhos. 4. Ninguém jamais duvidou de que é difícil compreender os jovens em sua idade crítica, mas isto não deve ser obstáculo para a aproximação entre uns e outros.

Artigo 9 — A arte de mandar 430. Um dos aspectos mais importantes no grande problema da educação dos lhos é a arte de mandar. É também um dos mais difíceis. São pouquíssimos — relativamente — os pais que ganhariam uma nota “excelente” ou “notável” se fossem

avaliados nesta difícil disciplina. Alguns deles alcançariam a duras penas um simples “aprovado”. A imensa maioria teria de voltar a fazer provas no próximo semestre... O Pe. Maillardoz, que tão admiravelmente expôs os principais aspectos da arte de educar os lhos, em seu pequeno mas notável livrinho já citado, dedica dois capítulos a este importantíssimo assunto da arte de mandar. Reunimos, a seguir, algumas das idéias fundamentais que ele expõe nesses capítulos.473 1. O que se deve fazer Depois do fundo, a forma. Vigiai para que vossas ordens sejam sóbrias, claras e afetuosas. Sóbrias na quantidade. Claras em sua expressão. Afetuosas no tom de voz. 1. Ordens sóbrias 431. A intemperança é um excesso tão prejudicial à nossa ação moral sobre o próximo quanto à nossa saúde física. A alimentação é uma ação honesta, a glutonaria é um vício. Um elogio oportuno estimula o lho; a adulação perpétua o faz soberbo. Até mesmo a oração, por santa que seja, torna-se uma falta se ela substitui o dever do momento. Levai em conta os inconvenientes que traz a intemperança no exercício da autoridade paterna: 1º — da obediência no subordinado; o fastio com uma prática que já o saturou. 2º — de uma natureza que, mesmo em sua mais tenra idade, não pode ignorar o dom do livre-arbítrio recebido do Criador. 3º — de uma boa vontade sufocada pelo grande número de prescrições. Ferdinand Nicolai põe em cena uma

menina de sete anos. — Lembra-te bem — diz sua mãe — das seis recomendações que vou fazer-te: “Não deves fazer isto. “Não deves ir ali. “Não deves usar tal linguagem. “Não deves adotar tal postura. “Não deves comer desta maneira. “Não deves adotar tal modo de andar ao caminhar”. — Jamais poderei lembrar tantas ordens — diz a si mesma a pequena. — Apesar de toda a minha atenção, cometerei um esquecimento e, então, serei castigada... 4º — pela autoridade. Temos agora um garotinho menos escrupuloso que a menininha. O atrevido, ao contrário, faz uma brincadeira ao quebrar as ordens que chovem como granizo e são recebidas como maná pelo alegre garoto. Ele alimenta seu prazer com o excesso de diretivas, cujo lado ridículo compreende. — Paulo, tem cuidado: vais machucar-te! Paulo, olha para a frente! — Paulo, anda, pois estás entre minhas pernas! — Paulo, não caminhes tão ligeiro! — Paulo, vai mais devagar! — Paulo, ca à direita! — Paulo, passa para o lado esquerdo! Segura teu guarda-chuva mais alto! Não tanto! Mais reto! Mais inclinado para frente! Mais rme! Não pises na água! Não caminhes pela areia molhada, nem sobre as pedras! etc.

Tanta inconsistência nas ordens é contraproducente para toda autoridade. a) A criança é distraída. Atraí sua atenção para um único ponto; ela reterá o que dissestes e o fará. Dispersai-a sobre vinte objetos, e tudo escapará à sua memória. Nem mesmo se dará ao trabalho de recordá-las. É o peixe que desliza por entre os dedos, a borboleta que engana ao escapar em um revôo. b) A criança é mais sensata do que parece. A prática abusiva do poder entra em choque com seu bom senso. Instintivamente ela compreende que não sabeis mandar. c) A criança é revoltada. Pela simples satisfação de desa ar a autoridade, repetirá atos que ela sabe perfeitamente que estão proibidos. d) A criança é alegre. Ao modo de brincadeira, multiplicará as transgressões por diversão. Em seu passeio provocará ordens e contra-ordens, fazendo disso um jogo. Seu sorriso malicioso não vos diz nada? 2. Ordens claras 432. Não existem casos de pessoas adultas que se encontram em contravenção com algumas proibições pelo simples fato de não as terem compreendido? Se isto acontece com o adulto, como não acontecerá com a criança? Esclarecei, pois, o seu entendimento. Entrais à noite em uma catedral. Acendeis um fósforo: mal se distinguem as linhas do edifício. Eis que se acendeu uma chave elétrica central. Do piso até a abóbada se percebe o esplendor de cem lâmpadas: a vasta nave já não tem mistérios para nossos olhos.

. . O cúmulo da confusão é alguém não saber aquilo que pede a seu subordinado. Fala-se antes de ter re etido. Entrevemos vagamente o próprio pensamento. Debulhamos palavras ao acaso; elas saem de um espírito distraído ou preocupado. E assim se é su cientemente injusto para exigir do próximo uma perfeição na obediência, precaução que não tivemos ao dar a ordem. “Quando é preciso mandar”, diz com profundidade o Abade René Bethléem, é absolutamente necessário saber com toda a exatidão aquilo que se deseja. Quando se dão ordens, é indispensável expressar sua vontade em termos claros que não se prestem a erros de interpretação. Muitas vezes, temos notado que em certo grupo de crianças a obediência não era pontual porque as ordens não eram claras. Elas não haviam compreendido.

.

. Concretizai vossas recomendações.

— Roberto, tua urbanidade deixa a desejar. Uma criança deve respeitar os maiores. A linguagem exige controle. A atitude deve ser correta. Acreditais que semelhantes generalidades serão e cazes? É melhor dizer a esse jovem atordoado: — Amiguinho, um garoto bem-educado deixa que os mais velhos passem primeiro; não interrompe uma conversa. Senta-se corretamente na cadeira, não se estica no sofá. Sabes o que dizem de ti? Assim que saíram do apartamento, essas senhoras comentaram em coro: “Viram o Roberto? Que menino mais mal-educado!”. 3. Ordens afetuosas

433. 1. , Depois do pensamento, o amor.

. Depois da luz, o calor.

O homem é um complexo formado de inteligência e sensibilidade. Deter-se diante da claridade feita em seu espírito é parar na metade do caminho. O império do coração sobre a fria faculdade da vontade racional é imenso. É o centro do ser. Buscai conquistá-lo e tereis adquirido um poderoso aliado. Descuidai-o, colocai-o contra vós, e tereis feito dele um perigoso inimigo. Ama et fac quod vis, dizia Santo Agostinho: “Amai e fazei o que quiserdes com vosso próximo”. Amor meus, pondus meum: “Para onde pesa o meu amor, para lá me inclino”, acrescenta o mesmo santo. Mas não se guarda o amor no recesso do coração: é preciso trazê-lo para a luz plena; necessita de palavras, gestos. Falta-lhe ao menos o sorriso. Ora, sorrir é ser amável; não se ama se não se é amável. A educação é um chamado incessante ao sacrifício. Sorri, e eles se sacri carão; mandai com graça nos lábios, e vos obedecerão. Que vossas ordens sejam afetuosas! E que teatro é mais apropriado para esse efeito que a cena familiar? O amor não é a alma de todo idílio? Não foi ele que aproximou e uniu os esposos? Não se deve a ele o nascimento do lho? Não é o laço entre pais e lhos a corrente de ouro entre os irmãos? Começastes por ele, acabai, pois, por ele. O amor vos inspirou o dom que domina todos os benefícios deste mundo. A educação é o complemento indispensável da existência compartilhada. Cumpri este último dever do coração com amor; e já que a educação é o mandato, que vossa autoridade seja toda de amor...

434. 2. . Ordenai com dureza, de forma rude e grosseira, e cai seguros de sofrer um fracasso.

A causa é dupla: 1º — A criança percebe o afeto que lhe dedicais. 2º — Tem o sentimento de saber-se digna de respeito. Primeira causa. A criança tem consciência do pleno poder que tendes sobre ela, mas percebe que, se tendes direitos adquiridos, é em virtude do amor, sem o qual ainda se encontraria submersa no nada. Esse benefício, que ultrapassa todas as liberalidades deste mundo, vos encaminha a um segundo tributo, o da educação. Tendes assumido a tarefa de levar seu corpo ao pleno desenvolvimento, de cultivar seu espírito e formar seus hábitos. Vosso amor criou direitos, não somente pelo fundo ou pela substância desses dons, mas também pela forma de sua distribuição: amorosa, amável e afetiva. A criança, repito, tem a íntima percepção desse direito. Se estais em falta neste ponto, ela se sente ferida e ninguém duvidará da legitimidade de seus ressentimentos. Segunda causa. Ainda mais profundo na natureza da criança é o sentimento de sua dignidade. Analisai o coração humano e estareis de acordo com Santo Tomás em que a honra é o mais precioso dos bens deste mundo. Alguém pode viver sem afetos, mas jamais abdicamos do direito ao respeito que nos é devido. O ódio é menos duro que o desprezo. Sentimos perfeitamente que um inimigo, debaixo de suas injúrias, nos estima. É comum que, por nos estimar, nos deteste. Ele aprecia nosso poder de ação, nosso talento, nossas qualidades, a nobreza de nossos sentimentos, a elevação de nossos pontos de vista, a grandeza de nossas aspirações. A amplitude de sua estima determina a medida

de sua obstinação em combater-nos e tentar destruir-nos, por ser o campeão de uma causa que ele detesta. Nas mais odiosas injustiças de que somos suas vítimas, nosso coração se encontra reconfortado e tem uma espécie de compensação, não só dentro de nossa inocência, no sentimento de nosso direito e na santidade de nossa causa, mas também na involuntária homenagem que a estima do adversário nos faz. Todo este discurso é para dizer-vos que, se feris o homem, mesmo em sua idade mais tenra, nesse ponto especialmente sensível, cometeis uma extrema torpeza. “Muitos acham útil”, escreve Nicolai, zombar do menino com o pretexto de formar o seu caráter. Um jovem culpado, todo envergonhado, chora em um canto. O pai o procura, segura sua cabeça para deixá-la bem à vista e, dirigindo-se aos que o cercam, diz: — Vejam como é bonito! Que lindo! E que amável! Não é encantador? Humilhado assim, o garoto ca amargurado, sente-se mal e acumula em seu coração um profundo rancor. Para ter lhos taciturnos e vingativos, este procedimento é infalível.

Prossegue o mesmo autor: Existem outros pais que repetem a toda hora: “Como és bobo! Que criança estúpida! Sem jeito!”. Suponhamos que estas expressões sejam inteira verdade: uma razão a mais para que elas machuquem e morti quem.474

435. 3. . Assim feristes a criança; a vítima de vossa agressão vai entrincheirar-se em seu lugar, nenhum ataque conseguirá forçar sua porta. Declarada a guerra por vossa imprudência, ela será levada por uma das duas formas seguintes: ou bem pela violência, ou então pelo silêncio, in nitamente mais temível.

1º — A violência. A criança sangüínea ou nervosa salta impelida pela ironia com que acabais de atingi-la. Nada conterá sua exaltação: nem a razão, nem a consciência, nem o sentimento de sua debilidade, nem a segurança de vossa força. Aqui, o verso do poeta manifesta toda a sua verdade: Video meliora, provoque: deteriora sequor (“Vejo o bem, reconheço-o, mas faço o mal”). Assim como o animal manso por natureza se torna arisco com os maus-tratos, a criança reta, simples, de bondade natural, torna-se má devido ao vosso erro. Sois tão pouco psicólogos, tão pouco humanos, que provocais nela, em toda oportunidade, cenas de violência. Falseais sua natureza, fazeis o contrário da educação. 2º — A guerra silenciosa. Ah! Temo muito mais a esta! O temperamento turbulento me oferece o espetáculo da tempestade, que estala subitamente e logo se acalma. Terrível por seus relâmpagos e trovões, o céu recupera sua calma; o rmamento, seu azul. No melancólico ou no bilioso, é a eterna noite do pólo!... Durante três meses, nem luz, nem calor!... Durante sua vida inteira, talvez, a criança constantemente ferida em sua honra alimentará uma viva antipatia, uma aversão surda, tenaz, corrosiva, contra essa autoridade que forma um duplo arco-íris em toda alma terrena: a lembrança de um pai, a memória de uma mãe. Rancor: esta é a palavra odiosa que expressa um sentimento tão antinatural quanto o ressentimento de um coração onde a ferida sangra a vida inteira. O lho ou a lha sentem somente o poder de um agradecimento desolado. Sobre o dom da existência, sobre o qual compreendem sua dívida, estende-se um véu, como o luto do sol no pólo. A obra

paternal e maternal não passou da estação hibernal. O germe da vida foi depositado, mas não existe primavera para o coração! A infância, a adolescência sucederam-se sob um astro velado. Por toda a sua vida, o Monsenhor Plantier, o ilustre Bispo de Nimes, conservou uma sombria recordação de seu pai e de sua mãe; ele, jardineiro, austero, rude e duro; ela, fria e severa. O famoso Talleyrand-Périgord, príncipe e bispo, repete com amargura que, exilado desde sua tenra infância do peito paterno, não gozou por uma semana inteira das “doçuras do lar”.

436. 4. . Permiti-me citar, nalmente, a virtude da qual acabo de apresentar alguns traços. Formada a partir das palavras latinas fari e ad (= falar a, dirigirse a), a afabilidade é a virtude que regula nossa linguagem e torna encantadoras nossas conversas, nossas atitudes e nossas demonstrações de benevolência para com nossos semelhantes. Ela é, segundo Santo Tomás, o resplendor da amizade. É sobrenatural o rosto da caridade, o exterior da rainha das virtudes. O Doutor Angélico relaciona-a com a misericórdia, da qual nos passa a de nição dada por Santo Agostinho: “A misericórdia é a compaixão de nosso coração face à miséria do próximo: daí o seu nome de misericórdia”.475 Mas onde encontrar miséria mais profunda que no recémnascido, incapaz de mover-se? E onde necessidades mais graves e urgentes que no ser impotente para conservar sua vida por seus próprios meios? Sejamos compassivos com os “pequenos”. Exatamente em razão de sua debilidade, envolvamos nossa misericórdia com sorrisos. É verdade que a severidade tem suas horas na educação, mas somente uma hora deve marcar a infância para sempre: a da alegria.

Escutai a história de João Paulo: Minha amiga Genoveva, conversando, vigia as brincadeiras de seu lho João Paulo, gentil homenzinho de três anos. O pequeno está particularmente contente porque acaba de conseguir no assoalho o alinhamento desigual de todos os objetos que lhe é permitido deslocar, e nós admiramos esse “grande trem”. João Paulo grita, bate os pés, bate com as mãos, como os adultos fazem em situação semelhante; mas, além disso, eis que bruscamente ele toma os dedos de sua mamãe para... mordê-los. É sua maneira de manifestar as maiores alegrias! Mamãe se aborrece: — Outra vez!... João Paulo, mamãe não brinca mais! João Paulo enrubesce e volta para seu jogo sem compreender... — João Paulo, acabou! Vai para teu canto! Oh! Como isso é sério! João Paulo interrompe seus gestos: xa sobre a mãe um olhar interrogativo... — Tu foste mau, João Paulo. Vai para teu canto. Desta vez não há jeito de escapar. João Paulo baixa o nariz, cruza os braços nas costas, examina um instante cada canto da sala e, depois de fazer a escolha, se dirige para ele devagarinho, com ar de contrição. Genoveva e eu levantamos os olhos. João Paulo está no canto já faz... apenas alguns segundos. Dá a volta, lança um profundo suspiro: nenhuma resposta. O narizinho do menino volta-se para a parede... Outros poucos segundos: — Mamãe... mamãe... Mamãe não se comove. — Mamãe... João Paulo não fará mais isso, será bom. — Isso é verdade, João Paulo? — Sim, mamãe, nunca mais farei isso. — Bem, vem pedir perdão. João Paulo vai com passos curtos, ar contrito; apóia-se nos joelhos de Genoveva: — Perdão, mamãe — diz ele com voz suave. Sua mãozinha pega os dedos que mordera há pouco e os beija. — Vamos, está bem, João Paulo. Mamãe está contente; agora, vai brincar. Mas Genoveva está séria e re ete sobre as di culdades de sua tarefa de educa- dora... E João

Paulo ca ali; seus olhos assustados, inquietos, estão xos no rosto grave de sua mãe... Imediatamente, com voz alta e suplicante, ele grita: — Ri, ri, mamãe! Ri, João Paulo vai ser bom. Então, Genoveva oferece a seu lho o reclamado sorriso, e acrescenta um beijo para reparar seu esquecimento. Volta novamente a exuberância! Um grito, um salto, uma pirueta, a vida volta a sorrir naquele coraçãozinho de três anos. Eu vos pergunto: não somos todos como João Paulo?

2. O que não se deve fazer 437. Até aqui, temos examinado o lado positivo na arte de mandar: aquilo que se deve fazer, como se deve mandar. Mas nossa visão seria incompleta se não reuníssemos também o aspecto negativo, ou seja, aquilo que não se deve fazer se queremos chegar à perfeição na arte de mandar. São três os principais erros educacionais que é preciso evitar a todo custo: os pedidos, as negociações e, sobretudo, as capitulações. São três fraquezas que, disfarçadas de bondade, de misericórdia e de generosidade, constituem verdadeiras traições ao gravíssimo dever paternal de educar os lhos corretamente. O amor faz o bem; a fraqueza perpetra o mal. i. Nada de pedidos 438. Alguns pais “imploram” à criança para que obedeça. Que disparate e que contra-senso! Pedidos são dirigidos a um superior ou a um igual. Para um inferior eles são contraproducentes. O pedido presume uma ausência de direitos sobre a pessoa a quem se pede; eu peço a meu chefe porque não tenho o direito de mandar. Peço a um igual, porque não tenho o direito de lhe dar ordens. O soldado pede a seu capitão que lhe conceda uma licença. Um passageiro pede a seu vizinho que lhe permita fechar a janela que

o incomoda: ambos têm o mesmo direito em um trem. Existe, porém, algo mais absurdo que o capitão pedindo a seus soldados que avancem, o chefe da estação rogando ao maquinista que se ponha em movimento? E vós, pais e mães, não sois chefes? Pedindo à criança, vós lhe fazeis um mal: falsi cais seu espírito, desorientais seu pensamento, distorceis sua mentalidade. Tratando-a do mesmo modo que a um superior, criais para ela uma situação ctícia, e ela imaginará ser vosso superior ou vosso igual. Em nossos dias, muitos pequenos impertinentes demonstram para seus pais e mães a decadência da autoridade paterna. O que escrevo é uma realidade, e não uma hipótese que formulo. São incontáveis os pais covardes e os garotinhos tiranos. Raciocinemos. Como uma pequena divindade, a criança se digna conceder-vos o favor de aceder sempre aos vossos pedidos. Então, eu vos felicito por terem encontrado um tão misericordioso patrão. Porém, como ele é livre para vos agradar ou não, eis que, ao contrário, vosso pedido encontra ouvidos de mercador... Que fazeis? Há somente duas hipóteses: ou renunciais a mandar na criança e, de fato, renunciais a todo trabalho educativo, ou então tendes consciência su ciente para cumprir com vosso dever, amor su ciente para forçar o da criança; e aí adotais outra tonalidade diferente do pedido, dareis ordens e estas serão obedecidas... Mas por que não ter começado por isto? Se não tomais a dianteira, estareis obrigados a fazer vosso discípulo descer de sua atitude altiva, de árbitro de sua própria conduta. Existe uma forma cortês, afetuosa, mas mandar: adotai-a. Deixai de lado o “pedido”.

rme e peremptória de

Muitas pessoas não têm energia alguma... Queres?... Queres?... Queres sopa?... Queres carne?... Queres tal roupa?... Tal capote?... Queres sair?... Queres vir aqui?... Ir ali?... Sozinho?... Ou comigo?... Que caráter de heróis estais forjando! “Mas és ingênuo, querido autor”, dizem para mim. “Ingênuo por todos os ‘vossos quereis’”. Por acaso não notaste que eles estão prevenidos e adiantados por inumeráveis “quero”? A mãe não tem sequer o trabalho de pedir, se os pequenos lhe ordenam: “Quero que me leves a tal lugar. Quero que me compres tal coisa. Quero que me sirvas tal comida”. Esses “quero” estão reservados para os favores que o pequeno tirano está incapacitado de conceder a si mesmo. Educação do século

!

Qual será, então, a do século

?

ii. Nada de negociações 439. É uma prática menos devota, menos humilhante, menos ajoelhada que o pedido dirigido à criança; entretanto, a negociação não des gura menos a autoridade paterna. A educadora já não é uma suplicante: é uma cliente. E o comércio acontece o dia inteiro: “Queres fazer este mandado para mim? Eu te darei doce de maçã”. “Queres começar logo o teu dever? Eu te darei um caramelo”. “Se não paras de chorar, não terás o merengue”. “Toma este remédio e te levarei ao cinema”. “A cada obediência imediata, receberás uma moeda”. “Não mintas mais. Receberás por isso cinco pesos por mês”.

É comércio: a criança é o comerciante; a mãe, uma cliente; a virtude, uma mercadoria. A mãe faz a proposta do preço, a criança aceita ou recusa; pede mais ou exige outra coisa em troca. A virtude é objeto de trá co. Só falta a “marca registrada”.

1º — Existe algo mais ignominioso que fazer do dever uma moeda a ser cotada? Existe algo mais antieducativo que deformar o espírito infantil apresentando-lhe a virtude como um simples lucro quando é praticada? 2º — Existe uma abdicação do poder mais completa que não mandar e substituir as ordens paternas pelos negócios do balcão?

Para a mãe, o dever consiste em formar a consciência de seu lho. Ora, a consciência é o sentimento do ato que se deve realizar, não para ganhar umas moedas ou se empanturrar de guloseimas, mas porque existe acima dele um Mestre que manda, um bom Pai que recompensa o amor de seus lhos. Ele não vende seu céu: faz um presente aos que o amam: diligentibus se. É necessário fazer do lar familiar um cantinho do céu, e nele obedecer a Deus com a mesma dedicação como se estivesse no céu: “Seja feita a tua vontade assim na terra como no céu”. Assim falou Jesus educador. Lançai na vida a criança habituada a cumprir seu dever somente pelo objetivo do interesse egoísta, e a vereis como um homem disposto a vender sua consciência ao melhor proponente. Está, então, proscrito o estímulo ao dever? De maneira alguma. Recompensai a virtude, não a vendais. Não há nada mais de acordo com a moral que recompensar o esforço. Deus nos oferece exemplos deslumbrantes. A eternidade bem-aventurada não é, acaso, a recompensa prometida? É necessário eliminar a esperança dentre as virtudes teologais? A cobiça servil é que é reprovada, ou seja, a esperança que exclui a caridade, sem conservá-la no cuidado de nosso futuro eterno. Fazei o mesmo, queridos pais. Imitai o Pai celestial. Recompensai o mérito. Recusai a agiotagem ou o comércio.

E como consegui-lo? Eis a regra. Reservai vossa liberdade para recompensar como quiserdes, quando quiserdes e na medida em que quiserdes. Reservai para vós a espécie, o tempo e a medida. a) A espécie. Não queis preso a determinada matéria de recompensa, menos ainda ao gosto de vosso subordinado. b) O tempo. Recompensareis quando julgardes conveniente; não logo após cada ato de virtude realizado pela criança, nem imediatamente depois. c) A medida. Não é a criança quem determina a intensidade do prêmio concedido. Aquilo que se dá gratuitamente é medido ao gosto do doador, não do receptor. A recompensa não é um salário estabelecido, é uma concessão livre. iii. Nada de capitulações 440. 1.

:

.

Um poder que é conhecido por retirar suas ordens sempre que se insista ou que seja intimidado, sendo vencido por promessas ou se cansando com importunações, já decidiu sua decadência. E não julgueis que semelhante derrota não deve ser temida por parte de uma criança. Não existe diplomata mais astuto que um pequeno. Parece que a natureza ilumina com inspiração maquiavélica o cérebro de quatro anos. A exibilidade é — acreditamos — a chave-mestra na estratégia. O general percebe que já não há nada a esperar de tal manobra e imediatamente dirige suas forças para outro ponto. O pirralho pode dar uma lição aos bigodudos. É

a) Primeira manobra: a discussão. É o ataque de surpresa contra o inimigo. É a manobra envolvente que se fecha gradualmente. — Mamãe, eu queria muito sair. — Não, querido, estás resfriado. — Mas o tempo está tão bonito! — Estás resfriado. — Eu visto o agasalho. — Não, estás resfriado. — Mas eu carei pouco tempo. — Não, estás resfriado... Depois de dez, vinte resistências serenas, mas cansativas, eis que é içada a bandeira branca: a praça se rende. — Bem, querido, olha, já que o tempo está bom, te abrigarás e carás pouco tempo... E todos os “não” são transformados em “sim”.

Acreditais que é por uma inspiração de momento que o “pequeno” utilizou essa tática triunfante?... Interrogai em segredo ao espertinho e ele vos dirá que sempre procede assim. Re exão, experiência, paciência, não lhe falta nada... nem mesmo a mãe ingênua ou fraca. b) A bajulação. Um outro menino observou que a simples argumentação não dava resultados. Então, o pequeno estrategista transporta suas energias para outro ponto: — Mãezinha, eu te amo muito; deixa-me ir passear. (Também está resfriado). — Não, querido, estás resfriado. — Mas eu fui bonzinho para te agradar. — Sim, querido, mas estás resfriado. — Oh! Nunca mais vou te chatear! — Estás resfriado, querido; não posso conceder-te essa recompensa.

— Mas na segunda-feira é teu aniversário. Se soubesses que linda surpresa eu tenho preparada! — Bem, garoto, eu te permito, mas volta depressa. E assim que ele voou; tentem alcançar o pássaro!...

c) A violência. A jovem mãe acabou por adquirir alguma experiência. A re exão chegou tarde, e já deu seus frutos. Ah! Esses frutos! Não nos apressemos a pronunciar esta palavra. A educação — segundo ela mesma deixou notar — escorrega sobre seu pequeno subordinado que, por meio de hábeis manobras, a fez capitular em todas as oportunidades, e chegou a evitar todos os sacrifícios que constituem a têmpera de um homem. O trabalho está praticamente perdido. O garoto chegou aos seis anos: é o tipo de “criança mimada”. Pela centésima ou milésima vez, o esposo pediu à sua companheira que se mostre enérgica... Ganhou a partida! A jovem mãe prometeu desta vez: compreendeu... Quer... vai fazê-lo... O antagonista se apresenta... Argumentação? A mãe resiste. Bajulações? Fica imperturbável como o bronze. O garoto compreendeu: ele também compreendeu... Trata-se de formar uma nova frente de batalha. O fogo começa com uma salva de exigências altivas, ruidosas, que contrastam com o tom humilde e insinuante do passado. A mãe resiste. A uma pequena agressão sem resultado, segue-se uma segunda: gritos, clamores, um estrépito de vozes. A praça resiste bem.

Faz-se apelo a reforços: as lágrimas. A defesa se abranda... Último assalto: os golpes; sofás, cadeiras, tamboretes voam pelo ar ou são derrubados. As mesas são sacudidas ou reviradas, as portas golpeadas, enquanto os pés sapateiam com raiva. O garoto sai furioso... Aonde vai? Ah! Sem dúvida, vai precipitar-se do alto da escadaria? Vai suicidar-se?... Ouvistes, Catarina?... Ele disse que vai se matar!... Enlouquecida, a mãe corre, pega o desesperado, segura-o sobre o abismo. — Mas, sim, querido, tudo o que quiseres! Diz, fala. Que queres? Vou te dar, vou conceder. E um segundo depois o jovem comediante se acha tão calmo como antes da cena... Conseguiu tudo! No futuro, em lugar de empregar os recursos de doçura, irá diretamente à violência. Pobres cadeiras, sofás e abajures! Parafusai-os solidamente ao piso. 441. 2. . Existem mães que de início recusam e, em seguida, por fraqueza, permitem. Acabamos de comentá-lo. Outras há que fazem o contrário. Cedem de início, reagem imediatamente e, usando de força, recuperam suas concessões. É o que chamo de capitulação pela metade. Inicialmente elas capitularam, mas retomam a praça de guerra e então ordenam e triunfam. Triste triunfo aquele que se deixou bater sem coragem e, no nal, vence o inimigo com uma energia atrasada. Semelhante manobra é menos vergonhosa que os retrocessos dos quais demos exemplo. Não é a rendição nal, é apenas, repito, a

capitulação inicial: a capitulação pela metade. Será razoável? Por que não começar por onde se quer terminar? Escutai a Nicolai: — Luís, pega teu agasalho. — Não precisa, mamãe. — Olha como está nublado: há vento do oeste, o barômetro está baixando. Leva-o assim mesmo. — Mamãe, eu te garanto que não vai chover. — Na quinta-feira, quando foste à casa de teu tio, não tinhas o agasalho, choveu e te molhaste até os ossos. — Sim, mas no domingo me zeste levá-lo e o tempo nunca esteve tão bonito. A mãe, decidida a fazê-lo obedecer, acrescenta nervosamente: — Sabes que me cansas com teus argumentos: Eu quero que leves o agasalho. O garoto pega o agasalho e sai...

Então, por que esse diálogo contraditório? Por que esse pequeno discurso meteorológico, para chegar a uma peremptória ordem nal? Que pensais do general que, sentindo-se forte, se deixa bater para depois liberar suas forças e esmagar o inimigo? Sua derrota estimulou o inimigo, humilhou seus soldados. A vitória tornou-se mais trabalhosa. Quanto mais parlamentais com a criança, mais ireis enervar seu espírito de obediência. Perdeis autoridade na medida em que concedeis a vosso subordinado a faculdade de vos resistir. 3. A dupla condição para mandar O ato de mandar precisa sempre revestir-se de uma dupla condição: 1º — A re exão. 2º — A calma. A re exão: utilizando o cérebro. A calma: no coração.

442. 1. . De onde provêm os descontroles na prática da autoridade, senão de que em determinada circunstância não se tomou o tempo para re etir? Ou será que... não se re ete nunca? A autoridade exercida com re exão usa de duas partes de seus pensamentos. A primeira tem por objeto o assunto das ordens a emitir. E oferece em si mesma uma graduação na qual se deve prestar atenção. Existem assuntos de primeira, segunda e terceira ordem. a) O assunto de primeira ordem tem por objeto prescrições de tão grande importância, que seja impossível prescindir da autoridade. A consciência está gravemente comprometida. b) Os assuntos de segunda ordem podem ser sacri cados quando se apresentam grandes dúvidas sobre o futuro bem da ordem a ser dada. c) Finalmente, a terceira categoria oferece as exigências de valor mínimo para o poder. Caso se entregasse à fantasia de mandar em todas as coisas até o mais ín mo detalhe, acabaria em pura perda.

A segunda parte da re exão diz respeito ao sujeito a quem é preciso ordenar: o sujeito é a criança. A re exão pesará as forças do subordinado, suas capacidades intelectuais, morais, e inclusive físicas. Cada criança tem seu temperamento, sua compleição natural, seu caráter, sua personalidade. É um falso ponto de partida na arte educativa ir do particular ao geral. A lógica prescreve exatamente o contrário. O educador se compenetrará primeiro das regras da educação, e a seguir examinará sua aplicação nesta ou naquela criança. Outros dizem, e é falso, que existem tantas naturezas quanto crianças. Primeiro estudai a criança que deveis formar e, em seguida, os princípios de formação. “Colocai o carro à frente dos bois”.476 “Ligai a locomotiva e, quando tiverdes descarrilado, estudareis a marcha da máquina...”.

Aqui, dizemos o contrário. Vejam um pai de família bem-informado sobre as regras da educação. Ele passa à prática: irá perguntar-se em que medida é possível aplicá-las à criança, a determinada criança, dadas as condições pessoais de seu jovem subordinado. O método da re exão. Nas horas dedicadas à consideração de seu trabalho, o pai recorrerá com proveito à série de re exões que nos foram deixadas pelo célebre orador romano. Quis? Quid? Ubi? Quibus auxiliis? Cur? Quomodo? Quando?477 A quem devo dirigir? — À criança. Qual é o meu trabalho? — Uma educação integral. Onde se realiza esse trabalho? — Em que faculdade? De que recursos disponho? — Espírito, coração, energia. Por que é uma tarefa tão séria? — Por ser decisiva. Como cumpri-la? — Passado, presente, futuro. Quando? — Hoje mesmo.

Qual é o homem de negócios que não dedica ao seu empreendimento o necessário tempo de re exão? Existem muitos pais de família, muitas mães, que se examinam diante de Deus? Diante do futuro de seus lhos? Re eti. Ficareis surpresos com o grande número de reformas que deveis introduzir em vosso governo. Vosso trabalho irá fruti car ao cêntuplo. 443. 2. . Já entrastes em um desses lares abençoados onde impera uma rainha serena? Eternamente calma em suas forças, perpetuamente graciosa e sorridente no resplendor de sua elevada virtude, a rainha da serenidade não é perturbada pelas importunações de seus lhos, nem pelos acidentes da saúde ou pelas preocupações da casa, nem pelas vicissitudes incessantemente móveis da existência.

O dever é sua estrela. Ela caminha como os reis antigos, porque sabe, tal como eles, que o motor é Deus: Deus, sobre quem ela se apóia; Deus, que nunca lhe faltou; Deus, que tem em suas mãos paternais todos os acontecimentos de sua vida de mãe e esposa, de dona de casa e de mulher que trabalha. Seu lar é o reino da paz, quase do silêncio. Se as vozes se elevam, é para se misturarem umas às outras em notas de um concerto de alegria. Tudo nessa família funciona com a regularidade do grande pêndulo do relógio da escadaria, onde o taque responde ao tique com regularidade e cuja oscilação não é mais apressada à noite do que pela manhã. O segredo da rainha da serenidade? Ah! Gostaríeis de conhecêlo? Por que esta mãe, esta dona de casa, é tão diferente de tantas outras? Porque ela é... dona de si mesma.

Artigo 10 — A arte de vigiar 444. Diante da amplitude do tema, vamos expô-lo em forma esquemática, mas su ciente e clara.478 i. Duas histórias que fazem pensar 1. Grades de um cárcere. Nos dois lados: a mãe desfeita em pranto e o lho de vinte anos: “Meu lho, por que zeste isso?”. “Mãe, se tivesses vigiado minhas companhias, as saídas à noite...”.

2. “Pai, ela não teve culpa; eu fui um infame. Que desonra! Minha pobre lha...”. “Senhora, você vigiou os lugares e as pessoas que sua lha freqüentava?”. ii. Os que vigiam a) O Senhor 1. Vigia a criança, o jovem, o homem, em todos os momentos de sua vida. Como mãe carinhosa e terna, com os olhos sempre postos sobre ele. 2. Inspirações na consciência, queixas que produzem remorsos, conselhos que afastam de más companhias, alegria pela vitória, prazer do dever cumprido... 3. Dá-lhe pais, mestres, sacerdotes que os orientem e dirijam. b) O anjo da guarda Vela dia e noite: 1. Para que a criança não se ra nas pedras do caminho, não sofra danos ao cair, e os descuidos inculpáveis de sua mãe não lhe sejam nocivos. Quanto devemos ao anjo da guarda! 2. Para que o jovem não vá a lugares maus, se afaste de más companhias, sugere, insinua, inspira-lhe horror ao pecado, amor à oração, à Igreja, ao lar... 3. Pela jovem, para que não queime suas asas de mariposa, não caia nas garras de um caçador, se conserve pura até o altar... iii. Os que também devem vigiar: os pais a) Necessidade da vigilância paterna 1. Esta é exigida pelo m primário do matrimônio, que é a procriação dos lhos e sua educação cristã. A vigilância é um fator É

essencial e parte integrante da educação. É, pois, um mandato de Deus. 2. Nossas más inclinações, contraídas pelo pecado original, postulam um olhar atento, pronto a regular e orientar desde o princípio os nossos primeiros movimentos desordenados, ainda que inconscientes. 3. Desde sua mais tenra idade, o homem se vê ameaçado por muitos perigos morais, enquanto caminha pela rota da evolução moral; perigos que, em seu princípio, ele desconhece quase por completo. a) De fora, vem-lhe o incentivo para o mal que brota dos maus exemplos, da sedução direta dos maus livros, das imagens imorais e frívolas. É necessário preveni-lo, precavê-lo desta in uência maligna exterior. b) De dentro, proveniente de sua natureza sensitiva, de suas tendências e suas más inclinações individuais. 4. Assim como a criança, em seus primeiros anos, se encontra indefesa diante dos perigos das ruas das grandes cidades, assim também, no princípio, não pode se defender por conta própria dos perigos morais que a espreitam do exterior e do interior. 5. A experiência própria e alheia comprova que a perda da fé, as depravações luxuriosas, os roubos e os crimes por parte de crianças ou jovens são devidas, na maioria das vezes, à falta de vigilância paterna. b) Modo de exercê-la 1. Nos primeiros anos da vida da criança, a vigilância deve ser tão completa, que nada de mal possa aproximar-se da criança sem que os pais o percebam imediatamente.

a) Quando os pais perceberem que algum movimento mau do interior do espírito da criança se manifesta no exterior, mostrarão a ela o aspecto deplorável e feio dessa coisa má, e as conseqüências nefastas que traz consigo. Irão exortá-la a não cair nela e lhe apontarão a virtude oposta, procurando despertar nela o propósito de combater o mal e adquirir as boas qualidades. b) O lado imperativo desta cuidadosa vigilância se fundamenta no princípio de que “é mais fácil prevenir os erros do que eliminálos quando já se tornarem habituais”. 2. À medida que as crianças vão crescendo, os pais deverão ir afrouxando paulatinamente a vigilância. Contudo, sempre terão de conhecer as pessoas com as quais os lhos passam os tempos livres e ver se são ameaçados por algum perigo moral por parte de seus companheiros ou companheiras de diversão, etc. 3. Os pais não devem perder de vista que o m de toda educação é conduzir à autonomia, ou seja, que o jovem se comporte bem por convicção própria. Assim, quando virem que seus lhos assimilaram a atitude e a maneira de agir convenientemente em cada situação, deverão afastar-se pouco a pouco e reduzir a vigilância, a m de que o jovem chegue a vigiar a si mesmo. 4. Entretanto, mesmo então os pais deverão saber com segurança qual o uso que ele faz da liberdade que lhe vão concedendo. Não em nível policial — seria contraproducente —, mas com habilidade e doçura... c) Extensão da vigilância .

,

.

a) Sobre seu entendimento, para que sempre seja regido por princípios e critérios sadios na ordem dogmática e moral. Colocar bons livros em suas mãos, etc.

b) Sobre sua vontade, para que não se incline ao mal, deixandose arrastar pelas paixões, e ame sempre o que é reto, bom, nobre e ideal... .

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a) Com os irmãos. Vigiai para que se tratem carinhosamente, mas com modéstia, não esquecendo a devida separação que deve existir entre irmãos e irmãs. Como é bonito ver dois irmãos que se amam ternamente e se ajudam mutuamente a serem bons! b) Parentes: tios, cunhados, primos... Como alguns deles são bons! Às vezes, quanto lhes devemos!... Mas Santa Teresa esteve a ponto de perder-se pela companhia de uma prima vaidosa.479 Voltaire se perdeu por causa de um tio descrente e ateu. Tios que semeiam a semente da incredulidade, da indiferença, da luxúria. Primos que arrastam ao pecado... Cuidado com eles, pais! c) Com os amigos. Nada melhor que um bom amigo. Quantos, porém, perderam a fé por causa de um mau amigo ou aprenderam o caminho da impureza, do álcool, da desonra, do roubo e até do crime! .

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a) As leituras, sobretudo as revistas ou romances obscenos, ou simplesmente frívolos, podem causar um dano terrível. Impõe-se, pois, uma seleção e cuidadosa vigilância por parte dos pais e educadores em geral. Mesmo as boas leituras fazem perder muito tempo, transportam para um mundo de ilusões, etc. b) Cinemas. É incrível a sua in uência, boa ou má, na vida moral dos jovens. Segundo estatísticas o ciais, é a principal causa da

delinqüência juvenil. c) Teatros. Não há mais os autos sacramentais, o teatro clássico que moralizava ao agradar. Hoje: variedades, revistas, nudismo... Quanto lixo e imoralidade! d) Bailes, festinhas... Neles, muitas vezes é sumamente difícil conservar a pureza e a inocência. e) Balneários, piscinas, excursões campestres com jovens de ambos os sexos... sozinhos. f) Fábricas, o cinas, institutos, escolas, etc. Cuida de teus lhos ao voltarem, procura compensar as más in uências que tenham recebido. iv. Os exemplos da educação a) São necessários e obrigatórios 1. Por causa da psicologia da criança. a) A criança possui uma capacidade muito maior de imitação que de abstração. Sois o motivo supremo de conduta: vossos lhos, por instinto, farão aquilo que vós zerdes. b) Os antigos latinos costumavam dizer: Quod cantant veteres, tentat resonare iuventus: “Os jovens cantarolam as canções dos velhos”. Neste ditado se encerra toda a loso a da imitação. Um modelo vivo vale mais que cem descrições de um modelo ideal. 2. Para reforçar a autoridade dos pais. Com que autoridade os pais poderão ordenar algo a seus lhos se a sua própria conduta é a negação daquilo que eles mandam e preceituam? 3. Para serem e cientes na educação. Somente são capazes de educar com sucesso aqueles pais cujos atos estão de acordo com

suas palavras. 4. Para harmonizar a autoridade do pai com a liberdade do lho. Esta harmonia só se consegue com sucesso à luz de um bom exemplo. É vergonhoso alguém exigir dos outros uma pureza de comportamento que ele mesmo não possui. Ouçamos a voz da Igreja: “Seria razoável”, pergunta Pio , “querer que vossos lhos sejam leais, se vós sois maliciosos; sinceros, se sois falsos; generosos, se sois egoístas; caridosos, se sois avarentos; mansos e pacientes, se vós sois violentos e iracundos?”.480 “Na família, como numa igreja doméstica”, ensina o Concílio Vaticano , “devem os pais, pela palavra e pelo exemplo, ser para os lhos os primeiros arautos da fé”.481 b) Capítulos dessa exemplaridade 1. O amor. Não traindo a mútua entrega que vos deveis, nem aquela que deveis a vossos lhos. 2. A justiça. Evidenciando pro ssional a toda prova:

uma

honradez

e

probidade

a) Pela pontualidade em vosso dever. b) Pela correção em vossos negócios. 3. A paz. Superando vossas possíveis discrepâncias e incompatibilidades de caráter. Que em vosso lar se respire uma atmosfera de paz, alegria e amor. 4. Vossa vida religiosa: a) Que sempre reine em vosso lar um ambiente de fé, esperança e amor a Deus, vosso Criador e Redentor.

b) Não omitindo nenhum ato de culto devido a Deus: assistência à Missa, Con ssão e Comunhão freqüentes, Rosário em família. Que bênçãos de Deus! c) Responsabilidade dos pais 1. “Os pais comeram uvas verdes e os lhos tiveram os dentes estragados” (Jr 31, 29). Os pecados dos pais deixam um profundo estigma na vida de seus lhos; e a marca mais profunda e indelével é aquela que eles mesmos imprimem com o buril de seus maus exemplos. 2. De todos os pecados cometidos por vossos lhos, devidos à vossa negligência ou mau exemplo, Deus vos pedirá estrita conta e vos julgará como se vós mesmos os tivésseis cometido. 3. É feliz a frase de Napoleão: “A educação do lho começa vinte anos antes do matrimônio de seus pais”. 4. Não te sobrecarreguem tantas obrigações. Pede a Deus e à Virgem Maria que te ajudem, e tudo irá bem.

Artigo 11 — A arte de corrigir e castigar 445. Além de vigiar seus lhos na forma como acabamos de expor, os pais têm a gravíssima obrigação de corrigi-los e castigálos quando sua conduta má ou incorreta o zer necessário. Também têm o dever de estimular e premiar seus lhos quando seu comportamento irrepreensível os zer credores disso. Deste

último aspecto, porém, nos ocuparemos no artigo seguinte. Aqui, vamos expor unicamente a arte e o dever de corrigir e castigar. 1. Corrigir a criança desde que ela nasce 446. É absolutamente necessário que a correção comece desde que a criança abra os olhos para a vida. Depois já seria tarde demais: a árvore começaria a crescer torta, e permaneceria torta por toda a sua vida. É do Pe. Lacordaire esta frase genial: “Todo homem traz dentro de si o germe de um santo e de um malvado”. Por conseguinte, todo o trabalho do educador consistirá em favorecer o desenvolvimento do primeiro germe e sufocar o crescimento do segundo. E este trabalho deve ser começado desde que a criança acaba de nascer. Mas deve-se levar muito a sério que é preciso distinguir na criança pequena dois aspectos bem diferentes que, infelizmente, passam quase completamente despercebidos da maioria dos pais. São estes dois: o que ela tem de pequeno animalzinho (quase toda ela) e o que possui de racional (nada ainda, ou quase nada). Não esquecer que o homem acabado é um animal racional. Ao animal é impossível educar: pode-se domesticá-lo, adestrá-lo, acostumá-lo, etc., mas de modo algum educar, já que carece absolutamente de razão. O homem é o único ser capaz de educação: precisamente porque é um ser racional. Ouçamos o Pe. Maillardoz, que expõe magistralmente estas idéias e as conseqüências de ordem transcendental que derivam de tudo isso em ordem à educação dos pequenos.482 Exigem-se duas formações para a primeira infância: o adestramento e a educação.

O adestramento é uma ação imperativa exercida sobre os sentidos animais. A educação é a formação da virtude na criatura dotada de inteligência. O homem é um animal que raciocina. Ao animal se deve adestrar. Ao ser inteligente, educar. Mas a animalidade é a primeira a se desenvolver no homem. Começai, pois, por prepará-lo. Depois passareis à educação. Se a preparação não precede a educação, esta se verá cheia de obstáculos.

i. Como se realiza o adestramento? 447. Ele é trabalhado no recém-nascido como nos animais, por meio dos sentidos. Acionam-se os sentidos externos e, por meio deles, chega-se aos internos. A preparação é, pois, uma manobra exercida sobre a visão, a audição e os outros sentidos externos; e através desses canais, sobre os quatro internos: o sentido central, a imaginação, a memória sensível e o instinto, aos quais se deve acrescentar o apetite sensitivo, isto é, o aspecto sensível ou o sentimento.

ii. A dupla ação do adestramento 448. A estimulação dos sentidos pelo adestrador tem como dupla ação sobre o animal:

nalidade exercer uma

1º — Uma ação de conhecimento. 2º — Uma ação de vontade. O homem dá a conhecer ao animal o seu pensamento. Impõe-lhe sua vontade. Eu assovio para meu cão. Por este procedimento eu lhe informo que minha idéia é a de chamá-lo. Determino sua vontade a vir até mim. Então, os animais estão dotados de inteligência? Certamente que não, mas são dotados de um princípio de conhecimento que se rami ca em diversas faculdades cognitivas: imaginação, instinto, memória. O animal é dotado de vontade? Tampouco. Mas está dotado de um princípio análogo que lhe permite agir por si mesmo e agir livremente. Assim, só impropriamente e por analogia se fala de vontade no animal. Sua liberdade não é tão grande como no homem, mas é real. Volto a meu exemplo: meu cão ouviu-me assoviar. Vejo como ele pára suas orelhas e sua cabeça, volta-se para onde me encontro... Ele compreendeu. Mas hesita, delibera consigo mesmo. Irá me obedecer ou não? Imediatamente, tomou sua resolução: vejo-o fugindo a toda velocidade. Prefere sua independência... Verossimilmente aparentado com o cão de Jean de Nivelle, ele “foge quando o chamam”.

Dar-me-ei por vencido? Não! Voltarei a encontrar o meu el servidor e, por um corretivo energicamente administrado, vou fazê-lo saber que eu sou o dono. O objetivo do adestramento é fazer com que o animal adquira os hábitos aos quais se deseja submetê-lo. Isto se consegue adotando oportunamente ameaças ou pancadas, ou carícias e guloseimas.

iii. O adestramento do recém-nascido 449. Aplicai ao recém-nascido esta teoria sumária: precisais fazer o adestramento humano. No lactente, mostram-se completamente nulas as belas faculdades de inteligência e vontade. Elas dormem um longo sono de dez, quinze, dezoito meses no fundo da alma humana. Ao mesmo tempo, contudo, tudo desperta através de outra região. Os cinco sentidos externos se agitam. Os quatro sentidos internos acompanham o movimento. Aquilo que chamamos de “vontade”, e em seu verdadeiro nome chamaríamos de “apetite sensitivo”, impõe a toda hora, com violência, seus caprichos à criança. Este conjunto de princípios de atividade forma o teclado sobre o qual, durante um ou dois anos, a mãe vai executar sua alma. Se é especialista em música, tocará apenas um tom, sempre o mesmo, mas com um virtuosismo in nitamente variado. Essa tonalidade se de ne em uma única palavra: ordem. a) A ordem. “Bebê” querido, a ordem exige que uma “criancinha” que deitada em seu berço. É inútil gritar. Não vão te levantar. b) A boa ordem exige que só te tenham nos braços quando mamãe resolver assim. É inútil que te encolerizes: não te pegarei, meu querido. c) A ordem regular exige que a boquinha só tome o doce leite materno de três em três horas. É inútil que reclames mais freqüentemente. d) A ordem correta exige que os cuidados pessoais sejam completos. É inútil debater-se. O pequeno será completamente submerso na água. e) A ordem regulamentar é que no ônibus estejas sentado sobre os joelhos da mamãe. Deves abster-te de car sentado na poltrona, e está proibido circular entre os demais passageiros. Amiguinho, é inútil sonhar com todo tipo de fantasias. Ficarás tranqüilamente sentado em meus joelhos.

iv. Da ordem sensível à ordem moral 450. “Tirania! Tirania!” — irão gritar. Existe na educação um patrão mais duro, mais cruel que esse déspota denominado ordem? Por minha vez, exclamo: “Existe um benfeitor mais dedicado?”. Ah! Não compreendestes toda a sabedoria da adestradora da infância. Em poucas palavras, aqui está ela: a educação é a ordem moral a ser implantada na criança. A

ordem sensível é o fundamento da ordem moral. A mãe atenta começa por implantar em seu lho a ordem sensível. Sobre esta base ela edi cará a ordem moral... Está claro? Sua prudência não oferece nada de mais extraordinário que a do arquiteto que, em lugar de assentar o edifício à or da terra, cava-a, lança no fundo de uma vala os alicerces e, a seguir, constrói um edifício na altura que ele deseja. Criar uma criança é a mesma coisa: começar por descer às profundezas das faculdades sensíveis para assentar o edifício das virtudes sobre um fundamento sólido, e elevá-lo tão alto quanto o indivíduo seja capaz.

v. Lado físico e lado moral 451. Na prática das virtudes existe um lado físico e um moral. O adestramento estabelece a parte física. A educação realiza a parte moral. O lactente ainda é suscetível apenas da aquisição da sensível. Tem a vantagem de que, aos dois anos de idade, quando começar sua educação, já encontrará o trabalho meio realizado. Uma vantagem considerável! Ficar docilmente deitado no berço ou tranqüilamente sentado no ônibus não é obediência? Desde o seu nascimento até os dois anos, o bebê só pratica esta virtude na forma material. Por volta dos dois ou três anos, porém, sua inteligência se acha su cientemente despertada para compreender o motivo da obediência. Então, a criança praticará a virtude desse nome. Por motivo de consciência, de dignidade, de amor a Deus, ela obedece. Aplicai esta análise aos outros exemplos acima citados e comprovareis a mesma passagem do físico ao moral, ou do “hábito material” ao “hábito formal” da virtude, graças ao adestramento precursor da educação. a) O lactente espera por seu leite com resignação. É a virtude da paciência; mas uma virtude apenas pela metade. b) Submetese aos banhos que lhe são desagradáveis. É a virtude da fortaleza, mas somente meia virtude, por ser material. c) Deixa que o deitem sem resistência. Este m imposto ao prazer de passear nos braços é a virtude da temperança ao se submeter, mas virtude pela metade. Não é mais que a prática inconsciente da virtude. Enquanto a criança não possa fazer uso de sua razão, ela não vai muito mais longe que o animal. Desde as primeiras luzes de sua inteligência, ao contrário, ela começa a fazer atos de homem ou “ação humana”, segundo o rigor dos termos da moral. Até a idade de dois anos, sua mãe lhe impunha a própria vontade. Agora, que goza de suas faculdades superiores, a mãe associa o lho a seus projetos, leva-o a consentir em seus desejos, anima-o com motivos que ela mesma lhe inspira. Até então, era o pequeno animal que acatava o que o mais forte lhe indicava.

Agora, é a alma de um homem que se inclina para seu dever. Assim se justi ca a nobre expressão “criar o lho”. Do rasteiro hábito sensível, imposto pelo adestramento, a mãe “eleva” seu lho à altura do hábito moral. Ontem, estava nas imediações do animal. Hoje, ei-lo ao lado do anjo.

vi. As alegrias do adestramento 452. As alegrias do adestramento são as mesmas do semeador que, sobre a terra fértil, esparrama com um amplo gesto o grão que, à sua hora, se erguerá na colheita. Uma vez terminada a sua tarefa, seus olhos não percebem nada do trabalho realizado. Mas seu pensamento contempla a selva do trigal maduro que o sol irá dourar. Seu coração está alegre: mantém-se à espera. A mãe tem o mesmo panorama. Seu olhar está posto no futuro. Os duros hábitos aos quais ela deve dobrar inexoravelmente a criança são uma ferida para sua alma. Mas seu coração está cheio de alegria. Que coisas agradáveis ela logo verá! Que deliciosos frutos para saborear! Eis que se levanta a aurora da razão. A criança tem três anos; é o momento de começar com a educação propriamente dita... Ali, no fundo do coração do neó to, felizmente “adestrado”, reina a ordem. A ordem que se chama paciência. A ordem que se chama docilidade. A ordem que se chama temperança. A ordem que se chama fortaleza. Oh! Não que estas virtudes, ainda no estado sensível, ofereçam a solidez do carvalho. Mas, por frágil que ele seja, apenas brotado da terra, o carvalho é o carvalho. Começa a colheita para a mãe. A mãe natureza já foi dominada em proporções notáveis. Foi fácil para o jardineiro desenvolver a planta quando a terra foi purgada das ervas daninhas, bem cavada e adubada. Sobre uma natureza cujos primeiros ímpetos foram vencidos, a educadora amplia suas conquistas quase sem luta. Ela possuía apenas um auxiliar, agora tem dois. Ao lado da má natureza, existe no homem uma outra que é boa. Apoiando-se nela, a moralista encontrava outros recursos além dos sentidos. Hoje é a inteligência, com suas claridades nascentes; o juízo, com seus princípios elementares; é a vontade, apesar de suas fraquezas; é a consciência, por rudimentar que ela seja, que a mãe mobiliza pouco a pouco e alinha para o êxito de sua tarefa. O trabalho será mais compensador no futuro, mais fácil e interessante, mais consolador. A tarefa tão laboriosa da criação física do recém-nascido, precursor das preocupações da educação moral, está muito aliviada pela perspectiva de uma tarefa seguinte que será muito mais leve. O adestramento marca a cada dia uma etapa na carreira da formação e, quase diria, da humanização do tenro ser.

2. Como deve ser a correção

453. A correção deve ter dois aspectos e visar a duas nalidades: afastar os lhos do mal e estimulá-los à prática espontânea do bem. Aqui, nos ocuparemos somente do primeiro aspecto, deixando o segundo para o artigo seguinte. Examinaremos a conduta que os pais devem observar antes da correção, durante ela e depois dela. Procederemos de forma esquemática.483 i. Antes da correção a) Deveis estudar a psicologia de vossos lhos 1. Em geral: a) Suas almas são campos selvagens onde há muito o que corrigir: 1º — Arrancando as ervas daninhas: paixões desordenadas, concupiscências... 2º — Semeando boas sementes: do dever, da educação, da religião... b) Trata-se de seres racionais e, portanto, a correção deve procurar: 1º — Que ajam racionalmente. 2º — Que desenvolvam o sentido de sua responsabilidade. 3º — Que ajam por convicção, e não vendo em vós uns policiais odiosos: seria contraproducente. 2. Em particular: a) Estudar concretamente o modo de ser de cada criança. 1º — Mesmo sendo irmãos, podem ser muito diferentes psicologicamente. 2º — O modo de corrigir um talvez não seja

bom para corrigir o outro. 3º — Corrigir a um menino não é a mesma coisa que a uma menina, nem a um menino e a um adolescente. b) E depois, adaptar-se a eles. 1º — Não pretendais ter um padrão igual para todos. 2º — Se acertais com eles, o êxito é seguro. 3º — Vosso objetivo não é corrigir por corrigir, mas para conseguir algo de positivo. b) Valorizar as faltas devidamente 1. Alguns pais valorizam assim as faltas de seus lhos: a) Se a criança vos põe em ridículo diante de uma visita: Bateis nela fortemente. Armais uma revolução em casa. E com certeza a criança se limitou a dizer ou fazer alguma coisa que aprendeu de vós quando estáveis sozinhos em casa. Por que agis assim? Não pelo zelo de corrigir, mas porque passastes pelo ridículo. No fundo, orgulho e egoísmo. b) Se a criança fez algo que não vos afetou pessoalmente: 1º — Quebrou o brinquedo do companheiro de jogos ou lhe disse algum palavrão. Ireis rir como se fosse engraçado. Talvez digais: “Como este menino é travesso!”. Mas apenas isto. 2º — Faltou ao respeito com uma pessoa mais velha, com o avô. Vós vos limitais a dizer: “Isto não se faz!”. E cais bem tranqüilos. 3º — Faltou aos seus deveres de religião: não foi à Santa Missa. Talvez nem vos preocupeis. Em que vos diferenciais dos pagãos?

2. Este modo de corrigir não é adequado: a) Porque não cumpristes com o ponto mais elementar da correção: 1º — Que ela seja desinteressada. Fora com vossos interesses pessoais! 2º — Que ela se adapte à gravidade da falta. Fora com vossos nervos! 3º — Que esteja em harmonia com a consciência que a criança tem de sua falta. b) Porque a correção não foi educativa para vossos lhos. 1º — Aprenderam a valorizar as faltas ao contrário. 2º — Não sabem valorizar as faltas de modo gradual, segundo seus deveres de religião, família, sociedade, etc. 3º — Vós os zestes egoístas, valorizando as faltas segundo sua utilidade. 4º — E, o que é pior, formastes neles uma mentalidade pagã. ii. Na correção a) Aquilo que deveis corrigir Em geral, tudo que é defeituoso. Ao modo de exemplo, citaremos alguns casos: 1. A desobediência. A criança não gosta de submeter-se: quer agir segundo seu capricho. Não se trata de anular essas forças naturais: ensinai-a a usar retamente a liberdade, submetendo-se docilmente a vossas ordens. 2. A preguiça. Vosso lho não quer ir ao colégio. Se lhe mandais alguma coisa, responde: “Farei isso depois!”. E não o faz; é preguiçoso.

Ensinai-o a amar o trabalho: a ociosidade é mãe de todos os vícios. 3. O orgulho. Se vosso lho é pedante, se ele se basta a si mesmo... Ensinai-o a ser humilde! O orgulhoso se torna insociável, mentiroso, invejoso, vingativo, indócil... 4. A vaidade e o luxo. Olhai para vossa lha: o dia inteiro está pendurada no espelho. Mãe! Ensina-a com teu exemplo a ser modesta, a vestir-se decentemente, a evitar a frivolidade. 5. A sensualidade. Não duvideis de que vossos lhos irão defrontar-se com este problema. Um amiguinho os informará. A fonte não é muito limpa, e vossos lhos terão di culdades com isso. Vós deveis ir em seu auxílio. Mostrai-lhes como Deus santi cou, por vosso matrimônio, as fontes de sua vida... Canalizai essas tendências pelo caminho reto da pureza e da castidade.484 b) Como deveis corrigir 1. Antes de tudo, com vosso exemplo. Vossos lhos prestam atenção em tudo. Cuidai do vosso comportamento. Tal pai, tal lho. Se eles vos ouvem mentir, dizer palavras impróprias, etc., eles farão o mesmo, porque seus pais o fazem. Agrada-lhes imitar os

mais velhos... sobretudo no que é mau. 2. Calma!... Calma!... Não tomeis decisões com os nervos à or da pele. Esperai um pouco. Que vossos lhos estejam calmos. Irão ouvi-los melhor: atenderão às razões. 3. Corrigi o quanto antes, e com rmeza. Não estendais a correção, nem ameaceis muitas vezes: “Se voltares a fazer...!”. Irão se acostumar às palavras e continuarão a fazer a mesma coisa. 4. Corrigi com discrição e bom senso. Não lhes deis a impressão de que abusais demasiado da correção e do castigo. Corrigi com moderação. Não corrijais deixando a criança em situação ridícula. Não deis escândalo para a vizinhança. 5. Corrigi o cristão. Com bondade e amor se consegue mais do que com ira e pancadas. Apresentai-lhes como orientação os dogmas da vida cristã. iii. Depois da correção a) Que vossos lhos vejam que são amados por vós 1. Percebendo que não corrigis por prazer nem por capricho. a) Mas o fazeis para ensiná-los a serem homens. Para o bem deles.

b) Que vós sofreis mais que eles quando tendes de recorrer ao castigo. 2. Recebendo depois uma demonstração de carinho de seus pais. a) Não tomeis uma atitude demasiado séria, esperando que venham a vos pedir perdão. b) Uma demonstração de amor: o abraço, o beijo e a brincadeira os levarão a reconhecer melhor a sua falta. b) Rogai a Deus que faça vosso trabalho dar frutos 1. Muitas vezes, agimos como pagãos. Con amos tudo às nossas próprias forças. 2. Uma oração fervorosa... lágrimas... são mais poderosas que vossas forças para que esse lho se transforme em um homem de bem e até em um cristão exemplar.

Artigo 12 — A arte de estimular e premiar 454. Seria um grande erro pensar que o único aspecto educativo da sanção — ou o mais importante — consista exclusivamente em castigar os lhos quando cometem alguma falta ou deixam de cumprir algum de seus deveres. Mais importante que a correção e o castigo — que, a nal de contas, são quase sempre um sinal negativo — é o estímulo positivo para a prática do bem e a recompensa oportuna por o terem realizado.

Examinaremos brevemente cada um destes dois aspectos tão positivos. 1. A arte de estimular 455. Um grande educador de nosso tempo escreveu sobre este tema uma série de conselhos sensatos que reunimos a seguir:485 1. As crianças têm mais necessidade de estímulos que de castigo (Fénelon). 2. Acreditar que existem na realidade as boas disposições é o mesmo que criá-las e aumentá-las. 3. A idéia sobre o juízo ou a opinião que se tem dela desempenha na criança um papel importante na elaboração dessa tela psicológica na qual, a cada dia, seus atos e pensamentos bordam um pouco de sua vida. 4. Quem se convence de que é incapaz de alguma coisa, logo se torna de fato incapaz. 5. Não é mau que a criança tenha con ança em si mesma. De fato, vale mais que a tenha em excesso do que em falta. O “eu sou mais” é um estimulante melhor do que o “eu não sirvo para nada”, ou o “eu nunca conseguirei nada”. 6. A criança é essencialmente sugestionável. Se lhe dizem constantemente que é má, egoísta, trapaceira, etc., afundam-na e a fazem decair de tal maneira que não poderá sair de lá. 7. Muito mais sadia é a sugestão oposta, que consiste em repetir com obstinação a uma criança com este ou aquele defeito, que de fato ela possui algumas manifestações do mesmo, mas que está a caminho de curar-se.

8. Nada desanima tanto como a indiferença. “A nal de contas, não zeste mais que o teu dever”. “Se não te digo nada, é porque está bem”. A criança precisa de algo mais. Fica tão feliz quando vê que as pessoas que ela estima e ama olham para ela e a aprovam! 9. A con ança facilita a ação; a descon ança suscita o desejo de fazer o mal. 10. Não se deve ter medo de demonstrar às crianças a nossa con ança em suas possibilidades. Às vezes, será este o melhor meio para que se manifestem algumas qualidades ainda adormecidas. Lembremos a observação de Goethe, aplicável às crianças e aos adultos: “Se consideramos os homens como eles são, nós os faremos ser piores; se os tratamos como se fossem o que deveriam ser, vamos levá-los para onde devem ser conduzidos”. 11. Tanto no elogio quanto na repreensão, no prêmio como no castigo, é necessário ter medida, lógica e justiça. Medida, porque o excesso acaba por desconcertar e até fazer duvidar do juízo de quem exerce a autoridade. Lógica, porque não tem sentido elogiar hoje uma ação que ontem mereceu uma crítica. Justiça, porque um prêmio não merecido perde seu interesse e sua força. 12. Deve-se estimular a criança mais pelo esforço que empregou do que pelo resultado obtido. É necessário conseguir que a aprovação de seus pais tenha mais importância para ela do que uma guloseima. 13. Há casos em que é permitido utilizar o amor-próprio: “Tenta fazer esse esforço; é difícil, mas acredito que possas consegui-lo”. 14. Devemos evitar fazer elogios que levem a criança a se julgar melhor do que os outros. O melhor é mostrar-lhe os progressos que conseguiu sobre si mesma, fazendo-a ver que pode ainda mais.

15. Um dos meios de estimular a criança é trabalhar com ela na realização desse ou daquele projeto, sobretudo se o sucesso desse projeto necessita que se guarde um segredo, como a preparação da festa da mãe. 16. A criança toma gosto pelo esforço quando consegue nossa aprovação. Há impulsos que são antes tímidos desejos, impulsos que não iriam além desse estado se não fossem auxiliados pelas pessoas ao redor. Um aplauso oportuno dá valor e con ança àqueles que duvidam. Uma das coisas que mais animam uma criança é dizer-lhe, quando ela manifestou algo de bom: “Sim, tens razão”; e lembrá-la se houver a oportunidade: “Como tu acabas de dizer” ou “como dizias antes”. 17. Reconhecer os progressos de uma criança é animá-la a fazer outros novos progressos. 18. Se a criança sofre um fracasso, não deve ser tratada com rigor, já que fez de sua parte um louvável esforço. 19. Deve-se evitar o elogio incondicional à criança. Às vezes, é necessário rebaixá-la um pouco. Demos a ela a prova de nossa estima: “Eu sempre acreditei que tu eras capaz disto e de muito mais!”. Animemos a criança, mas não a tratemos como se fosse uma perfeição con rmada em graça. A criança a quem se diz, sem tino e sem medida, tudo de bom que se pensa sobre ela, corre o perigo de inchar e se tornar um pavão real, convencido e orgulhoso. 20. Pode-se traduzir o estímulo a uma criança em uma recompensa material: guloseima, brinquedo, dinheiro. Mas não abusemos disso: existe aí uma solução fácil. Um dos perigos deste método é o de mercantilizar e materializar os esforços de ordem moral, que devem encontrar sua sanção fundamentalmente na aprovação das pessoas que nos rodeiam e na satisfação da própria consciência. Além disso, há outro perigo: à medida que a criança

cresce, serão necessárias recompensas cada vez maiores. Não temos visto pais que haviam prometido imprudentemente uma bicicleta ou um casaco de peles, com o risco de comprometer o orçamento familiar? 21. Acontece, às vezes, que os resultados não estão à altura da boa vontade e dos sinceros esforços da criança. Evitemos pressioná-la para que não que sob a impressão deprimente do fracasso, e tentemos destacar a boa qualidade desenvolvida. 22. Aninha, de quatro anos, e Bernardo, de cinco anos e meio, voltavam do passeio. Os chinelos da irmãzinha caram no primeiro andar da casa. Bernardo se oferece gentilmente para ir buscá-los. Corre pela escadaria e desce triunfalmente, trazendo um par de chinelos que não eram os de Aninha. Em lugar de ralhar com Bernardo e dizer-lhe: “Como és burro! Podias prestar atenção, sempre fazes a mesma coisa!”, é preferível dizer-lhe: “Você foi muito amável querendo trazer os chinelos de tua irmãzinha. O par que você trouxe é muito parecido, é muito fácil confundi-los. Você vai ser muito bom...”. O menino compreenderá, e em seguida voltará a subir com alegria, com o que dobrará o valor de seu gesto fraternal. 2. A arte de premiar 456. Não basta o estímulo para o bem. É preciso completá-lo — sobretudo tratando-se de crianças — com o prêmio ou a recompensa pela boa obra realizada. Mas é preciso saber administrar este prêmio ou recompensa merecida. Entre muitos outros, seria um grande erro altamente deseducativo apresentá-lo como o m ou o motivo para realizar uma boa obra. O dever deve ser cumprido porque é um dever: a recompensa é algo secundário que virá, ou não, premiar nossa boa obra, mas que não se procura como o seu m.

Ouçamos o Pe. Maillardoz, que expõe admiravelmente a teoria da recompensa em seus principais aspectos:486 1. A recompensa 457. A recompensa é a sanção mais humana, a mais digna do homem, e está mais de acordo com a natureza do ser inteligente do que a pena a itiva. A criatura, formada à imagem de Deus, tem como m o prazer, de modo algum o sofrimento. Ela encontrará sua perfeição, seu acabamento, seu m na satisfação de todas as suas aspirações de prazer, na permanência da eterna felicidade, onde a espera um Deus de in nita bondade. O sofrimento é o oposto do m do homem, o contrário de suas aspirações. Ele fere as inclinações de nossas faculdades e a de nossos sentidos, príncipes de ale- gria. Ele é a nota falsa do concerto. É o ranger da engrenagem. Ele é para a alma aquilo que a doença é para o corpo. É a des guração da imagem de Deus, “gozo in nito”, “inacessibilidade” a tudo que seja dor ou tristeza, “exclusão” de tudo que seja limite na alegria, no bem-estar e na abundância. Descei aos infernos: estareis em presença do sofrimento, do sofrimento universal, irremediável. Eterna des guração da semelhança divina... Sem dúvida, aqui embaixo, entre nós, o sofrimento encarado em suas causas e efeitos, à luz da fé cristã, reveste-se de um caráter moral que o torna venerável, santo, justo, precioso, remunerativo, divinizado pelo Redentor. Mas acabamos de examiná-lo do ponto de vista físico. Despojado das circunstâncias que o transformam, o sofrimento é só fealdade. É contrário à in nita Beleza, inseparável de sua irmã, a in nita Bondade, plenitude do bem. O céu está implacavelmente fechado a ele por toda a eternidade. Iam non erit amplius: “Não se fale mais dele!” (Ap 21, 4). Por que esta alegação, a qual nosso dircurso não pode deixar de lado? Para justi car a superioridade desta segunda sanção sobre a primeira. Dai preferência à recompensa, antes que ao castigo. Derramai alegria nas almas, ao invés de secar os corações. Imitai a Deus no transbordamento de sua felicidade sobre os eleitos. Que o lar cristão aclimate o “predestinado” à permanência de alegrias sem misturas.

2. As condições da recompensa 458. A di culdade na presente matéria reside no perigo de transformar a recompensa em comércio: pedra de escândalo que já foi descartada por uma de nossas regras anteriores.

Como remunerar o esforço sem o pagar? Como grati car a virtude sem a assalariar? Basta uma palavra para responder: liberdade. Reservai a liberdade de recompensar a criança: 1º — Se o desejais. 2º — Quando o quiserdes. 3º — Como quiserdes. a) Não vos comprometais a recompensar a criança por todo sacrifício. b) Se já o prometestes, nesse caso fazei-o no momento que vos seja conveniente. c) Finalmente, que o prêmio da recompensa que inteiramente à vossa escolha. Basta que a criança perceba que, como bom pai, dais a ela satisfação por satisfação: ela se mostrou uma boa lha; então, quereis ser um bom pai. Ela faz a vossa vontade; vós fazeis a dela. Ela obedeceu com prontidão e cordialidade; vós não sereis inferiores à sua generosidade. Em tais condições, a liberalidade não tem nada em comum com o odioso mercantilismo que já desprezamos. É a generosidade do grande senhor que, a seu tempo e com gestos à sua escolha, derrama com largueza a alegria à sua volta. Seus presentes são dons, e não o pagamento de contas. Ora, o dom é por natureza uma liberalidade. Liberalidade é um termo derivado de liberdade. Então, a liberalidade exclui a servidão, essa escravidão comercial que se chama preço, equação entre o valor da mercadoria e o numerário. É necessário que a lembrança das liberalidades paternas derramadas na primeira infância lance raízes tão profundas no coração da criança que o agradecimento esteja em or em todas as estações da vida humana.

3. As alegrias do coração 459. As efusões da ternura materna e paterna — eis a melhor forma de recompensa. Foi esta que Deus escolheu. O soberano Senhor poderia dizer-nos: “Se me fordes éis, eu vos pagarei”. Ele preferiu dizer-vos: “Observai meus mandamentos, e eu vos amarei”. Pais cristãos, eis aqui o modelo. Vós sois representantes de Deus: aproximai-vos, pois, o mais possível desse tipo de perfeição. Re eti os atrativos e compartilhareis das conquistas. O sorriso de um pai, o beijo de uma mãe: eis a recompensa que deve ser preferida acima de todas as outras. “Onde existe amor, não há penas; e se elas existirem, serão amadas”. Santo Agostinho dizia justamente assim: “Quando Deus me ordena, vejo perfeitamente sob seus pés um inferno, e sobre sua cabeça um paraíso; mas entre os dois extremos, dois braços estendidos para mim, um coração que me solicita, um lugar que é meu”.

A vida é um sonho; a morte, o despertar. Hoje fechados, meus olhos serão abertos. Notarei que já na terra eu repousava no peito de um pai... Pai, não sabereis ser pai se, no minuto passado sobre vosso coração, não virdes em vosso lho o m de seus sofrimentos.

3. Três categorias de pais Em matéria de castigos, assim como em tudo, o justo meio é a regra. Por este ponto de vista, os pais se dividem em três grupos: benignos, ferozes e rmes. ) 460. Alguns pais dão ordens e não se preocupam em ser obedecidos. Eles deram a ordem, o lho não as executa... O pai não liga. Será frouxidão, timidez, indiferença, preguiça? Será falta de consciência, debilidade do amor? Não é tudo isso junto? Fica-se tristemente impressionado ao ver como os pais dão ordens que não são obedecidas. O lho manifesta, experimenta um desprezo semelhante pela pessoa e por sua palavra. Não há educação. Certo tipo de mães de família entra nesta primeira classe. É aquela das pessoas boas que, por sua insistência em repetir suas ordens, demonstram, ao mesmo tempo que seu zelo, sua ine cácia. Elas falam, mas não agem. É o caso do prefeito que cobre os muros da cidade com decisões municipais, mas, sem a participação da polícia, suas prescrições acabam transformadas em letra morta. Temos também o caso do presidente do tribunal que condena à prisão. Porém, uma vez ouvida a sua sentença, o condenado procura em vão com o olhar pelos guardas, pelos policiais que o conduzirão à prisão; não vendo ninguém, decide-se a voltar tranqüilamente para sua casa.

) 461. A família é o teatro dos contrastes. Ali, pais sem energia... aqui, pais sem misericórdia. Nas mãos dos primeiros, a arma só atinge o vazio. Sob o gatilho dos segundos, o tiro chega ao alvo sem aviso: a bala é sempre mortal. É uma metralhada de castigos, de penitências, de privações da sobremesa... Passeios, cinema, festas, o culpado não deve esperar por nada disso. Pode considerar-se feliz se sua epiderme escapa intacta!

Uma educação tão inútil como a precedente produz executantes. Não forma adeptos nem convencidos. Seu resultado é puramente exterior: o corpo se dobra, a alma conserva toda a sua rigidez. Hoje tendes uma criança virtuosa; amanhã tereis um jovem vicioso. A virtude era somente uma manifestação exterior.

) 462. In medio stat virtus: “A virtude”, segundo o axioma, “encontra-se entre os dois extremos”. Não ajudar não está bem. Ajudar em excesso também está mal. Não recompensar é dureza. Recompensar sempre é frouxidão. Ter sempre um rosto severo é odioso. Acariciar constantemente é amolecer a criança. A virtude real sabe evitar o excesso e, ao mesmo tempo, se adaptar ao que é devido à natureza.

Artigo 13 — O exemplo dos pais 463. Embora já tenhamos aludido várias vezes a este aspecto da educação dos lhos, ele é de tão capital e decisiva importância que vamos dedicar-lhe um artigo especial, sem, no entanto, pretender ser exaustivo. Vamos expor unicamente algumas de suas facetas mais importantes para chamar a atenção dos pais sobre a gravíssima importância de seu próprio exemplo na educação de seus lhos. São muito conhecidas as frases de personagens célebres, e até mesmo alguns ditados caseiros que reúnem o senso popular dos homens sobre a e cácia do exemplo dos pais, seja ele bom ou mau:

“As palavras movem, mas só os exemplos arrastam” (Santo Agostinho). “Entre todos os animais, o homem é o que mais imita aquilo que ouve e vê” (Aristóteles). “Valorizo mais uma pitada de exemplos que cem libras de palavras” (São Francisco de Sales). “Quando a cabra salta para o telhado, o cabrito salta com ela” (ditado popular). “A educação do lho começa vinte anos antes do matrimônio de seus pais” (Napoleão).

Não chegaríamos ao m se quiséssemos continuar citando frases e ditados. Examinaremos dois pontos fundamentais: a e cácia do bom exemplo e a força destruidora do mau exemplo. 1. E cácia do bom exemplo Acima de tudo, é preciso levar em conta a irresistível tendência das crianças a imitar tudo o que vêem e ouvem. Examinaremos detidamente este ponto. i. O mimetismo das crianças 464. Escrevendo principalmente para as mães de família, mas com argumentos aplicáveis com ainda maior força aos pais, escreve o famoso Pe. Schlitter:487 As crianças se inclinam naturalmente a imitar; desde a mais tenra idade se manifesta essa tendência. Se o pequenino vê que seu pai e sua mãe se colocam de joelhos todas as manhãs e todas as noites, ele fará o mesmo. Sem que seja necessário dizer-lhe nada, irá ajoelhar-se ao lado deles, juntará suas mãozinhas como eles e se esforçará por balbuciar as mesmas orações. Se, ao contrário, nunca vê seus pais rezarem, também ele nunca rezará. Não imagineis que não prestam atenção em nada. Sem que pareça, eles percebem perfeitamente tudo que acontece ao seu redor, e escutam as palavras que são proferidas. A alma nova que acaba de fazer sua entrada no mundo não possui noção alguma sobre as coisas. Tudo quanto vê a impressiona, procura compreender e se apressa a iniciar-se na vida. Com freqüência, por uma espécie de instinto, a m de que não nos ocultemos dela, e para informar-se melhor, afeta não prestar atenção. “A criança”, escreve De Bonald, “aproveita para se instruir do que se diz e faz diante dela quase na mesma medida daquilo que se diz e faz para ela. É necessário, pois, um grande respeito pelos olhos e ouvidos das crianças”.

Estas linhas de um lósofo cristão recordam os versos bem conhecidos do satírico pagão: “Nunca se terá atenção em excesso com a criança. Meditas alguma ação de que possas envergonhar-te? Pensa em teu lhinho; que sua imagem inocente te contenha no caminho do mal”. Os pais nunca se esqueçam de que têm perto de si tantas testemunhas como lhos; testemunhas sempre vigilantes, ansiosas por saberem tudo e dispostas a imitá-los. “As crianças”, segundo observa Mme. Campan, “são espelhos que re etem as ações”. Também diz Mons. Gibier: “Se o pai não é cristão, a criança aos sete anos deixa de vêlo, aos dez se admira, aos quinze se escandaliza e, ao primeiro grito das paixões, usa-o como arma. A apostasia das crianças amiúde não passa de uma conseqüência da indiferença paterna”. É terrível a responsabilidade dos pais. Conforme eles se comportem, assim seus lhos serão bons ou maus. A in uência do ambiente é enorme; dá resultados admiráveis ou ruinosos. Com freqüência um detestável criminoso se teria transformado em cidadão honrado, em excelente cristão, se tivesse tido pais melhores. Dai uma olhada ao vosso redor. Não é verdade que, em geral, as crianças piedosas pertencem a famílias religiosas, e os pivetes a famílias indiferentes ou ímpias? Existem lares nos quais a honradez, a virtude, a probidade são como que hereditárias; há outros onde o vício o é. Conhecemos o provérbio: de tal pau, tal lasca; tal pai, tal lho. Santo Agostinho chega até a quali car de milagre quando se torna bom o lho de um pai esquecido de suas obrigações.

ii. Não faleis muito: falai com o vosso exemplo 465. O melhor exemplo que podeis dar a vossos lhos não consiste em palavras, mas em atos. Com seu estilo cheio de simpatia e humor, escreve a este propósito Jesús Urteaga:488 Os pais que se sentem pedagogos costumam falar em excesso. Ficam sobrando uns setenta e cinco por cento dos “conselhos” que dais. Em alguns casos especiais, a percentagem alcança a considerável cifra de noventa e nove por cento. Ao saber daquilo que eu vos estava escrevendo, um rapaz entrou em meu escritório para dizer-me: — Por que não lhes diz que estamos fartos de suas “felizes experiências”? Sem dúvida, este garoto tinha um pai “pedagogo” que falava demais. Não percebeis que falais em excesso? Como se a educação tivesse de entrar na alma por meio de palavras... A semente, que dará fruto a seu tempo, não faz ruído algum ao cair na terra! Entre muitas outras, estas são as coisas que não deveis dizer, mesmo que as viesses repetindo centenas de vezes ao dia; exatamente por isso!

Frase que deves calar, mãe: “Ai! Este garoto tem o mesmo caráter endiabrado de seu pai”. Frase que deves calar, pai: “Ai! Esta menina tem o mesmo caráter endiabrado de sua mãe!”. Frases que deveis omitir, pais: “Agasalha-te”, “Tira o agasalho”, “Come devagar”, “Come depressa”, “Já te falei noventa e nove vezes”, “Quando fores maior, diga a esta senhora quantos anos tendes”, “Diga a esta senhora como imitas o cachorrinho”. “Trago-lhe este meu lho”, dizia-me certa mãe diante de seu marido, “para que ele seja algo mais que seu pai”. Tudo isso cansa qualquer um. É histórico; a mamãe admoesta continuamente o lho: “Não arrastes a cadeira, que vais incomodar o avozinho”; “Vai brincar em teu quarto, ou incomodarás teu avozinho”; “Deixa isso, que incomodarás teu avozinho”. E este, que estava presente, ouviu o garoto selvagem resmungar: “Que morra o avozinho!”. “Lá em casa, pela manhã, me chamam cinco vezes”, me dizia um garoto. “A última, com o tempo su ciente para chegar ao colégio; as quatro primeiras soam para mim como uma trombeta celestial”. Não faleis tanto; estás pregando o tempo todo, e te tornas tremendamente aborrecido. Cristo é o melhor educador que tivemos entre os homens, e ele passou noventa por cento de sua vida em uma pequena carpintaria de Nazaré, sem nos dizer nada com palavras. No extremo oposto, igualmente pernicioso, nos encontramos com pais despreocupados de orientar a vida nova de seus lhos. A estes, é preciso dizer que as crianças têm de aprender tudo. Talvez a única coisa que se chega sabendo neste mundo seja amar. E menos mal que a sábia natureza tenha dotado as crianças deste saber antes de nascerem, porque se tivessem de esperar que lhes ensinassem, algumas morreriam de fome. Mas não é este o teu perigo. Tu és demasiado conversador. Excessivamente con ado em teus sermões. Verdadeiramente tens muitas coisas a dizer para teus lhos, mas — acredita em mim — antes de falar, mostra-lhes tua vida. Falas e falas e falas, e não paras de falar. Conselhos, indicações, advertências, proibições e muitas histórias com moral, como se as crianças só aprendessem pelos ouvidos. Leva em conta, pai pedagogo, que as crianças aprendem pelos ouvidos, pela boca, pelo nariz. Pelos pés, pelas mãos e pelos olhos — especialmente pelos olhos. Nós, como lhos, começamos a aprender desde que nascemos, e o zemos com a mesma naturalidade com que respiramos. Aprendemos por imitação, por sugestões que nos tendes feito — inconscientemente —, por vosso exemplo, por contágio. Desde que deixamos de engatinhar até que fomos para a escola, temos apren- dido mais que em qualquer outra época da vida nesse mesmo período de tempo.

Depois, continuamos aprendendo ao contemplar de perto a vossa vida. Mais cedo ou mais tarde, todos nós percebemos o gênero de vida que leváveis, e nos zestes muito bem ou... muito mal. A mim, zestes muito bem. Que Deus lhes pague! Durante muitos anos eu acreditei que minha mãe gostava loucamente das cabeças de merluza. Como sou bobo! Demorei muito a perceber — boa mãe! — que gostavas mais de teus lhos que das cabeças de peixe. Assim, sobrava mais para nós. Mas existem outros — e muitos! — que logo perceberam a vida que leváveis, e lhes zestes muito mal, um grande mal que subiu à cabeça deles, a seu coração, a seus pobres ideais. Aquilo que uma criança vê e sente entra em cheio em sua consciência, cria sua personalidade e a acompanha por toda a sua vida. Tenho de reconhecer que muito me impressionou o teu relato, professora — conheceis uma vocação mais cheia de dor que a dos professores na Espanha? —, tu me impressionaste quando me contavas a desculpa daquele garotinho de seis anos, ao chegar à escola pela manhã: “Hoje, não me perguntes a lição, senhorita, porque de noite chegou meu pai bêbado e não me deixou estudar, nem dormir”. Pais! Se não quereis contagiar vossos lhos com o bom exemplo, não choreis por Cristo quando ele subir com sangue e alegria a encosta do Calvário. Antes, choreis por vós e por vossos lhos, a quem arrastareis a um inferno de misérias. Pais que lutais por viver de acordo com aquilo que o Senhor nos pede, e com vossa vida ensinais os lhos a praticá-lo, sereis considerados grandes no reino dos céus. Jesus, antes de ordenar a seus discípulos aquilo que deveriam fazer no mundo, declarou o que deviam ser. É que — entenda bem — “todo profeta que ensina a verdade, se não pratica o que ensina, é um falso profeta” (Doutrina dos doze apóstolos). “Nossa religião não se baseia no cuidado de discursos, mas na demonstração e nos ensinamentos das obras” (Atenágoras). Espero muitíssimo mais de pais mudos e santos que de pregadores de sermões que não fazem o que dizem. Se quereis ensinar os lhos o modo cristão de viver, comportai-vos como os pais de família do século , que conservavam vivo o espírito de Cristo: “E as boas obras que fazem, não as apregoam nos ouvidos da multidão, e procuram que ninguém as perceba. E escondem seu dom como quem acha um tesouro e o esconde; e se esforçam por serem justos, como quem espera ver seu Cristo, e dele recebem as promessas com grande glória” (Aristides). O mesmo texto nos dirá logo a seguir: “Verdadeiramente bem-aventurada é a raça dos cristãos, mais que todos os homens que estão sobre a superfície da terra”. Tens de dar exemplo, mas — por favor! — não te ponhas como exemplo, pois te tornas impertinente.

Não sejas farsante. Que tua motivação não seja dar exemplo. Não procures ser mau, mas tampouco njas ser bom: seja-o. Não brinques de ir à igreja “mais que o vizinho de banco”. Não faças diante dos lhos aquilo que não costumas fazer quando sozinho. Não pretendas dar esse bom exemplo ao fariseu. Não vivas ascetismos de engolidor de facas de circo para chamar a atenção, com a secreta esperança de que te imitem engolindo facas que não têm truques. Pais, o que nos interessa é a vossa vida! Aos teus lhos, é a tua que interessa. Os lhos se contagiam com vossos temores, preconceitos sociais, escrúpulos, cobiças, apegos, caprichos, manias, rancores, superstições; contagiam-se com vossas grandes e pequenas mentiras. Todo esse conjunto de sentimentos amáveis ou desprezíveis, nobres ou baixos, passam por contágio a ser os sentimentos da família. Conhecendo aos lhos, sabe-se perfeitamente como são seus pais.

2. A força destruidora do mau exemplo 466. É incrível a força destruidora do mau exemplo sobre as crianças. Dar um mau exemplo é o mesmo que escandalizá-las. E Jesus Cristo — modelo sublime de doçura e mansidão — pronunciou palavras terríveis contra aqueles que escandalizam as crianças: “Aqueles que escandalizarem um destes pequeninos que crêem em mim, melhor seria para eles que lhes prendessem ao pescoço uma pedra de moinho e os lançassem ao fundo do mar” (Mt 18, 6). Ouçamos o Pe. Maillardoz falando admiravelmente sobre o mau exemplo:489 i. O mau exemplo 467. Deplorável e cácia a do mau exemplo! Com ele, a ação contradiz a palavra. É o trabalho ao contrário. A educação é a formação dos bons costumes. O mau exemplo é a formação dos maus costumes. É como o trabalho do pedreiro que, à tarde, derrubasse a parede que ergueu durante o dia. Seria semelhante à inconsistência do artista que queima, no dia seguinte, a tela que pintou na véspera. Seria a inútil tarefa de Penélope que, antes de dormir, desmanchava a tapeçaria que tecera desde o amanhecer. É a conjuração do olho contra o ouvido. Este ouviu bem; aquele vê o mau exemplo que se lhe opõe. Pregais a virtude, mas praticais o vício. A que conclusão irá chegar a criança?

ii. Um pai inconseqüente 468. “Meu lho”, declara um pai de família, “o trabalho é a lei da vida. O homem está aqui embaixo para trabalhar e sofrer o dia inteiro: comerás o pão com o suor de teu rosto. O preceito é divino!”. Mas o lho querido tem os olhos tão abertos quanto os ouvidos. Que vê ele?... Seu pai ca na cama diariamente até o meio-dia. Levanta-se para comer. Após o almoço se esparrama no sofá e lê o jornal. Cansado dessa inação, sai ao entardecer e passeia pelo parque. Regressa na hora de jantar e sai novamente. Comparece ao cassino, entra na roda dos amigos e, às onze, volta a encontrar o seu leito. Todos os dias a mesma coisa.

iii. A mãe em contradição consigo mesma 469. “Minha lha”, repete essa mãe de família, “uma pessoa bem-educada se controla diante de todo acontecimento. Por mais contrariedades que sobrevenham, uma jovem deve manter-se serena, tranqüila e sorridente”. Esta é a lição de todos os dias. Infelizmente, também todos os dias, esta boa senhora, desde a aurora até o crepúsculo, pratica a mais intolerante impaciência. Tudo a irrita, tudo a tira dos eixos, tudo desata nela o seu mau humor. Na casa, só se ouvem suas palavras de descontrole contra tudo e contra todos. E nisto consiste sua maneira prática de ensinar a virtude da paciência...

iv. Análise do mau exemplo 470. Analisemos o pensamento da criança, testemunha de semelhante contradição: O papai não acredita. O papai não pode. O papai não quer. 1º — O papai não acredita naquilo que diz. Segundo sua convicção, o trabalho não constitui um dever; do contrário, ele o praticaria. Então, eu tampouco acredito nisso. 2º — O papai não pode. Papai acredita que se trata de uma obrigação, mas a carga é tão pesada, que ele se considera sem forças para carregá-la. Frágil criança, poderás tu enfrentar algo que ultrapassa as forças de um homem? 3º — Ou, por m, papai não quer. Papai acredita na obrigação do trabalho e dispõe da força necessária, mas não quer, porque a ociosidade lhe permite mais satisfações que o esforço...

De boa vontade eu me alisto neste partido, por ser ele o mais cômodo. E já que a consciência de papai não se perturba com nada disso, que remorsos pode experimentar a minha? A isto se chama escândalo: palavra que, na língua grega, signi ca, em sentido literal, o pedregulho que faz o transeunte tropeçar e cair. O mau exemplo do pai e da mãe faz a criança cair em pecado. As faltas degeneram em hábitos e, de mau exemplo em mau exemplo, chega-se ao contrário da educação; a criança está formada no vício. O pequeno não foi educado, sua dignidade humana foi rebaixada e reduzida. A criança, é claro, não raciocina metodicamente como acabamos de expor. Ela extrai deduções confusas que se depreendem dos fatos observados. Mas nem por isso o resultado é menos nefasto. Esta é a educação às avessas.

v. A gravidade do escândalo na infância 471. Não estranhemos a indignação de Nosso Senhor Jesus Cristo contra o escândalo da infância: “Aquele que escandalizar um desses pequeninos que crêem em mim, melhor seria para ele que lhe prendessem ao pescoço uma pedra de moinho e o lançassem ao fundo do mar” (Mt 18, 6). Por que este tipo de pecado é tão doloroso ao coração do Salvador? Por que é mais grave o escândalo dos “pequenos” que a desedi cação do adulto? Porque a infância não dispõe dos meios de que a idade madura pode dispor. O Catecismo dá aos éis um tríplice conselho contra o escândalo: 1º — Desviai vosso espírito. 2º — Desviai vosso coração. 3º — Desviai vossos passos. E, de fato, porventura não evitamos nossa queda afastando-nos do objeto que iria provocá-la? a) Desviamos nosso espírito aplicando o pensamento à virtude oposta ao vício que ofende nossos olhos. Mas a criança de três anos, de quatro, de cinco, que sabe ela da virtude oposta à falta que presencia? b) Desviamos nosso coração da atração do mal afastando-nos da sedução exercida pelo prazer malsão sobre nossa natureza corrompida. Mas acaso o coração do “pequeno” não está aberto candidamente e sem defesa face a toda in uência, tanto a do mal quanto a do bem? c) Desviamos nossos passos da cena do escândalo, transferindo-nos para outro lugar. Porém, para onde fugir quando se tem cinco anos?

vi. A perfeição absoluta é a regra comum para os pais? 472. Se esta é a lei do matrimônio, se tal é a conduta que é preciso adotar na educação da criança — direis para mim —, só existe um caminho a seguir: rogar aos anjos que baixem do céu e tapem seus olhos...

Porventura Deus solicita o impossível à criatura humana? Sua sabedoria in nita ignora a fraqueza humana? A educação exige uma santidade que não é deste mundo? Quem pode supor isto? Dividamos metodicamente a solução destas perguntas. Existem duas espécies de mau exemplo: 1º — O mau exemplo inevitável. 2º — O mau exemplo evitável. ) . Da parte de nossos pais, enxertados que estão no primeiro homem, sempre haverá mau exemplo, por pequeno que seja, para a alma da criança, como sempre haverá transmissão de debilidades para seu corpo. Neste caso, porém, o mau exemplo tem um nome que, sem o desculpar, reduz em muito o erro dos pais e das mães. Em teologia, as faltas de que eles se tornam culpados nesses casos se chamam “faltas por fraqueza”. Tentar evitar todas as faltas por fraqueza seria utópico. O próprio Espírito Santo não o declarou? “O justo cairá sete vezes ao dia; mas sete vezes voltará a se levantar” (Pr 24, 16). As faltas desta natureza devem ser chamadas de escândalos? De modo algum. Constituem obstáculo para a educação? Absolutamente. Abrem uma brecha na autoridade paterna? Minimamente. Tempestade passageira. Querida mamãe, hoje a criança vos verá sombria, mal-humorada, impaciente. Que vamos fazer? É o vosso mau dia. Nos outros vinte e nove dias do mês, desde a manhã até a noite, estais sorridente, calma, boa, forte e amável com todos. Este é o vosso autêntico retrato. Enquadrado na memória de vossos lhos, esta será para eles, através da vida, a visão permanente da boa e querida mãe de todos os dias. Da mãmae mal-humorada, cai tranqüilos, não restará nem sinal. E tu, papai, ontem ao meio-dia esqueceste tua compostura de sempre ao presidir a mesa familiar. Oito formosos lhos formavam a coroa ao teu redor. Desta vez não reparaste nisso. Querias comunicar à tua esposa os teus desgostos da manhã em deploráveis negócios. Os pequenos ouvidos estavam alertas e, no momento, não se prendiam exatamente a apreciações caritativas. O silêncio dos presentes e o aspecto sombrio de seus rostos teriam podido advertir-te que não era o momento oportuno para amargas con dências entre esposos. Mas voltavas da fábrica, onde teu coração havia sido ferido pela traição; e tua lealdade, defraudada pela astúcia; e teus interesses, lesados por manobras indignas. À

À tarde, tudo havia sido reparado. A graciosa coroa voltara a se formar; os pequenos convivas tinham encontrado, em um ambiente de alegria habitual, o papai de todos os dias, indulgente com seu próximo, considerado com respeito pelos outros, caritativo em todo momento, lição viva de respeito em favor de todos, modelo de prudência para desculpar os mais agrantes erros dos demais: o cristão grande, verdadeiro, bom. O infeliz almoço do meio-dia não terá outro alcance, senão destacar a habitual paciência e a apurada virtude do chefe da família. O felix culpa! )

. A falta habitual: eis aí o escândalo.

É o prego que se afunda mais a cada golpe do martelo. Jamais se viu um prego desaparecer debaixo de uma única martelada. O que penetra nas profundezas é aquele que recebe sucessivos golpes. Queridos pais, que não vos alarme a falta por fragilidade. Mas que a falta habitual constitua em vós um permanente remorso. Extirpai-a a qualquer preço. Para isso, empregai a re exão, o exame de consciência, a oração, os sacramentos. Não duvideis do êxito que ireis obter. Mas, mãos à obra! A criança, testemunha de vossos esforços, se verá curada pela metade do mal produzido por vosso mau exemplo. Com o combate que enfrentais convosco mesmo, ela compreendeu a desaprovação diante do funesto costume que até então a desedi cava. Existe alguma lição mais proveitosa? Assim apresentais-lhe a vida sob sua realidade de luta e lhe mostrais praticamente que a vitória será conseguida lá em cima. A rejeição de vossos defeitos, feita sem tréguas, é a mais educativa de todas as lições que possais dar.

CAPÍTULO II | A educação em particular 473. Neste segundo capítulo dedicado à educação dos lhos, xar-nos-emos nos principais aspectos que tal educação deve envolver. O Concílio Vaticano reúne esses principais aspectos no

seguinte parágrafo de sua magní ca Declaração sobre a Educação Cristã da Juventude:490 Todos os homens, de qualquer estirpe, condição e idade, visto gozarem da dignidade de pessoa, têm direito inalienável a uma educação491 correspondente ao próprio m,492 acomodada à própria índole, sexo, cultura e tradições pátrias, e, ao mesmo tempo, aberta ao consórcio fraterno com os outros povos para fomentar na terra a verdadeira unidade e a paz. A verdadeira educação, porém, se propõe à formação da pessoa humana em ordem ao seu m último e, ao mesmo tempo, ao bem das sociedades de que o homem é membro, e em cujas responsabilidades, uma vez adulto, tomará parte. Por isso, é necessário que, tendo em conta os progressos da psicologia, pedagogia e didática, as crianças e os adolescentes sejam ajudados em ordem ao desenvolvimento harmônico das qualidades físicas, morais e intelectuais, e à aquisição gradual dum sentido mais perfeito da responsabilidade no reto e contínuo desenvolvimento da vida, e na consecução da verdadeira liberdade, vencendo os obstáculos com magnanimidade e constância. Sejam formados numa educação sexual positiva e prudente, à medida que vão crescendo. Além disso, de tal modo se preparem para tomar parte na vida social, que, devidamente munidos dos instrumentos necessários e oportunos, sejam capazes de inserir-se ativamente nos vários agrupamentos da comunidade humana, se abram ao diálogo com os outros e se esforcem de boa vontade por cooperar no bem comum. De igual modo, o sagrado concílio declara que as crianças e os adolescentes têm direito de serem estimulados a apreciar com reta consciência os valores morais e a abraçá-los pessoalmente, bem como a conhecer e a amar Deus mais perfeitamente. Por isso, pede insistentemente a todos os que governam os povos ou orientam a educação que procurem fazer com que a juventude nunca seja privada deste sagrado direito.

Reunindo, pois, os pontos fundamentais que o concílio aponta no texto que acabamos de citar, vamos dividir o presente capítulo nos seguintes artigos: 1º — Educação física. 2º — Educação psicológica. 3º — Educação moral. 4º — Educação sexual. 5º — Educação social. 6º — Educação religiosa.

Artigo 1 — Educação física

474. Vamos examinar brevemente o problema da educação física dos lhos. O corpo vale muito menos que a alma, mas é verdade que a falta de saúde muitas vezes repercute na alma. As relações entre ambos não podem ser mais íntimas e profundas. Não é sem razão que da união substancial do corpo como matéria e da alma como forma, resulta o conjunto total que chamamos de pessoa humana. A alma separada do corpo não é uma pessoa (é o espírito dessa pessoa). E tampouco é pessoa o corpo separado da alma (é o cadáver de uma pessoa). Para que exista a pessoa humana, é indispensável a união substancial e vital de ambos os elementos componentes. O eu, a pessoa humana, não é apenas o corpo, nem apenas a alma, mas o composto que resulta da união substancial entre os dois. Vamos, pois, expor algumas idéias sobre a educação corporal ou física. Depois nos ocuparemos mais amplamente do que se refere à alma. “Todos os pais”, escreve a este propósito um autor anônimo,493 querem ter os lhos mais sadios do mundo. Preparam para eles uma comida sadia, dãolhes vitaminas, seguem as regras de higiene, mantêm a criança sob o controle do dentista e do médico. Felizmente, existem inumeráveis meios à disposição dos cônjuges jovens. Os conselhos pessoais estão sempre à disposição por parte dos médicos de família ou de clínicas da sociedade. Mas a saúde física é muito mais que a alimentação apropriada e a ausência de enfermidades. Além disso, é uma questão de adotar hábitos físicos regulares. A criança necessita de treinamento continuado para ter regularidade quanto à hora de dormir, comer e de veri car suas demais necessidades. Também é preciso proporcionar-lhe a oportunidade de desenvolver sua força e sua destreza corporal. Precisa manifestar-se através de seu corpo, dançar, gesticular, representar. Não se pode esperar que ela “permaneça sentada tranqüilamente” por muito tempo. Toda ela borbulha de energia.

475. Deixando de lado a educação física que a criança, o adolescente e o jovem irão encontrar no colégio, no instituto, na universidade e até no quartel, traçaremos unicamente, em forma esquemática, as linhas fundamentais que deve envolver uma educação física para conseguir a mens sana in corpore sano: uma alma sadia em um corpo sadio.494

1. “Deus não é Deus de mortos, mas de vivos” (Mt 22, 32). a) Religião, Igreja, sacerdote não são a mesma coisa que desmancha-prazeres, cera e sacristia. b) “Cristão quer dizer homem de Cristo”. Será preciso explicar? 2. Ninguém pode aproveitar a vida com tanta alegria e otimismo como um cristão convicto. a) Ele sabe que Deus o ama: em sua alma e em seu corpo. b) Se está em estado de graça, tudo o que ele faz ou sofre é meritório. c) Se “otimismo” é uma disposição habitual para interpretar a própria vida e os acontecimentos em sentido favorável (vê que tudo converge para o próprio bem), somente o cristão pode ser otimista. 3. O otimismo cristão se fundamenta na fé. a) Pobres incrédulos! Com que dor verão passar sua saúde, sua vida, o triunfo alheio, etc.! b) “Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10, 10). c) A Igreja tem toda a alegria do mundo. i. O cristão e a saúde do corpo a) Atitude a rmativa diante do corpo 1. Como cristãos, nossa atitude fundamental diante de nosso corpo não é negativa, de desprezo, mas positiva, de respeito (templo do Espírito Santo).

a) Não vemos na matéria a origem do mal, mas um re exo da bondade, sabedoria e beleza divinas. b) “O corpo humano é em si mesmo a obra-prima de Deus na ordem da Criação” (Pio , Aos esportistas, 20 de maio de 1945). c) Deus “o uniu ao espírito na unidade da natureza humana para que a alma gozasse do encanto das obras de Deus, para ajudar a contemplar nesse espelho o seu Criador comum, conhecê-lo, adorá-lo e amá-lo” (Pio , ibid.). d) Não foi Deus, mas o pecado, que tornou o corpo humano passível e mortal. e) Cristo nos remiu também no corpo, não só na alma. 2. Deus e a Igreja querem acima de tudo a nobreza da alma: sua santidade, sua salvação. a) Porém, “quem reprova a Igreja pelo descuido do corpo e da cultura física, está tão longe da verdade como aquele que quisesse restringir sua competência e sua ação nas coisas puramente religiosas” (Pio , ibid.). b) “Na realidade, a Igreja sempre dedicou ao corpo humano uma atenção e um respeito que o materialismo nunca lhe manifestou, nem mesmo em seu culto idolátrico” (Pio , ibid.). 3. Mas a saúde da alma supõe muito mais que um corpo sadio, vigoroso e resistente. a) O homem não é nem pode comportar-se como um mamífero a mais. b) A graça supõe a natureza espiritual e a eleva, aperfeiçoando-a. b) Importância da saúde corporal para a saúde da alma

1. O homem sadio procede de um modo aberto e con ante. a) O descuido do corpo prejudica o homem todo. b) Nosso rendimento e nossa vida espiritual dependem em boa parte de nosso estado orgânico. 2. “Devemos dedicar todo cuidado em nos manter conservados e robustos, pois necessitamos de fazer esforços para conseguir a santidade” (São Francisco de Sales). a) Em geral, a saúde é condição indispensável da energia moral. b) Os corpos doentios sucumbem mais facilmente à tentação, às confusões psicológicas, a todos os vícios, aos escrúpulos... c) É fácil para todos fortalecer a vontade mediante o fortalecimento e a disciplina do corpo. ii. O cristão cuida da saúde do corpo a) Compromete a saúde 1. A embriaguez. a) Um homem ébrio ou alcoolizado é um incapaz em todos os sentidos. b) A embriaguez idiotiza, incapacita acompanhar o curso de uma idéia.

mentalmente

para

c) Empobrece também o corpo: tem resistência muito menor. d) Atinge a atividade motora: anula seu poder de coordenação e vai perdendo irremediavelmente sua energia. 2. A comida em excesso.

a) Não é apropriado às pessoas passar a vida em sessões de digestão. b) Se não se digere bem, o organismo não funciona bem. c) Um corpo alimentado em excesso não responde ao império da vontade. 3. Ar impuro. a) O trabalho e mesmo as diversões quase sempre obrigam a viver em um ar viciado: cinema, bar, fábricas, aulas, o cinas, minas... b) O sangue não-puri cado envenena: debilitação progressiva, dor de cabeça, depressão psíquica... 4. Dormir tarde. a) Cedo para a cama: o sono profundo nas primeiras horas da noite repara melhor as energias. b) Rápido fora da cama: permanecer na cama já acordado destrói, às vezes, o efeito saudável e confortador do descanso noturno. c) Dormir tarde, assim como a ociosidade, pode ser a mãe de todos os vícios e uma grave oportunidade para tudo. 5. Luxúria. a) A impureza ataca as forças físicas, envelhece, destrói o vigor corporal: nenhuma outra desordem incapacita tanto. b) A castidade é uma virtude vivi cante, inclusive para o corpo. c) Não espereis de um degenerado algum esforço físico, ou uma ação nobre, uma obra genial, uma família sadia, uma vida longa,

bela e tranqüila... b) Favorecei a saúde 1. A limpeza: a higiene é fundamental; chuveiro ou banho freqüente fortalece e toni ca. 2. Ginástica respiratória: erguer os braços, nas pontas dos pés, inspirando, e baixar expirando; isto impede a ancilose das costelas e abre muitos alvéolos pulmonares, habitualmente inativos. 3. O trabalho manual: para contrapor o estudo sedentário que enerva, altera impressões e predispõe a exageros e excentricidades. 4. O trabalho do campo: nas férias (além disso, ensina-nos a amar a natureza, o povo trabalhador). 5. A caminhada (mochila e bastão): para conhecer o território pátrio (existem recantos belos e sentimentos puros, desconhecidos para quem não se esforça). 6. A natação: a) Esporte completo: todos os músculos são ativados em igual proporção. b) In uência da água fria, ar livre e sol sobre a pele: desenvolve o vigor e a beleza das pessoas que a praticam. 7. Os esportes: como instrumento de formação integral de uma juventude alegre, disciplinada e vigorosa. 8. A vida espiritual em paz e na graça de Deus: oração, freqüência aos sacramentos, etc. Pela íntima união e transferência entre a alma e o corpo. Conclusão

1. Respeita teu corpo, enobrece-o, procura mantê-lo sadio. 2. Coloca-o inteiramente a serviço da alma. 3. Salvar a alma é salvar o homem completo.

Artigo 2 — Educação psicológica 476. Como se sabe, enquanto ciência, a psicologia humana é aquela parte da loso a que trata da alma, suas faculdades e operações, e mais particularmente dos fenômenos da consciência. A palavra psicologia provém dos vocábulos gregos ψυχή

= alma, e λογος = ciência. Segundo Aristóteles, a psicologia é a ciência de todos os seres vivos, inclusive das plantas, que possuem alma vegetativa. Os lósofos modernos a restringem apenas aos seres vivos que tenham conhecimento e afetos pelo menos sensíveis, ou seja, a todos os animais, inclusive os irracionais, que possuem alma sensitiva. Porém, em sentido próprio e restrito. Aplica-se unicamente à alma humana, que, além disso, tem também o conhecimento intelectual, próprio dos seres racionais. Por isso também se costuma chamar a psicologia humana com a palavra antropologia, ou seja, a ciência do homem como animal racional. Neste artigo, vamos estudar com a maior amplitude possível, dentro dos estreitos limites a que nos obriga o marco geral de nossa obra, os seguintes fundamentos da educação psicológica dos lhos: educação da inteligência, da memória, da vontade, da liberdade, das paixões e do sentido estético ou da beleza.

1. Educação da inteligência 477. Como é natural, não tratamos aqui dos conhecimentos cientí cos e técnicos que mais tarde irão adquirir a criança, o adolescente ou o jovem no colégio, no instituto ou na universidade, mas unicamente dos principais meios que, no seio do lar, os pais devem empregar para ensinarem seus lhos a re etir, ou seja, cultivar sua inteligência para que possam dar seu máximo rendimento no seu devido tempo. Os principais meios são os seguintes:495 . , a expressar aquilo que viu, sentiu ou experimentou, aquilo que ela pensa, os motivos que a levaram a agir. Se agiu mal, perguntar se não o sentiu em sua consciência. Os próprios castigos são proveitosos: a dor faz re etir. . . Aproveitar as lições da aula: a explicação de um trecho da leitura, de uma fábula, de um capítulo de história, será para a criança a revelação de seus próprios sentimentos e, portanto, dos sentimentos alheios. O educador não se contenta em fazer com que as crianças pensem por si mesmas sobre o que lêem; ele mesmo lhes diz ou explica. Faz com que exponham para ele de modo diferente, que tirem conseqüências de tudo isso e daquilo que observam, que procurem as causas a partir dos efeitos que se manifestam, que comparem e façam deduções a partir disso. . . As distrações são o maior obstáculo à re exão. “As crianças distraídas só escutam pela metade, respondem ao contrário e muitas vezes não sabem o que dizem” (Kant). O estado habitual de distração traz consigo a dissipação, que é o inimigo direto da re exão e atua como solvente das melhores qualidades.

Para conseguir a atenção das crianças, é preciso levar em conta as principais causas de suas distrações e os meios de combatê-las. )

. As principais são:

1. A idade da criança. Quanto menor, mais distraída. 2. A imaginação, que é vivíssima nas crianças, porque ainda não conseguiram dominá-la. 3. A incapacidade para o trabalho intelectual. Algumas delas nasceram para qualquer outra coisa, menos estudar. As famílias que se empenham a todo custo para lhes “dar uma carreira” cometem uma grande tolice e um equívoco. 4. A fraqueza de sua vontade. A criança segue sua inclinação ou seu movimento natural sem re exão. A preguiça é a forma mais comum desta fraqueza. Outra forma corrente é o gosto pela educação divertida. Se o estudo é puramente abstrato e sem imagens, ela logo experimenta tédio e desgosto, e inevitavelmente se distrai. 5. O meio ambiente. A indisciplina não favorece o trabalho. É preciso reduzir ao mínimo as causas de distração. 6. A lição demasiado fácil (não lhe interessa) ou demasiado longa (cansa e aborrece). 7. A antipatia pelo educador, devido ao seu mau humor, falta de clareza, de variedade e animação, etc. Não esqueçamos que a atividade humana se move por um enorme impulso: o amor. Trabalha-se na proporção em que se ama. )

-

. Os principais são:

1. Despertar na criança uma paixão que prenda a atenção: a curiosidade, o interesse, o desejo de agradar a Deus ou aos pais, etc. 2. Usar o método intuitivo. Uma imagem vale mais para a criança que mil idéias. Desenhos, pequenos lmes, quadros, historietas, anedotas, brincadeiras educativas, etc. 3. Estimular a curiosidade sadia e cientí ca. Não temer as perguntas das crianças. Responder sempre a verdade. 4. Pedir-lhes que repitam e justi quem as explicações que lhes são dadas. O aluno jamais deve permanecer passivo. Nada lhe causa tanto prazer como descobrir por si mesmo a solução de algum problema difícil e poder exclamar como Arquimedes: Eureka! “Achei!”. 5. Adotar um bom sistema de emulação: competições cientí cas entre várias crianças (por exemplo, “vamos ver quem descobre onde se acha a cidade de Beirute?”) e premiar os que mais se destacam. O concurso Cesta e ponto, da televisão espanhola, é um magní co exemplo. 6. Aproveitar os acontecimentos que podem dar interesse por uma lição, por exemplo, uma viagem, uma descoberta sensacional, a notícia mais importante do dia, etc. 7. Relacionar todo conhecimento novo com os conhecimentos anteriormente adquiridos, para que a criança se acostume a comparar, unir, separar, etc., e a agir com lógica. . . É preciso conduzir a criança pela mão, dando-lhe tempo su ciente para re etir. É preciso tratar e discutir as questões uma a uma, e vencer as di culdades uma depois da outra. Procurar obter o esforço de um modo indireto, pelo interesse em todas as suas formas: intuição, clareza, ordem, variedade, animação.

.

. O verbalismo é inimigo da re exão. Habitua a falar como papagaios, sem saber o que dizem, e a agir automaticamente. . . Saber perguntar é saber ensinar. As perguntas devem versar sobre a essência, a causa e a origem das coisas: que é, como é, por que é e de onde provém alguma coisa. As perguntas socráticas ou inventivas são as que mais levam as crianças a re etir, e as mais apropriadas para lhes dar consciência de seus pensamentos e dos estados de sua alma. .

. Tanto faz se se trata de religião e moral, quanto de história, composição, noções de ciências, etc. A biogra a de santos ou de homens célebres é particularmente adequada para fazer re etir. A criança encontra neste estudo exemplos ligados às diferentes faculdades do homem que a consciência nos permite conhecer e estudar. Assim, para tal criança a atenção estará representada por Arquimedes; o senso comum por Balmes; a ambição por César ou Napoleão; a caridade sublime por São Vicente de Paulo ou pelo Pe. Damião de Veuster; a justiça, por Isabel, a Católica; a vontade, por Cid Campeador, etc. E ela terá sobre estas faculdades ou virtudes um conhecimento tanto mais claro quanto maior destaque elas alcancem em cada caso. . . Na alma da criança é realizado um trabalho confuso de organização, que se deve conhecer e dirigir. Hemón dá algumas regras práticas para disciplinar os atos de pensamentos inadvertidos: a) Trabalhar sobre os sentimentos profundos da criança, provocando com freqüência as mesmas impressões: amor pelo

bem, horror ao mal, etc. Esta sugestão permanente dos sentimentos formará pouco a pouco as idéias morais. b) Trabalhar sobre os hábitos da criança. Ela imita por simpatia. O exemplo opera inconscientemente sobre a criança em virtude desta solidariedade, que faz com que nada se perca de tudo que se faz por ela. c) Contar em parte com o trabalho subconsciente da inteligência para amadurecer os conhecimentos da criança. Não reterá tudo de imediato, mas nada se perde: tudo isso reaparece mais tarde. d) Não se deve esquecer que o olhar, a voz, o gesto são os mais poderosos instrumentos do educador. Existe um poder em cada olhar, em cada voz expressiva, em cada atitude e gesto. Tais são os principais conselhos e procedimentos que os pais deverão levar em conta no trabalho que lhes corresponde em relação à educação intelectual de seus lhos pequenos. Aqui, é impossível expor todo um tratado de pedagogia intelectual, o que exigiria um volume inteiro, tão extenso como o conjunto de toda a nossa obra. 2. Educação da memória 478. Como se sabe, existem no homem duas diferentes espécies de memória: a sensitiva e a intelectual. ) é a faculdade orgânica de conhecer o passado como passado e já percebido anteriormente pelos sentidos externos. É um de nossos quatro sentidos internos e comum também aos animais. Lembrar, por exemplo, a grande memória dos elefantes, cães, etc.

) é própria somente dos seres racionais. Na realidade, não é uma potência distinta do entendimento, mas uma simples função do mesmo, em virtude da qual o entendimento conserva as idéias dos objetos inteligíveis, evoca-as e as reconhece como já anteriormente percebidas pelo próprio entendimento. Embora a memória sensitiva — que se refere unicamente às coisas percebidas pelos sentidos corporais — seja muito inferior à intelectiva — que tem por objeto as idéias do entendimento —, ela é utilíssima, entretanto, e presta grandes serviços à intelectiva. É um grande erro dizer que “a memória (sensitiva) é o talento dos bobos”, mas é verdade que uma grande memória sensitiva pode suprir em grande parte as de ciências de uma inteligência medíocre. Para certa modalidade de estudos (história, idiomas, ciências naturais, etc.) a memória é um fator de decisiva importância. Balmes costumava dizer: “Tu sabes tanto quanto recordas”. De fato, aquilo que esquecemos por completo é como se nunca o tivéssemos sabido. Vamos expor algumas normas breves em vista de estimular a memória sensitiva e intelectiva de seus lhos ou educandos.496 a) Princípios fundamentais 479. 1. Submeter cada dia a memória das crianças a um exercício racional e razoável. Exigir o estudo sério das lições. Comprovar esse trabalho com uma recitação esmerada, insistindo particularmente nas de nições e princípios, e em alguns sumários e resumos. Os pequenos devem seguir o método da memória mecânica, como papagaios. Mais tarde entenderão, mas enquanto isso eles fazem uma provisão de termos e expressões que irão utilizar em seu devido tempo.

2. Aproveitar todos os meios para desenvolver a memória. Por exemplo: mostrar um objeto, explicá-lo, descrevê-lo. Em seguida, ocultá-lo e pedir a descrição ou o esboço. Escrever no quadro cinco, oito, dez nomes, um verso, uma frase, um número, desenhar uma gura. As crianças observam, e depois reproduzem tudo oralmente ou por escrito. Ao voltar de um passeio ou excursão, pedir o diagrama de uma casa, de uma paisagem, de uma cena. Mandar escrever listas dos objetos que foram vistos em sala de aula, em uma moradia, em uma igreja, indicando o local onde se achavam, suas dimensões, etc. Fazer com que aprendam de memória poesias, trechos escolhidos de literatura, etc. Este último é um excelente exercício de memória e um meio fácil de enriquecer o espírito. 3. Necessidade da atenção. A atenção é a chave de toda a nossa vida intelectual. A atenção é “a aplicação da mente a um objetivo” (Balmes), e a aplicação é o grande meio para acertar. “Não existe um meio mais fácil para aprender coisas difíceis” (Joseph de Maistre). Portanto, guerra aos distraídos, aos nãodedicados e às cabeças aéreas! É preciso submetê-los a um trabalho sério. 4. Adestrar as crianças no trabalho da memória. Conseguir que se imponham a obrigação de aprender uma lição em determinado tempo, estudando-a com ardor, com decisão, como se se tratasse de tomar em assalto um ponto estratégico. Ensiná-las a fazer quadros sinóticos, sumários, resumos. Conserva-se melhor uma lembrança quando esta se expressa em uma fórmula breve e precisa. A síntese de uma lição, ou de um conjunto de lições, é sempre um excelente meio para gravar bem aquilo que se estuda. 5. Dar um rumo para o estudo das lições. Em geral, as crianças não sabem estudar as lições. Necessitam de uma orientação,

sobretudo no início do curso escolar. Um princípio pedagógico que convém recordar amiúde é o seguinte: amarrar e relacionar sempre o que se acaba de aprender com aquilo que já se sabia. 6. Dar tempo aos conhecimentos para que eles sejam gravados na mente. Os chamados de atenção demasiado freqüentes e violentos prejudicam a conservação de um texto na memória. Os conhecimentos adquiridos com excessiva pressa — por exemplo, os empanzinamentos e acumulações que precedem uma prova — são muito fugazes: estão presos apenas com al netes. Os estudos seguidos com uma tensão demasiado intensa e continuada da atenção, se não têm muita coesão entre si, prejudicam-se e contrariam-se mutuamente. Pode-se a rmar que os exames organizados de maneira que exijam estudos forçados de memória levam infalivelmente a um desgaste antieconômico de forças intelectuais, impelem a usar de procedimentos materiais e, por conseguinte, constituem uma carga inútil para os interessados. b) Auxiliares lógicos da memória 480. São de grande valor positivo, pois contribuem com o juízo e o raciocínio para a conservação das recordações. Os principais são os seguintes: 1. A simpli cação. A este procedimento se relacionam os resumos e sumários. Assim, por exemplo, a história do povo judeu pode ser resumida em quatro períodos: 1) Da Criação até Moisés; 2) De Moisés até os reis; 3) De Saul até o cativeiro de Babilônia; 4) Do cativeiro até a destruição de Jerusalém. O mesmo sistema se aplica facilmente à história, à geogra a, à gramática, etc. 2. A comparação. “É uma dupla atenção” (Condillac). Com a comparação, destacam-se as semelhanças e diferenças. Este

procedimento é aplicável a todas as matérias de ensino. Recordemos, por exemplo, as belíssimas comparações de Jesus no Evangelho: “O reino do céu é semelhante a...”. Em história, podem ser comparados os grandes conquistadores, como César e Napoleão; dois grandes chefes militares, como o Duque de Alba e o Grande Capitão, Palafox e Castaños, Fernão Cortês e Pizarro; duas batalhas, dois tratados de paz, dois episódios, dois relatos, duas épocas, etc. 3. Os quadros sinóticos. A sinopse é um meio extremamente e caz de mnemotecnia. Por este meio fala-se aos sentidos e à razão. Mal se achará uma ciência à qual ele não seja aplicável: até no ensino da loso a foi utilizado com proveito. c) Mnemotecnia psicológica 481. Existe um conjunto de regras fundamentadas no conhecimento da alma, leis da memória, exigências do juízo e regras de bom senso. Podem ser agrupadas da seguinte forma: 1. Não se deve cultivar e exercitar apenas a memória, mas ao mesmo tempo se desenvolverá a inteligência, o bom senso, o juízo, o gosto e o sentido moral. Não se deve contentar-se com a repetição maquinal de palavras e fórmulas: a estas, sempre devem ser associadas as idéias. Deste princípio decorrem importantíssimos corolários: a) Não mandar aprender uma lição sem a ter explicado de antemão. Na maioria dos casos, ademais, buscar-se-á a ordem das idéias e o plano seguido pelo autor. “Lição compreendia, lição sabida”, costuma-se dizer. Este princípio, entretanto, não deve ser aplicado com excessivo rigor: explica-se à criança aquilo que ela pode entender. O método cíclico tem vantagens sobre os demais, pois, ao serem repetidos

periodicamente seus princípios básicos, a criança irá entendendo cada vez melhor. b) Não dar detalhes em excesso nas explicações. Uma boa explicação acompanha o texto, sendo sóbria e exata. c) Na explicação, dirigir-se a quantos sentidos for possível. Tratase, por exemplo, de uma palavra nova? Então, pronunciá-la, escrevê-la no quadro, fazê-la pronunciar, ler, escrever, etc. Também se leve em conta os diferentes tipos de memória nas crianças: visual, auditiva, motora, afetiva, emocional, etc. 2. Respeitar e utilizar as leis siológicas e psicológicas da memória. Para isso, ponham-se em prática os seguintes conselhos: a) Cuidar da conservação da saúde e do vigor. O vigor físico é condição indispensável do vigor mental. b) Apresentar as lições mais difíceis nas horas em que o espírito esteja mais descansado, ou seja, pela manhã ou no princípio da tarde. A manhã é o momento por excelência das aquisições intelectuais. No inverno, dispomos de maior energia intelectual que no verão. c) Dar grande vivacidade às impressões. Para isto, é muito recomendável o método intuitivo, tanto sensível como intelectual e moral. Não se deve esquecer que a impressão está na razão direta da atenção: procure-se conseguir o mais possível que a atenção seja espontânea e voluntária. Ao ensinar, busque-se a maior clareza e dê-se grande empenho em adquirir a difícil arte de expor e perguntar. Também se consegue uma impressão muito viva por meio de contrastes imprevistos, pela emoção associada ao trabalho, pela sucessão e dependência das idéias ou dos fatos. d) Sobretudo, acostumar as crianças a reter as idéias. Na maior parte das lições, bastará concentrar a atenção sobre duas ou três idéias principais, ao redor das quais se agruparão todas as demais.

Não é menos necessário chamar a atenção das crianças sobre a ordem e a sucessão das idéias. e) No ensino elementar, especialmente, a repetição é o principal fator de acerto e progresso. Só se consegue gravar uma idéia no espírito da criança à força de repetições. Daí a necessidade dos repasses tanto parciais quanto gerais. A freqüência das recapitulações produz o hábito de sintetizar e desenvolve a amplitude do espírito. f) Utilizar as leis da associação. Tudo quanto favoreça as associações de idéias sustenta e fortalece a memória. É fácil associar as impressões da visão, da audição e do tato. Pode-se tirar muito proveito das ligações e encadeamentos que as ciências oferecem entre si: geogra a, ciências físicas e naturais, etc. 3. Educação da vontade 482. A educação da vontade é um dos aspectos mais importantes e decisivos na educação cristã dos lhos. Uma vontade enérgica é a característica mais evidente de um grande caráter e de uma grande responsabilidade. A vontade é o poder que a alma possui de determinar-se, com consciência e re exão, a um ato livremente escolhido; ou também a faculdade de agir que o homem possui, seguindo as luzes da razão. A vontade é a faculdade mais prática do espírito. Ela executa aquilo que a inteligência percebe e o sentimento ama, e determina todos os atos do espírito, já que nada executamos sem que o queiramos. A vontade comunica à existência todo o seu valor, toda a sua grandeza moral. Esta faculdade é a expressão mais pessoal do homem; por isso Gabriel Compayré a rmava que “formar uma

pessoa moral é fortalecer, regular e dirigir a vontade”. A virtude e a santidade não são mais que o resultado dos atos realizados pela vontade livre em conformidade com a consciência e a vontade divina.497 É uma lástima que o marco geral de nossa obra não nos permita fazer, em torno deste importantíssimo assunto, mais que algumas breves indicações sobre o que os pais devem fazer para formar a vontade de seus lhos pequenos. A vontade pode ser educada de duas maneiras: direta e indiretamente. Indicaremos os principais meios que devem ser empregados em ambas as formas.498 1. Educação indireta da vontade 483. A educação indireta da vontade é regida principalmente pelas seguintes normas: 1. Tudo quanto contribui para o desenvolvimento e o equilíbrio do organismo contribui para o exercício da vontade. A razão disso é que o corpo e a alma estão unidos tão estreitamente, que tudo quanto aumenta o vigor corporal in ui na energia da vontade. Daí a importância de uma alimentação sadia e abundante, da observância das leis da higiene, dos exercícios corporais, que exigem serenidade, sangue-frio, coragem, iniciativa e constância; daquilo que estimula e desenvolve o espírito de regularidade e disciplina e o sentimento de solidariedade. Essas relações do organismo com a vontade demonstram a necessidade de estudar detidamente as causas da preguiça e dos escrúpulos nas crianças. Com freqüência, uns e outros exigem a intervenção de um médico: mais que um folgazão ou um obsessivo, na maior parte das vezes é um pobre enfermo.

2. Tudo quanto contribui para a educação da sensibilidade concorre para a educação da vontade. Nada contribui tanto para a formação da vontade como a resistência aos caprichos e à impulsividade, e o rigoroso cumprimento de certos deveres pelos quais se sente repugnância. A luta contra as inclinações viciosas, a repressão aos maus sentimentos, etc., são atos que dão vigor e energia à vontade. 3. Tudo quanto contribui para a educação da inteligência contribui para a educação da vontade. A razão disso é que a vontade é uma potência cega que, para entrar em ação, necessita ser iluminada pelo entendimento. Ninguém pode amar o que desconhece. Por isso, onde existe inteligência há livre-arbítrio (esta é a razão pelas quais os animais não são livres: carecem de inteligência). Os erros e a debilidade da vontade são amiúde conseqüência da ignorância ou da reduzida luz intelectiva. Administrar conhecimentos, formar as faculdades, sobretudo o juízo, é fortalecer e dirigir a vontade. “A uma grande clareza no entendimento, segue-se grande inclinação na vontade” (Descartes). 4. Tudo quanto contribui para a formação dos hábitos contribui para a educação da vontade. Os hábitos — ou seja, os costumes bons ou maus — são formados com a prática e a disciplina, são resultado de esforços contínuos e redobrados para coordenar as energias que se dispersam e desgastam, inicialmente sem ordem, organização e medida. Graças a esses esforços, a alma domina facilmente, uma a uma, as potências de seu ser, xa sua atenção, contém os maus impulsos com outros bons e reforça conscientemente as excitações úteis. A este trabalho moral corresponde uma transformação física que também exige esforços. Mas, se custa muito abrir os sulcos do bem no organismo, uma vez abertos eles perseveram, e

então a vontade, com o caminho já desobstruído e aplainado, conduz facilmente por ele as energias de que dispõe (Guibert).

Assim, cada hábito adquirido torna mais fácil a aquisição de outro, porque a vontade atua com maior e cácia. 2. Educação direta da vontade Na educação direta da vontade, é preciso insistir nestes dois pontos: a) fortalecer a vontade; b) dirigi-la para o bem. )

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484. 1. Acompanhar as etapas de seu desenvolvimento. Começar pela prática de atos simples e fáceis; insensivelmente para atos mais complexos. desenvolvimento, podem-se distinguir três etapas:

passar Neste

a) A infância. Neste período, a vontade da criança é provocada pelo desassossego, pela necessidade irresistível, pelo capricho desordenado, pois ela se acha envolvida nas penumbras do inconsciente e subordinada ao império da sensibilidade. Procure-se inculcar certos hábitos fundamentais: de ordem, atenção, limpeza, silêncio, boa postura ou, em uma palavra: de obediência. b) A idade da discrição. Nesta época, é preciso conciliar a liberdade do educando com a autoridade do educador. Ceder e resistir oportuna e discretamente: eis o segredo do êxito, pois pode ser tão prejudicial a repressão constante e exagerada como a complacência contínua e sem medida. c) A adolescência. Durante ela, é preciso procurar que o rapaz ou a jovem adquiram o verdadeiro senso de responsabilidade e percebam a ascendência que podem exercer sobre seus semelhantes com suas palavras e exemplos. 2. Tratar cada criança segundo o caráter e a disposição que ela manifeste. É

É preciso estimular as naturezas moles e apáticas (preguiçosos, queixosos, murmuradores) pela emulação, pelas recompensas e elogios dados oportunamente, pelo chamamento à razão e ao sentimento de honra, e sobretudo inculcando-lhes a idéia do dever. Sobre as crianças de ânimo volúvel e inconstante, é preciso agir infundindo nelas decisão e perseverança no trabalho, exigindo delas tudo quanto possam dar de si razoavelmente, fortalecendo seus bons hábitos e convicções. Às vacilantes e indecisas, deve-se dar segurança, esclarecendo-as acerca de seus deveres e do bem em geral. Às teimosas e obstinadas, é preciso corrigir com paciência, reduzindo gradual e habilidosamente a excessiva con ança em si mesmas, levando-as a ver o ridículo de sua arrogância. Estes temperamentos costumam ceder pouco a pouco diante da rmeza serena e tranqüila de seus pais ou educadores. 3. Dar a entender à criança a necessidade do esforço. Em primeiro lugar, isto o levará a compreender que a formação de sua vontade é um assunto pessoal. Com freqüência lhe será repetido que aquilo que vale muito custa muito. Com o m de adestrá-la e fortalecê-la na vitória sobre si mesma, pedir-lhe a cada dia a prática de algum pequeno sacrifício voluntário. Não se deve esquecer que “na educação da vontade são preferíveis os pequenos sacrifícios, contanto que sejam continuados, aos grandes e extraordinários, mas pouco freqüentes” (Ru no Blanco). As privações que ela imponha a si mesma serão tanto mais meritórias quanto mais livremente as zer. Um pouco de heroísmo a cada dia, praticado para Deus, torna-se um manancial de vitórias no cumprimento dos deveres penosos e na luta contra as más inclinações. 4. Dirigir-se ao sentimento e à razão. É

É preciso ensinar à criança as vantagens que lhe trará o cumprimento do dever, e os desgostos que seriam a conseqüência de sua covardia. Animá-la a querer livremente, por si mesma, e a não desanimar se na primeira tentativa não consegue os resultados desejados. Proceda-se com mansidão e, em lugar de repreender e censurar, procure-se ganhar sua vontade e comover seu coração com palavras de afeto e carinho. Assim se consegue que a criança se enterneça, vibre, atue, queira e faça progressos surpreendentes. O sentimento é o grande motor da atividade humana. A idéia só atua indiretamente sobre a vontade; ao contrário, atuam sobre ela, à maneira de impulsão, a inclinação, a tendência, a paixão. “Sem paixão não se faz nada de grande”, diz Pascal. São Francisco de Sales mostrou-se um sagaz psicólogo quando escreveu: “A vontade dirige todas as outras faculdades do espírito humano, mas governa a si mesma por seu amor, que a transforma à sua imagem, pois ela adquire a qualidade do amor ao qual se une”. Por isso, com uma frase genial, dizia Santo Agostinho: “Se amas a terra, tu te tornas terra; e se amas a Deus, que lhe ei de dizer, senão que te divinizas?”. É preciso também dar à criança uma razoável con ança em si mesma, descobrindo-lhe pouco a pouco as riquezas de energia e de querer que sua alma encerra. Infundir-lhe amor ao bem em geral e despertar nela o entusiasmo pelas grandes causas. Estes sentimentos orientarão sua vida, tornando-se o motor de generosas ações. ) 485. 1. Fazer conhecer, amar e praticar o bem. Os meios para fazer conhecer o bem se resumem na formação moral e religiosa, que dá um conjunto de princípios diretivos xos e concretos: ensino do Catecismo, exortações oportunas e amáveis, formação da consciência, etc.

Porém, depois de levado a conhecer o bem, é preciso fazê-lo ser amado, em Deus e por Deus, mesmo no caso de se apresentar sob a forma de um dever penoso. Não se esqueça de que estamos falando da educação cristã dos lhos, e neste sentido o que acabamos de dizer é básico e fundamental. A pretendida educação laica prescinde de Deus em absoluto; a cristã, ao contrário, encontra nele, não só o mais rme ponto de apoio, mas sua própria razão de ser. Por m, é preciso levar a praticar o bem. A ação fortalece a vontade, e a vontade, por sua vez, torna mais fácil a ação. Assim, todo o problema se reduz à formação de bons hábitos intelectuais e morais. 2. Levar a desprezar o “respeito humano”. Um inimigo assedia as crianças, sobretudo quando são grandinhas, e com freqüência ainda maior os adolescentes e os jovens: o “respeito humano”, o miserável “o que vão dizer”. É preciso levá-los a ver a covardia que supõe ceder diante desse ridículo espantalho e, ao mesmo tempo, acostumá-los a se libertarem do ambiente medíocre que os rodeia, a reagir contra a indiferença ou o sectarismo dos demais, e a servir a Deus com toda a decisão, e até com “cara de pau”, na frase feliz de Louis Veuillot. Às vezes, descuida-se de certas crianças sob o pretexto de que elas são de boa índole. Não é raro equivocar-se muito a respeito disto. Com freqüência essas naturezas são inertes e sem valor, podendo facilmente ir, como outras, para o mau caminho. Então, será bom prová-las oportunamente para conhecer aquilo que dão de si e de que são capazes. 3. Deixar para a criança uma razoável iniciativa. Não se deve temer dar à criança verdadeiras demonstrações de con ança. É preciso evitar a todo custo a vigilância e inspeção minuciosa e inquieta. Deve-se respeitar suas aptidões e talentos;

em uma palavra, sua individualidade. Que ela se entregue com liberdade aos jogos que correspondem mais a seus gostos e suas necessidades físicas. “Dai à criança” dizia São João Bosco, ampla liberdade de pular, correr e gritar ao seu gosto. A ginástica, a música, a declamação, o teatrinho e os passeios são meios e cacíssimos para conseguir a obediência e coadjuvar a moralidade e a saúde.

Os pais não esqueçam jamais este princípio fundamental de toda educação, que deveriam ter sempre em mente e gravá-lo com fogo em seu coração: a verdadeira educação é aquela que tende a conseguir que o educando queira voluntariamente praticar o bem sem que ninguém o vigie e ninguém o castigue. Enquanto não conseguirem isto, os pais e educadores ainda não chegaram a educar seus lhos ou alunos. Os métodos chamados de ativos e o procedimento socrático favorecem a iniciativa e contribuem para o aprendizado da liberdade. “Lembrem-se”, diz Spencer, “de que o m da educação é formar um ser apto a governar a si mesmo, não exatamente para ser governado pelos outros. Se a criança tivesse de viver como escravo por toda a sua vida, não seria nenhum despropósito habituá-la, desde sua infância, à servidão; mas, já que em breve será uma pessoa livre, nunca será su ciente aquilo que for feito para acostumá-la a vigiar sobre si mesma”, e a usar bem a sua liberdade. 4. Acostumar as crianças a re etir. A re exão é a faculdade exclusiva do homem: os animais não re etem, mas se deixam levar por seus instintos sem lhes opor resistência alguma. É preciso ensinar às crianças a necessidade de re etir antes de tomar qualquer decisão, sobretudo se esta é de certa importância. Ninguém nasce com o hábito da re exão; é preciso adquiri-lo pouco a pouco e, às vezes, ao preço de grandes

esforços. Os pais devem ajudar e cazmente seus lhos na aquisição deste hábito de re etir, que tantas vantagens lhes trará em sua vida e tantos desgostos e maus passos os fará evitar. 5. Dar às crianças bons exemplos e apresentar aos seus olhos modelos de virtude, ciência e atividade. Já falamos amplamente em outro lugar sobre a necessidade imprescindível do bom exemplo dos pais na difícil arte de educar os lhos. O melhor pregador é o “frei exemplo”, e, como diz um ditado castelhano, “prega bem quem vive bem”. As crianças aprendem mais por meio dos olhos que pelos ouvidos, e não há nada que mova mais para a virtude do que vê-la praticada por quem a prega. Ao contrário, nada existe de mais terrivelmente destrutivo na educação que o mau exemplo de quem procura ensiná-la aos outros. Como é evidente, o modelo mais perfeito que se pode apresentar às crianças cristãs é o Menino Jesus, que obedecia à Virgem e a São José, ajudando-os nas tarefas do lar de Nazaré. Entre os santos, serão escolhidos como modelos aqueles que viveram nas condições das crianças e de suas famílias e, particularmente, aqueles que morreram jovens. As biogra as dos homens ilustres que se consagraram ao bem e dos heróis e sábios que lutaram contra as di culdades e obstáculos da vida são muito apropriadas para excitar nobres sentimentos. Entretanto, para que semelhantes exemplos produzam o resultado desejado, convém apresentá-los cheios de atração, com descrições pitorescas, narrações animadas, historietas, biogra as e relatos interessantes e vivos. Se a explicação for acompanhada de desenhos, quadros, pequenos lmes, etc., tanto melhor. A esta recomendação, é preciso juntar outra de não menor importância, ou seja: que tais exemplos não se limitem nunca a uma mesma categoria de personagens (reis, homens políticos,

guerreiros, literatos, religiosos, etc.), mas que sejam procurados em todas as esferas, e mais particularmente naquelas que melhor se encaixem no painel da vida para a qual as crianças são educadas, ou que melhor corresponda às exigências do princípio moral que se procura inculcar nelas. 6. Empregar os meios sobrenaturais. Todos os conselhos que demos até agora para educar a vontade, mesmo sendo muito úteis, resultariam de todo insu cientes e ine cazes se não fossem acompanhados a todo momento pelo emprego e pela ajuda dos meios sobrenaturais. Não esqueçamos — repetimos uma vez mais — que se trata da educação cristã das crianças. Entre esses meios sobrenaturais, cabe apontar principalmente: a prática das virtudes cristãs e dos deveres religiosos; a luta contra as tentações; o cumprimento generoso e constante dos deveres de cada dia por amor a Deus; a resignação nas provações e dores da vida; a delidade à meditação, à leitura espiritual, e aos exercícios espirituais; a oração em família, sobretudo a recitação do Santo Rosário, e, principalmente e acima de tudo, a freqüente e fervorosa recepção dos sacramentos da Penitência e da Eucaristia. Este último é tão importante e decisivo, que os pais que conseguirem fazer seus lhos quererem voluntária e espontaneamente receber os sacramentos com grande freqüência (Con ssão semanal, Comunhão diária), podem estar certos de ter cumprido plenamente o gravíssimo dever da educação cristã de seus lhos, que faz parte — como já vimos — do m primário do grande sacramento do Matrimônio. 4. Educação da liberdade 486. Intimamente relacionada à educação da vontade, está a educação da liberdade. De fato, como se sabe, a liberdade não é uma potência distinta da vontade, mas é formalmente uma propriedade da mesma

vontade,499 pela qual escolhe a seu arbítrio os objetos que o entendimento lhe propõe como bons e convenientes para si. A vontade nada escolhe, a não ser sob a razão do bem — é seu objeto próprio, assim como a cor é o objeto da visão e o som o da audição; mas o entendimento, às vezes ofuscado pelas paixões desordenadas, pode apresentar-lhe à vontade como sendo um bem aquilo que só o é aparentemente (por exemplo, o prazer que um pecado proporciona), e então a vontade o escolhe cegamente sem se dar conta de que, na realidade, é um mal. A verdadeira liberdade, portanto, não consiste em escolher entre o bem e o mal — como a rmam tantas loso as falsas —, mas em poder escolher o bem sem encontrar nenhum obstáculo exterior ou interior para quem o escolhe. Deus é in nitamente livre e, no entanto — dizendo melhor, exatamente por isso —, não pode pecar. O poder físico de fazer o mal não é um acréscimo, mas um defeito e uma diminuição da verdadeira liberdade, que tem como objeto escolher, entre vários bens, aquele que lhe pareça melhor em cada caso, sem que estorve a quem exerce sua liberdade nenhum agente exterior (coações, maus exemplos, etc.) nem interior (paixões desordenadas, por exemplo, a sede de vingança, etc.).500 A essência da liberdade — também chamada de livre-arbítrio — está no pleno domínio da vontade sobre seu ato de escolha. A razão disso é que a liberdade não é outra coisa senão a faculdade de agir ou não agir (liberdade de exercício) ou de escolher uma coisa boa de preferência a outras (liberdade de especi cação). De modo algum se requer a chamada liberdade de contrariedade, que consiste no triste privilégio concedido aos seres falíveis de escolher entre o bem e o mal. Esta última é exatamente a negação da verdadeira liberdade. Por isso Deus, in nitamente livre, não tem nem pode ter essa liberdade de contrariedade, já que Ele é, intrínseca e absolutamente, impecável.501

Hoje, fala-se muito sobre liberdade — sobretudo a partir do Concílio Vaticano —, mas, infelizmente, muitos a entendem extremamente mal e em sentido diametralmente oposto ao do próprio Concílio Vaticano . Seria uma espantosa calúnia — além de uma insensatez — dizer que o concílio, ao falar magni camente da liberdade religiosa, queira dizer que alguém seja livre para praticar a religião que mais lhe agrade ou para escolher o vício, se este lhe parecer mais apetitoso que a virtude. Em sua Declaração sobre a Liberdade Religiosa, o concílio adverte expressamente que se trata e se refere à prática da religião sem coação alguma por parte da sociedade civil. Eis aqui suas próprias palavras:502 Uma vez que a liberdade religiosa que os homens exigem no exercício do seu dever de prestar culto a Deus diz respeito à imunidade de coação na sociedade civil, ela em nada afeta a doutrina católica tradicional acerca do dever moral que os homens e as sociedades têm para com a verdadeira religião e a única Igreja de Cristo.

Vamos, pois, expor algumas idéias fundamentais em torno da educação da verdadeira liberdade cristã das crianças, seguindo a doutrina tradicional da Igreja, mantida — como não podia deixar de ser — pelo Concílio Vaticano . Deixaremos a palavra a um sábio autor, já citado antes, que estudou este assunto de maneira muito prática e sugestiva.503 a) A liberdade da criança 487. Depois de ter defendido os direitos da inteligência na criança, tomo a palavra em favor de sua liberdade, gloriosa prerrogativa da vontade humana, que uma educação bem entendida leva a um grau conveniente de perfeição. Assunto candente, ao qual não poderia subtrair-me sem faltar com meu dever. Apologista da autoridade do pai, não devo tributar o mesmo zelo ao livre-arbítrio da criança? Do espírito de independência, do qual sofrem as gerações do mundo moderno, nasceu uma escola que, invertendo os fatores, preconiza como base da educação, não a autoridade dos pais, mas, sob o nome de “liberdade”, a independência dos lhos. É o arquiteto que, em busca de novidades, enterra o teto da casa e ergue no ar os alicerces. Não é necessário dizer que uma teoria tão subversiva é a ruína radical da educação.

O bom senso rejeita os sonhos de Jean Jacques Rousseau, cuja nova educação tem por objeto pôr em prática sistematicamente esses princípios. Não faríamos menção desse movimento de idéias se sua in uência não produzisse grandes inconvenientes. A dúvida, uma dúvida doentia, penetra em nossos lares e se traduz em ansiosos exames de consciência. “Será verdade que não deixamos nossos lhos com uma su ciente liberdade? Será verdade que o exercício de nossa autoridade é um obstáculo para seu desenvolvimento?”. “Será verdade que até agora não compreendemos nada da psicologia da criança, nem tampouco o que se refere a seu desenvolvimento moral?”. “Será verdade que se levanta uma ‘aurora’ que irá expandir uma luz completamente nova sobre a educação?”. Seria melhor dizer que um “crepúsculo” se delineia sobre vinte séculos de luz. Por acaso a história não nos mostra a sociedade humana em busca do abismo em três saltos sucessivos? — A negação da autoridade religiosa no século

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— A revolução contra a autoridade política no século — O desprezo da autoridade paterna no século âmago da questão...

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. Estamos em plena caminhada.

? Nada melhor que uma boa de nição para ir diretamente ao

A liberdade não é uma faculdade, mas uma função da vontade, como a razão é uma faculdade da inteligência, como o poder preênsil da mão não é a própria mão, mas uma função derivada dela. O exercício da autoridade paterna sobre a criança é a destruição, a extinção, o aniquilamento de sua liberdade? “Luís, não batas no teu irmão”. Esta ordem é atentatória à liberdade do jovem atrevido? — Em quê? — eu vos pergunto. — O desorientado não permanece livre para se decidir pelo partido que prefere? Re etindo, ele compreende, no mínimo, a falta de cortesia que é bater em uma inocente criatura, e bruscamente sua atividade se volta para um brinquedo menos malé co... Analisemos, pois, a liberdade. 1º — Com que propósito Deus a concedeu ao ser humano? Com o desígnio de encaminhá-lo a seu m pela escolha de seus meios. O m do homem é a absoluta

felicidade eterna. A condição essencial para adquiri-la é o mérito. O mérito supõe necessariamente a liberdade para fazer o bem ou o mal.504 2º — De que elementos se compõe semelhante uso da liberdade? a) Da lucidez do espírito. b) Da força de sua vontade. Quanto mais luz possua a liberdade na escolha dos meios, mais apropriada será sua escolha. Quanto mais forte seja a sua vontade, com mais segurança conseguirá seu objetivo. Que faz a educação? Provê de luz e de força a pobre e pequena criatura humana, demasiado fraca, tanto de espírito quanto de vontade, para se dedicar ao caminho de seu m último e realizar os atos de virtude dos quais depende sua salvação. Existe nisso algo que não seja bene cência? Tanto na terra como no céu! Fiéis ao dever, vós fazeis sobre a terra, queridos pais, aquilo que Deus faz no céu. No céu é impossível cometer pecado. É impossível subtrair-se à virtude e, no entanto, a liberdade reina no céu em todo o seu esplendor. O homem necessita do bem sem estar forçado a ele. Essa “necessidade” de proceder bem é uma redução ou, ao contrário, uma ampliação da liberdade? Primeiramente, não a confundais com a fatalidade. A necessidade é uma causa que se localiza no interior. A fatalidade vem de fora. A necessidade da virtude no céu é uma inclinação para o bem que extrai seu irresistível poder do resplendor da beleza moral. A santidade se revela aos olhos (ou, dizendo melhor, ao espírito) dos bem-aventurados, resplandecente de uma claridade gloriosa, que eles aproveitam em seu favor na escolha de todas as suas determinações. A terra nos oferece um fenômeno análogo. Através de uma exposição de pintura para onde meus passos me levaram, percebo um objeto de encantadora beleza, perfeito em seus detalhes, e, junto a essa obra de arte, um grosseiro garrancho “naturalista” de certos pretensos artistas contemporâneos... Não é natural que eu pre ra a re nada tela, e não o inominável horror ao lado? Que fazeis vós, veneradas mães, quando contais ao “pequeno” um formoso gesto de virtude? Vós o obrigais a amar a beleza moral. Fazeis violência ao juízo dele? Forçais o seu gosto? De modo algum; a criatura segue sua inclinação natural: dá sua livre adesão ao

encanto da proeza que lhe narrais. Aos bem-aventurados, é impossível preferir o mal ao bem, e o pecado à santidade; da mesma maneira que nos é impossível não preferir uma delicada atenção a uma rejeição. Deus é o sol de in nita bondade e de penetrante calor do bem, que inclina irresistivelmente, mas de modo inteiramente voluntário, os habitantes do céu a escolherem em tudo o mais perfeito. Papel análogo, magní co, cabe aos pais e mães da terra. Sem dúvida, eles não dispõem das claridades beatí cas para forçar a vontade da criança, nem contam com a presença do amante que aglutinará para o alto, em um único feixe, todos os corações. Mas que é a educação, senão um trabalho de luz, derramada sem cessar no espírito dos “pequenos”, e uma efusão de amor docemente embriagadora do bem? Graças a esta ação, similar à in uência beatí ca, nossas mães exercem sobre nossa infância insinuantes sujeições, pelas quais somos gratos até o m de nossos dias.

b) A ação malé ca dos libertários 488. Que querem, em suma, os apóstolos da incondicional liberdade da criança? Seu mal. Digamo-lo de modo claro. Desejam que, abdicando do dever de iluminar sua primeira idade e forçá-la ao bem, a criança possa, com essa liberdade, cair no erro e contrair o hábito do vício. Se semelhante traição à infância não é malé ca, as palavras já não têm sentido. Não pretendo que esta seja a intenção dos promotores da “nova educação”. Mas, então, é uma solene ingenuidade suprimir a autoridade do pai de família e do mestre de escola — isto é, suprimir toda a educação — com o m de que a criança tenha mais luzes e maior força moral. Acreditam eles seriamente que aos quatro, aos seis e aos dez anos, o conhecimento das leis da moral seja tão familiar à criança, que os pais e as mães não tenham senão que guardar silêncio? E, quanto à vontade, podem eles com sinceridade desconhecer a inclinação, muitas vezes violenta, que a criança tem pelo prazer proibido, ao mesmo tempo que sua fraqueza na presença do dever? Querer privar a criança do socorro necessário para evitar o mal é desejar seu mal. Quer seja vontade direta ou indireta, intenção explícita ou implícita, é sempre fazer o mal. Tenho uma criança suspensa sobre o abismo: solto-a; não a empurro, mas deixo-a cair... Não sou igualmente culpado? . . A iniciativa é uma prática da liberdade que consiste em alguém se decidir a ser seu próprio chefe.

Isso não é independência. Desenvolvamos na criança a maior iniciativa possível. Semelhante exercício do livrearbítrio é muito favorável à aprendizagem da liberdade sadiamente entendida. O leitor possivelmente se lembrará de nossa insistência, no decurso das regras anteriores, em criticar e reprovar o abuso da autoridade. A mãe que se empenha em multiplicar as ordens e em sobrecarregar de detalhes o seu discípulo, não o forma para o uso da liberdade. Então, em que é diferente a independência? Na iniciativa a pessoa age espontaneamente, mas em conformidade com a lei. O independente se livra dela. Mesmo que haja espontaneidade em ambas as partes, a diferença é completa entre o homem de sadia iniciativa e o independente. Para a criança animada de iniciativa, a lei é a regra e a orientação que seus pais lhe inculcaram. Ela recorda as proibições dadas e as prescrições formuladas no passado. Elas formam o quadro de sua vida moral. Move-se comodamente nas horas e circunstâncias em que se lhe apresente a oportunidade de proceder conforme a vontade de seu pai e sua mãe, independentemente da forma em que esta se tenha manifestado. O libertário da educação não admite, da parte de seus pais, regras, diretivas, proibições ou prescrições. Então, por que não falar francamente e dizer que não é a liberdade que eles reivindicam para a criança, mas a independência? Segundo eles, a própria criança fará a sua lei. Traçará as regras que quiser, comporta-seá a seu gosto, proibir-se-á o que bem entender, prescreverá sua própria conduta. Semelhante extravio na educação anda ao lado da moral independente; sistema que rejeita toda lei divina ou humana, faz dos homens seu próprio deus e estabelece o subjetivismo sobre as ruínas da ordem objetiva. A consciência humana só leva em conta a si mesma. Religião do laicismo. (Traduzir por ateísmo, cuja escola única é chamada a tornar-se a norma para muitos). . princípios de 1789:

. Aqui estão fervorosos adeptos dos “imortais”

“Percebo com terror um pai de família abrir completamente a porta do compartimento do trem que nos leva a toda velocidade. Precipito-me: ‘Cuidado, senhor! Este garotinho que caminha entre as poltronas, não teme que ele caia daqui a pouco pela portinhola aberta?’. ‘Sei disso, senhor. A liberdade acima de tudo!’. “‘Eu admito que meu lho tenha liberdade para decidir sua sorte’.

“A mãe vê seu lhinho brincar com o revólver carregado, deixado sobre a mesa por seu marido. Chamo sua atenção... ‘Senhor’, ela me responde, ‘meu marido e eu temos por princípio que a criança deve ter completa liberdade. Ele maneja a arma a seu gosto. Que a vontade dele seja feita’. “Um farmacêutico permite que seus clientes remexam nas estantes e façam provisão livremente dos mais violentos venenos, como também de ores para os chás mais bené cos. Um após o outro, eles aparecem nos jornais como mortes causadas por intoxicação. A justiça se interessa. Comprova-se a imprudência do farmacêutico: ‘Como podeis ter permitido semelhante loucura em vosso laboratório?’, pergunta o juiz de instrução. ‘Senhor juiz, eu professo o culto da liberdade. Longe de mim restringir sua prática em minha clientela. São livres para apropriar-se de minha farmácia, se assim o desejam’”. Assim raciocinam os libertários: “Deixai de iluminar o espírito da criança a m de livrá-la do erro”. Suspendei todo tipo de sujeição para que caia no abismo quem o desejar. É a substituição do m pelo meio: “A liberdade não foi feita para o homem. Não! O homem foi feito para a liberdade”. É como se dissessem: o alimento não é para o homem; o homem foi criado para o alimento. O sono não foi instituído para o homem: o homem foi criado para servir ao sono. A análise metódica da verdadeira liberdade encurrala seus modernos adoradores na evidência de seus erros. Seu ídolo é a independência; e, ainda mais, a libertinagem. Que não nos falem de liberdade! .

. Entremos aqui: nova educação, disseram a nós.

Ainda não terminaram o almoço da família. Como?... Sozinhos, um em frente ao outro, o pai e a mãe?... Família numerosa, no entanto, a julgar pelos cinco talheres dispostos ao redor da mesa, e pelos guardanapos jogados apressadamente... Onde se encontram os convidados? Com alguma hesitação, os pais respondem: — Não sabemos. Pedro tem seu futebol. Paulo sonha apenas com o cinema. Marta tem amigos por toda parte. Luísa só gosta de pular corda de um extremo a outro do bairro. Santiago se encontra no circo, em excursão ou em visita às casas de colegas da escola primária. Liberdade absoluta! Esta é nossa regra de educação. Cada um de nossos lhos vai aonde quer, com quem quiser, e faz o que lhe convém. É a nova educação. Leiam a teoria, aqui está o livro. — Obrigado! Adeus! Debaixo deste outro teto, educação antiga, disseram para nós. Entremos. Estão à mesa. Aqui todos os lhos se acham em seu lugar correspondente. Já terminaram, no entanto. Mas o pai bebe o café devagar. A mamãe o contempla com uma alegria que transparece

em seus olhos. O grupo dos lhos não nos dá o aspecto de uma tribo escravizada. Os semblantes são luminosos; as línguas, perfeitamente livres. — Mamãe, se me permite, darei um passeio a cavalo com Justino. É um jovem de dezoito anos quem fala. — Muito bem, meu lho. — E eu — prossegue Clara —, gostaria de ir tocar piano com Henriqueta. — Certo, querida lha. Depois, Celestina, de quinze anos, solicita autorização para convidar por telefone suas companheiras de classe para tomar chá. Ficam Roberto e Bernardo. Manifestam, por sua vez, seus sonhos de felicidade a realizar nesta tarde de quinta-feira. Papai sorri diante da exposição de desejos de seu pequeno mundo, deixando que mamãe, como rainha-mãe, decida como juiz. Levantam-se, agradecem a Deus; depois cada um se apressa a realizar seus planos. A iniciativa reina sem travas sob este teto sabiamente rígido. Os subordinados propõem. A autoridade concede. É a liberdade, sem a independência caprichosa.

5. Educação das paixões Outro grande recurso psicológico a ser controlado e educado é relativo às próprias paixões. Sua in uência é decisiva na vida física, intelectual e moral do homem.505 492. 1. Noção. — As paixões não são outra coisa senão o movimento do apetite sensitivo nascido da apreensão do bem ou do mal sensível, com certa comoção re exa, mais ou menos intensa, no organismo. Em si, as paixões não são boas nem más: depende da orientação que se lhes dá. Postas a serviço do bem, pode prestar-nos incalculáveis serviços, ao ponto de se poder a rmar que é moralmente impossível que uma alma possa chegar às grandes altitudes da santidade sem possuir uma grande riqueza passional orientada para Deus; porém, postas a serviço do mal,

transformam-se em uma verdadeiramente espantosa.

força

destruidora,

de

e cácia

493. 2. Número. — As paixões são muitas, mas podem facilmente ser reduzidas às onze fundamentais que a loso a clássica sempre reconheceu: a) No apetite concupiscível — que tem por objeto o bem deleitável e de fácil consecução — radicam-se seis movimentos passionais: 1. Diante do bem que nos aparece, produz-se o

.

2. Diante do mal, oposto ao bem, produz-se o

.

3. Se o bem é futuro e fácil de alcançar, produz-se o

.

4. Diante do mal futuro produz-se um movimento de ou . 5. O bem presente, já possuído, produz a 6. O mal presente, já sofrido, produz a

. ou

.

b) No apetite irascível — que tem por objeto o bem árduo e difícil de alcançar —, produzem-se cinco movimentos passionais: 1. Se esse bem árduo é possível de alcançar, produz-se a . 2. Se é impossível de conseguir, dá origem ao 3. Se o mal árduo que se teme é superável, produz-se a

. .

4. Se o mal árduo nos ameaça insuperavelmente, produz-se o .

5. O mal árduo já presente excita em nós a

.

Estas são as onze principais paixões, mas não as únicas. Destas, como de sua raiz, brotam grande quantidade de movimentos passionais. Balmes enumera vários quando escreve magni camente:506 Há momentos de calma e tempestade, de doçura e amargor, de suavidade e dureza, de coragem e covardia, de fortaleza e abatimento, de entusiasmo e de desprezo, de alegria e de tristeza, de orgulho e de aniquilamento, de esperança e de desespero, de paciência e de ira, de prostração e de atividade, de expansão e de aperto, de generosidade e de cobiça, de perdão e de vingança, de indulgência e de severidade, de prazer e de malestar, de gosto e de tédio, de gravidade e de leveza, de elevação e de frivolidade, de seriedade e de brincadeiras, de... mas onde vamos parar, enumerando a variedade de disposições que nossa alma experimenta? Não é mais mutável e inconstante o mar açoitado pelos furacões, agitado pelo zé ro, eriçado com o sopro da aurora, imóvel com o peso de uma atmosfera de chumbo, dourado com os raios do sol nascente, branqueado com a luz do astro da noite, cravejado com as estrelas do rmamento, acinzentado como o semblante de um defunto, brilhante como os fogos do meio-dia, tenebroso e negro como a boca de um túmulo.

Bossuet notou agudamente que todas as paixões podem ser reduzidas ao amor, que é a fundamental e como que a raiz de todas elas. Eis suas próprias palavras:507 Podemos dizer, se examinamos o que acontece em nós mesmos, que nossas paixões se reduzem apenas ao amor, que a todas elas engloba e excita. O ódio por algum objeto vem do amor que se tem por algum outro. Só odeio a doença porque amo a saúde. Só tenho aversão por alguém que é para mim um obstáculo para possuir aquilo que amo. O desejo não é mais que um amor dirigido a um bem que ainda não se possui, assim como a alegria é um amor que se apega ao bem possuído. A fuga e a tristeza são um amor que se afasta do mal que o privaria de seu bem e que se a ige. A audácia é um amor que trabalha para possuir o objeto amado, aquilo que existe de mais difícil; e o medo é um amor que, vendo-se ameaçado de perder aquilo que procura, é atormentado por esse perigo. A esperança é um amor que con a possuir o objeto amado; e o desespero é um amor desolado ao se ver privado dele para sempre, o que causa um abatimento do qual não pode se reerguer. A ira é um amor irritado ao ver que querem tomar seu bem e se esforça por defendê-lo. En m, suprimi o amor e já não existem paixões; trazei-o, e fareis nascer todas elas.

494. 3. Importância das paixões. — A grande importância das paixões se deduz de sua in uência decisiva na vida física, intelectual e moral do homem.

) . Sem a prévia excitação dos apetites, mal damos um passo em nossa vida física, enquanto a excitação passional nos leva a desenvolver uma extraordinária atividade para o bem ou para o mal. A isto se acrescenta que certas paixões in uem poderosamente na saúde corporal, e podem chegar a causar o seu m, sobretudo a tristeza.508 ) . É incalculável a in uência de nossas paixões sobre nossas idéias. Balmes o fez notar agudamente em El criterio.509 A maior parte das traições e apostasias têm sua última e mais profunda raiz na desordem das próprias paixões. Paul Bourget observa com sagacidade: “É preciso viver como se pensa; do contrário, cedo ou tarde acaba-se por pensar como se vive”.510 ) . As paixões aumentam ou diminuem a bondade ou a malícia, o mérito ou o demérito de nossos atos.511 Diminuem-no quando fazemos o bem ou o mal antes pelo impulso da paixão do que pela livre escolha da vontade; aumentam-no quando a vontade con rma o movimento anterior da paixão e o utiliza para agir com maior intensidade. 495. 4. Orientação das paixões para o bem. — Apontemos um a um os principais objetivos para os quais devem ser canalizadas as paixões, a m de educá-las convenientemente: 1. O amor deve ser canalizado: a) na ordem natural: para a família, as boas amizades, a ciência, a arte, a pátria...; b) na ordem sobrenatural: para Deus, Jesus Cristo (o amigo mais el e generoso), Maria, os anjos e santos, a Igreja, as almas... 2. O ódio deve ser orientado para o pecado, os inimigos de nossa alma (mundo, demônio, carne) e tudo aquilo que possa rebaixarnos e aviltar na ordem natural ou sobrenatural.

3. O desejo deve ser transformado em legítima ambição: natural, de ser útil à família e à pátria; sobrenatural, de alcançar a todo custo a perfeição e a santidade. 4. A fuga ou aversão tem seu objeto mais nobre em fugir das ocasiões perigosas, em evitar cuidadosamente tudo aquilo que possa comprometer nossa salvação ou santi cação. 5. A alegria, devemos fazê-la recair sobre o perfeito cumprimento da vontade de Deus a nosso respeito, sobre o triunfo da causa do bem no mundo inteiro, a felicidade de sentir-se, pela graça santi cante, lho de Deus e membro vivo de Jesus Cristo... 6. A tristeza e a dor encontram sua expressão adequada na contemplação da Paixão de Jesus Cristo, das dores de Maria, dos sofrimentos e perseguições de que a Igreja ou os melhores de seus lhos são vítimas, do triunfo do mal e da imoralidade no mundo... 7. A esperança deve se alimentar da soberana perspectiva da felicidade inenarrável que nos aguarda na vida eterna, da con ança incondicional na ajuda de Deus durante o desterro, da segurança na proteção de Maria “agora e na hora de nossa morte”... 8. O desespero deve ser transformado em uma discreta descon ança de nós mesmos, baseada em nossos pecados e na debilidade de nossas forças, mas plenamente compensada por uma total con ança no amor e na misericórdia de Deus e na ajuda de sua divina graça. 9. A audácia deve se tornar uma intensa intrepidez e valentia para enfrentar e superar todos os obstáculos e di culdades que se interponham diante do cumprimento de nosso dever e no processo de nossa santi cação, recordando que “o reino dos céus sofre violência, e somente aqueles que a fazem contra si mesmos o arrebatam” (Mt 11, 12).

10. O medo deve recair sobre a possibilidade do pecado, único verdadeiro mal que nos pode acontecer, e sobre a perda temporal ou eterna de Deus, que seria sua conseqüência; mas não de maneira que nos leve ao abatimento, porém como acicate e estímulo para antes morrer do que pecar. 11. A ira, nalmente, deve ser transformada em santa indignação que nos arme fortemente contra o mal. 6. Educação do senso estético 496. Uma educação cristã integral deve ser ao mesmo tempo muito humana e muito divina. Precisamente, a graça não destrói a natureza, mas a eleva e aperfeiçoa; e através do humano podemos elevar-nos até Deus, autor da natureza e da graça. Entre os elementos de formação psicológica das crianças, não deixemos de valorizar um daqueles que mais nos podem elevar a Deus, se devidamente orientado. Referimo-nos à educação do senso estético e do amor ao belo. A nal, todas as belezas criadas não são mais que esboços e ressonâncias analógicas da in nita e eterna Beleza, que é o próprio Deus. Vamos, pois, indicar — ainda que de maneira muito breve — algumas idéias fundamentais em torno da educação do senso estético das crianças e do amor ao belo.512 . . O amor ao belo ou senso estético consiste no prazer que se experimenta em presença das obras da natureza ou das obras-primas da arte. O prazer estético é suave, agradável, desinteressado. Não contém baixezas. É, ao mesmo tempo, sensível, intelectual, intuitivo e radicalmente oposto ao prazer sensual que nos rodeia por todos os lados.

A cultura estética desperta nas crianças sentimentos nobres. Opõe-se à utilidade e ao egoísmo. Assim, podemos dizer que ela é moralmente boa. Não se vê a beleza sem erguer os olhos. Não se serve à beleza sem elevar-se acima do mal, sem espiritualizar-se (P. Ponsard).

A cultura estética eleva e enobrece o ideal, dando-nos o gosto pelo perfeito e acabado. Leva-nos sem esforço até o sentimento religioso: A alma que contempla, adora. Descobre Deus no cintilar dos astros, nos caminhos prateados que a lua desenha nas ondas do mar, nas nuvens do rmamento, na poderosa voz do oceano, no sorrir e murmurar de uma torrente cristalina e no balanço dos álamos. Descobre-o na beleza, porque Deus é a beleza (P. Ponsard).

São João da Cruz — o sublime místico de Fontiveros — se extasiava diante da contemplação de uma pequena fonte, de um pôr do sol, de uma noite serena, de um “prado de verduras, de ores esmaltado...”. A beleza criada o elevava até Deus. A formação estética é sumamente bené ca: moraliza e eleva a alma. Entre o belo e o bom existem diferenças — sem dúvida alguma —, mas também profundas analogias. “A aspiração viva e pura pelo belo”, diz Schiller, “traz sempre consigo costumes honestos”. Também na sociedade ela produz efeitos salutares: é o traço de união dos espíritos em uma vida comum e fraterna. .

. O belo é o resplendor do verdadeiro e do bom. Podese distinguir a beleza física, que reside na matéria, e consiste em ordem, força e grandeza; a beleza sensível, que reside no animal e na planta, e consiste na esplêndida manifestação da vida; e a beleza intelectual e moral, que reside no homem, e se manifesta no rosto — que é o espelho da alma —, na palavra, e naqueles atos que denotam um grande coração e uma grandeza de alma.

É

A beleza das criaturas é relativa. É imagem e ressonância longínqua da Beleza incriada, que é Deus; e é tanto mais perfeita quanto mais se assemelha a Ele. A beleza produz em quem a contempla um encanto e uma atração que nada tem de sensual. Enobrece o homem a seus próprios olhos, avivando nele o amor ao que é perfeito. . . O sublime representa o grau mais perfeito do belo. Ele nos sugere a idéia de grandeza, de proporção e de harmonia. Mas também envolve algo de violento, misturando-se a uma espécie de desordem e comoção. Provoca a admiração e, com freqüência, o temor e mesmo um verdadeiro espanto. Lembrar, por exemplo, a sublime beleza das ondas encrespadas do mar em plena tempestade, açoitando com fúria e abalando as escarpas da costa, erguendo uma montanha de espuma. . . O gosto estético é a disposição do espírito que nos leva a perceber a beleza ou a imperfeição das coisas, a conveniência ou inconveniência das palavras e ações. É algo inato e instintivo, mas pode se extraviar caso não receba uma formação racional. Repete-se com freqüência que “sobre gostos e cores não se deve discutir”. É um equívoco, já que existe um bom gosto e um mau gosto, sendo necessário formar o gosto das crianças. Esta formação começa na família, infundindo na criança o amor à ordem e à limpeza, à simplicidade e à harmonia. Nisto, nada é capaz de substituir a in uência da mãe: O olhar da mãe, seu sorriso, seus gestos, chamarão a atenção da criança sobre a beleza das palavras que ouve e das ações que vê (P. Ponsard).

Esta formação prossegue na escola por meio da ordem exterior e por tudo que oferece a cultura do espírito e do coração. Alguns exercícios escolares servem diretamente para a formação do bom gosto: o desenho, o canto, a leitura expressiva, os estudos

literários, a música instrumental. Também podem ser indicados a visita aos museus e a reprodução adequada de obras célebres de pintura, escultura e arquitetura. A educação do bom gosto não seria completa se não cuidássemos de afastar a criança da feiúra, do exagero, da deformidade ou da afetação, que vêm a ser outras tantas formas de mentira. . . Em primeiro lugar, a criança deve encontrar em seu próprio lar hábitos de ordem e de bom gosto. Por outro lado, nada contribui tanto para afeiçoá-los a seu lar e para que se encontrem à vontade nele. Agradam à criança as belas paisagens, as árvores, as ores e os pássaros. As maravilhas do reino vegetal e do reino animal causam nela profundas emoções. Facilitemos para ela a oportunidade de gozar de espetáculos bonitos: montanhas, altos cumes nevados, planícies, lagos, rios, selvas, campos cobertos de messes douradas, verdes prados, o pôr do sol, etc. Façamos que ela visite os monumentos históricos e as ruínas célebres, contandolhe ao mesmo tempo as legendas e recordações que evocam. . . Iniciemos os lhos na beleza moral, com o m de que simpatizem com ela. Falemos a eles com freqüência sobre os atos que acrescentam algo de grande e sublime ao cumprimento do dever. Citemos exemplos heróicos que nos deram os mártires e santos na religião, os sábios na ciência e os heróis nos altares da pátria. Com isso, semearemos em suas almas germes de belas e nobres ações. A contemplação inteligente e a admiração meditada sobre a ordem e a harmonia derramadas na Criação dispõem a alma para amar em toda parte a ordem e a harmonia: infunde sentimentos de gratidão e amor para com o Criador de tantas belezas. A arte predispõe ao sentimento religioso (Pelissier).

Artigo 3 — Educação moral 497. A educação moral, enquanto distinta daquela simplesmente psicológica e da educação propriamente religiosa — que estudamos ou ainda estudaremos em separado —, tem por objetivo principal a reta formação da consciência. O Concílio Vaticano declara expressamente que “as crianças e os adolescentes têm o direito de serem estimulados a apreciar com reta consciência os valores morais, e a prestar-lhes sua adesão pessoal”.513 Vamos, pois, examinar o problema da consciência e os principais aspectos de sua reta educação. 1. Conceito de consciência 498. Vamos dar sua noção etimológica e real.514 , a palavra “consciência” parece provir do latim cum scientia, isto é, com conhecimento. Cícero e Santo Tomás lhe dão o sentido de “consciência comum com outros”: Unde conscire dicitur quase simul scire.515 , pode ser tomada em dois sentidos principais: a) Para expressar o conhecimento que a alma tem de si mesma ou de seus próprios atos. É a chamada consciência psicológica. Sua função é a de testemunhar, e inclui o sentido íntimo e a memória. b) Para designar o juízo do entendimento prático sobre a bondade ou maldade de um ato que realizamos ou vamos realizar. É a consciência moral, que constitui o objeto do presente artigo. 2. Natureza da consciência moral

499. A consciência moral pode ser assim de nida: o ditame ou juízo do entendimento prático acerca da moralidade do ato que vamos realizar ou já realizamos, segundo os princípios morais. Expliquemos um pouco a de nição: . De fato, a consciência não é uma potência (como o entendimento) ou um hábito (como a ciência), mas um ato produzido pelo entendimento através do hábito da prudência adquirida ou infusa. Este ato consiste em aplicar os princípios da ciência a algum fato particular e concreto que já realizamos ou vamos realizar. Esta aplicação consiste no ditame ou juízo do entendimento prático. Assim, a consciência não é um ato do entendimento teórico ou especulativo, nem da vontade. . Nisto se distingue da consciência meramente psicológica. A consciência moral é a regra subjetiva dos costumes. Tudo que a consciência julga estar conforme às justas leis é um ato subjetivamente bom ou que, pelo menos, não é mau; ao contrário, aquilo que ela julga não estar conforme àquelas leis é subjetivamente mau, mesmo que por acaso não contenha em si mesmo nenhuma imoralidade objetiva. . O papel próprio e primário da consciência é julgar o ato que vamos realizar aqui e agora; como já dissemos, é a regra próxima e subjetiva à qual temos de ajustar nossa conduta. Secundariamente, porém, pertence também à consciência julgar o ato já realizado. Neste último sentido, diz-se que a consciência nos dá testemunho (com sua aprovação ou seu remorso) da bondade ou maldade do ato realizado. . A consciência supõe como verdadeiros os princípios morais da fé e da razão natural, e os aplica a um caso particular. Não julga de modo algum os princípios da lei natural ou divina, mas unicamente se o ato que vamos realizar se ajusta ou não àqueles princípios. Daí se conclui

que a consciência de nenhum modo é autônoma (como querem a rmar Kant e seus discípulos), e que é falsa aquela liberdade de consciência proclamada por muitos racionalistas, que consideram a própria consciência como o supremo e independente árbitro do bem e do mal. Agora, transcreveremos um interessante diálogo sobre a consciência entre um mestre e seu discípulos, que nos ajudará a compreender melhor sua excepcional importância, e irá preparar o terreno para estabelecer os princípios fundamentais para a reta educação da consciência.516 3. A voz da consciência 500. 1) Como sabemos o que é bom e o que é mau? — A própria razão nos diz o que é bom e o que é mau. 2) Como a razão nos diz isso? — A razão nos diz que é bom usar de nossas faculdades como Deus manifestou que as devemos usar; que é bom proceder com justiça para conosco mesmos, para com os próximos e para com Deus, e que é mau fazer o contrário. 3) Quem nos diz que é nosso dever fazer o bem e evitar o mal? — Quem nos diz isso é aquilo que chamamos de voz da consciência. 4) Que é a voz da consciência? — A voz da consciência é antes de tudo um juízo da mente que nos diz que devemos fazer o bem e evitar o mal. 5) A voz da consciência é unicamente um juízo?

— Não; a voz da consciência é também uma espécie de mandato que nos faz sentir que devemos obedecer. 6) Que outros sentimentos a consciência produz em nós? — Ela faz com que nos sintamos satisfeitos e felizes ao agir bem, e culpáveis e infelizes quando agimos mal. “Não existe testemunha tão terrível, não há acusador tão poderoso como a consciência que habita em nós” (Sófocles). 7) De onde provêm esses sentimentos? — Esses sentimentos provêm de sabermos que Deus vê o que fazemos, e se agrada de nós quando agimos bem, e se irrita conosco quando agimos mal. 8) Por que nos sentimos infelizes quando agimos mal? — Porque sabemos que desobedecemos à lei de Deus e tememos que, mais cedo ou mais tarde, tenha de nos castigar por isso. 9) Tememos também alguma coisa da parte dos homens? — Sim, temos vergonha e tememos que os homens nos surpreendam, nos culpem e nos castiguem. Mas isto não é a mesma coisa que a voz da consciência, que nos faz temer a ira de Deus e o castigo de Deus, mesmo quando nosso pecado possa ser secreto e ninguém o possa descobrir. 10) De onde vem esta voz da consciência? — Deus a colocou em nossas almas para nos fazer compreender o dever que temos de obedecer à sua lei. 4. A consciência e a crença em Deus

501. 1) Se um homem não tivesse conhecimento de Deus, a consciência lhe falaria do modo como fala para nós? — Não. É possível que nele se manifestassem os mesmos sentimentos acerca do bom e do mau, mas não poderia entender seu signi cado sem crer em Deus. 2) Por que seria assim? — Porque a consciência nos enche de um sentimento de responsabilidade e de obrigação. Responsabilidade signi ca que se deve prestar contas a alguém, e obrigação signi ca que se deve algo a outro. Um homem sentirá responsabilidade e obrigação para com outras pessoas porque reconhece os direitos que elas têm. Mas não seria a mesma coisa em se tratando da consciência, que signi ca responsabilidade e obrigação para com Deus. E se um homem ignorante de Deus sentisse medo de algum castigo, esse medo só poderia ser temor de um castigo humano, enquanto a consciência signi ca temor de um castigo divino. 3) Que conseqüência se deduz disso? — Deduz-se que, sem crer em Deus, não pode haver verdadeira moralidade no sentido de obrigação absoluta. Sem Deus, a moralidade passa a ser assunto de conduta útil, de conduta agradável, de costume social, e nada mais. “Uma consciência sem Deus é como um tribunal sem juiz”. 5. O desenvolvimento da consciência 502. 1) A consciência é a mesma em todos os homens? — Em alguns a consciência é mais clara e mais forte que em outros.

2) Qual a razão dessa diferença? — Isto se deve principalmente à educação e ao hábito. Aqueles que receberam um bom ensinamento e querem ser bons, ouvem a consciência com mais clareza, enquanto os mal-educados e os que não se preocupam em ser bons ouvem-na com menos clareza, porque mal a escutam. 3) Todas as consciências estão de acordo quanto ao que é bom e o que é mau? — Todas as consciências concordam em matérias de maior importância; em alguns detalhes, porém, nem sempre concordam. 4) Qual é a razão dessa diferença? — Ela provém principalmente da falta de uma faculdade discursiva ou de algum costume que se supõe aceitável. 5) Dê alguns exemplos. — Algumas tribos selvagens praticam a vingança e a crueldade; outras vivem do roubo ou da violência. Algumas oferecem sacrifícios humanos e comem carne humana. Algumas tribos têm o hábito de mentir e enganar. No entanto, parece que não consideram essas coisas como más. 6) Como nós sabemos que esses juízos são falsos? — Usando da razão, podemos ver que tais ações são más. As raças mais civilizadas viram isto e deixaram de executar tais ações; e mesmo tais selvagens, quando são ensinados de modo melhor, começam a ver que seu procedimento é mau. 7) É possível melhorar a consciência?

— A consciência pode ser aprimorada ao aprender com maior clareza aquilo que é bom e o que é mau; e também exercitando-se em ouvi-la e em obedecer-lhe em todas as ocasiões. 8) Como podemos aprender mais claramente o que é bom e o que é mau? — Principalmente convivendo com pessoas que são melhores que nós. Se notamos que elas consideram más certas ações, começamos a ver que o são de fato, por mais que antes não as víssemos assim. Igualmente, ao ver que outras pessoas se esmeram em obedecer à consciência, também nos sentimos induzidos a obedecer-lhe. 6. A escusa da ignorância 503. 1) Quando vemos que outros agem mal, como podemos explicar isso? — Isso pode ser explicado de duas maneiras: ou ignoram a lei de Deus, e é necessário que sejam instruídos de modo melhor, ou conhecem a lei de Deus e a desobedecem voluntariamente. 2) Se alguém, por ignorância, executa más ações, ca isento de pecado? — A ação em si é má, mas aquele que a faz está isento de pecado por causa de sua boa-fé e absoluta ignorância. 3) Que é boa-fé? — Boa-fé quer dizer que alguém faz de maneira honrada aquilo que julga bom, ainda que seja mau sem que o saiba. 4) Que é a ignorância absoluta?

— Ignorância absoluta é aquela de que alguém não se dá conta de maneira alguma. Pensa que conhece o bem quando, na realidade, não o conhece. 5) Suponhamos que uma pessoa suspeita que pode estar em erro; ela ainda está isenta de pecado? — Não; neste caso é seu dever informar-se e buscar a verdade até que saia de sua ignorância. 6) Há pecado se alguém se descuidar de informar-se? — Sim; é pecado de negligência ou omissão, e aquele que o comete é responsável por todo o mal que continue fazendo por seu descuido em informar-se. 7) Suponhamos que um homem executa uma ação má acreditando que seja boa, e só depois de executá-la descobre que é má; ele é responsável por essa ação? — Não é responsável pela ação passada, mas será responsável se voltar a praticá-la. 8) Deus castigará as pessoas por ações executadas de boa-fé e com absoluta ignorância? — Deus não as castigará enquanto permanecerem em tal ignorância. Deus só castiga aos homens por agirem mal quando estes sabem que o que fazem é mau. 7. A educação da consciência517 504. Sendo a consciência a regra próxima de nossos atos morais, e como nossa felicidade temporal e eterna depende de nossas ações, é de capital importância a educação reta e cristã da consciência. É impossível explanar aqui este assunto com a

amplitude que sua importância exigiria, mas vamos recordar de modo muito abreviado alguns princípios fundamentais. Antes de tudo, notemos que a educação da consciência deve ser feita com base em uma feliz conjunção de meios naturais e sobrenaturais, já que não se trata de formar uma consciência simplesmente honrada no plano puramente natural, mas uma verdadeira e reta consciência cristã. Vamos, pois, estudar estes dois campos em separado.518 505. 1) Meios naturais. Os principais meios são três: a boa educação, a perfeita sinceridade e o estudo profundo de nossos deveres e obrigações. a) A boa educação. O primeiro e mais e ciente dos meios naturais para adquirir uma boa consciência é a boa educação já recebida desde a infância. É preciso inculcar nas crianças, desde sua mais tenra idade, a distinção entre o bem e o mal e seus diferentes graus. É extremamente pernicioso o costume de muitos pais e falsos educadores que ameaçam as crianças por qualquer bagatela: “Isso é muito feio; o demônio vai te levar”, etc., deformando com isso de modo lamentável a sua consciência. Imprima-se nelas a mais re nada delicadeza, mas sem exagerar na medida, com o risco de levá-las a conceber como grave o que é apenas leve. É preciso acostumá-las a ouvir a voz de sua própria consciência, que é o eco da própria voz de Deus, sem jamais agir contra ela, mesmo que ninguém as vigie nem possa castigá-las neste mundo. É preciso que elas aprendam a praticar o bem e fugir do mal por convicção própria, e não só pela esperança do prêmio ou pelo medo do castigo. E é preciso adverti-las de que, em caso de dúvida, consultem seus pais, seus mestres ou seu confessor; se isto não é possível, que se inclinem sempre para aquilo que julguem mais justo e reto, segundo sua própria consciência, desprezando os conselhos doentios que algum companheiro É

depravado e corrompido lhes possa dar. É preciso ajudá-las a se oporem ao mal ambiente que eventualmente tenham de respirar na rua, no colégio, etc., com conselhos sadios e, sobretudo, com a e cácia do bom exemplo, jamais desmentido por nenhuma imprudência ou tropeço. b) A perfeita sinceridade em tudo. A nobilíssima e raríssima virtude da sinceridade é de inestimável valor para a educação da consciência. Quase sempre as deformações da consciência não obedecem a outra causa que não seja a falta de sinceridade para com Deus, com o próximo e com nós mesmos. É preciso dizer sempre a verdade, custe o que custar, e apresentar-nos em toda parte como realmente somos, sem nada esconder e sem qualquer duplicidade. Para isso é preciso, antes de tudo, conhecer-se tal como se é na realidade e aceitar com lealdade o testemunho da própria consciência, que nos adverte inexoravelmente sobre nossas falhas e defeitos. Muito nos ajudará a prática séria e perseverante do exame de consciência diário em seu duplo aspecto geral e particular. É preciso insistir na prática da verdadeira humildade de coração — já que somente o humilde conhece perfeitamente a si mesmo, porque a humildade é a verdade —, e reconhecer nossos defeitos, combater as ilusões do amor-próprio, reti car com freqüência a intenção, sentir um horror instintivo à mentira, ao dolo, à simulação e à hipocrisia. c) O estudo profundo de nossos deveres e obrigações. Não somente a ignorância, mas também a ciência pela metade, são um grande elemento para o falseamento e a deformação da consciência. É preciso fazer um esforço para adquirir a su ciente cultura moral que nos permita formar retamente nossa própria consciência. É preciso afastar todo tipo de preconceito a priori e estudar com sincera retidão os grandes princípios da moral cristã para aceitá-los sem discussão e ajustar nossa consciência a suas

legítimas exigências. Um leigo não está obrigado a possuir a ciência de um doutor em teologia, mas, sim, o conhecimento su ciente para governar suas ações comuns dentro de seus respectivos deveres de estado, e saber duvidar e consultar quando alguma situação mais embaraçosa e difícil se apresentar. 506. 2) Meios sobrenaturais. Os principais são três: a oração, a prática da virtude e a Con ssão sacramental freqüente. a) A oração. É preciso erguer com freqüência o coração até Deus para pedir-lhe que nos ilumine na reta apreciação de nossos deveres para com Ele, para com o próximo e conosco mesmos. A liturgia da Igreja está cheia deste tipo de petições, algumas vezes tomadas da Sagrada Escritura, e outras do mais puro senso cristão: “Dá-me entendimento para aprender teus mandamentos” (Sl 118, 73); “Ensina-me a fazer tua vontade, pois és meu Deus” (Sl 142, 10); “Ó Deus, de quem procede todo bem, dá a teus servos suplicantes que pensemos, com tua inspiração, aquilo que é reto e ajamos sob tua direção” (5º domingo depois da Páscoa). É aquilo que levava São Paulo a exclamar: “Mas nós temos o pensamento de Cristo” (1Cor 2, 16), que é a garantia mais segura e infalível para a reta formação da consciência. b) A prática da virtude. É outra das condições mais imprescindíveis e e cazes. A intensa prática da virtude estabelece uma espécie de conaturalidade e simpatia com a retidão do juízo e a consciência mais delicada e re nada. Ao contrário, não existe nada que afaste tão radicalmente de toda retidão moral que o aviltamento do vício e a degradação das paixões. São Paulo nos adverte que “o homem animal não percebe as coisas do Espírito de Deus; são para ele uma loucura e não as pode entender, porque é preciso avaliá-las espiritualmente” (1Cor 2, 14); e o próprio Cristo nos diz, no Evangelho, que “aquele que age mal detesta a luz, e não vem para a luz, para que suas obras não sejam

repreendidas; mas aquele que pratica a verdade vem para a luz, para que suas obras sejam manifestas, pois estão feitas em Deus” (Jo 3, 20–21). Esta é a razão do sentido moral tão maravilhoso e re nado que se percebe nos grandes santos, ainda que se trate de um Cura d’Ars, que possuía conhecimentos teológicos tão escassos. É que, pela prática da virtude heróica, se deixaram dominar inteiramente pelo Espírito Santo, que, em certo sentido, os possui e governa com suas luzes divinas, fazendo-os penetrar nas profundezas de Deus (cf. 1Cor 2, 10). c) A Con ssão freqüente. É outro meio sobrenatural extremamente e caz para a educação cristã da consciência, já que nos obriga a praticar um diligente exame prévio para descobrir nossas faltas, e aumenta nossas luzes com os sadios conselhos do confessor, que dissipam nossas dúvidas, esclarecem nossas idéias e nos impelem para uma delicadeza e pureza de consciência cada vez maior.

Artigo 4 — Educação sexual 507. Ainda hoje, em pleno século , são legião, infelizmente, os pais católicos que se escandalizam ao ouvirem falar que não se pode deixar de lado a educação sexual de seus lhos como um dos mais importantes capítulos de sua formação cristã integral. Parece-lhes que instruir seus lhos no mistério da origem da vida humana seria “tirar-lhes a inocência”, quando ocorre exatamente o contrário: perdem a “inocência”, no sentido teológico da palavra, quando seus pais descuidam desta necessária instrução, e o lho a aprende dos lábios de um companheiro corrompido que, ao mesmo tempo que lhe revelou o mistério da vida, ensinou-o brutalmente a pecar. É

É preciso não confundir a “inocência” com a “ignorância”. Quando o anjo anunciou à Virgem Maria o inefável mistério da encarnação do Filho de Deus em suas puríssimas entranhas, a Virgem era e continuou sendo sempre inocentíssima; mas conhecia perfeitamente de que maneira as crianças vêm ao mundo, já que perguntou ao anjo como aquilo poderia realizar-se, pois ela “não conhecia varão” (cf. Lc 1, 34). A “inocência” nada tem a ver com a “ignorância”. Inocente é todo aquele que carece de pecado; ignorante é aquele que desconhece o que poderia e deveria saber. 1. Doutrina da Igreja sobre a educação sexual 508. A Igreja sempre foi partidária de uma sadia e bem orientada educação sexual, realizada por aqueles que têm a missão e o dever de fazê-la: os pais, em primeiro lugar. Certamente, em sua admirável encíclica sobre a educação cristã da juventude, o Papa Pio fez um alerta e condenou uma pretensa “educação sexual” à base de meios puramente naturais e realizada pública e indistintamente para todos — o que certamente é um enorme disparate —; mas, na mesma encíclica, imediatamente depois de condenar este erro, escreve o sábio pontí ce:519 Neste delicadíssimo assunto, se atendidas todas as circunstâncias, faz-se necessária alguma instrução individual, em época oportuna, dada por quem recebeu de Deus a missão educativa e a graça de estado. É preciso observar todas as cautelas, muito conhecidas na educação cristã tradicional.

O imortal Pontí ce Pio é ainda mais explícito. Falando às mães de família, em 26 de outubro de 1941, ele pronunciou as seguintes palavras:520 Chegará, porém, um dia em que esse coração de criança sentirá despertar em si mesmo novos impulsos, novas inclinações que perturbam o belo céu da primeira idade. Nessa ocasião, ó mães, lembrai-vos de que educar o coração é educar a vontade contra as emboscadas do mal e as insídias das paixões. Nessa passagem da inconsciente pureza da infância para a pureza consciente e vitoriosa da adolescência, vosso papel será capital. Cabe a vós preparar vossos lhos e vossas lhas para atravessarem com bravura, como quem passa entre serpentes, aquele período de crise e de transformação física sem

perder nada da alegria da inocência, mas conservando aquele natural e particular instinto do pudor com que a Providência quer que esteja circundada o seu rosto, como freio para as paixões mais fáceis de serem desviadas. Com aquele sentimento de pudor, suave irmão do sentimento religioso, em sua espontânea vergonha, em que tão pouco se pensa hoje em dia, vós evitareis que seja perdido no modo de vestir, nos trajes, na familiaridade pouco decorosa, em espetáculos e representações imorais; ao contrário, vós o tornareis cada vez mais delicado e vigilante, sincero e simples. Tende os olhos abertos sobre seus passos; não deixeis que a candura de suas almas se manche e resseque no contato com companheiros já corrompidos e corruptores. Vós lhes inspirareis uma alta estima e um amor zeloso pela pureza, con ando-lhes como guarda el a materna proteção da Virgem Imaculada. En m, com vossa perspicácia de mães e educadoras, graças à con ante abertura de coração que tereis sabido infundir em vossos lhos, não deixareis de perscrutar e discernir a ocasião e o momento em que certas questões irão apresentar-se ao espírito deles, dando origem à especial perturbação em seus sentidos. Caberá, então, a vós em relação a vossas lhas, e ao pai, quanto aos vossos lhos — quando for necessário — levantar cautelosa e delicadamente o véu da verdade e dar-lhes a resposta prudente, justa e cristã para aquelas questões ou inquietações. Recebidas de vossos lábios de pais cristãos, no momento e na medida oportunos, com todas as devidas cautelas, as revelações sobre as misteriosas e admiráveis leis da vida serão escutadas com reverência, mesclada de gratidão, e iluminarão suas almas com muito menor perigo que se as procurassem ao acaso, em encontros perversos, em conversas clandestinas na escola, com companheiros pouco con áveis e já informados por meio de leituras ocultas, tanto mais perigosas e perniciosas porque o segredo in ama a imaginação e excita os sentidos. Vossas palavras, sendo sensatas e discretas, poderão vir a ser uma salvaguarda e uma advertência em meio às tentações de corrupção que os rodeiam.

Por seu lado, o Concílio Vaticano , em sua Declaração sobre a Educação Cristã da Juventude, ao falar dos lhos no nº 1, adverte expressamente: É preciso iniciá-los, conforme sua idade avança, em uma positiva e prudente educação sexual.521

Por aqui se pode ver quão grave e lamentavelmente erram muitos pais quando ocultam cuidadosamente de seus lhos tudo o que se refere à educação sexual, temendo que percam a “inocência”. Ao suprimir ou retardar a informação correta, esta chegará incorretamente por canais perigosos e malsãos. Suas conseqüências serão funestas: a criança aprenderá a pecar. Assim, tratando-se de evitar um pretenso mal, terá origem um mal verdadeiro e incalculável.

Somente uma intervenção adequada e antecipada dos pais ou educadores será capaz de confrontar as possíveis in uências nefastas do rapaz ou da moça na rua. A educação sexual é parte integral da educação cristã da pessoa; uma parte organicamente integrada, à qual é preciso oferecer seu lugar preciso e exato, nem deixando-a de lado, nem tratando-a de forma excessiva. Exporemos esquematicamente a sua necessidade, as pessoas a quem cabe realizá-la, a idade e o modo de proceder. Por m, exporemos um modelo prático de conversa que os pais devem ter com o lho e a lha.522 2. Necessidade da educação sexual 509. a) A educação integral da pessoa o exige 1. A educação integral pode ser entendida como uma educação de todos os aspectos e vertentes do educando, e como uma educação deste para todas as facetas da realidade exterior. 2. Em um e outro sentido, a educação sexual, associada à esfera do amor, ocupa uma parte muito importante do conjunto educacional. a) O sexo é uma realidade humana tão evidente e vital que grande parte de nossos atos estão motivados e determinados, mais ou menos inconscientemente, por fatores sexuais. b) Ocultar a um jovem aquilo que se relaciona ao sexo e ao amor signi ca um equívoco psicológico enorme, tão absurdo e inexplicável quanto negar a um futuro médico qualquer conhecimento relativo à medicina. b) O bem moral e religioso do educando

1. A ausência de uma iniciação ou educação sexual conveniente produz quase necessariamente profundos estragos na ordem da moralidade juvenil: a) Se os pais e os educadores prescindem da educação, esta se fará na maioria dos casos de maneira tão brusca, grosseira e brutal que não deixará de causar um impacto nefasto na alma infantil, pois costuma vir acompanhada da realização de atos desonestos, concretamente da masturbação. b) É bem expressivo o cálculo sobre moralidade infantil apresentado por Marc Oraison, sacerdote e médico, dedicado a estes problemas. Segundo ele, 95% dos homens, durante a puberdade, são vítimas do hábito da masturbação. c) Este vício, adquirido na infância, pode perdurar ao longo de toda uma vida e exercer uma verdadeira tirania. 2. Como efeito da iniciação torpemente realizada e das práticas de masturbação, produz-se o afastamento da criança e do adolescente dos exercícios religiosos e, em especial, da freqüência aos sacramentos. 3. A quem compete realizá-la 510. a) Aos pais, primeiramente 1. O m primário do matrimônio é a procriação e a educação dos lhos. E já dissemos que informar e esclarecer devidamente as crianças nestas matérias é um aspecto da educação integral a que os lhos têm direito. 2. Além de corresponder a eles, por direito natural, os pais são quase as únicas pessoas que convivem estreitamente com seus lhos, e têm muitas ocasiões favoráveis para que a conversação se inicie naturalmente, sem esforço, sem artifício. Além disso, a educação sexual deve ser rigorosamente individual, de coração a

coração, em intimidade suave e calma. As leituras que poderiam ser aconselhadas jamais serão su cientes. a) A conveniência manifesta de que os iniciadores sejam os pais está baseada, desde o primeiro momento, na importância de associar todo o sexual à esfera do amor, fora do qual ele não tem nenhum sentido humano, e muito menos cristão. b) Quem pode falar melhor sobre o amor do que aqueles cujo amor recíproco, em sua versão sexual, foi a origem e a fonte de onde nasceram esses lhos, hoje ansiosos de conhecer sua própria pré-história? 3. Se a formação dos progenitores é muito semelhante, conviria que fosse a mãe a encarregada de educar e iniciar sexualmente os seus lhos, sobretudo se ainda são de baixa idade. Caso se trate da educação sexual da lha, esta conveniência adquire o caráter de absoluta necessidade. b) Aos sacerdotes 1. A intervenção do sacerdote deve ter caráter subsidiário. Isto é, virá suprir a inibição parcial ou total dos pais. 2. Em todo caso, não se deve dispensar facilmente os progenitores desta obrigação. Somente quando os pais se mostrem relutantes e incompetentes o sacerdote deverá intervir, pois seria criminoso abandonar o garoto à sua própria sorte, deixando-o à mercê da in uência do ambiente. 4. Idade e modo de realizá-la 511. a) Idade em que deve começar a educação sexual

1. Tratando-se de crianças que formulem muito precocemente perguntas desta índole, aos cinco ou seis anos, nenhum momento é mais favorável para informá-los que aquele em que ele mesmo coloca a questão. 2. Assim, os pais não devem deixar tais perguntas sem uma resposta verdadeira. Deve-se responder a elas sempre com a verdade, embora uma verdade adaptada à sua capacidade de momento. 3. Quando a criança não colocar este tipo de perguntas, seja porque não a preocupam, seja pelo temor inconsciente de as formular, deve chegar necessariamente um momento em que os pais abordem a questão: a) Este momento pode ser aquele em que a criança se prepara para entrar na escola, na idade de cinco ou seis anos. Então, o lho entrará em contato com muitos outros garotos, e ouvirá deles todo tipo de conversas, entre as quais surgirão, em um ou outro momento, aquelas relacionadas com a origem das crianças. b) Quando existe perigo de receber informações fora de casa, seja ao acontecer um parto na vizinhança, seja porque se espera a chegada de um novo irmãozinho, é conveniente que os pais o instruam para evitar maiores males. Sempre com a maior naturalidade e simplicidade, sem linguagem obscura e misteriosa. c) Contudo, não devemos con ar na regra, excessivamente simplista, de que mais vale cedo do que tarde. O melhor é o momento oportuno: nem antes, nem depois. b) Como realizar a educação sexual 1. É preciso estabelecer o princípio de que sempre se deve dizer a verdade à criança. Isto não quer dizer que se deva revelar-lhe de um só golpe toda a verdade. Trata-se de uma verdade bem dosada.

2. Deve-se dar ao garoto uma noção exata de seu próprio corpo e de cada uma de suas partes e órgãos. Isto exige, por parte dos pais, uma revisão do vocabulário empregado para denominar tais partes e órgãos. a) É errôneo e antieducativo apresentar determinadas regiões do corpo ao lho como más e desonestas. b) Além disso, é necessário que a criança conheça o nome próprio de seus órgãos genitais com a mesma naturalidade que o nome dos olhos e da boca. Do contrário, quando tenha de nomeálos por algum motivo, ver-se-á obrigada a recorrer a expressões grosseiras que são transmitidas como segredos, de boca em boca, entre os rapazes, com um sentimento mais ou menos consciente de culpabilidade e pecado. 3. Referindo-nos ao problema da origem da vida, a iniciação deve ser progressiva. É preciso dar-lhes a entender que os lhos são um dom de Deus aos pais que se amam. 4. É essencial que o garoto vá associando, desde o princípio, a idéia do pai e da mãe na origem da vida. 5. Finalmente, convém dizer-lhes a mesma coisa que, amanhã, lhes vá dizer um companheiro corrompido, mas com outras palavras muito diferentes e de um modo muito mais nobre. Vamos apresentar um modelo prático da conversa que a mãe e o pai deverão ter com seus lhos.523 5. Conversa da mãe com seus anos)

lhos e

lhas pequenos (5 a 7

512. Como já estás cando maiorzinho, quero responder a uma pergunta que não tiveste a coragem de nos fazer, mas em que tu pensaste mais de uma vez. Não é verdade que mais de uma vez quiseste perguntar de onde vêm as crianças?

Pois veja só, lho: Deus, que é o autor do mundo e de tudo quanto existe, dispôs tudo de uma maneira admirável e maravilhosa. Ele podia ter feito que as árvores já nascessem grandes e carregadas de frutos; podia ter feito que as espigas fossem sempre douradas e seus talos fortes e grandes; que os passarinhos já nascessem grandinhos com as asas cheias de penas. Deus podia ter feito assim e, no entanto, não o fez; e quis que o passarinho nasça em um ninho e saia do ovo nele depositado pela mãe; e quis que a espiga seja primeiro pequena erva e, antes, apenas grão de trigo; e quis que as árvores, antes de se encherem de frutos, se encham de ores, e antes de dar ores, sejam pequeninas. E assim também com as ores que se semeiam no jardim. Por isso Ele quis que o homem, antes de ser adulto, seja jovem; e antes de ser jovem, seja criança; e antes de ser criança que ri, chora e corre... pois antes de seres criança, Deus quis que fosses como uma pequena semente depositada em meu seio, ali foste crescendo e logo tiveste um coração, uma cabeça e umas mãozinhas, e quando já estavas como maduro para viver neste mundo, saíste ao exterior, saíste de meu ventre; por isso os lhos são chamados de fruto de nosso ventre. Tu mesmo já disseste muitas vezes, rezando a Nossa Senhora: “E bendito é o fruto de teu ventre, Jesus”. Vês? Jesus é o lho da Virgem, o fruto de seu ventre. Sabes quanto tempo eu tive que levar-te dentro de mim?... Se prestares atenção ao Evangelho, tenho certeza de que irás acertar. Nós celebramos uma festa em que se comemora o dia em que o Arcanjo São Gabriel anunciou à Virgem a mensagem de Deus para que ela aceitasse ser a mãe de Jesus, o Filho de Deus. A Virgem aceitou a proposta, e o Filho de Deus se fez homem. Sabes em que dia celebramos a festa da Anunciação?... Bem, em 25 de março. E sabes quando nasceu Jesus em Belém? Claro, no dia de Natal, ou seja, em 25 de dezembro. E quantos meses há de março a dezembro? Pois durante esses nove meses Jesus esteve no seio da Virgem, o mesmo que tu estiveste no meu, e todas as crianças dentro de suas mamães. Por isso todas as mães querem tanto a

seus lhos, e os lhos que sabem dessas coisas querem ainda mais a suas mamães, não é verdade, meu lho? E mais, vou te dizer outra coisa muito bonita para que também queiras bem ao papai. Foi o papai quem pôs essa pequena semente em meu corpo, por isso ele me ama muito, e eu o amo. Como nos amávamos quando éramos jovens, nos casamos para viver juntos e trabalhar para ti e teus irmãozinhos, e Deus nos ajuda com a graça do sacramento que se chama Matrimônio. Agora sabes de mais uma coisa, um segredo muito bonito, tão bonito que não se deve falar sobre ele com outras crianças, para que elas também perguntem a suas mães, pois elas é que sabem contar melhor essas coisas. Ah! e não te esqueças de que quando quiseres perguntar mais coisas, deves fazer como hoje, e eu te explicarei tudo. 6. Conversa da mãe com sua lha adolescente 513. Tu estás muito mudada; mais que uma menina, estás parecendo uma mulherzinha, e como está acontecendo em ti uma transformação, quero falar-te um pouquinho sobre tudo isso que te parece um pouco misterioso. ) . Em teu interior vai ser notada uma inquietação, um desassossego, alguma coisa que irá acompanhando uma perda de sangue que vai sair para o exterior, não pelo nariz como em outras ocasiões, mas por tuas partes genitais, pela vagina. Quando isso acontecer, não deves assustarte, como não te assustas quando sangra o teu nariz. E mais, deves alegrar-te, pois é o sinal de que começas a ser mulher. Deus dispôs o organismo da mulher de uma maneira maravilhosa; e como em seu interior vai ser formado o lho, ele preparou um ninho, que é o útero, e uma fonte de vida, que são os ovários. Cada mês, mais ou menos, amadurece um óvulo que, não sendo fecundado, é expulso com certa quantidade de sangue pela vagina, que é a saída do útero, diferente, é claro, da saída da bexiga. Ao contrário, se o

óvulo é fecundado, ele permanece no útero e ali passa nove meses até que esteja preparado para viver fora dele, e também terá de sair por esse orifício da vagina, que se dilata admiravelmente; mas, apesar disso, faz a mãe sofrer bastante. Nos dias em que expulsas esse sangue, vais sentir-te incomodada e cansada, a cabeça vai doer, haverá certo mal-estar em ti sem saber por quê. Não deves preocupar-te demasiado nem car se queixando; o que deves fazer é dizê-lo a mim e seguir os conselhos que te dei. Eu sei que, agora, te ocorre outra pergunta, não é? Comigo aconteceu o mesmo quando eu era como tu, e também minha mãe me explicou sem que eu lhe tivesse perguntado. É natural que tenhas curiosidade em saber como o óvulo pode ser fecundado, ou seja, o primeiro passo para que se possa formar um lho dentro de ti. O óvulo feminino só pode ser fecundado por um germe ou semente vital que se forma no corpo do homem, e que este transmite para sua esposa. Para conseguir isto, o homem deve fazer penetrar o membro viril na vagina da mulher,524 e nesse momento ca depositada nela a semente; e se há então um óvulo maduro, ele ca fecundado, e Deus imediatamente cria uma alma: começa uma nova vida. No primeiro contato deste tipo com um jovem, rasga-se o véu ou membrana que cobre quase por completo a entrada da vagina, e a isso se chama perder a virgindade. Na Virgem, não se rasgou essa membrana ao ser concebido o Menino Jesus, porque isso foi feito milagrosamente e sem contato com homem algum, e ele tampouco se rasgou ao nascer Jesus, porque Deus fez o milagre de que ele atravessasse o corpo da Virgem, assim como podia, depois de ressuscitado, atravessar paredes muito mais fortes. Agora entenderás melhor por que disseram a Jesus: “Bem-aventurado o ventre que te trouxe e os peitos que te amamentaram”, não é verdade? E a este respeito, deves cuidar também de teus peitos, que são um adorno no corpo feminino, mas deves olhá-los como a

fonte em que teus lhos irão alimentar-se. Deves cuidar deles, cobri-los com respeito e fazer com que os outros os respeitem como fonte de vida. Sendo tão bela a missão que devem desempenhar na vida de toda mulher, é muito feio fazer brincadeiras e dizer bobagens sobre o assunto. ) . Nesta idade, também perdem interesse para ti muitas de tuas brincadeiras e muitos costumes de tua infância. Tu te tornas mais retraída e concentrada. Quando os garotos te encaram, cas vermelha. E acontece que queres que eles te olhem. Os rapazes te agradam, esta é a verdade, e a presença deles se re ete em teu corpo com uma sensação estranha, sensação que se localiza nas zonas sexuais de teu corpo. Sentir essas sensações não é nenhum pecado. Pecado seria profanar teu corpo com toques indecorosos ou procurar um relacionamento demasiado íntimo com rapazes de tua idade. Pecado seria excitarte com imaginações sexuais. Não deves preocupar-te com essas novas impressões, nem tampouco começar a relacionar-te com rapazes pelo fato de começares a te sentir mulher. Terás tempo para isso mais tarde. Como vês, tudo isso é maravilhoso, encantador, mas tão delicado, que não é conveniente falar sobre isso nem mesmo com as amigas. Se te acontecerem mais coisas, fala comigo; já sabes que eu gosto de dizer-te tudo. 7. Conversa do pai com seu lho adolescente 514. Tu estás te tornando um homenzinho, e por isso quero continuar a conversa que mamãe teve contigo quando ela te disse que as crianças não vinham de Paris, mas que se formavam no seio ou ventre da mãe. Agora, tenho a certeza de que te interessa, mais do que saber coisas sobre as crianças, saber a teu respeito; é natural. Buscas

explicação para muitos problemas que se apresentaram a ti quase sem perceberes, e que podemos reduzir a dois: o crescimento de teu corpo e o afeto que sentes pelas meninas. ) . Estás começando a ser um homem: tua voz está diferente, em teu rosto aparece essa penugem que quer ser barba; em tuas partes genitais começas a notar sensações raras que às vezes te agradam e outras te incomodam. Há momentos em que, ao se encherem de sangue as artérias de teu membro viril, notas uma sensação estranha que depois desaparece por si mesma. Há outro fenômeno que vai surgir no dia em que menos pensas. Talvez no meio de um sonho, em que te vês cercado de pessoas de outro sexo ou em que te sentes oprimido pelo medo, vai brotar de teu membro viril um líquido que nada tem a ver com a urina. Trata-se daquilo que se chama de polução noturna, e além de servir para indicar que já és um homenzinho, tem uma explicação siológica: trata-se da eliminação do supér uo das secreções sexuais elaboradas pelos testículos. O fenômeno se repete com certa freqüência (de duas a quatro semanas), e não é pecado. Isto quer dizer que deves olhar com respeito os teus órgãos genitais. Graças a eles és um homem e um dia poderás ser pai. Porém, enquanto não chega esta ocasião, que será depois de casarte, deves vigiar e não profanar o teu corpo, pensando já naquela que vai ser tua esposa, que tem direito de exigir de ti uma conduta semelhante à que deves exigir dela, e pensando também nas conseqüências que os abusos podem trazer para vossos lhos. Nunca dês atenção aos amiguinhos que te aconselham procurar prazeres em teu corpo ou no relacionamento com as garotas. Não são bons conselheiros os que falam nesse sentido. Sê sempre respeitoso em relação a teu corpo, mas sobretudo nos jogos, nas diversões, no banho...

) . As garotas de tua idade começam a preocupar-te. Queres estar ao lado delas e divertir-te em sua companhia; até mesmo te sentes orgulhoso quando tens a oportunidade de defender ou ajudar alguma delas. Na presença delas te sentes mais corajoso. Agradate ter sucesso entre elas. Alguma delas te parece mais atraente e simpática. Em uma palavra, te sentes homem diante delas, não homem com uma ânsia de sensualidade, mas com a impressão de quem ama e protege. Não te preocupes. Mas não andes depressa. Atravessas um terreno difícil: por isso, calma, devagar, prudência! Acredito que tudo isto te terá dado uma idéia de tua virilidade e da feminilidade das garotas. Não faças dessas coisas tão íntimas e sugestivas um assunto de conversa com teus amigos. São coisas demasiado sérias para falar de qualquer modo sobre elas. Fala comigo o quanto quiseres; já comprovaste que não guardo segredos para ti, e quero ser o teu melhor amigo, o amigo a quem deves recorrer em primeiro lugar quando quiseres saber mais coisas. Resumindo: toda iniciação deve incluir estas condições: a) Procurar o momento oportuno. b) Ser afetuosa. c) Inspirar respeito pelo próprio corpo. d) Aconselhar que se guarde segredo e não falar com outros. e) Deixar o caminho aberto para perguntas ulteriores.

Artigo 5 — Educação social

O caráter eminentemente social e comunitário de nossa época exige uma mudança radical na educação dos lhos. Se a pedagogia quer ser e caz e ajudar a criança, o adolescente e o jovem nas tarefas do mundo atual, deve deixar de lado o caráter individualista e burguês que até agora a dominava. 515. 1. Doutrina da Igreja. A Igreja insistiu repetidas vezes — sobretudo nos últimos tempos — na necessidade da educação social da pessoa humana, iniciada em suas primeiras manifestações no próprio seio do lar e desde os anos da infância. Eis alguns textos modernos inteiramente claros e explícitos: a) João xxiii. Em sua magní ca Encíclica Mater et Magistra, ele diz expressamente o seguinte: “Uma doutrina social não se enuncia apenas; aplica-se na prática, em termos concretos. Isto vale sobretudo quando se trata da doutrina social cristã, cuja luz é a verdade, cujo m é a justiça e cuja força dinâmica é o amor” (nº 225). “Relembramos, pois, a necessidade de os nossos lhos não receberem apenas instrução social, mas também educação social” (nº 226). “A educação cristã deve ser integral; quer dizer, deve compreender a totalidade dos deveres. Ela deverá, pois, fazer nascer e forti car nas almas a consciência de terem de exercer cristãmente as atividades de natureza econômica e social” (nº 228). “A passagem da teoria à prática é difícil por natureza, e o é principalmente quando se trata de reduzir a termos concretos uma doutrina social como a da Igreja Católica. A di culdade vem do egoísmo profundamente enraizado no ser humano, do materialismo que impregna a sociedade moderna, da di culdade em reconhecer, com clareza e exatidão, as exigências objetivas da justiça, em cada um dos casos particulares” (nº 229). “Por isso, não basta fazer despertar e formar a consciência da obrigação de proceder cristãmente no campo econômico e social. A educação deve pretender também ensinar o método que torne possível o cumprimento desta obrigação” (nº 230).

b) Paulo vi. Em carta dirigida em seu nome pelo Cardeal Cicognani à Semana Social da Espanha, celebrada em Oviedo, em 1963, ele diz o seguinte: A educação social é tarefa de todos aqueles que na sociedade contribuem de algum modo para o sublime trabalho de formar os homens, e deve ser realizada em todos os níveis de idade, condição e sexo, porque ela é parte integrante da vida cristã. Por isso,

os primeiros elementos dessa educação devem ser proporcionados na família, fundamento indispensável de toda formação, inclusive no campo da orientação social e das virtudes cívicas. No âmbito familiar, interessa acima de tudo o exemplo e o espírito de sacrifício por parte dos pais, sua honestidade e generosidade para com os demais. Igualmente, e de acordo com o princípio de participação ativa na convivência humana, é preciso interessar prudentemente os jovens pelas condições de vida de seus próximos.

c) Concílio Vaticano ii. Já vimos, no começo deste capítulo, que ele diz expressamente em sua Declaração sobre a Educação Cristã da Juventude: Além disso, de tal modo se preparem para tomar parte na vida social que, devidamente munidos dos instrumentos necessários e oportunos, sejam capazes de inserir-se ativamente nos vários agrupamentos da comunidade humana, se abram ao diálogo com os outros e se esforcem de boa vontade por cooperar no bem comum (nº 1).

516. 2. Normas práticas. A seguir, expomos de forma esquemática alguns princípios fundamentais que devem estar sempre em vista para iniciar os pequenos e os adolescentes na vida social desde o próprio seio do lar.525 i. Formação social da criança a) Infância e crise de amadurecimento 1. Tão logo nasce a criança, os pais a protegem, interpõem-se entre ela e o mundo exterior. A atenção e o amor paternos dão-lhe consciência desse amparo. À proteção exterior se une a própria psicologia da criança. 2. Nesta proteção ela cresce, desenvolve-se e encontra sua iniciativa. A mãe demasiado maternal e o pai autoritário põem a criança em perigo de adquirir nessa idade uma atitude infantil para o resto da vida. 3. Aqui começa a educação social: desenvolvendo a própria iniciativa e estimulando-a para ela, rompendo suavemente a proteção em que a criança se desenvolve.

4. A crise da puberdade abre caminho ao jovem. A criança se transforma, reduz-se a proteção anímica, o abrigo dos pais e do lar. Surgem os primeiros contatos com pessoas e coisas. In uem nesta evolução as condições econômicas e sociais. A meta é distinguir-se dos demais, como “eu mesmo”, ser pessoa livre e responsável. b) Elementos que integram a socialização neste período 1. Em harmonia com a psicologia, atua a educação social. Os agentes desta última são: família, escola, companheiros, Igreja, Estado, organizações juvenis, meios de comunicação (cinema, rádio, imprensa...). 2. À experiência da criança em contato com o que a rodeia juntam-se as primeiras relações sociais, que abrem sua capacidade social e integram seus interesses nos da sociedade. 3. O amor, o trabalho, o exercício da pro ssão e a colaboração na família são elementos igualmente primários na educação social. 4. Por ser um processo em harmonia com a psicologia, deve ser construtivo, com um método didático em que a criança aprenda livremente as relações sociais. O método de prêmio ou castigo é geralmente indesejável. 5. A experiência imediata da criança é outro método de aprendizagem social. A criança imita as pessoas que têm experiência e poder. À imitação segue-se a identi cação com suas idéias e valores. ii. A família e a escola, meios de educação social a) Na intimidade da família e na escola

1. A criança aprende a ser lho, irmão e pessoa adulta. Adquire o sentido de seus direitos, deveres e valores. A colaboração escolar lhe dá responsabilidade, convivência, noção da divisão do trabalho e da propriedade. 2. O combate do egoísmo se realiza na família e na escola, evitando o amor excessivo ao próprio bem-estar. A educação no uso do dinheiro cabe à família, mostrando que a origem da fortuna é em grande parte social. 3. A criança reconhece o valor social da autoridade, mas rejeita as atitudes autoritárias. A educação social da criança — que depois será um homem livre e responsável — exige a prática racional da autoridade. b) Nas relações família-sociedade 1. Na família aberta ao social, a criança adquire o sentido social de seus atos, da iniciativa privada, do trabalho e da propriedade. 2. Consegue as primeiras noções de justiça social ao se encontrar com um mundo em que todos têm os seus direitos. Começa a tomar consciência de seus direitos como ponto de partida para o respeito aos direitos dos outros. 3. Tem a possibilidade de formar grupos, conhecer interesses e valores sociais, participar das exigências do bem comum, desenvolver-se como elemento ativo no meio social. 4. A escola e a família a preparam para a escolha da pro ssão. Nesta escolha, o educador orienta, sugere, descobre valores, mas não impõe. O lho escolherá segundo suas atitudes, porque tem um m e valores próprios. 5. A educação cívica, a participação na vida política e no exercício dos deveres eleitorais são adquiridas pela criança na família.

iii. Educação social da juventude a) Formação social da jovem 1. Formação para o lar: a) Domínio técnico, inteligente e prático das tarefas domésticas. b) Aceitação do futuro esposo como chefe da família, capacidade para coordenar a vida familiar e intuição na educação dos lhos. 2. Promoção social: a) Critério e juízo que implicam conhecimento das soluções que o cristianismo dá aos problemas da vida, energia de caráter, rmeza, justiça e desejos de liberdade e responsabilidade. b) Orientação pro ssional, com iniciação polivalente e uma determinação posterior.

e

orientação

b) Educação social do jovem 1. O jovem retamente educado na infância deve possuir: apoio em seu próprio “eu”, iniciativa, segurança, conhecimento de suas possibilidades, incorporação à família como unidade social primária e, através dela, à Igreja e ao Estado. 2. Este é um período — dos catorze aos vinte e cinco anos — de tensões e incertezas. O lho deve chegar a ele com valores sociais: sinceridade, ordem, trabalho... conhecimento dos direitos e deveres pessoais e alheios. 3. Começa o amadurecimento social, em que à falta de experiência e de capacidade de juízo se unem a expressão emocional, a decisão pela escolha da mulher a quem entregar sua pessoa, a luta pela realização concreta do ideal.

4. Este período requer a in uência de um lar sadio, con ança dos pais, direção espiritual, dando ao jovem um caráter forte e uma vida reta. 5. Por outro lado, requer autoridade apoiada em bases racionais, supervisão por parte do educador dos grupos sociais, clubes, organizações... nos quais o jovem desenvolve o espírito de direção, cooperação... 6. Dar ao jovem a possibilidade de dirigir sua própria conduta conforme a moral e o interesse da sociedade. Fortalecer suas faculdades intelectuais e volitivas até o momento da maturidade moral e social. Conclusão A educação social, como concretiza-se principalmente no seguinte:

processo

dinâmico,

1. Abertura ao social em harmonia com a psicologia profunda da criança e do jovem. 2. Formação pro ssional ou acesso a níveis técnicos superiores; inserção no mundo do trabalho, como conseqüência lógica da etapa meramente educacional. 3. Plena integração do jovem na sociedade histórico-política, com o desabrochar de todos os seus valores pessoais: religiosos, intelectuais... 4. Conhecimento apropriado da doutrina social da Igreja e ânimo decidido para pô-la em prática por todos os meios a seu alcance.

Artigo 6 — Educação religiosa

517. Chegamos ao ponto culminante dos diferentes aspectos que a educação dos lhos apresenta: sua educação religiosa. Sem desvalorizar nenhum dos demais aspectos — alguns dos quais estão intimamente relacionados com a educação religiosa, preparando-a ou completando-a — esta última ocupa, sem nenhuma dúvida, o primeiro lugar em toda a educação cristã, pois valeria muito pouco assegurar aos lhos o seu futuro e bem-estar temporais se não nos preocupássemos antes de tudo em assegurarlhes seu futuro e bem-estar eternos. A nal de contas, nunca devemos nos esquecer de que o homem não nasceu para este mundo, mas para o outro; não para o tempo, mas para a eternidade. O panorama que abre diante de nossos olhos a educação religiosa dos lhos é imenso e assustador. É impossível abordá-lo com a extensão que merece: será forçoso contentar-nos com algumas indicações sumárias, mas su cientes para iniciar os primeiros passos no seio do lar. 518. 1. Doutrina de Pio xii. Comecemos por reunir o índice esquemático de algumas idéias de Pio em seus famosos discursos aos recém-casados. Cada uma destas idéias é desenvolvida pelo imortal pontí ce no discurso correspondente, que é preciso ler e meditar na íntegra:526 É preciso ver nos lhos não somente o corpo, mas a alma, con ada em depósito aos pais, aos quais eles devem assemelhar-se tanto nos traços e virtudes da alma quanto nos do corpo. É preciso educar os lhos nos ensinamentos do Senhor e fazê-los crescer em seu temor e amor, guardando-os para o céu. O reino dos céus é das crianças. Ordinariamente, é impossível que os lhos cresçam como cristãos fora de um lar em que os pais estejam unidos pelo sacramento do Matrimônio. Uma educação viciada ou defeituosa em seus começos pode exercer sobre a fé uma in uência posterior. Assim, por exemplo, o ódio de Saulo aos cristãos era efeito da ignorância e da educação recebida. O primeiro dever dos pais é procurar o quanto antes o Batismo para seus lhos. Não transmitir para eles apenas um sangue puro, mas uma fé incontaminada. Inspirar neles uma estima sobrenatural por sua liação divina, uma nobreza hereditária.

Fazê-los crescer na virtude é a base da felicidade do lar. Preservá-los daquilo que colocaria em perigo sua honestidade ou sua fé. A religião é o primeiro fundamento da educação. Um grande meio de educação é a devoção à Virgem e à Eucaristia, que, administrada em idade precoce, é a melhor salvaguarda da educação dos lhos. Se não se oferece a eles o alimento da palavra divina, decairão no caminho da virtude. São Luís Gonzaga é um bom modelo da juventude. Sua mãe é um bom exemplo de como a mãe pode cooperar para a santidade dos lhos, assim como a mãe de Dom Bosco, “mamãe Margarida”, é um excelente modelo de educadora e mãe. Também foi um grande educador o próprio Dom Bosco. Se o lho se desencaminha, é preciso trazê-lo de volta ao bom caminho com as lágrimas da mãe. Não é possível que pereça o lho de tantas lágrimas.

O imortal Pontí ce Pio vai até aqui. Em outra de nossas obras publicadas nesta mesma coleção da , escrevemos o seguinte a propósito da formação religiosa dos lhos:527 519. 2. Formação religiosa dos lhos. A criança tem direito ao desenvolvimento de sua vida sobrenatural, que será conseguida pela progressiva intimidade com Deus. A vida divina, depositada em germe na alma da criança pelo sacramento do Batismo, necessita, para expandir-se, das luzes da fé, da prática da caridade e do apoio dos sacramentos (Con rmação, Penitência, e Eucaristia). Esta formação sobrenatural é o complemento indispensável da formação intelectual e moral, a m de que a criança possa, ao longo de toda a sua vida terrestre, tender para seu m último e para a felicidade eterna. Os primeiros ensinamentos religiosos devem ser dados, antes de tudo, no próprio seio do lar. É impossível que a fé do Batismo seja deixada em letargia ou adormecida durante longo tempo sem que se produza fatalmente na criança uma redução de seu senso religioso. Existem bras religiosas que jamais vibrarão caso se deixem atro ar na infância. Por isso a Igreja, que sabe muito bem disso e tem direitos particularíssimos à formação religiosa das crianças incorporadas a ela pelo Batismo, pede aos pais que lhe

con em seus lhos (catequese, colégios religiosos, etc.) para, depois, devolvê-los como homens e cristãos melhores. Esta formação espiritual ou religiosa deve envolver, para ser completa, seis pontos principais: ) . Os pais estão gravemente obrigados a ensinar seus lhos, pessoalmente ou por meio de outros, a doutrina católica acerca das coisas necessárias para a salvação e as orações fundamentais que todo cristão deve rezar. Este ensino rudimentar deverá ser ampliado cada vez mais à medida que a criança se vá desenvolvendo. ) . Acima de tudo, os pais devem batizar seus lhos o quanto antes — se possível, no mesmo dia de seu nascimento — para que recebam em seguida a graça de Deus e o germe de todas as virtudes infusas. É um grave abuso retardar o Batismo por fúteis pretextos humanos ou conveniências sociais, e seria gravíssimo pecado se a criança estivesse em perigo de morrer sem ele. Tão logo a criança vá abrindo os olhos para a realidade da vida, seus pais devem infundir-lhe o amor a Deus, ao Menino Jesus, à Virgem Maria, à Igreja, aos sacerdotes, aos pobres e necessitados. Precisam ensiná-la a rezar as orações da manhã e da noite, a abençoar a mesa, a fazer o sinal da cruz ao sair de casa, a beijar a mão do sacerdote, a descobrir-se ao passar diante de uma igreja, etc. Procurarão que ela receba em idade precoce — nunca depois dos sete anos — a Primeira Comunhão, e, uma vez recebida, que confesse e comungue com freqüência, fazendo isto devota e espontaneamente, sem qualquer coação por parte de ninguém. Exortem-na com discrição e suavidade a fugir das más companhias, das leituras ou espetáculos perniciosos, e a não se

deixar seduzir por companheiros pervertidos que possa encontrar na escola ou na rua. Inculquem nela a prática das virtudes cristãs, sobretudo aquelas mais adequadas à sua idade e condição: piedade, obediência, caridade, justiça, sinceridade, pureza, mansidão, etc. ) . É importantíssimo e insubstituível. Os pais e educadores nunca se esqueçam de que “as palavras movem, mas os exemplos arrastam”. Uma criança pequena dizia certa vez para sua irmãzinha: “Quando nós formos maiores, faremos como papai e mamãe: tu irás rezar na igreja, e eu irei ao cassino para jogar com os amigos” (histórico). Evitem tudo que possa escandalizar as crianças (conversas inconvenientes, brigas, imprecações, mentiras, etc.) e se esforcem em lhes proporcionar todo tipo de bons exemplos: de piedade, honradez, mansidão, caridade, etc. Este é um dos deveres mais graves dos pais, do qual terão de prestar estrita conta a Deus. 520. 3. Oferecer os lhos a Deus. São Francisco de Sales escreve, com seu estilo cheio de suavidade e ternura, os seguintes e admiráveis conselhos:528 Santa Mônica, quando ainda não havia dado à luz o grande Santo Agostinho, ofereceuo muitas vezes à religião cristã e ao serviço de Deus, coisa que ele mesmo testemunha, quando assegura que desde então “provou o sal de Deus estando no ventre de sua mãe”. Bom exemplo este de as mães cristãs oferecerem à Divina Majestade o fruto de seu ventre antes de ter nascido, pois Deus aceita as oblações de um coração humilde, e ordinariamente atende aos bons exemplos das mães nesse tempo, como atestam Samuel, Santo Tomás de Aquino, Santo André de Fiésole e muitos outros. A mãe de São Bernardo — mãe digna de tal lho —, tão logo seus lhos haviam nascido, tomava-os nos braços e os oferecia a Jesus Cristo, e desde então amava-os com grande respeito, como coisas sagradas que Deus lhe havia con ado; esta prática deu tão bom resultado, que os sete lhos foram muito santos. Quando os lhos começam a ter o uso da razão, os pais devem procurar infundir neles o santo temor de Deus. A ilustre Rainha Branca de Castela cumpriu admiravelmente esse dever com seu lho São Luís, ao qual dizia freqüentemente: “Meu querido lho, eu preferia ver-te morto diante de meus olhos antes que cometesses um só pecado mortal”. E isto cou tão gravado no ânimo do monarca, que, como ele mesmo dizia, não passou um único dia em sua vida sem

dedicar todo o seu empenho em cumprir o conselho de sua mãe. Em nossa língua, é costume chamar de casas as famílias e as linhagens; os próprios hebreus chamam sua descendência de edifícios; neste sentido, costuma-se dizer que Deus ergueu edifícios para as sábias mulheres do Egito, querendo dar a entender que edi car uma boa casa não consiste em dotá-la de todo tipo de comodidades mundanas, mas em educar os lhos no temor de Deus e na virtude; para isso não se devem economizar trabalhos nem sofrimentos, pois os lhos são a coroa de seus pais. Santa Mônica combateu com tanto denodo e constância as más inclinações de Santo Agostinho, que, tendo-o seguido por terra e mar, conseguiu que ele fosse mais ditosamente um lho de suas lágrimas, mediante a conversão de sua alma, do que fruto de seu sangue, mediante a geração do corpo. São Paulo recomenda de maneira particular o cuidado da casa à mulher; por isso muitos seguem essa opinião tão profunda, assegurando que a devoção da mãe é mais frutuosa para os lhos que a do esposo; este, como costuma viver menos a vida do lar, não pode dedicar-se tão facilmente a encaminhá-los nas sendas da virtude. Em seus Provérbios, Salomão faz depender o temor de Deus reinante em cada casa do cuidado e atuação da mulher forte por ele descrita (Pr 31, 10–31).

São Francisco de Sales vai até aqui. São muito dignas de atenção suas últimas palavras, relativas à importância da intervenção da mãe na educação religiosa de seus lhos. O pai deve colaborar, indubitavelmente, com seus conselhos e, acima de tudo, com o próprio exemplo de sua vida pessoal autenticamente religiosa; mas é a mãe, sem dúvida alguma, aquela que, no seio do lar, irá desempenhar o suave e profundo trabalho da educação religiosa de seus lhos.

QUARTA SEÇÃO | O LAR CRISTÃO 521. Depois de ter falado sobre a grandeza e a santidade da família cristã, de ter examinado um a um os diferentes membros que a compõem e ter estudado amplamente o grande problema da educação cristã dos lhos, agora, nalmente, lançaremos um olhar

cheio de ternura sobre o próprio lar onde se desenvolve a vida familiar. Dividiremos nossa exposição nos seguintes capítulos: 1. O lar, marco natural da família. 2. A piedade familiar. 3. Nazaré, o lar ideal.

CAPÍTULO I | O lar, marco natural da família Em primeiro lugar, exporemos de forma esquemática os aspectos fundamentais do lar como marco natural da família.529 Depois, a palavra orientadora de Pio irá aprimorar magistralmente as idéias mais importantes.

1. Aspectos fundamentais do lar Um dos ideais mais nobres é fundar um lar — um lar cristão que seja um ninho de felicidade e santidade cristã. Aquele que viveu em um lar frio recebeu um terrível impacto em sua formação, que normalmente tem conseqüências fatais.

A casa é o pequeno reino da família, dentro do qual o homem se sente rei, já que no lar existe autoridade, súditos e uma ordem segundo a qual deve ser governado. i. Três aspectos do lar a) O lar material 1. A casa é um edifício, mais ou menos bem acondicionado, onde a família se reúne e passa grande parte da vida; onde se é defendido das inclemências do tempo e das interferências estranhas. 2. Ter uma casa própria, mesmo que seja pobre — ter um teto sob o qual se refugiar é o menor dos sonhos humanos, ao mesmo tempo que a maior aspiração. 3. A casa é o cantinho do mundo mais querido do coração humano; mais querido que a pátria e qualquer outro lugar. b) O lar espiritual 1. O lar não é somente a casa, mesmo que esteja muito bem mobiliada. A casa e os móveis são um corpo sem alma. 2. A alma da casa é feita de cenas familiares: a) Os acontecimentos alegres (o nascimento de um lho, a Primeira Comunhão, e sobretudo as horas de intimidade ali vividas entre pais e lhos). b) Também os acontecimentos tristes (fracassos, perseguições, enfermidades e morte de algum membro) constituem a alma de um lar. 3. O lar, centro educativo:

a) Educar é tarefa difícil, porque o educando não é matéria inerte que se pode modelar ao gosto, mas uma pessoa racional e livre que se deve respeitar. b) São muitos aqueles que descarregam este trabalho sobre a mulher, sem levar em conta que a colaboração dos esposos é imprescindível para realizar uma educação completa. c) Para conseguir uma educação sadia, os obstáculos a evitar são estes: descon ança, disparidade de critérios entre ambos os cônjuges, ausência de convicções sólidas, sentimentalismo... d) As qualidades a serem imprimidas devem ser: que a educação seja pessoal, individual, não-gregária, e que seja integral e sólida, dando uma formação para viver uma vida social e cristã com dignidade. c) O lar, templo 1. O lar tem algo de sagrado. Por isso pode ser chamado de templo, porque no lar, como no templo, Deus se faz sentir de maneira especial. 2. O centro do templo é o altar, para onde tudo converge. Nos altares se renova a cada dia o sacrifício da Cruz. a) Também no lar existem altares: são os corações daqueles que formam a família. Neste altar do coração se oferecem sacrifícios a cada dia: aqueles que o cumprimento do dever impõe a cada um. b) Sacrifícios contínuos: mútua compreensão, tolerância dos defeitos, trabalhos exigidos pela educação; nos lhos, a obediência... 3. No templo há confessionários: por mais boa vontade que tenha o homem, algumas vezes ele ofende a Deus.

a) Na vida de família, mesmo que todos tenham uma vontade excelente, haverá alguma ofensa, algo que desagrade aos outros. b) Se há uma con ssão sincera e sinais de arrependimento, deverá haver perdão e esquecimento generoso, como é o de Deus. 4. No templo existe pregação: a) Também no lar devem pregar aqueles que estão constituídos em autoridade para isso, ou seja, os pais. b) A pregação mais eloqüente é o exemplo. Depois virão os conselhos, comentários, lições de experiência, elogios e repreensões... 5. No templo se dá culto a Deus: a) Também no lar: ali o coração do homem dirige a Deus as primeiras adorações e aprende a louvar e servir a Deus. b) E, para que o lar se pareça mais com o templo, tampouco deve faltar a presença real de Jesus por meio da freqüente recepção dos sacramentos. ii. Os pilares fudamentais do lar a) O pai, rei do lar 1. Paternidade: a) No lar, o pai é participante do poder criador de Deus. Isto constitui a grande dignidade do pai. b) O pai é participante do poder conservador de Deus, que não abandona as coisas que criou do nada; algo semelhante deve fazer o pai com o lho, proporcionando-lhe os meios de subsistência e desenvolvimento.

2. Dignidade do pai: a) Dentro do lar, o pai tem alguma coisa de rei. A ele pertence o governo da família. b) Acima do pai terreno está o Pai celestial, de quem descende toda paternidade. Ali Deus tem o seu trono. c) O pai não é mais que um representante de Deus, um delegado que terá de prestar contas de seu ofício e receberá a recompensa merecida. d) Dentro do lar, o pai tem algo de sacerdote. Assim como o sacerdote, ele é o intermediário que recolhe as súplicas da família para apresentá-las a Deus e atrair suas graças. 3. Autoridade do esposo: a) Em toda sociedade, a hierarquia é a base da ordem, e, por conseguinte, da paz, que é fruto de uma ordem e exige unidade de mando. O chefe da família é o pai, que tem autoridade sobre a esposa: “Não foi criado o homem da mulher, mas a mulher do homem” (1Cor 11, 9). b) É necessário que na família oresça aquilo que Santo Agostinho chamava de “hierarquia do amor”, que envolve tanto a primazia do varão sobre a mulher como também a de ambos sobre os lhos. c) Em algumas coisas, os direitos dos esposos são iguais. Assim, a delidade conjugal obriga ambos igualmente, já que eles têm a mesma dignidade e os mesmos direitos como pessoas. d) O campo da autoridade do esposo no lar é o bem-estar da família. Por isso tem direito de ordenar aquilo que julga necessário para conseguir esse bem comum.

b) A mãe, rainha do lar 1. A mãe é a principal colaboradora de Deus para trazer os lhos à existência; sua intervenção é maior que a do pai. 2. A mãe é a rainha do lar. Deus lhe preparou um trono no interior deste, e lhe deu sobre os lhos direitos semelhantes aos do pai. A mãe tem direitos para reinar sobre seus lhos, mas seu reinado tem um caráter peculiar: é um reinado de amor. “O pai tem o principado do governo; a mãe, o principado do amor” (Casti connubii). 3. O amor materno é o que mais se assemelha ao amor de Deus. É um amor sem egoísmo. Ama seu lho mesmo que este não corresponda a seu amor. A mãe reina nos corações de seus lhos, e reina mesmo depois da morte. 4. O esposo, fatigado pelo trabalho, regressa ao lar em busca de paz e relaxamento. Contudo, não procura apenas um lar acolhedor, mas alguém que saiba escutá-lo e compreendê-lo: a mulher. Por isso ela deve elevar-se — na medida do possível — ao nível cultural de seu marido. Tomar interesse por sua carreira, seus negócios, suas ocupações; e alegrar seus ócios com a delicadeza de seu engenho e de seu amor. 5. A mulher nunca deve esquecer que, além de rainha, ela é a alegria e o encanto do lar. O esposo e os lhos devem encontrar no lar — graças a ela — o lugar mais agradável e acolhedor.

2. Doutrina de Pio xii sobre o lar 522. Para completar esta rápida e sintética visão de conjunto, ouçamos algumas belíssimas idéias de Pio sobre o lar em seus

famosos discursos aos recém-casados: 1. Diversos signi cados da palavra “lar”530 523. O lar! Quantas vezes, sobretudo desde que vós pensastes nas bodas, desde o tempo de vosso noivado, amados recém-casados, tendes escutado ressoar em vossos ouvidos esta palavra entre o coro dos parabéns e felicitações de vossos parentes e amigos! Quantas vezes subiu espontaneamente de vosso coração aos vossos lábios! Quantas vezes ela vos encheu de uma inefável doçura, resumindo em si mesma todo um sonho, todo um ideal, toda uma vida! Palavra de amor, palavra de encanto que todas as almas boas compreendem e ouvem com prazer, ou porque saboreiam sua atual intimidade, ou porque pensam nela com dor à distância, na ausência, no cativeiro, ou ainda porque conservam alegremente a esperança de um pronto regresso! Entretanto, pode ser que esse mesmo encanto leve facilmente a uma concepção vaga do lar, como envolvido em uma nuvem de rosa e ouro. Por isso mesmo, nesta manhã gostaríamos de vos levar a aprofundar mais em seu signi cado. Isto não roubará nada de sua poesia, mas manifestará melhor sua beleza, sua grandeza, sua fecundidade. 1. O lar diz muito, e pode referir-se a muitas e variadas coisas. Assim é chamada a casa em que nascemos: o lar paterno, conjugal, doméstico, ou também, em sentido lato, o lar do estudante, do artista, do soldado. Existem também lares de estudo, de ciência, de oração, de ação, de apostolado. Na ordem material, ali tendes a lareira ou o fogão com fogo verdadeiro, a que se recorre para se aquecer ou para cozinhar os alimentos; o lar dos fornos para fabricação do ferro e outros metais; o lar da caldeira de vapor, que dá à máquina a sua força motriz. O médico não consegue descobrir em seu paciente o foco de infecção que põe sua vida em perigo, ou o foco epidêmico, quando uma enfermidade ataca ao mesmo tempo várias pessoas da mesma residência ou do mesmo bairro? A Antigüidade pagã considerava sagrado o culto do lar doméstico, cuja deusa era Héstia, e enaltecia o heroísmo daqueles forçados das galeras que combatiam por seus altares e seus lares: Pro aris et focis.531 Não é derivado do mesmo vocábulo focus [em latim, fogo] o termo “foco” da lente e do espelho, que é o ponto em que con uem os raios refrangidos ou re etidos? Todas estas acepções e estes sentidos devem ter como base algo comum que justi que o apelativo. A lenda — não queremos chamá-la de história — narra que, no cerco de Siracusa, o grande Arquimedes serviu-se de potentes espelhos côncavos para incendiar à distância a frota de Marcelo. Sem recorrer a semelhantes exemplos, não terá acontecido convosco alguma vez, entre as brincadeiras de vossa infância, atear fogo, com uma lente colocada no ponto exato, a alguns pedaços de papel ou um pouco de estopa? Os raios do sol convergem para um ponto xo para se desviarem em seguida, espalhando-se de novo com uma intensidade de calor e de luz consideravelmente aumentada, como se esse ponto, esse “foco”, fosse por sua vez um pequeno sol. Este é o lar em qualquer das ordens a que se aplique este nome: o ponto onde tudo se concentra, para irradiar-se novamente.

2. O lar de que queremos falar agora é o da família que haveis fundado e acendido com vosso matrimônio. Porém, para merecer o elogio deste belo nome, é preciso que ele cumpra uma dupla condição: a de concentrar e a de irradiar calor e luz. Por acaso constituem um lar os jovens esposos cujo prazer consiste em sair de casa o mais possível, e só têm bom humor em festas, visitas de amigos, viagens de temporadas de férias e espetáculos mundanos? Não. Não é um lar a moradia descuidada, fria, deserta, muda, obscura, sem a serena e cálida luz da convivência familiar. Mas tampouco são verdadeiros lares aquelas casas demasiado fechadas, enclausuradas e quase inacessíveis, nas quais não convergem a luz e o calor de fora, e que não irradiam para o exterior, semelhantes a cárceres ou retiros de eremitas. No entanto, é tão belo um lar que seja íntimo, mas que irradie! Seja assim o vosso lar, amados lhos e lhas, à imagem e semelhança do lar de Nazaré! Não existiu nenhum mais recolhido que aquele, e ao mesmo tempo nenhum mais cordial, mais amável, mais pací co em sua pobreza, mais irradiante; acaso a sociedade cristã não vive e não se ilumina com sua irradiação? Olhai: à medida que se afasta dela, o mundo ca tenebroso e gelado. 3. Quais são, pois, esses raios que devem juntar-se e concentrar-se em vosso lar para ali encontrar a força de se expandirem depois em amplos feixes de luz e de calor? São variadíssimos, como são variados aqueles que emanam do sol com sua in nita gama de cores e graduações, uns mais luminosos, outros mais quentes. São as graças e os incentivos do espírito, do coração, da alma: costumam chamá-los de qualidades, dons, talentos; alguns deles são o tesouro de uma dupla herança atávica; outros foram adquiridos pelo trabalho, o esforço e a luta; os mais preciosos são as virtudes misteriosamente infundidas na natureza humana pela caridade gratuita do Espírito Santo e aumentadas mediante a prática da vida cristã. Até ontem, vossas famílias estavam afastadas umas das outras: ambas tinham suas tradições, suas recordações, seus traços típicos de espírito e coração, que lhes davam uma sionomia peculiar; ambas tinham suas relações de parentesco e amizade; eis que estes dois coros, no dia de vossas núpcias, concertaram-se em vós em nova harmonia, que se prolongará em vossa descendência, mas que já começa a ressoar ao vosso redor. Dotados desta dupla herança, vós ainda vos enriqueceis com vossas contribuições pessoais postas em comum: os acontecimentos e encontros de vossa vida doméstica, pro ssional e social, vossas conversas e leituras, vossos estudos literários, cientí cos, artísticos, talvez até losó cos, mas acima de tudo religiosos, vos trazem de volta para as horas de intimidade carregados de pólen, como as abelhas que voltam às colméias; e em vossos colóquios con denciais destilais dulcíssimo mel nutritivo, acima de tudo para vós mesmos, e que ireis comunicar, talvez sem o perceber, àqueles que se relacionam convosco (cf. Ct 4, 11). No contato de cada dia, na necessária concórdia recíproca de pensamentos e de vida, que se consegue por meio de incontáveis pequenas concessões e inumeráveis pequenas vitórias, conseguireis e aumentareis em grau as virtudes morais, a força e a mansidão, o ardor e a paciência, a franqueza e a delicadeza. Elas vos unirão em um afeto sempre crescente, colocarão vossa marca na educação de vossos lhos, e darão à vossa morada o atrativo de um encanto que não cessará de irradiar-se na sociedade com que vos encontrais e que vos envolve. Tais hão de ser as virtudes do lar doméstico: nos esposos cristãos e nas famílias cristãs, elas estão santi cadas e elevadas à ordem sobrenatural e, por isso mesmo, são de um

valor incomparavelmente superior a todas as capacidades naturais, porque quando fostes feitos lhos de Deus, foram injetadas em vós, com a graça, essas faculdades de ordem divina que nem os mais heróicos esforços puramente humanos seriam capazes de gerar, ainda que em ín mo grau.

2. Toda casa é um templo532 524. Viestes a Roma, queridos recém-casados, exatamente na semana em que a Igreja comemora a dedicação das basílicas dos santos apóstolos Pedro e Paulo, que sem dúvida já visitastes ou não deixareis de visitar. O termo “basílica” signi ca originalmente “a casa do rei”, e a dedicação é o rito solene com o qual um templo é consagrado a Deus, Rei e Senhor supremo, para fazer dele a sua morada, designando-o para mistérios especiais ou santos, em cuja memória ou honra ele foi edi cado. É verdade que, com tudo isso, as maravilhosas basílicas não são dignas de acolher o Rei dos reis. Entretanto, bem o sabeis, Ele não se nega a viver em pobres capelas, nas miseráveis choças das missões. Pensai em tão grande condescendência e em tamanho amor, vós que viestes receber do Vigário de Cristo uma bênção especial para vós mesmos e para o novo lar doméstico. Recordai aquilo que, desde a infância, falava ao vosso coração esta palavra: a casa! Ali estava todo o vosso amor, concentrado em um pai, em uma mãe, nos irmãos, nas irmãs. Um dos maiores sacrifícios que Deus pede a uma alma, quando a chama a um estado superior de perfeição, é o de deixar a casa: “Escuta, lho! Esquece a casa de teu pai” (Sl 44, 11). “Aquele que tiver abandonado sua casa [...] por amor de meu nome [...] terá a vida eterna” (Mt 19, 29). Ora, também a vós, que caminhais pela via ordinária dos mandamentos, um amor novo e imperioso vos fez, um dia, ouvir seu chamado: “Deixa — e eu o digo a cada um de vós — a casa de teu pai, porque tu deves fundar outra, que será a tua”. E desde então, vosso ardente desejo foi encontrar, estabelecer aquilo que, para vós, será “a casa”. Isto porque, como diz a Sagrada Escritura, “o resumo da vida humana é... o pão, a roupa e a casa” (Eclo 29, 28). Não ter uma casa, estar sem um teto e sem um lar, como estão não poucos infelizes, não é acaso o símbolo da máxima angústia e miséria? Contudo, certamente vós recordais que Jesus, nosso Salvador, se conheceu as doçuras da casa familiar sob o humilde teto de Nazaré, quis, depois, durante sua vida apostólica, ser como um homem sem casa: “As raposas”, dizia Ele, “têm suas tocas, e os pássaros dos céus os seus ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça” (Mt 8, 20). Considerando este templo do Divino Redentor, vós aceitareis mais facilmente as condições de vossa nova vida, ainda que elas não correspondam, por ora, ou em todos os detalhes, àquilo que tínheis sonhado. Em todo caso, dedicai um extremo cuidado, especialmente vós, jovens esposas, em tornar amável, íntima, a própria moradia; em fazer reinar nela a paz, com a harmonia de dois corações lealmente éis a suas promessas, e depois, se Deus o quer, com uma

alegre e gloriosa coroa de lhos. Já faz muito tempo que Salomão, desenganado e convencido da vaidade das riquezas terrenas, havia dito: “Mais vale um pedaço de pão seco dormido com paz que uma casa cheia de carne com discórdia” (Pr 17, 1). Mas não esqueçais que todos os esforços serão inúteis e que não encontrareis a felicidade de vosso lar se Deus não edi ca a casa convosco (Sl 121, 6), para viver ali com sua graça. Também vós deveis fazer, por assim dizer, a dedicação desta “basílica”, isto é, deveis consagrar a Deus, sob a invocação da Virgem Santíssima e de vossos santos padroeiros, o vosso pequeno templo familiar, onde o amor mútuo deve ser o rei pací co, na el observância dos preceitos divinos.

3. Junto ao berço de Belém533 525. Olhai para a gruta de Belém. Por acaso é uma morada que chegue a ser conveniente para uns modestos artesãos? Que signi cam esses animais, que vos dizem esses alforjes de viagem, por que essa absoluta pobreza? É isto que Maria e José tinham sonhado para o nascimento do Menino Jesus, na íntima suavidade de sua casinha de Nazaré? Talvez José, já há vários meses, servindo-se de alguns pedaços de madeira da região, tivesse serrado, lixado, polido e enfeitado um berço, coroado por um cacho de uvas entrelaçadas. E Maria — bem o podemos pensar —, iniciada desde sua infância no templo às artes femininas, teria cortado, enfeitado e bordado com algum desenho gracioso, como toda mulher a quem anima a esperança da maternidade próxima, as fraldinhas para o Desejado dos povos. E, no entanto, agora não estão em sua casinha, nem junto aos amigos, nem mesmo em uma pousada comum: estão em um estábulo! Para obedecerem ao edito de Augusto, tinham feito em pleno inverno uma penosa viagem, mesmo sabendo que a criança tão esperada estava para vir ao mundo. E bem sabiam que esse lho, fruto virginal da obra do Espírito Santo, pertencia antes a Deus que a eles. O próprio Jesus, doze anos mais tarde, devia recordá-lo: os interesses do Pai celestial, Senhor soberano dos homens e das coisas, deviam antepor-se aos pensamentos de amor de Maria e José, por muito puros e ardentes que fossem. É por isso que eles, naquela noite, em uma miserável e úmida caverna, ajoelhados, adoraram o divino recém-nascido, recostado em um duro presépio, positum in praesepio, em vez de estar no gracioso berço; envolto em paninhos grosseiros, pannis involutum, em lugar das nas faixas. Também vós, queridos recém-casados, tivestes, tendes e tereis doces sonhos sobre o futuro de vossos lhos! Tristes aqueles pais que não os tenham! Mas evitai que vossos sonhos sejam exclusivamente terrenos e humanos. Diante do Rei dos céus, que tremia nas palhas, e cuja linguagem, como a de todo homem que vem a este mundo, ainda era o pranto: Et primum voce, similem omnibus emisi plorans (Sb 7, 3), Maria e José viram — com uma luz interior que iluminava as aparências da realidade material — que o lho mais abençoado por Deus não é necessariamente aquele que nasce na riqueza e no bem-estar; compreenderam que os pensamentos dos homens nem sempre estão de acordo com os de Deus, sentiram profundamente que tudo o que acontece sobre a terra, ontem, hoje e amanhã, não é um efeito da causalidade ou de uma sorte boa ou má, mas o resultado de uma longa e misteriosa concatenação de eventos, disposta ou permitida pela providência do Pai celestial. Queridos recém-casados, procurai tirar proveito desta

sublime lição. Prostrados diante do berço do Menino Jesus, como o fazíeis tão inocentemente em vossa meninice, rogai-lhe que infunda em vós os grandes pensamentos sobrenaturais que, em Belém, enchiam o coração de seu pai adotivo e de sua Virgem Mãe. Nos queridos pequeninos que virão, segundo esperamos, alegrar vosso jovem lar, antes de vir a ser o orgulho de vossa idade madura e o sustento de vossa velhice, não vejais somente os membros delicados, o gracioso sorriso, os olhos em que se re itam os traços de vosso coração, mas acima de tudo a alma, criada por Deus, precioso depósito con ado a vós pela bondade divina. Educando vossos lhos para uma vida profunda e intensamente cristã, dareis a eles e a vós mesmos a melhor garantia de uma vida feliz neste mundo, e de um feliz reencontro no outro.

CAPÍTULO II | A piedade familiar Em seus famosos discursos aos recém-casados, o imortal Pontí ce Pio foi tecendo belissimamente todo um tratado completo daquilo que deve ser a piedade familiar no seio do lar cristão. Diante da impossibilidade de reunir aqui, integralmente, seus maravilhosos ensinamentos, teremos de limitar-nos a colher o índice sistemático dos mesmos, com algum desenvolvimento parcial dos mais importantes e fundamentais.534

1. Conceitos gerais 526. Os homens são peregrinos do céu, e esta vida, o caminho da vindoura. Ali estão as verdadeiras alegrias, e entre as coisas celestiais devemos viver em espírito, porque aquela é a vida verdadeira, e não se deve colocá-la em perigo. Não se deve ter sonhos excessivamente terrenos, pois a glória do cristão não tem lugar neste mundo. É um erro pensar que a religião é acessória diante de outras graves preocupações da vida. Ao contrário,

primeiro é preciso buscar o reino de Deus e sua justiça; o restante virá por acréscimo. A devoção é a plenitude da vida cristã. E é preciso dedicar igual empenho em buscar o alimento espiritual para a alma quanto o material para o corpo. A oração é o alimento diário do espírito. Quando falta a fé, prevalece o egoísmo. A fé deve estar iluminada pela razão. Os bens da fé são para a sociedade. O sentimentalismo religioso sem dogmas é um erro. A união com Deus é necessária para a felicidade. Na vida, sempre necessitamos de intercessão. O Senhor torna mais leve o jugo da vida com a sua graça. A oração é uma audiência com Deus. Os dias e as noites devem ser consagrados a Deus pela oração. A oração é um sustento nas di culdades. Um modo de rezar é conversar com Deus na contemplação das obras da natureza. Para perseverar, é preciso orar e vigiar. Quem reza se salva, quem não reza se condena. O temor de Deus é o princípio da sabedoria. Conservar a graça com a vigilância, luta, penitência e oração. Os méritos dos vivos estão sempre em perigo. São inúteis os esforços dos homens entregues a si mesmos.

2. Qualidades da oração 527. A oração deve ser humilde, feita na graça, con ante. Nada ajuda tanto a rezar com con ança como a experiência pessoal da e cácia da oração. Nossa con ança não deve diminuir quando Deus se demora a ouvir nossas petições. Adiar não é negar, e Deus pode adiar seus benefícios. Nenhuma prece ca sem efeito, mesmo que seja aquilo que pedimos equivocadamente. Deus nunca nos prometeu de modo infalível a felicidade neste mundo, nem nos dará o que for prejudicial para nós. Às vezes,

pedimos coisas justas e boas, e o Senhor parece não nos ouvir, mas é que elas não são tão boas aos olhos do Senhor, que enxerga mais longe. Com freqüência, os homens desconhecem o que é bom ou mau para eles. A oração, para ser e caz, deve ser constante, piedosa, feita com o coração, e não só com os lábios. É preciso orar em nome do Salvador; e aquilo que pedimos contra nossa salvação eterna não pode ser em nome do Salvador. A imutabilidade dos desígnios de Deus não é obstáculo ao poder da oração, pois Deus previu a oração e estabeleceu seus dons na eternidade em acordo com ela. Especial beleza, dignidade e e cácia da oração em comum.

3. A oração em família 528. O matrimônio começa com uma oração, e devemos continuar rezando. A família deve ser santa. A família afastada de Deus não pode prosperar. O caráter cristão das famílias é a base de seu bem-estar e sua felicidade. Os “ lhos de santos” não devem viver como os pagãos, sem oração. Muitos cristãos deveriam envergonhar-se ao ver que até os povos pagãos mantinham um culto religioso no lar. A família cristã é garantia de santidade. A piedade é necessária no matrimônio. Nos tormentos da vida, o lar deve ser um cenáculo de oração. É preciso orar em família. Deus deve ter o primeiro lugar no lar, que deve ser uma pequena basílica dedicada a Ele. A con ança em Deus deve constituir o fundamento da vida familiar. Na piedade está o manancial das virtudes que fazem o matrimônio feliz. É preciso dar-se a Deus sem reservas, deixando a frivolidade da juventude. O contrato matrimonial implica o compromisso de estabelecer o reino de Deus no lar. Jesus e Maria devem ser as testemunhas dos acontecimentos alegres ou tristes da família. O lar deve ser cristão

desde o primeiro dia, deixando claro a todos que ali se honra a Deus. A esposa atrairá o marido para a piedade. A oração não é coisa só para mulheres, mas também para homens e jovens. A alma dos homens é tão frágil como a das mulheres, e precisa rezar. Mas os excessos de generosidade para com Deus, costumeiros nos santos, não devem ser impostos aos outros: é preciso ser discreto. Os esposos devem rezar não só em particular, mas em comum. Rezar em comum no lar não signi ca transformar a casa em uma igreja. Na oração comum os esposos se unem mais estreitamente. Separados pelo trabalho durante o dia, os esposos estão unidos diante de Deus pela oração feita em comum. A oração deve iniciar e encerrar a jornada no lar cristão. Por muito ocupado que seja o dia, é preciso encontrar um momento para rezar juntos, mesmo que brevemente, sem sacri car esta bela tradição às exigências da vida moderna. Na oração vespertina, os esposos conceder-se-ão mutuamente o perdão, se houver necessidade para isso.

4. As devoções do lar 1. Jesus Cristo 529. Jesus Cristo não veio abolir, mas restaurar a lei divina. Figurado pelo cordeiro pascal, morreu por nosso resgate. Deste modo, o Senhor demonstrou sua predileção pelos homens. O sangue de Cristo tem um valor in nito: está presente na Eucaristia e imprime no Batismo um sinal indelével. Apesar dos ultrajes e das apostasias, Cristo está disposto a perdoar os arrependidos. A ressurreição do Senhor é a garantia da nossa, e sua ascensão sustenta nossa esperança do céu. Foi Ele quem digni cou o Matrimônio cristão nas Bodas de Caná, primeiro milagre operado

por Jesus Cristo, primeira mostra da onipotência de Jesus, primeira manifestação da e caz mediação da Virgem, sustento da fé nos primeiros seguidores de Jesus. No lar, deve reinar Jesus Cristo. Cristo deve estar formado nos cristãos. Nele está o remédio de todos os males. O amor de Jesus não muda. Jesus experimentou a vida do lar e deve participar das alegrias e sofrimentos do nosso. O primeiro lugar deve ser dedicado a Ele. O centro da casa será um cruci xo ou a efígie do Sagrado Coração. Devoção ao Preciosíssimo Sangue: é de grande e cácia, pois é o preço de nossa redenção. Devoção ao Sagrado Coração: Leão e Pio consagraram o mundo ao Sagrado Coração. Também as famílias lhe devem ser consagradas. Ele mesmo estabeleceu e quis a devoção ao Sagrado Coração. Seu m é amar e reparar. Cristo nos pede nosso coração, e nos dá o seu. A paz das famílias está no Sagrado Coração. A salvação dos homens deve ser esperada dele. Lições do Sagrado Coração contra o egoísmo: ensina o sacrifício do egoísmo, contra o espírito do mundo, que desconhece a abnegação. O coração de Jesus é todo misericórdia diante das lágrimas da mulher. A consagração ao Sagrado Coração exige que se retire do lar tudo o que pode contristá-lo. A in delidade dos esposos está em contradição com a consagração ao Sagrado Coração. É recomendável a devoção das primeiras sextas-feiras. A Comunhão é um meio de santi cação. Ela dá energia para suportar as cargas diárias, é um meio de conservar a vida dada no Batismo e na recepção do sacramento do Matrimônio, e alimenta a união santi cante da alma com Deus. Toda alma necessita da Eucaristia, que é sinal de amor e união; mas os esposos necessitam dela a título especial, para receber as graças com as quais poderão responder com seriedade às suas obrigações, e para prevenir falhas na vida conjugal. Nas longas separações, não há união melhor e

mais possível que a união com Jesus na Comunhão. Comungar nas núpcias é um piedoso costume do casamento cristão. Uma boa comemoração das bodas cristãs seria celebrar o aniversário comungando. A Comunhão é um encontro com Deus que devemos freqüentar, até diariamente. Comungar é levar Jesus para casa, e, com Jesus, todos os bens. É recomendável comungar em família. Dar aos lhos o exemplo da Comunhão freqüente e leválos a comungar em companhia de seus pais. Deve-se dar também ao povo o exemplo da Comunhão freqüente. 2. A Virgem Maria 530. A Virgem Maria deve ocupar um lugar de honra no lar e reinar nas famílias. A Imaculada Conceição foi o prelúdio das demais glórias de Maria, e a razão desse privilégio foi sua posterior maternidade. Ela é mais mãe que as mães da terra. É a dispensadora de todas as graças. Maria conheceu as alegrias e os sofrimentos da família, sofreu as fadigas do trabalho diário, e foi pobre. Sua devoção garante a felicidade do lar e seu caráter cristão. A Virgem é modelo das virtudes domésticas. Ela concederá a castidade matrimonial. A oração à Virgem durante a noite. A verdadeira devoção a Maria deve ser vivi cada pela imitação de suas virtudes. Na Virgem, a mulher foi elevada e sublimada. Con ar à Virgem o cuidado dos lhos e deixar para eles, como preciosa herança, a sua devoção.

Sendo o Rosário familiar a devoção por excelência do lar cristão — como proclamaram os papas —, vamos transcrever integralmente o belíssimo discurso de Pio sobre O Rosário em família, pronunciado em 8 de outubro de 1941. Ele diz assim: Como viestes a Roma, queridos recém-casados, para pedir a bênção do Pai comum dos éis para vossos lares, nós gostaríamos que, ao mesmo tempo, vós levásseis uma maior

devoção ao Santo Rosário da Virgem, à qual é consagrado este mês de outubro. A esta devoção, a piedade romana está ligada por muitas recordações, e a ela se harmonizam muito bem todas as circunstâncias da vida doméstica, com todas as necessidades e disposições de cada membro da família. Em vossas visitas ao santuário desta Cidade Eterna, quando alguma de suas basílicas e de seus gloriosos túmulos de santos vos comoveu em grau maior e, não contentes com uma rápida passagem, ali vos entretivestes em fervorosa prece por vossas intenções em comum, a oração que vos veio espontaneamente aos lábios não foi com freqüência a recitação de alguma parte de nosso Rosário? Rosário dos novos esposos, que vós, bem unidos, rezastes na aurora de vossa nova família diante da vida que se abria para vós com suas alegres perspectivas, mas também com seus mistérios e suas responsabilidades. É tão suave, na alegria destes primeiros dias de intimidade total, colocar desta maneira as esperanças e os propósitos do futuro sob a proteção da Virgem, toda pura e poderosa; da Mãe misericordiosa e amante, cujas alegrias, dores e glórias passam diante dos olhos de vossa alma à medida que deslizam as dezenas de Ave-Marias, recordando-vos os exemplos da mais santa das famílias! Rosário das crianças. Rosário dos pequenos, os quais, tendo entre seus dedinhos, ainda inexperientes, as contas do Rosário, repetem lentamente, com aplicação e esforço, mas já com tanto amor, o Pai-Nosso e as Ave-Marias que a mãe lhes ensinou pacientemente. Às vezes, eles se equivocam, hesitam e se confundem; mas existe uma candura tão con ante no olhar que dirigem para a imagem de Maria, daquela que já sabem reconhecer como sua grande Mãe do céu! Depois, será o Rosário da Primeira Comunhão, que ocupará um lugar à parte entre as recordações de tão grande dia; belo, que contudo não deve ser um objeto de luxo, mas um instrumento que ajude a rezar e que leve o pensamento para a Virgem Santíssima. Rosário da jovem. Já crescida, alegre e serena, mas ao mesmo tempo séria e pensativa acerca de seu futuro; que con a a Maria, Virgem imaculada, prudente e benigna, os desejos de entrega e dom de si mesma, aos quais sente seu coração abrir-se; que pede por aquele que ainda lhe é desconhecido, mas conhecido de Deus, que a Providência lhe destina, e que ela gostaria que fosse também um cristão fervoroso e generoso. Este Rosário, que tanto lhe agrada rezar aos domingos, juntamente com suas companheiras, durante a semana deverá rezálo outra vez entre os cuidados da casa e ao lado de sua mãe, ou nas horas de trabalho na fábrica, ou no campo, quando tiver um momento livre para ir à humilde igreja da vizinhança. Rosário do jovem. Aprendiz, estudante, agricultor, que se prepara trabalhando valorosamente para um dia ganhar o pão para si e para os seus. Rosário que conserva consigo preciosamente, como um protetor da pureza que deseja levar intacta até o altar, no dia de suas núpcias. Rosário que reza, sem respeito humano, em momentos livres para o recolhimento e a oração; que o acompanha debaixo do uniforme militar, em meio às fadigas e perigos da guerra; que suas mãos irão apertar pela última vez no dia em que, talvez, a pátria lhe peça o supremo sacrifício, e que seus companheiros de armas, comovidos, encontrarão entre seus dedos frios e ensangüentados.

Rosário da mãe de família, da operária, da camponesa; simples, sólido, usado há muito tempo, que talvez não possa segurar nas mãos exceto à noite, quando, bem cansada de seu trabalho, ainda encontrará em sua fé e amor a força para rezá-lo, lutando contra o sono, por todos os seres queridos, especialmente por aqueles que ela sabe mais expostos a perigos da alma e do corpo, e que teme sejam tentados ou a igidos, e que vê com tanta tristeza se afastarem de Deus. Rosário da mulher do mundo, talvez rica, mas com freqüência sobrecarregada por preocupações e angústias ainda mais pesadas. Rosário do pai de família, do homem trabalhador e enérgico, que nunca se esquece de trazer consigo seu Rosário, juntamente com a caneta esferográ ca e a caderneta dos negócios; às vezes um grande professor, renomado engenheiro, célebre clínico, eloqüente advogado, agrônomo especializado, não se envergonha de rezá-lo com devota simplicidade, para retemperar sua alma de cristão na paz de uma igreja, aos pés do tabernáculo. Rosário dos velhos. A avó anciã que faz as contas correrem incansavelmente entre seus dedos, já gastos, no fundo da igreja, enquanto pode arrastar-se até ali com suas pernas já quase rígidas, e durante as horas de forçada imobilidade em sua cadeira, ao lado do fogo. A tia idosa, que consagrou todas as suas forças pelo bem da família e, agora, aproximando-se o término de uma vida empregada em boas obras, alterna com inesgotável abnegação os pequenos serviços que ainda pode prestar com suas numerosas dezenas de Ave-Marias, que ela repete com seu Rosário sem se cansar. Rosário do moribundo, rmemente segurado na hora extrema, como um último apoio entre suas mãos trêmulas, enquanto, à volta dele, os seres queridos o rezam em voz baixa; Rosário que cará sobre seu peito juntamente com o cruci xo, e que demonstrará sua con ança na Divina Misericórdia e na intercessão da Virgem, de quem estava cheio aquele coração que cessou de palpitar. Rosário, en m, da família inteira, rezado em comum, entre todos, pequenos e grandes, que reúne à noite, aos pés da Virgem, aqueles que o trabalho do dia havia separado; que os reúne com os ausentes e com os desaparecidos, cuja recordação se aviva em uma fervorosa oração; que consagra desta maneira o laço que os une a todos sob a maternal proteção da Virgem Imaculada, a Rainha do Santíssimo Rosário. Em Lourdes, como em Pompéia, a Virgem Maria quis demonstrar com inumeráveis graças quão agradável lhe é esta oração, para a qual convidava sua con dente, Santa Bernadete, ao acompanhar as Ave-Marias da menina com o lento percorrer de seu belo Rosário, reluzente com as rosas de ouro que brilhavam a seus pés. Respondei, queridos novos esposos, a estes convites de vossa Mãe celestial, conservando para seu Rosário um lugar de honra nas orações de vossas novas famílias; famílias que nós abençoamos alegre e paternalmente, ao mesmo tempo que a todos os outros nossos lhos e lhas aqui presentes, em nome do Senhor.

O magní co discurso de Pio sobre O Rosário na família vai até aqui. A seguir, lembraremos as demais devoções familiares que o grande pontí ce recomenda: 3. São José

531. Modelo dos pais. Os esposos têm um motivo especial para honrá-lo. Ele foi o guardião de Maria e de Jesus, véu do mistério da encarnação e da maternidade virginal de Maria. Nazaré é o ideal das famílias cristãs, e a Sagrada Família, o seu modelo e padroeira. 4. Outras devoções do lar 532. a) Devoção aos santos e anjos. São Pedro e São Paulo. Pedir a São Pedro a rmeza na fé. São Paulo é associado pela Igreja e é exemplo de que não se deve desesperar da conversão de nenhum pecador. Ensino sobre a vida de São Tiago Maior. História gloriosa de São Tiago de Compostela. Os anjos participam da paternidade divina e também são lhos de Deus. O Arcanjo São Miguel defende das insídias do diabo; segundo a liturgia, introduz as almas diante de Deus na glória eterna. Que ele ajude os pais a acolherem as almas dos lhos que vêm a este mundo. É o patrono da saúde dos enfermos, protetor da salvação das almas e defesa da paz contra a guerra. b) A Comunhão dos Santos. A Comunhão dos Santos nos liga a todos que estão na graça de Deus; por isso, tanto aos habitantes do céu quanto àqueles que sofrem no purgatório. História da Festa de Todos os Santos. Esta festa não é apenas dos canonizados, mas de todos os que se salvaram, entre os quais haverá nossos parentes próximos, que velarão especialmente por nós. Verdadeiramente, podemos nos chamar de “ lhos de santos”. Dos santos canonizados, muitos se santi caram no matrimônio e na paternidade. Existem santos na terra, e todos podemos ser santos. É preciso socorrer nossos familiares do purgatório e aos demais éis ali detidos, embora já se tenha certeza de sua salvação. O melhor sufrágio é o Santo Sacrifício da Missa. c) É preciso orar pela Igreja. Ela é a esposa mística de Cristo, da qual nascem os lhos adotivos de Deus. O inferno não prevalecerá

contra ela. Na Providência ordinária, as almas não podem salvarse nem viver cristãmente fora da Igreja. A xação da sede da Igreja na capital do Império foi providencial para a expansão da fé. A Igreja dá o alimento da alma nos sacramentos. d) Orar pelo papa. Este é o Vigário de Cristo na terra. Nos papas, é Pedro quem governa a Igreja. Roma é a sede dos papas por disposição de Deus. Existe em Roma o piedoso costume de que os recém-casados rezem o Credo em São Pedro, pedindo a rmeza na fé. O Magistério papal é universal e infalível. Os apóstolos, o papa e os bispos foram colocados por Deus para reger a Igreja. É preciso transmitir aos lhos a adesão ao papa. O papa faz freqüentes ensinamentos, porque quer exercer não só o Magistério extraordinário e solene, mas também o ordinário, com os éis mais simples. O papa con a que seus ensinamentos aos esposos serão lidos. e) É preciso orar pela pátria. f) Maravilhas da graça por meio da oração em favor dos pecadores. g) Não esquecer as orações pelos pais, a quem abandonaram para se casar. A eles devemos gratidão. Quem não for bom lho di cilmente será bom esposo. h) Os esposos devem comparecer com a possível freqüência à paróquia, ali comungar e escutar a palavra divina, que é extremamente digna, mesmo em sua mais humilde forma de pregação rural. i) O apostolado da oração dá o meio para que a família santi que seus trabalhos. A oferenda das obras feitas em estado de graça eleva as menores ações à categoria de atos sobrenaturais de apostolado.

j) Recomendação do exame de consciência a cada noite.

*** O índice sistemático de Pio acerca da piedade familiar vai até aqui. Nele temos um catálogo completíssimo das grandes devoções do lar, que contribuirão poderosamente para a santi cação de toda a família, e, nalmente, a obtenção coletiva da vida eterna, que é o m último para o qual Deus nos criou.

CAPÍTULO III | Nazaré, o lar ideal Para completar nossa visão cristã do lar, contemplaremos por alguns momentos o modelo supremo de todos os lares cristãos: o da Sagrada Família em sua casinha de Nazaré. Primeiro, em uma sintética visão de conjunto,535 e depois, um pouco mais detalhadamente, em seus principais aspectos. 533. 1. Cristo dedicou três anos para redimir o mundo, e trinta para santi car o lar. 2. Ele não necessitava disso, mas nós, sim. Para que soubéssemos que o lar pode ser o manancial mais puro de alegria e santidade; nosso céu na terra, para o qual, nesta vida, sempre voltaremos o olhar de nossa recordação. 3. Vede que honra: a Igreja propõe por modelo dos lares o lar de Nazaré: o Verbo encarnado, a Virgem e São José. 4. Doce tarefa a de imitá-los, e, acima de tudo, doce é o prêmio a nós prometido: sua eterna companhia no céu. i. A Sagrada Família, modelo de todos os lares

a) No trabalho Trabalho da Sagrada Família! 1. São José, o Patrono da Igreja universal, aquele que viveu tão próximo do Verbo encarnado, foi carpinteiro. Ganhou dia a dia o pão para sua família em um ofício que endurece as mãos, como qualquer um dos nossos. Mas com que alegria ele trabalhava!... Para Jesus, para a Virgem. 2. A Virgem também trabalhou. Ela, que por sua maternidade divina tocava as fronteiras da divindade, submeteu-se às tarefas mais humildes do lar. Imaginemo-la indo à fonte, preparando a comida, a roupa... sem nenhuma auréola, como qualquer mulher de Nazaré de então e de agora. 3. Também Jesus trabalhou. Quando cresceu em idade, para ajudar a São José, e quando este morreu, para a Virgem. Deus não desprezou o ofício de carpinteiro... Nós trabalhamos? O primeiro dever da família é o trabalho. Aqueles que fogem dele atrever-se-ão a contemplar a Sagrada Família? b) Na alegria e na dor Mistérios gozosos do Santíssimo Rosário! Neles ensina-se também a santi car a dor. A família é tua cruz, mas “pela cruz se vai à luz”. 5. A encarnação. A Virgem aceita uma missão redentora: Fiat. E o Evangelho registra, desde a primeira página, sua dor e a de São José. O Santo Patriarca não compreendia o mistério. Não duvidou da delidade de Maria. Aceitou o sacrifício de abandonar a Virgem, a mais pura e excelsa das mulheres. O prêmio foi a imensa alegria de voltar a recebê-la (Mt 1, 20–24). Quantos lares desunidos da terra!... Enfermidade, caráter difícil, con itos psicológicos inesperados... Aceitai o sacrifício, e Deus também os recompensará.

6. A visitação. A Mãe de Deus se disse escrava. Começa a cumprir com os deveres da caridade. Contemplai-a envolvida pela poeira da caravana, levando para sua prima uma mensagem de alegria. Vós prometestes amar-vos mutuamente para sempre. Cumpri vosso dever todos os dias. Fazei do lar um céu. Sede sempre mensageiros de alegria... 7. O nascimento. Cristo, o Deus em cujas mãos estão todos os tesouros, nasce pobre. De que nos queixamos nós? E nos ama tanto, que nos dá aquilo que Ele escolheu ao vir à terra. Desde então, a riqueza só é agradável por causa da esmola. Depois, um grande silêncio no Evangelho. Mas sabemos que Cristo foi chamado de “o lho do carpinteiro” (Mt 13, 55). 8. A apresentação no templo. A dor de estar sempre dispostos a se desapegar dos lhos quando Deus os chama. Como a Virgem. Não sacri cá-los ao nosso egoísmo. Dor que se transformará na alegria de ver um lho subir ao altar ou de sabê-lo no céu. 9. O Filho perdido. Assim se procura pelos lhos: “Estávamos a itos à tua procura...” (Lc 2, 48). Com a angústia da responsabilidade de saber-se colaboradores de Deus em uma tarefa tão grande. E depois, a tarefa anônima da educação: “E era-lhes submisso” (Lc 2, 51). Exemplo para os lhos, a obediência do Homem-Deus durante trinta anos. E para os pais, o suave império de Maria e José sobre seu Filho. c) No amor 1. São José. Amou a Virgem como a uma esposa, e a Jesus como se ama a Deus. Amor que o impele ao sacrifício da fuga para o

Egito, ao sacrifício do trabalho silencioso. Que importa, se ali estão Jesus e Maria, que olham para ele?... 2. A Virgem. Que amor mais puro o da Imaculada! São José, seu esposo, era o protetor de sua virgindade, de sua fama diante do povo... Cristo era Deus, e ela podia contemplar-se em seus olhos. Que alegria ver que o Filho se parecia com a Mãe! 3. Jesus. Ele amava os dois. Por amor Ele vinha salvar os homens, e estes eram os primeiros que ia salvar. Começava por sua casa... É assim o vosso amor? Podeis comparar-vos com a Sagrada Família sem enrubescer de vergonha? Amor egoísta, sensual, que se preocupa mais em agradar os de fora que os do próprio lar. Tudo isso não é caridade: vai passar com o tempo... d) Em seu caminho para Deus “Jesus crescia em sabedoria, idade e graça, diante de Deus e diante dos homens” (Lc 2, 52). 1. Em sabedoria. Diz respeito unicamente a sua sabedoria humana ou adquirida. Para ela contribuíram Maria e José. É um grande dever dos pais a educação dos lhos. Na escola e no lar. Pois existem coisas que só o pai ou a mãe podem ensinar, inclinando-se com amor sobre o lho para iniciá-lo nos caminhos da vida. Pensem na Virgem e em São José ensinando a Jesus. Ele era Deus, mas quis aprender para nos dar o exemplo. 2. Em idade. Não só em relação aos anos, mas às manifestações externas de prudência, discrição e sabedoria. 3. Em graça. Jesus não podia crescer em graça, já que a possuía em grau in nito desde a concepção. Mas o podiam Maria e José. E Jesus a manifestava cada vez mais, lendo as Escrituras em casa,

indo pela mão de seus pais até a sinagoga, a Jerusalém, rezando com eles as orações em família... As primeiras orações que a mãe ensina!... O exemplo! Que responsabilidade a dos pais diante dos lhos, se não fazem deles verdadeiros cristãos!... ii. O prêmio a) Nesta vida Passarão os dias de alegria, a beleza..., mas permanecerá a beleza da graça de Deus, do sacrifício. O lar será o céu para onde nos recolheremos dos trabalhos e decepções de nossos dias. Não nos deixaremos seduzir pelos atrativos da rua, que destroem a paz e a felicidade do lar. b) Na outra vida Deus não vai tirar-nos a felicidade da terra. Como é fácil ir para o céu! “Porque muito amaste (à tua mulher, aos teus lhos, por Deus), entra no gozo de teu Senhor”. A medida de tua felicidade será a medida do amor. Conclusão No céu, amaremos mais aos que forem mais santos. Queremos que nosso amor da terra não desapareça nem diminua? Santi quemo-nos mais e mais. A Virgem nos ajuda. Ela conheceu de perto tudo aquilo que é um lar, e no céu ela tem o mesmo coração: Assumpta est...

*** 534. Depois desta sintética visão de conjunto, ouçamos o Pe. Philipon, que explana em nível contemplativo o belíssimo espetáculo que oferecia aos olhos de Deus e dos homens o humilde lar de Nazaré.536 A santidade mais sublime que a Trindade jamais pôde contemplar sobre a terra teve por marco exterior a vida tranqüila e necessitada de um lar trabalhador.

O ofício de pai é desempenhado por um homem “justo”, que amava a Deus, à sua esposa e ao seu lho adotivo. Nenhum brilho nessa vida modesta, que se parece a todos os outros homens da Galiléia; unicamente sua alma os supera em pureza e esplendor. Ele é um servidor el. Seu amor a Deus supera incomparavelmente o dos sera ns e de todos os bem-aventurados. Sua santidade gravita em torno da ordem hipostática: e, sem a tocar por si mesmo, relaciona-se familiarmente com ela devido às suas funções de pai junto ao Filho único. Ele é o legítimo esposo da Mãe do Verbo encarnado; e, depois dela, nenhuma criatura se aproximou tanto como ele da intimidade com Deus. Ele se chama José. Entre os homens de sua aldeia que viviam diariamente com ele, ninguém conhecia sua história nem sua origem régia. Que importa? Ele é conhecido por Deus, e isso lhe basta. O Pai Eterno lhe con ou seu Filho, e a Mãe de seu Filho. Seu patrocínio se estenderá mais tarde a toda a Igreja, a todo o Corpo místico de Cristo. Ainda não soou a hora da glória, mas apenas a do trabalho, da obscuridade, do silêncio de Nazaré. Ao lado dele, uma mulher que é mãe. Ela se chama Maria. Tudo nela é virginal e maternal. É a Imaculada, a sempre Virgem. Aquela cuja deslumbrante pureza arrebatou o coração de Deus, e a quem Deus escolheu desde toda a eternidade para ser a mãe de seu Filho. No mundo da graça e da glória, absolutamente nada iguala a dignidade desta maternidade divina, que a introduz, por seu termo (Jesus), no próprio interior da ordem hipostática.537 Por esta maternidade, ela toca o Verbo em pessoa, esse Verbo encarnado que saiu de seu seio. Tal mistério a eleva até o segredo da vida trinitária: Filha predileta do Pai, Mãe do Filho, Esposa do Espírito Santo. Deus a cumulou com tal plenitude de graça, que sua santidade deixa muito para trás a de todos os anjos e santos reunidos. Somente ela constitui, por assim dizer, um mundo à parte. Se a fé não nos assegurasse que ela é uma criatura como nós, alguém seria tentado a buscá-la mais perto de seu Filho que do restante dos homens. Por sua maternidade divina, ela se aproxima das mais remotas fronteiras da divindade. Ela tem poder sobre seu Filho, e livre acesso diante da Trindade Beatíssima. Ao vê-la em seu humilde lar, nada permite adivinhar sua excelsa grandeza diante de Deus. Vive a vida mais comum e ordinária, em tudo semelhante à das outras mulheres de Nazaré. Nada de êxtases nem de milagres, mas apenas modéstia, simplicidade, atitude de caridade sempre atenta às necessidades dos outros, como em Caná; disposta a prestar serviço a sua prima Isabel e a todas as suas vizinhas. Quando as jovens e as mulheres da aldeia encontravam Myriam indo à fonte para buscar um pouco de água, para as necessidades de sua casinha, sorriam-lhe ao passar, sem suspeitar que com isso saudavam a todo-poderosa Mãe de Deus e dos homens, a co-redentora do mundo, a Mãe do Verbo encarnado, a Rainha dos Anjos e de todos os santos. Ao lado de José e de Maria, existe um lho que se chama Jesus. Ele cresceu misturado aos demais meninos da pequena aldeia. Sua vida se parece exatamente à da gente que o rodeia em Nazaré. Assim como eles, ganha todos os dias seu pão com o suor de seu rosto. Suas mãos são calosas, mas sua alma é reta. Assiste com regularidade às cerimônias religiosas da sinagoga. Presta serviço a todos. Jamais o surpreenderam em situação de pecar. Em um dia de sábado, quando pela primeira vez ele se adiantou para

tomar o rolo da profecia de Isaías e comentá-lo com autoridade perante seus concidadãos, estes não conseguem ocultar sua estranheza: “De onde lhe vem tal sabedoria? Acaso não é o operário que nós conhecemos muito bem, o lho de Maria, e cujos parentes vivem entre nós?” (cf. Mc 6, 2–3). Tal foi o mistério do Verbo encarnado. Quem poderia ter reconhecido neste homem da Galiléia, neste obscuro trabalhador, o Verbo Criador, igual a seu Pai, o Operário Todo-Poderoso da redenção dos homens, o Juiz Supremo dos vivos e dos mortos, o Senhor da história, o verdadeiro Deus do universo? Compreende-se que a Igreja tenha querido apresentar aos homens o lar de Nazaré como modelo de toda a vida familiar. O trabalho, a oração, as alegrias da intimidade das almas e a dedicação ao próximo, a presença contínua de Cristo no lar; en m, Deus ali ocupando verdadeiramente o primeiro lugar e animando-o inteiramente com seu amor: tal foi a vida da Sagrada Família de Nazaré. Onde os cristãos poderiam encontrar um modelo mais perfeito e mais acessível para sua vida familiar? Nele, cada um cumpre seu dever simples e elmente. Os dias se sucediam tranqüilos e alegres na presença de Cristo e na paz de Deus. E como Cristo é o centro desta vida de Nazaré, é Ele quem atrai todos os olhares e inspira todas as decisões. Nada de extraordinário, mas tudo ocorre por Ele, com Ele e n’Ele, para a glória do Pai e a redenção do mundo. A mesma coisa deveria ocorrer em toda família que caminha para Deus; o pai e a mãe, ocupando-se da grande tarefa de “formar Cristo” na alma de seus lhos (cf. Gl 4, 19); e os lhos, por sua vez, permanecendo “submissos”, como Jesus, à autoridade de seus pais. No dia de amanhã, quando tiverem crescido, também espera por eles uma obra de redenção.

SEXTA PARTE | VIDA SOCIAL Uma vez examinados os principais aspectos da vida eclesial, sacramental, teologal e familiar do cristão secular, resta unicamente lançar um olhar de conjunto para suas atividades sociais. Com isso, teremos reunido todos os aspectos que podem ser notados na vida dos cristãos que vivem no mundo e que estão inteiramente submersos em suas estruturas terrenas. O panorama que a vida social do cristão abre diante de nossos olhos é imenso. Abarcá-lo de maneira exaustiva é impossível nos estreitos moldes de uma obra sintética e de conjunto. Vamos,

porém, tentar um resumo, o mais completo possível, de seus principais aspectos e manifestações. Dividiremos esta última parte de nossa obra em três capítulos, que responderão aos seguintes títulos: 1. O exercício da própria pro ssão. 2. A “consagração do mundo”. 3. O apostolado no próprio ambiente.

CAPÍTULO I | O exercício da própria profissão 535. Desde já, advertimos o leitor que não pretendemos fazer neste capítulo um estudo completo da chamada moral pro ssional, o que iria além do marco geral de nossa obra. Limitar-nos-emos a expor de que maneira o cristão leigo deve encontrar, no exercício de suas atividades pro ssionais, um dos meios mais e cazes para alcançar a perfeição cristã. A Sagrada Escritura nos assegura que tudo quanto foi feito por Deus era “muito bom” (Gn 1, 31). E apesar de o pecado do homem tê-lo desajustado por completo, ainda é verdade que todas as coisas continuam sendo naturalmente boas em si mesmas, na medida em que o homem não as desvie de Deus com sua livre vontade pecadora. Por isso todas as pro ssões humanas — contanto que sejam naturalmente honestas — são, em si, santi cáveis e santi cadoras, se forem elevadas à ordem sobrenatural mediante a graça e a intenção de glori car a

Deus. Dividiremos este capítulo em quatro artigos: 1. A consciência pro ssional. 2. Princípios fundamentais da moral pro ssional. 3. A santi cação da própria pro ssão. 4. A vida mística e os leigos.

Artigo 1 — A consciência profissional 536. Antes de expor com amplitude o modo de santi car a própria pro ssão e de se santi car com base nela, examinaremos em um artigo preliminar o grave problema da formação da consciência pro ssional, que em nossos dias atravessa uma gravíssima crise. Antes de se santi car, é preciso adotar os meios para, no mínimo, não pisotear a lei de Deus. É incrível ver até onde chega o divórcio entre a moral e as atividades pro ssionais de muitas pessoas de cuja honorabilidade humana ninguém ousaria duvidar. Infelizmente, são legião aqueles que jamais se atreveriam a apoderar-se de cinqüenta centavos de uma gaveta alheia, e, no entanto, não vêem inconveniente nem têm remorso algum em conculcar em grande escala os princípios mais elementares da moralidade e da justiça em suas atividades pro ssionais. Negócios sujos, exploração iníqua do próximo, honorários exorbitantes ao lado de salários infra-humanos, fabuloso enriquecimento de alguns poucos, fraude e engano na

qualidade, quantidade e peso das mercadorias, etc. etc. — tudo é aceito e por tudo se passa, contanto que se “ganhe dinheiro” a qualquer preço. “Negócio é negócio”: este é o disparatado princípio em que pretendem apoiar-se muitos daqueles que não se atreveriam a roubar abertamente os cinqüenta centavos da gaveta alheia. É demasiado urgente dar remédio a esta lamentável confusão que tantos danos causa contra o bem comum, e que para muitos pode signi car a eterna condenação de suas almas. 1. Necessidade de formar a consciência pro ssional538 537. Nada melhor nem mais prático pode ser feito para remediar este estado de coisas que acabamos de denunciar — o divórcio quase completo entre a moral e as atividades pro ssionais da maior parte dos homens — do que criar neles, ao menos naqueles que ainda não renunciaram a viver e morrer como cristãos, uma autêntica consciência pro ssional sobre seus gravíssimos deveres diante de Deus e dos homens; mas com a intenção de que essa consciência não recaia de forma abstrata e especulativa sobre as normas gerais da moralidade pro ssional — que seriam facilmente aceitas por todos, já que em nada comprometem em nível individual —, e sim sobre as próprias e personalíssimas atividades individualmente consideradas. Ouçamos um ilustre catedrático explicando admiravelmente este interessantíssimo ponto: Se convocássemos uma grande concentração de pro ssionais de todo tipo — quanto à pro ssão e ao contexto ético —, registraríamos de forma prática o reconhecimento unânime de tudo quanto estamos dizendo: as pro ssões têm uma função social ineludível, as motivações individuais devem subordinar-se ao bem da comunidade, que tem uma razão de nalidade; a moralidade pro ssional pede que a ânsia do proveito próprio ceda ao espírito de serviço... Tudo isto manifestado seguramente e com entusiasmo, com grande luxo de citações, segundo as preferências e a erudição de cada um deles. Nessa assembléia, o grupo dos espanhóis pediria, em acréscimo, que o infrator de tais normas fosse inexoravelmente fuzilado... Ora, sem a intenção de corromper um fervor tão ardente, eu também gostaria de apresentar minha citação: as palavras que Frei Antonio de Guevara coloca na boca do vilão do Danúbio: “Ouvi, romanos, ouvi isto que vos quero dizer, e praza aos deuses que o saibais entender, porque, de outro modo, eu perderia meu trabalho e vós não tiraríeis fruto algum de minha exposição. Vejo que todos aborrecem a soberba e

ninguém segue a mansidão; todos condenam o adultério, e não vejo ninguém na continência; todos maldizem a intemperança, e não vejo ninguém temperado; todos louvam a paciência, e não vejo ninguém incomodado; todos renegam a preguiça, e vejo que todos estão de folga; todos blasfemam contra a avareza, e vejo que todos roubam. Uma coisa eu digo, e não sem lágrimas eu as digo publicamente neste Senado: com a língua, todos elogiam as virtudes, e depois, com todos os seus membros, servem aos vícios”. Estas palavras, por mais explosiva que pareça a sua forma, no fundo são a glosa de um princípio clássico: que a paixão nos impede de discernir, no caso particular, a verdade ou a norma reconhecida de modo universal. Daí o caráter inócuo de tantas discussões, de tantas trapaças de discussão no terreno das a rmações e medidas gerais, que se divertem em declarações e recomendações que, de momento, a ninguém incomodam. Pois ali onde dói e onde falhamos, é na situação particular, quando a paixão se interpõe; então, desvirtua-se a evidência dos princípios e ca sufocado o senso da responsabilidade e do dever. Digamo-lo com as palavras de Bernanos: “A crise não está situada nas inteligências, mas nas consciências”.539

Impõe-se, pois, de maneira premente, uma reta e sincera formação das consciências. Antes, porém, de apontar os princípios básicos que devem inspirá-la, é conveniente lançar um olhar nas causas que determinaram este adormecimento geral, quando não o completo desaparecimento, da consciência pro ssional considerada individualmente. 2. Causas da falta de consciência pro ssional540 538. Procurando não ser exaustivos, vamos assinalar as principais causas que determinaram esta falta de consciência pro ssional, que de modo tão claro e alarmante se percebe no mundo de hoje. São as seguintes: 1ª — , resultado, por sua vez, do esfriamento e enfraquecimento da fé e do conseguinte sentido materialista da vida em todos os seus aspectos e manifestações. Há mais de dois séculos o mundo vem procurando expulsar Deus da vida pública, secularizar totalmente a sociedade, e reduzir a religião, quando muito, ao nível particular e privado. Este é o ambiente geral que se respira em quase toda

parte. E o ambiente geral tem uma força formidável para o bem e para o mal. 2ª — de que sofre a grande maioria dos homens. Muitos católicos possuem apenas ligeiríssimas noções do Catecismo. Nos púlpitos, prega-se com freqüência contra os vícios individuais; raríssimas vezes sobre a justiça e os deveres pro ssionais. O resultado é uma ignorância quase total acerca das gravíssimas obrigações individuais e sociais que a própria pro ssão impõe; ignorância muitas vezes voluntária — não se pergunta, não se lê — para continuar trapaceando sem grandes remorsos de consciência. 3ª — . “Se todos fazem assim, por que serei eu o tolo que não o faz? Além disso, nem poderia viver de minha pro ssão”, etc. Deste modo, tratam de justi car-se os comerciantes, os vendedores de leite ou de vinho aguados, os que fraudam o peso ou aqueles que de alguma forma prejudicam o cliente. Não percebem que o mau costume não pode servir de desculpa a ninguém, ainda que não faltem moralistas dizendo-lhes que podem agir assim “para escapar do prejuízo comum”; e com isso resulta que ninguém começa a cumprir com seu dever, e, em conseqüência, ninguém o cumpre efetivamente. 4ª — . Hoje é comum pensar que a justiça deles depende exclusivamente da vontade dos contratantes. “Eu quero, ele quer; é su ciente”. A objetividade do tanto por tanto, isto é, a equivalência ou estrita igualdade entre o que se dá e o que se recebe — reclamada pela justiça comutativa — não é levada em conta para nada. Caso se consiga, mesmo com enganos, que o outro queira — sem se preocupar se esse querer é forçado pela angustiante necessidade —, já se dá por válido o contrato. E é claro que isto não basta. Diante de Deus, assim se destrói a justiça.

5ª —

. A sociedade humana é um fato moral nascido do dever natural de nos amar e ajudar mutuamente. Hoje, porém, já não se entende assim. Acredita-se que todo o social pertence à ordem da liberdade, como se efetivamente a sociedade nascesse de um pacto ou convênio (Rousseau). Em suma, pensa-se de bom grado que se tem direitos para com a sociedade, mas não deveres. Contudo, o direito e o dever são correlativos, e é absurdo falar dos primeiros sem reconhecer os segundos. Somente Deus, dono absoluto de tudo o que existe, tem unicamente direitos, sem se ver constrangido por nenhum dever. 6ª — . Intimamente relacionada com o que acabamos de dizer, está a obrigação que todos temos de procurar o bem comum, do qual depende em tão grande escala o nosso próprio bem particular. Mas quem se lembra do bem comum quando se trata de fazer um negócio? Existe um ditado galego que diz: “O que é comum não é de ninguém”. O ditado tem formato galego, mas possui aplicações abundantíssimas em toda parte. 7ª — no campo pro ssional. Antigamente, um médico, um farmacêutico, um alfaiate, um sapateiro, um vendedor de leite... conhecia a todos e a cada um de seus clientes, e, de certo modo, convivia com eles. Eram relações de homem a homem, de pessoa para pessoa. Hoje, não; hoje a pessoa desapareceu e cou confundida com a massa. Hoje se vê unicamente o cliente, aquele que deixa algumas moedas, que é o que ca no caixa e se anota nos livros e, em de nitivo, é a única coisa que se busca. Praticamente já não existem relações de homem a homem, nem nos sentimos parte da sociedade, nem sabemos o que é o bem comum, como o sabem os vizinhos de uma aldeia quando consertam juntos uma fonte ou uma estrada.

8ª — que se obtém em certas pro ssões (trabalhadores braçais, empregados de fábricas, porteiros, etc.), e com isso aqueles que as exercem se julgam autorizados a dar um rendimento extremamente limitado, de acordo com o escasso salário que recebem. E desse modo se estabelece um círculo vicioso que torna esse mal praticamente incurável: “Não trabalho aquilo que devo, porque não me pagam o que devem. Não me pagam o que devem, porque não trabalho o que devo”. E em tudo isso, cada um é juiz em causa própria, e o direito e a justiça se transformam em palavras vazias, sem nenhum conteúdo. 9ª — . Antigamente, as pessoas aceitavam com simplicidade patriarcal a sentença da Sagrada Escritura: Necessários para a vida são a água e o pão, as vestes e a casa para abrigo da nudez (Eclo 29, 28). Hoje já não a aceitam. A vida moderna foi-se complicando extraordinariamente e criando um sem-número de necessidades ctícias. Não se pode prescindir do cinema, do futebol, do cassino ou do bar, do tabaco, da roupa de patrãozinho, etc. Naturalmente, os salários não costumam dar para tanta coisa; e como ninguém se resigna a diminuir seu estilo de vida de acordo com suas modestas possibilidades, não resta outra solução senão buscar o aumento da renda por todos os meios que caiam ao alcance das mãos, sejam eles lícitos ou ilícitos. 10ª — é outra causa de desmoralização. Elas não são respeitadas porque com freqüência são demasiado conhecidas as suas origens turvas, as suas contínuas mudanças, a facilidade com que se deixam abertas portas falsas para burlá-las impunemente, e eventualmente as arbitrariedades em sua aplicação por parte daqueles que são encarregados dela ou de vigiar por seu cumprimento, etc. Segundo o absurdo sistema democrático que impera na maioria das nações do chamado “mundo livre”, as leis devem ser obra de todos. Mas,

como não é possível que elas sejam ao gosto de todos, devem ser ao menos ao gosto da maioria. De modo que, quando há cinqüenta e um que dizem sim e quarenta e nove que dizem não, estes últimos têm de se submeter aos primeiros, os quais, apenas por serem mais numerosos, têm a razão e a autoridade (!) para se impor. Pobre razão e pobre autoridade, como cam prejudicadas! E como é difícil ver em tudo isso a autoridade do próprio Deus que, por meio de seus legítimos representantes, impõe as leis como uma ordenação da razão dirigida ao bem comum, promulgada por aquele que tem o governo da comunidade! 11ª — . Segundo esta falsa teoria, grande número de leis civis — ainda que legítimas e justas — não obrigam em consciência, nem é pecado algum infringi-las, embora seja obrigatório pagar a multa correspondente caso se tenha a má sorte de ser surpreendido pela polícia ou pela guarda civil.541 Para prevenir-se contra essa desgraça, na época passada dos contrabandos, houve comerciantes inescrupulosos que chegaram a constituir entre eles uma espécie de sociedade de seguros contra multas, para que assim cada um deles pudesse continuar roubando sem riscos, amparado por todos. Na realidade, se as leis que impunham os impostos e os preços eram meramente penais — como a rmavam sem inibição muitos moralistas —, era perfeitamente lícito assegurar-se contra as penas, sem protestos nem remorsos de consciência. A tais aberrações conduzem os princípios falsos! Com razão pôde escrever um ilustre professor de direito da Universidade de Madrid que “a moralidade pública de um país está na razão inversa da intensidade com que nele é mantida a doutrina das leis puramente penais”.542 3. Princípios básicos para a formação da consciência pro ssional 539. Uma vez assinaladas as principais causas da falta de consciência pro ssional, impõe-se a consideração dos princípios fundamentais ou básicos para sua formação reta e cristã. Também

nesta seção nos moveremos em um plano geral mais ou menos aplicável a todas as pro ssões, já que é impossível descer a detalhes concretos ligados a cada pro ssão em particular. São os seguintes: 1º — . É o princípio fundamental. Sem fé, sem religião, sem temor de Deus, não existe moral humana que possa manter-se em pé. Quanto se trabalhou, há mais de um par de séculos, para inventar uma moral sem dogma nem sanção! Mas tudo em vão. “Ninguém pode colocar outro fundamento senão aquele que já está posto, que é Jesus Cristo” (1Cor 3, 11). Se falta o sentido religioso da vida e se não são levadas em conta as sanções ultraterrenas, a moralidade individual e social carece de base e fundamento. Como diz o apóstolo São Paulo, “se os mortos não ressuscitam, comamos e bebamos, pois amanhã morreremos” (1Cor 15, 32). Não existe outra norma de moralidade senão a lei do mais forte, a sagacidade do mais esperto ou a valentia do mais audacioso. 2º — . O homem é essencialmente sociável. Não só porque ele não pode sustentar-se sem a ajuda dos demais, mas, antes e acima de tudo, porque Deus o fez assim, porque lhe deu uma natureza essencialmente inclinada a viver em sociedade com seus semelhantes. Imaginemos o espantoso tormento de um homem que casse completamente sozinho na terra, ainda que dotado de imortalidade, e ainda que pudesse satisfazer sem esforço, por artes de encantamento, todos os seus gostos e caprichos, exceto o de jamais se encontrar com nenhuma outra pessoa humana; ninguém viria a aceitar semelhante felicidade, que equivaleria a um assustador desterro, uma prisão perpétua no imenso cárcere do mundo. Constituído rei da Criação, Adão não se sentia feliz no paraíso terrestre, porque “não havia entre todos os seres vivos uma auxiliar semelhante a ele” (Gn 2, 20), até que Deus criou a primeira mulher, isto é, até que Ele satisfez a tendência do homem a associar-se com seus semelhantes.

Pois bem: este caráter social da pessoa humana impõe deveres gravíssimos no relacionamento e no comércio com os demais homens, que não obedecem a pactos ou convênios voluntários (Rousseau), mas que correspondem, ao contrário, à lei natural, e são, por isso mesmo, absolutamente irrenunciáveis. E se é assim, se a sociedade foi querida e ordenada por Deus através da lei natural, o dever primário e fundamental do homem, enquanto social e em nível puramente humano, é em relação à sociedade, da qual recebe tudo, depois de Deus, e à qual deve tudo, como a Deus e aos pais. Daí se deduz claramente que, em igualdade de ordens, o bem comum deve prevalecer, por direito natural, sobre toda classe de bens individuais e familiares. Revalorizar este grande princípio entre todos os homens é um dos pilares básicos para a formação reta e cristã das consciências. Pois para unirmonos em sociedade com nossos semelhantes e oferecer nossa colaboração pessoal para o bem comum, necessitamos exercer honrada e dignamente uma pro ssão qualquer, entre as muitas a que o homem pode dedicar-se segundo a vocação, as aptidões e as circunstâncias de cada um. 3º — . Se a pessoa humana é social por natureza, segue-se com inevitável lógica que também o serão as suas atividades humanas, já que, como ensina a mais elementar loso a, “a operação segue o ser”; ao ser social corresponde a atuação social. Assim, o trabalho é essencialmente social. E poderíamos chamálo de comunitário. É impossível que cada um de nós o faça em sua totalidade. Realizamos tudo entre todos. No material e no espiritual. E quanto mais íntima, mais ordenada e mais abnegada seja esta mútua colaboração, maiores e melhores frutos ela produzirá. E tudo isso procede da multiplicação, do entrelaçamento e da especialização do trabalho pro ssional de cada um. E assim a vida da sociedade vem a ser como que o conjunto das funções de um organismo bem ordenado e, por isso mesmo, perfeitamente sadio. Consciência social, ordenação social

do trabalho, cada um para todos e todos para cada um: eis aqui a sociedade ideal, ditada pelo próprio Deus através da natureza humana. Para realizar este magní co ideal, a Idade Média, inspirando-se nos princípios católicos, organizou o trabalho e as pro ssões em associações e colegiados, que foram destruídos pela revolução. Mas estes voltaram a ressurgir, de certo modo, porque obedecem a uma necessidade social, e a natureza volta por conta própria. As associações voltaram a surgir sob a forma de sindicatos, e os colegiados mantendo seu próprio nome. Ah! Mas com uma diferença substancial e importantíssima. Na Idade Média, as associações e colegiados eram constituídos por um tríplice elemento: a) o patronal, formado pelos patrões de hoje; b) o dos o ciais aprendizes, que viriam a ser os patrões de amanhã, de modo que seu trabalho adquiria um sentido conservador, positivo e edi cante, no sentido losó co e construtivo da palavra; e c) o dos homens probos (probi-homines), que eram os representantes do público, os defensores do bem comum diante de qualquer imposição egoísta de classe. Hoje subsistem os colegiados — de médicos, farmacêuticos, advogados, arquitetos, etc. —, mas sem outra representação que a dos técnicos associados. Será que, deste modo, sua atuação será sempre justa? Suas determinações estarão sempre em conformidade com as exigências do bem comum? Devemos temer que não, dado o egoísmo de classe que hoje domina no mundo, ao mesmo tempo causa e efeito desta má organização. Outro tanto se deve dizer dos sindicatos, sobretudo quando — como ocorre na maioria das nações — estão inspirados nos princípios marxistas. Aquilo que unicamente se procura e se tenta não são as exigências do bem comum geral — que neles não está

representado por ninguém —, mas as reivindicações de uma determinada fração; quando não se põem ao exclusivo serviço de ódio e luta de classes, supremo ideal marxista para chegar à revolução mundial que, longe de os melhorar, iria piorar terrivelmente os males da sociedade e os prejuízos ao bem comum. 4º — . De nitivamente, as razões de índole puramente humana devem ceder a primazia para razões de tipo transcendente e sobrenatural. Somente estas possuem força su ciente para resistir e superar o embate do egoísmo humano, que sempre trata de buscar razões ilusórias para impor a sua: perante Deus não cabe a insinceridade nem a hipocrisia. A fé nos diz que todo o gênero humano foi elevado por Deus à ordem sobrenatural da graça e da glória. Em conseqüência, todo ele constitui a grande família de Deus. Todos os homens são lhos de Deus, seja em ato (os que já estão na graça), seja, ao menos, em potência (aqueles que não a possuem atualmente, mas podem chegar a possuí-la). Isto estabelece entre todos eles um vínculo de solidariedade em Cristo muito mais íntimo e profundo que aquele resultante da simples participação na mesma natureza humana. Cristo é a Cabeça de um Corpo místico, cujos membros (em ato ou em potência) são todos os homens do mundo. Assim, já não é somente um crime social prejudicar o próximo enquanto simples pessoa humana, mas também uma espécie de sacrilégio contra o Corpo místico de Cristo: “Saulo, Saulo, por que me persegues?” (At 9, 4). Bem o compreendeu o próprio São Paulo quando mais tarde escreveu aos coríntios: “E assim, pecando contra os irmãos [...], pecais contra Cristo” (1Cor 8, 12). E o próprio Cristo nos diz que, na fórmula do Juízo Final, fará alusão à conduta que tivermos observado para com o próximo, como se a tivéssemos observado para com Ele mesmo: “Porque tive fome e me destes (ou não me destes) de comer”, etc. (Mt 25, 35 ss.). Que sublime elevação da natureza humana! Mas também, e pela mesma razão,

que terrível responsabilidade esta do descumprimento de nossos deveres pro ssionais, pelo prejuízo que com ele causamos ao nosso próximo, representante do mesmo Cristo! Aqui se traça uma nova e sublime sociologia, uma sociedade teocêntrica — como a do antigo povo escolhido — em contraposição à egocêntrica e individualista, introduzida pelo humanismo pagão e liberal, e às utopias do marxismo e do comunismo. Existe aqui um novo conceito de sociedade, que se transforma em visceral família de Deus; um novo fundamento para a lei, que deixa de ser uma imposição extrínseca, quiçá despótica e arbitrária, para se transformar em algo vital, cujo cumprimento brota espontaneamente do coração como simples manifestação de nosso amor a Deus e ao próximo; um novo conceito de trabalho, que perde automaticamente toda a sua odiosidade ao se transformar em um meio de redenção espiritual, de expiação de nossos pecados e de aperfeiçoamento espiritual, com altíssimo valor meritório para o céu. Considerando tudo isto, a consciência pro ssional não somente caria formada, mas chegaria à sua máxima perfeição. Porque seu elevadíssimo ideal se perde no além, fulgurante em esplendores de eternidade, onde o bem próprio e pessoal aparece plenamente fundido e identi cado com o bem de todos e com o bem de Deus, porque toda contraposição foi superada, como foi superada a própria justiça ao car mergulhada no oceano do amor in nito.

Artigo 2 — Princípios fundamentais da moral profissional

540. Pressuposta a reta formação da consciência pro ssional com base nos princípios que acabamos de recordar, vejamos agora quais são as principais normas éticas ou princípios fundamentais de moralidade a que se deve ajustar o exercício de qualquer pro ssão humana. 1º — . É a base de tudo. A moralidade pro ssional não é nada mais que um aspecto parcial da moralidade da pessoa. É quase impossível que uma pessoa perfeitamente imoral em sua conduta privada não o seja também em sua conduta pro ssional. Talvez, do ponto de vista técnico, domine maravilhosamente sua pro ssão e até possua prestígio internacional; porém, é quase certo que, quando se apresentar algum sério con ito de ordem moral no desempenho de sua pro ssão, resolvê-lo-á de maneira iníqua, se não tiver muito enraizados em sua alma os hábitos de uma moralidade inatacável em nível individual. Não existem, por acaso, médicos ilustres que não encontram inconveniente em aconselhar o chamado “aborto terapêutico”, ou em praticar a “craniotomia” do feto vivo, apesar da absoluta imoralidade de tais operações? Existe, pois, a obrigação de ser um homem honrado, honesto; de praticar a retidão em tudo, para ser um bom pro ssional. Todas as boas disposições morais do indivíduo se manifestarão no exercício da pro ssão. Contudo, a referência pode ser mútua. Às vezes, basta que alguém seja colocado em um posto de con ança, em algum cargo delicado e de responsabilidade, para que se desperte nele um grande sentido de honra e de nobreza, e comece, renunciando a um passado duvidoso, a praticar uma vida de elevado nível moral. Assim, a pro ssão pode tornar-se uma escola de perfeição individual, de prática de muitos atos de virtude, de renúncia, de educação, caridade, paciência e honorabilidade, que muito ajudam na formação moral daquele que a ela se entrega com excelente disposição e vocação.543

2º — . É outro princípio fundamentalíssimo, e com freqüência muito descuidado na prática. A hierarquia dos valores humanos exige que, em caso de con ito entre a pro ssão e a moral, esta última prevaleça indefectivelmente sobre aquela. O contrário seria equivalente a

uma absolutamente inaceitável e monstruosa subversão dos valores humanos. As aplicações desse princípio são variadíssimas. É falsa, por exemplo, a gratuita a rmação de que “a arte não tem nada a ver com a moral”; igualmente o insano refrão de tantos comerciantes imorais: “Negócio é negócio”. Não existe arte, nem literatura, nem negócio, nem atividade pro ssional que possa prevalecer sobre as exigências inexoráveis da moral. Uma pro ssão cujo exercício fosse absolutamente incompatível com ela (por exemplo, a de meretriz) não pode ser adotada de modo algum, por ser indigna da pessoa humana e altamente perniciosa para o bem comum da sociedade. E aquelas outras pro ssões que, sem serem intrínseca ou necessariamente imorais, colocam quem as exerce em freqüentes situações de difícil solução moral, só podem ser exercidas por pessoas de grande formação técnica e escrupulosa retidão ética. Quem exerce uma pro ssão que a cada momento coloca problemas de consciência que não sabe resolver, está obrigado perante Deus e sua própria consciência a abandoná-la o mais cedo possível e a levar sua colaboração para o bem comum por meio de outras atividades pessoais menos difíceis e escabrosas. 3º — . Precisamente porque o exercício da própria pro ssão inclui deveres morais absolutamente indeclináveis, qualquer pro ssional está obrigado a inteirar-se diligentemente de quais sejam essas obrigações. Não se exige de todos o conhecimento profundo de um professor de deontologia ou de um moralista pro ssional, mas, sim, o necessário e su ciente para o reto desempenho de sua pro ssão nos casos cotidianos e ordinários, permanecendo sempre a obrigação de consultar os verdadeiros técnicos quando se apresentarem os casos obscuros, difíceis ou extraordinários. Já expusemos no número anterior os princípios fundamentais para se chegar a formar esta consciência pro ssional de maneira reta e cristã.

4º — . Referimo-nos à preparação técnica, ou seja, ao conhecimento profundo da própria pro ssão como tal. E dizemos que esta é absolutamente indispensável para seu reto desempenho. É verdade que nem todas as pro ssões reclamam o mesmo conhecimento técnico para que que ressalvada a moral pro ssional. Existem algumas pro ssões cujo êxito ou fracasso, em conseqüência da preparação técnica ou da falta dela, recai quase exclusivamente sobre quem a exerce, sem que ocorra qualquer repercussão social em prejuízo dos demais (por exemplo, a pro ssão de saltimbanco ou de manipulador de marionetes). Outras pro ssões, porém, carregam a projeção social em suas próprias entranhas, e seu desempenho reto ou equivocado repercute direta e enormemente sobre os outros. Tais são, por exemplo, as do médico, do advogado, do juiz e, sobretudo, a do sacerdote. Nesta classe de pro ssões, a responsabilidade daquele que as exerce é grandíssima caso se atreva a fazê-lo sem a devida competência e preparação cientí ca. Santo Afonso de Ligório não vacila em escrever que “está em estado de condenação o sacerdote que se atreve a ouvir con ssões não tendo a necessária ciência”,544 pelo gravíssimo dano que pode ocasionar às almas. O mesmo se deve dizer, ressalvando as devidas distâncias, de qualquer outra pro ssão cujo mau desempenho, por falta da devida preparação, possa prejudicar gravemente o próximo em nível espiritual ou material. Então, que deverá fazer aquele que tenha certeza moral de não possuir o su ciente preparo técnico para o reto desempenho de sua pro ssão? De duas, uma: ou adquiri-lo o quanto antes — procedendo, enquanto isso, com grande circunspeção e cautela, seja consultando os verdadeiros técnicos e suspendendo temporalmente o próprio exercício da pro ssão — ou abandonála em de nitivo para dedicar-se a outras atividades menos prejudiciais para o próximo. É um dever de estrita justiça, cujo descumprimento traria consigo, em grande número de casos, a

obrigação de restituir ao próximo os danos e prejuízos a ele ocasionados. 5º — . Pressuposta a necessária preparação técnica, incumbe a todo homem a obrigação de trabalhar em sua própria pro ssão. O trabalho, em qualquer de suas formas — manual ou intelectual —, é uma lei inexorável imposta por Deus ao homem, não só como castigo do pecado (Gn 3, 19), mas também antes da queda original (Gn 2, 15), sem dúvida para evitar a ociosidade, com os grandes inconvenientes que a ela se seguem. Mesmo aquele que não precisa trabalhar para comer está obrigado a fazê-lo — de um modo ou de outro — para contribuir para o bem comum da sociedade. Tenha-se em conta, além disso, que o Doutor Angélico, ao explicar as principais nalidades do trabalho, diz serem elas quatro: a) proporcionarnos os meios de subsistência; b) suprimir a ociosidade, mãe de todos os vícios; c) refrear os maus desejos, morti cando o corpo; d) dar-nos os meios de praticar o preceito da esmola.545 Ao menos devido ao segundo e terceiro aspectos, absolutamente ninguém, nem mesmo os mais ricos e poderosos, está isento da lei universal do trabalho, de uma forma ou de outra.546 6º — . Como já dissemos, não há nenhuma pro ssão que, de uma forma ou de outra, não esteja relacionada com o próximo e o bem comum ou social. Os funcionários públicos, comerciantes, industriais, operários, empregados, etc., inclusive os pro ssionais que atuam por iniciativa própria e sem depender de um amo ou patrão alheio, estão ligados por vínculos de estrita justiça em relação a seus clientes ou patrocinadores. Não é preciso dizer que em todas as atividades pro ssionais é preciso observar com escrupulosa exatidão as exigências da justiça, a primeira das quais se refere à estrita igualdade (justiça comutativa) ou à devida proporção (justiça distributiva e legal) entre aquilo que se dá e aquilo que se recebe. Tudo o que venha a destruir esta igualdade ou proporção (honorários ou preços abusivos,

falsi cação de mercadorias, enganos e fraudes comerciais, defraudação das horas de trabalho, negligências e abandonos culpáveis, dano ou deterioração culpável das máquinas ou instrumentos de trabalho, subornos, grati cações indevidas, etc.) quebra a estrita justiça e traz consigo, por isso mesmo, a obrigação de restituição. É impossível salvar a moralidade pro ssional se se começa por romper com as exigências impostas pela justiça. Entretanto, são legião aqueles que as rompem diariamente, sem o menor escrúpulo de consciência e sem que nunca lhes ocorra acusar-se disso no tribunal da Penitência. Grande surpresa terão eles na hora da de nitiva prestação de contas diante de Deus. 7º — . A caridade — já o repetimos várias vezes — vai muito além e tem exigências muito mais re nadas que as da justiça estrita. Não somente o médico, o advogado, etc., aos quais a caridade impõe a obrigação de atender gratuitamente aos clientes pobres, mas também o funcionário público, o comerciante, o patrão, etc., estão obrigados ao constante exercício da caridade, ao menos por meio da prática da amabilidade, da educação e das boas maneiras. Esta obrigação de caridade chega ao seu ápice nas atividades do sacerdote, por vários aspectos: pela índole espiritual das mesmas, pelo gravíssimo escândalo que é dado ao faltar com elas, porque o sacertote representa o próprio Cristo, etc. 8º — . Como esplêndido complemento da justiça e da caridade, todos os pro ssionais devem preocupar-se em praticar as chamadas virtudes sociais, sem jamais se esquecerem de que não há, nem pode haver, nenhuma atividade pro ssional que nos obrigue ou autorize a cometer um pecado, por menor que seja. Dê-se especial atenção à veracidade: jamais é lícito dizer uma autêntica mentira, ainda que às vezes se possa recorrer, com justa causa, à restrição mental.547 Também são de

grande importância a guarda do segredo pro ssional, que obriga muito severamente em consciência, e o relacionamento com os companheiros de pro ssão, que deve estar impregnado da mais suave e profunda fraternidade, sem invejas, rasteiras, trapaças, desprezos, etc., que tanto desdizem a caridade cristã e tanto contribuem para o descrédito da própria pro ssão diante dos que são estranhos a ela.

Artigo 3 — A santificação da própria profissão 541. Pressupostos os grandes princípios da consciência e da moral pro ssional, que acabamos de recordar nos artigos anteriores, examinaremos agora de que maneira se deve santi car a própria pro ssão, e como iremos encontrar em seu desempenho cristão um dos meios mais poderosos e e cazes para a própria santi cação pessoal. Para extrair do exercício da própria pro ssão o máximo rendimento sobrenatural em ordem à própria santi cação, são requeridas essencialmente três coisas: 1ª — Que a pro ssão seja naturalmente lícita e honesta. 2ª — Que seja vivida em estado de graça santi cante. 3ª — Sob o impulso atual ou virtual da caridade sobrenatural. Vamos expor com a su ciente amplitude e clareza cada um destes três pontos fundamentais. 1. Que a pro ssão seja naturalmente lícita e honesta É

É

542. É uma questão de simples senso comum. É evidente que, se a própria pro ssão é em si desonesta e imoral, não é possível santi cá-la de modo algum: o pecado jamais pode mudar-se em obra virtuosa, por muitas voltas que se lhe dêem. Note-se, porém, que por “pro ssão ilícita ou imoral” não se deve entender somente aquela que o é abertamente, por seu objeto próprio (por exemplo, a de meretriz, de usurário, de vigarista, etc.), mas também aquela que é exercida de modo ilícito e dando as costas aos princípios da moral cristã, ainda que, em si, ela seja honesta e honrada. Assim, por exemplo, o comerciante que defrauda o cliente na qualidade, na quantidade ou no peso das mercadorias; o empresário que não ajusta sua conduta às exigências da justiça social e da caridade cristã; o encarregado que, por descuido habitual e culpável, ocasiona ou permite danos ou defeitos nos objetos, máquinas ou instrumentos de trabalho a ele con ados; o empregado que, por sua negligência habitual ou pelo cumprimento imperfeito de seu dever, ocasiona danos ou prejuízos à empresa onde trabalha; o industrial ou operário que defrauda sua empresa ou seu patrão nas horas de trabalho ou no rendimento normal e humano que deveria dar durante elas; o médico, o cirurgião, o advogado, o notário, o arquiteto, etc., que exige honorários abusivos ou ultrapassa as taxas legitimamente estabelecidas pela autoridade competente; aquele que impulsiona seu negócio com base em subornos, grati cações injustas, etc. (sobretudo se prejudicam um terceiro, e mesmo que não o prejudiquem). Em uma palavra, aquele que, no desempenho de sua própria pro ssão, se utiliza de qualquer procedimento incompatível com a moral cristã, é claro que não pode santi car de maneira alguma essa pro ssão tão indignamente exercida, por muito honesta e inatacável que ela possa ser em si mesma. O pecado, repetimos, nunca pode se mudar em obra boa e virtuosa. Isso é tão evidente, que nem é preciso insistir. 2. Que seja vivida em estado de graça santi cante É

543. É outra condição absolutamente indispensável para que o exercício da própria pro ssão seja meritório diante de Deus e tenha valor santi cante para quem a exerce. Aquele que realiza qualquer trabalho estando em pecado mortal está radicalmente incapacitado para o mérito sobrenatural. Enquanto ele permanecer em tão lamentável estado, não poderá merecer absolutamente nada na ordem da vida eterna, por maior e mais heróico que seja o trabalho realizado no plano meramente humano e natural. A razão disso é que a ordem sobre-natural transcende in nitamente toda a ordem puramente natural, e, por isso mesmo, esta última, sem sair de si mesma, jamais poderá alcançar o nível ou plano da primeira, por muito que se esforce em tentá-lo. Dizer o contrário seria equivalente a destruir o próprio conceito de ordem sobrenatural, já que, se de algum modo esta pudesse ser alcançada pela ordem puramente natural, teria deixado de ser sobre-natural. A impossibilidade absoluta é inteiramente clara e manifesta. A Igreja de niu expressamente esta doutrina contra as heresias que defendiam o contrário (pelagianos, semipelagianos, protestantes, Baio, etc.). Dada a importância prática desta doutrina, vamos expô-la um pouco mais em forma de conclusão.548 Conclusão: Sem a graça divina, o homem não pode merecer absolutamente nada na ordem sobrenatural, ou seja, nada que tenha valor meritório em ordem à vida eterna (Matéria de fé, expressamente de nida). 544. Eis aqui as provas: ) Senhor:

. Ouçamos o próprio Cristo, Nosso

Como o ramo não pode dar fruto por si mesmo se não permanecer na videira, tampouco vós, se não permanecerdes em mim. Eu sou a videira, vós, os ramos. Quem

permanecer em mim e eu nele, esse dá muito fruto, porque sem mim nada podeis fazer (Jo 15, 4–5).

Sabe-se que nossa incorporação a Cristo, iniciada pela fé, se realiza e se consuma pela graça e pela caridade. Logo, sem elas não podemos fazer nem merecer absolutamente nada na ordem sobrenatural. Por isso São Paulo diz: E se eu repartisse todos os meus bens e entregasse meu corpo ao fogo, se não tivesse caridade, de nada me aproveitaria (1Cor 13, 3).

Na ordem puramente natural, é impossível ir mais longe que entregar todos os bens ou o próprio corpo às chamas; e, no entanto, de nada isso aproveita se não se possui a caridade sobrenatural, que é inseparável da graça. ) dogmáticas:

. Eis aqui as principais declarações

xvi Concílio de Cartago (contra os pelagianos): Se alguém disser que a graça da justi cação nos é dada a m de que possamos mais facilmente cumprir pela graça aquilo que nos é mandado fazer pelo livre-arbítrio, como se, mesmo sem nos ser dada a graça, pudéssemos cumprir, ainda que não com tanta facilidade, os divinos mandamentos, seja anátema. Porque certamente sobre os frutos dos mandamentos falava o Senhor, e não disse: “Sem mim podeis atuar mais di cilmente”, mas disse: “Sem mim nada podeis fazer” (D. 105).

ii Concílio de Orange (contra os semipelagianos): “Se alguém disser que nos é divinamente conferida a misericórdia quando, sem a graça de Deus, cremos, queremos, desejamos, nos esforçamos, trabalhamos, oramos, vigiamos, estudamos, pedimos, buscamos e chamamos, e não confessa que pela infusão e inspiração do Espírito Santo se dá em nossos corações que creiamos e queiramos, ou que possamos fazer estas coisas como se deve; e condiciona a ajuda da graça à humildade e obediência humanas, e não consente em que é dom da própria graça que sejamos obedientes e humildes, resiste ao Apóstolo, que diz: ‘Que tens que não o tenhas recebido?’ (1Cor 4, 7), e: ‘Pela graça de Deus eu sou o que sou’ (1Cor 15, 10)” (D. 179).

“Se alguém a rma que pela força da natureza se pode pensar como convém, ou escolher algum bem que leva à salvação da vida eterna [...], está enganado por espírito herético, por não entender a voz de Deus, que diz no Evangelho: ‘Sem mim nada podeis fazer’ (Jo 15, 5); e do Apóstolo: ‘Não que sejamos capazes de pensar nada por nós como de nós mesmos, mas nossa su ciência vem de Deus’ (2Cor 3, 5)” (D. 180).

Concílio de Trento (contra os protestantes): Se alguém disser que a graça divina se dá por meio de Cristo Jesus somente a m de que o homem possa mais facilmente viver justamente e merecer a vida eterna, como se pudesse uma e outra coisa por meio do livre-arbítrio, sem a graça, ainda que com trabalho e di culdade, seja anátema (D. 812).

São Pio v condenou, entre outras, a seguinte proposição de Baio: A razão do mérito não consiste em que aquele que opera tenha a graça e o Espírito Santo que habita nele, mas somente em que obedece à lei divina (D. 1015).

) . Santo Tomás expõe dois argumentos inteiramente claros e demonstrativos.549 1º — Os atos humanos não têm proporção com o prêmio da vida eterna nem ordenação divina para consegui-lo. Não o primeiro, porque a glória é algo entitativamente sobrenatural, e o ato humano, sem a graça divina, é puramente natural. Entre o natural e o sobrenatural não existe proporção nem adequação alguma; distam entre si in nitamente. Falta, além disso, a divina ordenação do ato humano para a vida eterna, porque o ato não pode estender-se além de seus princípios efetivos; e estes, como são puramente naturais, não podem ordenar o ato além das fronteiras naturais. A ordenação intrínseca do ato natural ao m sobrenatural seria a negação da transcendência da ordem sobrenatural e, por conseguinte, a negação da própria ordem sobrenatural. 2º — Sem a graça santi cante, o homem está em pecado. E é evidente que o homem em pecado nada pode fazer que seja digno da vida eterna, à qual se opõe o próprio pecado. Por aí se vê quão perigoso é exaltar em demasia as chamadas virtudes naturais, que, mesmo sendo boas e recomendáveis em si, não têm por si mesmas valor algum em

ordem à vida eterna. As maiores obras de bene cência e lantropia realizadas por quem está em pecado mortal não têm perante Deus nenhum valor sobrenatural, e não podem exigir ou postular, direta nem indiretamente, a infusão da graça santi cante. Recorde-se os textos da Escritura que acabamos de citar e as solenes declarações da Igreja contra pelagianos, semipelagianos, protestantes e Baio. Ainda há outra coisa a dizer sobre as boas obras puramente naturais realizadas pelo justo na graça de Deus, como veremos em seguida.

3. Sob o impulso atual ou virtual da caridade sobrenatural 545. A simples posse do estado de graça já translada o homem para a ordem sobrenatural e o capacita, por isso mesmo, a merecer com suas boas obras a vida eterna, já que a graça e a glória estão no mesmo plano estritamente sobrenatural, como na ordem natural estão a semente e o fruto de uma mesma árvore. Entretanto, a ordenação à ordem sobrenatural pela graça santi cante é de ordem puramente habitual; e o mérito, ao contrário, nunca está nos hábitos, mas nos atos que deles brotam. O homem merece unicamente quando realiza alguma boa ação, não quando permanece ocioso ou adormecido, ainda que possua em sua alma a graça santi cante. Contudo, para obter de suas boas ações o máximo rendimento sobrenatural — ou seja, para que o mérito sobrenatural chegue a ser pleno e perfeito —, não basta realizar essas ações estando simplesmente na graça de Deus (sem mais); é preciso realizá-las sob o impulso atual, ou pelo menos virtual, da grande virtude da caridade, ou seja, é preciso fazê-las por amor a Deus e com o desejo de glori cá-lo ao cumprir sua divina vontade. Para maior clareza e precisão, exporemos esta doutrina em forma de conclusões, que iremos provando pelos lugares teológicos mais seguros. 1ª Conclusão. O homem em graça pode merecer por suas boas obras o aumento da graça, a vida eterna e o aumento da glória (Matéria de fé).

546. Os protestantes o negaram, mas consta claramente na Sagrada Escritura, e a Igreja o de niu expressamente no Concílio de Trento. Eis aqui as provas: )

:

“Depois de um ligeiro castigo serão cumulados de bênçãos, porque Deus os provou e os achou dignos de si” (Sb 3, 5). “Tudo isso é prova do justo juízo de Deus, para que sejais considerados dignos do reino de Deus, pelo qual padeceis” (2Ts 1, 5). “Já está preparada para mim a coroa da justiça, que me outorgará naquele dia o Senhor, justo juiz, e não só a mim, mas a todos os que amam sua vinda” (2Tm 4, 8).

) . O Concílio de Trento o de niu expressamente no seguinte cânon: Se alguém disser que as boas obras do homem justi cado são de tal maneira dons de Deus que não sejam também méritos do mesmo justi cado, ou que este, com as boas obras que faz pela graça de Deus e pelos méritos de Jesus Cristo (de quem é membro vivo), não merece verdadeiramente o aumento da graça, a vida eterna e a consecução da mesma (contanto que morra em graça) e o aumento da glória, seja anátema (D. 842).

)

. Ouçamos o arrazoado de Santo Tomás:

A obra meritória do homem pode ser considerada em duplo sentido. Primeiro, enquanto ela procede do livre-arbítrio; segundo, enquanto procede da graça do Espírito Santo. Se nos atemos à substância da obra e enquanto ela procede do livre-arbítrio, então não pode haver condignidade com a vida eterna, devido à máxima desproporção; contudo, dá-se uma razão de congruência, por certa igualdade proporcional, pois parece razoável que Deus, segundo a excelência de seu poder, recompense o homem que age segundo suas forças. Se falamos da obra meritória enquanto ela procede da graça do Espírito Santo, então merece de condigno a vida eterna. Pois neste caso o valor do mérito se mede pelo poder do Espírito Santo, que nos move para a vida eterna, conforme o texto de São João: “Brotará nele uma fonte de água que jorre para a vida eterna” (Jo 4, 14). Também se considera a recompensa da obra em atenção à dignidade da graça, mediante a qual o homem, feito consorte da natureza divina, é adotado como lho de Deus, ao qual se deve a herança pelo próprio direito de adoção, segundo o texto do Apóstolo: “Se lhos, também herdeiros” (Rm 8, 17).550

2ª Conclusão. Toda obra boa realizada na graça de Deus traz consigo algum mérito sobrenatural. 547. Eis aqui as provas: ) atos mais insigni cantes:

o diz expressamente em relação aos

E aquele que der de beber a um destes pequeninos somente um copo de água fresca a título de ser meu discípulo, em verdade vos digo que não perderá sua recompensa (Mt 10, 42).

) . O Concílio de Trento — como vimos na conclusão anterior — de niu que o homem em graça pode merecer com suas boas obras o aumento da graça e a vida eterna (D. 842). Em que medida e grau, nós o veremos nas conclusões seguintes. )

. A razão é que o homem em graça é lho de Deus e herdeiro da glória. Logo, qualquer uma de suas boas obras está ordenada para a vida eterna e, por conseguinte, traz um mérito em relação a ela. Se esse mérito se refere ao prêmio essencial ou apenas acidental, é outra questão que iremos examinar nas conclusões seguintes; mas a existência de algum mérito sobrenatural é inteiramente indiscutível. A mesma coisa pode ser demonstrada por outra razão muito profunda. Como ensina Santo Tomás, a caridade sobrenatural reside e informa a vontade do homem justo precisamente enquanto vontade (ou seja, em sua raiz ontológica mais profunda), não enquanto livrearbítrio.551 Daí se segue que no homem em graça todo ato humano verdadeiramente voluntário, se é bom, está informado pela caridade habitual e, por isso mesmo, pertence de algum modo à ordem sobrenatural (pela graça e pela caridade que o elevam), mesmo que se trate de uma obra entitativamente natural (por exemplo, beber um copo de água).

Agora, porém, cabe perguntar: até que ponto alcança a razão de mérito este ato natural elevado pela graça e pela caridade habitual até a ordem sobrenatural? É isto que vamos precisar na seguinte conclusão. 3ª Conclusão. As obras naturalmente boas realizadas em estado de graça recebem de imediato a in uência da caridade habitual, mas não a da caridade atual nem virtual. Por isso mesmo, o mérito sobrenatural as alcança de uma maneira muito débil, remota e indireta. 548. Esta conclusão é evidente para todo aquele que conheça o estado da questão e o valor dos termos que nela se empregam. Com efeito, examinemos cada um desses termos. , ou seja, aquelas realizadas por um motivo puramente natural, embora honesto (por exemplo, por pura simpatia ou por compaixão puramente natural). Lembre que o principal elemento especi cativo de um ato humano é o motivo formal pelo qual é realizado (objeto formal quo, segundo a terminologia escolástica). Se o motivo formal for puramente natural, a ação será em si mesma puramente natural; se o motivo formal for sobrenatural, a ação será em si mesma também sobrenatural. . É muito diferente o caso de quem realiza essa ação puramente natural em estado de graça, daquele que a realiza em pecado mortal. Os dois podem realizar ações puramente naturais ou humanas — quando se inspiram em um motivo formal humano —, mas aquele que possui a graça santi cante e a caridade estará habitualmente ordenado ao m sobrenatural, coisa que falta àquele que está em pecado mortal. Esta ordenação habitual ao m sobrenatural repercute de algum modo, como veremos a seguir, sobre as mesmas obras puramente naturais ou humanas (por exemplo, o comer, beber, descansar,

etc., quando se realizam voluntariamente e segundo a reta ordem da razão). . Ou seja, sem que aquele que as realize se preocupe em reti car previamente sua intenção para a ordem sobrenatural. — como diz Santo Tomás

. É evidente, uma vez que

— a caridade reside habitualmente na vontade enquanto vontade, ou seja, no seu nível mais profundo e ontológico. De sorte que todo ato voluntário realizado por quem está na graça de Deus, pelo simples fato de brotar de sua vontade informada em sua própria raiz ontológica pela caridade sobrenatural, participa e recebe necessariamente a in uência da caridade habitual, consubstancializada, por assim dizer, com a mesma vontade enquanto tal. . É claro e evidente, porque, se a caridade recaísse sobre a ação de uma maneira atual ou, pelo menos, virtual (ou seja, em virtude de uma intenção formada anteriormente e não retratada), a obra já não seria natural, mas estritamente sobrenatural; isto porque — como se sabe — é precisamente o motivo formal (atual ou pelo menos virtual) que especi ca uma ação; logo, se o motivo formal de realizar essa ação fosse a caridade sobrenatural (atual ou virtual), a ação deixaria de ser puramente natural e se tornaria estritamente sobrenatural. ,

,

.

A explicação é muito clara. O mérito sobrenatural depende da graça e da caridade; é doutrina de fé expressamente de nida pela Igreja, como já vimos. Ora, a in uência da graça e da caridade sobre essa obra puramente natural, da qual estamos falando, é

muito débil, remota e indireta, já que in ui apenas habitualmente, mas não atual nem virtualmente, como acabamos de ver. Logo, o mérito sobrenatural dessa ação também será muito débil, remoto e indireto. Ele recebe, por assim dizer, certo resplendor indireto da graça e da caridade que iluminam a alma do justo; mas sem que o jorro de luz sobrenatural recaia em cheio sobre essa ação, como se a focalizasse diretamente com o re etor da caridade atual ou virtual. Agora, avancemos um passo a mais e vejamos que classe de mérito corresponde às obras sobrenaturais realizadas sob o in uxo da caridade atual ou virtual. 4ª Conclusão. As obras sobrenaturais realizadas pelo justo na graça de Deus são tanto mais meritórias quanto maior seja o in uxo da caridade atual ou virtual. 549. O raciocínio para demonstrá-lo é muito simples: O mérito inclui a ordenação da obra ao prêmio, por parte de Deus, e a voluntariedade do ato, por parte do homem; e, em ambos os aspectos, o mérito dos atos sobrenaturais se mede principalmente pela maior ou menor in uência da virtude da caridade. Ouçamos a Santo Tomás: O ato humano tem razão de mérito por dois motivos: o primeiro e principal, pela divina ordenação, segundo a qual o ato merece aquele bem ao qual o homem está ordenado por Deus. Segundo, por parte do livre-arbítrio, isto é, enquanto o homem tem o poder de agir por si mesmo e voluntariamente, o que não cabe às outras criaturas (por exemplo, aos animais). Nos dois casos, a primazia ou o aspecto principal do mérito está na caridade. Em primeiro lugar, de fato, deve-se considerar que a vida eterna consiste no gozo fruitivo de Deus. Ora, o movimento da alma humana para gozar do bem divino é o próprio ato da caridade, pelo qual todos os atos das demais virtudes se ordenam a este m, enquanto as demais virtudes são imperadas pela caridade. Portanto, o mérito da vida eterna pertence primeiramente à caridade, e secundariamente às outras virtudes, desde que os atos destas sejam imperados pela caridade. De modo semelhante, também está claro que aquilo que fazemos por amor, nós o fazemos com maior voluntariedade. Daí se segue que, como a noção de mérito requer que o ato seja voluntário, o mérito corresponde principalmente à caridade.552

Deste magní co ensinamento conclui-se que o cristão que queira aumentar continuamente o grau do mérito sobrenatural contraído perante Deus — que se traduzirá em um aumento de glória eterna no céu —, mal deveria preocupar-se, na prática, com outra coisa do que fazer todas as coisas por amor a Deus e com a maior intensidade que lhe seja possível. Tinha razão Santa Teresinha do Menino Jesus quando, na véspera de sua morte, respondeu à Ir. Genoveva da Sagrada Face (sua irmã Celina), que lhe pedia uma palavra de despedida: “Já lhe disse tudo: a única coisa que vale é o amor”.553 5ª Conclusão. Na recompensa das obras meritórias, o prêmio essencial corresponde à maior ou menor caridade que as informou; e o prêmio acidental corresponde à maior ou menor dignidade da obra virtuosa considerada em si mesma. . . 1º — O mérito relativo à glória pode referirse à glória essencial (visão beatí ca, gozo fruitivo de Deus) ou à glória acidental (prêmios secundários ou acidentais, por exemplo, a maior ou menor glori cação do corpo do bem-aventurado). O prêmio essencial se refere diretamente a Deus (bem incriado, in nito); o acidental, aos bens distintos de Deus (bens criados, nitos). 2ª — Os atos meritórios realizados pelo homem podem proceder de virtudes muito diversas. Alguns são atos elícitos da própria caridade, ou seja, procedem direta e imediatamente dela mesma (os atos de amor a Deus, a nós mesmos ou ao próximo por Deus); outros são atos das demais virtudes infusas, teologais ou morais; outros, nalmente, das virtudes naturais ou adquiridas. 3ª — Os atos elícitos de todas as virtudes distintas da caridade podem ser imperados por esta. Quando se realiza um ato de virtude qualquer sob o imperativo da caridade (ou seja, por amor a Deus ou ao próximo por Deus), deve-se distinguir em tal ato duas classes de bondade: uma, aquela que vale por sua própria

espécie e por seu objeto próprio (por exemplo, de humildade, paciência, etc.), e outra, aquela que recebe o in uxo ou o imperativo da caridade. . Nossa conclusão tem duas partes, que convém provar em separado. 1ª — N

, .

551. A razão disso é que somente a caridade expressa uma relação direta e imediata a Deus, como m último sobrenatural; logo, somente a ela corresponde o prêmio essencial da glória, que consiste, cabalmente, na visão e no gozo fruitivo de Deus como m último sobrenatural. De fato, a fé e a esperança, embora sejam também virtudes teologais (como a caridade), por terem a Deus como objeto direto e imediato, não o têm como m último, mas como princípio de onde nos vem o conhecimento sobrenatural de Deus (fé) ou o auxílio onipotente para alcançar a bem-aventurança (esperança). Quanto às virtudes morais infusas, estas são de ordem extrateologal, ou seja, não têm a Deus por objeto imediato, mas os atos humanos, que elas reti cam e elevam à ordem sobrenatural: não se referem ao m, mas unicamente aos meios para alcançá-lo. Somente a caridade, entre todas as virtudes infusas teologais e morais, tem a Deus por objeto direto e imediato exatamente enquanto último m sobrenatural.554 Logo, somente ela está ordenada, em si, ao prêmio essencial da glória. As outras virtudes só podem alcançar esta nalidade suprema quando realizam seu ato por um imperativo da caridade (por exemplo, quando o ato de fé, de humildade, de paciência, etc., se realiza por amor a Deus) e na medida e no grau desse imperativo — nada mais.

Eis aqui alguns textos de Santo Tomás explicando esta doutrina: Entre aqueles que vêem a Deus por essência, alguns o vêem com maior perfeição do que outros. No entanto, isto não se dá porque existe em alguns uma imagem de Deus mais perfeita que em outros, conforme dissemos, já que aquela visão não se realiza mediante imagem alguma, mas porque o entendimento de alguns terá maior poder ou capacidade que o de outros para verem a Deus. Porém, como o entendimento não tem esta capacidade em virtude de sua natureza, mas graças à luz da glória, que de certo modo o faz deiforme, segue-se que o entendimento que mais participe da luz da glória será aquele que verá a Deus com maior perfeição. Ora, participará mais da luz da glória aquele que tiver maior caridade, porque onde existe mais caridade, há também maior desejo, e é o desejo que de algum modo prepara e torna apto aquele que deseja para receber o desejado. Logo, quem tiver maior caridade, é este que verá a Deus com maior perfeição e será mais feliz.555 A magnitude do mérito pode ser medida por dois princípios. Primeiramente, pela raiz da caridade e da graça. E tal quantidade de mérito corresponde ao prêmio essencial, que consiste no gozo fruitivo de Deus, pois aquele que faz uma obra com maior caridade gozará mais perfeitamente de Deus. Em segundo lugar, pode-se medir o mérito pela magnitude da obra realizada. Esta pode ser dupla: absoluta e proporcional. De fato, a viúva que lançou dois tostões no gazo lácio ou cofre do templo fez uma obra menor que os que depositaram grandes esmolas; mas, pela quantidade proporcional, ela fez mais, segundo a sentença do Senhor, porque a oferta ia mais além de seus recursos. Ambos os gêneros de quantidade correspon- dem, no entanto, ao prêmio acidental, que é o gozo do bem criado.556

2ª — O

.

552. Santo Tomás acaba de no-lo dizer no texto citado em último lugar. A razão disso é que as demais virtudes, teologais ou morais, não têm por objeto a Deus como m último sobrenatural (que corresponde exclusivamente à caridade) e, por isso mesmo, não podem, por si mesmas, ter relação alguma com o prêmio essencial (que consiste na fruição de Deus); embora possam tê-lo se seu ato se produz pelo imperativo da caridade, ou seja, se é produzido por amor a Deus, caso em que terão prêmio essencial por aquilo que possuem de caridade, e acidental pelo que possuem por si mesmas, ou seja, em razão de seu próprio objeto. Santo Tomás, comentando o texto de São Paulo aos coríntios: “Cada um receberá conforme o seu trabalho” (1Cor 3, 8), escreve

com admirável precisão e clareza: Pode-se entender que o trabalho seja maior de três maneiras. Em primeiro lugar, segundo o grau de caridade, à qual corresponde a recompensa do prêmio essencial, ou seja, o da fruição e visão divinas, segundo São João: “Se alguém me ama, será amado por meu Pai e eu o amarei e me manifestarei a ele” (Jo 14, 21). Daí se segue que quem trabalha com maior caridade, ainda que realize um trabalho menor, receberá maior prêmio essencial. Em segundo lugar, pelo tipo de obra realizada; porque assim como nas coisas humanas se dá maior prêmio a quem trabalha em uma obra mais digna — por exemplo, premiase mais o arquiteto que o trabalhador braçal, ainda que seu trabalho corporal seja menor —, assim também, nas coisas divinas, aquele que se ocupa de obras mais nobres receberá maior prêmio em relação a alguma prerrogativa ou vantagem de prêmio acidental, mesmo que eventualmente tenha trabalhado menos sicamente; assim, por exemplo, dá-se uma especial auréola (prêmio acidental) aos doutores, às virgens e aos mártires. Em terceiro lugar, pela quantidade do trabalho, o que pode ocorrer de dois modos. Às vezes o trabalho maior merece recompensa maior, principalmente quanto à remissão da pena — por exemplo, por ter jejuado mais tempo ou peregrinado mais longamente —, e também quanto ao gozo que receberá pelo trabalho maior. Outras vezes, porém, o trabalho é maior pela frouxidão da vontade ao realizá-lo, porque experimentamos menos trabalho nas coisas que fazemos por vontade própria. E tal aumento de trabalho não aumenta, mas até reduz a recompensa (já que a voluntariedade entra sempre na razão do mérito).557

Desta doutrina se infere que um ato virtuoso de pouca importância em si mesmo (por exemplo, dar um copo de água fria a um sedento), realizado, contudo, com enorme caridade, terá perante Deus um maior prêmio essencial que outro ato, em si mesmo muito maior e excelente (por exemplo, o próprio martírio) realizado com menor caridade ou amor a Deus. Ainda que este último, por outro lado, tenha maior glória acidental. 6ª Conclusão. A santi cação do leigo pelo exercício de sua própria pro ssão consistirá, por conseguinte, em desempenhá-la principalmente pelo motivo sobrenatural da caridade (que não exclui outros motivos humanos secundários); ou seja, fazendo com que o amor a Deus ou ao próximo seja o motivo principal e determinante de todas as suas atividades pro ssionais.

553. Esta conclusão é um simples corolário que se depreende espontaneamente das conclusões anteriores. Entretanto, explicaremo-la brevemente. ) . Estamos tratando deste assunto em toda a nossa obra. O leigo que aspire unicamente a salvar-se (e nada mais) não tem necessidade de se esmerar tanto; mas esse esmero é indispensável para todo aquele que aspira seriamente a santi car-se. E essa aspiração — como vimos no capítulo dedicado à vocação universal à santidade — é obrigatória para todo batizado, seja qual for o seu estado ou condição social. ) , ou seja, extraindo de suas atividades pro ssionais (sejam elas quais forem) o máximo rendimento santi cador. )

-

. Já vimos isto nas conclusões anteriores. A caridade sobrenatural é a única virtude que se ordena diretamente ao prêmio essencial da glória, que está sempre em relação com os méritos adquiridos neste mundo. Logo, o desempenho das atividades pro ssionais por esse motivo sobrenatural da caridade faz com que estas adquiram o máximo grau de mérito diante de Deus e, por conseguinte, a máxima e cácia santi cadora para aquele que as exerce. ) . É evidente que não. O pro ssional pode e deve buscar esses outros motivos humanos (por exemplo, o progresso material da humanidade, ganhar o pão para si ou para seus lhos, etc.), contanto que estes motivos humanos ocupem um lugar secundário, ou seja, que eles estejam plenamente subordinados ao motivo principal da caridade sobrenatural. Ambos os motivos são plenamente compatíveis e não se estorvam; antes, pelo contrário, complementam-se e auxiliam-se mutuamente. O amor a Deus, e ao próximo por Deus, impulsionará o pro ssional a desempenhar

cada vez melhor sua própria pro ssão, do que resultará manifestamente maior benefício para a humanidade ou, no plano meramente natural, para o próprio interessado. ) . Para obter do exercício da própria pro ssão o seu máximo rendimento santi cador, é preciso que a caridade sobrenatural (amor a Deus e ao próximo por Deus) não somente seja o motivo principal das atividades pro ssionais — como acabamos de ver —, mas que ela seja também, na medida do possível, o motivo determinante das mesmas. Para entender esta última parte de nossa conclusão, é mister distinguir entre motivo determinante e motivo concomitante de uma ação. Por exemplo, aquele que trabalha para ganhar a vida e, ao começar o trabalho, reti ca sua intenção, oferecendo-o para a maior glória de Deus, trabalha por dois motivos bem diferentes entre si: um motivo natural determinante da ação (ganhar a vida) e outro motivo sobrenatural concomitante (a maior glória de Deus). Fazendo assim, seu labor é certamente sobrenatural e meritório, mas não atinge toda a perfeição que poderia e deveria alcançar ao simplesmente inverter os motivos, ou seja, fazendo com que a glória de Deus fosse o motivo determinante da ação, e ganhar o seu pão fosse o motivo concomitante. Somente assim seria alcançada a máxima perfeição possível no desempenho das próprias atividades pro ssionais.558 Como se vê, esta doutrina é fecundíssima em aplicações práticas, e tem extrema importância na vida espiritual do cristão, sobretudo no que se refere à santi cação pro ssional. Qualquer pro ssão, por humilde que seja — lembrar a vassoura de São Martinho de Porres —, pode transformar-se em um grande instrumento de santi cação se suas obras correspondentes se realizam por amor a Deus (e não só com amor a Deus) e com o desejo de glori cá-lo,

cumprindo sua divina vontade. A caridade, o amor, é a quintessência da vida cristã; é a varinha mágica que transforma em ouro tudo o que ela toca, por pequeno e insigni cante que seja. O cristão que queira santi car-se de verdade e depressa não precisa preocupar-se com outra coisa, senão em fazer tudo por amor a Deus. É isto que São Paulo queria dizer quando escreveu aos éis de Corinto: “Quer comais, quer bebais ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus” (1Cor 10, 31); e aos Colossenses: “Tudo quanto fazeis por palavra ou por obras, fazei tudo em nome do Senhor Jesus, dando graças a Deus Pai por Ele” (Cl 3, 17). Santa Teresinha do Menino Jesus havia compreendido perfeitamente esta doutrina simpli cadora quando, na véspera de sua morte, pronunciou aquela fórmula admirável que já citamos mais acima: “Já lhe disse tudo: a única coisa que vale é o amor”.

Artigo 4 — A vida mística e os leigos 554. Como acabamos de ver no artigo anterior, os leigos devem encontrar no exercício sobrenaturalizado de suas próprias atividades pro ssionais um dos meios mais e cazes e imprescindíveis de sua própria santi cação pessoal. Ninguém pode conservar a menor dúvida sobre isto. Mas ainda é preciso interrogar se esse exercício puramente ativo de seus afazeres pro ssionais será de todo su ciente para os elevar até o cume da perfeição cristã, ou se será necessário que até mesmo os leigos, inteiramente mergulhados no curso das atividades terrenas, participem a seu modo de certa vida mística e contemplativa, se quiserem escalar aqueles cumes mais altos da perfeição e da santidade.

Por mais que a resposta a rmativa a esta pergunta envolva grandes di culdades para os leigos em sua vida prática de cada dia, a a rmação terminante no plano teórico nos parece inteiramente indiscutível. De fato, hoje é doutrina comum entre os grandes mestres da vida espiritual que, sem a atuação mais ou menos intensa dos dons do Espírito Santo ao modo divino — que é seu traço próprio e que caracteriza a chamada vida mística — sobre o exercício puramente ascético e ao modo humano das virtudes infusas, teologais ou morais, não é possível chegar à plena perfeição cristã. Pois a prática ascética dessas virtudes ao modo humano — que é próprio delas quando não são aperfeiçoadas pela modalidade divina dos dons do Espírito Santo — sempre resultará raquítica e imperfeita, cheia de reminiscências mundanas e de ressaibos de amor-próprio, que será impossível evitar inteiramente, por mais vigilância e interesse que humanamente se dedique para combatê-los. Já demonstramos amplamente tudo isso em outra de nossas obras, à qual remetemos o leitor.559 Ora, se isto é assim, por uma necessidade inevitável da prática das virtudes ao modo humano característico da ascética, é forçoso concluir que sem a atuação dos dons do Espírito Santo ao modo divino, próprio da mística, ninguém poderá alcançar por completo os cumes da perfeição cristã, seja qual for o seu estado ou gênero de vida: sacerdote, religioso ou simples leigo. Que a vida secular traz consigo grandes di culdades para a prática da oração contemplativa, ninguém pode pôr em dúvida. Se não fosse assim, o estado religioso — fuga do mundo para doar-se inteiramente a Deus — não teria sentido nem razão de existir. Porém, do fato certo e indiscutível de que a vida do leigo no mundo lhe di culta enormemente a prática da oração contemplativa, não se pode concluir de modo algum que este tipo de oração não é apto nem necessário para ele. A única conclusão legítima que se pode extrair desse fato é que chegar ao cume da

perfeição se tornará para o leigo uma tarefa mais difícil e exigente, mas de modo algum ele deve se dispensar em absoluto de tender, com todas as suas forças, na medida do possível, a esse ideal contemplativo indispensável para todos. É altamente signi cativo e consolador, em meio ao trepidante ativismo que caracteriza a vida moderna, ver como os próprios leigos que buscam seriamente santi car-se sentem a nostalgia e a necessidade de passar longos momentos de sossego contemplativo aos pés do sacrário ou no silêncio recolhido de sua habitação. Sem dúvida alguma, esses momentos de aparente ociosidade são os mais fecundos de sua vida; não só porque os unem intimamente com Deus — que é o manancial e a única fonte de toda perfeição e santidade — mas também porque encontram neles o mais poderoso estímulo e impulso para se entregarem, depois, com redobrado ardor e generosidade, às suas atividades pro ssionais e à prática intensa do apostolado no próprio ambiente. Sem a oração contemplativa, sem essa união íntima e visceral com Deus que torna a caridade incandescente, tudo se reduzirá a um febril ativismo, ao ruído exterior, ao “bronze que soa ou ao címbalo que retine” (cf. 1Cor 13, 1). Os próprios leigos têm escrito, em nossos dias, páginas deliciosas sobre a necessidade do silêncio contemplativo para colocarem um pouco de calma e sossego na agitação febril que caracteriza a vida no mundo de hoje. Como uma amostra e exemplo dessa inquietude dos leigos pelo sossego da vida contemplativa em meio à agitação do mundo, oferecemos ao leitor, a seguir, um precioso artigo vindo da pena de um leigo espanhol.560 555. A maior parte dos cristãos recita, todos os dias do ano, estas palavras da oração dominical: “Venha a nós o vosso reino”; entretanto, são muito poucos aqueles que têm pleno conhecimento de tudo o que isso signi ca. A maior parte não chega nem perto de entendê-lo. Vive-se — e isto, os melhores! — a espiritualidade da Antiga Lei; mas daquilo que constituía o essencial da mensagem de Cristo, da Boa Nova, mal resta alguma coisa na espiritualidade laica de nossos dias. Nas mentes de hoje, não se atribui nenhum valor positivo a esse reino dos céus que está dentro de vós, que o Filho de Deus nos veio pregar. Passou a ser, assim, como uma espécie de lenda, ou um fenômeno raro

de pessoas estranhas que, sob a denominação pejora- tiva de “misticismo”, é reservado apenas para certos religiosos, e, além deles, para algumas pessoas que se tornam objeto de especial admiração ou comiseração. Tal como acontece com a penitência e a austeridade ou morti cação, em um século em que o naturalismo e o materialismo dominam cada vez mais, a vida interior cristã, a vida contemplativa, vai sendo excluída com um aumento progressivo de convicção. Vai-se tornando cada vez mais embaraçosa a pregação de um Evangelho que se compõe principalmente, para não dizer totalmente, destes dois ingredientes. E da grande revelação que deve ser feita — a de que o Verbo de Deus se fez carne para levar toda a Criação ao Pai mediante a restauração e o desenvolvimento do reino de Deus no homem, por meio da Cruz, que nos deixava em herança —, a única coisa que se quer entender é a primeira parte, em que se quer ver o caminho aberto para legitimar nosso excessivo apego ao terreno. Como faremos para levar às mentes de hoje a mensagem eterna? De que maneira se conseguirá uma su ciente adaptação? Este é, certamente, um problema técnico de importância muito grande. Mas ao menos uma coisa está clara: para resolvê-lo não é cabível a norma de deixar de anunciar o Evangelho. Não cabe anunciá-lo pela metade, deixando de lado tudo aquilo que de momento pudesse chocar a mentalidade atual e pregando somente o que pudesse ser bem acolhido. Isto, além de in delidade, seria inútil e ilusório, e já vem acontecendo com muita freqüência. Hoje em dia, fala-se muito de espiritualidade secular. Também se fala muito de humanismo e encarnação e, em troca, ouvimos falar muito pouco sobre abnegação e contemplação. Dão-nos uma revelação raquítica, na qual se suprime o que havia de verdadeiramente bom na Boa Nova: o tesouro escondido e a pérola na de que nos fala o Evangelho; aquilo que, por outro lado, faz com que sejam suaves e leves o jugo e os fardos que são a lei da vida, e que não deixarão de pesar sobre nós porque tão pouco nos falam deles. Não se trata, desde já, de que os éis devam ser atraídos mediante a exposição e a promessa de maravilhosos prazeres que estariam apenas esperando que abrissem suas mãos para que pudessem se apossar deles, mas de levá-los a tomar consciência da existência dessa vida sobrenatural que receberam com o Batismo; de que não só não têm o direito de enterrála, como fez aquele réprobo do Evangelho, mas que ela constitui a parte essencial do dom de Deus; assim como de que, sem seu desenvolvimento, não só não conseguirão alcançar o m sobrenatural de santi cação para o qual foram criados, como tampouco atingirão a simples perfeição natural. Como diz Raul de Plus, . ., em frase que merece ser impressa: “Aquele que põe seu objetivo meramente na perfeição da vida natural, desprezando a vida sobrenatural, acabará por não conseguir sequer a primeira, e por viver a vida dos animais”. Está dentro da mais pura ortodoxia a tese, que se vai a rmando cada vez mais em teologia, de que a contemplação, como a santidade a que ela conduz, não é mais que a conseqüência normal e geral do desenvolvimento da graça que o homem recebe no Batismo. E não se trata simplesmente dessa contemplação que os teólogos chamam, em certo sentido, de “adquirida”, conseqüência do exercício das faculdades discursivas, ou por uma espécie de conaturalidade afetiva, e tampouco do mero conhecimento intelectual adquirido mediante a prática da meditação, intuitivamente. Trata-se da contemplação propriamente dita, teologal ou sobrenatural, que emana das virtudes vivas da fé, da esperança e da caridade, e da atuação dos dons do Espírito Santo de sabedoria e entendimento. Trata-se, pois, simplesmente, dessa fonte de água viva que

jorrará até a vida eterna (cf. Jo 4, 14) e desse nascer de novo (cf. Jo 3, 3) de que Cristo nos fala no Evangelho. Será preciso ver bem claro que a contemplação e a mística, neste seu sentido próprio de plenitude do ser cristão, não é algo extraordinário, nem algo como um “segundo caminho para a santidade”, utilizando a frase do Pe. Stolz, . . ., e que “se as almas não chegam nesta vida a aprofundar em seu ser cristão e em seu conhecimento pela fé até a experiência do divino, ver-se-ão forçadas a se despojar de todos os impedimentos que então arrastam no lugar de puri cação da outra vida, a m de se prepararem para a união com Deus na visão beatí ca”. O que existe de extraordinário na mística são certas reações psicológicas ou fenômenos especiais que se dão em determinadas pessoas, como as visões, os estigmas, os êxtases, etc. Estes não constituem, de modo algum, o essencial desta vida mística própria de todos os cristãos, e nem sequer dão a conhecer, de modo absoluto, os graus de interioridade dela. É muito importante sempre levar isto em conta e fazê-lo ver aos outros, a m de despojar a vida contemplativa ou mística propriamente dita dessa auréola e cor que conservam nas mentes de hoje, como se ela fosse algo raro e extraordinário, maravilhoso ou excêntrico, e de que se ouviu falar em histórias fantásticas ou em legendas de santos, mas para as quais ninguém tem motivo para se sentir chamado. Ao contrário, nunca se insistirá o bastante nesta necessidade do desenvolvimento da vida interior e da contemplação em toda a espiritualidade cristã. Isto deve constituir a essência e a base da espiritualidade laica. Assim diz o Pe. R. Garrigou-Lagrange, . ., professor da faculdade de teologia do Angelicum, em Roma, na obra citada: “A vida interior do justo que se inclina para Deus e que já agora vive dele, certamente é a única coisa necessária; para ser santo não é necessário ter recebido uma cultura intelectual ou possuir grande atividade exterior; basta viver profundamente de Deus. Isto é o que observamos entre os santos dos primeiros tempos da Igreja, muitos dos quais eram pessoas humildes e até escravos; isto é o que vemos em São Francisco, em São Benedito José Labre, no Cura d’Ars e em tantos outros”. E também: “Dir-se-ia que muitos pensam assim: ‘A nal de contas, basta que eu me salve, e não é necessário ser um santo’. Que não seja necessário ser um santo que faça milagres e cuja santidade seja o cialmente reconhecida pela Igreja, está certo; mas para ir ao céu é preciso empreender o caminho da salvação; e este não é outro, a não ser o próprio caminho da santidade. No céu só haverá santos, quer estes ali tenham entrado imediatamente depois de sua morte, quer tenham tido necessidade de serem previamente puri cados no purgatório. Ninguém entra no céu sem possuir aquela santidade que consiste em estar puro e limpo de toda falta; todo pecado, mesmo venial, deve ser apagado, e a pena merecida pelo pecado deve ser expiada ou perdoada antes que uma alma goze eternamente da visão de Deus, vendo-o como Ele se vê e amando-o como Ele se ama. Se uma alma entrasse no céu antes da remissão total de seus pecados, não poderia permanecer ali, e espontaneamente se precipitaria no purgatório para ser puri cada”.561 Deve ocupar, pois, um lugar de primeiríssima importância, na tarefa de levar aos éis de hoje a mensagem de Cristo, aquilo que constitui sua principal revelação: todos estão chamados à plena vida sobrenatural, à vida interior e ao seu desenvolvimento na vida contemplativa, entendida não como algo extraordinário que requer um chamado

especial de Deus, mas como algo completamente ordinário e inerente ao ser cristão e à vocação geral de todos à santidade. Sua essência está nessa emanação das virtudes teologais e nessa atuação dos dons do Espírito Santo de entendimento e de sabedoria, que nos dão uma penetração especial dos mistérios e das verdades de nossa fé, assim como um especial conhecimento experimental de Deus. Isso deve ser a primeira coisa na intenção, ainda que seja claro que necessariamente será a última na execução. Para a realização deste desenvolvimento da graça recebida no Batismo, o el cristão deverá se colocar em condição de poder alcançá-lo, bem como, também, adotar os meios adequados. Dessa condição derivará a necessidade dos meios, assim como sua razão de ser. Daí grande parte das exigências da vida ascética, e daí também a obrigatoriedade da vida de oração e de meditação. A base estará sempre na pureza da alma e da consciência, no afastamento, ou melhor, na ruptura com todo pecado deliberado, mesmo que seja o mais leve, o venial; assim como recorrer com freqüência às fontes dessa graça a ser desenvolvida: os sacramentos, especialmente a Eucaristia. Nenhuma outra coisa poderá substituir isto; não obstante, só ela não basta. Adaptar-se às normas da ascética cristã, que já era a condição indispensável para aquela pureza de alma, será também o primeiro passo a ser dado para isto; e a prática da oração e da meditação, juntamente com tudo o mais que constitui a vida de piedade — o cumprimento do dever de religião e de relação com Deus —, que também é necessário para conseguir o ajustamento da própria vida à lei de Deus, costuma ser o caminho obrigatório, igualmente, pelo qual é preciso passar para chegar à contemplação propriamente dita, à porta da santidade. Este último ponto é uma matéria a respeito da qual também há muito a ser feito na tarefa de renovação de nossa espiritualidade secular. Sua importância pode ser aquilatada se nos damos conta de que este ponto será o primeiro na execução da urgente e imperiosa necessidade de uma entrada geral nos caminhos da vida interior cristã. Certamente hoje não se fala sobre isto o bastante; não se insiste, não se exige. Não se o põe ao alcance de todos e não se o facilita a cada el. Muito útil será, por exemplo, fazer com que os éis de nossa época se bene ciem dos esforços realizados por muitos autores espirituais para nos libertar de certo metodismo exasperante e infrutuoso, que chegou a dominar nos últimos séculos. Assim, pois, é preciso reintegrarse ao espírito genuinamente cristão. É preciso escutar um pouco mais aquelas sublimes palavras, boas para todos — religiosos ou leigos — de um São João da Cruz ou de uma Santa Teresa de Jesus. É preciso meditar um pouco mais, igualmente, neste livro da Imitação de Cristo, de Tomás de Kempis, denominado o “livro de ouro do cristianismo”, igualmente bom tanto para os monges como para aqueles leigos que não se assustam por lhes falarem um tanto cruamente das exigências da vida cristã. É necessário que o mundo secular se compenetre mais da norma da Sagrada Escritura, e escute, por exemplo, aquelas frases do Apóstolo das Gentes: “Na verdade, considero tudo como perda em comparação com o sublime conhecimento de meu Senhor Jesus Cristo, por cujo amor perdi todas as coisas e as considero como lixo, para ganhar a Cristo” (Fl 3, 8). “Porque muitos andam por aí [...] aferrados às coisas terrenas. Mas nós já vivemos como cidadãos do céu” (Fl 3, 18–19). “Ora, se ressuscitastes com Cristo, buscai as coisas do alto [...] saboreai as coisas do céu, não as da terra. Porque já estais mortos e vossa vida está escondida com Cristo em Deus [...]. Fazei, pois, que morram os membros do homem terreno que existe em vós [...]” (Cl 3, 1–5). É preciso

que cheguemos, já aqui, no meio de nossas tarefas e negócios cotidianos, a esse conhecimento de Cristo que supera todo conhecimento, e a essa sabedoria que não se encontra nem nos “principados”, nem nas “potestades da terra”, nem no “entesouramento de prata e ouro”, nem nos “móveis de prata”, nem tampouco nas “trabalhosas empresas”, nem na “prudência terrena”, nem nas “fábulas instrutivas”, nem sequer na nobre “investigação da sabedoria humana”. Essa sabedoria que é dada por “aquele Senhor que sabe todas as coisas, Aquele que fundou a terra e a encheu de quadrúpedes; Aquele que emite a luz e ela vai, e chama por ela, e ela obedece tremendo de respeito” (cf. Br 3, 9–38). Admitir ou não, como base da espiritualidade dos leigos, a existência de um chamado geral para todos os cristãos à contemplação, é de capital importância para se conseguir atinar na solução dos problemas concretos que se apresentam a nós. Os grandes desvios existentes têm como base, na maioria das vezes, parece-nos, a negação deste princípio, que não deixa de ser freqüente. Em especial, aqueles que, em maior ou menor medida, caem na chamada “heresia da ação”, e aqueles que resistem às exigências de abnegação do Evangelho, não têm mantido a fé necessária naquilo que nele aparece pregado com clareza e exatidão tão meridianas. A voz mais autorizada da Igreja — a de Sua Santidade, o Papa Pio — nos diz de maneira clara e contundente o que podemos crer a respeito deste ponto: “Com o nome de vida contemplativa canônica não se entende a interior e teológica, à qual são chamadas todas as almas religiosas e também os cristãos que vivem no século, e que cada um, em seu estado, deve cultivar”.562 Mediante nossa atividade, sempre que esteja informada por uma intenção sobrenatural, podemos crescer na caridade, e, portanto, progredir em nossa vida espiritual — inclusive em nossa vida mística; mas, como diz Fr. Ignacio Menéndez-Reigada, . ., apenas até certo grau, bastante baixo. Para que possamos chegar a alcançar a perfeição e a plenitude que é própria da caridade, necessitamos do concurso dos dons do Espírito Santo, cuja atuação constitui a contemplação.

556. Acreditamos sinceramente que esta é a pura verdade. Sem participar de algum modo da vida mística e contemplativa — no grau e na medida compatíveis com suas atividades pro ssionais e com o desenrolar de sua vida, forçosamente mergulhada nas coisas do mundo —, parece-nos que os leigos jamais poderão galgar por completo os cumes mais altos da perfeição e da santidade. Estude-se com serenidade e sem paixão a vida dos leigos que conseguiram santi car-se em meio ao mundo — um Ozanam, um García Moreno, um Giorgio Frassati, um Contardo Ferrini, uma Elisabeth Léseur, um Guy de Larigaudie, etc., etc. —, e se verá como no meio de suas exigentes ocupações, e até de sua

esplêndida jovialidade desportiva (como as de Frassati e Larigaudie) souberam encontrar longos momentos de ócio contemplativo para desafogar o ardente amor de Deus que devorava seu espírito. Precisamos ver nesses momentos de profunda união com Deus — perfeitamente compatíveis com sua vida autenticamente secular — não só uma das mais seguras manifestações da santidade heróica a que souberam elevar-se, mas também uma das causas que mais decisivamente in uíram em fazê-los escalar aquelas sublimes alturas em meio ao ruído e à agitação do mundo.

CAPÍTULO II | A consagração do mundo 557. Chegamos a uma das facetas mais típicas e características da espiritualidade própria e peculiar dos leigos: a chamada consecratio mundi, ou cristianização de todas as estruturas do mundo terreno e humano. Isto porque, ainda que seja verdade que todos os cristãos devem contribuir para esta tarefa gigantesca com todas as forças a seu alcance, somente aos leigos cabe realizar essa “consagração” a partir do interior dessas estruturas humanas, diferentemente dos clérigos e religiosos, que devem realizá-la —– na parte que lhes corresponde — fora delas. Nestes últimos tempos, principalmente a partir do imortal Pontí ce Pio — que foi o primeiro papa a usar a expressão consecratio mundi —, foram escritas milhares de páginas sobre este interessantíssimo e transcendental assunto. Vamos oferecer ao leitor uma sintética visão de conjunto, reunindo os aspectos mais fundamentais dessa “consagração”, dentro dos limites que nos

impõe o marco geral de nosso trabalho. Uma exposição exaustiva exigiria uma obra de vários volumes, que ainda não foi tentada por ninguém. Vamos dividir nossa exposição em quatro artigos: 1º — Questões prévias. 2º — Doutrina conciliar sobre a consecratio mundi. 3º — Aplicação às principais estruturas humanas. 4º — No mundo sem ser do mundo.

Artigo 1 — Questões prévias Neste primeiro artigo, especi caremos o sentido exato dos termos da fórmula consecratio mundi, e falaremos sobre a redescoberta dos valores do mundo, realizada pelos leigos quase em nossos dias. 1. A fórmula “consecratio mundi” 558. Antes de tudo, é preciso xar o verdadeiro sentido e alcance das duas palavras constituintes da fórmula que estudaremos, ou seja, o que se deve entender por “consagração” e por “mundo”. a) Consagração. A palavra “consagrar”, tomada em sua acepção restrita, signi ca “tornar sagrada uma coisa ou pessoa” que, antes da consagração, era simplesmente profana, ou seja, que nada tinha a ver com o sagrado. E “tornar sagrada uma coisa ou pessoa” é, simplesmente, destiná-la ao culto ou serviço de Deus. “A consagração”, escreve sobre isto o Pe. Chenu563

é a operação pela qual o homem, por ordem ou não de uma instituição, retira alguma coisa de seu uso corrente, ou uma pessoa de sua primeira disponibilidade, para reservála para a divindade, para render plena homenagem à soberania de Deus sobre sua Criação. É, pois, subtrair uma realidade de sua nalidade imediata tal como as leis de sua natureza a determinam; leis de sua natureza física, de sua estrutura psicológica, de seu compromisso social ou da livre disposição de si mesma, caso se trate de uma pessoa livre. É uma alienação, no melhor (ou no pior) sentido da palavra, para transferi-la a quem é o supremo dono, fonte de todo ser e m de toda perfeição. O objeto sagrado, colocado à parte desta maneira, é intocável, no sentido quase físico da palavra, ainda que seja manuseado apenas com gestos estabelecidos, com “ritos” que manifestam tal “isolamento”. Um lugar sagrado não deve ser utilizado, sob pena de violação sacrílega, para as necessidades ordinárias da vida, e só se penetra nele cercando-se, interior e exteriormente, do isolamento dos deuses. Uma ação sagrada — desde a antiga sagração dos reis (daí o moderno prestígio dos chefes) até a sepultura cotidiana dos mortos — choca-se abertamente, em seus gestos e resultados, com o ritmo habitual da vida coletiva, tanto por suas utilidades como por suas grosserias. Uma pessoa sagrada, ao menos na esfera de sua consagração, deve estar separada, em espírito e corpo, dos corpos, costumes, ocupações, trabalhos, interesses e condutas dos demais homens. Os historiadores das religiões e sociedades, ainda mais concretamente que os teólogos em suas clássicas de nições, registram tudo isto, até nas mais signi cativas corrupções (como os tabus supersticiosos). Podem ocorrer, evidentemente, em intensidade e em aplicação, diferentes níveis dessa sacralização; e os limites são muito movediços, de fato, segundo os tempos, ambientes e costumes. Apesar disso, a consagração tem uma densidade própria, cuja originalidade pode ser apreciada se comparada com outra ação de menor categoria, como a simples “bênção”. Neste caso, o objeto está relacionado certamente com a divindade à qual é oferecido, ou que a toma sob sua proteção; mas este objeto conserva sua função natural, seu uso terreno, seus ns utilitários. O pão bento é respeitado, mas é comido.

Logo se compreende que, quando se fala de “consagrar” o mundo, a palavra “consagração” não é entendida — e nem pode ser entendida — no sentido estrito que acabamos de expor. Neste sentido, “consagrar o mundo” equivaleria a destruí-lo como mundo, a tornar sagrado aquilo que, por sua própria natureza, é e deve ser profano. Se nós “clericalizamos” os leigos, estes deixarão de ser leigos. Se “sacralizamos” o mundo, ele terá deixado de ser mundo. Não se trata, pois, de “consagrar” ou “sacralizar” aquilo que de si mesmo ou por sua própria natureza é e deve ser profano, mas unicamente — e de fato isto já é muito, é tudo — de o religar com a divindade, fazendo-o entrar plenamente nos planos estabelecidos por Deus na Criação e, sobretudo, na encarnação do Verbo, que recapitulou todas as coisas em Cristo (cf. Ef 1, 10). Em

uma palavra: trata-se de santi car o profano sem que ele perca seu caráter de profano, ou seja, sem comprometer em nada a sua própria estrutura e nalidade imediata, humana e terrena. Este é, como veremos, o sentido em que o Concílio Vaticano emprega a palavra “consagração” quando fala da consecratio mundi. Não se trata, pois, de destruir ou minimizar a nalidade profana imediata das estruturas ou realidades terrenas, mas de dirigir e orientar este m imediato para o m último e absoluto da Criação, que não é outro, a não ser a glória de Deus através de Cristo, mas conservando integralmente a índole profana dos assuntos temporais, orientada de imediato para o bem temporal do homem.564 b) Mundo. A palavra “mundo” pode ser empregada em sentidos muito diversos. Os principais são quatro: 1º — Para signi car a terra, o planeta em que habitamos. 2º — Para designar o universo ou o conjunto de todos os seres criados. 3º — Para indicar as vaidades e prazeres pecaminosos a que se entregam as pessoas que vivem esquecidas de Deus. Assim entendido, o “mundo” é um dos principais inimigos de nossa alma, e não pode ser consagrado ou santi cado. É o mundo do pecado, antítese de Cristo, inimigo de Deus (cf. Tg 4, 4). Neste sentido, escreve São João: “Não ameis o mundo, nem nada do que existe no mundo” (1Jo 2, 15). 4º — Como sinônimo das estruturas terrenas que constituem a trama das atividades dos leigos em seu próprio campo secular: família, pro ssão, política, arte, diversões sadias, etc., etc. Este é o sentido em que empregamos a palavra “mundo” quando falamos de “consagrá-lo” ou “santi cá-lo”. Neste último sentido, escreve o Pe. Chenu:565 É

Face ao sagrado, o profano. É profana a realidade — o objeto, o ato, a pessoa, o grupo — que conserva em sua existência, em sua realização concreta, em seus ns, a consistência de sua natureza. Se esta realidade é um ser consciente de seus atos e de suas intenções, a consciência desses atos e dessas intenções é ao mesmo tempo o valor primário e a regra de sua perfeição. O trigo recolhido na ceifa, comercializado em regime econômico para alimentação dos homens, permanece evidentemente sendo uma realidade profana, mesmo que aqueles que o ceifaram e manejaram tenham trabalhado para a glória de Deus, por sua santidade pessoal, ou como serviço a seus irmãos. O engenheiro agrônomo que se dirige a um país subdesenvolvido para ali organizar, segundo a técnica moderna, um mundo melhor ou a produtividade abundante da terra, realiza por sua caridade uma obra eminentemente santi cante em graças pessoais e dentro da comunidade cristã; mas seu alistamento nas leiras da Ação Católica não o faz sair de seu ofício profano, de sua secularidade, exatamente igual às leis econômicas do mercado. E mais: uma nação talvez explicitamente impregnada de valores cristãos em suas estruturas e legislação permanece sendo uma sociedade política, autônoma em sua ordem, oposta verdadeiramente a certas categorias, interesses e condutas clericais. Realidades e pessoas podem achar-se envolvidas em uma dependência de um m sobrenatural e intimamente penetradas de virtudes cristãs; sua promoção não reduz o conteúdo objetivo de sua natureza, nem as dispensa de suas leis. Para ser um dom de Deus, o trigo não teve necessidade alguma de ser cultivado. A nação que busca seu bem comum dentro da natureza e da graça não se transforma em uma sociedade teocrática. “A graça não suprime a natureza, mas a aperfeiçoa”. A graça não “sacraliza” a natureza; ao fazê-la participar da vida divina, poderíamos dizer que ela a devolve a si mesma.

2. A redescoberta dos valores do mundo 559. A Sagrada Escritura — recordávamos no capítulo anterior — nos assegura que tudo quanto foi feito por Deus era “muito bom” (Gn 1, 31). E ainda que o pecado do homem tenha desorganizado tudo, permanece sendo verdade que todas as coisas continuam sendo em si mesmas naturalmente boas, desde que o homem não as desvie de Deus com sua livre vontade pecadora. Até poderíamos acrescentar que a bondade natural das coisas foi revalorizada e enobrecida pela redenção universal de Cristo, que — embora formal e primariamente se re ra antes de tudo ao homem total, corpo e alma — estende-se de algum modo a toda a Criação universal. Neste sentido, todas as coisas foram “consagradas” por Cristo. Ouçamos ainda o Pe. Chenu, que expõe profundamente esta idéia básica e fundamental:566

A religião cristã em si mesma e no regime que ela comporta adquire tudo pelo fato e pelo mistério da Encarnação. Muitas intervenções dos padres no concílio manifestaram vigorosamente que aí se encontra o fundamento tanto da vocação dos leigos, do caráter escatológico da vida, como a relação da Igreja com o mundo no tempo e no espaço (geográ co-cultural), e, portanto, também de sua atividade missionária. Por isso, dentro do cristianismo, qualquer consagração alcançará seu autêntico sentido por uma referência expressa à Encarnação. A encarnação de Cristo se desenvolve e se consuma em uma incorporação, na qual toda realidade, todo valor humano, entra em seu Corpo, onde toda a Criação será “recapitulada”. “Porque também a criação (e não só a humanidade) será libertada da escravidão da corrupção para participar da liberdade da glória dos lhos de Deus” (Rm 8, 17–23). Em uma intervenção sobre o esquema , o Cardeal Frings acusava o projeto de certo platonismo. Sem dúvida, é mister tomar precauções contra o risco de um evolucionismo imanentista, segundo o qual o trabalho dos homens prepararia por si mesmo os novos céus e a nova terra; mas também nos ameaça a tentação oposta de não reconhecer, dentro de uma diversidade de planos, uma coerência da economia realizada pela ressurreição de Cristo.567 O Logos encarnado e redentor consuma a obra do Logos criador: identidade pessoal que não permite separar a obra redentora da obra criadora, e atribui sua dimensão cósmica à Encarnação, na qual a Criação encontra sua unidade. Exatamente como a união hipostática, a Igreja, Corpo de Cristo, não pode ser contemplada pura e simplesmente como um caso à parte na Criação; assim também, por outro lado, a Criação não pode ser considerada isolada, como acabada em si mesma e teologicamente completa, sem fazer referência à Encarnação.568 Em certo sentido, não existe no cristianismo realidade “profana” (“Tudo é nosso, nós somos de Cristo” — 1Cor 3, 23); a distinção entre profano e sagrado ca dissolvida. Porém, ao eliminar esta distinção, manifesta-se muito melhor a densidade própria do criado, que emana do Verbo Criador sob a assunção santi cadora do Verbo Encarnado e Redentor. Assim, em Cristo, a identidade pessoal do Verbo Criador e Encarnado não reduz a autonomia do agir humano sob a hegemonia do Verbo. O mono sismo não é somente uma heresia de alguns maus doutores; é a vertente de um “idealismo” que considera o profano apenas como simples matéria do sagrado. O cristão, esse “homem novo”, deve realmente encarnar-se no mundo, entrar em comunhão com o mundo de modo autêntico. Integrado no mundo, profundamente envolvido em seus problemas, intimamente associado a suas mais nobres aspirações, trabalhando ativamente por seu progresso, formado a partir do mundo e para o mundo, o cristão, como Cristo, deve ser o fermento do mundo. Ninguém pode trabalhar e cazmente no desenvolvimento da comunidade cristã se não participa ativamente da edi cação da comunidade humana.569

Por um grande número de causas, cuja análise detalhada ultrapassaria em muito os limites desta obra, nem sempre os teólogos e mestres da vida espiritual entenderam as coisas assim. Uma concepção demasiado escatológica e monacal da vida cristã

determinou a orientação da espiritualidade rumo a uma desencarnação quase absoluta, tornando-a quase inacessível aos leigos, cuja vida tem de se desenvolver forçosamente no mundo e em meio às estruturas terrenas em que estão imersos. O desprezo do mundo, como inimigo da alma (cf. 1Jo 2, 15), foi levado até o ponto de quase identi cá-lo com a necessidade de fugir do mundo caso se aspirasse à perfeição cristã; com isso, esta última se tornava quase impossível para os cristãos leigos, condenados, pelas exigências de sua própria condição secular, a desempenhar o triste papel de cristãos imperfeitos ou de segunda categoria. A reação contra este estado de coisas demorou muitos anos a chegar. Mas tinha de vir, e veio de fato, quase em nossos próprios dias. Ouçamos o Pe. Congar, que nos dá a explicação do grande fenômeno:570 A ruptura entre um mundo moderno laico e a Igreja foi brutal. Realizou-se em uma atmosfera de revolta agressiva, por um lado, e de resistência e mau-humor, com uma reação de defesa, pelo outro: a atmosfera que existe quando um adolescente sacode o jugo de sua tutela que se prolongou indevidamente. Com a perspectiva permitida pelo tempo decorrido, até mesmo bené co para a própria teologia, hoje muitos pensam que, por baixo dos excessos e, às vezes, das aberrações da revolta, existia no fundo, ao menos por um lado, um processo normal de restituição ao mundo e à sua profanidade, de coisas que em um regime de cristandade sacral, cuja espiritualidade era essencialmente monástica, viam-se em de nitivo maltratadas e, em certo sentido, alienadas para o serviço imediato e exclusivo de Deus. Isto é normal em uma ordem de vida monástica, onde, usando como quem não usa deste mundo, cuja aparência passa, tudo se consagra à vida angélica de louvor e união com Deus. Para que buscar a explicação cientí ca e o domínio técnico das coisas caducas, quando a pro ssão que se pratica é a de só se interessar pelo único necessário? Desta maneira, o interesse pelas coisas, pelas causas segundas, encontra-se, em um regime sacral, recoberto e como que abolido pelo interesse dedicado a Deus, excetuada a investigação da sabedoria e a parte de beleza conveniente para o mesmo louvor. As competências e aquilo que se poderia chamar de “sacerdócios das causas segundas” estão dominados e como que abolidos pelo sacerdócio superior da Causa Primeira. Será preciso estranhar que elas se revoltaram e assumiram uma vingança? Os católicos, depois de uma necessária resistência contra a violenta revolta do mundo laico, entregue às causas segundas, perceberam melhor o valor em si das coisas e das exigências próprias do temporal; em certo sentido, eles se converteram, de discípulos inconscientes do monaquismo, em leigos, isto é, em homens chamados a realizar sua salvação servindo a Deus, não somente n’Ele mesmo, mas também fazendo o trabalho do mundo; em uma palavra, homens para os quais, sem prejuízo da Causa Primeira,

existem as causas segundas. Não há nada que denuncie tanto esta (re)descoberta do valor em si, embora relativo, das coisas, como o realismo humano e sociológico que caracteriza atualmente os esforços no terreno da pastoral. Os católicos adquiriram uma lealdade ao homem e às coisas, cuja ausência, amiúde real, era a reprovação mais radical feita a eles pelos “laicos” (esta palavra designava, então, a ideologia da revolta de que falamos). A esta mudança nos católicos se deve atribuir o fato novo, tão característico da época atual, de que os católicos já não se encerram em um mundo fechado, que tinha o risco de se tornar um gueto, mas se misturam aos outros na continuação da obra humana e das atividades do mundo, e hoje são encontrados nos mais diversos campos e gêneros de atividade, levando-se em conta, certamente, as exigências imprescritíveis de uma fé que, para eles, é tanto uma convicção quanto uma disciplina e uma obediência. Foram operadas, e se operam todos os dias, mudanças de posição, superposição de grupos sociológicos; superando posições que se apresentam como monopolizadoras do bom senso, há cristãos que se interessam, em todos os terrenos legítimos, juntamente com os outros, pelos diversos elementos da obra dos homens na terra dos homens. Aqui, basta recordar a distinção, que chegou a ser familiar graças à ação classi cadora de Emmanuel Mounier, entre cristianismo e mundo cristão, entre catolicismo e mundo sociológico católico. Notemos, mais uma vez, que esta evolução tornava-os disponíveis e capazes para uma colaboração, sem que isto lhes impusesse renegar em nada as exigências de sua fé. A partir do momento em que as coisas já não corriam o risco de serem sacri cadas ao sagrado, de que fossem atraídas para o marco sociológico do catolicismo, e desde o momento em que os éis reconheciam a profanidade substancial das coisas, esses mesmos éis podiam ser recebidos como companheiros irrepreensíveis na execução da obra humana. Dado que sua fé era uma convicção pessoal interiorizada, não se podia rejeitá-los com o pretexto de que eram crentes, mas em nome de um totalitarismo, seja ideológico — e, em de nitivo, político —, como o do cienti cismo e do laicismo militantes, seja político — mas radicalmente ideológico —, como aquele dos totalitarismos ditatoriais que nosso século [ ] teve a oportunidade de conhecer. Mas os “laicos” — aqueles da luta radical e “republicana” na França — também zeram experiências e algumas descobertas. Uma vez passada a violência que, infelizmente, foi destruidora de muitas coisas de nitivamente irrecuperáveis [...], e passada a violência da primeira revolta, deram-se conta mais uma vez de que, junto com o catolicismo, abalaram alguns dos fundamentos mais preciosos da moralidade, da ordem, do respeito, da grandeza e da própria liberdade do homem. E tanto mais que, em países como os do Ocidente, a mesma idéia sobre o homem, os juízos morais e, ainda mais radicalmente, a convicção profunda de que a vida humana é por natureza moral, tudo isto viera, com toda evidência, do cristianismo; inclusive tudo isso é radicalmente católico em países latinos. Assim iniciavam-se as convergências, as possibilidades de cooperação, para as quais as circunstâncias, como veremos, iam dar uma atualidade e uma realidade.

O ilustre teólogo dominicano assinala magistralmente, no texto que acabamos de transcrever, a profunda evolução experimentada nestes últimos tempos pelos católicos leigos diante das estruturas

terrenas da vida humana. Isto é um fato indiscutível. A Igreja docente vinha observando com atenção este estado de coisas, sobretudo a partir dos últimos pontí ces. O gênio vigilante de Leão teve os primeiros vislumbres em relação ao mundo do trabalho (Rerum novarum). Porém, foi em nossos próprios dias (Pio , João , Paulo , Concílio Vaticano ) que a Igreja se abriu plenamente aos “sinais dos tempos” para “interpretá-los à luz do Evangelho”, como diz a Constituição sobre a Igreja no Mundo Atual (nº 4), promulgada por Paulo na sessão nal do Concílio Vaticano . Vamos, pois, reunir em um artigo à parte a magní ca doutrina conciliar sobre a “consagração do mundo”, que corresponde de modo especialíssimo aos cristãos leigos que vivem no mundo e permanecem mergulhados em suas estruturas terrenas.

Artigo 2 — Doutrina conciliar sobre a “consecratio mundi” 560. Vamos expor em primeiro lugar a doutrina geral do concílio sobre a necessidade de “consagrar o mundo”, cuja principal responsabilidade recai sobre os leigos que nele vivem imersos. O concílio fala, explícita ou implicitamente, da “consagração do mundo” em quase todos os documentos dirigidos total ou parcialmente aos leigos. Os principais textos se encontram na Constituição Dogmática sobre a Igreja (Lumen gentium), na Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Atual (Gaudium et spes) e no Decreto sobre o Apostolado dos Leigos (Apostolicam actuositatem). Apresentaremos em separado os textos pertencentes a cada um desses documentos.

1. Na Constituição Dogmática sobre a Igreja 561. Como se sabe, a Constituição Dogmática sobre a Igreja (Lumen gentium) é o mais importante documento elaborado pelo Concílio Vaticano . Ele sozinho justi caria com sobras a reunião da magna assembléia conciliar. O capítulo 4º dessa magní ca constituição está dedicado integralmente aos leigos: De laicis. No capítulo 2º da segunda parte desta obra, citamos o texto integral desse capítulo. Aqui, vamos nos deter somente à doutrina sobre a “consagração do mundo”, que corresponde principalmente aos leigos. Para maior clareza, colocaremos à frente de cada trecho um título especial, e o comentaremos em uma breve glosa. 1. Condição secular dos leigos 562. A característica secular é própria e peculiar aos leigos. Com efeito, os membros da Sagrada Ordem, ainda que algumas vezes possam tratar de assuntos seculares, exercendo mesmo uma pro ssão profana, contudo, em razão da sua vocação especí ca, destinam-se sobretudo e expressamente ao sagrado ministério; enquanto os religiosos, no seu estado, dão magní co e privilegiado testemunho de que se não pode trans gurar o mundo e oferecê-lo a Deus sem o espírito das bem-aventuranças (nº 31).

Deste importante texto é preciso destacar três idéias fundamentais: 1ª — É próprio e peculiar dos leigos o seu caráter secular, ou seja, sua própria secularidade. Portanto, qualquer espiritualidade que tenda a “clericalizá-los” ou torná-los “religiosos” estará fora das perspectivas e mesmo das possibilidades dos cristãos que vivem no mundo. Eles devem santi car-se no mundo, ou seja, vivendo com espírito sobrenatural, e impelidos pela caridade para com Deus, as estruturas humanas em que se acham imersos. 2ª — Os sacerdotes e religiosos podem excepcionalmente — “alguma vez”, diz o concílio — ocupar-se nos assuntos seculares, inclusive exercendo uma pro ssão secular (médico, advogado, trabalhador braçal...). Isto não é, porém, próprio e característico

deles, mas sim o exercício do sagrado ministério ou das exigências de sua regra religiosa. Cada um deve ocupar na Igreja o lugar que lhe corresponde, e não outro (cf. 1Cor 12, 4–31). 3ª — Entretanto, todos eles — sacerdotes, religiosos e leigos — devem aspirar à perfeição cristã praticando pelo menos o “espírito das bem-aventuranças” — ou seja, o espírito dos conselhos evangélicos, cuja máxima expressão se encontra nas bemaventuranças evangélicas571 —, já que “o mundo não pode ser transformado, nem ser oferecido a Deus, sem o espírito das bemaventuranças”. Já falamos disso em outro lugar de nossa obra, e nada de novo temos a acrescentar aqui. 2. Missão dos leigos na Igreja 563. “Por vocação própria, compete aos leigos procurar o reino de Deus tratando das realidades temporais e ordenando-as segundo Deus” (nº 31). Este breve texto é de importância capital e incisiva para compreender o verdadeiro sentido e alcance da espiritualidade própria e especí ca dos leigos. Por isso vamos examiná-lo palavra por palavra, com a atenção que merece. ) . Atenção! O concílio vai-nos dizer autenticamente qual é o papel e a missão que compete aos leigos na Igreja. ) . Ou seja, por um chamado e uma vontade expressa de Deus. É um grande erro — contrário ao dogma da Divina Providência — dizer que somente ocorre uma “vocação divina” para o estado sacerdotal ou religioso. Ela existe também, inteiramente verdadeira, para o estado secular no meio do mundo. O fato de que a imensa maioria das pessoas humanas receba esta vocação não impede em nada que se trate de

verdadeira e autêntica “vocação divina”; signi ca somente que a santi cação das estruturas humanas reclama o esforço da imensa maioria dos homens. Como a vocação do leigo poderia deixar indiferente a providência amorosíssima de Deus, que se estende até as coisas mais insigni cantes572 e cuida das aves do céu (Mt 6, 26) e dos lírios do campo (Mt 6, 28), e tem contados até os cabelos de nossa cabeça? (Mt 10, 30). ) . Esta é a tarefa comum a todos os cristãos batizados, e mesmo a todos os homens do mundo, qualquer que seja seu estado ou condição social. A nalidade última e absoluta de toda a Criação universal não é outra, senão a de conseguir e manifestar a glória de Deus, dono e senhor de tudo quanto existe. O modo de conseguir esta glória é muito diferente e variado segundo a condição de cada um; mas a obrigação de glori car a Deus afeta em absoluto a todas as criaturas. Na sublime oração dominical, Cristo ensinou todos nós a pedirmos, em primeiríssimo lugar, a glória de Deus (“santi cado seja o teu nome”) e o advento de seu reino em todo o universo (“venha a nós o vosso reino”). Este é o ponto absolutamente primário e essencial; tudo o mais é secundário e acidental. ) . O modo especí co com que os leigos irão glori car a Deus e buscar o seu reino será “tratando dos assuntos temporais”. É a tarefa própria e especí ca do leigo, aquela que o distingue e o separa de maneira mais característica do sacerdote e do religioso, cuja missão é quase exclusivamente de ordem e nalidade espiritual. Como vimos no artigo anterior, o temporal entra também nos planos de Deus sobre a humanidade. Deus quer que o homem trabalhe e cultive a terra. Mesmo no estado de justiça original, Deus “colocou o primeiro homem no Jardim do Éden para que o cultivasse e guardasse” (Gn 2, 15). O Concílio Vaticano declarou repetidas vezes — seguindo com isso a doutrina católica tradicional — que nada daquilo que interessa aos homens é

estranho à Igreja, que “não há nada de verdadeiramente humano que não encontre eco em seu coração”.573 O leigo deve glori car a Deus e santi car a si mesmo “tratando dos assuntos temporais”, sob pena de não conseguir nenhuma das duas coisas. A razão é que ninguém pode glori car a Deus nem santi car a si mesmo fora do perfeito cumprimento da vontade divina, e a vontade de Deus sobre o leigo é que ele trabalhe “tratando dos assuntos temporais”. Se a vontade de Deus fosse outra, ter-lhe-ia dado outra vocação, como é evidente. O leigo que o seja por própria vocação divina — e o são todos aqueles que não resistiram voluntariamente a uma vocação mais elevada e excelente — pode ter a convicção absoluta de que, para ele, a vontade de Deus está no perfeito desempenho de suas atividades pro ssionais, ou seja, “tratando dos assuntos temporais”.574 É claro que não basta uma atividade puramente humana e natural, desligada de sua orientação ao m sobrenatural. Se isso bastasse, todos os trabalhadores do mundo — cristãos e pagãos — seriam santos, e tanto mais santos quanto mais duro e penoso fosse o seu trabalho. Exige-se, indubitavelmente, a orientação sobrenatural dessas atividades humanas, e isso é, cabalmente, o que diz o concílio em continuação. ) . É exatamente o que acabamos de dizer. O trabalho intelectual ou manual, a gestão dos assuntos temporais, não santi cam em si (ou sem mais nada), já que se trata de realidades puramente humanas e naturais que não têm, nem podem ter, por si mesmas, valor algum na ordem sobrenatural, ou seja, em ordem à vida eterna. É preciso ordenar essas atividades segundo Deus, isto é, realizá-las na graça de Deus575 e com a intenção de glori car a Deus, cumprindo sua divina vontade. Já falamos disso amplamente no capítulo anterior, e nada de novo temos a acrescentar aqui. 3. A vida dos leigos

564. Vivem no mundo, isto é, em toda e qualquer ocupação e atividade terrena, e nas condições ordinárias da vida familiar e social, com as quais é como que tecida a sua existência. São chamados por Deus para que, ali, exercendo o seu próprio ofício, guiados pelo espírito evangélico, concorram para a santi cação do mundo a partir de dentro, como o fermento (nº 31).

Com estas palavras — que complementam as anteriores — o concílio aponta e especi ca o modo com que os leigos devem realizar sua vocação divina tratando dos assuntos temporais. Nelas, o concílio nos recorda várias coisas importantes: a) A vida dos leigos em meio ao mundo e suas estruturas terrenas (ocupações e deveres pro ssionais, vida familiar e social), que constituem e formam a trama de sua própria vida. b) Que essa vida constitui sua própria vocação ou chamado especí co de Deus. c) Que devem desempenhar sua pro ssão guiados pelo espírito evangélico, ou seja, com as disposições sobrenaturais que acabamos de recordar. d) E desta maneira irão contribuir para a santi cação do mundo a partir de dentro, ou seja, gerindo e vivendo suas próprias estruturas terrenas; diferentemente do sacerdote e do religioso, que contribuirão para a santi cação do mundo a partir de fora, isto é, sem carem imersos em suas estruturas terrenas. e) O papel do leigo no mundo é, pois, o de fermento ou levedura, segundo a bela e expressiva imagem evangélica (cf. Mt 13, 33). Os leigos hão de ser o fermento ou a levedura cristã que santi que toda a massa humana. Ou, como diz o concílio, em outra passagem dessa mesma constituição, “aquilo que a alma é no corpo, isto devem ser os cristãos no mundo” (nº 38). 4. Manifestar Cristo 565. E deste modo manifestem Cristo aos outros, antes de tudo pelo testemunho da própria vida, pela irradiação da sua fé, esperança e caridade (nº 31).

Eis aqui outro precioso texto conciliar, pleno de conteúdo doutrinal. A vida do cristão sobre a terra deveria ser uma constante e perpétua “manifestação de Cristo” diante dos outros. Esta “manifestação de Cristo” constituía a obsessiva idéia de São Paulo em meio às suas angústias e tribulações. Trazendo sempre no corpo o suplício mortal de Cristo, para que a vida de Jesus se manifeste em nosso tempo. Enquanto vivemos, estamos sempre entregues à morte por amor de Jesus, para que a vida de Jesus se manifeste também em nossa carne mortal (2Cor 4, 10–11).

O concílio assinala com toda a precisão de que maneira o cristão deve manifestar Cristo diante dos outros: )

. É inútil, quando não contraproducente, qualquer apostolado que seja tentado sem que o testemunho da própria vida se mostre antecipadamente. O mundo já está farto de palavras: quer fatos. O próprio exemplo há de ser o testemunho de Cristo por excelência. Um Cura d’Ars exercendo santissimamente o seu ministério em uma aldeia obscura e desconhecida; um São Martinho de Porres servindo a Deus e ao próximo com a vassoura na mão; um Charles de Foucauld com sua caridade tão ardente quanto as areias do deserto onde habitava; um Pe. Damião de Veuster contagiado e dando a vida pelos leprosos de Molokay: eis aí as “testemunhas de Cristo” que ainda convencem e comovem o mundo. A vida moderna exige, cada vez mais, menos palavras e mais fatos. ) , . São as três grandes virtudes que constituem a quintessência da vida cristã do ponto de vista da ação, como vimos amplamente ao falar da vida teologal do cristão.576 As três grandes máculas que, por desgraça, caracterizam a maior parte da humanidade contemporânea são: a falta de fé, cuja expressão mais radical se encontra no ateísmo ativo e militante; a

angústia e o desespero diante da dor e das enormes injustiças sociais, e o ódio profundo de uns contra outros — como conseqüência deste lamentável estado de coisas —, que se traduz nas contínuas guerras e revoluções que enchem de sangue o mundo inteiro. São estes, cabalmente, os três grandes pecados opostos às virtudes teologais. Por conseguinte, só com a prática autêntica e heróica dessas três grandes virtudes os cristãos poderão manifestar Cristo diante dos outros, e conquistar o mundo inteiro para Ele. “Portanto”, continua o concílio, a eles compete especialmente iluminar e ordenar de tal modo as realidades temporais, a que estão estreitamente ligados, que elas sejam sempre feitas segundo Cristo e progridam e glori quem o Criador e Redentor (nº 31).

5. A consagração do mundo 566. Depois de alguns parágrafos admiráveis sobre a unidade na diversidade do povo cristão (nº 32) e sobre o apostolado dos leigos (nº 33) — que citamos em outro lugar desta obra e voltaremos a examinar com maior amplitude no capítulo seguinte — o concílio fala expressamente sobre a “consagração do mundo” pelos leigos. Eis as próprias palavras conciliares: O supremo e eterno sacerdote Cristo Jesus, querendo também por meio dos leigos continuar o seu testemunho e serviço, vivi ca-o pelo seu Espírito e sem cessar os incita a toda obra boa e perfeita. E assim, àqueles que intimamente associou à sua própria vida e à sua missão, concedeu também participação no seu múnus sacerdotal, a m de que exerçam um culto espiritual, para glória de Deus e salvação dos homens. Por esta razão, os leigos, enquanto consagrados a Cristo e ungidos no Espírito Santo, têm uma vocação admirável e são instruídos para que os frutos do Espírito se multipliquem neles cada vez mais abundantemente. Pois todos os seus trabalhos, orações e empreendimentos apostólicos, a vida conjugal e familiar, o trabalho de cada dia, o descanso do espírito e do corpo, se forem feitos no Espírito, e as próprias incomodidades da vida, suportadas com paciência, se transformam em outros tantos sacrifícios espirituais, agradáveis a Deus por Jesus Cristo (cfr. 1Pd 2, 5); sacrifícios estes que são piedosamente oferecidos ao Pai, juntamente com a oblação do Corpo do Senhor, na celebração da Eucaristia. E deste modo, os leigos, agindo santamente em toda a parte, como adoradores, consagram a Deus o próprio mundo (nº 34).

Como se vê, neste precioso texto o concílio insiste em algumas das idéias mais fundamentais da espiritualidade própria e especí ca dos leigos. A incorporação dos leigos a Cristo, sua associação à obra salví ca do Redentor, seu ofício sacerdotal, pelo qual exercem o culto espiritual para a glória de Deus e a salvação dos homens; sua vocação à santidade, o modo de santi car todas as suas obras e atividades — “se forem feitas no Espírito” —, a aceitação paciente por Cristo das provas e penalidades da vida, seu oferecimento a Deus em união com Cristo-Hóstia e sua perpétua adoração em todo tempo e lugar: eis aqui de que maneira os mesmos leigos “consagram o mundo” a Deus. E um pouco mais abaixo, o concílio se dirige de novo aos leigos, impelindo-os à santi cação do mundo e à prática do apostolado, até mesmo suprindo, eventualmente, o sacerdote impedido de exercer seu ministério: Por isso, ainda mesmo quando ocupados com os cuidados temporais, podem e devem os leigos exercer valiosa ação para a evangelização do mundo. E se há alguns que, na medida do possível, suprem nas funções religiosas os ministros sagrados que faltam ou estão impedidos em tempo de perseguição, a todos, porém, incumbe a obrigação de cooperar para a dilatação e crescimento do reino de Cristo no mundo. Dediquem-se, por isso, os leigos com diligência a conseguir um conhecimento mais profundo da verdade revelada, e peçam insistentemente a Deus o dom da sabedoria (nº 35).

É fácil compreender que, para obter dessas atividades apostólicas o máximo rendimento e e cácia, é preciso que os leigos se preparem convenientemente para seu digno desempenho. Não somente com o testemunho de sua vida, de sua fé, esperança e caridade, mas também mediante o estudo cada vez mais profundo das verdades reveladas por Deus e a oração fervorosa para obter de Deus “o dom da sabedoria”, como diz admiravelmente o concílio. 6. Nas estruturas humanas 567. O concílio insiste no modo de santi car todas as estruturas humanas e ordená-las para a glória de Deus através de Cristo.

Ouçamos suas próprias palavras, carregadas de conteúdo doutrinal: Tendo-se feito obediente até à morte, e tendo sido, por este motivo, exaltado pelo Pai (cf. Fl 2, 8–9), Cristo entrou na glória do seu reino. Todas as coisas lhe estão sujeitas, até que Ele se submeta, e a todas as criaturas, ao Pai, para que Deus seja tudo em todos (cf. 1Cor 15, 27–28). Ele comunicou este poder aos discípulos, para que também eles sejam constituídos em régia liberdade e, com a abnegação de si mesmos e a santidade da vida, vençam em si próprios o reino do pecado (cf. Rm 6, 12); mais ainda, para que, servindo a Cristo também nos outros, conduzam os seus irmãos, com humildade e paciência, àquele Rei a quem servir é reinar. Pois o Senhor deseja dilatar também por meio dos leigos o seu reino, reino de verdade e de vida, reino de santidade e de graça, reino de justiça, de amor e de paz,577 no qual a própria Criação será liberta da servidão da corrupção, alcançando a liberdade da glória dos lhos de Deus (cf. Rm 8, 21). Grande é a promessa, grande o mandamento que é dado aos discípulos: “Tudo é vosso; vós sois de Cristo; e Cristo é de Deus” (1Cor 3, 23) (nº 36).

Para realizar esta missão e tarefa tão sublime, o concílio aponta aos leigos todo um magní co programa, cujo perfeito cumprimento traria consigo, automaticamente, a consagração do mundo a Deus. Vamos examiná-lo com a atenção que merece. Em primeiro lugar, o concílio insiste na necessidade do conhecimento natural e sobrenatural de todas as coisas em função da glória de Deus e para impregnar do espírito de Cristo o mundo em todas as estruturas sociais: Por conseqüência, devem os éis conhecer a natureza íntima e o valor de todas as criaturas, e a sua ordenação para a glória de Deus, ajudando-se uns aos outros — mesmo através das atividades propriamente temporais — a levar uma vida mais santa, para que assim o mundo seja penetrado do espírito de Cristo e, na justiça, na caridade e na paz, atinja mais e cazmente o seu m. Na realização plena deste dever, os leigos ocupam o lugar mais importante. Por conseguinte, com a sua competência nas matérias profanas, e a sua atuação interiormente elevada pela graça de Cristo, contribuam e cazmente para que os bens criados sejam valorizados pelo trabalho humano, pela técnica e pela cultura, para a utilidade de todos os homens; para que sejam mais bem distribuídos entre eles e contribuam a seu modo para o progresso de todos na liberdade humana e cristã, em harmonia com o destino que lhes deu o Criador e segundo a iluminação do Verbo. Deste modo, por meio dos membros da Igreja, Cristo iluminará cada vez mais a humanidade inteira com a sua luz salvadora (nº 36).

Como se vê, o concílio volta agora os seus olhos para a solução de nitiva da chamada “questão social” mediante a justiça e a

caridade, única forma de chegar ao progresso universal dos povos na liberdade humana e cristã. Para isso, é preciso que os leigos abordem plenamente esta gigantesca tarefa mediante grande competência técnica, elevada pela graça à ordem sobrenatural; e mediante o trabalho humano e a cultura civil, até conseguir uma distribuição da riqueza mais justa e eqüitativa “segundo os desígnios do Criador e a iluminação de seu Verbo”. Voltaremos a isto com mais amplitude no artigo seguinte. A seguir, o concílio se detém naquelas estruturas mundanas que podem incitar ao pecado (espetáculos, diversões, imprensa, rádio, televisão, etc.), chamando a atenção dos leigos sobre a necessidade de saneá-las segundo o espírito de Cristo: Além disso, também pela união das próprias forças, devem os leigos sanear as estruturas e condições do mundo, se elas porventura propendem a levar ao pecado, de tal modo que todas se conformem às normas da justiça e antes ajudem ao exercício das virtudes do que o estorvem. Agindo assim, impregnarão de valor moral a cultura e as obras humanas. E, por este modo, o campo, isto é, o mundo, cará mais preparado para a semente da palavra divina e abrir-se-ão à Igreja mais amplamente as portas para introduzir no mundo a mensagem da paz (nº 36).

Em continuação, o concílio se volta para o aspecto político da vida dos leigos, e dá normas sabiamente orientadoras sobre a conduta que devem observar nesse campo tão importante para a paz e a tranqüilidade do mundo. No artigo seguinte, examinaremos com amplitude este ponto, limitando-nos aqui a citar o texto conciliar, que é o seguinte: Devido à própria economia da salvação, devem os éis aprender a distinguir cuidadosamente entre os direitos e deveres que lhes competem como membros da Igreja e os que lhes dizem respeito enquanto fazem parte da sociedade humana. Procurem harmonizar entre si uns e outros, lembrando-se que se devem guiar em todas as coisas temporais pela consciência cristã, já que nenhuma atividade humana, nem mesmo em assuntos temporais, se pode subtrair ao domínio de Deus. É muito necessário em nossos dias que esta distinção e harmonia se manifestem claramente nas atitudes dos éis, a m de que a missão da Igreja possa corresponder mais plenamente às condições particulares do mundo atual. Porque assim como se deve reconhecer que a cidade terrena, justamente entregue aos assuntos temporais, se rege por princípios próprios, assim também, pela mesma razão, se deve rejeitar a nefasta doutrina que

pretende construir a sociedade prescindindo em absoluto da religião, e que ataca e destrói a liberdade religiosa dos cidadãos (nº 36).

7. Como a alma no corpo 568. Com as magní cas palavras que se seguem, o concílio termina o capítulo dedicado aos leigos na Constituição Dogmática sobre a Igreja: Cada leigo deve ser, perante o mundo, uma testemunha da ressurreição e da vida do Senhor Jesus, e um sinal do Deus vivo. Todos em conjunto, e cada um por sua parte, devem alimentar o mundo com frutos espirituais (cf. Gl 5, 22) e nele difundir aquele espírito que anima os pobres, mansos e pací cos, que o Senhor no Evangelho proclamou bem-aventurados (cf. Mt 5, 3–9). Em uma palavra, sejam os cristãos no mundo aquilo que a alma é para o corpo (nº 38).

Vai até aqui a doutrina do concílio sobre a “consagração do mundo” na Constituição Dogmática sobre a Igreja. Vejamos agora o que ele diz sobre o mesmo assunto nos restantes documentos conciliares. 2. Na Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Atual 569. Como seu nome indica, toda esta longa constituição pastoral é dedicada a especi car as relações entre a Igreja e o mundo atual, e toda ela deveria ser apresentada em uma exaustiva exposição sobre a “consagração do mundo” segundo o Concílio Vaticano . Sem prejuízo em voltar a falar amplamente sobre ela no artigo seguinte, citaremos aqui unicamente as passagens do capítulo 4º que falam expressa e diretamente dessa consagração, recomendada sobretudo aos leigos. São as seguintes: O concílio exorta os cristãos, cidadãos de ambas as cidades, a que procurem cumprir elmente os seus deveres temporais, guiados pelo espírito do Evangelho. Afastam-se da verdade os que, sabendo que não temos aqui na terra uma cidade permanente, mas que buscamos a futura (cf. Hb 13, 14), pensam que podem por isso descuidar os seus deveres terrenos, sem se darem conta que a própria fé é um motivo que os obriga ao mais perfeito cumprimento de todos eles, segundo a vocação própria de cada um (cf. 2Ts 3, 6–13; Ef 4, 28). Mas não menos erram os que, pelo contrário, opinam poder entregar-se totalmente às ocupações terrenas, como se estas fossem inteiramente alheias à vida religiosa, a qual

pensam consistir apenas no cumprimento dos atos de culto e de certos deveres morais. Este divórcio, que ocorre com muitas pessoas, entre a fé que professam e o seu comportamento cotidiano, deve ser contado entre os mais graves erros do nosso tempo. Já no Antigo Testamento os profetas denunciavam este escândalo (cf. Is 58, 1–12); no Novo, Cristo ameaçou-o ainda mais veementemente com graves castigos (cf. Mt 23, 3– 23; Mc 7, 10–13). Não se oponham, pois, infundadamente, as atividades pro ssionais e sociais, por um lado, e a vida religiosa, por outro. O cristão que descuida dos seus deveres temporais falta aos seus deveres para com o próximo, e até para com o próprio Deus, e põe em risco a sua salvação eterna. A exemplo de Cristo, que exerceu um mister de operário, alegrem-se antes os cristãos por poderem exercer todas as atividades terrenas, unindo numa síntese vital todos os seus esforços humanos, domésticos, pro ssionais, cientí cos ou técnicos com os valores religiosos, sob cuja elevada ordenação tudo se coordena para a glória de Deus. As tarefas e atividades seculares competem como próprias, embora não exclusivamente, aos leigos. Por esta razão, sempre que, a sós ou associados, atuem como cidadãos do mundo, não só devem respeitar as leis próprias de cada domínio, mas procurarão alcançar nelas uma real competência. Com alegria cooperem com os homens que buscam os mesmos ns. Conscientes das exigências da fé, e por ela robustecidos, não hesitem, quando for oportuno, em idear novas iniciativas e levá-las à realização. Compete à consciência bem formada do leigo imprimir a lei divina na vida da cidade terrestre. Dos sacerdotes, esperem os leigos a luz e a força espiritual. Mas não pensem que os seus pastores estão sempre de tal modo preparados que tenham uma solução pronta para qualquer questão que possa surgir, mesmo que seja grave. Não é esta a sua missão. Antes, que os leigos cumpram melhor sua própria função esclarecidos pela sabedoria cristã e observando atentamente à doutrina do Magistério (nº 43).

Até aqui vão os principais parágrafos da Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Atual relativos à consagração do mundo pelos leigos. No artigo seguinte, voltaremos em detalhes sobre outros pontos fundamentais deste mesmo documento conciliar. 3. No Decreto sobre o Apostolado dos Leigos 570. Mais uma vez, o concílio volta a insistir na obrigação de “consagrar o mundo”, que pesa principalmente sobre os leigos, no magní co documento dedicado expressamente a eles. Eis as suas próprias palavras: O plano de Deus para o mundo é que os homens, em boa harmonia, edi quem a ordem temporal e a aperfeiçoem constantemente.

Todas as realidades que constituem a ordem temporal — os bens da vida e da família, a cultura, os bens econômicos, as artes e pro ssões, as instituições políticas, as relações internacionais e outras semelhantes, bem como a sua evolução e progresso — não só são meios para o m último do homem, mas possuem valor próprio, que lhes vem de Deus, quer consideradas em si mesmas, quer como partes de toda a ordem temporal: “E viu Deus todas as coisas que zera, e eram todas muito boas” (Gn 1, 31). Esta bondade natural das coisas adquire uma dignidade especial pela sua relação com a pessoa humana, para cujo serviço foram criadas. Finalmente, aprouve a Deus reunir todas as coisas em Cristo, quer as naturais, quer as sobrenaturais, “de modo que em todas Ele tenha a primazia” (Cl 1, 18). Mas este destino não só não priva a ordem temporal da sua autonomia, dos seus ns próprios, das suas leis, dos seus recursos, do seu valor para o bem dos homens, como a aperfeiçoa na sua consistência e dignidade próprias, ao mesmo tempo que a ajusta à vocação integral do homem na terra. O uso das coisas temporais foi, no decurso da história, manchado com graves abusos. Pois os homens, atingidos pelo pecado original, caíram muitas vezes em muitos erros acerca do verdadeiro Deus, da natureza do homem e dos princípios da lei moral. Daí a corrupção dos costumes e das instituições humanas, daí a pessoa humana tantas vezes conculcada. Também em nossos dias, não poucos, con ando em excesso no progresso das ciências naturais e da técnica, caem numa espécie de idolatria das coisas materiais, das quais, em vez de senhores, se tornam escravos. É obrigação de toda a Igreja trabalhar para que os homens sejam capazes de edi car retamente a ordem temporal, e de a ordenar para Deus, por meio de Cristo. Aos pastores compete propor claramente os princípios relativos ao m da Criação e ao uso do mundo, e proporcionar os auxílios morais e espirituais para que a ordem temporal se edi que em Cristo. É preciso, porém, que os leigos assumam como seu encargo próprio essa edi cação da ordem temporal, e que atuem nela de modo direto e de nido, guiados pela luz do Evangelho e pela mente da Igreja, e movidos pela caridade cristã; que cooperem, enquanto cidadãos, com os demais, mediante sua competência especí ca e sua própria responsabilidade; e que busquem sempre e em todas as coisas a justiça do reino de Deus. Deve-se instaurar a ordem temporal de tal modo que, respeitando integralmente as suas próprias leis, ela seja ajustada aos princípios superiores da vida cristã, e se adapte às diferentes condições de lugares, tempos e nações. Entre as atividades deste apostolado sobressai a ação social dos cristãos, a qual o sagrado concílio deseja que hoje se estenda a todos os domínios temporais, sem excetuar o da cultura (nº 7).

Estes são os principais textos conciliares relativos à “consagração do mundo”, que recai principalmente sobre os leigos “dirigidos pela luz do Evangelho e pela mente da Igreja”, como ela mesma nos acaba de dizer. Agora, vamos descer ao concreto — em um artigo à parte — sobre alguns dos mais importantes aspectos dessa “consagração do mundo” pelos leigos.

Artigo 3 — Aplicação às principais estruturas humanas 571. É principalmente na Constituição Pastoral Gaudium et spes sobre a Igreja no Mundo Atual, que se deve procurar o pensamento conciliar sobre a matéria do presente capítulo. E aqui, naturalmente, é onde vamos nos xar. Entretanto, dada a sua extensão — é o mais longo documento elaborado pelo concílio —, é de todo impossível citá-la integralmente nestas páginas. Vamos limitar-nos a recolher, com breves glosas e comentários, as orientações do concílio sobre a maneira como os leigos haverão de “consagrar” para Cristo as principais estruturas terrenas, sem, contudo, fazer com que elas percam sua própria nalidade imediata, natural e humana. Estas estruturas humanas, na ordem em que as enumera o concílio, são as seguintes: 1. O matrimônio e a família (nº 47–52). 2. A cultura (nº 53–62). 3. A vida econômica e social (nº 63–72). 4. A vida na comunidade política (nº 73–76). 5. A paz mundial e a promoção dos povos (nº 77–90). Sobre o matrimônio e a família já falamos amplamente, seguindo a doutrina do concílio, na parte 5 de nossa obra, e nada de novo temos a acrescentar aqui. Agora, vamos expor os outros quatro aspectos examinados pelo concílio.

1. O progresso da cultura 572. Depois de especi car o conceito de “cultura” (nº 53), de expor a situação da cultura no mundo atual (nº 54–56) e de estabelecer alguns princípios para a sua sadia promoção (nº 57– 59), o concílio passa a assinalar “algumas obrigações mais urgentes dos cristãos em relação à cultura”. Eis aqui o esplêndido texto conciliar, acompanhado de alguma breve glosa:578 i. O direito de todos à cultura 573. O concílio começa proclamando o direito de todos os homens à cultura, seja qual for sua raça, sexo, nacionalidade, religião ou condição social. Dado que hoje há a possibilidade de libertar muitos homens da miséria da ignorância, é dever muito próprio do nosso tempo, principalmente para os cristãos, trabalhar energicamente para que, tanto no campo econômico como no político, no nacional como no internacional, se estabeleçam os princípios fundamentais segundo os quais se reconheça em toda a parte e se faça efetivo o direito de todos à cultura correspondente à dignidade humana, sem discriminação de raça, sexo, nação, religião ou situação social. Por isso, é preciso procurar que todos recebam su ciente abundância dos bens culturais, sobretudo daqueles que constituem a chamada educação de base, a m de evitar que um grande número de homens se vejam impedidos, por causa do analfabetismo e da privação duma atividade responsável, de contribuir para o bem comum de modo verdadeiramente humano (nº 60).

Por cultura “de base” deve-se entender, pelo menos, aquela que se recebe nas escolas elementares. A falta absoluta dessa cultura — sobretudo se chega ao extremo do analfabetismo — não só é uma grande desgraça para quem a sofre, mas representa também um grave prejuízo em ordem ao bem comum. Um analfabeto, de fato, está quase radicalmente incapacitado para prestar à sociedade humana serviços diferentes daqueles que se poderiam obter de uma máquina e, muitas vezes, até menos que esta. Ninguém ignora a grave ofensa que isto representa não só para a dignidade da pessoa humana, mas também para as mais elementares exigências do bem comum. É preciso acabar radicalmente com esta vergonhosa situação; e, para consegui-lo, devem contribuir

todos os homens do mundo, principalmente os cristãos, como adverte expressamente o concílio. ii. Oportunidade dos estudos superiores para todos 574. Deve-se tender, portanto, para que todos os que são disso capazes tenham a possibilidade de seguir estudos superiores; de modo que subam na sociedade às funções, cargos e serviços correspondentes às próprias aptidões ou à competência que adquirirem.579 Deste modo, todos os homens e todos os agrupamentos sociais poderão chegar ao pleno desenvolvimento da sua vida cultural, segundo as qualidades e tradições próprias de cada um (nº 60).

iii. Tornar possível o direito de todos 575. É preciso, além disso, trabalhar muito para que todos tomem consciência, não só do direito à cultura, mas também do dever que têm de cultivá-la em si mesmos e de ajudar os outros nesse campo. Existem, com efeito, por vezes, condições de vida e de trabalho que impedem as aspirações culturais dos povos e destroem neles o desejo da cultura. Isto vale especialmente para os camponeses e trabalhadores, aos quais se deve proporcionar condições de trabalho tais que não impeçam, mas antes ajudem a sua cultura humana (nº 60).

iv. A mulher e a cultura 576. As mulheres trabalham já em quase todos os setores de atividade; mas convém que possam exercer plenamente a sua participação, segundo a própria índole. Será um dever para todos reconhecer e fomentar a necessária e especí ca participação das mulheres na vida cultural (nº 60).

v. Amplitude crescente da cultura 577. É mais difícil hoje do que outrora fazer uma síntese dos vários ramos do saber e das artes. Porque na medida em que aumenta a multidão e a diversidade dos elementos que constituem a cultura, a possibilidade de os compreender e organizar diminui para cada homem; a gura do “homem universal” desaparece assim cada vez mais. No entanto, cada homem continua a ter o dever de salvaguardar a integridade da pessoa humana, na qual sobressaem os valores da inteligência, da vontade, da consciência e da fraternidade, valores que se fundam em Deus Criador, e que por Cristo foram admiravelmente restaurados e elevados (nº 61).

vi. Papel da família na cultura humana 578. A família é, prioritariamente, como que a mãe e a fonte da educação: nela, os lhos, rodeados de amor, aprendem mais facilmente a reta ordem das coisas, enquanto

as formas aprovadas da cultura vão penetrando como que naturalmente na alma dos adolescentes, na medida em que vão crescendo (nº 61).

vii. Modernos recursos de cultura 579. Para esta mesma educação, as sociedades contemporâneas dispõem de possibilidades que podem favorecer a universalização da cultura, sobretudo graças à crescente difusão de livros e aos novos meios de comunicação cultural e social. Com efeito, com a diminuição generalizada do tempo de trabalho, crescem progressivamente para muitos homens as facilidades para tal. Os tempos livres sejam bem empregados, para descanso do espírito e saúde da alma e do corpo, ora com atividades e estudos livremente escolhidos, ora com viagens a outras regiões (turismo), com as quais se educa o espírito e os homens se enriquecem com o conhecimento mútuo, ora também com exercícios e manifestações esportivas, que contribuem para manter o equilíbrio psíquico, mesmo na comunidade, e para estabelecer relações fraternas entre os homens de todas as condições e nações, ou de raças diversas. Colaborem, portanto, os cristãos, a m de que as manifestações e atividades culturais coletivas, características do nosso tempo, sejam penetradas de espírito humano e cristão (nº 61).

viii. A cultura e a pessoa humana 580. Mas todas estas vantagens não conseguirão levar o homem à educação cultural integral se, ao mesmo tempo, não se tiver o cuidado de investigar o signi cado profundo da cultura e da ciência para a pessoa humana (nº 61).

ix. Harmonia entre a cultura humana e a educação cristã 581. Ainda que a Igreja muito tenha contribuído para o progresso cultural, a experiência mostra, contudo, que devido a causas contingentes, nem sempre a harmonia da cultura com a doutrina se realiza sem di culdades. Tais di culdades não são necessariamente danosas para a vida da fé; antes, podem levar o espírito a uma compreensão mais exata e mais profunda da mesma fé. Efetivamente, as recentes investigações e descobertas das ciências, da história e da loso a, levantam novos problemas, que implicam conseqüências também para a vida e exigem dos teólogos novos estudos. Além disso, os teólogos são convidados a buscar constantemente, de acordo com os métodos e exigências próprias do conhecimento teológico, a forma mais adequada de comunicar a doutrina aos homens do seu tempo; porque uma coisa é o depósito da fé ou as suas verdades, e outra o modo como elas se enunciam, sempre, porém, com o mesmo sentido e signi cado.580 Na atividade pastoral, conheçam-se e apliquem-se su cientemente, não apenas os princípios teológicos, mas também os dados das ciências profanas, principalmente da psicologia e da sociologia, para que assim os éis sejam conduzidos a uma vida de fé mais pura e madura (nº 62).

x. A literatura e a arte

582. A literatura e a arte são também, segundo a maneira que lhes é própria, de grande importância para a vida da Igreja. Procuram elas dar expressão à natureza do homem, aos seus problemas e à experiência das suas tentativas para conhecer-se e aperfeiçoar-se a si mesmo e ao mundo; e tentam identi car a sua situação na história e no universo, dar a conhecer as suas misérias e alegrias, suas necessidades e energias, e desvendar um futuro melhor para a humanidade. Conseguem assim elevar a vida humana, que exprimem sob muito diferentes formas, segundo os tempos e lugares. Por conseguinte, deve-se trabalhar para que os artistas se sintam compreendidos, na sua atividade, pela Igreja, e que, gozando de uma ordenada liberdade, tenham mais facilidade de contatos com a comunidade cristã. A Igreja deve também reconhecer as novas formas artísticas, que segundo o gênio próprio das várias nações e regiões, se adaptam às exigências dos nossos contemporâneos. Sejam admitidas nos templos quando, com linguagem conveniente e conforme às exigências litúrgicas, levantarem o espírito a Deus.581 Deste modo, o conhecimento de Deus é mais perfeitamente manifestado; a pregação evangélica torna-se mais compreensível ao espírito dos homens, e aparece como integrada nas suas condições normais de vida (nº 62).

xi. União com os demais homens 583. Vivam, pois, os éis em estreita união com os demais homens de seu tempo, e procurem compreender perfeitamente o seu modo de pensar e sentir, o qual se exprime pela cultura. Saibam conciliar os conhecimentos das novas ciências, doutrinas e últimas descobertas com os costumes e a doutrina cristã, a m de que a prática religiosa e a retidão moral acompanhem neles o conhecimento cientí co e o progresso técnico, e sejam capazes de apreciar e interpretar todas as coisas com autêntico sentido cristão (nº 62).

xii. A investigação teológica 584. Os que se dedicam às ciências teológicas nos seminários e universidades, procurem colaborar com os especialistas doutros ramos do saber, pondo em comum trabalhos e conhecimentos. A investigação teológica deve simultaneamente procurar um profundo conhecimento da verdade revelada e não descurar a ligação com o seu tempo, para que assim possa ajudar os homens formados nas diversas matérias a alcançar um conhecimento mais completo da fé. Esta colaboração ajudará muitíssimo a formação dos ministros sagrados. Estes poderão assim expor de maneira mais adequada aos homens do nosso tempo a doutrina da Igreja acerca de Deus, do homem e do mundo; e, ao mesmo tempo, sua palavra será por eles melhor acolhida.582 Mais ainda: é mesmo de desejar que muitos leigos adquiram uma conveniente formação nas disciplinas sagradas, e que muitos deles se dediquem expressamente a cultivar e aprofundar estes estudos. E para que possam desem- penhar bem a sua tarefa, deve-se reconhecer aos éis, clérigos ou leigos uma justa liberdade de investigação, de pensamento e de expressão da própria opinião, com humildade e fortaleza, nos domínios da sua competência (nº 62).583

A magní ca doutrina conciliar sobre o fomento da cultura vai até aqui. Nela se a rma de maneira enérgica e contundente a obrigação fundamental que incumbe aos cristãos de fomentar e favorecer uma estrutura sociopolítica e econômica que torne possível a vida cultural de todos os membros da sociedade humana, sem distinção de raça, sexo, nacionalidade, religião ou condição social, e sem excluir nenhum campo do saber humano; sem outras limitações que aquelas impostas pela ordem moral e o bem comum, porque a cultura é um bem integral e inalienável da pessoa humana. 2. A vida econômica e social 585. Depois daquilo que se relaciona com o fomento do progresso cultural dos povos, o Concílio Vaticano se concentra na vida econômica e social dos mesmos, que ele estuda ampla e detalhadamente. Na impossibilidade de reunir aqui integralmente a sua doutrina, oferecemos ao leitor um esquema que resume brevemente suas idéias fundamentais.584

*** 586. 1. Alguns aspectos da economia contemporânea. Quando uma vida econômica ordenada poderia permitir hoje a redução das desigualdades sociais, presenciamos às vezes, ao contrário, um aumento delas. Enquanto alguns homens e povos vivem na opulência, outros permanecem em uma situação indigna da pessoa humana. Semelhantes desequilíbrios são notados também entre as diferentes categorias sociais e entre as diferentes regiões de um mesmo país. Por isso é necessária uma reforma das estruturas e uma mudança de mentalidade e dos hábitos de vida (nº 63). Seção i — O desenvolvimento econômico

587. 2. O desenvolvimento econômico a serviço do homem. O m do desenvolvimento econômico não é somente o benefício, mas o serviço ao homem em sua integridade material, intelectual e religiosa. Portanto, a atividade econômica deve ser realizada segundo suas leis próprias, mas no âmbito da ordem moral e dos planos de Deus (nº 64). 588. 3. O desenvolvimento econômico sob o controle do homem. O desenvolvimento econômico não deve ser abandonado ao arbítrio de alguns homens ou de alguns grupos, nem apenas da comunidade política, nem de algumas nações poderosas, mas deve permanecer sob o controle do homem. É necessário coordenar as iniciativas espontâneas dos particulares e a ação do Estado. Por isso, devem ser reprovadas tanto as doutrinas que, em nome de uma falsa liberdade, se opõem às reformas necessárias, como aquelas que sacri cam os bens fundamentais da pessoa humana à organização coletiva. Lembrar, além disso, o dever de todos os cidadãos de contribuírem para o progresso da própria comunidade (nº 65). 589. 4. Devem desaparecer as enormes desigualdades econômicosociais. É necessário dedicar o máximo esforço para que desapareçam as enormes disparidades econômicas e sociais. É preciso ajudar e sustentar em particular os agricultores e os emigrantes, os quais jamais deverão ser considerados como simples instrumentos de produção, e em relação aos quais não se deve exercer nenhuma discriminação. Facilite-se a todos e individualmente um emprego adequado e su ciente, a possibilidade de uma formação pro ssional, e a garantia da subsistência e da dignidade humana dos enfermos e dos anciãos (nº 66). Seção ii — Alguns princípios reguladores da vida econômicosocial

590. 5. Trabalho e tempo livre. Valor humano e religioso do trabalho, que é expressão da pessoa, e está muito acima dos demais elementos da vida econômica. Direito e dever de trabalhar. Justa remuneração do trabalho. O processo produtivo deve adaptar-se às exigências da pessoa humana, que deve poder expressar no trabalho a sua personalidade e ter tempo livre su ciente para os deveres pessoais de caráter familiar e religioso e para o desenvolvimento da própria pessoa (nº 67). 591. 6. Participação na empresa; con itos trabalhistas. Ressalvada a necessária unidade de direção, deve ser promovida a participação de todos na vida da empresa. Entre os direitos da pessoa, é preciso reconhecer aquele de criar associações livres de trabalhadores que possam representá-los, contribuir para organizar a vida econômica e alimentar em seus próprios membros o senso de responsabilidade. Em caso de con ito, devem ser esgotadas todas as possibilidades de conciliação pací ca, e recorrer à greve (que ainda pode ser considerada como um meio extremo e necessário) somente depois do fracasso das tentativas realizadas (nº 68). 592. 7. Os bens da terra e seu destino universal para todos os homens. Deus destinou a terra para uso de todos os homens. Por conseguinte, todos devem participar dos bens criados. Sejam quais forem as formas concretas da propriedade, cada um deve usar dos bens que possui não só como bens próprios, mas também como bens comuns, fazendo com que sirvam ao proveito próprio e ao proveito alheio. Todo homem tem direito aos bens necessários e, em situações de extrema necessidade, pode conseguir o indispensável tomando-o das riquezas dos demais. A Igreja, que sempre pregou o dever da caridade, exorta a todos insistentemente a que empreguem os bens próprios para o desenvolvimento dos indivíduos e dos povos. Nas sociedades economicamente pouco desenvolvidas, com freqüência a destinação comum dos bens se realiza mediante costumes e tradições comuns, contra as quais não

se deve atuar impunemente, mas que, no entanto, nem sempre devem ser consideradas como intocáveis. Nos países economicamente desenvolvidos, as instituições para a previdência e seguridade social podem contribuir em parte para realizar a destinação comum dos bens (nº 69). 593. 8. Investimentos e política monetária. Os investimentos devem contribuir para assegurar trabalho e renda su ciente para a população atual e futura. Em matéria monetária, cuide-se de não prejudicar o bem da própria nação ou das alheias. E que os menos poderosos do ponto de vista econômico não sofram com as mudanças de valor da moeda (nº 70). 594. 9. Acesso à propriedade. O problema dos latifúndios. A propriedade contribui para o desenvolvimento da pessoa. Por isso deve-se favorecer o acesso de todos à propriedade privada, a qual não está em oposição às várias formas da propriedade pública. A propriedade privada, quando esquece sua destinação social, pode fomentar a cobiça e a avareza. Em muitos países pouco desenvolvidos, existem grandes propriedades agrícolas malcultivadas ou mantidas em reserva por motivos de especulação; enquanto isso, a maior parte da população vive desprovida de terra ou possui terrenos demasiado pequenos. Não é raro, tampouco, o caso de trabalhadores braçais que cultivam latifúndios e recebem um salário indigno de homens, não podendo ter acesso às expressões próprias da civilização humana. Nestas circunstâncias, é necessário impor o aumento de salários e o melhoramento das condições de trabalho, e devem ser promovidas aquelas reformas dirigidas a distribuir — com pagamento prévio de indenização — as propriedades mal-cultivadas (nº 71). 595. 10. A atividade econômico-social e o reino de Cristo. Os cristãos que atuam no setor econômico e social podem contribuir muito para a prosperidade do gênero humano e para a paz. Para isso, porém, adquiram a competência necessária e saibam observar

sempre a reta ordem das coisas, permanecendo éis a Cristo e compenetrando-se do espírito das bem-aventuranças, e de modo muito particular da pobreza (nº 72).

*** O esquema do capítulo do Concílio Vaticano sobre a vida econômica e social dos povos vai até aqui. Nele se resumem as grandes diretrizes da doutrina social da Igreja, magistralmente exposta pelos últimos pontí ces, especialmente por Leão na Rerum novarum, por Pio na Quadragesimo anno e por João na Mater et Magistra. 596. Ultimamente, Paulo publicou a sensacional encíclica Populorum progressio, sobre o mesmo tema, que atualiza, com premente urgência, a doutrina de seus predecessores e do Concílio Vaticano .585 Dada a singular importância deste excepcional documento pontifício, oferecemos a seguir um resumo de suas idéias mais importantes, citando textualmente, entre aspas, as próprias palavras de Paulo . A Populorum progressio, de Paulo vi 1. A Igreja sempre se preocupou com o desenvolvimento e o progresso material das nações, sem prejuízo de atender antes de tudo à sua missão sobrenatural de buscar a salvação eterna de todo o gênero humano. 2. Todos os povos do mundo aspiram e têm pleno direito ao seu desenvolvimento material, e a viver uma vida que não ofenda a excelsa dignidade da pessoa humana. 3. Entretanto, “os povos ricos gozam de um crescimento rápido, enquanto os pobres se desenvolvem lentamente. O desequilíbrio

aumenta: alguns produzem gêneros alimentícios em excesso, que faltam cruelmente a outros”. 4. “Enquanto, em certas regiões, uma oligarquia goza de civilização requintada, o resto da população, pobre e dispersa, é privada de quase toda a possibilidade de iniciativa pessoal e de responsabilidade, e é muitas vezes colocada até em condições de vida e de trabalho indignas da pessoa humana”. 5. “Quem não vê os perigos que daí resultam, de reações populares violentas, de agitações revolucionárias, e de um resvalar para ideologias totalitárias? Tais são os dados do problema, cuja gravidade a ninguém passa despercebida”. 6. Leve-se em grande conta que “o desenvolvimento não se reduz a um simples crescimento econômico. Para ser autêntico, deve ser integral, quer dizer, promover todos os homens e o homem todo... O que conta para nós é o homem, cada homem, cada grupo de homens, até se chegar à humanidade inteira”. 7. “Se a terra foi feita para prover a todos os homens os meios de subsistência e os instrumentos de seu progresso, todo homem tem direito de encontrar nela aquilo de que necessite”. A terra — diz Santo Ambrósio — foi dada para todo o mundo, e não só para os ricos. 8. Por isso mesmo, “a propriedade privada não constitui para ninguém um direito incondicional e absoluto. Ninguém tem direito de reservar para seu uso exclusivo aquilo que é supér uo, quando a outros falta o necessário. Numa palavra, o direito de propriedade nunca deve ser exercido em detrimento do bem comum, segundo a doutrina tradicional dos Padres da Igreja e dos grandes teólogos. Surgindo algum con ito entre os direitos privados e adquiridos e as exigências comunitárias primordiais, é ao poder público que pertence resolvê-lo, com a participação ativa das pessoas e dos grupos sociais”.

9. “O bem comum exige por vezes a expropriação, se certos domínios formam obstáculos à prosperidade coletiva, pelo fato da sua extensão, da sua exploração fraca ou nula, da miséria que daí resulta para as populações, do prejuízo considerável causado aos interesses do país”. Tudo isto foi lembrado claramente pelo Concílio Vaticano . 10. “A rmando-o com clareza, o concílio também lembrou, não menos claramente, que o rendimento disponível não está entregue ao livre capricho dos homens, e que as especulações egoístas devem ser banidas”. 11. “Contudo, desgraçadamente, sobre estas novas condições da sociedade, construiu-se um sistema que considerava o lucro como motor essencial do progresso econômico, a concorrência como lei suprema da economia, e a propriedade privada dos bens de produção como direito absoluto, sem limite nem obrigações sociais correspondentes. Este liberalismo sem freio conduziu à ditadura denunciada com razão por Pio , como geradora do imperialismo internacional do dinheiro. Nunca será demasiado reprovar tais abusos, lembrando mais uma vez, solenemente, que a economia está ao serviço do homem”.586 12. “Urge começar: são muitos os homens que sofrem, e aumenta a distância que separa o progresso de uns da estagnação — e até mesmo do retrocesso — de outros. No entanto, é preciso que a obra a ser realizada progrida harmoniosamente, sob pena de destruir equilíbrios indispensáveis. Uma reforma agrária improvisada pode falhar em seu objetivo. Uma industrialização brusca pode desmoronar estruturas ainda necessárias, e gerar misérias sociais que seriam um retrocesso humano”. 13. “Certamente há situações cuja injustiça brada aos céus. Quando populações inteiras, desprovidas do necessário, vivem

numa dependência que lhes corta toda a iniciativa e a responsabilidade, e também toda a possibilidade de formação cultural e de acesso à carreira social e política, é grande a tentação de repelir pela violência tais injúrias à dignidade humana. Não obstante, sabe-se que a insurreição revolucionária — salvo casos de tirania evidente e prolongada que ofendesse gravemente os direitos fundamentais da pessoa humana e prejudicasse o bem comum do país — gera novas injustiças, introduz novos desequilíbrios, provoca novas ruínas. Nunca se pode combater um mal real à custa de uma desgraça maior”. 14. “Desejaríamos ser bem compreendidos: a situação atual deve ser enfrentada corajosamente, assim como devem ser combatidas e vencidas as injustiças que ela comporta. O desenvolvimento exige transformações audaciosas, profundamente inovadoras. Devem empreender-se, sem demora, reformas urgentes. Contribuir para elas com a sua parte compete a cada pessoa, sobretudo àquelas que, por educação, situação e poder, têm grandes possibilidades de in uxo. Dando exemplo, tirem dos seus próprios bens, como zeram alguns dos nossos irmãos no episcopado. Responderão, assim, à expectativa dos homens, e serão éis ao Espírito de Deus, porque foi o fermento evangélico que suscitou e suscita no coração do homem uma exigência incoercível de dignidade”. 15. “Toda ação social implica uma doutrina, mas o cristão não pode admitir a que implica uma loso a materialista e atéia que não respeite a orientação religiosa da vida para o seu último m, nem a liberdade e a dignidade humana.587 Mas, garantidos estes valores, é admissível e, até certo ponto, útil, um pluralismo de organizações pro ssionais e sindicais, contanto que ele proteja a liberdade e provoque a emulação. É com toda a nossa alma que prestamos homenagem a quem quer que, por este meio, trabalhe servindo desinteressadamente os seus irmãos”. 16. “Hoje ninguém pode ignorar que, em continentes inteiros, são inumeráveis os homens e as mulheres torturados pela fome, e

inumeráveis as crianças subalimentadas, a ponto de morrer uma grande parte delas em tenra idade, e de correrem perigo o crescimento físico, bem como o desenvolvimento mental, de muitas outras. E todos sabem que regiões inteiras estão, por este mesmo fato, condenadas ao mais triste desânimo”. 17. Porém, “não se trata apenas de vencer a fome, nem tampouco de afastar a pobreza. O combate contra a miséria, embora urgente e necessário, não é su ciente. Trata-se de construir um mundo em que todos os homens, sem exceção de raça, religião ou nacionalidade, possam viver uma vida plenamente humana, livres de servidões que lhes vêm da parte de outros homens, e de uma natureza mal-domada; um mundo em que a liberdade não seja uma palavra vã e em que o pobre Lázaro possa sentar-se à mesa do rico”. 18. “Repetimos mais uma vez: o supér uo dos países ricos deve pôr-se ao serviço dos países pobres. A regra que existia outrora em favor dos mais próximos, deve aplicar-se hoje à totalidade dos necessitados do mundo inteiro. Aliás, serão os ricos os primeiros a bene ciar-se com isto. De outro modo, a sua avareza continuada provocaria os juízos de Deus e a cólera dos pobres, com conseqüências imprevisíveis”. 19. “É necessário ir ainda mais longe. Pedíamos, em Bombaim, a organização de um grande Fundo Mundial, sustentado por uma parte da verba das despesas militares, para vir em auxílio dos mais deserdados. O que é válido para a luta imediata contra a miséria vale também no que diz respeito ao desenvolvimento. Só uma colaboração mundial, de que um fundo comum seria, ao mesmo tempo, símbolo e instrumento, permitiria superar as rivalidades estéreis e estabelecer um diálogo fecundo e pací co entre todos os povos”.

20. “Por outro lado, quem não vê que um tal fundo facilitaria a reconversão de certos esbanjamentos que são fruto do medo ou do orgulho? Quando tantos povos têm fome, tantos lares vivem na miséria, tantos homens permanecem mergulhados na ignorância, tantas escolas, hospitais e habitações, dignas deste nome, cam por construir, torna-se um escândalo intolerável qualquer esbanjamento, público ou privado, qualquer gasto de ostentação nacional ou pessoal, qualquer recurso exagerado aos armamentos. Sentimo-nos na obrigação de o denunciar. Dignem-se ouvir-nos os responsáveis, antes que se torne demasiado tarde”. 21. “O mundo está doente. O seu mal reside menos na dilapidação dos recursos ou no seu acúmulo por parte de poucos, do que na falta de fraternidade entre os homens e entre os povos”. 22. “Alegramo-nos por saber que, em algumas nações, o ‘serviço militar’ pode tornar-se, em parte, ‘serviço social’, um simples serviço. Abençoamos estas iniciativas e a boa vontade daqueles que a elas respondem”. 23. “Combater a miséria e lutar contra a injustiça é promover não só o bem-estar, mas também o progresso humano e espiritual de todos, e, portanto, o bem comum da humanidade. A paz não se reduz a uma ausência de guerra, fruto do equilíbrio sempre precário das forças. Constrói-se, dia a dia, na busca de uma ordem querida por Deus, que traz consigo uma justiça mais perfeita entre os homens”. 24. “Se o desenvolvimento é o novo nome da paz, quem não deseja trabalhar para ele com todas as forças? Sim, nós convidamos a todos a responderem ao nosso grito de angústia, em nome do Senhor”.

*** Até aqui, algumas das mais importantes orientações de Paulo em sua maravilhosa Encíclica Populorum progressio. É preciso ler

e meditar integralmente o magní co documento pontifício, cuja prática traria a verdadeira paz e tranqüilidade para a humanidade inteira, e cujo desprezo pode levá-la a irremediáveis catástrofes. É dever de todo cristão trabalhar ardentemente para que estas idéias sejam postas em prática com toda a decisão. Para isso serão necessárias profundas mudanças na mentalidade de muitos, sobretudo naqueles que ainda depositam sua con ança nas estruturas já superadas do capitalismo liberal ou nos sonhos utópicos do coletivismo marxista. Ambas as pretensas soluções são igualmente rejeitadas na encíclica de Paulo , como já o foram repetidas vezes na doutrina de seus antecessores no sólio pontifício. A solução cristã e católica, baseada na justiça e no amor, é a única que pode conduzir os homens ao verdadeiro progresso, ao bem-estar completo e à paz rme e estável na mais autêntica e visceral fraternidade universal. 3. A vida na comunidade política 597. Imediatamente depois de ter assentado os princípios fundamentais para uma reta ordenação da vida econômica e social, o Concílio Vaticano passa a expor as linhas diretoras que devem inspirar a vida dos homens na comunidade política de que fazem parte. Oferecemos, a seguir, o esquema da doutrina do concílio, cujo texto integral — que é indispensável ler e meditar — reúne e esgota, em estreita síntese, todos os aspectos fundamentais da vida política entre os homens.588

*** 598. 1. A vida pública contemporânea. A maior consciência da dignidade humana promove na ordem política um maior respeito pelos direitos da pessoa, condição essencial para a participação na vida pública, pela qual se tem um desejo cada vez mais intenso. Cresce o respeito pelos direitos das minorias e por aqueles que têm opinião ou religião diferentes; e condenam-se os regimes que oprimem estas liberdades e põem o poder a serviço do interesse de

uma facção ou dos próprios governantes. Para estabelecer uma política reta, é necessário levar em conta o senso de justiça e do bem comum, e possuir uma noção muito clara dos limites da competência dos poderes públicos (nº 73). 599. 2. Natureza e nalidade da comunidade política. A comunidade política existe em função do bem comum, o qual deve ser buscado pela autoridade, harmonizando a convergência das opiniões e das energias de todos. O exercício da autoridade deve desenvolver-se sempre dentro do âmbito da lei moral. Quando a autoridade ultrapassa estes limites, os cidadãos, embora devam atender às exigências do bem comum, têm o direito de se defender do abuso de autoridade, respeitando os limites ditados pela lei natural e pelo Evangelho. As formas de organização política variam conforme os tempos e os lugares, mas permanece válido o m de formar um homem pací co e benévolo em proveito de toda a família humana (nº 74). 600. 3. Colaboração de todos na vida pública. Está de acordo com a natureza humana a participação dos cidadãos no governo das coisas públicas, que deverão buscar promovendo o bem comum, do qual faz parte o direito das pessoas e das famílias. Por seu lado, os cidadãos não recusem a contribuição material e pessoal exigida pelo bem comum, nem devem pretender da autoridade vantagens excessivas que possam reduzir o sentido da responsabilidade prestada. É desumano que a autoridade política assuma formas totalitárias ou ditatoriais que lesam os direitos das pessoas ou dos grupos sociais. Os cidadãos amem sua pátria sem nenhuma estreiteza de espírito, abertos ao amor por toda a humanidade; dediquem-se com generosidade ao bem comum, admitindo a legítima diversidade de opções temporais. Cuide-se da educação cívica e política; e quem se sentir chamado à nobre e difícil prática

da política, exerça-a perante a injustiça e a opressão, dedicando-se ao serviço de todos (nº 75). 601. 4. A comunidade política e a Igreja. É muito importante distinguir aquilo que os éis realizam em seu próprio nome como cidadãos e o que fazem em nome da Igreja, em comunhão com seus pastores. A Igreja, que está acima de todo sistema político, é a salvaguarda do caráter transcendente da pessoa. A comunidade política e a Igreja, ambas a serviço da pessoa, são independentes entre si. A Igreja, quando e onde o exigir sua missão, se vale das coisas temporais, mas não deposita suas esperanças nos privilégios oferecidos pela autoridade civil, e está inclusive disposta a renunciar também a esses privilégios quando seu uso puder colocar em dúvida a sinceridade da Igreja. Mas sempre e em todo caso a Igreja tem o direito de pregar a fé e de exercer sua missão, julgando também as coisas que se referem à ordem política quando isto for exigido pelos direitos fundamentais da pessoa e pela salvação das almas (nº 76).

*** 602. Até aqui, a doutrina do Concílio Vaticano sobre a vida dos homens na comunidade política. Como o leitor terá percebido, o concílio esgota a matéria, e mal se pode acrescentar alguma coisa a uma doutrina tão completa e claramente exposta. Cabe principalmente aos cristãos leigos que vivem no mundo e em meio às suas estruturas terrenas, utilizar todos os meios lícitos ao seu alcance para que estas orientações conciliares sejam levadas à prática, individual e coletivamente — sem considerar sacrifícios nem esforços —, com o m de consolidar a paz e o bem-estar dos povos, e, com isso, contribuir de modo extremamente e caz para a salvação do gênero humano e para a glória de Deus Criador e Salvador. 4. A paz mundial e a promoção dos povos O último capítulo da Constituição sobre a Igreja no Mundo Atual está inteiramente

dedicado à “promoção da paz e a comunidade dos povos”. Resumimos a seguir o esquema doutrinal do amplo e magní co capítulo, que é preciso ler e meditar na íntegra.589

*** 603. 1. Introdução. A humanidade não poderá levar a cabo a construção de um mundo mais humano se não se orientar em de nitivo para a verdadeira paz. Por isso o concílio, depois de condenar a desumanidade da guerra, exorta os cristãos a colaborar com todos para estabelecer entre os homens uma paz fundamentada na justiça e no amor (nº 77). 604. 2. Natureza da paz. A paz não é a simples ausência de guerra, nem tampouco o equilíbrio de forças adversárias. Ela é o fruto da ordem divina realizada pelos homens. A paz nasce do respeito, do amor ao próximo, imagem e efeito da paz de Cristo, que sobre a Cruz reconciliou todos os homens com Deus, restabelecendo a unidade de todos em um só povo. Os homens, enquanto pecadores, cam sempre sob a ameaça da guerra; mas, enquanto vencedores do pecado, vencem também a violência (nº 78). Seção i — Obrigação de evitar a guerra 605. 3. O dever de mitigar a guerra. Diante da extensão da guerra e de sistemas bélicos inadmissíveis, o concílio chama a atenção para o valor imutável do direito natural dos povos e de seus princípios universais. As ações que a eles se opõem são crimes que não podem ter nenhuma escusa, nem mesmo em nome da obediência cega. Entre estas ações, é preciso condenar sobretudo o extermínio de povos inteiros, de uma nação ou de uma minoria, e se deve honrar o valor dos que se opõem abertamente a quem ordena tais ações.

Os tratados internacionais, que tendem a tornar menos desumanas as ações militares, devem ser observados e melhorados no que for possível; e parece também de acordo com a eqüidade que as leis prevejam humanamente o caso daqueles que, por motivos de consciência, recusam o uso das armas, mas aceitam qualquer outra forma de serviço; entretanto, é sempre digno de elogio aquele que serve sua pátria no exército. Enquanto existir a guerra e não houver uma autoridade internacional competente, não se poderá negar o direito à legítima defesa. Mas uma coisa é servir-se das armas para defender os justos direitos dos povos, e outra coisa é impor pelas armas o próprio domínio sobre outras nações. Uma vez desencadeada uma guerra, nem tudo se torna lícito entre as partes que entram em con ito (nº 79). 606. 4. A guerra total. As ações militares, caso sejam adotadas com os meios modernos, superam em muito os limites da legítima defesa, e até mesmo poderiam provocar a quase total destruição recíproca. Isto nos obriga a considerar o problema da guerra com nova mentalidade. Este concílio, reiterando as condenações já pronunciadas contra a guerra total, declara que todo ato de guerra que tem como objeto a destruição de cidades ou regiões inteiras é um delito contra Deus e contra a humanidade. O concílio recorda aos chefes de Estado e aos altos comandos dos exércitos a sua responsabilidade (nº 80). 607. 5. A corrida armamentista. Às vezes, os armamentos não são acumulados com a intenção de usá-los, mas somente com o objetivo de dissuadir qualquer possível agressão. Seja lá o que se pense deste método de dissuasão, é necessário convencer-se de que a corrida armamentista não é uma via segura para conservar a paz. Esta corrida das armas é uma chaga gravíssima da humanidade, e prejudica intoleravelmente os pobres (nº 81).

608. 6. Proibição absoluta da guerra. A ação internacional para evitá-la. É necessário se dedicar à preparação do tempo em que uma autoridade universal, reconhecida por todos, e com meios e cientes, possa garantir a todos os povos a segurança e a tutela do direito. Enquanto isso, deve-se dedicar todo empenho em procurar a segurança comum, apoiando-se na mútua con ança, e não no terror das armas, e procedendo a um desarmamento não unilateral, mas comum, baseado em acordos mútuos e com seguras garantias. É preciso estimular a boa vontade daqueles que se consagram à paz. Por outro lado, é preciso orar a Deus pela paz, que exige a renúncia a toda supremacia, dentro de um clima de respeito por todas as nações. É preciso apoiar todas as iniciativas dirigidas a promover a paz, evitando, no entanto, a ilusão de que a paz possa ser estabelecida pela boa vontade de alguns poucos, e não exatamente pela disposição pací ca dos povos. Enquanto subsistirem o desprezo, a descon ança, o ódio racial, não poderemos ter paz. Daí a urgente necessidade de uma renovação dos espíritos (nº 82). Seção ii — Edi car a comunidade internacional 608. 7. As causas da discórdia e seus remédios. Muitas situações de discórdia são provenientes das desigualdades econômicas; outras, do espírito de dominação, do desprezo pelas pessoas, do egoísmo, do orgulho. Para superar e prevenir estes males, é necessário um maior acordo entre as instituições internacionais. Estimule-se também a criação de organismos adequados para promover a paz (nº 83). 610. 8. A comunidade das nações e as instituições internacionais. Necessidade de uma comunidade das nações que possa responder às exigências atuais. As instituições internacionais deverão ocuparse da alimentação, da saúde, da educação, do trabalho, da emigração, do subdesenvolvimento, etc. (nº 84).

611. 9. A cooperação internacional no plano econômico. Quase todos os povos alcançaram a independência política, mas não a econômica. Por isso é necessária a ajuda de técnicos estrangeiros que se dirijam a esses países, não mais como dominadores, mas como cooperadores. Para estabelecer uma ordem econômica universal, é preciso renunciar às ambições nacionalistas, aos ciúmes da dominação política, aos cálculos de ordem militar e às manobras para propagar e impor as próprias ideologias (nº 85). 612. 10. Algumas normas oportunas: a) As nações em vias de desenvolvimento promovam a plena expansão humana dos cidadãos. E sobre seu trabalho, sua inteligência, suas tradições, mais do que sobre as ajudas externas, deverá ser construído o seu próprio progresso. b) É um gravíssimo dever das nações desenvolvidas ajudar neste campo a todos os povos. No comércio com as nações menos afortunadas, respeite-se plenamente o bem comum destas últimas. c) Cabe à comunidade internacional regular estas relações. É preciso partir para a fundação de instituições capazes de promover e controlar o comércio internacional. d) Em muitos casos, é urgente uma transformação de estruturas, que, no entanto, deverá ser feita com cautela, levando em conta o patrimônio espiritual de cada povo (nº 86). 613. 11. A cooperação internacional no tocante ao crescimento demográ co. A cooperação internacional é também indispensável para resolver os problemas relacionados ao crescimento demográ co. A este propósito, o concílio exorta a todos que se abstenham de soluções contrárias à lei moral. A decisão sobre o número de lhos cabe por direito inalienável aos pais, aos quais é preciso dar uma consciência reta, de tal forma que possam governar-se neste ponto com o pleno respeito pela lei divina, levando em conta as circunstâncias. As populações devem ser

informadas também sobre os progressos cientí cos que possam ajudar em matéria de regulação dos nascimentos, sempre ressalvada a sua licitude moral (nº 87). 614. 12. Tarefa do cristão na ajuda a outros países. Os cristãos cooperem para a edi cação da ordem internacional, e façam todo o possível para evitar o escândalo daquelas nações com população de maioria cristã que gozam de grande abundância de bens, enquanto outras não-cristãs se vêem privadas do necessário. O povo de Deus se dedique a aliviar a miséria e a ajudar as nações menos favorecidas, inclusive com a ajuda dos demais irmãos cristãos (nº 88). 615. 13. Presença e caz da Igreja na comunidade internacional. A Igreja contribui para consolidar a paz colocando o conhecimento da lei divina e natural como fundamento da solidariedade. Por isso a Igreja deve estar presente na comunidade dos povos. Os éis prestem sua colaboração à comunidade internacional (nº 89). 616. 14. A participação dos cristãos nas instituições internacionais. Além da colaboração particular de cada um com as instituições internacionais existentes ou a serem fundadas, é desejável também a colaboração dos católicos com os irmãos separados. O concílio, portanto, considera oportuna a criação de um organismo universal da Igreja que tenha como m estimular a justiça e o amor pelos pobres (nº 90). Conclusão O concílio encerra sua Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Atual com a seguinte conclusão — que oferecemos em resumo —, e que afeta o conjunto total da mesma:

*** 617. 1. Missão dos éis e das Igrejas particulares. Embora tudo o que foi exposto até aqui já seja doutrina da Igreja, esta doutrina deverá ser continuada e ampliada, porque afeta realidades sujeitas

a uma contínua evolução. Por este motivo, a exposição tem caráter geral. 618. 2. O diálogo entre todos os homens. A Igreja é sinal de fraternidade. É necessário promover no seio da própria Igreja a estima, o respeito e o diálogo entre os pastores e os éis, observando a liberdade nas coisas duvidosas e a caridade em tudo. Nosso pensamento se dirige aos irmãos que estão separados de nós, e exorta todos a uma colaboração fraterna. Dirigimos o pensamento também a todos os que crêem em Deus. O diálogo não exclua ninguém, nem mesmo aqueles que se opõem à Igreja e a perseguem. Todos somos chamados a ser irmãos, e, por isso, todos devemos colaborar na construção do mundo na paz (nº 92). 619. 3. Edi cação do mundo e sua ordenação para Deus. Aderindo ao Evangelho e em união com todos aqueles que amam a justiça, os cristãos assumiram uma tarefa imensa e deverão responder por ela diante de Deus. O Pai quer que amemos a Cristo em nossos irmãos. Agindo assim, suscitaremos nos homens a esperança, dom do Espírito Santo, a m de que todos sejam recebidos na paz e na felicidade da pátria celestial (nº 93).

Artigo 4 — No mundo sem ser do mundo 620. Abordamos neste artigo um dos aspectos mais importantes, delicados e difíceis da espiritualidade própria dos leigos. Por um

lado, é evidente que o leigo deve viver no mundo, e salvar-se, inclusive santi car-se, no meio das estruturas terrenas: isto é exatamente o que há de mais típico e peculiar da vida cristã secular. Por outro lado, porém, é igualmente claro e evidente que nenhum cristão — seja qual for o seu estado e, por conseguinte, também os leigos — pode fazer as pazes com o “mundo”, entendido como o espírito mundano, que vive e reina por toda parte e impele os homens a, de forma prática, prescindirem de Deus, a m de se entregarem exclusivamente, de corpo e de alma, às coisas puramente humanas e terrenas, quando não francamente pecaminosas. São inumeráveis os textos bíblicos que nos falam da necessidade de romper com o mundo, enquanto inimigo de Deus. A título de exemplo, citaremos alguns: “Se o mundo vos odeia, sabei que primeiro odiou a mim. Se vós fôsseis do mundo, o mundo amaria o que é seu; mas porque não sois do mundo e porque eu vos escolhi do meio do mundo, por isso o mundo vos odeia” (Jo 15, 18–19). “Eles não são do mundo, como eu não sou do mundo” (Jo 17, 16). “O mundo está cruci cado para mim, e eu para o mundo” (Gl 6, 14). “Não sabeis que o amor do mundo é inimigo de Deus? Quem pretende ser amigo do mundo se constitui como inimigo de Deus” (Tg 4, 4). “Não ameis o mundo nem o que há no mundo. Se alguém ama o mundo, não está nele a caridade do Pai. Porque tudo o que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e o orgulho da vida, não vem do Pai, mas procede do mundo. E o mundo passa, e também as suas concupiscências; mas aquele que faz a vontade de Deus permanece para sempre” (1Jo 2, 15–17). “Sabemos que somos de Deus, enquanto o mundo está todo sob o maligno” (1Jo 5, 19). “Digo-vos, pois, irmãos, que o tempo é curto. Doravante, os que têm mulher vivam como se não a tivessem; os que choram, como se não chorassem; os que se alegram, como se não se alegrassem; os que compram, como se não possuíssem, e os que desfrutam do mundo, como se não o desfrutassem, porque a aparência deste mundo passa” (1Cor 7, 29–31).

Ora, como conciliar estas coisas tão divergentes — e até aparentemente contraditórias — como são o viver no mundo, sem ser do mundo? Como é possível reunir em uma única síntese orgânica e vital a presença e a ausência, o usar e o não usar, o

viver e o não viver, o aceitar e o rejeitar ao mesmo tempo? Sem dúvida, a junção e a conciliação destas antinomias tão díspares não poderão ser feitas senão à base de uma cuidadosa distinção entre aspectos e matizes muito diferentes nos dados do problema, cuja solução é preciso encontrar. E é isto que vamos tentar aqui. Desde já, é necessário proclamar bem alto que é completamente falso e contrário ao mais elementar sentido cristão a rmar redondamente — como, infelizmente, tantas vezes se fez — que o cristão leigo não pode nem deve renunciar a absolutamente nada do que existe no mundo, já que sua missão não é de renúncia — como a do sacerdote ou do religioso —, mas de encarnação no mundo; nesse sentido, ele deve apenas buscar cristianizar ou sobrenaturalizar as coisas do mundo, sem, porém, renunciar a nenhuma delas, mas, ao contrário, utilizar todas para a glória de Deus, o proveito pessoal e o bem-estar dos demais. Não é necessário ser um lince para descobrir de imediato o grande so sma que se encerra no parágrafo anterior. Ele mistura e confunde lastimavelmente os dois sentidos — totalmente antagônicos entre si — em que se pode empregar a palavra mundo: para signi car o conjunto de estruturas humanas ou terrenas — as quais, sim, o leigo terá de viver e sobrenaturalizar, contanto que sejam dignas e honestas, como já explicamos em seu lugar próprio (cf. nº 542) — ou para designar o espírito mundano, inimigo de Deus (Tg 4, 4), ao qual é preciso renunciar em absoluto, seja qual for a condição ou estado em que a Divina Providência tenha querido colocar o cristão batizado. O leigo cristão pode e deve viver no mundo e desenvolver sua vida em meio às estruturas terrenas; mas de modo algum está autorizado, nem o estará jamais, a ser mundano, isto é, viver de acordo com os ditames do espírito mundano, inimigo de Deus e inteiramente contrário ao espírito do Evangelho. Esta necessidade imprescindível de repelir o espírito mundano e abraçar o espírito evangélico traz consigo, indubitavelmente, uma série de dolorosas renúncias que afetam em cheio a qualquer

cristão, sobretudo caso se trate de um leigo que tem de viver forçosamente em meio ao mundo e respirar por todo lado o seu deletério ambiente. Imagine-se tão-somente a quantidade de privações e renúncias que terá de se impor esse leigo a m de simplesmente evitar o pecado (mortal ou venial), que de modo algum está autorizado a cometer. Com apenas um traço da caneta, é preciso riscar da lista de coisas permitidas ao leigo todas aquelas que suponham, ao menos, um simples pecado venial. Por duro que isto pareça, é coisa tão clara e evidente que nenhum cristão em são juízo poderá jamais colocá-la em discussão. O pecado — inclusive o simples pecado venial — não é, nem jamais será, lícito para absolutamente ninguém, seja um sacerdote, um religioso ou um simples leigo. Assim, é imprescindível — inclusive para os cristãos leigos — renunciar a muitas coisas do mundo que não poderiam ser usadas sem incorrer em algum tipo de pecado, ao menos venial. Está fora de dúvida que o cristão que aspire unicamente a salvar-se não precisa ser tão exigente, já que o pecado venial é compatível com a graça santi cante e, por isso mesmo, com a salvação eterna. Se, porém, ele aspira a santi car-se — e tem que aspirar de algum modo, já que existe da parte de Deus um chamado ou vocação universal à santidade, como vimos em seu lugar correspondente (cf. nº 21 ss.) —, é de todo imprescindível que ele renuncie para sempre, não só ao pecado mortal — que iria comprometer sua própria salvação eterna —, mas até ao mais leve e venial, que é incompatível com a perfeição cristã quando cometido de maneira plenamente consciente, voluntária e habitual. O simples cristão batizado não pode esquecer tampouco as solenes promessas de seu Batismo, feitas a Deus pela boca de seus padrinhos. Naquele dia — o maior e mais solene de sua vida — ele renunciou para sempre “a Satanás, suas obras e suas pompas”, o que supõe a renúncia a um sem- m de coisas que o mundo — perfeito aliado de Satanás — lhe oferecerá continuamente ao longo de toda a sua vida.

Não é possível esquecer, nalmente, que o próprio Cristo colocou como condição indispensável para ir após Ele e ser simplesmente seu discípulo, “negar-se a si mesmo, tomar a própria cruz a cada dia e segui-lo” (Mt 16, 24; cf. Lc 14, 17). Dada a excepcional importância desta matéria e a grande desorientação que existe em torno dela, vamos juntar a seguir um dos estudos mais serenos e equilibrados já feitos em nossos dias para solucionar satisfatoriamente este difícil problema de “viver no mundo sem ser do mundo”.590 1. Necessidade da transcendência do mundo, inclusive para o leigo 621. Seria errôneo acreditar que os escritos sérios sobre a espiritualidade dos leigos, devido ao realce que trazem sobre os elementos “de encarnação”, diminuem a verdade fundamental de que os mesmos leigos, como qualquer outro cristão, não são deste mundo e têm sua verdadeira pátria no céu (cf. Fl 3, 20). Na realidade, as a rmações de transcendência não só não faltam nos escritos de espiritualidade para leigos, mas constituem um coro poderoso e concorde.591 Do ponto de vista teológico, não é difícil demonstrar a radical transcendência do mundo e de suas estruturas, que deve animar toda a vida cristã como tal, e, por isso mesmo, inclusive a vida dos próprios leigos. A divinização do homem em Cristo pertence à própria essência do cristianismo. Divinização que, acima e além de todas as possibilidades imanentes ao mundo, arranca o homem de sua terra para fazê-lo cidadão dos santos. Aquele que crê no Filho Unigênito começa, de fato, a participar da vida íntima do Pai, feito “ lho no Filho” (Gl 3, 26; Ef 1, 5), e o próprio Espírito Santo lhe dá testemunho de sua liação divina (Gl 4, 5 ss.; Rm 8, 14–17). Não só em esperança, mas desde já,

possui a vida eterna (Jo 6, 47 e 54), por uma nova geração (Tt 3, 5) e um novo nascimento pela água e pelo Espírito Santo (Jo 3, 3–5), que torna o homem participante da própria natureza divina (1Pd 1, 3; 2, 2; 2Pd 1, 4). Por isso ele é chamado continuamente pelo Pai a reproduzir em si mesmo a imagem do Filho (Rm 8, 29), à espera da revelação da glória reservada ao Filho (cf. Rm 8, 18), quando o homem poderá ver no Filho a face do Pai tal como ela é (1Jo 3, 2), e Deus será “tudo em todos” (1Cor 15, 28).

A perspectiva transcendental-escatológica é, pois, o dado primeiro e fundamental da revelação cristã. O cristão está no mundo, mas não é deste mundo. É verdade que o valor “graça” (vida, intimidade divina) deixa perfeitamente a salvo todas as exigências estruturais das mais diversas ordens. Também é verdade que todas elas cam elevadas e valorizadas em uma perspectiva e nalização incomparavelmente superiores, adquirindo uma nova e mais alta funcionalidade, sem que, não obstante, se altere sua própria constituição e seu dinamismo natural. Porém, também é verdade que a vocação sobre-natural é para sempre e necessariamente, por de nição, uma ruptura daquela esfera em que o mundo gostaria de repousar em si mesmo e bastar a si mesmo, e fugir da morte com presunçosa auto-su ciência. Por isso o ato de fé signi ca sempre e necessariamente uma radical relativização de todos os valores do mundo (daqueles valores que o homem tem e é), para abandonar em Deus o próprio ser. É realmente um morrer para si mesmo e para o mundo, não só em sentido escatológico (ao nal da existência humana), mas como uma situação estável de passagem para Deus, que fundamentalmente vem a dominar toda a existência cristã. Contra toda tentativa de naturalização do cristianismo, é preciso a rmar vigorosamente que o valor “graça” — que nos foi dado em Cristo — não signi ca nem primariamente, nem fundamentalmente, o aperfeiçoamento do mundo e de suas estruturas, embora traga consigo escatologicamente (como que por acréscimo e redundância do dogma da encarnação do Verbo) esta plenitude escatológica do mundo. A graça possui, antes de tudo, plenitude de valor em si mesma, abertura e participação na vida trinitária em si

mesma; e por isso é um valor e um bem inteiramente auto-su ciente, além e acima de todo aperfeiçoamento das estruturas do mundo. Neste sentido, o cristianismo é essencial e inequivocamente — e não pode deixar de sêlo — uma verdadeira fuga do mundo. E precisamente a graça, que é fermento vital e operante, princípio da fé, da esperança e do amor para com aquele Deus que se revela como Amor acima do mundo, não poderá deixar de realizar, inclusive psicológica e conscientemente, no homem que a acolher em si mesmo, esta radical fuga do mundo para aquele Deus que é crido, esperado e amado como o primeiro e o maior Amor, além e acima de todas as possibilidades, realizações e gozos imanentes ao mundo. Por tudo isso, até mesmo a vida do leigo não poderá deixar de implicar um radical e irredutível desapego do mundo e de seus valores. O leigo nunca poderá ser daquele mundo que tem a missão de divinizar a partir do interior de suas próprias estruturas. É preciso a rmar isto sem equívocos em meio ao materialismo que hoje inunda tudo.

Até mesmo a vida do leigo, não menos que a do religioso, deve estar marcada, mais que por qualquer outra coisa, por uma orientação radicalmente transcendente ao mundo e desapegada do mundo. Neste sentido, ou sob este aspecto fundamental da experiência cristã profundíssima do Pai do céu no Senhor Jesus e no Espírito Santo, a distinção entre religiosos e leigos jamais poderá ser estabelecida de maneira demasiado taxativa, apesar das correspondentes diferenças tipológicas. O leigo deverá, inclusive, traduzir na pobreza de espírito interior aquele desapego real do mundo que o religioso (sem dúvida em uma modalidade particular) vive externamente, recheando seu entusiasmo pela recapitulação do mundo em Cristo Jesus com um conteúdo de “discrição” muito rico em matizes. E este conteúdo não poderá deixar de impregnar toda a sua vida de leigo cristão pela profundidade de onde ele brota. Realmente, uma radical liberdade íntima em relação ao mundo é exigida pelo já citado texto de São Paulo aos éis de Corinto (cf. 1Cor 7, 29–31), que se refere a todos os cristãos, inclusive aos leigos: “Aqueles que tenham mulher, vivam como se não a tivessem”, etc. Não é permitido ao cristão se perder atrás do

mundo. Existe nele algo de muito íntimo que o separa deste mundo, como se já tivesse morrido realmente. E nisto que nele existe de mais íntimo, já não pertence ao mundo, nem tampouco pertence a si mesmo, mas àquele Jesus que o uniu estreitamente à sua morte e à sua ressurreição gloriosa, e fez dele um concidadão do céu. Porém, se é isto, e não outra coisa, que constitui o primeiro imperativo de toda vida cristã, será preciso interrogar-se, do ponto de vista de nossa problemática em torno da espiritualidade dos leigos, acerca dos seguintes extremos: — Como se concilia esta fundamental exigência cristã de transcendência e desapego interior do mundo e de seus valores com a outra exigência — que o mesmo leigo está chamado expressamente a realizar — de inserção e uso cordial e interessado pelas coisas do mundo? E ainda mais profundamente: — Como se entregar, lançar-se a fundo e cordialmente às obras do mundo, se a lei cristã fundamental é, inclusive para o leigo, a de “usar do mundo como se não usasse dele”?

De fato, pareceria que teríamos de concluir que se trata de uma entrega não cordial, mas ctícia. Ou seja, uma entrega que não toca realmente o mais profundo de si mesmo, desde o momento em que implica precisamente o não ser e o não dever ser do mundo no mais profundo de si mesmo. Isto equivale a nos perguntarmos se realmente pode e deve ocorrer para o leigo uma harmonização íntima entre os valores da natureza e os da graça; ou se, ao contrário, a tensão entre as duas polaridades — Deus e o mundo — não deve ser aceita simplesmente como a cruz mais particularmente própria do leigo, que redime, ao sofrê-la, sua própria obra intramundana. Antes de enfrentar diretamente as tentativas de solução, é necessário ainda equilibrar melhor, do ponto de vista estritamente teológico, os elementos que compõem a transcendência cristã do mundo. 2. De nições teológicas sobre a transcendência cristã do mundo 622. a) Uma primeira de nição sobre a transcendência cristã do mundo consiste em a rmar com toda a clareza o conceito de

superação do mundo, que não signi ca de modo algum desprezo ou negação dele. Estudos recentes de teologia bíblica deixaram claro que, segundo a mensagem do Evangelho (e do Novo Testamento em geral), não se pode falar para o cristão de um sim, nem de um não dado ao mundo (nem, por conseguinte, de um uso ou de um não uso, de um desfrute ou de uma renúncia) que possam ser considerados em si mesmos, segundo o tipo de concepção humanística grecoromana ou de uma concepção dualística gnóstico-maniquéia. A acolhida ao mundo ou sua repulsa são contempladas e entendidas no Evangelho sempre e unicamente na perspectiva estritamente religioso-escatológica da irrupção da graça no mundo. Por isso se pode e se deve falar, em Cristo e no cristianismo, de um autêntico e cordial amor ao mundo; e, contudo, de um amor não-mundano (isto é, que não esteja encerrado no interior das fronteiras de um amor simplesmente humanístico), porque sempre permanece muito além das perspectivas puramente imanentes a uma concepção fechada do mundo. Assim acontece em relação aos valores da natureza e do belo, da família, da pátria, da história e da cultura. Todos eles são resolutamente considerados em ordem à salvação, concedida ao homem por Cristo. Não existe no Evangelho oposição alguma à cultura, mas unicamente àquele humanismo antropocêntrico que considera o cristianismo como uma loucura para os gregos. Evidentemente, em virtude desta referência radical de todos os valores à salvação, o sim ou o não dados aos valores do mundo adquirem no Evangelho uma acentuação muito diferente da usual em nossa vida moderna. Todos os valores adquirem signi cado positivo ou negativo pela relação que eles têm, em si mesmos, com Jesus Cristo, ou por aquela que o homem lhes deu. Porque o valor absoluto é Ele: entrar em comunhão com Ele, penetrar em seu mistério, permanecer em seu amor.

O tempo foi unido para sempre ao m último, por muitos milhões de anos que os astros ainda possam brilhar, porque o Pai pronunciou em Jesus Cristo a sua palavra irreversível sobre o mundo. Por isso mesmo, se o homem aceita o amor do Pai que se revela no Filho e se une a Ele por amor, então torna-se-lhe possível um amor e um uso casto do mundo; amor e uso profundamente verdadeiros e, no entanto, desapegados, em virtude do amor supereminente de Jesus Cristo.

É neste sentido que deve ser interpretado o texto paulino já citado da Primeira Epístola aos Coríntios (7, 29–31) — que tem singular interesse para nós — acerca do “usar como se não se usasse” e do “possuir como se não se possuísse”. Ali não se proclama nenhuma fuga do mundo. Como o cristão vive no mundo, existe para ele o problema de guardar-se do mundo e a obrigação de usar dele retamente. São Paulo inclui esse uso (v. 31). Mas no contexto da virgindade cristã ele tem diante dos olhos a “solicitude” que o mundo traz consigo. Inclusive o simples guardar-se no mundo de tudo aquilo que deve ser evitado, dissocia e distrai a alma da única solicitude necessária: a de “agradar ao Senhor” e estar inteiramente “nas coisas do Senhor”. E ainda se depreende claramente do pensamento de São Paulo que a concentração no De nitivo não deve ser conseguida mediante uma fuga exterior ao mundo, mas, antes, mediante uma atitude interior de superação do mundo no amor soberano de Cristo. Exatamente porque o cristão conheceu a Cristo e se uniu rmemente a Ele, não pode ver nas obras do mundo o valor supremo e autêntico. Mas deve usar e deixar de lado com presteza as coisas do mundo “como se não”; isto é, com aquele distanciamento do mundo que nasce de sua própria visão cristã do mesmo e de sua experiência interior do Senhor. Com isto se consegue certo “nivelamento” de todo o humano enquanto se faz com que ele passe em bloco sob o denominador comum da secundariedade.

Desde o momento em que se percebe que “a gura deste mundo passa”, torna-se indispensável relacionar tudo com a única grande preocupação cristã acerca “das coisas que pertencem ao Senhor”. E exatamente por isto, toda solicitude intramundana passa forçosamente ao segundo plano. Esta é a razão pela qual o cristão, apesar de não se diferençar dos outros em sua forma de vida, encontra-se, contudo, por cima do mundo e de seus valores; e por isso “possui como se não possuísse, e usa, mas como se não usasse”. Somente com esta condição da liberdade interior cristã é-lhe permitido possuir os bens exteriores.

623. b) Exatamente por causa desta superação gozosa do mundo no amor de Cristo, a ascese cristã não traz consigo nenhum desprezo do mundo e nenhuma descon ança em seus ordenamentos e estruturas; nenhum ressentimento oculto pela incapacidade de enfrentar a vida; nenhuma abjeção ou fuga diante das tarefas que devem ser assumidas. Os valores da cultura, da política, da arte e da história são, ao contrário, apreciados como autênticos valores em si mesmos e queridos por Deus como tais. O cristão, em proporção ao ofício que lhe corresponde na Igreja, compreende que esses valores exigem dele uma entrega vigilante e vigorosa, porque também neles deve ser realizado o plano criador de Deus e de seu reino. É que aquele Deus que livremente se dá a nós em sua graça, acima de todas as realizações do mundo, é o mesmo Deus que estendeu sua tenda no meio de nós; tão próximo do mundo dos homens, que qualquer homem que o acolher na fé e no amor pode elevar de tal modo, com sua graça, sua própria obra intramundana, ao ponto de penetrar na mesma vida de Deus e fazer parte do reino. Por isso se impõe ao cristão um equilíbrio perfeito, embora muito difícil de realizar, entre um desapego radical do mundo, fruto de uma radical relativização do mesmo e de seus valores no amor soberano de Cristo, e uma entrega real ao mundo e seus valores, a m de o consagrar e recapitular por inteiro no Senhor Jesus.

Um equilíbrio que, por um lado, nunca poderá fazer da ascese um valor absoluto, como se Deus não mandasse, ao menos em parte, acolher o mundo e conduzi-lo a seu reino; e que, por outro lado, jamais poderá conceder um valor absoluto ao mundo, ao trabalho, à cultura e ao progresso, como se o primeiro valor cristão não fosse o amor soberano do Senhor. A este propósito, são oportunas algumas observações de Karl Rahner: Do ponto de vista cristão, não há nenhuma relação unívoca entre uma “ascese de fuga do mundo” e uma “a rmação ascética do mundo”. O cristão sempre deverá realizar ambas as coisas em sua vida e, através de ambas, confessar que Deus é maior que nosso coração; e que não o constrange um coração vazio, nem o possui por completo um coração cheio do esplendor de sua criação. Por isso nunca se dará cristãmente uma ruptura completa com o mundo, ou uma ascese cem por cento, ou uma vida de pura ascese. Mas o não que o cristão diz ao mundo estará sempre mesclado a um sim; ambos devem ser abençoados e recompensados por Deus, e só poderão ser abençoados ao se reconhecerem mutuamente. Nunca, pois, se tratará de um puro exclusivismo, mas sempre, segundo o dom da graça em cada um, de um mais ou de um menos. O cristão não pode, por isso mesmo, adotar nenhuma atitude de sim ou de não que pressuponha, respectivamente, ou um mundo absoluta e tragicamente perdido, ou um mundo já de nitivamente reconciliado em si mesmo e em cada um de seus momentos. Se é religioso, não pode simplesmente fugir do mundo, e se é leigo, não pode simplesmente entregar-se a ele. Por isso a postura cristã exata está sempre em perigo de se corromper, ou em um otimismo que se transforme em mundano por uma utópica embriaguez acerca das possibilidades do mundo, ou em um pessimismo que repele o mundo porque não julga verdadeiro que o mundo, sepultado na iniqüidade, é e continua sendo o mundo de Deus e de Jesus, tornado participante, desde já — embora inicialmente e em sinal — das bênçãos da redenção. Conservar este justo meio entre o utopismo e o desespero, sem nenhuma exaltada embriaguez intramundana, é um triunfo da graça de Deus. Mas é nisto que se pode comprovar se somos verdadeiramente cristãos.592

624. c) Falta-nos ainda acrescentar uma palavra sobre as repercussões psicológicas que semelhante atitude diante do mundo cria no cristão. De fato, a “relativização dos valores” no amor soberano de Cristo não pode deixar de criar uma profunda atitude,

concretamente percebida, de desapego do mundo pela superação do mundo em Deus. Como nota C. Truhlar, uma experiência imediata da radical transcendência ao mundo está contida, inclusive psicológica e conscientemente, na própria estrutura da fé, esperança e caridade teologais; pois a atuação sobrenatural das faculdades naturais não pode deixar de implicar uma ulterior consciência psicológica, ainda que não seja re exa. Esta é uma consciência de ser atraído por Deus e de tender para Deus como para o próprio m último sobre-natural, que atrai o homem imediatamente para si no conhecimento e no amor. Deste modo é o próprio Atraente que vem a expressar-se obscuramente nessa tendência, de maneira semelhante com o m, que se expressa no movimento que ele suscita e orienta para si, ainda que Deus, presente de tal modo em forma obscura, não seja percebido conceitualmente, mas apenas “copercebido” de uma maneira aconceitual, isto é, superconceitual, como objeto formal das virtudes teologais. Por isso a estrutura interna da atuação da fé, esperança e caridade é uma estrutura de tensão consciente para aquele Deus que transcende o mundo e atrai o homem a si: consciência, portanto, de transcendência ao mundo. E como esta estrutura informa toda a vida cristã, imprime a toda ela essa índole consciente da transcendência ao mundo.593 Por outro lado, a consciência do dever de prolongar até sua perfeição total o mistério da Encarnação (que acolhe o mundo e o diviniza), esta consciência de superação do mundo, não poderá deixar de se unir, no cristão, ao conhecimento do dever de acolher o mundo para o consagrar e redimir no amor de Cristo.

625. d) Estas de nições teológicas sobre a “atitude de transcendência” própria do cristão como tal, já nos introduzem diretamente em certo esclarecimento da antinomia concreta que existe nos leigos entre as exigências de encarnação e de transcendência. Exigências que devem animar precisamente sua própria espiritualidade. Seja-nos permitido concluir, desde já, que existe uma possibilidade a priori, tanto ontológica quanto psicológica, de uma modalidade típica e inconfundivelmente cristã de “ter mulher como se não a tivesse”, e de “possuir como se não possuísse”, e de “usar, mas como se não usasse”. Nessa modalidade, pelo amor supereminente de Cristo, que supera o mundo, pode-se fazer de tal uso e fruição a expressão e o prolongamento do próprio amor de Cristo, Redentor do mundo, embora não do mundo. 3. Tentativas de solução concreta para a antinomia “ser e não ser do mundo”

626. Se se passa da consideração geral relativa aos princípios fundamentais que regulam a vida cristã, para considerar a situação concreta do leigo em sua realidade existencial, parece muito difícil de formular a solução da antinomia entre as exigências de transcendência e as de encarnação. Na realidade, o mundo bom que o leigo deve acolher e recapitular em Cristo está estreitamente unido e misturado com o mundo da concupiscência e do pecado. Um ambiente saturado de princípios contrários e refratários ao Evangelho rodeia o leigo por todos os lados. Sua vida está como que impregnada dele, se nem sempre na intimidade familiar, certamente sim nas complexas relações de sua vida pro ssional e social. Não esqueçamos a inclinação ao pecado (a fomes peccati) que existe no próprio coração do homem antes e em maior grau que no mundo. Face ao mundo bom de Deus, o mesmo homem que o usa e dele desfruta é mais “concupiscente” do que bom. Na visão mais ou menos acentuada desta realidade concreta empapada de pecado, que é o mesmo leigo e seu ambiente vital, distinguem-se entre os vários autores as diferentes fórmulas para harmonizar no leigo os imperativos da transcendência ao mundo e as de encarnação nele. 627. a) , acentuadamente otimista na visão do homem e do mundo, a rma que tal harmonização das duas polaridades está na consciência e no reconhecimento do plano de Deus. A realização concreta consiste na integração sobrenatural (na fé, na esperança e na caridade) dos próprios afazeres humanos. O leigo é religioso quando, entrando de forma consciente e madura no plano de Deus — que consiste em recapitular tudo em Cristo — vive na fé, esperança e caridade a sua missão intramundana de leigo. A perspectiva escatológica da vida cristã — pela qual o leigo se encontra sempre vigilante na espera do Senhor que vem,

sabendo que a gura deste mundo passa e que o cumprimento decisivo de sua obra só pode vir do alto — é que sugere ao leigo a justa medida que deve adotar entre o amor ao mundo e a renúncia a ele.594 Entretanto, nesta forma de apresentação, em si exata, não está su cientemente considerada — em sua realidade existencial — a profunda dissensão que com o pecado veio inferir-se na vida humana. Contudo, atenua a íntima tensão entre o querer ser inteiramente de Cristo e a obrigação de ser, ao menos em certo sentido, do mundo.

628. b) de solução acentua, ao contrário, a tensão entre as duas polaridades, identi cando-a (com diversos matizes) com a cruz própria do leigo. No duplo imperativo da obrigação de estar no mundo e, no entanto, não ser do mundo por sua vocação cristã básica, vem a caracterizar-se simultaneamente para o leigo a sua própria espiritualidade e a sua própria cruz (tipicamente sua, e que deve levar até o m). Cruz de dualidade e de tensão, que irá experimentar em si mesmo, sem querer sistematizá-la de modo demasiado unilateral e simplista.595 O aspecto difícil de sua espiritualidade — diferentemente daquela do sacerdote e do religioso, muito mais exclusivista e, por isso mesmo, mais simpli cada — está precisamente neste pluralismo que o leigo deve superar continuamente, sem esquecer que o pecado exaspera a di culdade. O leigo deve estar consciente de que toda tomada de posse do mundo não pode ser realizada, de fato, permanecendo intacto. E que, por isso, toda a rmação e realização intramundana deverá relacionar-se com a cruz; isto é, com uma determinada renúncia e oblação que atravessa todo humanismo cristão, inclusive o próprio do leigo. Precisamente nisto, na cruz, o sim que o leigo diz ao mundo alcança sua estrutura vertical.

A razão mais íntima de semelhante tensão está no fato de que tanto o mundo como o homem estão submetidos à lei do pecado. Por tudo isto, concretamente, não existe nenhum sim dado ao mundo que não deva ser ao mesmo tempo um não: uma libertação do mesmo mundo que se acolhe. Se é verdade que o leigo deve evitar o extremo de ser monge em demasia, também é certo que ele deve evitar cair no naturalismo. Por isso deve realizar em si mesmo a síntese entre o mundo e Deus, chegando a possuir o mundo em um plano mais alto, segundo uma nova e mais perfeita modalidade.

629. c) oferecem a fórmula desta nova e mais perfeita modalidade em uma “libertação interior” do mundo para passar a Deus. Como em Deus não ocorre nenhum amor-cósmico que não seja juntamente amor-soteriológico-escatológico, assim também o leigo não pode deter-se apenas no amor-cósmico, mas, ao contrário, atravessando tal amor, deve realizar o amor-soteriológicoescatológico e manifestá-lo em si mesmo. Por isso, segundo seu entendimento interior, também o leigo deve ser um monge.596 É preciso notar de que maneira está vivo neste novo tipo de formulação o imperativo cristão da abnegação evangélica, que é como o abecê do cristianismo. Acentua-se o “desapego do mundo”, que também o leigo deve ter como valor cristão fundamental. Insiste-se em que a santidade exige a libertação de todo egoísmo e que, nesta experiência de libertação e de morte para chegar a Deus na caridade, não existe diferença alguma entre religiosos e leigos.597 “Quanto mais o leigo deixa as coisas, tanto mais as coisas lhe pertencem e ele as possui” (Wulf). “Tanto mais poderá ordenar e santi car os valores do mundo para a realeza de sua nova vida em Cristo, quanto mais profundamente imprimir neles o selo da cruz” (Id.). “É necessário ter deixado interiormente os homens e as coisas, e sempre deixá-las de novo, para poder possuí-las de novo segundo Deus” (Thalhammer).

630. É agradável ouvir, em muitas páginas sobre a espiritualidade dos leigos, o eco desses rudes acentos de sabor gostosamente evangélico.

Parece-nos que se deve acentuar particularmente, do modo mais claro e inequívoco, que também para o leigo — não menos que para o religioso — a santidade cristã é essencialmente puri cação e superação do egoísmo no amor a Deus e ao próximo; e que a medida deste amor, embora recebida do alto, é diretamente proporcional à abnegação de todo egoísmo. Nesta luta contra todo egoísmo, não há dúvida de que também o leigo coerente deverá concentrar todas as suas forças espirituais, sem se iludir de que poderá encontrar outro sucedâneo para a santidade. Neste sentido, ca também a rmado, particularmente para o leigo, o dever da vigilância e da ascese contínua em todas as coisas, a m de que ele, em seu próprio imperativo de consagração do mundo, não que anulado pelo pecado e pelo mundanismo. Por tudo isto, também a vida do leigo, sem possibilidade de ilusões, não poderá deixar de ser, sempre e necessariamente, um contínuo morrer para tudo o que seja pecado e concupiscência, para viver a vida santa do Filho. Sua ascese é uma autêntica ascese de “libertação” de qualquer busca egoísta em relação a si mesmo e ao mundo. Tampouco neste sentido (na única participação na morte e ressurreição que nos redime) poder-se-á falar de qualquer diferença entre religiosos e leigos.

631. E, no entanto, à luz da situação e da missão que providencialmente cabe ao leigo na Igreja, nós nos perguntamos se tais axiomas básicos sobre a abnegação cristã não podem e não devem traduzir-se ulteriormente para o leigo em categorias que se harmonizem melhor com sua forma de vida, continuando substancialmente os mesmos, tal e conforme são. Perguntamo-nos (sem referência alguma aos autores citados) se a única forma de libertação do egoísmo seja a de se colocar em uma modalidade “monástica”; ou se, ao contrário, a mesma libertação não pode e não deve se dar no leigo, como seu estilo habitual de vida, em categorias de cristo nalização dos valores, conforme sua missão de consagrador do mundo — o que equivale a perguntar se podemos dizer verdadeiramente, inclusive para o leigo, como se

ele fosse religioso, que (ao menos em um certo grau da vida espiritual) as coisas não devem importar-lhe interiormente (pelo menos do modo como não devem importar ao religioso); ou seja, se o leigo santo deve viver com o desprendimento interior de um São Francisco de Assis ou de um São João da Cruz, para recuperar deste modo, “em Deus e de Deus”, o sentido, o uso e a fruição das criaturas. Acreditamos poder a rmar, ao contrário, com toda a precisão teológica, a possibilidade para o leigo de encontrar a Deus e o amar, puri cando seu coração de todo egoísmo, exatamente no uso e na fruição dos bens do mundo. E não só no uso e na fruição exterior, mas “com coração de religioso”.598 Ou seja, com uso e fruição tanto exterior como do coração. E, no entanto, uso e fruição cristãos, isto é, não ego- nalizados, mas cristo- nalizados, de consagração amorosa a Ele, expressão de caridade-cósmicarecapituladora. E, por isso mesmo, transcendente ao mundo. 632. Para evitar simpli cações demasiado otimistas e ser verdadeiramente autênticos, parece-nos, na realidade, que se pode encontrar, nas de nições teológicas apresentadas nos números precedentes, os princípios básicos para formular um caminho de puri cação do egoísmo que seja especi camente leigo em sentido tipológico. Concedemos, antes de tudo, que a situação do leigo é extraordinariamente difícil e paradoxal. Um chamado profundo o impele para o alto, com a urgência de sacri car tudo ao Único necessário; e, por outro lado, a maior parte de seu tempo e de suas energias vêem-se atadas e prisioneiras de sua pro ssão e obrigações terrenas, como missão própria recebida de Deus. Concedemos também que a consecução de um perfeito equilíbrio entre as duas polaridades é um milagre da graça de Deus; milagre que não pode ser realizado sem uma contínua e incessante morte para si mesmo na cruz, que puri ca e redime.

Porém, admitido tudo isto, é preciso reivindicar que o leigo se encontra em tal atuação por vontade de Deus, com a tarefa precisa de consagrar o mundo humano e cósmico a Nosso Senhor com toda a plenitude de seus valores, no uso e na fruição dos

mesmos. Assim como é preciso reivindicar também que esta mesma vontade divina o chama continuamente a ser santo assim (e não com um desapego do mundo de tipo monástico), e que este é o seu próprio milagre de graça enquanto leigo. Na adesão cordial e dolorosa a tal vontade, é preciso ver, portanto, a primeira e fundamental possibilidade para o leigo de uma autêntica transcendência ao mundo em seu próprio desempenho pro ssional de cristo nalização do mundo. E não só em sentido extrínseco, desde o momento em que a adesão à vontade de Deus é o critério e a realização de toda santidade; ou por um mistério do poder soberano de Deus, que pode extrair das próprias pedras lhos de Abraão. Também pela rme comprovação de que na medida em que o leigo adere à vontade e ao plano global de Deus a seu respeito, como o valor absoluto da própria existência, nessa mesma medida ele pode realmente, com o coração livre e puri cado de todo egoísmo, consagrar seu próprio mundo no uso e na fruição de seus valores.599 Não conseguimos encontrar outra solução, conceitual ou prática, em que possam entrar em acordo as exigências reais de “transcendência” com a mesma real adesão às obras do mundo, a não ser nesta visão global do próprio plano de Deus e na aceitação do mesmo pela fé e pelo amor. Para usar a linguagem de Karl Rahner, somente na relativização e profunda hierarquização, realizadas com aceitação e acolhida, em si e na própria vida, do Deus da graça como primeiro Valor e Amor, o mundo pode ser aceito “secundariamente” como uma missão a cumprir por parte desse mesmo Deus, que assim o quer; deste modo torna-se possível, válida e segundo o coração de Deus, uma consagração do mundo que seja, ao mesmo tempo, transcendente e encarnada, desapegada e cordial, humana e santa. Se são considerados simplesmente os componentes psicológicos de tal relativização dos valores, não se poderá deixar de concluir pela possibilidade, inclusive no dinamismo vital do leigo, de um uso que seja “como não usado”, e de um gozo dos bens “como não gozando”, por adesão soberana do coração e da vida ao Senhor.

633. Uma última consideração nos leva ainda ao próprio coração do mistério do leigo na Igreja. É que o leigo, exatamente enquanto leigo, é chamado a expressar em sentido formal, na Igreja e pela Igreja, o próprio amor de Jesus, que redime e diviniza o mundo, segundo a plenitude de seus valores humanos e cósmicos. Parece-nos que exatamente aqui se situa em sua mais profunda magnitude a espiritualidade dos leigos, porque o valor primordial e formal que o leigo está chamado a manifestar na Igreja e pela Igreja não é o uso, nem a transformação, nem o gozo dos bens da terra, do matrimônio e da liberdade, mas, antes, a caridade teologal para com Deus, para consigo mesmo e com o próximo, que em tal uso se manifesta como amor divinizador (cósmicorecapitulador) do mundo. Portanto, de um modo ainda mais profundo, enquanto exigência de transformação mística nos sentimentos, na vida e no coração de Cristo, para ser o prolongamento el de seu amor pelo mundo, vem a realizar-se para o leigo a possibilidade de um amor cordial e ativo pelo mundo que, entretanto, “não é deste mundo”, mas do Senhor Jesus nele. Aqui, seria preciso repetir o que já dissemos a propósito da experiência particular que o leigo faz de Deus: a “consagração do mundo”, longe de se esgotar para o leigo em um “serviço el” ao Senhor, possui direta e formalmente o caráter de uma oferta de amor de toda a própria vida a Ele, como um encontro pessoal com Ele no amor, na mesma obra da consagração do mundo. Nisto, igualmente, nós vemos o argumento mais fundamental da validade e e cácia concreta, para o leigo coerente, de uma autêntica puri cação do coração do egoísmo no amor, que se realiza no próprio ato especi camente secular da consagração do mundo.

Note-se de que maneira a consideração das di culdades concretas de uma tal realização não fragilizam em nada a validade dos argumentos apresentados. Signi cam unicamente que o leigo, ao entrar no plano global de Deus, deve con ar ainda mais no potencial irresistível da graça. Por muito que tal uni cação em Deus de uma vida mergulhada nas estruturas do mundo possa parecer-nos irrealizável, é, no entanto, a própria providência de Deus quem dirige os os por dentro, e leva tudo à sua perfeição. O leigo deve construir a vida sob esta con ança. No mais, nossas di culdades humanas na realização do mistério da realeza são coisa bem pequena em comparação com a graça de Deus. Todo aquele que realmente acredite, na vida e na morte, ser do Senhor, somente na união das duas polaridades, embora seja de um modo que só Deus pode dispor e reunir, realiza a unidade de nitiva e beati cante procurada por Deus.

4. Avaliação de conjunto Sem repetir o que já temos exposto, agrada-nos apresentar alguns pontos para ulterior re exão: 634. 1. A a rmação da transcendência radical do mundo e de seus valores, como válida em seu sentido pleno e incondicionado mesmo para os leigos, é de máxima importância para a elaboração de uma espiritualidade cristã dos leigos. É muito confortador, e constitui uma garantia de delidade à tradição católica mais genuína e autêntica, o coro de testemunhos — que em uníssono se eleva sobre este ponto — dos principais autores que escreveram sobre a espiritualidade dos leigos. 635. 2. Entretanto, são necessárias duas de nições equilibradas: Primeira: que tal transcendência, tanto para o leigo como para o religioso, seja cristã, isto é, transcendência na encarnação e da encarnação (e não uma fuga do mundo neoplatônica ou dualista). Segunda: que, em vista da situação e da missão que o leigo tem como própria na Igreja, esta transcendência ao mundo deve ser teológica e psicologicamente levada até sua experiência cristã especí ca de recapitulação-consagração do mundo. Por isso mesmo, deverá expressar-se, como seu estilo habitual de vida, não na renúncia

monástica (ou de tipo monástico) que segue necessariamente a tríplice pro ssão religiosa, mas na própria a rmação do mundo, enquanto cristo nalizadora e consagradora pelo amor de todos os valores do mundo (humanos e cósmicos). 636. 3. Para a plenitude e autenticidade de tal consagração do mundo, não só não se deve ver na exigência de uma “radical transcendência” um impedimento ou oposição; mas, ao contrário, veja-se nela a única possibilidade e medida de sua realização. De fato, o valor “graça”, revelando-se no Filho, não só torna possível, legítima e válida uma renúncia ao mundo que seja tipicamente cristã (não de fuga, mas de superação do mundo), mas também torna possível, legítimo e válido, exatamente enquanto princípio essencial de relativização do mundo e de transcendência ao mundo, um uso e uma fruição do mundo também tipicamente cristãos; os quais, não só na medida em que se renuncia ao mundo, mas também na própria medida em que se usa e goza dele, aplicam o mesmo amor sobrenatural cristão segundo as dimensões abertas (com referência essencial e relativizada dos valores em Nosso Senhor Jesus Cristo), propostas e queridas no eterno plano de Deus. Daí se deve concluir que não só o trabalho e os sofrimentos do leigo, mas também seus lazeres e alegrias, tanto sensíveis quanto intelectuais, devem ser “consagrados”. E não só em um sentido concessivo-permissivo, mas em um sentido estritamente positivo, de signi cado e valor eclesial; isto é, como valores que também clamam a Cristo e esperam do leigo (já que a ele, e não ao sacerdote, competem funcional e representativamente) a revelação neles da glória do Filho de Deus. Sem isto, estes setores, apesar de queridos positivamente por Deus como valores úteis em si mesmos, honestos e ordenáveis ao reino, cariam separados do mesmo reino.

637. 4. À luz de tudo quanto estamos dizendo, ca claro que o leigo, enquanto tal, não deve ser um religioso no coração, isto é, quanto ao uso de seus sentimentos interiores. Pois a sua experiência cristã de Deus não deve caracterizar-se pela libertação afetiva e efetiva das três ordens de bens às quais se refere a pro ssão monástica, mas na cristo nalização afetiva e efetiva

destes mesmos bens. E isto não em um sentido concessivo, mas como expressão tipológica de sua própria missão de leigo na Igreja. Se o leigo devesse viver como religioso “ao menos no coração”, ele não possuiria pleno signi cado (teológico), nem sua situação intramundana, nem sua missão de “trabalhar a terra” e fazê-la fruti car para o reino; nem poderia ser chamado de sincero o seu interesse e empenho ordinário por sua terra e sua cultura; isto é, em de nitivo, o amor de Cristo e da Igreja pelo mundo. Com isto, entretanto, estamos muito longe de fazer do leigo um “mundano”. É necessário, mesmo para o leigo, um autêntico desapego afetivo e efetivo do mundo. Um desapego tal, que por ele, de modo radical, não seja deste mundo e dele use “como se não usasse”. Mas negamos que a modalidade de tal desapego afetivo e efetivo seja para o leigo a mesma modalidade monástica (realizada na tríplice renúncia, formalmente elevada ao próprio estilo de vida), e a rmamos, pelo contrário, que se trata tipologicamente de uma modalidade de relativização e transcendência do mundo (a qual brota da escolha de Deus como primeiro e absoluto Valor), que consiste, exatamente, na consagração do mundo.

638. 5. Por conseguinte, à luz dos argumentos apresentados, julgamos genuíno e válido, teórica e praticamente, um caminho de puri cação do coração do egoísmo no amor-dom de si mesmo, que se realiza no próprio ato de a rmação do mundo, enquanto ato de recapitulação cristo nalizadora de seus bens. Um uso e fruição do mundo (bens materiais, do matrimônio, da liberdade) de tal maneira “casto”, que possa ser expressão e realização do mesmo amor de Cristo ao mundo ou do próprio amor pessoal por Ele; um amor tão profundamente entregue e operante, que arraste a própria existência humana para Ele, como ânsia e anelo de uma consagração cada vez mais ampla de todos os setores da vida individual, familiar, pro ssional, social e cultural. Um uso assim do mundo vem necessariamente a especi car-se e a encontrar sua garantia inconfundível em uma atitude habitual de sobriedade diante do mundo, marca típica da mesma entrega à

maior consagração possível de seus valores a Nosso Senhor Jesus Cristo. Se é verdade que este modo de caminhar para Deus não tem um valor exclusivo para cada um, mas deixa aberto o campo para várias renúncias de tipo monástico que o próprio dom da graça possa exigir, não é menos verdade que é este modo que caracteriza o estilo próprio de caminhar para Deus e encontrar-se com ele no mundo, desenhando uma tipologia própria na Igreja e pela Igreja. Não negamos, certamente, que tal estilo de caminhar para Deus traga consigo grandes di culdades e uma forte tensão entre Deus e o mundo. O leigo jamais poderá chegar, nesta vida, a uma plena harmonização interior e exterior das duas polaridades, e sempre terá de sofrer. Entretanto, basta-lhe ser el à sua vocação de leigo, procurando diminuir a tensão, não em uma fuga evasiva, mas em uma maior acentuação de seu amor pessoal por Cristo, que deve manifestar-se em sua missão de leigo.

Por outro lado, não se deve agravar de tal modo a problemática do leigo, que cheguemos a esquecer que também o religioso permanece sempre no mundo, embora em diferentes graus. E mais: também ele, e exatamente por sua própria forma de vida consagrada, tem suas tensões entre as duas polaridades, e amiúde nada pequenas. Também ele encontra di culdades consideráveis para não se deixar arrastar a uma vida insípida e medíocre. Quanto aos leigos, o fato de que tal síntese — que sempre se apresenta e se coloca em questão, e nunca é de nitivamente resolvida — não possa ser realizada sem con itos interiores, nem sem um esforço contínuo de séria puri cação do coração de todo egoísmo, nem sem o equilíbrio tão difícil da sobriedade cristã, tudo isso é uma prova da autenticidade de seu modo de caminhar para Deus, como caminho realmente cruci cado, próprio de sua obrigação de consagrar o mundo a Cristo. E se a estas considerações sobre a cruz exigida pela consagração do mundo se ajuntam as várias considerações sobre outras cruzes que continuamente entretecem e alimentam a vida do leigo,600 acreditamos que se pode facilmente concluir que também a vida

do leigo está continuamente marcada pelo sinal da cruz. E não como de passagem, mas como marca e selo da autenticidade evangélica fundamental de sua vida de leigo. O leigo deverá assumir esta sua cruz com um conhecimento cada vez mais maduro de sua cruci xão com Jesus Cristo (cf. Gl 2, 10), completando deste modo aquilo que ainda falta à Sua Paixão pela Igreja (cf. Cl 1, 24), exatamente em sua própria entrega à consagração do mundo.601 639. 6. Para sermos completos, é preciso reforçar, nalmente, que o desapego interior e a liberdade interior cristã não devem ser medidos com base na liberação dos afetos e amarras da terra (como poderia ser, por exemplo, em um ideal de vida dualista ou pseudomístico, ou mesmo apenas estóico); mas só e formalmente devem ser medidos com base na caridade teologal. Somente ela marca e sela no cristão a profundidade de todos os outros amores e valores, e é a medida e o sentido último e mais profundo de todas as demais virtudes. Por isso mesmo, o verdadeiro valor cristão não está tanto na renúncia ao mundo ou na a rmação do mesmo, mas no amor a Deus e ao próximo que nele se manifeste, segundo a própria vocação do alto. Aqui, note-se que somente tal amor, manifestado de diversos modos, sinaliza e marca a real medida e profundidade do desapego e da renúncia interior. De modo que, aparentemente, um religioso pode parecer muito mais pobre e desapegado que um leigo (por exemplo, um comerciante amarrado a cem negócios e distrações); enquanto o leigo, exatamente por sua forma de vida, pode parecer muito mais preso e “mundano”. Na realidade, porém, o economista, o político ou o empresário podem estar espiritualmente entregues ao amor supereminente de Cristo, buscando o modo de orientar para

Ele, com amor, todas as suas tarefas e atividades, e vivendo uma vida realmente dedicada aos outros; enquanto o religioso pode levar uma existência teologalmente insossa e vazia, por estar encerrada em certa auto-satisfação egoísta. Não há dúvida de que, neste caso, aquele leigo não só é mais perfeito em sentido genérico, por ter uma caridade mais ardente, mas até mesmo é especi camente mais pobre, mais desapegado e mais livre (do egoísmo) que esse religioso, de tal maneira é verdade que a caridade é a forma e a medida de todas as outras virtudes, senão em sua dimensão e expressão interior, certamente em sua profundidade e dimensão divina.602

CAPÍTULO III | O apostolado no próprio ambiente 640. Chegamos ao capítulo nal de nosso trabalho, e um dos mais importantes e típicos da espiritualidade dos leigos. Hoje mais do que nunca, o leigo precisa tornar-se um verdadeiro e autêntico discípulo de Jesus Cristo. As razões que o obrigam a isto são hoje mais urgentes e peremptórias que nunca. A constante e progressiva descristianização do mundo, a escassez de sacerdotes e outras causas que iremos examinando elevaram ao máximo a necessidade insubstituível de que os leigos deixem de ser meros espectadores das fadigas apostólicas da hierarquia eclesiástica para descerem à arena e atuar de maneira ativa e intensíssima no mesmo campo de batalha. Por sorte, dispomos hoje de um magní co documento conciliar sobre o assunto de que nos ocupamos. O Decreto sobre o Apostolado dos Leigos Apostolicam actuositatem do Concílio

Vaticano é uma peça magistral que traça, com admirável precisão e exatidão, todo um plano de conjunto para obter do esforço dos leigos o seu máximo rendimento apostólico. Seguindo suas diretrizes, podemos estar bem seguros, não somente de não errar o caminho, mas de seguir a rota rme e retilínea que nos conduzirá ao m desejado: restaurar todas as coisas em Cristo. Vamos, pois, examinar o magní co documento conciliar com toda a atenção que ele merece e a máxima amplitude que nos permite o marco geral de nossa obra.603 Para proceder com a maior clareza e exatidão possíveis, vamos expor o seguinte plano: 1. Noções prévias. 2. Importância, necessidade e obrigatoriedade do apostolado leigo. 3. A espiritualidade laica ordenada ao apostolado. 4. Fins e objetivos do apostolado leigo. 5. Diferentes formas do apostolado leigo. 6. Formação para o apostolado leigo. 7. Meios fundamentais do apostolado leigo. 8. Tática ou estratégia do apóstolo.

Artigo 1 — Noções prévias

Antes de tudo, vamos especi car algumas noções prévias em torno do mesmo conceito do apostolado em geral e do apostolado no próprio ambiente.604 1. O apostolado em geral 641. Nominalmente, a palavra apóstolo vem do vocábulo grego ẚπόστολοσ, derivado do verbo ẚποστέλλω = enviar, e signi ca enviado, mensageiro, embaixador. No sentido religioso, que aqui nos interessa, apóstolo é um enviado de Deus para pregar o Evangelho aos homens. São Paulo diz isto expressamente (Rm 1, 1) e é doutrina comum em toda a tradição cristã. De acordo com isto, a expressão apostolado não signi ca outra coisa, senão o trabalho e a atividade do apóstolo. O apostolado cristão admite muitos graus. O apóstolo supremo é Cristo Salvador, de quem recebem seu mandato apostólico os doze apóstolos do Evangelho, o Romano Pontí ce, os bispos e os sacerdotes. Deles, deriva aos simples éis, sobretudo aos que pertencem à Ação Católica, que é o apostolado organizado para os leigos pela própria hierarquia eclesiástica. Em sentido amplo, pode ser chamado e é verdadeiramente apóstolo todo aquele que realiza alguma ação de apostolado (catequese, bons conselhos, bom exemplo, etc.), mesmo que seja por conta própria, sem qualquer missão o cial. 2. O apostolado no próprio ambiente 642. Como indica seu nome, o apostolado no próprio ambiente se refere diretamente àquele que podemos exercer de maneira imediata sobre as pessoas que habitualmente nos rodeiam: a própria família, os amigos, os companheiros de pro ssão, etc. Ouçamos o Mons. Civardi:605

Todos estão persuadidos do dever que cada cristão possui de ser apóstolo na família. São Paulo diz que se existe alguém que não olha pelos seus, especialmente se são de sua família, (este) negou a fé, e é pior que um in el. Por isso, se tens em casa um enfermo de espírito (uma alma tíbia, negligente na prática dos deveres religiosos), sente a obrigação de chamar a Jesus para que o cure, como um dia São Pedro lhe recomendou sua sogra que, como relata São Lucas, “achava-se com febre alta [...] e Jesus, aproximando-se da doente, ordenou à febre, que a deixou livre. E, levantando-se da cama, pôs-se a servi-los”. Assim, o teu enfermo, curado milagrosamente pelo Médico Divino, começará a servi-Lo com fervor. E se — o que é ainda pior — tens em casa um morto no espírito (isto é, uma alma que não pratica a religião e perdeu a vida sobrenatural), apresenta-te chorando a Jesus e pede-lhe por sua ressurreição, tal como as irmãs Marta e Maria de Betânia; e talvez terás o consolo de ver o morto sair do sepulcro como Lázaro. Sentimos e exercemos este apostolado junto àqueles que trazem nosso sangue nas veias como um estrito dever de caridade. E de bom grado subscrevemos as severas palavras de São Paulo: “Aquele que não cuida de seus familiares é pior que um in el”. Ora, o apostolado no ambiente não é nada mais que uma extensão do apostolado na família. Todo homem, de fato, vive em contato cotidiano, não só com os membros de sua família, mas também com um círculo de outras pessoas que constituem exatamente o ambiente de sua vida social: companheiros de trabalho ou de estudo, amigos, vizinhos de sua casa, etc. Pessoas com as quais ele estreita relações, não já de simples conhecimento, mas de intimidade. Pessoas com as quais tem certa semelhança, que provém da comunidade de interesses e de pro ssão, ou da consonância de sentimentos. Ele pode, pois, in uir profundamente sobre o ânimo destas pessoas, para seu bem ou para seu mal. O apostolado no ambiente consiste cabalmente nisto: em fazer o bem àquelas pessoas que freqüentamos habitualmente, com as quais temos certa con ança. Em sentido mais restrito, chama-se apostolado no ambiente aquele que se exerce para o bem daqueles que se acham na mesma condição de vida e, portanto, que têm os mesmos deveres de estado. É o apostolado do operário para com o operário, do pro ssional junto ao colega de pro ssão, do empregado junto ao companheiro de fábrica, do estudante para com o companheiro de escola, da mãe de família junto às outras mães. Também se chama apostolado do semelhante junto a seu semelhante.

Artigo 2 — Importância, necessidade e obrigatoriedade do apostolado leigo O Concílio Vaticano começa seu Decreto sobre o Apostolado dos Leigos com um magní co proêmio, já pleno de conteúdo doutrinal. Nele, deixa bem claro a importância e a necessidade insubstituível do apostolado dos leigos na própria missão da Igreja. Ei-lo aqui: 643. 1. O sagrado concílio, desejando tornar mais intensa a atividade apostólica do povo de Deus, volta-se com muito empenho para os cristãos leigos, cujas funções próprias e indispensáveis na missão da Igreja já em outros lugares recordou. Com efeito, o apostolado dos leigos, que deriva da própria vocação cristã, jamais poderá faltar na Igreja. A mesma Sagrada Escritura demonstra abundantemente como foi espontânea e frutuosa esta atividade na Igreja primitiva (cf. At 11, 19–21; 18, 26; Rm 16, 1–16; Fl 4, 3). Os nossos tempos, porém, não exigem um menor zelo dos leigos; mais ainda, as condições atuais exigem deles absolutamente um apostolado cada vez mais intenso e mais universal. Com efeito, o aumento crescente da população, o progresso da ciência e da técnica, as relações mais estreitas entre os homens, não só dilataram imensamente os campos do apostolado dos leigos, em grande parte acessíveis só a eles, mas também suscitaram novos problemas que reclamam a sua atenção interessada e o seu esforço. Este apostolado torna-se tanto mais urgente à medida que, como é justo, muitos setores da vida humana aumentam sua autonomia — por vezes com um certo afastamento da ordem ética e religiosa e com grave perigo para a vida cristã. Além disso, em muitas regiões onde os sacerdotes são demasiado poucos ou, como acontece por vezes, são privados da liberdade de ministério, a Igreja di cilmente poderia estar presente e ativa sem o trabalho dos leigos. Sinal desta multíplice e urgente necessidade é a evidente atuação do Espírito Santo que hoje torna os leigos cada vez mais conscientes da própria responsabilidade, e por toda a parte os anima ao serviço de Cristo e da Igreja. No presente decreto, o concílio pretende ilustrar a natureza, a índole e a variedade do apostolado dos leigos, bem como enunciar seus princípios fundamentais e dar as orientações pastorais para o seu mais e caz exercício; tudo isto deverá servir de norma na revisão do Direito Canônico, no que se refere ao apostolado dos leigos.

Como se vê, o concílio recorda aos leigos que a missão de exercer o apostolado brota da própria essência da vocação cristã, destacando depois algumas das razões que hoje tornam mais urgente do que nunca a atuação apostólica dos leigos. Entre estas razões, queremos insistir um pouco nas duas mais importantes: a sociedade cada vez mais paganizada e a escassez de sacerdotes:606 a) A sociedade paganizada 644. É assustador contemplar o panorama oferecido pelo mundo atual. A velha Europa, que conservou com mais ou menos pureza o tesouro da fé cristã ao longo da Idade Média, começou a desviarse dela com o Renascimento e a reforma protestante, e hoje em dia a maior parte das nações que a integram se tornaram autênticos países de missão. Mesmo aquelas que guram na linha de frente do catolicismo oferecem estatísticas aterradoras sobre o cumprimento dos mais elementares deveres religiosos: Missa dominical, Comunhão pascal, últimos sacramentos, etc. Se a isto nós acrescentamos a onda de materialismo e de imoralidade desenfreada que o invade por completo, o panorama que oferece o velho continente não pode ser mais negro e desolador. Não cabe a menor dúvida: a Europa pecou contra a luz e está se paganizando com vertiginosa rapidez. O panorama oferecido pelo resto do mundo é ainda mais angustioso. A invasão do comunismo na Ásia di cultou enormemente a penetração do cristianismo naquele imenso continente, e, em algumas partes onde estava orescendo de modo esplêndido, foi extinto quase por completo. Na África, o despertar de novos povos, aos quais se havia concedido prematuramente a independência política e econômica, oferece as mais sinistras perspectivas para o cristianismo, pela facilidade com que esses povos atrasados acolhem as promessas materialistas do comunismo ateu. E em todo o hemisfério americano,

principalmente na América Espanhola, o panorama é simplesmente desolador, principalmente devido à angustiante escassez do clero e às propagandas materialistas e atéias. É insensato fechar os olhos a estas terríveis realidades sob o pretexto de que o pessimismo enerva os ânimos e paralisa os esforços daqueles que procuram remediar tantos males. Não é desconhecendo a realidade que será dado o oportuno remédio, mas con ando em Deus e empregando a fundo todas as forças disponíveis para fazer frente e superar a onda de paganismo que ameaça submergir a todos. Ademais, o cristão não pode nem deve entregar-se ao pessimismo, por dura que seja a realidade que o rodeie, já que tem a promessa de Cristo de permanecer conosco até a consumação dos séculos (Mt 28, 20) e a rmíssima segurança de que, aconteça o que acontecer, as portas do inferno não prevalecerão contra sua Igreja (Mt 16, 18). Ouçamos Mons. Civardi dando o grito de alarme diante do paganismo moderno:607 Alguns não chegam a perceber. Como a cruz ainda domina desde o pináculo dos templos, e como nossos milhares de sinos continuam chamando ao recolhimento, e junto aos altares os turíbulos ainda fumegam, e diante dos féretros ainda se erguem as insígnias da fé, estes acreditam paci camente que nossa sociedade continua sendo cristã. Por isso pensam que a palavra neopaganismo é uma expressão de efeito, sensacional, capaz de, talvez, estimular as almas tíbias, mas que não re ete genuinamente a realidade. Mas a realidade — apesar de certas aparências em contrário — é exatamente esta: hoje a sociedade está vazia de Cristo, para usar a enérgica expressão de São Paulo. Isto é, está vazia de espírito cristão, mesmo em certas regiões onde Cristo ainda recebe as homenagens do culto. Abramos bem os olhos e penetremos com nosso olhar no fundo da realidade; veremos então que a concepção da vida hoje dominante, mesmo em ambientes cristãos, já não é cristã — é pagã. É uma concepção absolutamente hedonista. Concebe-se a vida como um prazer, não como um dever; como um perene conforto, não como um sacrifício cotidiano; como um m em si mesma, não como um meio e como um prelúdio de outra vida, em que a felicidade será perfeita e imperecível. Por conseguinte, a imoralidade se difunde cada vez mais, como um rio que rompeu as represas, enquanto a chuva continua torrencial. E Deus, lançando um olhar sobre o mundo inteiro, poderia muito bem repetir a frase dita um dia a Noé: “Meu espírito não permanecerá no homem para

sempre, porque é carnal: caro est”. Convém entendê-lo bem. A imoralidade não é a triste herança de nossa época, unicamente. É a herança de Adão, e toda época foi e será infectada por ela. Hoje, porém, a imoralidade apresenta caracteres especiais que a tornam distinta da de outros tempos cristãos e a assemelham à do antigo mundo pagão, nas piores épocas de sua decadência. Cabe, antes de tudo, lamentar sua extensão. Em outros tempos, a imoralidade cava circunscrita, ao menos em seus sintomas de gravidade, aos centros mais populosos. Hoje, ela vai se difundindo das cidades para os campos, onde há tempos a pureza dos costumes acompanhava a pureza do ar. Mais ainda: os miasmas sobem das planícies para as montanhas. Houve um tempo em que a corrupção moral dominava somente nas altas esferas da sociedade. Hoje, ela penetra em todos os estratos sociais. As classes tendem a se igualar cada vez mais... na imoralidade. Tal como nos tempos pagãos. Mas o que mais preocupa é a insensibilidade moral. Em outros tempos, havia cristãos de coração corrompido, mas de consciência sadia. Por isso o pecado ia amiúde acompanhado do remorso e seguido pela penitência. No carnaval, dominava o vício, mas se observava a Quaresma. A história nos recorda vários nomes de libertinos célebres, que terminaram seus dias em um convento. Hoje, o sentido moral se extinguiu em muitas almas. Almas que jazem nas trevas e na sombra da morte, sem esperança de ressurreição. Almas que estão doentes e não o sabem e, por isso, não recorrem aos médicos nem aos remédios. Concluindo, podemos dizer que em nossos tempos existe uma corrupção sem correção, uma imoralidade agravada pela amoralidade. Em uma palavra, existe um paganismo redivivo.

b) A escassez do clero 645. Ao paganismo crescente é preciso acrescentar a escassez cada vez maior de verdadeiras vocações sacerdotais, o que vem a agravar terrivelmente o problema. Na América, é freqüente o caso de um único sacerdote para trinta ou quarenta mil pessoas, e às vezes mais. Nos países de missão, há necessidade de cerca de um milhão de sacerdotes — e assim mesmo, cada um deles deveria converter e atender a dois mil pagãos, já que são dois bilhões no total — e atualmente os missionários do mundo inteiro não chegam a trinta mil! Para cristianizar inteiramente o mundo pagão, cada um dos missionários atuais teria de converter e batizar uns setenta mil in éis.

Mesmo na Espanha, onde o sangue de tantos sacerdotes e seminaristas mártires (7.287) foi a semente de vocações nos anos seguintes à guerra, a curva descendente começou em proporções alarmantes. Segundo dados estatísticos publicados na revista Ecclesia, no qüinqüênio 1955–1960 foram ordenados 626 sacerdotes a menos que entre 1950 e 1955.608 Para manter a mesma proporção do clero em relação à população, deveriam ter sido ordenados 835 a mais que no qüinqüênio anterior, porque a população total da Espanha aumentou em um milhão nesse mesmo período. Em conseqüência, nesse qüinqüênio ordenaram-se 1.461 sacerdotes a menos do que a Espanha necessitava, simplesmente para não retroceder face ao qüinqüênio anterior. Em nossos dias, a diminuição das vocações sacerdotais e o abandono do seminário por parte daqueles que ali se formavam aumentou em proporções verdadeiramente alarmantes. No decorrer de 1963, ingressaram nos seminários espanhóis 4.796 alunos; em 1965, 4.200, e em 1966, 3.771. Em troca, em 1956 abandonaram o seminário maior 561 alunos; em 1962, 834; em 1964, 906, e em 1965, 1.147 seminaristas. Ou seja, está diminuindo progressivamente o número dos que ingressam no seminário, e está aumentando o número daqueles que o abandonam.

São várias as causas desta escassez de sacerdotes no mundo inteiro: a juventude, entregue desenfreadamente aos prazeres e diversões mundanas; a descristianização da família; a imoralidade que reina por toda parte; a perseguição religiosa nos países subjugados pelo comunismo; a despreocupação de muitos governantes que se dizem católicos e não ajudam economicamente, ou ao menos não su cientemente, aos seminários e casas religiosas de formação, que então se vêem obrigados a rejeitar anualmente centenas de vocações por falta de recursos materiais, etc. Estes são os fatos. Diante deles, mostra-se com toda evidência a urgente necessidade de que os leigos católicos se entreguem decididamente a um intenso trabalho apostólico, para suprir, ao menos em parte, esta premente escassez de sacerdotes e ministros do Senhor. Perfeitamente consciente desse lamentável estado de coisas, o Concílio Vaticano faz uma convocação premente aos leigos para que participem ativamente na própria missão da Igreja, que não é outra senão a salvação do mundo para a glória de Deus. Eis suas próprias palavras:

646. 2. A Igreja nasceu para tornar todos os homens participantes da redenção salvadora e, por eles, ordenar efetivamente a Cristo o universo inteiro, dilatando pelo mundo o seu reino para a glória de Deus Pai. Toda a atividade do Corpo místico que a este m se oriente se chama apostolado. A Igreja exerce-o de diversas maneiras, por meio de todos os seus membros, já que a vocação cristã é também, por sua própria natureza, vocação ao apostolado. Do mesmo modo que num corpo vivo nenhum membro tem um papel meramente passivo, mas antes, juntamente com a vida do corpo, também participa na sua atividade, assim também no Corpo de Cristo, que é a Igreja, todo o corpo “cresce segundo a operação própria de cada um dos seus membros” (Ef 4, 16). E não é só isso. A conexão e coesão dos membros deste corpo (cf. Ef 4, 16) é tão estreita, que se deve dizer que não aproveita nem à Igreja nem a si mesmo aquele membro que não trabalhar para o crescimento do corpo, segundo a própria capacidade. Existe na Igreja diversidade de funções, mas unidade de missão. Aos apóstolos e seus sucessores, con ou Cristo a missão de ensinar, santi car e governar em seu nome e com o seu poder. Mas os leigos, dado que são participantes do múnus sacerdotal, profético e real de Cristo, têm um papel próprio a desempenhar na missão total do povo de Deus na Igreja e no mundo. Exercem o apostolado, com efeito, a partir de sua ação para evangelizar e santi car os homens, e para impregnar e aperfeiçoar a ordem temporal com o espírito do Evangelho; deste modo, a sua atividade nesta ordem dá claro testemunho de Cristo e contribui para a salvação dos homens. E sendo próprio do estado dos leigos viver no meio do mundo e das ocupações seculares, eles são chamados por Deus para, repletos de fervor cristão, exercerem como fermento o seu apostolado no meio do mundo.

Note-se a insistência com que o concílio recorda a todos os cristãos que a obrigação do apostolado brota da própria vocação cristã, e que, por isso mesmo, “não aproveita nem à Igreja nem a si mesmo aquele membro que não trabalhar para o crescimento do corpo, segundo a própria capacidade”. Ninguém pode car alheio a este dever sem se tornar réu de um grande pecado de omissão. Para tornar mais urgente este sacratíssimo dever dos leigos, o concílio expõe, a seguir, os fundamentos teológicos do apostolado leigo. Ouçamos suas próprias palavras: 647. 3. O dever e o direito ao apostolado advêm aos leigos da sua mesma união com Cristo Cabeça. Com efeito, inseridos pelo Batismo no Corpo místico de Cristo, e robustecidos pela Con rmação com a força do Espírito Santo, é pelo próprio Senhor que são destinados ao apostolado. São consagrados em ordem a um sacerdócio real e um povo santo (cf. 1Pd 2, 4–10) para que todas as suas atividades sejam oblações espirituais, e por toda a terra dêem testemunho de Cristo. E os sacramentos, sobretudo a Sagrada Eucaristia, comunicam e alimentam neles aquele amor que é a alma de todo o apostolado.

O apostolado exercita-se na fé, na esperança e na caridade, virtudes que o Espírito Santo derrama no coração de todos os membros da Igreja. Mais ainda: o preceito do amor, que é o maior mandamento do Senhor, estimula todos os éis a que procurem a glória de Deus, para o advento de seu reino, e a vida eterna para todos os homens, de modo que eles conheçam o único Deus verdadeiro e a Jesus Cristo, seu enviado (cf. Jo 17, 3). A todos os éis incumbe, portanto, o glorioso encargo de trabalhar para que a mensagem divina da salvação seja conhecida e recebida por todos os homens em toda a terra. Para exercerem este apostolado, o Espírito Santo — que opera a santi cação do povo de Deus por meio do ministério e dos sacramentos — concede também aos éis dons particulares (cf. 1Cor 12, 7), “distribuindo-os por cada um conforme lhe apraz” (1Cor 12, 11), a m de que “cada um ponha ao serviço dos outros a graça que recebeu” e todos atuem “como bons administradores da multiforme graça de Deus” (1Pd 4, 10) para a edi cação, no amor, do corpo todo (cf. Ef 4, 1). A recepção destes carismas, mesmo dos mais simples, confere a cada um dos éis o direito e o dever de os exercer na Igreja e no mundo, para bem dos homens e edi cação da Igreja, na liberdade do Espírito Santo, “que sopra onde quer” (Jo 3, 8) e, simultaneamente, em comunhão com os outros irmãos em Cristo, sobretudo com os próprios pastores, a quem compete julgar a natureza autêntica de tais carismas e o seu exercício ordenado, não de modo a apagarem o Espírito, mas para que tudo apreciem, e retenham o que é bom (cf. 1Ts 5, 12.19.21).

Insistindo um pouco mais nas idéias mais importantes do texto que acabamos de citar, eis aqui as principais razões ou fundamentos teológicos da obrigatoriedade do apostolado leigo: 1º — É uma exigência da caridade para com Deus, para com o próximo e para com nós mesmos. 648. a) . É impossível amar a Deus sem querer e buscar que todas as criaturas o amem e glori quem. O amor egoísta e sensual é exclusivista: não quer que ninguém participe de sua alegria, quer saboreá-la a sós. Isto se explica muito bem pela pequenez e limitação da criatura sobre a qual ele recai. Mas o amor a Deus, ao recair sobre um objeto in nito e inesgotável, longe de diminuir, cresce e se agiganta à medida que se comunica aos demais. Por isso é impossível amar verdadeiramente a Deus sem sentir na alma a inquietude e o anseio de fazê-lo amado pelos outros. Um amor a Deus que permanecesse indiferente às inquietações apostólicas seria completamente falso e ilusório.

) . A caridade para com o próximo nos obriga a desejar-lhe e favorecer para ele todo tipo de bens na medida de nossas possibilidades, sobretudo os de ordem espiritual que se ordenam à felicidade eterna. Assim, é impossível amar o próximo com verdadeiro amor de caridade sem a prática afetiva e efetiva do apostolado, ao menos na medida e grau compatíveis com nosso estado de vida e com os meios e procedimentos ao nosso alcance. ) . Com razão alguém já disse que a esmola material bene cia muito mais quem a dá do que quem a recebe: em troca de uma coisa material e temporal, adquire-se o direito a uma recompensa espiritual e eterna. O mesmo deve ser aplicado, com ainda maior razão, à grande esmola espiritual do apostolado. É verdade que aquele que a recebe se bene cia também na ordem espiritual e transcendente; mas isto sem prejuízo algum, antes com grande vantagem de seu próprio benfeitor. Ao nos entregarmos às fadigas apostólicas em favor de nossos irmãos, acrescentamos em grande escala o nosso caudal de méritos perante Deus. Desta maneira, o apostolado não é somente uma exigência, mas uma prática excelente e simultânea do amor a Deus, ao próximo e a nós mesmos. 2º — É uma exigência do dogma do Corpo místico de Cristo. 649. Não se concebe, de fato, que os membros — atuais ou em potência — de um mesmo e único organismo sobrenatural permaneçam indiferentes diante da saúde e do bem-estar dos demais. ) , ao nos incorporar a esse Corpo místico, vinculounos de tal maneira à sua divina Cabeça e a cada um de seus membros entre si, que ninguém pode ignorar os demais sem cometer um atentado, um verdadeiro crime contra todo o Corpo místico. Aquelas palavras de Cristo no juízo de nitivo — a mim o

zestes — têm sua aplicação perfeita tanto na linha do bem quanto na do mal (Mt 25, 40.45). ) , ao nos fazer soldados de Cristo, fortalece e reforça as exigências apostólicas do Batismo, dando-nos a fortaleza necessária para enfrentar as batalhas do Senhor. O soldado tem por missão defender o bem comum. Um soldado egoísta é um contra-senso. Por isso o con rmado tem de ser apóstolo por uma exigência extrínseca de sua própria condição.609 “Quantos propósito,

cristãos,

infelizmente”,

escreve

Colin610

a

este

nunca tiveram consciência desta obrigação moral e de sua gravidade! Certo dia, Pio lembrava aos diretores do Apostolado da Oração na Itália: “Todos os homens estão obrigados a cooperar para o reino de Jesus Cristo, assim como todos os membros da mesma família devem fazer algo por ela, e não fazê-lo é um pecado de omissão, que pode ser grave”.611 Quantos éis, desconhecedores do espírito comunitário, piedosamente egoístas, fabricaram para si uma religião puramente individualista, e não correram um mínimo risco para servir ao próximo! Esta colaboração do laicato é tanto mais necessária em nossos dias, quando a imensa massa paganizada escapa por completo à in uência e ao domínio do clero. Vítimas de preconceitos, do ódio, de sua educação anticristã, descon am de todos os que vestem batina, os quais, diante de seus olhos, não passam de exploradores da credulidade e defensores do capitalismo burguês.

Artigo 3 — A espiritualidade laica ordenada ao apostolado Como não podia deixar de ser, o concílio relaciona estreitamente a espiritualidade laica com a prática do apostolado. Depois de a rmar que Cristo é a fonte e a origem de todo o apostolado da

Igreja, insiste com os leigos sobre a necessidade imprescindível de se unirem intimamente a Ele para assegurar a e cácia desse mesmo apostolado, e os impele a uma prática continuada da fé, da esperança e da caridade em harmonia com as características concretas e particulares de sua própria vida; nalmente, aponta como modelo desta espiritualidade apostólica a Santíssima Virgem Maria, Rainha dos Apóstolos. Eis aqui o esplêndido texto conciliar: 650. 4. A fonte e a origem de todo o apostolado da Igreja é Cristo, enviado pelo Pai. Sendo assim, é evidente que a fecundidade do apostolado dos leigos depende da sua união vital com Cristo, segundo as palavras do Senhor: “Aquele que permanece em mim e em quem eu permaneço, esse produz muito fruto; pois, sem mim, nada podeis fazer” (Jo 15, 5). Esta vida de íntima união com Cristo na Igreja é alimentada pelos auxílios espirituais comuns a todos os éis, e, de modo especial, pela participação ativa na sagrada liturgia; e os leigos devem servir-se deles de tal modo que, desempenhando corretamente as suas diversas tarefas terrenas nas condições ordinárias da existência, não separem da própria vida a união com Cristo, antes cresçam nela, realizando a própria atividade segundo a vontade de Deus. É por este caminho que os leigos devem avançar na santidade com entusiasmo e alegria, esforçando-se por superar as di culdades com prudência e paciência. Nem os cuidados familiares, nem outras ocupações profanas devem ser alheias à vida espiritual, conforme aquele ensinamento do Apóstolo: “Tudo o que zerdes, por palavras ou por obras, tudo seja em nome do Senhor Jesus Cristo, dando por Ele graças a Deus Pai” (Cl 3, 17). Esta vida exige o exercício constante da fé, da esperança e da caridade. Só com a luz da fé e a meditação da palavra de Deus pode alguém reconhecer sempre e em toda a parte ao Deus no qual “vivemos, nos movemos e existimos” (At 17, 28), procurando em todas as circunstâncias a Sua vontade, vendo Cristo em todos os homens, próximos ou estranhos, e julgando retamente o verdadeiro sentido e o valor das realidades temporais, em si mesmas e em ordem ao m do homem. Aqueles que possuem tal fé vivem na esperança da manifestação dos lhos de Deus, lembrados da Cruz e da ressurreição do Senhor. Na peregrinação que é a presente vida, escondidos com Cristo em Deus e libertados da escravidão das riquezas, ao mesmo tempo que tendem para aqueles bens que permanecem eternamente, dedicam-se generosa e inteiramente a dilatar o reino de Deus e a informar e atuar com o espírito cristão a ordem temporal. No meio das adversidades desta vida, encontram força na esperança, sabendo que “os sofrimentos presentes não têm comparação com a glória futura que em nós se manifestará” (Rm 8, 18). Impelidos pela caridade que vem de Deus, praticam o bem para com todos, sobretudo para com os irmãos na fé (cf. Gl 6, 10), despojando-se “de toda malícia e engano, hipocrisias, invejas e toda espécie de maledicências” (1Pd 2, 1), e assim atraem a Cristo

todos os homens. O amor de Deus que “foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5, 5) torna os leigos capazes de exprimir em verdade, na própria vida, o espírito das bem-aventuranças. Seguindo a Cristo pobre, nem se deixam abater com a falta de bens temporais nem se exaltam com a sua abundância; imitando a Cristo humilde, não são cobiçosos da glória vã (cf. Gl 5, 26), mas procuram mais agradar a Deus que aos homens, sempre dispostos a deixar tudo por Cristo (cf. Lc 14, 26) e a sofrer perseguição pela justiça (cf. Mt 5, 10), lembrados da palavra do Senhor: “Se alguém quiser seguir-me, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mt 16,24). Finalmente, fomentando entre si a amizade cristã, prestam-se mutuamente ajuda em todas as necessidades. Esta espiritualidade dos leigos deverá assumir características especiais, conforme o estado de matrimônio e família, de celibato ou viuvez, situação de enfermidade, ou atividade pro ssional e social. Não deixem, por isso, de cultivar assiduamente as qualidades e dotes condizentes a essas situações, e utilizar os dons conferidos a cada um pelo Espírito Santo. Além disso, aqueles leigos que, seguindo a própria vocação, se alistaram em alguma das associações ou institutos aprovados pela Igreja, devem de igual modo esforçar-se por assimilar as características da espiritualidade que lhes é própria. Tenham também em muito apreço a competência pro ssional, o sentido de família, o sentido cívico e as virtudes próprias da convivência social, como a honradez, o espírito de justiça, a sinceridade, a amabilidade e a fortaleza de ânimo, sem as quais também não se pode dar uma vida cristã autêntica. O modelo perfeito desta vida espiritual e apostólica é a Bem-aventurada Virgem Maria, Rainha dos Apóstolos: levando, na terra, uma vida semelhante à de todos os outros, a todo momento se mantinha unida a seu Filho, e de modo singular cooperou na obra do Salvador; agora, elevada ao céu, “cuida com amor materno dos irmãos de seu Filho, que, entre perigos e angústias, peregrinam ainda na terra, até chegarem à pátria bemaventurada”. Prestem-lhe todos um culto cheio de devoção, e con em à sua solicitude materna a própria vida e apostolado.

Como o leitor pode avaliar, no texto que acabamos de transcrever o concílio oferece aos leigos um magní co programa de apostolado em seu próprio ambiente. Ele tem tal densidade doutrinal que, sozinho, bem assimilado em todas as suas partes, bastaria para formar um apóstolo leigo de corpo inteiro. Os leigos nunca meditarão em demasia um texto tão profundo e completo, e que tão diretamente os afeta, a m de que vivam uma autêntica e especí ca espiritualidade laica.

Artigo 4 — Fins e objetivos do apostolado leigo O concílio de ne admiravelmente os ns e objetivos que a Igreja se propõe alcançar mediante o apostolado dos leigos, que não são outros, em de nitivo, senão levar a toda parte e a todos os homens do mundo a obra redentora de Cristo. Ouçamos a magní ca exposição conciliar: 651. 5. A obra redentora de Cristo, que por natureza visa a salvar os homens, compreende também a restauração de toda a ordem temporal. Daí que a missão da Igreja consiste não só em levar aos homens a mensagem e a graça de Cristo, mas também em penetrar e atuar com o espírito do Evangelho as realidades tem- porais. Por este motivo, os leigos, realizando esta missão da Igreja, exercem o seu apostolado tanto na Igreja como no mundo, tanto na ordem espiritual como na ordem temporal. Estas ordens, embora distintas, estão de tal modo unidas num único desígnio divino, que o próprio Deus pretende fazer de todo o mundo uma nova criação em Cristo, de um modo incoativo na terra, e de forma plena no último dia. O leigo, que é simultaneamente el e cidadão, em ambas as ordens deve sempre se guiar por uma única consciência: a cristã.

Como se vê, o concílio insiste uma vez mais na “consagração do mundo” como missão típica dos leigos. Seu apostolado deve encaminhar-se, de fato, para “impregnar e aperfeiçoar toda a ordem temporal com o espírito evangélico”. Em seguida, ele vai nos dizer de que maneira o apostolado dos leigos complementa o da hierarquia, e como deve ser praticado com base no testemunho da própria vida e procurando ocasiões para levar a todos os outros o espírito de Cristo. Eis suas palavras: 642. 6. A missão da Igreja tem como m a salvação dos homens, a qual se alcançará pela fé em Cristo e pela sua graça. Por este motivo, o apostolado da Igreja e de todos os seus membros ordena-se, antes de mais nada, a manifestar ao mundo, por palavras e obras, a mensagem de Cristo, e a comunicar a sua graça. Isto se realiza sobretudo por meio do ministério da palavra e dos sacramentos, con ado especialmente ao clero, no qual também os leigos têm grande papel a desempenhar, para se tornarem cooperadores da verdade (3Jo 8). É sobretudo nesta ordem que o apostolado dos leigos e o ministério pastoral se completam mutuamente.

Inúmeras oportunidades se oferecem aos leigos para exercerem o apostolado de evangelização e santi cação. O próprio testemunho da vida cristã e as obras, feitas com espírito sobrenatural, têm e cácia para atrair os homens à fé e a Deus; diz o Senhor: “Assim brilhe a vossa luz diante dos homens, de modo que vejam as vossas boas obras e dêem glória ao vosso Pai que está nos céus” (Mt 5, 16). Este apostolado, contudo, não consiste apenas no testemunho da vida; o verdadeiro apóstolo busca ocasiões de anunciar Cristo pela palavra, quer aos não-crentes para os levar à fé, quer aos éis, para os instruir, con rmar e animar a uma vida fervorosa; “com efeito, o amor de Cristo estimula-nos” (2Cor 5, 14); e devem encontrar eco, no coração de todos, aquelas palavras do Apóstolo: “Ai de mim, se não prego o Evangelho!” (1Cor 9, 16). E dado que no nosso tempo surgem novos problemas e se difundem gravíssimos erros que ameaçam subverter a religião, a ordem moral e a própria sociedade humana, este sagrado concílio exorta ardentemente os leigos a que, na medida de sua própria capacidade e de seus conhecimentos, desempenhem com mais diligência a parte que lhes cabe na elucidação, defesa e reta aplicação dos princípios cristãos aos problemas de nosso tempo, segundo a mente da Igreja.

Assim, o panorama que o concílio desdobra diante dos leigos é imenso. Trata-se de “restaurar tudo em Cristo” e de levar a Ele os corações de todos os homens. Ou seja, uma dupla e urgente cristianização: a das estruturas humanas em geral e a dos próprios homens em particular. Examinemos com mais detalhes esta dupla vertente à luz do concílio. 1. Renovação cristã da ordem temporal 653. 7. A vontade de Deus com respeito ao mundo é que os homens, em boa harmonia, edi quem a ordem temporal e a aperfeiçoem constantemente. Todas as realidades que constituem a ordem temporal — os bens da vida e da família, a cultura, os bens econômicos, as artes e pro ssões, as instituições políticas, as relações internacionais e outras semelhantes, bem como a sua evolução e progresso — não só são meios para o m último do homem, mas possuem valor próprio, que lhes vem de Deus, quer consideradas em si mesmas, quer como partes da ordem temporal total: “E viu Deus todas as coisas que zera, e eram todas muito boas” (Gn 1, 31). Esta bondade natural das coisas adquire uma dignidade especial pela sua relação com a pessoa humana, para cujo serviço foram criadas. Finalmente, aprouve a Deus reunir todas as coisas em Cristo, quer as naturais, quer as sobrenaturais, “de modo que em todas Ele tenha o primado” (Cl 1, 18). Mas este destino, não só não priva a ordem temporal da sua autonomia, dos seus ns próprios, das suas leis, dos seus recursos, do seu valor para o bem dos homens, como, antes, a aperfeiçoa na sua consistência e dignidade próprias, ao mesmo tempo que a ajusta à vocação integral do homem na terra. É

O uso das coisas temporais foi, no decurso da história, manchado com graves abusos. É que os homens, atingidos pelo pecado original, caíram muitas vezes em muitos erros acerca do verdadeiro Deus, da natureza do homem e dos princípios da lei moral. Daí a corrupção dos costumes e das instituições humanas, daí a pessoa humana tantas vezes conculcada. Também em nossos dias, não poucos, con ando em excesso no progresso das ciências naturais e da técnica, caem numa espécie de idolatria das coisas materiais, das quais, em vez de senhores, se tornam escravos. Toda a Igreja deve trabalhar por tornar os homens capazes de edi car retamente a ordem temporal, e de a ordenar, por Cristo, para Deus. Aos pastores compete propor claramente os princípios relativos ao m da Criação e ao uso do mundo, e proporcionar os auxílios morais e espirituais para que a ordem temporal se edi que em Cristo. Quanto aos leigos, devem eles assumir como seu encargo próprio essa edi cação da ordem temporal, e agir nela de modo direto e de nido, guiados pela luz do Evangelho e pela mente da Igreja, e movidos pela caridade cristã; enquanto cidadãos, cooperem com os demais com a sua competência especí ca e a própria responsabilidade, buscando sempre e em todas as coisas a justiça do reino de Deus. A ordem temporal deve ser construída de tal modo que, respeitando integralmente as suas leis próprias, ajuste-se aos princípios da vida cristã, de modo adaptado às diferentes condições de lugares, tempos e povos. Entre as atividades deste apostolado, sobressai a ação social dos cristãos, a qual o sagrado concílio deseja que hoje se estenda a todos os domínios temporais, sem excetuar o da cultura.

Nestes parágrafos tão densos, o concílio destaca uma vez mais aquilo que já temos exposto ou insinuado ao falar da “consagração do mundo” pelos leigos. É preciso reforçar os seguintes pontos fundamentais: 1º — A ordem temporal deve ser instaurada e aperfeiçoada sem cessar com espírito verdadeiramente cristão, já que tudo é bom e tem um valor próprio, colocado por Deus a serviço do homem e para a glória de Cristo. 2º — Deve-se dar especial cuidado, entretanto, em não des gurar com verdadeiras aberrações o uso dos bens temporais, incorrendo em uma espécie de idolatria dos mesmos e transformando o homem antes em escravo do que em senhor e dono de todos eles. 3º — É preciso que os leigos aceitem como obrigação própria instaurar a ordem temporal, e atuar diretamente e de forma concreta em tal ordem, dirigidos pela luz do Evangelho e pela mente da Igreja, e movidos pela caridade cristã.

Este último ponto — o de se moverem pelos impulsos da caridade cristã — é tão importante e fundamental, que o concílio se volta imediatamente para ele em parágrafos admiráveis. Ei-los aqui: 654. 8. Toda atividade apostólica deve uir e receber força da caridade; algumas obras, porém, prestam-se, por sua própria natureza, a tornarem-se viva expressão dessa caridade. Cristo quis que elas fossem sinais da sua missão messiânica (cf. Mt 11, 4–5). O maior mandamento da lei é amar a Deus de todo o coração, e ao próximo como a si mesmo (cf. Mt 22, 37–40). Cristo fez deste mandamento do amor para com o próximo o seu mandamento, e enriqueceu-o com novo signi cado, identi cando-Se aos irmãos como objeto da caridade, dizendo: “Sempre que o zestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o zestes” (Mt 25, 40). Com efeito, assumindo a natureza humana, Ele uniu a si como família, por uma certa solidariedade sobrenatural, todos os homens, e fez da caridade o sinal dos seus discípulos, com estas palavras: “Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros” (Jo 13, 35). A Santa Igreja, assim como nos seus primeiros tempos, juntando o “ágape” à Ceia Eucarística, se mostrava completa e unida em volta de Cristo pelo vínculo da caridade; assim, em todos os tempos pode-se reconhecê-la por este sinal do amor. E alegrando-se com as realizações alheias, ela reserva para si, como dever e direito próprios, dos quais não pode alienar, as obras de caridade. Por isso, a misericórdia para com os pobres e enfermos, e as chamadas obras de caridade e de mútuo auxílio para socorrer as múltiplas necessidades humanas, são pela Igreja honradas de modo especial. Estas atividades e obras tornaram-se muito mais urgentes e universais em nosso tempo, onde os meios de comunicação são mais rápidos, onde quase se venceu a distância entre os homens, e onde os habitantes de toda a terra se tornaram membros, em certo modo, de uma só família. A atividade caritativa, hoje, pode e deve atingir as necessidades de todos os homens. Onde quer que se encontrem pessoas a quem faltam sustento, vestuário, casa, remédios, trabalho, instrução e meios necessários para levar uma vida verdadeiramente humana, sendo a igidas pelas desgraças ou pela doença, sofrendo o exílio ou a prisão, aí as deve ir buscar e encontrar a caridade cristã, consolá-las com muita solicitude e ajudá-las com os auxílios prestados. Esta obrigação incumbe antes de mais aos homens e povos que desfrutam de condição próspera. Para que este exercício da caridade seja e apareça acima de toda a suspeita, considere-se no próximo a imagem de Deus, para o qual foi criado, veja-se nele a Cristo, a quem realmente se oferece tudo o que ao indigente se dá; atenda-se com grande delicadeza à liberdade e dignidade da pessoa que recebe o auxílio; não se deixe manchar a pureza de intenção com qualquer busca do próprio interesse ou com desejo de domínios; satisfaçam-se antes de mais as exigências da justiça, nem se ofereça como dom da caridade aquilo que já é devido a título de justiça; suprimam-se as causas dos males, e não apenas os seus efeitos; e de tal modo se preste a ajuda que os que a recebem se libertem pouco a pouco da dependência alheia, e se bastem a si mesmos.

Tenham, por isso, os leigos em grande apreço e ajudem quanto possam as obras caritativas e as iniciativas de assistência social, quer privadas quer públicas, e também internacionais, que levam auxílio e caz aos indivíduos e aos povos necessitados, cooperando neste ponto com todos os homens de boa vontade.

Como se vê, o concílio não se esquece de ninguém e estende seu olhar angustiado, cheio de inquietude apostólica, sobre todo o universo e sobre todos os homens do mundo, nos quais vê a Deus — a cuja imagem foram criados — e a Cristo, que os redimiu com o preço de seu sangue divino. E com esta visão universalista, indicará agora, aos leigos, os diversos campos em que serão desenvolvidos incessantemente suas atividades apostólicas. Sua exposição é tão completa e detalhada que dispensa glosas e comentários. Eis suas próprias palavras: 2. Os diversos campos do apostolado 655. 9. Os leigos exercem o seu apostolado multiforme tanto na Igreja como no mundo. Em ambos os planos se abrem vários campos de atividade apostólica, dos quais queremos aqui lembrar os principais. São eles: as comunidades eclesiais, a família, a juventude, o meio social, e as ordens nacional e internacional. E como hoje a mulher tem cada vez mais parte ativa em toda a vida social, é da maior importância que ela tome uma participação mais ampla também nos vários campos do apostolado da Igreja.

a) As comunidades da Igreja 656. 10. Porque participam no múnus sacerdotal, profético e real de Cristo, têm os leigos parte ativa na vida e ação da Igreja. A sua ação dentro das comunidades eclesiais é tão necessária que, sem ela, o próprio apostolado dos pastores não pode conseguir, na maior parte das vezes, todo o seu efeito. Porque os leigos com verdadeira mentalidade apostólica, à imagem daqueles homens e mulheres que ajudavam Paulo na propagação do Evangelho (cf. At 18, 18.20; Rm 16, 3), suprem o que falta a seus irmãos e revigoram o espírito dos pastores e dos outros membros do povo el (cf. 1Cor 16, 17– 18). Pois eles, fortalecidos pela participação ativa na vida litúrgica da comunidade, empenham-se nas obras apostólicas da mesma. Conduzem à Igreja os homens que porventura andem longe, cooperam intensamente na comunicação da palavra de Deus, sobretudo pela atividade catequética, e tornam mais e caz, com o contributo da sua competência, a cura de almas e até a administração dos bens da Igreja. A paróquia dá-nos um exemplo claro de apostolado comunitário, porque congrega numa unidade toda a diversidade humana que aí se encontra e a insere na universalidade da Igreja. Acostumem-se os leigos a trabalhar na paróquia intimamente unidos aos seus sacerdotes, a trazer para a comunidade eclesial os próprios problemas e os do mundo, e as questões que dizem respeito à salvação dos homens, para que se examinem e resolvam no confronto de vários pareceres. Acostumem-se, por m, a

prestar auxílio a toda a iniciativa apostólica e missionária da sua comunidade eclesial na medida das próprias forças. Cultivem o sentido de diocese, de que a paróquia é como que uma célula, e estejam sempre prontos, à voz do seu pastor, a somar as suas forças às iniciativas diocesanas. Mas, para responder às necessidades das cidades e das regiões rurais, não con nem a sua cooperação aos limites da paróquia ou da diocese; ao contrário, esforcem-se por estendê-la aos campos interparoquial, interdiocesano, nacional ou internacional. Tanto mais que a crescente migração de povos, o incremento de relações mútuas e a facilidade de comunicações já não permitem que parte alguma da sociedade permaneça fechada em si. Assim devem interessar-se pelas necessidades do povo de Deus, disperso por toda a terra. Em primeiro lugar, façam suas as obras missionárias, prestando auxílios materiais ou mesmo pessoais. Pois é dever e honra dos cristãos restituir a Deus parte dos bens que dele recebem.

b) A família 657. 11. O Criador de todas as coisas constituiu o vínculo conjugal como princípio e fundamento da sociedade humana, e o tornou, por sua graça, um grande sacramento em Cristo e na Igreja (cf. Ef 5, 32). Por isso, o apostolado conjugal e familiar tem singular importância tanto para a Igreja como para a sociedade civil. Os esposos cristãos são cooperadores da graça e testemunhas da fé um para com o outro, para com os lhos e para os demais familiares. Eles são os primeiros que anunciam aos lhos a fé; e os educam e os formam, pela palavra e pelo exemplo, para a vida cristã e apostólica. Ajudam-nos com prudência a escolher a sua vocação e fomentam, com todo o cuidado, a vocação de consagração que porventura seja neles descoberta. Foi sempre dever dos esposos, e hoje é a maior incumbência do seu apostolado, manifestar e demonstrar, pela sua vida, a indissolubilidade e a santidade do vínculo matrimonial; a rmar vigorosamente o direito e o dever próprio dos pais e tutores de educar cristãmente os lhos; e defender a dignidade e a legítima autonomia da família. Cooperem, pois, eles e os outros cristãos, com os homens de boa vontade, para que estes direitos sejam integralmente assegurados na legislação civil. No governo da sociedade, tenham-se em conta as necessidades familiares quanto à habitação, educação dos lhos, condições de trabalho, seguros sociais e impostos. Ao regulamentar a migração, ponha-se sempre a salvo a convivência doméstica. Foi a própria família que recebeu de Deus a missão de ser a primeira célula vital da sociedade. Cumprirá essa missão se se mostrar, pela piedade mútua dos seus membros e pela oração feita a Deus em comum, como que o santuário doméstico da Igreja; se toda a família se inserir no culto litúrgico da Igreja e, nalmente, se a família exercer uma hospitalidade atuante e promover a justiça e outras boas obras em serviço de todos os irmãos que sofrem necessidade. Podem enumerar-se, entre as várias obras de apostolado familiar, as seguintes: adotar por lhos crianças abandonadas, receber com benevolência estrangeiros, coadjuvar no regime das escolas, auxiliar os adolescentes com conselhos e meios materiais, ajudar os noivos a prepararem-se melhor para o matrimônio, colaborar na catequese, auxiliar os esposos e as famílias que se encontram

em crise material ou moral, e proporcionar aos velhos não só o necessário, mas também os justos benefícios do desenvolvimento econômico. As famílias cristãs, pela coerência de toda a sua vida com o Evangelho e pelo exemplo que mostram do Matrimônio cristão, oferecem ao mundo um preciosíssimo testemunho de Cristo, sempre e em toda a parte, mas sobretudo naquelas regiões em que se lançam as primeiras sementes do Evangelho, em que a Igreja está nos seus começos, ou em que atravessa alguma crise grave. Pode ser oportuno que as famílias se unam em certas associações para mais facilmente poderem atingir os ns do seu apostolado.

c) A juventude 658. 12. Os jovens exercem na sociedade de hoje um in uxo da maior importância. As condições em que vivem, os hábitos mentais e até as relações com a própria família estão profundamente mudadas. É freqüente passarem com demasiada rapidez a uma condição social e econômica nova. Por um lado, cresce cada vez mais a sua importância social e até política; por outro, parecem incapazes de assumir convenientemente as novas tarefas. Este acréscimo de in uência na sociedade exige deles uma atividade apostólica correspondente. Aliás, a sua própria índole natural os dispõe para ela. Com o amadurecimento da consciência da própria personalidade, estimulados pelo ardor da vida e pela atividade transbordante, assumem a própria responsabilidade e desejam tomar a parte ativa que lhes compete na vida social e cultural. Se este zelo é penetrado pelo espírito de Cristo e animado pela obediência e pelo amor para com os pastores da Igreja, podemos esperar dele frutos muito abundantes. Eles mesmos devem ser os primeiros e imediatos apóstolos da juventude, e exercer por si mesmos o apostolado entre si, tendo em conta o meio social em que vivem. Os adultos procurem estabelecer com os jovens um diálogo amistoso que permita a ambas as partes, superando a distância de idades, conhecerem-se mutuamente e comunicarem uns aos outros as próprias riquezas. Os adultos estimulem a juventude ao apostolado, primeiro pelo exemplo e, dada a ocasião, por conselhos prudentes e ajuda e caz. E os jovens mostrem para com os mais velhos respeito e con ança. E, ainda que por natureza sejam inclinados a novidades, tenham, contudo, na devida estima aquelas tradições que são valiosas. Também as crianças têm a sua própria atuação apostólica. Segundo as suas forças, são em verdade testemunhos vivos de Cristo entre os companheiros.

d) O meio social 659. 13. O apostolado no meio social, isto é, o empenho em informar de espírito cristão a mentalidade e os costumes, as leis e estruturas da comunidade em que se vive, são incumbência e encargo de tal modo próprios dos leigos que nunca poderão ser plenamente desempenhados por outros. Neste campo, podem os leigos exercer um

apostolado de semelhante para com semelhante. Aí completam o testemunho da vida pelo testemunho da palavra. Nesse campo do trabalho, da pro ssão, do estudo, da residência, do tempo livre ou da associação, são eles os mais aptos para ajudar os seus irmãos. Os leigos realizam esta missão da Igreja no mundo, antes de tudo, por aquela coerência da vida com a fé, pela qual se tornam luz do mundo; pela honestidade nos negócios, com a qual atraem todos ao amor da verdade e do bem e, nalmente, a Cristo e à Igreja; pela caridade fraterna que, fazendo-os participar das condições de vida, dos trabalhos, dos sofrimentos e aspirações de seus irmãos, prepara insensivelmente todos os corações para a ação da graça salutar; por aquela plena consciência da participação que devem ter na construção da sociedade, a qual os leva a esforçarem-se por desempenhar com magnanimidade cristã a atividade doméstica, social e pro ssional. Assim, o seu modo de agir penetra pouco a pouco no ambiente de sua vida e de seu trabalho. Este apostolado deve abranger todos aqueles que aí se encontram, e não excluir nenhum bem espiritual ou temporal que possam fazer. Mas os verdadeiros apóstolos não se contentam só com esta ação e esforçam-se por anunciar Cristo ao próximo também por meio da palavra, uma vez que muitos homens só por meio de seus companheiros leigos poderão ouvir o Evangelho e conhecer a Cristo.

e) As ordens nacional e internacional 660. 14. Um imenso campo de apostolado se abre na ordem nacional e internacional, em que são sobretudo os leigos os administradores da sabedoria cristã. Os católicos sintam-se obrigados a promover o bem comum na dedicação à pátria e no el cumprimento de seus deveres civis, e façam valer o peso da sua opinião, de modo que o poder civil seja exercido com justiça, e as leis correspondam aos preceitos morais e ao bem comum. Os católicos peritos nos negócios públicos, e fortalecidos, como devem ser, na fé e na doutrina cristã, não recusem participar neles, uma vez que, exercendo-os dignamente, podem atender ao bem comum e, ao mesmo tempo, abrir caminho ao Evangelho. Empenhem-se os católicos em cooperar com todos os homens de boa vontade para promover tudo o que é verdadeiro, tudo o que é justo, tudo o que é santo, tudo o que é digno de ser amado (cf. Fl 4, 8). Dialoguem com eles, indo ao seu encontro com prudência e bondade. E investiguem em conjunto o modo de organizar as instituições sociais e públicas segundo o espírito do Evangelho. Entre os sinais do nosso tempo, é digno de especial menção aquele crescente e inelutável sentido de solidariedade entre todos os povos que o apostolado dos leigos tem por encargo promover ativamente e converter em sincero e verdadeiro afeto fraternal. Além disso, devem os leigos ter consciência da realidade internacional e das questões e soluções, doutrinais ou práticas, que nela se originam, sobretudo quanto aos povos em desenvolvimento.

Lembrem-se todos aqueles que trabalham em nações estrangeiras ou lhes prestam auxílio, que as relações entre os povos devem ser um verdadeiro convívio fraterno, em que ambas as partes simultaneamente dão e recebem. Aqueles, porém, que viajam ou por causa de obras internacionais, ou por negócios, ou por motivo de descanso, lembrem-se que são também, em toda a parte, pregadores itinerantes de Cristo, e procedam como tais.

O vastíssimo panorama apostólico que o concílio abre para os leigos vai até aqui. Ninguém deve se sentir oprimido ao contemplar a imensidão da tarefa e a escassez de meios disponíveis para enfrentar um tão grande empreendimento. Em nenhum momento se deve esquecer que esse trabalho gigantesco deve ser realizado com a ação de todos, e Deus não pedirá contas do resultado nal a cada um em particular, mas unicamente do interesse e da reta intenção com que tenhamos exercido nosso zelo apostólico, com os meios ao nosso alcance e no campo de nosso próprio ambiente. Voltaremos sobre isto mais abaixo.

Artigo 5 — Diferentes formas do apostolado leigo Ao abordar o tema das diferentes formas que o apostolado dos leigos pode assumir, o concílio estabelece uma primeira divisão fundamental: 661. 15. Os leigos podem exercer a sua ação apostólica, quer como indivíduos, quer unidos em diversas comunidades e associações.

Vamos, pois, examinar em separado cada um destes dois aspectos: o individual e o coletivo. 1. O apostolado individual Em primeiríssimo lugar, o concílio observa que todo apostolado, tanto individual como associado, deve brotar com abundância de uma vida autenticamente cristã,

sem o que todas as atividades apostólicas estariam irremediavelmente condenadas ao fracasso, “como bronze que soa ou címbalo que retine” (1Cor 13, 1). 662. 16. O apostolado individual, que deriva com abundância da fonte de uma vida verdadeiramente cristã (cf. Jo 4, 14), é origem e condição de todo o apostolado dos leigos, mesmo do associado, e nada o pode substituir. A este apostolado, sempre e em toda parte proveitoso, e em certas circunstâncias o único conveniente e possível, são chamados e, por isso, obrigados todos os leigos, de qualquer condição; ainda que não se lhes proporcione ocasião ou possibilidade de cooperar nas associações. São muitas as formas de apostolado pelas quais os leigos edi cam a Igreja, santi cam o mundo e o vivi cam em Cristo. A forma peculiar do apostolado individual, e sinal muito acomodado também aos nossos tempos, porque manifesta Cristo vivo nos seus éis, é o testemunho de toda a vida laical que ui da fé, esperança e caridade. Porém, pelo apostolado da palavra, em certas circunstâncias absolutamente necessário, os leigos anunciam a Cristo, expõem a sua doutrina, difundem-na segundo a sua própria condição e capacidade, e professamna com delidade. Além disso, como cidadãos deste mundo, os leigos, ao cooperarem na construção e no governo da ordem temporal, devem, na vida familiar, pro ssional, cultural e social, buscar, à luz da fé, normas de ação mais elevadas, e manifestá-las aos outros oportunamente, conscientes de que assim se tornam cooperadores do Deus Criador, Redentor e Santi cador, e de que assim o glori cam. Finalmente, vivi quem os leigos a sua vida com a caridade, e mostrem-no por obras na medida do possível. Lembrem-se todos que pelo culto público e pela oração, pela penitência, pelos trabalhos e pela livre aceitação das agruras da vida, pelas quais se conformam a Cristo paciente (cf. 2Cor 4, 10; Cl 1, 24), podem atingir todos os homens e contribuir para a salvação de todo o mundo.

As últimas palavras do magní co texto conciliar que acabamos de transcrever mostram uma vez mais a inquietude atormentada da Igreja para levar a mensagem redentora de Cristo a todos os homens do mundo. E imediatamente se xa com particular angústia naquelas regiões — cada vez mais vastas — em que a liberdade evangelizadora da Igreja se vê impossibilitada pelos poderes públicos. Nestas circunstâncias, a ação apostólica

individual dos leigos se faz mais urgente e necessária do que nunca. Ouçamos o próprio concílio: 663. 17. Este apostolado individual é urgentemente necessário naquelas regiões em que a liberdade da Igreja é gravemente impedida. Nestas circunstâncias di cílimas, os leigos, suprindo, na medida do possível, o sacerdote, põem em risco a própria liberdade e, às vezes, a própria vida. Ensinam aos que os cercam a doutrina cristã, formam-nos na vida religiosa e na mentalidade católica, induzem-nos à freqüência dos sacramentos e fomentam a piedade, sobretudo a eucarística. O sagrado concílio dá graças do fundo do coração a Deus que não deixa de suscitar, também em nossos dias, leigos de fortaleza heróica no meio das perseguições, e abraça-os com afeto paterno e ânimo agradecido. O apostolado individual tem especial campo de ação nas regiões onde os católicos são poucos e vivem dispersos. Os leigos, que exercem nelas somente o apostolado individual pelas causas acima mencionadas ou por razões especiais, mesmo nascidas da própria atividade pro ssional, reúnam-se oportunamente para dialogar em grupos menores, sem forma estrita de instituição ou organização, de modo que sempre se manifeste aos outros o sinal da comunidade da Igreja como verdadeiro testemunho de amor. Deste modo, pela amizade, pela comunicação de experiências e pela ajuda espiritual mútua, fortalecem-se para superar as di culdades da vida e da ação demasiado isolada, e produzir mais abundantes frutos de apostolado.

Como é fácil compreender, o apostolado individual dos leigos — e inclusive o coletivo — deve se revestir de matizes muito diferentes e especiais segundo a classe de almas sobre as quais irá recair esse apostolado. Vamos indicar brevemente as principais categorias.612 a) Os incrédulos 664. São estes os mais necessitados de nosso apostolado, pois estão constituídos em extrema necessidade espiritual. Extinta por completo a luz da fé em suas almas, jazem e vivem tranqüilos nas trevas e nas sombras da morte (cf. Lc 1, 79). Sobretudo, se perderam a fé cristã depois de tê-la professado em outra época de sua vida, sua situação perante Deus é perigosa em extremo, já que ninguém perde a fé senão por própria culpa. A divina revelação nos assegura, de fato, que Deus jamais retira seus dons, a não ser daquele que se torna culpavelmente indigno deles: “Os dons e a vocação de Deus são irrevogáveis” (Rm 11, 29).

O apostolado exercido com esta classe de almas está eriçado de di culdades. Como na maioria dos casos falta a boa-fé, é muito difícil entabular diálogo ou empreender uma ação apostólica imediata com garantia de sucesso. É preciso envolver o incrédulo com uma caridade inesgotável, com um exemplo de virtude jamais desmentido, e empreender um trabalho apostólico a longo prazo, sem pressa nem pressões que poderiam colocar tudo a perder. Às vezes, será preciso renunciar em absoluto ao apostolado da palavra, que, longe de produzir algum bem para esses pobres extraviados, ao contrário iria piorar a situação e resultaria inteiramente contraproducente. Nestes casos, é preciso recorrer à oração fervorosa, à con ança em Deus e à poderosa intercessão de Maria, mediadora universal de todas as graças. A oração nunca é estéril, e obtém de Deus tudo quanto dele se espera con adamente. É impressionante o caso do criminoso Pranzini, salvo pela oração ardente de Santa Teresinha do Menino Jesus, então uma menina de pouca idade.613 Entretanto, nem todos os incrédulos oferecem as mesmas di culdades no exercício do apostolado sobre eles. A incredulidade não tem raízes igualmente profundas em todas as almas: Na realidade, muitas vezes é um frágil véu que separa uma alma de Cristo, impedindo-a de conhecê-lo. Talvez a ignorância, ou um preconceito, ou a má educação, ou a sugestão do ambiente [...]. Basta que certa mão piedosa derrube o obstáculo, e a gura de Cristo aparece radiante para a alma que já estava próxima, mas não o podia ver.614

b) Os indiferentes 665. Estes constituem a imensa maioria dos homens de hoje. Preocupados unicamente com as coisas da terra, raramente erguem seus olhos ao céu. Sua vida se reduz às ocupações de seu trabalho pro ssional, ao descanso e às diversões na maior medida possível. A religião não os preocupa. Talvez sejam batizados e não sintam nenhuma aversão pela Igreja, mas... dá no mesmo. Não praticam a religião, embora tampouco

a persigam. Simplesmente encolhem os ombros diante dela. Sua situação é extremamente perigosa. Em certo sentido, são mais culpáveis diante de Deus que os próprios incrédulos, que carecem em absoluto das luzes da fé. A menos que uma ignorância quase completa — que raramente deixará de ser totalmente inculpável — atenue sua responsabilidade, sua situação perante Deus está muito comprometida. Se a morte os surpreende nesse estado, seu destino eterno será deplorável. Diante desses infelizes, é preciso exercer o apostolado em suas mais variadas formas. Se sua indiferença procede da ignorância religiosa, será preciso fazerlhe frente com um apostolado de tipo doutrinário e catequético. Se tem raízes em um coração dominado pelas paixões, tudo que se tente no campo doutrinário será inútil antes de conseguir que rompam com suas amarras afetivas. O apóstolo exercerá seu zelo removendo os obstáculos que afastam de Deus esses infelizes, com aquela arte re nada cujo segredo possuem unicamente a caridade e a prudência sobrenatural. c) Os pecadores 666. Aqui, entendemos como pecadores os cristãos que conservam a fé, diferentemente dos incrédulos, e que se preocupam com as coisas da alma, à diferença dos indiferentes, mas não conseguem superar o ímpeto de suas paixões e se entregam ao pecado, mesmo com sofrimento e dor por sua própria fragilidade e inconseqüência. Gostariam de viver cristãmente, lamentam sua falta de energia para repelir as tentações... mas de fato sucumbem facilmente a elas, sobretudo quando cometem a imprudência — muito freqüente neles — de se colocar voluntariamente em ocasiões perigosas: espetáculos suspeitos, más companhias, leituras frívolas, etc. Estas pobres almas são mais infelizes do que perversas. Contudo, sua situação diante de Deus continua sendo muito incorreta e perigosa. Ao menos deveriam esforçar-se em evitar as ocasiões de

pecado, freqüentar os sacramentos, impor a si mesmas um severo regime de vida cristã, para não deixar nenhuma válvula de escape para sua leviandade e inconstância. O apostolado sobre estas almas consistirá principalmente em afastá-las com doçura e suavidade das ocasiões perigosas, proporcionando-lhes diversões sadias e honestas, levando-as a freqüentar os sacramentos, a praticar alguma sessão de exercícios espirituais internos ou recomendando-lhes os admiráveis Cursilhos de cristandade, que tantas conversões conseguiram, etc. É preciso levar ao extremo a suavidade e a mansidão, fazendo com que vejam o perigo de sua situação e a beleza da verdadeira vida cristã, mas com extremo cuidado para não exacerbar seu abatimento moral com repreensões demasiado duras e falta de compreensão, que poderiam piorar terrivelmente as coisas, sobretudo caso se trate da débil e inexperiente juventude. d) Os bons cristãos 667. O apostolado não conhece limites nem fronteiras. Deve recair também sobre os bons cristãos, com o objetivo de os impelir até os cumes da perfeição cristã. Não existe ninguém tão bom que não possa ser melhor: “O justo justi que-se mais, e o santo se santi que mais” (Ap 22, 11). Trabalhar na conversão de um pecador é uma tarefa que muito agrada a Deus e obterá dele uma esplêndida recompensa; porém, sem nenhuma dúvida, é mais importante ainda trabalhar na santi cação perfeita das almas, já que um verdadeiro santo glori ca muito mais a Deus do que mil justos imperfeitos, e arrasta consigo, pelo peso de sua própria santidade, grande número de almas pelos caminhos da salvação eterna. Grande apostolado é o que se exerce sobre as almas escolhidas, impulsionando-as sempre mais até os cumes da união com Deus, mesmo que seja sem brilho algum diante dos homens. Deus sabe valorizar muito bem as coisas, e no céu, um humilde capelão de monjas, que se esforçou a vida inteira em impeli-las à santidade,

talvez ocupe um posto mais relevante e brilhará com maior fulgor do que o grande pregador de destaque que, com intenção menos reta, colheu glórias e aplausos em suas incessantes campanhas apostólicas. e) Os próprios familiares 668. Estes talvez constituam o objetivo primordial do apostolado no próprio ambiente. Obrigados a conviver continuamente, unidos pelos suaves laços do amor mais puro e entranhado, com o mesmo sangue circulando pelas veias de todos, o apostolado entre os próprios familiares é um dos mais profundos e e cazes. Claro que é preciso saber pô-lo em prática, adaptando-se à grande variedade de temperamentos, gostos, preferências, tendências afetivas, graus de cultura, etc., que com freqüência diversi cam enormemente os membros de uma mesma família. Caso se queira trabalhar com êxito garantido, será preciso levar em conta todos estes elementos e, em todo caso, levar ao extremo o apostolado do bom exemplo, que é o mais e caz de todos. f) Os amigos e companheiros de pro ssão 669. Depois de nossos próprios familiares, os seres mais próximos de nós são nossos amigos e companheiros de pro ssão. Também com eles temos de conviver longas horas do dia — às vezes, até mais que com os próprios familiares — e, por isso mesmo, nos serão oferecidas contínuas oportunidades de exercer o apostolado em suas mais variadas formas. Ao falar da tática do apostolado, vamos expor os principais procedimentos para obter o máximo rendimento de nossos esforços apostólicos. 2. O apostolado coletivo Depois desta breve excursão sobre o diferente tratamento que o leigo deve dar às diferentes classes ou categorias de almas sobre as quais irá exercer seu apostolado individual, voltamos ao decreto conciliar para colher seus ensinamentos em torno do apostolado organizado ou coletivo.

670. 18. Todos os éis são chamados a exercer o apostolado individual nas diversas condições da sua vida. Lembrem-se, contudo, que o homem é, por natureza, social, e que aprouve ao Senhor unir em um povo de Deus (cf. 1Pd 2, 5–10) e em um corpo (cf. 1Cor 12, 12) os que crêem em Cristo. Portanto, o apostolado em associação responde com delidade à exigência humana e cristã dos éis, e é, ao mesmo tempo, sinal da comunhão e da unidade da Igreja em Cristo, o qual disse: “Onde estão dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles” (Mt 18, 20). Por conseguinte, os éis exerçam o seu apostolado trabalhando para um só m. Sejam apóstolos tanto nas suas comunidades familiares como nas paróquias e dioceses, as quais exprimem a índole comunitária do apostolado. Exerçam-no também nas associações livres que resolverem formar. O apostolado em associação é de grande importância também porque, nas comunidades eclesiais e em vários ambientes, o apostolado exige com freqüência ser realizado mediante a ação comum. As associações criadas para a ação apostólica comum fortalecem os seus membros e formam-nos para o apostolado. Além disso, distribuem ordenadamente e orientam o seu trabalho apostólico, de modo que se podem esperar daí frutos muito mais abundantes do que se agissem cada um por sua conta. Nas circunstâncias presentes, porém, é absolutamente necessário que se robusteça a forma associada e organizada do apostolado no campo de atividade dos leigos, pois somente a estreita união das forças é capaz de conseguir plenamente os ns do apostolado de hoje, e de defender com e cácia os seus bens. Neste ponto é particularmente importante que o apostolado atinja também a mentalidade comum e as condições sociais daqueles a quem se dirige. De outro modo, não poderão, muitas vezes, resistir à pressão da opinião pública ou das instituições.

a) Multiplicidade de formas do apostolado organizado 671. 19. Há uma grande variedade de associações de apostolado. Umas propõem-se o m apostólico geral da Igreja. Outras, de modo particular, ns de evangelização e santi cação. Outras, ainda, têm como m animar cristãmente a ordem temporal. Finalmente, algumas dão testemunho de Cristo, de modo especial, pelas obras de misericórdia e de caridade. Entre estas associações são consideráveis, antes de mais, aquelas que fomentam e promovem uma unidade mais íntima entre a vida prática dos membros e a sua fé. As associações não têm em si o seu m, mas devem servir à missão que a Igreja tem de cumprir para com o mundo. A sua força apostólica depende da conformidade com os ns da Igreja, do testemunho cristão e do espírito evangélico de cada um dos membros e de toda a associação. O dever universal da missão da Igreja, dado o progresso das instituições e, ao mesmo tempo, o impulso do desenvolvimento da sociedade moderna, exige que as iniciativas apostólicas dos católicos aperfeiçoem cada vez mais as formas associadas no campo internacional. As Organizações Católicas Internacionais conseguirão melhor o seu m

se os grupos que as formam, bem como seus membros, a elas se unirem mais intimamente. Respeitada a devida relação com a autoridade eclesiástica, os leigos têm o direito de fundar associações, governá-las, e, uma vez fundadas, dar-lhes um nome. Deve-se, contudo, evitar a dispersão de forças que se veri ca se se promovem, sem razão su ciente, novas associações e obras, ou se se mantêm, sem utilidade, associações ou métodos obsoletos. Nem sempre será oportuno que formas criadas numa nação sejam trasladadas, sem critério, para outras.

b) A Ação Católica 672. 20. Há não poucos decênios, em muitas nações, os leigos, cada vez mais consagrados ao apostolado, uniram-se em várias formas de ação e associação que, em união mais estreita com a hierarquia, se dedicaram e dedicam a ns especi camente apostólicos. Entre estas e outras instituições semelhantes mais antigas, merecem especial menção as que, seguindo embora diferentes métodos de ação, tendo sido justamente recomendadas e fomentadas pelos Sumos Pontí ces e por muitos bispos, receberam deles o nome de Ação Católica e, com muita freqüência, foram declaradas como cooperação dos leigos no apostolado hierárquico. Quer tenham o nome de Ação Católica quer outro, estas formas de apostolado que exercem em nossos dias uma valiosa ação apostólica são constituídas pelo conjunto das seguintes características: a) O m imediato de tais organizações é o m apostólico da Igreja, isto é, ordenam-se à evangelização e santi cação dos homens, e à formação cristã da sua consciência, de modo a poderem imbuir do espírito do Evangelho as várias comunidades e os vários meios. b) Os leigos, cooperando a seu modo com a hierarquia, contribuem com a sua experiência e assumem a sua responsabilidade no governo destas organizações, no estudo das condições em que a ação pastoral da Igreja se deve exercer e na elaboração e execução dos planos a realizar. c) Os leigos agem unidos como um corpo orgânico, para que se manifeste com maior evidência a comunidade da Igreja e para que o apostolado seja mais e caz. d) Os leigos, quer se ofereçam espontaneamente, quer sejam convidados à ação e à direta colaboração com o apostolado hierárquico, trabalham sob a superior orientação da mesma hierarquia, a qual pode sancionar essa cooperação com um mandato explícito. As organizações nas quais, a juízo da hierarquia, se encontram estas características tomadas em conjunto, devem ser consideradas Ação Católica, ainda que, por exigências de lugar ou de povos, assumam formas e nomes diversos. O sagrado concílio recomenda insistentemente estas instituições, que correspondem, certamente, às necessidades do apostolado da Igreja em muitas nações. E convida os sacerdotes e leigos que nelas trabalham a tornarem cada vez mais realidade as características acima mencionadas, e a cooperarem sempre fraternalmente, na Igreja, com as outras formas de apostolado.

c) Apreço das associações

673. 21. Tenham-se na devida estima todas as associações de apostolado. Mas aquelas que a hierarquia, segundo as necessidades de tempo e lugar, louvar, recomendar ou mandar instituir como mais urgentes, devem ser tidas em alto apreço e ser promovidas pelos sacerdotes, religiosos e leigos, segundo a maneira que lhes seja própria. Entre elas, porém, devem-se hoje contar sobretudo as associações ou agrupamentos católicos internacionais.

d) Leigos que se dedicam a título especial ao serviço da Igreja 674. 22. São dignos de especial honra e recomendação na Igreja aqueles leigos, solteiros ou casados, que se dedicam, perpétua ou temporariamente, com a sua competência pro ssional, ao serviço das instituições e suas atividades. É de grande alegria para a Igreja que cresça cada vez mais o número de leigos que prestam o seu serviço às associações e obras de apostolado dentro da própria nação, ou no campo internacional ou, sobretudo, nas comunidades católicas das missões e das igrejas mais recentes. Recebam os pastores da Igreja estes leigos de bom grado e com ânimo reconhecido, e esforcem-se para que a sua condição corresponda, quanto possível, às exigências da justiça, da eqüidade e da caridade, principalmente no que diz respeito ao seu honesto sustento e das suas famílias, e para que recebam a necessária formação e sintam consolação e estímulo espiritual.

Como o leitor pode ver, a exposição que faz o concílio sobre as características do apostolado organizado ou coletivo é tão completa e detalhada que dispensa toda glosa ou comentário. Mas é preciso que, na prática das diferentes atividades apostólicas que o concílio reserva aos leigos, sempre se guarde a devida ordem e o respeito pela hierarquia eclesiástica — estabelecida pelo próprio Cristo para reger e governar a Igreja —, não só para receber dela a luz e a orientação que lhe cabe no plano da economia cristã, mas também para não cair em um subjetivismo caótico e anarquista que levaria ao fracasso os melhores esforços apostólicos. É o que veremos em seguida, acompanhando o texto conciliar. 3. Ordem a ser observada 675. 23. O apostolado dos leigos, quer seja exercido pelos éis individualmente quer em associação, deve-se integrar ordenadamente no apostolado de toda a Igreja. Mais ainda, a união com aqueles que o Espírito Santo pôs à frente da Igreja de Deus (cf. At 20, 28) constitui elemento essencial do apostolado cristão. E não é menos necessária a cooperação entre as diversas iniciativas apostólicas, que devem ser convenientemente dirigidas pela hierarquia.

Com efeito, para promover o espírito de união, que fará brilhar em todo o apostolado da Igreja a caridade fraterna e levará à consecução dos ns comuns evitando as emulações tão perniciosas, requer-se a estima recíproca de todas as formas de apostolado na Igreja, e uma coordenação adequada, que respeite a índole própria de cada uma. Isto é da máxima conveniência, porque a ação particular na Igreja requer a harmonia e a cooperação apostólica do clero secular e regular, dos religiosos e dos leigos.

a) Relações com a hierarquia 676. 24. Compete à hierarquia fomentar o apostolado dos leigos, fornecer os princípios e os auxílios espirituais, ordenar para o bem comum da Igreja o exercício do mesmo apostolado, e vigiar para que se conservem a doutrina e a ordem. O apostolado dos leigos admite diversos modos de relação com a hierarquia, segundo as suas várias formas e seus objetivos. Assim, existem na Igreja muitas iniciativas apostólicas nascidas da livre escolha dos leigos e dirigidas com o seu prudente critério. Em determinadas circunstâncias, a missão da Igreja pode se realizar melhor por meio de tais iniciativas, e daí o serem com freqüência louvadas e recomendadas pela hierarquia. No entanto, nenhuma iniciativa apostólica se pode chamar católica se não tiver a aprovação da legítima autoridade eclesiástica. A hierarquia reconhece explicitamente, de diversos modos, certas formas de apostolado dos leigos. Além disso, a autoridade eclesiástica, tendo em conta as exigências do bem comum da Igreja, pode escolher dentre as várias associações e iniciativas apostólicas com um m diretamente espiritual, algumas em particular, e promovê-las dum modo especial, assumindo sobre elas uma maior responsabilidade. Deste modo, a hierarquia, ordenando o apostolado de diversas maneiras segundo as circunstâncias, vai unindo mais intimamente ao seu próprio múnus apostólico uma ou outra das suas formas, respeitando, porém, sempre a natureza e a distinção de ambas as partes, e sem com isso retirar aos leigos a necessária liberdade de ação. Em vários documentos eclesiásticos, se dá a este ato da hierarquia o nome de “mandato”. Finalmente, a hierarquia con a aos leigos certas tarefas mais intimamente ligadas ao múnus pastoral, como, por exemplo, o ensino da doutrina cristã, alguns atos litúrgicos e a cura de almas. Em virtude desta missão, os leigos cam plenamente sujeitos à superior direção eclesiástica, no que diz respeito ao desempenho desse encargo. Quanto às obras e instituições da ordem temporal, pertence à hierarquia eclesiástica ensinar e interpretar autenticamente os princípios morais que se devem aplicar nos assuntos temporais. Compete-lhe igualmente julgar, depois de bem considerar todas as coisas, e servindo-se do auxílio dos peritos, da conformidade de tais obras e instituições com os princípios morais, e determinar o que for necessário para conservar e promover os bens de ordem sobrenatural.

b) Ajuda que o clero deve prestar ao apostolado dos leigos 677. 25. Tanto os bispos como os párocos e demais sacerdotes de ambos os cleros devem ter presente que o direito e dever de exercer o apostolado são comuns a todos os éis, clérigos e leigos, e que também estes últimos têm um papel a desempenhar na edi cação da Igreja. Tratem, pois, fraternalmente com os leigos na Igreja e para a Igreja, e tenham deles cuidado especial nas suas obras apostólicas. Para ajudar os leigos nas suas diversas formas de apostolado, escolham-se diligentemente sacerdotes idôneos e bem formados. Os que se consagram a este ministério, por missão recebida da hierarquia, representam-na na sua ação pastoral. Fomentem, pois, as convenientes relações dos leigos com a mesma, permanecendo sempre éis ao espírito e à doutrina da Igreja. Dediquem-se a fomentar a vida espiritual e o sentido apostólico das associações católicas que lhes foram con adas. Assistam com prudente conselho as suas atividades apostólicas e favoreçam as suas iniciativas. Investiguem atentamente por meio do diálogo contínuo com os leigos quais as formas de tornar mais frutuosa a sua ação apostólica; e promovam o espírito de união dentro da mesma associação, e desta com as demais. Finalmente, os religiosos e as religiosas tenham em apreço as obras apostólicas dos leigos; consagrem-se de boa vontade a promover as obras destes, segundo o espírito e normas dos próprios institutos; e procurem apoiar, auxiliar, e completar as funções sacerdotais.

c) Organismos de coordenação 678. 26. Enquanto for possível, haja em todas as dioceses conselhos que ajudem a obra apostólica da Igreja, quer no campo da evangelização e santi cação quer no campo caritativo, social e outros, onde os clérigos e os religiosos colaborem dum modo conveniente com os leigos. Tais órgãos poderão servir para coordenar as diversas associações de leigos e suas iniciativas apostólicas, respeitando a índole e a autonomia próprias de cada uma. Se for possível, haja também organismos semelhantes no âmbito paroquial, interparoquial, interdiocesano, bem como no plano nacional ou internacional. Além disso, crie-se junto da Santa Sé algum secretariado especial para ajudar e impulsionar o apostolado dos leigos, como centro que, por meios aptos, forneça informações sobre as várias iniciativas apostólicas dos leigos, se dedique a investigar os problemas atuais neste campo, e preste ajuda com o seu conselho à hierarquia e aos leigos, nas suas obras de apostolado. Neste secretariado deverão participar os diversos movimentos e iniciativas apostólicas de leigos existentes em todo o mundo, colaborando com os leigos também os clérigos e religiosos.

d) Cooperação com os demais cristãos e com os não-cristãos

679. 27. O comum patrimônio evangélico, e o dever comum do testemunho cristão que daí nasce, aconselham e com freqüência exigem a colaboração dos católicos com os outros cristãos. Esta há de exercer-se pelos indivíduos e pelas comunidades, em atuações singulares e em associações, tanto no plano nacional como no internacional. Os valores humanos comuns pedem com freqüência uma cooperação semelhante dos cristãos que procuram ns apostólicos com outros que, embora não professem a religião cristã, reconhecem, contudo, esses valores. Por meio desta cooperação dinâmica e prudente, de grande importância nas atividades temporais, dão os leigos testemunho de Cristo, salvador do mundo, e da unidade da família humana.

Artigo 6 — Formação para o apostolado leigo Depois de ter exposto de maneira tão completa e detalhada as diversas formas individuais e coletivas do apostolado dos leigos, o concílio passa a examinar a importantíssima questão de sua formação para as tarefas apostólicas. Ninguém ignora que a maior ou menor e ciência das tarefas apostólicas sempre dependerá, em grau muito elevado, da maior ou menor formação dos encarregados por realizá-las. Ouçamos em primeiro lugar as próprias palavras do concílio: a) Necessidade de formação para o apostolado 680. 28. A plena e cácia do apostolado só se pode alcançar com uma formação multiforme e integral. Exigem-na tanto o contínuo progresso espiritual e doutrinal do próprio leigo, como as diversas circunstâncias, pessoas e encargos a que a sua atividade se deve acomodar. Esta formação deve se apoiar sobre os fundamentos a rmados e expostos por este sagrado concílio noutros lugares. Além da formação comum a todos os cristãos, não poucas formas de apostolado requerem uma formação peculiar e especí ca, por causa da diversidade de pessoas e circunstâncias.

b) Princípios da formação dos leigos para o apostolado

681. 29. Uma vez que os leigos têm um modo próprio de participar na missão da Igreja, a sua formação apostólica recebe uma característica especial que lhe vem da mesma índole secular própria do laicato e da sua espiritualidade. A preparação para o apostolado supõe uma formação humana completa e adaptada à maneira de ser e às circunstâncias próprias de cada um. Com efeito, o leigo, conhecendo bem o mundo atual, deve ser um membro da sociedade em que vive, e estar ao nível da sua cultura. Antes de tudo, aprenda o leigo a realizar a missão de Cristo e da Igreja, vivendo da fé no mistério divino da Criação e da Redenção, guiado pelo Espírito Santo vivi cador do povo de Deus, que impele todos os homens a amar a Deus Pai, e, nele, o mundo e os homens. Esta formação deve ser considerada como fundamento e condição de todo e qualquer apostolado fecundo. Além da formação espiritual, requer-se uma sólida preparação doutrinal, teológica, ética e losó ca, de harmonia com a idade, a condição e a capacidade. Nem se descure de modo algum a importância da cultura geral e da formação prática e técnica. Para cultivar as boas relações humanas, é necessário promover os valores verdadeiramente humanos, a começar pela arte de conviver e cooperar fraternalmente, bem como a de estabelecer diálogo com os outros. Visto que a formação para o apostolado não pode consistir unicamente na instrução teórica, devem ir aprendendo gradual e prudentemente, desde o começo da formação, a ver, julgar e realizar todas as coisas à luz da fé, a formar-se e aperfeiçoar-se com os outros por meio da ação, e a entrar assim no serviço ativo da Igreja. Esta formação, que deve aperfeiçoar-se continuamente por causa da crescente maturidade da pessoa humana e em razão da evolução dos problemas, exige um conhecimento cada vez mais profundo e uma ação cada vez mais adaptada. Ao realizar todas estas exigências da formação, devem ter-se sempre em conta a unidade e a integridade da pessoa humana, de tal modo que se ressalve e desenvolva a sua harmonia e equilíbrio. Deste modo, o leigo insere-se profunda e ativamente na própria ordem temporal, assumindo com e ciência a sua parte na solução dos seus problemas; ao mesmo tempo, como membro vivo e testemunha da Igreja, torna-a presente e ativa no meio das coisas temporais.

c) A quem cabe a formação dos outros para o apostolado 682. 30. A formação para o apostolado deve começar desde os princípios da educação infantil. Sejam, porém, iniciados no apostolado e imbuídos deste espírito particularmente os adolescentes e os jovens. Esta formação deve ser aperfeiçoada durante toda a vida, de acordo com as exigências dos encargos assumidos. É evidente, portanto, que aqueles a quem compete educar cristãmente têm igualmente o dever de formar em ordem ao apostolado. Aos pais corresponde preparar os lhos, desde a infância, para conhecerem o amor de Deus por todos os homens, e ir-lhes inculcando pouco a pouco, sobretudo com o

exemplo, a preocupação pelas necessidades materiais e espirituais do próximo. Que toda a família se torne, pois, na sua vida íntima, como que um estágio para o apostolado. Além disso, as crianças devem ser educadas de tal modo que, transcendendo os limites da família, se abram tanto às comunidades eclesiais como às civis. Sejam de tal modo integradas na comunidade local da paróquia, que nela possam tomar consciência da sua qualidade de membros vivos e ativos do povo de Deus. Os sacerdotes, porém, na catequese e na pregação, na direção espiritual, bem como em outras atividades pastorais, tenham em conta a formação em ordem ao apostolado. Compete também às escolas, colégios e outras instituições católicas destinadas à formação, fomentar nos jovens o sentido católico e a ação apostólica. No caso de faltar esta formação, quer porque os jovens não freqüentem essas escolas, quer por outra causa, então cuidem mais dela os pais, os pastores de almas e as associações apostólicas. Os professores, porém, e os educadores, que, por vocação e ofício, exercem uma forma superior de apostolado dos leigos, estejam impregnados da ciência necessária e das técnicas pedagógicas para poder realizar e cazmente essa educação. Do mesmo modo, os grupos e as associações de leigos, quer se dediquem ao apostolado, quer a outros ns sobrenaturais, devem fomentar com diligência e assiduidade a formação para o apostolado, segundo seu próprio m e suas modalidades. São eles, muitas vezes, o caminho ordinário duma preparação conveniente em ordem ao apostolado. Com efeito, neles se realiza uma formação doutrinal, espiritual e prática. Os seus membros, constituindo pequenos grupos com os companheiros e amigos, consideram os métodos e os frutos da sua atividade apostólica, e confrontam com o Evangelho a sua vida cotidiana. Deve-se orientar esta formação de modo a se ter em conta todo o apostolado dos leigos, que deverá ser exercido não só entre os grupos das associações, mas também em todas as circunstâncias, ao longo de toda a vida, sobretudo pro ssional e social. Mais ainda: cada um deve se preparar ativamente para o apostolado, o que se torna mais urgente na idade adulta. Com efeito, à medida que se avança na idade, a alma de cada um se revela mais, e assim se pode descobrir melhor os talentos com que Deus a enriqueceu, e exercitar mais e cazmente os carismas que lhe foram dados pelo Espírito Santo para o bem dos seus irmãos.

d) Adaptação da formação às diversas formas de apostolado 683. 31. As diversas formas de apostolado exigem também uma preparação particularmente adequada. a) Quanto ao apostolado em ordem à evangelização e santi cação dos homens, devem os leigos receber uma formação especial para estabelecerem o diálogo com os outros, quer crentes quer não-crentes, e comunicarem a todos a mensagem de Cristo. Como, porém, em nossos dias se vão espalhando largamente por toda a parte várias formas de materialismo, até mesmo entre os católicos, convém que os leigos não só aprendam com maior diligência a doutrina católica, especialmente aqueles pontos que são objeto de controvérsia, mas também dêem testemunho de vida evangélica contra

qualquer forma de materialismo. b) Quanto à edi cação cristã da ordem temporal, sejam os leigos bem instruídos sobre o verdadeiro signi cado e o valor dos bens temporais, quer em si mesmos considerados, quer no que diz respeito a todos os ns da pessoa humana. Exercitem-se no reto uso das coisas e na organização das instituições, atendendo sempre ao bem comum segundo os princípios da doutrina moral e social da Igreja. Aprendam os leigos, antes de mais, os princípios da doutrina social e as suas conclusões, de modo a tornarem-se aptos quer para prestarem o seu contributo ao progresso da doutrina, quer para aplicá-los convenientemente aos casos particulares. c) Visto que as obras de caridade e misericórdia dão um esplêndido testemunho de vida cristã, deve também a formação apostólica levar ao seu exercício, para que os éis aprendam, desde a infância, a compadecer-se dos pobres e necessitados e a ajudá-los com generosidade.

e) Meios de formação 684. 32. Para os leigos consagrados ao apostolado, existem já muitos meios — por exemplo, sessões, congressos, retiros, exercícios espirituais, reuniões freqüentes, conferências, livros, revistas — para se conseguir um mais perfeito conhecimento da Sagrada Escritura e da doutrina católica, para alimentar a vida espiritual e ainda para conhecer o estado do mundo e para encontrar e cultivar os métodos mais adequados. Estes meios de formação têm em conta o caráter das diferentes formas de apostolado nos ambientes em que este se desenvolve. Para este m foram também criados centros ou institutos superiores que já produziram ótimos frutos. O sagrado concílio alegra-se com essas iniciativas, já orescentes em algumas partes, e deseja que se promovam noutros lugares onde forem necessárias. Criem-se, além disso, centros de documentação e de estudo não só de teologia, mas também de antropologia, psicologia, sociologia e metodologia, para fomentar cada dia mais as qualidades dos leigos, homens e mulheres, jovens e adultos, em todos os campos do apostolado.

Exortação nal 685. 33. Por isso, o sagrado concílio pede instantemente no Senhor a todos os leigos que respondam com decisão de vontade, ânimo generoso e disponibilidade de coração à voz de Cristo, que nesta hora os convida com maior insistência, e ao impulso do Espírito Santo. Os jovens tomem como dirigido a si de modo particular este chamado, e recebam-no com alegria e magnanimidade. Com efeito, é o próprio Senhor que, por meio deste sagrado concílio, mais uma vez convida todos os leigos a que se unam a Ele cada vez mais intimamente, e, sentindo como próprio o que é dele (cf. Fl 2, 5), se associem à sua missão salvadora.

É

É Ele quem de novo os envia a todas as cidades e lugares aonde há de chegar (cf. Lc 10, 1), para que, nas diversas formas e modalidades do apostolado único da Igreja, se tornem verdadeiros cooperadores de Cristo, trabalhando sempre na obra do Senhor com plena consciência de que n’Ele o seu trabalho não é em vão (cf. 1Cor 15, 28).

686. E aqui termina o magní co documento conciliar que constitui, em de nitivo, a “carta magna” do apostolado dos leigos. Quisemos transcrevê-lo integralmente para que sirva de contínua e saborosa meditação para os leigos que sentem repercutir em suas almas a inquietude apostólica da Igreja. Jamais se esqueçam de que sobre eles pesa uma gravíssima responsabilidade, da qual terão de dar estrita conta a Deus. O próprio concílio, em outro importantíssimo documento — a Constituição Dogmática sobre a Igreja, nº 33 —, assim se expressa ao se dirigir aos leigos: Unidos no povo de Deus, e constituídos no Corpo único de Cristo sob uma só Cabeça, todos os leigos, sejam quais forem, são chamados a concorrer como membros vivos, com todas as forças que receberam da bondade do Criador e por graça do Redentor, para o crescimento da Igreja e sua contínua santi cação. O apostolado dos leigos é participação na própria missão salvadora da Igreja, e para ele todos são destinados pelo Senhor, por meio do Batismo e da Con rmação. E os sacramentos, sobretudo a Sagrada Eucaristia, comunicam e alimentam aquele amor para com Deus e para com os homens, que é a alma de todo o apostolado. Mas os leigos são especialmente chamados a tornarem a Igreja presente e ativa naqueles locais e circunstâncias em que só por meio deles ela pode ser o sal da terra. Deste modo, todo e qualquer leigo, pelos dons que lhe foram concedidos, é ao mesmo tempo testemunha e instrumento vivo da missão da própria Igreja, “segundo a medida concedida por Cristo” (Ef 4, 7).

Como complemento da magní ca doutrina conciliar sobre o apostolado dos leigos, e com o m de ajudá-los a desempenhar com a maior e cácia possível a sua elevadíssima missão apostólica — que coincide com a missão salví ca da própria Igreja, como acaba de nos recordar o concílio —, vamos acrescentar dois artigos nais sobre os principais meios que irá utilizar o apóstolo de Cristo para obter o máximo rendimento de suas tarefas apostólicas, e sobre a tática ou estratégia que desenvolverá com essa mesma nalidade.615

Artigo 7 — Meios fundamentais do apostolado leigo São cinco os principais meios que o apóstolo pode utilizar no exercício de sua elevadíssima missão: a oração, o exemplo, o sacrifício, a caridade e a palavra. Todos eles estão ao alcance de todos, e não há ninguém que não possa praticá-los em maior ou menor escala. Não se requer ter recebido o sacramento da Ordem para nenhum deles, a não ser o anúncio o cial da palavra de Deus, a partir do púlpito, em nome e por encargo da Igreja. Vamos expor brevemente cada um desses meios. 1. A oração 687. O apostolado da oração é o mais importante e o mais fecundo de todos. Ouçamos ao Monsenhor Civardi expondo admiravelmente esta doutrina:616 A oração é a arma mais poderosa, e é indispensável para toda vitória. Todas as demais armas encontram sua solidez e seu vigor na oração. Já se disse que o apóstolo de Cristo vence suas batalhas também de joelhos. Nós, porém, dizemos: especialmente de joelhos. Antes de ressuscitar Lázaro, Nosso Senhor ergue os olhos ao céu e roga ao Pai. A ressurreição de uma alma é uma tarefa mais difícil que a ressurreição de um corpo. Como poderemos cumpri-la sem o auxílio de Deus? E como pretender este auxílio se não o pedimos? E é também Jesus quem nos ensina: “Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o atrair”. A conversão das almas é, pois, obra da graça. O apóstolo não é mais que o instrumento de que se serve a mão do Artí ce divino. Que pode fazer uma serra suspensa na parede se o carpinteiro não a maneja? O apóstolo é como o agricultor que abre o sulco e lança a semente. Isto é muito, mas não basta. Para que a semente se abra, germine e fruti que, é necessário que, ao suor caído da testa do lavrador, se misture o orvalho que vem do céu.

Por isso, ao empreenderes esta árdua tarefa da conversão de uma alma, o primeiro meio ao qual recorrerás é exatamente este: a oração, que obterá para ti a aliança do céu. Antes de falar de Deus a uma alma, falarás da alma a Deus. A oração é uma arma poderosa, ou melhor, onipotente. Acaso a oração não invoca a onipotência de Deus em auxílio do apóstolo? Este pode muito bem repetir com São Paulo: “Tudo posso n’Aquele que me fortalece”. Santa Teresa de Jesus, brincando com seu nome, dizia: “Teresa sem Jesus não é nada; com Jesus, é tudo”. Somente no céu nos será permitido contar as almas que foram salvas pela oração. Há razão para crer que a conversão de Paulo foi impetrada pelas preces de Estêvão agonizante. E é certo que as orações de Clotilde obtiveram a conversão de Clodoveu, rei dos francos, assim como as orações e as lágrimas de Mônica deram à Igreja um Agostinho. Este último fato é testemunhado pelo próprio Agostinho em suas Con ssões. “Ó Senhor”, exclama ele, “as lágrimas de minha mãe, com as quais ela te pedia, não ouro nem prata, nem nada mutável ou decíduo, mas a alma de teu lho; tu, que a tinhas feito tão amante, como podias desprezá-las e repeli-las sem socorro?”. Acrescente-se que a arma da oração pode ser usada sempre e por todos, mesmo quando as outras armas chegarem a faltar. “Nem todos os apostolados são para todos”, disse Pio , “e onde falta a possibilidade, cessa o dever. Mas todos podem exercer o apostolado da oração, porque todos podem orar”.

Existe outra razão poderosa para que o apóstolo de Cristo recorra com freqüência à oração: a necessidade imprescindível de santi car-se a si mesmo para ser útil aos outros. Sobre isto, ouçamos um celebrado autor contemporâneo:617 A ação apostólica começará em Deus, e a contemplação será seu dinamismo propulsor. De outro modo, a adaptação se perderá na ilusão. Uma das formas mais sutis deste equívoco reside, assim o tememos, naquilo que foi chamado de oração da ação. Por ela se pretende que o apóstolo moderno, sacerdote ou leigo, premido pelo trabalho, faça de seu próprio trabalho uma oração. Ele não empreende unicamente para a glória de Deus? Assim Santa Teresa, sem se afastar um só instante da contemplação, realiza a gigantesca obra de suas Fundações, executando a vontade divina com a qual estava identi cada. Se a oração da ação é esta suprema transformação, não podemos deixar de admirar essa autêntica maravilha. Mas, ai! Há mais de uma pessoa que experimentou o método preconizado, e ainda está muito longe da sétima morada da santa carmelita. Por outro

lado, ela mesma só foi admitida aos esponsais místicos em razão de sua inquebrantável delidade à oração contemplativa. Então se dirá: a intenção santi ca a obra exterior e a caridade lhe infunde um valor transcendente. É verdade, mas para que ela seja oração, exige-se outra coisa a mais. O espírito deve car livre durante o trabalho para conceder um mínimo de atenção ao próprio Senhor e não se entregar totalmente à ocupação empreendida para sua glória. Do contrário, sem dúvida será executada uma atividade eminentemente meritória, mas não uma verdadeira oração. Esta é assim de nida: uma elevação da alma para Deus, ou, segundo Santo Agostinho, a ectuosa attentio ad Deum. Que seja chamado de oração o trabalho realizado no recolhimento de uma igreja, com alma suplicante; mas a agitação da vida moderna impede exatamente essa xação da alma nas realidades superiores, salvo naqueles que passaram pelo rude ascetismo de uma assídua contemplação, na qual adquirem sua têmpera diariamente. A ação não substitui a oração. Quanto mais esmagadores sejam os seus fardos, mais necessidade tem o apóstolo moderno da oração, se não quer ver-se arrastado pela corrente. A febre das obras pode causar uma vertigem. Para a maior parte das pessoas, a oração da ação tem o perigo de fazer com que se perca a oração e a ação, para deixar somente uma agitação, às vezes embriagadora, mas sempre improdutiva. Se este perigo espreita sacerdotes e religiosos, que poderemos dizer dos leigos? Se estes desejam conservar o pensamento em Deus no meio da agitação, não podem descuidar de, como dizem os Salmos, buscar a Sua face na contemplação.

2. O exemplo 688. Depois da oração, não existe instrumento de apostolado mais e caz que o bom exemplo, ou seja, o espetáculo de uma conduta irrepreensível e jamais desmentida. Hoje em dia, o mero apostolado da palavra está muito desacreditado. Falar é fácil. Praticar seriamente aquilo que se diz ou se crê, sem dúvida é muito mais interessante. Em certos ambientes já não se aceita outra mensagem que não seja a do próprio testemunho (le témoignage, dizem os franceses). Foi exatamente isto que moveu um setor do clero francês — dirigido pela hierarquia — a ensaiar o duro apostolado dos padres operários, que, no entanto, a mesma hierarquia julgou prudente suspender em vista dos grandes inconvenientes que apresentou, na

prática, aquela arriscada modalidade apostólica. Hoje em dia, ela foi retomada sob uma forma mais apta e conveniente. Na Sagrada Escritura, o apostolado do bom exemplo nos é proposto insistentemente: “Brilhe vossa luz diante dos homens para que, vendo vossas boas obras, glori quem a vosso Pai, que está nos céus” (Mt 5, 16). “Trabalhemos pela paz e por nossa mútua edi cação” (Rm 14, 19). “Serve de exemplo aos castidade” (1Tm 4, 12).

éis na palavra, na conversação, na caridade, na fé, na

“Mostra-te em tudo um exemplo de boas obras, de integridade na doutrina, de gravidade, de palavra sadia e irrepreensível, para que os adversários sejam confundidos, não tendo nada de mau para dizer de nós” (Tt 2, 7–8).

O exemplo convence mais que os longos discursos. As palavras podem mover, mas só os exemplos arrastam. “Este poder psicológico do exemplo”, escreve Civardi618 a este propósito, está fundamentado em leis bem determinadas, que temos o prazer de recordar. A primeira lei é que a verdade entra em nossa mente pela porta dos sentidos. Por isso os dados sensíveis exercem sobre nosso espírito uma força maior do que as verdades abstratas e os raciocínios, mesmo aqueles bem elaborados. Ora, o exemplo torna sensível a verdade, que de certo modo se encarna na pessoa e nos fatos. Devemos acrescentar que o exemplo fala ao sentido mais vivo e impressionável: a visão. Não é por essa razão que a pedagogia exalta o método intuitivo? E o exemplo é uma admirável lição intuitiva. Outra razão psicológica se origina de nosso instinto de imitação. Assim como se boceja ao ver outra pessoa bocejar, assim também, como que movidos por um mecanismo interno invisível, executa-se uma ação, boa ou má, que vemos ser feita por outrem. Não se fala do contágio do exemplo? Parece-nos também de muito peso a razão seguinte: o exemplo é a linguagem muda de uma pessoa convicta. A convicção gera a convicção, da mesma maneira que lágrimas arrancam lágrimas. Finalmente, o exemplo é como um convite suave, uma exortação serena que se dirige espontaneamente aos outros sem se erigir em mestres ou juízes, sem ofender nenhuma susceptibilidade, e deixando intacta aquela liberdade que todos tanto amamos.

Assim como o escândalo ou o mau exemplo representam a força destruidora mais temível que podem utilizar os agentes de Satanás, não existe nada na linha do bem que se possa comparar à e cácia construtiva de um bom exemplo. “É inútil que procureis afastarme da Igreja”, dizia um operário católico a seus companheiros de trabalho que tentavam pervertê-lo; “para crer na verdade da religião católica, basta-me ver o Monsenhor de Ségur celebrar a Santa Missa”. Como é grande a e cácia de um bom exemplo! 3. O sacrifício 689. Outro meio importantíssimo de exercer o apostolado consiste em oferecer a Deus, com esta nalidade, as dores que venham ao nosso encontro sem que as busquemos (enfermidades, frio, calor, incômodos, etc.) e os sacrifícios que voluntariamente nos imponhamos. O Pe. Didon escreveu que “a maior das forças é um coração imolado que ama e sofre diante de Deus”. A fortaleza in nita de Deus é débil e impotente perante o sofrimento oferecido por amor. Deus não resiste à dor, sobretudo quando esta chega à generosidade do heroísmo. Ouçamos um caso impressionante relatado pelo Pe. Baeteman:619 Jesus nos salvou pela Cruz; somente sofrendo nós chegaremos a ser salvadores. Sofrer por alguém é resgatá-lo, é salvá-lo. A dor faz brotar instintivamente a oração de sua alma e as lágrimas de seus olhos. As lágrimas são o sangue do coração, sangue que também é redentor. Um ímpio havia consentido em levar a Lourdes uma menina pequena que estava com os membros sem movimento, dizendo previamente: “Se eu a vir curada, se a vir erguer-se, eu me converterei. Mas isso não acontecerá. Eu não creio!”. Enquanto a menina estava na piscina, o Pe. Bailly, avisado por um sacerdote, exclamou: “Meus irmãos, existe entre vós alguém que queira oferecer-se em sacrifício pela salvação de uma alma que se nega a converter-se? Há, entre os enfermos que aqui estão, um só que consinta em oferecer o sacrifício de continuar enfermo até sua morte pela conversão desse ímpio?”. Em meio ao profundo silêncio que reinava, um pobre enfermo, apoiado em suas muletas, exclamou: “Eu!”. Ao mesmo tempo, certa mãe que estava ao lado da grade e há três anos levava até Lourdes o seu lho surdo-mudo, pegou-o e apresentou-o ao padre, dizendo entre

soluços: “Tomai o meu lho e oferecei-o a Maria pela conversão do pobre infeliz”. No mesmo instante, a pequena paralítica saía curada da piscina, e o ímpio, ao vê-la, caía de joelhos, exclamando: “Meu Deus, perdão; eu creio!”. O sacrifício havia subido ao céu e imediatamente tinha descido a graça.

A razão da e cácia soberana do sacrifício como instrumento de apostolado está na compensação que com ele é oferecida à justiça divina pela desordem do pecado próprio ou alheio. Com efeito, é um fato que todo pecado traz consigo um prazer desordenado, um gosto ou satisfação que o pecador assume contra a lei de Deus. Se o pecado produzisse uma dor em vez de proporcionar um prazer, ninguém pecaria. É muito justo, pois, que o desequilíbrio estabelecido entre o pecador e Deus pelo prazer do pecado, tenha de voltar à sua posição normal pelo peso de uma dor depositada no outro prato da balança. E quando não se trata de expiar os próprios pecados, mas de converter um pecador, a solidariedade em Cristo de todos os homens redimidos com seu precioso sangue faz com que um de seus membros em potência se bene cie com a dor de outro de seus membros em ato, e o milagre da conversão se realiza de maneira tão admirável como ordinária e normal, dentro dos planos da amorosíssima providência de Deus. Quando tudo fracassou, ainda resta o recurso de nitivo à oração e à dor na sublime tarefa da conversão dos pecadores. 4. A caridade 690. Outro dos meios de apostolado mais e cazes é a prática visceral da caridade fraterna. Existem espíritos perversos que se negam obstinadamente a render-se diante da Verdade, ainda que esta se mostre radiante perante seus olhos; mas esses mesmos obstinados se dobram facilmente diante do amor. A caridade, quando profunda e autêntica, possui uma força irresistível. Poderíamos citar uma longa série de impressionantes exemplos. O Divino Mestre conhecia muito bem a soberana e cácia da caridade no exercício do apostolado. Instruindo seus discípulos

sobre a maneira de exercê-lo, dizia-lhes: “Em qualquer cidade onde entrardes [...] curai os enfermos que nela houver, e dizei-lhe: o reino de Deus está perto de vós” (Lc 10, 8–9). Primeiro curar (caridade corporal) e depois pregar o Evangelho (caridade espiritual). Conquistado o coração pela prática da caridade, é tarefa fácil conquistar a inteligência com os resplendores da verdade. Com freqüência — de fato — o obstáculo insuperável para a aceitação da verdade não está na inteligência, mas nas más disposições do coração. A este é preciso conquistar previamente se queremos in uir decisivamente naquela. Mas não basta dar. É preciso dar-se, a exemplo do Divino Mestre. “Cristo nos amou”, escreve São Paulo “e se entregou por nós em oblação e sacrifício de suave odor a Deus” (Ef 5, 2). Nenhum cristão chegou à perfeição na prática do apostolado se não está disposto — ao menos na preparação sincera de sua alma — a dar a vida pela salvação de seus irmãos. E isto, a nal de contas, mesmo sendo heróico, não seria senão uma pobre imitação da conduta de seu Mestre, o Bom Pastor que sacri cou sua vida por suas ovelhas (cf. Jo 10, 11). Hoje, mais do que nunca, impõe-se a prática visceral da caridade no exercício do apostolado. O mundo, enganado e escaldado por tantos sistemas políticos e falsos redentores, que lhe prometem um paraíso de felicidade que nunca chega de fato, perdeu a fé nas palavras. Ele exige fatos para se deixar convencer. “O mundo moderno”, escreve Civardi620 a este propósito, cético e cheio de aberrações, já não compreende, ou não quer ouvir mais, a linguagem da teologia e da loso a cristãs; mas, para nossa sorte, ainda escuta com gosto e entende a palavra da caridade. Falemos-lhe, pois, com esta suave e insinuante linguagem, que tão bem sabiam falar os primeiros cristãos, ainda debaixo do encantador exemplo de Cristo. Ponhamos a fé sob o escudo da caridade. Demos crédito a esta fé com a prática da caridade, que é como que o selo da mão de Deus.

5. A palavra falada e escrita

691. Embora sua e cácia seja menor que a de qualquer outro meio de apostolado, não podemos abrir mão inteiramente do apostolado da palavra, ao menos como elemento complementar dos procedimentos que acabamos de recordar. Jesus Cristo pregou com a palavra e com o exemplo: “Fez e ensinou (At 1, 1), e enviou seus discípulos a pregar o Evangelho por todo o mundo” (cf. Mc 16, 15). Para isto não se requerem as condições excepcionais de um orador, nem missão o cial alguma. Nem todos os éis podem ocupar o púlpito ou a tribuna para anunciar o cialmente o Evangelho do Senhor. Mas todos podem exercer de mil variadas formas o apostolado da palavra no próprio ambiente. Uma palavrinha amável, um bom conselho acompanhado de um pequeno serviço, uma carinhosa correção, uma exortação cheia de naturalidade e simplicidade, uma longa conversa sobre temas que nos interessem, mas que afetam profundamente o nosso interlocutor, etc., podem representar, e com freqüência representam, um esplêndido apostolado sobre as almas de nossos semelhantes. Também a palavra escrita é excelente meio de apostolado. Uma carta carinhosa e oportuna, um bom livro que se empresta, um jornal católico, um folheto, etc., podem levar uma mensagem de luz e de amor a uma alma extraviada ou a ponto de extraviar-se pelos caminhos do mal. O zelo apostólico é muito engenhoso para encontrar em cada caso o mais e ciente e oportuno que se deve oferecer a uma alma para levá-la a Deus.

Artigo 8 — Tática ou estratégia do apóstolo leigo

Na arte militar, o êxito ou o fracasso de uma batalha depende decisivamente da tática ou estratégia desenvolvida por aquele que dirige o combate. O apostolado é uma batalha pelo divino, que também exige uma tática e uma estratégia divinas se queremos coroar-nos com os louros da vitória. Resumimos brevemente, a seguir, os pontos fundamentais dessa tática divina.621 1. Convencer 692. Antes de tudo, é preciso ter em conta que nosso apostolado deve ser exercido ou recair sobre seres racionais. Isto quer dizer que devemos dirigir-nos, antes de tudo, à sua inteligência por via de persuasão ou de convencimento. Pode-se dobrar um homem pela força do corpo, mas jamais conseguiremos dobrar sua alma, a não ser com base em procedimentos racionais. É preciso evitar a todo custo tudo que possa representar uma coação, não só de ordem física, como é evidente, mas inclusive de tipo moral: ameaça de um castigo, promessa de um prêmio, favores ou vantagens, etc. “Nem atemorizar, nem seduzir, mas persuadir, convencer. Esta é a primeira lei do apostolado” (Civardi). Para conseguir esse convencimento, empregaremos todos os procedimentos lícitos que estejam ao nosso alcance, mas jamais recorreremos ao engano ou à calúnia contra nossos adversários. A verdade se defende por si mesma e acaba sempre por impor-se, cedo ou tarde, sem descer a procedimentos ignóbeis. Não se pode fazer um mal para que aconteça um bem, seja qual for a importância e a magnitude desse bem. Deus respeita nossa liberdade, e só aceita as homenagens que nós queiramos tributarlhe espontânea e voluntariamente, e não aquelas que poderia arrancar de nós a coação puramente externa de uma lei cujo cumprimento não brotasse do mais profundo de nosso coração (cf. Is 29, 13).

Convencer com base na exposição honrada e sincera da verdade: esta deve ser a primeira preocupação do apóstolo no exercício de sua elevadíssima missão. Para isso serão extremamente úteis os conselhos restantes que daremos em seguida. 2. Escolher o momento oportuno 693. Há momentos na vida do homem em que, por estar com o espírito inquieto e perturbado por lembranças ingratas, ou com o coração violentamente agitado pela rebeldia das paixões, ele não esteja apto a receber a bené ca in uência de um apóstolo. Sua atuação nestas circunstâncias seria inteiramente contraproducente e poderia piorar a situação em grande escala. É preciso saber esperar. É preciso que o ânimo da pessoa a quem queremos fazer o bem esteja de todo tranqüilo e sossegado. E mais: é preciso saber escolher o momento mais oportuno, dentro dessa etapa de serenidade, para obter de nossa ação apostólica o máximo rendimento em benefício do próximo. A prudência sobrenatural, aliada à caridade mais especial, nos ditará em cada caso aquilo que convém fazer. Cada alma tem seus momentos, que é mister aproveitar. “De tais momentos”, escreve Civardi,622 aproveitam-se os malandros, os malvados, para arrancar talvez concessões iníquas. Por que não os aproveitaremos também nós para obter de uma alma, de maneira respeitosa, uma decisão saudável? Há poucos anos, morria em Turim um ótimo jovem, membro da Juventude da Ação Católica, o qual havia rezado e atuado muito pela conversão de seu pai, de religião judaica. Seu grande desejo ainda não se realizara quando ele estava a ponto de deixar a terra. Voltou-se, então, para seu pai que, com lágrimas nos olhos, estava junto dele, e com um o de voz lhe sussurrou: “Papai, promete-me que te converterás, que te farás católico. Do contrário não nos veremos mais, nem mesmo no paraíso...”. O pai abraça o lho, beija-o e, soluçando, diz: “Sim; eu te prometo aqui, diante do sacerdote; eu também serei um bom católico”. A promessa foi cumprida. Poucos momentos são tão favoráveis como este, em que um lho agonizante pede a seu pai, como graça suprema, a conversão. Entretanto, não escaparão ao olhar experiente e ao coração aberto do apóstolo outras horas propícias para triunfar de uma vontade recalcitrante.

3. Criar a ocasião 694. Às vezes, entretanto, será preciso ser engenhoso para criar a oportunidade de poder exercer o apostolado. Existem almas tão fechadas que nunca se abrem por si mesmas. Nestas circunstâncias, o apóstolo não tem outro recurso, senão o de criar uma ocasião para se insinuar com discrição e prudência naquele espaço fechado, com o m de exercer sobre ele uma in uência bené ca. É admirável, a este propósito, o diálogo do Salvador do mundo com a mulher samaritana. Ele começa com um pedido neutro: “Dá-me de beber” (Jo 4, 7). A seguir, fala a ela sobre uma “água que jorra até a vida eterna” (v. 14), para despertar nela a sede de bebê-la (v. 15). Depois, revela-lhe os segredos de sua alma (v. 18) e, nalmente, sua condição de Messias (v. 26). Por m, acaba convertendo-a em um apóstolo do Evangelho (v. 28–29). Ouçamos de novo ao Monsenhor Civardi: Talvez certas derrotas do apostolado individual sejam devidas simplesmente à falta de tato, a um zelo indiscreto ou imprudente que não sabe preparar habilmente o terreno para lançar a boa semente. Se tu, por exemplo, no meio de uma conversa profana (suponhamos, em uma partida de futebol) diriges bruscamente ao interlocutor estas palavras: “Meu amigo, é hora de colocares em ordem as partidas de tua alma”, muito provavelmente ouvirás uma resposta como esta: “Sou o único responsável pela minha alma, e te peço que não te encarregues dela”. Na realidade, seguiste uma tática equivocada. Não se pode falar a uma alma sobre seus interesses mais delicados assim de supetão, de improviso, em um ataque frontal. É necessário que o discurso deslise naturalmente, sem violências, pela lógica de idéias e acontecimentos. E para prepará-lo desta maneira, pouco a pouco, talvez seja oportuno variar a posição, adotando uma hábil tática envolvente. “É necessário”, escreve o Pe. Plus, “saber falar por um momento de coisas inúteis para conseguir dizer, no momento oportuno, aquilo que o interlocutor precisava ouvir e não se atrevia”. A ocasião pode ser criada não só com as palavras, mas também com as coisas, com os fatos.

Um estudante universitário, membro de uma associação católica, vai encontrar-se com um colega de estudos, católico não-praticante. Ao entrar no salão, deixa um livro sobre a mesa, como para desocupar suas mãos. O companheiro, instintivamente, pega o livro, lê o título: Pier Giorgio Frassati. Pede explicações, que lhe são dadas de boa vontade. E ainda mais: para satisfazer plenamente a curiosidade oferecido como presente (era a primeira etapa à qual daquelas páginas biográ cas permite, mais adiante, encontros, de novas trocas de idéias, de discussões companheiro.

do interlocutor, o livro lhe é se queria chegar). A leitura a oportunidade de outros que levam à conquista do

Uma emboscada? Pode ser. Mas é um daqueles piedosos laços da caridade estendidos não para prender, mas para oferecer; não para arruinar, mas para salvar.

4. Bater no ponto fraco 695. Todos os homens têm sua fraqueza, seu ponto fraco, ou seja, um determinado aspecto de sua psicologia facilmente vulnerável por qualquer agente que saiba abordá-lo com habilidade. Em alguns, esse ponto fraco é a ambição — sacri cam tudo por ela —, em outros é o amor à família (mãe, esposa, lhos) ou a ciência, o negócio, a fama, etc. Não existe nenhuma paixão humana que, retamente canalizada, não se possa colocar a serviço do bem. Francisco Xavier, estudante em Paris, estava dominado pela ambição e pelo desejo de honrarias. Inácio de Loyola soube canalizar aquela corrente impetuosa para a mais nobre das ambições e a maior das honras: conquistar o mundo para Cristo, e a santidade para si. Em certos povoados da Andaluzia, às vezes se desencadeia uma batalha campal entre alguns vizinhos. É inútil tentar estabelecer a paz com arrazoados ou com base no poder coercitivo da autoridade: ninguém faz caso disso. Mas há um procedimento infalível para terminar a contenda instantaneamente: “Pela Virgem do Rocio ou pelo Cristo do Grande Poder!”. No ato, todos se abraçam com lágrimas nos olhos. Todo homem tem sua Virgem do Rocio ou seu Cristo do Grande Poder. Em muitos,

infelizmente, seu ponto vulnerável nada tem de sobrenatural, mas tampouco de pecaminoso: a promessa que zeram à sua mãe moribunda, o futuro de uma lhinha, a saúde de um ser querido... É preciso saber explorar esses nobres sentimentos, mesmo que sejam de ordem puramente natural, para levar um extraviado ao bom caminho. “A este propósito”, escreve Civardi,623 conheci um senhor que se declarava incrédulo e, no entanto, assistia regularmente à Missa em todas as festas. De onde vinha tal incoerência? De seu profundo amor lial. A piedosa mãe, no leito de morte, havia-lhe suplicado que voltasse às práticas religiosas de sua juventude, ao menos à Missa festiva. E ele o havia prometido. Por isso, e somente por isso, ele ia à igreja em todas as festas. Quando lembrava a súplica materna, seus olhos se enchiam de lágrimas e se lamentava por ter perdido a fé de sua amada mãe. Mas este seu culto materno foi o o providencial com que, certo dia, uma piedosa pessoa pôde devolvê-lo inteiramente a Deus.

5. Nada de sermões 696. Não há nada que cause tanta rejeição quanto o ar magistral daquele que tenta nos ensinar alguma coisa sem o título e a categoria de mestre. Ninguém gosta de se sentir humilhado por qualquer um que se apresente com ares de pretensa superioridade, sem habilitação alguma para isso. Com tal procedimento, não somente a pessoa se torna antipática, mas também a doutrina que ela tenta inculcar. Ouçamos de novo a Civardi, que expõe este assunto:624 As práticas que Dona Praxedes temperava para a pobre Lúcia com o m de arrancar-lhe do coração aquele salafrário do Renzo obtinham o efeito contrário. E assim é, mais ou menos, o efeito de todos os sermões pregados fora de seu lugar natural: o púlpito. Queres falar de Deus a uma alma? Não subas na cátedra, não assumas ares de doutor! Tu te tornarias antipático, bem como tuas palavras e mesmo o assunto de tua prática. E sequer deves abrir as cataratas de tua eloqüência com longos discursos ou com lições escolásticas. Tornarias a verdade indigesta. Falando sobre a maneira de educar as crianças, um pedagogo francês, Monsenhor Rozier, escreve do modo singular: “Fora com as mães que fazem discursos! A verdade é um licor precioso que se serve em conta-gotas. A porta da alma de uma criança é

semelhante àqueles frascos de perfume com gargalo estreito, que se compram nos bazares de Istambul; se derramais neles dez jarros de água, não conseguireis enchê-los, ao passo que são su cientes umas poucas gotas introduzidas com cuidado”. Este sistema de conta-gotas é aconselhável não só para as crianças, mas também para os adultos em geral. Dizer poucas palavras, no momento exato, da maneira mais simples e espontânea; insinuar um bom conselho em uma conversa, murmurar suave correção ao ouvido sempre que se ofereça uma circunstância favorável: aí está a via ordinária do apostolado individual. Porém, talvez venha a ser preciso ensinar algumas verdades, desenraizar certos erros, vencer certos preconceitos; então não bastarão poucas palavras, ditas ocasionalmente. Mas, nestes casos, procurar-se-á dar às próprias palavras o tom da conversa fraterna, do colóquio amistoso, do debate cordial, sem afetações, sem rebaixar o interlocutor à posição de um discípulo. Sermões, lições, nunca!

6. Saber esperar 697. Uma das tentações que assaltam com maior freqüência o apóstolo é a tentação da pressa. Quanto mais ardente e abrasador seja o seu zelo apostólico, tanto mais aguda se torna esta tentação. Gostaria de converter o mundo em oito dias e devolver uma alma extraviada ao bom caminho na primeira conversa. Em sua boa-fé, não percebe que, assim como a natureza procede gradualmente — natura non facit saltus —, assim também a sublime tarefa da conversão ou aprimoramento de uma alma requer longos esforços e uma constância e tenacidade à prova de todos os obstáculos e contratempos. As conversões instantâneas ou muito rápidas constituem uma rara exceção nas tarefas apostólicas, já que, na realidade, equivalem a verdadeiros milagres. É preciso saber esperar, como o camponês espera meses antes de colher o fruto da semente que ele con antemente lança ao sulco. Deus pode fazer um milagre instantâneo, mas, via de regra, vale-se do lento processo das causas segundas, e só ao cabo de muito tempo se consegue o fruto apetecido.

Também se deve levar em conta o grau de vida espiritual em que se encontra uma alma em determinado momento. Santa Teresa de Jesus, em sua juventude, renunciou à direção espiritual de Gaspar Daza porque este santo clérigo queria fazê-la caminhar depressa demais pelas vias do espírito. São Paulo escreve aos éis de Corinto: “Irmãos, eu não pude falar-vos como a espirituais, mas como a carnais, como a crianças em Cristo. Dei-vos a beber leite, não vos dei comida sólida porque ainda não podíeis aceitá-la” (1Cor 3, 1–2). O próprio Cristo Nosso Senhor disse aos apóstolos na noite da ceia: “Ainda tenho muitas coisas para vos dizer, mas por ora não podeis compreendê-las; quando vier o Espírito da verdade, ele vos guiará até a verdade completa” (Jo 16, 12–13). O apóstolo de Cristo deve saber conciliar o zelo mais ardente com a calma e a serenidade mais absoluta. Trabalhe sem descanso, mas não se precipite. Logo chegará a hora de Deus. 7. Saber compreender 698. São muito poucas as pessoas que sabem compreender os outros no trato com seus semelhantes. Com freqüência julgamos o próximo segundo nossas próprias luzes ou disposições pessoais, o que não deixa de ser uma injustiça. Nem todas as almas possuem a mesma luz e conseguem avaliar do mesmo modo a moralidade de suas próprias ações. No Evangelho, o Senhor nos diz que se pedirá muito a quem muito foi dado, mas não tanto àquele que recebeu menos (cf. Lc 12, 48). Não se pode medir a todos com uma rigorosa igualdade. Quantas vezes ignoramos por completo o verdadeiro motivo das ações de nossos próximos! Interpretamos mal, pela simples aparência, obras feitas com a melhor intenção. Estas falsas interpretações doem muito em nós quando nos afetam, e com freqüência não temos nenhuma di culdade em atribuir ao próximo essas intenções distorcidas.

O Senhor era sumamente manso e compreensivo. Jamais quebrou o caniço rachado, nem apagou a mecha que ainda fumegava (cf. Mt 12, 20). Ele se adaptava maravilhosamente à rudeza de seus apóstolos, à incultura das multidões que o seguiam, ao respeito humano de Nicodemos, às exigências de quem solicitava seus milagres... Deus é in nito em sua compaixão porque também é in nito em sua compreensão. Quantas vezes, penetrando com seu olhar as profundezas misteriosas de uma alma, Ele vê debilidades ali onde nós, detendo-nos na superfície, vemos apenas culpas!625

É preciso saber compreender. E para isso existe um procedimento infalível: compadecer-se e amar. 8. Perseverar 699. Já aludimos a esta condição ao dizer que é preciso saber esperar. Porém, na espera pode assaltar-nos a tentação do desânimo diante de nossos infrutíferos esforços. É preciso perseverar a todo custo. A suprema tarefa a que todo apóstolo deve se propor — buscar a glória de Deus mediante a conversão das almas — não pode fracassar. É preciso voltar à carga de novo e de novo, sem nunca desanimar, aconteça o que acontecer. Nossos esforços darão seu fruto na hora prevista por Deus. “Talvez esta hora”, escreve Civardi,626 soe tarde demais para nosso zelo impaciente. Talvez, quem sabe, soará depois de nossa morte. Não teremos a consolação de ver em or a semente depositada no sulco daquela alma tão amada; mas ela há de orescer, fruti car. Talvez o fruto vá amadurecer no leito da última enfermidade, quando a alma se achar no umbral da eternidade. E outros gozarão de sua conversão, que parecerá imprevista, mas não o será. E se veri cará literalmente a palavra de Cristo: “Um é aquele que semeia e outro o que ceifa” (Jo 4, 37). Portanto, continua semeando tua semente, mesmo que não vejas o fruto. Não te preocupes com a colheita. Deus não te pede o sucesso, mas o trabalho.

Recorda como se erguiam nossas gloriosas catedrais nos tempos passados: trabalhavam nelas diversas gerações: um arquiteto fazia o projeto, colocava os alicerces, e outros o sucediam para concluir a tarefa. Uma alma em graça é o templo vivo do Espírito Santo. Não te lamentes se não vês o pináculo. Contenta-te em teres colocado os fundamentos. Outro completará a obra iniciada por ti na humildade e no sacrifício.

9. Con ar 700. O desânimo diante do aparente fracasso das tarefas apostólicas supõe sempre uma grande falta de con ança em Deus. Se de verdade buscássemos unicamente sua glória, não perderíamos jamais a paz da alma, nem a serenidade da consciência. Nenhuma criatura será capaz de arrebatar de Deus a sua glória. Aquele que se recusar a glori car a misericórdia de Deus no céu, glori cará, a contragosto, sua justiça vingadora no inferno. O dilema é inexorável, e, em qualquer dos dois aspectos, move-se dentro do âmbito da glória de Deus. Nem deve desanimar-nos a pequenez de nossas forças e a magnitude das di culdades. O Senhor se compraz em escolher para seus planos o mais pobre e desprezível deste mundo, a m de confundir aquele que o mesmo mundo estima como rico e respeitável, “para que ninguém se glorie perante Deus” (1Cor 1, 27–29). Nada podemos sem Cristo (Jo 15, 5), mas tudo podemos com Ele (Fl 4, 13). Quando Santa Margarida Maria Alacoque, humilde religiosa de clausura, recebeu de Cristo o encargo de difundir a devoção a seu Sacratíssimo Coração por toda a Igreja universal, ela se pôs literalmente a tremer. Mas Jesus lhe disse: “Não te faltarão di culdades, mas deves saber que é onipotente aquele que descon a de si mesmo para con ar unicamente em mim”. O apóstolo de Cristo terá sempre presentes estas divinas palavras, e assim trabalhará. 10. Mansidão, doçura e humildade

701. Eis aqui três elevadas virtudes que o apóstolo de Cristo nunca cultivará em demasia. Sem elas irá fracassar irremediavelmente em suas tentativas apostólicas; com elas, conquistará os corações e atrairá as almas com extraordinária facilidade. A mansidão e a doçura têm uma força irresistível. É muito exata a conhecida frase de São Francisco de Sales: “Pegamse mais moscas com uma gota de mel do que com um barril de fel”. As ondas encrespadas do mar levantam uma montanha de espuma ao se chocarem com os rochedos da costa, mas se desfazem mansamente ao se defrontarem com a suave areia da praia. Cristo é o modelo supremo destas grandes virtudes apostólicas: “Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração” (Mt 11, 29). Sua inefável doçura para com os publicanos e pecadores fez com que aqueles infelizes acudissem em massa para receber seu misericordioso perdão. Cristo se compadeceu de todo tipo de misérias e perdoou toda classe de pecados; somente repeliu o orgulho e a obstinação dos fariseus. À imitação de seu Divino Mestre, o apóstolo de Cristo deve levar ao extremo sua doçura e mansidão para com as almas que ele procura levar ao bom caminho. A humildade diante de Deus e diante dos homens é o grande complemento da doçura e da mansidão. Humildade perante Deus para esperar, em cada caso, de seu auxílio e de sua bênção, o êxito de suas tarefas apostólicas, inteiramente persuadido de que por si mesmo nada pode fazer e nada de bom se pode atribuir; e humildade perante os homens, para jamais se apresentar diante deles com ares de superioridade, o que o tornaria repulsivo e antipático aos olhos daqueles que ele busca conquistar. Ouçamos Civardi:627 Não te julgues melhor do que a pessoa a quem queres converter; na realidade, só Deus conhece perfeitamente as consciências, e é o justo avaliador do mérito e da culpa.

Procura não te deixares levar pelo menor senso de desprezo ao pecador, mesmo o mais perdido, lembrando que a lei de Cristo nos manda odiar o pecado e amar o pecador. De nenhum modo farás sentir tua superioridade espiritual sobre aquele que jaz na miséria do pecado. Assim como Cristo, estarás disposto a enfrentar acusações e humilhações, contanto que faças bem a uma alma. E quando as circunstâncias assim o exigirem, não hesites em servir ao próximo que queres ganhar para Deus. Então, tua in uência chegará ao máximo grau, já que no mundo das almas torna-se senhor aquele que se faz servo; conquista domínio aquele que se abaixa, não o que se ergue sobre os demais. Desta maneira tu imitarás em tudo ao Salvador, que disse: “O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir” (Mt 20, 28).

Estes são os principais elementos estratégicos que irá utilizar o apóstolo de Cristo para conseguir seus objetivos em favor dos que o rodeiam. A prudência sobrenatural e, sobretudo, o impulso da caridade — “a caridade de Cristo nos constrange” (2Cor 5, 14) — ensinar-lhe-ão na prática os meios mais oportunos a serem adotados em cada caso. Um grande amor a Deus e às almas é a principal, e quase a única coisa necessária, para ser um grande apóstolo: tudo o mais não passa de conseqüências que dele se depreendem espontaneamente, como a fruta madura da árvore.

NOTAS DE RODAPÉ 1 Os números dos cânones do Código de Direito Canônico citados pelo autor ao longo do livro correspondem ao texto antigo, que foi reformulado na edição de 1983. Quando possível, indicamos a correspondência aproximada no código atual — ne. 2 Cf. nossa Teologia de la perfección cristiana (bac, 114) nº 1 (a partir da 5ª ed. é o nº 25). Desta obra, existe a edição italiana (Teologia della perfezione cristiana. Roma: Edizioni Paolini, 1963, 5ª ed.) e a inglesa (The Theology of christian perfection. Dubuque, Iowa, usa, 1962). 3 Pe. Albino Marchetti, o.c.d. Spiritualità e stati di vita. Roma, 1962, pp. 9–10. 4 Santo Agostinho. Con ssões, i, 1. 5 Dom Columba Marmion. Jesucristo, vida del alma, i, 1, 6.

6 Cf. Pe. Congar. Jalones para una teología del laicado. Barcelona, 1963, 2ª ed., pp. 489–490. 7 Os leigos estão de acordo nisto. Ver esta resposta à pesquisa sobre a santidade: Vie Spirit., fevereiro 1946, p. 312 (Nota do Pe. Congar). 8 Tema, como se sabe, do delicioso livrinho de Dom G. Morin. El ideal monástico y la vida cristiana en los primeiros siglos. Montserrat: Ed. espanhola, 1931. Cf. também L. Bouyer. Vie de S. Antoine. Fontenelle, 1950; Le sens de la vie monastique. Turnhout e Paris, 1951 (Nota do Pe. Congar). 9 J. A. Robilliard. “Spiritualité du clergé ou spiritualité sacerdotale?”, in Vie Spirit., nº 74, 1946, pp. 186–193 (Nota do Pe. Congar). 10 Pietro Brugnoli, s.i. La spiritualità dei laici. Bréscia: Morcelliana, 1963, p. 9. 11 Com linguagem muito em uso atualmente, e que nós mesmos adotaremos de hábito em nosso trabalho, estes vários animadores da espiritualidade dos leigos se condensam no termo espiritualidade de encarnação (no mundo e em seus valores). Correlativamente, os vários motivos de renúncia ao mundo, próprios da espiritualidade dos conselhos evangélicos, se condensam no termo espiritualidade de transcendência (ao mundo e a seus valores). A seu tempo, examinaremos a exata amplitude teológica que se deve dar às duas expressões. Aqui, basta-nos assinalar a utilidade prática, por causa da

plenitude de motivações que com elas se deseja expressar (Nota do Pe. Brugnoli). 12 Agrada-nos advertir o leitor, em seguida, que nas várias notas de ordem comparativa contidas neste livro, queremos deixar de fora, em absoluto, qualquer sabor de “luta de classes” ou de “reivindicação dos direitos do laicato”. O que buscamos a partir de nosso ponto de vista é unicamente a maior exatidão possível dos fundamentos teológicos sobre os quais se apóia a espiritualidade própria dos leigos, para cujo m as referências comparativas resultam de um valor indispensável. Além disso, estamos convencidos de que a vida religiosa e os estados de perfeição em geral não saem em absoluto rebaixados ou diminuídos dessas comparações; ao contrário, o leigo aprende deste modo a discernir e apreciar melhor um caminho que é objetivamente mais elevado e perfeito que o seu. De igual modo, o religioso aprende a adquirir sempre uma consciência mais viva das riquezas teológicas e das conseqüências que derivam de sua forma de vida. Por isso temos a ousadia de esperar que a leitura do presente trabalho possa ser de não pouca ajuda inclusive para os religiosos. E mais: diante da urgente necessidade que a Igreja tem, especialmente hoje, de vocações sacerdotais e religiosas, parece-nos que nada poderá favorecê-la melhor do que a formação de um laicato espiritualmente adulto. Este, ao se abrir cada vez mais ao próprio dom da graça, se encontrará por isso mesmo mais aberto ao chamado singular para uma forma de vocação mais elevada (Nota oportuníssima do Pe. Brugnoli, que fazemos inteiramente nossa em relação à nossa própria obra).

13 Pe. Albino Marchetti, o.c.d. Spiritualità e stati di vita. Roma, 1962, pp. 173–175. 14 R. L. Oeschslin, o.p. Une spiritualité des laics. Aubier, 1963, pp. 28–29. 15 Cf. G. Philips. Le rôle du laïcat dans l’Église. Paris, 1954, pp. 203–204. Existe uma tradução espanhola: Misión de los seglares en la Iglesia. San Sebastián, 1961, 3ª ed. 16 É preciso, pois, não se confundir sobre o sentido da fórmula, freqüente na liturgia, de desprezar as coisas terrenas: terrena despicere. Com relação aos bens celestiais, os bens terrenos não são nada. Entretanto, o Cristo do Evangelho não amaldiçoou as riquezas, que são boas, mas os ricos que as usam mal (Nota do Pe. Philips). 17 Ver a doutrina de São Paulo sobre o Matrimônio cristão (Ef 5, 22 e ss.) (Nota do Pe. Philips). 18 Cf. Gustavo Thils. Santidad cristiana. Salamanca, 1962, 2ª ed., p. 45. Ver também o que ele diz a propósito dos leigos nas páginas 63, 127 e 204 da mesma obra. 19 Cf. revista Teología espiritual. Valência, 1957, vol. 1, nº 3, pp. 492–493. 20 Cf. revista Teología espiritual. Valência, 1958, vol. 2, nº 5, p. 201. 21 Cf. Lilí Alvarez. En tierra extraña. Madrid, 1958, 4ª ed., pp. 95–96.

22 Op. cit., pp. 194–195. 23 “Na realidade, o contemplativo ama seus próximos em uma altura e de um modo muito mais sublime e excelso do que o ativista que, material e sicamente, dá a vida por eles: aquele é a vítima que, por sua pureza e por sua vida trans gurada, se oferece em expiação por seus irmãos ignorantes e viciados. Só o ‘cordeiro sem mancha’ é digno do sacrifício, digno de ser imolado. Aqui há uma ordem de amor muito mais elevada, e por isso secreta, do que aquela manifestada na ajuda material e moral. Isto explica a incompreensão comum, não já para o exercício de amar a Deus, mas para esta positiva, real e excelentíssima forma de amor ao próximo exercida pelo contemplativo” (Nota oportuníssima de Lilí Alvarez, p. 195). 24 Op. cit., pp. 112–113. 25 José María Cabodevilla. Hombre y mujer. Madrid: bac, 1960, 1ª ed., pp. 500–501. 26 Baldomero Jiménez Duque. Santidad y vida seglar. Salamanca, 1965, pp. 236–237. 27 Cf. V. Enrique Tarancón. Ecumenismo y pastoral. Salamanca, 1964, pp. 224–227. 28 No original, seglares — nt. 29 Cf. Zorell. Lexicon graecum Novi Testamenti. Paris, 1931, col. 760.

30 Pietro Brugnoli, s.i. La spiritualità dei laici. Brescia, 1963, pp. 31–33. 31 Este é o sentido jurídico em que o Direito Canônico emprega a palavra leigo: “Por instituição divina, há na Igreja clérigos distintos dos leigos, embora nem todos os clérigos sejam de instituição divina; mas uns e outros podem ser religiosos” (cân. 107; cf. cân. 119.682.948, etc.). Neste sentido, são leigos todos os não-clérigos, mesmo que tenham ingressado no estado religioso, na qualidade de irmãos leigos. 32 Estudaremos amplamente estes poderes comuns na segunda parte de nossa obra. 33 Note-se que tal acepção distingue o leigo inclusive do sacerdote, o qual, em virtude de sua própria “assunção dos homens” por uma “consagração ao culto divino”, já não está “plenamente no mundo”, ainda que não sob a mesma formalidade e, por isso mesmo, sob a mesma modalidade própria do religioso” (Nota do Pe. Brugnoli). 34 No magní co Diccionario ideologico de la lengua española de Julio Casares — que foi secretário da Real Academia Espanhola —, nos é dada a seguinte versão da palavra leigo: “Diz-se da escola ou ensino em que se prescinde da instrução religiosa”. 35 Na tradução brasileira, foi mantido o termo já estabelecido: “leigos” — nt. 36 Cf. Diccionario de Casares, citado na nota acima.

37 Cf. “Un equívoco de fácil solución en la lengua española: secular y seglar”, na revista Espiritualidad seglar, out. 1957, nº 54, pp. 8–16. Nossa citação corresponde às páginas 12–13. 38 Lilí Alvarez se refere à expressão secular (ascendente clássica da moderna expressão seglar) que, como dissemos, pode-se aplicar também ao sacerdote diocesano e aos institutos seculares. 39 Por isso usamos a expressão traje secular para distingui-lo do traje eclesiástico (hábito, batina, clergyman); e, ao contrário, quando o traje não faz relação alguma à religião, empregamos a expressão traje de paisano [roupa à paisana], para distingui-lo, p. ex., do uniforme militar. 40 O seglar traz consigo, efetivamente, um matiz religioso, como bem adverte Lilí Alvarez. 41 Um resumo bastante completo foi feito por Jiménez Duque em Comentarios a la constitución sobre la Iglesia. Madrid: bac, 1966, pp. 738–744. 42 Citamos sempre a partir da 3ª edição dos textos conciliares publicada pela bac (Madrid, 1966). Colocamos as siglas bíblicas em língua vernácula. 43 Missal romano. Gloria in excelsis. Cf. Lc 1, 35; Mc 1, 24; Lc 4, 34; Jo 6, 69 (ho hagios tou Theou); At 3, 14; 4, 27 e 30; Hb 7, 28; Jo 2, 20; Ap 3, 7 (Nota do concílio).

44 Cf. Orígenes. Comm. Rom. 7, 7: pg, 14, 1122B; Ps. Macário. De oratione, 11: pg 34, 861AB; Santo Tomás. Summa Theol. iia-iiae, q. 184, a. 3 (Nota do concílio). 45 Ver, entre muitos outros: Ex 33, 19; Jo 15, 16; Rm 8, 28–30; 9, 10–24; 11, 6; 11, 34–35; 1Cor 4, 7; Ef 1, 3– 11; Fl 2, 13; Tt 3, 5. 46 Cf. Santo Agostinho. Retract., ii, 18: pl 32, 637 ss.; Pio xii, Encíclica Mystici Corporis, 29 de junho de 1943: aas 35 (1943), 225 (Nota do concílio). 47 Cf. Pio xi, Encíclica Rerum omnium, 26 de janeiro de 1923: aas 15 (1923), 50 e 59–60; Encíclica Casti connubii, 31 de dezembro de 1930: aas 22 (1930), 548; Pio xii, Constituição Apostólica Provida Mater, 2 de fevereiro de 1947: aas 39 (1947), 117; Alocução Annus sacer., 8 de dezembro de 1950: aas 43 (1951), 27–28; Alocução Nel darvi, 1º de julho de 1956: aas 48 (1956), 574 s. (Nota do concílio). 48 Já desenvolvemos amplamente este tema em nossa Teología de la perfección cristiana, nº 11 (nº 36 a partir da 5ª ed.). 49 Cf. Santo Tomás. Summa Theol., iia-iiae, q. 184, aa. 5 e 6; De perf. Vitae spir., cap. 18: Orígenes, In Is., hom. 6, 1: pg 13, 239 (Nota do concílio). 50 Cf. Santo Inácio M. Magn. 13, 1. Ed. funk, i, p. 240 (Nota do concílio).

51 Cf. São Pio x. Exortação Haerent animo, 4 de agosto de 1908: aas 41 (1908), 560 s.; Cod. Iur. Can., cn. 124; Pio xi, Encíclica Ad catholici sacerdotii, 20 de dezembro de 1935: aas 28 (1936), 22 s. (Nota do concílio). 52 Ordo consecrationis sacerdotalis, na exortação inicial (Nota do concílio). 53 Cf. Santo Inácio M. Tratt. 2, 3. Ed. funk, i, p. 244 (Nota do concílio). 54 Cf. Pio xii. Alocução Sous la maternelle protection, 9 de dezembro de 1957: aas 50 (1958), 36 (Nota do concílio). 55 Pio xi. Encíclica Casti connubii, 31 de dezembro de 1930: aas 22 (1930), 548 s. Cf. São João Crisóstomo. In Ephes. Hom. 20, 2: pg 62, 136 ss. (Nota do concílio). 56 Cf. Santo Agostinho. Enchir., 121, 32: pl 40, 288 ss.; Santo Tomás. Summa Theol., iia-iiae, q. 184, a. 1; Pio xii, Exortação Apostólica Menti nostrae, 23 de setembro de 1950: aas 42 (1950), 660 (Nota do concílio). 57 Cf. nossa Teología moral para seglares. Madrid: bac, 1964, 3ª ed., vol. 1, nº 285–286. 58 Sobre os conselhos em geral, cf. Orígenes. Comm. Rom. x 14: pg 14, 1275B; Santo Agostinho. De s. virginitate 15, 15: pl 40, 403; Santo Tomás. Summa Theol. ia-iiae, q. 100, a. 2c (no m); iia-iiae, q. 44, a. 4, ad 3 (Nota do concílio).

59 Sobre a excelência da sagrada virgindade, cf. Tertuliano. Exhort. cast. 10: pl 2, 925C; São Cipriano. Hab. virg. 3 e 22: pl 4, 443B e 461A ss.; Santo Atanásio. De virg.: pg 28, 252 ss.; São João Crisóstomo. De virg.: pg 48, 533 ss. (Nota do concílio). 60 O leitor que desejar uma informação mais ampla sobre a vida própria dos chamados “estados de perfeição” pode consultar, entre muitas outras, nossa obra A vida religiosa, publicada nesta mesma coleção da bac (nº 244). 61 Pio xii, discurso aos recém-casados, de 6 de dezembro de 1939. 62 Sobre a prática efetiva dos conselhos, que não se impõe a todos, cf. São João Crisóstomo. In Mt., hom. 7, 7: pg 57, 81 ss.; Santo Ambrósio. De viduis 4, 23: pl 16, 241 ss. (Nota do concílio). 63 O leitor que desejar informação mais ampla sobre a necessidade de praticar ao menos o espírito dos conselhos evangélicos, inclusive por parte dos próprios leigos, lerá com proveito, entre outras, as seguintes obras: Pe. Garrigou- Lagrange, o.p. Las tres edades de la vida interior. Buenos Aires, 1944, parte i, cap. 13; P. de Guibert, s.i. Lecciones de Teología espiritual. Madrid, 1953, parte 2ª, lec. 12; P. Brugnoli, s.i. La spiritualità dei laici. Brescia, 1963, pp. 147–161; e sobretudo o magní co estudo de F. Sebastián Aguilar, c.m.f. La vida de perfección en la Iglesia. Madrid, 1963, onde se faz um

estudo exaustivo sobre a absoluta necessidade da prática dos conselhos evangélicos para a perfeição cristã. 64 Cf. Suma teológica, i, q. 3, aa. 6–7; q. 19, a. 1. 65 Para a grande Santa de Ávila, como se sabe, “começar oração” quer dizer iniciar seriamente o caminho da própria santi cação. Ela não concebia a santidade sem vida de oração — de muita oração. 66 Santa Teresa. Moradas segundas, nº 8. 67 São João da Cruz. Subida do Monte Carmelo, liv. 1, cap. 11, nº 2. 68 Santo Afonso Maria de Ligório. Conformidad con la voluntad de Dios, § 1º. 69 Santo Omer. Prática de la perfección, cap. 1, § 2. Citado por Dom Vital Lehodey. O santo abandono, parte i, cap. 1. 70 O leitor que desejar uma informação mais ampla sobre este assunto interessantíssimo, lerá com muito proveito as admiráveis páginas de São Francisco de Sales em seu Tratado do amor de Deus (liv. 8 e 9) e o precioso livro de Dom Vital Lehodey, O santo abandono, entre muitas outras obras. Nós mesmos expusemos amplamente esta doutrina em Teología de la perfección cristiana (bac) nº 495–499 (nº 625–633 a partir da 5ª ed.). 71 Concílio Vaticano ii, constituição Lumen gentium sobre a Igreja, cap. 5, nº 42.

72 iia-iiae, q. 184, a. 1. 73 O leitor que desejar maior informação sobre este tema — o mais importante e básico de toda a vida cristã — pode consultar, entre muitas outras, a magní ca obra de Dom Columba Marmion, Jesus Cristo, vida da alma, e nosso livro Jesus Cristo e a vida cristã, que publicamos nesta mesma coleção da bac, no qual fazemos amplíssimo estudo da própria pessoa de Jesus Cristo e de sua in uência santi cadora em nossa própria vida cristã. Grande parte do que vamos dizer em seguida não é mais que um breve resumo da doutrina de Dom Marmion, e da qual nós mesmos temos exposto na obra que acabamos de citar. Com freqüência citamos textualmente fragmentos de ambas as obras. 74 Compreende-se que o Pai seja maior do que Cristo em razão da natureza humana deste; já que, enquanto Deus, Ele é “igual ao Pai”, como a rma o próprio Cristo em outro lugar (cf. Jo 10, 30). 75 Cf. Jesus Cristo e a vida cristã, nº 385 (bac, nº 210). 76 O Concílio Vaticano i o declarou expressamente no seguinte cânon dogmático: “Se alguém disser que Deus, vivo e verdadeiro, Criador e Senhor nosso, não pode ser conhecido com certeza pela luz natural da razão humana por meio das coisas que foram feitas, seja anátema” (D. 1806). 77 Cf. Dom Columba Marmion. Jesucristo en sus mistérios, iii, 6.

78 Sauvé. Jesús íntimo, elev. 5, nº 5. 79 Cf. Novissima verba, 15 de maio, p. 378 (Obras completas. Burgos, 1950). 80 A partir deste momento, reproduzimos aqui, com ligeiros retoques, o que escrevemos em nossa Teología de la perfección cristiana, nº 17–20 (até a 4ª ed.). A partir da 5ª edição, são os números 57–59 e 79. 81 Cf. Marmion. Jesucristo, vida del alma, cap. 3. 82 Cf. Suma teológica, iii, q. 1, a. 2, ad 2; ia–iiae, q. 87, a. 4. 83 Cf. Suma teológica, iii, q. 46, a. 3. 84 Como se sabe, do ponto de vista que aqui nos interessa, a loso a emprega em relação aos instrumentos a expressão instrumento unido para designar aquele que está, por sua própria natureza, unido à causa principal que o utiliza (por exemplo, o braço ou a mão é instrumento unido ao homem para pintar ou escrever); e instrumento separado para aquele que, de si, está separado da causa principal que o emprega (por exemplo, o pincel do artista ou a pena do escritor). 85 Cf. Mt 9, 1–8; Mc 2, 1–12; Lc 5, 17–26. 86 Santo Tomás diz isto muito bem: “Dar a graça ou o Espírito Santo autoritariamente cabe a Cristo enquanto Deus. Mas dá-la instrumentalmente cabe a ele enquanto homem, já que sua humanidade santíssima foi o

instrumento de sua divindade. E assim, em virtude de sua divindade, suas ações nos foram salutares, na medida em que causam em nós a graça meritória e e cientemente” (iii, q. 8, a. 1, ad 1). E em outro artigo desta mesma questão, ele insiste novamente: “Produzir interiormente a graça cabe exclusivamente a Cristo, cuja humanidade, por sua união com a divindade, tem a virtude de justi car” (ibid., a. 6). 87 Cf. Suma teológica, iii, q. 8, a. 1. 88 Cf. De veritate, q. 29, a. 4. 89 Santo Tomás o diz expressamente: “Et ideo eadem est secundum essentiam gratia personalis qua anima Christi est iusti cata et gratia eius secundum quam est caput Ecclesiae iusti cans alios; di ert tamen secundum rationem” (Suma teológica, iii, q. 8, a. 5). 90 Cf. Suma teológica, iii, q. 8, a. 4. 91 Cf. Suma teológica, iii, q. 8, a. 3. 92 Cf. D. 844. 93 Petrus baptizet, hic [Christus] est qui baptizat; Paulus baptizet, hic est qui baptizat; Iudas baptizet, hic est qui baptizat (Tract. in Io 6; ml 35, 1428). 94 Nas crianças que recebem o Batismo ou a Con rmação, é a Igreja quem supre esta intenção.

95 Destacamos esta palavra porque, segundo o consenso quase unânime dos teólogos, o pecador que, sem se dar conta de estar em pecado mortal, se aproximasse de boa fé para receber um sacramento dos vivos (por exemplo, a Eucaristia) com arrependimento de atrição sobrenatural, receberia válida e frutuosamente o sacramento, isto é, receberia a graça sacramental. 96 Haurietis aquas in gaudio de fontibus Salvatoris (Is 12, 3). 97 iii, q. 62, a. 5, ad 2. 98 Sabe-se que “a fé sem obras é morta”, como diz o apóstolo São Tiago (2, 26). É mister que a fé esteja vivi cada pela caridade: In caritate radicati et fundati, diz São Paulo logo depois de a rmar que Cristo habita pela fé em nossos corações (Ef 3, 17). 99 Marmion, Jesus Cristo, vida da alma, i, 4, 4. 100 Hoje a prescrição da lei é diversa. Diz o Código de Direito Canônico, no cânon 917: “Quem tiver recebido a Santíssima Eucaristia pode voltar a recebê-la de novo no mesmo dia, mas somente dentro da celebração eucarística em que participe, salvo o prescrito no cânon 921, §2” — ne. 101 Em nossas palavras iniciais “Ao leitor”, já alertamos que esta obra é, na realidade, um complemento para os leigos de nossa Teología de la perfección cristiana — publicada nesta mesma coleção da bac — em que

expomos de maneira muito mais completa e acabada o imenso panorama da vida cristã em geral. 102 Cf. Armando Bandera, o.p. La Iglesia, misterio de comunión. Salamanca, 1965, pp. 31–35. 4.

103 Cf. Santo Tomás. Suma teológica, i, q. 25, a. 6, ad

104 Pio xii, alocução à Ação Católica Italiana, 8 de dezembro de 1953: aas 45, p. 830. 105 Paulo vi, alocução aos alunos do Seminário Maior de Roma, 8 de fevereiro de 1964: Ecclesia, de 15 de fevereiro de 1964, p. 12a (210). 106 Paulo vi, alocução na audiência geral, 25 de maio de 1964: Ecclesia de 6 de junho de 1964, p. 10, letra b (768). Os grifos são nossos (Nota do Pe. Bandera). 107 In salutis discrimen se sinit adduci, qui, huius saeculi iactatus procellis, opiferam eius (Mariae) manum arripere renuit, João xxiii, Epístola Aetate hac nostra, 27 de junho de 1959: L’Osserv. Romano de 29 do mesmo mês, p. 1, col. 1. 108 “Uno consenso et summa pietate agnoscatur locs longe praestantissimus, qui Matris Dei es proprius (grifo nosso) in sancta Ecclesia, de qua praecipuus est sermo in hoc Concilio; locum dicimus, post Christum, altissimum nobisque maxime propinquum, ita ut nomine Matris Ecclesiae eam possumus ornare” (Paulo vi, discurso no

encerramento da segunda sessão do concílio, 4 de dezembro de 1963: aas 56 [1964] 37). 109 Cf. Concílio Vaticano ii. Madrid: bac, 1966, 3ª ed., p. 993. 110 Cf. Concílio Vaticano ii. Madrid: bac, 1966, 3ª ed., pp. 37–38. 111 Em sua preciosa Carta Encíclica Christi Matri Rosarii, de 15 de setembro de 1966, S.S. o Papa Paulo vi a rma que o Concílio Vaticano ii alude claramente, com estas palavras, à reza do Santo Rosário, entre outras práticas marianas. Eis aqui as palavras exatas de Paulo vi: “O Concílio Ecumênico Vaticano ii, se não expressamente, ao menos com su ciente clareza, inculcou as preces do Rosário nos ânimos de todos os lhos da Igreja nestes termos: Dêem muito valor às práticas e exercícios piedosos dirigidos a ela (Maria), recomendados pelo Magistério no decorrer dos séculos” (Constituição sobre a Igreja, nº 67). 112 A bac publicou todo um magní co volume reunindo alguns dos principais documentos marianos provenientes do Magistério o cial da Igreja. Cf. Doctrina Ponti cia, vol. 4, Documentos marianos (bac, nº 128). 113 O leitor que quiser saborear um grande número de textos marianos escritos pelos Santos Padres, poderá encontrá-los facilmente nas Obras ascéticas de San Alfonso Maria de Ligorio, 2 vols. (bac, nº 78 e 113).

Sobretudo sua obra imortal, As glórias de Maria, é uma preciosa antologia mariana de textos dos Santos Padres. 114 Cf. A vida religiosa. Madrid: bac, 1965, nº 323– 333. 115 Reunimos aqui, embora com retoques e ampliação, o esquema do capítulo 1º da Constituição sobre a Igreja, publicado pela bac no volume Concílio Vaticano ii. Madrid, 1966, 3ª ed., pp. 30–31. 116 Cf. Concílio Vaticano ii (ed. cit.), pp. 31–32, que reproduzimos com retoques e ampliações. 117 De fato, segundo as últimas estatísticas, existem atualmente no mundo cerca de 550 milhões de católicos leigos, enquanto a hierarquia (bispos, sacerdotes e demais clérigos) mal ultrapassa meio milhão. Isto resulta aproximadamente em 999 por 1.000 em favor dos leigos; ou seja, mais de 90% do conjunto total da Igreja. Se acrescentarmos aos católicos o restante dos cristãos batizados (ortodoxos e protestantes), a proporção entre leigos e hierarcas permanece inalterada. 118 Na Espanha, ainda conservamos uma triste recordação do que signi cavam, nas intenções republicanas, as expressões “escolas laicas”, “legislação laica”, etc.: mero eufemismo com que se disfarçava a mais crua perseguição contra a Igreja e a religião em geral. 119 Na tradução brasileira, foi mantido o termo já estabelecido: “leigos” — nt.

120 O estudo teológico da tríplice função sacerdotal, profética e régia dos leigos já foi feito de forma ampla por teólogos eminentes. Entre outros, basta citar o Pe. Congar, em sua magní ca obra Jalones para una teologia del laicado. Barcelona, 1963, 2ª ed., p. 2, c. 4–6. 121 Concílio Vaticano ii. Constituição sobre a Igreja, cap. 2, nº 10. 122 Cf. Summa Theol. iii, q. 63, a. 3. 123 Já expusemos tudo isto em outra de nossas obras publicadas nesta mesma coleção da bac (cf. Teología moral para seglares, vol. 2, nº 19–23 e 92). 124 Cf. Pio xii, Alocução Magni cate Dominum, 2 de novembro de 1954: aas 46 (1954), 669; Encíclica Mediator Dei, 20 de novembro de 1947: aas 39 (1947), 555 (Nota do concílio). 125 Cf. Santo Tomás. Suma Teológica, iii, q. 63, a. 2 (Nota do concílio). 126 Cf. São Cirilo de Jerusalém. Catech. 17, De Spiritu Sancto ii, 35–37: pg 33, 1009–1012; Nic. Cabasillas. De vita in Christo, liv. 3, De utilitate chrismatis: pg 150, 569–580; Santo Tomás. Suma Teológica, iii, q. 65, a. 3 e q. 72, a. 1 e 5 (Nota do concílio). 127 Cf. Pio xii. Encíclica Mediator Dei, 20 de novembro de 1947: aas 39 (1947), praesertim 552 s. (Nota do concílio).

128 1Cor 7, 7: “Mas cada um tem de Deus o seu próprio dom (idion charisma): este, um; aquele, outro”. Cf. Santo Agostinho. De dono persev., 14, 37: pl 45, 1015s: “Não só a continência, mas também a castidade conjugal é dom de Deus” (Nota do concílio). 129 Logo se compreende que a santidade in nita do Pai celestial é proposta a todos como modelo e protótipo da perfeição e da santidade à qual devem tender todos os cristãos; mas não como meta que devam alcançar, já que é absolutamente impossível a qualquer criatura chegar a uma santidade in nita, como é evidente. 130 Cf. a palavra “profeta” em Enciclopedia de la Biblia. Barcelona, 1965, vol. 5, col. 1272. 131 Cf. Santo Agostinho. De praed. sanct., 14, 27: pl 44, 980 (Nota do concílio). 132 Cf. Francisco Marín-Sola, o.p. La evolución homogénea del dogma católico. Madrid: bac, 1952, pp. 407–408. 133 Eis aqui a magní ca passagem teresiana: “Também vos parecerá que quem goza de coisas tão altas não terá meditação dos mistérios da sacratíssima humanidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, porque já se exercitará todo no amor. Esta é uma coisa que escrevi largamente em outra parte (cf. Vida, cap. 22), e ainda que me tenham contestado nisso e tenham dito que não o entendo, porque são caminhos por onde nos leva Nosso Senhor, e que quando já passaram dos princípios é melhor tratar

das coisas da divindade e fugir das corpóreas, para mim não terão de confessar que é um bom caminho [...]. E olhai que ouso dizer que não acrediteis em quem vos disser outra coisa” (Santa Teresa, “Sexta morada”, cap. 7, nº 5). 134 O leitor que desejar uma informação mais ampla sobre o poder régio dos leigos na Igreja, di cilmente encontrará alguma coisa mais completa e acabada que o magní co capítulo que dedica a este assunto o Pe. Congar em sua celebrada obra Jalones para una teología del laicado, cap. 5. 135 Santo Agostinho. Serm. 340, 1: pl 38, 1483 (Nota do concílio). 136 Cf. Pio xi. Encíclica Quadragesimo anno, 15 de maio de 1931: aas 23 (1931), 221s; Pio xii. Alocução De quelle consolation, 14 de outubro de 1951: aas 43 (1951), 790s (Nota do concílio). 137 Cf. Pio xii. Alocução Six ans se sont écoulés, 5 de outubro de 1957: aas 49 (1957), 927. Sobre o “mandato” e a missão canônica, cf. Decreto De apostolatu laicorum, cap. 4, nº 16, com notas 12 e 15 (Nota do concílio). 138 Do prefácio da festa de Cristo Rei (Nota do concílio). 139 Cf. Leão xiii. Encíclica Immortale Dei, 1º de novembro de 1885: aas 18 (1885), 166 ss.; Id. Encíclica Sapientiae christianae, 10 de janeiro de 1890: aas 22 (1889–1890), 397 ss.; Pio xii. Alocução Alla vostra liale,

23 de março de 1958: aas 50 (1958), 220: La legitima sana laicità dello Stato (Nota do concílio). 140 Cod. Iur. Can., cân. 682 (Nota do concílio). 141 Cf. Pio xii. Alocução De quelle consolation, cap. 1, p. 789: “Dans les batailles décisives, c’est parfois du front que partent les plus heureuses initiatives”; Id. Alocução L’importance de la presse catholique, 7 de fevereiro de 1950: aas 42 (1950), 256 (Nota do concílio). 142 Cf. 1Ts 5, 19 e 1Jo 4, 1 (Nota do concílio). 143 Epist. ad Diognetum 6. Ed. funk, i, p. 400. Cf. São João Crisóstomo. In Mt. hom. 46 (47), 2: pg 58, 478 sobre o fermento na massa (Nota do concílio). 144 Secreta do ix domingo depois de Pentecostes (Nota do concílio). 145 Santo Inácio de Antioquia. Ad Ephesios 7, 2: F. X. Funk, Patres Apostolici i. Tubingen, 1901, p. 218 (Nota do concílio). 146 Sacramentarium Veronense (Leonianum). Roma: Ed. C. Mohlberg, 1956, nº 1265, p. 162 (Nota do concílio). 147 Prefácio pascal do Missal romano (Nota do concílio). 148 Cf. oração depois da segunda leitura do Sábado Santo, antes da reforma da Semana Santa (Nota do

concílio). 149 Conc. Trid., sess. 13 (11 de outubro de 1551), Decreto De Ss. Eucharistia, cap. 5; em Concilium Tridentinum, Diariorum Actorum, Epistolarum, Tractatum nova collectio, Editora Goerresiana, t. 7. Actorum, pars 5ª (Friburgo Br., 1961), p. 202 (Nota do concílio). 150 Conc. Trid., sess. 22 (17 de setembro de 1562), Doctr. De Ss. Missae sacrif., cap. 2; Concilium Tridentinum, ed. cit., t. 8, Actorum pars 5ª (Friburgo Br., 1919), p. 960 (Nota do concílio). 151 Cf. Santo Agostinho. In Ioh. Evang. Tract. 6, cap. 1, nº 7: ml 35, 1428. 152 Oração pós-comunhão da Vigília Pascal e do Domingo da Ressurreição (Nota do concílio). 153 Oração da missa de terça-feira da oitava da Páscoa (Nota do concílio). 154 Lembrar que o mesmo preceito nos foi dado por Cristo a propósito da parábola do juiz iníquo: “Disse-lhes uma parábola para mostrar que é preciso orar em todo tempo e não desfalecer” (Lc 18, 1). E em sua agonia do Getsêmani, ele advertiu os apóstolos, ao encontrá-los adormecidos: “Vigiai e orai para que não entreis em tentação; o espírito está pronto, mas a carne é fraca” (Mt 26, 41) (Nota do autor).

155 Oração secreta da segunda-feira na oitava de Pentecostes (Nota do concílio). 156 Aqui entram todas aquelas que enumeramos mais acima, repetida e constantemente recomendadas pela Igreja, inclusive pelos papas do Concílio Vaticano ii: João xxiii e Paulo vi. Este último declarou expressamente em sua Encíclica Christi Matri Rosarii, de 15 de setembro de 1966, que o concílio tinha em mente a recomendação da oração do Santo Rosário, e a ele fazia alusão, principalmente quando, na Constituição Dogmática sobre a Igreja, disse: “Tenham muita estima pelas práticas e exercícios piedosos dirigidos a ela (Maria), recomendados pelo Magistério no decorrer dos séculos” (nº 67). O mesmo Paulo vi começa sua Encíclica Christi Matri Rosarii com estas palavras: “Costumam os éis, durante o mês de outubro, tecer grinaldas místicas com as orações do Rosário em honra da Mãe de Cristo. Aprovando-o grandemente, a exemplo de nossos predecessores, convidamos a este ano todos os lhos da Igreja”, etc. (Nota do autor). 157 A partir deste momento transcreveremos quase integralmente, embora com certos retoques, alguns esquemas sobre “A Santa Missa” e “Espiritualidade litúrgica”, que constituem os nºs 45 e 46 da coleção de Temas de pregação, preparados sob nossa direção pessoal pelos alunos da Faculdade Teológica do convento de Santo Estêvão de Salamanca. 158 No calendário da forma extraordinária do rito romano, a Igreja começa a se preparar para a Quaresma

já três domingos antes da Quarta-feira de Cinzas: ao invés do verde, usa-se roxo na liturgia e não se canta mais o Aleluia nem o Glória. É o Domingo da Septuagésima — ne. 159 São palavras textuais do Concílio Vaticano ii. Eis aqui seu contexto completo: “Porque Cristo, erguido sobre a terra, atraiu todos a si (cf. Jo 12, 32); tendo ressuscitado dentre os mortos (Rm 6, 9), enviou sobre os discípulos o seu Espírito vivi cador, e por Ele fez de seu Corpo, que é a Igreja, sacramento universal de salvação” (Concílio Vaticano ii: Constituição Dogmática Lumen gentium sobre a Igreja, nº 48). 160 Cf. Pe. Philipon, o.p. Les sacrements dans la vie chrétienne, introdução (Bruges, 1953). Existe uma tradução em castelhano. 161 Cf. nossa obra Jesucristo y la vida cristiana, nº 430 ss., publicada nesta mesma coleção da bac (Madrid, 1961). 162 Cf. Santo Tomás, Suma Teológica, iii, q. 66, a. 6. 163 Cf. Ibid., iii, q. 69. 164 Pe. Philipon, o.p. Les sacrements dans la vie chrétienne, introduction (Bruges, 1953) cap. 1. 165 Cf. Suma teológica, ia-iiae, q. 113, a. 9, ad 2. 166 Loc. cit.

167 Cf. Suma Teológica, iii, q. 63, a. 3. 168 Santo Tomás. In ep. ad Rom., cap. 2, lect. 4. 169 Cf. Eugen Walter. Fuentes de santi cación. Barcelona, 1959, pp. 18–19. 170 Carlos Grimaud. El y nosotros: un solo Cristo. Buenos Aires, 1944, p. 62 ss. 171 Santa Teresa. moradas”, cap. 2, nº 2.

Castelo

interior,

“Primeiras

172 Carlos Grimaud, loc. cit., p. 68–70. 173 Eugen Walter, op. cit., pp. 25 ss. 174 Cf. A. Auer. Welto ener Christ. Düsseldorf, 1960, pp. 146–150. Citado por Brugnoli. La spiritualità dei laici. Bréscia, 1963, pp. 113–114. 175 Com a reforma litúrgica, a nova fórmula passou a ser esta: “Recebe por este sinal o Espírito Santo, dom de Deus” — nt. 176 Na Encíclica Ex quo primum, de 1º de março de 1756. 177 Cf. Gustave Thils. Santidad cristiana, Salamanca, 1962, p. 142. 178 Já falamos amplamente sobre os dons do Espírito Santo e de sua importância decisiva no processo da

santi cação da alma em nossa Teología de la perfección cristiana, publicada nesta mesma coleção da bac. 179 Loc. cit. 180 Cf. nossa Teología de la perfección cristiana. Madrid: bac, nº 166d. A partir da 5ª ed. é o nº 209d. 181 Cf. o precioso capítulo que Ernesto Hello dedica ao respeito humano em sua obra El hombre, i, 3. 182 Cf. São Francisco de Sales. “Não devemos fazer caso das palavras dos lhos do mundo” (Vida devota, parte 4, cap. 1). 183 Nos oito números seguintes, reunimos, com alguns retoques, uma parte do folheto Temas de pregação, preparado sob nossa direção pessoal pelos alunos da Pontifícia Faculdade de Teologia do Convento de Santo Estêvão de Salamanca. 184 Cf. nossa Teología de la perfección cristiana, nº 230–233 (a partir da 5ª edição, nº 315–318), publicada nesta mesma coleção da bac. 185 Santo Tomás o recorda com beleza: “O movimento natural (por exemplo, o de uma pedra ao cair) é tanto mais acelerado quanto mais se aproxima do nal. O contrário ocorre com o movimento violento (por exemplo, o de uma pedra lançada para cima). Ora, a graça se inclina ao modo da natureza. Logo, os que estão em graça, quanto mais se aproximam do m, tanto mais devem crescer” (In epist. ad Hebr. 1, 25).

186 Há teólogos que a rmam que o sacramento pode produzir novos aumentos de graça ex opere operato durante todo o tempo em que permanecem incorruptas as espécies sacramentais no interior de quem comungou (caso se produzam novas disposições de sua parte). Mas esta teoria tem muito poucas probabilidades. É muitíssimo mais teológico dizer que o efeito ex opere operato é produzido pelo sacramento uma só vez, no próprio momento de ser recebido (cf. Suma teológica, iii, q. 80, a. 8, ad 6). O que é concebível são novos aumentos de graça ex opere operantis (intensi cando as disposições), mas isto já não tem nada a ver com o efeito próprio dos sacramentos (que é o ex opere operato), e pode ser produzido também independentemente deles por qualquer ato de virtude mais intenso que o hábito atualmente possuído da mesma virtude. Este ato mais intenso supõe, naturalmente, uma prévia graça atual também mais intensa, que é o que o torna possível. 187 Cf. Caminho 34, 10. 188 É intolerável a prática de certas pessoas que saem da Igreja quase imediatamente depois de comungar. Sabese que São Filipe Néri, em certa ocasião, mandou que dois coroinhas com círios acesos acompanhassem pela rua uma pessoa que saíra da igreja logo após ter comungado. Se em algum caso especial nos víssemos obrigados a interromper antes do tempo a nossa ação de graças, procuremos conservar por um bom momento o espírito de recolhimento e oração, mesmo em meio a nossas ocupações indispensáveis.

189 Como é óbvio, trata-se de um detalhe acidental que pode variar segundo as necessidades ou obrigações de quem pratica a visita ao Santíssimo. 190 A partir daqui, transcrevemos, com alguns retoques, o folheto número 47 da coleção de Temas de predicación, preparados sob nossa direção pelos alunos da faculdade de teologia do Convento de Santo Estêvão de Salamanca. 191 Cf. Concílio Vaticano ii, Constituição sobre a Sagrada Liturgia, nº 73. 192 A fórmula é hoje diversa: “Por esta santa unção e pela sua in nita misericórdia o Senhor venha em teu auxílio com a graça do Espírito Santo, para que, liberto dos teus pecados, Ele te salve e, na sua bondade, alivie os teus sofrimentos. Amém” (cf. Ritual da Unção dos Enfermos, Praenotanda, n. 25; cf. cdc, cân. 847,1; cic §1513) — ne. 193 Cf. Suppl., q. 30, a. 1. 194 Sabe-se que entre a morte aparente (que se produz quando o coração deixa de bater) e a morte real (que se produz quando a alma se separa do corpo), há um espaço de tempo mais ou menos longo. Nas mortes violentas ou repentinas esse espaço costuma ser mais longo do que nas mortes que se produzem lentamente por consumpção e esgotamento da energia vital. Alguns autores apontam o espaço de umas duas horas nas mortes violentas, e algo mais que um quarto de hora nas produzidas por

esgotamento físico. Durante esse espaço ainda há tempo de administrar ao presumido morto o sacramento da Extrema-Unção; e sempre se deve fazê-lo, embora com a fórmula sub conditione (“se ainda vives...”) e com uma única unção na fronte. 195 Concílio Vaticano ii, Constituição sobre a Sagrada Liturgia, nº 73. 196 Cf. Pe. Philipon, o.p. Les sacrements dans la vie chrétienne. Bruges, 1953, pp. 336–338. 197 Esta é a doutrina explícita de Santo Tomás e dos grandes doutores medievais. “Este sacramento dispõe imediatamente o homem para sua entrada na glória, já que se dá aos que vão sair do corpo” (cf. Suma teológica, iii, q. 65, a. 1; Suppl., q. 29, a. 1, ad 2; Contra gent., liv. 4, cap. 73). Santo Alberto Magno ensina igualmente esta remissão plenária das conseqüências de todos os pecados de uma vida humana: “A Extrema-Unção signi ca a plena puri cação do corpo e da alma por remoção de todos os impedimentos que di cultam a glória de uma e de outra parte do homem” (In IV Sent., d. 2, a. 2). E em outro lugar: “A Unção, pelo fato de tirar as seqüelas do pecado, vale para voar imediatamente ao céu” (In IV Sent. d.23 a.1). Encontramos a mesma doutrina em São Boaventura e nos grandes escolásticos medievais (Também em Scotus, Suárez, Gonet, São Ligório, etc., e em muitos teólogos modernos). O fundamento teológico desta doutrina se encontra na própria fórmula sacramental: “Por esta santa unção e sua piíssima misericórdia, Deus te perdoe tudo quanto pecaste”. Entre

as diversas fórmulas sacramentais, substancialmente idênticas, já o Liber ordinum, testemunho da antiga liturgia moçárabe, oferece este precioso texto: “O Senhor seja propício com todas as tuas iniqüidades e cure todas as tuas fraquezas” (Nota do Pe. Philipon, exceto o parêntese, que é nosso). 198 A Igreja ensina que a Extrema-Unção não só conclui a obra puri cadora do sacramento da Penitência, como é o coroamento de toda a vida cristã: “O sacramento da Extrema-Unção foi avaliado pelos Padres como consumativo não só da Penitência, mas também de toda a vida cristã, que deve ser uma perpétua penitência” (D. 907). Santo Tomás de Aquino havia escrito no mesmo sentido: “Este sacramento é o último e, de certo modo, aquele que consuma toda a cura espiritual, servindo como de meio para que o homem se prepare para receber a glória. E por isto se chama Extrema-Unção” (Contra gent., liv. 4, cap.73). Esta remissão plenária da culpa e de todas as penas devidas pelo pecado, que é o efeito normal do sacramento da Extrema- Unção, de fato raras vezes é adquirida pelos moribundos, por falta de preparação. Nesses momentos decisivos, a família deve envolver o enfermo de orações e de sentimentos profundamente cristãos para ajudá-lo a comparecer diante de Deus” (Nota do Pe. Philipon). 199 O Código Canônico o diz expressamente: “Embora este sacramento, por si, não seja necessário com necessidade de meio para salvar-se, a ninguém é lícito desprezá-lo; e se deve procurar com todo esmero e

diligência que os enfermos o recebam quando estão na plenitude de suas faculdades” (cân. 944). 200 Loc. cit., pp. 362–364. 201 Cf. Contra gent., liv. 4, cap. 73. 202 Cf. Concílio Vaticano ii, Constituição Dogmática sobre a Igreja, nº 11. 203 Cf. Pio xi, Encíclica Casti connubii, de 31 de dezembro de 1930, nº 1: aas 22.539.592. Utilizamos, com ligeiros retoques, a tradução castelhana do volume Documentos sociales da coleção Doctrina Ponti cia, Madrid: bac, 1959, vol. 3, pp. 616–688. 204 No Código atual, cân. 1057 — nt. 205 Pio xi, Encíclica Casti connubii, nº 6 [atualmente, nº 3 — ne]. 206 No Código atual, cân. 1096, §1 — nt. 207 O Código Canônico declara válido e lícito o Matrimônio celebrado em perigo de morte, perante somente duas ou mais testemunhas (sem nenhum sacerdote, se não houver); e também fora do perigo de morte, se se prevê que a impossibilidade de encontrar sacerdote que o abençoe deverá durar ao menos um mês (cf. cân. 1098 [no novo cânon, nº 1116 — nt]. Estes casos podem ocorrer, e de fato ocorrem com freqüência, em países de missão, e naqueles países onde os sacerdotes são

tão escassos que só de tempos em tempos os acesso a eles.

éis têm

208 Claro que Deus pode, com sua graça e caz, facilmente mudar a vontade dos contraentes, fazendo com que queiram livre e voluntariamente dar o seu consentimento matrimonial. 209 Cf. La família. Barcelona, 1942, 4ª ed., cap. 2, pp. 57–59. 210 Em 15 de janeiro de 1941 (dr 2, 373). 211 Como se sabe, em teologia sacramental entende-se por óbice qualquer obstáculo ou impedimento que torne impossível a recepção da graça sacramental. No Matrimônio, como sacramento de vivos que é, se requer como condição indispensável para receber a graça sacramental a sua recepção em estado de graça. Aquele que se casa estando em pecado mortal coloca óbice à graça do sacramento, e comete um verdadeiro sacrilégio (por ser o Matrimônio um sacramento de vivos, que se deve receber em estado de graça), ainda que casse estabelecido — apesar disso — o vínculo matrimonial permanente e indissolúvel, se quis verdadeiramente casarse e não houvesse, da outra parte, nenhum impedimento que o invalidasse. 212 Pio xi, Encíclica [atualmente, nº 14 — nt].

Casti

conubii,

213 No novo cânon, nº 1055, §2 — nt.



39–41

214 Op. cit., pp. 74–75. 215 El canto del hogar, pp. 33 ss. Citado em Mysterio y mística del matrimonio, pp. 67–68. 216 F. Taymans D’Eypernon. La Santíssima Trinidad y los sacramentos, pp. 97–99. Citado em Misterio y Mística del matrimonio, pp. 74–77. 217 No novo cânon, nº 1055, §1 (com sensível alteração de conteúdo) — nt. 218 Ela o repetiu insistentemente em vários lugares. Ver, por exemplo, os seguintes textos da Constituição sobre a Igreja no Mundo Atual: “Por sua índole natural, a instituição do matrimônio e o amor conjugal estão ordenados por si mesmos à procriação e à educação da prole, nas quais culminam como em sua própria coroa” (gs, nº 48). “O matrimônio e o amor conjugal estão ordenados por sua própria natureza à procriação e educação da prole” (gs, nº 50). Cf. Concílio Vaticano ii, Madrid: bac, 1966, 3ª ed., pp. 331 e 335. 219 Não há uma correspondência exata no texto do novo Código, mas o cânon que mais se aproxima da referência feita pelo autor é o de nº 1101 — ne. 220 Cf. Pio xi, Casti connubii, nº 20 e 21 [na tradução espanhola — ne]. Existe, contudo, algum meio lícito de limitar o número dos lhos quando há razões válidas para isso (por exemplo, o método Ogino). Voltaremos a falar sobre isto em seu lugar correspondente.

221 Suppl., q. 59, a. 2. Os parênteses explicativos são nossos. Cf. Suppl., q. 41, a. 1. 222 Cf. Casti connubii, nº 16 [na tradução inglesa — ne]. 223 No novo cânon, nº 1055, §1. O Código de 1983 já não distingue entre m primário e m secundário, nem se refere ao termo “remédio” — nt. 224 Cf. Casti connubii, nº 22 [na tradução espanhola — ne]. 225 Suppl., q. 41, a. 1. 226 Suppl., q. 42, a. 3, ad 4. O parêntese explicativo é nosso. Ver, além disso, os seguintes lugares: Suppl., q. 58, a. 1, ad 3; q. 64, a. 1, sed contra; q. 65, a. 1, ad 6, etc. 227 Pio xii, Discurso a las obstetrices de Roma, de 29 de outubro de 1951: aas 43, 835–854. 228 aas 36 (1944) 103; cf. D. 2295. O decreto traz a data de 1º de abril de 1944. 229 Elas estão, no novo código, em um cânon à parte, o de nº 1056 — ne. 230 Cf. 1Cor 7, 12–15; Código Canônico, cân. 1120– 1127; cf. cân. 1118 [No Código atual, nº 1143 — nt]. 231 Ademais, a moderna exegese bíblica solucionou por completo o verdadeiro sentido e alcance da expressão

“salvo em caso de fornicação”, que, à primeira vista, parece estabelecer uma exceção na indissolubilidade do matrimônio. Trata-se, simplesmente, do caso de um matrimônio fornicário, ou seja, de um matrimônio aparente — estabelecido por uma união fornicária — que, em si, não é verdadeiro matrimônio, mas torpe e simples concubinato. Está claro que esta pretensa união matrimonial pode e deve ser dissolvida, já que, na realidade, não constitui válido e verdadeiro matrimônio. O verdadeiro sentido do texto evangélico é revelado com toda a clareza e simplicidade ao ser traduzido na seguinte forma, de acordo com a moderna exegese: “Aquele que repudia sua mulher, a não ser que se trate de um concubinato, e se case com outra, comete adultério”. Cf. La Sagrada Escritura, comentada por professores da Companhia de Jesus: Nuevo Testamento, vol. 1. Madrid: bac, 1961, p. 237. A mesma interpretação pode ser vista em Biblia comentada (por professores de Salamanca), vol. 5. Madrid: bac, 1964, pp. 421–427. 232 Lembrar, por exemplo, a ridícula pretensão de Henrique viii da Inglaterra, ao pedir a Clemente vii a anulação de seu legítimo matrimônio com Catarina de Aragão para se casar com Ana Bolena. O papa não cedeu — não podia ceder —, apesar da terrível catástrofe que se seguiu à negativa de Clemente vii: a ruptura do rei com a Igreja e a introdução do protestantismo na Inglaterra. 233 Cf. Royo Marín. Teología moral para seglares, vol. 2, nº 487–491.

234 Cf. Temas de predicación 78, 15 (Salamanca, 1964). 235 Cf. Dom Columba Marmion. Jesucristo, vida del alma, cap. 6: “Nosso crescimento sobrenatural em Cristo”. Traduzimos diretamente da edição francesa (Paris, 1930), pp. 278 ss. 236 Faremos isto, se o Senhor nos der forças e tempo, em outra obra que pensamos escrever sobre “a fé e a esperança do cristão”, onde examinaremos amplamente estas duas grandes virtudes, que assumiram nestes últimos tempos uma palpitante e vigorosa atualidade, devido ao ateísmo cada vez mais acentuado e à angústia e desespero que produzem inevitavelmente as doutrinas existencialistas atéias. 237 Cf. Temas de predicación, 52, 1, 2ª ed. (Salamanca, 1960). 238 Cf. Nossa obra La vida religiosa (Madrid: bac, 1965), nº 269–279. 239 Concílio Vaticano ii, Decreto sobre o Apostolado dos Leigos, nº 4. 240 Cf. Chaignon, s.i. Méditations religieuses. Lyon, 1908, vol. 3, pp. 5 ss. 241 O Doutor Angélico aponta as seguintes condições para a e cácia infalível da oração: 1ª — Que peçamos para nós mesmos (o próximo poderia repelir a graça que pedimos para ele); 2ª — As coisas necessárias para a

salvação; 3ª — Piedosamente; 4ª — Com perseverança (cf. Suma teológica, iia-iiae, q. 83, a. 15, ad 2). 242 Oração do cânon da Missa: Ab aeterna damnatione nos eripe, et in electorum tuorum iubeas gregi numerari. 243 Cf. Frei Luis de León. “Vida retirada”, estrofe 9; em Obras completas castellanas. Madrid: bac, 1951, p. 1429. 244 Concílio Vaticano ii. Decreto sobre o Apostolado dos Leigos, nº 4. 245 Cf. nossa Teología de la perfección cristiana, nº 251 (a partir da 5ª ed., nº 350–351). 246 Cf. Suma teológica, iia-iiae, q. 18, a. 1. 247 Cf. Ibid., iia-iiae, q. 17, aa. 7–8. 248 Cf. Ibid., ia-iiae, q. 65, aa. 4–5. 249 Cf. Ibid., iia-iiae, q. 18, a. 4. Cf. D. 806. 250 Cf. Ramírez. De certutidine spei christianae. Salamanca, 1938. 251 Cf. Suma teológica, iia-iiae, q. 17, a. 2, ad 2. 252 Cf. Ibid., iia-iiae, q. 18, aa. 2–3. 253 Ver, por exemplo, os seguintes textos: Mt 19, 21.29; 1Cor 9, 24; 2Cor 4, 17; Ef 1, 18; Cl 3, 24, etc.

254 In: Suma teológica, iia-iiae, q. 17, a. 5, nº 6: “Uma coisa é desejar algo para mim, e outra desejá-lo por mim”. 255 Cf. Ibid., iia-iiae, q. 20, a. 21. 256 Cf. H. D. Noble, o.p. La amistad divina. Buenos Aires, 1944, p. 129. 257 Cf. nossa Teología de la perfección cristiana, nº 252 (352 a partir da 5ª edição). 258 Noite, canto ii, 21, 8. 259 Cf. nossa Teología de la caridad, prólogo “Ao leitor”. Madrid: bac 1963, 2ª ed., p. ix. Existe uma tradução italiana: Teologia della carità (Roma: Edizioni Paolini, 1965). 260 Reunimos centenas deles na obra citada na nota anterior (ver, por exemplo, sobre o amor ao próximo, os de nº 267, pp. 336–347). 261 Cf. Suma teológica, iia-iiae, q. 23, a. 5c e soluções para as objeções. 262 Cf. D. 105.129–142.173b.200. 263 Os seguintes esquemas constituem — com alguns retoques — parte do folheto nº 23 da coleção Temas de predicación, preparado sob nossa direção pessoal pelos alunos da Faculdade Teológica do Convento de Santo Estêvão de Salamanca, e que traz por título La caridad

cristiana. O leitor que deseje informação mais completa e detalhada desta grande virtude da caridade pode consultar — entre muitas outras obras — nossa Teología de la caridad, publicada nesta mesma coleção da bac. 264 Gn 1, 26. 265 Ibid., ia-iiae, q. 74, a. 4 266 1Cor 12, 31; 13, 1–3. 267 Cf. nossa obra Jesucristo y la vida cristiana, nº 544–550, publicada nesta mesma coleção da bac. 268 Cf. Suma teológica, i, q. 26, aa. 1–4. 269 Cf. Constituição Dogmática sobre a Fé, do Concílio Vaticano i (D. 1783). 270 Santo Agostinho. In Io, tr. 3, cap.1, nº 4: ml 35, 1398; j 1806. 271 Pio xii, discurso de 19 de junho de 1940. Ver Discorsi e Radiomessaggi, Tipogra a Poliglota Vaticana (D. R., ii, 145). 272 Cf. Misterio y mística del matrimonio, obra em colaboração. Madrid, 1960, pp. 33–34. 273 Scheeben. Los misterios del cristianismo (citado por Devaux). 274 Cf. J. G. Gourbillón, em Misterio y mística del matrimonio, pp. 38–42.

275 Cardeal Gomá. La familia, Barcelona, 1942, 4ª ed., cap. 1, pp. 26–29. 276 Cabodevilla. Hombre y mujer. Madrid: bac, 1960, 1ª ed., pp. 7–8. 277 Ibid., pp. 8–9. 278 Pe. Émile Mersch. Moral y cuerpo místico, pp. 205–207. Citado em Misterio y mística del matrimonio, pp. 47–49. 279 Cardeal Gomá. La familia, cap. 1, pp. 19–49. Nossa citação, pp. 36–39. 280 Cf. Temas de predicación nº 15, 2. Salamanca, 1958, 3ª ed. 281 Pio xi, Encíclica Divini iillius Magistri, de 31 de dezembro de 1929, nº 9. 282 Cardeal Gomá. La familia, cap. 1, p. 43. 283 Cf. Temas de predicación nº 82, 1. Salamanca, 1965. 284 Para redigir este número, consultamos principalmente o Cardeal Gomá, em sua obra La familia, cap. 13, cujas palavras citamos, com freqüência, textualmente. 285 Cf. Suma teológica, iia-iiae, q. 26, a. 11.

286 Cf. Temas de predicación nº 78, 2. Salamanca, 1964. Lembramos ao leitor que, a partir do número 67, a coleção de Temas de pregação, vem sendo dirigida, com singular acerto, pelo R. P. Aniano Gutiérrez, o.p., mestre de estudantes e professor de oratória sagrada em nossa Pontifícia Faculdade Teológica do Convento de Santo Estêvão de Salamanca. 287 Cf. Temas de predicación nº 78, 12. Salamanca, 1964. 288 Cf. Suma teológica, ia-iiae, q. 26–28; Temas de predicación nº 78, 8. Salamanca, 1964. 289 São Francisco de Sales. Introdução à vida devota, cap. 38, p. 3ª. Em Obras selectas de San Francisco de Sales. Madrid: bac, 1953, vol. 1, pp. 210–212. 290 Cf. Gn 2, 21–22. A moderna exegese bíblica, como se sabe, vê no episódio da costela um mero símbolo, não uma realidade material, tal como soa. O autor sagrado quis expressar com este símbolo que a mulher é de igual dignidade em relação ao homem, embora sujeita a ele; e é feita para unir-se a ele de maneira íntima e profunda, como se depreende dos versículos bíblicos seguintes (Nota do autor). 291 Cf. Pio xii. La familia cristiana, editado pela Ação Católica Espanhola. San Sebastián. 1945, 2ª ed., índice, p. 537. 292 Concílio Vaticano ii, Constituição sobre a Igreja no Mundo Atual, nº 49.

293 Cf. Gn 2, 22–24; Pr 5, 15–20; 31, 10–31; Tb 8, 4– 8; Ct 1, 2–3; 1, 16; 4, 16–5, 1; 7, 8–14; 1Cor 7, 3–6; Ef 5, 25–33 (Nota do concílio). 294 Cf. Pio xi. Encíclica Casti connubii: aas 22 (1930), 547 e 548; Denz. Schon., 3707 (Nota do concílio). 295 Pio xii. La familia cristiana, pp. 49–52. 296 Pio xii. La familia cristiana, pp. 310–317. 297 Pio xii, discurso de 12 de fevereiro de 1941. Cf. La familia cristiana, pp. 219–222. 298 Ver nota da p. 296 — ne. 299 Pio xii expôs amplamente a superioridade da virgindade sobre o matrimônio em sua preciosa Encíclica Sacra virginitas, de 25 de março de 1954. O Concílio Vaticano ii insistiu repetidas vezes nesta mesma doutrina, que é de fé, de nida pelo Concílio de Trento (D. 980). 300 José María Cabodevilla. Hombre y mujer. Madrid: bac, 1960, 1ª ed., pp. 317–320. 301 Un arte de vivir. Buenos Aires: Hachette, 26ª ed., p. 75 (Nota de Cabodevilla). 302 Pio xii. Discurso de 18 de março de 1942. Cf. La familia cristiana, pp. 343–351. 303 Santo Tomás. Contra Gent., iii, cap. 66–67.

304 Pio xii. La familia cristiana, índice sistemático de matérias, p. 539. 305 Cf. Temas de predicación nº 81, 1. Salamanca, 1965. 306 Cf. Temas de predicación nº 79, 8. Salamanca, 1965. 307 Cf. Pio xii. La familia cristiana, índice sistemático de matérias, pp. 540–542. 308 Cf. Pio xii. La familia cristiana, Madrid: Ed. a.c.e., 1945, índice de matérias, pp. 542–545; Temas de predicación nº 79, 14. Salamanca, 1965. 309 Cf. Pio xii. La familia cristiana, índice de matérias, pp. 544–545; Temas de predicación nº 79, 15. Salamanca, 1965. 310 P. Schlitter. Guía de la mujer cristiana. Barcelona, 1943, 2ª ed., parte 1.3, cap. 5, pp. 94–95. 311 Ver nota da p. 296 — ne. 312 Constituição sobre a Igreja no Mundo Atual, nº 48. O concílio acrescenta aqui a seguinte nota: cf. Pio xi. Encíclica Casti connubii: aas 22 (1930), 546–547; DenzSchon. 3706 (Nota do concílio). 313 Ibid., nº 50. 314 Ibid., nº 50.

315 Pio xii, discurso às obstetras de Roma, de 29 de outubro de 1951: aas 43 (1951), pp. 835–854. 316 Decreto de 1º de abril de 1944: aas 36 (1944), 103; D. 2295. 317 Para os cinco primeiros pontos que acabamos de enumerar, cf. nossa Teologia moral para leigos. Madrid: bac, 1965, 3ª ed., vol. ii, nº 608 ss., onde expusemos estas mesmas idéias. 318 O atual cânon que mais se assemelha é o 1084, §1 — ne. 319 Não se confunda o ato conjugal em forma nãoapta em si para a geração, com o mesmo ato praticado nos dias agenésicos. Este último pode ser realizado de forma perfeitamente correta e normal, ainda que resulte infrutuoso por falha da natureza. O m que se possa intentar com esse ato realizado nos dias agenésicos é completamente extrínseco ao próprio ato, e desse m dependerá sua moralidade, como veremos em seu lugar correspondente. 320 Cf. resposta do Santo Ofício de 26 de março de 1897 (aas 29, 704); Discurso de S. S. Pio xii aos médicos católicos de 29 de setembro de 1949 (aas 41, 556–560), etc. 321 Cf. Decreto do Santo Ofício de 30 de junho de 1952 (aas 44, 546). 322 Suppl., q. 49, a. 5.

323 Pio xi. Encíclica Casti connubii, nº 22 [na tradução espanhola — ne] (cf. D. 2241). 324 Suppl., q. 49, a. 5. 325 Ibid., ad 2; cf. Suppl. q. 41, a. 4, ad 3. 326 Suppl., q. 49, a. 6, ad 3. Os parênteses explicativos são nossos. 327 Suppl., q. 49, sed contra 1. 328 Ibid., ad 4. 329 Não se confunda — repetimos — a exclusão positiva do m primário no próprio ato conjugal (onanismo voluntário) com o uso do matrimônio nos dias agenésicos (mesmo com a intenção de evitar a geração). São duas coisas muito distintas. No onanismo, a impossibilidade de geração depende da maneira de realizar o próprio ato, o qual ca violentamente privado de sua ordenação para a geração. No uso do matrimônio nos dias agenésicos, o ato se realiza com toda a normalidade, e é em si apto para a geração, ainda que esta não seja produzida de fato, por defeito da natureza, não do mesmo ato. 330 Suppl., q. 41, a. 4, sed contra, corpo do artigo e solução para a 4ª objeção. 331 Cf. Suma teológica, ia-iiae, q. 18, aa. 8–9. 332 Atualmente, 1152 e 1153 — ne.

333 Quanto ao prejuízo que com isso se causaria à prole, Santo Tomás observa que é melhor nascer doente do que não nascer em absoluto; porque o enfermo, a nal de contas, pode salvar-se e ser feliz por toda a eternidade, coisa impossível para quem não vem à existência (cf. Suppl., q. 64, a. 1, ad 4). 334 Atualmente, nº 1398 — ne. 335 Pio xi. Encíclica Casti connubii, nº 21 [na tradução espanhola — ne] (aas 22, 560). 336 Ver a resposta da Sagrada Penitenciaria de 3 de abril de 1916, ii, 3. Cf. Cappello, nº 818. 337 Ibid., i, 1º. 338 Ver a resposta da Sagrada Penitenciaria de 10 de março de 1886. 339 Pio xi. Encíclica Casti connubii, nº 21 [na tradução espanhola — ne]. 340 Cf. Ferreres-Mondría. Epitome de teología moral, ed. 1955, nº 977, iii. 341 Nenhum tipo de onanismo oferece completa segurança de que não haverá gravidez, e todos eles trazem um perigo para a saúde da mulher, em especial o onanismo por retração e pelo uso do pessário, além de outras tristes conseqüências (Nota do autor citado).

342 Pio xii no discurso às obstetras de Roma, de 29 de outubro de 1951. 343 Cf. A. Christian. Este sacramento é grande. Citado em Misterio y mística del matrimonio. Madrid: Euramérica, 1960, pp. 228–229. 344 A. M. Carré, o.p. Teología y espiritualidade conyugal, pp. 6–7. Citado em Misterio y mística del matrimonio, pp. 235–237. 345 O autor emprega a palavra no sentido de regularizada, metódica, freqüente, habitual. 346 Charles Massabki, o.s.b. El sacramento del amor. Madrid: Euramérica, 1959, pp. 96–99. 347 Cf. Christian. Ce sacrement est grand, p. 92. Paris: Spes, 1938. 348 Cf. Christian. Ce sacrement est grand, p. 119. 349 Não pode tratar-se da contemplação direta de Deus, mas da contemplação do outro. Neste sentido, pelo menos, nós o admitimos (Nota do Pe. Massabiki). 350 Christian, op. cit., pp. 96–97. 351 Ibid., p. 119. 352 Christian, op. cit., p. 97. 353 Cf. Temas de predicación nº 79, 9. Salamanca, 1965.

354 Cf. Suma teológica, iia-iiae, q. 151, aa. 1–4. 355 Cf. Pio xii. La familia cristiana, pp. 52–56. 356 Cf. Pio xi. Casti connubii, nº 20–21 [na tradução espanhola — ne]. 357 Ver, por exemplo, os seguintes textos: “Estas soleníssimas palavras proferidas in signum legationis divinae são, evidentemente, expressão de uma autoridade que ensina infalivelmente, isto é, uma de nição ex cathedra” (P. Capello, s.i. De matrimonio, 1961, 7ª ed., nº 816). “Em nossa opinião, esta passagem da encíclica contém uma de nição própria do Romano Pontí ce quando fala ex cathedra” (P. Ter Haar, c.ss.r. Casus conscientiae ii, 1939, 2ª ed., nº 136. Merkelbach, o.p., Zalba, s.i., e muitos outros admitem que se trata, pelo menos, de uma doutrina infalível, em virtude do magistério ordinário da Igreja). 358 Cf. Casti connubii, nº 22 [na tradução espanhola — ne]. 359 Pio xii, discurso às obstetras de Roma, de 29 de outubro de 1951: aas 43 (1951), 843. Cf. Ecclesia ii (1951), p. 520. 360 De fato, a Encíclica Humanae vitae, que fala sobre o uso dos anticoncepcionais, foi publicada um ano depois da primeira publicação deste livro — ne. 361 Cf. Pio xii, discurso de 12 de setembro de 1958: aas 50 (1958), p. 735.

362 Cf. João xxiii. Encíclica Mater et Magistra, de 15 de maio de 1961, nº 185–195. 363 Cf. Concílio Vaticano ii, Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Atual, nº 47–52. 364 Cf. Pio xi. Encíclica Casti connubii: aas 22 (1930), 559–561: Denz-Schon. 3716–3718; Pio xii. Alocución al Congreso de la Unión Italiana de Obstetricia, 29 de outubro de 1951: aas 43 (1951), 835–854; Paulo vi. Alocución al S. C. Cardenalicio, 23 de junho de 1964: aas 56 (1964), 581–589. Certas questões que necessitam de investigações mais diligentes foram con adas, por ordem do Sumo Pontí ce, à Comissão pelo Estudo de População, Família e Natalidade, para que, quando esta conclua sua tarefa, o Sumo Pontí ce dê o seu juízo. Permanecendo assim rme a doutrina do Magistério, o santo sínodo não pretende propor imediatamente soluções concretas (Nota do concílio). [Vale consultar também a Encíclica Humanae vitae, publicada um ano depois da primeira publicação deste livro — ne]. 365 Cf. nota do editor na p. 461 — ne. 366 Cf. G. Lobo, s.i. Questions on Birth Control: The Clergy Monthly 30 (1966), p. 345 (Citado pela revista Sal Terrae, março 1967, p. 212). 367 Referimo-nos a outubro de 1967. 368 Cf. Paulo vi, discurso de 29 de outubro de 1966 aos membros do Congresso Nacional da Sociedade Italiana de Obstetrícia e Ginecologia: aas 58 (1966), pp.

1166–1170. Nossa citação corresponde às páginas 1168– 1170, que traduzimos diretamente do texto o cial italiano. 369 Cf. nota do editor na p. 461 — ne. 370 Cf. Temas de predicaión nº 81, 9. Salamanca, 1965. 371 Abbé Louis Lochet. “Lumière du Christ sur le veuvage”, em L’amour plus fort que la mort (obra em colaboração). Paris, 1958, pp. 35–37. 372 Cf. 1ª ed., pp. 357–361. Madrid: bac, 1960. 373 Suma teológica, iia-iiae, q. 28, a. 1. 374 Foi pronunciado em Castelgandolfo diante dos congressistas da União Internacional de Organismos Familiares, em 16 de setembro de 1957, e foi publicado integralmente no L’Osservatore Romano do dia seguinte. 375 Cf. Pe. Javier Schlitter. Guía de la mujer cristiana. Barcelona, 1943, 2ª ed., pp. 365–387. 376 Cf. São Francisco De Sales. Introducción a la vida devota, p. 3ª, cap. 40, em Obras selectas. Madrid: bac, 1953, vol. 1, pp. 219–223. 377 O cânon 1069, §2 [o atual é o cânon 1085, §2 — ne], diz assim: “Ainda que o matrimônio anterior tenha sido nulo ou tenha sido dissolvido por qualquer causa, nem por isso é lícito contrair outro antes que conste

legitimamente e com certeza a nulidade ou a dissolução do primeiro”. Como é óbvio, esta dúvida não pode jamais apresentar-se quando sobreveio a morte do próprio cônjuge. 378 Estas viúvas são aquelas que, à maneira de diaconisas, exerciam na Igreja um ministério de caridade ou de catequese. 379 Cf. A. M. Carré, o.p. “Un remariage est-il possible?”, artigo na obra já citada L’amour plus fort que la mort, escrita em colaboração. Paris, 1958, pp. 117– 119. 380 Pagés Vidal. Mística para seglares. Bilbao, 1963, vol. 2, pp. 29–32. 381 Pe. García d. Figar, o.p. Matrimonio y familia. Madrid, 1934, cap. 7, p. 81. 382 Cf. Pio xii. La familia cristiana, discursos aos recém-casados (ed. citada), índice sistemático de matérias, pp. 535–536 e 545–546. 383 Cf. Temas de predicación nº 15, 6 e 82, 3. 384 Cardeal Gomá. La familia. Barcelona, 1942, 4ª ed., pp. 134–137 e 140–143. 385 Cf. Cardeal Mindszenty. La madre. Madrid: Patmos, 1953, 1ª ed., p. 108.

386 Severo Catalina. La mujer, cap. 7, em Obras de D. Severo Catalina. Madrid, 1876, tomo 1, pp. 219–226. 387 Cf. Francisco Charmot. El amor humano. Buenos Aires, 1950, 4ª ed., cap. 13, pp. 95 ss. Introduzimos por nossa iniciativa os títulos em negrito para facilitar a leitura e destacar as idéias mais importantes e fundamentais. 388 Ver B. Lavaud, o.p. “El mundo moderno y el matrimonio cristiano” (Desclée). L’Illustration, 6 de março de 1935, artigo de Cahuet. 389 A questão sobre o momento em que a alma espiritual é infundida no germe humano não altera os dados do problema. O ser humano começa no momento em que a alma é criada, e nesse momento é concebido o ser humano. 390 Cf. D. 113. 391 Sobre este tema, ler as belas páginas de Edmundo Joly, “L’enfance désarmée”, in Études, 20 de abril de 1936, pp. 233–235. 392 Narayana era um dos nomes do deus hindu Vishnu. 393 Miguel Ledrus, s.i. L’Inde profonde. Louvain: Edição de L’Aucam, 1933, p. 28. 394 No Código atual, nº 1055, §1 (com sensível alteração de conteúdo) — ne.

395 No Código atual, nº 1136 — ne. 396 Cf. nossa Teologia moral para seglares. Madrid: bac, vol. 1, nº 838. Igualmente para o cuidado corporal (nº 839) e para oferecer-lhes um futuro humano (nº 842 e 843). 397 Ao menos em potência, se não se admite a teoria da infusão da alma no próprio momento da concepção. Como se sabe, a Igreja não quis dirimir com sua autoridade suprema esta questão vivamente discutida entre teólogos e biólogos; mas manifestou claramente sua preferência ao estabelecer no Código Canônico que se batizem (em absoluto ou sob condição) “todos os fetos abortivos, seja qual for o tempo em que foram dados à luz” (cân. 747) [atualmente, cân. 871 — ne]. 398 Cf. nossa Teología moral para seglares, vol. 1, nº 564–565. 399 Dr. Jorge Surbled. La moral en sus relaciones con la medicina e higiene. Barcelona, 1937, cap. 7, p. 5ª. Os parênteses são nossos. 400 Para que a amamentação materna produza na criança todos os seus efeitos saudáveis do ponto de vista higiênico, é preciso que as mães permaneçam habitualmente serenas e tranqüilas, sem passar por desgostos nem se entregar a paixões violentas (ira, tristeza excessiva, etc.), pelo menos durante o próprio ato de aleitar seu lho, porque essas paixões viciam e

envenenam o leite materno, até o ponto de ter causado muitas vezes a morte repentina da criança. 401 No novo Código, nº 1139 — ne. 402 No novo Código, nº 1140 — ne. 403 Refere-se unicamente aos efeitos de ser nomeado cardeal, bispo ou prelado nullius (cf. cân. 232, 320 e 331). 404 Cf. nossa Teología moral para seglares. Madrid: bac, 1964, vol. 1, nº 782. 405 Santo Tomás, ao responder à conhecida objeção de que os lhos não devem pagar pelas culpas de seus pais, escreve com sua costumeira clarividência: “Incorrer em um prejuízo por subtração de uma coisa que não nos é devida não pode ser chamado de pena ou castigo. Por isso não decidimos que seja um castigo para alguém não herdar um reino, se ele não é o lho do rei. De maneira semelhante, não é pena ou castigo que ao lho ilegítimo não sejam devidas as coisas que pertencem aos lhos legítimos” (Suppl., q. 68, a. 2, ad 1). 406 Cf. Suma teológica, iia-iiae, q. 26, aa. 6–11. 407 Cf. Suma teológica, iia-iiae, q. 101, a. 1. 408 Cardeal Gomá. La familia, cap. 8, pp. 276–278. 409 Cf. Suma teológica, iia-iiae, q. 26, a. 9.

410 Cardeal Gomá, op. cit., pp. 280–283. 411 Pe. Antonio García Figar, o.p. Matrimonio y familia. Madrid, 1934, pp. 82–83. 412 Cf. Suma teológica, iia-iiae, q. 104, a. 2, ad 3. 413 Cf. Temas de predicación nº 82, 5. Salamanca, 1965. 414 Cf. Cardeal Gomá, op. cit., pp. 283–287. 415 Cf. Pe. Figar, op. cit., pp. 246–248. 416 Cf. Temas de predicación nº 82, 6. Salamanca, 1965. 417 Cf. nossa Teología moral para seglares. Madrid: bac, 1964, 3ª ed., vol. 1, nº 848. 418 Suma teológica, iia-iiae, q. 101, a. 4 ad 4. 419 Suma teológica, iia-iiae, q. 101, a. 2. 420 Cardeal Gomá, op. cit., pp. 279–280. 421 Cf. Suma teológica, i, q. 22, a. 2. 422 São Josemaria Escrivá. Caminho, nº 27. 423 Cf. Pe. Juan Rey, s.i. El hogar feliz, vol. 1: Camino del hogar. Santander: Editorial Sal Terrae, 1964, 5ª ed., pp. 131 ss.

424 Cf. Balmes. El criterio, cap. 19. 425 Hoje, cânons 1124–1128 — ne. 426 Cf. Instrução da Sagrada Congregação Pro doctrina dei sobre os Matrimônios Mistos, de 18 de março de 1966, publicada no L’Osservatore Romano de 19 de março. Pode-se ver a tradução castelhana na revista Ecclesia de 26 de março de 1966. 427 Cf. Suppl., q. 64, a. 1, ad 4. 428 Este problema não tem, é claro, a mesma gravidade quando se trata de um futuro casal que forçosamente terá de viver quase sempre separado de suas próprias famílias (por exemplo, por ter o trabalho ou o meio de vida em uma cidade diferente daquela onde elas vivem), do que quando o convívio com a família do cônjuge tenha de ser constante e inevitável. 429 Notar — como simples curiosidade ou capricho lológico — que, em castelhano, combinando de outra forma as letras da palavra matrimonio, resulta a belíssima fórmula de amor íntimo. Trata-se, é claro, de pura casualidade, certamente muito bonita. 430 A não ser, talvez, que estas outras qualidades sejam verdadeiramente excepcionais e se possa prever prudentemente que a atração física — que no momento é inexistente — poderá ocorrer depois sem grande esforço. 431 Cf. Edward Mortiuer. El hogar ideal. Madrid: Studium, 1863, cap. 4, p. 59.

432 Cf. Suma teológica, i, q. 19, a. 8c et ad 2; Contra gent., i, 68; et c. Explicamos amplamente esta doutrina em outra obra publicada nesta mesma coleção da bac, cf. Dios y su obra, nº 153 e 165. 433 Cf. Constituição Dogmática sobre a Igreja (Lumen gentium), nº 11. 434 Cf. Decreto sobre o Apostolado dos Leigos (Apostolicam actuositatem), nº 11. 435 Cf. Decreto sobre (Optatam Totius), nº 2.

a

Formação

Sacerdotal

436 Cf. Royo Marín. La vida religiosa. Madrid, 1965. 437 Que o estado de virgindade ou de celibato é melhor e mais perfeito que o matrimônio é doutrina o cial da Igreja, proclamada expressamente pelo Concílio de Trento (D. 980). Em nossos dias, o imortal Pontí ce Pio xii consagrou toda uma magní ca encíclica a este mesmo assunto (cf. Pio xii, Encíclica Sacra virginitas, de 25 de março de 1954). 438 Cf. Pio xii. Encíclica Sacra virginitas de 25 de março de 1954. 439 Carlos Grimaud. Solteras. Barcelona: Casals. 440 Cf. Leão xiii. Encíclica Rerum novarum de 15 de maio de 1891: aas 23, p. 645.

441 Cf. Pio xii. Discurso aos recém-casados de 25 de março de 1942: Ecclesia, 25 de abril de 1942. 442 Cf. Cardeal Gomá. La familia. Barcelona, 1942, 4ª ed., cap. 9, pp. 326–328. 443 Cf. Livro da vida, cap. 4, nº 1; cf. cap. 3, nº 7. 444 Cf. nossa Teología moral para seglares. bac, 1966, vol. 1, nº 849. 445 Cf. La familia, cap. 8, pp. 300–301. 446 Cf. Suma teológica, ia-iiae, q. 66 a. 3, ad 3; iia-iiae, q. 47, a. 6; iia-iiae, q. 50, a. 1, ad 1; etc. 447 Cf. Temas de predicación nº 15, 9. Salamanca, 1965, 5ª ed. 448 Referência aos gastos com processos — nt. 449 Cf. Temas de predicación nº 15, 10. Salamanca, 1965, 5ª ed. 450 Pio xii. La familia cristiana. San Sebastián, 1945, 2ª ed., índice sistemático, pp. 549–551. 451 No novo cânon, nº 1055, §1 (com sensível alteração de conteúdo) — ne. 452 Tomamos o esquema da terceira edição de Concílio Vaticano ii, publicada por esta mesma coleção da bac (Madrid, 1966), pp. 806–807.

453 Cf. Temas de predicación nº 82, 11 (Salamanca, 1965). 454 Correspondem, aparentemente, ao nº 804 e ss. — ne. 455 Cf. Concílio Vaticano ii. Declaração sobre a educação cristã da juventude. Madrid: bac, 1966, 3ª ed., nº 3, pp. 812–814. 456 Cf. Pio xi. Encíclica Divini Illius Magistri, l.c., pp. 59 ss.; Encíclica Mit brennender Sorge de 14 de março de 1937: aas 29 (1937), pp. 164 ss. e 182 ss.; Pio xii, Alocução ao Primeiro Congresso Nacional da Associação Italiana de Professores Católicos (a.i.m.c.), de 8 de setembro de 1946, em Discorsi e Radiomessaggi viii, p. 218 (Nota do concílio). 457 Cf. Concílio Vaticano ii. Constituição Dogmática De Ecclesia 11 e 35: aas 57 (1965), 16 e 40 ss. (Nota do concílio). 458 Cf. Pio xi. Encíclica Divini Illius Magistri, l.c., pp. 63 ss.; Pio xii, mensagem radiofônica de 1º de junho de 1941: aas 33 (1941), 200; Alocução ao Primeiro Congresso Nacional da Associação Italiana de Professores Católicos, de 8 de setembro de 1946, em Discorsi e Radiomessaggi viii, p. 218; João xxiii, Encíclica Pacem in Terris: aas 55 (1963), 274 (Nota do concílio). 459 Cf. Pio xi, Encíclica Divini Illius Magistri, l.c., pp. 53 ss.; Encíclica Non abbiamo bisogno de 29 de junho de 1931: aas 23 (1931), pp. 311 ss.; Pio xii, carta da

Secretaria de Estado à xxviii Semana Social Italiana, de 20 de setembro de 1955: L’Osservatore Romano de 29 de setembro de 1955 (Nota do concílio). 460 Cf. Concílio Vaticano ii. Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Atual (Nota do concílio). 461 Cf. Pio xii. La familia cristiana, ed. cit., índice sistemático, pp. 546–547. 462 Cf. G. Courtois. El arte de educar a los niños de hoy. Madrid, 1954, 2ª ed., pp. 14 ss. 463 Cf. Temas de predicación nº 82, 13. Salamanca, 1965. 464 Carlos de Maillardoz, s.i. El decálogo de la autoridade paterna. Buenos Aires, 1946, pp. 88 ss. 465 Paternidad y maternidad en la educación, discurso do Pe. Félix. 466 Carlos de Maillardoz, s.i., op. cit., pp. 13 ss. 467 Cf. Suárez. De perfectione vitae spiritualis, cap. 3. 468 Estudios, 5 de janeiro de 1929, p. 84. 469 Armonías poéticas: La tumba de uma madre: Comentário, por Lamartine. 470 Cf. Temas de predicación nº 83, 11. Salamanca, 1965.

471 Cf. Temas de predicación nº 82, 12. Salamanca, 1965. 472 Cf. Temas de predicación nº 83, 12. Salamanca, 1965. 473 Cf. Pe. Carlos de Maillardoz, s.i. El decálogo de la autoridade paterna. Buenos Aires, 1946, segundo e terceiro preceitos, pp. 33 ss. 474 Los niños mal educados, liv. 2, p. 102. 1.

475 Cf. Santo Tomás. Suma teológica, iia-iiae, q. 30, a.

476 Os individualistas “extraviados” chegam até a a rmar: “Não existem regras na educação; existem somente indivíduos!”. 477 Cícero. De arte rhetorica, p. 51. 478 Cf. Temas de predicación nº 15, 16. Salamanca, 1958, 3ª ed. e nº 83, 15. Salamanca, 1965. Cf. Pe. Ramón Sarabia. Como se educan los hijos? Madrid, 1945, 3ª ed., p. 6. 479 Cf. Santa Teresa. Livro da vida, cap. 2, nº 3 e 4. 480 Pio xii. Discurso aos recém-casados, 31 de janeiro de 1940. 481 Concílio Vaticano ii. Constituição Dogmática sobre a Igreja, nº 11.

482 Cf. Pe. Maillardoz, op. cit., pp. 77 ss. 483 Cf. Temas de predicación nº 15, 17. Salamanca, 1958, 3ª ed. 484 Voltaremos a falar disso com mais detalhes, ao falar da educação sexual. 485 Cf. E. Courtois. El arte de educar a los niños de hoy. Madrid, 1954, 2ª ed., pp. 115–119. 486 Cf. Pe. Maillardoz, op. cit., pp. 69 ss. 487 Cf. R. Pe. Javier Schlitter, c.ss.r. Guía de la mujer cristiana. Barcelona, 1943, 2ª ed., pp. 240–241. 488 Cf. Jesús Urteaga. Dios y los hijos. Madrid: Patmos, 1961, 4ª ed., pp. 172–176. Recomendamos vivamente este precioso livro, assim como o do Pe. Schlitter, anteriormente citado. 489 Cf. Pe. Maillardoz, op. cit., pp. 106 ss. 490 Cf. Concílio Vaticano ii. Madrid: bac, 1966, 3ª ed., pp. 809–811. 491 Pio xii, mensagem radiofônica de 24 de dezembro de 1942: aas 35 (1943) 9 e 24; João xxiii. Encíclica Pacem in terris: aas 55 (1963), 259 ss. e a Declaração dos Direitos do Homem, de 10 de dezembro de 1948, da onu (Nota do concílio).

492 Cf. Pio xi. Encíclica Divini Illius Magistri, de 31 de dezembro de 1929: aas 22 (1930) 50. 493 Cf. Unidos en Cristo, curso de preparação para o matrimônio. Madrid, 1964, nº 9: “Paternidad”, p. 13. 494 Cf. Temas de predicación nº 14, 3. Salamanca, 1958, 3ª ed. 495 Cf. F. T. D. Psicología pedagógica. Barcelona, 1932, nº 55.138.140–142. 496 Cf. F. T. D., op. cit., nº 84, 88 e 89. 497 Cf. F. T. D., op. cit., nº 405. 498 Cf. F. T. D., op. cit., nº 416 ss. 499 Cf. Suma teológica, i, q. 83, a. 4. 500 Cf. Santo Tomás. In Io. 8, 34, nº 1204 (Ed. Marietti, 1952). Cf. Leão xiii, Encíclica Libertas de 20 de junho de 1888, nº 7. 501 Cf. Suma teológica, i, q. 19, aa. 9–10. 502 Concílio Vaticano ii, Declaração sobre a Liberdade Religiosa. Madrid: bac, 1966, 3ª ed., nº 1, pp. 783–784. 503 Cf. Pe. Maillardoz, s.i. El decálogo de la autoridad paterna, cap. 4, p. 59 ss., com alguns retoques. 504 Trata-se de uma liberdade física, não moral, já que ninguém está autorizado a pecar (Nota do autor).

505 Cf. nossa Teología de la perfección cristiana, 4ª ed., nº 195–200, onde explicamos em detalhes este importantíssimo ponto. 506 Balmes. El criterio, cap. 19, §2. 507 Bossuet. Connaissance de Dieu et de soi-même, cap. 1, nº 6. 508 Suma teológica, ia-iiae, q. 37, a. 4. 509 Cf. principalmente os cap. 19 e 22, sobretudo a partir do §37. 510 Paul Bourget. Le démon de midi, cap. ii, p. 253. 511 Suma teológica, ia-iiae, q. 24, a. 3. 512 Cf. F. T. D. Psicología pedagógica, nº 346–355. 513 Concílio Vaticano ii. Declaração sobre a educação cristã da juventude. Madrid: bac, 1966, 3ª ed., nº 1, p. 810. 514 Cf. nossa Teología moral para seglares, vol. 1, 3ª ed. (bac, Madrid 1964), nº 150–51. 515 Santo Tomás. De veritate, q. 17, a. 1. 516 Cf. R. Pe. Ernesto R. Hull, s.i. Joven: para gobernar bien tu vida. Buenos Aires, 1945, pp. 26–31. 517 Cf. nossa Teología moral para seglares, vol. 1, nº 190–191.

518 Cf. Gillet, o.p. La educación de la conciencia. Madrid, 1943; Prümmer, o.p. Manuale Theologiae Moralis, vol. i, nº 353–355. 519 Cf. Pio xi. Encíclica Divini Illius Magistri sobre a Educação Cristã da Juventude, de 31 de dezembro de 1929, em Colección de encíclicas, publicação da a.e.c., nº 41. 520 Pode-se ver em Civiltà Cattolica, vol. 4 de 1941, pp. 238–239. 521 Concílio Vaticano ii. Madrid: bac, 1966, 3ª ed., p. 810. 522 Cf. Temas de predicación nº 83, 8. Salamanca, 1965; Cabodevilla. Hombre y mujer. Madrid: bac, 1960, cap. 10, nº 9. 523 Cf. Curso de educación de los hijos. Madrid, 1966, lição 13, nº 61–84. 524 Isto seja dito com toda a naturalidade e simplicidade, sem baixar a voz, sem tom misterioso, como se se tratasse da coisa mais natural e simples do mundo. Só assim se produzirá o efeito desejado — a completa instrução da lha — sem lhe causar a menor perturbação ou rubor (Nota do autor). 525 Cf. Temas de predicación nº 83, 9. Salamanca, 1965.

526 Cf. Pio xii. La familia cristiana. San Sebastián, 1945, 2ª ed., pp. 548–549. 527 Cf. nossa Teología moral para seglares, vol. i, nº 840, 3ª. 528 São Francisco de Sales. Introdução à vida devota, parte iii, cap. 38. 529 Cf. Temas de predicación nº 82, 2. Salamanca, 1965. 530 Cf. Pio xii. Discurso de 27 de janeiro de 1942. Ver em La familia cristiana. San Sebastián, 1945, 2ª ed., p. 489. 531 Cícero. De nat. Deorum i, 3; cap. 40. 532 Pio xii, discurso de 15 de novembro de 1939, op. cit., p. 46. 533 Pio xii, discurso de 3 de janeiro de 1940, op. cit., p. 57. 534 Cf. Pio xii. La familia cristiana, índice de matérias, pp. 557 ss. 535 Cf. Temas de predicación nº 15, 20. Salamanca, 1958, 3ª ed. 536 Pe. M. M. Philipon, o.p. Les sacrements dans la vie chrétienne. Desclée, 1953, pp. 272–275.

537 Como se sabe, em teologia recebe a denominação de ordem hipostática aquilo que se refere à encarnação do Verbo de Deus na humanidade adorável de Cristo. Esta ordem, por ser absolutamente divina, supera imensamente a ordem sobrenatural da graça e da glória, da qual também nós participamos (Nota do autor). 538 Cf. nossa Teologia moral para leigos. Madrid: bac, 1964, vol. 1, 3ª ed., nº 914–916. 539 Corts Grau. “Función social. La professión al servicio de la comunidad”, in La moral profesional, vol. Da 15ª Semana Social da Espanha (Madrid 1956), pp. 530–531. 540 Reunimos aqui e na seção seguinte os magní cos ensinamentos do Revmo. Pe. Albino G. MenéndezReigada, o.p., ex-bispo de Córdoba, no discurso de encerramento da 15ª Semana Social da Espanha, celebrada em Salamanca de 9 a 15 de maio de 1955, e que se pode ler na íntegra no volume La moral professional, citado na nota anterior. 541 Cf. nossa Teología moral para seglares, vol. 1, nº 146–149, onde estudamos amplamente este importantíssimo assunto. 542 Antonio de Luna. Moral professional del abogado: “Moral profesional”, curso de conferências. Madrid, 1954, p. 277. 543 P. Urdánoz, o.p. Problemática general: principios normativos básicos de la moral professional, no vol. 15

das Semanas Sociais da Espanha, pp. 41–42. 544 Homo apostolicus, xvi, 100. 545 Suma teológica, iia-iiae, q. 187, a. 3 546 Cf. P. Todolí, o.p. Filosofía del trabajo (Madrid, 1954), onde o leitor encontrará abundante informação sobre este assunto tão importante. 547 Ver nossa Teología moral para seglares, vol. 1, nº 794, onde explicamos a reta utilização das chamadas “restrições mentais”. 548 Cf. nossa Teología de la caridad, 2ª ed. Madrid: bac, 1963, nº 45 ss. 549 Cf. Suma teológica, ia-iiae, q. 114, a. 2. 550 Cf. Suma teológica, ia-iiae, q. 114 a. 3. 551 Ouçamos o próprio Santo Tomás: “O livre-arbítrio não é uma potência distinta da vontade, como já vimos. E, apesar disso, a caridade não está na vontade enquanto livre-arbítrio, cujo ato é escolher; porque a escolha pertence aos meios para alcançar o m, e a vontade tem por objeto o m em si mesmo. Donde é preciso concluir que a caridade, cujo objeto é o m último, está mais na vontade que no livre-arbítrio (Suma teológica, ia-iiae, q. 24, a. 1, ad 3). 552 Cf. Suma teológica, ia-iiae, q. 114, a. 4.

553 Cf. El espíritu de Santa Teresita del Niño Jesús, epílogo. Ed. Barcelona, 1955, p. 251. 554 Cf. Suma teológica, iia-iiae, q. 17, a. 6; ia-iiae, q. 63, a. 3, ad 2; q. 66, a. 6, etc. 555 Suma teológica, i, q. 12, a. 6. 556 Ibid., i, q. 95, a. 4. 557 In i ad Cor., lição 2. Os parênteses explicativos são nossos (Nota do autor). 558 Um teólogo tão pouco suspeito de rigorismo como Karl Rahner desenvolveu amplamente esta doutrina em um belo artigo intitulado “Sobre a boa intenção”. Pode ser visto em sua obra Escritos de Teología. Madrid: Taurus, 1961, vol. 3, pp. 125–150. 559 Cf. nossa Teología de la perfección cristiana. Madrid: bac, 1962, 4ª ed., nº 83, 115, 144, etc. 560 Cf. Jorge Menezes. Por una auténtica espiritualidade seglar. Madrid, 1954, pp. 71 ss. Todo este pequeno livro é uma verdadeira jóia, que recomendamos vivamente a nossos leitores. 561 Pe. Garrigou-Lagrange. Las tres edades de la vida interior. Buenos Aires, 1944, introdução, p. 3. 562 Pio xii, Constituição Apostólica Sponsa Christi, a. 2, §2: aas 43 (1951), p. 15.

563 Cf. M. D. Chenu, o.p. Los laicos y la “consecratio mundi”, em La Iglesia del Vaticano ii, obra em colaboração (Barcelona, 1966), vol. 2, pp. 1002–1003. 564 Cf. Concílio Vaticano ii, Constituição Dogmática sobre a Igreja, nº 36. 565 Loc. cit., p. 1004. 566 Loc. cit., pp. 1009–1010. 567 Intervenção do Cardeal Frings, 27 de outubro de 1964. Cf. ainda, Cardeal Meyer, 19 de outubro de 1964; Mons. Zoghby, 9 de novembro de 1964 (Nota do Pe. Chenu). 568 Cf. F. Malmberg. Über den Gottmenschen. Friburgo, 1960 (Nota do Pe. Chenu). 569 Citamos aqui, quase literalmente, a intervenção de Mons. De Roo (Bispo de Vitória, Canadá) em nome de vários bispos, em 26 de outubro de 1964: “Despojando a realidade de sua signi cação profana, sempre se corre o perigo de provocar uma desvalorização da transcendência da graça, encerrando esta transcendência em suas próprias manifestações eclesiais, colocadas à parte no mundo. Poder-se-ia dizer com Santo Tomás: ‘Retirar algo da perfeição da criatura é retirá-lo da perfeição de Deus’”. E. Schillebeeckx, perito conciliar, L’Église et le monde, conferência no Centro Holandês de Documentação, 16 de setembro de 1964 (Nota do Pe. Chenu).

570 Pe. Yves-Marie Congar, o.p. Sacerdocio y laicado. Barcelona, 1964, pp. 367–368. 571 Cf. Suma teológica, ia-iiae, q. 69, aa. 1–4. Na questão seguinte, ao distinguir entre os frutos do Espírito Santo e as bem-aventuranças evangélicas, escreve Santo Tomás: “Exige-se mais para a condição de ‘bemaventurança’ do que para a de ‘fruto’. Para ser fruto, basta que algo tenha a condição de último e deleitável; mas para a razão de bem-aventurança se requer, ademais, que seja algo perfeito e excelente. Por isso todas as bemaventuranças podem ser chamadas de frutos, mas não o contrário. Frutos, de fato, são quaisquer obras virtuosas nas quais o homem se compraz. Mas bem-aventuranças são chamadas somente as obras perfeitas. Por isso, em razão de sua perfeição, são atribuídas mais aos dons que às virtudes” (ia- iiae, q. 70, a. 2). 572 Cf. Suma teológica, i, q. 22, a. 2. 573 Concílio Vaticano ii, Constituição sobre a Igreja no Mundo Atual, nº 1. 574 Assim se compreende que o leigo que se veja impossibilitado para o trabalho intelectual ou manual (por exemplo, por enfermidade, aposentadoria forçada ou qualquer outro impedimento justo e legítimo), pode glori car a Deus e santi car- se perfeitamente aceitando com amor esse estado de coisas, já que, então e para ele, essa é precisamente a vontade de Deus, cujo cumprimento perfeito é o único meio de glori car a Deus e santi car-se a si mesmo.

575 Que as obras puramente naturais, realizadas sem a graça de Deus, não têm nenhum valor sobrenatural, é doutrina de fé, expressamente de nida pela Igreja contra pelagianos e semipelagianos (D. 105, 180; cf. 812.1015). Já falamos disto no capítulo anterior, ao tratar da santi cação pro ssional. 576 Cf. toda a parte 4 desta obra. 577 Do prefácio da festa de Cristo Rei (Nota do concílio). 578 Acrescentamos também alguns títulos em negrito para facilitar a leitura e chamar a atenção do leitor sobre as idéias fundamentais. 579 Cf. João xxiii. Encíclica Pacem in terris: aas 55 (1963) 260 (Nota do concílio). 580 Cf. João xxiii, 11 de outubro de 1962. Alocução no início do concílio: aas 54 (1962), 791 (Nota do concílio). 581 Cf. Constituição sobre a Sagrada Liturgia, nº 123: aas 56 (1964), 131; Paulo vi, Discurso aos artistas romanos: aas 56 (1964), 439–442 (Nota do concílio). 582 Cf. Concílio Vaticano ii. Decreto sobre a Formação Sacerdotal, e Declaração sobre a Educação Cristã (Nota do concílio). 583 Cf. Constituição Dogmática Lumen Gentium, cap. 4, nº 37: aas 57 (1965), pp. 42–43 (Nota do concílio).

584 Cf. Concilio Vaticano ii. Madrid: bac, 1966, 3ª ed., pp. 253–255. 585 A encíclica é datada do Vaticano, em 26 de março de 1967, festa da Páscoa da Ressurreição. 586 Neste parágrafo, Paulo vi condena abertamente o sistema capitalista liberal, que é incompatível com o espírito do Evangelho. 587 Paulo vi condena, com estas palavras, de modo claríssimo, o comunismo e o socialismo marxistas, que professam essas doutrinas totalmente incompatíveis com o dogma e a moral católicas. 588 Cf. Concilio Vaticano ii. Madrid: bac, 1966, 3ª ed., pp. 255–256. 589 Cf. Concilio Vaticano ii. Madrid: bac, 1966, 3ª ed., pp. 256–259. 590 Juntamos, em seguida, em todo o restante do artigo, a magní ca exposição do Pe. Pietro Brugnoli, s.i., em sua esplêndida obra La spiritualità dei laici. Brescia: Morcelliana, 1963, pp. 123 ss. Também se pode consultar, frutuosamente, o estudo feito sobre esta mesma questão pelo Pe. Congar, o.p., em sua celebrada obra Jalones para uma teología del laicado (Barcelona, 1963, cap. 9). 591 O Pe. Brugnoli destaca particularmente os seguintes autores: Egenter, Schillebeeckx, Congar, Rahner,

Truhlar, Häring, Wulf, Spiazzi, Brunner, Thils, Leclercq e Daniélou. 592 Concretamente, o Pe. Rahner acredita poder xar a exata postura do cristão frente ao mundo em uma atitude fundamental, que se pode considerar como critério infalível de juízo sobre a autenticidade do cristianismo em geral: a sobriedade. Aquela sobriedade realista que, em de nitivo, somente um cristão pode ter. Porque ele não pode idolatrar o mundo, criatura de Deus extraída do nada e que permanece assim apesar de toda a sua magni cência e profundidade. Por isso o cristão permanece sóbrio diante do mundo; consciente de que o valor do mundo não é de nitivo e que sua plenitude só lhe pode ser dada do alto, e que, antes, se realiza precisamente ali onde o homem, aparentemente, alcança a profundidade última de sua impotência. 593 Cf. Truhlar, Fuite du monde, nº 9. Acerca da atividade do uso e fruição do mundo, o autor nota: Mesmo quando o cristão em graça não pense explicitamente em Deus, contanto que atue ordenadamente (falar, trabalhar, divertirse honestamente, etc.), sua atividade está informada pela caridade. Isto é, sua vontade profunda, que impele para aquela conversa, trabalho ou lazer, está “completada” pela virtude da caridade; e dirige, por isso, tal ação como informada, movida e dirigida sobrenaturalmente pela caridade, segundo um in uxo de causalidade e ciente que ordena tal ação para o m último sobrenatural. Desta maneira, o contato cristão com o mundo e a transformação cristã do mesmo, que, aparentemente,

seriam opostos à fuga do mundo, na realidade estão total e intimamente compenetrados (Lembre-se, não obstante, aquilo que explicamos mais acima sobre o in uxo habitual e o atual [ou virtual] da caridade em relação ao mérito sobrenatural de nossas obras: cf. nº 548 ss.) (Nota do autor). 594 Assim o formulam, entre outros, Quer e Arnold. 595 Tal é a opinião de Seiler. 596 Nesta linha de consideração encontram-se, entre outros, Sustar, Thalhammer, Spiazzi. De modo semelhante, G. Philips a rma: “Quanto ao leigo, Deus e o mundo o atraem, ambos em sentido oposto. Daí resulta uma dolorosa tensão, que será insuportável até o momento em que a alma abandone resolutamente o mundo para se entregar inteiramente a Deus. Então, radicalmente restabelecida, voltará à criação, acolhendo-a em uma visão fulgurante, tal como saiu do divino pensamento criador, e não como cou depois de des gurada pelo pecado (cf. Le rôle du laicat dans l’Église, p. 220). 597 Acentuam particularmente este desapego, que também o leigo deve ter, Thalhammer, Brunner, Wulf, Leclercq, Carpentier, Daniélou, etc. 598 Entendemos dizer “com coração de religioso” em sentido especí co: isto é, enquanto concerne ao religioso um desapego não só efetivo, mas também afetivo, dos bens terrenos, tal como necessariamente brota, como

mentalidade e como prática, da consciência interior e exterior da tríplice renúncia voluntária professada. No contexto da espiritualidade dos leigos, a expressão quase sempre adquire, como que por necessidade, tal sentido especí co. 599 Note-se que a adesão à vontade de Deus como o Valor absoluto da vida expressa a norma existencial primária de toda santidade (cf. nº 29 desta obra), tanto religiosa quanto laical. O que caracteriza a vida do leigo é que tal vontade divina seja para ele a “de recapitulação no amor de todos os valores criados”. Na apaixonada adesão a tal vontade, como expressão do amor cósmicorecapitulador, que é adesão pessoal de amor a Nosso Senhor Jesus Cristo, vem, pois, a caracterizar-se para o leigo a sua forma própria de amar a Deus e de santi carse. 600 Tais como as cruzes do não ao mundo do pecado e da concupiscência (quer em si mesmo, quer no ambiente familiar, pro ssional ou social); as cruzes inerentes ao próprio dever de estado; as várias provações físicas e espirituais, etc. 601 De todo este desenvolvimento, acreditamos que que bem claro o quão distante está a postura de uma sincera cristo nalização do mundo (expressão do amor pessoal a Jesus Cristo) em relação a uma postura minimalista da “maior utilização e fruição dos bens compatíveis com a salvação da alma”. Ainda que este último caminho já possa ser muito elevado para o comum dos homens (e, inclusive, signi car a exigência do martírio para não perder o estado de graça — por exemplo, para não apostatar da fé), não é neste sentido

que se há de entender e justi car teologicamente a espiritualidade própria dos leigos. Note-se, todavia, como na medida em que tal cristo nalização é uma sincera e real expressão do amor pessoal a Cristo, ela permanece aberta, e não fechada, para o próprio dom da graça e para todos os eventuais chamados a ulteriores acentuações no amor a Cristo cruci cado, inclusive abraçados como formas de vida estáveis. 602 Cf. sobre isto, Labourdette, Théologie de la pauvreté religieuse, especialmente p. 143. 603 Damos a versão castelhana do Decreto Apostolicam actuositatem publicada pela bac em sua 3ª ed. do Concilio Vaticano ii. Madrid, 1966, pp. 581–629. [Nas citações mais longas, esta tradução segue o texto o cial do site da Santa Sé — nt]. 604 Cf. nossa obra Jesucristo y la vida cristiana. Madrid: bac, 1961. 605 Cf. Apóstoles en el propio ambiente. Barcelona, 1956, 3ª ed., pp. 8–9. 606 Cf. Jesucristo y la vida cristiana, nº 505–506. 607 Op. cit., pp. 24–25. 608 Cf. Ecclesia nº 1010, 19 de novembro de 1960, pp. 16–17. 609 Cf. Suma teológica, iii, q. 72, a. 2. 610 Colin. Amemos a nuestros hermanos. Madrid, 1957, pp. 429– 430. 611 Pio xi, discurso de 24 de setembro de 1927. 612 Cf. nossa obra Jesucristo y la vida cristiana. Madrid: bac, 1961, nº 510–515. 613 Cf. História de uma alma, cap. 5. 614 Civardi, op. cit., p. 40. 615 Cf. nossa obra Jesucristo y la vida cristiana. Madrid: bac, 1961, nº 516–530. 616 Civardi, op. cit., pp. 47–49. 617 G. Philips. Missión de los seglares en la Iglesia. San Sebastián: 1961, 3ª ed., pp. 288–290. 618 Op. cit., pp. 50–51. 619 Pe. José Baeteman. Formación de la joven cristiana. Barcelona, 1942, 2ª ed., p. 386. 620 Op. cit., pp. 61–62. 621 Cf. Civardi, op. cit., cuja doutrina aqui resumimos. 622 Op.

cit., p. 65. 623 Op. cit., p. 68. 624 Op. cit., pp. 68–69. 625 Civardi, op. cit., p. 70. 626 Civardi, op. cit., p. 73. 627 Op. cit., p. 77.