A Escola Ibérica da Paz nas Universidades de Coimbra e Évora [1] 9789724058207

Publicam-se neste primeiro volume os textos, até agora inéditos (porque manuscritos e em latim), das lições dos mestres

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A Escola Ibérica da Paz nas Universidades de Coimbra e Évora [1]
 9789724058207

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A ESCOLA IBÉRICA DA PAZ NAS UNIVERSIDADES DE COIMBRA E ÉVORA (SÉCULO XVI)

A ESCOLA IBÉRICA DA PAZ - VOLUME 1

© dos autores e Edições Almedina, 2015 ORGANIZADOR

Pedro Calafate EDITOR

EDIÇÕES ALMEDINA, S.A. Rua Fernandes Tomás, n•s 76, 78 e 79 3000-167 Coimbra

Tel.: 239 851 904 · Fax: 239 851 901 www.almedina.net · [email protected] DESIGN DE CAPA

FBA. PAGINAÇÃO

Nuno Pinho IMPRESSÃO E ACABAMENTO

PAPELMUNDE Março, 2015 DEPÓSITO LEGAL 390486/15

Toda a reprodução desta obra, por fotocópia ou outro qualquer processo, sem prévia autorização escrita do Editor, é ilícita e passível de procedimento judicial contra o infrator.

\I1X

ALMEDINA

1

GRUPOALMEDINA

Biblioteca Nacional de Portugal - Catalogação na Publicação A ESCOLA IBÉRICA DA PAZ NAS UNIVERSIDADES DE COIMBRA E ÉVORA A Escola Ibérica da Paz nas universidades de Coimbra e Évora I [org.] Pedro Calafate. -2 v.

1� v.:

p. - ISBN 978-972-40-5820-7

1-CALAFATE, Pedro, 1958CDU 340

LUIS DE MOLINA, PEDRO SIMÕES ANTÓNIO DE SÃO DOMINGOS, FERNANDO PÉREZ

A ESCOLA IBÉRICA DA PAZ NAS UNIVERSIDADES DE COIMBRA E ÉVORA (SÉCULO XVI) VOLUME

1

SOBRE AS MATÉRIAS DA GUERRA E DA PAZ

DIREÇÃO

PEDRO CALAFATE COORDENAÇÃO

ANA MARIA TARRÍO, RICARDO VENTURA ESTUDOS INTRODUTÓRIOS

PEDRO CALAFATE, MIGUEL NOGUEIRA DE BRITO

\ITÃ

ALMEDINA

Í NDICE

PLANO DA OBRA

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EsruDo INTRODUTÓRIO 1

A fundamentação dos direitos da pessoa humana nos debates éticos e jurídicos sobre a conquista da América PEDRO CALAFATE

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EsruDo INTRODUTÓRIO II

A primeira fundação do Direito Internacional MIGUEL NOGUEIRA DE BRITO

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Apresentação dos textos RICARDO VENTURA

Normas de estabelecimento do texto latino Lista de abreviaturas latinas

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73

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8

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ESCOLA IBÉRICA DA PAZ - VOLUME 1

LUIS DE MOLINA DE FIDE - ARTICULUS 8 UTRUM INFIDELES SINT COMPELLENDI AD FIDEM DA F É - ARTIGO 8 SE OS INFIÉIS DEVEM SER FORÇADOS A ABRAÇAR A FÉ Transcrição e tradução de Luís MACHADO

76

E ABREU........................

PEDRO SIMÕES ANNOTATIONES IN MATERIAM DE BELLO, A REVERENDO PATRE PETRO SIMÕES TRADITAS: ANNO 1 575 NOTAS SOBRE A MATÉRIA DA GUERRA, LECIONADAS PELO REVERENDO PADRE PEDRO SIMÕES NO ANO DE 1 575 Transcrição de j oANA SERAFIM Tradução de ANA MARIA TARRIO e

MARINA CosTA CASTANHO .. . .. .

106

ANTÓNIO DE SÃ O DOMINGOS DE BELLO - QUAESTIO 40 ACERCA DA GUERRA - QUESTÃ O 40 Transcrição de RICAR DO VENTURA Tradução de ANTóNIO GUIMARÃES PINTO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21 O

FERNANDO PÉREZ IN MATERIAM DE BELLO ( 1 5 8 8 ) SOBRE A MATÉRIA D A GUERRA ( 1 5 8 8 ) Transcrição d e FILIPA ROLDÃO Tradução de ANTóNIO GUIMARÃES P INTO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 342

INDICE ANEXO AN Ó NIMO POR QUE CAUSAS SE PODE MOUER GUERRA JUSTA CONTRA INFIÉIS Gaveta XI, Mç. 8, Doe . 3 do ANTI Minuta de uma carta dirigida a D. João III, na qual são dadas as causas pelas quais se podia mover guerra justa contra os infiéis. 1 556 ( ?). Transcrição de JoAo FIALHO

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PLANO DA ÜBRA

Os dois volumes que agora se publicam resultam de um prolongado tra­ balho de investigação, com vista à identificação, transcrição e tradução dos manuscritos e impressos latinos de professores das Universidades de Coim­ bra e Évora sobre a questão da guerra justa no século XVI em Portugal, mas que, a despeito da abordagem da matéria da guerra, não deixam de consti­ tuir manifestos relevantes sobre o valor da paz e o respeito pelas soberanias dos povos do orbe. Com este fim, foi possível reunir urna equipa interdisciplinar composta por investigadores provenientes das áreas de paleografia, latim, direito, filo­ sofia, literatura e história, que desenvolveram a sua atividade no âmbito do projeto Corpus Lusitanorum de Pace: o Contributo das Universidades de Coimbra e Évora para a Escola Ibérica da Paz11 l, tendo o Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa (CFUL) por instituição de acolhimento. Parte considerável dos textos que agora se tiraram do pó dos arquivos tinha sido já identificada pelos coordenadores do Corpus Hispanorum de Pace, dirigido por Luciano Perefiai2l, chamando a atenção para a necessida­ de de se proceder a um estudo criterioso da influência da chamada Escola de Salamanca nas universidades portuguesas do renascimento. Foi neste contexto que, num primeiro momento, procedemos à identifi­ cação e recolha, nos fundos das nossas bibliotecas, dos manuscritos latinos de Luis de Molina, Pedro Simões, António de São Domingos e Fernando Pé­ rez, constituídos por anotações sistemáticas das lições por eles ministradas nas Universidades de Coimbra e Évora sobre as matérias da guerra e da paz, ao longo da segunda metade do século XVI.

111 Projeto PTDC/FIL-ETl/1 1 9 1 82/2010 do Centro de Filosofia da Universidade de Lis­ boa, Investigador Responsável (IR): Pedro Calafate. 121 Referimo-nos à edição do Corpus Hispanorum de Pace, dirigido por Luciano Perei'ia, e editado pelo CSIC em Madrid, atualmente em segunda série, em número que, em conjunto, ultrapassa já os trinta volumes.

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ESCOLA IBÉRICA DA PAZ - VOLUME 1

Estamos, sem dúvida, perante escritos dotados de alguma prolixidade, na medida em que, talvez à exceção do manuscrito de Luís de Molina integrado na sua obra De Fide, não foram escritos com o cuidado e a literalidade que normalmente transparece em textos cuja elaboração visa a posterior publi­ cação. Em todo o caso, pensamos ter valido a pena o esforço de os trazer a público neste primeiro volume, procedendo-se à respetiva transcrição latina, tradução e edição, à qual acrescentámos um anexo com a transcrição de um manuscrito de autor anónimo, sobre este mesmo tema da guerra justa(J), o qual, originalmente redigido em português, constitui um complemento do maior interesse para o estudo das doutrinas sobre a guerra e a paz no nosso Renascimento. No segundo volume publicamos a tradução do latim de um conjunto de obras impressas de quatro eminentes mestres das universidades de Coimbra e Évora, sobre temas que fundamentam estas mesmas questões, embora em âmbito mais alargado. Referimo-nos em concreto à fundamentação racional do poder político, com base no direito natural escolástico, estabelecendo um plano de igualdade natural entre as soberanias dos povos, no quadro da aventura dos Descobrimentos e Conquistas dos povos peninsulares. A estas questões fundamentais acresce a teorização de uma das mais tremendas facetas da história das relações internacionais: a equação, pelos autores cristãos, dos títulos legítimos da escravatura, a despeito da igualda­ de natural entre os homens e da comum paternidade divina. À questão da escravatura se dedicou Fernando Rebelo, em texto elabora­ do na esteira do seu mestre Luís de Molina, no primeiro volume do seu tra­ tado de Iustitia et Jure, publicado em Cuenca em 1 593, mas correspondente às lições que Molina havia proferido em Évora durante a década de setenta. A obra de Fernando Rebelo, para a qual chamara já a atenção o padre Do­ mingos Maurício Gomes dos Santos(4), é o Opus de Obligationibus ]ustitiae, Religionis et Caritatis, publicada em Lyon em 1 608, da qual selecionámos os capítulos atinentes ao referido tema. Às questões da origem natural do poder, das relações entre o sacerdócio e o império, da legitimidade das soberanias indígenas e do direito de resistên-

131 Trata-se de um parecer jurídico sobre as condições de legitimidade da guerra, já pu­ blicado por Costa Brochado, em A Lição do Brasil, Lisboa, 1949, mas que pela sua raridade e manifesto interesse aqui voltamos a publicar em nova transcrição paleográfica elaborada para esta edição pelo paleógrafo João Fialho, sob o título: Por que causas se pode mouer guerra ;usta contra infiéis, Gaveta XI, Mç. 8, Doe. 3 do Arquivo Nacionalfforre do Tombo (ANTT ) . 141 "A Universidade de Évora e a Escravatura" , Sep. Didaskalia, 7, Coimbra, 1978.

PLANO DA OBRA

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eia ativa dedicaram-se os outros três autores do segundo volume: Francisco Suárez, Martín de Azpilcueta e Martín de Ledesma. Sendo parte considerável destes autores de origem espanhola e sendo certo não existirem, no século XVI, fronteiras culturais entre as universi­ dades dos dois países, unidas pela filosofia escolástica, não admira a forte presença da dinâmica cultural da chamada Escola de Salamanca, fundada por Francisco de Vitoria e continuada pelos seus discípulos. Daí, pois, o título genérico com que abarcamos os diferentes textos aqui publicados: Escola Ibérica da Paz, versando, neste caso, o contributo específico das uni­ versidades portuguesas. Pedro Calafate Lisboa, Agosto de 2014.

ESTUDO INTRODUTÓRIO

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A GUERRA JusTA E A I GUALDADE NATURAL Dos Povos: OS DEBATES ÉTICO-JURÍDICOS SOBRE OS DIREITOS DA PESSOA HUMANA.

1. Considerações Preliminares

A publicação em Madrid dos vários volumes do Corpus Hispanorum de Pace, dirigidos por Luciano Pereiia, evidenciou a existência de relações entre as Universidades de Salamanca, Valladolid e Alcalá não menos intensas do que as existentes entre Salamanca, Coimbra e Évora. É um facto hoje reconhecido que nos fundos da Biblioteca da Universida­ de de Coimbra se encontram coleções muito ricas de manuscritos dos mes­ tres salmantinos, sendo verdade que também à Universidade de Salamanca chegaram muitos manuscritos dos centros universitários portugueses, que circulavam entre os professores e eram lidos e amplamente comentados. Como escreveu Luciano Pereiia: "Se na biblioteca universitária de Coimbra é possível encontrar hoje uma das coleções mais ricas dos mestres salmantinos, também entre os fundos espanhóis, procedentes dos colégios maiores de Salamanca, podemos encon­ trar as mais importantes leituras de Coimbra. Esta comunicação constante de ideias contribuiu para o progresso da escola e para a consolidação da sua unidade doutrinal". 151

151 Luciano Pereiia, "La Escuela de Salamanca y la Duda Indiana", in La Ética en la Conquista de América, CHP, vol. XXV, Madrid., 1 984, p. 3 1 3.

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ESCOLA IBÉRICA DA PAZ - VOLUME 1

Mas se Luciano Pereiia se refere aqui especificamente à Universidade de Coimbra, cumpre-nos lembrar que também a Universidade de Évora deu um contributo essencial, através dos seus professores, para a unidade, ri­ queza e progresso da Escola Ibérica da Paz, como fica patente pelos textos que neste volume publicamos de Fernando Pérez, Luis de Molina e Pedro Simões, a que se seguirá, no volume II, o de Fernão Rebelo Em causa estavam os princípios éticos, jurídicos e políticos que deveriam orientar a convivência e relação entre povos de coordenadas culturais e civi­ lizacionais diferentes, sobretudo os europeus, os americanos e os africanos, sem esquecer a rica experiência portuguesa no Oriente. Neste sentido, os professores portugueses e espanhóis de Coimbra e Évora fundamentaram de forma muito clara as teses sobre a soberania inicial do povo, considerando o poder político como constitutivo da natureza humana, no quadro do jusna­ turalismo escolástico, pois o conceito de natureza, que qualificava o direito, afirmava-se como imperativo de universalidade constitutiva, de inteligibili­ dade, de ordem e de racionalidade. A natureza era, assim, a voz interior da razão, comum a todos os homens, apontando para um património originá­ rio que fundamentava a unidade substancial do género humano, enraizado na paternidade divina, pois que a lei natural era, no fundo, o brilho do rosto de Deus no coração de todos os homens. Assim se fundamentava a necessidade de respeitar a legitimidade das soberanias indígenas, ainda que embrionárias, mostrando que o poder po­ lítico entre os príncipes pagãos, em si mesmo, não era de menor nem de distinta natureza que o poder dos príncipes cristãos, e que as considerações teóricas acerca da fundamentação do poder na razão natural e na natureza social do homem eram válidas para todas as culturas e todas as religiões, pois todos os homens foram criados livres por Deus. Em causa estava, pois, a articulação entre liberdade do homem e bem comum internacional, com base em princípios e valores comuns ao género humano, emanando tanto do direito natural como do direito das gentes, que naquele se fundava, reto­ mando a antiga tradição da recta ratio ciceroniana. Então, a legitimidade do poder político inerente às comunidades huma­ nas não dependia da fé nem da caridade, assim como não podia conside­ rar-se, à partida, dependente de uma ordem jurídico-política de natureza imperial. Neste contexto, importava fundamentar tanto a tese de que o papa não possuía autoridade temporal ou espiritual sobre os povos estranhos ao mundo cristão (possuindo apenas poder espiritual entre os cristãos, bem como poder indireto sobre os assuntos temporais, em ordem ao fim espiri­ tual), como a de que os imperadores romanos ou romano-germânicos não podiam considerar-se senhores do mundo, devendo entender-se tal título,

ESTUDO INTRODUTÓRIO - I

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quando invocado, como hipérbole ou, na pior das hipóteses, como manifes­ tação de arrogância sem base ético-jurídica sustentável. Nem o papa poderia considerar-se dominus orbis in temporalibus et spi­ ritualibus, nem a autoridade imperial se estendia a todos os povos do mun­ do, tanto do ponto de vista do direito divino, como do direito natural e do direito humano, situando-se no contexto deste último a questão fundamen­ tal da guerra justa, tema nuclear dos textos aqui publicados. O império universal seria considerado ou como um desígnio humana e moralmente impossível, como ensinava Suárez em Coimbra, ou como uma expectativa jurídica com opção preferente (tendo neste caso em conta as doações papais aos reis de Portugal e Espanha, preferindo-os aos demais príncipes cristãos), sobretudo as doações de Alexandre VI, em 1493, mais tarde precisadas no Tratado de Tordesilhas ( 1494), por pressão do rei de Portugal. Mesmo nos casos em que o império universal viria a afirmar-se, poste­ riormente, na sua dimensão profética, como em António Vieira, os preceitos da ética e da justiça, que fundamentavam a dignidade natural de todos os homens e de todos os povos, teriam que ser respeitados, sob pena de resti­ tuição dos bens espoliados. Em todos os casos, a paz, de que o império seria expressão, tinha que estar radicada na justiça. Caso contrário seria justa a guerra que contra ele fosse movida. Como dizia Martín de Azpilcueta, na sua Relectio e. Novit de Iudiciis, que publicamos na íntegra no segundo volume, teríamos de considerar duas espécies de paz, mas respeitar apenas uma: "É a paz boa que deve conservar-se, cultivar-se e amar-se juntamente com as virtudes, de acordo com as palavras de Cristo, Jo 14.27: 'A minha paz vos dou, a minha paz vos deixo', enquanto deve violar-se e quebrar-se a paz que vive em companhia de pecados, em conformidade com as palavras do mesmo em Mt 10.34: 'Não vim trazer paz, mas espada'".161

Na mesma linha estava a discussão sobre a questão da escravatura, tanto na América como em África e no Oriente, a qual encontrava no direito bé­ lico o seu principal título de legitimidade, mostrando-se, sobretudo Fernão Rebelo, à semelhança do seu mestre Luis de Molina171, contrário à legitimi161

Martín de Azpilcueta, Relectio e. Novit de Iudiciis, 2.º edição, Roma, 1 575, f. 146. "E quanto ao facto de que se deve presumir a referida injustiça de título, tal se prova não só porque esses escravos, as mais das vezes, são reduzidos à escravidão pela guerra: ora, entre os negros não há qualquer preocupação em regulamentar a justiça da guerra, mas o direito deles está inteiramente fundado nas armas, e os que são mais poderosos fazem maiores rapinas de escravos, atacando os adversários de modo imprevisto durante a noite, e até os 171

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ESCOLA IBÉRICA DA PAZ - VOLUME 1

dade do comércio de escravos africanos entre a África e a América condu­ zido pelos portugueses, por não se enquadrar, na maior parte dos casos, no conceito de guerra justa, nem em nenhum dos demais títulos jurídicos que legitimavam a escravidão, o mesmo podendo dizer-se sobre o comércio de escravos no Japão e na China(8l. Na verdade, tanto para Luis de Molina como para Fernão Rebelo, cujo texto também publicamos no volume II desta coleção, todos os homens fo­ ram criados livres por Deus, mas essa liberdade poderia ser perdida em caso de aplicação do direito da guerra; da condenação por crimes em aplicação do direito interno; da venda voluntária da liberdade em situação de extrema necessidade, quer dizer, em caso de miséria extrema que pusesse em causa a preservação da vida(9l. Luis de Molina e Fernão Rebelo, referiam ainda um quarto título, herdado do direito antigo, à luz do qual o filho de mãe escrava permanecia escravo, no quadro do princípio de que "o parto segue o ventre" Yºl

nossos próprios traficantes francamente reconhecem que as guerras deles com mais verdade se devem denominar latrocínios.", Luis de Molina, De iustitia et iure, Cuenca, 1593, tomo I, liv. I, disp. XXXII. 1s1 "Entre os príncipes japoneses são frequentíssimas as guerras internas e pode com razão duvidar-se da justiça das mesmas, já que entre eles não se constata a preocupação de averiguar se têm ou não a razão e a justiça do seu lado, senão que o mais forte e o que tem maior esperança de vitória ataca os demais pela força das armas, tratando de os submeter; pelo que, isto suposto, julgam justa qualquer guerra [ . . . ]. Todavia, ignoro se os mercadores lusitanos, ao comprarem servos e escravas japonesas, se preocupam em inquirir se foram capturados em guerra justa e, em geral, se a servidão em que se encontram é ou não legítima", idem, tomo I, liv. 1, disp. XXXIV. Quanto à situação na China, diz ainda Luis de Molina: "No que respeita aos escravos chineses que os portugueses compram e exportam, é ainda maior a dúvida sobre se foram alguma vez reduzidos à servidão por justo título [ . . . ), pois consta que nas províncias da China disfrutam de uma paz perpétua, já que não têm guerra alguma, a não ser com os Tártaros, que distam extraordinariamente do nosso comércio. Consta também que aquelas províncias são riquíssimas e que nunca há entre eles fome que justifique que eles, oprimidos pela neces­ sidade, vendam os seus filhos; consta também que os juízes na China não condenam ninguém à servidão perpétua ( . . . ). De modo que não parece verificar-se nenhum dos títulos justos que enunciámos para reduzir os Chineses à escravatura", idem, tomo I, liv. 1, disp. XXXIV. 191 Sobre este tema consulte-se o texto da polémica de Manuel da Nóbrega com Quirício Caxa, publicada por Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil, tomo II, século XVI, Lisboa/Rio de Janeiro, 1938, pp. 202 e ss. 1101 Diz Molina, sintetizando os vários títulos legítimos de escravatura: "1.º Direito da Guerra ( . . . ] comutando-se a pena de morte em servidão perpétua [ . . . ]. 2.º Quando alguém é condenado à escravidão por algum delito que, segundo o arbítrio prudente de uma autoridade legítima seja digno de tal pena ( . . . ) . 3.º Compra e venda [ . . . ), pois o homem é senhor da sua liberdade e, portanto, atendendo apenas ao Direito Natural, pode aliená-la, fazendo-se a si próprio escravo [em estado de necessidade extrema] e além disso, por Direito Natural, os pais podem vender os seus filhos em caso de necessidade extrema [ . . . ) e de gravíssima pobreza e miséria, caso contrário será nula a alienação da liberdade [ . . . ]. 4.º Condição de nascimento.

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Não estávamos, naturalmente, perante um clamor abolicionista, impen­ sável para a época, mas sim perante autores que se preocuparam em denun­ ciar as graves injustiças praticadas no comércio de escravos entre a África e as Américas, vituperando os interesses mesquinhos de um comércio injusto, porque conduzido com o fim do lucro e com desrespeito pelas regras do direito natural e do direito gentes. É pois do maior interesse acompanharmos a leitura do texto de Fernão Rebelo, negando que o proveito da salvação da alma pela evangelização j us­ tificava a escravatura, por não ser aceitável praticar o mal para obter o bem; que as guerras entre os africanos que, em princípio legitimavam a compra de escravos pelos comerciantes portugueses, não eram justas, mas sim meros latrocínios, por isso que entre os negros as leis da guerra estavam longe de ser respeitadas; que a coroa e os seus ministros eram legal e moralmente responsáveis pela restituição daqueles homens à liberdade, impedindo que fossem submetidos a uma escravidão injusta e barbaramente transportados para a América em condições de extrema desumanidade, onde a maior parte perecia; que em caso de guerra justa, tanto os infiéis podiam ser escravos dos cristãos, como os cristãos dos infiéis, porque o direito das gentes era vá­ lido para todos os povos em condições de igualdade; que os soldados feitos escravos na guerra podiam fugir, na condição de regressassem à sua pátria; que a venda consciente e voluntária da liberdade própria só era legalmente válida se suportada por necessidade extrema.

2. A legitimidade das soberanias indígenas e a origem do poder civil: o imperador não é Senhor do mundo. A relação do tema da origem e natureza do poder civil com a questão mais vasta da guerra derivava da tese de que a infidelidade, a idolatria, os crimes contra a natureza ou a maior rudeza dos outros povos não consti­ tuíam título legítimo de guerra e escravatura. Logo, nenhuma destas ques­ tões, sobretudo o tema mais vasto da infidelidade, poderia ser invocada para legitimar a guerra movida pelos espanhóis contra as soberanias de além -mar, desde que legitimamente constituídas. A tese essencial era a de que o poder civil dos infiéis e pagãos tinha as mesmas condições de legitimidade que as vigentes entre os príncipes cris­ tãos, razão por que estes não tinham o direito de o usurpar. Todavia, o poCom efeito, o que nasce de mãe escrava será escravo, porque "o parto segue o ventre'", Luis de Molina, op. cit., tomo 1, liv. 1, disp. XXXII.

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ESCOLA IBÉRICA DA PAZ - VOLUME 1

der civil entre os príncipes cristãos era mais perfeito do que entre os pagãos, na mesma medida em que, como ensinava Molina em Évora, fundado em Tomás de Aquino, a Graça, não contrariando a natureza, aperfeiçoa-a(11l. Quando os autores dos textos publicados neste volume referem que os índios da América eram verdadeiros senhores, no sentido de jurisdição e posse - a que correspondia o termo "domínio" - partem sempre do prin­ cípio de que o poder civil, em si mesmo e na sua natureza, tem origem em Deus, como causa primeira e universal, e no povo ou comunidade política, como causa próxima e imediata. O poder civil tem origem em Deus, como proclamara São Paulo, ao re­ ferir que "não há poder que não venha de Deus" (Rm 1 3 ), todavia, para os nossos escolásticos da Escola Ibérica da Paz, a não ser em casos raros e ex­ traordinários, como verosimilmente terá sucedido com Saul e David, Deus não o transmite diretamente aos reis e príncipes da Terra. Diremos, então, que o poder tem origem em Deus enquanto Ele dá ao homem uma natureza social, devendo concluir-se que quem dá a essência de uma coisa dá aquilo que dela se segue, e como o poder civil se segue necessariamente da essência social do homem, é nesse sentido que dizemos ter origem divina. Por isso, S. Paulo não disse "não há rei que não venha de Deus", mas sim "não há poder que não venha de Deus", e embora no Antigo Testamento possamos interpretar o poder temporal de Saul e David como tendo sido concedido diretamente por Deus, devemos, contudo, concluir que na vida civil os homens não se regem por milagres nem por casos raros e extraordi­ nários mas sim pela razão natural. Ora o que a razão natural dita neste caso é que todas as entidades dota­ das de fim próprio devem possuir em si mesmas as faculdades necessárias para o realizar, logo, a comunidade política deve também possuir, em si própria e na sua natureza, as faculdades necessárias para realizar o bem comum, que para estes autores define a finalidade do governo, à luz de uma conceção orgânica da sociedade que respeita, ao mesmo tempo, a dignidade absoluta da pessoa humana. Então, nenhum homem, nenhum senado e nenhum povo recebeu dire­ tamente de Deus poder para dominar outro homem ou outro povo, pois o

1 1 11 "A graça e a fé aperfeiçoam a natureza, mas não a contradizem, por isso, se os homens antes de receberem a fé de Cristo eram reis [ . . . ] em virtude do poder conferido pela República, que o possui por direito natural, é evidente que ao receberem a fé não perdem de modo algum aquele poder e domínio, ainda que quando pelo seu ingresso na Igreja se subme­ tam ao Sumo Pontífice.", idem, tomo 1, disp. XXIX.

ESTUDO INTRODUTÓRIO

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homem foi criado por Deus naturalmente livre112l, tendo apenas recebido de Deus, de modo imediato, poder para dominar os animais e os seres infe­ riores. Neste contexto, a democracia é a forma mais natural!13l de governo - embora não necessariamente a mais perfeita - porque o poder civil radica naturalmente na comunidade, que o pode transmitir ou conferir na base do exercício da sua liberdade natural. Escreve, então Francisco Suárez: "A democracia poderia existir sem uma instituição positiva, apenas por instituição ou dimanação natural, com a negação apenas de uma instituição nova ou positiva, pois a própria razão natural estabelece que o poder político supremo segue-se naturalmente da comunidade humana perfeita e que, por este mesmo motivo, pertence a toda a comunidade, exceto se for transferido para outro por via de uma nova instituição - porque, à luz da razão, não há lugar para qualquer outra determinação, nem se postula uma outra mais imutável[ . . . ]. A comunidade civil perfeita é livre por Direito Natural e não está sujeita a homem algum fora de si, mas detém em si, na verdade, toda ela o poder, o qual é democrático conquanto não mude".04'

É neste sentido que Francisco Suárez nos diz que tudo o que puder ser referido sobre o poder que têm os homens para ditar leis civis é igualmen­ te válido tanto para cristãos como para os pagãos, sendo certo que se os cristãos podem ser senhores dos pagãos, também estes podem ser senhores dos cristãos, "como homens que são"05l, ainda que não possuam uma alma reta, desde que o seu governo não prejudique de forma clara e manifesta o bem espiritual dos súbditos cristãos, pois, nesse caso, seria um governo in­ justo e tirânico e não poderia ser tolerado. No entanto, o mesmo princípio se aplicava do lado cristão, pois se um príncipe cristão se transformasse em tirano, podia ser destituído à luz do direito de resistência ativa06l. É o que ensina Pedro Simões, no seu manuscrito latino sobre a guerra, de 1575: "Se[o príncipe pagão] não oprimir os cristãos, nem governar a república à maneira de um tirano, mas conforme o fim natural, não poderá ser priva­ do do seu domínio, pelo simples facto de não ser cristão nem administrar a 112' Diz este respeito Francisco Suárez nas suas lições na Universidade de Coimbra: homem foi criado por Deus naturalmente livre e cada homem só recebeu imediatamente de Deus poder para dominar os brutos animais e os seres inferiores." , Defensio Fidei . .., III, Principatus Politicus, II. 1 1 . til! Idem, II, 8. 1 141 Idem, II, 8 1151 Idem, IV, 4. 1 1 61 Cf. Pedro Calafate, Da Origem Popular do Poder ao Direito de Resistência . . . , Lisboa, 2012.

"O

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ESCOLA I BÉRICA DA PAZ - VOLUME 1

república conforme o bem espiritual, e uma vez provado o facto de que ele é o legítimo senhor, nem o sumo pontífice nem a Igreja têm jurisdição sobre ele". 1171

No mesmo sentido se pronunciara Luis de Molina, ao proclamar nas suas lições de Évora que: "Tanto o domínio de jurisdição como o de propriedade são comuns a todo o género humano e o seu fundamento não é a fé nem a caridade" . 1181

Então, do ponto de vista da natureza e tomadas em si mesmas, todas as soberanias têm o mesmo fundamento na razão natural dos homens, assim se conciliando a origem divina do poder com a tese da origem popular. Por consequência, não tendo o poder civil origem nem na fé nem na ca­ ridade, mas sim na razão natural, comum a todos os homens, não perdem os pagãos e gentios esse poder por razões de fé ou de pecado mortal. Logo, o título de infidelidade não pode ser invocado para a ocupação violenta dos territórios dos pagãos e gentios, não justificando nem a guerra nem a escra­ vatura. Como dizia Martín de Ledesma nas suas aulas de Coimbra, "Os pagãos e os gentios não podem ser privados de domínio com o intuito da fé" _1191

Por outro lado, atendendo à natureza e origem do poder civil, não podia ser invocada a tese de que os imperadores romano-germânicos eram senho­ res do mundo, como herdeiros que eram dos imperadores romanos, que como tal se proclamavam. Não o eram por direito divino, pois não foi esta­ belecido por Deus nenhum poder temporal laico que abarcasse o conjunto da humanidade; não o eram por direito natural, pois vimos que por nature­ za o poder radica nas comunidades políticas formadas pelos homens; não o eram por direito humano, pois nunca houve título de eleição universal, nem guerra justa de um soberano com o mundo inteiro. Por isso, dirá Serafim de Freitas em 1 625, dissertando em Valladolid sobre o "justo império" : "Nenhum imperador, nem d e facto nem d e direito, tem domínio e juris­ dição em todo o mundo". 1zo1 117 1 Pedro Simões, Annotationes in materiam de bello, 1 575, Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), ms. 3858, ff. 301r-320r. Sobre o passo selecionado: idem, quaestio I, f. 305v. 1ie1 Luis de Molina, op. cit., tomo 1, livro II, disp. XXVII. 1 1 91 Martín de Ledesma, Secvnda Qvartae, Coimbra, 1560, foi. 223 r-v. 1201 Serafim de Freitas, De Justo Imperio Lusitanorum Asiatico, Valladolid, 1625, XVII.

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Logo, os povos do Novo Mundo são legítimos senhores das suas terras e os seus príncipes legítimos governantes dos seus povos, razão por que a in­ tegração no império cristão das soberanias indígenas, legitimamente consti­ tuídas, deveria resultar de um pacto ou contrato livre e responsável entre as partes, uma vez que não houve motivo patente de guerra dos cristãos contra os ameríndios. E nesse pacto ou livre eleição não podia intervir o medo nem a ignorância, pois nesse caso o pacto seria inválido. Fernando Pérez é perentório a este respeito: "Não constitui título legítimo de aquisição de domínio o ato de subiugar os índios por, persuadidos pelos espanhóis, responderem que lhes apraz se­ rem súbditos do rei de Espanha: parece que respondem assim por medo, por a medrosa multidão ver à sua volta homens armados, por serem ignorantes e não saberem o que fazem e talvez nem o que os espanhóis querem deles. Todavia, se sem ignorância e medo se fizer escolha de um príncipe cristão, com consentimento do príncipe infiel (se o tiverem), a escolha não é inválida ou ilícita. Se o príncipe infiel discordar, essa eleição só pode ser válida se ele for tirano, pois neste caso a república pode repudiá-lo". 121 1

Esta formulação corresponde e está em consonância com o que ensinara Francisco de Vitoria em Salamanca: "Quando os espanhóis chegam às Índias dão a entender aos bárbaros que são enviados pelo rei de Espanha para o seu próprio bem e exortam-nos a que o recebam e aceitem como senhor; e eles respondem que estão de acordo [. . .]. Mas esse título não é idóneo. Primeiro, porque é evidente que não de­ veria intervir medo e ignorância que viciam toda e qualquer eleição, e é isso precisamente o que mais se verifica naquelas eleições [ . . .]. Por outro lado, tendo eles os seus próprios governantes e príncipes, não pode o povo, sem causa razoável, aceitar novos chefes em preiuízo dos anteriores, nem podem os chefes índios eleger novo príncipe sem o consentimento do seu povo". 1221

E se por medo atacarem os cristãos, não podiam estes utilizar contra eles a plenitude do direito da guerra, pois a agressão poderia ter por base a igno­ rância invencível, quer dizer, não vencível por meios próprios, e, como tinha ensinado Francisco de Vitoria1231 em Salamanca, podia haver guerra justa de ambas as partes quando era manifesto que de uma parte estava o direito e

121 1 Fernão Pérez, De bello, BNP, ms. 3299, 1588, ff. 217v-247v. Sobre o passo selecio­ nado: idem, f. 231v. 1221 Francisco de Vitoria, De Indis, Salamanca, 1537, 1, 2, 23. 1231 Idem, l, 3, 5-7

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do outro a ignorância e o medo justificado dos ameríndios, vendo homens de porte desconhecido e mais fortemente armados. Mas repare-se que, mesmo em caso de eleição sem medo e ignorância, ela só seria válida se houvesse prévio acordo entre os príncipes gentios e os seus povos, ou entre os povos gentios e os seus príncipes, remetendo sempre para a tese da soberania inicial do povo e para a fundamentação do poder civil na razão natural e num pacto translativo inicial, o qual, uma vez reali­ zado, não poderia ser anulado pela comunidade por razões de mudança de vontade ou preferência, mas apenas por motivo de tirania manifesta. Nos mesmos termos, não poderiam os reis abdicar, sem causa, da autoridade que a comunidade lhes transmitiu, traindo os termos iniciais do pacto. Já próximo do final do século XVII, em 1 694, o Padre António Vieira expressaria de forma eloquente estas conceções sobre a fundamentação jus­ naturalista do poder civil, no colégio inaciano de São Paulo, ao proclamar, contra a vontade dos paulistas e contra o voto dos seus pares, em texto de extraordinária beleza, que "Assim como o espanhol ou genovês cativo em Argel é contudo vassalo do seu rei e da sua república, assim o não deixa de ser o índio, posto que for­ çado e cativo, como membro que é do corpo e cabeça política da sua nação, importando igualmente para a soberania e liberdade, tanto a coroa de penas como a de ouro, e tanto o arco como o cetro" _!241

Sendo embora o poder e autoridade dos príncipes cristãos mais perfeito que o dos príncipes gentios e pagãos, em si mesmo e na sua natureza nada os distinguia. Essa foi uma condição para o lançamento das bases da comu­ nidade internacional, melhor dizendo, daquilo que era reconhecido como comum às comunidades políticas formadas pelos homens, de onde emer­ giam regras e valores universais. E mesmo que as comunidades indígenas, politicamente organizadas, quisessem abdicar da sua liberdade submetendo­ se à tirania, não teriam liberdade para contrariar a tal ponto a sua natureza, sendo os príncipes cristãos, em casos destes, obrigados a não aceitar tal pac­ to ou acordo. Só em caso de necessidade extrema, em aplicação do direito interno para punir um crime, ou em resultado de guerra justa poderiam os homens ver a tal ponto abatida a sua liberdade. E mesmo neste último caso, todos os homens que perdessem a liberdade em resultado de uma guerra jus-

1241 António Vieira, "Voto sobre as dúvidas dos moradores de S. Paulo acerca da administração dos índios" ( 1 694), in Escritos sobre os Índios, coord. Ricardo Ventura, Obra Completa, dir. José Eduardo Franco e Pedro Calafate, Lisboa, Círculo de Leitores, t. IV, vol. III, 2014, pp. 276-286.

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ta por parte dos vencedores tinham o direito de fugir, na condição de regres­ sarem à pátria, recuperando, então, a liberdade que anteriormente tinham. Como veremos no volume II desta coleção, Martín de Azpilcueta será bem claro a respeito do justo império, na sua Relectio apresentada à assem­ bleia magna da Universidade de Coimbra em 1548 e que por antecipação aqui citamos, na exatíssima tradução de António Guimarães Pinto: "Erra a opinião corrente[.. . ], na medida em que pensa que por direito divino é necessário que exista uma única soberania laica sobre o mundo in­ teiro, da mesma maneira que existe uma única soberania eclesiástica. Porque em primeiro lugar tal não se prova por nenhum direito divino sobrenaturalmente dado ou revelado[. ..]. Em segundo lugar tal não pode concluir-se por nenhuma razão natural[... ]. Igualmente erra um grande número que pensa que o imperador dos romanos é senhor e rei do mundo e da terra porque o imperador Antonino dissera: 'Eu sou senhor do mundo'[.. . ], pois não é de presumir que o imperador Antonino de tal modo carecesse de senso que com aquelas palavras significasse a sua convicção de que era senhor da terra inteira, que, nem mesmo dividida ao meio, jamais se submeteu nem a ele nem a nenhum dos seus predecessores. Conquanto que seja verdade que se todas as cidades da terra e os gover­ nantes delas, aos quais interessasse, acordassem em que um só fosse eleito governante, rei ou imperador de todos, seria verdadeiro governante, rei ou imperador aquele a quem a maior parte escolhesse[. ..], porque é da mesma natureza e espécie o poder com que os reis reinam e o poder com que a si mesmas se governam as cidades livres". (zs1

Por outras palavras, as disposições imperiais não poderiam derrogar as providências naturais, e também na instituição do império deveriam ser res­ peitados o título de eleição e as regras gerais do direito, referentes aos títulos legítimos de aquisição do poder civil.

3. A rudeza dos povos não lhes tolhe a liberdade nem o direito ao domínio de jurisdição e posse Outro aspeto não menos relevante era o da negação do argumento da conquista para a civilização, quer dizer, a tese de que a rudeza dos povos lhes tolhia o direito ao domínio. À luz daquele argumento, no caminho unilinear e universalizante da cultura, os povos mais bárbaros poderiam ser submetidos pela guerra aos povos mais sábios e prudentes, com o argu-

1251

Manín de Azpilcueta, op. cit., p. 98.

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mento de que assim seriam beneficiados e edificados. Se assim fosse, e se se considerasse que os ameríndios ou os africanos eram mais rudes e incultos, poderiam os cristãos submetê-los pela guerra, reduzindo-os à escravatura, no quadro do conceito aristotélico de escravatura natural. Este argumento era também cuidadosamente rebatido pelos nossos mes­ tres de Coimbra e Évora, na sequência dos demais autores da escola de Salamanca. Por isso, Martín de Ledesma proclamará em 1 560, na Universidade de Coimbra: "Ainda que algumas nações sejam rudes ou imbecis, não é lícito fazer-lhes a guerra ou ocupar as suas terras".126l

Por sua vez, nas suas lições de Évora, ensinava Luis de Molina: "Nem sequer cumpre discutir se é justa causa de guerra submeter uma nação por ser bárbara ou incivilizada e mais disposta para ser governada por outros e educada nos bons costumes do que para reger-se a si mesma. Mesmo quando não f a/tem autores que afirmem ser esta razão suficiente para submeter todos os brasileiros e os demais habitantes do Novo Mundo, assim como os africanos, reduzindo-os à escravatura, sendo que, como escravos, todos os seus bens passariam para os seus senhores, sendo privados das suas terras. Como já referi, de maneira alguma estamos perante causa suficiente para legitimar a escravatura". 1 27l

Ao negar esta tese sobre a guerra justa contra os povos mais rudes, se­ guida de escravatura, não podiam estes autores deixar de enfrentar a tese aristotélica da escravatura natural128l, explanada no livro da Política, distin­ guindo-a da escravatura legal. Um dos que enfrentou decisivamente a ques­ tão, na escola de Salamanca, foi Domingo de Soto, na sua obra intitulada De iustitia et iure, publicada em 1 556, sustentando que do texto de Aristó­ teles apenas podia concluir-se que "podemos repelir pela força e submeter à ordem aqueles que, como feras, andam errantes sem respeito algum pelas

leis do pacto, invadindo o que é alheio por onde quer que passem" 129l.

Martinho de Ledesma, op. cit., foi. 225v. Luis de Molina, op. cit., tomo 1, livro III, disp. CV. "Todos os seres que se diferenciam dos demais tal como a alma se diferencia do cor­ po e o homem do animal [ . . . ) são escravos por natureza, sendo para eles melhor que estejam submetidos a esta classe de mando [ . . . ], pois é escravo por natureza aquele que pode ser de outro e o que participa da razão mais para percebê-la do para possui-la." Aristóteles, Política, liv. 1, 8-10. 1291 Domingo de Soto, De iustitia et iure, Salamanca, 1 556, liv. IV, q. II. 126l

127!

129!

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A interpretação de Soto, mestre de Alcalá e Salamanca, fará escola, pois a encontramos, com pequenas alterações que não atingem a substância, tan­ to em Martín de Ledesma como em Fernando Pérez. Ledesma ensinara na Universidade de Coimbra que o que dizia Aristóteles deveria ser entendido a respeito daqueles homens que viviam à maneira das feras, não respeitando as leis do pacto que institui o poder civil: "Esses tais podem ser submetidos

pela força e coagidos a obedecer a alguma ordem, não, porém, todos os homens que são rudes e agrestes"!30l . Já Fernando Pérez, limitará também, de forma drástica, o alcance possível da tese de Aristóteles: "tal deve entender-se não porque por natureza exista escravidão [ .], caso contrário seria lícito obrigar à escravidão homens por ..

sua natureza não menos rudes e boçais que por vezes nascem entre nós"!3 1l.

Esta afirmação do princípio de reciprocidade, fazendo valer para o seio das sociedades cristãs da Europa o que queríamos fazer valer para as so­ ciedades dos outros povos, é um dos princípios sempre presentes na Escola Ibérica da Paz. Aliás, Bartolomé de Las Casas servira-se deste mesmo argumento na sua polémica com Juan Guinés de Sepulveda, em Valladolid, conferindo-lhe par­ ticular brilhantismo, ao lembrar ao Doutor Sepúlveda que, no tempo da do­ minação romana, também a gente hispânica era fera e bárbara, sendo então de lhe perguntar se lhe pareceria bem "que os romanos fizessem repartição

dos hispanos, dando a cada tirano a sua parte, como se fez nas Índias, para que, apoderando-se da prata e do ouro que então havia na Hispânia, pere­ cessem todos os nossos avós em suas almas e corpos"!32l. Logo, tanto em termos sincrónicos como diacrónicos, as normas que valiam para um povo, deveriam valer para os demais. Ainda neste domínio, tanto quanto me é dado conhecer, o autor que le­ vou mais longe a crítica a Aristóteles foi o jesuíta espanhol José de Acosta, missionário no México e no Peru, que em Salamanca publicou a obra De Procuranda Indorum Salute ( 15 8 8 ), e que a dado passo corta com o Esta­ girita, ao proclamar que o que este escreveu na Política sobre a escravatura natural em nada nos deveria preocupar: "Não devemos preocupar-nos demasiado com o que Aristóteles escreveu mais por motivos de adulação do que de filosofia" .133 1

13o1 131 1 1321 1331

Martim de Ledesma, op. cit., foi. 225v. Fernão Pérez, op. cit., f. 228v Bartolomé de Las Casas, Controversia con Sepulveda, Valladolid, 1 5 5 1 , Réplica 8.3. Joseph de Acosta, De Procuranda Indorum Salute, Salamanca, 1 5 8 8, V, 1-2.

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De facto, entende o missionário espanhol que a intenção de Aristóteles fora a de adular Alexandre Magno que, atraído pela ambição do poder, quis estender as bandeiras macedónicas a todo o universo. Ora, se levarmos em conta que Acosta era jesuíta e que o aristotelismo escolástico era a matriz do seu pensamento, poderemos mais facilmente avaliar a importância do passo que aqui deu, ao cortar tão claramente com o mestre. Portanto, a rudeza dos homens e dos povos não lhes impedia a liberdade nem o domínio de jurisdição e posse, na condição de não agredirem os de­ mais homens ou povos que respeitam as leis e os pactos. Então, o argumento da superioridade cultural não dava ao imperador título justo de domínio, pois se tal título fosse aceitável, tanto na ordem interna como na ordem internacional, qualquer homem ou qualquer povo poderia julgar-se mais sábio do que os outros, subvertendo-se totalmente a vida social dos homens. Dizia, por isso Melchor Cano, conhecedor da soberba e vaidade humanas e Professor de Salamanca e Alcalá, que "nenhuma tese seria mais apta para semear a discórdia entre os povos do orbe. "(341

4.

A punição dos crimes contra o género humano.

Porém, havia uma linha vermelha, como em toda a ordem jurídica, que caso fosse ultrapassada justificava a intervenção armada contra outros Es­ tados ou povos, uma linha a partir da qual se passava da rudeza para a bar­ bárie, intolerável à luz dos critérios e valores universais do género humano. Falamos dos sacrifícios humanos aos ídolos ou da morte de seres humanos inocentes com o exclusivo intuito de serem comidos, qualificados como cri­ mes contra o género humano. Com efeito, qualquer povo, cristão ou gentio, mesmo que não nos ofen­ desse ou agredisse diretamente nas nossas terras ou nas nossas pessoas, co­ metia uma agressão insuportável contra nós e contra o conjunto do género humano se violasse o direito à vida e à integridade física de pessoas inocen­ tes, fossem quem fossem, estivessem onde estivessem e tivessem o soberano que tivessem, pois então os seus príncipes não seriam já soberanos, mas ti­ ranos, e à luz do direito de resistência ativa podiam e deviam ser destituídos. Nestes casos, o sangue dos inocentes era um grito universal de socorro que deveria ser ouvido e impedido pela guerra, se não existissem mais al-

1141 Melchor Cano, De Dominio Indorum, ms. da Biblioteca Vaticana, Vat. Lat. 4648, ff. 28-40. Transcrição do manuscrito latino publicada in Corpus Hispanorum de Pace, vol. IX, dir. de Luciano Pereii.a, pp. 555-5 8 1 . Sobre a passagem citada: p. 560.

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ternativas, em nome da dignidade do género humano e com a legitimidade conferida pela autoridade universal do orbe, que transformava cada ser hu­ mano em primeiro fundamento da comunidade internacional. Ensinava, por isso, Vitoria em Salamanca que: "O orbe inteiro, que de certo modo constitui uma única república, tem poder para promulgar leis justas e convenientes para todos, como são as leis do direito das gentes. Segue-se que pecam mortalmente os que violarem o direito das gentes, seja na paz seja na guerra [.. . ]. Não é lícito a um reino particular não querer ater-se ao direito das gentes, pois foi promulgado pela autoridade do orbe inteiro". 1351

À luz desta autoridade do orbe, virtualmente instituída com base na consciência jurídica universal, o sacrifício de seres humanos inocentes, seja para serem comidos seja para oferenda aos ídolos, deveria ser punido pelos cristãos por meio da guerra no Novo Mundo ou em qualquer outra parte da terra. Estas práticas agrediam o género humano como um todo e, nestes termos, os cristãos tinham o dever de as impedir, mas tendo o cuidado de sublinhar que a vitória obtida nesta guerra não lhes daria o direito de ocu­ par os territórios destes povos, reduzindo-os à escravatura e apoderando­ nos dos seus bens. Como sublinhou Heinrisch Rommen1361, a propósito de Suárez, estas te­ ses tinham a sustentá-las a conceção organicista da sociedade e da humani­ dade que caracterizava a filosofia escolástica de matriz tomista: a sociedade possuía uma essência que era mais do que a soma dos indivíduos, tal como a humanidade consistia em algo mais do que soma dos interesses particulares dos Estados que a compunham, transformando-se assim num todo indepen­ dente e vivo que, atendendo aos padrões culturais do humanismo católico, tendia a identificar-se com um "orbis christianus potencial " , equacionando "a questão fundamental da supra-ordenação e da subordinação" 1371. Mas a par disto, lembra o mesmo H. Rommen, os teóricos escolásticos firmaram um princípio fundamental: o do valor absoluto da pessoa hu­ mana, cujo fim era transcendente ao Estado, ou seja, não se esgotava nas relações intraestatais ou interestatais. Então, os indivíduos nunca podiam perder, apesar de membros de um organismo, a sua dignidade moral nem

1351 Francisco de Vitoria, De potestate civili, Salmanticae, 1 528, 2 1 , tradução do latim de Miguel Sena Monteiro. 1361 Heinrisch Rommenn, La Teoria dei Estado y de la Comunidad Internacional en Francisco Suárez, trad. espanhola de Valentin Yebra, Madrid, 1951, p. 50. 1371 Idem, p. 50.

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podiam abdicar das prerrogativas essenciais que sustentavam a sua humani­ dade. A este respeito escreveu Fernando Pérez, em texto notável: "É contra o direito natural matar inocentes, quer indígenas quer estran­ geiros, ou para comê-los ou para sacrificá-los aos ídolos. Pelo que, se se objetar que todos estes bárbaros consentem voluntária e livremente naquele ritual, e não se pratica injustiça contra quem anui, responde-se[.. . } que eles não têm por si direito para poderem entregar-se a si ou os seus à morte. Em segundo lugar, responde-se que eles praticam uma gravíssima injustiça, pelo que podem ser vencidos por nós, que fazemos parte do género humano, na sua condição de injustíssimos agressores do género humano".(38)

Por outro lado, entendia-se também que a noção de proporcionalidade dos meios deveria ser respeitada, por não ser aceitável combater o terror com o terror, causando maiores danos do que os que se pretendia evitar, de modo a impedir o que hoje chamaríamos "terrorismo de Estado" . Por isso, também, a guerra movida contra u m Estado e m defesa dos di­ reitos e da dignidade da pessoa humana não era uma guerra conduzida para recuperar algo nosso, mas para defender os inocentes enquanto pertenciam ao género humano, logo, não era legítimo a quem declarava uma guerra com base neste título apoderar-se dos bens do adversário, reduzindo esses povos à escravatura em seu proveito. Não havia, na esfera internacional, em virtude da referida conceção or­ ganicista, uma plenitude sem limites da soberania dos Estados, como tam­ bém não podia considerar-se que, na mesma ordem internacional, a única regra a ter em conta fosse a da sobrevivência. A ordem jurídica internacional não procedia em exclusivo dos Estados e não estava encerrada nas suas leis, pois, como defendeu Martín de Ledesma, se a guerra fosse conveniente para um Estado, mas prejudicial à Humanida­ de, ela seria, por isso, manifestamente injusta.139) Assim se lançaram as bases de um princípio de garantia supranacional de proteção dos direitos naturais e da dignidade da pessoa humana, postulan­ do que há no mundo dos homens, das sociedades e na vida interna dos Es­ tados um mínimo ético inultrapassável, cujo desrespeito justificava o direito de intervenção, pela via das armas, embora depois de admoestação e como último recurso. Então, o ser humano possuía um estatuto supranacional que o transformava em fundamento da comunidade internacional.

1381 1391

Fernando Pérez, op. cit., f. 228v. Martín de Ledesma, op. cit., foi. 3 16r-v.

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O direito das gentes não era o movimento espontâneo das instituições, não se limitando os homens a entender o direito "tal como é", na base de simples juízos constatativos e no quadro de uma intolerável sujeição ao Poder.140l Acima do Poder estavam os princípios, a "recta ratio", de origem cicero­ niana, a "razão da Humanidade", a conceção objetiva da justiça que valori­ za os princípios, não dando guarida à comodidade das posições relativistas, que posteriormente se refugiaram na diversidade das culturas e na respetiva aceitação voluntária de certas práticas que ofendiam a consciência jurídi­ ca universal. Por isso, como diziam os mestres de Salamanca, Coimbra e Évora, mesmo que os índios consentissem nessas práticas, os cristãos não o podiam permitir, por isso que configuravam uma agressão ao género huma­ no e uma quebra dos princípios mais básicos da Paz141l, fundada na Justiça. Afinal, como disse Gabriela Mezzanoti, o instituto da intervenção hu­ manitária, tal como o entendemos no mundo de hoje, constitui a aplicação contemporânea de um paradigma antigo, que se sobrepôs à situação in­ ternacional vigente ao longo dos séculos XVII e pelo menos até à Segunda Guerra Mundial, marcada pela consideração dos Estados como principais atores na ordem internacional. Neste jus ad bellum contemporâneo, perante as violações ocorridas internamente à soberania dos Estados, em casos de limpezas étnicas, genocídios e outros crimes contra a humanidade que jul­ gávamos já impossíveis, verificou-se "a ascensão do princípio que legitima

o uso da força armada para fins de salvaguarda dos direitos humanos de povos oprimidos nos seus próprios Estados" !4l l , Pois será esse o princípio que aqui veremos largamente enunciado pelos filósofos hispanos do renascimento, nomeadamente por Fernando Pérez, Pe­ dro Simões e Luis de Molina!43l cuja atualidade dá razão às considerações do Prof. António Cançado Trindade, ao sublinhar a importância do eterno retorno do direito natural, bem como a atualidade da posição principista dos fundadores do moderno direito das gentes, pensando em Vitoria e em Suárez:

1401 Michel Villey, O Direito e os Direitos Humanos, trad. Maria Galvão, São Paulo, 2007, p. 3. 14 1 1 Cf. Luciano Pereiia, "La lntervención de Espaiia en América ", in Juan de la Peiia, De Bello contra Insulanos, Corpus Hispanorum de Pace, vol. IX, Madrid, 1 982, p. 74-75. 1421 Gabriela Mezzanoti, Direito, Guerra e Terror, São Paulo, 2007, p. 89 .. 143 1 Dado que não publicamos neste volume as disputações de Molina no seu tratado De iustitia et iure, citamos aqui o respetivo texto: " É lícito impedir que os infiéis e quaisquer outros homens cometam pecados que suponham injúria aos inocentes. E se não quiserem abster-se destes crimes, será lícito declarar-lhes guerra por esta causa, nos termos do direito bélico.", Luis de Molina, De iustitia et iure, op. cit., tomo 1, liv. III, disp. C.

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"O ordenamento internacional tradicional, marcado pelo predomínio das soberanias estatais e exclusão dos indivíduos, não foi capaz de evitar [. . .] as violações maciças dos direitos humanos e as sucessivas atrocidades do nosso século, inclusive as contemporâneas [.. . ]. Tais atrocidades têm desper­ tado a consciência jurídica universal para a necessidade de reconceitualizar as próprias bases do ordenamento internacional." t441

Noutro passo, diz o mesmo autor pensando na tradição que de Cícero e Tomás de Aquino conduz a Vitoria e a Francisco Suárez: "Parece-me de todo apropriado resgatar os ensinamentos de um direito impessoal que é o mesmo para todos - não obstante as disparidades de poder - e que situa a solidariedade acima da soberania, e que submete os diferendos ao juízo da 'recta ratio'. O renascimento -- que sustento firmemente - em nossos tempos desses ensinamentos clássicos, que ademais propugnam uma ampla concepção da personalidade jurídica internacional (incluindo os seres humanos e a humanidade como um todo), pode certamente ajudar-nos a enfrentar mais adequadamente os problemas com que se defronta o Direito Internacional contemporâneo, movendo rumo a um novo jus gentium do século XXI o Direito Internacional para a humanidade". t451

5. O cumprimento de ordens superiores não escusa os soldados de crimes contra o género humano. Voltando aos mestres peninsulares aqui publicados, na mesma categoria de crimes contra o género humano estavam as ações dos soldados na guer­ ra manifestamente injusta, mesmo quando em obediência estrita a ordens superiores. Ou seja, a invocação de ordens superiores não escusava em ab­ soluto um soldado ou um súbdito por atos não cobertos pelo direito bélico e contrários ao direito natural, cabendo-lhe, em caso de dúvida manifesta sobre a justiça da guerra, examinar as suas causas. Então, caso concluísse tratar-se de guerra injusta, o soldado, mesmo o de mais baixa condição, era obrigado, no foro externo e no foro interno da consciência, a recusar-se acompanhar o seu rei, porque, como lembrava Fernando Pérez, um soldado

1441 Antônio Augusto Cançado Trindade, "A Emancipação do Ser Humano como Sujeito do Direito Internacional e os Limites da Razão de Estado", in A Humanização do Direito Internacional, Belo Horizonte, 2007, p. 1 1 1 . 1451 Ibidem, A Humanização do Direito Internacional, Belo Horizonte, 2007, p, 16.

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não tinha o estatuto de um carrasco, a quem cumpria executar a sentença de um juiz legítimo sobre um réu. 1461 O alcance deste preceito, exigindo de cada soldado ou súbdito a desobe­ diência aos superiores e, mesmo, ao seu rei, por imperativos de consciência, revela-se como uma das traves-mestras da Escola Ibérica da Paz no quadro da afirmação da dignidade da pessoa humana, mesmo nas situações mais extremas e difíceis da guerra e da rígida subordinação hierárquica. Não havia, pois, escusa para a barbárie, tida por ofensa à dignidade do próximo. Nestes casos valia a afirmação do apóstolo Pedro: "Importa mais obedecer a Deus do que aos homens" (At 5, 29). Este princípio foi acautelado pelos filósofos hispânicos do renascimento, como de forma tão eloquente aqui se pode ler em textos de Pedro Simões, António de São Domingos ou Fernando Pérez, sublinhando todos que o soldado não podia assumir-se como um ser indiferente aos critérios mais elementares da justiça da guerra e que a ignorância grosseira não isentava de culpa, ainda que sob a capa do cumprimento de ordens. Ao conceder a todos a lei natural, Deus deu a cada homem, como ensina­ ra São Paulo, a capacidade para distinguir o bem do mal, pois "o que a lei

ordena está escrito nos seus corações, dando-lhes testemunho disso os seus pensamentos e a sua consciência. " (Rm 2, 14- 1 5 ) . Mas não eram apenas estes textos bíblicos a ecoar n o contexto d e huma­ nização das ações do soldado, como também o princípio estabelecido por Francisco de Vitoria, à luz do qual "Não é lobo o homem para o homem, senão homem" 1471 , ao contrário do que posteriormente declararia Thomas Hobbes. E em ser "homem ", deveria assumir-se sempre como tal, na sua plenitude, obedecendo aos ditames da recta ratio, respondendo não só no foro externo da lei como também no foro interno da sua consciência. Lembra então Fernando Pérez que sendo claros e manifestos os motivos da injustiça de uma guerra, "no foro externo os soldados, mesmo os de mais

baixa graduação, não devem ser escusados, como tão-pouco no foro íntimo ou sacramental" 148 1 • E se a convicção sobre a injustiça da guerra for formu­ lada já depois de iniciadas as hostilidades, "Todos, quer súbditos quer não súbditos, por maior diligência que pri­ meiro se faça e boa fé com que começarem a combater, são obrigados a desistir da guerra logo que tiverem a certeza de que a guerra é injusta". 1491

1461 1471 1491 1491

Cf. Fernando Pérez, op. cit., f. 237. Francisco de Vitoria, De Indis, Salamanca, 1537, 1, 3, 23, Fernando Pérez, op. cit., f. 236. Idem, f. 237v.

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Se assim ensinava Fernando Pérez, em Évora, o mesmo ensinava António de São Domingos em Coimbra. Para o Professor de Coimbra, um soldado não poderia pôr de parte a sua consciência em nome da rigidez hierárquica e da imposição da obediência, porque combater numa guerra que se sabe ser injusta implica matar inocentes, e quem mata um inocente comete pecado mortal. Diz o frade dominicano: "Todos os soldados, quer súbditos quer não súbditos, se a guerra encerra uma clara injustiça, não podem avançar com o rei para a guerra. E prova-se porque eles veem claramente que não podem ir, logo, se vão, vão contra a consciência, e, por consequência, pecam mortalmente". 1501

Pedro Simões é igualmente perentório: "Os argumentos e indícios da injustiça da guerra poderão ser tais e tão manifestos que, se forem ignorados, não escusam os soldados. Estes, pelo contrário, em casos tais, terão de examinar, com diligência, a situação e as causas da guerra " , 151 )

Na base destas considerações dos mestres de Coimbra e Évora estava a

Relectio de Jure Belli de Francisco de Vitoria, que tinha estabelecido, em 1 539, o princípio de que "Se ao súbdito consta a injustiça da guerra, não lhe é lícito lutar, nem mesmo por mandato do príncipe".1521

Nos mesmos termos, tampouco poderá invocar-se cumprimento de or­ dens superiores, a fim de se isentar de culpa.

6. Jus

communicationis e jus commercii

Entre os títulos legítimos de guerra e ocupação a Escola Ibérica da Paz, na sequência de Francisco de Vitoria, deu especial atenção ao direito ao co­ mércio, enquadrado por pelo direito mais amplo de viajar ou de peregrinar, acabando a questão do direito ao comércio por se complexificar, entre nós,

15oi 15 • 1 1.12 1

António de São Domingos, op. cit., f. 68v. Pedro Simões, op. cit., f. 306v. Francisco de Vitoria, De iure belli, Salamanca, 1 539, IV, 1, 6-7.

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no quadro das polémicas sobre o monopólio da navegação para as Índias ocidentais e orientais, na sequência das concessões papais. Vitoria havia considerado que um dos principais títulos que poderia jus­ tificar a guerra contra os índios e a permanência dos espanhóis na América era a licitude do estabelecimento de relações comerciais com os habitantes dessas terras, desde que as mesmas os não prejudicassem, considerando tal preceito inscrito no direito das gentes. De facto, ao sublinhar que esta atividade em nenhum caso poderia ser prejudicial aos naturais daquelas terras, Vitoria estava a referir-se, natural­ mente, não a um comércio predatório, orientado pela cobiça e pela acumu­ lação do lucro ad infinitum, mas a uma atividade fundada em padrões éti­ cos, como era aliás exigência das conceções económicas de matriz católica. Veja-se, aliás o caso da obra de Frei João Sobrinho, o Tratado da justiça Comutativa, publicado em Paris em 1496, que define o comércio como " Um certo hábito na vontade, regulado pela inteligência, mediante o qual alguém troca alguma coisa por outra sem fraude usurária, guardando sempre a condição de se observar a igualdade de valor nas coisas trocadas, conforme a recta razão" . 1531

No fundo, o comércio deveria ser entendido no contexto da amizade natural entre os homens, trazendo aos homens o que eles precisam e garan­ tindo, ao mesmo tempo, a honesta sustentação do comerciante, em função da qual se determinava o acréscimo do preço, o qual se regulava pela "igual­ dade da justiça com as suas circunstâncias"(541, entre as quais se considerava o transporte, armazenamento, melhoramentos introduzidos nos produtos e afins. Integrava-se, portanto, numa conceção da economia ao serviço do homem. Então, vincando o jus amicitiae, escreveu Vitoria: "Os príncipes[dos bárbaros} são obrigados, por direito natural, a amar os espanhóis. Logo, não lhes será lícito impedi-los de procurar o seu bem-es­ tar, na condição de que não sejam prejudicados os cidadãos e os naturais do país". 1551

No quadro destes princípios estava também o direito de viajar ou pere­ grinar, por isso que, para Vitoria, no princípio do mundo, quando todas as

illl João Sobrinho, Tratado da Justiça Comutativa, publicado por Mozes Amzalak, Frei João Sobrinho e as Doutrinas Económicas na Idade Média, Lisboa, 1 945, p. 1 79. 1541 Ibidem. 1551 Francisco de Vitoria, De Indis, l, 3, 2-3.

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coisas eram comuns, os homens podiam dirigir-se às regiões que entendes­ sem, não tendo tal direito sido revogado pela posterior divisão das coisas. De facto, para os escolásticos, Deus não dividiu as terras entre os ho­ mens e os povos, mas criou-as comuns a todos, logo, o domínio de posse foi introduzido pelo direito humano, sublinhando Vitoria que esta divisão não foi de molde a suprimir aquele primitivo direito, "pois não foi intenção

das gentes impedir, por semelhante divisão, a comunicação e o trato entre os homens" .156l Então, no conceito de "trato entre os homens" estava o direito de estes se estabelecerem em territórios alheios e de comerciarem com os naturais deles, desde que os não prejudicassem, pelo que refere o fundador da Escola de Salamanca: "É lícito aos espanhóis estabelecerem relações comerciais com os bárba­ ros, desde que tal comércio não seja feito em prejuízo da pátria dos mesmos bárbaros {. ..], pois parece ser também de direito das gentes que os estran­ geiros podem ter relações comerciais, desde que sem prejuízo para os nacio­ nais". 1571

Um dos mestres de Salamanca que deu um coloração muito especial a este direito de peregrinar e viajar por territórios alheios, a que estava asso­ ciado o jus commercii, foi Merchor Cano, limitando tais direitos à condição do bem-estar dos naturais daquelas terras: "O primeiro título [legítimo de presença dos espanhóis na América] funda-se no direito natural de sociedade e de comunicação. De facto, foi dado pelo direito das gentes a qualquer [homem] a possibilidade de viajar para onde quiser, desde que sem injúria ao próximo [...] e o oposto seria desumano. Por isso, se existirem alguns que proíbam viajar e atuem com crueldade, incorrem em crime de injúria. Mas se porventura os índios nos fizerem alguma vez esta injúria, tal se deve, por um lado, ao facto de serem pusilânimes, e por outro ao facto de os espanhóis não aparecerem como viajantes, mas como invasores. A não ser que se designe Alexandre Magno como viajante".1 5s1

O pensamento de Francisco de Vitoria e dos mestres de Salamanca encontrou amplo acolhimento entre os autores dos manuscritos que aqui Francisco de Vitoria, Idem, 1, 3, 1. Idem, 1, 3, 2-3. 1 58 1 Melchor Cano, De dominio indorum, ms. da Biblioteca Vaticana, Vat. Lat. 4648, ff. 28-40. Transcrição do manuscrito latino in Corpus Hispanorum de Pace, vol. IX, dir. Lu­ ciano Pereiia, p. 579. 1561

1571

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publicamos, tanto em António de São Domingos, como em Pedro Simões e Fernando Pérez. Diz, então António de S. Domingos: "Faz parte do direito das gentes poder qualquer pessoa viajar por terra alheia e negociar entre quaisquer povos, e também se quer ser cidadão em al­ guma cidade, contanto isto se faça sem qualquer dano ou simulação e desde que os mesmos não sejam inimigos " . 1591

Sublinha também Pedro Simões que importa respeitar o direito natural de sociedade e comunicação, bem como o direito ao comércio, sempre na condição de daí não haver prejuízo para os naturais daquelas terras e de o mesmo ser desenvolvido de forma pacífica, considerando justa causa de guerra quaisquer impedimentos violentos a estes direitos. No entanto, Pedro Simões considera legítimo o monopólio comercial dos portugueses e espanhóis nas índias ocidentais e orientais, em virtude das doações papais, na medida em que emanavam de justa causa para a proibi­ ção do comércio aos demais príncipes nas duas Índias. Invocava-se aqui a teoria do poder indireto do papa em assuntos temporais. De facto, não tendo o papa poder temporal, tinha no entanto poder so­ bre as coisas temporais em ordem ao fim espiritual, podendo, por isso, como diz o mesmo Pedro Simões, "proibir aos outros o comércio com as outras

nações por causa da religião" . É a mesma tese que encontramos n o manuscrito latino d e Manuel Soa­ res, pois entende que sendo o comércio de direito das gentes, pode o papa, com justa causa, atribuir a exclusividade a uns príncipes cristãos em detri­ mento de outros, atendendo ao fim espiritual: "O papa pode, sem injustiça contra alguém, recomendar a seu talante, aos príncipes que lhe aprouver, a função da pregação evangélica entre aque­ les bárbaros e, por esse motivo, sempre que se fizer mister proibir aos cristãos o citado trato comercial " . '6º1

No mesmo sentido vai Pedro Barbosa, no ms. 2782 da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra1611: o príncipe, com causa justa, pode apar­ tar-se do direito das gentes, considerando a doação papal aos espanhóis e portugueses como causa justa para proibir a navegação e o trato comercial 1591

António de São Domingos, op. cit., f. 67v. Manuel Soares, ms. 2780 da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (BGUC), f. 374. Excerto traduzido por António Guimarães Pinto. 161 1 Pedro Barbosa, ms. 2782 da BGUC, n.º 49, f. 371. 1601

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a outros príncipes e povos, na medida em que tinha em vista um direito do papa e da sua Igreja, anunciada nos Evangelhos: a pregação universal. Mais explícito, a este respeito será Frei Serafim de Freitas, no seu livro sobre o Justo Império Asiático dos Portugueses, publicado em Valladolid em 1 625, onde dá o quadro explicativo: "No entanto, competindo ao Supremo Hierarca da Igreja o direito e a obrigação de enviar missionários para as regiões dos infiéis, e devendo as missões para os índios transportar-se em navios, e carecendo para isso de dinheiro, homens e armas, o que não pode de modo algum sustentar-se sem comércio e lucros dele resultantes, como meios para aquele fim sobrenatural, isto é, o de conseguir a conversão dos infiéis [. . .], claramente se vê que foi lícito ao Sumo Pontífice conceder somente aos legados por si escolhidos o di­ reito de navegação e comércio, proibindo-o aos demais, para que não pertur­ bassem e impedissem esta conversão e os meios a ela conducentes[. . . ]. Daqui resulta que o rei de Portugal, se não enviar aos infiéis pregadores e ministros do Evangelho, não pode proibir às outras nações cristãs o comércio com eles [. . . ]. É esta só a razão suficiente por que se acha interdito às outras nações esse direito, aliás comum a todas, nos termos do direito das gentes " . 1621

7.

A crítica da teocracia

Limitado o poder do imperador aos títulos legítimos de aquisição do poder civil, com destaque para a eleição e guerra justa, a que acrescia a he­ rança e doação, colocava-se igualmente a questão do poder e autoridade do papa para doar os domínios dos outros povos e para invocar, contra eles, o braço armado dos príncipes cristãos. Como já vimos, para os escolásticos de Coimbra e Évora que aqui publi­ camos, todo o poder vem de Deus pelo povo, tese que, à partida, contradizia a tradição decretalista da teocracia. Esta limitação do poder papal, conduzida por jesuítas e dominicanos das Universidades de Salamanca, Alcalá, Valladolid, Évora e Coimbra, exercia­ se em plano de adversidade e a ela dedica Martín de Azpilcueta a Relectio que publicamos no segundo volume desta coleção. Era o caso, muito citado pelos autores desta Escola, do Bispo de Silves do século XIV, Álvaro Pais, que, apoiado no cardeal ostiense1631, sustentava 1621

Serafim de Freitas, De iusto imperio lusitanorum asiatico, Valladolid, 1625, VII, 8-9. Enricus de Segusio (Hostiensis), ln tertium Decretalium librum commentaria, e. 8, n.º 14-16. 1631

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a tese de que o papa era dominus orbis no temporal e no espiritual, na qual viria a basear-se uma ética colonial de conquista e subjugação dos gentios da América. Álvaro Pais, tal como a maioria dos teocratas dos séculos XIV e XV, tinham a seu favor a interpretação literal(641 da Extravagante do papa Bo­ nifácio VIII, escrita em 1 3 02, intitulada Unam sanctam. Nos termos desta Extravagante podia ler-se que "quem nega que em poder de Pedro se encon­

tra a espada temporal, não toma em atenção as palavras do Senhor, quando disse: 'Embainha a espada?"' e, mais adiante, sublinhava Bonifácio VIII que "Em poder da Igreja encontram-se tanto a espada espiritual como a tempo­ ral" . Então, para Álvaro Pais, "o papa tem jurisdição universal em todo o mundo, não só nas coisas espirituais, mas também nas temporais [. . . ] por­ que assim como há um só Cristo, sacerdote e rei, senhor de todas as coisas, assim também há um só vigário-geral seu na terra e em tudo [. . . ]. O papa é vigário não dum puro homem mas de Deus [ . . . }; logo, também pertencem ao papa a terra e a sua plenitude [porque] Cristo concedeu os direitos dos dois poderes a S. Pedro" . (651 A enquadrar esta plenitude do poder papal estava a tese de que o poder político provém de Deus através do papa, pelo que o poder do imperador e dos demais príncipes seculares era-lhes concedido diretamente pelo pontífice romano e não pelo povo, ao contrário do que defendiam Vitoria, Suárez, Molina e os demais autores da Escola Ibérica da Paz. Já quanto a Henrique de Susa (ou Segúsio), cardeal ostiense, em quem o autor galego se apoiava, sustentava que, com a vinda de Cristo, o poder civil dos infiéis, gentios e pagãos foi-lhes retirado e transferido para a o seu vigário e cabeça da Igreja(661, razão por que o domínio entre os infiéis era de todo ilegítimo. Sublinhe-se, no entanto, que um dos momentos culminantes destas con­ ceções teocráticas, no final da idade média, foi a obra de Egídio Romano, intitulada De ecclesiastica sive de summi pontificis potestate(671, escrita no início do século XIV, onde defende que foi o poder espiritual que instituiu 1641 Refiro a interpretação literal, pois os adversários da teocracia interpretavam a mes­ ma Extravagante de maneira diferente. Sirva de exemplo a Relectio, pronunciada por Martín de Azpilcueta em 1548, perante a Assembleia da Universidade de Coimbra, no final do ano lectivo, em que refere que o papa Bonifácio VIII queria apenas dizer que "o poder laico deve submeter-se ao espiritual quando o interesse das coisas sobrenaturais assim o exigir.", in op. cit., anot. 3, 54. 1651 Á lvaro Pais, De Status et Planctu Ecclesiae, vol. 1, INIC, Lisboa, 1983, pp.347-45. 166 1 Enricus de Segusio (Hostiensis), op. cit., c. 8, n.º 14-16. 1671 Existe desta obra uma excelente tradução em língua portuguesa: Egídio Romano, Sobre o Poder Eclesiástico, trad. L. A. De Boni, Petrópolis, 1 989.

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o poder temporal, razão por que só os reinos que reconhecem o papa como instituidor são legítimos. Para Egídio, a verdadeira justiça, fundamento do poder político, só exis­ te naquela república cujo fundador e governador é Cristo, mas nada está sob o governo de Cristo se não estiver sob o sumo pontífice que é vigário de Cristo. Logo, os povos que não reconhecem a autoridade do sumo pontífice não são legítimos possuidores dos seus bens nem os seus reis legítimos go­ vernantes. Só pelo batismo o homem pode possuir legítimo domínio e por isso os infiéis não são legítimos possuidores. (68l Foi com base em conceções desta natureza, relativas ao senhorio univer­ sal do papa que se fundou uma linha de atuação e expansão imperial cujo melhor exemplo é seguramente o Requerimiento, no qual se formalizaram as conclusões da Junta de Valladolid ( 1 5 1 3 ) , mandada reunir pelo rei de Espanha, Fernando de Aragão, e que constituiu, para o caso espanhol, "o

manifesto da Coroa que os conquistadores deveriam ler aos índios antes da abertura das hostilidades, vindo a transformar-se na fórmula final da nova ideia de justiça colonial"(69l , levada à prática na conquista da América. Foi o conteúdo deste documento que Francisco de Vitoria rebateu ponto por ponto, seguido pelos seus continuadores dos dois lados da fronteira ibérica. Entre os termos do Requerimiento constava a obrigação dos povos ame­ ricanos reconhecerem o "senhorio universal do papa" no temporal e no espiritual, ou seja, nas palavras de L. Perefia: "O Requerimento proclamava o senhorio universal do papa, a doação pontifícia das Índias aos reis de Espanha e o mandato que lhes foi imposto para evangelizar e predicar a fé cristã aos habitantes das terras descobertas e a descobrir. Em virtude destes títulos - senhorio universal do papa, delega­ ção política, única e exclusiva, em favor da monarquia espanhola e direito a evangelizar e predicar a fé católica - o imperador deveria ser reconhecido como soberano sobre os reis e caciques das fndias" . 17o1

No caso estritamente português não seria de mais citar aqui as conces­ sões do papa Nicolau V, ao rei de Portugal D. Afonso V, em 1454, quarenta anos antes de Tordesilhas, na qual determinava que só os portugueses po­ diam navegar para as terras descobertas pelo Infante D. Henrique, confir­ mando ao rei de Portugal 1681 Veja-se Pedro Roche Amas, "Dos poderes, una autoridade: Egidio Romano o la culminación dei pensamienro teocrático medieval cristiano", in El Pensamiento Político en la Edad Media, coord. de Pedro Roche Amas, Madrid, 2010, pp. 1 1 3-140. 1691 Luciano Pereíia , La Idea de ]usticia en la Conquista de América, Madrid, 1992, p. 35. 1701 Idem. pp. 35 e 36.

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"O direito de invadir e conquistar quaisquer terras de sarracenos e pa­ gãos, apropriando-se delas para si e seus sucessores, aplicando-as em uti­ lidade própria, podendo reduzir os infiéis a perpétua servidão, sem que a ninguém, mesmo cristãos, seja lícito intrometer-se, sem vénia do Rei de Por­ tugal, nos seus descobrimentos e conquistas". 1 7 1 l

Mas todos os textos que aqui publicamos defendem uma tese distinta: o papa não é o senhor do mundo e não pode dar aos reis peninsulares os terri­ tórios dos outros povos que nunca pertenceram aos cristãos, nem transferir para os cristãos as suas soberanias; o poder civil vem de Deus através do povo e não através do papa; com a vinda de Cristo e a fundação da Igreja, o poder civil não passou para as mãos do papa e dos cristãos; Cristo foi rei temporal mas de tal modo que a ninguém tirou o que lhe pertencia e não deu a Pedro os dois poderes; o papa apenas tem poder temporal direto sobre os territórios da Igreja; o papa não tem poder espiritual sobre todos os povos do mundo, mas apenas sobre os povos que pertencem ao redil da Igreja; em relação aos homens e povos que ainda não aceitaram a fé pela via do batismo apenas lhe assiste o direito de lhes anunciar pacificamente o Evan­ gelho e possui a legitimidade necessária para invocar o auxílio da espada temporal dos príncipes cristãos, a fim de remover os obstáculos violentos a este direito; o papa não possui autoridade para mover a guerra a quaisquer povos, invocando o título de infidelidade ou o castigo dos pecados da idola­ tria e de pecados contra a natureza; o papa não possui poder temporal, mas possui poder indireto sobre as coisas temporais em ordem ao fim espiritual, podendo, à luz desse direito, doar o monopólio da navegação e comércio aos legados por ele escolhidos como meios que são para o fim espiritual da pregação e da salvação. Em todos estes autores, sem exceção, impunha-se o texto de S. Paulo, na 1 ª Epístola aos Coríntios: "Porventura compete-me a mim julgar os que estão de fora?" ( l Cor 5, 1 2 ) . São Paulo aceitava o direito dos cristãos cas­ tigarem os cristãos, mas negava-lhes, como a si próprio, autoridade para castigarem "os que estão de fora'', deixando a Deus tal juízo.

1711 ln Visconde de Santarém, Quadro Elementar das Relações Políticas e Diplomáticas de Portugal. . . , vol. X, Lisboa, 1 866, p. 53.

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Esta era a pedra angular da Escola Ibérica da Paz que, com Vitoria!72) e Soto!73) em Salamanca, Molina!74) e Fernando Rebelo!75) em Évora, Suárez!76) e Navarro!77) em Coimbra, bem corno com os demais autores que aqui se publicam, limitavam o poder da cabeça da Igreja em que todos comunga­ vam, em nome da liberdade natural dos homens e das comunidades por eles constituídas, repugnando-lhes que o Deus da paz mandasse mover a guerra entre os que O não adoravam, derramando o sangue dos seus filhos. E quanto ao direito e dever de predicar o Evangelho a toda a criatura, cumprindo o mandato divino, disse também o Divino Legislador que en­ viava os seus apóstolos corno ovelhas entre lobos e não corno lobos entre ovelhas. Não significava isto que os pregadores se não fizessem acompanhar de soldados defensores, quando tal se revelasse necessário para sua defesa e conservação da fé entre os que aceitassem livremente o batismo, mas corno disse o Professor da Universidade do México Alonso de Veracruz, em 1 553:

1721 D i z Francisco de Vitoria: "O Papa n ã o tem poder espiritual sobre o s infiéis como atestam as citadas palavras de S. Paulo (1 ad Cor. 5, 1 2-13): 'Como posso julgar os que estão de fora'", De Indis, l, 2, 7-9. 1731 "Ainda que nos víssemos constituídos em juízes do orbe, não devíamos castigar pecado algum dos infiéis, mas predicar-lhes o perdão de todos eles; mas nunca nos seria con­ cedido um tal poder, pois não tem sentido um poder que não pode exercer-se [ . . . ] pois contra os pagãos idólatras não podemos fazer uso da força ( . . . ] e em favor desta opinião cita Santo Agostinho, no sentido que já foi por nós exposto, o texto de S. Paulo: "Como posso julgar os que estão de fora?'", Domingo de Soto, Relecciones y Opusculos, vol. 1, Introdução e tradu­ ção de Jaime Prats, Ed. San Esteban, Salamanca, 1 995, pp. 245-247. 1741 Na sua monumental obra De Iustitia et Iure, em que compendia as suas lições na Universidade de Évora, escreve Luis de Molina: "O papa não tem maior poder nas coisas temporais do que nas espirituais, por isso, não tem nenhum poder espiritual sobre os infiéis, pois disse S. Paulo 'Como posso julgar os que estão de fora ?'", Libro Primero de la Justicia, trad. castelhana Manuel Fraga Iribarne, Madrid, 1 946, p. 435. 1751 Diz Fernando Rebelo, citando Vitoria e Martin de Azpilcueta, no seu manuscrito sobre o direito da guerra: "(O papa] não tem nenhum poder quanto a estes que não são cris­ tãos, porque se encontram completamente fora da Igreja, como é evidente na 1: Carta aos Coríntios, 5.º capítulo", Fernando Rebelo, De bello, ms. 2565 da BNL, foi. 304. 1761 "Por si, a Igreja não tem jurisdição sobre os reis infiéis, nos termos da afirmação de São Paulo "Como posso julgar os que estão de fora ? " . Por isso, não pode obrigá-los à con­ versão nem castigá-los por pecado de infidelidade ou privá-los dos seus domínios", Francisco Suárez, Principatus Politicus IV 8, 9, ed. crítica de E. Elorduy e Luciano Pereiia, Corpus His­ panorum de Pace, vol. II, Madrid, 1 965, p. 52. 1771 "Erra Á lvaro Pais quando no livro Status et Planctus Ecclesiae amplia o poder do papa aos pagãos e idólatras, sobre os quais não tem nenhuma jurisdição", Martín de Azpil­ cueta, op. cit., anot. 3.3.

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"Se isto puder ser feito sem privar os infiéis do seu domínio e sem priva­ -los das suas terras e campos, não seria de modo algum lícito o envio de tais soldados".1781

No entanto, caso os infiéis fossem hostis aos cristãos e impedissem a pre­ gação pela força, poderiam licitamente ser combatidos por via da guerra, se necessário até à privação do domínio. Também nos casos em que existisse a certeza moral de que a conservação da fé entre os que a receberam de livre vontade não seria possível sem soldados cristãos que os defendessem, seria lícito dar aos convertidos um príncipe cristão, libertando os novos cristãos da sujeição ao anterior príncipe pagão. Mas como era comum na doutrina sobre a guerra, tal privação de domínio teria que ser feita com a intenção de remover os obstáculos à evangelização e conservação da fé entre os que a receberam e não por sede de poder ou cobiça. No entanto, havia várias limitações. A primeira fora já enunciada por Francisco de Vitoria, lembrando que nem tudo o que é lícito é convenien­ te, por causa do escândalo que a violência gera, sendo verosímil e provável esperar que o emprego da força, mesmo que lícita, poderia nestes casos ser prejudicial à pregação, acabando por gerar não só o ódio dos vencidos, como também injustiças e rapinas praticadas em nome de Cristo. Diz então Vitoria:

"Temo que tenhamos ido além do que o direito e a moral permitiam" 1791 •

Outra prevenção é a que veremos enunciada por Francisco Suárez: a de que nos casos em que for toda a república a rejeitar a pregação aos enviados da Igreja, não se lhe pode mover a guerra, pois a mesma só seria legítima se esse obstáculo fosse representado apenas por uma parte dessa república, podendo então os cristãos presumir que a outra parte estaria receptível à pregação. Mas um dos textos mais relevante neste domínio é o que aqui se publica, de autoria de António de São Domingos que, mesmo contra o fundador da Escola, Francisco de Vitoria e os seus discípulos de Salamanca, põe em cau­ sa este título legítimo de guerra, com um argumento assinalável. De facto, este direito concedido por Cristo aos apóstolos não era um di­ reito completamente natural, no sentido em que não radicava estritamente na razão natural comum a todos os homens. Francisco Suárez, aliás, expli­ citara-o bem, em texto escrito durante a sua permanência no Colégio Ro­ mano, ao considerar que "este direito não é completamente natural, de certa

forma é sobrenatural, e basta que assumamos a revelação e a doutrina que 1781 Alonso de Veracruz, De Justo Bello contra Indas ( 1 553-54), Quaestio IV, Undecima Conclusio. 1791 Francisco de Vitoria, De lndis, I, 3, 1 1 -12.

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acolhemos, para podermos justi"ficar de maneira suficiente o nosso direito, demonstrando também que é consentâneo à razão, assim como necessário à salvação da alma. Isto nenhuma outra seita nos pode demonstrar e é algo que para nós é evidente" . 1soi Para nós poderia ser evidente, mas não o era para os gentios. De facto, Frei António de São Domingos põe diretamente em causa esse direito da Igreja, porque não era possível provar aos gentios, em termos estritamente naturais, que possuíamos tal direito, e como era com base na razão natural que primeiro comunicávamos com esses povos, não podíamos mover-lhes guerra com base em argumentos que, sendo "consentâneas à razão", como dizia Suárez, não eram completamente naturais. Ou seja, os gentios tinham direito a não se deixarem convencer pelos argumentos dos cristãos, estabe­ lecendo-se assim o direito da guerra em plano estritamente racional. Em conclusão, pesassem embora algumas divergências doutrinais, as naus que saíam da Hispânia, em tempos próximos e rotas distintas, deviam levar Cristo ao coração de todos os homens, convidando-os a que ouvissem a Sua voz, como se lia em Mateus: "Ide, pois, ensinai todas as nações " (Mt 28, 1 9,20), porém, acima de tudo, importava respeitar a vontade do Divino Legislador: "Farás o que é justo de maneira justa" (Dt 1 6 ,20), não sendo legítimo fazer o mal para obter o bem. E caso nos não quisessem receber, não havia motivo para os subjugar, pois Cristo ensinara aos apóstolos que

"Se não vos quiserem receber, ao sair de suas casas, sacudi o pó dos pés" (Mt 1 0), ecoando então as palavras sempre citadas de São Paulo, em todos os textos e postilas destes mestres peninsulares: "Porventura compete-me a mim julgar os que estão de fora? " ( l Cor 5 ) . Não estávamos, portanto, num contexto d e puro relativismo, mas de prévia opção pela verdade e consequente formulação de uma hierarquia de valores, mas por isso mesmo se dignifica e valoriza o esforço destes homens para viverem a sua verdade sem procurarem vergar os outros, respeitando a liberdade e dignidade que essencialmente definia cada homem, queridas e conferidas por Deus, no momento da criação. Era essa a primeira condição da justiça e da paz que sobre ela se ergueria. Vale então a pena terminar estas breves linhas introdutórias com a per­ gunta colocada aos seus alunos pelo catedrático Domingo de Soto, na Uni­ versidade de Salamanca em 1 535, perante os relatos de ocupação do Novo Mundo pela força das armas:

1soi Francisco Suárez, De mediis quibus infideles possint licite ab hominibus ad (idem adducit, Roma, Universidade Gregoriana, ms. 452, ff. 365-370, q. 4.ª.

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"Com que direito retemos o império ultramarino recentemente desco­ berto? Na verdade, não sei." 1 8 1 1

No entanto, apesar da dúvida e da consciência crítica tão eloquentemen­ te manifestadas, estes autores não advogaram a retirada e o abandono das terras americanas. Por um lado, sustentaram alguns que, à luz das doutrinas políticas e jurídicas vigentes, um tirano por usurpação, ou seja, aquele que ocupa o poder mediante um ato ilegítimo, pode ver o seu poder e autoridade legitimados por posterior aceitação e consenso da comunidade; por outro lado, e foi talvez este o argumento de maior peso, a retirada significaria literalmente o abandono de milhares de indígenas, entretanto convertidos ao cristianismo, que seriam chacinados caso fossem deixados à sua sorte; fi­ nalmente, ainda, ecoavam as teses de Francisco de Vitoria - posteriormente postas em causa pelos defensores do mare clausum como Serafim de Freitas -, sobre o direito natural ao comércio, o jus communicationis, desde que não prejudicando os nacionais dessas terras, razão por que importava, tanto no primeiro corno no terceiro casos, pôr em marcha um esforço hercúleo para adequar o ser que a história lhes mostrava, ao dever ser que a cons­ ciência lhes exigia. Pedro Calafate Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa Lisboa, janeiro de 2014

181 1 Domingo de Soto, Relectio Sapientissimi Magistri Fratris Dominici d e Soto [. . . ] de Dominio, Salamanca, 1 535, 34, 5 .

ESTUDO INTRODUTÓRIO - II A PRIMEIRA FUNDAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL MODERNO

«However, the way back to Vitoria's or Suárez' unquestioning faith is not open to us» i821

1. Considerações Preliminares

Após séculos, são agora publicados, nalguns casos pela primeira vez, em tradução portuguesa feita sobre o original latino, os estudos sobre a guer­ ra e a conquista escritos pelos teólogos-juristas da segunda escolástica que ensinaram em universidades portuguesas1s31. Paulo Merêa, escrevendo sobre Francisco Suárez, um dos autores publicados nesta coleção, apontou como a sua doutrina da origem popular do poder, aproveitada e desenvolvida pelos jusnaturalistas modernos, acabou silenciada pela própria Igreja Católica, o que explica pelos "gérmenes revolucionários" que nela, apesar de tudo, se 1921 Cf. Marni Koskenniemi, The Polititcs of lnternational Law, Hart Publishing, Ox­ ford, 201 1 , p. 62. 1931 A expressão "teólogos-juristas" surge no livro de Venancio D. Carro, 0.P., La Teo­ logia y los Teólogos-juristas Espaizoles ante la Conquista de América, 2.ª ed., Salamanca, 195 1 , e designa o conjunto dos teólogos que trataram problemas jurídicos com base na filo­ sofia escolástica. Importa de antemão reconhecer, como faz Rui Bebiano, que a "participação portuguesa neste debate em torno da definição das caraterísticas do direito natural e do seu relacionamento com a problemática do domínio colonial e da guerra foi ( . . . ) bastante menos notória, e por certo menos polémica, do que aquela que se desenvolveu no país vizinho" [cf. Rui Bebiano, A Pena de Marte. Escrita da Guerra em Portugal e na Europa (sécs. XVI-X­ VIII), Minerva, Coimbra, 2000, p. 149).

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continham( 841. Para além disso, pode certamente afirmar-se que as críticas da conquista da América e da submissão dos índios, desenvolvidas nos estudos adiante publicados, não conseguiram impor-se na época histórica em que surgiram e não serviram de justificação para a conquista e a colonização do Novo Mundo, diferentemente do que sucedeu com as ideias de muitos ou­ tros teóricos do contrato social, com Locke à cabeça(ss1. Pelo contrário, tais críticas foram antes desmentidas, tantas vezes de forma brutal, pela prática dos colonizadores, a começar pelos portugueses e espanhóis. Nas páginas que seguem, irei, em primeiro lugar, desenvolver o contras­ te entre as doutrinas dos autores da segunda escolástica e o pensamento dos autores mais comummente associados à (segunda) fundação do direito internacional público, como Grócio e Pufendorf. A ideia que pretendo sus­ tentar, de resto sem pretensões de novidade(86', é que, antes da (segunda) fundação do direito internacional moderno inaugurada pelas ideias de Gró­ cio e Pufendorf, há a considerar uma primeira fundação assente nas teses dos teólogos-juristas da segunda escolástica. Esta primeira fundação afirma a existência natural de comunidades políticas orientadas para a realização do bem e a "unidade moral do género humano"(s71, encarando o direito in­ ternacional como um direito dos povos, enquanto a segunda fundação vê já essencialmente a comunidade como um instrumento de proteção do indiví­ duo. A importância desta segunda fundação decorre muito simplesmente de sobre ela se basear o sistema de Vestefália(ss1. Ao mesmo tempo, a segunda fundação do direito internacional contém já em si os gérmenes da sua atual refundação, pelo crescente reconhecimento do indivíduo como sujeito da comunidade internacional. Pensar o direito internacional a partir dos povos, como fizeram os au­ tores da segunda escolástica, não pode deixar de nos levar a um confronto

1841 Cf. Paulo Merêa, "Suárez, Jurista: O Problema da Origem do Poder Civil", in Sobre a Origem do Poder Civil: Estudos sobre o Pensamento Político e Jurídico dos Séculos XVI e XVII, Tenacitas, Coimbra, 2003, p. 1 1 1 . 1851 Sobre a importância do pensamento de Locke na justificação da desapropriação dos índios norte-americanos, cf. Miguel Nogueira de Brito, A Justificação da Propriedade Privada numa Democracia Constitucional, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 432 e ss., 466-467, 474 e ss., 500-501 . 186 1 Cf. Paulo Merêa, "Suárez - Grócio - Hobbes", i n Sobre a Origem do Poder Civil: Estudos sobre o Pensamento Político e Jurídico dos Séculos XVI e XVII, op. cit., pp. 148, 1 8 1 - 1 82. 1871 Cf. Paulo Merêa, "Suárez - Grócio - Hobbes", in Sobre a Origem do Poder Civil: Estudos sobre o Pensamento Político e Jurídico dos Séculos XVI e XVII, op. cit., p. 148. 188 1 Cf. Marni Koskenniemi, The Polititcs of lnternational Law, op. cit., p. 309. Sobre a Paz de Vestefália, cf. Leo Gross, "The Peace of Westphalia, 1 648-1948 '', in The American Journal of lnternational Law, vol. 42, n.º 1, Janeiro 1 948, pp. 20 e ss.

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das suas ideias nesta matéria com o pensamento de John Rawls sobre as relações internacionais. Na verdade, um dos aspetos mais salientes do pen­ samento de John Rawls no seu escrito A Lei dos Povos, e que mais críticas tem suscitado, consiste precisamente em encarar as relações internacionais essencialmente na perspetivas dos povos, precisamente como fizeram os teó­ logos-juristas da segunda escolástica. Num terceiro momento, tentarei demonstrar como o sentido da análise dos escolásticos se mostra porventura mais útil hoje, e ainda que a sua filo­ sofia tenha de ser rejeitada, do que a teoria subjacente ao sistema de Veste­ fália na crítica dos mais recentes desenvolvimentos do direito internacional. Em todos estes pontos pretendo evidenciar aquilo que de mais evidente se torna quando lemos os textos nesta obra publicados: o desassombro e o sentido emancipatório presentes na crítica instante ao poder político e à subjugação dos povos ameríndios. E é neste sentido emancipatório que reside, em última análise, a chave de leitura dos textos dos escolásticos pe­ ninsulares, em boa altura publicados, para a teoria do direito internacional.

2. O direito internacional moderno entre a segunda escolástica e o jusnaturalismo Martti Koskenniemi, um dos mais inventivas expositores da evolução do direito internacional e um dos críticos mais profundos das suas atuais inflexões, apresenta Pufendorf como o autor de um "primeiro vocabulário do governo pelo direito que reconhecemos como moderno", sendo que o di­ reito internacional surge "como uma parte inextricável desse vocabulário" . A razão desta modernidade estaria n o facto d e enquanto a escola aristo­ télica antiga, ou escolástica, apresentar ainda o direito como participando na procura do bem que residiria na essência das coisas, para Pufendorf o direito tratar já de relações sociais em e entre comunidades que partilham diferentes noções do bem, o que corresponde à situação que carateriza o período posterior à paz de Vestefália. A verdade, porém, é que o individualismo e a visão do direito como fenó­ meno social, em vez de assente numa conceção religiosa ou metafísica, não excluíam uma acentuada influência da segunda escolástica em Pufendorf. A prová-lo está, desde logo, a circunstância de este autor conceber ainda uma duplo contrato social para explicar a origem do poder político. As ideias de Suárez de um poder em abstrato, que resulta da natureza das coi­ sas e da providência do autor da natureza, e um poder em concreto, objeto

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de transferência para aqueles que de facto o exercem(89l, estão na origem da distinção levada a cabo por Pufendorf entre um pactum unionis e um pac­ tum subjectionis( 9oi. Ora, é precisamente este sistema dualista que se torna obsoleto nas construções contratualistas de Hobbes, Locke e Rousseau, to­ das elas procedendo a uma dedução rigorosamente individualista do poder político. Seja como for, se pensarmos nas diferentes conceções do poder político como alinhadas sobre um eixo em que num extremo se encontra a pros­ secução do bem comum e no outro a determinação individual, é, sem dú­ vida, possível defender que Pufendorf, tal como Grócio antes dele, alinha já ao lado das conceções individualistas do poder. Mas a ideia de que a comunidade política na segunda escolástica visa antes de mais a prossecu­ ção do bem, em vez da mera proteção do indivíduo, acarreta ainda uma outra consequência da maior importância. É que, para os escolásticos, todo o universo se encontra distribuído por comunidades às quais é inato, por ser recebido diretamente de Deus, o poder político. Diferentemente, em Pufen­ dorf existe apenas, na condição natural, a faculdade de instituir o poder(91l. Ao contrário dos escolásticos, adeptos de uma soberania inicial do povo, segundo Pufendorf "não há razão para falar em soberania do povo senão quando este adota a fórmula democrática" 1921 . A propensão individualista de Grócio e Pufendorf é, sem dúvida, uma importante pré-condição para a segunda fundação do direito internacional moderno. É ela que permitirá encarar a sociedade, incluindo a sociedade internacional, como sustentada sobre as necessidades e os interesses priva­ dos dos indivíduos que a compõem. Para além disso, é também esta visão da sociedade internacional que permitirá dar corpo a uma visão do direito internacional correspondente àquilo que Carl Schmitt designaria como o jus publicum europaeum. Trata-se de uma conceção do direito internacional assente numa "certa relação da ordem espacial da terra firme com a ordem espacial do mar livre", que consubstanciou durante quatro séculos o direito das gentes eurocêntricol93l. Aspetos centrais dessa relação eram o Estado 1991 Cf. Francisco Suárez, Defesa da Fé Católica e Apostólica Contra os Erros da Seita Anglicana, Livro III, Capítulo II, § 4. 1901 Cf. Samuel Pufendorf, De Jure Naturae et Gentium Libri Octo, livro VII, e. II, § § 7-8 ( 1 6 8 8 ) . 191 1 Cf. Paulo Merêa, "Escolástica e Jusnaturalismo: O Problema da Origem d o Poder Civil em Suárez e Pufendorf", in Sobre a Origem do Poder Civil, op. cit., p. 200. 1921 Cf. Paulo Merêa, "Escolástica e Jusnaturalismo: O Problema da Origem do Poder Civil em Suárez e Pufendorf", in Sobre a Origem do Poder Civil, op. cit., p. 1 99. 1931 Cf. Carl Schmitt, Le Nomos de la Terre dans le Droit des Gens du Jus Publicus Europaeum (tradução do original Der Nomos der Erde im Volkerrecht des Jus Publicus Eu-

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territorial e secularizado, por um lado, e, por outro, a ideia de um equilíbrio europeu entre esses Estados194l. O direito internacional torna-se um produto cultural do Ocidente europeu, em vez de ser um exercício da razão universal em face da diversidade dos povos, como sucede ainda na primeira fundação do direito internacional, decorrente do pensamento dos autores da segunda escolástica. O motor da segunda fundação do direito internacional foi, pois, o Esta­ do moderno secularizado, fruto das guerras de religião da Europa. Não por acaso, um dos princípios da Paz de Vestefália pode ser sintetizado na conhe­ cida fórmula cujus regia, ejus religio. Deste modo, a ordem internacional assentava na exclusão de todos os não europeus e na própria exclusão das rivalidades entre potências europeias no Novo Mundo, as quais se achavam subordinadas a regras diferentes daquelas que regulavam a condução da po­ lítica externa e da guerra na Europa. Como afirma Carl Schmitt, "a ordem espacial concreta criada pelo Estado territorial conferia ao solo europeu um estatuto específico no direito das gentes, e isto tanto em si mesmo quanto em face do espaço do mar livre ou em face de todo o solo não europeu do ultra­ mar"l95l, Assim, enquanto a guerra entre Estados soberanos se aproximava de um duelo, "o resto não europeu do solo da terra é tratado, no seio desta ordem do espaço já global mas ainda inteiramente eurocêntrica, como livre, quer dizer como livremente ocupável pelos Estados europeus"i96l. Naturalmente, este modo de pensar contribuiu para permitir aos Euro­ peus e seus descendentes conduzir guerras de extermínio no Novo Mundo contra as populações indígenasl97l e, ao mesmo tempo, limitar civilizada-

ropaeum, de 1 950), Presses Universitaires de France, Paris, 200 1 , p. 54. 19'1 Cf. Carl Schmitt, Le Nomos de la Terre dans le Droit des Gens du Jus Publicus Europaeum, op. cit., p. 127. 1951 Cf. Idem, p. 1 4 1 . 1961 Cf. Idem, p. 1 4 3 . 1971 Exemplo bem sintomático dessa atitude é o escrito d e Eldridge Colby, "How t o Fight savage Tribes", in American Journal of International Law, vol. 2 1 , n.º 2, Abril de 1927, p. 241: "lt is good to observe the decencies of international law. But it is a fact that against unci­ vilized people who do not know international, and do not observe it, and would take advan­ tage of one who did, there must be something else. ( . . . ) If a few "non-combatants" are killed, the loss of life is probably far less than might have been sustained in prolonged operations of more political character. The inhumane act thus becomes actually humane". Como referido no texto, este modo de ver é certamente tributário de se encarar cada vez mais o direito inter­ nacional como um produto voluntário, ou pelo menos um produto cultural situado em vez de um exercício da razão universal em face da diversidade dos povos, como sucede na primeira fundação do direito internacional.

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mente a guerra em solo europeu, o que se conseguiu, pelo menos, até à explosão de 1 9141981. Pois bem, é precisamente este tipo de conceção do direito internacio­ nal que parece ser rejeitado, ou pelo menos retardado, pelas teorias dos teólogos-juristas escolásticos da península ibérica. A argumentação destes teólogos-juristas segue usualmente a mesma estrutura: antes de mais, a de­ monstração de que os índios eram verdadeiros donos das suas terras, tanto pública como privadamente, antes da chegada dos espanhóis e portugueses; depois, a enumeração dos títulos ilegítimos com base nos quais os índios po­ deriam ser submetidos à jurisdição dos cristãos; por último, a enumeração de títulos legítimos de ocupação das Índias. Esta estrutura de argumentação encontra-se já presente na famosa Re­ lectio de lndis, proferida por Francisco de Vitoria em 1539 na Universidade de Salamanca, obra conhecida, citada e muitas vezes seguida pelos autores dos escritos aqui publicados. A sua importância resulta de tornar evidente o sentido de toda a argumentação: ao sustentar que os índios são verdadeiros senhores das suas terras, Vitoria é levado a reconhecer não só que qualquer título legítimo de ocupação dessas terras deriva forçosamente do direito das gentes e não do direito civil, pressupondo algum tipo de injúria dos índios contra os espanhóis, como ainda que estes últimos podiam, quando muito, pretender um domínio de jurisdição na América, mas não direitos de pro­ priedade1991. A argumentação de Grócio, de modo diferente, visava justificar diretamente a existência de verdadeiros direitos de propriedade sobre as terras não cultivadas dos índios11001. A argumentação dos teólogos-juristas principia, pois, pela rejeição de vá­ rias proposições com base nas quais poderia ser-se levado a negar a própria capacidade dos índios para o domínio. Entre essas proposições contam-se a consideração dos índios como escravos por natureza, segundo a tese defen­ dida por Aristóteles11011; as ideias de que o pecado mortal ou a infidelidade impedem o domínio; a ideia de que os índios seriam desprovidos do uso da razão e, por isso, insuscetíveis de terem o domínio das coisas. Todos estes 198 1 Cf. William Rasch, Sovereignty and lts Discontents: On the Primacy of Conflict and the Structure of the Political, Birkbeck Law Press, Londres, 2004, p. 135. 1991 Cf. Anthony Pagden, "Dispossessing the Barbarian: The Language of Spanish Tho­ mism and the Debate Over the Property Rights of the American Indians", in Anthony Pagden (org.), The Languages of Political Theory in Early-Modern Europe, Cambridge University Press, Cambridge, 1 990, p. 8 8 . 1 1001 Cf. Richard Tuck, The Rights o f War and Peace: Political Thought and the lnterna­ tional Order from Grotius to Kant, Oxford University Press, 1 999, pp. 1 04 e ss. 11011 Cf. Aristóteles, Política, 1254b1 6-1255al (edição bilingue, tradução e notas de An­ tónio Campelo Amaral e Carlos de Carvalho Gomes, Vega, s. I., 1 998, pp. 63-65 ).

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argumentos esbarram contra o reconhecimento de que "os índios estavam na posse pacífica das suas coisas pública e privadamente"(102l. O reconhecimento do domínio e jurisdição dos índios sobre as suas terras tornava, pois, necessário compreender as relações com eles à luz do direito das gentes, isto é, o direito internacional. E é precisamente nesse plano que Vitoria se coloca. Quando discute aquele que considera o primeiro título legítimo de ocupação das Índias, a sociabilidade e comunicação naturais, Vitoria situa a discussão no âmbito do direito das gentes, isto é, o direito que a razão natural estabeleceu entre todas as gentes1103l. De acordo com esta linha de argumentação, de resto seguida por vários dos autores adiante publicados, são títulos ilegítimos da ocupação das Ín­ dias: a pretensão de que o Imperador é o senhor do mundo; a autoridade do papa; o direito do descobrimento; a expansão da fé cristã; os pecados dos índios; a eleição voluntária, pelos índios, do rei de Espanha como seu senhor; um dom especial de Deus, que teria condenado os índios à perdi­ ção, em resultado das suas abominações, entregando-os às mãos dos espa­ nhóis(104l. Por seu turno, seriam títulos legítimos de ocupação005l: a sociabi­ lidade e comunicação naturaisºº6l; a propagação da fé (isto é, a liberdade de pregar o Evangelho, não a conversão forçada dos índios, considerada como título ilegítimo de ocupação); a defesa dos índios convertidos à fé cristã contra os ataques dos infiéis; a deposição de um príncipe infiel, quando a grande parte dos seus súbditos se tivesse convertido ao cristianismo; a tira­ nia dos príncipes índios, ou a observância de leis inumanas, como a prática do canibalismo; a livre aceitação do rei de Espanha como príncipe; o esta­ belecimento de alianças entre os espanhóis e certos índios, na guerra contra outros índios; por último, a necessidade de tratar os índios como crianças,

11o21 Cf. Francisco de Vitoria, Doctrina sobre los Indios, Edición facsimilar. Transcripción traducción de Ramón Hernandez Martín, O.P., 2.ª ed., Editorial San Esteban, Salamanca, 1992, pp. 66 e 108. No mesmo sentido, cf. Martinho de Ledesma, Secunda Quartae, Coim­ bra, 1560, p. 27. 11031 Cf. Idem, pp. 92 e 1 37. Alguns autores atribuem especial significado à circunstância de Vitoria alterar a fórmula conhecida das Instituições de Gaio (cf. Gaio, Instituições. Direito Privado Romano, tradução do texto latino, introdução e notas de J. A. Segurado e Campos, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2010, p. 77), segundo a qual "quod naturalis ratio inter omnes homines constituir vocatur ius gentium", passando a afirmar "quod naturalis ratio inter omnes gentes constituit vocatur ius gentium" (itálico acrescentado): cf. Francisco de Vitoria, Los Derechos Humanos: Antología, edición e introducción de Ramón Hernández, O. P., 2.ª edición, Editorial San Esteban, Salamanca, 2003, pp. 141-142. 1 1 ().4 1 Cf. Francisco de Vitoria, Doctrina sobre los Indios, op. cit., pp. 1 1 7 e ss. 11º51 Cf. Idem., pp. 136 e ss. 11o61 Cf., ainda, António de São Domingos, op. cit., f. 67v.

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considerando a sua inaptidão para constituir ou administrar "uma legítima e ordenada república dentro de termos humanos e civis"ºº71. Este último fundamento de ocupação legítima não assenta, ao contrário dos anteriores, em factos contingentes (como a criação de impedimentos, pelos índios, à liberdade de comunicar ou de evangelizar; os ataques de índios infiéis contra índios convertidos; a escolha do rei de Espanha como governante, etc.), mas num alegado traço da própria personalidade e cul­ tura dos índios. Ainda que os índios não sejam desprovidos de razão, e por isso insuscetíveis de ter o domínio das coisas, "não têm leis convenientes nem magistrados, não sendo sequer suficientemente idóneos para governar a própria família". Assim, "para bem deles, seria lícito aos príncipes cristãos encarregarem-se da sua administração e constituir perfeitos e governadores nas cidades e mesmo dar-lhes outros senhores ou chefes". Na verdade, os príncipes cristãos estariam mesmo obrigados a fazê-lo, pois os índios seriam como crianças. Se por hipótese morressem todos os adultos entre os índios e apenas sobrevivessem as crianças e adolescentes, parece claro que os prínci­ pes poderiam encarregar-se deles e governá-los, "enquanto se encontrassem em tal estado" . Mas se assim é, o mesmo se passaria com os seus pais, uma vez que, segundo dizem os que entre eles viveram, a sua rudeza é maior "do que a que existe noutras nações nas crianças e nos que têm o uso da razão" . N a verdade, este título legítimo d e ocupação, consistente e m tratar dos ín­ dios enquanto estes se encontrarem desprovidos de razão, corresponderia até a um preceito de caridadé 1º81. O argumento mencionado é claramente incompatível com o desenvolvi­ do pelo próprio Vitoria sobre a suposta incapacidade dos índios para o do­ mínio com base na sua rudeza. Antes Vitoria havia afirmado que os índios "observam uma ordem nas coisas, têm cidades, levam vida matrimonial, possuem magistrados, leis, artesãos, mercados. Todas estas coisas exigem o uso da razão"l 1091. Agora exprime o ponto de vista segundo o qual os índios, se não são amentes, "pouco distam disso, de maneira que não são aptos para constituir nem administrar uma legítima e ordenada república" 1 1 1o1. Como conciliar estas afirmações? Vitoria nega, sem dúvida, o argumento de Aristóteles de que alguns sejam escravos por natureza, ainda que não ponha em causa a ideia de que alguns outros tenham uma especial capacidade para governar.

1io71 1 1 08 1 ( 1 09) 1 1 1 0)

Cf. Cf. Cf. Cf.

Francisco de Vitoria, Doctrina sobre los Indios, op. cit., p. 146. Idem, p. 147 . Idem, p. 1 15 . Idem, p. 146.

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A verdade é que esta aparente contradição se dissolve se atentarmos que, quando discute a suposta inaptidão dos índios para constituir ou adminis­ trar uma república enquanto título legítimo de ocupação, Vitoria não pare­ ce exprimir um ponto de vista próprio. O seu propósito é antes o de trazer à discussão um título de ocupação que a outros parece legítimo e daí as pala­ vras cautelosas com que começa por o apresentar: "não me atrevo a afirmar nada, nem tão pouco a condená-lo por completo" 0 1 0• Estas palavras encon­ tram eco no modo como Vitoria encerra o mesmo argumento: "proponho isto, mas não o tenho por seguro, e sempre com aquela limitação de que se faça para bem deles e não apenas para proveito dos espanhóis"l1 12l. Impressiona, desde logo, a circunstância de nenhum dos autores adian­ te publicados invocar o argumento da rudeza dos índios para justificar a ocupação. Pelo contrário, a rudeza dos índios é expressamente invocada apenas como aspeto insuscetível de afastar o reconhecimento de que são os índios verdadeiros senhores das suas terras11 13l, à semelhança do que vimos suceder com Vitoria. Os autores que se ocuparam do tema dos índios negam invariavelmente que os mesmos possam ser encarados como escravos por natureza, segundo a teoria de Aristóteles. Todavia, se os índios não podem ser encarados como "escravos natu­ rais", não deixam de ser "crianças naturais". Nessa medida, como salienta Anthony Pagden, os índios são, "como todas as crianças, herdeiros de um estado de verdadeira razão" . São senhores das suas terras, mas não são capazes de exercer os correspondentes direitos. Assim, o rei de Espanha poderia exercer tutela sobre os índios até que estes alcançassem a idade da razão0 14i. Embora nada disto pudesse legitimar um verdadeiro domínio dos espanhóis sobre as terras dos índios, Pagden pretende que, com base em tal argumento, "Vitoria e os seus sucessores pretendiam efetivamente sustentar, como os grandes teóricos do direito natural do século dezassete - Pufendorf em particular - haveriam de fazer, que qualquer homem capaz de conhe­ cer, mesmo retrospetivamente, que algo é do seu interesse pode dizer-se que consentiu nisso, mesmo que esteja fora de questão ter exercido qualquer liberdade de escolha"11 15l. Cabe, desde logo, questionar se não haverá aqui

11111

Cf. Idem, p. 146. Cf. Idem, p. 147. Pedro Simões, op. cit., f. 62; Fernando Pérez, op. cit., f. 1 76; Luis de Molina, De lustitia et de fure, tomo 1, livro III, disp. CV, ( 1 593). 1 1 1 41 Cf. Anthony Pagden, "Dispossessing the Barbarian: The Language of Spanish Tho­ mism and the Debate Over the Property Rights of the American Indians'', op. cit., p. 86. 1 1 1 51 Cf. Anthony Pagden, The Fali of Natural Man: The American Indian and the Ori­ gins of Comparative Ethnology, Cambridge University Press, Cambridge, 1 986, p. 1 05 . Cf. 1 1 121

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uma excessiva identificação entre as posições defendidas pelos autores in­ seridos na segunda escolástica e os jusnaturalistas modernos. Com efeito, o consentimento retrospetivo faz apenas sentido num contexto individualista em que Vitoria não se coloca. Para ele, o que se impõe é o reconhecimento das comunidades índias com os seus direitos próprios. Por outro lado, segundo afirma ainda Anthony Pagden, as pretensões da coroa espanhola ao domínio sobre as terras dos índios podiam efeti­ vamente, com o decorrer do tempo, centrar-se na ocupação efetiva, tanto mais que esta se acreditava ser legítima. Isto mesmo se retirava também do direito romano e permitia encarar as elucubrações de Vitoria e os seus discípulos como sendo apenas de "interesse antiquário" . Tal seria já, na sua essência, a argumentação do jurista Juan de Solórzano y Pereira, escrevendo em 164811 161. E assim se daria a dissolução da crítica da conquista e da colonização da América. Por um lado, porque alguns argumentos dos escolásticos se limitariam a prenunciar as teses jusnaturalistas e estas servem com mais eficácia os propósitos da ordem internacional do jus publicum europaeum; por outro, porque, tendo sido úteis num cenário de acesa controvérsia teo­ lógica, rapidamente o realismo da política internacional se encarregou de os transformar numa relíquia do pensamento católico, substituído por uma reflexão essencialmente jurídica, baseada nas categorias do direito romano, certamente mais conforme aos interesses da coroa espanhola. Nesta mesma linha, era, e foi, também possível mobilizar a categoria do direito romano da res nullius para sustentar que os índios que não cultivassem as terras onde viviam podiam ser delas desapossados em nome de um aproveitamen­ to eficaz dos recursos naturais11 171. Em qualquer caso, não parece que possa manter-se a ideia de que a argu­ mentação desenvolvida pelos escolásticos peninsulares constitui um simples prenúncio das teses jusnaturalistas. E isto por duas ordens fundamentais

ainda, o argumento paralelo sobre a admissibilidade de as crianças terem o domínio das coisas em Samuel Pufendorf, De Jure Naturae et Gentium Libri Octo, Livro IV, C. VI, § 15 ( 1 688). 1 1 161 Cf. Anthony Pagden, "Dispossessing the Barbarian: The Language of Spanish Tho­ mism and the Debate Over the Property Rights of the American Indians", op. cit., pp. 97-98. Como afirma o autor, Juan de Solórzano y Pereira não sente já a necessidade de refutar, na sua Politica indiana sacada en lengua castel/ana de los dos tomos dei derecho y governo municipal de las Indias ( 1 648), a conceção luterana da graça como título do domínio, segundo a qual aqueles que se encontram em pecado mortal não podem ter o domínio das coisas, ao contrário do que sucede com Vitoria, Doctrina sobre los Indios, op. cit., pp. 1 08 - 109. 1 1 171 A este propósito, é particularmente significativo o pensamento de Grócio, aliás cri­ ticado por Pufendorf: cf. Richard Tuck, The Rights of War and Peace: Political Thought and the lnternational Order from Grotius to Kant, op. cit., pp. 104 e ss., 1 57 e ss.

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de razões. Em primeiro lugar, porque a ideia de uma comunicabilidade e sociabilidade naturais não eram entendidas em termos tendencialmente ab­ solutos11 1s1, o que em última análise assentava no reconhecimento do direito das comunidades indígenas de decidir sobre o uso dos seus recursos. Em segundo lugar, porque se afigura razoável sustentar que entre as teses de­ fendidas pelos autores da segunda escolástica e as propugnadas pelos jus­ naturalistas modernos ocorre como que uma inversão de perspetivas. Sem dúvida que em ambos os casos se discutem as pretensões dos colonizadores à propriedade e ao livre comércio. Simplesmente, os teóricos do jusnatu­ ralismo moderno inserem-se já numa linha de pensamento que tenderá a encarar a propriedade e o comércio como fazendo parte da ordem natural das coisas. Esta ordem natural reconduz-se, em última análise, àquele que será considerado, a partir do século dezoito, um mecanismo autorregulado e autónomo, isto é, a economia. Os escolásticos, pelo contrário, encaram ainda a propriedade e o comércio como construções sociais e instrumentos para o bem comum e a segurança das sociedadesi1 1 91 .

3. A primeira fundação do direito internacional e o pensamen­ to de John Rawls em A Lei dos Povos Enquanto a importância dos autores da segunda escolástica para a fun­ dação do direito internacional é, de alguma forma, diminuída pela relevân­ cia que atribuem à ideia de um mundo organizado em comunidades políti­ cas que visam a prossecução do bem comum, o pensamento de John Rawls sobre as relações internacionais é criticado por não atribuir, nesse plano, suficiente relevância ao indivíduo num contexto que seria já decididamente post-vestefaliano. Enquanto os escolásticos da Península Ibérica não soube­ ram assumir o paradigma de Vestefália, Rawls não o terá sabido superar. Há, no entanto, aqui alguma proximidade: os autores da segunda escolás­ tica não souberam pensar os Estados, nas suas relações entre si, como indi­ víduos centrados no seu interesse próprio, independentemente de qualquer conceção do bem; Rawls não atribui importância suficiente na modelação 11 181 De resto, o mesmo se poderá dizer de Pufendorf, que chega a criticar Vitoria por conceber em termos demasiado amplos a ideia de sociabilidade e comunicabilidade naturais: cf. Samuel Pufendorf, De Jure Naturae et Gentium Libri Octo, livro III, cap. III, §. 9 ( 1 688). 1 1 191 Cf. Martti Koskenniemi, "The Political Theology of Trade Law: The Scholastic Contribution", in Ulrich Fastenrath, Rudolf Geiger, Daniel-Erasmus Khan, Andreas Paulus, Sabine von Schorlemer e Christoph Vedder (eds.), From Bilateralism to Community Interest: Essays in Honour of Bruno Simma, Oxford University Press, Oxford, 201 1, pp. 1 1 1 - 1 1 2.

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da sociedade internacional aos indivíduos, para além dos Estados. A razão destes descentramentos em relação ao paradigma de Vestefália é a mesma: pensar a comunidade como uma realidade ética e pensar o direito interna­ cional como um instrumento da razão universal, para além das diversidades daquelas comunidades. Não é aqui o lugar para desenvolver a teoria moral de Rawls sobre a sociedade internacional, cabendo apenas salientar dois aspetos do seu pen­ samento nesta matéria: por um lado, o desenvolvimento de uma conceção da sociedade internacional em que os principais intervenientes são os po­ vos e não os Estados, ou os indivíduos!1201; por outro lado, a distinção en­ tre "povos democráticos liberais" e "povos hierárquicos decentes", ambos abrangidos na ideia de "sociedades decentes'', a que se opõem ainda os "Estados fora da lei" (outlaw states) e as "sociedades oprimidas" (burdened societies) ( l2 11 • Ambos os aspetos deram azo a críticas acerbas ao pensamento de Rawls. Quanto ao primeiro aspeto, cabe mencionar a crítica segundo a qual sus­ tentar que a sociedade internacional deve ser concebida segundo um modelo contratual (a posição original), em que as partes representam povos e não indivíduos, significa privilegiar os interesses das conceções do bem e da jus­ tiça predominantes na sociedade, desvalorizando os interesses das minorias 11201 Cf. John Rawls, The Law of Peoples, with "The Idea of Public Reason revisited ", Harvard University Press, Cambridge, Mass., 1 999, pp. 1 7, 23 e ss. e 82-83. A noção de povo é desenvolvida por Rawls a partir de certas caraterísticas dos "povos liberais " . Segundo o autor, estes "têm três traços básicos: um governo constitucional democrático razoavelmen­ te justo que serve os seus interesses fundamentais; cidadãos unidos pelo que Mill chamava "simpatias comuns"; e, finalmente, uma natureza moral" (cf. ob. cit., p. 23). Rawls recorre a esta noção de povo para realçar o seu caráter moral, mas também para distinguir o seu pensa­ mento daquele que incide sobre os "estados políticos tal como tradicionalmente concebidos, com os seus poderes de soberania incluídos no direito internacional (positivo) durante os três séculos subsequentes à Guerra dos Trinta Anos ( 16 1 8-164 8 ) " (cf. ob. cit., p. 25). A ideia de povo é, pois, desenvolvida em claro contraste com o conceito de Estado: por um lado, Rawls rejeita a ideia de soberania como autonomia do Estado no modo de lidar com o seu próprio povo (cf. ob. cit., p. 26); por outro lado, o interesse de Rawls consiste em salientar o caráter moral dos povos, a sua determinação segundo a ideia do razoável, em contraste com a racio­ nalidade dos Estados, ou a sua determinação segundo os seus próprios objetivos, ignorando o critério de reciprocidade no modo como lidam com outras sociedades (cf. ob. cit., p. 28). Rawls prefere, pois, falar de povos em vez de Estados, uma vez que isso lhe permite salientar o caráter moral dos sujeitos da comunidade internacional. Para além disso, Rawls ignora o indivíduo neste contexto, pois isso não permitiria incluir os "povos hierárquicos decentes" como membros de pleno direito da comunidade internacional. Voltarei a este ponto no texto. 11211 Cf. John Rawls, The Law of Peoples, op. cit., p. 90. "Estados fora da lei" são aque­ les que encaram como razão suficiente para fazer a guerra a promoção dos seus interesses racionais, mas não razoáveis. As "sociedades oprimidas", por seu turno, são aquelas cujas condições sociais, económicas e culturais tornam impossível o estabelecimento de um regime bem ordenado.

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e dos dissidentes individuais. Para além disso, tal conceção desconsidera o facto de no mundo moderno ser cada vez mais usual os indivíduos mudarem frequentemente de sociedade. Deste modo, a teoria de Rawls não permitiria estabelecer princípios que especificassem os direitos dos indivíduos inde­ pendentemente da sociedade em que vivam num determinado momento e que, desse modo, possam refletir a sua independência de qualquer sociedade particular1 l22J. Quanto ao segundo aspeto, a distinção entre «povos liberais democrá­ ticos » , "povos hierárquicos decentes" e, já fora da escala da decência, "Es­ tados fora da lei'' , exprime, na verdade, sob a capa do respeito dos direitos humanos, a imposição unilateral do liberalismo como padrão universal de organização das sociedades. E, assim, onde Vitoria e os pensadores da se­ gunda escolástica procuravam impor a soberania do Cristianismo, Rawls proclama a "soberania incontestada do próprio liberalismo"l123l, O que pensar destas críticas? Começarei pela segunda crítica, de acordo com a qual, ao distinguir entre os "povos liberais democráticos" e os "ou­ tros", Rawls estaria, na verdade a impor unilateralmente o liberalismo como modelo universal. Julgo que esta crítica não tem em devida conta a distinção que Rawls faz, no seio daqueles que designa como "povos decentes", entre "povos liberais democráticos" e "povos hierárquicos decentes" . Estes últi­ mos, podendo assumir muitas formas institucionais, religiosas ou seculares, têm sempre uma índole associacionista (e nisto se distinguem essencialmente dos "povos liberais democráticos" ), no sentido de que os membros destas sociedades atuam na vida pública como membros de diferentes grupos, sen­ do cada grupo representado no sistema jurídico através de uma entidade inserida numa hierarquia de consulta. Segundo Rawls, um "povo hierárqui­ co decente" não tem objetivos agressivos, por um lado, e, por outro lado, respeita os direitos humanos dos seus membros, adota um sistema jurídico que especifica deveres e obrigações como decorrentes de uma ideia de justi­ ça entendida como bem comum, em vez de meros comandos impostos pela força, e inclui órgãos de aplicação do direito que atuam guiados por um sen­ tido de justiça1124l, Os traços mais individualistas do liberalismo estão aqui ausentes. Por outro lado, a teoria de Rawls não exige a abertura das "so­ ciedades hierárquicas decentes" à cooperação internacional, sem deixar de

1122 1 Cf. Allen Buchanan, "Rawls' Law of Peoples: Rules for a Vanished Wesrphalian World", in Ethics, vol. 1 1 0, n.º 4, Julho 2000, p. 698. 11231 Cf. William Rasch, Sovereignty and Its Discontents: On the Primacy of Conflict and the Structure of the Political, op. cit., p. 146. 1 1 24 1 Cf. John Rawls, The Law of Peoples, op. cit., pp. 64-67.

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as reconhecer como agentes morais corporativos(125l. Vistas as coisas nestes termos, parece claro que a teoria de Rawls sobre a sociedade internacional não visa impor o liberalismo, ou fazer todo o mundo liberal e democrático, mas apenas, contra esta pretensão e a partir do reconhecimento do facto do pluralismo, estabelecer princípios de política internacional moralmente legítimos(126l. A partir daqui, pode também confrontar-se a primeira objeção aponta­ da: antes de mais, a consideração do indivíduo como sujeito privilegiado das relações internacionais tem de "confrontar o facto de que as pessoas huma­ nas individuais não partilham globalmente qualquer auto-compreensão ou ideal de pessoas enquanto livres e iguais, moral e politicamente falando"º27l. Nessa medida, se tomarmos o indivíduo como padrão na modelação das re­ lações internacionais corremos, talvez, um risco muito maior de imposição unilateral de uma certa visão da sociedade que é, afinal, também ela, muito própria do Ocidentel128l.

4.

A segunda escolástica e o direito internacional humanitário

Um dos desenvolvimentos mais marcantes do direito internacional mo­ derno consiste nas chamadas "intervenções humanitárias". Existirá um di­ reito (ou, em termos diversos, uma responsabilidadei 129l), de intervir nos assuntos internos de um Estado quando tal seja necessário para evitar uma catástrofe humanitária? Será possível legitimar desse modo ações como a iniciada pelos britânicos no Norte do Iraque, em 199 1 , com o objetivo de proteger os curdos, ou a intervenção da NATO no Kosovo, em 1 999, ou ainda, mais recentemente, a intervenção militar na Líbia em 201 1 ? Estas são questões a que não pretendo aqui responder1130l, limitando-me a recordar os terceiro e quinto títulos legítimos de ocupação das terras dos índios invocados por Vitoria. No caso em que alguns índios se tivessem 1 1 25 1 Cf. David A. Reidy, "Rawls on Internationa! Justice: A Defense" , in Political Theory, Vol. 32, n.º 3, Junho 2004, p. 30 1 . 11261 Cf. David A . Reidy, "Rawls o n lnternational Justice: A Defense", op. cit., p . 3 10. 1 1 271 Cf. David A. Reidy, "Rawls on lnternational Justice: A Defense", op. cit., p. 310. 1 128 1 Sobre a acusação de etnocentrismo, cf. John Rawls, The Law of Peoples, op. cit., pp. 1 2 1 -122. 1 1 291 Quanto à doutrina da «responsibility to protect» , ou « R2P», cf. Mark Mazower, Governing the World: The History of an ldea, The Penguin Press, Nova Iorque, 2012, p. 387. 11301 Cf. Dino Kritsiotis, "lnternational Law and the Relativities of Enforcement'', in James Crawford e Mami Koskenniemi (eds.), The Cambridge Companion to lnternational Law, Cambridge University Press, 2012, pp. 262-264.

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convertido à fé cristã e os seus príncipes quisessem, pela força e contra a vontade deles, "devolvê-los à idolatria e separá-los de Cristo", os espanhóis poderiam, depois de tentar convencê-los pela razão sem êxito, declarar-lhes a guerra com toda a justiça031). Para além disso, os espanhóis poderiam também depor os príncipes índios em caso de tirania ou de aplicação de leis iníquas ou inumanas, como as que envolvessem sacrifícios humanos e o ca­ nibalismo( 1321. Há sem dúvida aqui um paralelo a estabelecer com as atuais intervenções humanitárias11331. São conhecidas as críticas dirigidas às intervenções humanitárias: não tanto o desrespeito da soberania dos Estados intervencionados, uma vez que este é ainda um traço do paradigma de Vestefália dificilmente compatível (pelo menos se for entendido nos termos absolutos que aquele paradigma tendencialmente lhe imprimia) com o reconhecimento do indivíduo como sujeito de direito internacional; mas a circunstância de estarem muitas vezes em causa atuações não autorizadas à luz do direito internacional; o privile­ giar da atuação em prol dos direitos humanos através da intervenção militar pontual em vez de uma atuação mais intensa de cooperação continuada; a hipocrisia da identificação do objetivo proclamado da proteção dos direi­ tos humanos e da democracia com os interesses políticos e económicos dos Estados interventoresi l341. Para além destas críticas, impõe-se salientar um outro aspeto: trata-se da difícil relação entre direito e moral para que os casos de intervenção humanitária parecem remeter. Veja-se o caso do Kosovo: estima-se que o bombardeamento da Jugoslá­ via na primavera de 1 999 tenha causado cerca de 500 vítimas civis. Foram

( 131) ( 1 321

Cf. Francisco de Vitoria, Doctrina sobre los Indios, op. cit., pp. 143-144. Cf. Idem, pp. 144-145; cf., no entanto, António de São Domingos, op. cit., ff. 68-

-68v. 11331 Cf. William Rasch, Sovereignty and lts Discontents: On the Primacy of Conflict and the Structure of the Political, op. cit., p. 140. De resto, o mesmo se poderá dizer em relação à teoria moral das relações internacionais desenvolvida por John Rawls, que admite também, em certas circunstâncias, o princípio da intervenção humanitária (cf. John Rawls, The Law of Peoples, op. cit., pp. 8 1 , 93-94, nota 6). 1 1 341 Com razão afirma Michael Walzer que a intervenção humanitária é sempre apenas "parcialmente humanitária": cf. ]ust and Uniust Wars: A Moral Argument with Historical llustrations, 2.3 ed., Basic Books, Nova Iorque, 1992, p. 102. Note-se, todavia, que este au­ tor não questiona a existência de "ocasiões legítimas para a intervenção humanitária", mas a necessidade de definir com precisão os seus contornos, o âmbito da intervenção e ainda a necessidade de as antecipar através de uma atuação consistente da sociedade internacional, realçando a importância do papel dos Estados em tal contexto (cf. Michael Walzer, "The Argument about Humanitarian lntervention" e "Beyond Humanitarian lntervention: Human Rights in Global Society", in Thinking Politically: Essays in Political Theory, seleção, organi­ zação e introdução de David Miller, Yale University Press, New Haven e Londres, 2007, pp. 237 e ss., 251 e ss.).

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estas mortes um lamentável dano colateral, mas ainda assim necessanas para evitar um mal maior e, corno tal, legalmente justificadas? Foram, pelo contrário, urna consequência inevitável de urna atuação em violação da Car­ ta das Nações Unidas? Ou devemos ainda considerar urna terceira alternati­ va, de acordo com a qual a atuação em causa foi formalmente ilegal, ainda que moralmente necessária? Os riscos subjacentes à resposta que se der a estas questões são bem sintetizados por Martti Koskennierni: "pensar no Kosovo corno parte do direito significa mudá-lo do domínio do excecional para o da rotina"º35l. Os perigos desta "normalização da exceção" são bem visíveis no teste­ munho de Marc Garlasco, o analista dos serviços secretos militares norte -americanos que se tornou perito na "divisão de emergências" do Human Rights Watch. Garlasco passou anos a examinar histórias de violência em palcos de guerra por todo o mundo, desde o Afeganistão, à Birmânia e ao Iraque. O seu propósito era o de averiguar a ocorrência de crimes à luz de categorias legais corno "necessidade" e "proporcionalidade" . Segundo afir­ mou, "já não posso afirmar se esta destruição está certa ou errada. Posso apenas dizer se é legal ou ilegal"1136l. Neste ponto, interessa relembrar a perspetiva em que se situava a maio­ ria dos autores aqui publicados. Corno afirma Vitoria, o tratamento da ma­ téria relativa aos bens dos índios e aos fundamentos da guerra justa contra eles "não pertence aos jurisconsultos ou, pelo menos, não apenas a eles. Os índios não estão sujeitos, corno direi de seguida, ao direito humano ou positivo; as suas coisas não hão de ser examinadas pelas leis humanas, mas pelas divinas ou naturais, nas quais os juristas não são suficientemente pe­ ritos para poder, por si mesmos, resolver estas questões"1137l. É claro que os teólogos não são hoje as pessoas indicadas para resolver os complexos problemas colocados pela guerra e a ingerência nos assuntos internos do Estados, mas a importância crítica de um ponto de vista descomprometido com o direito positivo poderá não ser menor hoje do que na altura em que aqueles teólogos escreverarn1138l. Era essa, afinal, a promessa de um direito 11351 Cf. Martti Koskenniemi, The Polititcs of lnternational Law, op. cit., p. 1 1 5 . Salientando também esta caraterística das intervenções humanitárias, cf. Michael Walzer, "The Argument about Humanitarian lntervention", op. cit., p. 237. 1 1361 Cf. Eyal Weizman, The Least of Ali Possible Evils: Humanitarian Violence from Arendt to Gaza, Verso, Londres, 201 1 , p. 123. 1 1371 Cf. Francisco de Vitoria, Doctrina sobre los Indios, op. cit., p. 107. 1 1381 Neste sentido, cf. Sankar Muthu, Enlightenment Against Empire, Princeton Univer­ sity Press, Princeton e Oxford, 2003, p. 273. Sobre a distinção entre o plano jurídico e o plano moral nas intervenções humanitárias, cf. Michael Walzer, Just and Un;ust Wars: A Moral Argument with Historical Ilustrations, op. cit., pp. 106-108.

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das gentes entendido como o conjunto dos ditames estabelecidos pela razão natural entre todos os povos. Há ainda um outro aspeto em que a reflexão dos teólogos juristas sobre a conquista e a colonização dos índios se pode mostrar útil na crítica das in­ tervenções humanitárias. Admitir que os Estados constituem comunidades construídas em torno de uma noção de bem comum, em vez de funciona­ rem simplesmente, no plano das relações internacionais, como indivíduos centrados no seu interesse próprio, é algo que pode ser mobilizado para desmistificar as acusações de unilateralismo que impendem sobre as inter­ venções humanitárias. É certo que as intervenções humanitárias unilaterais visam muitas vezes servir os interesses próprios dos Estados que as levam a cabo, mas as coisas não se passarão necessariamente de modo diverso no quadro de processos de decisão multilaterais. O que importa, em qualquer caso, é pensar os Estados como comunidades capazes de atuar também no interesse da humanidade, caso em que a sobreposição de interesses de vária ordem pode ser uma vantagem prátical1391. Para além disso, é ainda neces­ sário questionar se o "direito a ter direitos", de que nos falava Hannah Arendtl14o1, pode ser concebido atualmente à margem dos Estados como co­ munidades éticas decentes que asseguram esses direitos114 1 1. Miguel Nogueira de Brito Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Lisboa, fevereiro de 2014

1 1 39' Cf., neste sentido, Michael Walzer, "The Argument about Humanitarian lnterven­ tion'', op. cit., pp. 243-244. 11401 Cf.Th e Origins of Totalitarianism, Harcourt Brace & Company, Nova Iorque, 1 973, pp. 296-297. 1141 ' Cf. Michael Walzer, "Beyond Humanitarian lntervention: Human Rights in Global Society", op. cit., p. 262.

APRESENTAÇÃO DOS TEXTOS

Os textos que publicamos neste primeiro volume, em versão latina e tradução portuguesa, pertencem a um vasto espólio, disperso em arquivos e bibliotecas portugueses, constituído por manuscritos que testemunham os ensinamentos dos professores das universidades de Coimbra e de Évora, ao longo da segunda metade do século XVI. O catálogo elaborado por Frie­ drich Stegmüller042l, em meados do século XX, permanece, nos nossos dias, como uma importante ferramenta de mapeamento destes manuscritos, for­ necendo uma imagem impressiva da extensão e do conteúdo deste espólio. Muitos destes manuscritos não saíram das mãos dos professores. Em parte significativa, eles consistem em postilas, ou apontamentos realizados por alunos, que foram depois sofrendo adulterações, à medida que iam sen­ do copiados e transmitidos de universidade para universidade ou de casa religiosa para casa religiosa. Alguns destes documentos serão cópias de pla­ nos de aulas realizados pelos professores, mas que não teriam o apuro de um texto destinado ao prelo. À exceção do primeiro manuscrito que aqui publicamos, que muito pro­ vavelmente saiu das mãos de Molina, todos os manuscritos que aqui pu­ blicamos são postilas. Os códices em que estão inseridos, provenientes das Universidades de Coimbra e de Évora, e o relativo detalhe das referências de fontes e autores pode levar-nos a supor, com alguma segurança, que estes manuscritos foram produzidos em contexto académico, ou seja, que são mais próximos do texto original do que uma cópia realizada por alguém 11421 Friedrich Stegmüller, Filosofia e Teologia nas Universidades de Évora e de Coimbra, trad. de Alexandre Morujão, Coimbra, Instituto de Estudos Filosóficos, 1 959.

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com conhecimentos técnicos e linguísticos mais reduzidos, no contexto de urna casa religiosa0431 • Mesmo que este facto nos imponha inúmeras reservas sobre a fidelidade destes textos ao pensamento dos professores quinhentistas, eles possuem um valor inegável, enquanto documentos desse legado e da cultura do seu tempo. Por outras palavras, as postilas poderão hoje ser observadas pelos estudiosos não só pelo que ensinam do pensamento dos professores das uni­ versidades portuguesas de Quinhentos, corno também pelo que demonstram acerca da sua recepção pelo meio intelectual e religioso português. Para mais, pensamos que não é ousado afirmar que o registo estilístico em que a maior parte destes textos laboraria é suficientemente árido e for­ mal para que nele não se note demasiado a ausência do seu autor original. Ainda que seja admissível que algum vigor e elegância se tenham perdido nos diversos graus de transmissão, a ausência do autor notar-se-á, sobre­ tudo, em pormenores da articulação dos raciocínios, das suas proposições e das referências a fontes. De qualquer forma, no contexto das lições de Teologia, Direito e Filosofia - aquele em que se movem os textos aqui pu­ blicados, bem corno o catálogo de Stegrnüller -, os professores e os alunos mais experimentados partilhariam urna cultura comum, sustentada no pen­ samento dos doutores da Igreja, da escolástica medieval, dos comentadores tardo-medievais e modernos, e na tradição canónica. Luís de Molina ( 1 53 5 - 1 600) chegou a Coimbra no ano de 1553, para in­ gressar no noviciado da Companhia de Jesus. No ano seguinte, iniciaria os seus estudos em Filosofia, na Universidade de Coimbra. Em 1558, iniciou o estudo de Teologia. Durante esse período, foi, muito provavelmente, aluno de Martín de Ledesrna. Entre 1 563 e 1 567, encontrarno-lo já a ministrar o curso completo de Filosofia. A partir de 1568, passa a ensinar Teologia na Universidade de Évora, doutorando-se em 1 571 . Em 1 572, assumiu a Ca­ deira de Prima, sucedendo a Fernando Pérez. Terá sido durante o ano lectivo de 1 5 73-1 574, em leccionou as questões 1 a 1 6 da 2.ª 2.ª• da Suma Teológica de São Tomás de Aquino!1441, que Mo­ lina terá pensado o texto publicado no presente volume, Vtrum infideles

1 1431 "O primeiro cuidado a ter [ ... ] é a averiguação do carácter do manuscrito: se é aca­ démico ou extra-académico, isto é, se brotou das mãos do aluno, depois de ouvir o professor, ou se é uma cópia de outro manuscrito, feita por quem talvez nem latim soubesse ... ", António Xavier Monteiro, Frei António de São Domingos e o seu pensamento teológico: sobre o peca­ do original, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1 952, p. 8 1 . 0441 Friedrich Stegmüller, op. cit., pp. 42-47.

APRESENTAÇÃO DOS TEXTOS

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sint compellendi ad fidem(1451, comentário ao artigo 8 da questão 10 (De infidelitade) da 2. 2.ª'. a

Entretanto, é também de ter em conta a hipótese de este manuscrito ter sido produzido por Molina após o seu abandono da docência por motivos de doença, em 1583, altura em que se dedicou intensamente à produção de diversas obras, tendo em vista a sua publicação. Porém, o facto de as questões tratadas no ms. 1 85 1 da Biblioteca da Uni­ versidade de Coimbra (1 a 46 da 2.ª 2.ªe) coincidirem com as questões trata­ das nos anos lectivos de 1 573-1574 (questões 1 - 1 6 ) e 1574-1 575 (questões 17-46) permite-nos supor, com alguma margem de erro, que este códice resultou do trabalho lectivo desses dois anos. A matéria tratada no artigo 8 da questão 10, Vtrum infideles sint com­ pellendi ad fidem, "Se os infiéis devem ser forçados a abraçar a fé" estava tradicionalmente ligada àquela de que tratam os restantes textos publicados no volume: a questão 40 da 2.ª 2.ªe, De Bellum, "Sobre a Guerra" . Todavia, a empresa colonial no Novo Mundo e na Ásia emprestava novos elementos aos comentários destas questões e uma maior premência à ligação entre elas. Como o leitor poderá comprovar, nos comentários à questão 40 são feitas constantes remissões à questão 10 (De infidelitate, "Sobre a infidelidade" ) . A questão imperial encontra-se particularmente presente n o texto d e Pe­ dro Simões, Annotationes in materiam de bello a Reuerendo Patre Petro Simões traditae: anno 1 575°461, em português, Notas sobre a matéria acerca

da guerra, leccionadas pelo Reverendo Padre Pedro Simões no ano de 1 5 75. Quase nada se sabe acerca de Pedro Simões. Sabe-se, no entanto, que entrou na Companhia de Jesus a 28 de novembro de 1 557 e que, em 1 569, era professor de Filosofia na Universidade de Évoraº 47 1 . Além do tema, nem o título nem o incipit nos permitem supor que este texto tivesse sido redigido à maneira de um comentário à questão 40 da 2. ª 2.0• da Suma Teológica de São Tomás. Nele, Pedro Simões optou antes por tratar a matéria da guerra em três questões - e não em quatro artigos, como São Tomás - inspirando-se nas cinco questões estipuladas por Caetano na 1 1 451 BUC, ms. 1 851, ff. 192r - 201 v. Testemunho único, escrito em letra que parece ser a do próprio Molina, praticamente sem rasuras ou espaços em branco. As questões 1 a 16 foram publicadas previamente no Archivo Theologico Granadino ( 1 976) sob o título "Luis de Molina, S.J., De Fide, Comentario a la II-II, q. 1-16". Uma outra transcrição do artigo 8 da questão 10, " Vtrum infideles sint compellendi ad {idem, foi também publicada em Tractatus de bello contra insulanos. Posición de la corona, ed. L. Pereiia, Madrid, CSIC, CHP 10, 1982, págs. 350-369. 1 1461 BNP, cod. 3858, ff. 301-320. Cópia de qualidade regular, com várias anotações à margem, feita a uma só mão, com cabeçalho indicando o título do texto. Registámos ainda uma cópia muito parcial e de fraca qualidade em BNP 3982, ff. 72-77. 11471 Friedrich Stegmüller, op. cit., p. 9 1 .

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sua Suma. A partir do foi. 304, o intuito principal do texto torna-se mais claro: discutir os títulos que legitimam o poder português nas Índias, em sete títulos, seguindo de perto Francisco de Vitoria. Aqui, como nos restantes textos deste volume, o vulto do doutor de Sa­ lamanca é quase omnipresente. No que diz respeito às referências a outros autores nos textos de Molina, Pedro Simões, António de São Domingos e Fer­ nando Pérez nos textos que publicamos, São Tomás é estrutural. Santo Agos­ tinho é o padre da Igreja mais referido. Os sumistas, tanto os que se ocuparam do comentário à Suma de São Tomás (Caetano, Silvestre, Gabriel e Santo Antonino) como os autores de compêndios de casos de consciência (Angelo e Armilla ), são muito citados, estabelecendo uma conexão gradual entre pensa­ mento de São Tomás e a Modernidade e legitimando a recusa das leituras de Escoto. Mas, sobretudo, é de assinalar as numerosas referências aos autores contemporâneos, muitos deles então ainda vivos e atuantes. Navarro, Alfonso de Castro, Mondragonensis e Domingo de Soto são autoridades constante­ mente aludidas, confirmando a atenção ou, em alguns casos, o engajamento destes autores no projeto da Escola de Salamanca. Veja-se, abaixo, um gráfico em que se apresentam os doze autores mais referidos no conjunto dos quatro manuscritos, com indicação do número de referências feitas a cada um deles:

UHi iJi i i i i i No seu De bello. Quaestio 40!148l, António de São Domingos foi formal­ mente mais conservador, mantendo a estruturação da questão nos quatro artigos propostos por São Tomás.

1 1 481 BNP, cod. 5552, ff. 58v-86v. Cópia regular, feita a uma só mão, com cabeçalhos indicando o título e o nome do autor. Registámos outros dois testemunhos: Arquivo Distrital de Braga (ADB), ms. 427, ff. 24r-82r; BUC, ms. 1 857 (volume que reúne os comentário de António de São Domingos às q. 25-42 da 2." 2."'), ff. 300v-340. O ms. BNP revela uma ver­ são mais completa do que o ADB e com referências mais precisas do que o BUC. Registámos algumas variantes textuais mais significativas em nota de rodapé.

APRESENTAÇÃO DOS TEXTOS

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António de São Domingos nasceu em Coimbra em 153 1 . Professou em 1547 no convento de São Domingos em Lisboa. Em 1 556 já lecionaria Teo­ logia no convento da sua ordem. Em 1 5 74, tomou posse da cadeira de Pri­ ma da Universidade de Coimbra. Foi qualificador do Santo Ofício e, a partir de 1 5 8 1 , foi deputado da Inquisição de Lisboa. O vastíssimo espólio deixado por António de São Domingos, inédito qua­ se na sua totalidade, permite-nos reconstituir com relativo detalhe a sua traje­ tória académicai 1491 • De acordo com a indicação fornecida no final do códice da Biblioteca da Universidade de Coimbra115o1, as lições dedicadas às questões 33 a 44 da 2.ª 2.ª' terão terminado a 13 de janeiro de 1 580. O De Bello. Quaestio 40 será, portanto, pouco anterior a essa data. António de São Do­ mingos faleceu entre 1596 e 1598. Apesar do seu conservadorismo formal, a lição de António de São Domin­ gos apresenta alguns interessantes rasgos, em que o exercício de pensar, em termos estritamente racionais, os títulos de legitimação da guerra força as fron­ teiras do que tinha sido afirmado por Vitoria, no sentido do que Suárez viria a propor anos mais tarde. Por exemplo, como foi adiantado no estudo introdu­ tório, António de São Domingos recusa, a partir do f. 67v, o título de guerra justa no caso de os "infiéis" recusarem a pregação do cristianismo, alegando, entre outros argumentos, a impossibilidade de se demonstrar, com argumentos da razão natural, aos "infiéis", que Cristo tinha concedido esse direito à Igreja. O texto ln materiam de Bello a Patre Doctoreque Ferdinandus Perez11511, em português Sobre a matéria da Guerra, pelo Padre e Doutor Fernando Pérez, estrutura-se, à semelhança do De Bello de António de São Domingo, nos quatro artigos estipulados por S. Tomás para a questão 40, mas desen­ volvidos de forma menos inovadora. Nascido em Córdoba por volta do ano de 1 530, Fernando Pérez chegou a Évora por altura da fundação da Universidade, em 1 559. Nessa cidade en­ trou no noviciado, ao mesmo tempo que lecionava Teologia na Cadeira de Véspera. A partir de 1 567 ocupou a Cadeira de Prima, até ao ano de 1572. Desde essa data até ao ano da sua morte, em 1 595, terá ensinado Teologia no colégio da Companhia de Jesus de Coimbraº521. Foi durante este período, no ano de 1588, segundo indicação presente na margem do primeiro fólio do manuscrito, que Fernando Pérez terá redigido o seu ln materiam de Bello. Em termos gerais, na sua lição Pérez discorre sobre 11491

Cf. António Xavier Monteiro, op. cit., pp. 8 1 e ss.; Friedrich Stegmüller, op. cit., 1 0- 1 1 . 115º' «finis factus huic materiae 1 3º January Anno domini 1 580>>, BUC, ms. 1 857, f . 3 8 l v. 11511 BNP, cod. 3299, ff. 21 7v-257v. Cópia de qualidade irregular, feita a várias mãos. Registámos ainda, em BNP, cod. 3841, uma versão menos completa do texto. 1 1 m Friedrich Stegmüller, op. cit., pp. 4 1 -42.

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o tema acompanhando de perto o pensamento de Vitoria. Seguindo a esteira da Escola de Salamanca, a lição de Pérez partilha, como os restantes textos aqui publicados, a originalidade de modular a reflexão em função de temas do seu tempo. A ofensiva protestante, o império colonial, o perigo otomano, as incursões dos corsários franceses são alguns dos temas trazidos à colação. Um dos traços notáveis dos autores da Escola de Salamanca e dos seus con­ tinuadores que lecionaram em Portugal foi, precisamente, a sua capacidade de erigir sobre os pilares da doutrina escolástica um legado inquestionavelmente inovador. Assim, Luís Molina, Pedro Simões, Fernando Pérez e António de São Domingos, como Francisco de Vitoria, Domingo de Soto ou Martín de Azpilcueta, não se limitaram a edificar uma adequação da escolástica tomista à Modernidade nem protagonizaram um movimento inverso, que procurasse encerrar a Modernidade num quadro formal predeterminado. Aproveitando potencialidades inerentes ao pensamento aristotélico-tomista, realizaram im­ portantes operações no seu interior, tendo em vista a sua aplicação ao contex­ to Moderno. A partir de então, era importante que a universidade também pensasse a economia mercantilista, a escravatura, a guerra, as relações inter­ nacionais em suma, os impérios globalizados, à luz dos problemas que eles colocavam no século XVI. Mas, para além disso, era também importante que essa reflexão tivesse repercussões na legislação e na prática quotidiana. O am­ biente cultural ibérico de então terá imposto a escolástica aristotélico-tomista corno o paradigma disponível para este movimento. O real impacto deste legado na legislação e na prática colonial portuguesa ainda aguarda estudos, que dependerão, certamente, de um conhecimento mais aprofundado de todo o espólio disponível e das relações entre os acadé­ micos Quinhentistas e as figuras e os órgãos do poder colonial português(153 1 • Cabe-nos, por agora, assinalar o valor dos textos em apreço não só en­ quanto testemunhos da cultura vigente nas universidades portuguesas da se­ gunda metade de Quinhentos, corno também pelo que de mais original eles desenvolveram enquanto extensões do pensamento da Escola de Salamanca. Ricardo Ventura (FCT/CLEPUL/Universidade de Lisboa)

1 1H1 A título de exemplo, esta questão foi aflorada mais recentemente, sobretudo sob o aspecto da construção e le�1timação da ideologia imperial, em: Rui Bebiano, op. cit.j Giuseppe Marcocci, L'invenzione d1 un impero. Politica e cultura nel mondo portoghese (1"150-1 600), Roma, Carocci editore, 201 1 ; Carlos Albertos Zeron, Ligne de Foi: La Compagnie de ]ésus et l'esclavage dans le procesjus de formation de la société coloniale en Amérique portugaise (XVI•- X VII• siecles), l'aris Editions Honoré Champion, 2013.

NORMAS DE ESTABELECIMENTO DO TEXTO LATINO

- As semiconsoantes j e v foram suprimidas, mantendo-se o V maiúsculo em início de palavra (ex: justitia > iustitia; victoria > uictoria; Unde >

Vnde) .

- A pontuação foi modernizada e foram introduzidas aspas " ", para assinalar citações e discurso direto. - A paragrafação foi alterada, procurando adequar-se à estrutura argu­ mentativa dos textos. - As abreviaturas foram, em geral, desenvolvidas, exceptuando os casos indicados em lista, na sua maioria referentes a partes de livro ou de texto, e alguns títulos de livros. - Os títulos de obras e de capítulos são destacados em itálico. - As restantes intervenções foram assinaladas entre parêntesis rectos [ ] e explicadas em nota de rodapé, nomeadamente: • a indicação de fólios, a negrito (ex: [86v] ); • correções feitas ao texto do manuscrito (ex: [semper]; em nota: No ms.: "sempe" . ) ; • introdução d e variantes textuais provenientes d e outro manuscrito que não o utilizado para a transcrição, por serem mais completas ou mais corretas (ex. [te mille passis, vade et duo millia]; em nota: "te mille passis, vade et duo millia'', ADB ] "etc.", BNP.); • registo de lacunas do suporte (ex: [ ... ]); • registo de rasuras existentes no texto do manuscrito (ex: [ ]; em nota: Rasurado no ms.: "particulare" .).

LISTA DE ABREVIATURAS LATINAS

a. - articulum (artigo) c. - caput; capitulum (capítulo) can. - canon (cânone) cod. - codex (código) col. - columna (coluna) concl. - conclusio (conclusão) D. - Diuus (Divino/Santo) d. - distinctio (distinção) dub. - dubitatio (dúvida) ep. - epistola (epístola) foi. - folio (fólio) ff. - folios (fólios) leg. - lex ( lei) lib. - liber (livro) n. - numerus (número) p. - pars (parte) q. - quaestio (questão) tr. - tractatus (tratado) tt.º - titulo (título) u. - uerbum (palavra/entrada)

LUIS DE MOLINA DE FIDE - ARTICULUS

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UTRUM INFIDELIS SINT COMPELLENDI AD FIDEM

TRANSCRIÇÃO DE LUÍ S MACHADO DE ABREU

1. Infidelium quidam sunt qui fidem nunquam susceperunt, ut iudaei, mahometani et gentiles; quidam uero qui fidem aliquando susceperunt et professi sunt in baptismo, ut haeretici et apostatae, et de utrisque dicendum est. 2. Quod ergo attinet ad primos Scotus in 4, d. 4, q. 9, quem [ 1 92v] sequi­ tur Gabriel, eadem d., q. 2, dub. 5, affirmat religiose fieri, si huiusmodi infide­ les adulti cogantur minis et terroribus ad suscipiendum baptismum et subin­ de fidem et ad conseruandam fidem susceptam. Et ut patet ex antecedentibus atque eum exponit Victoria in Relectione de Indis, p. 1, n. 39, loquitur de infidelibus qui essent subditi principum christianorum; a talibus enim prin­ cipibus, quibus in regimine reipublicae a lege essent subditi, dicit id religiose fieri. Reddit autem rationem quia, inquit, esto ipsi non essent uere fideles in animo, attamen minus malum esset eis non posse impune legem suam illici­ tam seruare, quam posse eam libere seruare. Et praeterea quia liberi eorum, si bene educarentur, in 3.ª et 4.ª progenie essent uere fideles.

Lrns DE MOLINA DA FÉ - ARTIGO 8 SE OS INFIÉIS DEVEM SER FORÇADOS A ABRAÇAR A FÉ TRADUÇÃO DO LATIM DE LUÍS MACHADO E ABREU

1. Há infiéis, como os judeus, os maometanos e os gentios, que nunca receberam a fé; contudo outros, como os hereges e os apóstatas, receberam­ na outrora e foram batizados. Trataremos de ambos. 2. Quanto aos primeiros, Escoto, in IV, d. 4, q. 9, [192v] seguido por Gabrielº), na mesma d., q. 2, dub. 5, afirma que se procede em conformi­ dade com a religião se estes infiéis adultos forem obrigados com ameaças e intimidações a receberem o batismo e depois a fé, e a conservar a fé recebida. E como é patente pelo que antecede, e isso mesmo expõe Vitoria em Relectio­ ne de Indis, p. 1, n. 39, trata-se de infiéis que são súbditos de príncipes cris­ tãos. Diz, pois, que procedem conforme a religião os príncipes dos quais por lei eles são súbditos em regime de república. E dá a razão, porque, diz ele, ad­ mitindo que não fossem verdadeiramente fiéis do fundo do coração, todavia não poderem observar impunemente a sua lei ilícita seria um mal menor do

111 Gabriel Biel ( 1 420/5- 1495), teólogo alemão, professor em várias universidades ale­ mãs, autor de várias obras de Teologia e Economia, nomeadamente, do comentário às Quatro Sentenças de Pedro Lombardo, Gabriel in quartum libru sententiarum, de que consultámos a edição de Basileia, de 1 5 12.

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Confirmat uero suam sententiam, quia in Concilio Toletano 4, et re­ fertur c. De iudaeis, 45 d. Sisibutus, qui multos infideles ad fidem coegit, appellatur religiosissimus princeps; quod non fieret si id non religiose fecisset. Et c. Maiores causae, De baptismo et eius effectu, paragrapho Item quaeritur, Innocentius 3 refert, approbat et exponit idem decretum Con­ cilii Toletani. 3. Deinde argumentantur alii ad probandum licitum esse compellere in­ fideles ad fidem, immo et bello subiicere eos quo amplectantur fidem, ex illo Luca 14: "Exi in uias et sepes et compele eos intrare, ut impleatur do­ mus mea." Et loquitur ad litteram de intrare in Ecclesiam per fidem. Ergo uis inferri potest infidelibus, quo amplectantur fidem. 4. 2.0, quia qui paecipit finem, paecipit aut certe permittit necessaria ad finem. Deus autem ministris Ecclesiae praecipit praedicationem Euangelii, et uniuerso orbi ut fidem euangelicam suscipiat, ut patet ex illo Matthaei ultimo: "Euntes in mundum uniuersum" etc. Ergo praecipit aut permit­ tit subicere infideles, quoniam aliter non suscipient fidem. Et confinnatur, quia Gregorius, 1 .0 Epistolarum libro, ep. 73 ad Genadium, egregie eum [ 193] commendat quod bellorum uictoriis christianum nomen dilatauerit, gentes quasdam subiugando, quo fidei praedicatio circumquaque discurre­ ret. Ergo gratia praedicationis euangelicae atque ut fidem suscipiant, lici­ tum est bello subicere infideles. 5. 3.0 quia, ut Scotus loco citato argumentatur ad probandum filios infi­ delium baptizari posse inuitis parentibus, potius debet aliquis cogi ad obe­ diendum domino superiori quam inferiori. Sed si infideles non obedirent legitimis principibus suis, possent iuste ad id cogi; ut Rex Hispaniarum licite cogere posset gallos ut obedirent regi suo. Cum ergo infideles tenean­ tur Deo obedire et acceptare fidem Christi et baptismum, poterant bello ad id cogi, si renuant, maxime auctoritate Summi Pontificis qui Vicarius est Christi. 6. 4.0, princeps reipublicae, maxime si maiorum consilium capiat, poterit nouas leges condere, ad quas omnes subditi teneantur, pote­ rit etiam alterius reipublicae leges suscipere; ut respublica romana pote­ rat suscipere leges reipublicae atheniensium etiam inuitis plebaeis et ad eas eos cogere. Ergo pari ratione poterit princeps aliquis consilio maio­ rum reipublicae suscipere legem Christi et cogere subditos repugnan­ tes ad fidem et legem Christi suscipiendam ac proinde ad suscipiendum baptismum. ,

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que poderem observá-la livremente. E além disso, os seus filhos se forem bem educados hão de ser, na terceira ou quarta geração, verdadeiramente fiéis. Confirma ainda a sua opinião porque no IV Concílio de Toledo (e refere­ se o c. De iudaeis, 45 d. ) Sisebuto, que coagiu muitos infiéis a aderir à fé, é chamado príncipe muito religioso; e não o seria se não tivesse procedido em conformidade com a religião. E no c. Maiores causae, De baptismo et eius effectu, parágrafo Item quaeritur, Inocêncio III refere, aprova e explica o mesmo decreto do Concílio Toledano. 3. Além disso, argumentam outros com o "Sai pelos caminhos e azinha­ gas e obriga-os a entrar para que se encha a minha casa" , Lc 14, para provar que é lícito forçar os infiéis a aderir à fé, e até submetê-los, fazendo-lhes guerra para a abraçarem. E fala-se à letra de entrar na Igreja através da fé. Portanto, pode usar-se a força contra os infiéis para que abracem a fé. 4. Em segundo lugar, porque quem ordena o fim certamente prescreve ou permite o que é necessário para o fim. Ora, Deus ordena aos ministros da Igreja a pregação do Evangelho e ao mundo inteiro que receba a fé evangé­ lica, como é patente no final de Mt: "Ide por todo o mundo", etc. Portanto, ordena ou permite que se submetam os infiéis, porque de outro modo não receberão a fé. E confirma-se porque Gregório, 1 . º Epistolarum libro, epist. 73 ad Genadium, [193] o recomenda de modo particular, na medida em que com as vitórias das guerras se dilata o nome cristão, subjugando alguns po­ vos de modo a que a pregação do Evangelho chegue a todo o lado. Portanto, é lícito fazer guerra aos infiéis, em benefício da pregação evangélica e para que recebam a fé. 5. Em terceiro lugar, porque, como argumenta Escoto no lugar citado, para provar que os filhos de infiéis podem ser batizados contra a vontade dos pais, a obrigação de obedecer ao senhor mais alto precede a de obede­ cer ao inferior. Mas se os infiéis não obedecessem aos seus chefes legítimos poderiam justamente ser obrigados a fazê-lo; como o Rei das Espanhas po­ deria licitamente obrigar os gauleses a obedecer ao seu rei. Já que os infiéis devem obedecer a Deus e aceitar a fé de Cristo e o batismo, se recusarem, podem a isso ser coagidos com guerra, principalmente pela autoridade do Sumo Pontífice que é Vigário de Cristo. 6. Em quarto lugar, o chefe de Estado, especialmente depois de ouvidos os conselheiros, poderá elaborar novas leis que obriguem todos os súbditos, e poderá também adotar leis de outro Estado; por exemplo, a república romana podia adotar leis da república ateniense, mesmo contra a vontade do povo, e obrigá-lo a elas. Com igual razão, pois, poderá um príncipe, ou­ vidos os conselheiros, adotar a lei de Cristo e obrigar súbditos recalcitrantes a abraçar a fé e lei de Cristo e ainda a receber o batismo.

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7. His non obstantibus sit 1 .ª conclusio: lllicitum est cogere aliquem huiusmodi infidelium uel ad fidem uel ad baptismum suscipiendum aut ea­ dem causa illis bellum infere aut eos subicere. Haec est expressa Diui Tho­ mae et Caietani hoc loco; Soti in 4, d. 5, q. 1 , a. 10, et Victoriae in Relectione de Indis, 1 p. et 2, Ricardi in 4, d. 6, q. 1 , circa 3 principale, Durandi in 4, d. 4, q. 6, Paludani, ibidem, q. 4, et plurium aliorum. Et probatur primo, quia licet Ecclesia ius habeat ad diuulgandum Euan­ gelium uniuerso orbi a [ 1 93v] Christo Domino sibi collatum, ut patet ex illo Marci ultimo: "Praedicate Euangelium omni creatura" , Christusque Do­ minus suis legibus uniuersum orbem obligauerit ad fidem et baptismum suscipiendum, attamen Ecclesia ius iudicandi non habet et subinde neque puniendi aut cogendi aliquem, antequam ille per baptismum efficiatur pars et membrum illius, ut patet ex illo l Cor. 5: "Quid mihi de his qui foris'' , id est extra Ecclesiam, "sunt iudicare? Nonne de his qui intus sunt uos iudi­ catis? Nam eos qui foris sunt Deus iudicabit." Fit ergo ut licet Ecclesia et ministri eius proponere et praedicare pos­ sint Euangelium uniuerso orbi et suadere omnibus ut fidem atque baptis­ mum suscipiant, et si ab ea re impediantur, possint impedimenta remouere mouendo, si ad id opus fuerit, bellum ad iniuriam quam patiuntur propul­ sandam aut uindicandam, [neque] prohibentur uti iure suo; nihilominus tamen nullum huiusmodi infidelium punire possint, quod tales infideles fidem ipsis oblatam aut baptismum suscipere non uelint, uel quod non ue­ lint doctrinam eorum audire; neque etiam possint ad aliquid horum eos cogere, eo quod nondum quemquam eorum habeant sibi subditum ea in re. Et confinnatur haec ratio, quia Ecclesia christiana, cuius caput est Sum­ mus Pontifex Vicarius Christi, respublica quaedam est spiritualis, in ordine ad finem supematuralem. Licet ergo ius habeat seipsam dilatandi, amplec­ tendo omnes qui sua sponte uelint fidem, quam profitentur, suscipere (nam spontaneos uult Christus suos ministros et membra huius Ecclesiae) , nam licet ius habeat uocandi eos ad se per praedicationem Euangelii et praeterea

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7. Não obstante tudo isto, há urna primeira conclusão: Não é lícito obrigar nenhum destes infiéis a abraçar a fé nem a receber o batismo, ou fazer-lhes guerra por esse motivo ou subjugá-los. Tal é a conclusão expressa de S. To­ más e de Caetano!21 nesse lugar; de Soto(3), 4, d. 5, q. 1, a. 1 0, e de Vitoria em Relectione de Indis, 1 p. e 2, de Ricardo, 4, d. 6, q. 1 , a. 3 principalmente, de Durando, 4, d. 4, q. 6, de Paludano, na mesma q. 4, e de muitos outros. E prova-se, primeiramente, porque embora a Igreja tenha direito a difun­ dir o Evangelho no universo que lhe foi confiado por [193v] Cristo Senhor, corno consta do final de Me: "Pregai o Evangelho a toda a criatura" e Cristo Senhor com suas leis tenha obrigado o orbe inteiro a receber a fé e o batis­ mo, todavia a Igreja não tem o direito de julgar nem de castigar ou obrigar alguém, antes de pelo batismo se tornar parte e membro dela, corno se vê do seguinte, 1 Cor. 5: "Porventura, compete-me, a mim, julgar os de fora (isto é, os que estão fora da Igreja ) ? Não são os de dentro que tendes de julgar? Os de fora Deus os julgará." Segue-se, pois, que embora a Igreja e os seus ministros possam propor e pregar o Evangelho em todo o orbe e exortar toda a gente a abraçar a fé e o batismo, e se forem impedidos de o fazer, possam afastar os obstáculos declarando guerra, se necessário, para repelir ou vingar a ofensa sofrida, [e não] estejam proibidos de usar do seu direito; não podem todavia castigar deste modo nenhum infiel por não quererem estes infiéis receber o batismo e a fé que lhes é oferecida, ou por não quererem escutar-lhes a pregação; nem podem também obrigá-los a nada disso, porque ainda nenhum deles se lhes submeteu nessa matéria. E confirma-se esta razão por ser a Igreja cristã, cuja cabeça é o Sumo Pontífice, Vigário de Cristo, urna república espiritual que visa um fim sobre­ natural. Portanto, embora tenha o direito de se propagar, acolhendo todos os que voluntariamente queiram receber a fé que hão de professar (pois Cristo quer que sejam voluntários os seus ministros e os membros desta Igreja), embora tenha o direito de os chamar a si pela pregação do Evange-

121 Tommaso de Vio ( 1 469-1534), dominicano italiano, exegeta, teólogo e cardeal. Foi professor de Filosofia em Pádua e de Teologia em Brescia. São da sua autoria diversas obras, que se repartem entre a exegese bíblica, o comentário a Aristóteles e a São Tomás de Aquino, nomeadamente, a Summa Caietana, em dez volumes, de que consultámos a edição de Lyon, publicada em 1 540. É o segundo autor mais citado no presente volume, só superado por Francisco de Vitoria. (Nota do Coordenador, NC). 13 1 Domingo de Soto ( 1 494- 1 560), dominicano espanhol, professor de Teologia na Uni­ versidade de Salamanca, confessor de Carlos V e enviado ao Concílio de Trento. Pertenceu ao grupo de pensadores conhecido como Escola de Salamanca. Foi autor de várias obras de Teo­ logia, Filosofia e Direito, nomeadamente o tratado De iustitia et iure ( 1 557), de que consultá­ mos a edição de Florença, de 1582. É um dos autores mais citados no presente volume. (NC)

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propulsandi et uindicandi iniurias sibi illatas, ut et caeterae respublicae; at­ tamen in non suos, qui ad ipsam nunquam pertinuerunt, non apparet unde habeat uim coactiuam, maxime cum ex Scripturis non habeamus Christum eam ei reliquisse (quando potius oppositum) Deusque reliquerit homines in manu consilii sui in ordine ad uitam aeternam consequendam et ad fi­ dem et ad media, quae ad ipsam conducunt, amplectenda. Fit ergo ut Eccle­ sia et ministri ipsius neminem ad fidem possunt cogere. [ 1 94] 8. 2.0, nemini licet conferre baptismum nisi ei qui praesumitur habere fidem quique creditur non accedere fictus et cum conscientia pec­ cati mortalis; aliter, qui susciperit sacrilegus esset et peccaret mortaliter, sicut et qui conferret. Sed de eo, qui compellitur ad fidem et ad baptismum suscipiendum, credendum est accedere fictum, quandoquidem ita accedere peccatum est mortalis; immo credendum est accedere sine fide, ut Clemens 3 ait, e. Sicut, extra De iudaeis. Ergo non licet cogere quemquam ad fidem suscipiendam et protestandam per baptismum. 9. 3.º, ad praedicationem Euangelii Christus non potentes, qui cogerent, sed pauperes elegit, et quando misit eos praedicare, Matth. 10, solum illa praecepit quae allicere possent ad fidem suscipiendam et simul inseruirent ad eam confirmandam, non uero quae cogerent, ut: "infirmos curate, mor­ tuos suscitate, daemones eiicite, leprosos mundate. Gratis accepistis, gra­ tis date. Nolite possidere aurum neque argentum, neque uirgam tuleritis" , potestatis scilicet ad cogendum, "et quicumque non susceperint uos neque audierint" , non ait "uim illis inferte et cogite" , sed "exeuntes foris excutite puluerem de pedibus uestris'', in testimonim obstinationis et repulsae eo­ rum. "Amen clico: tolerabilius erit terrae sodomorum in die iudicii quam illi ciuitati." Quasi diceret: "uindicta illius peccati non ad uos sed ad meum tribunal et iudicium spectat et ad illud eam reseruo". Et rursus: "Ecce ego mitto uos"; non dixit "sicut lupos aut leones cum potentia, ut homines ui et terroribus meo iugo subiciatis" , sed " tanquam agnos in medio luporum", in spiritu mansuetudinis, ut mansuetudine et conuersatione uestra hona illos uincatis. Et plane, quando huiusmodi forma praedicationis seruatur, Deus fauet et uincimus; quando uero transgreditur, uincimur et superamur. Quam et Chrysostomus notauit, Homilia 34 ln Matthaeum. Et confirmatur hoc ar­ gumentum ex illo Luca 9, ubi cum Iacobus et Ioannes, propter repulsam samaritanorum, [ 1 94v] dixissent Christo: "uis dicimus ut ignis descendat de caelo et consummat illos? " . Conuersus Christus increpauit illos dicens: "Nescitis cuius spiritus estis. Filius hominis non uenit animas perdere sed saluare. " Vnde idem Iacobus longe aliter se habuit postea, ut in uita ip-

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lho e também de repelir e vingar as ofensas que lhe são feitas, à semelhança das outras repúblicas; todavia sobre os que não lhe pertencem e nunca lhe pertenceram, não se vê que tenha poder de coação, tanto mais que das Es­ crituras não consta que Cristo lho tenha outorgado (antes pelo contrário) e Deus deixou os homens entregues a si mesmos no que respeita a alcançar a vid� eterna, e a seguir a fé e aos meios que a ela conduzem. Segue-se, portanto, que a Igreja e os seus ministros não podem obrigar ninguém a abraçar a fé. [194] 8. Em segundo lugar, só é lícito ministrar o batismo a quem se presume que tenha fé e se julga que não vem com fingimento nem em cons­ ciência de pecado mortal; caso contrário, quem o recebesse cometeria sacri­ légio e pecaria mortalmente, e bem assim quem lho ministrasse. Mas quem é forçado a abraçar a fé e a receber o batismo, deve crer-se que o faz com fingimento, visto que é pecado mortal proceder assim; e até se deve crer que o recebe sem fé, como Clemente III diz, e. Sicut, extra de iudaeis. Portanto, não é permitido obrigar ninguém a receber e testemunhar a fé pelo batismo. 9. Em terceiro lugar, Cristo não escolheu para pregar o Evangelho ho­ mens poderosos que obrigassem, senão pobres, e posto que os enviou a pregar, Mt 10, só recomendou o que pudesse atrair à fé e que também ser­ visse para a confirmar, e jamais o que pudesse constranger, como: "curai os enfermos, ressuscitai os mortos, purificai os leprosos, expulsai os demónios. Recebestes de graça, dai de graça. Não possuais ouro, nem prata. E não pegueis na vara" (isto é, no poder de obrigar) . "E se alguém não vos receber nem escutar", não diz "usai da força e obrigai-os", mas "ao sair desse lugar, sacudi o pó de vossos pés", como testemunho da teimosia e recusa deles. "Em verdade vos digo: no dia de juízo, haverá menos rigor para a terra de Sodoma do que para aquela cidade." Como se dissesse: "o castigo daquele pecado compete ao meu tribunal e juízo, não a vós, e a mim o reservo" . E outra vez: "Eis que vos envio"; não disse "como lobos o u leões com poder para sujeitar os homens ao meu jugo pela força e terror", mas "como cor­ deiros no meio de lobos'', com espírito de mansidão para os vencerdes pela vossa mansidão e bom trato. E claramente, quando se observa este modo de pregação, Deus ajuda e vencemos. Quando, pelo contrário, se transgride, somos ultrapassados e vencidos. O que também foi notado por Crisóstomo (homilia 34 in Mat­ thaeum). E confirma-se este argumento pelo que diz Lc 9, quando, por causa da recusa dos samaritanos, Tiago e João [194v] disseram a Cristo: "queres que digamos que desça fogo do céu e os consuma ? " Cristo, voltando-se, reprendeu-os, dizendo: "Não sabeis de que espírito sois. O Filho do homem não veio perder as almas mas salvá-las." Daí que o mesmo Tiago se tenha

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sius referunt Perionius et alii graues auctores. Cum enim daemones ad­ duxissent ad se Hermogenem ligatum, quos Hermogenes, qui ministerio ipsorum utebatur, prius miserat ut ligatum Iacobum aut Philetum ad se ad­ ducerent, iussit Iacobus eum soluere et ait: "Vade quo uolueris libere, non enim uult Dominus ut aliquis inuitus conuertatur." Quae omnia confirmant conclusionem propositam. 10. 4.0, Christus primo suo aduentu, in quo "apparuit eius benignitas et humanitas" , non uenit tanquam iudex ad puniendum scelera iuxta illud Ioan. 3: "Non misit Deus Filium suum in mundum, ut iudicet mundum" ; sed uenit tanquam medicus ad curandum et saluandum, iuxta illud quod subiungitur: "sed ut saluetur mundus per ipsum". Et illud Matth. 9: "Non est opus ualentibus medico, sed male habentibus." Vindictam uero sce­ lerum reseruauit secundo aduentui. Quare non cogendo sed inuitando uo­ luit Euangelium et fidem a se et ministris suis in primo aduentu praedicari, relinquens hominibus acceptare aut non acceptare medicinam. Et confirmatur, quia id magis quadrat doctrinae euangelicae, qua humi­ litas, mansuetudo, paupertas et patientia commendatur, quam uis, potentia, strepitus belli et armorum, quae cum superbia et auaritia coniuncta esse solent et cum praedictis pugnare uidentur. 1 1 . 5.0, hac excellentia lex nostra cum Mahometi perfídia comparata splendet inter alias, quod haec uia armorum, utpote quae ratione persua­ deri non poterat, intrusa est in mundum; nostra uero sanctissima lex per homines inermes, pauperes et mites sola ueritatis ui mundum uicit [ 195] iuxta illud 1 Ioan. 5: "Haec est uictoria quae uincit mundum, fides nostra." Et plane cum fides nostra supra lumen sit naturale, si ui praedicaretur co­ gerenturque homines ad fidem, quasi tyrannis existimaretur et diaboli fig­ mentum, lumini natural repugnans, quod oh id non alia sanctiori uia quam ui introduci potuerit in mundum. 12. Accedunt in confirmationem eiusdem conclusionis praeter commu­ nem usum Ecclesiae decreta Sanctorum Patrum. ln Concilio enim Toleta­ no 4, c. De iudaeis, 45 d., ita habetur: "Praecipit Sancta Synodus nemine deinceps ad credendum uim inferri, cui enim uult Deus miseretur et quem uult indurat. Non enim tales inuiti saluandi sunt sed uolentes, ut integra sit forma iustitiae. Sicut enim homo propria arbitrii uoluntate obediens periit, sic uocante se gratia Dei, propria mentis conuersione, quisque cre­ dendo saluatur. Ergo non ui, sed libera arbitrii sui uoluntate et facultate ut conuertantur, saluandi sunt, non potius compellendi." Hactenus Concilium.

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comportado depois de modo muito diferente, como na sua vida referem Periónio e outros autores importantes. Como os demónios lhe trouxessem preso, Hermógenes, o qual se servia do ministério deles, e anteriormente mandara que os demónios trouxessem junto de si preso, Tiago ou Fileto, Tiago mandou-o soltar e disse: "Vai para onde quiseres em liberdade, o Senhor não quer que alguém se converta constrangido." Tudo isto confirma a conclusão apresentada. 10. Em quarto lugar, na sua primeira vinda, em que "apareceu a sua benignidade e humanidade", Cristo não veio como juiz para castigar a mal­ dade, segundo o que diz Jo 3: "Deus não enviou o seu Filho ao mundo para julgar o mundo"; mas veio como médico para curar e salvar, conforme se acrescenta: "mas para salvar o mundo por meio dele" . E ainda Mt 9: "Não precisam de médico os que têm saúde, mas os doentes. " Com efeito, reservou o castigo da maldade para a segunda vinda. E assim quis pregar o Evangelho e a fé por si e pelos seus ministros na primeira vinda, convidando e não coagindo, deixando aos homens que aceitem ou não o remédio. E confirma-se, porque isto mais se coaduna com a doutrina evangélica, que recomenda a humildade, mansidão, pobreza e paciência, do que com a força, poder, estrépito da guerra e dos armamentos, que costumam andar acompanhados de soberba e avareza e parecem opor-se ao que foi dito antes. 1 1 . Em quinto lugar, por esta excelência a nossa lei brilha entre todas quando comparada com a perfídia de Maomé, porque a via das armas en­ trou no mundo por não se conseguir convencer por meio da razão; mas a nossa santíssima lei venceu o mundo só pela força da verdade, através de homens inofensivos, pobres e mansos, [195] segundo o que diz 1Jo 5 : " É esta a vitória que vence o mundo, a nossa fé." E evidentemente, como a nossa fé é superior à luz natural, se fosse pregada com violência os homens seriam obrigados a abraçar a fé, e seria considerada como tirania e invenção do diabo, contrária à luz natural, por não se ter encontrado meio mais santo do que a força para a poder introduzir no mundo. 12. Acrescem para confirmação da mesma conclusão, além do uso co­ mum da Igreja, os decretos dos Santos Padres. No IV Concílio de Toledo, e. De iudaeis, 45 d., encontra-se o seguinte: "Manda depois o Santo Sínodo que a ninguém se faça violência para crer, pois Deus compadece-se de quem quer e endurece quem quer. Não devem ser salvos os que não querem, mas os que querem, para ser inteira a forma da justiça. Assim como o homem por seu livre arbítrio ao dar ouvidos à serpente pereceu, assim também cha­ mado pela graça de Deus, pela própria conversão da mente, salva-se aquele que crer. Portanto, não é pela força, mas pela livre vontade e faculdade do

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Quare mirum est quod ex eo quod Sisibutus, qui quosdam coegit ad fidem, religiosissimum appelletur in eodem capite, colligat Scotus id esse licitum, cum ex professo praecipiatur ne id deinceps fiat, propterea quod in se non sit licitum. Appellatur namque religiosissimus eo quod zelator fidei esset, zeloque fidei id fecerit, non tamen secundum scientiam, tametsi ipse consílio suorum id fecerit et forte ea in re non peccauerit excusante eum ignorantia. Et Gregorius, can. Qui sincera, eadem d., Pascasio, Neapoli episcopo, ita scribit: "Qui sincera intentione extraneos a christiana religione ad fidem cupiunt rectam perducere, blandimentis debent, non asperitatibus, studere, ne quorum mentem reddita ratio de plano poterat reuocare, pellat procul aduersitas. " Et praecipit ne iudaeos a suis caeremoniis ui abstrahat, sed biande ad fidem perducat. Et, Libro epistolarum, I, ep. 45, [ 195v) Virgilium et Theodorum episcopos instantissime admonet ne ui iudaeos baptizent sed praedicatione et admonitione eos ad nouam regenerationis uitam per­ ducant. Et, can. Quid autem, 45 d., Ioanni, Constantinopoli episcopo, inter alia scribit: "Noua uero atque inaudita est ipsa paedicatio quae uerberibus exigit fidem." Et Clemens 3, c. Sicut, extra De iudaeis et sarracenis, inquit: "Statuimus ut nullos inuitos uel nolentes iudaeos ad baptismum uenire compellat." Et infra: "Christiani fidem habere non creditur, qui ad christianorum baptis­ mum non spontaneus sed inuitus cogitur uenire." Et Ambrosius, lib. 7 Super Lucam, in illud c. 10, "Nolite portare saculum et peram", ita inquit: "Virgam illis portare non permisit, quae est praeferen­ dae potestatis insigne et ulciscendi instrumentum doloris" ; eos enim misit ad seminandam fidem, qui non cogerent sed docerent, neque uim potesta­ tis exercerem. Accedit neque Syluestrum Constantino neque Ambrosium Theodosio, christianissimis imperatoribus, suasisse ut uim aliquam infide­ libus facerent, quo eos perducerent ad fidem, cum tamen uterque propa­ gandae religionis christianae fuerit studiosissimus. 1 3 . 2. ª conclusio: Licitum est allicere infideles ad fidem suscipiendam beneficiis, pecunia et aliis blandimentis. Ita Syluester, u. Iudaeos, q. 6, §. 1 .0, et Angelus, eodem u., §. 33. Et probatur c. Debet homo, 23, q. 4, quod est Augustini, ubi habetur: "Debet homo diligere proximum sicut se ipsum, ut

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seu arbítrio para se converterem que se devem salvar, e não, pelo contrário, sendo forçados. " Até aqui o Concílio. É, por isso, de espantar que, pelo facto de Sisebuto, que obrigou alguns a abraçar a fé, seja chamado religiosíssimo no mesmo capítulo, e Escoto deduza que isso é lícito, quando expressamente se determina que não mais se faça o mesmo, por em si não ser lícito. É, com efeito, chamado religiosís­ simo por o ter feito como defensor da fé e por zelo da fé, e não de acordo com a ciência, embora o fizesse a conselho dos seus e, certamente, sem pecar nesta matéria, desculpado por ignorância. E Gregório ( can. Qui sincera, eadem d. ) escreve assim a Pascásio, bispo de Nápoles: "Os que com intenção sincera desejam conduzir à retidão da fé os estranhos à religião cristã devem cultivar a afabilidade e não a rudeza, para que a antipatia não afaste para longe a mente daqueles que a razão dada poderia facilmente dissuadir." E manda que os judeus não sejam afas­ tados das suas cerimónias com violência, mas sejam conduzidos à fé sua­ vemente. E, Libra epistolarum 1, ep. 45, [195v] adverte insistentemente os bispos Virgílio e Teodoro para que não batizem à força os judeus, mas os levem à nova vida da regeneração pela pregação e conselho. E, can. Quid autem, 45 d., a João, bispo de Constantinopla, escreve entre outras coisas: " É, sem dúvida, nova e inaudita esta pregação que impõe a fé com açoites. " E Clemente III, e. Sicut, extra De iudaeis et sarracenis, diz: "Decretamos que nenhum judeu seja obrigado a aderir ao batismo contrariado ou sem querer. " E abaixo: "Não se considera que tem a fé cristã aquele que é obri­ gado a abraçar o batismo contrariado e sem vontade." E Ambrósio, lib. VII Super Lucam, no capítulo 10, "Não leveis bolsa nem alforge", diz assim: "Não lhes permitiu levar a vara, que é sinal distin­ tivo de ostentação de poder e instrumento de sofrimento e castigo"; na ver­ dade, enviou-os a semear a fé, a ensinar, e não a coagir nem a exercer a força do poder. Acrescenta-se que nem Silvestre a Constantino nem Ambrósio a Teodósio, imperadores cristianíssimos, aconselharam o uso de qualquer vio­ lência contra os infiéis para os conduzirem à fé, não obstante terem estado ambos empenhadíssimos em difundir a religião cristã. 13. Segunda conclusão: É lícito atrair os infiéis com favores, dinheiro e outras afabilidades, para que recebam a fé. Assim Silvestre, u. Iudaeus, q. 6, §. 1 .º, e Angelo(4l, no mesmo u., §. 33. E prova-se pelo capítulo Debet homo, 23, q. 4, que é de Agostinho, onde está dito: "Deve o homem amar

141 Angelo Carletti di Chivasso ( 1 4 1 1 -1495), franciscano italiano, por duas vezes nomea­ do núncio apostólico, autor da Summa Angelica de Casibus Conscientiae, de que consultámos a edição de Nuremberga, de 1492. (NO)

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quem potuerit beneficentia, et caetera, adducat ad colendum Deum." Et in eadem sententia est Glossa ibi. Idem probatur ex c. Qui sincera, 45 d., et Glossa, capitis Quam pio, 1 , q . 2 , refert beatum Syluestrum munera promisisse iis qui uellent baptizari: "Licitum etiam est ducere aliquam in uxorem ea conditione ut fiat christia­ na" , ut doctores citati ibidem affirmant. Et colligitur ex c. Non oportet, 28, q. 1, quod est Concilii Agathensis. lmmo et licitum est infideles subditos exactioni[ 196] bus alias iustis grauare atque aliis similibus iustis molestiis, quo pertrahantur ad fidem, ut patet ex c. Iam uero, 23 , q. 6, quod est Grego­ rii ad Maximianum episcopum. lstorum omnium haec est ratio, quia haec omnia in bonum cedunt ipso­ rum infidelium et in propagationem fidei et dilatationem Ecclesiae, in nul­ loque eorum iniuriam facimus infidelibus sed utimur iure nostro. Quare hic locum habent motiua illa Scoti citata, quandoquidem in his nulla iniuria fit infidelibus; non uero habent locum in ui, minis et terroribus, quae cessante causa fidei essent illicita et iniusta: neque enim desinunt esse iniusta quod fiant causa fidei propagandae atque eruendi eos ipsos, quibus fiunt, ah in­ fidelitate et peccatis. Illud uero est aduertendum, quod ubi periculum esset retrocedendi si homines ita conuerterentur ad fidem, cessandum esset ab huiusmodi me­ diis, quantum iudicaretur expedire ut conuersio eorum esset firma. Vnde quando conuersi manere debent inter christianos a quibus erudiantur et confirmentur, neque sinantur retrocedere, etiam illa media adhiberi pos­ sunt, quae molestiam non iniustam inferunt, quantum tamen iudicabuntur expedire et cedere in gloriam Dei et salutem animarum. Sicut enim incipere solet timor seruilis, qui uiam parat ad perfectam charitatem, postea uero accedit perfecta charitas quae foras mittit timorem; ita licet his uiis minus perfectis homines pertrahantur ad fidem, postea tamen eruditi et nutriti in Ecclesia collimantur et perficiuntur in charitate, posterique eorum in Eccle­ sia nati et nutriti nihil distant ab aliis. 14. 3.ª conclusio: Vnusquisque ius habet promulgandi Euangelium ubi­ que terrarum. Haec patet ex superioribus et e Scoti, loco citato, concl. 1 , Victoriae, i n Relectione de Indis, p . 2 , n . 9 , a c communis. E t probatur ex illo Marci ultimo: "E untes in mundum uniuersum praedicate Euangelium omni creaturae" ; et Matthaei [ 1 96v] 28: "Data est mihi omnis potestas in coelo et in terra; euntes ergo docete omnes gentes baptizantes eos" etc. Quasi diceret: "Pro potestate quam habeo ius uobis tribuo hac in parte". Quidquid

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o próximo como a si mesmo, de tal modo que pela prática do bem, etc., o possa levar a prestar culto a Deus. " E sobre isto o mesmo diz a Glosa. O mesmo se prova pelo capítulo Qui sincera, 45 d., e a Glosa, e. Quam pio, 1, q. 2, refere que o bem-aventurado Silvestre prometeu presentes aos que quisessem ser batizados: "Também é lícito tomar alguém como esposa com a condição de ela se fazer cristã", como no mesmo lugar afirmam os doutores citados. E deduz-se do capítulo Non oportet, 2 8, q. 1, que é do Concílio Agatense. E além disso, é lícito sobrecarregar os súbditos infiéis com exações, [196] aliás justas, e com outros semelhantes justos incómodos, para serem trazidos à fé, como está patente no capítulo Iam vero, 23, q. 6, que é de Gregório a Maximiano, bispo. A razão de tudo isto é que todas estas coisas revertem a favor dos pró­ prios infiéis, e da propagação da fé e dilatação da Igreja, e em nenhuma delas procedemos com injúria dos infiéis, mas usamos apenas do nosso di­ reito. Por isso, verificam-se aqui os motivos citados de Escoto, visto que não se comete nenhuma injustiça contra os infiéis; na realidade, não se realizam com violência, ameaças e terror, coisas que, cessando o motivo da fé, seriam ilícitas e injustas, e também não deixam de ser injustas por serem praticadas por causa da propagação da fé e para arrancar da infidelidade e pecado aqueles em benefício dos quais são praticadas. Certamente deve se advertir que se houvesse perigo de voltarem atrás, em virtude de os homens se converterem à fé deste modo, deveria cessar o uso de tais meios, na medida em que se considerasse conveniente para a sua conver­ são ser sólida. Daí que, quando os convertidos devam permanecer no meio de cristãos pelos quais sejam instruídos e encorajados e para que não os deixem voltar atrás, podem também ser empregados os mesmos meios que causam incómodo não injusto, na medida em que se julgar conveniente e proveitoso para glória de Deus e salvação das almas. Do mesmo modo que o temor servil, que prepara o caminho para a caridade perfeita, costuma vir primeiro, e só depois surge a caridade perfeita que expulsa o temor; assim é lícito trazer os homens à fé por estas vias menos perfeitas. Contudo, depois, instruídos e ali­ mentados na Igreja são corrigidos e aperfeiçoados na caridade, e os seus des­ cendentes, nascidos e nutridos no seio da Igreja, em nada diferem dos demais. 14. Terceira conclusão: Seja quem for tem direito de proclamar o Evan­ gelho em qualquer lugar da terra. Isto está patente no que precede e está em Escoto, no lugar citado, concl. 1 , em Vitoria, in Relectione de lndis, p. 2, n. 9, e é opinião comum. E prova-se pelo final de Me 1 6, 1 5 : "Ide pelo mundo inteiro e pregai o Evangelho a toda a criatura" ; e de Mt [196v] 28: "Foi-me dado todo o poder no céu e na terra; ide, pois, ensinai todos os povos bati­ zando-os", etc. Como se dissesse: "Pelo poder que tenho dou-vos o direito

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autem sit, utrum Christus fuerit simul rex atque dominus temporalis, quod alio in loco disputandum est, habuit tamen plenam potestatem spiritualem in uniuersum orbem, legesque tulit de fide et baptismo suscipiendis, quae uniuersum orbem obligant. Et in temporalibus habuit etiam plenissimam potestatem in ordine ad finem spiritualem, propter quem in orbem uenit. Vnde quatenus homo mutare potuit omnia regna mundi et constitue­ re nouos reges et constitutos deponere ad eum finem, ut Victoria ostendit in Relectione de Potestate Ecclesiae, q. 5, n. 18, Summoque Pontifici atque Ecclesiae potestatem in temporalibus reliquit si non excellentiae, ut ipse habebat, certe quantum sat esset ad finem spiritualem, ad quem Summum Pontificem Vicarium suum instituit et ad quem Ecclesiam ordinauit, ut in­ ter alias late docte probant Turrecremata, lib. 2 Summae Ecclesiae, c. 1 13 et 1 14, et Victoria in relectione et quaestione cita tis, potissimum a n. 1 2, et in Relectione de Indis, p. 1 , n. 19. lntelligendum est tamen Summum Pontificem habere plenam potesta­ tem in temporalibus in ordine ad finem spiritualem ad eum sensum quem auctores citati explicant. De qua re alius erit locus disputandi. luxta potes­ tatem ergo excellentiae, quam Christus habebat in uniuersum orbem, ius tribuit Apostolis et ministriis Ecclesiae promulgandi Euangelium ubique terrarum. Probatur praeterea conclusio, quia iure naturali unusquisque libertatem et facultatem habet docendi eos quae sunt iuris naturalis neque eo priuari ualet. Ergo a fortiori ius habet docendi ea quae sunt fidei, sine quibus ho­ mines uitam aeternam consequi non possunt. Adde ( 1 97) quod correctio fraterna est de iure natural et unicuique mandauit Deus de proximo suo, ut habetur Eccl. 17. Quare cum infideles proximi sint et non solum sint in peccatis sed etiam extra statum salutis, dum in infidelitate manent, fit ut ad fideles spectet dirigere et corrigere eos, immo quod ad id teneantur, si commode possint. 1 5 . Addunt Victoria, in Relecione de Indis, p. 2, n. 10, et Sotus, loco citato, quod licet ius hoc commune sit omnibus fidelibus, attamen Sum­ mus Pontifex, qui supremam habet potestatem in spiritualibus et tempo­ ralibus, quantum sat esset ad spiritualia, iustis de causis potest negotium hoc demandare quibusdam, et prohibere alias ne se immisceant; immo et commercium eis interdicere in illis regionibus, si ita expediat ad meliorem

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nesta matéria. " Seja como for, se Cristo foi ao mesmo tempo rei e senhor temporal (o que discutiremos noutro lugar), teve também pleno poder espi­ ritual em todo o orbe e estabeleceu leis sobre a receção da fé e do batismo que obrigam no orbe inteiro. E igualmente teve poder pleníssimo nas coisas temporais em vista do fim espiritual, razão pela qual veio ao mundo. Donde, visto que o homem pôde mudar todos os reinos do mundo e cons­ tituir novos reis e, uma vez constituídos, com a mesma finalidade pôde de­ pô-los, como mostra Vitoria na Relectione de potestate Ecclesiae, q. 5, n. 1 8, e deixou ao Sumo Pontífice e à Igreja o poder sobre as coisas temporais, se não de excelência como ele tinha, certamente quanto bastasse ao fim espiri­ tual, em vista do qual deixou por Vigário seu o Sumo Pontífice e ordenou a Igreja, como entre outros ampla e doutamente provam Torquemada 151 , lib. 2 Summae Ecclesiae, e. 1 1 3 e 1 1 4, e Vitoria no comentário e questão citados, especialmente em n. 1 2 , e em Relectione de Indis, p. 1, n. 1 9. Deve, contudo, entender-se que o Sumo Pontífice tem pleno poder sobre as coisas temporais em vista do fim espiritual, no sentido explicado pelos autores citados. A discussão desta matéria será feita noutro lugar. Foi, pois, de acordo com o poder de excelência que Cristo tinha sobre todo o orbe que confiou aos apóstolos e ministros da Igreja o direito de proclamar o Evangelho por toda a terra. A conclusão prova-se ainda porque, por direito natural, seja quem for tem liberdade e capacidade para ensinar o que respeita ao direito natural, e disso não pode ser privado. Portanto, tem a fortiori direito de ensinar o que pertence à fé e sem o que não podem os homens alcançar a vida eterna. Acresce [197] que a correção fraterna é de direito natural e Deus mandou a cada um cuidar do seu próximo, como diz Eclo 1 7. Uma vez que os infiéis são próximos e não só estão em pecado mas também fora do estado de salvação, enquanto permanecerem na infidelidade, acontece que compete aos fiéis orientá-los e corrigi-los, a isso estando até obrigados, se puderem fazê-lo convenientemente. 15. Acrescentam Vitoria, in Relectione de Indis, p. 2, n. 1 0, e Soto, no lugar citado, que, embora este direito seja comum a todos os fiéis, todavia o Sumo Pontífice, que tem o poder supremo sobre as coisas espirituais e tem­ porais, quanto destas precisem as espirituais, pode por causas justas confiar esta tarefa a alguns e proibir que outros dela se ocupem; e até interditar-lhes o comércio nessas regiões, se assim convier à melhor proclamação e difusão

151 Juan de Torquemada ( 1 3 8 8-1468), dominicano espanhol, professor de Teologia em Paris, antes de ser nomeado cardeal, em 1439. Foi autor de várias obras de exegese e da Sum­ ma de Ecclesia ( 1 449), de que consultámos a edição de Salamanca, de 1 550. (NC)

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promulgationem et propagationem Euangelii. Sicut enim pro conseruanda pace inter principes christianos et religione Christiana melius amplifican­ da potest Summus Pontifex prouincias sarracenorum et turcarum diuidere principihus christianis, ita, inquiunt, quod quidam principes suis sumpti­ hus tentauerint nauigationem et inuenerint nationes infidelium coeperin­ tque disseminare inter illos uerhum Dei, et si indiscriminatim ex aliis reg­ nis eo accederent ad fidem promulgandam et ad commercium simili modo hahendum cum infidelihus, facile se possent inuicem impedire et excitare seditiones, potuit Summus Pontifex ommittere illis negotium diuulgandi Euangelium in illis prouinciis et prohihere alias ne eo accedant. Atque ita, inquiunt, Alexander 6 Regi Hispaniarum Ferdinando suo diplomate concessit expeditionem in nouum orbem seu in insulas occi­ dentales. Idemque Summus Pontifex Regi Hispaniarum et Regi Lusitaniae diuisit commer [ l 97v) cium diuulgandi Euangelium atque ius, quod com­ parare possent, in regiones Oceani tam orientales quam occidentales ita ut a quodam meridiano orientem uersus ius pertineret ad regem Lusita­ niae, et ah eodem meridianum occidentem uersus ius pertineret ad Regem Hispaniarum, atque ita totum orhem diuiderent in duas partes aequales a meridiano illo iacto 360 leucis ah insulis Promontorii Viridis occidentem uersus. 16. 4.ª conclusio: Si huiusmodi infideles, de quihus loquimur aut qui­ cumque alii impediant praedicationem Euangelii, ne reliqui illam audiant uel recipiant, aut ne haptizentur idque uel prauis persuasionibus aut blas­ phemiis in Christum, sanctos et Ecclesiam, uel persecutionihus aut quo­ uis alio modo aut aliquid huiusmodi faciant iam haptizatis aut conuersis, aut quouis alio modo fidei et uerho Dei iniuriam inferant, compelli optime possunt et dehent ne id faciant. Et si ad id opus fuerit, licitum est hellum mouere et eos suhiicere uel ad iniuriam propulsandam uel, etiam si illata fuerit, uindicandam, pro quantitate tamen iniuriae atque ut patitur ius belli, iuxta ea quae inferius in materia de hello dicenda sunt. Haec est Diui Thomae et Caietani, hoc loco, Soti, loco citato, Victoriae, in Relectione de Indis, p. 2, n. 12 et 1 3 , et communis. Et prohatur, quia in his omnihus iniuriam inferunt christianis atque fidei et Euangelio, quam iniuriam christiani propulsare et uindicare possunt. Tum etiam, quia suis, quos impedirent ne audirent Euangelium aut susciperent fidem, iniuriam, in re grauissima et quae multum ipsorum interesset, facerent; quam etiam ah ipsis qui opprimerentur liceret christianis propulsare, hello, si ad id opus esset, suscepto. 1 7. Duo hoc loco sunt auertenda. Alterum est [ 1 98) quod, ut notat Vic­ toria, loco citato, p. 2, n. 67 et sequentihus (tametsi de alia re loquatur) ,

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do Evangelho. Assim como para conservar a paz entre príncipes cristãos e melhor difundir a religião cristã o Sumo Pontífice pode dividir os territórios dos sarracenos e dos turcos pelos príncipes cristãos, assim, dizem eles, ten­ do alguns príncipes tentado à sua custa a navegação, e tendo encontrado nações de infiéis e começado a espalhar entre elas a palavra de Deus, se de outros reinos também fossem indiscriminadamente abordá-las para propa­ gar a fé e fazer comércio junto dos infiéis, facilmente poderiam os reinos estorvar-se uns aos outros e provocar sedições. Pôde, pois, o Sumo Pontífice confiar aos primeiros a tarefa de difundir o Evangelho naquelas províncias e proibir os outros de se aproximarem. E assim, dizem, Alexandre VI, com o seu diploma, permitiu ao Rei Fer­ nando das Espanhas a expedição ao mundo novo ou ilhas ocidentais. E o mesmo Sumo Pontífice repartiu entre o Rei das Espanhas e o Rei de Portugal o comércio [197v] e o direito de espalhar o Evangelho, para que pudessem estabelecer, tanto nas regiões orientais como ocidentais do oceano, de tal modo que, a partir de um certo meridiano em direção a oriente, o direito pertenceria ao Rei de Portugal, e a partir do mesmo para ocidente perten­ ceria ao Rei das Espanhas, e assim dividiriam toda a terra em duas partes iguais, desde o meridiano situado a 360 léguas a ocidente de Cabo Verde. 16. Quarta conclusão: Se os infiéis de que falamos ou outros quaisquer impedirem a pregação do Evangelho, de modo que os restantes não a escu­ tem nem recebam ou não sejam batizados, e isso com maus conselhos ou blasfémias contra Cristo, os santos e a Igreja, ou com perseguições, e façam de qualquer outro modo algo deste género aos já batizados e convertidos, ou de outra qualquer maneira ofendam a fé e a palavra de Deus, podem e devem ser perfeitamente forçados a que não o façam. E se para tal for necessário, é lícito fazer-lhes guerra e submetê-los para afastar a ofensa ou para a vingar, se já tiver sido praticada, mas na proporção da ofensa e em conformidade com o direito de guerra, segundo o que mais abaixo se dirá em matéria de guerra. É esta a opinião do Divino Tomás e de Caetano neste lugar, de Soto, no lugar citado, de Vitoria, in Relectione de Indis, p. 2, n. 1 2 e 13, e a opinião comum. E prova-se, porque neste caso ofendem todos os cristãos, e também a fé e o Evangelho, ofensa que os cristãos podem repelir e castigar. Depois também, porque ofenderiam os seus em matéria muito grave e que é de grande interesse para eles, ao impedirem-nos de escutar o Evangelho e de receber a fé, ofensa que também seria lícito aos próprios cristãos oprimidos combater, respondendo com guerra se fosse necessário. 17. Duas coisas devem ser consideradas quanto a este ponto. Uma é [198) que, como nota Vitoria no lugar citado, p. 2, n. 67 e seguintes (em-

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si infideles aliqui in aliquo euentu prohiberent praedicationem Euangelii, quod non leuiter timerent ea occasione nostros uelle armis et fraude auffer­ re ab illis regnum aut alias iniurias illis infere, tunc nostris deberent omni ratione et uia, re et uerbo illis persuadere et ostendere oppositum, neque statim licitum esset infere illis bellum, quod illi prohiberent praedicatio­ nem. Possent tamen nostri se defendere et praedicatiores Euangelii, quos uellent infere. Et si in suam praedicatorum defensionem opus esset infide­ les aduersantes interficere, possent id licite facere, non tamen eos inuadere, spoliare aut regiones eorum subiicere; quia nondum in tanta sunt culpa ne­ que tantam iniuriam fecerunt, ut digni omnino sint quibus bellum inferatur et qui eadem causa tam acriter puniantur, cum iustam habeant rationem timendi. Vt namque bellum iustum inferatur, necesse est praecedat suffi­ ciens iniuria, ut fert omnium sententia. Quare quousque infideles in maiori essent culpa, solum defensiuum bellum esset iustum. Quod si tentatis omnibus et ostenso pro uirili parte nostros nullam iniuriam uelle illis inferre, sed tantum uelle diuulgare Euangelium quod illi tenentur acceptare et nostri ius habent diuulgandi, adhuc illi persisterent in prohibitione praedicationis euangelicae, ita quod ad arbitrium pruden­ tes uiri iudicaretur per ipsos stare ipsosque iam in culpa esse; tunc licite possent illis bellum inferre, et pro quantitate iniuriae atque ad obtinendam securitatem inter illos, eos subicere et ciuitates eorum occupare. Quodsi adhibitis his diligentiis infideles non solum prohiberent praedicationem Euangelii sed etiam molirentur perditionem nostrorum, iam tunc tanquam cum perfidis hostibus agere possent et persequi aduersus illos omnia iura belli atque exsequi omnia [ l 98v] quae aduersus hostes in bello licent. Quod autem infideles non excusentur a peccato mortali si non uellent au­ dire Euangelium ipsis oblatum, tum etiam si sufficienter propositum (eo modo quo a. 1 .º explicatum est) non uelint illud acceptare, ostendit optime Victoria, relectione illa citata, p. 1 , n. 36 et 37. 18. Alterum quod hoc loco est aduertendum illud est, quod, ut Sotus, in 4, d. 5, q. 1, a. 10, concl. 2, et Victoria, loco citato, p. 2, n. 1 2, aduertunt, ubi scandalum oriretur in contemptum fidei ex eo [quod] bellum mouere­ tur aduersus impedientes praedicationem Euangelii infidelesque tali bello magis recrudescerent ad suscipiendam fidem, cessandum esset a tali bello, quia tunc potius esset obstaculum quam adiumentum in propagationem fidei. Vnde in huiusmodi bello, quod causa fidei suscipitur non tam com­ moditatis propriae quam dilationis fidei bonique spiritualis eorum quibus

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bora fale de outra coisa), se alguns infiéis em determinada situação proibis­ sem a pregação do Evangelho, por temerem não pouco que nessa ocasião, com armas e astúcia os nossos lhes queriam tirar o reino, ou infligir-lhes outras ofensas, então deveriam os nossos com toda a razão e bom método, persuadi-los por palavras e atos, e fazer-lhes ver o contrário, e não seria lícito declarar-lhes imediatamente guerra, por terem proibido a pregação. Todavia os nossos e os pregadores do Evangelho, que eles quisessem atacar, poderiam defender-se. E se para defesa dos pregadores fosse preciso matar os opositores infiéis, poderiam fazê-lo licitamente, mas não invadir, pilhar ou submeter os seus domínios, porque a sua culpa ainda não é tão grande nem praticaram tão grande ofensa que sejam totalmente merecedores que lhes façam guerra e que, por essa razão, sejam tão severamente castigados, já que têm justo motivo para ter medo. Com efeito, para se fazer guerra justa é necessário que a anteceda uma ofensa suficiente, como sustenta a opinião universal. Pelo que, mesmo que os infiéis tivessem uma culpa maior, só a guerra defensiva seria justa. E se, tendo sido tentado tudo e demonstrado por sua parte que os nossos não lhes queriam causar nenhuma ofensa, mas queriam apenas difundir o Evangelho, que eles devem aceitar e os nossos têm o direito de difundir, se ainda persistirem na proibição da pregação evangélica, de tal modo que a juízo de homem prudente se considerasse que eles continuam na sua e já têm culpa, então poderiam licitamente declarar-lhes guerra, e na proporção da ofensa e para conseguir segurança no meio deles, poderiam submetê-los e ocupar as suas cidades. E se aplicadas estas diligências, os infiéis além de proibirem a pregação do Evangelho também urdissem a perdição dos nossos, então já poderiam ser tratados como pérfidos inimigos e acionados contra eles todos os direitos de guerra e praticado tudo [198v] o que em guerra é lícito fazer contra os inimigos. Todavia, porque os infiéis não são escusados de pecado mortal se não quiserem ouvir o Evangelho que lhes é oferecido, Vitoria, na relectione citada, p. 1, n. 36 e 3 7, mostra, muito a propósito, que também o não serão quando, suficientemente exposto (do modo que no artigo 1 foi explicado), não o queiram aceitar. 1 8. A outra coisa que neste ponto deve ser considerada é que, como Soto, in IV, d. 5, q. 1, a. 1 0, concl. 2, e Vitoria, no lugar citado, p. 2, n. 1 2, ad­ vertem, quando houver escândalo com desprezo da fé pelo facto de se fazer guerra contra os que impedem a pregação do Evangelho e com tal guerra os infiéis piorarem na receção da fé, deveria terminar essa guerra, porque seria então mais um obstáculo à difusão da fé do que uma ajuda. Daí que, em guerra deste género, tenha de existir uma razão para ela ser lícita, porque a causa da fé é assumida tendo em vista a dilatação da fé e o bem espiritual

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denunciatur Euangelium, habenda est ratio ut sit licitum. Puto tamen quod, si bellum esset tale quod cessante scandalo esset licitum, bellantes cum tali scandalo non tenerentur restituere quae depraedarentur et occuparent aut demolirentur, quia peccatum eorum non esset contra iustitiam sed contra charitatem. 19. Quod attinet ad infideles 2i generis, uidelicet ad haereticos et apos­ tatas, sit conclusio: Licitum est illos compellere ad fidem retinendam aut iterum amplectendam, quam semel in baptismo professi sunt; immo, lici­ tum est peccatum infidelitatis eorum punire etiam supplicio capitis. Haec est Diui Thomae, hoc loco et communis, atque usu Ecclesiae receptissima. Et probatur ex dispositione Concilii Toletani 4, c. De iudaeis, 45 d., ubi post illa uerba, quae supra citauimus, additur: "Qui autem iam pridem ad chris­ tianitatem coacti sunt, sicut factum est temporibus religiosissimi principis Sisibuti, quia iam constat eos sacramentis diuinis associatos et baptismi [ 1 99] gratiam suscepisse et chrismate unctos esse et corporis Domini ex­ titisse participes, oportet ut fidem, quam etiam ui uel necessitate susce­ perunt, tenere cogantur, ne nomen Domini blasphemetur et fides, quam susceperunt, uilis et contemptibilis habeatur." Et hoc ipsum refert et approbat lnnocentius 3, c. Maiores causae, De baptismo et eius effectu, §. Item quaeritur. Augustinus praeterea eandam con­ clusionem affirmat et probat multis rationibus, c. Displicet, c. Si Ecclesia et c. Quid crudele, 23 , q. 4, et c. Scismatici, c. Quod errauerat et c. Vides, 23, q. 6. Atque hoc capite ultimo citato affirmat se antea in ea fuisse sententia, ut crederet non expedire compellere quemquam haereticorum ad bellum, attamen postea experimento etiam didicisse expedire oppositum. Ratio uero conclusionis haec est: quia Ecclesia ius habet in huiusmo­ di homines qui per baptismum se illi subdiderunt partesue illius effecti sunt. Quare optime eos poterit cogere tanquam sibi subditos hac in parte, ut fidem, quam semel receperunt, retineant aut iterum amplectantur, si eam reliquerunt, punireque poterit culpam quam in detrimentum suarum animarum et in scandalum et detrimentum Ecclesiae fidem reliquerunt. Princeps praeterea saecularis, cui respublica Ecclesiae fuerit subiecta, po­ terit condere leges poenales in fidei desertores atque punire pro quantitate criminis, maxime cum potestas temporalis ipsius Ecclesiae potestati sit subiecta ad finem Ecclesiae spiritualem ad eumque finem regimen suum attemperare et accomodare debeat, perinde atque artifex inferior opera sua accomodare debet ad finem artificis superioris, ut faber fraenorum ad finem equestres.

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daqueles a quem o Evangelho é anunciado, e não em vista de conveniência própria. julgo contudo que se a guerra fosse tal que, findo o escândalo, ela fosse lícita, os que pelejaram durante o escândalo não estariam obrigados a restituir o que saquearam e ocuparam ou destruíram, porque não pecaram contra a justiça mas contra a caridade. 19. Quanto aos infiéis do segundo género, isto é, os hereges e apóstatas, seja esta a conclusão: É lícito forçá-los a conservar a fé que já professaram no batismo ou a abraçá-la de novo, e até é lícito castigar o seu pecado de infidelidade, mesmo com pena capital. Esta é a opinião do Divino Tomás nesta matéria, e opinião comum e muito bem aceite pelo uso da Igreja. E prova-se pela disposição do IV Concílio de Toledo, e. De iudaeis, 45 d., onde, depois daquelas palavras que atrás citamos, se acrescenta: "Porém, os que já foram outrora obrigados a aderir à cristandade, como sucedeu na época do religiosíssimo príncipe Sisebuto, porque é certo que já foram associados aos mistérios divinos e receberam a [ 199] graça do batismo e foram ungidos com o crisma e participaram do corpo do Senhor, convém que sejam obrigados a conservar a fé que receberam à força ou por necessi­ dade, para que se não blasfeme do nome do Senhor e não se tenha por vil e desprezível a fé que receberam." E isso mesmo refere e aprova Inocêncio III, e . Maiores causae, De baptis­ mo et ejus effectu, §. Item quaeritur. Além disso, Agostinho afirma e aprova a mesma conclusão com muitas razões, e. Displicet, e. Si Ecclesia et e. Quid crude/e 23, q. 4, et e. Schismatici, e. Quod erraverat et e. Vides 23, q. 6. E, no capítulo citado em último lugar, afirma que fora anteriormente dessa opinião, a ponto de acreditar que não se devia forçar qualquer herege com guerra, mas que aprendeu depois por experiência que convinha fazer o contrário. Na realidade, a razão da conclusão é esta: porque a Igreja tem poder sobre o género de homens que pelo batismo se lhe submeteram e se torna­ ram parte dela. Poderá muito bem, por essa razão, obrigá-los então, como súbditos seus neste ponto, a que conservem a fé que receberam um dia ou que a abracem de novo, se a abandonaram, e poderá castigar a culpa de terem perdido a fé em detrimento das suas almas e com escândalo e prejuízo da Igreja. Além disso, o príncipe secular ao qual a república da Igreja esti­ ver sujeita, poderá fazer leis penais contra os desertores da fé e castigar na proporção do crime, já que precisamente o poder temporal está sujeito ao poder da própria Igreja, tendo em conta o fim espiritual da Igreja, e a este fim deve ajustar e acomodar o seu governo, do mesmo modo que o artífice subalterno deve ajustar a sua obra à finalidade do artífice superior, como o fabricante de freios se subordina à finalidade da cavalaria.

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Et confirmatur haec ratio, quia huiusmodi homines fidem promiserunt ad eamque seruandam se obtrinxerunt, cum semel susce [ l 99v] perunt baptismum. Iuste ergo ad standum promissis astringuntur, et si non stent, puniuntur, cum ius naturale exigat ut promissis stetur. Haec tamen confir­ matio maiorem uim habent aduersus eos qui propria sponte fidem susce­ perunt, quam aduersus eos qui coacti ad baptismum accesserunt et quam aduersus pueros, qui ante usum rationis, fidem et baptismum susceperunt. Principalis tamen ratio omnes in uniuersum comprehendit. Vnde hi pueri, cum primum perueniunt ad usum rationis, compellendi sunt seruare fidem et puniendi atque cogendi sunt ad illam regredi, si eam deseruerunt, quan­ do Ecclesia ius in eos habet tanquam in illos qui uere sunt aut fuerunt par­ tes suae reipublicae ipsi unitae per baptismum, non minus quam alia res­ publica ius habet in eos qui intra eam nati sunt. C. Maiores causae ratione sacramenti dicunt eos qui coacti baptizati sunt, pertinere ad iurisdictionem Ecclesiae et ob id ad seuandam regulam fiei christianae posse rationabiiter compelli. 20. Probatur praeterea conclusio, quia Deuteronomio 17 praecipiebat Dominus iudicis sententia occidendum eum qui, orta difficultate aliqua et delata ad Summum Sacerdotem qui pro tempore esset, nollet stare senten­ tiae et dispositioni illius, idque praecipiebat in poenam ita delinquentis et ut populus timeret nullusque deinceps intumesceret superbia. Ergo licitum est in causa fidei cogere haereticos ut stent dispositionibus Summi Ponti­ ficis et Ecclesiae eosque, si contra fecerint, poena capitis punire, tum in eorum supplicium, tum etiam in timorem et conseruationem aliorum. Item licitum et sanctum est punire alia crimina, maxime quae uergunt in destructionem reipublicae et quae pacem et tranquillitatem illius pertur­ bant. Sed crimen haeresis est quod scindit et usque ad fundamentum des­ truit rempublicam christianam et quod [ 200] maxime pacem illius pertur­ bat quodque ut cancer serpit, teste Apostolo Paulo, eo quod haereses carni et sanguini faueant, elationique atque inani gloriae fomentum et lorum tri­ buant. Fit ergo ut, in poenam haereticorum atque ut ipsi resipiscant uexa­ tione tribuente intellectum tum etiam alii contineantur et conseruentur, licitum et sanctum atque omnino necessarium sit eos punire. Licet namque in principio nascentis Ecclesiae non habuerit tantas uires nondumque, ut Augustinus, c. Displicet et c. Si Ecclesia, 23, q. 4, ait, impleta esset illa pro­ phetia quae erat de Christo: "Et adorent eum omnes reges terrae, omnes gentes seruient ei" , attamen subiectis ei principibus et comparante Ecclesia ad id uires, statim coepit id exercere, ut Augustinus locis citatis et alibi ait

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E confirma-se este raciocínio porque, deste modo, os homens promete­ ram a fé e comprometeram-se a conservá-la, ao [ 199v] receberem um dia o batismo. Justamente, pois, são obrigados a cumprir as promessas, e se não as cumprirem serão castigados, dado que o direito natural exige que se cumpram as promessas. Esta confirmação tem, contudo, mais força para os que de livre vontade receberam a fé, do que para os que foram coagidos ao batismo e do que para as crianças que, antes do uso da razão, receberam a fé e o batismo. Todavia, a razão principal a todos abrange coletivamente. Donde, as crianças, logo que atingem o uso da razão, devem ser forçadas a conservar a fé, e devem ser castigadas e obrigadas a voltarem a ela, se a tiverem abandonado, já que a Igreja tem poder sobre elas como sobre os que realmente são ou foram membros da sua república, a ela ligados pelo batismo, e não tem menos poder do que tem qualquer outra república sobre os que nasceram dentro dela. No capítulo Maiores causae é dito que, em virtude do sacramento, os que foram batizados sob coação pertencem à ju­ risdição da Igreja e, por isso, podem razoavelmente ser forçados a observar a regra da fé cristã. 20. A conclusão prova-se, além disso, porque no Dt 17 o Senhor deter­ minava que fosse punido com morte aquele que, aparecida alguma dificul­ dade e levada ao Sumo Sacerdote de então, não quisesse cumprir a sentença do juiz e a indicação dele, e prescrevia isso para castigo do delinquente e para que o povo temesse e ninguém, daí em diante, incorresse em insolência. É, pois, lícito obrigar os hereges em matéria de fé a aterem-se às disposições do Sumo Pontífice e da Igreja, e, se se opuserem, é lícito puni-los com pena de morte, tanto para castigo deles como para temor e exemplo dos outros. Também é lícito e santo punir outros delitos, especialmente os que re­ dundam em destruição da república e perturbam a sua paz e tranquilidade. Mas o delito de heresia divide e destrói até aos alicerces a república cristã e, [200] acima de tudo, perturba-lhe a paz e prolifera como gangrena, confor­ me testemunha o Apóstolo Paulo, dado que as heresias favorecem a carne e o sangue, e dão rédeas e lenitivo à exaltação e vã glória. Sucede, pois, que para expiação dos hereges e para que eles caiam em si pelo abalo que atinge a inteligência e para que também outros se contenham e conservem, é lícito e santo, e até absolutamente necessário, castigá-los. Ainda que, na verdade, no princípio da Igreja nascente não houvesse tantas forças e, como diz Agostinho, e. Displicet et e. Si Ecclesia 23, q. 4, ainda não se tivesse cumprido acerca de Cristo a profecia "E que o adorem todos os reis da terra e o sirvam todas as gentes." No entanto, submetidos a ela os príncipes e havendo a Igreja alcançado forças para isso, começou imediatamente a aplicá-las, como nos lugares referidos e noutros diz Agostinho contra os

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aduersus Donatistas. Paulusque, Actorum 13, caecitate percussit pseudo­ prophetam illum qui Proconsulem Sergium Paulum conatur auertere a fide. Et, 2Cor. 1 0, paratus erat ulcisci omnem inobedientiam, et fornicarium sa­ tanae tradidit in interitum camis. At multo magis haec praestaret in haere­ tico, si tunc expediret. Et, Gal. 5, cupiebat abscindi haereticos qui gaiatas conturbabant. Plane executioni id mandasset mandaretque quod cupiebat, licuisset, si Ecclesia tunc eas [ ui ) res haberet quas postea habuit, Christus­ que ipse flagelo eiecit ementes et uendentes de templo. 2 1 . Illud tamen est aduertendum, quod si ex punitione haereticorum se­ queretur aliquando maius scandalum aut detrimentum Ecclesiae, tolerandi tunc essent. Atque ad eum sensum Diuus Thomas, ad 1 , cum Augustino intelligit illud parabolae zizaniorum "Ne forte colligentes zizania eradice­ tis simul et triticum" , quod scilicet quando de crimine constat, neque est periculum schismatis aut grauioris mali quam sit bonum quod resultat ex punitione et compassione haereticorum, puniendi et compellendi sunt, se­ cus autem quando aliquod horum interuenit; atque id intendisse Christum significare illis uerbis illius parabolae. Forte dici etiam [200v] potest serrnonem illum esse ad angelos, ut satis patet ex parabola, Deumque non uelle ut ministerio angelorum id fiat; et simul illis significare eos, qui secundum praesentem iustitiam sunt ziza­ nia, aliquos esse triticum de numero praedistanatorum, qui resipiscent et saluabuntur, uelleque decursum Ecclesiae militantis relinquere ut proce­ dat ho [ c ] modo quo procedit, relictis hominibus in manu consilii sui; non tamen impedire pastores et rectores Ecclesiae ut quod errauerat, reuocent, et quod perierat, inquirant, modo [ parcendo ] O ) et modo puniendo aut in­ crepando, prout uiderint expedire. Quin potius ipsi sunt homines illi, de quibus dicitur, dum dorrnirent et negligentes essent in hac parte, superse­ minata sunt et creuerunt zizania; de qua re rationem reddent Domino agri atque Ecclesiae ipsis commissae. Non ergo ipsis prohibitum est colligere zizania (quando in tritcum non potuerint ea aduertere) et mundare agrum Domini. Si circa hanc conclusionem longiorem desideras disputationem, lege Castrum, De iusta haereticorum punitione, lib. 2, e. 3 et 4.

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No ms. : "puniendo".

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Donatistas. E, segundo o capítulo 13 de At, Paulo castigou com cegueira o falso profeta que tentou afastar da fé o Procônsul Sérgio Paulo. E, 2Cor 10, estava disposto a vingar toda a desobediência e entregou o fornicador a Satanás para ruína da carne. Mas muito mais faria contra o herege, se fosse então conveniente. E, Gl 5, desejava extirpar os hereges que perturbavam os gálatas. Seria inteiramente lícito ordenar o cumprimento do que pretendia, e ordená-lo-ia, se a Igreja já então tivesse as forças que veio a ter depois. O próprio Cristo com o azorrague expulsou do templo compradores e vende­ dores. 21. Todavia deve advertir-se que se do castigo se seguisse maior escân­ dalo ou prejuízo para a Igreja, os hereges deveriam ser tolerados. E é nesse sentido que o Divino Tomás, ad 1 , com Agostinho, entende o que diz a pa­ rábola do joio "Para que ao colher o joio não arranqueis, ao mesmo tempo, o trigo." Pelo que, quando é certo o erro, mas não existe perigo de cisma ou de mal maior do que o bem que resulta do castigo e repressão dos hereges, estes devem ser castigados e constrangidos, mas não quando algum daque­ les efeitos ocorre; e isto terá pretendido significar Cristo com as palavras daquela parábola. Talvez se possa também dizer [200v] que aquela maneira de falar se refe­ re aos anjos, como é assaz patente na parábola, mas que Deus não quer que isto se faça pelo ministério dos anjos; e por essas palavras quer significar ao mesmo tempo os que segundo a justiça atual são joio e que alguns são trigo do número dos predestinados, pois se hão de arrepender e salvar. E Deus quer confiar à missão da Igreja militante que proceda do modo como pro­ cede, deixando os homens entregues ao seu conselho. Todavia não impede os pastores e dirigentes da Igreja de reconduzir o que errou e de procurar o que se perdeu, ora perdoando, ora castigando ou repreendendo, conforme entenderem que é conveniente. E eles até são aqueles homens de quem foi dito que, enquanto dormiam e assim se mostravam negligentes, foi semeado por cima e cresceu o joio; assunto de que prestarão contas ao Senhor da seara e à Igreja a eles confiada. Não lhes foi, pois, proibido colher o joio (quando não o poderiam transformar em trigo) e limpar a seara do Senhor. Se desejas sobre esta conclusão uma discussão mais alargada, lê Castro16',

De iusta haereticorum punitione, lib. 2,

e.

3 et 4.

161 Alfonso de Castro ( 1495-1558), franciscano espanhol, professor de Teologia, Filosofia e Direito na Universidade de Salamanca e conselheiro de Carlos V e Filipe II. Foi enviado ao Concílio de Trento e pertenceu ao grupo de pensadores conhecido como Escola de Salamanca. Foi autor de diversas obras, sobretudo no âmbito do Direito, nomeadamente o tratado De iusta haereticorum punitione libri III, de que consultámos a edição princeps, publicada em Salamanca, no ano de 1 547. É um dos autores mais citados no presente volume. (NC)

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22. Superest respondeamus ad argumenta initio proposita. Ad funda­ menta ergo Scoti (quidquid sit de primo emolumento, maxime propter iniuriuam sacramentorum et fidei) dicendum est quod esta emolumen­ ta illa aut alia maiora inde sequerentur, cum tamen media sint iniusta, ut ostensum est, eo quod neque Ecclesia neque principes ad id ius habeant, sequitur [quod non] !2l licitum sit talibus mediis uti ad banas illos fines; neque enim facienda sunt mala, ut Paulus, Rom. 3, ait. Ad confirmationem ex Concilio Toletano dictum est sufficienter inter probandum 2.•m conclu­ sionem. 23. Ad primum aliorum iuxta Augustinum, c. Displicet, 23 , q. 4, et c. Schismatici, 25, q. 6, possumus respondere prius Dominum dixisse: "Exi cito in plateas et [ 20 1 ] uicos ciuitatis, et pauperes ac debiles et caecos et claudos introduce huc" , quo in loco absque aliqua ui significatur conuersio eorum infidelium ad fidem, qui fidem nunquam antea susceperunt. Postea uero dicente seruo: "Domine, factum est ut imperasti et adhuc locus est", dixisse Dominum: "Exi in uias et sepes et compelle intrare ut impleatur domus mea", quo in loco significatur conuersio eorum infidelium qui antea susceperant fidem et coguntur intrare. Vnde locus ita expositus confirmat quintam conclusionem et non pug­ nat cum prima aduersus quam construitur argumentum. Forte posset etiam exponi quod prima uocatio est, qua uocati sunt uulgus iudaeorum, relictis principibus sacerdotum, scribis et pharisaeis; et secunda, qua uocatae sunt gentes; et quod ad denotandam uim gratiae, quae impartienda erat gen­ tibus, et uim miraculorum, quae apud ipsos erant facienda, quibus quasi compellendi erant ad fidem absque uiolentia suauiter tracti, ut rei postea probauit euentus, dictum est: "Compelle eos intrare. " 2 4 . A d 2.um, admissa maiori et minori, neganda est consequentia; quia ad praedicandum Euangelium quod solum nobis est iniunctum ex nostra par­ te, non est necesse subiicere infideles aut uim illis infere ad suscipiendam fidem, sed satis est aferre illis praedicationem et significare illis ius quod habemus ad denuntiandum illis Euangelium, et quod ab ea re iuste non possunt nos impedire. Quod si adhibitis omnibus diligentiis adhuc iniuste nos uellent impedire, cogi possent ne id facerent; et si ad id opus esset, moueri posset eadem causa aduersus eos bellum; et si non desisterent aut ulterius tentarent nobis iniuriam inferre, subiici possent persequendo iura belli, ut dictum est. Quodsi in hoc sensu intelligatur conclusio argumenti

1 21

N o ms.: "si tot".

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22. Falta responder aos argumentos apresentados no princípio. Quanto aos fundamentos de Escoto (o que respeita à primeira vantagem, princi­ palmente por causa da ofensa aos sacramentos e à fé) deve dizer-se que se ocorressem aquelas vantagens ou outras ainda maiores, dado que os meios são injustos, corno foi mostrado (pelo facto de nem a Igreja nem os prín­ cipes terem poder para isso), segue-se [que não] é lícito usar de tais meios para aqueles fins bons; nem certamente se devem fazer coisas más para que aconteçam coisas boas, corno diz Paulo, Rrn 3. Quanto à confirmação pelo Concílio de Toledo foi dito o suficiente ao provar a segunda conclusão. 23. Quanto ao primeiro dos outros, segundo Agostinho, e. Displicet, 23, q. 4 et e. Schismatici 25, q. 6, podemos responder que o Senhor teria dito primeiro: "Sai imediatamente às praças [201 ) e às ruas da cidade e traz para aqui os pobres, os estropiados, os cegos e os coxos" (neste lugar significa-se a conversão à fé, sem qualquer violência, daqueles infiéis que nunca recebe­ ram antes a fé); depois, sem dúvida, tendo o servo dito: "Senhor, está feito como mandaste e ainda há lugar", disse o Senhor: "Sai pelos caminhos e azinhagas e obriga-os a entrar, para que a minha casa fique cheia" (significa­ se, neste lugar, a conversão dos infiéis que anteriormente tinham recebido a fé e são obrigados a entrar). Daí que o lugar assim exposto confirma a quinta conclusão e não con­ tradiz a primeira, contra a qual se levanta o argumento. Poderia também explicar-se que o primeiro chamamento é o do povo judeu, com exclusão dos príncipes dos sacerdotes, dos escribas e fariseus; e o segundo é o cha­ mamento dos pagãos; e que foi dito: " Obriga-os a entrar" para designar o poder da graça que devia ser concedida aos pagãos, e o poder dos milagres que neles se haviam de realizar, corno se por eles fossem forçados a aderir à fé e arrastados suavemente e sem violência (corno depois se provou pelo bom resultado obtido). 24. Quanto ao segundo, admitida a proposição maior e a menor, deve negar-se a consequência; porque para pregar o Evangelho (única coisa que da nossa parte nos foi ordenada) não é necessário submeter os infiéis ou usar de força para receberem a fé, mas basta oferecer-lhes a pregação e mos­ trar-lhes que ternos o direito de lhes anunciar o Evangelho e que não podem em justiça impedir-nos de o fazer. Mas se cumpridas todas as diligências ainda assim nos quisessem injustamente impedir, poderiam ser obrigados a não o fazerem; e, se para tal fosse necessário, poderia pela mesma razão ser-lhes declarada guerra; e se não desistissem ou tentassem, além disso, usar de violência contra nós, poderiam ser subjugados, corno foi dito, conforme o direito de guerra. Desde que a conclusão do argumento proposto seja en-

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propositi, [20lv] admittendum est totum, nihil enim colligit contra nos. Ad confirmationem dicendum est Genadium bellum alias iustum ges­ sisse aduersus illas nationes, utpote aduersus hostes Romani Imperii atque Ecclesiae, inter quos plures erant haeretici qui infesti erant Ecclesiae et ter­ ras illius occupauerant, ut ex antecedentibus epistolis Gregorii ad eundem Genadium constat. Quando autem bellum alias est iustum, sanctum est eo fine bellare, ut fides Christi propagetur per orbem et ob id Gregorius Gena­ dium ea in parte commendat. 25. Ad 3.um dicendum est maiorem esse ueram, quando caetera sunt pa­ ria et quando is, qui non paret, est iniustus, isque qui cogit ius ad id habet aut facultatem. ln proposito autem Ecclesia non habet ius ad cogendum homines infideles ut pareant legibus diuinis, ad quas tenentur, ut ostensum est, neque Deus, cui non parent, id uult, sed uult homines hac in parte relinqui in manu consilii sui. Quare licet unus princeps ex consensu aut facultate alterius possit ei bello subiicere infideles ad hoc ut amplectantur fidem, quandoquidem Deus ius et facultatem ad id nobis non concessit; quodsi concessisset, possemus utique. 26. Ad 4.um neganda est consequentia, quia subditi solum subiacent regi ea ex parte qua rex est, in ordine ad finem naturalem, ad quem respublica et regímen regium ordinatum atque institutum est, quando ius regni regibus tributum est. Quare leges, quae ad eum finem suapte natura ordinantur, te­ nerentur acceptare, si iustae essent et tolerabiles. At uero leges in ordine ad finem supernaturalem non tenerentur acceptare, nisi prius tam ipse quam rex subiacerent potestati Ecclesiae in ordine ad finem supernaturalem, rex­ que tanquam subordinatus potestati ecclesiasticae aliquid ad eum finem iuste ordinaret.

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tendida neste sentido, [201v] deve aceitar-se na totalidade, pois nada colhe contra nós. Para confirmação, deve dizer-se que Genádio travou uma guerra, aliás justa, contra aquelas nações, como contra inimigos do Império Romano e da Igreja, entre os quais havia muitos hereges que eram inimigos encarniça­ dos da Igreja e lhe tinham ocupado as terras, como se vê nas já citadas cartas de Gregório ao mesmo Genádio. Quando, além disso, a guerra é justa, é santo pelejar com o objetivo de propagar pelo mundo a fé cristã e, por causa disso, Gregório louva Genádio neste ponto. 25. Relativamente ao terceiro ponto, deve dizer-se que a maior é verda­ deira quando, em igualdade de circunstâncias, o que não se submete é injus­ to, e quem obriga tem direito ou poder para tal. Mas, no que foi proposto, a Igreja não tem direito de obrigar os infiéis a obedecer às leis divinas, a que estão sujeitos, como se mostrou, nem Deus a quem não obedecem quer isso, mas quer que os homens neste ponto sejam deixados entregues ao seu pró­ prio conselho. Por isso, embora um príncipe por consentimento ou poder de outro lhe possa sujeitar por guerra os infiéis para que abracem a fé, todavia Deus não nos concedeu esse direito e poder; se no-lo tivesse concedido, po­ deríamos usá-lo. 26. Quanto ao quarto ponto, deve negar-se a consequência, porque os súbditos só estão sujeitos ao rei no que do rei depende, em ordem ao fim natural para o qual a república e o regime monárquico foram ordenados e instituídos, quando o direito de reinar foi atribuído aos reis. Estariam, por isso, obrigados a aceitar as leis que por sua natureza se ordenam a esse fim, se fossem justas e suportáveis. Mas, sem dúvida, não estariam obrigados a aceitar leis orientadas para o fim sobrenatural, a não ser que antes, tanto eles como o rei, se tivessem submetido ao poder da Igreja em ordem ao fim sobrenatural, e o rei, enquanto subordinado ao poder eclesiástico, determi­ nasse justamente alguma coisa em vista do mesmo fim.

PEDRO SIMÕES

ANNOTATIONES IN MA.TERIAM DE BELLO A REVERENDO PATRE PETRo SIMÕES TRADITAE: ANNo 1 5 75 TRANSCRIÇ Ã O DE JOANA SERAFIM ESTABELECIMENTO DO TEXTO E REVIS ÃO FINAL DE ANA MARIA TARR Í O E RICARDO VENTURA

De materia de bello disputant aliqui doctores in 4, d. 1 5 , D. Thomas, 2.ª 2."', q. 40, Couarrubias in Relectione regulae peccatum, 2.ª p., Victoria in Relectione de iure belli, Sumistae, u. Bellum. Totam materiam belli comprehendit Caietanus explicando quinque quaestiones: in l .ª agit de conditionibus belli iusti; in 2.ª de militantibus in bello; in 3.ª quando teneatur habens bellum iustum desistere a bello; in

PEDRO SIMÕES NOTAS SOBRE A MATÉRIA ACERCA DA GUERRA, LECCIONADAS PELO REVERENDO PADRE PEDRO SIMÕES NO ANO DE 1 57 5 TRADUÇ Ã O E ANOTAÇ Ã O DE ANA MARIA TARRÍ O E MARINA COSTA CASTANHO

A matéria da guerra é discutida por alguns doutores em 4, d. 1 5, por São Tomás na 2. ª 2.ª', q. 40, por Covarrubias!1l na Relectio Regulae Peccatum, 2. ª p., por Vitoria na Relectio de Jure Belli, e pelos sumistas em u. Bellum. Caetano aborda toda a matéria da guerra mediante a explicação de cin­ co questões: na primeira, trata das condições da guerra justa; na segunda, daqueles que combatem na guerra; na terceira, quando, no caso de guerra

111 Diego de Covarrubias y Leyva ( 1 5 12-1 577), jurista, político e eclesiástico espanhol, arcebispo de Santo Domingo e bispo de Ciudad Rodrigo e Segóvia e enviado ao Concílio de Trento. Foi visitador e autor de estatutos da Universidade de Salamanca. Pertenceu ao grupo de pensadores conhecido como Escola de Salamanca. Foi autor de várias obras de direito, no­ meadamente da [relectio in] Regulae peccatum ( 1552- 1 553); consultámos a edição de Lyon, de 1 560. É um dos autores mais citados no presente volume. (NC)

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4.ª de damnis ex bello illatis; in S.ª utrum bellum sit exercendum in die­ bus festis, quas quaestiones in tribus comprehendemus: 1 .ª quaestio erit de conditionibus ad bellum iustum; 2. ª de militibus, et caeteris cooperantibus ad bellum; 3.ª quae sint licita fieri in bello iusto. Supponandum autem est in primis tanquam certum in fide( I), aliquando posse dari bellum iustum et licitum; ac prainde licitum esse Christianis bellare, si seruentur con­ ditiones requisitae ad bellum iustum, de quibus dicemus in sequentibus, quod prabat Castrus, lib. 3 Aduersus haereses, tt.0 Bellum haeresi, 1 .ª et 2.ª, Victoria, ubi supra, n. 1. Vnde reiiciendus est errar Manicheorum affirman­ tium nunquam posse esse bellum iustum; et a fortiori reiiciendus est errar lutheri asserentis Christianis illicitum esse bellare aduersus Turcas, quia, inquit, hoc est repugnare uoluntati Dei uisitantes et corripientes iniquitates nostras per illos. Fuit autem sententia Lutheri damnata a Leone 10 in bulla quae habetur in 3.0 tomo conciliorum post Concilium Luteranense, errore 14. Et pluribus conciliis etiam autoritate summorum Pontificum saepe fuit decretum bellum aduersus Turcas; et annis praeteritis factum fuit foedus inter Pium V et Philippum et Venetas contra Turcas, quod summopere pra­ curauit Pius V, ex quo foedere Christiani duce joanne d'Austria insignem et inauditam naualem uictoriam sunt consecuti. Non solum autem licitum est Christianis bellare seruatis conditionibus, sed saepe tenebitur princeps sub Maiestate mouere bellum non tamen de­ fensiuum, sed etiam offensiuum, et subditi sub Maiestate tenebuntur pra­ prium bonum commune principi oboedire et ad bellum pracedere. (l)

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A margem: "licitum esse bellare de fide certum est". A margem: "aliquando sub Maiestate tenetur princeps bellare".

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justa, se deve desistir da guerra; na quarta, dos danos causados pela guerra; na quinta, se a guerra deve ser feita em dias de festa. Nós compreendemos aquelas questões em três: a primeira questão será acerca das condições da guerra justa; a segunda, acerca dos soldados e dos restantes que cooperam na guerra; na terceira, o que é lícito fazer numa guerra justa. Ora, primei­ ramente deve assumir-se que se pode dar início a uma guerra justa e lícita, na medida em que seja legítima em nome da fé!21 ; e, da mesma forma, que é lícito aos cristãos combater, se respeitarem as condições requeridas para a guerra justa, acerca das quais falaremos a seguir. Castro prova-o no livro 3.º, Aduersus haereses, título Bellum haeresi, 1 . ª e 2 . ª, bem como Vitoria, referido anteriormente, n. 1 . Por isso, não se deve concordar com o erro dos Maniqueístas, que afirmam que nunca poderá existir guerra justa; e é de rejeitar ainda com maior veemência o erro de Lutero, que sustenta que é ilícito aos cristãos combater contra os Turcos, porque, diz ele, isto seria lutar contra a vontade de Deus que os usa para desvelar e atacar as nossas iniquidades. Leão X, porém, condenou o parecer de Lutero na bula que se encontra no 3.º tomo dos concílios, depois do Concílio Luteranense, no erro 14. E, em muitos concílios, decretou-se guerra contra os Turcos, mesmo por intermédio da autoridade dos sumos pontífices; e, com o passar dos anos, celebrou-se um pacto entre Pio V, Filipe e os Venezianos contra os Turcos, do qual Pio V se ocupou com o maior cuidado. Graças a este pacto, os cris­ tãos, comandados pelo príncipe D. João de Áustria, alcançaram insigne e inaudita vitória naval.'31 Ora, não só é lícito aos cristãos combater, tendo sido respeitadas as con­ dições, mas muitas vezes o príncipe Sua Majestade é obrigado a mover a guerra não só defensiva, mas também ofensiva, e os súbditos da Sua Majes­ tade são obrigados a obedecer ao príncipe e a marchar para a guerra pelo bem comum.(41

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À margem: "é certo que é lícito combater pela fé".

Alusão à vitória da batalha de Lepanto, alcançada a 7 de outubro 1571 pela esqua­ dra da "Liga Santa", constituída por tropas de Espanha, de Veneza, dos estados pontifícios e da Ordem de Malta, e liderada por D. João de Á ustria, filho bastardo de Carlos V, sobre a esquadra do Império Otomano. (NC) 1• 1 À margem: "às vezes, o príncipe é obrigado a combater sob majestade".

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Quaestio 1 . a De conditionibus requisitis ad bellum iustum.

Omisso bello defensiuo quod quaelibet etiam priuata persona potest fa­ cere non solum pro defensione personae, sed etiam pro defensione rerum et bonorum (iure enim naturali licitum est unicuique uim ui repellere cum moderamine tamen inculpatae tutellae ut explicatur in materia de homi­ cidio)f3 l , tres conditiones ponit [30lv] Caietanus in litera, D. Thomas ubi supra et doctores communiter, ad hoc ut bellum sit iustum offensum:l4l 1 .ª est autoritas inferendi bellum; 2.ª est iusta causa bellandi; 3.ª recta in­ tentio. 1. ª conditio requisita ad bellum iustum est autoritas principis, ex cuius mandato bellum est gerendum. Nomine autem principis solum illi intelliguntur, qui non habent superiorem in suo principatu, siue seculares sint, siue ecclesiastici,!S l ut notat Syluester, Bellum, 1 .º , q. 1 , et Aemilianus, u. Bellum, n. 36, quales sunt Papa, imperator, et reges in suis regnis, qualis est etiam respublica libera, quae supra se nullum habet superiorem, ut est respublica Venetorum. Quod autem autoritas mouendi bellum resideat in principe tenet Caie­ tanus in litera,1 6l D. Thomas, ubi supra, a. 1 , Caietanus, ibidem, Victoria, De iure belli, n. 5, Couarrubias, ubi supra, §. 9, n. 1, Castrus, ubi supra, lib. 2 De iusta haereticorum punitione, c. 14, fol. 1 20 , Gabriel in 4, d. 1 5 , q . 4, a. 1 , Panormitanus, i n c. Sicut, 3. D e iure iurando et alii, et probatur ex Augustino, can. Qui culpatur, 23, q. 1 : "Ordo" , inquit, "mortalium paci accommodatus hoc poscit, ut suscipiendi belli autoritas atque consilium penes principes sit" , intellige uel penes Rempublicam liberam, quae non º,

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À margem: "bellum iustum est quia iure naturali licet uim ui repellere". À margem: "triplex est causa bellandi et hae sunt conditiones ad bellum iustum". À margem: "nomine principis quis intelligatur". À margem: "autoritas mouendi bellum residet in principe non habente superiorem uel

in Republica libera".

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Questão 1.ª Acerca das condições requeridas para a guerra justa. Omissa a guerra defensiva que qualquer pessoa privada também pode fazer não só a favor da defesa da pessoa, mas também a favor da defesa das coisas e dos bens (com efeito, pelo direito natural, é lícito a cada um repelir a força com força, todavia, com a salvaguarda de uma defesa que não in­ corre em culpa, como se explica na matéria acerca do homicídio(5>)(6>, [301v] Caetano na sua carta expõe as três condições para que a guerra ofensiva seja justa, bem como São Tomás, referido anteriormente, e a opinião comum dos doutores:(7> a primeira é a autoridade de declarar a guerra; a segunda é a causa justa para se combater; a terceira, a recta intenção. A primeira condição requerida para a guerra justa é a autoridade do príncipe por cujo mandato se deve fazer a guerra. Ora, apenas aqueles que não têm superior no seu principado, quer sejam seculares quer sejam eclesiásticos, se reconhe­ cem pelo nome de príncipe,(81 como observa Silvestre(9>, Bellum, 1 . 0, q. 1 , e Emiliano, u. Bellum, n. 36. Assim como o papa, o imperador e os reis nos seus reinos [são príncipes], assim também a república que não tem nenhum superior acima de si é livre, como a república dos Venezianos. Ora, Caetano, na sua carta, considera que a autoridade de mover a guer­ ra reside no príncipe,(10> assim como São Tomás, referido anteriormente, a. 1; Caetano, ibidem; Vitoria, em De iure belli, n. 5; Covarrubias, referido anteriormente, §. 9, n. 1; Castro, referido anteriormente, lib. 2 De iustitia haereticorum punitione, e. 1 4, foi. 1 20; Gabriel em 4, d. 1 5, q. 4, a. 1 ; Pa­ normitano, e. Sicut, 3. º, De iure iurando, e outros. Confirma isto Agostinho, can. Quid culpatur, 23, q. 1 . "A ordem'', diz ele, "conveniente à paz dos mortais, exige que a autoridade e o conselho para declarar a guerra estejam em poder dos príncipes" ou, como sabeis, em poder da república livre que 151 Esta matéria corresponde à questão 64 da 2." 2.ª' da Suma Teológica de São Tomás de Aquino: De homicidio. (NC) 161 À margem: "a guerra é justa, porque, pelo direito natural, é permitido repelir a força com força" . 171 À margem: "são três a s causas para s e combater e são estas a s condições para a guerra justa". 181 À margem: "quem se reconhece por nome de príncipe" . 191 Sylvester Mazzolini ( 1 460- 1 523), dominicano italiano, professor d e Teologia e m Bo­ lonha, Pádua e Roma. Foi o autor da Summa Summarum, qua! Sylvestrina dicitur, publicada em Roma, em 15 16, para além de outras obras de exegese bíblica e de apologia contra o luteranismo. É um dos autores mais citados neste volume, só superado por Francisco Vitoria, Tommaso de Vio (Caetano) e São Tomás de Aquino. (NC) 1101 À margem: "a autoridade de mover uma guerra reside no príncipe que não tem su­ perior ou na República livre".

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habet superiorem. Probatur deinde ratione quia, si in principe uel republica libera non esset autoritas mouendi bellum aduersus hostes et uendicandi iniurias, talis respublica esset imperfecta, et sibi insufficiens, nec potens conseruare bonum publicum et statum reipublicae. Quare quondam ad so­ los reges et communitates perfectas pertinet stringere gladium et armis uti contra malefactores internos et seditiosos ciues, iuxta Paulum, Rom. 13: "non enim sine causa portat gladium, Dei enim minister est uindex in iram ei qui male agit." lta ad eos sol um pertinet bellum mouere, multitudinem conuocare, gladio bellico uti aduersus hostes exteriores, possunt denique ui et armis res sublatas repetere, damna resarcire, iniuriasque subditis suis illatis uendicare. Ex dictis colligitur personam priuatam non posse mouere bellum nec iniuriam priuata autoritate uendicare (defensio tamen licita est personae priuatae) .(7) Ratio est quia priuata habet superiorem in cuius iudicio possit persequi suum ius et uindictam petere ex D. Thoma ubi supra et doctores communiter. Circa ea quae diximus sunt nonnulla dubia: 1 . m dubium est utrum mag­ nates alicuius regni, quales sunt duces, comites, marquiones, habeant auto­ ritatem per se inferendi bellum, an uero dicantur personae priuatae in hac materia. Ad hoc dubium respondet Caietanus, 2.ª 2.0•, ubi supra, Victoria et alii negatiue. Ratio est quia non sunt simpliciter capita, sed partes alicuius regni uel reipublicae perfectae et coram suo superiore possunt petere uin­ dictam et recompensationem iniuriarum. Vnde si Dux [Bragantiae](B l Vir Clarissimus bellum inferret alteri propria autoritate [302 ] iniuriam faceret regi usurpando eius ius, quia dux Bragantiae non est simpliciter caput, sed est pars regni, nec enim una contra alteram potest bellum mouere sine con­ sensu sui regis. lllud tamen est notandum ex Caietano et Victoria ubi supra hos magna­ tes, qui sunt partes alicuius reipublicae et ciuitatem aliquam particularem subditam regi, ex legitima consuetudine posse habere facultatem per se bellum inferendi, quia haec autoritas magna ex parte pendet a iure gentium

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À margem: "priuata persona potest se defendere non tamen uendicare". No ms.: "Brigantiae".

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não tem superior. Comprova-se ainda pela razão d e que, s e o príncipe o u a república livre não tivesse autoridade de mover a guerra contra os inimigos e de vingar as injúrias, tal república seria imperfeita e insuficiente para si, não podendo conservar o bem público e o estado da república. Por esta cau­ sa, apenas corresponde aos reis e às comunidades perfeitas desembainhar a espada e servir-se das armas contra os malfeitores internos e contra os ci­ dadãos sediciosos, conforme refere Paulo, Rm 1 3º1': "porque não é em vão que empunha a espada; portanto, é, de facto, um agente de Deus, j usticeiro para castigo daquele que faz o mal." Assim, apenas a eles diz respeito mover a guerra, convocar a multidão, servir-se do gládio bélico contra os inimigos estrangeiros. Em suma, podem reclamar pela força e pelas armas os bens subtraídos, reparar os danos e vingar as injúrias, depois de os seus súbditos terem sido atacados. Do que foi dito, conclui-se que a pessoa privada não pode mover a guer­ ra nem vingar a injúria pela autoridade privada (é lícita, todavia, a defesa da pessoa privada)Y2 1 A razão é que a pessoa privada tem um superior a cuja instância pode apelar para reclamar o seu direito e pedir a justiça vindicati­ va, de acordo com São Tomás, anteriormente referido, e segundo a opinião comum dos doutores. Existem algumas dúvidas sobre o que acabamos de dizer: a primeira dúvida é se os magnates daquele reino, como os duques, os condes e os mar­ queses, têm autoridade para declarar guerra por si ou deverão designar-se pessoas privadas nesta matéria. Caetano, 2.ª 2.ª', referido acima, responde negativamente a esta dúvida, bem como Vitoria e outros. A razão é que não são simplesmente chefes, mas partes daquele reino ou da república perfeita e podem solicitar ao seu superior vingança e compensação pelas injúrias. Por isso, se o duque de Bragança, homem ilustríssimo, declarasse guerra a outrem fundamentando-se na própria autoridade, [302] faria injúria ao rei, usurpando o seu direito, porque o duque de Bragança não é simplesmente chefe, mas é parte do reino. Com efeito, uma parte não pode mover guerra contra a outra sem o consentimento do seu rei. Deve notar-se, todavia, de acordo com Caetano e Vitoria, referidos ante­ riormente, que estes magnates que são partes de uma república e de alguma cidade particular, súbdita do rei, podem ter a faculdade de declarar guerra por si de acordo com a legitimidade consuetudinária, porque esta autorida-

11 1 1 Rom 13, 4. Para a tradução das citações bíblicas, seguimos a Bíblia Sagrada, 1 8.3 edição, Lisboa, Difusora Bíblica, 1 995. 1 1 21 À margem: "a pessoa privada pode defender-se, mas não pode reivindicar".

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et humano. (9l Quare si aliquis princeps uel ciuitas superiorem cognoscens antiqua consuetudine obtinuit ius belli gerendi per se, non est ei neganda autoritas. Hac de causa Castrus ubi supra affirmat in ltalia ducem Ferrariae, ducem Florentiae, ducem Mantuae, et marchionem Montis Ferrati antiqua consuetudine habere autoritatem mouendi bellum. (lOl lntelligitur autem haec consuetudo ex Caietano ubi supra si hona fide ille princeps aut ciuitas in tali pacifica autoritate fuerunt. Nam si illam usurparunt per iniuriam rebellantes contra proprium dominum a quo nunquam potuerunt coerceri, non possunt propria autoritate bellum mouere, nam ex regula iuris posses­ sor in mala fide nunquam praescribit. Vtrum autem imperator sit Dominus totius orbis disputat late Couar­ rubias, ubi supra, §. 9, n. 5, Soto in 4 De iustitia, q. 4, a. 2, et cum his.0 1 i Respondetur negatiue. Reges uero Christiani e x Caietano ubi supra non sunt simpliciter subditi imperatori, sed solum secundum quod in quantum imperator est protector et propugnator fidei per pontificem ad hoc corona­ tus. (l2l Ac proinde in causis fidei ad repellendos inimicos crucis et religionis Christianae potest conuocare Christianos reges ex Soto, ubi supra, col. 4, nisi ex antiqua consuetudine contrarium seruetur. Reges per se simpliciter sunt capita in suis regni [s] et sine consensu imperatoris bellum possunt mouere aduersus hostes. Notat etiam Victoria quod necessitas potest concedere licentiam inferen­ di bellum,03 l uerbi gratia, si in eodem regno una ciuitas aliam oppugnauit iniuriaque affecit uel unus dux alium, si rex requisitus neglegeret, aut non audiret iniurias uindicare, possit dux aut ciuitas se defendere etiam bellum inferendo ad uindicandas iniurias sibi illatas, (l4l quia aliter non possit se commode defendere. Si enim contenta esset ciuitas se defendendo sine bel­ lo offensiuo non desistere hostes ab iniuriis.

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À margem: "quando possunt magnates propria autoritate bellum inferre". À margem: "aliqui magnates in ltalia habent facultarem mouendi bellum per se". À margem: "lmperator non est dominus totius orbis". À margem: "quando sunt reges subditi imperatori". À margem: "necessitas dat ius ad ferendum bellum". À margem: "N" ( "Nota bene"?).

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d e e m grande parte depende d o direito das gentes e d o direito hurnano.!131 Portanto, se algum príncipe ou cidade, reconhecendo o seu superior, obteve o direito de fazer a guerra por si de acordo com o costume antigo, não lhe deve ser negada a autoridade. Por esta causa, Castro, anteriormente referi­ do, afirma que, em Itália, o duque de Ferrara, o duque de Florença, o duque de Mântua e o marquês de Monferrato têm, por um costume antigo, a au­ toridade de mover a guerra. (l4I Mas, de acordo com Caetano, anteriormente referido, entende-se que este costume se aplica sempre que aquele príncipe ou cidade agiram de boa-fé e em pacífica consonância com esta autoridade. Se, na verdade, a usurparem com urna injúria, revoltando-se contra o seu se­ nhor por forma a nunca puderem ser castigados, não podem mover a guerra pela própria autoridade; pois, segundo a regra do direito, o possuidor em má-fé nunca prescreve. Ora, Covarrubias, referido acima, § 9, n. 5, discute extensamente se o imperador é senhor de todo o orbe, bem corno Soto, em 4, De lustitia, q. 4, a. 2, e outros com estes. Responde-se negativarnente.!151 Na verdade, segun­ do Caetano, referido anteriormente, os reis cristãos não são simplesmente súbditos do imperador, mas apenas na medida em que o imperador é pro­ tector e propagador da fé, para a qual função foi coroado pelo pontífice.!161 E nesta medida, [o imperador] pode convocar os reis cristãos no que toca às causas da fé para repelir os inimigos da cruz e da religião de Cristo, a não ser que proceda o contrário segundo o costume antigo, conforme Soto, re­ ferido anteriormente, col. 4. Os reis por si são simplesmente chefes nos seus reinos e podem mover a guerra contra os inimigos, sem o consentimento do imperador. Também Vitoria nota que a necessidade pode conceder a licença para declarar a guerra.071 Por exemplo, se, no mesmo reino, urna cidade atacar outra e a oprimir pela injúria, ou um duque outro duque, e o rei, informado, negligenciasse ou não ousasse vingar as injúrias, o duque ou a cidade po­ deria defender-se e até declarar guerra para vingar as injúrias recebidas.!18 1 Porque, de outro modo, não se poderia defender convenientemente. Com efeito, se a cidade se contentasse em se defender sem urna guerra ofensiva, os inimigos não desistiriam das injúrias. i ui 1141

por si". 1151 1161 1 171

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À margem: "quando os magnates podem declarar guerra pela própria autoridade" . À margem: " e m Itália, alguns magnates têm a faculdade d e empreender uma guerra À margem: "o imperador não é senhor de todo o orbe". À margem: "quando os reis são súbditos do imperador" . À margem: "a necessidade d á o direito para declarar a guerra". À margem: "N" ( "Nota bem " ? ) .

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2.um dubium est utrum quando sunt duae respublicae integrae quarum unaquaque habet proprias leges et proprios magistratus utraque tamen ha­ bet eundem [302v] communem dominum seu regem, quale est regnum Castellae et Aragoniae, possit una contra aliam bellum mouere propria autoritate?( 1 5 l Victoria, n. 8, affirmat: oppositum est tenendum, quia talis respublica sine suo capite est imperfecta. Vnde autoritas bellum mouendi [semper ] 0 6l residet. ln capite 3.um dubium est utrum in regionibus in quibus multae sunt familiae nullum recognoscentes superiorem et multi pagi inter se diuisi nullum habentes regem, quod potest contingere apud barbaras nationes; dubium est inquam, utrum una familia uel pagus propria autoritate possit uindicare sibi illatas iniurias ah alia familia uel pago?( l ?) Respondetur affir­ matiue ex Gabriele in 4, d. 1 5 , q. 4, a. 1 , Angelo, u. Bellum, § . 6. Ratio est quia nullum habent superiorem ad quem recurrant: ergo naturaliter idem habent ius uindicandi iniurias, quod habent reges in suo regno eademque est autoritas in singulis familiis uel singulis pagis. ( l B) ln hoc casu quae est in quouis rege ad mouendum bellum. Dubium 4 est utrum in summo Pontifice sit autoritas belli mouendi? Pro solutione huius dubii nota breuiter in summo Pontifice (quod attinet ad propositum) esse duplicem potestatem, altera est domini temporalis, quod habet in ordine ad patrimonium et terras Ecclesiae; altera est potestas, quam habet [ ] !1 9l in principes seculares in ordine ad finem spiritualem, sin, quod idem est, quam supra omnia spiritualia non fine laico, sed spirituali, quatenus temporalia sunt necessaria ad spiritualia, ut patet ex c. Venerabi­

lem de electione. Hoc notato sit l .ª conclusio: papa non est dominus totius orbis in tem­ poralibus. Haec conclusio est Victoria, De ecclesiae potestate, fol. 76, et in Relectione de indis insulanis, 1 .ª p., n. 27, Soto, lib. 4 De iustitia, q. 4, a. 1 , e t communis; e t patet quia si esset dominus totius orbis uel esset de iure naturali uel diuino positiuo uel humano, nullum istorum potest dici, ut doctores citati copiose probant: ergo in temporalibus non est dominus to­ tius orbis.

115> À margem: "quando duae Respublicae sunt integrae habent tamen unum et idem caput non possunt mouere bellum per se. contra Vict. ". 116> No original: "sempe". 1 1 7> À margem: "in regione habente muitos pagos non recognoscentes regem possunt mouere bellum per se". 1 1 8> À margem: "N. " . 1191 Rasurado n o manuscrito: "supra omnia spiritualia" .

PEDRO SIMÕES

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Segunda dúvida: quando existem duas repúblicas íntegras, das quais cada urna tem as suas leis e os seus magistrados, mas ambas partilham o mesmo [302v] senhor ou rei, corno acontece no reino de Castela e Aragão, urna pode mover guerra contra a outra pela própria autoridade?lt9l Vitoria, n. 8, afirma que se impõe o oposto, porque tal república sem o seu sobera­ no é imperfeita. Por isso, a autoridade de mover a guerra reside sempre no soberano. Terceira dúvida: nas regiões onde existem muitas famílias que não re­ conhecem nenhum superior e muitas povoações entre si divididas que não têm nenhum rei, o qual pode acontecer entre as nações bárbaras; a dúvida é, passo a dizer: uma família ou uma povoação pode pela própria auto­ ridade vingar as injúrias causadas a si por outra família ou povoação?120l Responde-se afirmativamente de acordo com Gabriel em 4, d. 1 5, q. 4, a. 1 , e Angelo, u . Bellum, § . 6 . A razão é que, corno não têm nenhum superior a quem recorrer, em consequência têm o direito natural de vingar as injúrias, dado que têm reis no seu reino e idêntica autoridade detêm cada família ou povoação.121l Em todo o caso, em qualquer parte que seja, é o rei quem tem autoridade para mover a guerra. Quarta dúvida: o sumo pontífice tem a autoridade de mover a guerra? Para solucionar esta dúvida, considera, em poucas palavras, que o sumo pontífice tem, para este efeito, um duplo poder: um pertence a um domínio temporal, que o papa detém no que diz respeito ao património e às terras da Igreja; o outro é a autoridade que detém em relação aos príncipes seculares no que diz respeito ao fim espiritual; ou seja, aquela autoridade que diz respeito aos bens espirituais, com finalidade espiritual, não laica, na medida em que os assuntos temporais são necessários para os espirituais, como é evidente a partir do capítulo Venerabilem de electione. Notado isto, seja a primeira conclusão: o papa não é o senhor de todo o orbe nas coisas temporais. Esta conclusão encontra-se em Vitoria, nas obras De ecclesiae potestate, foi. 76, e Relectio de indis insulanis, 1. ª p., n. 2 7, em Soto, lib. 4 De iustitia, q. 4, a. 1 , e na opinião comum; e é evidente porque, se fosse senhor de todo o orbe ou se o fosse em virtude do direito natural ou divino positivo ou humano, nenhum destes poderia ser aplicado, como os doutores citados provam com contundência. Portanto, não é senhor de todo o orbe nas coisas temporais. 091 À margem: "quando as duas Repúblicas são íntegras, mas têm um e o mesmo chefe, não podem mover a guerra por si. Vitoria postula o contrário" . 1201 À margem: "numa região onde existem muitas povoações que não reconhecem u m rei, podem mover guerra por si". 21> 1 À margem: "N".

ESCOLA IBÉRICA D A PAZ - VOLUME 1

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Ex hac quaestione sequitur ad Papam simpliciter non pertinere cons­ tituere reges aut principes temporales, quia temporalis et ciuilis potestas et secularia administratio simpliciter non dependet ah ipso nec reges et domini temporales ah ipso habent titulum regnandi, sed potestas sublimis et secularis distincta est ah ecclesiastica et spirituali, quia secularis habet finem temporalem, spiritualis autem tendit in finem spiritualem. 2.ª conclusio: in ordine ad finem spiritualem habet Papa amplissimam potestatem super omnes reges et imperatorem, ita doctores citati; !20l et pro­ batur quia temporalia aliquando sunt necessaria ad finem spiritualem: ergo, si Papa non possit uti temporalibus ad illum finem, respublica spiritualis esset imperfecta et sibi insufficiens, nec Christus satis prouidisset Ecclesiae suae. Vnde Bonifacius 8, in extrauagante [303 ] Vnam sanctam, docet in potestate Summi Pontificis esse duos gladios, spiritualem scilicet et tempo­ ralem, quare in rebus fidei et religionis christianae poterit Papa non solum gladio spirituali, (2l ) sed etiam temporali procedere aduersus seculares prin­ cipes, priuando eos suis bonis temporalibus, et si fuerit necesse eos potest deponere, nouosque creare, imperia et regna mutare. !22l Vnde hac ratione Stephanus Papa transtulit imperium a Graecis ad Germanos, ut patet ex c. Venerabilem citato et Zacharias Papa deposuit regem Francorum cuius loco substituit Pepinum (d. 1 5 , q. 6, c. Alans. Rom.) et lnnocentius 4 in­ terdixit regi Portugaliae administrationem regni, ut patet ex c. Grandi de supplenda negligentia Praelatorum in 6. Ratio autem fuit, quia permittebat Ecclesias, monasteria et personas ecclesiasticas aggrauari et alia similia mala publica non castigabat: dedit ergo pontifex ipsi regi in coadiutorem ad gubemandum regnum comitem Bononiae fratem ipsius regis. 3.ª conclusio: in Summo Pontifice quatenus est princeps ecclesiastici patrimonii dominium habet terrarum Ecclesiae residet autoritas mouendi bellum sicut in caeteris principibus secularibus qui in suo principatu non recognoscunt superiorem. !23l Probatur conclusio quia Papa in illo patrimo­ nio Ecclesiae est caput et quasi rex nullum recognoscens superiorem, sicut sunt reges in suis regnis, ergo in illo est autoritas gerendi bellum. lntelli-