A crise sistêmica - Teses Para a Atualização do Marxismo [1, primeira ed.]

É fácil reconhecer um novo clássico quando ele surge. Este livro é, provavelmente, a maior e mais profunda obra marxista

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GLOSSÁRIO

Apresentação, 09
A última era do capital, 13
Crise do sistema de valor, 21
A empiria dos limites internos, 39
Os macrociclos do capital, 47
O dinheiro, 69
A urbanização, 93
A questão das classes, 101
O sujeito revolucionário hoje, 111
Elementos específicos da revolução permanente, 119
A função histórica dos ex-Estados “socialistas”, 123
China: imperialismo sui generis, 143
O fim latente das fronteiras nacionais, 157
Meio ambiente e socialismo, 161
Risco de pandemias, 165
A superestrutura subjetiva, 169
Crise da família monogâmica, 193
O despotismo esclarecido burguês, 199
Crise do Estado burguês, 205
Syriza, Podemos, Psol: o que é um partido anticapitalista, 211
Crítica ao regime leninista proposto por Moreno, 219
Reflexões sobre o partido comunista, 231
Esboço para um balanço do comunismo no Brasil, 247
Guerras, não crises, estimularam revoluções sociais, 261
Crise latente do aparato de repressão, 265
A etapa histórica pós-queda do muro: em qual etapa histórica estamos?, 273
Contribuições para um programa de transição no século XXI, 275
Compreender as variações da luta de classes: categoria “momento”, 281
As pautas democráticas, 285
Uma só crise, 289
A transição ao socialismo, 293
A nova dialética, 307
Bibliografia, 325
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A crise sistêmica - Teses Para a Atualização do Marxismo [1, primeira ed.]

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A CRISE SISTÊMICA Teses para a atualização do marxismo

J. P.

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Agradecimentos: À Minha mãe, Ao meu pai, Ao meu irmão, À Iara Gomes.

Dedicatória: À Marcia Veruska, quem me iniciou na ciência e na arte.

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Estou convencido de que existe apenas um caminho para eliminar esses graves males, e esse é o estabelecimento de uma economia socialista, acompanhada por um sistema educacional orientado para objetivos sociais. Em uma economia tal, os meios de produção são propriedade da própria sociedade, e utilizados de modo planejado. Uma economia planejada, que ajusta a produção às necessidades da comunidade, distribuiria o trabalho a ser feito entre todos os capazes de trabalhar, e garantiria o sustento de cada homem, mulher e criança. A educação do indivíduo, além de desenvolver suas próprias habilidades inatas, se empenharia em desenvolver nele um senso de responsabilidade por seus companheiros de humanidade, em lugar da glorificação do poder e do sucesso, como temos na sociedade atual. (Einstein, 2007)

Nossos sonhos são os mesmos há muito tempo, Mas não há mais muito tempo pra sonhar… (Humberto Gessinger)

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GLOSSÁRIO

Apresentação, 09 A última era do capital, 13 Crise do sistema de valor, 21 A empiria dos limites internos, 39 Os macrociclos do capital, 47 O dinheiro, 69 A urbanização, 93 A questão das classes, 101 O sujeito revolucionário hoje, 111 Elementos específicos da revolução permanente, 119 A função histórica dos ex-Estados ―socialistas‖, 123 China: imperialismo sui generis, 143 O fim latente das fronteiras nacionais, 157 Meio ambiente e socialismo, 161 Risco de pandemias, 165 A superestrutura subjetiva, 169 Crise da família monogâmica, 193 O despotismo esclarecido burguês, 199 Crise do Estado burguês, 205 Syriza, Podemos, Psol: o que é um partido anticapitalista, 211 Crítica ao regime leninista proposto por Moreno, 219

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Reflexões sobre o partido comunista, 231 Esboço para um balanço do comunismo no Brasil, 247 Guerras, não crises, estimularam revoluções sociais, 261 Crise latente do aparato de repressão, 265 A etapa histórica pós-queda do muro: em qual etapa histórica estamos?, 273 Contribuições para um programa de transição no século XXI, 275 Compreender as variações da luta de classes: categoria ―momento‖, 281 As pautas democráticas, 285 Uma só crise, 289 A transição ao socialismo, 293 A nova dialética, 307 Bibliografia, 325

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APRESENTAÇÃO

Esta obra é fruto de algo em torno de 13 anos de estudo. Sua produção partiu do fato de que uma resposta geral sobre o mundo contemporâneo era necessária. Ademais, valeria a pena escrever um novo livro, ainda que com conclusões iniciais e gerais, apenas se oferecesse respostas qualitativamente novas. As teses as quais cheguei parecem autorizar tal empreitada. Como somos frutos de nossa realidade, deve-se destacar aqui o papel do perfil nacional. Diferente do que ocorre na literatura brasileira, focada provincialmente em sua própria terra, os marxistas nacionais absorvem com voracidade toda a produção mundial no campo teórico. Forma-se um meio cultural propenso à renovação das ideias. Apesar disso, tem-se o vício de abraçar alguma importante conclusão como se fosse uma bandeira que exclui previamente outras interpretações e atualizações. Há ainda outra característica no meio brasileiro: a sua divisão entre os práticos, concentrados no resgate dos clássicos quase inquestionáveis, tendendo ao dogmatismo, e os teóricos, como erro oposto, mais ativos na renovação das ideias, tendendo ao impressionismo, ao revisionismo, ao jogo de palavras, etc. Este livro pretende, portanto, superar o sectarismo intelectual e almeja oferecer uma primeira resposta unificada sobre os temas mais caros ao marxismo. Minha tarefa foi, por tal ponto de vista, muito mais simples. Na medida em que as polêmicas caiam em oposições – se há crise do valor ou seu maior domínio, se há estagnação secular ou crises cíclicas, se a essência humana é natural ou histórica, etc. –, deram as bases da própria superação dos problemas, ofereciam caminho para a descoberta da resolução dos opostos. Em geral, bastou abordar o objeto do debate de modo histórico para encontrar a solução. Tratou-se, portanto, de descobrir o grau de verdade das diferentes produções, na medida em que estavam fincadas na realidade, mais do que apenas perceber erros e limites. Por outro lado, serve de mérito particular da obra reunir em um todo artístico, em totalidade, o que havia sido tratado antes apenas de modo monográfico, separado. Por isso também foi um trabalho um pouco mais fácil, embora amplo. Esta obra trata da crise sistêmica do capitalismo. Tal como o escravismo e o feudalismo encontraram o limite histórico, o capital também o alcança. Assim, seja por qual ângulo observado, o sistema atual encontrou sua crise derradeira. Mais: oferece em si próprio os elementos da primeira fase da próxima sociabilidade. Este é o primeiro sentido de transição: estamos na época de passagem possível e necessária para o modo de produção socialista.

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Também focamos na transição no sentido de primeira fase do socialismo: debatemos as revoluções do século XX, os aspectos gerais da transição social no regime, etc. De um lado, fazemos balanço do passado e, de outro, tentamos esboçar possíveis aspectos do futuro. No decorrer do livro, uma categoria destaca-se: a ficção, o falso. As categorias avançam para categorias fictícias. Vários autores focaram este ou aquele caráter ficcional do capitalismo contemporâneo, mas lhes faltou uma visão geral, unificada e categorial consciente. Na produção deste livro, surgiu como necessário partir da economia para, em seguida, as classes, depois a subjetividade (superestrutura subjetiva) e, então, para as organizações (superestrutura objetiva). Do contrário, teria de maneira constante de antecipar conteúdos, de remeter a outros assuntos, no lugar de uma absorção e uma exposição que avançasse e progredisse. É, enfim, o mesmo proceder de uma análise de conjuntura em uma ―análise de estrutura‖ e assim é porque a realidade social, que é histórica, tem tal hierarquia. A dialética estrutura-conjuntura também se faz presente de maneira natural e, além de formar oposição e contradição das categorias, forma principalmente a unidade entre elas, embora esta costume estar implícita no texto. A ideia de compor este livro começou quando soube que minha antiga organização política internacional, a LIT-QI, havia aprovado um debate de atualização programática; mais do que levantar novas palavras de ordem, isso significa chegar a uma concepção do que o mundo é hoje. Tal empreitada motivou o autor dessas páginas a publicar alguns de seus esboços na internet, porém, quanto mais pesquisava, mais precisei ir a fundo, aos fundamentos. Embora reivindique o partido político citado, mas não sua representação nacional, o processo de minha expulsão partidária, em base a uma dura luta de frações, foi bastante traumático e me impediu de ter qualquer participação nos debates internos. Anos depois, espero ter concluído o central da tarefa a que me propus, ou seja, dar uma explicação geral e unificada, ainda que sempre incompleta, do mundo. A pesquisa foi feita de modo independente, com todos os desafios e as dificuldades que isso representa. Um professor universitário tem bom salário, algum tempo livre, recursos para obter muitas obras. Com um pesquisador independente, tudo ocorre de modo outro. Várias vezes, tive de apertar os cintos para comprar livros e ter tempo livre para estudar e pensar. Em outro parágrafo, foi dito que a tarefa tornou-se mais fácil também uma vez baseada em outras pesquisas; mas, por outro lado, foi de fato dificílima dada a condição do autor. Isso fez com que fosse impossível esgotar a bibliografia sobre os temas tratados; também porque o assunto é

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amplo e profundo, porque faltam recursos, porque – e isso tem máxima importância – o tempo da política e da crise mundial impedem adiamentos. Uma pesquisa completa demoraria pelo menos mais dez anos de dedicação exclusiva, algo inviável ao escritor. Pode haver, portanto, neste ou naquele ponto, algum plágio inconsciente que deverá ser reconhecido em caso afirmativo. O temor maior era de que as ideais pulassem como piolhos para a cabeça de outros, daí outro motivo de lançar este livro com o material estável, amadurecido, em forma de teses. Nos casos em que descobri a posteriori que outros já haviam chegado às conclusões, refiz o material adicionando citações. Outro problema é o ambiente acadêmico. Seguindo programas de pesquisa de universidades, teria todo o trabalho deformado e limitado pelas regras das academias atuais. Há excessiva especialização como há montanha de pesquisas fictícias, pois ver a realidade a fundo obriga chegar a conclusões socialistas. A burocracia universitária consolidou regras conservadoras que impedem o exercício de livre pensamento. Para garantir o doutorado e evitar a desmoralização, os membros da academia evitam riscos teóricos reais. Nas humanidades, por exemplo, a pósmodernidade e outras quase ciências imperam, sufocando a verdadeira análise crítica. Como observou Lucáks, perdeu-se a noção de historicidade, de história viva. Pude me livrar de tais limites, contanto aceitasse certo isolamento social que ao mesmo tempo liberta e limita. A ciência beira uma nova revolução do pensamento. Veja-se o caso da física: conhece bem os fenômenos da fenda dupla e do emaranhamento quântico, inclusive usando este para fins práticos em testes, mas ainda não os explica. Na psicologia, uma teoria unificada falta surgir, desde a revisão de toda produção importante sobre este objeto. Na economia, a pseudociência impera. Nunca tivemos tantos doutores em filosofia, e nunca eles foram tão inúteis. A pesquisa de base tende a ser negligenciada, porque o capital precisa de investimento em pesquisa aplicada. Limita-se a poucos países, desde a relação de dominação imperialista, a pesquisa e o ensino de qualidade. Apenas a revolução social, que dará ao método dialético seu necessário destaque, produzirá condições materiais para o pensamento profundo, renovando o ensino e o trabalho científico. Somente assim, poderemos evitar a queda de nossa nova biblioteca de Alexandria – ameaçada pelo fanatismo religioso (que cresce à medida que a qualidade de vida cai), pelas crises econômicas, pela ignorância geral, pelo oportunismo público de cientistas e experts serviçais abertos ou disfarçados dos ricos (economistas, etc., desmoralizando o mundo científico para as massas), etc. –, com a ciência deixando de ser algo das elites, das classes dominantes, das grandes empresas capitalistas, pondo-se diretamente a serviço da humanidade. A crise da ciência acompanha a crise humanitária do capitalismo. É sintomático que tenhamos ouvido de Ronald

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Reagan, presidente americano, no início da crise sistêmica: "Por que deveríamos subsidiar a curiosidade intelectual?" (Discurso de campanha eleitoral, 1980.) Tal retórica contrasta com a do alvorecer do capitalismo estadunidense, quando George Washington, então presidente, afirmou: "Nada é mais digno de nosso patrocínio que o fomento da ciência e da literatura. O conhecimento é, em todo e qualquer país, a base mais segura da felicidade pública." (Discurso no congresso, 1790.) As primeiras nações socialistas no possível futuro próximo terão de ser potentes campos gravitacionais, por liberdade científica e por oportunidades, atraindo para si os melhores cérebros do mundo tal como os EUA atraíram por séculos os vanguardistas de todos os tipos perseguidos na Europa. Por fim, é interessante destacar aspectos de estilo do texto. Procuro ser o mais claro e direto na produção, apesar de que é necessário algum conhecimento prévio sobre certos temas. Uma das táticas comuns dos autores da área de humanas é vencer o leitor por meio do cansaço com textos longos e complicados, com debates de princípio que apenas reafirmam posições, com exposição da vasta erudição do escritor, com a construção de dialetos para disfarçar a baixa criatividade, etc. O marxismo tende a certos critérios de escrita, entre eles, a clareza destinada ao público popular potencial e a polêmica. Evito apenas a última característica porque o objetivo é ganhar aqueles de diferentes vertentes e tradições para um campo comum. Ao leitor, fica a indagação um tanto retórica: esta obra existira não fossem os limites absolutos do sistema capitalista revelados desde 2008? Dito de outra forma, positiva: chegou a hora de imaginar, com os pés no chão, uma nova sociedade? O marxismo bárbaro, formado longe dos grandes centros, deste livro pretende ajudar em tal tarefa. Teoria para guiar a rebeldia! Organize a tua revolta! J. P.

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A ÚLTIMA ERA DO CAPITAL ―A coruja de Minerva só voa ao entardecer.‖ Hegel O marxismo dividiu-se, entre outras, em duas concepções opostas: ou o capitalismo é fadado a ser substituído pela sociedade socialista ou é um sistema capaz de se renovar caso inexistam revoluções vitoriosas. Para resolver tal polêmica, precisamos analisar a história desse modo de produção. Tomemos por ponto de partida as três formas de capital: 1.

Capital produtor de juros;

2.

Capital industrial;

3.

Capital comercial.

E suas bases constitutivas: 1.

Capital-dinheiro;

2.

Capital produtivo;

3.

Capital-mercadoria.

Em diante, trataremos das eras do capital como etapas históricas com diferentes centros de gravidade.

Era do capital comercial A primeira era do capital inicia-se no século XVI com as grandes navegações. Nesta época, o artesão passa por processo de subordinação ao capitalista comercial. A grande nação do comércio é a Holanda; ao mesmo tempo, na Inglaterra inicia-se a acumulação inicial ou primitiva de capital com a expulsão dos camponeses das terras comunais e a transformação destes em mão de obra disponível em troca de salário. O desenvolvimento do capitalismo mercantil é base para elevar duas outras formas de capital, a produção de mercadorias e o capital a juros. Também transforma a força de trabalho, antes ligada à servidão, em mercadoria.

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Do ponto de vista lógico-histórico a mercadoria é também o ponto de partida e, na formação de sua totalidade, desdobra-se na criação das mercadorias dinheiro, força de trabalho e capital produtivo. Por isso, a primeira etapa do sistema tem o desenvolvimento das relações mercantis como base para o desenvolver das demais eras. A partir da mercadoria, uma nova totalidade passa a se consolidar. A alta demanda do mercado foi parte do impulso a esta etapa histórica e serviu, também, de impulso rumo à era seguinte.

Era do capital industrial A produção passa a ter força centralizadora com a I Revolução industrial, final do século XVIII. A necessidade de aumentar a produtividade e derrotar os trabalhadores, que usavam de suas habilidades para limitar a exploração, ou seja, luta concorrencial e luta de classes, motivaram o uso do maquinário. Algumas caraterísticas essenciais surgem e merecem destaque. Nesta era, a dominação de classe capitalista se consolida com o consolidar do novo sistema. As duas classes opostas ganham corpo: a burguesia torna-se cada vez mais conservadora na medida em que consolida seu poder e o proletariado tem cada vez mais peso político. Iniciam-se as crises cíclicas, de superprodução relativa. O capitalismo revela-se de fato como autocontraditório, como fonte de ebulições sociais. Pela primeira vez na história humana, as crises são por excesso, neste caso, de capitais e de mercadorias. O capitalismo maduro dá as condições para o desenvolvimento do mundo das mercadorias, com o capital comercial, e do capital produtor de juros, ambos sob a dominação do capital industrial.

Era do capital financeiro No final do século XIX, a necessidade de dispor recursos para o alto investimento em máquinas e matéria-prima, em capital constante, da II revolução industrial, obrigou a fusão de capital produtor de juros e capital industrial nas formas de sociedades por ações, sociedades anônimas e controle dos bancos sobre a indústria. É a fase imperialista do capital. O capital produtor de juros, o capital bancário em destaque, passa de intermediário e subordinado a

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centralizador de grandes operações econômicas. Sua missão foi desenvolver a nova etapa da indústria e consolidar as relações mercantis por todo o mundo.

Era do capital fictício A atual era surge na década de 1970. Há aí um movimento fundamental: a taxa de lucro cai em demasiado na economia global, logo os investimentos, em muitos casos baseado em dívidas por empréstimos, deslocam-se da produção para a superestrutura financeira (Roberts M. , Produtividade, investimento e lucratividade, 2019). Ocorre um poderoso deslocamento das finanças em relação à produção real de riquezas, observável nos gráficos a seguir:

GRÁFICO 1

Fonte: (Lacerda, 2012)

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GRÁFICO 2

Fonte: (Chesnais, 2012) Marx considerou o capital fictício – ações, dívida pública, etc. – algo como espuma econômica, que se desfaz logo depois de seu surgir por ter de responder à fonte original da riqueza. Isso está correto para a sua época, pois então destacou-se o crescimento e o poder do capital industrial, da produção de valor. Ele não antecipou tal ruptura do capital fictício em relação à sua fonte, ainda que tal ruptura seja relativa, além de ainda responder à base material inescapável. O capital fictício produz, por sua vez, lucro fictício (Carcanholo & Sabadini, 2011). Toda valorização especulativa toma uma forma ao mesmo tempo real e ficcional. Nesta conceituação, inclui-se a dívida pública que não tem por função novos valores de uso (estradas, portos, etc.) e que é paga com dívidas novas (idem, ibidem). Citemos um exemplo específico: um possuidor de capital pode substituir seu dinheiro para outra moeda para lucrar com a variação do câmbio1, especulação que é facilitada pelo alto desenvolvimento das comunicações. Esta era ―contamina‖ as modalidades de capital. Grandes empresas produtivas possuem importantes braços financeiros, pois a taxa de lucro neste compensa em relação ao investimento 1

Ao leitor não iniciado: compra-se, supomos, um dólar por um real, mas há previsão de que no futuro precisaremos comprar um dólar por quatro reais; o especulador compra mil dólares quando vale um real, com mil reais, depois troca mil dólares por quatro mil reais quando um dólar valer quatro reais. Sua riqueza cresceu de modo fictício, sem menor lastro no trabalho produtivo.

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produtivo; e o grande comércio atua ainda mais como credor para escoar as mercadorias em meio a uma superprodução crônica latente. Ademais, as dívidas estatais, formas de capital fictício, porque tem de lidar com as duras crises, elevam-se a patamares nunca antes vistos. O lucro por ações em grandes empresas toma a forma de juro, de indenização do capital. No setor de serviços, as empresas de aplicativos alugam seus programas a taxistas, entregadores, etc. em troca de juros pelo uso (Prado, Subsunção financeira, 2018). Do ponto de vista da forma, o domínio financeiro na fórmula D-D‘ opera um ―salto para si‖ da terceira para a quarta era do capitalismo. Embora lhe faltasse teorizar em total, Marx intuiu: Se o sistema de crédito é o propulsor principal da superprodução e da especulação excessiva no comércio, é só porque o processo de reprodução, elástico por natureza, se distende até o limite extremo, o que sucede em virtude de grande parte do capital social ser aplicada por não proprietários dele, que empreendem de maneira bem diversa do proprietário que opera considerando receoso os limites de seu capital. Isto apenas ressalta que a valorização do capital fundada no caráter antinômico da produção capitalista só até certo ponto permite o desenvolvimento efetivo, livre, e na realidade constitui entrave à produção, limite imanente que o sistema de crédito rompe de maneira incessante. Assim, este acelera o desenvolvimento material das forças produtivas e a formação do mercado mundial, e levar até certo nível esses fatores, bases materiais da nova forma de produção, é a tarefa histórica do modo capitalista de produção. Ao mesmo tempo, o crédito acelera as erupções violentas dessa contradição, as crises, e, em consequência, os elementos dissolventes do antigo modo de produção. O sistema de crédito, pela natureza dúplice que lhe é inerente, de um lado, desenvolve a força motriz da produção capitalista, o enriquecimento pela exploração do trabalho alheio, levando a um sistema puro e gigantesco de especulação e jogo, e limita cada vez mais o número dos poucos que exploram a riqueza social; de outro, constitui a forma de passagem para novo modo de produção. É essa ambivalência que dá aos mais eminentes arautos do crédito, de Law a Isaac Péreire, o caráter híbrido e atraente de escroques e profetas. (MARX, 2008, p. 588; grifos nossos.)

Faltou-lhe perceber o caráter qualitativo, toda uma era, da teorização acima.

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No início deste capítulo, propusemos avaliação a partir das três modalidades de capital, mas nada seria a Santíssima Trindade sem Lúcifer. Enquanto capital não diretamente ligado à fonte de riqueza, a produção, o capital fictício2 infla-se de modo inédito na história do capitalismo. Na primeira era, destaca-se o crescimento do comércio; a nação que domina o setor comercial também domina a produção, como observou Marx. Na segunda era, ao contrário, o país que domina a produção também domina o comércio, ainda tal qual Marx observou; trata-se da época em que a produção como produção de valor é o que mais se desenvolve. Na terceira era, os bancos inflam-se muito, há concentração e centralização bancária, além do desenvolvimento de outros financiamentos a partir dos juros; aqui, o capital produtor de juros desenvolve-se com destaque. Na quarta era, enfim, impera o desenvolvimento do chamado capital fictício e dos serviços3. Assim, mais correto é destacar: 1. Capital comercial; 2. Capital industrial; 3. Capital produtor de juros; E, colateral: 4. Capital fictício e capital de serviços. Percebemos por meio das próprias formas de capital, como etapas necessárias do desenvolvimento sistêmico, o limite endógeno do atual sistema socioeconômico. O desenvolver da totalidade, suas partes e inter-relações, pôs o limite interno. Verifiquemos: 1.

Capital mercadoria: foco da economia capitalista, o comércio expandiu-se extensiva e

intensivamente por todo o mundo – alcançou o ápice. 2.

Capital produtivo: a produção-capacidade produtiva, com o avanço técnico –

especialmente, a automação e a robótica – e presença em todos os continentes junto a sua altíssima monopolização e oligopolização, tende à superprodução crônica – alcançou o ápice.

2

No próximo capítulo, o conceito de capital fictício será alargado, incluindo outro inchaço colateral, o do setor de serviços. 3 Mandel acerta ao afirma que esta última era, nomeada por ele “capitalismo tardio”, teria como destaque a grande inflação dos serviços; mas erra ao supor que, no setor industrial, com a queda da taxa de lucro, o autofinaciamento do capital fixo cairia, aumentando o financiamento por via financeira – isso não ocorreu, ao contrário, foi reduzido em nosso tempo. Sobre, ver: (Theodoro Guedes & Paço Cunha, 2021)

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3.

Capital dinheiro: o setor financeiro inchou-se absurdamente, com domínio sobre a

economia e impulsionando esta; o endividamento de famílias, de empresas e de estados é altíssimo; o capital fictício inflaciona, deslocada de sua base real – alcançou, também, o ápice. Nesta obra, em seus capítulos iniciais, o leitor poderá observar uma característica comum aos três elementos acima apontados: desenvolvem-se, em qualitativa medida, de maneira fictícia, ao modo de capitais fictícios, num capitalismo cada vez mais real irreal. E fundamentam em versão inversa, um mundo invertido, as bases do socialismo provável. O mundo capitalista, que constrói seu próprio fim, pode ser substituído pelo socialista, mas isso é uma possibilidade posta, de modo algum uma inevitabilidade 4. Resultado oposto, o fim da civilização ou a extinção da espécie humana também aparecem no horizonte próximo. As duas possibilidades latentes estão de acordo com a observação de Marx e Engels no Manifesto:

Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor feudal e servo, mestre de corporação e companheiro, em resumo, opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido uma guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada, uma guerra que terminou sempre ou por uma transformação revolucionária da sociedade inteira, ou pela destruição das duas classes em conflito. (MARX, ENGELS; 2005, p. 40, grifo nosso.)

Vejamos a oposição teórica que abriu este capítulo. A ideia de que o capitalismo é necessariamente superável e superado pelo socialismo foca, para provar a força de sua ideia, nos aspectos objetivos, caindo em objetivismo. A ideia oposta, de que o capitalismo ―nunca cairá de maduro‖ já que tem de ser conscientemente derrubado, prioriza a importância do aspecto subjetivo, caindo em subjetivismo. A verdade supera ambas as posições, pois o fim sistêmico é

4

O igualitarismo sempre foi de fato uma possibilidade em todas as formas de sociedade classistas. Junto ao escravismo, e até para que este surja, havia várias sociedades igualitaristas baseadas no cultivo, na pesca e na pecuária; porém os povos escravistas destruíam tais formações e escravizava seus membros, tomando suas terras, porque era a escravatura a forma social que mais desenvolvia as forças produtivas naquela época. Na consolidação do feudalismo, apareceram feudos sem senhores feudais, geridos por servos camponeses. No capitalismo, apareceram fábricas sem patrões e tentativas de sociedade igualitária quando o socialismo era mais possível do que necessário. A diferença, hoje, é que o socialismo é uma necessidade cada vez maior, e cada vez mais possível, como solução da crise desta sociedade. Se evitarmos a extinção humana ou o fim da civilização, a saída socialista será consolidada. A abundância atual, por exemplo, exige relações igualitárias como necessárias, não mais contingentes como no passado.

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certo, exigindo e dando as condições para revolução social, mas a vitória é incerta, uma possibilidade dada. Descobrir no próprio desenvolvimento das modalidades do capital em eras rumo ao seu fim soa tarefa fácil uma vez exposto o movimento56. Então por que os marxistas demoraram a perceber os limites internos de tal modo? A falta de ousadia ou dogmatismo teórico explica apenas em parte a demora; a razão principal é que o momento histórico vigente, o próprio limite do capitalismo pondo-se, permite-nos ver o evolver de longa duração do sistema. A verdade científica depende de condições sociais desenvolvidas, precisa de bases sociais maduras para surgir. Marx conheceu o capitalismo maduro e Lenin, o início do imperialismo; ambos elaboraram nas possibilidades históricas dadas. A situação dos marxistas atuais é outra, nos dizeres hegelianos: ―A suprema maturidade e o supremo estágio que alguma coisa pode alcançar são aqueles em que começa o seu declínio.‖ (HEGEL, 2018, p. 77.)

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No ótimo artigo “O estágio último do capital. A crise e a dominação do capital financeiro no mundo” (Nóvoa & Balanco, 2013), os autores intuem, como afirma o título, a natureza da fase do capital, mas não o derivam ou percebem o limite sistêmico endógeno. A boa intuição é o que propomos desenvolver até o limite nesta obra. 6 Após minha primeira versão deste texto em meu blog (Paulo, 2016), Eleutério Prado fez uma elaboração semelhante em seu próprio site, anos depois. De modo algum penso que seja caso de plágio ou mesmo inspiração não creditada; na verdade, quase tudo desta obra está tão maduro na realidade, de maneira tão gritante, já que ninguém antes se debruçou como deve sobre o real, que fica mais fácil chegar a tais conclusões, aparecendo alguns aspectos na cabeça de uns e de outros. A questão é superar os “esboços” e as teses fragmentadas, que passam longe da totalidade. A falta de gênios do tipo de Marx e Trotsky entre nós atrasou o conhecimento e o reconhecimento das ideias deste livro, escrito por alguém certamente mais modesto, mas que contou com o excesso de maturidade das circunstâncias, facilitando a observação das tendências, e com uma ousadia pessoal acima da média, como se verá, longe da castração acadêmica presente na área de humanas.

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CRISE DO SISTEMA DE VALOR ―Sonhava Aristóteles, o maior pensador da Antiguidade: se cada ferramenta, obedecendo a nossas ordens ou mesmo pressentindo-as, pudesse executar a tarefa que lhe é atribuída, do mesmo modo como os artefatos de Dédalo se moviam por si mesmos, ou como as trípodes de Hefesto se dirigiam por iniciativa própria ao trabalho sagrado; se, assim, as lançadeiras tecessem por si mesmas, nem o mestre-artesão necessitaria de ajudantes, nem o senhor necessitaria de escravos.‖ (Biese apud Marx, O capital I, 2013, pp. 480, 481) ―Devemos temer o capitalismo, não os robôs. Se, no futuro, as máquinas produzirem tudo o que precisamos, o resultado vai depender de como as coisas são distribuídas. Todos podem desfrutar de uma vida de luxuoso lazer se a riqueza produzida for compartilhada. Ou a maioria das pessoas pode acabar miseravelmente pobre se os donos das máquinas continuarem se posicionando contra a distribuição de riqueza. Até agora, a tendência parece apontar para esta segunda opção, com a tecnologia conduzindo para uma desigualdade cada vez maior.‖ Stephen Hawking.

BASE MATERIAL O marxismo rejeita, desde sua origem, o determinismo econômico. Não obstante, precisa-se de mergulhos profundos, superando a sociologia, para enxergarmos o objeto em totalidade. A técnica é, portanto, o ponto de partida7. A automação e a robótica devem despertar polêmicas vivas entre aqueles que lutam por um novo mundo; afinal, as mudanças na produção alteram todo o tecido da sociedade. Nesse sentido, nortear-nos-emos com a seguinte e reveladora citação de Moraes Neto: Sendo assim, como se coloca a natureza autocontraditória do capital quando sua base técnica possui a natureza taylorista/fordista? A resposta é: não se coloca; a forma taylorista/fordista de organizar o processo de trabalho não é contraditória

com

o

capital

enquanto

relação

social;

pelo

contrário,

o

taylorismo/fordismo chancela a forma social capitalista. Uma forma técnica lastreada no trabalho humano, que induz ao emprego de milhares de trabalhadores parciais/desqualificados, é perfeitamente assentada à forma social capitalista; o sonho da eternidade capitalista teria encontrado sua base técnica adequada.

7 “Era, assim, o homem de ciência. Mas isto não era sequer metade do homem. A ciência era para Marx uma força historicamente motora, uma força revolucionária. Por mais pura alegria que ele pudesse ter com uma nova descoberta, em qualquer ciência teórica, cuja aplicação prática talvez ainda não se pudesse encarar – sentia uma alegria totalmente diferente quando se tratava de uma descoberta que de pronto intervinha revolucionariamente na indústria, no desenvolvimento histórico em geral. Seguia, assim, em pormenor o desenvolvimento das descobertas no domínio da eletricidade e, por último, ainda as de Mere Daprez.” (Engels, Discurso Diante do Tumulo de Karl Marx, 2006)

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[…] a aplicação da microeletrônica para o caso da indústria metal-mecânica terá como consequência trazer essa indústria para o leito da automação, no qual já caminham há muito tempo ramos industriais tecnologicamente mais avançados. A concorrência intercapitalista em escala mundial e as possibilidades abertas pelo conhecimento científico estão deslocando uma fração (nada desprezível) ―smithiana/bravermaniana‖ da base técnica capitalista em direção ao leito comum da automação, ou melhor, ao leito teórico marxista.‖ (Neto, 2003, p. 61, grifos nossos)

De forma oportuna, o autor cita Karl Marx8 – no mesmo texto: Desde que o trabalho, na sua forma imediata, deixa de ser a fonte principal da riqueza, o tempo de trabalho deixa, portanto, também de ser a medida do valor de uso. O sobretrabalho das grandes massas deixou de ser a condição de desenvolvimento da riqueza geral, tal como o não-trabalho de alguns deixou de ser a condição do desenvolvimento das forças gerais do cérebro humano.‖ (Idem apud. Marx, 1978, p. 228, grifo nosso.)

Percebemos que o atual avanço técnico – automação, robótica, informática, gestão científica – merece maior atenção por parte dos marxistas de todo o mundo, pois o capitalismo, como veremos, alcançou seu limite. Marx foi o profeta. Do ponto de materialista, percebeu a tendência constante de substituição do trabalho vivo por trabalho morto ou passado, quer seja, o maquinário adquirindo, objetivando, as habilidades humanas. A robótica, que há muito deixou de ser hipótese-ficção, apresenta-se como principal imagem-síntese. Em nosso entender, essa tecnologia – por questão de simplificação, trataremos a automação e a robotização como, em essência, de mesma natureza9 – tem duplo caráter: de imediato, serve ao capitalismo, à produção de mercadorias, ao lucro; mas também é um modelo útil por excelência ao socialismo, pois liberará os trabalhadores do trabalho manual, dará tempo livre a estes para que adquiram cultura e cuidem do poder, permitirá a planificação centralizada e científica da produção e da abundância. Podemos afirmar, evidenciase, que a base técnica amadureceu para a sociedade socialista, como a fruta avermelhada que ou é colhida e degustada ou apodrecerá e cairá.

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Pode-se argumentar que trechos de O Capital contradizem a citação acima, de um manuscrito anterior à obra final de Marx, o Grundrisse. Ora, a questão aqui não é confrontar uma citação com outra citação, ao modo acadêmico, mas uma citação com a realidade… Eis o acerto de Marx ao “pesar a mão” nos esboços preparatórios de sua grande produção. 9 A chamada quarta revolução industrial tem a mesma natureza qualitativa, põe fim à produção de valor, sendo considerada parte da terceira nesta obra.

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O capital é incapaz de generalizar a III revolução industrial. A substituição de trabalhadores por máquinas produz contratendências: 1) barateia a força de trabalho; 2) pressiona para o aumento da jornada de labor; 3) dão-se melhores condições para a patronal impor aumento da intensidade do trabalho; Nos três casos, o ―desemprego tecnológico‖ produz a pressão social que permite tais medidas. Assim, em movimento, pretendemos resolver – junto também ao fator 4 adiante – a polêmica sobre se há crise do valor, redução de sua massa e de mais-valor, ou seu maior império. Ademais, o leitor que conhece bem a dialética entre mais-valor relativo e absoluto reconhece tais observações. O destaque sobre pressão de tendência e contratendência será tema, também, de observações posteriores. 4) abaixa o preço dos produtos consumidos pelos trabalhadores; Em resumo, as alterações no preço e no valor da força de trabalho, no trabalhador e no ato de trabalho fazem com que compense manter o trabalho manual, adiando sua substituição por máquinas automáticas e robôs. 5) reduz o valor das máquinas baseadas no trabalho manual; Mais do que ―desmoralizar‖ as máquinas baseadas em técnica inferior, empresas automatizadas também podem produzir maquinário por onde as mãos humanas ainda cumprem função direta. 6) Barateia a matéria-prima de empresas baseadas na produção de valor. Esse barateamento produz um efeito anticrise cíclica nas empresas, atuando para que se mantenham através do barateamento das mercadorias por redução dos custos e aumentando o potencial de vendas. Em sistemas orgânicos, a menor distância entre um ponto e outro é uma curva: sob relações capitalistas, a automação impede a automação. Dito de forma pura, observa-se uma demonstração de como o presente é a unidade dialética do passado e do futuro. Na dinâmica de tendência e contratendência, há a contradição entre a necessidade de desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção vigentes. Cabe ao socialismo desenvolver de modo organizado a técnica nos mais variados setores: a ampliação do uso da maquinaria automatizada gerará, sob novas relações, mais tempo livre ao trabalhador e realocamento organizado da força de trabalho, isto é, pelo emprego constante com escala móvel de jornada de trabalho. A relação de tendência e contratendência apontada acima pode ser observada pelo declínio do crescimento da produtividade em escala internacional:

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GRÁFICO 3

Fonte: (Extended Penn World Tables apud Cockshott, 2020) Tratamos de modo ainda um tanto puro, no universal, a relação acima. Desçamos um pouco mais ao concreto, ao particular. Porque têm baixo desemprego, ou seja, custo unitário da força de trabalho maior, alguns países – Coreia do Sul, Alemanha, Japão, etc. – adotam como vanguarda a produção automatizada. Porque a produção automatizada é mais desenvolvida em alguns países, tais nações vencem a concorrência mundial, atraindo valor para si: ganham dinâmica econômica que produz conjunturalmente baixo desemprego, motor para ainda mais automação; o processo, então, realimenta-se; processo este posteriormente limitado pelo monopólio, pela superprodução crônica latente, pela transferência de empresas para outras nações, pela imigração (causado, em boa parte, pela miséria nos países em desvantagem) e pelo retorno do desemprego (em certos casos e circunstâncias, também pelo efeito do câmbio). Já países em desvantagem tecnológica, que produzem produtos de menor valor agregado, que perdem na concorrência internacional, amargam piores condições de trabalho e maior desemprego, o que dá fôlego à produção baseada no trabalho manual. Isso é ainda mais verdade hoje porque a tecnologia deu um salto desde a década de 1970, exigindo muito para dominar a produção de certas mercadorias (chamam fábricas modernas de ―universidades produtivas‖); antes, o país atrasado poderia simplesmente copiar, com algum atraso, a tecnologia e a mercadoria do país avançado, algo difícil atualmente. Façamos, agora, um duplo mergulho na concretude, no singular. Há fábricas de todo automatizadas que, para reduzir os custos, operam com as luzes desligadas, pois é desnecessário a presença de trabalhadores auxiliares ao menos vigiando o maquinário fabril. Tal exemplo é uma

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boa imagem da tendência produtiva, mas há ainda outros casos, onde se revela a contradendência dentro do espaço fabril. Uma empresa pode automatizar apenas o setor onde antes o trabalho era feito por operários especializados, que podem impor ritmo mais lento ao conjunto da produção e salário mais altos – até serem demitidos e substituídos por capital fixo; porém os demais setores do processo produtivo interno, com salários mais baixos por baixa especialização, continuam com seu trabalho manual, desta vez, no entanto, com um ritmo ainda mais intenso de labor por razão da aceleração da atividade causada quando o novo maquinário foi posto em funcionamento10. Observa-se aí a relação tendencial e contratendencial – pois a lei é tendencial, relativa – ao fim da produção de valor. A observação da tendência a suprimir o trabalho manual na produção e ao lado do avanço técnico também em demais setores (serviços, comércio, etc.) é evitada por boa parte dos marxistas, pois veem aí uma equação irresolvida sobre o papel do proletariado na sociedade. Ora, se o desenvolvimento técnico incompleto causa tensão social sob o capitalismo, a classe operária continua tendo função revolucionária. A questão em Marx aparece de modo incomum aos marxistas. Ele observou, com uso de estatísticas, o aumento da classe dos serviçais e redução da classe operária. Vejamos afirmação em sua obra central: Todos os representantes responsáveis da economia política admitem que a primeira introdução da maquinaria age como uma peste sobre os trabalhadores dos artesanatos e manufaturas tradicionais, com os quais ela inicialmente concorre. Quase todos deploram a escravidão do operário fabril. E qual é o grande trunfo que todos eles põem à mesa? Que a maquinaria, depois dos horrores de seu período de introdução e

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“(...) foram introduzidos sete robôs de solda a ponto distribuídos nas áreas de produção dos subconjuntos. Embora a gerência tenha justificado a introdução dos robôs pela sua superioridade de soldagem em operações que exigem uma precisão difícil de obter pelo trabalho manual, ficou-nos a impressão de que sua função principal é marcar o ritmo de trabalho, como veremos adiante. (...) apesar de ocorrerem eventuais atrasos, porque a circulação depende do acionamento manual de todos os botões, basicamente o ritmo de trabalho e de movimentação das máquinas de transferência segue o ritmo dos robôs. (...) A redução dos postos de trabalho de soldagem de conjuntos pequenos e a eliminação do trabalho manual nas operações mais difíceis facilitaram a predeterminação dos tempos de trabalho com maior realismo (...) a adoção da nova tecnologia abriu a oportunidade — aproveitada pelas empresas — de introduzir certos mecanismos na organização da produção que aumentaram significativamente o controle técnico sobre o conteúdo, o ritmo e a intensidade do trabalho, em detrimento da capacidade dos trabalhadores de produção de influir sobre o que acontece na fábrica. (...) Efetivamente, a nova organização do trabalho permite às empresas auferir economias de mão de obra não apenas relativas à substituição direta de homens por soldadores automáticos e equipamentos de circulação, mas também relativas ao melhoramento, em múltiplas formas, do aproveitamento do tempo de trabalho (...) dada a ritmação imposta pelas máquinas, e trabalha-se mais intensamente.” (Carvalho apud Lessa, Fetichismo da técnica, 2020)

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desenvolvimento, termina por aumentar o número dos escravos do trabalho, ao invés de diminuí-lo! Sim, a economia política se regozija com o abjeto teorema, abjeto para qualquer ―filantropo‖ que acredite na eterna necessidade natural do modo de produção capitalista, de que mesmo a fábrica fundada na produção mecanizada, depois de certo período de crescimento, depois de um maior ou menor ―período de transição‖, esfola mais trabalhadores do que ela inicialmente pôs na rua! Certamente, alguns casos já demonstravam – como, por exemplo, o das fábricas inglesas de estame e de seda – que, quando a expansão extraordinária de ramos fabris alcança certo grau de desenvolvimento, tal processo pode estar acompanhado não só de uma redução relativa do número de trabalhadores ocupados, como de uma redução em termos absolutos. (Marx, O capital I, 2013, pp. 519, 520; grifos nossos.)

Retomaremos o assunto em capítulo específico. Aqui, interessa destacar sobre que as considerações ao tema feitas superam uma oposição dentro do marxismo: de um lado, teóricos descobrem a crise da produção de valor, mas a absolutizam – ignoram o caráter tendencial da crise do valor11; de outro, marxistas práticos evitam o tema porque defendem a classe operária e seus métodos (greves, ocupações, piquete, etc.) como os caminhos para o socialismo. Superar as concepções opostas exige perceber o caráter transicional da realidade. Cumpre destacar, enfim, os dois estímulos à renovação técnica no capitalismo: 1) a concorrência – logo, a existência de monopólios e oligopólios modernos retarda o desenvolvimento técnico da produção, como mostrado na imagem anterior, adia relativamente o fim do trabalho manual, produtor de valor, nas empresas; 2) a luta de classes. A segunda é menos realçada, por isso merece mais atenção 12. A luta dos operários por menor jornada de trabalho, maiores salários e mais direitos estimula a adoção de melhor maquinário capaz de aumentar a produtividade e diminuir o número de funcionários. A luta de todos contra todos enquanto luta por parcela do valor demonstra a luta das classes – incluso intraclassista, entre burgueses – como motor da história. Isso significa, também, que a introdução de máquinas automáticas desestimula a própria automação porque o desemprego quebra as greves por um período mais ou menos longo, ou seja, uma contratendência derivada da tendência. Surge-nos, então, a pergunta: como o desenvolvimento técnico e científico será estimulado no socialismo? Vejamos por meio da história da humanidade, de negações de negações, em espiral: Primitivismo: É do interesse do produtor o desenvolvimento da técnica.

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Em parte, o impressionismo ocorre por absolutizar o papel da concorrência. Aqui, como na essência deste capítulo, nada mais fazemos além de resgatar Marx.

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Escravismo: Não é do interesse produtor o desenvolvimento da técnica – o militarismo cumpre tal papel. O escravo fazia o possível para atrapalhar a produção, em principal quebrando as ferramentas de trabalho, o que fazia exigir aparelhos pesados e robustos para maior resistência material. Feudalismo: É do interesse do produtor o desenvolvimento da técnica. A contradição de classe do escravismo é resolvida no feudalismo ao oferecer ao produtor domínio de ferramentas e direito a cultivar para si parte das terras feudais. Capitalismo: não é do interesse do produtor o desenvolvimento da técnica. A primeira reação dos trabalhadores contra as máquinas é o ludismo, que tinha por norte quebrar as novas ferramentas, mas logo se revelou um movimento limitado, contra o desenvolvimento histórico. A entrada do maquinário cada vez mais avançado demite operários, reduz salários, atua para aumento da jornada, etc. Socialismo: É do interesse do produtor o desenvolvimento da técnica. O socialismo estimulará o avanço tecnológico porque 1) será do interesse daqueles que vivem do trabalho ter sua jornada de labor tanto reduzida quanto mais fácil; 2) a ciência será mais autônoma em seu desenvolvimento; 3) a humanidade tornar-se-á cada vez mais erudita, superando a atual e reduzida casta detentora do saber; 4) como consumidores, os trabalhadores quererão produtos novos e melhores. O VALOR Os teóricos da crítica do valor, Kurz e Postone em destaque, recuperam a categoria valor como substância social. O caráter qualitativo e histórico desta categoria real foi negligenciado por boa parte dos marxistas por muito tempo. Porém seu significado é resgatado exato quando a massa de valor global produzido tende a cair com a automação, com a redução do número de operários nas empresas e a dificuldade do capitalismo em produzir inéditos tipos de mercadorias baseadas no trabalho manual (Kurz, A crise do valor de troca, 2018). Por causa das contratendências à implementação da produção automatizada, por breves momentos históricos a massa total de valor e de mais-valor pode mesmo crescer, mas a tendência impõe-se e ela mais importa para a análise científica e militante. Desenvolvem-se também meios ―parasitários‖ de absorção de valor que são debatidos ao longo desta obra. Há contradição entre valor e capital que ganha intensidade na medida em que aquele se transforma neste. O evolver do capitalismo enfim destrói sua própria base, a produção como produção de valor e mais-valor. Apenas assim, destruindo a categoria central do sistema, o socialismo pode ser possível e necessário.

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Inúmeros marxistas confundiram valor e (valor de troca) preço. Aqui, com necessária dose de dialética, deixamos claro que valor não é preço, embora o seja. O preço, ideal, é a forma inexata de manifestação do valor, material. A INFORMÁTICA E O SOCIALISMO A planificação das sociedades antes em transição ao socialismo, na política keynesiana do pós-II Guerra e dentro das grandes empresas obteve enormes resultados (veja-se a superioridade da URSS na corrida espacial). Mas ainda havia os limites do desenvolvimento técnico. É apenas com a computação moderna que o amplo planejamento social pode ser feito no curto tempo exigido. Os computadores quânticos serão a grande prova empírica da possibilidade do planejamento pleno, já permitido pelos atuais supercomputadores. Um caso singular ajuda-nos a observar a tendência no socialismo. Apesar dos limites tecnológicos na década de 1970 e da tentativa de Allende de limitar a revolução em curso nos limites do Estado burguês, o governo frente populista chileno pôs em prática o projeto Cybersyn, um comando central de computação que coordenava dados vindos de diferentes empresas, onde eram instalados maquinários de teletipo, e organizava em tempo real os dados da produção por meio de grandes telas e uma pequena equipe em uma sala de trabalho de estética futurista. Se a revolução tivesse vencido, seria exemplo mundial de planejamento avançado, ainda que houvessem duros limites tecnológicos naquela época. Hoje tal tipo de projeto é ainda mais viável com a universalização da internet, do computador e da capacidade de concentrar dados. A Big Data, o 5G, o 6G e a inteligência artificial podem ter, se vencermos, vitais fins socialistas. A polêmica sobre se é ou não possível planejar a economia foi resolvida pela prática, isto é, pelo avanço da ciência e da técnica, não por grandes jogos argumentativos entre teóricos. O capitalismo produz dentro de si as condições do socialismo. Somente se a tecnologia sob o capital der condições materiais para o funcionamento de outra sociedade o socialismo poderá surgir. Neste sentido, vale observar uma das máximas de Marx: um problema surge já produzindo as condições de sua solução. Tal resolução do problema do planejamento apenas surgiu na história recente (Cockshott & Cottrell, 2019), o que demonstra a prematuridade das revoluções sociais do século XX, tema de outro dos capítulos deste livro. A informática oferece também as formas complementares e consolidadoras da democracia socialista. O controle sobre os dirigentes mais gerais poderá ser feito por votações pela internet, por aplicativos. Correntes políticas minoritárias terão acesso mais fácil a públicos amplos, apresentando suas propostas e críticas por meio de sites, canais de vídeo, etc. Os debates nacionais serão, por tal ferramenta, de fato nacionalizados. Graças ao avanço tecnológico, dados essenciais chegarão com mais facilidade ao público. A forma democrática da próxima

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sociabilidade, se vencermos, tem sua viabilidade posta enfim pelo desenvolvimento técnicocientífico recente. O planejamento pleno também é permitido, de modo íntimo, pela plena cientifização da produção (automação, robótica, etc.), que oferece regularidade produtiva, grande oferta de produtos e controle contábil. O trabalho, diferente do que pensam Paul Cockshott e Allin Cottrell, desde observação de Mises, deixa de ser a unidade de valor. A MERCADORIA A) Mudanças na forma material da mercadoria. A dialética forma-matéria é muitas vezes desconsiderada no meio marxista. Buscando superar a ausência, observamos tais tendências à matéria da forma mercadoria: 1) Redução da extensão; 2) Redução da materialidade13; A perda relativa de extensão e materialidade, como precisar de menos componentes, permite redução dos custos de produção. A história dos computadores é um exemplo. Tais tendências colaboram para o aumento da superprodução no setor de matérias-primas e, ao agilizar a produção, nos produtos para consumo final. Marx observa em O Capital I que o aperfeiçoamento das máquinas leva à redução de sua materialidade, por isso incluímos também o valor de uso da mercadoria maquinário. 3) Fusão (ou aglutinação) de valores de uso; A consequência mais determinante desta é que, quando o automatismo está fora de questão, um mesmo trabalho constrói valores de uso múltiplos, estimulando a redução da massa total de valor. Pensemos quantos aplicativos de celulares substituem objetos antes produzidos por diferentes fábricas, por trabalho manual. Podemos exemplificar também por meio de falhas. Microsoft e Sony fazem uma guerra planetária por vendas e por quem primeiro implementa novos valores de uso em seus aparelhos. A corporação mais ousada nos lançamentos tem experimentado, no entanto, rejeição do público. E nesse ziguezague medeiam: A divisão do Xbox na Microsoft passou por um turbilhão de emoções no último ano, com o anúncio do Xbox One, toda a rejeição às políticas de sempre-online e o foco em 13

“Esse processo progressivo de domínio do valor sobre o valor-de-uso, no interior da unidade contraditória chamada mercadoria, constitui o que chamamos “desmaterialização progressista da riqueza capitalista”. Isso, por uma razão muito simples. O valor-de-uso é o conteúdo material das mercadorias e fica determinado pelas características (conteúdo e forma) materiais de cada uma delas. O valor é sua dimensão social. O domínio deste sobre aquele implica a desmaterialização do conceito riqueza capitalista, desmaterialização da mercadoria.” (Carcanholo R. , 2002)

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recursos multimídia, como TV. A empresa, por meio do novo chefe da área, Phil Spencer, reconhece que errou bastante em algumas decisões tomadas. Spencer não fala explicitamente no vídeo, mas já deixou claro em outras entrevistas, como novo chefe da área, dará foco a jogos. Esta deve ser a mídia mais importante do Xbox One, mesmo com todas as outras alternativas de TV, e etc. Este foi um ponto que os rivais aproveitaram para tripudiar sobre o console da Microsoft, dizendo que ele ―só tinha TV, mas não tinha jogos‖. A Sony deixou clara em seu anúncio que o PS4 foi feito pensando em jogos. ( (Santino, 2014)

A Sony havia cometido semelhante erro de tentativa com o console anterior, o PS3. Tudo indica retorno futuro ao objetivo. Uma vez por fim concluída a meta, destruirá capitais destinados à produção dos mesmos valores de uso de modo autônomo, concentrando valor, e permitirá um salto de qualidade sobre a concorrência. As três tendências apontadas são mais comuns, por evidente, naqueles produtos de alta tecnologia. Aqui nosso foco é a relação das alterações materiais com o sistema de valor, mas é claro, por exemplo, que comumente a perda de tamanho e materialidade aparece como pressuposto da aglutinação dos valores de isso, assim como o próximo ponto. 4) Separação do valor de uso da matéria. Simples produtos naturais passam por tal processo. Para reduzir custos de produção e aumentar escala, a fruta transformável em suco pode ser substituída por um pó químico capaz de simular sabor e cheiro do produto original. Sobre a tendência, vejamos o trecho de uma matéria: Análises feitas desde 2008 pelo Centro de Energia Nuclear na Agricultura, da Universidade de São Paulo (USP), mostram que o uso do milho é de, em média, 45%, bem próximo do limite máximo estipulado pela legislação de, 50%. — Sempre detectamos milho nas análises. Isso porque o milho chega a ser 30% mais barato do que a cevada. O problema é que o rótulo não é mais claro, e a legislação permite — diz o coordenador da pesquisa, professor Luiz Antônio Martinelli. (Figueiredo, 2014)

Sobre, a poderosa Ambev revela-se risível: Por incluir cereais não maltados – como milho e arroz – nas cervejas, a Ambev defendeu a prática e disse que ela é positiva para o mercado cervejeiro. A fabricante é dona de marcas como Skol, Brahma e Antarctica. "O mundo seria muito chato se todas as cervejas fossem iguais", disse o diretor-geral da empresa […] referindo-se às cervejas que levam apenas água, lúpulo e malte em sua

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composição. "Quem é contra arroz, milho e outras misturas na cerveja é contra a diversidade", declarou. (Ferreira, 2016)

Em O Capital, K. Marx trata da falsificação dos pães, e conclui (Livro III): falsificar é inadmissível para o capitalismo, embora as constantes tentações empresariais. Em sua época, com imensa dificuldade perceberia a substituição da matéria no valor de uso, formando algo fictício, como opção normal do próprio sistema. ―Eu sei que este filé não existe, eu sei que o que eu ponho na minha boca, Matrix diz ao meu cérebro que é… suculento e delicioso.‖ (Martrix, Wachowskis, 1999, referência ao livro e ao filme 1984, George Orwell.) Em alguns casos, a separação do valor de uso da matéria enfrenta a produção como produção de valor ao permitir acesso gratuito a produtos via internet. 5) Ganho estético do valor de uso. Com a superprodução absoluta latente, surge a necessidade de dar ares artísticos e sedutores à mercadoria para que saia com mais facilidade das prateleiras. As mercadorias disputam a atenção dos consumidores. O design de produtos é a profissão típica, pois pensa a estética e como, sempre que possível, reduzir custos com a matéria embora seja em si um acréscimo de custo improdutivo. Na produção também ocorre o ganho estético, pois as fábricas sujas e sombrias são cada vez mais algo do passado como tática de disfarce da condição classista. Ademais, grandes empresas investem em espaços de lazer, bibliotecas, etc. ao redor do espaço fabril. 6) Alteração da resistência dos valores de uso. Tendência percebida por Mészàros (2011), faz-se necessário diminuir a qualidade das mercadorias em nome da quantidade – a obsolescência programada para enfrentar a superprodução. A rotação do capital pode manter-se com a alteração do produto, o excesso de mercadorias é assim administrado. Segundo aspecto, aumentou-se a resistência de mercadorias para que se tornassem parte da produção em larga escala. O leite em pó serve de exemplo, pois permitiu a acumulação de capital e grande produtividade. Os dois movimentos, opostos, ganho e perda de perecibilidade, atuam nos limites da produção sob o capital, isto é, tratam de uma superprodução crônica latente. 7) A taxa de utilização decrescente do valor de uso Mészàros descobriu (Mészáros, Para além do capital, 2011) tal contradição entre valor de uso e valor, que tem inúmeras manifestações, entre elas: menor uso da força de trabalho, substituição acelerada das máquinas antes de esgotar seus usos, fragilização dos valores de uso, etc. O exemplo mais escandaloso é quando os alimentos produzidos em ―excesso‖, do ponto de vista

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do valor, em grande parte são simplesmente destruídos, na cifra das toneladas, antes de ir ao mercado para forçar os preços a caírem o mínimo possível. B) Desenvolvimento do capital comercial O estudo da integração dos capitais foca, em geral, na fusão entre o capital industrial e financeiro, sob liderança deste último. Destaquemos, então, o processo desde o comércio: 1.

Setores produtivos desenvolvem franquias para a venda de mercadorias suas;

2.

Setores comerciais passam a produzir (exemplo: uma rede de supermercado lançar um

produto próprio); 3.

O comércio desenvolve, por própria conta e junto aos bancos, seus cartões de crédito;

4.

Grandes redes comerciais passam a operar com capital aberto;

5.

Elevam-se a proporção e a massa de mercadorias movimentadas por crédito comercial,

compra-venda por meio de pagamento antes do consumidor final do valor de uso; 6.

Pode ocorrer movimentos simultâneos: uma empresa abrir produção e sua rede de franquia

juntos (uma fábrica de açaí com sua marca de franquias, etc.). O desenvolvimento do capital também ocorre no setor comercial, com a acumulação, concentração e centralização; ademais, ocorre, como demonstramos, fusões com outras formas de capital. A formação de grandes redes de lojas, super e hipermercados, de atacado e de varejo, por todos os ambientes de concentração humana, interconectados via internet e sistema financeiro, oferece a primeira forma social geral dos meios de armazenamento e distribuição dos valores de uso no início da transição ao socialismo, durante o processo geral de deflação, isto é, durante a economia planejada e o aumento da produtividade. Sobre o modo de distribuição, observamos as bases primeiras da próxima sociedade por meio do alto evolver deste. A consolidação da grande propriedade privada no comércio, ainda que persista o pequeno comerciante contra sua decadência, é condição sine qua non para a superação das relações monetárias uma vez estatizadas as grandes redes logísticas e distributivas pelo Estado socialista. C) A produção sob demanda A produção sob demanda é uma tendência que se reforça cada vez mais sob o capitalismo. É necessário destacar que tal processo será útil por excelência ao socialismo e ao fim da formapreço, ao fim do mercado. A transição ao socialismo tem por tarefa encerrar o segredo comercial como condição para unir empresas, até então concorrentes, em um plano produtivo central.

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A HISTORICIDADE DO VALOR DE USO Em geral, os marxistas consideram o valor algo histórico e o valor de uso, a-histórico. Tal concepção está equivocada. A começar, o valor existe a milênios, tendo sido objeto de estudo por Aristóteles, mas apenas no capitalismo tornou-se valor que se autovaloriza, ou seja, consolida-se como capital. Feita a consideração, vejamos agora o polo oposto. O valor de uso é fruto do desenvolvimento histórico. A vitrola só poderia ser resultado do capitalismo, não do feudalismo, ademais, na outra ponta, de ser imprópria para a etapa tecnológica recente. No decorrer do desenvolvimento da humanidade, fomos alterando os valores de uso, além de criar novos; por mudanças na sua genética, o milho já não é o mesmo desde a pré-história, pois o modificamos sempre que pudemos. A roupa muda de tipo de tecido com a época. E as ferramentas são para o modo de produção correspondente. A maquinaria da I e II revoluções industriais, que disciplinam o trabalho manual, pertencem ao momento histórico do capital, por mais que se tentasse fazer uso socialista deles. Os gregos e os romanos poderiam ter desenvolvido técnicas mais avançadas, mas, descobrem os historiadores, não faziam uso porque era desnecessário para aquele modo de vida (que se importava mais com a qualidade das mercadorias dos artesões do que com a quantidade). O socialismo concluirá algumas tendências do capitalismo em seu fim como a fusão de valores de uso e a desmaterialização. Descartará outras porque, por exemplo, no lugar de fragilizar o material, cuidará da qualidade dos produtos, que já não serão mais mercadorias ao colocar o valor no passado. O valor de uso e suas possibilidades modernas pedem por relações socialistas. O nylon é altamente resistente, mas a engenharia foi usada para fins destrutivos, para fragilizar aquela matéria e, assim, permitir nova compra, nova substituição. A internet e a automação avisam que uma nova época pode surgir. Ao libertar a ciência e a técnica da mão de ferro do lucro, o socialismo fará tipos novos de valores de uso e materiais, próprios de usa época, e renovará os ora existentes de acordo com as novas necessidades sociais. Tanto o valor quanto o valor de uso estão impregnados de história. Posta assim, a observação deste subcapítulo é óbvia, porém faz-se necessário dizer o evidente todas as vezes que a intelectualidade perde-se nos debates. CAPITAL FICTÍCIO A produção automatizada absorve para si parte da massa de valor global na venda de suas mercadorias sem oferecer mais-valor; ou seja, ao renovar a maquinaria, a mercadoria tem em si o custo de produção mais mais-valor extra, extraído de outras empresas que ainda produzem a forma valor. É, assim, capital produtivo fictício. É improdutivo porque improdutivo de valor

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(Kurz, O colapso da modernização, 1992). Seu preço acima do custo de produção deixa de ter ligação direta com trabalho não pago. Temos a primeira conclusão socialista: a produção poderá ser produção apenas de valores de uso graças ao avanço técnico iniciado por dentro do capitalismo. Aqui, o teórico Kurz demonstrou como as bases do socialismo estão por se realizar dentro do capitalismo. Outro setor a operar de modo ao mesmo tempo real e fictício são os serviços. São, por exemplo, empreendimentos empresariais que dão lucro, logo concorrem de modo direto pela massa de valor total da sociedade, mas a atividade aí apenas disputa, sem contribuir, parcelas do valor produzido nas fábricas (minas, etc.) baseadas no trabalho manual. Quando afirmamos no capítulo anterior que estamos diante da inflação do capital fictício, apresentamos apenas parte das conclusões, pois a hiperinflação dos serviços, graças à alta urbanização em grande parte, também faz parte testa era. Aprofundemos, pois é assunto até aqui tratado de modo impreciso. No capítulo 5 d‘O Capital, quando Marx coloca o trabalho por categoria necessária do homem, descreve a diferença da melhor abelha versus o pior arquiteto, pois este faz prévia ideação – e, destacamos, fica fora da transformação prática da matéria, do trabalho manual. O trabalho intelectual será a forma de trabalho dominante na produção socialista. Esta forma de labor transcenderá a si para fora da produção material, do trabalho, e vai-se até as formas sociais puras (Lukács): gestão do Estado, educação, saúde, etc. – o setor de serviços. É o homem tornando-se cada vez mais social, superando sua pré-história. Sob o capitalismo em sua última era, a elevação do setor de serviços, improdutivo de valor, portanto capital fictício quando para fins lucrativos, expressa de modo invertido e latente a tendência mais universal. O setor de serviços, que em parte também passa por avanços tecnológicos modernos, tem visível crescimento em todo o mundo. À medida que cai a taxa de lucro, o capitalista sente necessidade de expandir as fontes de dinheiro; tanto quanto pode, os serviços são desenvolvidos em grandes empresas. O socialismo tratará, por sua vez, de por várias das funções em extinção com o fim de suas necessidades e porá outras à disposição do bem-estar humano, não do lucro. As tradições luckasiana e a crítica do valor merecem acompanhamento atento, pois ofereceram importantes aportes. Mas caíram em oposições. Aquela volta à centralidade do trabalho e resgata seus tipos; porém confunde a categoria com trabalho manual, limitando o conceito a este modo de trabalhar. Esta percebe o peso da automação, resgata outros aspectos de O Capital, põe a crise da produção de valor em debate; porém negligencia a história e reduz seu trato

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ao capital, considera a categoria trabalho por apenas ligada à produção de valor e também apenas manual. A oposição é forte porque se apoiam em profundos aspectos da realidade. A síntese é feita na própria tendência, do passado ao futuro. N‘O capital I, p. 256, Marx (2013) trata do meio de trabalho como coisa ou complexo de coisas que o trabalhador interpõe entre si e o objeto de trabalho. Em seguida, complementa em nota de rodapé onde usa para argumento a Hegel (sic!), citação sobre a razão pôr objetos para intervir sobre outros objetos14. O socialismo é o alto desenvolvimento dessa dinâmica: ainda que se use o chamado trabalho manual de modo auxiliar, o trabalho intelectual dominará de todo o processo produtivo no ato de transformação. O trabalho continuará, desse modo, condição universal do intercâmbio do homem com a natureza. O avanço social é, portanto, em última instância, o avanço das mediações produtivas, dos meios de trabalho. O trabalho intelectual usa as mãos para, exemplo, arquitetura ou design industrial; o trabalho manual é obrigado, por sua vez, a usar o cérebro para evitar erros. A diferença nunca é o uso material de partes do corpo; a importância de cada membro corpóreo na produção é o determinante da diferença. O desenvolvimento do maquinário é, pois, a busca pelo uso mínimo do cérebro do trabalhador braçal, por meio de indução a movimentos repetitivos, e desenvolve-se na supressão do trabalhado direto sobre a matéria. Porque o tema é polêmico, incluiremos mais uma observação. O trabalho do homem primitivo era um só corpo e um só espírito, ou seja, havia máxima unidade do intelectual e do manual; era pensado antes, teleologia, o que seria feito depois, prática. Com a início das sociedade de classes, especialmente com o escravismo, o trabalho se aliena, divide-se em manual e intelectual, em oposição quase completa. Alguns dedicam-se ao trabalho manual e outros, ao trabalho intelectual. Algo semelhante acontece com o capitalismo: o trabalho manual-intelectual do artesão no fim da Idade Média sofre uma alienação, uma separação, que, pela transição da manufatura, chega à grande indústria com a subordinação do trabalho à máquina, o trabalho manual repetitivo e o trabalho intelectual para as camadas superiores da empresa. O trabalho 14

A citação de Hegel é esta: “A razão é tão astuciosa quanto poderosa. Sua astúcia consiste principalmente em sua atividade mediadora, que, fazendo que os objetos ajam e reajam uns sobre os outros de acordo com sua própria natureza, realiza seu propósito sem intervir diretamente no processo.” (Hegel apud Marx, O capital I, 2013, pp. 256, 257, griffo meu). Tal citação encontra-se na Enciclopéria. Tratando do mesmo tema em A Ciência da Lógica, diz Hegel: “Mas assim ela coloca para fora um objeto como meio, deixa-o trabalhar exteriormente em seu lugar, abandona-o ao desgaste e conserva-se atrés dele frente à violência mecânica.” (Hegel F. , 2018, p. 227) Se a divisão do trabalho trás consigo um princípio, segundo Marx, platonista; hoje, ao surgir a base socialista, que amadurece dentro do capitalismo, obtemos uma realização histórica materialista, porém hegeliana; hegeliana, porém materialista!

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manual nunca será totalmente superado, mas será enormemente reduzido no futuro – se o socialismo vencer.

SUPERPRODUÇÃO ABSOLUTA LATENTE Uma das tantas oposições do marxismo está entre a defesa da importância dos ciclos econômicos decenais – de crescimento, estagnação, crise, recuperação – ou uma crise permanente, estrutural, depressed continuum, estagnação secular. Resolvamos o dilema. É evidente que o desenvolvimento atual das forças de produção é capaz de satisfazer todas as necessidades básicas da humanidade e ainda fazer sobrar recursos sociais para novos investimentos. Mas esta superprodução absoluta é latente, revela-se nas crises cíclicas cada vez mais intensas, em forma de superprodução relativa, crises cíclicas cada vez mais duras. Para agradar paladares eruditos, reforçamos o parágrafo anterior. Mészàros afirma que o tempo das crises cíclicas passou, substituído pelo tempo da crise estrutural, permanente; ele deixa de observar, assim, que a superprodução de capitais e mercadorias geram contratendências internas, como o barateamento das matérias-primas e da força de trabalho, a redução da quantidade de concorrentes, etc. Ele parte da ideia de que o capital move-se de onde tem mais concorrência até os setores onde há menos concorrência, ou seja, de onde os preços estão muito baixos até onde os preços estão mais altos – e ocorre que todos os setores estão hoje com excesso de capital, numa crise total, não mais particular a um ramo da indústria. Essa crise estrutural tem, em verdade, automediações; uma observação empírica das mais simples e reconhecida por todos vê uma tendência a crises cada vez mais duras entremeadas por algum crescimento, não uma depressão contínua. O erro oposto é considerar que há apenas as crises cíclicas, extremos de depressão e a de euforia do crescimento. Se assim fosse, o capitalismo seria uma eterna repetição igual e os reformistas teriam toda razão de pedir aos trabalhadores a máxima paciência já que a turbulência logo irá passar… Mas o que encontramos é produtividade crescente, contradição entre produção e circulação aumentada, incompatibilidade entre forças produtivas e relações de produção, etc. Isso ficará ainda mais claro no capítulo sobre os macrociclos do capital, quando será exposta a base das crises cada vez mais duras de nossa época. A defesa pura das crises cíclicas deixa de considerar a realidade em desenvolvimento, que produz crises cíclicas tendencialmente cada vez mais intensas. Resolvida a oposição teórica, avancemos.

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É destacável a observação dos teóricos da crítica do valor, um tanto instintivo para o pensamento comum: a III revolução industrial, de um lado, aumenta a quantidade de mercadorias (na automação, a capacidade produtiva superar os limites humanos do trabalho) e, de outro, diminui a quantidade de assalariados ativos, reduz a capacidade de consumo. A superprodução crônica de capitais e de mercadorias permite a economia planejada. No socialismo, a capacidade produtiva será acima do consumo comum e proverá estoques de produtos e matéria-prima; isso permitirá reagir de modo organizado a aumentos repentinos da demanda social. A existência de empresas zumbis que bancos e o Estado impedem a falência, a estatização de empresas como a GM nos EUA como reação à crise de 2008 (nomeado de modo irônico préprivatização), o impedimento de que as grandes empresas desapareçam, a compra estatal de ativos podres durante as crises, a importância estatal do investimento em tecnologia (que exige hoje grandes cifras, tempo e complexidade) e na formação de demanda, o socorro governamental na cifra dos trilhões de dólares durante a crise mundial, as empresas que são grandes demais para falirem, o desenvolvimento de monopólios naturais com o evolver do capital (veja-se que até empresas como a Amazon apenas podem existir como grandes monopólios) etc. são sintomas de que a grande propriedade privada está madura para outro tipo de propriedade, a social. A guerra da concorrência deixa de ser uma lei social de vigor, pois o fim de grandes monopólios e oligopólios geraria crise econômica e política dadas a acumulação, a concentração e a centralização de capitais, dado o grande capital adiantado necessário nesses investimentos 15. A estatização das empresas mais vitais por meio de um Estado operário, com democracia socialista e planejamento econômico, poderá reorganizar o tecido produtivo sem causar danos típicos das crises. A luta concorrencial desenvolveu, entre os vencedores, seu oposto, monopólios e oligopólios. Ademais, a escala de produção de certos produtos, a grande rede produtiva necessária e a taxa baixa de lucro exigem a formação de poderosas empresas monopolistas e a concorrência de monopólio. Em terceiro, o desenvolvimento social dá origem a modernos monopólios naturais (hidrelétricas, etc.). O tempo do monopólio social está latente dentro dos 15

Insistimos, pois é algo vital. Vários marxistas e economistas perceberam que o Estado, de modo artificial (garantindo o funcionamento do sistema artificialmente – o que em si merece reconhecimento teórico) impediu que poderosas empresas fechassem as portas, desde 2008, o que é o natural durante as crises. Há superacumulação de capital, crônica, que, se grandes empreendimentos deixassem de existir no atual estágio, gerariam crises excepcionalmente duras e até mesmo o risco de derrubada completa do atual modo de vida.

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limites do capitalismo. A concorrência de monopólio é a transição entre a livre concorrência e o posterior monopólio social. O assim nomeado em economia ―preço de monopólio‖, que é na prática a desregulação do preço de mercado em relação ao seu valor e seu preço de produção, em meio à escassez relativa artificial, é um sintoma invertido, quando com seu efeito inflacionário, das condições maduras de organizar a sociedade pelo fim da própria forma preço, isto é, do alto grau de desenvolvimento das forças de produção, que pedem nova forma social. Que algo destacado represente sua própria negação latente, que uma inflação artificial represente o fim da própria precificação espreitando a realidade, é um raciocínio que deve incomodar aqueles que pensam a estrutura capitalista como eterna, a-histórica. Mas eis que a aparência reluzente de algo representa seu contrário: o fim do valor e de sua forma de manifestação. Apesar de tal conclusão ser o não empírico extraído daquilo empiricamente dado, um exemplo pode tornar mais visível este aspecto. Em 2020, a Arábia Saudita e a Opep reuniram-se para diminuir artificialmente a oferta de petróleo para forçar o aumento dos preços, porém a Rússia, que opera com baixo custo de produção petrolífera, como também o citado grupo, negou-se ao acordo; então, em reação, os sauditas fizeram o movimento oposto, superoferta da mercadoria, o que derrubou ainda mais os preços e levou ao absurdo, no mercado estadunidense, de pagar (!) para comprar, levar, sua mercadoria, ou seja, preços negativos (!), já que os estoques estavam utilizados ao máximo como parte dos efeitos da superprodução. Esse fenômeno antes impensável, um espanto jornalístico em todo o mundo, quase como sinal de um apocalipse, revela bem a capacidade produtiva atual que pode ser reorganizada para nova forma de distribuição, que deixe de envolver o valor de troca.

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A EMPIRIA DOS LIMITES INTERNOS ―O quantum, uma vez que é tomado como um limite indiferente, é o lado no qual um ser aí é agredido insuspeitadamente e é direcionado para seu sucumbir. É a astúcia do conceito de capturar um ser aí nesse lado, onde a qualidade do ser aí não parece entrar no jogo, - e, com efeito, de tal modo que o aumento de um Estado, de um patrimônio etc., aumento que provoca o azar do Estado, do proprietário, até aparece, inicialmente, como sua sorte.‖ (Hegel G. W., 2016, p. 360) O capitalismo tem elevado sua produtividade por meio de aumento da composição técnica do capital, fator que produz queda da taxa de lucro na medida em que aumenta o peso monetário da máquina e da matéria-prima e substitui trabalhadores, o chamado aumento de composição orgânica. A queda da taxa de lucro manifesta e está ao lado da tendência latente à superprodução crônica, que só pode revelar-se de modo latente, concluindo-se ou em economia planejada ou em destruição sistêmica e barbárie. Observemos estes gráficos, que revelam a queda secular da taxa de lucro:

Fonte: (Maito, 2017)

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Fonte: idem

Fonte Idem

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Fonte: Idem

Fonte Idem

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Fonte: Idem

Fonte: Idem Percebemos que a taxa de lucro caiu tendencialmente até alcançar patamares muito baixos na história recente – nos países centrais, em torno de 40% no século XIX para, com ondulações, com contratendências relativas, em torno de 10% no começo do século XXI. O autor, Esteban Ezequiel Maito, de onde obtemos os gráficos16 acima expostos, afirma: 16 Dos dados e metodologia nos gráficos: “A taxa de lucro no capital fixo foi, de longe, a medida mais comum em estudos sobre a rentabilidade do capital. Em um estudo anterior, realizamos uma comparação entre quatro países sobre a taxa de lucro marxista, mas, com exceção à este caso, todos os estudos que abordaram uma comparação internacional, devido à disponibilidade dos dados, focam na taxa de lucro sobre o capital fixo. Chan-Lee e Sutch, em uma das primeiras análises

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Embora a taxa de lucro de 0% não seja considerada como o limite real do capital, mas níveis mais altos, os anos em que a linha de tendência atinge 0% foram considerados. Para o ano 1900, a tendência teria atingido 0% em 1990. Para 1919, em 2024. Para 1932, em 2007. Para 1944, em 2025. Para 1955, em 2040. Para 1970, em 2055. Para 1980, em 2046 Para 2010, em 2056. Para os países periféricos, este exercício marcou, para o ano 1970, uma taxa de 0% projetada no ano de 2072. Para o ano de 1980, em 2050 e para 2010, em 2064. (Maito, 2017)

O artigo conclui-se como poderia, colocando o limite da queda histórica da taxa de lucro no meio deste século: Dois pontos podem ser destacados a partir desses exercícios de projeção. Conforme observado anteriormente, a tendência não se desenvolve de forma constante, mas muda sua inclinação de acordo com o momento histórico e os fatores contrários. Assim, até 2010, o limite previsto em 1900 mudou 66 anos, de 1990 a 2056. No entanto, e, em segundo lugar, o progresso desta tendência continua diminuindo cada vez mais o número de anos em relação ao limite projetado, que tende, por outro lado, a permanecer fixo no meio deste século. A incapacidade do capital, e dos fatores contrários, em reverter sua própria tendência nas últimas décadas é refletida, assim, como sendo incapaz de avançar este limite hipotético. Vale a pena repetir neste ponto a citação de Grossmann: ―… à medida que essas contratendências são gradualmente fragilizadas, os antagonismos do capitalismo mundial se tornam progressivamente mais nítidos e a tendência para a ruptura aproxima-se cada vez mais da forma final de um colapso absoluto‖ (Idem, grifos nossos.)

comparativas, estudaram as taxas de lucro dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) durante o período de 1960-1980, refletindo claramente o declínio devido à crise de rentabilidade nos anos setenta. Lee e Sutch realizaram um estudo que considerava a rentabilidade à longo prazo no Reino Unido, EUA, Japão e na zona do euro (a partir dos anos 60) no contexto de uma análise histórica da hegemonia global de estados sucessivos no sistema mundial. Duménil e Lévy também compararam os níveis de taxas de lucro desses países, embora em um intervalo de tempo mais curto. Zachariah faz um exercício semelhante, acrescentando também a China e a Índia. No entanto, ele não estima o retorno do capital fixo reprodutivo, mas inclui moradias, que não fazem parte do capital fixo e do próprio processo de produção capitalista.” “As estimativas para catorze países são apresentadas neste artigo, em alguns casos cobrindo mais de um século de história e representando mais da metade da produção mundial nos últimos setenta anos. Em relação ao trabalho destes pesquisadores, são incorporados a longo prazo (série de mais de um século de extensão) estimativas para Alemanha, Argentina, Suécia e Holanda. A inclusão da Argentina no início do século XX, bem como da Coréia e da China nas últimas décadas, nos permite uma melhor interpretação das áreas periféricas, de acumulação mais dinâmica, durante alguns períodos específicos, em relação com a tendência geral de rentabilidade.” (Maito, 2017)

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Além de também poder adicionar o custo com capital circulante (matéria-prima, salários, etc.), mais do que somente com capital fixo; para percepção mais profunda da queda da taxa de lucro, levemos em conta teoricamente que o cálculo mais exato inclui o capital comercial e os transportes cujos pesos do capital constante sobre o capital variável – grandes redes de supermercados, colossais meios de navegação, etc. – adquire visível nova proporção17. O marxismo cindiu-se em opostos sobre a questão acima exposta: os limites do sistema são o desenvolvimento das forças produtivas em contradição com as relações de produção ou queda da taxa de lucro? Dito de outro modo: os limites do sistema capitalista ocorrem por crise do valor, redução absoluta de sua massa, ou queda da taxa de lucro? Ora, esta expressa aquela: a empiria estatística da queda da taxa de lucro aos níveis atuais revela tanto problemas na produção de valor quanto a contradição sistêmica. Vejamos como Marx expõe de modo claro a relação produtividade e queda da taxa de lucro: Mas, se v [capital variável] cai de 30 para 20, por se empregar 1/3 menos de trabalhadores, ao mesmo tempo que aumenta o capital constante, teremos o caso normal da indústria moderna: produtividade crescente do trabalho, domínio de quantidades maiores de meios de produção por menos trabalhadores. Na parte terceira deste livro, ver-se-á que este movimento está necessariamente ligado à queda simultânea da taxa de lucro. (Marx, O capital 3, 2008, p. 81)

A melhor postura é evitar o defensismo das escolas teóricas e perceber que manifestam o mesmo processo social por diferentes ângulos, de modo unilateral. O melhor método, portanto, é considerar o nível de validade das diferentes contribuições, pois apenas de modo artificial podemos descartar a relação íntima entre taxa de lucro e aumento da composição orgânica ou a crise do valor. Observemos, por sua vez, o efeito da queda da taxa sobre a produção: ―Se cai a taxa de lucro, o capital se torna tenso, o que transparece no propósito de cada capitalista de reduzir, com melhores métodos etc., o valor individual de suas mercadorias abaixo do valor médio social, e assim fazer um lucro extra, na base do preço estabelecido pelo mercado; ocorrerá ainda especulação geralmente favorecida pelas tentativas apaixonadas de experimentar novos métodos de produção, novos investimentos de capital, novas aventuras, a fim de obter um

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Por isso Marx excluiu a indústria dos transportes no cálculo comum da taxa ainda no século XIX.

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lucro extra qualquer, que não dependa da média geral e a ultrapasse.‖ (Idem, p. 338, grifo nosso.)

Assim, a superestrutura financeira é o meio para reação contra a queda da taxa ao prover uma massa de recursos para investimentos. Uma superprodução crônica é gestada no interior do capitalismo, isto é, surge no seio do capital, por meio de suas leis inerentes, a base da produção socialista. Ao mesmo tempo, a queda dessa taxa de lucro na produção leva à queda da taxa de juros, pois este tira seu lucro em parte do lucro daquele; surge a tendência à morte da taxa de juros em todo o mundo, como as taxas negativas operadas por governos imperialistas (Botelho, 2019). Os juros baixos, por sua vez, também servem de estímulos para investimentos em ações, formando as bolhas de capital fictício. Por outro lado, em inúmeros setores a queda da taxa de lucro desestimula novos investimentos – principalmente onde há monopólio e em países de maior custo de produção – e leva, por isso, a investimentos de curto prazo e garantidos no mercado financeiro, também estimulando a inflação da forma fictícia de capital (Roberts M. , Produtividade, investimento e lucratividade, 2019). A pressão pela renovação técnica citada acima mantém-se, mas é mediada e reduzida pela superprodução crônica latente18. Assim, a mesma lei social que pressiona pela deflação dos preços das mercadorias leva à hiperinflação do capital fictício. Eis a contradição. A queda da taxa de lucro aos atuais níveis é a base do que ficou conhecido como neoliberalismo.

A

privatização

de

empresas

estatais,

por

exemplo,

produziu

um

pseudoinvestimento capaz de aumentar a massa de lucro da burguesia. A liberalização financeira foi a saída final, a contragosto dos próprios governos de início, para lidar com a crise sistêmica. Criando massa maior de desempregados, o poder burguês quis recuperar a lucratividade, aumentar o mais-valor com redução dos salários, direitos e aumentando a intensidade e a extensividade da jornada de trabalho. Para isso, pesa a entrada da Ásia com produtos mais baratos também por baixos direitos sociais pressionando a ―austeridade‖, a retirada de direitos no ocidente se quer concorrer no mercado mundial.

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Reforçamos o capítulo anterior. Cada vez mais, uma renovação técnica da produção aumenta os custos com maquinário e com matéria-prima (pois maior produtividade exige mais insumos). Por outro lado, empregam-se poucos trabalhadores com custo unitário do trabalho baixo, ainda que os salários individuais sejam altos (a tendência, em geral, é de queda na remuneração). Essa combinação faz com que não compense substituir operários por máquinas já que o custo de produzir mercadorias seria maior, não menor. O custo por razão da substituição seria maior, em muitos casos, do que o custo com funcionários. Daí, também, a redução do investimento na produção voltado à renovação tecnológica e novas empresas. A atual significativa queda da taxa de lucro é insuficiente, embora essencial, para explicar o fenômeno do baixo investimento.

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Observado o ótimo trabalho de Maito, o mérito central sobre a percepção da queda da taxa de lucro como importante fator da crise de nossa época cabe a Michael Roberts. Sua limitação foi deixar de perceber as consequências para além da pura economia (como o Estado burguês sendo corroído pela lógica do lucro) e pouco focar no fundamento do problema, a crise do valor, etc. Ademais, ele deixa de considerar que a tendência à queda da taxa de lucro tem em si mesma a contratendência. De qualquer modo, foi seu acerto vital que também tem algo do seu contexto, a tradição empirista anglo-americana19.

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Uma nota metodológica. Uma parte do trabalho científico é superar o limite nacional no perfil do pesquisador. Marx foi cosmopolita, indo da Alemanha à Inglaterra e França, o que afetou seu perfil. Este livro quer transcender os limites pátrios (facilitado pela internet). Kurz, por exemplo, absolutizou e percebeu o papel da automação por seu olhar desde a Alemanha.

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OS MACROCICLOS DO CAPITAL O tema da longa duração, dos grandes ciclos, anima diferentes posições teóricas. Nesse sentido, Trotsky deu-nos uma grande contribuição esquecida mesmo entre seus seguidores. Tomemos nota de uma citação: Mas o capitalismo não se caracteriza só pela periódica recorrência dos ciclos, de outra maneira a história seria uma repetição completa e não um desenvolvimento dinâmico. Os ciclos comerciais e industriais são de diferente caráter em diferentes períodos. A principal diferença entre eles que está determinada pelas inter-relações quantitativas entre o período de crise e o de auge de cada ciclo considerado. Se o auge restaura com um excedente a destruição ou a austeridade do período precedente, então o desenvolvimento capitalista está em ascenso. Se a crise, que significa destruição, ou em todo caso contração das forças produtivas, sobrepassa em intensidade o auge correspondente, então obtemos como resultado uma contração da economia. Finalmente, se a crise e o auge se aproximam entre si em magnitude, obtemos um equilíbrio temporário – um estancamento – da economia. Este é o esquema no fundamental. Observamos na história que os ciclos homogéneos estão agrupados em séries. Épocas inteiras de desenvolvimento capitalista existem quando um certo número de ciclos estão caracterizados por auges agudamente delineados e crises débeis e de curta vida. Como resultado, obtemos um agudo movimento ascendente da curva básica do desenvolvimento capitalista. Obtemos épocas de estancamento quando esta curva, ainda que passando através de parciais oscilações cíclicas, permanece aproximadamente no mesmo nível durante décadas. E finalmente, durante certos períodos históricos, a curva básica, ainda que passando como sempre através de oscilações cíclicas, se inclina para baixo em seu conjunto, assinalando a declinação das forças produtivas. (Trotsky, A Curva do Desenvolvimento Capitalista - Leon Trotsky, 2012)

Se observarmos o consenso histórico de diferentes vertentes da economia, da marxista à liberal, da década de 1940, com o fim da II-Guerra, até a de 1970 tivemos crescimentos longos e crises fracas, renomeadas recessão. Da década de 1970 até 2008 vivemos um período de crises mais duras alternadas com crescimento e quase estagnações. Por sua vez, o peso da crise de 2008 e suas consequências duradouras apontam décadas de crises duras e crescimentos fracos. A ascensão possibilitou e correspondeu à prática keynesiana; a transição da curva necessitou da prática neoliberal; o declínio da curva encontra o esgotamento da política econômica burguesa e possibilita um programa de transição ao socialismo. Embora desconheça a teoria da curva de desenvolvimento do capitalismo tal como Trotsky esboçou, Pikett a confirma em seu livro nos limites do seu empirismo:

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A Europa continental — e a França em particular — vive, em grande medida, numa nostalgia dos Trinta Gloriosos, isto é, daquele período de trinta anos que vai do fim dos anos 1940 ao fim dos anos 1970, durante o qual o crescimento foi excepcionalmente intenso. Ainda não se sabe qual foi o espírito malvado que nos impôs um crescimento tão fraco desde o fim dos anos 1970 e o início dos anos 1980. Ainda agora, no início dos anos 2010, imagina-se com frequência que o infortúnio dos últimos trinta anos, os ―Trinta Desafortunados‖ (que, na verdade, estão mais para 35 ou quarenta anos), vai desaparecer, que o pesadelo vai se esvanecer e que tudo voltará a ser como antes. (Pikett, 2014, p. 120)

Da teorização exposta, o erro de Trotsky é concluir, à luz do fim da I guerra mundial, que a produtividade recuaria quando a tendência é de crescimento desacelerado (a contração das forças produtiva é possível no declínio da curva, como tende a ser no Brasil, que caminha para a desindustrialização, mas algo em si contingente). De sua elaboração econômica, a fenomenologia manteve-se: uma curva de desenvolvimento que vai de crises leves com grandes crescimentos até crises duras com baixo crescimento entremeados por uma fase de transição entre um extremo e outro. A produção dos EUA, principal exemplo, teve tendência de alta em meio às crises cíclicas tendencialmente cada vez mais duras (representadas nas faixas cinzas do gráfico abaixo)20. GRÁFICO 4

Fonte: (FRED apud redação, 2018)

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A estatística condiz com Marx, contra Trotsky: “A estatística das exportações e importações serve para medir a acumulação do capital real – o capital produtivo e o capital-mercadoria. E revela sempre que no período de desenvolvimento da indústria inglesa (1815-1870) marcado por ciclos decenais, o máximo da última fase de prosperidade antes da crise reaparece sempre como mínimo da subsequente fase de prosperidade, para em seguida atingir novo máximo mais elevado.” (Marx, O Capital 3, volume 5, 2014, p. 663)

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Cabe-nos uma tarefa de atualização. Trotsky expôs sua teoria em palestras, pois as obrigações políticas o impediam de fazer uma atividade científica total. Assim, enquanto criticava o formalismo e kantianismo de Kondratiev21, ele próprio apresentou o movimento geral percebido e suas manifestações, não esgotando o trabalho teórico enquanto, ciente disso, estimulava a necessidade de uma duríssima pesquisa em torno do tema. Tentaremos concluir os aspectos gerais de tal objetivo, o que tem nos obrigado a atualizar e discordar em parte do teórico russo. Esta conclusão nos leva às eras do capital e percepção de que as curvas históricas tomam a forma de ondas. Vejamos elementos em movimento: a) A revolução produtiva – I, II ou III revolução industrial – eleva a desigualdade do desenvolvimento de diferentes fatores da economia, ou seja, eleva a quantidade e o nível das contradições – dito de outro modo, maiores desigualdades de composição orgânica do capital entre os departamento I, produção dos meios de produção, e II, produção dos meios de consumo; b) A III revolução industrial – para nos aproximarmos de nossa realidade – faz falir empreendimentos que não acompanham a nova escala de produção; c) Por demitir assalariados operários, por causar limitação de concorrência, por desemprego maior comprimir os salários, a oferta se eleva enquanto a demanda tende a cair; d) Maior escala de produção exige, também, maior demanda de matérias-primas, nem sempre disponíveis na escala necessária – ou produz superoferta de meios de produção; e) Maior produtividade, este salto interno de qualidade, aumenta a possibilidade de elevação de estoques, ou seja, de cada vez mais mercadorias ficarem presas, de pouco a pouco, no processo de circulação, que pode gerar crise de superprodução; f) O capital exigido para investir em maquinário e matéria-prima a ser adiantado é maior, o que gera necessidade de endividamento para, se possível, ser pago com o lucro futuro; g) As possibilidades de o preço de mercado ficar abaixo do preço de produção (custo de produção mais mais-valor gerado) são mais presentes; h) Os transtornos da luta de classes, protestos ou revoluções, no país ou fora dele, também aparecem com maior frequência, mesmo que o desemprego, no imediato, quebre a resistência inicial;

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O próprio Kondratiev reconhece que foi Trotsky, no primeiro congresso da III Internacional, quem primeiro expôs a ideia de ciclos longos. Para localizar o leitor: após a exposição de Trotsky, Kondratiev partiu de sua ideia e elaborou a teoria dos ciclos, que duram entre 50 e 60 anos, com uma fase a, ascendente, e uma fase b, descendente; ao longo deste capítulo, ficará evidente a pobreza de sua elaboração.

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i) Há queda da massa de valor e da taxa de lucro à medida que as novas técnicas se generalizam.22 Por outro lado, ao mesmo tempo, as próprias crises cíclicas estimulam a adoção de novo maquinário (Marx, O Capital - livro 2, 2014, p. 209), o que revela um processo dialético de causalidade recíproca, de interinfluência em desenvolvimento. A conclusão de que as revoluções produtivas estimulam contradições e crises cíclicas foi observada por Schumpeter (1988), mas a este faltou descobrir ligação com os macrociclos do capital, de longa duração, com a curva de desenvolvimento capitalista descoberta por Trotsky ou, como complementamos, com o que chamamos de eras do capital. De qualquer modo, a tradição schumpeteriana fez a ligação entre macrociclos e revoluções tecnológicas, embora usassem o modelo limitado e falho de Kondratiev (mais à frente apresentaremos uma solução ao tema). As crises encaminham-se de leves e curtas, ao ponto de serem renomeadas recessão, de 1945 à década de 1970, para um período transitório com crises mais duras cujas sensações apocalípticas que causavam nos pensadores não se confirmavam mais do que trovões fortes antes da tormenta, entre meados dos anos 1970 até 2008. Agora temos um salto: declínio da curva do desenvolvimento capitalista – crises longas e/ou profundas e crescimentos débeis e/ou curtos. Mais do que os crescimentos, as crises cíclicas são formas de manifestação de processos profundos e essenciais do sistema. Através delas podemos medir o que ocorre e calibrar a percepção. Mantendo esta clareza, a de que as revoluções industriais, em seus processos de generalização, alimentam as contradições da economia capitalista, contradições estas que devem ser resolvidas após aprofundadas, partamos para o fator externo. Cada revolução industrial é uma revolução nas forças produtivas, dentro do modo capitalista de produzir – salto interno. Por isso essas mudanças, ao elevarem a produtividade, entram em contradição com as formações sociais e superestruturais ora existentes. Assim, a I Revolução Industrial gera contradição com a realidade, sua barreira: faz a curva histórica declinar de ascenso em transição e, em seguida, declínio, cujo ápice é a primavera dos povos, de 1848 à 1850. Antes, deu força às revoluções burguesas como na França. Este período onde a transição da curva e o declínio aconteceram é chamado por Eric Hobsbawm ―a era das revoluções‖. Após tais tensionamentos, contradições resolvidas, o sistema saltou-se para um novo ascenso da curva ou nova curva, de 1850 à 1873. Já a partir da década de 1870 surge a II Revolução 22

Nesta lista, vemos que as diferentes teses para a razão das crises periódicas são válidas; “subconsumo”, superprodução de capital, queda da taxa de lucro, redução da massa de valor, desproporcionalidade, etc. Que são todos impulsionados pelo avanço técnico.

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Industrial e também entra em relativa contradição com a formação sócio-superestrutural existente, atrasada e conservadora no compasso histórico. Aqui se explica, por exemplo, a insistência ―humanitária‖ britânica pelo fim da escravidão no Brasil, por um nova multidão de assalariados e consumidores em potencial de suas mercadorias. Do mesmo modo à onda ou curva anterior, as contradições relativas tomavam ares de absolutas: crise em 1914 na forma de guerra mundial, ou seja, início do declínio da curva histórica até 1945, fim da II Guerra. Tratemos da atual curva. Ascenso entre 1945 até a década de 1970 com a II Revolução Industrial de acordo, em confluência não contraditória, com a formação social vigente. Logo depois: III Revolução Industrial gera nova contradição relativa da década de 1970 até 2008, a transição entre o ascenso e o declínio da curva histórica. Marx (Grundrisse), Schumpeter e Babbage observaram que o maquinário fabril dura em média 10 anos, seguido frequentemente de uma renovação com compra de máquinas mais modernas, que aumentam a produtividade do trabalho. Mesmo se deixamos de utilizar a ideia polêmica de revoluções industriais, a lógica acima se confirma com mudanças na produção que exigem demais mudanças e aprofunda contradições que se resolvem em uma estabilidade dinâmica temporária (ascenso da curva). Esse é o processo explicado neste capítulo. De modo geral, da cooperação simples e cooperação complexa (manufatura), correspondem à ascensão da curva, até a grande indústria, I revolução técnica; deu-se o mesmo processo: 1) ascensão; 2) mudança na produção, revolução industrial, como abertura de toda uma transição e, por consequência, 3) de 1820 à 1850 ocorre período de duras crises e fracos crescimentos. No período da primeira era, mercantil, inexistindo crises cíclicas mais ou menos regulares, medimos o processos histórico pelos demais fatores agregados na avaliação, quer sejam, a situação das classes e o desenvolvimento técnico. Ademais, o começo desta época inicial do capitalismo é também destrutivo em seu avanço, pois a acumulação inicial ou primitiva do capital foi produzida com expulsão dos camponeses das terras comunais na Inglaterra, escravidão na América, aumento da miséria urbana, etc. As elevações qualitativas da produtividade, saltos internos, não encontravam uma realidade total, ao redor de si, onde poderiam realizar-se. Assim, toda revolução na indústria primeiro gera décadas de estagnação (crescimento e crise com intensidades próximas) e desemboca em crises intensas de superprodução entremeadas por crescimentos, em geral, curtos e anêmicos. A totalidade social entra em contradição com as necessidades de reprodução em escala ampliada. O capital precisa rotar-se em nova velocidade, mas as ―externalidades‖ impedem seu pleno movimento e o diminui (aumento dos estoques, fábrica paradas, etc.) tanto na produção quanto

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na circulação. Descobrimos crises cíclicas e tensões cada vez mais intensas. Isso torna necessário romper tal contradição com as mudanças nas eras do capital, no dinheiro, no uso do Estado, no centro de gravidade do capital etc. Podemos representar as curvas visualmente:

Fonte: Própria (2020) O ascenso equivale a crises curtas e/ou anêmica; a transição apresenta crises mais duras ainda com algum crescimento, com um certo ―equilíbrio‖ entre os opostos, quase estagnação, etc.; por último, o declínio aparece como crises longas e/ou profundas. Vejamos as três curvas ou ondas:

Fonte: idem.

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Fonte: idem.

Fonte: Idem. Em resumo, as três curvas históricas: 1. Século XVI-1760 | 1760 – 1820 | 1820-1850 2. 1850-187323 | 1873-1913 | 1913-1945 23 “En esa época Marx no podía tomar en cuenta – sólo observó el ascenso en el mercado – que se enfrentaba con una nueva época de ascenso, donde las crisis serían sólo temporarias y las vacilaciones débiles, y un ascenso las superaría rápidamente, conduciendo la economía a niveles más

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3. 1945-1973 | 1973-2008 | 2008... Porém aqui há uma reviravolta, outro modo de observar. Do ponto de vista das eras do capital, o ponto de partida não é o ascenso da curva, a baixa contradição do capital consigo e com a totalidade social, mas as revoluções industriais, que iniciam a fase de estagnação, entre o ascenso e o declínio24. Todas as revoluções produtivas foram o ponto de partida da fase de transição, de estagnação ou estancamento, da curva histórica, a caminho do declínio desta. Surgem elevando e gerando contradições entre o novo e o velho, entre forças produtivas e as superestruturas, entre produção e comércio, entre demanda e estoque, entre base econômica e as relações sociais de produção e organizacionais etc. Desse ponto de vista: Primeiro ciclo, comercial: 1500 - 1760 Segundo ciclo, industrial: 1760 - 1873 Terceiro ciclo, financeiro: 1873 - 1973 Quarto ciclo, fictício: 1973... No primeiro, a demanda sempre alta em relação à oferta, possibilitando bons preços de mercado, gera e é gerado pela transformação do trabalho artesanal em cooperação simples e complexa, manufatura. No segundo, a revolução industrial vence a força constrangedora do trabalho, o nível de autonomia do artesão, fator que o limitava e também o estimulava a superar esta contradição. No terceiro, a nova escala de produção exige um tal adiantamento de capital que o capital produtor de juros se torna mecanismo mais necessário para os saltos produtivos. Na última era, desde a década de 1970, a expressão monetária do capital necessita ainda mais que antes do capital produtor de juros, que passa a tornar-se fictício; a financeirização ganha importância como reação à impossibilidade de investimentos e à necessidade de permitir o montante de capital-dinheiro que urge ao setor produtivo, na atual composição orgânica do capital. altos. No previó esto. La revolución no vino en 1859-60. En cambio hubo guerras asociadas con la unificación de Italia, luego tuvimos la guerra de Crimea, y después la guerra franco-prusiana. Cuestiones urgentes, cuestiones de Estado y de orden nacional fueron resueltas por medio de batallas. Fue a principios de los ‘70 del siglo XIX que comenzó una nueva línea de depresión, estancamiento.” (Trotsky, El capitalismo y sus crisis, 2008, p. 190) 24 Esse erro ocorre também, não apenas, por uma posição intuitiva e “estética”, como se algo que naturalmente devesse começar a visualização da curva pelo ascenso, pela baixa contradição, não pela transição.

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Vejamos a curva de desenvolvimento desde as três revoluções industriais ou, o que é outra expressão do mesmo, o início da fase intermediária entre ascenso e declínio, até novo ascenso.

Fonte: idem.

Fonte: Idem.

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Fonte: Idem.

Fonte: Idem. Por evidente, as datas são aproximativas dos processos. O mais complicado, nesse sentido, é a primeira curva de desenvolvimento, pois a I revolução industrial teve seu caráter também destrutivo desde o começo, mas apenas no início do século XIX (alguns consideram 1812; outros, 1825) começam as duríssimas crises cíclicas.

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Em sua elaboração original, o começo era a ascenção da curva. O que para Trótski era ponto de partida – por exemplo, o crescimento de 1945 à 1973 –, é, em nossa análise, a resolução de uma contradição na totalidade macroeconômica e macrossocial. Se prosperar, a transição ao socialismo será a resolução das contradições atuais iniciadas na década de 1970, desta era-curva, em uma nova ascensão, que tem por base superar os elementos existentes do sistema anterior, isto é, superar a contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção existentes e suas superestruturas. Desde uma observação cuidadosa, percebemos que cada revolução industrial – portanto, cada curva que se inicia pela fase de transição – dura em média 100 anos. Por quê? As crises cíclicas ocorrem mais ou menos de 10 em 10 anos, em média tendencial, no processo circular e espiral de crescimento, estagnação, crise e recuperação. Este mal é parte necessária da própria saúde doentia do capitalismo. E gera as bases para as revoluções produtivas seguintes. As alterações singulares na produção geram contradições internas à sociedade total; se a ascenção permite a vitalidade para a revolução industrial, permite também o início de um autolimite que necessita ser resolvido. O mero fato de cada momento – transição, declínio e ascensão – durarem, cada um, algumas décadas e saltarem necessariamente para o próximo estágio, oferece o tom de secularidade a cada revolução industrial. A razão para a tendência secular das curvas de desenvolvimento histórico do capitalismo – uma vez observadas desde a estagnação (transição), não a partir do equilíbrio dinâmico – é idêntica em outra escala, superior, ao auge-estagnaçãocrise dos ciclos mais ou menos decenais da economia capitalista: a superprodução revelada empiricamente na contradição entre produção e circulação, cuja dinâmica é mediada por ações extraeconômicas, o Estado, etc. Trotsky pensava que inexistia uma regularidade temporal em tendência; hoje, um século depois de sua primeira elaboração do tema, podemos observar que de fato há uma regularidade. Se abstraímos os fatores sociais, que ditam parte do ritmo, e observamos de modo ―puro‖ a atual curva de desenvolvimento, os limites internos do sistema serão em meados do século XXI, concordando com o debate no capítulo anterior sobre a queda da taxa de lucro e também com os limites da crise ambiental. Entre as décadas de 2050 e 2070 ocorrerá, visto desse modo, o domínio relativamente estável da III revolução industrial via transição ao socialismo ou, ao contrário, um cenário de fim da civilização. É certo que a datação secular de cada curva uma vez observada pela fase de transição é insuficiente para a curva atual, pois a época de mudança sistêmica exige muito do fator subjetivo; por outro lado, serve de guia para pensar o tempo histórico no qual vivemos desde 2008, um tempo de crises duras exigentes de uma solução estrutural.

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*** O mérito reivindicado neste capítulo é o de baixar ao chão o debate sobre os ciclos, ondas ou curvas longas do capitalismo. Saímos do debate apenas abstrato e colocamos o tema na sua atual função histórica. Além das atualizações anteriores propostas, também propomos resolução da polêmica sobre se o avanço tecnológico marca o início do ascenso da curva, como pensava Kondratiev, ou seu declínio, como pensava a tradição schumpeteriana, ainda presos ao avanço em ―v‖ investido, ao incluirmos o período de transição, pelo qual começamos, da curva de desenvolvimento de Trotsky, que se inicia com a revolução industrial correspondente, quando as crises são mais duras, mas ainda não são o período depressivo do declínio posterior (que por sua vez antecede o equilíbrio dinâmico temporário, o chamado ascenso – que é, para nós, a conclusão, não o início). TEORIA DO COLAPSO A teoria do ―processo de colapso‖ é de Marx. Os marxistas sabem de cor a ideia de que um sistema cai e é substituído apenas quando explora todas as suas possibilidades; o raciocínio dialético – se levado a sério – impede ilimitada margem de manobra ao capital. No famoso posfácio de sua obra Magna, o mouro fala em "crise geral, que mal deu seus primeiros passos". Esta deu o grande passo em 1914... Mas ele não tinha um elemento teórico, qual seja, a teoria das curvas históricas, mais importante que a das crises cíclicas. Tal é uma enorme contribuição de Trótski. Se acrescentamos as eras do capital, percebemos toda a dinâmica e conseguimos explicar o motivo de Marx, Lênin e Trótski terem errado ao considerarem que aquela crise era a última quando não a era de fato. Diz o general do Exército Vermelho: e) A Teoria do Colapso Entre a época da morte de Marx e o início da Guerra Mundial, as inteligências e os corações dos intelectuais da classe média e dos burocratas dos sindicatos estiveram quase que totalmente dominados pelas façanhas logradas pelo capitalismo. A idéia do progresso gradual (evolução) parecia ter-se consolidado para sempre, enquanto que a idéia da revolução era considerada como uma mera relíquia da barbárie. O prognóstico de Marx era contrastado com o prognóstico qualitativamente contrário sobre uma distribuição melhor equilibrada da fortuna nacional com a suavização das contradições de classe e com a reforma gradual da sociedade capitalista. Jean Jaures, o mais bem dotado dos social-democratas dessa época clássica, esperava ajustar gradualmente a democracia política à satisfação das necessidades sociais. Nisso reside a essência do reformismo. Que resultou dele?

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A vida do capitalismo monopolista de nossa época é uma cadeia de crises. Cada crise dessas é uma catástrofe. A necessidade de salvar-se destas catástrofes parciais por meio de barreiras alfandegárias, da inflação, do aumento dos gastos do governo e das dívidas prepara o terreno para outras crises mais profundas e mais extensas. A luta para conseguir mercados, matérias-primas e colônias torna inevitáveis as catástrofes militares. E tudo isso prepara as catástrofes revolucionárias. Certamente não é fácil concordar com Sombart que o capitalismo atuante se faz cada vez mais ―tranqüilo, sossegado e razoável‖. Seria mais correto dizer que ele está perdendo seus últimos vestígios de razão. Seja como for, não há dúvida de que a ―teoria do colapso‖ triunfou sobre a teoria do desenvolvimento pacífico. (Trotsky, O marxismo em nosso tempo, 2009)

Percebemos que o cenário pintado por Leon Trotsky deixou de existir após a II guerra mundial. As crises tornaram-se mais leves nos países centrais e muitos países atrasados, como o Brasil, conheceram grande crescimento. Pouco antes de falecer (1883), K. Marx percebeu mudanças no capitalismo, expostas no livro III d‘O Capital. Engels, ao concluir esta obra, percebe ainda com mais clareza a existência de novos fenômenos. Os fundadores do socialismo científico estavam presenciando o início da terceira era do capital, fase de estagnação daquela curva histórica e a II revolução industrial. Vejamos passagem: [Depois de Marx ter escrito as linhas acima, desenvolveram-se, como é notório, novas formas de empresas industriais em que a sociedade por ações se eleva à segunda ou à terceira potência. A rapidez cada dia maior com que se pode atualmente aumentar a produção em todos os grandes domínios industriais se depara com a lentidão sempre acrescida com que se expande o mercado para essa produção ampliada. O que aquela fornece em meses, leva este anos para absorver. E acresce que cada país industrial, com a política de proteção aduaneira, se isola dos demais e notadamente da Inglaterra, ainda aumentando de modo artificial a capacidade interna de produção. As consequências são superprodução crônica geral, preços deprimidos, lucros em baixa ou mesmo desaparecendo por completo; em suma, a liberdade de concorrência, essa veneranda celebridade, já esgotou seus recursos, cabendo a ela mesma anunciar sua manifesta e escandalosa falência. É o que evidencia o fato de se associarem, em cada país, os grandes industriais de determinado ramo para constituir cartel, destinado a regular a produção. Uma junta estabelece a quantidade a produzir por estabelecimento e, em última instância, reparte as encomendas ou pedidos apresentados. Em certos casos formaram-se temporariamente cartéis internacionais, como o anglo-teuto de produção siderúrgica. Mas essa forma de associação entre

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empresas produtoras ainda não era adequada. O choque de interesses das diversas empresas violava-a com demasiada frequência e acabava restabelecendo a concorrência. Assim se chegou, em certos ramos em que o nível da produção o permitia, a concentrar a produção toda do ramo industrial em uma grande sociedade por ações com direção única. É o que já aconteceu, várias vezes, na América, e na Europa o maior exemplo até agora é a United Alkali Trust, que pôs nas mãos de uma única firma toda a produção britânica de álcali. […] O capital todo atinge, portanto, 6 milhões de libras. Assim, nesse ramo que constitui a base de toda a indústria química, o monopólio na Inglaterra substitui a concorrência e prepara de maneira alentadora a futura expropriação pela sociedade toda, pela nação. - F.E.] É a negação do modo capitalista de produção dentro dele mesmo, por conseguinte uma contradição que se elimina a si mesma, e logo se evidencia que é fase de transição para nova forma de produção. Esta fase assume assim aspecto contraditório. Estabelece o monopólio em certos ramos, provocando a intervenção do Estado. Reproduz nova aristocracia financeira, nova espécie de parasitas, na figura de projetadores, fundadores e diretores puramente nominais; um sistema completo de especulação e embuste no tocante à incorporação de sociedades, lançamento e comércio de ações. Há produção privada, sem o controle da propriedade privada. (Marx, O Capital 3, volume 5, 2014, pp. 254, 255; grifos nossos)

O que Marx, Engels e depois Lenin observaram era o nascer da fase imperialista o que se difere de observar, tal qual hoje, a completa consolidação dessa fase. Ver-se limite potencialmente absoluto neste momento histórico: de 1873-1913, estagnação, à 1913-1945, declínio. Então, por que o colapso faltou? Trotsky oferece, inconscientemente, uma pista; o refutaremos dentro de seu próprio argumento: ¿EL CAPITALISMO HA LLEGADO A SU FIN? Para terminar, plantearé una cuestión que, a mi juicio, dimana del fondo mismo de mi informe. El capitalismo, ¿ha cumplido o no há cumplido su tiempo? ¿Se halla en condiciones de desarrollar en el mundo las fuerzas productivas y de hacer progresar a la humanidad? Este problema es fundamental. Tiene una importancia decisiva para el proletariado europeo, para los pueblos oprimidos de Oriente, para el mundo entero y, sobre todo, para los destinos de la Unión Soviética. Si se demostrara que el capitalismo es capaz todavía de llenar una misión de progreso, de enriquecer más a los pueblos, de hacer más productivo su trabajo, esto significaría que nosotros, Partido Comunista de la URSS, nos hemos precipitado al cantar su de profundis; en otros términos, que hemos tomado demasiado pronto el poder para intentar realizar el socialismo. Pues, como explicaba Marx, ningún régimen social desaparece antes de haber agotado todas sus posibilidades latentes. Y en

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la nueva situación económica actual, ahora que América se ha elevado por encima de toda la humanidad capitalista, modificando hondamente la relación de las fuerzas económicas, debemos plantearnos esta cuestión: el capitalismo ¿ha cumplido su tiempo, o puede esperar aún hacer uma obra de progreso? (Trotsky, El capitalismo y sus crisis, 2008, pp. 234, 235)

Em carta a Engels, Marx expressa dúvida semelhante ao perceber a mercantilização global: Não há como negar que a sociedade burguesa tenha sofrido pela segunda vez seu século 16, um século 16 que, espero, soa a sua morte, assim como o primeiro o conduziu ao mundo. A tarefa apropriada da sociedade burguesa é a criação do mercado mundial, pelo menos em esboço, e da produção baseada nesse mercado. (Marx, Marx To Engels In Manchester)

Esboço, diz Marx. Percebemos a ansiedade política na percepção teórica. Para nós, evidente o desenvolvimento quase máximo do mercado planetário atual para abrir a possibilidade alta de superação do sistema. Vivemos o terceiro e definitivo século 16 com a globalização, com o avanço e a redução de custos com transporte e comunicação. Trotsky, tal como Lenin, pensava improvável uma nova curva ascendente. Ele concluiu que os limites relativos sendo potencializados pelos fatores extraeconômicos, que determinam o ritmo da curva, faziam absolutos estes limites mesmos. Era verdade, mas verdade parcial. Agora, limites absolutos e relativos se encontram; os limites da autocontradição do capital encontram-se com os limites das relações externas à economia. Basta a observação de que o capitalismo já domina, em diferente da época do teórico, quase todos os poros do mundo. O capitalismo tinha ainda mais uma curva de desenvolvimento capitalista, como ficou provado. Esta curva, atual, põe a III revolução da indústria, que é forma em si contraditória com o capital e típica do socialismo. A teoria do colapso e a revolução permanente encontraram ao redor do século XXI o terreno tão esperado pelos seus autores. Enfim podemos afirmar que o capital está diante de seus limites históricos; a época de crises profundas retornou, desta vez, de maneira sistêmica. Observando o declínio da primeira curva, período de duras crises, após a transição, Marx e Engels afirmaram que as forças produtivas haviam se tornado forças destrutivas (Marx & Engels, A ideologia alemã, 2007, p. 41). No declínio da segunda curva de desenvolvimento, Trotsky afirmou ―As forças produtivas da humanidade deixaram de crescer. As novas invenções e os novos progressos técnicos não conduzem mais a um crescimento da riqueza material. As crises conjunturais, nas condições da crise social de todo o sistema capitalista, sobrecarregam as massas

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de privações e sofrimentos cada vez maiores.‖ (Trotsky, O programa de transição). Com a crise estrutural, observando inconscientemente desde a transição da curva de desenvolvimento iniciado na década de 1970, a terceira curva, Mészàros afirmou que o capitalismo somente poderia desenvolver-se em diante de modo destrutivo (Mészáros, Para além do capital, 2011). Todos os teóricos aí citados acertam e erram ao mesmo tempo porque deixaram de oberservar a dialética das curvas de desenvolvimento do capitalismo do modo como expomos neste capítulo. O que justifica, então, supormos que esta terceira curva de desenvolvimento é de fato a última? Por que acertamos desta vez? Entre outros fatores: 1) a taxa de lucro aproxima-se de sua queda absoluta; 2) a III revolução industrial permite pela primeira vez a produção socializada – e coloca em crise a substância valor; 3) a crise ambiental exige solução sistêmica. Esses três fatores bastam para concluir que estamos diante da época de transição, a mais importante da história. Porque nossos mestres erraram, porque foram apressados, alguns teóricos afirmam que o capitalismo não cairá por si. Tal consideração também erra ao deixar de ver o motivo dos limites nas visões dos clássicos. O escravismo romano caiu em agonia lenta, mas objetiva; o feudalismo foi necessariamente dando espaço ao capital. Neste momento, chegamos à fórmula ―socialismo ou barbárie‖ (Rosa Luxemburgo) como duas alternativas. A morte do capital é certa; já a vitória do socialismo, não. O fator subjetivo, diante das bases objetivas maduras, fará diferença quanto ao resultado histórico. CURVA DE DESENVOLVIMENTO E A TEORIA DA MISÉRIA CRESCENTE Há polêmica entre os teóricos sobre se segue válida a teoria da miséria crescente e se o velho Marx manteve esta elaboração na sua maturidade. Antes de mais, destacamos que inexiste em O Capital qualquer referência a tal teoria, qualquer subcapítulo específico sobre o tema, qualquer comentário. O mais próximo que temos é isto: Segue-se, portanto, que à medida que o capital é acumulado, a situação do trabalhador, seja sua remuneração alta ou baixa, tem de piorar. Por último, a lei [da acumulação] mantém a superpopulação relativa ou exército industrial de reserva em constante equilíbrio com o volume e o vigor da acumulação prende o trabalhador ao capital (…). Portanto, a acumulação de riqueza num polo é, ao mesmo tempo, a acumulação de miséria, o suplício do trabalho, a escravidão, a ignorância, a brutalização e a degradação moral no polo oposto, isto é, do lado da classe que produz seu próprio produto como capital. (Marx, O capital I, 2013, pp. 720,721)

Porém a citação é insuficiente para afirmar que o mouro tenha erguido a miséria crescente ao patamar teórico. A questão, por outro lado, passa longe de ser literária e professoral: o

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importante é ver na realidade se há correspondência. Em primeiro lugar, precisamos fazer uma complementação: a assim chamada teoria explica uma lei se estiver correta. Em segundo, é comum que as leis da sociedade sejam tendenciais com suas autocontratendências 25; vejamos alguns casos: 1.

A miséria crescente produz luta de classes (greves, ocupações, etc.), o que, em caso de

vitórias dos trabalhadores, quando o capital é capaz de ceder, pode melhorar as condições de vida ou pelo menos impedir maior deterioração das relações trabalhistas26; 2.

Os momentos de superprodução, antes da III Revolução Industrial, costumam ser

acompanhados do pleno emprego e, por causa das melhores condições de luta, aumento salariais e das condições humanas; 3.

Empresas e Estados imperialistas podem exportar contradições superexplorando os

trabalhadores de outros países e, por tal motivo, oferecendo melhores condições para os proletários de países ricos – mas, em nossa época, com o alto desenvolvimento dos transportes e comunicações, o ―excesso‖ de direitos e salários tende a tirar empresas de determinada nação, ainda que seja a sede oficial, e sua implementação em um país mais viável para extração de maisvalor; 4.

Por causa de pressões econômicas e classistas, o Estado pode intervir de maneira parcial

na realidade para gerar empregos por meio de obras públicas, reduzindo o exército industrial de reserva, algumas voltadas para a qualidade de vida (saneamento básico, etc.). 5.

Pode-se dar alguma qualidade de vida para a classe trabalhadora minando a classe média

(exemplo: o programa Mais Médico no Brasil levou médicos cubanos aos pobres, mas então prejudicou a aristocracia médica do país);

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Dito de passagem, há dúvida se a legalidade dialética de uma tendência produzir contratendências pertence apenas ao ser social, por ser o mais complexo, ou também abarca o mundo natural. Vejamos dois possíveis exemplos que podem responder a questão, no inorgânico e no orgânico. Uma estrela tem tendência a colapsar para dentro de si, de a gravidade fazer aproximação rumo a um buraco negro ou estrela de nêutrons; mas tal tendência produz fusões de átomos, que liberam fótons e estes a empurram para fora, em contratendência; surge uma estabilidade dinâmica na estrela até a tendência impor-se. As grandes extinções destruíram seres vivos e forçaram espécies ligeiramente diferentes a acasalarem entre si, formando eventualmente novas espécies; isso é empiricamente demonstrável desde a atual grande extinção, de origem humana, que tem impulsionado acasalamentos entre espécies diferentes; ademais, a extinção de algumas espécies facilita o surgimento de outras, a extinção dos dinossauros “abriu o terreno” para os mamíferos. Para fins de complemento, até em matemática encontramos uma relação de tendência e contratendência, na conjectura de Collatz. 26 Marx diz “a situação do trabalhador, seja sua remuneração alta ou baixa, tem de piorar.” Ora, a remuneração alta dá melhores condições ao trabalhador, pode melhorar sua situação.

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6.

Pôr maquinário novo pode reduzir o numero de operários totais de uma empresa, logo

com aumento da miséria dos demitidos, e ser acompanhado de aumento de salário e condições de trabalho daqueles que mantiveram o contrato de trabalho, ainda que a taxa de exploração aumente; 7.

Enfim, o capital sendo ao mesmo tempo ―destruição criativa‖ (Schumpeter) e ―criação

destruidora‖ (Chico de Oliveira) – ―Mas ambas são idênticas, o criar é destruidor, a destruição é criadora‖ (Hegel, 2017, p. 224) – resolve as contradições internas que as fases de transição e de declínio da curva história expressam e passa por períodos de ascensão da curva, com maior estabilidade, o que reduz a miséria crescente por algumas décadas. O último ponto é nosso destaque. Como o jovem Marx observou a transição e o declínio de uma das curvas de desenvolvimento, da revolução industrial à primavera dos povos, pode, assim, ver a miséria crescente ser produzida. Diante da qualidade de vida na Europa e nos EUA no pósII Guerra até o início dos anos 1970, teóricos marxistas como Roman Rosdolsky (Rosdolsky, 2001) abandonaram a teoria, e sua lei, aqui comentada. Apenas observando a tendência produzindo a própria contratendência relativa e ao perceber a ligação com as curvas de desenvolvimento histórico se faz possível clarear o tema e resolvê-lo. Trata-se de uma legalidade relativa, tendencial. CURVA DE DESENVOLVIMENTO NO MUNDO E NAS NAÇÕES Em teoria, somos obrigados a tratar níveis de abstração. Os países mais decisivos para o ritmo mundial são os imperialistas e grandes submetrópoles como o Brasil. Eles denunciam uma curva global de desenvolvimento capitalista. Por outro lado, há nações inteiras, como China, que estão em fases nacionais diferentes, de alto crescimento, das curvas de desenvolvimento. Mesmo considerando que a totalidade é o vital para as mudanças mundiais, faz-se necessário explicar essa diferença. Tomemos os dados a seguir:

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GRÁFICO 5

Fonte: (Freeman, 2019) GRÁFICO 6

Fonte: idem. Ambos os gráficos demonstram queda de crescimento após 1970. O trabalho foi feito por Alan Freeman no artigo ―A sexagenária tendência declinante do crescimento econômico nos

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países industrializados do mundo‖. No entanto, em que pese a ótima elaboração, ele evita explicar as razões do declínio. Podemos elaborar, como conclusão geral: quanto mais desenvolvido é, em nosso tempo, o capitalismo de uma nação, menores são as possibilidades de seu crescimento. Por isso, vai ficando cada vez mais – tendencialmente – lento o crescimento de Japão, EUA, Europa etc. O capital aí experimentou quase todas as suas possibilidades. O mesmo é válido ao Brasil, estagnado (PIB per capita) desde 1980, pois é tão maduro sistemicamente quanto pode ser um país não imperialista. Este conheceu taxas de crescimento maiores relativas aos da China atual, destino prioritários dos capitais internacionais por décadas, gerou demanda interna por urbanização no século XX; até que o fim da década de 1970 encontrou um país muito industrializado, muito urbanizado, com luta de classes citadina, elevados comércio e sistema bancário etc. A entrada da China no mercado mundial permitiu um ambiente mais ―saudável‖ para o capital; em diante, o principal país latino-americano conviveu com estagnação per capita do PIB – até hoje presente –, desindustrialização progressiva, crescimentos conjunturais limitados, destruição do patrimônio público por meio da privatização etc. O contrário ocorre em China e Índia, já que possuem uma grande massa populacional rural, espaço para urbanização e novos consumidores, novas terras agricultáveis para agronegócio etc. O capital pode se espalhar e se reproduzir em nações do tipo ―atrasadas‖ a taxas não aplicáveis – na proporção e no tempo – em países mais maduros, com, por assim dizer, excesso de capitalismo. Vejamos os 10 países de maior previsão de crescimento – acima da reconhecida China – em 2017 (BBC, 2017): Etiópia, 8,3%; Uzurbequistão, 7, 6%; Nepal 7,5%; Índia, 7,2%; Tânzania, 7,2%; Djibouti, 7%; Laos, 7%; Vamboja, 7%; Filipinas, 6,9%; Maynanmar, 6,9%. O que há em comum? O alto processo de crescimento tem como causa o baixo desenvolvimento… São países com base – isto é, seus atrasos – para uso de mecanismos estimulantes dos talentos capitalistas: endividamento do Estado, vantagens fiscais às empresas estrangeiras, expulsão dos camponeses, estímulos à urbanização, superexploração da força de trabalho etc. São países cujas características nacionais ainda permitem amadurecer em larga escala elementos capitalistas em oposição aos países que já desenvolveram a industrialização, a urbanização, a grande propriedade rural, etc. e por isso crescem muito menos, possuem menos possibilidades latentes. Os próximos saltos realmente globais de crescimento são alcançáveis apenas por meio de outra sociedade. Até esta se impor, o fraco crescimento do capitalismo nas nações maduras tomará ares desumanos, anticivilizacionais. Será um desenvolvimento destrutivo. O ―excesso de

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maturidade‖ demonstrará um divórcio entre crescimento humano e crescimento econômico de forma cada vez mais evidente e na medida mesma em que este último encontra autobarreiras sob o capital. Há ainda duas observações destacáveis. Em primeiro, o relógio do tempo histórico é internacional. Se o mundo vive a superprodução de capitais e mercadorias, então países como a China terão suas possibilidades ―nacionais‖ de desenvolvimento encurtadas. A temporalidade é, antes de mais, mundial, responde à alta integração das partes, dos países. Os limites da nação respondem, portanto, de um lado a fatores internos como nível de urbanização, industrialização, o grau de desenvolvimento da propriedade rural27 e, de outro, a fatores externos, que podem encurtar a margem de desenvolvimento, como o surgir de países com melhores condições de investimento para o capital internacionalizado, os limites gerais do capital, etc. Japão é, em muitos aspectos, o melhor país para observar a crise sistêmica e, em nosso tema imediato, as limitações internacionais; com o fim da II Guerra, aquele país recebeu um estímulo especial para se reerguer longe de vias socialistas como um câmbio muito desvalorizado; isso permitiu impulsionar a indústria nacional para o mundo, porém chegou-se a um ponto crítico em que começava a ameaçar o poderio estadunidense; este, então, operou todo tipo de pressão até forçar o governo japonês a valorizar sua moeda de modo drástico; a vantagem dissipou-se; o Estado do Japão derrubou os juros, tentou contrabalancear com o consumo interno, e conheceu décadas de quase estagnação com ameaças de depressão econômica a partir de 2008. A necessidade de uma revolução social para retomar a prosperidade consolidou-se por combinação de fatores internos e internacionais. Em segundo, o neoliberalismo é uma necessidade do capital quando o desenvolvimento nacional encontra limites, quando se esgota; tem de satisfazer a necessidade de acumulação capitalista por meio de privatizações, redução de serviços públicos, etc. Já em países em ―desenvolvimento‖, o keynesianismo é a política econômica adotada, que tem em seu próprio ventre o seu oposto, a futura adoção do paradigma neoliberal. De modo idealista, os políticos e os economistas ―progressivos‖, muitos de esquerda, reclamam e apontam diferenças entre as medidas de um Estado contra as de outro. Pedem que a razão tome de assalto o governo e ilumine, pelo exemplo, a mente dos estadistas. Ora, falta responder por que as coisas são tal como são, por que acontecem de maneira necessária, assim. É nas bases materiais que encontramos a resposta da adoção prática desta ou daquela teoria econômica instrumental. Quem está contra o governo ―privatista‖ mas nunca contra o capitalismo, quem quer de volta o poder

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O desenvolvimento dos três elementos citados – urbanização, industrialização, grande propriedade rural – são destacados ao longo do livro, por isso chamamos atenção ao leitor.

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estatal de Keynes, perde a locomotiva da história porque olha para o passado, nega a necessidade do socialismo, do futuro. Na fase imperialista, o poder estatal surge como o grande capitalista, capaz de endividar-se, de concentrar dinheiro para investimentos de grande porte típicos da época imperialista, ser o comprador por excelência, etc. Mas tão logo o desenvolvimento do capital encontra barreiras ao seu autodesenvolvimento privado, a principal superestrutura burguesa, o Estado, atua em defesa da taxa e da massa de lucratividade de sua classe. O modelo neoliberal demonstra que o modo de produção capitalista esgota-se, precisa e pode ser superado. Não é o modelo keynesiano que levou ao crescimento mas as condições da economia que permitiram o crescimento e a adoção da política econômica correspondente. O idealismo cede lugar ao materialismo.

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O DINHEIRO

A FORMA MATERIAL DO DINHEIRO Há certas polêmicas quanto ao dinheiro sobre os quais trataremos de maneira apenas indireta. Alguns, por exemplo, afirmam que tal forma social nunca precisou de fato do ouro; outros consideram sua forma vigente sem valor ou apenas fictício. Apresentaremos em diante algumas teses sobre o ser enigmático e cobiçado. *** A característica física do dinheiro mundial segue o mesmo caminho do dinheiro nacional, mas em um ritmo mais lento. Quando a equivalente geral nacional expressa-se pelo o ouro (ou prata) em especifico, o comércio internacional adota o escambo ou uma mercadoria ―falha‖ 28. Assim, a lei mantém-se enquanto tendência: quando o dinheiro nacional começa a expressar-se por meio do papel-moeda e do cobre lastreados em ouro (séc. XVIII, XIX), o dinheiro mundial segue atrasado, ou seja, é ainda o próprio ouro enquanto dinheiro mundial. Quando o dinheiro nacional deixa de lastrear-se em ouro, a sua versão internacional – ao seu modo, a libra inglesa, primeiro; o dólar, depois e até 1971 –, ao contrário e correndo atrás, continua ainda lastreado em ouro, em equivalência. Depois, o padrão dólar-ouro é rompido, mas continua a correr tendencialmente atrás do dinheiro nacional, pois a última começa um passo novo: a digitalização por meio, em especial, dos cartões de débito e crédito29. Abstração necessária à análise, Carcanholo desenvolveu com maestria a tendência à desmaterialização do dinheiro. Disponibilizamos trechos do artigo-réplica ―Sobre a Natureza do Dinheiro em Marx‖:

Esse processo progressivo de domínio do valor sobre o valor-de-uso, no interior da unidade

contraditória

chamada

mercadoria,

constitui

o

que

chamamos

―desmaterialização progressista da riqueza capitalista‖. Isso, por uma razão muito simples. O valor-de-uso é o conteúdo material das mercadorias e fica determinado pelas características (conteúdo e forma) materiais de cada uma

28 Iniciamos a abstração pelo século XVI, pelas grandes navegações; portanto, o dinheiro antes e em outros sistemas não nos interessa aqui. Fumo, conchas, aguardente, açúcar, etc. foram usados como dinheiro no triângulo comercial Portugal-Brasil-África. Ademais, o comércio começou como troca entre diferentes povos, iniciando pela troca mercadoria-mercadoria (escambo), para depois ser uma realidade interna destes. 29 Essa desigualdade (temporal) da forma dos dinheiros nacionais e mundial, o ritmo descompassado de suas mudanças, é tendencialmente reduzida quanto mais evoluído está o capitalismo.

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delas. O valor é sua dimensão social. O domínio deste sobre aquele implica a desmaterialização do conceito riqueza capitalista, desmaterialização da mercadoria. […] É justamente no dinheiro, e posteriormente no capital, em que se manifesta de maneira mais aguda e evidente o processo de desmaterialização, […] o dinheiro apresenta-se desprovido completamente desprovido de todo valor-de-uso. […] Mas, desde muito antes, desde a sua gênese, nos princípios da forma de equivalente, já se apresenta o processo de desmaterialização. Por exemplo, já na forma geral do valor, Marx afirma que o valor da mercadoria distingue-se não só do seu próprio valor-de-uso, mas de todo valor-de-uso, inclusive naquele próprio da mercadoria, ao aceitar o equivalente em troca da sua, não está interessado no valor-de-uso deste. A desmaterialização continua no dinheiro (ouro), mas ainda a materialidade-ouro continua ali. O processo fica muito mais evidente quando mais avançado, no dinheiro de curso forçoso e no dinheiro de crédito (que são as formas que conhecemos atualmente e que são estudadas por mais no livro III d‘O Capital). […] Por mais Impressionante que seja a desmaterialização já alcançada do dinheiro, ela ainda não chegou ao fim. Ela prossegue seu curso e, com certeza, a desmaterialização total, embora ansiosamente buscada pela lógica do capital, jamais poderá ser alcançada. [nota 4] As agudas crises fmaterialidainanceiras dos nossos dias são a manifestação mais cabal dessa contradição do sistema: o desejo incontido do capital pela desmaterialização e sua impossibilidade completa. (Carcanholo R. , 2002)

A que se deve isto? A questão que se nos apresenta é: por que destas duas leis, desmaterialização e ritmos desiguais entre dinheiro nacional e mundial? Ora, o capítulo I d‘O Capital I demonstra o valor e a construção da ―mercadoria das mercadorias‖ por um caminho: a relação conteúdo-forma: quanto mais tipos, mais fluxo e mais troca de mercadorias (conteúdo) existentes – quanto mais complexo e ativo o movimento delas – cada vez faz mais necessário destacar um elemento específico do conteúdo, elevá-lo, para que sirva de equivalente geral ou forma. Assim surge alguma mercadoria como meio de troca; depois, ouro; em seguida, o dinheiro-papel. O conteúdo, o mundo das mercadorias, possui características inerentes, quais sejam: tendência ao movimento, à instabilidade, à mudança, ao novo, à não-conservação. Por outro lado, fruto da contradição interna do conteúdo, a forma também possui singularidades: tende a conservar, à estabilidade e constância. Como o conteúdo, a forma tem duplo caráter: progressivo na medida em que conserva conquistas, consolida etapas; regressivo na medida em que tende ao conservadorismo, à estabilidade, a entrar em importante contradição com as necessidades novas do conteúdo. Portanto, pode haver contradição ente o conteúdo e a forma, que é superada cedo ou tarde a favor conteúdo, fazendo surgir uma forma nova.

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O dinheiro em geral, seja qual for sua forma física, ainda possui lastro, que não é mais a mercadoria-ouro, mas o conjunto das mercadorias. Assim, o dinheiro recebido representa idealmente o possível acesso a outras mercadorias, e mede-se assim. O valor expresso no dinheiro é determinado por sua capacidade de prover acesso a outros objetos. Ou seja, mede-se o lastro por sua proporção com essa substância geral, com o conjunto do valor por meio da possibilidade de acesso a outros valores de uso. Quando o dinheiro passou a se expressar no papel-moeda, ainda podia-se trocar pela mercadoria específica ouro; esta capacidade de troca pela mercadoria dourada já fazia surgir de modo latente a possibilidade de lastro com o conjunto das mercadorias, pela troca por outros produtos dotados de valor e preço.30 Porque na forma de expressão autônoma, separada, do valor-trabalho o lastro torna-se indireto, no lugar de direto à mercadoria específica ouro, ocorre com o dinheiro processo de meior autonomia relativa e torna-se ―dinheiro fictício‖, segundo expressão feliz de Eleutério Prado (Prado, Dinheiro: entre a ficção e o fetiche, 2020). A tentação governamental de oferecer quantidade maior de moeda, deslocando-se de seu lastro, em principal em momentos de crise, tende a diminuir o poder de compra do dinheiro, sua desvalorização, embora a maior base monetária seja apenas um dos fatores causais para uma possível inflação. O dinheiro mundial também é lastreado pelo conjunto das mercadorias ou, mais exatamente, pelo conjunto do valor. O fato de este ser o dólar expressa um fator histórico: os EUA produzem e consomem parte significativa das mercadorias de todo o mundo; natural, por conseguinte, que o lastro-valor agarre-se a esta moeda – o domínio militar garantidor desta ordem é consequência, que adquire aspectos de causa31. O controle da Alemanha sobre o Euro possui o mesmo motivo. A industrialização e urbanização da China, pela mesma razão, coloca em decadência esta realidade. Como percebemos, o equivalente geral expressa a realidade em sua forma física. O melhor exemplo do lastro é a mercadoria mais importante e cobiçada do mundo, o petróleo, na 30

Durante minha pesquisa, encontrei por acaso, por exposição de um militante, uma citação creditada a Hitler: "Nós não éramos imbecis ao ponto de tentar fazer uma moeda [lastreada em] ouro, do qual nada possuíamos, mas para cada marco que era emitido nós exigíamos um marco de valor de trabalho feito ou de bens produzidos... Nós ríamos das ocasiões em que nossos financistas nacionais apregoavam que o valor de uma moeda é regulado pelo ouro e pelos títulos do tesouro jazendo nos cofres de um banco estatal." Não encontrei nenhuma prova da veracidade dessas palavras, porém elas expressam muito bem o espírito das ideias sobre o dinheiro que aqui apresentamos, infelizmente talvez pela boca de um dos piores homens que a humanidade produziu. 31 Esta consequência desenvolve ares de causa. Este caráter duplo relaciona-se com a decadência do império norteamericano. O dólar como dinheiro e reserva internacionais, além de manter o nível consumo sustentado no deficit comercial, permite manter seu poderoso aparato militar em todo o mundo. Por isso, interessantíssimo o fato de algo tornar-se sua própria negação: a produtividade e consumo nos EUA permitiu sua moeda torna-se a forma do dinheiro mundial; mas isso abriu caminho para a desindustrialização futura e entrada facilitada do capital-mercadoria, com o nível de consumo controlando a luta de classes interna.

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medida em que o império americano há muito garante, com diplomacia e ameaça, a compra internacional de ouro negro apenas por meio de sua moeda, processo batizado ―petrodólares‖ 32. Aqui já observamos o erro de Marx ao considerar, em sua época, que o dinheiro adquire sua forma típica em ouro no mercado mundial, isto é, chegou a uma conclusão estática e incapaz de ver o desenvolvimento da forma material. Outro modo de demonstrar o lastro do dólar percebe-se quando os EUA emitem moeda para "compensar" seu déficit na balança comercial, mantendo o nível de consumo interno. Assim, ao emitir de maneira artificial a moeda, o Banco Central força, de fato, o lastromercadoria. Já o dinheiro virtual é lastreado, por enquanto, na cédula e similares. Tal lastro é garantido informalmente por 1) cálculo dos bancos do quanto lhes será exigido de dinheiro físico e quanto pode fazer circular em bits; 2) depósito compulsório que as instituições financeiras são obrigas prover ao banco central. Quando se paga no cartão de crédito supõe-se que esse pagamento é substituível por papel pintado ou que os bits são transformáveis em dinheiro-papel tão logo o suporte-cartão entre em contato com o banco ou caixa-eletrônico. De acordo com o debatido sobre a desmaterialização, o dinheiro virtualizado também tende a perder seu lastro imediato, tende a desprender-se do dinheiro-papel. Neste sentido aponta a matéria a seguir, sobre a moeda da Suécia: ―Dinheiro [em papel] pode sair de circulação na Suécia até 2030‖ ―O fim do dinheiro de papel já é uma morte anunciada na Suécia: até 2030, as cédulas e moedas deverão virtualmente desaparecer no país, que lidera a tendência global em direção à chamada ―sociedade sem dinheiro‖. A projeção é do Banco Central Sueco.‖ ―É o prenuncio de uma nova era, dizem especialistas. A previsão é de que, no futuro, as economias modernas serão dominadas pelo uso do cartão e da moeda eletrônica em escala mundial.‖ ―Na Suécia a transformação é visível […]‖ ―Novos dados do Banco Central indicam que as transações em dinheiro representam, atualmente, apenas 2% do valor de todos os pagamentos realizados na Suécia – contra a média de 7% no restante da Europa.‖ […] ―‘A Suécia continua à frente do resto da Europa em relação à redução do uso do dinheiro do papel. E principalmente dos Estados Unidos, onde cerca de 47% dos

32 Desde a Guerra do Iraque, é quase uma sabedoria popular a importância do petróleo para o capitalismo, fonte de energia e matéria-prima para a indústria (plástico, etc.). Seu preço tem repercussão vital sobre os demais preços.

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pagamentos ainda são feitos em dinheiro‖, acrescenta Nilervail, que destaca os avanços dos vizinhos nórdicos, Noruega e Dinamarca, na mesma direção.‖ […] ―Até nos quiosque de flores do bairro de Odenplan, no centro da capital, um aviso foi colado: ―Preferência para pagamentos em cartão‖. Feirantes e ambulantes também se adaptam à tendência e trabalham equipados com leitores portáteis de cartões.‖ (Wallin, 2016)

Como repetição histórica, sabe-se que o dinheiro em ouro era constantemente roubado, e por isso passou a ser guardado e substituído por um papel que o representava; assim hoje, a atividade econômica ―roubo‖ estimula e acelera o processo de desmaterialização do dinheiro, como aponta também a matéria: ―Ladrões de banco vão se tornado, assim, personagens do passado. O número de roubos em agências bancárias vem atingindo o índice mais baixo dos últimos 30 anos, segundo a Associação de Bancos Sueca.‖ […] ―Em 1661, as primeiras cédulas de papel da Europa foram introduzidas pelo Stockholms Banco, o embrião do Banco Central da Suécia. Agora, ironicamente, os suecos vão se tornando os primeiros do mundo a desprezar o dinheiro vivo.‖(Idem)

O lastro do dinheiro virtual em relação ao ―físico‖ tende a se perder, além dos fatores expostos, pelos seguintes movimentos: 1. A demanda por dinheiro leva aos bancos a tenderem a negligenciar o lastro informal, a relação entre bits e a possibilidade de saques desse dinheiro em forma física; 2. O próprio banco central tende a reduzir a proporção de lastro – quando deve ser guardado em conta do BC – para socorrer os bancos diante das crises. Destes, agregamos: 3. Intensificação do processo de circulação; 4. Menor custo de produção, transporte e armazenagem do dinheiro virtual relativo ao físico – assim como ocorreu com o dinheiro em papel em relação ao ouro. São as imediatas, visíveis, consequências capitalistas da digitalização do dinheiro:

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1) Maior controle social do capital financeiro sobre a circulação – e o conjunto da sociedade; 2) Lucro por juros nos meros processos de compra-venda; 3) Garantias à circulação: contra cheques sem fundo, calotes33 etc. Retomemos a história. Pela quantidade e intensificação, o ouro foi necessário como equivalente geral, expressão do valor, por suas características físicas e por seu valor em uma etapa específica de complexidade, do fluxo de mercadorias. Mas pela mesma razão – as características físicas – tornou-se uma forma atrasada, lenta, para poder seguir o conteúdo, a evolução do capitalismo, ou seja, o cada vez mais intensivo e extensivo mercado. Esta é a explicação geral para a lei da tendência à desmaterialização. O dinheiro adquire ―massa‖ no seu processo de aceleração e ampliação histórica para, em diante, pelas mesmas razões, tender à desmaterialização. Karl Marx, embora não tenha percebido isto com clareza, presenteia-nos ele mesmo com a tese: Título de ouro e substância de ouro, conteúdo nominal e conteúdo real iniciam seu processo de separação. […] Se o próprio curso do dinheiro separa o conteúdo real da moeda de seu conteúdo nominal, sua existência metálica de sua existência funcional, ele traz consigo, de modo latente, a possibilidade de substituir o dinheiro metálico por moedas de outro material ou por símbolos. A dificuldades de cunhagem de moedas muito pequenas de ouro ou prata e a circunstância de que metais inferiores foram originalmente usados como medida de valor no lugar dos metais de maior valor – prata em vez de ouro, cobre em vez de prata – e desse modo, circulam até ser destronados pelos metais mais preciosos, esclarecem historicamente o papel das moedas de prata e cobre como substituta das moedas de ouro. Tais metais substituem ouro naquelas esferas da circulação das mercadorias em que a moeda circula com mais rapidez e, por isso, inutiliza-se de modo mais rápido, isto é, onde as compras e as vendas se dão continuamente de modo mais rápido, isto é, onde as compras e as vendas se dão continuamente numa escala muito pequena. (Marx, O capital I, 2013, p. 199)

33 Exemplo: dedução automática da parcela de um empréstimo no salário; este último recebido pelo trabalhador num – por meio do – banco, não mais em escritório específico da empresa, como era até a década de 1980.

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E completa: ―Para impedir que estes metais satélites tomem definitivamente [! – exclamação nossa] o lugar do ouro, determinam-se por lei as proporções muito ínfimas em que eles podem ser usados no lugar desse metal.‖ (Idem.) Percebemos que o Estado intervinha contra a tendência ao desprendimento do equivalente geral do ouro. O ritmo poderia – e conjunturalmente deveria – ser mediado pela equivalência, porém, mais ou menos dia, o dinheiro estava destinado a abrir mão do lastro em metal precioso. A causa é a fluidez das mercadorias e, por consequência, do equivalente geral. Por outro modo de abstração, entre o ouro como dinheiro e o papel-moeda sem lastro direto tivemos uma secular transição por meio do dinheiro lastreado em ouro. Na prática e pela extensa duração, fora muito mais que mera forma transitória, pois o lastro era necessário para o nível de complexidade da circulação mercantil naquele e daquele momento histórico, sendo cada vez menos necessário a equivalência do ponto de vista do conteúdo-mercadoria. O suporte, a forma do equivalente geral, precisa, portanto, ser matéria capaz de acompanhar a velocidade e o fluxo das mercadorias. Essa é uma das razões da necessidade de expressar o valor cada vez mais tendencialmente desmaterializado – embora esta lei nunca se realize em plena forma-pura – durante o desenvolvimento do reino das mercadorias, cada vez maior, extenso, e cada vez mais intenso. Sigamos a aceleração capitalista. As revoluções na produção produzem mais mercadorias, mais tipos e vendem-se em maior quantidade de espaços, distâncias e em menor tempo; logo, o dinheiro deverá expressar a agitação festiva do conteúdo: mudanças incluem a mercadoria dinheiro. Quando as revoluções do valor fazem surgir novas tecnologias – máquina a vapor, eletricidade, a digitalização, a automação, etc. – as técnicas novas fazem surgir, portanto, mercadorias novas e, principalmente, quantidade nova de mercadorias no comércio. As inovações técnicas renovadoras das mercadorias têm de renovar, também, a mercadoria-mor, o equivalente geral, o dinheiro; mais uma vez, a forma do dinheiro expressa a própria realidade em sua estrutura física, isto é, expressa o desenvolver das forças de produção em forma corpórea. No início, isso se dá por meio do crédito; quando a economia se aquece, oferendo mais mercadorias e mais possibilidades de produção, o banqueiro não pode esperar a entrada de ouro em seus cofres (primeira e segunda eras) ou de dinheiro-papel (hoje), bastando dar ao desejante de crédito um símbolo representativo da riqueza entesourada, em papel ou bits. Exemplo: as novas tecnologias criaram quantidade maior de mercadorias e necessidade de impor uma realidade onde elas circulem tão bem quanto possível; o mesmo desenvolvimento permitiu a digitalização da moeda como possibilidade e, com o evolver do sistema, necessidade. Adiantamos, no entanto,

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que esta base produtiva é importantíssima, mas o processo de mudança também se dá por mudanças na circulação e com certa autonomia relativa em relação à produção de mercadorias. Percebamos: dinheiro = ouro representa e é típico do mercantilismo, do capitalismo mercantil (século XVI ao XVIII); dinheiro = moeda com lastro em ouro ou prata deriva do ciclo de era industrial do capitalismo, da revolução industrial (século XVIII ao final do XIX) – ainda que o papel-moeda tenha sua origem e inicial desenvolvimento na Europa tempos antes; dinheiro = lastro no conjunto das mercadorias representa a fase do capitalismo imperialista, financeiro; digitalização = quarta era do capital, III revolução da indústria, a partir de 1973. Basta-nos observar alguns fatos: o lastro em ouro fora rompido nas moedas nacionais com a I Guerra Mundial, anjo anunciador da imperialismo; desde então, o lastro foi descartado e as tentativas de retorná-lo foram teórico e empiricamente abandonados. No mesmo sentido, por dificuldade em manter quantias de metais em circulação (guerras, escassez do metal, alta circulação de mercadorias, hiperinflação, etc.), em meados do século XVIII, Estados e bancos utilizaram moedas em papel ou em metal não-nobre para representar quantias em estoque possíveis de acumular – antes, estas formas conversíveis eram embrionárias. As eras do capital determinam o modo como o dinheiro encarna-se no mundo. Claro também está que não é uma determinação mecânica, mas é uma determinação ainda; a desigualdade evolutiva e certos zigue-zagues acidentais apenas demonstram o quanto cada um desses quatro momentos históricos do capitalismo acaba impondo-se. No entanto, as formas-suportes passadas do dinheiro não podem ser superadas em absoluto – guardam alguma utilidade, alguma função. Quando o capitalismo emperra e sofre por gastrite da superprodução, da crise, o ouro e a prata passam a ter um papel um pouco mais relevante (transferência de investimentos em ações para estas commoditys, comércios específicos, custeio em conflitos miliares, etc.) ou o escambo (mercadoria por mercadoria); mas nunca passarão de um papel auxiliar já que não representam em absoluto as necessidades do valor e da intensa circulação de mercadorias. Para ilustrar, basta tomar nota de que as reservas são feitas nos títulos de países com juros negativos, isto é, mesmo perdendo dinheiro, pois são títulos seguros e há possibilidade de conseguir lucro futuro no mercado de câmbio. Em resumo, um fator fundamental atua na mudança da forma material do dinheiro, a quantidade das trocas (principalmente quando simultâneas). É elemento da circulação de mercadorias, não da produção, embora esta dê a base material. Por isso, por crescentes trocas particulares, na China do século XIII pôde-se adotar o papel-moeda antes dos europeus, que usavam ainda ouro (Harford, 2017).

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Se é necessário ser mais claro, sejamos. O dinheiro mundial muda-se de matéria de modo mais lento que o dinheiro nacional, pelo menos até o advento do dinheiro virtualizado, porque a quantidade de trocas é menor – e evolui mais lentamente – em relação às tantas, pequenas e grandes, trocas dentro de um país. O mistério ―O que eu tenho no bolso?‖ está resolvido. Este capítulo teve sua primeira versão em 2015; desde lá, o preocupante caso da Venezuela – que, diga-se de passagem, é capitalista e precisa de uma revolução social urgente – reforçou empiricamente a teoria aqui elaborada como caso singular. Naquele país, houve a ―doença holandesa‖, ou seja, neste caso, o preço de mercado do petróleo manteve-se altíssimo por anos, levando prosperidade aos venezuelanos, grandes produtores de tal mercadoria. Com dólar entrando em massa, ficou mais barato importar mercadorias do que produzi-las, então a produção industrial não petroleira, em geral, definhou. Mas tudo produz seu contrário. Os preços altos atraem investimentos em busca de grandes lucros, faz compensar extrair o óleo em poços mais profundos, mais custosos, e obriga a busca de alternativas energéticas, além de gerar crise em outros setores por alto custo da matéria-prima, o que derruba a demanda; enfim, após a euforia, com grande oferta mundial, os preços do petróleo desabaram e também desabaram feito uma bomba atômica sobre a Venezuela, dependente de produzir uma grande mercadoria. O resulto é conhecido: a bruta deflação do bem exportado gerou seu oposto, hiperinflação dos necessários importados… Aqui começa nossas observações. Os EUA, visando controlar o ouro negro da região, aproveitaram o desespero da crise, tentaram estrangular financeiramente o país. O governo reagiu com muita criatividade: após fracassos sucessivos de suas medidas, fundou o Petro, sua moeda digital, criptomoeda, lastreada no petróleo – um acerto, pois o dinheiro é lastreado nas mercadorias e na mercadoria central, como demonstramos. Teve-se de ir além. Faltando de tudo naquela nação, o custo de produzir dinheiro, algo ainda mais demandado com a hiperinflação, ficou imensamente acima do valor nominal do próprio dinheiro produzido! Logo, a governança teve de estimular a digitalização de sua moeda oficial em substituição ao papel-moeda – neste caso, vale a pena destacar, mais uma vez, que o desenvolvimento tecnológico cria a possibilidade de substituição da matéria do dinheiro, tornando-se possibilidade crescente, cada vez mais necessário. Vejamos, agora, o terceiro elemento: a desvalorização da sua moeda tem relação direta com a desindustrialização do país, baseado no boom de consumo geral de importados baratos. Por último, o dólar tem sido cada vez mais usado como moeda em seu território; isso é uma forma deformada e indireta de expressar a tendência, mas apenas a tendência, superada e suprassumida pelo socialismo, de maior unificação monetária. Se o Brasil tivesse ―vocação‖ para ser um imperialismo do tipo menor, poderia oferecer o Real como opção de moeda, mediante acordos especiais, durante as crises ―monetárias‖ na América Latina, mas sobre suas costas há a

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pata firme do monstro imperialista. De qualquer modo, a revolução socialista latino-americana permitirá a unificação monetária do subcontinente antes de quase extinguir o dinheiro como o mediador das relações sociais. *** Marx e Engels consideram o dinheiro, em essência, ouro; e isto para eles se revelava no mercado mundial. Por isso, consideravam a matéria-ouro um limite em si do sistema. Este erro confunde a forma física e natural com seu uso conjuntural e histórico. O equivalente geral é, antes de tudo, parte de uma relação social específica, tem caráter social: quanto mais geral, social e consolidado – aparentemente natural – o sistema menos precisa justificar-se, em sua forma ímpar, diretamente naquela mercadoria. Quanto mais natural parecer o sistema capitalista, menos precisa de uma forma natural, o ouro, para disfarçar sua natureza social, ou seja, sua natureza transitória, histórica e instável. O dinheiro revela o nível de alienação das relações sociais capitalistas. Em nossa era, atinge a forma mais reificada, mais fetichista ao parecer, aparência, independe das relações materiais onde opera – o lastro torna-se cada vez mais indireto. Por isso o trabalho científico de rastrear as ligações íntimas do dinheiro virtual e impresso, dólar-petróleo, do dinheiro com o conjunto das mercadorias etc. A tendência à moeda em total virtual, apontando níveis altíssimos de produtividade, perdendo seu lastro atual, mostra-se sintoma de um sistema próximo a desmanchar-se. Desde a origem da civilização, a história do dinheiro descreve a tendência ao fim deste: de materialidades frágeis – boi, sal etc. – ao ganho de materialidade – cobre, metais não nobres – até a forma material elevada – prata e ouro – para, em seguida, perder materialidade – ouro por cobre, por papel-moeda, por bits. Da imaterialidade à, cada vez mais, materialidade e, em diante, à imaterialidade. É uma tendência à inexistência, ao desaparecimento. Demonstra e expressa tanto o desenvolvimento da relação social de valor quanto, em diante, sua tendência à autossupressão. O dinheiro digital, virtual, é, assim, a forma material última. Toda moeda tem dois lados, mas quatro dimensões. Tempo é dinheiro: o capital reduz o tempo de trabalho, o tempo de reprodução, o tempo de circulação, enfim, seu fundamento abstrato. A tendência à moeda unificada visa acelerar as rotações do capital, reduzir o tempo e o custo de circulação, facilitar o movimento do dinheiro e da mercadoria. Doutro modo, sem maior unidade interfronteiras e monetária, as crises seriam mais duras econômica e politicamente, as barreiras à produção capitalista seriam sentidas com maior abalo. O tema do dinheiro leva-nos ao seu destino sob o socialismo. Um progresso contínuo e desigual de deflação, aumento da produtividade do trabalho, fará o caminho da extinção daquela

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forma mercantil; quando surge a possibilidade produtiva de uma oferta tal que os preços fiquem abaixo dos custos de produção, então será a hora de encerrar a forma do valor de troca na distribuição de parte considerável dos produtos – há um salto. Com algum atraso, a forma de distribuição será mudada. N‘O Capital II, Marx conclui: Não entra em cogitação na produção socializada o capital-dinheiro. A sociedade reparte a força de trabalho e os meios de produção nos diferentes ramos de atividade. Os produtores poderão, digamos, receber um vale que o habilita a retirar dos estoques sociais de consumo uma quantidade correspondente a seu tempo de trabalho. Esses não são dinheiro. Não circulam. (Marx, O Capital - livro 2, 2014, p. 406)

Na transição ao socialismo, os cartões de débito e crédito, suportes do dinheiro digitalizado na revolução informacional, permitirão absorção muito mais exata dos dados sobre consumo, demanda, necessidades sociais e fluxos na distribuição de produtos. Um banco único estatal com dinheiro virtualizado, encaminhando o fim dessa forma enquanto forma do dinheiro, o permitirá. Tais cartões (ou mesmo o uso de celulares) deixarão de ser suportes do meio de circulação e endividamento. O desenvolvimento técnico aí pede nova forma social34. Percebemos, logo, o limite determinado historicamente sobre o maior crítico e, ao mesmo tempo, maior teórico do capitalismo: dos vales permitíveis das I e II revoluções industriais, com seus limites inerentes, à contabilidade geral científica, rápida e precisa, na produção e na distribuição, possível desde a III revolução tecnológica. Lenin afirmou que o controle financeiro sobre a produção oferecia bases ao socialismo, ao planejamento geral; o controle também sobre a distribuição, os processos de troca, conclui a tarefa histórica. MEIO DE PAGAMENTO A relação credor-devedor generalizou-se no capitalismo contemporâneo. Para manter a rotação do capital, unidade de produção e circulação, o capitalismo endividou os assalariados, as empresas e o Estado. Quando o dinheiro é meio de pagamento, o comprador recebe o valor de uso antes de dar, em troca, o valor da compra. A generalização do meio de pagamento ao mesmo tempo esconde e revela que as relações sociais podem prescindir das relações de distribuição burguesas, da mediação do mercado, isto é, dos preços. O endividamento geral da sociedade é mecanismo de retardo de explosão na forma de crises cíclicas mais duras, portanto retardo também da 34

Antes, o novo Estado concluirá a digitalização da moeda, como observa Paul Cockshott: “Remover todo o dinheiro em papel e moeda, substituir por cartões de crédito eletrônicos.” (Cockshott, Big Data e Supercomputadores: Fundamentos do cibercomunismo, 2020).

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possibilidade de socialismo. A superprodução crônica latente é base da abundância socialista, mas, sob as relações atuais, é dado um estímulo ao consumo por meio da dívida. As forças produtivas evoluíram, mas as relações de produção mantêm-se: a contradição toma forma de uma relação jurídica entre credor e devedor. A não mediação imediata do dinheiro na troca, como meio de pagamento, generaliza-se como realidade invertida da futura não mediação do dinheiro na sociedade. Em momentos históricos muito diferentes, houve também processos transitórios para novos modos sociais a partir da luta de classes entre devedor e credor: A luta de classes no mundo antigo, por exemplo, apresenta-se fundamentalmente sob a forma de uma luta entre credores e devedores e conclui-se, em Roma, com a ruína do devedor plebeu, que é substituído pelo escravo. Na Idade Média, a luta tem fim com a derrocada do devedor feudal, que perde seu poder político juntamente com sua base econômica. Entretanto, a forma-dinheiro – e a relação entre credor e devedor possui a forma de uma relação monetária – reflete aqui apenas o antagonismo entre condições econômicas de existência mais profundas. (Marx, O capital I, 2013, p. 209)

A distribuição como distribuição apenas de valor de uso está latente. A forma jurídica, a forma da dívida, esconde a possibilidade posta. Surge, então, no horizonte a necessidade de exigir o cancelamento total e irrestrito das dívidas dos trabalhadores e pequenos empresários como parte de um programa de transição em nossa época. O alto endividamento dos Estados, frequentemente para lidar com as crises do sistema, é um fator da crise latente do aparelho estatal capitalista, junto a outros fatores que visam dar fôlego à lógica do lucro (privatizações; grandes empresas militares, de produção de armas e componentes até mercenários etc.). Nas empresas, conseguiu-se o desenvolvimento máximo por meio de dívidas impagáveis, o que coloca a falência e o maior controle financeiro sempre diante de si, em uma fuga constante para frente. Marx já observava a relação em que uma fábrica adianta (ou seja, dá o valor de uso antes de receber o valor em dinheiro) seu produto, matéria-prima, para outra fábrica, que por sua vez também adianta suas mercadorias ao comerciante, que, enfim, adianta a mercadoria ao consumidor, que somente paga após certo prazo… O alto grau desse processo hoje é o que demonstra a relação de valor e de preço prestes a desabar, sendo substituído pela distribuição planejada dos valores de uso. A concepção errônea de que o dinheiro é uma convenção social, não uma necessidade imposta "inconscientemente" pelo grau e tipo de desenvolvimento social específico e histórico, tem ganhado força porque tem alguma verdade em si, pois o avanço da humanidade já pode fazer do dinheiro mera convenção social, ou seja, pode descartá-lo na lata de lixo da história ou como

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peça curiosa de museu, onde estará escrito: por este pedaço de papel, os homens matavam uns aos outros.

A VARIAÇÃO DA TAXA DE JUROS Como debatemos em outro capítulo, a taxa de juros responde, no sentido de balizar-se, à taxa de lucro; aquele é uma parte deste e o juro é uma parte do lucro total. Mas a variação da taxa de juros deve-se, de modo geral, à demanda por dinheiro. Marx faz tais afirmações nos manuscritos d‘O Capital III são manuscritos, faltando revisões e aprofundamentos. Neste e no próximo subcapítulos, regataremos Marx para polemizar com o reformismo teórico e, no necessário, pôr algumas atualizações. A elevação ou a queda dos juros são duas táticas burguesas para o enriquecimento, sem distinção, por isso a burguesia e seu Estado atuam à revelia das teorizações em que defendem um ou outro mecanismo; usa ora um e ora outro. Por quê? Porque a tendência – à elevação ou queda35 – transforma-se em sua negação, seu inverso. Vejamos um exemplo típico. A elevação de juros aumenta o lucro dos bancos, leva à falência as empresas ―em excesso‖, aumenta o desemprego, o que rebaixa salários e eleva a disciplina dos assalariados (quebra as greves), permite fusões de investimentos, atrai investimento especulativo influenciando o câmbio (importações mais baratas) (Serrano, 2010), etc. Tal ação, logo mais, torna as dívidas impagáveis, rebaixa o consumo a níveis perigosos, produz-se luta de classes a partir do ―segundo momento‖ da conjuntura, ocorre deflação ou inflação baixa, diminui a demanda por dinheiro, atrai investimento internacional como para os títulos da dívida melhor remunerados etc. Ou seja: estimulam o movimento oposto: surgem as condições para baixar a taxa de juros. A queda da taxa de juros estimula o setor produtivo, gera novos empregos, afasta parte do capital internacional (influenciando o câmbio), torna as dívidas pagáveis (o que reduz ainda mais os juros). E surge mais uma vez o oposto: a demanda de moeda aquecida aumenta a taxa de juros, a superprodução produz desconfiança dos bancos (aumentam os juros diante do risco acrescido, já que os pagamentos começam a faltar – os empresários produtivos também estão dispostos a pagar dívidas vencidas impagáveis com dívidas novas com juros maiores), ocorre o afastamento do capital especulativo internacional, o capital necessita que se ―limpe‖ a concorrência demasiada 35

Abstrairemos as pequenas flutuações e focaremos nas “ondas longas”. Além disso, a teoria que expomos aqui é ainda mais condizente nos EUA; o Fed (banco central) deste país afeta as taxas de juros nas demais nações ao alterar suas próprias taxas. Assim, se lá aumentam-se os juros, logo atrai capital para si, para os títulos de dívida estadunidenses, tirando dólar e investimento de outros países, que são, em regra, forçados ou pelo menos “estimulados” a compensar também elevando os juros, para voltar a atrair capital.

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e precisa que a taxa de desemprego cresça para disciplinar os trabalhadores (o salário desses tende a aumentar com o pleno emprego, e esta é a verdadeira inflação combatida no superaquecimento da economia) – a taxa de juros, então, responde com o devido aumento. A queda da taxa de juros deu as condições do seu oposto, a elevação. O movimento dialético, de uma tendência produzir as condições de seu oposto, e vice-versa, é o que interessa aqui. Em certa medida, abstraímos outros fatores e tratamos de modo mais puro a questão. A realidade, os ciclos industriais da indústria e do comércio, que tende a forçar e estimular a queda ou aumento da taxa de juros, a relação de oferta e demanda por dinheiro, transforma-se também em efeito da mudança da taxa por meio da causalidade recíproca. Os economistas do banco central ―fazem-no, mas não o sabem‖ (Marx) sobre a real razão da variação da taxa de juros de curto prazo; como dissemos, por exemplo, a chamada curva de Phillips – pleno emprego é igual a inflação e desemprego é igual a baixa inflação ou deflação; algo, em verdade, contingente – é o exemplo de justificativa formal das medidas, porém, reforçamos, a real inflação e motivo das medidas são problemas do tipo como os aumentos com o custo do trabalho a partir do baixo desemprego (no próximo subcapítulo, isso ficará ainda mais claro). A taxa de juros tendendo a orbitar em torno a um valor médio próximo de zero em vários países mantém tal tendência de flutuação, embora de maneira tão sintomática quanto ao fim do sistema capitalista. Há menor margem de manobra dos governos com a limitação ferramental dos juros desde sua queda para os atuais níveis. Fica cada vez mais difícil o governo estadunidense manter a meta de 2% de inflação anual com objetivo de pleno emprego assim como há dificuldade de o Brasil manter a meta de inflação de 4,5%. Tais metas, aliás, não são obra de uma economia supostamente pura, são uma resposta à luta de classes; algum nível de estabilidade prolongada faz-se necessário para o funcionamento do capital. Há ainda outro detalhe de época. Se um governo força por mais tempo que o necessário a queda da taxa de juros, como no caso das medidas anticíclicas do governo brasileiro desde 2008, ou, ao contrário, força seu aumento por maior período, logo mais intenso será, depois, a ação oposta a qual o Estado estará forçado a promover; assim, o aumento da taxa de juros no Brasil a partir de 2015 foi explosivo, algo como uma compensação relativo ao período anterior. Descobre-se que a tendência geral de elevação ou queda dos juros depende de fatores objetivos e endógenos. Mas, em si mesma, uma decisão singular do banco central sobre a taxa de juros é subjetiva e exógena. Uma sequência de medidas, que respondem a fatores materiais em geral, pode até ir contra as tendências e exigências da realidade, porém então fomenta condições, também políticas, para que a macrotendência econômica imponha-se. A oposição entre a endogeneidade ou exogeneidade da taxa de juros tem sua resolução proposta, pois medidas ―em

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si‖ determinadas pelo governo ou Banco Central representam, com acidentes, já que o fator exógeno tem margem de ação, uma legalidade quando vistas em conjunto. Vejamos um caso reconhecidamente extremo. O governo brasileiro elevou a taxa de juros para os estratosféricos 68,91% (!) em 1994; tal decisão foi em si determinada de forma exógena, foi uma decisão política. Mas qual motivo justifica tal ação? Algo forçou a subjetividade a pensar medidas do tipo? A resposta: sim: por mais de uma década vivia-se uma situação de hiperinflação com pleno emprego dos fatores de produção, greves duras e longas, crescimento radical da esquerda, instabilidade econômica e política constantes. Então foi necessário tal medida para atrair capital especulativo, dólar, e forçar a valorização do câmbio para em torno de 1 real equivalente a 1 dólar, ou seja, explodiu a entrada de importados baratos, empresas nacionais quebraram diante dos juros e da concorrência, isso gerou um desemprego que – junto com mercadorias de baixo preço – encerrou o longo período de grandes lutas sociais. Em diante, a partir dessa nova base de referência, a taxa de juros passou por seus ciclos de queda para, em alternância, o período oposto, de elevação, até chegar ao histórico 2% em 2020. Logo, a determinação dos juros é e não é exógena e ao mesmo tempo é e não é endógena. A ASSIM CHAMADA ―TEORIA MONETÁRIA MODERNA‖ No desenvolvimento do capitalismo no século XX e início deste século, inflou-se uma base social que deve ser considerada pela teoria das classes: o setor médio do assalariado servidor público, uma parte da pequena burguesia, entre o operário e o burguês. Com a ampliação numérica do número de membros deste grupo social e certa precarização do seu trabalho, houve uma esquerdização destes, expresso, por exemplo, na adoção dos métodos proletários de luta, como a greve. É natural, portanto, que surjam teorias que representem este setor. Assim, teóricos afins defendem o fortalecimento do estado burguês, os serviços públicos, contra as privatizações e pela adoção da política econômica keynesiana. Recentemente, a assim autoproclamada Teoria Monetária Moderna (MMT) busca destacar-se em meio ao reformismo político de esquerda. Dada a moda teórica recente de tal concepção, vamos aqui discordar de algumas de suas conclusões indo ao núcleo de sua natureza. A pergunta universal do nosso artigo é se Marx estava correto ao afirmar que o capitalismo tem contradições inerentes ou, ao contrário, podemos encontrar algum nível de estabilidade interna por dentro do sistema vigente; ou seja: se o reformismo e o centrismo (que está entre a reforma e a revolução) ou o marxismo tem razão. A MMT afirma: 1) é o Estado a fonte do dinheiro; 2) os impostos sevem apenas para retirar excesso de moeda e nunca para fins de financiamento estatal; 3) então, o Estado pode criar

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dinheiro ―do nada‖ ao ponto de produzir permanente pleno emprego. Vamos aos elementos que impedem a proposta de realizar-se. 1. O Estado A MMT tem por premissa o Estado abstrato, sem classe; o aparato estatal é, nesta visão, apenas o ente racional e bastam boas propostas para tudo dar certo… O caráter de classe da principal superestrutura burguesa é tema que passa longe dos teóricos da corrente aqui criticada. Adota-se a concepção de parte da classe média, a dos servidores públicos em especial: o Estado é mais ou menos em si neutro e disputável, pode ser ganho para esta ou aquela concepção. A luta de classes pode, em tal visão de mundo, ser mesmo útil para pressionar e gerar algum equilíbrio de forças opostas (veremos como isso é inviável). A MMT ignora que a principal instituição estatal são as forças armadas e que, para garantir as regras do capital, a força objetiva das armas, além de toda burocracia interna, pode ser usada para garantir que tudo ocorra tal como espera a classe dominante. Um governo ―progressivo‖ é incapaz de mudar qualitativamente a natureza do Estado; isso é provado pelos tantos golpes contra governanças de esquerda, mesmo quando fizeram tão pouco. A lógica da realidade atual impõe-se nem que seja por meio da bala e do fuzil. O centro de uma produção teórica é descobrir porque as coisas são como são e não de outra forma, porque algo se faz necessário; distanciamo-nos do ―como deveria ser‖ para entender como de fato o mundo é e os seus motivos. A mera consideração da natureza do Estado, independente do tipo de governo, já põe abaixo a defesa de políticas baseadas na MMT. A realidade tem mecanismos internos para impor suas leis. O mais absurdo é que toda a história humana é negada pela teoria citada já que, segundo seus teóricos, apenas faltou aos governantes a teoria correta cuja origem é tão recente… Se as propostas da MMT fossem corretas e viáveis, se garantisse a prosperidade do capital, os governos teriam pressa em implementá-las. 2. O pleno emprego Este é o ponto mais decisivo da compreensão e o mais importante deste comentário. Observemos como o equilíbrio entre as classes é inviável, o que torna o uso prático da ―moderna‖ teoria monetária um desejo utópico por um capitalismo mais humano. Para a MMT, o máximo do dinheiro ―criado do nada‖ sem inflação é alcançar o pleno emprego dos fatores de produção cuja medida central é empregar toda a força de trabalho nacional. Aqui o reformismo fica mais evidente ao deixar de compreender que ao capital é inerentemente insuportável por muito tempo uma situação de emprego pleno. Vejamos os motivos.

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1. O pleno emprego, como força de lei objetiva – já que o medo de desemprego quase que desaparece –, leva necessariamente à onda de greves cada vez mais duras e confiantes, às paralizações longas, aos ganhos reais de salário; enfim, ao aumento do custo unitário do trabalho, ou seja, uma parte do que seria lucro empresarial torna-se salário e custo com direitos sociais. Os trabalhadores tomam, assim, a ofensiva até mesmo na política (Kalecki, 2020). Isto é um problema ao capital e de modo algum pode ser indefinidamente suportado. Observamos tal fenômeno ocorrer até o pico de 2016 no Brasil, antes do efeito do aumento vertiginoso da taxa de desemprego como política econômica burguesa. A partir da premissa equivocada de que a crise de 2008 seria apenas um abalo conjuntural, o governo do PT, esperando a normalização internacional, tomou medidas anticíclicas como a redução dos juros (em parte permitida pela entrada de capital especulativo no país, que saída dos países centrais em busca de melhores rendimentos contra a crise), investimentos estatais, aumento real do salário mínimo, etc. Observemos os dados a partir de 2013. A quantidade de greves explodiu: GRÁFICO 7

Fonte: (Dieese, 2020) O número de horas paradas também – desde 2009:

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GRÁFICO 8

Fonte: (Dieese, 2020) Aqui, temos de retomar a dialética. A realidade total nunca é como certa máquina ou relógio ou computador com sua causalidade mecânica; o real é um sistema orgânico, um organismo, por isso a causa, o (quase) pleno emprego em nosso caso, apenas de modo atrasado tem efeito nas mobilizações dos trabalhadores; pela mesma lógica da materialidade, o processo de fim do emprego pleno atrasadamente passa a reduzir a onda de paralizações. Como razão, o baixo desemprego correspondeu ao aumento das lutas: GRÁFICO 9

Fonte: (IBGE, 2020)

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GRÁFICO 10

Fonte: (idem, 2021) Veja-se que o governo petista36 adiou, não impediu, a forma destrutiva da crise por anos, com ações anticíclicas que fundamentaram um conflito distributivo de longa duração, que começa a ser revertido apenas com a entrada de vez do desemprego, com o processo de fim do pleno emprego: 36

Exato na época de grandes greves, entre 2013 e 2016, um setor da esquerda e de seus intelectuais, muitos petistas e muitos outros formalmente comunistas, defenderam a tese antimarxista de que havia no país uma “onda conservadora”. Tal “onda” pairava no ar, não se sabendo como surgiu nem de onde vinha, e entrava na consciência de todo o povo… Mas a empiria os desmentiu: se há onda grevista, logo há aí uma expressão da realidade esquerdizando a massa de assalariados. Eis tudo. Despois, a moda intelectual e reformista caiu em desuso, sem o devido balanço ou autocrítica. Daí se observa vários problemas, entre eles o fato de a intelectualidade acadêmica dita marxista viver em um mundo paralelo, mais próximo da classe média em seus apartamentos vizinhos, que entre trabalhadores de fato ou na periferia; isso também se expressa em que, em geral, estudam e pesquisam o que bem querem, não necessariamente o que o movimento revolucionário necessita, mesmo que por mediações e no próprio tempo da teoria, caindo por vezes em discussões alienadas, bizarras por vezes, das pressas da conjuntura ou da estrutura. Outro erro naquela conjuntura, que ainda persiste na esquerda, ocorreu quando caracterizaram a situação politica, pelo menos a partir de 2013, como pré-revolucionária. Nossas observações refutam tal análise. O crescimento das lutas foi causado não por destruição econômica, mas por certa marcha forçada de crescimento, permitido pelo boom da venda de commodities ao estrangeiro a preços elevados, especialmente à China (que também adiou a forma destrutiva da crise – a superprodução de capitais no mundo – em seu território com incentivos estatais). Logo antes de uma crise propriamente dita, o desemprego cai, os salários sobem e as lutas crescem; por isso, a situação política era não revolucionária, mas aí entra outra categoria, momento, tratada em outro capítulo, útil para perceber que estávamos, por causa de circunstâncias combinadas, em um momento ofensivo, não defensivo. Com o golpe jurídico-parlamentar contra o governo Dilma (na aparência, pois, na essência, visava acelerar os ataques contra os trabalhadores que a governança do PT já não era capaz de aprofundar ao perder apoio dos assalariados), a situação tornou-se reacionária – e o momento tornou-se defensivo – porque combinou destruição econômica, perda de direitos, redução das greves e das lutas, classe média voltada à direita, burguesia unificada e governos reacionários.

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GRÁFICO 11

Fonte: (IBGE, 2020) 2. O pleno emprego tem como base o aumento do número de empresas concorrendo pelas parcelas do valor global. O que isso significa? Com maior oferta, os preços tendem a cair (e o patrão já está perdendo lucro com o ponto 1, a força dos trabalhadores confiantes com o baixo desemprego). Eis outro problema, por isso a quebra econômica é bom para algumas empresas e ao capital em conjunto. 3. No aquecimento da economia, as empresas crescem e podem pagar suas dívidas, o que reduz os juros. Mas o consumo aumentado e os investimentos a todo vapor leva a uma demanda maior por dinheiro, o que por sua vez aumenta os juros – por mais um meio, o burguês "produtivo" é sugado cada vez mais, dessa vez pelos bancos. 4. Com o aquecimento da economia, as empresas de monopólio sugam parte do valor global, que reduz a apreensão de valor em outras empresas, com preços artificialmente altos. Mas há aqui ainda, aqui, outro caso típico. Pleno emprego dos fatores de produção, cuja medida é o uso de quase toda a força de trabalho disponível, é diferente de equilíbrio; enquanto a maioria dos setores está obrigada a rebaixar os preços, algumas empresas possuem oferta menor que a demanda, o que obriga aí à elevação dos preços, a sugar valor para si, aumentando os custos para outros (com matéria prima, etc.), e leva algum tempo para que surjam novas empresas que aumentem a oferta.

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Enfim: o pleno emprego é crise ou, adotando o raciocínio dialético, o primeiro sinal da crise por meio de seu oposto – e crise é solução do ponto de vista do capital. O governo será pressionado a adotar a política econômica correspondente como foi o caso do governo Dilma II (um golpe de Estado apoiado pela maior parte da burguesia impôs a política econômica que o governo tinha dificuldade de assumir, pois havia perdido base social com as medidas do ministro da fazenda Levy). A crise é uma necessidade do capital. Se queremos o pleno emprego, temos de aprender a ―política econômica‖ marxista, o programa de transição. No lugar da utopia de apenas fazer o Estado forçar o pleno emprego por emissão de moeda e gasto público, exijamos algo classista, o que mobiliza as massas quando o desespero as alcança: escala móvel de tempo de trabalho, ou seja, redução da jornada de trabalho, com o mesmo salário, na proporção que produza desemprego zero; isto é dividir todo o trabalho disposto na sociedade entre toda a força de trabalho disposta. Mas é mais fácil o capitalismo cair do que tal proposta ser aceita, especialmente durante a crise, e esta é exatamente sua grande força: empurra para uma luta ―reformista‖ pelo o fim do sistema. É uma política superior à noção de Keynes, muito. Há uma taxa social, não natural, de desemprego exigido pela própria lógica do sistema capitalista, portanto quebrar uma de suas leis leva à revolução social. Para isso, o caminho não é o voto em partidos ―progressivos‖ ou dar bons conselhos ao capital sobre como é supostamente bom uma economia capitalista a todo vapor, mas elevar o nível de organização dos trabalhadores. 3. A desvalorização do dinheiro É evidente que o governo pode aumentar a quantidade de dinheiro, acima da arrecadação. Mas isso é quantitativo, não qualitativo, isto é, deve lastrear seus gastos nos impostos37, lucro de estatais e em empréstimos. Um incremento massivo de dinheiro em curto tempo tende a gerar inflação, mesmo que seja dos ativos financeiros, como temos observado desde 2008. Assim, uma quantidade maior de dinheiro, acima do necessário à circulação e ao entesouramento, tende à desvalorização da moeda. Isso é verificável, em especial desde o fim do lastro direto ao ouro:

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A MMT afirma que o arrecadado via impostos é destruído, como dados que são, e o Estado cria, posteriormente, dinheiro de todo novo ao gastar. Assim, a “teoria” seria correta por ser mera descrição empírica do que ocorre. Ora, se o dinheiro é destruído em uma ponta do processo, ele passa a existir idealmente na contabilidade estatal, muda de forma, ou seja, é, no segundo momento, apenas fisicamente (papel, bits) substituído por matéria nova, que passa a representar em diante aquilo recolhido legalmente. Os teóricos da MMT separam em absoluto de modo artificial os dois momentos e ignoram a transição de um para o outro. Descobrimos que os gastos são, portanto, lastreados, não arbitrários.

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GRÁFICO 12

(Prado, Dinheiro: entre a ficção e o fetiche, 2020) Assim, uma política baseada na MMT pode gerar, sob certas circunstâncias e proporções, fenômenos como a estagflação (Prado, Dinheiro: entre a ficção e o fetiche, 2020). A solução real dos problemas econômicos duros das próximas décadas virá pelo, até agora esquecido, programa de transição, ou seja, pela revolução social. UM APONTAMENTO LATERAL Observamos que o governo, digamos, sente os sinais de que deve elevar ou reduzir os juros – e sua ação tem importância vital. Também soubemos que o dinheiro virtualizado torna-se, em certa medida, artificial, tornando também artificial e formal, em alguma medida, o sistema de arrecadação de impostos e de gastos (ver a última nota de rodapé). Enfim, em certo grau, a existência e a lógica do sistema é, hoje, garantida artificialmente pelo Estado, que garante uma regulação capitalista ―normal‖. Isso é um sinal negativo, invertido, na artificialidade do sistema, de que uma ferramenta estatal – desta vez, baseada na democracia participativa e direta, socialista – é necessária para um verdadeiro planejamento econômico finalmente possível. Além disso, denuncia que os limites do capitalismo expressam-se dentro dele próprio. Em nota anterior, dissemos: ―Vários marxistas e economistas perceberam que o Estado, de modo artificial (garantindo o funcionamento do sistema artificialmente – o que em si merece reconhecimento teórico) impediu que poderosas empresas fechassem as portas…‖ Eis uma conclusão inescapável.

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A URBANIZAÇÃO ―Um desenvolvimento das forças produtivas que diminuísse o número absoluto de trabalhadores, isto é, capacitasse realmente a nação inteira a efetuar toda a produção em menor espaço de tempo, acarretaria revolução, pois tornaria marginal a maior parte da população.‖ (Marx, O capital 3, 2008, p. 343) A tendência à urbanização surge de modo embrionário desde a fixação do homem ao solo, cultivo e criação. Nas sociedades escravista e feudal, baseados na agricultura, a necessidade de organizar o Estado, com suas forças administrativas e repressivas, fazia surgir centros urbanos cada vez mais inflados. A própria concentração urbana, ao deslocar massas humanas para fora do trabalho sobre a terra, fez surgir também o comércio e, com este, o comércio de dinheiro. Ao lado do setor produtivo por excelência, uma gama de ofícios estatais e não – centros de ensino, etc. –, serviço, e artesanais aumentavam em número. No entanto, apenas o capitalismo faz surgir um modo de produzir cujo centro de gravidade está não na relação imediata com a natureza, mas na fabricação, na fábrica, que pode e instala-se nas cidades. É necessário uma população concentrada e disponível para trabalhar com salários baixos, concorrendo uns contra os outros tal qualquer mercadoria; e é preciso, com o grau de produtividade cada vez mais elevado, concentração e aumento do número de consumidores. A urbanidade é típica do capitalismo; a tendência à urbanização crescente, cujo impulso primeiro é econômico, é uma lei desta sociedade. A expulsão do camponês das terras, pela concentração e centralização de capitais, ao lado da própria atração causada pelo espaço urbano, servem de estímulos constantes38. Podemos trabalhar três fatores centrais de interinfluência. Em primeiro e ponto de partida, o desenvolvimento da produção, seu aumento de escala, exige aumento e desenvolvimento de produção na indústria de insumos, que no campo necessita de pouca mão de obra para gigantescas propriedades. Em segundo, a própria urbanização exige aumento da capacidade produtiva, do desenvolvimento técnico, para suprir novas demandas, novos consumidores. Em terceiro, citado antes, o processo de queda dos preços das mercadorias e certas vantagens do mundo urbano exercem atração e possibilidade de fuga dos desesperos pessoais e familiares por um salário qualquer, o que expressa a desigualdade, a ser resolvida, entre cidade e campo.

38 Elemento em parte exógeno, os problemas ambientais também atuam nesse sentido (vide secas periódicas no nordeste brasileiro por influência do el niño); no mais, o capital tem enorme talento para gerar problemas ao meio ambiente.

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Para demostrar o caráter histórico da questão populacional, enumeraremos como a crise sistêmica desenvolveu-se nos diferentes modos de produção classitas. Demonstremos o aspecto de alocação e crescimento populacionais: 2. Sistema escravista. A concentração de escravos em campos de trabalho tornou-se enorme, facilitando revoltas. Por isso, era preciso contratar mais capatazes e administradores para poder gerir os campos, que estavam maiores; contraditoriamente, retirava do senhor de escravos os rendimentos da exploração, já que aumentava as despesas. O aumento de revoltas, do território e da necessidade de guerra para capturar mais humanos, fazia necessário mais usar e ampliar o Estado e, para isso, retirar mais dos frutos do próprio trabalho escravista. Surge a greve de soldado. A crise romana tem como uma das causas o aumento e concentração populacional enorme de subalternos. No fim do império, já na antessala do feudalismo, limitaram-se as conquistas militares, logo o número de escravos passou a cair, o que em si colocava uma crise, uma contradição, em questão. 3. Sistema feudal. Com técnica e modo de trabalho mais avançados que o escravista, a reprodução humana permitiu o inchaço populacional nos feudos. Tornou-se um problema ao suserano, querendo evitar motins e desejando acumular para si os rendimentos da produção campesina. A classe dominante da época contou com a ajuda sagrada da Igreja Católica: esta excomungava servos para justificar, sob a acusação de infidelidade a Deus, a expulsão de homens daquelas terras. Os últimos tornavam-se comerciantes e judeus, principalmente. Assim, com excedente de produção e população no campo e, por consequência, o renascimento do comércio, surgem os embriões do capitalismo, dos bancos, o renascimento das cidades, etc. Como reação, formam-se Estados absolutistas feudais e, por efeito, nova larga camada de funcionários e funções, além de impostos. À decadência feudal corresponde à inflação do Estado e a corrosão de seu caráter original de classe por meio das dívidas públicas e dos ganhos, em impostos e poder econômico, com o avanço das relações mercantis. Junto a isso, o aumento populacional campesino – e também o na urbanidade – gerou base numérica para revoltas sociais e revoluções burguesas. 4. Sistema capitalista. Centros urbanos concentradíssimos, megalópoles. Em todos os países com algum peso na economia mundial, a urbanidade e superurbanidade é a regra. Concentração urbana de operários, desempregados, assalariados de classe média precária e a pequena burguesia empobrecida – portanto: capacidade explosiva e de unidade maiores. A

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terceira revolução industrial, e mesmo o desenvolvimento da técnica produtiva anterior a tal base, torna crônico o desemprego. Campo dominado por monopólios e oligopólios, com altíssima tecnologia e proletarizando o camponês, além de expulsá-lo para o mundo urbano. A densidade relativa eleva-se por meio da internet – encurtamento das distâncias relativas, não físicas. O Estado é imprensado entre ser fonte de lucro para a classe dominante (dívidas públicas, etc.) e garantir, ao mesmo tempo, um aparato, uma superestrutura, para gerir a sociedade, incluso e em enorme medida por sua dinâmica populacional e urbana. Engels, como se, ao final, falasse de nossa época e percebendo as tendências gerais:

[A revolução industrial] desenvolveu por toda a parte o proletariado na mesma medida em que desenvolveu a burguesia. Na proporção em que os burgueses se tornavam mais ricos, tornavam-se os proletários mais numerosos. Uma vez que os proletários somente por meio do capital podem ter emprego e o capital só se multiplica quando emprega trabalho, a multiplicação do proletariado avança precisamente ao mesmo passo que a multiplicação do capital. Ao mesmo tempo, concentra tanto os burgueses como os proletários em grandes cidades, nas quais se torna mais vantajoso explorar a indústria, e com esta concentração de grandes massas num mesmo lugar dá ao proletariado a consciência da sua força. Além disso, quanto mais [a revolução industrial] se desenvolve, quanto mais se inventam novas máquinas que suplantam o trabalho manual, tanto mais, como já dissemos, a grande indústria reduz os salários ao seu mínimo e torna, por esse facto, a situação do proletariado cada vez mais insuportável. Deste modo, ela prepara, por um lado, com o descontentamento crescente e, por outro lado, com o poder crescente do proletariado, uma revolução da sociedade pelo proletariado. (Engels, Princípios Básicos do Comunismo, 2006, grifos nossos)

Como parte das crises sistêmicas, a destinação improdutiva do mais-trabalho e mais-produto (sob o capital, mais-valor) e sua extração para outros setores ganha expressão particular no capitalismo na medida em que Há os bens industriais, para os quais o crescimento da produtividade tem sido mais rápido do que a média da economia, de modo que seus preços têm ficado abaixo da média. […] Por fim, há os serviços, para os quais o crescimento da produtividade tem sido, de modo geral, fraco (até nulo em certos casos, o que explica por que esse setor

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tende a absorver uma proporção cada vez maior da mão de obra) e para os quais os preços aumentaram mais do que a média. (Pikett, 2014, p. 109)

Ou seja, o sistema de preços, a sua mediação social, faz com que os serviços suguem parte maior do valor global sem produzir, em troca, novo valor. O preço de um tendendo a cair e do outro tendendo a ficar acima da média em muitos casos faz com que esta sucção seja crônica. Alguns destaques da urbanização ainda precisam ser feitos. A concentração humana é mais decisiva para o destino da humanidade do que seu tamanho absoluto, que também tem importância real em si. Se os oprimidos são três vezes maiores em quantidade, mas muito mais dispersos, ou seja, pouco urbanizados e com nível de desenvolvimento das comunicações e transportes baixíssimo, então tem-se uma perda de força social, efetiva e potencial. Ao contrário, se a população absoluta diminui, por baixa natalidade, etc., Mas reúne-se, temos, por isso, a base material do explosivo histórico potencializado, ao cubo. O setor de transportes, um setor bastante específico do capital industrial, que cresceu de importância com a urbanização e com o comércio no mundo, pode impor uma greve geral ainda que muitas categorias não paralisem. A velocidade da comunicação e do transporte diminui também a necessidade de estoques, logo uma paralização da circulação – que também pode ser feita por setores não operários como com bloqueio de vias, estradas, etc. por movimentos populares – tem grande impacto na economia e na política. A própria urbanização elevada, elevando a demanda, per se gera necessidade de ampliação, maior complexidade e generalização de serviços. Utilizemos o exemplo da saúde: antes, o médico formado atendia pacientes em suas casas e desenvolvia relações sociais com os clientes; hoje – diante da proporção urbanitária –, há relação formal, objetiva e impessoal ligado à dinâmica adquirida por este trabalho, pelos centros médicos e hospitalares – fenômeno relativamente novo na história da medicina. Sobre este destino improdutivo de valor, Kurz complementa: O capitalismo (…) também estabeleceu uma estrutura de condições sociais institucionalizadas sem as quais seria inconcebível uma grande produção cooperada voltada ao mercado mundial (…) compreende (…) uma infraestrutura social, como, por exemplo, um sistema de transportes e de comunicação amplo e ramificado, fornecimento de energia, regulação (…) e, não menos importante, um sistema de ciência e educação amplo e integrado. (…) Todas essas condições de infraestrutura social custam trabalho e absorvem uma parte historicamente crescente dos recursos sociais da força de trabalho. (…) Em relação ao processo de criação de valor, ele

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permanecem, por conseguinte, improdutivos. (Kurz, A crise do valor de troca, 2018, pp. 29, 30, 31)

O impulso constante do valor-capital de transformar tudo em mercadoria transforma em relações mercantis produtos que não guardam em si valor, isto é, cria base de sua crise, pois sugam parte do valor criado na produção. É o exemplo do preço do solo, que infla seu preço com a urbanização39. A enorme urbanização eleva as necessidades e, por conseguinte, as demandas sociais. O Estado teve de ampliar-se por endividamento, atraindo empréstimos dos capitalistas no lugar de lhes tomar parte maior do mais-valor via impostos, dadas as proporções aumentadas dos elementos e custos para manter num patamar aceitável as condições sócio-ambientais para o processo de reprodução do capital (PRADO, 2018). As necessidades coletivas crescem; temos, então, todo tipo de questões a se resolver e acumuladas: transporte e mobilidade, salubridade, qualidade ambiental, violência, aluguéis e habitação, necessidade de espaços para estudo e lazer, acesso à água tratada, energia, etc. As coisas por se fazer juntam-se a todas as pautas de classe, como a salarial e tempo de trabalho; tendem ao acúmulo de tensões e stress socais. No Rio +20 (2012), patrocinado pela ONU, foi elaborada uma carta cujos alguns trechos são úteis:

Cerca de metade da humanidade vive hoje em cidades. Populações urbanas cresceram de cerca de 750 milhões em 1950 para 3,6 bilhões em 2011. Até 2030, quase 60% da população mundial viverá em áreas urbanas. O crescimento das cidades significa que elas serão responsáveis por prestar serviços a um número sem precedentes de pessoas. Isso inclui educação e habitação acessíveis, água potável e comida, ar limpo, um ambiente livre do crime e transporte eficiente. Nas próximas décadas, 95% do crescimento da população urbana mundial ocorrerá em países em desenvolvimento. Espera-se que a população urbana da África cresça de 414 milhões para mais de 1,2 bilhão até 2050, enquanto a Ásia vai crescer de 1,9 bilhão para 3,3 bilhões. Essas regiões juntas vão contabilizar 86% do crescimento total da população urbana mundial. […] 828 milhões de pessoas vivem em favelas hoje e o número continua a crescer. Os maiores aumentos populacionais urbanos de 2010 a 2050 são esperados na Índia, China, Nigéria, Estados Unidos e Indonésia. Índia terá um adicional de 497 milhões à 39

Além do preço de aluguel de terreno, o preço do solo tende a crescer, como percebeu Marx, porque a taxa de juros tende a ficar baixa com a queda histórica da taxa de lucro aos níveis atuais.

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sua população urbana; China – 341 milhões; Nigéria – 200 milhões; Estados Unidos – 103 milhões; e Indonésia – 92 milhões. (RIO+20: FATOS SOBRE AS CIDADES)

Este gráfico da ONU expressa a tendência geral de altíssima urbanidade e, por outro, estagnação da população rural: GRÁFICO 13

Fonte: (ONU, 2014) Apesar de a urbanização alta ser um fato evidente, dispomos alguns dados de 2020 para fins de exemplificação, de sentir o peso social: Bélgica é 98,1% urbana; Japão, 91,8%; Brasil, 87,1%; EUA, 82,7%; Reino Unido, 83,9% França 81%, Alemanha 77,5%, China, 61,4%. São números extraídos da CIA World Factbook. Destacamos que em alguns países o Estado atua para manter o pequeno agricultor artificialmente por meio de subsídios contra a concorrência internacional. Observado o fator urbano, ainda que instintivamente, as correntes operárias revolucionárias tendem a atualizar a clássica palavra de ordem ―Poder operário e camponês!‖ para ―Poder operário e popular!‖ ou ―Poder operário, popular e camponês!‖ A AL [América Latina] é hoje uma das regiões mais urbanizadas do mundo, com cerca de 80% de sua população vivendo em cidades. O número de cidades com mais de um milhão de habitantes passou de oito em 1950 para 56 em 2010. (…) Existe um deslocamento no potencial revolucionário dos setores sociais que podem ser hegemonizados pelo proletariado industrial. Antes o bloco social que podia

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ser hegemonizado pelo proletariado industrial incluía prioritariamente o campesinato. Hoje o campesinato segue tendo importância, mas o maior potencial revolucionário se deslocou para os setores populares urbanos. (LIT-QI, 2016)

São sinais da crise sistêmica atual a superurbanidade e a concentração proletária, assalariada e precária. Todo sistema econômico-social gera os elementos da destruição própria. A concentração humana citadina – dos burgos medievos até nossos dias – amadureceu para a revolução comunista, facilitando, inclusive!, a democracia socialista. Este subcapítulo será devidamente atualizado e incrementado em debate específico no capítulo posterior sobre a China. Apenas antecipamos, para tratar adiante sobre revolução social e sujeito revolucionário, que a produção tende a ir, em nossa época, para cidades menores e países não centrais, pois assim é reduzida a luta de classes (menos necessidades pressionando os salários, menor concentração humana, menor preço de custo ao solo, mais facilidade de deslocamento, etc.). ASPECTOS DA POPULAÇÃO Faremos quatro destaques sobre a questão da população. Há o esgotamento da superpopulação latente, aquela que vem do campo, em inúmeros países por alto nível de urbanização e o consolidar da produção mecanizada em grandes terras. A lei da urbanidade crescente consolida-se e o capital deixa de contar com a fonte interiorana da força de trabalho. Por outro lado, há na cidade uma queda de natalidade. O aumento da cultura geral, os filhos enquanto longa despesa, os métodos anticoncepcionais modernos, a precarização e elementos como a ainda inexplicável queda da produção de esperma no ocidente são dos fatores que colaboram para tal mudança historicamente recente de perfil. Os dois fatores dispostos nos parágrafos anteriores servem de estímulo à automação nas fábricas e em outros setores. Ou seja: ocorre pressão para formar uma superpopulação relativa artificial por meio do avanço técnico a fim de reduzir os custos com força de trabalho. A alta urbanização da Europa foi fator de luta de classes para gerar superpopulação artificial substituindo trabalhadores por máquinas. Em países de pouco território, tendência a menor número absoluto de camponeses, como Japão e Alemanha ocidental, a produção de uma população urbana supérflua artificial se fez necessária por meio do avanço técnico. O quarto aspecto destacável da questão da população é seu efeito sobre pautas sociais. Como meras mudanças quantitativas geram mudanças qualitativas, a concentração urbana e o mero aumento numérico, permitiu um novo estágio nas pautas contra as opressões: facilitou organização, encontro e revoltas. A rebelião de Stonewall e os Panteras Negras nos EUA são

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exemplos paradigmáticos. Por último, reduziu-se o controle social direto dos hábitos. A grande concentração urbana foi acompanhada por um relativo isolamento, o que permitiu mais independência nos perfis pessoais. Ainda há que se debater pelo menos o aspecto geral da população no socialismo. Como sabemos, Malthus errou ao supor que a população cresceria muito mais do que a capacidade da produção de alimentos; a fome hoje se deve à desigualdade social, ao desperdício e ao não uso de métodos melhores, não devido à escassez ou subprodução. De qualquer modo, para garantir abundância geral e a devida proteção do meio ambiente, algo central aqui, o poder socialista terá de estimular, em longa campanha, a redução da natalidade e da população mundial (que já é uma tendência futura sob o capitalismo) por meio da educação dos jovens, acesso a métodos contraceptivos, legalização do aborto, melhoria da vida em geral, etc. O simples fato de que dois trabalhadores ganharão, nas duas primeiras fases do sistema socialista, de acordo com seu trabalho, não de acordo com sua necessidade, será desestímulo a ter filhos (na prática, quem terá, por exemplo, 3 filhos ganhará menos em relação àquele que não terá algum). Também a miséria, por baixa erudição e por alto estresse, tem sido a causa de grande prole; isso acabará numa sociedade igualitária.40 A URBANIDADE NO SOCIALISMO Marx evitou explicar como será a sociedade socialista e limitava-se a comentários mais gerais. Tratar do tema tornou-se um tabu tanto mais forte quanto mais se tentava supor detalhes, que são de fato imprevisíveis. No entanto, o alto desenvolvimento do capitalismo permite-nos prover antecipações ideais, pois a sociedade revolucionada necessitará de propostas práticas. Espaço é poder (Lefebvre). A forma de organizar a cidade é tudo menos arbitrária ou neutra. Se Bonaparte fez uma reforma urbana para dificultar as revoltas dos de baixo (Lefebvre, 2008), a organização social futura deverá repensar sua estruturação para o amadurecer da nova sociabilidade. De imediato, o poder socialista acabará com a especulação imobiliária e o lucro por mero direito de propriedade da terra. A reforma urbana, como primeiro passo, garantirá abrigo a todos

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Marx teria nomeado fantasia completa afirmar que, algumas décadas depois de sua morte, o homem iria à Lua. Tal exemplo visa tornar quase palpável a possibilidade de, no futuro, com os avanços científicos, sermos potencialmente imortais ou, ao menos, com longevidade muita acima do normal hoje. Tratar-se-á de um afastamento relativo das barreiras naturais. Do ponto de vista de nossa época, em nossa limitação, isso será, junto a outras mudanças, um processo de deificação do homem – não de uma classe ou casta como pensa Yuval Harari – após o fim da alienação social. Assim, a alienação religiosa faz de Deus uma visão impressionista daquilo que o homem tende a ser, um “além-do-homem” (Nietzsche) que se inicia com o homem de fato livre e completo, desalienado, pois ainda não somos sequer homens propriamente.

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com o que já está disposto na sociedade. Resolver-se-á a contradição capitalista de haver casa sem gente e, ao mesmo tempo, gente sem casa. Resolvidos os problemas mais imediatos, projetos pilotos deverão entrar em prática em bairros e pequenas cidades. Debatamos as características organizativas. Cada bairro terá um centro onde estarão localizados os serviços estatais – escola, posto de saúde, biblioteca, organismos, etc. –, o espaço de lazer (cinema, etc.) e a praça, restaurantes públicos, o auditório das assembleias dos conselhos de poder, etc. Ao redor deste, formando um círculo, as casas serão substituídas por prédios onde habitarão os cidadãos. Sob o capitalismo, a moradia tende, em principal pelo aumento de seu custo com a urbanização, com a demanda, à redução relativa de tamanho e de materialidade41 que observamos em outras mercadorias e em outro capítulo. Sob o socialismo, ao contrário, os apartamentos serão amplos e espaçosos, semelhantes ao que hoje é luxo. A verticalização da cidade, que já é tendência sob o capital, será consolidada sob nova forma. Quando se iniciou a água por encanamento, deixou de ser necessário o trabalho de carregar o líquido para as casas; na Espanha, por exemplo, há locais onde o lixo é posto numa tubulação subterrânea que leva os dejetos até a área de tratamento – é o tipo de projeto que tem bons fins socialistas já que suplanta parte do trabalho e melhora a salubridade. A mobilidade urbana também será central. É impossível manter o paradigma do carro como objeto de consumo. De imediato, o transporte público deverá ser melhorado, incluso com a emergente direção automática, antes de pensarmos projetos futuristas. Aqui, uma revolução energética – como as usinas de fusão nuclear, que estão em fase inicial42 – dará também sua contribuição, reduzindo a poluição do ar. Como sabem de cor os marxistas, o possível futuro fará a fusão da cidade e do campo, com o melhor de cada polo aproveitado. Ao verticalizar bairros da cidade em torno de um centro comunitário, haverá maior espaço livre para plantações, parques e reflorestamento.

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“Em Hong Kong, uma das áreas mais densamente povoadas do mundo, 49% da população vive de moradia social. E, de acordo com a Sociedade para Organização Comunitária, um grupo chinês de direitos humanos, mais de 100 mil trabalhadores vivem em imóveis de 3,72 metros quadrados, como mostra o site Architizer. Em apenas um cômodo funcionam cozinha, sala e quarto e, muitas vezes, mora mais de uma pessoa. O espaço é tão minúsculo que só mesmo fotografando do alto para conseguir ter um ângulo.” (Fábio, 2017) 42 Para ao menos tocar o tema, destacamos que cada era do capital tende a uma própria relação na produção de energia. Vejamos. Era mercantil: força humana, animais, moinhos de água e vento; era industrial: máquina a vapor; era financeira: eletricidade, hidrelétricas, petróleo, etc.; era fictícia: o mesmo da anterior, como um salto para si, com a consolidação, após os anos 1950, da fissão nuclear, e o uso recente de energias solar, eólica e maremotriz cada vez mais aperfeiçoadas (nesta era, prepara-se o caminho técnico-científico da próxima revolução energética, que inclui a fusão nuclear).

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A QUESTÃO DAS CLASSES A conhecida conclusão de Marx sobre a crise final dos sistemas econômicos, contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção existentes, pode ser interpretada de duas maneiras: 1) As relações de produção impedem a continuidade desenvolvimento das forças de produção (técnica, ciência, natureza, homem, etc.), logo precisam ser duramente substituídas; 2) As forças produtivas avançam enquanto as relações de produção permanecem, gerando crise sistêmica. Na realidade, ambos os casos ocorrem e até misturam-se. Há ainda um terceiro caso, combinado aos demais: as forças produtivas avançam e mudam apenas relativamente as relações de produção (casos deste capitulo) como sintoma, por mediação ou por deformação, da tendência à mudança completa dessas relações. Na crise do escravismo, tentou-se usar colonos no lugar de escravos, que eram insuficientes com as invasões à Roma, mas logo revelou-se limitado, apenas sintoma da necessidade de mudança completa das relações de produção, para o feudalismo com o senhor e o servo. O desenvolvimento das forças produtivas afeta as relações de produção, ainda que não as mude completamente de imediato. Há ainda uma segunda observação para introduzir as conclusões deste capítulo. Também aqui, o texto entra em sincronia com a concepção de ―crise categorial‖ trabalhada por pensadores como Kurz. No método dialético, as categorias nada têm de eternas, fixas e a-históricas; elas são transitórias, mudam-se, têm fim. A crise das categorias – crise da categoria valor, etc. – ocorre porque elas são reais, nunca meras palavras ou invenções artificiais do cientista, etc. Afinal, o método científico superior jamais parte das categorias ou conceitos enquanto modelos prévios, formas onde encaixar forçadamente os dados do real – jamais ao menos nos primeiros momentos das conclusões. A realidade pode exigir atualizações categoriais necessárias. No kantismo, os dados adaptam-se aos, encaixam-se nos, conceitos; na dialética, ao contrário, os conceitos modificam-se para que caibam nos dados. Os marxistas formais, no entanto, costumam usar o método dedutivo, por exemplo, encaixar este ou aquele grupo de assalariados numa noção categorial por meio de critérios prévios; assim, professores seriam do proletariado, do operariado quem sabe, porque vivem de salário, vendem sua força de trabalho, não dominam os meios de produção, etc. Pouco entendem que uma avaliação correta iria para ―depois‖ da aparência e da forma do salário rumo ao conteúdo e à essência, ou seja, o ―ponto de vista‖ do valor, que é, de fato, materialmente, a arché (arkhé) da sociedade capitalista (qual a água ou o ar a foram do cosmos para os pré-socráticos); como o princípio é o princípio, ele, o valor, aliás, começa a obra O Capital – assim como o Ser-nada-devir inicia tanto o mundo quanto a filosofia e, por isso, também a Lógica de Hegel.

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O SETOR DE SERVIÇOS Guiados pelo debate até aqui, observemos estes dados que nos servirão de exemplo: TABELA 1

Fonte: (Pikett, 2014) Os números acima revelam uma tenência à perda de mão de obra na indústria e na agricultura e ganho no setor de serviços. Precisamos tirar algumas conclusões adicionais ao movimento descrito. O setor de serviços é produtivo de lucro, não de valor. É improdutivo do ponto de vista da produção como produção de mais-valor. Isso significa que seu inchaço, em parte por baixo uso de tecnologia, extrai parte do valor global para si de modo, por assim dizer, parasitário. Constituise como elemento para a crise do sistema. O desenvolvimento do capitalismo promoveu a ascenção do setor médio ligado aos serviços. Exigiu a inflação de fatores do tipo: 1) Serviço de autônomo como reação o desemprego ou trabalho precário; 2) Serviços exigidos ao Estado para prover as condições básicas do funcionamento do capitalismo; 3) Especialização de tarefas improdutivas nas empresas via terceirização (exemplo: empresa de call center cuida, com custo unitário menor, do atendimento em nome de empresas contratantes); 4) Urbanização produz demandas sociais que podem gerar lucro (igrejas, etc.). Por vezes, o setor de serviços pode ser tanto fonte de lucro ou apenas um custo social posto como necessário, na empresa ou na sociedade. O professor pode dar aula numa universidade pública ou particular; das duas maneiras suga do valor social ou como fluxo dos impostos ou, no

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outro caso, com mensalidades do cliente. Na medida em que cai a taxa de lucro, a classe dominante busca novas fontes lucrativas e as encontra, por vezes, tornando um trabalho improdutivo em fonte de extração de valor. Reafirmamos o que dizemos em outro capítulo. Na medida em que o maquinário substitui o trabalho manual na produção, elevando o trabalho intelectual – controle, gestão, etc. – ao patamar de trabalho por excelência, o atual setor de serviços em parte deixará de existir e, noutra parte, será redefinida para fins socialistas. As ―formas sociais puras‖, que não são trabalho enquanto relação homem-natureza, serão a importante ocupação dos cidadãos. A hiperinflação dos serviços é sinal de que o fim da pré-história da humanidade aproxima-se, tornando-nos mais sociais. Há polêmica sobre se os assalariados fora das fábricas, minas e terras, etc. são parte do proletariado. Tal discussão é datada na história, pois são recentes certos fatores: várias categorias cresceram em número e passaram pela precarização das relações de trabalho. O professor era parte de uma aristocracia, formava-se já com bom salário; a política de Estado por aumentar a quantidade de formados concorrendo por uma vaga e o crescimento do número de escolas públicas sem o correspondente aumento de verba precarizaram a profissão levando à formação de sindicatos, ou seja, ocorreu a esquerdização desse setor. Os bancários passam por processo semelhante com a introdução dos caixas eletrônicos. A questão sobre a classe dos setores de serviço revela uma nova tendência: setores não operários podem protagonizar revoltas sociais ou servirem de vital apoio às mobilizações. Daí o problema teórico um tanto instintivo sobre a nomenclatura. Neste livro, consideramos os membros o setor de serviços classe média, setores médios. Porém o mais indispensável é perceber tanto a história desses setores, o processo de precarização (que é confundido com o conceito proletarização) e ampliação, quanto o papel que antes não tinham na sociedade e na luta por outro mundo. AFASTAMENTO DAS CLASSES OPOSTAS DA PRODUÇÃO Encontramos a seguinte conclusão do Livro III d‘O Capital: a burguesia produtiva tende a ser de todo improdutiva, quer seja, afasta-se da gestão fabril, contrata executivos em troca de bons salários para as tarefas de controle geral. Podem assumir cargos artificiais e figurativos, mas vivem do mais-valor gerado sem relação direta, pessoal, com o trabalho intelectual neste setor; e isto é tanto mais quanto mais é o capitalista coletivo – portadores das ações das empresas, dos títulos de propriedade – quem domina. A burguesia toma a forma parasita.

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Transformação do capitalista realmente ativo em mero dirigente, administrador do capital alheio, e dos proprietários de capital em puros proprietários, simples capitalistas financeiros Mesmo quando os dividendos que recebem englobam o juro e o lucro do empresário, isto é, o lucro total (pois a remuneração do dirigente é ou deveria ser mero salário para certa espécie de trabalho qualificado, com preço regulado pelo mercado como qualquer outro trabalho), esse lucro é percebido tão-só na forma de juro (Marx, O Capital 3, volume 5, 2014, p. 583)

Rastreemos o desenvolvimento das relações de produção por meio das era do capital: 1) capitalismo mercantil: a burguesia da produção cumpre tarefas de comando direto, trabalho intelectual, sobre os artesãos; 2) capitalismo industrial: o burguês dirige os dirigentes, uma rede interna hierárquica de comando; 3) capitalismo financeiro: a burguesia afasta-se do comando direto, contratando responsáveis para as tarefas de trabalho intelectual; 4) capital fictício: a burguesia infla seu caráter parasitário e perde identidade imediata para com as empresas – a classe dominante é, assim, uma classe que já não é uma classe. Expressando o próprio capital, sendo capital encarnado, vemos um movimento geral de alienação da burguesia em relação ao capital produtivo em si. Isso ocorre interligado à globalização capitalista, com a despatriação do capital, onde este internacionalismo burguês do sujeito valor-capital desenvolve a mobilidade do capitalista e o lucro enquanto único objetivo pátrio. A produção ocorre, em muitos casos, na China; a administração geral da empresa, nos EUA; os acionistas vivem suas vidas parasitantes em qualquer lugar do mundo onde lhes proporcione prazeres incomuns e possam obter consultas de seus dados via internet. O trabalhador sabe quem é seu supervisor ou gerente, mas desconhece o patrão porque, exceção de empresas menos avançadas, ele ao modo clássico inexiste. Há a empresa impessoal. Após a exposição deste parágrafo e de quase a totalidade do livro, tive bom contato com a palestra (Duménil, 2018) de Gérard Duménil, defensor da tese de que parte importante do valor vai para a camada superior da burocracia nas empresas, em tendência crescente nos últimos 30 anos, dado empírico que, segundo ele, Piketty não foi capaz de discriminar. O economista francês afirma que Marx apenas intuiu e deixou de desenvolver a questão; de fato, n‘O Capital III o mouro fala sobre a palavra ―juros‖ na contabilidade do gerente da fábrica esclarecendo que se refere à parte do lucro destinada ao burguês, enfim afastado da produção. Quando há fusão do capital produtor de juros com o capital produtivo – isto é, o imperialismo – o processo sai de seu estágio embrionário e fetal, consolida-se e avança. Com sua tese um tanto impressionista, o palestrante conclui que o socialismo é impossível e que estamos na transição para uma sociedade dominada pela ―gerentocracia‖; ora, deixa de perceber a importância elevada da gerência – tanto em fábricas automatizadas quanto as de presença operária – na sociedade de transição ao

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socialismo, pois eles serão eleitos pelo poder dos trabalhadores em assembleias e estarão, assim, sob avaliação constate dos novos ―patrões‖. Isso significa que, de um lado, parte da gerência atual, que está sob um fenômeno transitório, se aceitarem a nova realidade, poderá pegar cargos no Estado socialista, com salários relativamente atraentes, e, de outro, o poder gerencial tal como é, ainda que seja sinal de um socialismo latente, pode ser destruído pela revolução socialista. Há polêmica sobre a qual setor pertencem políticos, executivos etc. Localizamo-los na burocracia capitalista, a burocracia burguesa – nem tudo são classes. Seus privilégios lhes dão espaço para enriquecer de outros modos (empresas, ações etc.) tornando-os ligados orgânicos a mais de um setor privilegiado. A palavra ―burocracia‖ tende a passar apenas o sentido parasitário, mas também se refere a funções de comando, administrativo etc. 43 Tomemos por novo ângulo e ponto de partida na produção. No fim do feudalismo: ARTESÃO – funções: Produz Estoca Planeja Contabiliza Vende Controla Na medida em que o capitalismo desenvolve-se, tais funções são divididas e especializadas: o trabalhador coletivo produtivo cumpre a função do trabalhador produtivo individual exercendo controle sobre o alienado produtor de valor. Produz – operário Estoca – assalariado auxiliar Planeja – burguês ou gerente Contabiliza – gerente, contabilista, economista Vende – burguês, administrador, empregado improdutivo designado a esta tarefa Controla – capataz, gerente de diferentes níveis Ocorre divisão, alienação do trabalho produtivo – separação entre manual e intelectual. Sob outra forma, o socialismo superará as especializações acima postas. O afastamento parasitário da 43 Entre comunistas, falamos sobre atuação nos sindicatos e no Estado Operário: “podemos e devemos ser burocratas sem estarmos burocratizados”. Burocracia e (burocracia em) burocratização são categorias diferentes, estando íntimas.

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grande burguesia da produção (e realização) de valor corresponde, na outra ponta, ao afastamento do trabalhador produtivo, com vantagens a um e desvantagens a outro. A III revolução industrial é o máximo estágio do afastamento do operário da produção. O desenvolvimento das forças produtivas, portanto, induz à futura mudança das relações produtivas, hoje sob a forma de desemprego crônico e financeirização. A própria redução numérica da quantidade de donos do mundo, cujo poder é enorme ao concentrar em poucas mãos a riqueza social, uma vantagem imediata, uma redução em si quantitativa – de uma miríade de milionários para um punhado de bilionários (algo em torno de 3000) de fato dominantes –, produz as condições da mudança qualitativa, o fim da classe dominante, a redução numérica total, e é seu sintoma. A matéria abaixo ajuda-nos a ver: As grandes fortunas do mundo nunca tiveram tanto dinheiro como neste início de 2020. O ano de 2019 terminou num recorde histórico para as 500 pessoas mais ricas do planeta, que acrescentaram 1,2 trilhão de dólares (equivalente a 60% do PIB do Brasil), aumentando em 25% o seu patrimônio coletivo, que chega a 5,9 trilhões de dólares, segundo o índice da Bloomberg. (Os 500 mais ricos do mundo começam 2020 mais ricos do que nunca, 2019)

Em principal nas fábricas, surge uma ampla hierarquia de comando e funções (gerente, capataz, serviço de inteligência, etc.) que cresceu com o desenvolvimento do capitalismo. Surge assim o acréscimo sugador parasitário de valor dos falsos custos de produção (Mészáros, Para além do capital, 2011)44. No escravismo romano, a ampliação dos campos de trabalho exigia também aumento dos custos improdutivos com o controle prático da vida, mais capatazes, soldados, burocratas, etc. eram necessários para vigiar a quantidade maior de escravos e a extensão acrescida da propriedade. No capitalismo com concorrência de monopólio, as empresas em luta encarniçada forçam umas às outras a acrescentar pseudocustos de produção para vencer suas guerras mercantis. Tal aumento da sucção parasitária de valor, substância que surge apenas na produção, ocorre tanto, e principalmente, no capital industrial quanto nas demais formas de capital. No caso escravagista, a solução foi encontrada em outro modo de vida, o feudalismo, pois o antigo escravo passa a ser um servo, mais livre, com suas próprias ferramentas e direito a plantar uma parte da terra para si; a então nova sociedade superou custos improdutivos da sociedade anterior, pois, por exemplo, tornou-se desnecessário uma vigilância tão direta sobre a classe dominada. O fim de boa parte dos custos improdutivos da produção – e da sociedade –

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Para evitar falsa citação: de Mészàros retiro “falsos custos de produção”, enquanto contribuo com o fator do aumento de tais custos.

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capitalista dar-se-á com a mudança socialista do modo de vida; aqui, custos improdutivos serão reduzidos em termos relativos e absolutos, como com o fim dos grandes gastos com propaganda, espionagem, polícia, etc. O DESCABER NOS CONCEITOS O desemprego crônico fruto da alta produtividade sob o capital é expressão, inversa, da possibilidade de maior tempo livre no socialismo, aqui expresso no tempo ocioso e desesperado. Vejamos o crescimento: TABELA 2

Fonte: (Maddison, 2006, p. 134) Os dados são, ainda que claros, limitados. O trabalho estatístico comumente ignora o subemprego, os que desistiram de procurar trabalho e os autônomos como parte do grande número daqueles fora das relações empregatícias formais. Após a crise de 2008, certamente os dados são mais duros, apesar das oscilações conjunturais do nível de emprego. A tabela acima, apesar de faltar informações mais atuais, demonstra bem uma tendência contínua ao aumento da taxa de desemprego.

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A solução para esse problema social será reduzir a jornada de trabalho de modo a garantir desemprego zero, usar toda força de trabalho disponível, pleno emprego. Uma escala móvel de tempo de trabalho pode surgir como a nova lei social contra a lei capitalista do exército industrial de reserva. Trotsky falou na década de 1930 em subclasse de desempregados (Trotsky, O marxismo em nosso tempo, 2009), isto é, o número de desempregos havia crescido de tal forma que exigia uma atualização categorial, para além do exército industrial de reserva. Ele observava o declínio da curva histórica, de 1913 à 1945, como o momento final do capitalismo. Podemos afirmar que houve uma normalização e até pleno emprego após a II guerra para daí então, tendencialmente, aumentar o número de desocupados. Sua categoria volta a ter valor teórico para a análise da atual macroconjuntura com o declínio da atual curva de desenvolvimento capitalista. Outra das formas transitórias, comum em nosso tempo, ocorre quando é comum permear mais de uma classe. Um operário, porque de vida precária, tem uma pequena quitanda em sua casa ou a família trabalha em pequena propriedade; um petroleiro, operário aristocrático, pode ter ações na própria empresa; o empresário, tão logo tenha capital em forma monetária sobrante, tem investimentos tanto na produção quanto na área financeira (dívida pública, etc.) 45. Dizer a qual classe ou setor pertencem fica mais difícil, pois se encontram menos dentro do conceito. A MISÉRIA RELATIVA O capitalismo tirou enormes grupos humanos de relações arcaicas e os colocou em relações monetárias. Assim a miséria absoluta foi reduzida, com a monetarização do modo de vida. Mas este avanço é contraditório, negativo e positivo, pois aumenta os fatores estressantes da maioria, o que é base para a acentuação da luta de classes. Veja-se que em São Paulo um assalariado pode perder até 5 horas de seu dia com o tempo de transporte público; além do mais, convive com a poluição visual, sonora e do ar. A forma salário quando cresce a remuneração pode esconder precarizações não medíveis por esta via com a intensificação do trabalho, a privatização dos espaços de lazer, etc. Os comerciários do século XIX eram bem pagos assim como os bancários há poucas décadas. A queda da qualidade de vida desses setores não operários é fator importante para a revolução, pois tende a afastar tais tipos da direita com maior facilidade. Ademais, inúmeros fatores não sindicais, para além e com as relações trabalhistas, afetam nossas vidas.

45

Nesse tipo de burguês, ocorre uma cisão em sua personalidade pública, uma dupla personalidade, com exigências políticas e econômicas tanto financistas quanto produtivas, ainda que opostas.

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A acentuação da miséria relativa, os fatores estressantes de diferentes origens que se combinam, tende a unificar grandes massas humanas por melhorias. O aumento da miséria relativa é mais sintomático para a revolução social que a miséria absoluta, pois, neste último caso, a situação é de tal modo deteriorada que impede uma luta comum.

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O SUJEITO REVOLUCIONÁRIO HOJE Em capítulo anterior, apresentamos estes dados: TABELA 1

Fonte: (Pikett, 2014, p. 112) Por meio dos dois países centrais acima, percebemos que a classe camponesa e o operariado do campo foram substituídos pelos trabalhadores de serviços – uma numerosíssima massa humana. Como meras mudanças de quantidade promovem mudanças de qualidade, levemos em conta que a maior parte dessa nova camada é cada vez mais precarizada, concentrada num mesmo espaço, a cidade, e forte em número. Ao mesmo tempo, a classe operária passou por mudanças, entre as quais: 1) Como mostram os exemplos da tabela 1, a classe operária foi reduzida percentualmente e em número numa quantidade destacada de países, em principal nas nações centrais para a revolução mundial (países imperialistas, Brasil, etc.); 2) Muitas das fábricas foram transferidas para cidades menores ou para outros países na intenção de reduzir a luta de classes; 3) A produção de certas mercadorias – um carro, etc. – pode ser em parte subdivida em fábricas menores e auxiliares, o que fragmenta relativamente os produtores. 4) Há a aristocracia operária cuja qualidade de vida a torna de mentalidade pequeno burguesa, logo a distancia de fervores revolucionários; 5) A III revolução industrial funda fábricas desprovidas de operários. Essas observações significam a necessidade de atualizar as teses da revolução permanente. Chegamos, portanto, às conclusões a seguir:

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A)

Considerados os fatores elencados, a classe operária está mais dispersa, desconcentrada e, em alguns casos, reduzida. Isso significa que, para ser protagonista em uma revolução, os produtores de mercadorias precisam necessariamente de um elemento compensador, que são estes: um partido operário bolchevique e organismos de poder operário;

B)

Uma revolução de base operária, com apoio popular, será necessariamente socialista, pois precisa de seus próprios organismos revolucionários;

C)

Por causa do elemento exposto no ponto A, as revoluções têm sido, em geral, desde a década de 1980, de caráter popular-urbano com apoio popular do campo (Bolívia, 2003; Peru, 2000; Argentina, 200146; Tunísia, 2010; Egito, 2011; etc.), ou seja, sem centralidade do operariado;

D)

As chamadas ―revoluções democráticas‖ (Moreno), que derrubam um regime ditatorial mas não o capitalismo, observadas nas últimas décadas, são frutos, também, da concentração urbana;

E)

As classes oprimidas não-operárias tendem a ver sua força no número, no voto, já que são ―concentrados, porém descentralizados‖;

F)

A superurbanidade é a casa da democracia operária e do fascismo. A democracia burguesa é, portanto, uma falsa mediação para controlar o concentrado movimento de massas;

G)

As classes oprimidas urbanas não produtoras tendem a explodir antes mesmo de o operariado amadurecer – isso ocorre pela alta concentração na cidade, descentralização no trabalho e precariedade. Por isso, a tendência mais provável, em países sob ditaduras, é o avanço permanente de uma revolução democráticapopular para uma socialista-operária;

46 Neste país, chegou a haver uma tendência viva, possibilidade, ao protagonismo operário por razão do peso histórico do trotskysmo argentino.

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H)

A China é, talvez, a única a poder seguir o seguinte modelo: a classe operária avançar, com apoio dos camponeses, de uma revolução democrática até a uma socialista. Isto tende a acontecer pela alta concentração proletária e humana;

I)

Após uma primeira revolução operária-socialista vitoriosa, a revolução permanente dará um novo giro: como no pós-II Guerra, as classes não operárias oprimidas e, desta vez, urbanas poderão ser a base social de novas revoluções socialistas sem protagonismo operário47. A existência de um Estado operário revolucionário impulsionará as revoltas sociais para uma perspectiva;

J)

Diferente das revoluções de base camponesa, as possíveis revoluções socialistas urbanas-populares terão vantagens significativas: 1. Concentração humana facilitando a democracia socialista; 2. Indústrias automatizadas que poderão ser estatizadas pelo organismo revolucionário de poder para garantir a satisfação das necessidades sociais e iniciar o avanço técnico geral; 3. Atual interligação e interdependência dos países e do mundo facilitando a internacionalização da revolução e da economia planejada; 4. Maior nível cultural médio da sociedade e maior possibilidade instrução;

K)

Portanto, porque precisa de um impulso social, uma revolução socialista popularurbana antes de uma revolução operária com apoio popular é uma hipótese improvável – embora não impossível;

47 1) inclui-se avanço em permanência de fevereiro à outubro, de revolução democrática à socialista – ou, também, diretamente socialista; 2) Entre os explorados e oprimidos não operários, os assalariados do comércio, serviços, do estado, etc., e os desempregados, tenderão a ser liderança dos demais setores não burgueses por razão numérica e condição laboral. Para parte do marxismo estes setores são proletariado não operário; e, apesar de não concordarmos com esta caracterização, revela pelo menos na teoria e na semântica a tendência à substituição possível do sujeito social; 3) Mesmo essas revoluções, na medida em que tendem a implantar a democracia socialista, necessitarão de um partido bolchevique, ou uma frente de partidos revolucionários e semirevolucionários. Apenas após a vitória nos principais países, tornando a transição ao socialismo predominante, partidos da revolução serão relativamente desnecessários, as revoluções serão mais fáceis (ainda com seus riscos) e, em alguns casos, organismos de poder revolucionários sem liderança partidária comunista serão vitoriosos por iniciarem cooperação com outros Estados Operários. 4) Revoluções de protagonismo operário continuarão a ocorrer e serão motores das revoluções socialistas-populares.

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L)

De imediato, as revoluções de outubro, socialistas conscientes, tendem a ser de base operária com apoio popular-urbano e com um partido democrático-centralista. As de fevereiro, as democráticas, as socialistas inconscientes são e serão de base popular urbana;

M)

O campesinato perde força, pois há o assalariamento do camponês; a industrialização do campo tende a colocar a fome como o último dos problemas imediatos da transição ao socialismo; porém, essa classe ainda tem sua importância – maior ou menor a depender do país;

N)

As revoluções nos países atrasados mais avançados, mais contraditórios e mais latentes, por serem os iniciais (China, Brasil, Turquia, México, Índia, África do Sul, etc.), e os nas nações avançadas, por serem a consolidação da tendência, necessitarão de partidos revolucionários. Apenas após tais circunstâncias das vitórias – de modo análogo, mas inverso ao pós-guerra – partidos da revolução serão relativamente dispensáveis, pois o processo geral facilitará, ainda com enormes dificuldades, processos em nações atrasadas, que usarão do exemplo externo, comporão organismos de poder integrados aos de igual natureza nos Estados operários com os quais cooperarão e surgirão.

Comparemos, a partir do empírico imediato, com o exemplo do Brasil. O operariado fabril na Rússia de 1917, que liderou a revolução de outubro, única revolução socialista de força operária vitoriosa do século XX, era menor relativo ao proletariado brasileiro. Porém a constatação é limitada. Na Rússia, era urbano; no Brasil, tende-se a ir às pequenas cidades e ao campo. Num, concentrado em enormes fábricas; noutro, a produção de um produto fragmentase em fábricas auxiliares e menores. Naquele, apenas os ferroviários poderiam com certeza ser chamados aristocracia operária; neste, petroleiros, metalúrgico, mineradores e setores outros pertencem a tal ―subcategoria‖. Lá, a burocracia sindical era irrisória, diferente de aqui. A Rússia era um país interiorano povoado por camponeses dispersos em enorme território nacional enquanto aqui grande massa de assalariados não operários e demais setores precários concentram-se na urbanidade. A economia russa passava por forte processo de industrialização; nós passamos por processo forte de desindustrialização e parte da indústria aqui vigente adota a produção automatizada. O ―pós-fordismo‖ gera alta rotatividade dos trabalhadores, que deixam de criar laços pessoais, sociais e políticos nos locais de trabalho. Se no Brasil a revolução socialista

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terá liderança operária ou popular, depende de circunstâncias nacionais e internacionais: se há outras revoluções vitoriosas estimulando, se os comunistas estão ligados ao operariado não aristocrático, etc. O peso social das favelas, formadas pelos pauperizados, aqueles fora da relação fabril, onde há grande peso de empregadas domésticas, pequenos comerciantes, ambulantes, autônomos, desempregados e demais áreas de serviços cujo trabalho é precário serve-nos de exemplo latente do barril de pólvora popular, isto é, sobre quando o morro descer para o asfalto e não for carnaval. Resolvemos, assim, a polêmica marxista se a revolução pede poder operário ou poder popular, revolução via operariado ou multidões populares. A oposição surge porque de fato surgem tendências novas na realidade. O operariado ainda pode cumprir função de liderança por estar diretamente ligada à produção material. Por outro lado, surge uma massa concentrada de precários. Se os camponeses, com todas as dificuldades, como a dispersão territorial, foram base de revolucionamentos no século XX, tanto mais força latente têm os oprimidos urbanos. A QUESTÃO DO PARTIDO A teoria da revolução permanente afirma que apenas com a ajuda de um partido revolucionário a classe operária pode tomar o poder. A hipótese de avanço ao socialismo via partidos não revolucionários era considerada por Trotsky, mas como variante improvável. As revoluções sociais do século XX, no entanto, atualizam a conclusão porque foram lideradas por partidos centristas burocráticos (adotavam o centralismo burocrático). As contradições empurraram as direções pequeno burguesas a irem mais longe do que pretendiam. Também foi o caso da Comuna de Paris: Os membros da Comuna dividiam-se numa maioria, os blanquistas, que também tinham predominado no Comité Central da Guarda Nacional, e numa minoria: os membros da Associação Internacional dos Trabalhadores, predominantemente seguidores da escola socialista de Proudhon. Os blanquistas, na grande massa, eram então socialistas só por instinto revolucionário, proletário; só uns poucos tinham chegado a uma maior clareza de princípios, através de Vaillant, que conhecia o socialismo científico alemão. Assim se compreende que, no aspecto económico, não tenha sido feito muito daquilo que, segundo a nossa concepção de hoje, a Comuna tinha de ter feito. O mais difícil de compreender é, certamente, o sagrado respeito com que se ficou reverenciosamente parado às portas do Banco de França. Foi também um grave erro político. O Banco nas mãos da Comuna — isso valia mais do que dez mil reféns. Significava a pressão de toda a burguesia francesa sobre o governo de Versalhes, no interesse da paz com a Comuna. Mas foi mais prodigioso ainda o muito de correcto que, apesar de tudo, foi feito pela Comuna, composta que era por blanquistas e

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proudhonianos. Naturalmente, os proudhonianos são responsáveis em primeira linha pelos decretos económicos da Comuna, pelos seus lados gloriosos como pelos não gloriosos, assim como os blanquistas pelos seus actos e omissões de carácter político. E quis em ambos os casos a ironia da história — como de costume, quando doutrinários chegam ao leme — que uns e outros fizessem o contrário do que lhes prescrevia a sua doutrina de escola. (Engels, A Guerra Civil em França, 2008, grifo nosso)

Os proudhonianos eram contra a associação no campo da economia e os blanquistas eram contra o poder controlado pelas massas com armamento popular. Mas fizeram o contrário de suas teorias e perfis. Em meio à revolução, tiveram na prática de superar seus programas. Se está correta nossa caracterização de que as próximas três ou quatro décadas serão as mais decisivas da humanidade, a pressão objetiva de uma realidade em crise pode forçar a que organizações centristas de esquerda sejam lideranças na substituição de sistema social. E isso será tanto mais fácil e provável quanto mais houver países iniciando a transição ao socialismo. Tal possibilidade deve ser considerada contanto evitada como guia para o futuro. A história pode fazer uso de partidos impróprios para impor suas necessidades, porém nada autoriza correr tal risco – uma vez que há ameaça de fim da civilização – e deixar de construir partidos revolucionários nos diferentes países e um partido mundial da revolução. A QUESTÃO DA LIDERANÇA Trotsky afirmou que a revolução russa só foi vitoriosa graças à liderança insistente e qualificada de Lenin. Isso sugere um peso enorme dos fatores subjetivos quando os fatores objetivos da revolução estão maduros. Isaac Deutscher polemiza contra o primeiro ao afirmar que, ao contrário, aconteceram revoluções vitoriosas lideradas por figuras menores e limitadas. Apresentemos uma proposta de resolução da polêmica. A imposição histórica de um grau de objetivismo apenas pode acorrer após a imposição de uma tendência, ou seja, após ação subjetiva – classes, partidos, líderes etc. – sobre a realidade. Exemplo: não fosse o acerto político do partido bolchevique, corrigido por Lenin, de fazer a revolução russa, onde pesaram a decisão e o perfil do indivíduo na história, a revolução cubana não seria uma imposição histórica, muito apesar de seus dirigentes de inspiração democráticoliberal – não haveria um necessário ponto de apoio continental à ilha. Outro: no século XIX, na Alemanha, a ―via prussiana‖, ir do feudalismo ao capitalismo por reformas e pelo alto, apenas pôde se impor longe da revolução burguesa, por meio do bismarkismo, porque o capitalismo se consolidou na Europa e no mundo, depois de duras revoluções e conflitos. Mesmo havendo

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possibilidade de ―objetivismo‖ numa etapa histórica, este continuará como certo grau relativo, isto é, subordinado, na luta geral, à relação dialética, aos resultados, entre o objetivo e o subjetivo. As primeiras vitórias são ainda mais dependentes de decisões e perfis subjetivos, como o gênio de Lenin na Rússia ou as primeiras revoluções sociais do século XXI. Tais conquistas produzem uma pressão histórica positiva para o revolucionamento social, tornando os próximos processos mais, de modo algum absoluto, objetivistas, menor dependência de homens e mulheres singulares. De qualquer modo, o subjetivo e a individualidade cumpriram e cumprirão um importante papel, para a conquista ou a derrota, ainda que sob condições melhores para a transformação radical do modo de vida.

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ELEMENTOS ESPECÍFICOS DA REVOLUÇÃO PERMANENTE Vimos que as revoluções não diretamente socialistas tendem a um protagonismo não operário, enquanto a classe operária cumpre centralidade nos revolucionamentos sociais. Também vimos que a formação de um Estado Operário com democracia socialista abre maior possibilidade de revoluções socialistas com protagonismo urbano dos setores populares, em principal os assalariados precários. Em diante, debatemos questões levantadas pela conjuntura. Principalmente – mas não só, podendo valer para outros países – no norte da África e no Médio Oriente, onde ocorreu a primavera árabe, há uma particularidade da modernização capitalista, em boa parte desses países: a burocracia burguesa é também dirigente, além das forças armadas e do Estado, dos centros produtivos nacionais. A burocracia estatal do capitalismo tem aí relação muito mais direta com a geração de riqueza, com a produção. Isso significa: as revoluções democráticas48 precisam realizar-se destruindo ao mesmo tempo o regime ditatorial, o Estado e a burguesia, ou seja, precisam avançar ao socialismo. Diferente da burocracia de outros países, onde a classe dominante governa por meio de seus representantes diretos, esse perfil específico faz com que a democracia burguesa seja especialmente inviável nas nações da região. Na América Latina, as situações pré-revolucionárias e revolucionárias puderam desemborcar em democracia burguesa como modo de tentar impedir a revolução social. Nestas nações, em diferente, a mesma tendência – por crise, crescimento da classe operária e urbanização – tende à guerra civil. As revoluções democráticas, por liberdades democráticas, emperram na necessidade da burguesia nacional e internacional por estabilidade no aparelho estatal. A classe dominante não pode supor a substituição de dirigentes por eleições periódicas, pois equivaleria um tipo anômalo de concorrência ao transformar a luta eleitoral em luta por cargos nas estatais. A burocracia estatal é também burocracia empresarial, um mesmo corpo de dirigentes. A luta por liberdades democráticas empurra, em permanência, para a democracia socialista, de revolução socialista inconsciente para consciente, onde, em curto período de altíssima tensão social, um partido comunista, democrático e centralizado, precisa ganhar a confiança das massas a partir da clareza das tarefas. 48

Revoluções democráticas são aquelas que derrubam um regime ditatorial, mas não o Estado. Diferem-se das revoluções democrático-burguesas, que têm por tarefas reforma agrária, unificação nacional, educação universal, etc. Hoje, toda revolução é socialista, mas nem sempre há tal consciência disso entre os revoltosos.

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Vejamos exemplo da burocracia burguesa como dirigente direta dos organismos de poder e, ao mesmo tempo, seu peso na economia como impedimento de uma revolução democrática normal no mundo árabe:

O imenso peso das forças armadas (apenas para que tenhamos uma ideia, o exército do Egito é o maior do continente africano, com mais de 460.000 efetivos e um milhão de reservistas). Segundo informações do Wikileaks, o próprio governo dos EUA considera que as Forças Armadas do Egito são "uma empresa quase comercial". Possuem enormes extensões de terras, propriedades e empresas (muitas das quais são dirigidas por generais de reserva) que produzem, além de armas e suprimentos, muitos outros bens de consumo. Suas empresas são responsáveis por aproximadamente 40% do PIB do país. (León & Welmowicki, 2013, p. 14)

Há um fenômeno qualitativo. No mesmo artigo (idem, p. 13) é exposto que as Forças Armadas daquele país recebe constantes recursos financeiros dos EUA desde o acordo de paz de Camp David com Israel. Por isso, por lucro, o exército egípcio aceitou mudar o governo durante a revolução contanto que o regime ficasse em pé, mais ou menos estável. Manobrou tanto quanto pôde para manter-se no poder e evitar a guerra civil. Em muitos desses países, surge uma burocracia política no Estado que, se não transforma os regimes bonapartistas em monarquias, aproxima-se desse conceito. É exemplo Assad, sua família e os membros governamentais. Essa camada social, necessariamente ligada à burguesia, depende do controle do aparelho estatal para a manutenção de suas condições. Precisam manter os regimes políticos antidemocráticos. Casos típicos são os países rentistas do tipo Arábia Saudita, cuja produção petroleira, controlada pelo Estado, garante altos lucros por meio de uma única mercadoria muito cobiçada no mercado mundial. Embora falte apreender a consequência, a impossibilidade de revoluções democráticas, a causa é clara entre parte da vanguarda:

JH | Gilbert Achcar usa o termo ―patrimonial‖ para descrever os países no mundo de língua árabe em que um pequeno grupo de famílias são ―donas‖ do Estado e do capital: Marrocos, Arábia Saudita e outros estados do golfo. Ao mesmo tempo, descreve Egito

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e Tunísia como ―neo-patrimoniais‖ – países em que parentesco, propriedade de capital e controle do Estado se misturam, mas não se fundem. Você coloca a Síria no primeiro grupo – por que isto? JD | A instrumentalização dos termos patrimonialismo e neo-patrimonialismo por Achcar foram muito úteis. Por ―patrimonial‖, queremos dizer um Estado que foi inteiramente privatizado, por dentro de uma família e através de suas próprias redes. Isto tornou a derrubada destes estados algo muito mais difícil que nos estados ―neopatrimoniais‖ que você mencionou, em que setores-chave do poder estatal foram capazes de remover Ben Ali e Mubarak enquanto mantiveram sua forma básica de governo. No Sudão e na Argélia – aonde atualmente estão acontecendo enormes levantes – o processo possui características neo-patrimonialistas, mesmo que o poder de fato esteja entre os membros do estrato mais elevado dos militares. Esta realidade se diferencia da Síria, em que o poder burocrático, militar e financeiro está inteiramente nas mãos de uma única família e sua rede mais ampla. (Revolução e Contrarrevolução na Síria: entrevista com Joseph Daher, 2020)

Três fatores gerais também diminuem a probabilidade de revoluções democráticas desprovidas da via socialista: 1) Com o fim dos Estados Operários Burocratizados, a burguesia mundial deixa de necessitar na mesma anterior medida da reação democrática enquanto tática de apaziguamento das situações revolucionárias; 2) baixo peso operário em parte dos países da região; 3) neste momento histórico, o capitalismo torna-se um fator anticivilização e precisa, para manter-se, reduzir os direitos democráticos. As razões de nossa derrota conjuntural na primavera árabe são, portanto: 1) a falta de partidos comunistas estruturados; 2) falta de uma teoria correspondente capaz percebesse este elemento da revolução a tempo; 3) pouco apreço pela arte militar na certeza ilusória de inevitabilidade do socialismo; 4) baixa solidariedade internacional prática. A conclusão a que chegamos, neste capítulo, é evitada por pensadores do tipo Luiz Carlos Bresser-Pereira. Vejamos o que ele diz: É claro que eu desejo que esses países se tornem nações prósperas e democráticas, mas, para seu povo, a prioridade hoje é garantir as liberdades civis ou o Estado de direito e realizar a sua revolução nacional e capitalista. Não é, portanto, o caminho islâmico, mas não é também o doce caminho da democracia. Só depois que cada país houver realizado sua revolução capitalista e, assim, houver encontrado o caminho do desenvolvimento econômico, poderá se tornar uma democracia consolidada. […]

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Pretender inverter a ordem histórica – implantar a democracia antes de fazer a revolução capitalista – é quase impossível. (Bresser-Pereira, 2011, p. 40)

O autor citado ignora, de um lado, que os protestos de massa urbanos, os maiores da história humana, são verdadeiras declarações de que a democracia tem condições plenas nesses países e, de outro, algo que esquece a revolução socialista e sua própria forma democrática. Ademais, são países tão maduros na economia quanto podem ser sob o capitalismo imperialista49. Ele intui a dificuldade de prover a democracia do tipo burguesa, representativa, nas nações do mundo árabe, mas simplesmente dá passos atrás e defende, em vez do avanço, um recuo centralizador dos regimes políticos. A primavera árabe ainda precisa concluir sua tarefa. Ao passarmos por três ou quatro décadas de duras crises e fracos crescimentos econômicos, as nações daquela região necessitarão de novos levantes e de novas conclusões sobre suas possibilidades imediatas. Sendo a guerra aí o único meio para alguma forma de democracia, a economia planejada certamente surgirá como alternativa. Trotsky argumentou, ao fazer o balanço da revolução russa de 1905, que a revolução burguesa na Rússia teria como fator central o operariado armado que, logo, estando com o poder das armas, atuaria para seus próprios fins, ou seja, transformaria a revolução capitalista em socialista (previsão que se demonstrou correta em 1917). A necessidade de duras guerras civis no tipo de país citado neste capítulo também empurra para uma solução socialista do conflito. A ―nova‖ democracia burguesia, a mudança de regime, poderia frear o ímpeto revolucionário das massas e seria em si viável? A possibilidade está posta, é-nos impossível desconsiderá-la. Mas o mais provável é um regime de duplo poder, chamado kerenkista, onde o poder oficial ―equilibrase‖ em luta com o poder real das ruas como na Rússia entre fevereiro e outubro de 1917. Então se abrirá a possibilidade de poder socialista ou outro regime fechado50, pois o capital já não pode ceder as reformas exigidas pela maioria.

49

Em tais nações, o nacionalismo cumpriu em seu tempo, dentro de seus limites burgueses, uma tarefa progressiva ao desenvolver as forças produtivas de suas nações. 50 A tendência geral desde 2008, por razão da crise sistêmica, é a de regimes políticos fechados, ao menos semifechados (semibonapartismo, etc.). Logo, uma revolução socialista que passe por uma “etapa” curta de democracia burguesa, tenderá, em geral, a concluir-se ou com a democracia socialista ou com a ditadura capitalista.

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A FUNÇÃO HISTÓRICA DOS EX-ESTADOS ―SOCIALISTAS‖ ―Estamos no socialismo, mas os dirigentes já estão no comunismo.‖ Ditado popular soviético. ―Contudo é preciso lembrar que uma economia planejada ainda não é socialismo. Uma economia planejada pode ser acompanhada por uma escravização completa do indivíduo. A realização do socialismo requer a solução de alguns problemas sociopolíticos extremamente difíceis: como é possível, em face da centralização abrangente do poder político e econômico, impedir que a burocracia se torne todo-poderosa e prepotente? Como se podem proteger os direitos do indivíduo e garantir com isso um contrapeso democrático ao poder da burocracia?‖ (Einstein, 2007) ―A atual geração do povo soviético viverá sob o comunismo [na década de 1980].‖ Nikita Khrushchov, em 1962.

A luta pelo socialismo marcou o século XX. Polêmicas, lutas sociais, revoluções e contrarrevoluções, II Grande Guerra, guerra fria, etc. comunicam-se todos com o fato de um terço da humanidade ter vivido sob ―regimes não capitalistas‖. Após a queda do estalinismo, do muro de Berlim e da planificação burocrática, podemo-nos perguntar: qual era, afinal, o caráter daquelas sociedades? Para iniciar o leitor ao argumento, comecemos com um trecho de A Revolução Traída de Trotsky, que nos servirá de pista. Na obra, encontramos uma profunda análise da URSS e uma caracterização marxista dessa sociedade. Vejamos: Lenin […] acrescenta: ‗o direito burguês, em matéria de repartição dos artigos de consumo, supõe naturalmente o Estado Burguês, pois o direito não é nada sem um aparelho de coação que impõe suas normas. Surge-nos assim o direito burguês a subsistir durante um certo tempo no seio do comunismo, e até mesmo o Estado burguês a subsistir sem burguesia!’ Esta significativa conclusão, absolutamente ignorada pelos teóricos oficiais de hoje, tem uma importância decisiva para a inteligência da natureza do Estado soviético de hoje ou, mais exatamente, para uma primeira aproximação nesse sentido. O Estado que toma por tarefa a transformação socialista da sociedade, sendo obrigado a defender pela coação a desigualdade, isto é, os privilégios da minoria, torna-se,

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em certa medida, um Estado ―burguês‖, embora sem burguesia. Estas palavras não implicam louvor nem censura, chamam simplesmente as coisas pelo seu nome. As normas de repartição, quando incitam o crescimento da força material, podem servir a fins socialistas. Mas o Estado adquire imediatamente um duplo caráter: socialista, na medida em que defende a propriedade coletiva dos meios de produção; burguês, na medida em que a repartição de bens tem lugar segundo padrões de valor capitalistas, com todas as consequências que decorrem desse fato. [...] A fisionomia definitiva do Estado operário deve definir-se pela modificação da relação entre as suas tendências burguesas e socialistas. A vitória das últimas deve significar a supressão irrevogável da polícia, o que significa a reabsorção do Estado em uma sociedade que se administra a si própria. Isto basta para fazer ressaltar a enorme importância do problema da burocracia soviética, fato e sintoma. (Trotsky, A revolução traída, 1980, p. 41, grifos nossos)

O marxismo cindiu-se em duas posições opostas sobre os assim nomeados Estados Operários. Uma posição reitera o caráter socialista de suas revoluções, ainda que o regime político fosse criticado com dureza, por exemplo, pelos trotskistas; a outra vertente considera que havia capitalismo de Estado, domínio do valor (Kurz, O colapso da modernização, 1992) ou a ―destruição do capitalismo, mas não do capital‖ (Mészáros, Para além do capital, 2011). A posição destinada a este capítulo chama-os dupla revolução e, também por isso, duplo caráter de Estado. Trotsky demonstrou que, na era imperialista, a revolução democráticoburguesa era viável apenas por meio de uma revolução socialista, uma revolução em permanência. Assim, as tarefas da revolução capitalista – industrialização, unidade nacional, educação universal, reforma agrária, etc. – são cumpridas pelo Estado Operário. Daí que os trotskistas tenham considerado o lado burguês de tais revoluções apenas na medida em que é superado pela revolução social, portanto deixam de considerar um dos lados daqueles processos. 51 A formação de um amálgama entre diferentes tipos de sociedades é algo reconhecível na história. A colonização europeia nas Américas fundaram produções destinadas ao mercado mundial, capitalista, porém, por suas condições, adotaram relações de produção escravistas e, ao mesmo tempo, mas e mais, superestrutura feudal (instituições, cultura, etc.) com influências culturais de diferentes épocas (feudalistas, primitivas indígenas e africanas e valores capitalistas

51

Se nos é permitido um debate filosófico, as posições caíram na oposição do entendimento, ou-ou, quando deveriam avançar para e-e.

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nascentes)52. A combinação interna, oculta e inconsciente das duas sociedades, capitalismo e socialismo, é a nossa conclusão de amálgama histórico. Na medida em que as forças produtivas em desenvolvimento nos países revolucionados eram baseadas no trabalho manual, isto é, na produção pertencente à fase histórica do capital, o caráter duplo dessas sociedades se formava. De um lado, foi necessário dois passos à frente para dar outro atrás, foi necessário um salto histórico, quer seja, adotar a economia planejada, ainda que de modo burocrático, a grande propriedade estatal e o controle do comércio exterior. De outro, a técnica na produção ainda não era a socialista, baseada na III revolução industrial, na microeletrônica e na informática. Na citação acima, Trotsky tratava do uso, mesmo que parcial, do dinheiro e do comércio; porém o decisivo do destino da sociedade está na produção, que ainda se baseava no trabalho abstrato, quer seja, à etapa do capital53. Para clarear, vejamos que, ao lado da produção com maquinaria, o setor produtivo na URSS tinha de lidar, por exemplo, com o taylorismo, ou seja, com a produção cooperada pré-I revolução industrial. Trotsky deixou de levar sua observação até as últimas consequências. Em geral, recuou para a avaliação de apenas o conceito Estado operário burocratizado. Também perdeu a oportunidade de ver o caráter duplo da URSS ao teorizar que a revolução burguesa tenderia a se tornar socialista. Esse limite teórico é um dos pontos que pretendemos resolver neste capítulo. O conhecimento da verdade é aproximativo, por aproximações sucessivas, por isso reconhecemos o legado de Leon Trotsky como, por muito tempo, a mais avançada teoria, impedida de ir ainda mais longe por limites históricos, que precisa hoje ser revista e atualizada54.

52

A exposição deste amálgama, da colonização, apenas reproduz conclusões de Moreno. Sobre, ver: (Moreno, Quatro teses sobre a colonização espanhola e portuguesa nas Américas, 2020) 53 Mandel também vai rumo à posição de Trotsky: “Uma economia híbrida. Entretanto, apesar do funcionamento da economia soviética não ser dominado pela lei do valor, ela também não pode abstrair-se de sua influência. Apesar de não ser uma economia capitalista, isto é, uma economia baseada na produção generalizada de mercadorias, também não é uma economia socialista voltada para a satisfação direta da necessidade humana, uma economia na qual o trabalho possui um caráter imediatamente social. É uma economia pós-capitalista com elementos de mercado. A sobrevivência parcial da produção de mercadorias é combinada com o domínio parcial da alocação direta de recursos produtivos.” (Mandel, 2020) 54 Aqui, pode ser útil uma comparação. As ideias de gravitação de Newton são corretas até certo importante grau: resolveram questões científicas e permitiram fazer previsões acertadas. No entanto, algumas questões ficavam em aberto, como a precessão anômala do periélio de Mercúrio. Uma teoria nova, de Einstein, concluiu que a gravidade não era uma força mas a curvatura do tecido espaço-tempo provocada pela massa (e pela energia). A teoria anterior permaneceu útil até certo grau, porém outra solucionava as questões postas. Toda essa digressão visa ganhar o leitor para nossas conclusões. O autor reivindica o ortodoxismo trotskista, embora dialogue criticamente com outras tradições ao longo da obra; é reconhecível o grande valor da teoria da revolução permanente, que dela surgia uma luta justa. Porém: o próprio Trotsky, enquanto estivesse vivo, atualizaria suas

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RESTAURAÇÃO E BUROCRACIA Em outro capítulo observamos a importância da automação-robótica para a economia socialista. A restauração do capitalismo veio exato quando chegou a hora de os países revolucionados implementarem uma infraestrutura avançada, útil e sua por natureza. Se a burocracia estatal implementasse tal revolução industrial, destruiria as bases de sua própria dominação, de sua razão de ser. Tal atitude, se houvesse, mudaria todo o tecido social e a superestrutura: a casta governante não duraria mais um dia porque seria dispensável. A dificuldade de, diferente dos EUA, transferir as conquistar técnicas do aparato militar-espacial para a produção revela-se muito mais que um erro tático, define-se como limitação objetiva da casta burocrática. Por temor do tempo livre para todos, da abundância geral, da facilidade de planejamento econômico e do consequente impulso à revolução mundial, boicotaram a ―reforma revolucionária‖ em nome de um prazer humano anormal e pouco acessível. Em síntese: as forças produtivas, a partir de certo ponto, poderiam desenvolver-se por apenas dois caminhos, ou socialismo e democracia socialista ou capital. Em entrevista, Guennádi Krasnikov, presidente do conselho de diretores da Mikron, empresa russa líder na produção de semicondutores, e integrante da Academia de Ciências da Rússia, descreve a limitação técnica da extinta URSS: Revista Itogi: O senhor acha que a microeletrônica soviética era mesma tão pobre e digna de ser objeto de piadas? Guennádi Krasnikov: Claro que não. Na União Soviética, a microeletrônica era nosso orgulho e símbolo da nossa liderança no mundo. Naquela época, estávamos no grupo dos três líderes mundiais em microeletrônica, que incluía os EUA e o Japão, e mantínhamos a frente incondicional em todos os indicadores, desde volume de produção e nível tecnológico até a política do governo para o setor.‖

R.I.: Os soviéticos não estavam cientes disso? G.K: Cerca de 99% dos produtos da microeletrônica soviética eram destinados à indústria

bélica,

enquanto

0,5%

era

voltado

para

a

fabricação

de

eletrodomésticos. Portanto, as pessoas comuns só podiam julgar o desenvolvimento da indústria eletrônica nacional pela presença de equipamentos eletrônicos no mercado de bens de consumo. Como essa não era uma prioridade das empresas, os eletrodomésticos de qualidade escasseavam no mercado interno. Cada empresa de

formulações à luz dos novos fatos. A mente aberta é, portanto, uma vantagem dos marxistas, a negação do dogmatismo.

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microeletrônica tinha a obrigação de ter em sua gama de produtos um determinado percentual de artigos como relógios, calculadoras, brinquedos etc. Mas como os esses produtos não estavam entre as prioridades, seu desgin e qualidade deixavam a desejar. Essa atitude dificilmente pode ser considerada correta, mas tem uma explicação. R.I.: Muitas empresas de microeletrônica soviéticas sobreviveram? G.K.: De jeito nenhum! A URSS tinha uma indústria microeletrônica desenvolvida, que empregava mais de um milhão de trabalhadores e englobava uma infraestrutura colossal. Apenas algumas delas sobreviveram. E o processo de extinção não terminou: muitas das sobreviventes se mantém vivas, mas não se modernizaram. (Pokataeva, 2012, grifo nosso)

Percebemos uma limitação ao desenvolvimento das forças produtivas e dos produtos. Em outro capítulo, caracterizamos políticos, administradores de empresas e cargos afins burocracia burguesa. Os burocratas ―vermelhos‖ revelavam em si seu duplo caráter na medida em que impediam a existência da democracia operária e o avanço das forças produtivas socialistas por excelência. Havia, portanto, contradição entre a necessidade de desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção e superestruturais. Vejamos outro exemplo, a internet: A história é relativamente desconhecida - mas foi investigada pelo historiador e professor da Universidade de Tulsa, nos EUA, Benjamin Peters. Ele é autor do livro ―How Not to Network a Nation: The Uneasy History of the Soviet Internet‖ (―Como não conectar uma nação: a complicada história da internet soviética‖, em tradução livre), ainda sem edição em português. O Ogas foi conduzido pelo cientista soviético Viktor M. Glushkov, que era diretor do Instituto de Cibernética de Kiev, na Ucrânia, nos anos 1950 e 1960, e era considerado por colegas cientistas ―a frente de seu tempo‖. ―A proposta era construir uma rede descentralizada, hierarquizada e em tempo real de gerenciamento de informação - algo semelhante ao que hoje chamamos de ―computação na nuvem‖.‖ ―O objetivo era facilitar o controle do Estado soviético sobre fábricas e empresas do regime e integrar economicamente todos os Estados da URSS.‖ ―Na União Soviética, uma rede centralizada de computadores significaria, portanto, um aumento das possibilidades e do apelo do controle do Estado sobre a economia: seria dar um largo passo à frente na demonstração de que o comunismo era um regime superior e inclusive com viabilidade administrativa.‖ ―A URSS tinha, à época, além dos motivos, os conhecimentos tecnológicos necessários e infraestrutura para fazer com que um projeto desse acontecesse. Além disso, o regime

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era conhecido pelas ambições e projetos megalomaníacos na área tecnológica.‖ (Freitas, 2016)

Mas: De acordo com a pesquisa de Peters, a falha do projeto aconteceu por divergências administrativas, falta de consenso, burocracia, corrupção e falta de pragmatismo entre os dirigentes da URSS e aqueles que conduziam o projeto. Documentos importantes se perdiam, reuniões eram adiadas, manda-chuvas discordavam constantemente sobre os detalhes da rede, seus propósitos e sobre quem e como ela deveria, de fato, beneficiar quando fosse implantada.‖ ―O resultado da série de entraves que impediram o projeto Ogas de ganhar vida foi que, nos anos 1980, ele acabou implementado com um caráter completamente diferente da proposta em sua concepção: servidores desconectados entre si, sem interoperabilidade, em centros locais de controle de fábricas da URSS - bem diferente da ideia da internet. Apesar das discussões mais recentes sobre como a internet se dividiu em pequenas redes constituídas de bolhas sociais e sobre o controle de órgãos governamentais e empresas privadas sobre a informação, a internet foi concebida de forma técnica pelos EUA como uma rede cujo conceito não concebia hierarquias entre computadores. É uma rede descentralizada e que cresceu por meio de cultura colaborativa de consumo e alimentação de informações. E esse é um conceito oposto àquele empregado ideologicamente pelo regime soviético: censura, hierarquias de comando e uma cultura de controle em todas as esferas. Para o autor do livro, uma internet criada pela URSS teria valores muito diferentes daqueles que a nossa internet possui - talvez sequer tivesse se transformado na internet comercial como a conhecemos. (Idem)

O autor destacado na citação afirmou que ―The historic failure of that network was neither natural nor inevitable‖ (Peters, 1980). Mas o fracasso não foi contingente, teve como razão o regime de Estado estalinista e poderia ser revolvido apenas por meio da democracia real, socialista, ou retorno ao capitalismo. A partir do Livro II d‘O Capital, observamos a importância do sistema de comunicação e transporte para organização, diminuir o tempo de rotação do capital, diminuir desigualdades entre setores produtivos, integração internacional etc. Ao negar e relegar ao capitalismo tal meio superior; a burocracia impôs sua contradição com as necessidades produtivas e distributivas, elevando as contradições gerais, rumo a esta ou aquela solução – capital ou democracia socialista. A internet permitiria – tal como permitirá caso o socialismo vença –, enfim, o planejamento econômico

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pleno, a organização centralizada da produção e da distribuição; ademais, oferece as condições materiais para a democracia socialista, para a democracia participativa 55. Uma das manifestações da contradição entre a burocracia burocratizada e a necessidade de desenvolvimento das forças produtivas é a observação de que as empresas de baixo rendimento produtivo mantinham-se abertas apesar de seus resultados, pois a existência delas era o que sustentava a existência do burocrata como tal, como casta privilegiada. Nestas circunstâncias, a defesa do emprego dos funcionários era apenas demagógica já que, num governo de fato socialista, a redução da jornada de trabalho seria a solução posta para absorver a mão de obra disponível. Outra expressão do limite da burocracia como forma de regime é a qualidade dos produtos. Quando se tentou medir a produção pela extensão ou quantidade, os produtos eram ―esticados‖ e ficavam frágeis; quando se media a partir do peso, os produtos ficavam cada vez mais pesados. Isso é uma contradição com as tendências da matéria do produto tal como afirmamos quanto à forma mercadoria em outro capítulo. A gestão burocrática tentava burlar as formas de controle. A casta burocrática tomou uma série de medidas para enfrentar os problemas de crescimento após a II Guerra (Júnior, 2019). Elas, no entanto, revelavam o caráter despótico e contraditório de tal camada dirigente, pois faziam de tudo, menos fortalecer a economia planejada ou restabelecer o regime da democracia direta. As medidas giravam em torno de desregular os preços, dar maior autonomia aos dirigentes de fábricas, acabar com subsídios, tentar tirar poderes da Gosplan (instituição de planejamento central na URSS), etc. Ou seja, via regime da burocracia, as tendências capitalistas internas impunham-se paulatinamente. Todas as tentativas de modernização interior, ainda sob alguma base socialista, esbarravam na forma de administração, que burlava, sempre que podia, todas as medidas ou tornava as novas normas disfuncionais. Após o esgotamento do crescimento extensivo da indústria, o esperado crescimento intensivo, o avanço técnico na indústria, foi bloqueado. Para os privilegiados e antidemocráticos comandantes, a restauração do capitalismo era quase que um caminho natural para manter-se no topo ou prosperar. A produção automatizada, a internet, a microeletrônica dariam um impulso gigantesco à reorganização das nações sob dupla revolução. A redução da jornada de trabalho seria enorme, por exemplo, e tiraria as condições materiais da necessidade de uma casta dirigente mais ou menos autônoma em relação à sua base social. Em um Estado operário com democracia

55

O fato de estas condições materiais estarem maduras apenas na história recente é uma demonstração de que a realidade antes estava imatura para a revolução socialista e seu regime de Estado, a democracia socialista.

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socialista seria interesse majoritário direcionar forças para superar o trabalho manual e garantir altíssima produtividade, além de dar todo apoio possível às revoluções. Essencialmente, havia uma contradição entre as tendências burguesas e socialistas em desenvolvimento naquelas sociedades, paralisando-as. Como revolução burguesa, o regime de Estado, ditatorial, negava a democracia socialista, de tipo soviético; como revolução socialista, o Estado planejava centralmente a economia. Como revolução burguesa, ainda havia sistema de preços em parte dos produtos e em parte das nações revolucionadas, ainda havendo subprodução real ou em termos absolutos; como revolução socialista, os preços eram constrangidos, tabelados e limitados. Como revolução burguesa, baseava-se no desenvolvimento do trabalho manual, abstrato e produtor de valor; como revolução socialista, o desemprego era proibido e o trabalho ou o estudo era obrigatório. Uma série de contradições expressa a contradição geral. A luta por qual seria o polo determinante estava por ser revolvida. Tomemos o caso da China. Como revolução burguesa, sua revolução ofereceu pequena propriedade privada aos camponeses, principal classe revolucionária no país; como revolução socialista, por outro lado, limitava o desenvolvimento da propriedade. Como o camponês deveria dar seu excedente ao governo, à cidade, sua produtividade era baixíssima, o que colocava aquela sociedade diante de estagnações. Isso só foi revolvido quando a burocracia estatal liberou os preços dos produtos agrícolas e a venda livre no mercado da maior parte do que excedia na produção camponesa – ou seja, fortaleceu e consolidou o polo burguês daquela sociedade, no lugar de uma formação democrática e progressiva de grandes cooperativas com propriedade estatal do campo, que seria parte da solução socialista. A REVOLUÇÃO PERMANENTE Uma pergunta faz-se inevitável: a restauração do capitalismo era o caminho natural? Não, segundo a Teoria da Revolução Permanente. Se a revolução socialista fosse vitoriosa na Alemanha em 1918, se a II Guerra Mundial tornasse a Europa ocidental um grande continente vermelho, se revoluções políticas impusessem a democracia operária naqueles países sob o stalinismo… Poderia existir outro caminho, mas ao "destruir o capitalismo, mas não o capital" (Mészaros) internacional56, a revolução ficou bloqueada no terreno nacional. Segundo Trotsky:

56 Sendo um grande entre os nossos, Mészaros obteve respostas inconclusas ao lhe faltar, neste tema, a devida atenção à Revolução Mundial. A ele, como a Lucáks, bastavam outras medidas de Estado, internas, à revelia da revolução internacional, para haver outro rumo. A categoria “póscapitalismo” revela-se, se correta a formulação geral deste capítulo, uma categoria apenas em parte certa, de aparência.

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Os diferentes países chegarão ao socialismo com ritmos diferentes. Em determinadas circunstâncias, certos países atrasados podem chegar à ditadura do proletariado antes dos países avançados, mas só depois destes chegarão ao socialismo. (Trotsky, A revolução permanente, 2007, p. 208)

Pois: A revolução socialista não pode se realizar nos quadros nacionais. Uma das principais causas da crise da sociedade burguesa reside no fato de as forças produtivas por ela engendradas tenderem a ultrapassar os limites do Estado nacional. […] A revolução socialista começa no terreno nacional, desenvolve-se na arena internacional e termina na arena mundial. Por isso mesmo, a revolução socialista se converte em revolução permanente, no sentido novo e mais amplo do termo: só termina com o triunfo definitivo da nova sociedade em todo o nosso planeta. (Idem)

O rio da história poderia desaguar em duas diferentes águas: ou revolução socialista por meio da revolução democrático-burguesa ou revolução democrático-burguesa por meio da revolução socialista. Estes são os casos de Rússia, China e Alemanha oriental por suas proporções, colocando outros países – um terço da humanidade – em suas órbitas, como ―efeitos colaterais‖. Quando a URSS caiu, por exemplo, Cuba, que dependia de sua relação com os demais Estados Operários, restaurou o capitalismo pelas mãos da própria direção da sua revolução ao fechar o centro de planejamento estatal, encerrar o controle do comércio exterior e atrair capital estrangeiro. A fórmula de Lênin acabou por ser invertida: dois passos à frente para, em seguida, um passo para trás. A revolução mundial faltou. Pode-se dizer que ocorreu em parte a exigência histórica de apoio internacional, pois aconteceram revoluções sociais em países atrasados. A revolução permanente em parte se impôs, mas não em nações desenvolvidas. Pelo contrário, os países imperialistas conheceram grande e inesperado desenvolvimento, o que afastou por décadas a possibilidade de revoluções sociais onde as forças produtivas eram mais avançadas. Lenin e Trotsky erraram ao suporem que o capital havia cumprido todas as suas possibilidades históricas. Vejamos como o fundador do Exército Vermelho dá as bases dessa explicação, embora apenas desconfie: Si el mundo capitalista pudiera ahora generar un nuevo ascenso orgánico, y si encontrara un nuevo equilibrio como base para un desarrollo ulterior de las fuerzas económicas, nosotros, como Estado socialista, colapsaríamos. Se puede

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ilustrar esto en forma teórica y práctica em dos palabras. Teóricamente, porque un ascenso del capitalismo en Europa crearía una tecnología colosal para la burguesía, y cambiaría la psicologia del proletariado. Si el proletariado ve que el capitalismo puede levantar la economía nacional, esto se reflejará inevitablemente sobre la clase obrera que trató de hacer una revolución, fue aplastada, y experimento un desengaño. Si el capitalismo lleva la economía hacia arriba, habrá conquistado al proletariado por segunda vez, arrastrando a las masas tras él. Desde el punto de vista teórico, vemos que el socialismo tiene derecho a existir precisamente porque el capitalismo no es capaz de desarrollar las fuerzas productivas. Nuestra revolución creció sobre bases económicas, y antes de la revolución éramos parte integrante de la economía mundial. Si el capitalismo es capaz de desarrollar las fuerzas productivas, tendríamos que llegar a la conclusión de que nos equivocamos de raíz en nuestro pronóstico – el capitalismo es una fuerza progresiva, desarrolla sus fuerzas más rápido que nosotros; el bolchevismo llegó al poder demasiado pronto, y la historia castiga muy rudamente a los nacimientos prematuros. Esto sería así si el pronóstico optimista para el capitalismo tuviera alguna base. ¿Pero tiene alguna base? Es difícil de demostrar. Pero por el momento la burguesía no ha podido probarlo, y no puede hacerlo. En Europa no hay ningún desarrollo de las fuerzas productivas. Lo que están sucediendo son crisis y una fractura de las fuerzas productivas disponibles –este es el hecho básico. Por lo tanto debemos decir que el socialismo tiene derecho a existir, a desarrollarse y a todas las esperanzas de victoria. (Trotsky, El capitalismo y sus crisis, 2008, pp. 203, 204; grifos nossos) Para terminar, plantearé una cuestión que, a mi juicio, dimana del fondo mismo de mi informe. El capitalismo, ¿ha cumplido o no há cumplido su tiempo? ¿Se halla en condiciones de desarrollar en el mundo las fuerzas productivas y de hacer progresar a la humanidad? Este problema es fundamental. Tiene una importancia decisiva para el proletariado europeo, para los pueblos oprimidos de Oriente, para el mundo entero y, sobre todo, para los destinos de la Unión Soviética. Si se demostrara que el capitalismo es capaz todavía de llenar una misión de progreso, de enriquecer más a los pueblos, de hacer más productivo su trabajo, esto significaría que nosotros, Partido Comunista de la URSS, nos hemos precipitado al cantar su de profundis; en otros términos, que hemos tomado demasiado pronto el poder para intentar realizar el socialismo. Pues, como explicaba Marx, ningún régimen social desaparece antes de haber agotado todas sus posibilidades latentes. Y en la nueva situación económica actual, ahora que América se ha elevado por encima de toda la humanidad capitalista, modificando hondamente la relación de las fuerzas económicas, debemos plantearnos esta cuestión: el capitalismo ¿ha cumplido su tiempo, o puede esperar aún hacer uma obra de progreso? (Idem, p.234; grifos nossos)

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A citação longa deixa clara uma previsão na forma de uma aposta histórica. E ela estava errada. Uma das condições da teoria da revolução permanente, o capital encontrar seus limites internos absolutos, apenas consolidou-se muito depois da revolução de 1917. As nações que passaram pela dupla revolução, socialista e capitalista, eram todas atrasadas e necessitaram de um salto histórico, um esforço de avanço imenso, para evitar o colapso de suas sociedades, para modernizar-se. A história tem seus mecanismos, mas falta-lhe bom senso: inexiste caminho mecânico, desprovido de tropeços. Dito de outro modo, os grandes acontecimentos históricos ocorrem primeiro como ensaios gerais e depois como processo maduro. Assim, o século XX foi nosso teste inicial, quando o tempo da revolução burguesa havia passado e o tempo da revolução socialista ainda não havia surgido. Nesse sentido, toda uma época de transição, algo cinza entre o preto e o branco. É preciso ter esta clareza: por limites de época, por ser o início e ascensão da fase imperialista, as revoluções foram burguesas parciais e, pela mesma razão, ainda ser o período de elevação do imperialismo, foram revoluções socialistas também parciais. Detenhamo-nos um pouco mais no assunto, pois fere o dogmatismo de certo marxismo ―ortodoxo‖. Pode haver certo consenso de que a Comuna de Paris tinha como uma de suas dificuldades a economia, já que o capitalismo ainda poderia se desenvolver e ainda faltava alcançar sua fase superior, o imperialismo; mais fácil, portanto, alcançar a conclusão de que o socialismo era ali mais possível que necessário. Mas o que dizer da revolução russa e as demais até a década de 1970? Lenin observou o nascer e o desenvolver inicial do imperialismo, seu período de ascensão, não seu período de decadência e consolidação. Observemos os critérios de Trotsky. O capitalismo fez ―enriquecer más a los pueblos, de hacer más productivo su trabajo‖? Sim: a produção desenvolveu-se até a III revolução industrial sob o regime do capital; países dominantes promoveram o ―Estado de bem-estar social‖, que impossibilitou por décadas revoluções sociais no centro do mundo; países atrasados determinantes, como o Brasil, cresceram de modo espetacular pelo menos até durante a década de 1970. Percebemos, logo, que as condições do socialismo passaram a estar postas de fato desde 2008, que anuncia a crise geral sistêmica (de acordo com a curva de desenvolvimento do capitalismo). O critério oferecido pelo fundador do Exército Vermelho aponta a prematuridade das revoluções sociais do século XX. Ele desconfiou tal resultado, mas sua posição dirigente do processo revolucionário soviético e a própria empiria dos fatos históricos daquele período dificultavam uma interpretação negativa da realidade. A possibilidade, antes de tornar-se necessidade, testa-se a si própria. De modo algum afirmamos que os bolcheviques, por exemplo, deveriam ter recuado; apenas devemos perceber as

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causas materiais da derrota, da ascensão do regime estalinista e da posterior restauração do capitalismo. No balanço da primavera dos povos, principalmente na França, Engels destacou que Marx considerava a crise econômica como uma constante e apenas depois ambos tomaram consciência de que o crescimento econômico posterior esteve na base da derrota assim como a crise econômica foi a base do levante. Apenas hoje a situação é outra. Como demonstramos em outro momento, o capitalismo tem macrociclos e está diante de seu último, a fase de declínio da atual curva de desenvolvimento, caracterizado por crises longas ou duras entremeadas por crescimentos fracos ou curtos. É do conhecimento comum do marxismo que um sistema cai e é substituído apenas depois de desenvolver todas as suas possibilidades latentes. É preciso também que as bases da próxima sociedade já estejam a ponto de realizar-se dentro da sociedade anterior; a produção automatizada e a informática são exemplos de tal condição enfim madura. No campo lógico, citemos Moreno: A necessidade era considerada anteriormente como uma categoria que começava a atuar desde o começo de um processo, fazendo com que seus resultados se impusessem. Se um processo era provável não era necessário. Piaget encontra – na fórmula citada – uma resposta em um terceiro termo, o qual une os que se apresentavam como antagônicos até então. Com a ―probabilidade crescente‖, síntese dinâmica de probabilidade e necessidade, esta só surge e se impõe ao final do processo e não no começo. (Moreno, Lógica marxista e ciências modernas, 2007, pp. 68, 69)

A probabilidade crescente57 – atualizemos a citação – revelava-se nas revoluções sociais, porém antes de a necessidade se impor por completo já que ―esta só surge e se impõe ao final do processo e não no começo‖. A possibilidade verifica-se antes de se tornar realidade. O pensamento vulgar supõe que as revoltas sociais põem sempre em possibilidade um novo mundo e são em si expressões de um revolucionamento social latente. Mas a história da luta de classes nem sempre foi assim. Havia inúmeras revoltas de escravos no mundo antigo, porém procuravam a liberdade dos revoltosos, não o fim de toda escravidão ou do sistema. As revoltas camponesas da Idade Média não podiam propor algo novo sob aquelas condições, mesmo assim ocorriam. O diferencial da guerra de classes hoje é que a classe oprimida tem de modo latente um projeto social próprio, mas suas revoltas também podem acontecer antes que as condições estejam de fato maduras para um revolucionamento completo. A conjuntura pode estar em descompasso com a estrutura, uma contradição dialética. 57

Faltou Moreno e Piaget destacarem, por outro lado, na dialética, a necessidade crescente.

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As tentativas de salto histórico, apesar das condições globais imaturas, tiveram como motor e estímulo os problemas da guerra, tema de outro capítulo. *** Em sua crítica-atualização da teoria da revolução permanente, Moreno lida com a própria lei do desenvolvimento desigual e combinado para demonstrar que revolução socialista pode ser igual à base camponesa, não operária, tal como Trótski havia usado a descoberta para dizer revolução democrático-burguesa é igual à protagonismo operário, não burguês. Assim, o argentino atualizou a teoria. Podemos dar novo passo. As Revoluções em países atrasados tiveram duplo caráter: democrático-burguesas e socialistas. Percebendo a mesma lei material, vemos que o caráter dessas revoluções abriam a possibilidade de liderança sob base camponesa por outra razão além da percebida por Moreno: o campesinato é base social histórica das revoluções burguesas. A imaturidade desses países os fez necessitarem de uma revolução onde o proletariado ainda era pouco capaz de um papel ativo ou estava derrotado. As revoluções sociais do século XX tendo duplo caráter, socialista e democrático-burguesa, abriam a possibilidade de substituir o sujeito revolucionário do operariado por camponeses, pois estes últimos são a base social das revoluções burguesas clássicas. Assim ocorreu no pós-II Guerra. A lei do desenvolvimento desigual e combinado já aponta a substituição do sujeito social, de uma classe cumprir as tarefas de outra – uma lei que prova toda sua validade em nível mais intenso. Mesmo a de fato operária revolução social, a russa, expressa o duplo caráter, pois a revolução de 1905, o chamado ensaio geral, foi derrotada por razão da ausência do campesinato na arena política revolucionária. Já em 1917 associava, segundo Trotsky, ―a guerra camponesa, movimento característico da aurora do desenvolvimento burguês, com o levante operário, movimento que assinala o crepúsculo da sociedade burguesa‖ (Broué, 2014, p. 20). A burocracia estatal apoiou-se na pequena burguesia rural precária, falida e sem terra (aspira a uma pequena propriedade privada) usando as bases do Estado operário mais, em contradição, regime de Estado ―bonapartista‖. Foi preciso saltar etapas históricas: antes de forças produtivas maduras foi preciso base socialista para amadurecer as forças de produção, logo também é um Estado burguês. Quando Lenin afirmou ―o socialismo é o poder dos sovietes mais a eletrificação do país‖, em outras palavras, disse: o Estado ―Operário‖ está obrigado a cumprir tarefas burguesas, sustentar um desenvolvimento ainda burguês das forças produtivas. A base sobre a qual o socialismo deveria se erguer estava, ao contrário, sendo erguida pelo Estado, por isso o duplo caráter da superestrutura, burguês e proletário, e da revolução era inevitável.

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Pela mesma razão, o duplo caráter das revoluções, tornou-se menor a necessidade de um partido revolucionário nestes processos, pois, também, 1) as contradições eram elevadíssimas; 2) as tarefas poderiam ser geridas por organizações pequeno-burguesas; 3) os países tinham formações sociais que dificultavam a construção de verdadeiros partidos comunistas. Por isso, Moreno percebe que todas as revoluções vitoriosas, após a II Guerra Mundial, foram de base camponesa e não operária, em países atrasados e dirigidos por partidos centristas centralistas burocráticos com liderança pequeno-burguesa. Passaram por fora das formulações de Marx, Engels, Lenin e Trotsky. Observado desde a macro-história, reforçamos, os saltos revolucionários expressavam em seus duplos caracteres o tempo da revolução burguesa encerrando e o tempo da revolução socialista ainda nascente. *** Vejamos a particularidade russa, a mais proletária das revoluções socialistas do século XX. Os problemas econômicos da I Guerra, a guerra civil revolucionária contra 14 exércitos e as dificuldade advindas junto ao isolamento econômico tiveram como efeito imediato: 1) desarticulação da indústria interna; 2) morte de parte dos operários mais avançados; 3) esvaziamento das duas grandes cidades, com deslocamento humano para o campo na intenção de evitar a fome ao dispor da reforma agrária então implementada. Esses três fatores foram base do regime ―bonapartista‖ inaugurado por Stálin e fortalecimento do polo burguês do Estado, expresso no regime político. Vários autores denunciam que as demais revoluções sociais já se concluíam burocratizadas, diferente da revolução russa em seu começo, baseada na democracia dos soviets. A explicação dada por muitos é que o caráter burocrático dos partidos e das guerrilhas afetou o regime de Estado. A nosso ver, a resposta é insuficiente. A questão é descobrir o motivo da burocratização inicial, da imposição de ―bonapartes vermelhos‖, ou seja, descobrir a realidade objetiva que fez tais condições e tais resultados. Se os países em questão estivessem prontos para uma transição ao socialismo, ainda que necessitassem do apoio internacionalista, não teriam desde o princípio a imposição da burocracia. O mesmo atraso que forçou a tentativa de avanço histórico por salto condicionou a burocratização. Como observamos, a conclusão de que os Estados operários, e a URSS em particular, eram formas de ―Estado burguês sem burguesia‖ (Lenin) foi considerada apenas parcialmente pelos teóricos, incluso pelo formulador da expressão, não levada às últimas consequências, preponderando a ideia de ―Estado operário deformado‖ apenas. Também observamos que o fato de a burocracia ter restaurado o capitalismo deveria ser alinhado aos motivos econômicos das crises daqueles países, em relação à superestrutura estatal, mas é comum somente reconhecer e descrever o processo. Algo semelhante ocorre com o tema da prematuridade das revoluções.

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Muitos marxistas consideram o regime de Estado estalinista desde sua versão, por assim dizer, russa, como se o isolamento internacional e a guerra fossem as únicas causas fundamentais da burocratização; porém as outras revoluções, especialmente a chinesa e a cubana, refutam tal caracterização, que pode ser remetida também a Trotsky, porque já surgiram, mesmo que com uma brevíssima transição, sob o poder da burocracia, sob o regime despótico. Logo o caso russo não era mera anomalia – como supuseram, até aqui, Trotsky e os trotskistas. Aqui também há reconhecimento e descrição, mas falta saber do seu fundamento. Como explicar tais características? A única solução possível é ver que a base econômica e social, nacional e principalmente mundial, ainda estava imatura para revoluções plenas, completas e socialistas. Apenas assim podemos compreender o susto de Trotsky diante da rapidez com que o Estado da URSS encontrou a degeneração de seu regime, de democracia soviética para ditadura estalinista, em menos de 10 anos. As respostas dadas neste capítulo são das questões que os importantes aportes de Moreno não avançaram, pois consideravam a revolução democrático-burguesa apenas na medida em que ela era superada pela revolução socialista, sem supor que esta primeira estava viva ao seu modo no seio do inimigo. A razão disso era a quase certeza de que o capitalismo estava com os dias contados, dada a enorme quantidade de países formalmente não-capitalistas e as revoluções vitoriosas ou em processo. Após o impacto da restauração no Leste Europeu, Kurz e Mészàros penderam para a ponta oposta, erro inverso, o caráter burguês daquelas sociedades. De modo geral, todos os pensadores marxistas críticos à casta burocrática aproximaram-se das conclusões aqui expostas, quase as alcançando. *** Trotsky observou que as sociedades sob revolução social não eram ainda socialistas mas de transição ao socialismo. A consideração de três etapas – transição, socialismo e comunismo – é uma das mais importantes atualizações marxistas. Tais formas transicionais deixaram de existir nas últimas décadas. Na obra O Veredicto da História, Martin Hernandez (2008) demonstra que os assim chamados Estados operários, de transição, possuem três características: 1) Controle estatal do comércio exterior; É o aspecto mais importante, mais universal. Na revolução russa, esteve presente já nos primeiros anos. 2) Grande propriedade estatal; Uma grande quantidade de empresas estatais não é um critério, haja vista que Mussolini expropriou alguns burgueses e elogiava-se ao afirmar que dois terços da economia pertenciam ao

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Estado. O critério é se a propriedade estatal na economia está a serviço ou não do mercado e se a tendência é o império da propriedade privada ou pública. 3) Economia centralmente planejada. As estatais francesas no pós-II Guerra faziam planejamento, para fins de mercado, e os atuais monopólios e oligopólios fazem planificação. O salto qualitativo para a transição ao socialismo é que o grosso da economia, com controle do comércio exterior e grande propriedade estatizada, passe por um plano central. Por tais critérios mínimos, Cuba e China são hoje países capitalistas. O primeiro, por ex., fechou a Junta Central de Planificação, encerrou o controle estatal do comércio exterior (as empresas passaram a ter liberdade de negociação nesse tipo de comércio) e absorveu grande capital privado de outros países, pincipalmente os imperialistas europeus e canadenses (Herrnandez, 2008). Eis um assunto polêmico, já que muitos pensam que o território cubano ainda é um bastião do socialismo, mas a realidade deve se impor sobre a teoria. China primeiro começou as medidas de restauração em 1979, com as Quatro Modernizações; o governo da URSS seguiu o exemplo chinês para enfrentar sua estagnação, em 1986, com a Perestroika. Cuba, como demais países do Leste Europeu sob regimes estalinistas, entrou em decadência com o fim dos subsídios da Rússia às exportações dos países parceiros (como ao açúcar cubano) e retoma o capitalismo na década de 1990. Martin Hernandez afirma que na Europa do Leste e na ex-URSS há revoluções como crítica à burocracia e suas medidas de restauração do capitalismo que afetavam a qualidade de vida da maioria dos povos, mas que em China e Cuba faltaram rebeliões de mesma intensidade diante das medidas estatais. No território chinês, houve protestos atrasados e parciais que foram rapidamente reprimidos; já no território cubano, a crise gerou as famosas fugas por meio de botes ao mar rumo ao exílio estadunidense. O teórico citado também afirma que, diferente da ex-URSS, onde a restauração via burocracia causou um recuo social e degeneração econômica semelhante a uma guerra, em Cuba e China, em oposição, houve algum avanço contraditório das forças produtivas e do estilo de vida, não uma grande destruição geral (como, aliás, previa Trotsky, acertando quanto à URSS). A que se devem tais diferenças? Hernandez não explica, apenas constata. A razão a que chegamos é a que se segue: as sociedades cubana e chinesa ainda eram bastante imaturas, isto é, rurais e pouco industrializadas; ao contrário, os países do Leste Europeu eram industrializados e urbanos (com todas as ressalvas, também com a grande e moderna propriedade rural), logo mais explosivos e com menor possibilidade de desenvolvimento interno do capital. Tal explicação demonstra a razão central da manutenção das ditaduras em Cuba e em China enquanto em outros países houve mudança para democracia burguesa.

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*** Observação destacável são as manobras para fins de restauração do capitalismo. Na medida em que os governos burocráticos pretendiam restaurar o poder do capital, praticaram um tipo específico e especial de despotismo esclarecido burguês. Medidas de Estado tornavam operários acionistas privados de suas empresas, cooperativas eram estimuladas, fábricas deixavam de servir a um plano geral para apenas um plano particular, terras eram dadas aos camponeses, liberava a venda no mercado dos excedentes no campo. Foi-se minando o duplo caráter daquelas sociedades, destruindo o polo operário determinante. Por fim, diante da derrota estratégica, a restauração do capitalismo, uma vitória tática – tanto positiva quanto negativa – era cedida, em alguns países, por pressão ao substituir as ditaduras por democracia burguesa e, assim, arrefecer as tensões sociais. *** O fanatismo de esquerda leva à adoração de heróis, ―iluminados‖ que supostamente não prestam contas à realidade. Esta forma positivista e idealista de ver os líderes leva à concepção de que, por exemplo, na Rússia o capitalismo foi restaurado apenas pela mera vontade de gente como Gorbatchov, que dirigia o país no momento da restauração. O método marxista explica as grandes ações desde a realidade. Se bastou a vontade de poucos homens para restaurar o poder do capital, logo o ―socialismo‖ era apenas algo contingente, sem fundamento histórico (como demonstramos, há algo verdadeiro aí – este é o caso, mas não explica todo o processo). A verdade é que o retorno ao capitalismo era um problema real e foi a forma negativa como uma contradição social, que inclui a contradição interna entre as tendências socialistas e capitalistas, passou a ser resolvida. A ideia restauracionista teve uma base material que a formou e a permitiu. Quando o baixo crescimento da economia exigiu mudanças nas relações sociais e na supererstrutura política, a casta burocrática fez seu trabalho de coveira da revolução, concluiu sua contrarrevolução nacional. Houve, portanto, um momento propício para a radical mudança, isto é, quando as forças produtivas encontraram barreiras ao seu desenvolvimento. A burocracia era um setor privilegiado, ainda que não formasse uma classe social, e como tal defendia seus privilégios e desejava aumentá-los. Era materialmente oportunista, inexistia controle da base social sobre os dirigentes. Há, portanto, um bom grau de verdade na crítica inocente aos restauradores: o fato de os países estarem sob ditaduras sobre o proletariado, não do proletariado, com muitas semelhanças de regime de Estado com o fascismo, foi parte essencial do que tornou possível o caminho do retorno pleno ao sistema socioeconômico adversário. Se os Estados fossem governados por democracia direta, participativa e, portanto, socialista, apenas em

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hipotéticos casos anormais os trabalhadores aprovariam em votações e debates medidas de retorno ao capitalismo. *** Como dito antes, Trotsky atualizou a teoria marxista ao perceber que a nova forma de sociedade teria três, não duas, etapas: transição, socialismo, comunismo. Os países que passaram pelas revoluções parciais estavam na primeira etapa, a transição, onde o capitalismo ainda não poderia ser totalmente superado. Logo, do ponto de vista científico, é errado chamar aqueles países socialistas ou comunistas até a década de 1990. Eram sociedades transicionais onde a transição era muito mais difícil, pois ainda havia muito a amadurecer dentro dos limites do imperialismo. Em sua Ontologia, Lukács afirma a irreversibilidade dos processos, incluso sociais, como a impossibilidade de retornar ao feudalismo após a revolução francesa. A aparência dos fatos no fim do século XX o contradiz, mas apenas para percebemos a prematuridade dos processos forçados por altas contradições conjunturais e estruturais. *** Percebendo a bifurcação do destino da URSS – ou revolução política, devolver o poder aos trabalhadores, ou retorno ao capitalismo – Trotsky elaborou possiblidades de restauração, de diferentes formas: 1) Invasão estrangeira – tentada por Hitler cuja derrota deu fôlego ao regime de Estado do país vitorioso; 2) A classe trabalhadora soviética ser ganha ao capital pelo prazer do acesso de mercadorias baratas e de qualidade de outros países – a crise inflacionária nos países capitalistas retardou a expressão do avanço técnico na produção de bens de consumo nos preços, mas as crises de subprodução e a baixa qualidade dos produtos também atuaram internamente para desmoralizar o lado vermelho do mundo; 3) A burocracia desenvolver-se ao ponto de minar a sociedade para transformar a

grande propriedade estatal-planejada em propriedade privada – esta foi a possibilidade que ganhou concretude, a mais correta. Porém Trotsky supunha daí um processo violento de guerra civil por razão da contrarrevolução burguesa, restauracionista. As lutas aconteceram em quase todos os países sob ditaduras burocráticas, mas de maneira confusa e em proporção desigual ao tamanho do ataque. A contrarrevolução deu seus golpes finais por meio de ―reformas‖. A pergunta imposta é por que a restauração deu-se por contrarreformas, não por contrarrevolução, diferente do que previu o fundador do Exército Vermelho. Esta diferença entre a previsão e a realidade foi pouco observada pelos teóricos. Se o Estado era operário, ainda que deformado, o salto regressivo só poderia ser feito por ruptura brusca. Trotsky nomeou

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reformismo regressivo, reformismo investido, teorizar o fim do ―socialismo real‖ sem altíssimos conflitos, pois seria supor o retorno ao capitalismo por via gradual assim como a concepção reformista de avanço pacífico ao socialismo. A explicação do erro de Trotsky e do processo tal como ocorreu também está no fato de estarmos diante de Estados de duplo caráter, operários e burgueses, além de revoluções de duplo caráter, e a burocratização da burocracia ou, o que é o mesmo, o regime de Estado expressava o polo capitalista, o passado insistente representado. O fato de terem duplo caráter as revoluções e os Estados, somado ao atraso histórico de onde partiam, demonstra que o polo capitalista poderia impor-se por ―reformas liberalizantes‖. Por outro lado, porque havia também um polo socialista naquelas sociedades, mais do que apenas ―capitalismo de Estado‖, é que as medidas puderam ser tal como de fato foram, ou seja, destruíram o monopólio estatal da economia, o planejamento geral centralizado, o controle do comércio exterior, o uso de vales em substituição ao dinheiro, o emprego pleno obrigatório, etc. A teoria da revolução permanente fazia previsões cujos resultados poderiam ser positivos ou negativos. Ou a democracia socialista era imposta pelos trabalhadores, dando novo impulso à revolução mundial, ou o capitalismo retornaria. Tal conclusão foi considerada absurda, contrarrevolucionária e irrealista quando proposta por Trotsky, porém a história lhe deu razão da pior maneira. *** As revoluções parciais, limitadas por suas próprias épocas, permitiram inúmeras reformas e conquistas sociais em todo mundo, mais do que apenas naqueles países revolucionados. Muito mais do que isso: como ensaios gerais antes de o palco estar pronto, legaram-nos uma fina flor teórica como a teoria do partido de tipo bolchevique, a teoria do imperialismo, renovações na arte militar, a teoria da revolução permanente (a mais correta e avançada de sua época), a lei do desenvolvimento desigual e combinado, a teoria da curva de desenvolvimento do capitalismo, o programa de transição ao socialismo, acertos e erros de medidas transicionais, e assim por diante. Nestes casos, a revolução russa deixou inúmeros ensinamentos vitais para podermos acertar, como saber, por exemplo, de que modo devemos organizar um partido de fato comunista; este conhecimento permaneceria até hoje marginal não fosse a ousadia de Lenin e Trotsky. *** O grande significado histórico é que o capitalismo foi restaurado pelas castas burocráticas quando o desenvolvimento das forças produtivas estava tornando-se enfim maduro para o socialismo. Sendo mais preciso, e aqui entra a ironia da história, a restauração do capitalismo ocorreu porque as forças produtivas estavam tornando-se maduras para a via socialista. ―Se todas as condições de uma Coisa estão presentes, então ela entra na existência.‖ (Hegel, 2017, p. 130.) Demonstramos que faltava fundamento histórico para o socialismo, ou seja, faltava

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o indispensável desenvolvimento alto das forças produtivas mundiais e nacionais; por isso foi fácil a restauração completa do capitalismo, por isso a burocracia na China viu uma oportunidade de ouro retornar completamente ao capital, por isso houve ditaduras em todos os Estados de transição com duplo caráter. Mas, por outro lado e oposto, porque as condições tornavam, cada vez mais, possível e necessário a sociedade socialista, encerrando o império dos privilégios despóticos crescentes, houve a assim chamada restauração. A China, por exemplo, apenas poderia manter o caminho ao socialismo por saltos econômicos rumo à automação com informática e por revolução política que implementasse a democracia do socialismo – o que daria grande impulso à revolução mundial.

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CHINA: IMPERIALISMO SUI GENERIS ―Perseguir o protecionismo é como trancar a si mesmo em um quarto escuro. Embora o vento e a chuva sejam mantidos lá fora, também o serão a luz e o ar.‖ Xi Junping, presidente da China, em defesa do livre mercado.

O deslocamento da China no cenário mundial tem despertado interesses e produzido polêmicas. A questão permanece quase enigmática quando observamos os fatos sem seus fundamentos. Neste capítulo, portanto, começaremos com conclusões teóricas gerais para oferecer uma resposta que se pretende definitiva sobre o caráter geral do desenvolvimento chinês. Como o título deste capítulo antecipa, a oposição teórica sobre se a China é semicolônia privilegiada ou imperialismo (típico) solucionamos com a resposta de que é um caso Sui Generis de nação imperialista. OS DESLOCAMENNTOS DA PRODUÇÃO E O CAPITAL INTERNACIONAL As nações ricas passam por processo de desindustrialização. A produção desloca-se, em parte, para países atrasados, em especial a China, porque os custos de produção neles são menores – menos direitos trabalhistas, menor tradição de luta dos sindicatos, reduzida exigência de proteção ambiental, etc. – e há grande mercado real ou latente. Por razões semelhantes – menor custo com a terra, menor custo de deslocamentos, menor tradição de luta de classes urbana, menos necessidades pressionando salários, etc. –, tal deslocamento também ocorre das grandes cidades para as pequenas e para o interior Exemplo brasileiro: as cidades do interior de São Paulo, Minas Gerais, Ceará e Bahia são onde está grande parte da produção de metalurgia, roupas, alimentos etc. Por evidente, a construção civil tem vida nas capitais e maiores centros urbanos, mas em todos os Estados da federação ver-se a interiorização do setor produtivo. A exceção até o momento parece ser a China, permitindo controle centralizado e ditatorial de sua classe operária, o que se configura como vantagem e estimula a adoção de regimes autoritários em outros países; mas mesmo aí as chamadas TVE‘s, a produção em vilas e no campo, conheceram algum importante auge por alguns anos. A localização espacial da produção tem a ver com a luta de classes, é um resultado de tal luta. Surgem, então, países e grandes cidades consumidores, permitidos pelo avanço dos transportes e das comunicações. Tal realidade afirma-se como tendência.

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O deslocamento de empresas, principalmente as baseadas no trabalho manual, para países em ―desenvolvimento‖ é uma das expressões da contradição entre a necessidade nova de desenvolvimento das forças produtivas e as relações sociais e jurídicas da atual sociedade, que devem ser superadas, isto é, na medida em que tal direito de propriedade permite deslocamentos territoriais e posterior recebimento dos lucros à revelia dos territórios. O desenvolvimento geral, internacional, das forças de produção é, assim, atrasado, contratendenciado dentro de si, evitando a substituição de trabalhadores por máquinas, enquanto o capital mina os conceitos de nação e fronteira. Precisamos extrair uma primeira conclusão geral do deslocamento do capital; destas observações, descobrimos que o capital cada vez menos tem pátria. Tal conclusão, que poderia ser relativizada em outras épocas, revelou-se plena com o presidente norte-americano Trump, pois este – representando a ala menos internacionalizada da burguesia daquele país – produziu medidas de Estado para atrair o capital produtivo ao território estadunidense. A partir do balanço sobre o papel da China no processo de desindustrialização nos EUA e no mundo, como no Brasil, inicia uma guerra entre estados nacionais. A burguesia sabe que qualquer um dos regimes e governos lhe serve e cada vez menos tem fidelidades nacionais, seguindo a tendência de seu próprio capital; vive na ―América‖, em Dubai ou é ―cidadão do mundo‖, mas sua pátria real é o dinheiro. Vejamos uma expressão disso em artigo sobre a restauração do capitalismo na Coreia do Norte: (…) existe uma ferrenha disputa em curso pelo domínio de seu mercado entre as burguesias da China e da Coreia do Sul. Como em ambos os países as empresas norteamericanas têm papel destacado, esta disputa está sendo aproveitada por elas, apesar do embargo norte-americano após 2006. A China não participa do embargo e as duas Coreias são consideradas, do ponto de vista comercial, um único país. (redação, 2017)

Desfiando a citação: 1) o Estado norte-americano aprova embargos contra a Coreia do Norte; 2) as empresas dos EUA estão instaladas na China e Coreia do Sul; 3) estas empresas operam, em nome da lei do lucro, por fora das medidas do Estado de onde se originaram. Este é um exemplo do processo de desnacionalização do capital. A base desta despatrialização tem relação direta com o altíssimo desenvolvimento dos transportes e das comunicações, a produção em um determinado país ser exportada para as demais nações sem perder competitividade.

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OS CENTROS DE GRAVIDADE NAS ERAS DO CAPITAL A China deseja ser a fábrica do mundo e começa a entrar em conflito com os EUA, que ainda dominam. Dito isso, se está correta nossa afirmação de que entramos na era da revolução social desde a década de 1970, que abre o período de decadência da fase imperialista, concluímos que chegamos ao fim da época ―país de domínio relativamente estável‖, como foi a Holanda na era do capital mercantil, a Inglaterra na era do capital industrial e o EUA na era do capital financeiro. Embora faltasse teorizar, Marx percebeu o movimento de substituição de centro de gravidade em cada era do capital: A Holanda, primeiro país a desenvolver plenamente o sistema colonial, encontrava-se já em 1648 no ápice de sua grandeza comercial. Encontrava-se ―de posse quase exclusiva do comércio com as Índias Orientais e do tráfico entre o sudoeste e o nordeste europeu. Sua pesca, frotas e manufaturas sobrepujavam as de qualquer outro país. Os capitais da República eram talvez mais consideráveis que os de todo o resto da Europa somados‖. Com as dívidas públicas surgiu um sistema internacional de crédito, que frequentemente encobria uma das fontes da acumulação primitiva neste ou naquele povo. Desse modo, as perversidades do sistema veneziano de rapina constituíam um desses fundamentos ocultos da riqueza de capitais da Holanda, à qual a decadente Veneza emprestou grandes somas em dinheiro. O mesmo se deu entre a Holanda e a Inglaterra. Já no começo do século XVIII, as manufaturas holandesas estavam amplamente ultrapassadas, e o país deixara de ser a nação comercial e industrial dominante. Um de seus negócios principais, entre 1701 e 1776, foi o empréstimo de enormes somas de capital, especialmente à sua poderosa concorrente, a Inglaterra. Algo semelhante ocorre hoje entre Inglaterra e Estados Unidos. Uma grande parte dos capitais que atualmente ingressam nos Estados Unidos, sem certidão de nascimento, é sangue de crianças que acabou de ser capitalizado na Inglaterra. (Marx, O capital I, 2013, p. 1001, versão digital)

A mudança de países centrais – Holanda, Inglaterra e EUA – se dá pelas características particulares e históricas do país mais o impulso de seu atraso relativo, a contradição como motor. Caso dos EUA: a dificuldade de obter mão de obra barata, dada a quantidade de terras disponíveis para o cultivo, forçou a burguesia estadunidense a investir em capital fixo, maquinário, rumo à segunda revolução industrial. A Inglaterra supera a potência comercial holandesa por sua produção, por tomar as terras comunais dos camponeses, que não eram a avançada e decadente propriedade feudal, de modo a gerar propriedade privada do solo para fins de lucro e uma massa enorme de desempregados prontos para o trabalho em troca de um salário

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baixo. O atraso relativo da China cumpre papel semelhante na crise sistêmica. O mais provável é que os próximos Estados Operários reproduzam tal movimento. Se um país das proporções do Brasil – que não é como as avançadas nações imperialistas, tem grau relativo de atraso – inicia a transição ao socialismo, tornando-se gatilho da revolução mundial, teremos efeito análogo e de curta duração histórica já que o novo sistema geral dissolve tais desigualdades, respeitando as características e potencialidades de cada região. O atraso relativo gera a necessidade de avanço por saltos, como demonstra a lei dialética do desenvolvimento desigual e combinado descoberta por Trotsky. O processo de financeirização das economias decadentes, demonstrado por Marx no último parágrafo da citação anterior, também se generaliza na medida em que a economia global entra em decadência (ocorre também no Brasil). Naquelas nações que passavam o bastião, o rendimento deixava de compensar, direcionando a riqueza móvel, o dinheiro, às atividades de maior retorno, financeiras e de apoio aos investimentos noutros países. O investimento americano e de outros países desloca recursos, desta vez, para a China. ALGUMAS OBSERVAÇÕES Observemos que há um caminho inverso entre o PIB dos EUA e o Chinês em relação ao mundo:

GRÁFICO 14

Fonte: ( Quandl, 2016)

Observemos a quantidade de empresas entre as 500 maiores do mundo desde a relação entre China e EUA:

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GRÁFICO 15

Fonte: (History of the Global 500, 2020) Em seguida, destaquemos dois grandes projetos chineses para a circulação de mercadorias, para a rotação do capital – o que induz a certo perfil de divisão internacional do trabalho:

FIGURA 1

Fonte: (Folha de S. Paulo apud Lissardy, 2015)

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FIGURA 2

FONTE: (Ninio, 2015) Em complemento, os países dominantes no sistema internacional de Estados são aqueles destacados em pesquisa e inovação. É o caso chinês: GRÁFICO 16

FONTE: (McCarthy, 2020)

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Elias Jabbour observa que ―A China já é o segundo maior país em número de patentes registradas – atrás apenas dos EUA. (…) o registro de patentes no mundo cresceu 4,5% entre 2013 e 2014. No mesmo período, o crescimento chinês foi de 12,5%‖ (Jabbour, 2020, p. 191). Lembramos o fato de que o Estado alemão proibiu novas compras de empresas nacionais pelo capital chinês, pois isso significaria entregar conteúdo tecnológico de ponta. O investimento científico uma vez aplicado à técnica permitirá ao governo chinês manter o país na posição de destaque apesar da pressão da luta de classes por melhores salários e mais direitos. Por outro lado, tende a baixar a taxa de lucro. A taxa de lucratividade é a melhor forma de termos as tendências daquela sociedade. GRÁFICO 17

FONTE: (Roberts M. , A China na década de 2020 - Após a pandemia, 2020) Percebemos que o limite sistêmico aproxima-se na China, apesar das contratendências, mas é importante também explicar a base de seu sucesso ou, dito de outra maneira, como usa – e esgota – suas possibilidades. A contradição entre economia planejada e burocracia, a necessidade de solucionar o duplo caráter da revolução e daquele país, como debatemos no capítulo anterior, fez o governo restaurar plenamente o capitalismo, resolvendo negativamente o problema histórico, o que levou ao desenvolvimento tanto quanto possível das forças produtivas, ou seja, a base para nova revolução socialista.

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Por outro lado, a revolução chinesa adiou, ao afastar as empresas imperialista, para a partir de fins de 1978 aquilo que poderia acontecer bem antes, como no Brasil, altas taxas de crescimento com o investimento estrangeiro. Diferente do que foi a formação atrasada, pelo atraso da unificação nacional, do imperialismo na Alemanha, que tentou a via militar para ter acesso aos recursos naturais de outros países, possíveis colônias alemãs; a China é a maior produtora de parte significativa dos elementos da tabela periódica: FIGURA 3

Fonte: (Países com as maiores reservas minerais (e os maiores produtores))

Tal vantagem foi a razão de desvantagens, de subordinação imperial, de desgraça, em inúmero países, limitados à produção de matéria-prima, à submissão no mercado mundial, à sanha militarista de outras nações. O império chinês, diante da geopolítica mundial, é incapaz de uma dominação direta sobre outros povos para obter, por exemplo, matéria-prima ou mercados, podendo gerar, em nossa época, mecanismos para crescer sua influência política e econômica de maneira mais mediada, pois lhe faltam força e conjuntura para algo ainda mais ousado. Ademais, a China tem menos pressão interna para dominar diretamente outros países, pois que ela mesma é produtora rica, além de outras matérias-primas, daquelas chamadas terras-raras:

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FIGURA 4

Fonte: idem. O caso da China demonstra a tendência relativa em nossa época de a indústria, a produção dos meios de consumo em destaque, aproximar-se, como processo de integração das coisas, da produção de matéria-prima. Neste sentido, o alto desenvolvimento dos transportes e comunicações, em especial, produz tanto tendência como contratendência, enquanto causa com efeitos opostos simultâneos, ao, por um lado, facilitar a implementação de empresas em outros países com exportação de mercadorias às nações consumidoras, e, por outro, oferecer maior facilidade de obter insumos de modo rápido, barato e em grande quantidade. Enfim, o governo chinês força a marcha de crescimento do PIB acima de 6%, contra os sinais de limite, com um processo estrutural de endividamento, em relação ao PIB, do Estado: GRÁFICO 18

Fonte: (DÍVIDA PÚBLICA % PIB - LISTA DE PAÍSES)

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O imperialismo chinês, por seu caráter sui generis, aterroriza os teóricos da esquerda. Tenta-se caracterizar aquele país por meio do método dedutivo, ou seja, se cabe ou não numa lista prévia e fixa de critérios do que seria um imperialismo. Esse não é o método marxista. Primeiro, devemos analisar o objeto de estudo em si para, só aí, explicá-lo; isso pode exigir atualizações categoriais no lugar de encaixes prévios neste ou naquele conceito. UMA VISÃO HISTÓRICA A história deve ser avaliada em seus traços específicos, como afirma Trotsky. Façamos comparações, semelhanças e diferenças, entre histórias nacionais e países para tornar visualizável e distante de mistificações, ainda que impressionante, o destino da China. Constitui-se uma lei da fase imperialista do capitalismo o fato de que países atrasados, e até mesmo muitos avançados, com bases materiais para desenvolvimento capitalista tenham de usar o Estado enquanto mediador necessário5859. O caso chinês deveria ser considerado familiar aos estudiosos da história brasileira. A partir da ditadura semifascista de Vargas, o Estado brasileiro reduziu e substituiu importações por exportações ao construir um poderoso parque industrial fundamentado na propriedade do Estado, além do sistema bancário estatal (bancos nacionais e regionais), e desenvolveu política econômica de prioridade à produção nacional; planos nacionais de desenvolvimento foram postos em prática; o crescimento médio anual permaneceu alto por décadas; os regimes de Estado fechados, adotando o semifascismo, caso da ditadura Vargas e do governo militar a partir de 1968, permitiram maior autonomia relativa do aparato governamental relativo às classes sociais, incluso àquela ao qual representa, a burguesia – o que também impulsionou os direitos trabalhistas e a legalização dos sindicatos como resposta às lutas dos

58 O baixo desenvolvimento do capitalismo com sua burguesia limitada, ou seja, limitada financeiramente, faz do Estado o grande burguês, o grande patrão, nas nações com este perfil. Porque arrecada para si recursos via impostos e outros meios e pela facilidade de endividamento em grande escala, a superestrutura governamental pode dar os passos fundamentais para o salto por sobre o nível de atraso. A acumulação do capital, do inicial ou primitivo à moderna configuração das forças de produção, só pode ocorrer por saltos, não gradual, dado o fato de que o capitalismo mundial, na fase imperialista, está muito à frente e exerce domínio; a produtividade interna, por exemplo, deve compensar as tarifas proteciononistas e a relação de preços internacionais e deve oferecer recursos em quantidade necessária para o conjunto da cadeia produtiva. A vantagem relativa do atraso, lei do desenvolvimento desigual, está em poder modernizar-se de modo acelerado, tornar desnecessário um desenvolver evolutivo, camada por camada, etapa por etapa. 59 Desde a origem do atual sistema o Estado foi ferramenta importante: tarifas alfandegárias, endividamento estatal, guerras por mercados, acelerar a acumulação no campo, garantia de monopólios, investimento de comércio e transporte marítimos, etc. O peso qualitativo do investimento econômico mais direto, no entanto, avançou com o avanço-decadência do modo de produção e do atraso de nações com altos potenciais latentes.

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trabalhadores; entre os países mais populosos do mundo, uma aceleradíssima urbanização proveu a sociedade com ampla mão de obra e inédito mercado consumidor. Assim o país pôde alcançar um grau intermediário entre o atraso e o avanço. O desenvolvimento dessa base econômica permitiu, logo em seguida e durante tal processo, a entrada do capital internacional; o Brasil tornou-se, assim, o principal destino dos capitais internacionais, com crescimento anual do PIB a taxas chinesas até a década de 198060, tendo atingido o pico de 13,9%. em 1973 (média anual de 7,4% entre 1947 e 1980). Ao mesmo tempo, o capitalismo em geral depende mais do Estado para alguns investimentos; hidrelétricas, por exemplo, exigem enorme capital adiantado e lucro satisfatório apenas após algumas décadas. No caso da China, as circunstâncias históricas deram a forma particular; o passado deste e as condições em que opera diferenciam-se dos daquele, permitindo uma forma nova de imperialismo. A grande nação latino-americana deu, durante a década de 1980, seu espaço histórico à gigante asiática de modo que a desindustrialização de um é a industrialização do outro61. Nos dois casos, o aparelho estatal pôde fazer grandes ações quando o atraso relativo o permitiu, a saber, quando havia capitalismo a amadurecer em seu território. O exemplo brasileiro, desconhecido dentro do próprio país, algo que desmistifica por semelhança boa parte do caso chinês, mas ainda não o explica em totalidade. O argumento posto aqui é que as condições materiais deram a possibilidade de ―genialidade‖ da burocracia burguesa na China. O keynesianismo é feito para aquelas nações que possuem capitalismo a desenvolver, a exemplo da urbanização62. Das particularidades chinesas, são: abundantes população, matéria-prima, território, indústria de base formada antes da restauração do capitalismo, regime semifascista, não-ameaça imediata nas fronteiras, relações trabalhistas análogos ao do século XIX – que deprimem o salário mundial – e a tradicional cultura de obediência63; podemos incluir fatores como a alimentação ampla, pouco rigorosa, dos proletários 60 A ideia do Brasil como “país do futuro” apoiava-se em fatos incríveis. Dos “50 anos em 5” ao “milagre econômico” até projetos faraônicos de nova capital federal surgida do nada, gigantescas hidrelétricas, megaempresas do Estado, urbanização explosiva, vanguardas artísticas, etc. 61 Em outro capítulo, debatemos os fatores internos do limite brasileiro – consolidar fatores como industrialização, urbanização, grande propriedade rural moderna, etc. –, que também é limitado ou impulsionado por fatores externos, como o aparecimento de outro país com muitas melhores condições de extração de mais-valor. 62 Quando o keynesianismo cumpre todas as tarefas auxiliares, a busca de novos rendimentos ou enfrentar a queda da taxa de lucro encontra limites; então a política de Estado muda, gira-se para o neoliberalismo, para a privatização de estatais, redução dos serviços públicos, etc. Ambos são táticas para dinheiro em busca de mais dinheiro, um dá as condições para o surgir, em um segundo momento, do outro. Daí que países menos “capitalizados” são keynesianos enquanto são neoliberais países onde o capital já cumpriu de modo claro suas tarefas. 63 Parece contraditório que um povo que fez tantas revoluções seja obediente, conservador. Porém: a contradição é real, não das palavras. O povo francês é menos revolucionário potencialmente que o chinês exatamente por ser mais ousado, por fazer protestos por qualquer mínima ameaça de perder

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daquele país, o que tende a reduzir os custos com o capital variável64. As dimensões colossais da China fazem parte da base dos seus avanços também colossais. O gigantesco mercado consumidor real e potencial, uma de características singulares da China, mesmo em relação a países como o Brasil, permite exigir que as multinacionais transfiram tecnologia para a nação e aceitem que parte das ações da empresa sejam estatais se querem instalar-se naquele país, se querem vencer a concorrência. Eis, a olhos vistos, um imperialismo em formação: ao atrair capital internacional, surge as condições para fomentar o capital nacional dentro e fora de suas fronteiras, isto é, exporta capital, além de mercadorias, como para a África, e compra grandes empresas, a exemplo de hidrelétricas brasileiras, o que também lhe dá domínio a tecnologias oriundas de outros países. A China ―tornando-se – também – grande exportador de capitais como IED‘s, passando US$ 0,8 bilhão em 1990 para US$ 140 bilhões em 2014. Como receptor, os IED‘s saíram de US$ 1,4 bilhão em 1984 para US$ 11,6 bilhões em 2014.‖ (Jabbour, 2020, p. 107) Pode-se argumentar que o planejamento é destacado na realidade chinesa. Mas de modo algum novo sob o capital. Se empresas estatais e órgãos públicos unem-se para fazer a lógica capitalista melhor desenvolver-se, o ciclo da fórmula D-M-D‘, dinheiro em busca de mais dinheiro, se é voltado ao mercado, então o planejamento é capitalista, além de parcial. Exemplo: hidrelétricas podem vender seu produto a quase o preço de custo (ou com prejuízo em determinadas situações) para as demais empresas e assim diminuir os custos de produção destas com matéria-prima; empresas estatais podem agir com taxa de lucro quase nula, já que o Estado é o burguês oficial, para quebrar a concorrência e dominar aquele mercado. Quando Keynes propôs socializar parcialmente o investimento, estava expressando um fato histórico que o Marxismo tinha explicado muito antes dele: desenvolvimento capitalista significa uma crescente socialização das forças produtivas. Contudo, embora necessário, o envolvimento direto do Estado na produção cria um problema para o capitalismo. Seja porque administre empresas fortes, subtraindo lucros dos capitalistas privados, seja porque administre empresas em quebra, mediante impostos para mantêlas em funcionamento. Em ambos os casos, os capitalistas não estão felizes. Esta é a contradição básica do Keynesianismo enquanto política industrial. Na época dourada do pós-guerra, isto não era muito importante por diversas razões. Os lucros eram bons

direitos. Propriamente por ser conservador, por respeitar os “mandatos do céu” estatais, etc. o povo chinês acumula tensões até… explodir. Eis a dialética em que algo produz seu inverso. 64 Vale notar que boa parte da população chinesa tem certa mutação genética que faz com que, diferente de nós, eles não liberem maus odores por meio da pele; por isso, para eles, nenhum sentido faz comprar substâncias químicas para jorrá-los sobre seus corpos – o que reduz o custo com capital variável, com salários.

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e os capitalistas necessitavam do estado para reconstruir suas indústrias. Em terceiro lugar, o estado foi usado para administrar setores que não eram rentáveis em si mas que rendiam lucros para outros. Nesse momento, a burguesia podia aceitar o óbvio argumento teórico de que as indústrias que são monopólios naturais devem ser de propriedade estatal, uma vez que a concorrência não é possível em tais casos. Esta intervenção direta de longo prazo por parte do estado criou uma espécie de planificação capitalista com agências estatais, planos multianuais e assim por diante. Esta foi a era da ―planificação indicativa‖, como a chamavam os franceses. Nos países desenvolvidos 65, a planificação foi até mais importante, uma vez que tiveram de construir a indústria a partir do zero. (Lombardi, 2014)

Veja-se que a Coreia do Sul, por exemplo, país indubitavelmente capitalista, há décadas pratica planos quinquenais. Ademais, ―Interessante destacar que o setor público na China detinha o controle de 77% das forças produtivas no país em 1978 e hoje diminuiu para 30%‖ (Jabbour, 2020, p. 31). Tal tendência ao incremento da grande propriedade privada – além de estatais voltadas à lógica do lucro – é dos maiores motivos da restauração do capitalismo naquele país66. Comparemos com outro país de fatores históricos e estruturais semelhantes. Por que a Rússia, que também passou pela restauração do capitalismo, além de ter várias semelhanças (grandes populações e territórios, matéria-prima abundante, etc.), não vive o mesmo boom chinês? No caso russo, foram consolidadas todas as condições para uma transição ao socialismo – industrialização, urbanização e grande propriedade rural. Na China foi diferente, pois o retorno ao capitalismo aí encontrou uma nação com grandes possibilidades ainda latentes. Por isso, um caiu no neoliberalismo – forma de aumentar o lucro privado diante dos limites históricos do capital – e o outro, no keynesianismo. O Estado russo atua para transformar sua influência geopolítica em poderio econômico, mas é ainda um projeto67 enquanto o Estado chinês avança a passos largos.

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O autor certamente quis dizer “países subdesenvolvidos”. “Entre 1998 e 2007, o total de empresas estatais na China caiu de 39,2% do total de empresas para 6,1%; enquanto o setor privado aumentou, no mesmo período, de 6,5% do total para 52,6%.” (Jabbour, 2020, p. 190) 67 “O vice-ministro da Energia russo, Iúri Sentiúrin, disse durante negociações em La Paz que a Rússia poderá compartilhar tecnologias para extração e utilização de lítio com os bolivianos.” “’As empresas russas estão prontas a investir centenas de milhões de dólares em projetos de lítio e gás, assim como em programas de cooperação bilateral com a Bolívia’, declarou Sentiúrin” “’A demanda por matérias-primas está crescendo em todo o mundo. Vários países, entre eles a Bolívia, podem se tornar novos fornecedores’, explica o especialista da consultoria financeira Finam Management, Dmítri Baranov.” (Lossan, 2016) 66

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Resta ainda comparação evidente com a Índia. Este país também conhece crescimento acima de 6% do PIB por décadas, tem sido destino duradouro do capital internacionalizado, aproveita as circunstâncias para gerar grandes empresas próprias, estimula o desenvolvimento científico nacional. O que há em comum são as proporções das duas nações, suas localizações geográficas e o atraso relativo; o que há de diferente é o fato de a China – que tem assumido muito mais protagonismo – ter passado por uma dupla revolução, socialista e capitalista, parcial, o que deixou de herança um regime estatal muito centralizado, herdando certo grau de planificação e grande propriedade estatal. Em última instância, os limites do capitalismo na China são os limites gerais do capital. Se o mundo passar por quebras porque o capitalismo cumpriu todas as suas tarefas históricas, o milagre chinês terá seu fim acelerado, já que dependem tanto de fatores em si nacionais – veja-se que já passa dos 60% o nível de urbanização daquele país – quanto internacionais. O proletariado chinês, um dos mais poderosos do mundo, terá por missão, com certa ironia histórica, derrotar o partido comunista para impor de vez a transição ao socialismo. A GUERRA MUNDIAL E OS COMUNISTAS A possibilidade de uma guerra mundial ou o caráter imperialista da China era difícil de observar de imediato. Mas o governo Trump deixou tudo muito mais claro. Há disputa entre Estados quanto qual país será destino do capital internacionalizado. A negação absoluta dos problemas ambientais, por exemplo, por parte do governo reacionário norte-americano demonstrou a luta por reduzir os custos de produção no centro do mundo tal qual fazem os chineses. O aparelho estatal, a burguesia nacional (construção civil, etc.) e parte da burocracia burguesa fortalecem-se ou definham a depender do destino dos investimentos. A existência das bombas atômica e de hidrogênio parece proibir guerras militares diretas entre as potências centrais, arrastando a decadência. Mas apenas atrasa e medeia o conflito, pois deve ser considerada a irracionalidade do sistema em seu ocaso. Política é economia concentrada – a guerra é a continuação da política por outros meios. Para os comunistas a questão se apresenta assim: dadas as diferenças teórico-programáticas impedindo uma organização internacional unificada, surgirá uma frente única revolucionária mundial contra a crise e a guerra? Se a decomposição do capital não desemborcar em socialismo, surgirá a última transição histórica para a barbárie ou nossa extinção.

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O FIM LATENTE DAS FRONTEIRAS NACIONAIS

A formação dos Estados nacionais, da unificação territorial, é uma tarefa em si burguesa; o poder absolutista feudal, ao concentrar forças na figura do rei, operava de modo ―déspota esclarecido‖ ao tomar medidas positivas ao desenvolvimento do capital no seio de sua sociedade: a unificação monetária, impostos nacionais, unidade nacional, etc. Preparava-se, assim, o terreno para o domínio do capitalismo e a supressão do feudalismo. Em nossa época, o capital precisa corroer os limites das fronteiras nacionais, prover maior unidade internacional, preparando os caminhos para o internacionalismo socialista. Vejamos o caso mais avançado, a União Europeia. A histórica disputa entre França e Alemanha pela região mineradora de Alsácia-Lorena, localizada na área fronteiriça, fez com que Engels descobrisse, ao fazer balanço da guerra franco-prussiana, o amadurecer de uma grande guerra. A região disputada garantiria meios de produção e maior autonomia para a economia nacional. No entanto, a II Guerra elevou os EUA ao estatuto de grande poder, impedindo qualquer possibilidade de disputa ao cargo de potência dominante. Com sua derrota, a Alemanha perdeu a possibilidade de resolver a contradição a seu favor. Os conflitos internacionais foram resolvidos de outro modo quando ambas as nações, francesa e alemã, tornaram-se incapazes de impor seus projetos. Quem hegemonizaria a Europa para conquistar o mundo deixava de ser uma questão posta. Logo, um acordo de livre comércio a partir da área sob disputa seria desejável e viável. A união avançou em vários aspectos até a formação da moeda unificada, o Euro, e há novos projetos apresentados como o exército europeu. É dispendioso focar em todos os tratados. O que nos cabe aqui é destacar o alto grau de integração dentro dos limites e possibilidades capitalistas, além de afirmar o máximo avanço dos transportes e comunicações. Veja-se que na atualidade empresas sentem-se à vontade de mudar o país onde produzirá já que em outra nação pode explorar mais a força de trabalho e tem condições de exportar em larga escala e em curta duração. A necessidade de dar ao capital e à forma mercadoria um meio ambiente onde possa fluir com maior facilidade possível, para enfrentar as crises de superprodução e suas possibilidades, para lidar com a alta produtividade, é o principal motor dos acordos. O capital produz um duplo movimento: positivo, na medida em que prepara o terreno para a unidade global, e negativo, na medida em que o faz em nome de mais lucro – nega o futuro socialista e, ao mesmo tempo, encaminha suas bases e condições. Trotsky descobriu que uma das contradições da fase imperialista é o fato de as forças produtivas

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não caberem nos limites nacionais. Essa contradição, irresolvida, é encaminhada dentro das possibilidades de avanço no capitalismo. Os acordos desde o fim da II guerra, que desemborcaram na UE e no Euro, salvaram o capitalismo alemão, onde tal contradição era mais intensa, permitindo o fluxo das mercadorias. Outra expressão disso em destaque é o dólar alçado a substituto do ouro no comércio mundial. Há várias expressões deformadas, invertidas e mediadas da integração latente. Apenas na história contemporânea, porque de fato encurtamos as distâncias, foi possível a formação e consolidação relativa dos mais variados organismos internacionais, a maioria subordinada ao imperialismo; isso expressa a necessidade de ligações internacionais e a impossibilidade de consegui-las de maneira plena sob o capital. A Organização mundial de Saúde, por exemplo, surge da necessidade de vigiar os riscos de pandemias por causa da intensa inter-relação dos países. Outras demonstrações são a unidade cultural enorme alcançado pelo mundo (o que tem seu lado negativo evidente como com o imperialismo cultural), a comunicação mundial instantânea e a informação global acessada pelos trabalhadores (ainda que seja por meio do jornalismo burguês). Por instabilidades e desenvolvimentos atrasados, formado por colônias e semicolônias, a integração econômica e social da América Latina 68 e da África poderá alcançar os graus da União Europeia, ou mais avançado, apenas por meio da integração socialista, da transição ao socialismo. Parecem forçados ao salto. Antes, em algum nível de circulação sob base capitalista, podem antecipar alguns aspectos da integração produtiva e social. Sob o capitalismo, os acordos e uniões são instáveis, possuem limites e subordinam algumas nações a outras. Um superimperialismo com governo mundial também se demonstrou hipótese equivocada, mas a consolidação de organismos internacionais na história recente, subordinados aos Estados dominantes, já aparece como sintoma e latência da futura unidade real e internacionalista do mundo. É no socialismo onde uma articulação internacional e mundial poderá surgir de modo pleno e fraterno. Sobre a integração mundial, leiamos o que dizem Marx e Engels:

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Os EUA tentaram avançar com a Alca, mas o projeto foi derrotado pela luta anti-imperialista na América Latina. Isso deu alguma vantagem histórica à UE (França e Alemanha) e manteve o investimento estrangeiro na China a todo vapor.

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Essa ―alienação‖ [Entfremdung] para usarmos um termo compreensível aos filósofos, só pode ser superada, evidentemente, sob dois pressupostos práticos. Para que ela se torne um poder ―insuportável‖, quer dizer, um poder contra o qual se faz uma revolução, é preciso que ela tenha produzido a massa da humanidade como absolutamente ―sem propriedade‖ e, ao mesmo tempo, em contradição com um mundo de riqueza e de cultura existente, condições que pressupõem um grande aumento da força produtiva, um alto grau de seu desenvolvimento – e, por outro lado, esse desenvolvimento das forças produtivas (no qual já está contida, ao mesmo tempo, a existência empírica humana, dada não no plano local, mas no plano históricomundial) é um pressuposto prático, absolutamente necessário, pois sem ele apenas se generaliza a escassez e, portanto, com a carestia, as lutas pelos gêneros necessários recomeçariam e toda a velha imundice acabaria por se restabelecer; além disso, apenas com esse desenvolvimento universal das forças produtivas é posto um intercâmbio universal dos homens e, com isso, é produzido simultaneamente em todos os povos o fenômeno da massa ―sem propriedade‖ (concorrência universal), tornando cada um deles dependente das revoluções do outro; e, finalmente, indivíduos empiricamente universais, histórico-mundiais, são postos no lugar dos indivíduos locais. Sem isso, 1) o comunismo poderia existir apenas como fenômeno local; 2) as próprias forças do intercâmbio não teriam podido se desenvolver como forças universais e, portanto, como forças insuportáveis; elas teriam permanecido como ―circunstâncias‖ domésticosupersticiosas; e 3) toda ampliação do intercâmbio superaria o comunismo local. O comunismo, empiricamente, é apenas possível como ação ―repentina‖ e simultânea dos povos dominantes, o que pressupõe o desenvolvimento universal da força produtiva e o intercâmbio mundial associado a esse desenvolvimento. (Marx & Engels, A ideologia alemã, 2007, pp. 38, 39)

A integração mundial certamente atingiu um grau elevadíssimo, muito acima da esperada pelos pais do socialismo científico. O alto grau de interdependência dos países leva a que os destinos de uns afete os caminhos dos demais, dito de outro modo, é mais fácil prover o caráter planetário da revolução social. A base prática do internacionalismo proletário, negação e superação do passado nacionalista, está dada dentro dos limites do capital. Assemelha-se isso, se cabe aqui alguma comparação, com o poder romano sobre larguíssimo território, sobre outros povos, antes eles mesmos dominantes, como anúncio, no mundo antigo, da crise geral – não mais local – do escravismo. A espécie humana é a única que tende a unificar-se como gênero globalmente, uma tendência própria do ser social, que está intimamente ligada a outras duas, o aumento da

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produtividade do trabalho (veja-se, mais uma vez, que tal aumento exige corroer os limites da nação) e o afastamento das barreiras naturais (Lukács, 2018).69

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Isso significa, por causa dos três fatores, que a história humana é teleológica, tem uma finalidade, qual seja, a entrada na verdadeira história humana, depois da pré-história na qual ainda nos encontramos. Tal afirmação contraria parte dos lukacsianos, porém derivada de sua própria elaboração comum; são as tendências imanentes do ser social. Em outra nota de rodapé, também debateremos a situação teleológica inconsciente até aqui, que avança como se pelas costas dos homens, e não determinista (assim como um homem pode falhar na tentativa fazer um machado antes planejado atentamente, a humanidade pode falhar em seu destino, pode ser extinta ou quase extinta com o fim da civilização.) No ser biológico, Kant afirmou que impera um “propósito sem propósito”, além de, segundo ele, inexistir aí leis ou teorizações como na física; Hegel segue, ao seu modo, o mesmo caminho. Porém Darwin os refutou com toda sua maestria. Ao debater A Origem das Espécies, Engels afirma a Marx, por meio de uma carta, que tal grande obra da biologia havia enterrado as concepções teleológicas sobre a vida. Já na obra Ontologia do ser social, Lukács observa que a modalidade do ser biológico tem a tendência de afastar-se das barreiras ambientais, especialmente as do inorgânico; o desenvolvimento do Ser que se reproduz é tornar-se cada vez mais capaz de lidar com o externo, com o exterior, com cada vez mais habilidade de apreender os dados do real e modificá-lo; visto de modo amplo, isso alcança uma etapa onde aparece o cérebro, logo surge a macrotendência de cérebros cada vez mais capazes e cada vez maiores relativo ao tamanho de seus corpos. Em resumo: o ser biológico realiza tendencialmente sua teleologia por meio de outro ser, o social, ou seja, ocorre uma transcendência. O ser humano é a realização – em boa parte, por sua constituição física, pelas mãos, pelo polegar opositor, etc. – de uma tendência da vida desde quando esta surgiu. O ser biológico tem uma finalidade; resta saber, então, se o ser inorgânico também a tem – seria ir-se de si a si próprio por meio e através de seu autodesenvolvimento? Lançamos aqui a hipótese em forma de pergunta para abrir o debate e contar com o avanço posterior da ciência e da filosofia. Ao tema, fica evidenciado isto: entre os fatores comuns nas três modalidades do Ser, destacamos que todos eles, não apenas o ser vivo, são energia em busca de mais energia (para tornar mais clara a afirmação: 1) o ser social: o homem apropria-se da energia humana no trabalho, aperfeiçoa a agricultura e busca mais e melhores fontes de energia em seu desenvolvimento – como a máquina a vapor, a eletricidade de hidrelétricas, a fissão nuclear, a fusão nuclear, o hélio 3 da Lua, etc.; 2) o ser inorgânico: a energia-massa curva o tecido espaço-tempo atraindo, produzindo gravidade). Há ainda outra questão sobre teleologia na história humana: as etapas de evolução do modo de produção – visto em geral: primitivismo, escravismo, feudalismo, capitalismo, socialismo – são necessárias ou o histórico poderia ser completamente outro? Basta ver, de começo, que é impossível saltar do primitivismo ao socialismo com robótica sem transição. A questão resolve-se ao observarmos que a terra é desigual, nunca uniforme, tem diferentes fertilidades, características e climas, o que leva, aqui, a desenvolver o escravismo e, ali, a prosperar o modo de produção asiático. Suponhamos, apenas para clarear o raciocínio, que existam humanos em outro planeta habitável. Eles também têm de lidar com tais desigualdades – de fertilidade, etc. – se (e para que) a vida muito complexa for capaz de se desenvolver em seu mundo (diferente de mundos quase totalmente congelados, por exemplo). Eles também viveriam os diferentes sistemas antes de chegar ao igualitarismo da abundância.

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MEIO AMBIENTE E SOCIALISMO

A percepção do colapso em latência encontra estranho consenso quando referido ao meio ambiente. No entanto, todas as tentativas de solução fracassam, todos os avisos faltam à prática, todos os congressos governamentais limitam-se às boas intensões. Por que o capitalismo é incapaz de parar o relógio do fim? Uma resposta foi dada por Mèszáros de quem partimos, em geral, estes aspectos, ou seja, quanto ao fato de a acumulação do capital ser incontrolável e a produção destrutiva em nosso tempo (Mészáros, Para além do capital, 2011): 1) Para manter o processo de circulação do capital, para a reprodução em escala ampliada, para adiar as crises de superprodução; o capitalismo precisou aumentar a escala fragilizando os valores de uso para forçar novas compras, novas substituições, aumentando a quantidade de lixo, extraindo da natureza mais do que ela pode repor de si própria em seu metabolismo. 2) As empresas que negligenciam e burlam normas de segurança ambiental têm mais recursos sobrando para lucro, investimentos, etc. 3) Os países que se desleixam dos custos ambientais tendem a atrair capital internacional, conseguir recursos, formar sua burocracia burguesa numa concorrência de fronteiras. 4) A economia é não planejada, incapaz de suportar certos custos gerais em nome de ganhos de médio e longo prazos para a humanidade. 5) A queda histórica da taxa de lucro pressiona, demonstrado pela financeirização das empresas produtivas, o lucro de curto prazo. 6) A indústria de luxo e a criação de necessidades artificiais , fictícias70, causam enorme e desnecessário desperdício (Mészáros, Para além do capital, 2011). 7) Os grandes monopólios e oligopólios guardam ou retardam o uso de patentes capazes de melhorar a relação homem-natureza se prejudicam a lucratividade. Os danos ambientais em um país afetam outros fronteiriços e distantes, logo, conclui-se, a solução pode vir apenas por meio do internacionalismo (Marques & Marques, 2009). É condição da vitória. Uma articulação mundial pode vir por uma associação internacional dos governos socialistas, caso prosperem. Porque o capital deixa de ter pátria, há disputa entre os Estados sobre onde se localizarão as empresas. As legislações ambientais tendem, então, a ser negadas ou 70

Mais uma vez, vemos esta categoria, a ficção, aparecer como que naturalmente no desenvolvimento da análise. Para este caso, basta o destaque reforçado por esta nota de rodapé, pois o caso é autoevidente no dia a dia do “consumidor”.

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revogadas para reduzir os custos empresariais. Neste sentido, o governo anticientífico de Trump serve de exemplo e sintoma. Apenas a associação internacional dos Estados socialistas pode encerrar tal conflito, terminando a lógica do lucro. São algumas decisões previsíveis ao socialismo: 1) Reaproveitar ao máximo o material ora transformado em lixo; 2) Investimento intensivo e global em fontes de energia limpas e renováveis para que adquiram alto rendimento; 3) Reflorestamento de início ligado aos corredores ecológicos; 4) Toda a humanidade dotada de saneamento básico; 5) Obrigatoriedade do trato dos custos ambientais nos planos econômicos; 6) Autonomia energética a inúmeros produtos (pilhas que se recarregam com poucos balanços de mão, etc.) e nas ―localidades‖; 7) Aumento qualitativo da resistência dos produtos e a devolução quando obsoletos para reaproveitamento do material (responsabilidade condicionante para receber outros valores de uso); 8) Liberação dos segredos comerciais, mediante pesquisa metódica e publicação ampla, voltados à sabotagem de técnicas que melhoram o trato com o ambiente, mas reduziam lucros; 9) Que a comunidade e o Estado, via centros educacionais, garantam, junto às famílias, a educação pessoal das crianças para nova concepção de rotina, de higiene, de salubridade, etc. 10) Reforma urbana; 11) Construir sistemas autônomos e locais de energia ao lado de um sistema integrado; 12) Aplicar a moderna estatística para a produção corresponder aos níveis médios de demanda social, evitando o desperdício; 13) Transporte público gratuito e de qualidade (Löwy, 1014); 14) Substituição de caminhões por trens (idem, ibidem). 15) Desenvolvimento intensivo, não extensivo, e unificado da produção no campo. 16) Aprimorar intensivamente da tecnologia de captação de carbono. 17) Controle do uso de agrotóxicos para preservar a população de abelhas, necessárias ao ecossistema. 18) Alterar a genética de alguns seres para que resistam ao ambiente (queimadas, etc.), frutifiquem mais cedo, etc.

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Outras mudanças são e serão pensadas (fim da produção de luxo, etc.), muitas delas concretas para ambientes e situações específicas. O objetivo deste capítulo, que se limita a resumir a questão, é demonstrar a união entre revolução ambiental e revolução socialista não limitada ou presa à afirmação dogmática e propagandística. Exemplos práticos podem ajudar. O socialismo visa diminuir o tempo de trabalho e dar tempo livre e recursos para outros afazeres sociais, por isso precisa do avanço técnico permanente. Se no capitalismo as pilhas são recarregáveis com poucos movimentos, dispensando novas compras, a empresa falirá e haverá demissões. Se as lâmpadas podem durar, por modo de disposição de suas peças, décadas, também ocorrerá problemas no metabolismo do capital. Se fazemos alto reuso e reciclagem de materiais, empresas do Departamento I, produção de meios de produção, insumos para os departamentos I e II (este, II, produção para consumo final), entrarão em crise. Em todos os casos exemplificados, as crises se espalham para outros setores e empresas, pois deixam de comprar insumos e máquinas e os trabalhadores então desempregados reduzem o consumo. Vejamos o petróleo: se é substituído em grande escala via nova fonte, países inteiros entrarão em colapso no Médio Oriente e na América Latina, haverá guerras interfronteiras e guerras civis por causa da precarização da vida naqueles países; passa a ser do interesse de grandes oligopólios, bancos e governos o retardo ao máximo do desenvolvimento de novas fontes energéticas renováveis, limpas e em grande escala (além disso, o investimento ocorre sem cooperação científica internacional, por causa da concorrência, o que atrasa o desenvolvimento geral da tecnologia limpa). Neste caso, apenas uma sociedade planejada com democracia socialista permite realocação de trabalhadores com igual ou maior dignidade no trabalho, apoio entre as nações ainda divididas por fronteiras e pesquisa científica livre e intensiva. O desenvolvimento do metabolismo social socialista possibilitará a redução em quantidade dos centros produtivos, quando a integração internacional superar a concorrência entre Estados. Retomemos o exemplo da lâmpada: se a sociedade aumenta sua durabilidade de 2 para, digamos, 15 anos, a demanda mundial precisará de uma ou duas grandes fábricas automatizadas para suprir as necessidades dos consumidores71. O próprio desenvolvimento do trato com os valores de uso – maior resistência, reuso produtivo daquilo descartado, valores de uso múltiplos na mesma materialidade, etc. – está embrincado com o processo de superação da forma salário durante a construção inicial do socialismo. O salário do trabalhador, abstraindo a tendência a ficar abaixo de seu valor real, é 71 A mudança destacada no parágrafo fará parte do forjar das condições de simplificação do domínio do homem sobre as coisas, condição e consequência. Outro exemplo destacável – também para o meio ambiente – será a aceleração, já existente de modo vacilante sob o capital hoje, da fusão ou aglutinação de valores de uso.

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determinado pelo custo médio de sua manutenção (Marx considera fatores culturais, como o hábito do operário inglês de ler jornal); portanto, o acréscimo de durabilidade, os descontos de troca, a recarregabilidade autônoma, etc., ao lado de serviços públicos gratuitos (que, por escala, reduzem o custo social total), atuam para o fim da forma capitalista de distribuição. Nossas observações concluem que o capitalismo passou de força progressiva e produtiva para força regressiva e destrutiva. O exemplo mais famoso é a modificação genética: no lugar de usar a ciência para preservar a natureza e desenvolvê-la, usam-na para criar sementes que ficam estéreis na segunda germinação, forçando a recompra de nova saca de sementes modificadas. Lucro e natureza tornam-se inimigos mortais. Aqui, lembramos dois gerais consensos científicos: 1) desde a década de 1970, temos extraído, em escala crescente, da natureza mais do que ela pode repor-se no mesmo ano; 2) a humanidade é causa da nova grande extinção da vida sobre a Terra. Nos movimentos de luta social, temos a exigência por saneamento básico por parte dos movimentos sem-teto e urbanos, redução do agrotóxico no campo, etc. No destaque sindical, a inspeção operária da produção, muitas vezes antecessor da gestão operária, pode ser fermentada pelas CIPAS, pela verificação das exigências ambientais por parte da comissão de fábrica e do sindicato, pela greve por substituição de materiais danosos aos trabalhadores e ao ambiente por outros melhores, exigência por cumprimento das cotas de custos com segurança ambiental, etc. As pautas de segurança e saúde do trabalho encontram-se em inúmeros pontos com a luta ambiental, devendo estar ligadas no todo pela necessidade de mudança de sistema socioeconômico. À organização comunista caberá, sendo a mais aguerrida, fazer as pautas setoriais ligarem-se a um projeto maior, a uma crítica da origem dos problemas. E pode fazê-la apresentando um projeto de sociedade ao lado de propostas tanto imediatas quanto amplas. Uma luta ambiental contra uma hidrelétrica, por ex., é, se correta, uma crítica apenas negativa enquanto, pensando a totalidade social, deve também saber propor, isto é, responder de onde virá a eletricidade na escala necessária. Entre os séculos XIV e XV, o mundo medievo viveu uma crise ambiental que produziu inúmeros problemas à sobrevivência, como a baixa colheita. O crescimento do número de terras para a agricultura, a derrubada de florestas, a fundação de novos feudos foram base da alteração climática. No século XXI, mais uma vez passamos por perturbações do tipo, ainda mais intensas, que gerarão problemas econômicos (más colheitas, pragas, secas desproporcionais, etc.) e estresses sociais. A revolução socialista tem entre seus gatilhos as consequências das alterações no meio ambiente. A crise ambiental é uma das demonstrações mais vivas do limite sistêmico do capitalismo.

165

RISCO DE PANDEMIAS

A primeira versão deste texto foi produzida em 2016. Estou reescrevendo o material em plena quarentena por razão do coronavírus, que torna mais evidente este capítulo. Convido o leitor à imaginação do quanto era difícil sentir o peso destas elaborações antes da crise sanitária global e quantos muitos aspectos se tornaram conhecimento comum após o fato histórico. O que fica suspenso no ar é a relação entre epidemias e pandemias com a crise sistêmica, portanto nossa tarefa é levar em conta tal aspecto. Antes de irmos ao conteúdo deste capítulo, façamos um breve balanço da pandemia de 2020. O problema sanitário do coronavírus, embora seja expressão da crise sistêmica, atrapalhou a luta pelo socialismo ao contrário do que pensam muitos intelectuais. No mesmo período da reclusão social, uma crise de natureza puramente econômica mundial surgiu com potência superior à de 2008, porém deu-se, por coincidência temporal, a impressão de que o recuo da economia teve fator central e apenas natural… Se os trabalhadores tivessem uma experiência pura com a crise do capitalismo, sua consciência teria avançado enormemente desde o balanço prático da crise cíclica anterior. Ademais, a lutas recuaram por causa da contaminação. O capitalismo ganhou, assim, certo fôlego histórico apesar de o problema pandêmico ativar alguma intuição sobre fins civilizacionais, em principal entre a vanguarda. Pandemias atrapalham o funcionamento ―normal‖ do capital como também a luta antissistema. *** O apogeu do império romano (marcado pelo início de sua decadência com o fim da república no século 1 a.C.) levou à urbanização e a laços comerciais e populacionais; todos os caminhos levavam à Roma. Ocorreram, entre o apogeu e a decadência, 11 grandes epidemias e pandemias em seu grande território, como a peste de galeno no ano de 164 com um quarto da população dizimada e a peste de Cipriano em 250. A peste negra atuou para a queda do feudalismo. Com o crescimento do comércio medieval e das cidades, dada a maior produtividade, base da transição para outro sistema, as ligações virais também cresceram e um terço da população europeia foi vítima da doença.

166

A tese deste capítulo é que as condições do capitalismo hoje colocam, de modo mais intenso que outras fases do sistema, a possibilidade de epidemias e pandemias 72. Vamos aos fatores que produzem tal conclusão:

1. Diferenças entre ricos e pobres geram problemas alimentares, de higiene, de acesso à informação, de hábitos, de salubridade – há acesso desigual ao moderno. O aumento da miséria relativa desde 1970 e, em destaque, desde 2008 colabora no sentido do adoecimento. 2. A atual urbanidade, que alcançou altíssimo desenvolvimento, baseada na desigualdade de classe, reúne uma enorme massa urbana, facilitando a contaminação geral. 3. O fluxo humano e de mercadorias por todo o mundo interliga-nos também do ponto de vista viral. Lembremos que a aviação comercial é recentíssimo na história. Aqui entra mais uma vez o debate do acesso desigual ao futuro, ao moderno. A aviação global ocorre combinado com o ainda uso, por exemplo, de camelos no Oriente Médio, animais que tem fortes chances de passar vírus aos humanos. 4. Com a automação da produção, alta capacidade produtiva, a indústria farmacêutica necessita criar demanda e bloqueia ou atrasa pesquisas cujo objetivo é a cura. Richard J. Roberts, Prêmio Nobel de Medicina, denuncia em entrevista:

Eu verifiquei a forma como, em alguns casos, os investigadores dependentes de fundos privados descobriram medicamentos muito eficazes que teriam acabado completamente com uma doença ... […] Porque as empresas farmacêuticas muitas vezes não estão tão interessadas em curar as pessoas como em sacar-lhes dinheiro e, por isso, a investigação, de repente, é desviada para a descoberta de medicamentos que não curam totalmente, mas que tornam crónica a doença e fazem sentir uma melhoria que desaparece quando se deixa de tomar a medicação. […] Mas é habitual que as farmacêuticas estejam interessadas em linhas de investigação não para curar, mas sim para tornar crónicas as doenças com medicamentos cronificadores

72

Ao que nos parece, o advento da AIDS foi o selo rompido de tal apocalipse. Um aviso sobre nossa época. Tal mudança se expressa também na arte. Os filmes e jogos de terror-ação deixaram de tratar zumbis como criaturas místicas ou demoníacas e passaram a tratá-los como frutos de efeitos virais, de fungos, etc. mais próximo do materialismo e de nosso tempo.

167

muito mais rentáveis que os que curam de uma vez por todas. E não tem de fazer mais que seguir a análise financeira da indústria farmacêutica para comprovar o que eu digo. […] Ao capital só interessa multiplicar-se. Quase todos os políticos, e eu sei do que falo, dependem descaradamente dessas multinacionais farmacêuticas que financiam as campanhas deles. O resto são palavras… (Roberts R. J., 2011)

5. A crise do meio ambiente (alta concentração de carbono no ar, por exemplo) por si faz surgir novas doenças, além de tornar mais frequentes as que existem. 6. Há esgotamento do atual método de combate às doenças virais e bacterianas:

De acordo com especialistas, as superbactérias, que se desenvolvem por causa do uso em excesso de antibióticos em humanos e na produção agropecuária, são uma das maiores ameaças para a Humanidade. Cepas de bactérias resistentes aos mais potentes medicamentos existentes já foram identificados em diversos países, incluindo o Brasil. Estimativas apontam que, sem combate, esses micro-ogranismos podem matar 10 milhões de pessoas por ano a partir de 2050. — É irônico que uma coisa tão pequena provoque tamanha ameaça pública — disse Jeffrey LeJeune, pesquisador da Universidade Estadual de Ohio, nos EUA, em entrevista ao ―Guardian‖. — Mas ela é uma ameaça global à saúde que precisa de uma resposta global. (Globo, 2016)

As bactérias resistentes a antibióticos também ocorrem na criação de animais para consumo. É um risco latente de infecção tanto desses seres quanto de humanos. A ciência pode resolver este problema em específico sem a necessidade de uma revolução social, mas ainda continua uma possibilidade não resolvida. 7. Invadimos o habitat natural de modo desenfreado, o que tira do isolamento doenças presentes na natureza. O pesquisador francês Serge Morand resume a questão: Certamente, observamos um crescimento constante do número de epidemias de moléstias infecciosas desde os anos 1920. Após a segunda guerra mundial, um conjunto de vírus, bactérias e parasitas emergiu, notadamente o tifo e as rickettsioses, doenças infecciosas transmitidas ao homem por artrópodes

168

(piolhos, pulgas, carrapatos). Mais recentemente, foram detectados mais novos agentes patogênicos provindos da fauna selvagem. […] Minha hipótese de trabalho consiste em afirmar que a multiplicação das epidemias resulta das modificações dos contatos entre a fauna selvagem e o homem. Devido à intensificação da produção animal e como consequência, o aumento do número dos animais de criação e da superfície das terras agrícolas para nutri-los, a fauna selvagem vê seu território se reduzir. Obrigada a se locomover, ela tem mais contatos com os animais domésticos. Esta aproximação entre animais domésticos e fauna selvagem é condição propícia para a emergência das doenças infecciosas. Um micróbio ou uma bactéria pode viver num hospedeiro durante milhares de anos sem provocar problema algum, mas, ao mudar de hospedeiro, tornar-se patogênico. (Morand, 2020)

8. O processo de separação do valor de uso do suporte e o valor de uso ―poético‖, sob a forma capitalista, geram: 1) produtos com baixo valor nutritivo (exemplo de um suco artificial e barato); 2) estimula a adoção de substâncias nociva à saúde humana (para dar cheiro, cor, gosto etc.). 9.

A saúde privada negligencia custos em nome do lucro. Exemplo: as vacinas que perdem potencial por problema de aquecimento são prontamente substituídas no serviço público enquanto no setor privado tende-se a evitar tal medida, que gera nova despesa.

10.

As armas biológicas são um recurso latente nos conflitos globais militares. Surge a necessidade de um sistema mundial público e gratuito de saúde – no socialismo. Tal

empreendimento social tratará tanto de prevenção e atendimento quanto das medidas de produção (medicação, nutrientes em alimentos, etc.) e sociais. Destacamos, por fim, que certa regularidade de epidemias e formas pandêmicas tem efeitos tendenciais sobre a estrutura social. Como as máquinas não paralisam por si mesmas nem adoecem, as crises de saúde pública tendem para a automação, digitalização e robotização – na produção especialmente. As bases para a economia socialista têm mais um fator de estímulo ao seu desenvolvimento durante a e por causa da crise sistêmica, que se expressa, ademais, também em crises sanitárias.

169

A SUPERESTRUTURA SUBJETIVA

NATUREZA HUMANA ―Aqui, a liberdade não pode ser mais do que o fato de que o homem socializado, os produtores associados, regulem racionalmente esse seu metabolismo com a natureza, submetendo-o a seu controle coletivo, em vez de serem dominados por ele como por um poder cego; que o façam com o mínimo emprego de forças possíveis e sob as condições mais dignas e em conformidade com sua natureza humana.‖ (Marx, O Capital III, 2016, p. 1071)

Em O Capital I, Marx toma nota:

Aplicado ao homem, isso significa que, se quiséssemos julgar segundo o princípio da utilidade todas as ações, movimentos, relações etc. do homem, teríamos de nos ocupar primeiramente da natureza humana em geral e, em seguida, da natureza humana historicamente modificada em cada época. Bentham não tem tempo para essas inutilidades. (Marx, O capital I, 2013, p. 685)

O mouro faz uma crítica e aponta o procedimento metodológico. No entanto, os marxistas

1)

Confundem natureza humana com personalidade;

2)

Confundem natureza humana com moral;

3)

Enfim, confundem ―natureza humana em geral‖ com ―natureza humana historicamente

modificada em cada época‖.

O primeiro passo para avançarmos dar-se por meio da teoria marxista da alienação. Em resumo, alienação é

170

1)

Fragmentação do homem, seu afastamento de relações plenas com a comunidade;

2)

Domínio do homem sobre o homem, a coisificação do semelhante (machismo, classes

sociais, homofobia, xenofobia etc.); 3)

Exclusão do homem de sua criatividade, capacidade singular da espécie, de imaginar e

colocar em prática de modo ativo.

Ou seja:

1)

Separação do homem da sociedade a qual integra;

2)

Separação do homem dos iguais, dos outros homens;

3)

Separação do homem de si próprio.73

Em duas sentenças de Marx: a valorização do mundo das coisas em proporção à desvalorização do mundo dos homens; humanização das coisas e coisificação dos homens. Dada a base, basta-nos rastrear a equação: se há alienação, há algo negado – algo alienado. Invertamos, deduzamos: seria qual a solução da alienação, o inverso?

1)

Integração dos homens;

2)

Relações mutualistas;

3)

Ser ativo.

Estamos diante da essência biossocial. E esta descoberta tem implicações sobre todas as ciências humanas, além da psicologia. 73

Este é um esforço de condensação e seleção da teoria, na relação homem-homem. A alienação em Marx se expressa em: “1) alienação dos seres humanos em relação à natureza; 2) à sua própria atividade produtiva; 3) à sua espécie, como espécie humana; e 4) de uns em relação aos outros.” (Mészáros, A teoria da alienação em Marx, 2006, p. 14)

171

Qual, portanto, a origem da natureza humana? Dos primatas que desceram das árvores nas savanas74 até o homo sapiens sapiens ocorreu um longuíssimo período de formação da nossa espécie por meio da seleção dos mais aptos à sobrevivência. Aqueles cujo perfil facilitava a prática do que hoje é essência humana adquiriam probabilidade maior de sobrevivência, perpetuavam-se. Por isso, por história da humanidade devemos considerar, também, a história da formação da nossa própria espécie, isto é, a importância da biologia na formação do pensamento marxista. Resolvemos, então, a oposição sobre se a essência é histórica ou natural. Assim, superamos o falso ―historicismo‖ e a tese pós-moderna de que tudo é – limita-se à – construção social. É a formação do homem como formação do próprio homem, do orgânico ao social. Em elaboração geral, a alienação ocorre quando o mundo gerado pelo homem ganha autonomia frente a este e volta-se contra ele – a criatura passa a dominar o criador. É preciso, pois, ver a alienação como um fenômeno subjetivo, objetivo e intersubjetivo, assim como a natureza humana – interno e externo ao indivíduo. Tem sua existência na totalidade social e na psique. Destacamos aqui a psicologia por ser esta a questão que esta ciência faltou resolver, a natureza humana, seja por ideologia ou por pouco interesse pela filosofia marxista na ciência oficial. No entanto, curioso o espanto causado por esta exposição entre marxistas. Ficamos diante das observações: se a natureza é apenas histórica no sentido dos modos de produção, o homem é de fato adaptável – logo a alienação social não explicaria a onda de depressão e suicídio? Se explica, há algo de fato negado. Se o homem é, em essência, apenas o determinado pelo modo de produção, adaptar-se-ia às condições dadas sem maiores prejuízos, senão físicos, pelo menos psíquicos. Por isso, uma resposta própria do marxismo percebe contradição entre natureza humana historicamente modificada em cada época e natureza humana em geral. Entre as tarefas dos homens e mulheres no e rumo ao socialismo será resolver este problema objetivo.75 Mário Bunge, o menos limitado dos filósofos oficiais da atualidade, socialista utópico que nada compreendeu do método de Marx, assim expressa, de modo correto:

74 Nosso ancestral evolutivo já vivia abaixo das árvores, no solo, porque sua morfologia fazia-o habilidoso para andar e correr; por isso, adaptou-se ao ambiente de savana. 75 O trabalho sobre a noção, até aqui mistificada, de essência humana pode receber a crítica de que usamos o método dedutivo para percebê-la. Marx também usa tal metodologia para expor um novo objeto, o valor, no Capítulo I d’O Capital.

172

Estamos vivendo a década do cérebro. Avança-se bastante, mas também ignora-se bastante. Não sabemos exatamente quais são as partes do cérebro conscientes de si mesmas; mas acaba-se de descobrir que dar traz muito mais prazer que receber, e que é o mesmo tipo de prazer que sentimos ao comer algo saboroso. Descobriu-se também, que a desigualdade é muito mais nociva que a pobreza. A desigualdade causa stress e este, por sua vez, acarreta em uma superprodução de substâncias nocivas que destroem o cérebro. Nos países mais igualitários, as pessoas são mais longevas. Os costarriquenhos e os cubanos vivem muito mais que os norte-americanos. Ganham muitíssimo menos, são muito mais pobres, mas vivem mais porque são mais igualitários. (Bunge, 2014)

Complementamos que, socialmente, o altruísmo, não significando necessariamente desprazer, pode ter na outra ponta da relação um impulso egoísta de quem recebe a ação. Por isso mais correto é o estabelecimento do mutualismo, que supera os opostos, como expressão categorial da essência humana76. Se o caráter comunitário, por exemplo, é natural entre nossos primos evolutivos, ele salta de natural para social na espécie humana. Tal mudança qualitativa de natureza é incompreendida. O aspecto natural da espécie não é destruída mas suprassumida numa nova natureza, a natureza humana. É mais do que o comunitário natural, sendo elevado, mais dinâmico e complexo, ao social por meio do trabalho. Se abstraímos as origens físicas, parte significativa das doenças mentais possuem origem na alienação, ou melhor, na não satisfação da natureza humana. A solidão excessiva, por exemplo, degenera e pode acarretar problemas como a paranoia, que expressa a necessidade de interação. Essa observação simples demonstra a inerência de certas características. Viver agrupado é mais do que uma vantagem evolutiva externa, pois está instalada no aparelho psíquico como necessidade, como exigência a ser satisfeita. O trabalho alienado, repetitivo e vazio de sentido, negação do caráter ativo do homem, é outro exemplo de insatisfação, que estressa o trabalhador. A teoria unificada da psicologia é uma tarefa por se fazer, no entanto muitos marxistas recuam. Não contradição na relação entre as naturezas humanas geral e histórica é o que se pode concluir de modo equivocado. É tarefa socialista desenvolver, na medida em que sua base 76

Os psicólogos evolutivos (Robert Trivers) chamam altruísmo recíproco, reciprocidade. A expressão mutualismo, tomado emprestado da biologia, a associação de populações diferentes de modo vantajoso a ambos, é limitado, mas é o mais próximo que consideramos para corresponder ao objeto.

173

material amadurece, uma nova relação, ainda dinâmica, entre natureza humana e sociedade e entre natureza humana e a superestrutura subjetiva (moral, concepções, etc.) À concepção neoliberal de natureza humana – individualista, concorrencial e otimizador de bens – opomos outra, esta sim assentada na mais avançada apreensão científica de nossa época, corroborada pelas descobertas da ciência77. A concepção burguesa, sempre requentada, corresponde à imposição do mundo das coisas sobre a psique, tem caráter empírico mas naturalizado, não histórico, incorrespondente, também, com a história da formação de nossa espécie. Trata-se de diferenciar o conjuntural do estrutural e de expor a contradição que daí deriva. Por seu lado, o falso ―historicismo‖ foi uma forma incompleta mas muito eficiente ao afirmar o homem, o caráter social da espécie. O enfrentamento contra o darwinismo social puxou a balança para o lado oposto. Agora devemos limpar caminho contra o determinismo genético por outro meio: considerando o natural, o social e o ―um no outro‖ entre os humanos. As condições históricas, científicas e ideológicas permitem o avanço. Supera-se a unilateralidade da observação focada exclusivamente num ou noutro polo, sendo o polo determinante o social. Apoiados na categoria trabalho como categoria fundante do homem, podemos enfim superar a obra de Freud, que tem resistido bem até aqui às duras críticas e elaborações alternativas. A psicanálise, por não ter uma concepção própria de natureza humana, acaba cedendo à visão oficial, o homem enquanto lobo do homem. Todas as versões críticas anteriores sucumbiram e tomaram posição inferior no trato sobre a psique porque falharam onde também a concepção freudiana falhou. Não mais se trata de atualizar mas de ir além, suprassumir o legado psicanalista78.

77

A concepção aqui exposta pode dar base a outras observações e pesquisas. Exemplo: abstraindo o uso como ração, incomum hoje no ocidente; nós adestramos os lobos para que servissem de companhia (integração), fossem capazes de guarda (relações mutualistas) e auxiliares na caça (ser ativo). Desenvolvemos raças de cães para satisfazer diferentes necessidades. A demonstração dos tipos caninos é um tanto unilateral, pois os três elementos, abstraídos, estão como se misturados dentro da realidade; porém serve de primeira aproximação clara ao tema. 78 Freud está em relação a uma nova teoria da psique como Ricardo em relação a Marx. Considerar o aspecto natural do homem é uma das forças da psicanálise, embora seja uma ciência social, mesmo que seja negada esta localização pelo seu fundador, que a considerava parte dos estudos biológicos (possivelmente para dar ares mais científicos ao seu legado contra os ataques que sofria). Dito de outra forma, dar-se, com a psicanalística, primeira base materialista para a psicologia, embora deva ser superada. O Behaviorismo, por sua vez, também avança certos aspectos, mas de maneira unilateral. É tão ciência quanto o freudismo. Nega-se os avanços de Skinner porque se tem, entre os seus críticos,

174

*** Na consideração das características essenciais da psique humana, devemos tomar uma exceção: o psicopata. Desprovido de estrutura cerebral e mental para a empatia e as emoções, a personalidade psicopática arranja-se fora da natureza humana. Seguindo o caminho frio do dinheiro e da luta de todos contra todos, os tipos psicopáticos tendem a estar em cargos de destaque: líderes religiosos, políticos, diretores de empresas. É o perfil que melhor acomoda-se às exigências subjetivas do capital. A luta de classes torna-se, em certa medida, contanto considerado sua natureza social, uma luta biológica. *** A consideração mais sábia sobre a felicidade humana afirma que ela é impossível, portanto devemos buscar, com todas as dificuldades inevitáveis, uma vida que valha a pena. Tentar ser feliz, portanto, aparece como mera ingenuidade. Neste nível do considerar, separemos alegria, um estado momentâneo de emoção, da felicidade, uma condição material. Este último é a palavra mais próxima antônima de alienação. Esta expressão, em oposição àquela, existe porque é necessário falar de um estado de coisas tão presente, enquanto falta nome melhor para o seu inverso, já que é escasso. Ter uma vida feliz é ser feliz em determinadas condições. O grande tema do marxismo é a felicidade e todos os meios são pensados, pelo ponto de vista revolucionário, para nos aproximarmos de tal fim. O mundo contemporâneo busca ser feliz por meio da teologia da prosperidade, da autoajuda, do esforço sobre-humano, etc. Vivemos uma época de coisas ricas e abundantes em si próprias, quase como se a felicidade pudesse ser e não ser tocada. A possibilidade latente de uma vida plena, ainda exigente de esforço e disciplina, sentida pela intuição geral, revela-se de fato como apenas em latência. Lembremos que a alienação, cujo oposto combina as palavras felicidade e liberdade, não é, em primeiro, um fenômeno psicológico. Um burguês é feliz com sua alienação, pois está no polo positivo, vencedor. Por outro lado, se sua condição de vida deixa de satisfazer a natureza humana, pode até mesmo viver em depressão e depender de remédios psiquiátricos. uma concepção burguesa de homem, como se livre e autônomo, longe de quase determinismos do ambiente, o que é falso. No mais, tal concepção percebeu que a repressão sobre os jovens não é um método válido como em animais, pois gera reações, manobras, problemas, etc. Mais um pouco e seria percebido que isso se deve a uma essência humana.

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Podemos determinar neste subcapítulo uma previsão e uma exigência: a plena integração das coisas ocorrerá a partir, somente se, da plena integração dos homens – entre eles e consigo próprios79. Dito de outro modo, a fusão futura da arte e da vida idealizada por Nietzsche encontra uma versão realista no socialismo. A humanização do homem, sua emancipação, sua saída da pré-história, se dá por um longo processo de desumanização, por meio da alienação, por meio do inverso. *** Pode-se argumentar que a natureza humana é dada pelas condições materiais existentes. Ora, o cérebro humano é uma ―condição material existente‖ e tem suas exigências de satisfação. Muitos marxistas, ao considerar apenas a natureza conjuntural, tomam a essência do homem em uma sociedade como sua própria visão ideológica – no bom e no mau sentido – que a mesma sociedade tem de si. Assim, a essência humana seria de homem senhor de escravo no escravismo segundo a posição de seus filósofos, de um pecador no feudalismo de acordo com os pensadores teólogos e de egoísta no capitalismo como afirmam seus sérios ideólogos. A essência humana conjuntural confunde-se com o julgamento que os homens fazem de si. Para alcançar uma posição superior, uma pequena dose de biologia na produção teórica é necessária e pode manterse, como vemos, dentro dos limites do ortodoxismo. O homem é um ser social, mas ainda um animal; tem em si aspectos sociais, naturais, sócionaturais e naturais socialmente modificadas 80. *** A revolução socialista seria a realização e uma imposição da essência humana? Uma situação revolucionária surge quando as condições sociais de existência faltam ser atendidas e quando as necessidades humanas (também socialmente criadas e desenvolvidas) precisam e carecem de ser

79

As coisas tendem à integração: aglutinação de valores de uso, internet das coisas, aproximação entre produção de bens de consumo e produção de matéria-prima, fusão entre capital financeiro e capital produtivo, etc. A tendência à integração coisal, falsa modalidade do Ser, é expressão alienada – por alienação – da tendência de integração do ser social, como a formação de uma única comunidade global no socialismo, respeitando as particularidades locais, a atração dialética após a repulsão, como demonstrou Lukács esta última humana tendência (até onde vai meu conhecimento sobre o húngaro, nunca tendo chegado a formular sobre a primeira e, logo, nem também a ligação ontológica de ambas, algo próprio como contribuição desta obra). Apesar de mais implícito que explícito, o movimento “das coisas” está entre as bases deste livro; como vemos, uma nota de rodapé é suficiente, embora o tema seja em si profundo e inédito científica e filosoficamente. 80 Exemplo deste último, natural socialmente modificado, podemos observar na atração pelo corpo feminino. Na idade média, a escassez levou a ver como sinal de saúde mulheres acima do peso; na China, os homens atraiam-se por pés femininos pequenos porque os pés das camponesas eram mais rudes, diferente dos das mulheres da aristocracia. Nestes casos, a busca por fêmeas melhor aptas para a reprodução teve mediação social em tipos específicos.

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satisfeitas. É claro que a contradição entre natureza humana e os sistemas de dominação classista tem sua importância e são resolvidas pelo socialismo, mas a realidade material pesa mais e é mais ampla. *** Para esgotar os argumentos contra a descoberta de uma essência ou natureza humana em geral, dedicamo-nos a mais um aspecto. Alguns camaradas tratam o tema defendendo que Marx parte da concepção de que não há natureza humana natural, e haveria apenas essência histórica como ponto de partida de seus estudos. Isso é um erro, pois partir de um postulado qualquer, como afirmar que a essência humana responde apenas aos modos de produção, trata-se do método de investigação dedutivo, não do método dialético, que é o de Marx. Uma concepção deve ser um resultado da investigação científica, não seu ponto de partida. No mais, abrimos este capítulo com duas citações de Marx que sugerem claramente uma concepção diferente de natureza humana. Dito de outro modo: uma ―premissa‖, se escolhêssemos este caminho metodológico, deve ser abandonada sem rodeios assim que a pesquisa exigir outro resultado, outra conclusão. Do contrário, tratar-se-ia de um dogmatismo quase religioso, que despreza o real (assim como os avanços da ciência). O marxismo nunca parte de concepções arbitrárias para entender o mundo; seu ponto de partida é a empiria, o factual. Se há ou não uma essência humana ―natural‖, sendo também histórica ao seu modo como demonstramos, deve ser um resultado, não um começo. ***

Esta nova concepção marxista de essência ou natureza humana explica, supera e suprassume as concepções anteriores. Vejamos dois casos destacados na história da filosofia. Aristóteles afirmou que o homem é um animal político, da pólis, da comunidade – expressando o ser integrado, indiretamente o ser mutualista; afirmou ainda que o homem é um animal racional – expressando o ser ativo, embora do ponto de vista escravocrata, do trabalho intelectual. Hobbes afirmou do homem a competição, a desconfiança e a glória – exatamente ligados, embora por negação, com a integração, o mutualismo e o ativismo. Marx e Engels demonstraram que o homem só pode ser individualista e egoísta em sociedade, ou seja, de algum modo integrado. Todas as concepções rementem, mesmo que de modo negativo, incluso a concepção neoliberal antes citada, à essência humana em geral, ainda que exija trabalho filosófico-científico para perceber o lastro. Na revolução francesa, tivemos a bandeira da liberdade (ser ativo), igualdade (ser integrado, ser mutualista) e fraternidade (ser integrado, ser mutualista) como instinto revolucionário daquilo que é essencial em nossa natureza. Hegel demonstrou que no começo da

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história, no primitivismo e no mundo antigo, a sociedade (ser integrado) é tudo e o indivíduo (ser ativo) é nada; por transição na Idade Média, o mundo moderno fundou a concepção de que o indivíduo (ser ativo) é tudo e a sociedade (ser integrado) é nada; segundo ele, chegaríamos, ainda sob o capitalismo, à concepção de que a afirmação e o desenvolvimento do indivíduo são, também, a afirmação e desenvolvimento da sociedade, e vice-versa, sem mais tal oposição, em progressão mútua – seu projeto teve de ser adiado para realização socialista, onde a afirmação e desenvolvimento de ambos realizará a natureza de nossa espécie (com o mutualismo enquanto unidade de ser integrado e ser ativo, etc.) O comunismo é a afirmação completa do indivíduo, não sua negação, como indivíduo que só é todo seu potencial em plena comunidade plena.

FIXAÇÕES HISTÓRICAS Podemos inferir a cada época da humanidade sob regime de classes pelo menos uma grande fixação coletiva. A grande tara social na época escravista parece ter sido a guerra, o tema dos poetas. O escravismo necessitava do conflito militar constante para conseguir escravos, terras e domínio sobre outras civilizações. Observou Maquiavel:

E embora depois esse império [Roma], por causa da invasão dos bárbaros, se dividissem em várias partes, essa virtú não renasceu; uma, porque se pena um bocado para recuperar as ordenações quando estão corrompidas; outra, porque o modo de viver de hoje, no tocante à religião cristã, não impõe a necessidade de defender-se que havia antigamente; então, os homens vencidos na guerra ou eram assassinados ou permaneciam em perpétua escravidão, em que se levava uma vida miserável; as terras vencidas ou eram devastadas ou despovoadas; seus habitantes eram destituídos de seus bens, dispersavam-se pelo mundo afora, de modo que os sobreviventes de guerra padeciam todo tipo de miséria. Apavorados por isso, os homens tinham em alto grau os exercícios militares e celebrava-se quem era excelente neles. Mas hoje esse temor em grande parte se perdeu; dos vencidos, poucos são mortos; ninguém fica muito tempo preso, porque com facilidade são libertados. As cidades, ainda que se rebelem mil vezes, não são arrasadas; os homens são deixados com seus bens, de forma que o maior mal que se pode temer são as taxas; de tal sorte que ninguém quer submeter-se às ordenações militares e esforçar-se nisso para escapar dos perigos os quais temem pouco. (Maquiavel, 2013, pp. 90, 91)

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Daí que Heráclito tenha dito, fundando sua dialética instintiva: "o conflito é o pai de todas as coisas: de alguns faz homens; de alguns, escravos; de alguns, homens livres." (Pré-socráticos, 1996). Os jogos olímpicos gregos e as arenas romanas também expressavam tal fator cultural de origem na objetividade do modo de vida daquela época. A grande fixação feudal foi para com a questão religiosa e a negação do corpo. Era necessário justificar o subconsumo dos servos na subprodução daquele modo de produzir e as hierarquias classistas por meio da religião e seus pecados – gula, luxúria, preguiça, etc. Era uma ideologia útil ao feudalismo, à manutenção do sistema feudal. O dinheiro é tema, guia de ação e pensamento quase constantes no cotidiano sob o capital. Parecerá doença de fixação monotemática visto por um povo não mercantil futuro. A loucura de sua lógica, que toma a forma de um vício, pode ser bem visualizada quando vista de fora, quando o mundo do mercado era minoritário e paralelo nas sociedades:

―Mas os que querem ser ricos caem em tentação, e em laço, e em muitas concupiscências loucas e nocivas, que submergem os homens na perdição e ruína. Porque o amor ao dinheiro é a raiz de toda a espécie de males; e nessa cobiça alguns se desviaram da fé, e se traspassaram a si mesmos com muitas dores. Mas tu, ó homem de Deus, foge destas coisas, e segue a justiça, a piedade, a fé, o amor, a paciência, a mansidão.‖ (1 Timóteo 6:9-11.)

E:

―Nunca entre os homens floresceu uma invenção/ pior que o ouro; até cidades ele arrasa,/ afasta os homens de seus lares, arrebata/ e impele almas honestas ao aviltamento, à impiedade em tudo‖, Sófocles, Antigone [ed. bras.: ―Antígona‖, em A trilogia tebana, trad. Mario da Gama Kury, 9. ed., Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001, versos 344-50] (Marx, O capital I, 2013, p. 206, nota 92)

Como reagirá as atuais gerações quando seus padrões de pensamento obsessivo deixarem de encontrar a base de origem? Soa inimaginável ao cidadão comum afirmar que o dinheiro será

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extinto ou, ao menos, marginal na economia do futuro possível. Ter é condição necessária de ser, de desenvolver as possibilidades deste. Há, nos sistemas classistas, uma contradição ao o ter ser negação do pleno e saudável desenvolvimento do ser. Sob o capital, ter é ter o dinheiro – mas é o dinheiro, o próprio capital, o valor como regulador social, que tem seu portador, mera encarnação de um almático poder estranho, inumano. Por isso, sentimo-nos ―naturalmente‖ mal, desconfortáveis, quando temos de entregar nosso dinheiro, mesmo se em troca de algo de nosso desejo ou necessidade. De repente, ao vermos uma quantidade enorme e concentrada de dinheiro, imediatamente arregalamos os olhos impressionados como os insetos amam a luz artificial noturna.

DESENVOLVIMENTO DO INTELECTIVO O dado empírico, de QI, embora fonte de medida limitada, demonstra que há elevação global, de 1909 a 201381:

GRÁFICO 19

Fonte: (Change in average fullscale IQ by country)

81 A linha no gráfico sobre ao Brasil não corresponde aos dados reais, tendo sido um erro de organização. Também neste país houve elevação do QI.

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O desenvolvimento das capacidades mentais é vital para um projeto socialista. Os mais jovens, em especial, tendem a ter mais cultura e habilidade relativo aos mais velhos e, pela primeira vez na história da humanidade, dominam com mais desenvoltura a moderna ferramenta, o computador. As condições nunca serão ideais, mas são as melhores dentro dos limites do sistema capitalista. A internet – para citar um destaque – ajuda no acesso ao conhecimento. A urbanidade, a necessidade de ―pôr em algum lugar‖ os filhos dos trabalhadores, o capitalismo exigindo maior sensibilidade para prover o consumo são elementos que atuam para a elevação do nível mental geral. O mero aumento absoluto de pessoas capazes ou com habilidades latentes, em potencialidade, será útil ao desenvolvimento da sociedade socialista. O Neurocientista Michel Desmurget, no entanto, aponta tendência à redução do QI por razão da pobreza de experiência da vida digital:

[…] os pesquisadores observaram em muitas partes do mundo que o QI aumentou de geração em geração. Isso foi chamado de 'efeito Flynn', em referência ao psicólogo americano que descreveu esse fenômeno. Mas recentemente, essa tendência começou a se reverter em vários países. É verdade que o QI é fortemente afetado por fatores como o sistema de saúde, o sistema escolar, a nutrição, etc. Mas se considerarmos os países onde os fatores socioeconômicos têm sido bastante estáveis por décadas, o 'efeito Flynn' começa a diminuir. Nesses países, os "nativos digitais" são os primeiros filhos a ter QI inferior ao dos pais. É uma tendência que foi documentada na Noruega, Dinamarca, Finlândia, Holanda, França, etc. (Velasco, 2020)

Evitamos arriscar, aqui, afirmar que esta é uma tendência atual ou mesmo secular, pelo menos enquanto a crise sistêmica perdura (como dissemos, as condições nunca serão as ideais). Porém a observação citada tem um valor relativo e pode ser incluído na decadência geral da psique.

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A ARTE A qualidade de uma obra de arte depende do quanto o artista se dedica a ela, à sua construção. São fatores: 1) A dedicação do artista à sua formação; 2) A dedicação à obra em si. Se pinta uma tela enorme toda e apenas de preto, exige um esforço; se constrói a Guernica, exige esforço outro e maior. Isto é rastreável pelo resultado. Tanto o tempo objetivo quanto o subjetivo são importantes: a inspiração cumpre seu papel mágico para, em seguida e em paralelo, ceder à transpiração. Uma história começa como ideia que toma forma de um microconto; depois, um conto; depois, uma novela; depois, um romance… Eis a exposição pura, lógica, do desenvolvimento real, histórico, por assim dizer; pois na prática do escritor o processo ocorre de modo menos consistente e, por isso, menos claro, recheado de tortuosidades. Pode-se argumentar que há gênios mais ou menos natos. De fato: isso lhes dá uma enorme vantagem que, em boa parte, os demais podem compensar pelo esforço. A própria inspiração deriva de um acúmulo prévio de observações, estudo, experiências pessoais, outras produções etc. Quando uma letra de música ―nasce pronta‖, exigindo apenas duas ou três mudanças 82, há aí uma produção inconsciente e subconsciente. A ideia de talento é verdadeira na medida em que somos diferentes, com perfis e tendência diferenciados, com diferentes e múltiplas disposições; sendo todos igualados na sociedade do capital, onde temos de nos adaptar às necessidades do mercado – surge o homem abstrato e suas unidades particulares, carentes de ser homens concretos plenos. Quando a produção artística separa forma do conteúdo, há perda de proporções, de medida, de sentir faltas e excessos. Ferreira Gullar foi o melhor observador deste problema e sua origem. A arte tipicamente burguesa do século XIX, o parnasianismo, arte pela arte, é substituído por a forma pela forma, novidade pela novidade. Mesmo onde é quase impossível o vazio de sentido, na literatura (onde houve algum papel progressivo da pós-modernidade, a experimentação), ocorreu a tendência ao impacto pelo impacto, trato complicado com a linguagem para disfarçar enredos fracos e experimentalismos desprovidos de um fim estético maior e novo. De modo geral, o valor artístico de uma obra literária tem sido medido pela impossibilidade de lê-la, pela 82

Ainda assim, há diferenças. Uma letra de música mais ou menos instintiva tem menos esforço, ainda que bela, em relação a outra que adota metrificação como unidade da inspiração e da transpiração.

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dificuldade de acessar o sentido, pela confusa linguagem – surge igualdade falsa: ser vanguarda é igual à arte inacessível, ilegível. Isto é tanto mais forte quando o livro não tem público e os eruditos oficiais buscam ―leituras de pertencimento‖ a uma casta do saber, a diferenciação dos demais. Nas artes visuais, a pós-modernidade pôde ir mais longe na medida em que a sensação visual é imediata, causa impressões desprovidas de esforço prévio da parte do espectador – e do artista… A crise da arte expressa, assim, a crise do trabalho (manual) teorizada por Kurz e Postone (já veremos a razão concreta disto). ―Não há arte revolucionária sem formas revolucionárias‖, Maiakovsky. A arte pós-moderna é uma falsa subversão; tal qual o realismo ―socialista‖, inverso análogo, está diante de raros momentos históricos em que, com disfarce de renovação, uma nova proposta artística cumpre papel negativo, reacionário, regressivo. ―Na poesia, a novidade obrigatória‖, Maiakovsky. Em arte, o novo – o de fato novo – é uma necessidade tanto do artesão ficcional quanto do público83. *** O que é arte? Resultado da atividade humana, arte é uso de técnicas para prover mensagens fictícias ligadas ao real. Se as ferramentas são usadas para construir uma mesa, temos um valor de uso de todo real; mas se as mesmas ferramentas são artifícios para produzir uma belíssima escultura, então temos um objeto real de verdade em si fictícia a nos passar uma mensagem conectada à realidade, mas em ruptura relativa com esta. Toda arte é fruto da atividade humana, fictícia e suporte de uma mensagem indiretamente ligada à não-arte. A técnica precisa pensar as proporções daquilo construído para ser um valor de uso, digamos, mesa. Na arte, a técnica trabalha o material para que suas formas expressem, de maneira criativa, o valor de uso mensagem; suas proporções são pensadas para a comunicação artística. Por mais bela e talhada, nunca a mesa será análoga à poesia ou à escultura. Por mais que ―artistas‖ coloquem tal artefato alimentício num museu. Por razões acidentais e não necessárias ou inerentes ao objeto, mesa ou cadeira podem ter formas transformadas em armas de combate, em valores de uso para agressão ou autodefesa; quem sabe, um quadro enorme do Louvre possa ser usado para sustentar pratos e talheres… Porém o caráter de cada qual logo se nos revela. Um mictório tem sua matéria e sua forma pensadas para uso específico ainda que esteja fora de seu lugar. 83

Diga-se de passagem, comum que criar seja, ao mesmo tempo, descobrir (caminhos) na produção artística.

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A assim chamada arte pós-moderna é o desenvolvimento de uma pseudoarte. A arte falsa ou a ficção da ficção pode ser constatada, mas o desafio teórico irresolvido é saber por quais mediações o capitalismo fictício e irreal, com sua forma sem conteúdo, com o ―jarro vazio‖ desta época, produz a própria produção supostamente artística correspondente. Apenas na consideração acima, de que a forma material é pensada para mensagem, podemos então relaxar o conceito. A arquitetura produz valores de uso não artísticos e é, ou pode ser, ao mesmo tempo, arte. Um jarro pode ter belíssimas pinturas. Como dissemos em outro capítulo, o valor de uso tem ganhado maior valor estético para vencer a disputa comercial. Ainda que haja casos assim, combinados, sabemos reconhecer uma obra de arte mesmo quando está associada a outra função. Assim como há mercadorias que tem preço sem valor (terra, etc.), há produções que caem fora da concepção exposta. ***

As razões para a crise da arte estão na ampliação do fator econômico, mas há mediação de outros aspectos que tornam o efeito da economia sobre o artístico mediado, indireto. O desenvolvimento da sociedade, por exemplo, impulsionou os mais variados estilos, o que dificulta, embora nunca esgote, a possibilidade de surgir novas escolas artísticas – por isso muitos artistas estancam na mera experimentação sem finalidade (poderíamos falar em escola experimentalista?). Também, entre as causas – frutos do desenvolvimento técnico-científico, da produção – está a fundação da fotografia, do cinema, das TVs, da internet e da arte em jogos eletrônicos; pois tornam menos atraentes e necessárias a pintura, a escultura, etc., que tentam se afirmar com uso de novos ou perecíveis materiais, com o estranho e o espanto, com o mero curioso, já que, ao mesmo tempo, querem atrair público e podem fazer qualquer coisa porque, por outro lado, não têm público (de modo, também, que não vale um longo esforço…). A literatura não escapa dessa dualidade entre produzir algo vanguardista artificial e produzir algo para o mercado. Em todo o mundo, surgiu um novo romantismo baseado no semiletramento das massas, na urbanização e na decadência do capitalismo. Vejamos a emulação: aquele romantismo, dos séculos XVIII e XIX, época das revoluções burguesas, tendia ao amor romântico e erotismo irrealizáveis; o atual, ao triângulo amoroso e ao erotismo vivo. Aquele e este aos mercados e à leitura fácil e fluida. Aquele, aos poemas instintivos, versos livres e atraentes; este, ao poematrocadilho, rimas rápidas e na velocidade da internet, versos curtos e autoajuda. Aquele, ao nacionalismo; este, ao internacionalismo primário. Aquele, ao fetiche pelo mundo medieval; este, também, por narrativas mistificadas. Aquele tendia à tragédia final; este, à vitória. Aquele, ao

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individualismo burguês; este, ao individualismo interligado ao conjunto. Aquele se expressou – terceira fase – com a crítica social e simpatia pelos excluídos; este, por ideias de revolta, revolução, antiburocráticas e antiditatoriais, instinto rebelde e sensação intuitiva de anormalidade e artificialidade do tempo presente 84. Este se revela na ficção científica, na distopia, como crítica social metafórica. O que pesa é a diferença na erudição dos próprios autores, pois o romantismo clássico teve nomes de peso na literatura. Na prosa e séries televisivas, há preferência por histórias profundas e longas – logo algo muito progressivo – como compensadores do vazio existencial, da rotina, da solidão coletiva, da passividade comum e dos aspectos rasos nas relações e vida pessoais, que oprime a consciência – logo reação ao regressivo no real. Séries como a primeira temporada de Narcos (poderíamos citar várias: Breaking Bad, Dark, Big Bang: A Teoria85, etc, que são verdadeiras obras de arte) são dotadas de altíssimo estilo – e com grande público, o que revela em si a possibilidade de ter produções de qualidade com acesso popular. Apenas o pessimista por natureza, que tenta destacar-se com crítica indiscriminada a tudo, ou seja, uma crítica sem critério, sem ver o que há de avanço, deixa de ver também que a regressão da vida pessoal, como regressão da vida social, demanda arte acessível e popular como expressão inversa da decadência (na literatura, o público prefere, por sua carência existencial, a profundidade do romance, enquanto os autores têm caído em narrativas curtas ou rasas). No cinema, o avanço é mais complicado, porque a busca pelo mínimo risco – e arte é correr risco – faz com que as empresas adotem fórmulas obrigatórias,

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Em certo artigo de conselhos aos novos ficcionistas, o escritor mercadológico Stephen King afirmou que o leitor se fixa no tema do trabalho, mas o autor desconhece o motivo disso. Temos uma resposta. Porque é viva na prática social, oprimindo corpos e mentes, que são o mesmo, é comum em livros e séries haver algum debate direto ou indireto sobre alienação, que inclui, por exemplo, existir com a personagem central – um investigador, um químico, etc. – um trabalho com traços artísticos, criativos, útil, desafiador, afirmador e desenvolvedor da personalidade, etc. Há o lado do público nos EUA com a tradição puritana da negação do sexo para afirmação do trabalho, para onde deve ser destinada a energia corporal, como afirmou Gramsci sobre o fordismo e o controle dos corpos, e também, íntimo a isso, a busca frenética por dólar; mas o sucesso mundial dessas produções revela, como diz o diretor Bong Joon-Ho, que vivemos em um grande país chamado capitalismo – com suas alienações influenciando o conteúdo das produções artísticas, quase como uma revolta fantasiosa contra o destino. 85 A escolha de uma série de humor é proposital. Entre nós, comum a concepção de que a comédia é algo inferior, arte menor – de acordo com a escola aristotélica. Os eruditos oficiais têm, como um sadomasoquista, a preferência pelo drama, pela tragédia; usam os melhores adjetivos do dicionário para os filmes mais difíceis de digerir…

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ritos de roteiros, finais programados, estilo que atrai, etc. Aí há a contradição entre arte e lucro. Eis um dos fortes motivos da decadência relativa dessa forma artística nas últimas décadas 86.

VONTADE E RAZÃO Unir o otimismo da vontade e o pessimismo da razão, um aforismo ao modo de Gramsci, tornou-se algo característico do século XX diante das derrotas e da impossibilidade, naquele momento, de superar o capitalismo. Após a queda do muro de Berlim, estamos diante da formulação oposta: pessimismo da vontade e otimismo da razão. Todos os teóricos lúcidos e a própria arte, tão focada na distopia, sabe ou intui um fim sistêmico latente; mas o pessimismo da vontade toma conta do espírito humano. É difícil os partidos imporem uma disciplina férrea, ainda que e principalmente se democrática, aos seus militantes porque as derrotas foram duríssimas. Apenas com situações difíceis e algumas vitórias determinantes a dialética entre vontade e razão resolver-se-á de maneira positiva.

A INFORMAÇÃO A literatura distópica do século XX produziu duas grandes conclusões opostas sobre o destino da informação na sociedade: George Orwell teorizou que seríamos privados de informação enquanto Aldous Hoxley, que teríamos informação em excesso. Embora a segunda hipótese seja mais sofisticada, nossa distopia real é uma combinação das duas projeções: há, ao mesmo tempo, excesso e falta de informação. Neste livro, evitamos tratar de ideias que já são senso comum entre revolucionários e reformistas, como a quase óbvia manipulação midiática. Podemos destacar apenas a inocente crítica ao pensar que basta a quebra dos monopólios de mídia e apresentar finalmente a verdade ao povo para tudo mudar de vez… Como disse Lukács, as ilusões da falsa ideologia são socialmente necessárias. É claro que os grandes meios de comunicação manipulam a verdade e criam, também, sentimentos e subjetividades; por isso é preciso, enquanto faltam duras conjunturas que abram a possibilidade de os revolucionários serem a maioria, uma luta de guerrilha pela informação e pela emoção.

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As produtoras criam excelentes trailers que garantem público nos cinemas; assim, elas podem entregar um filme apenas mediano, limitado principalmente na qualidade do roteiro, com garantias fáceis de lucro. Nas séries, ao contrário, torna-se necessário segurar o espectador.

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OS MOVIMENTOS DA SUBJETIVIDADE NA OBJETIVIDADE EM CRISE Quando todas as condições objetivas de uma situação revolucionária estão maduras – crise econômica, classe trabalhadora radicalizada, classe média à esquerda, burguesia dividida, Estado paralisado, forte partido revolucionário – ocorre que a subjetividade ganha máxima importância histórica. Até mesmo a subjetividade do indivíduo, como a do líder, adquire peso central no destino da sociedade. Quando da crise sistêmica do escravismo romano, as pequenas e individuais manipulações políticas, manobras, jogos pessoais, etc. tomaram alto relevo naquela vida social decadente. Em partidos políticos em dura crise interna, a psicologia individual ganha máxima importância, multiplicando-se a questão da subjetividade por causa da paralisia estrutural da objetividade partidária. Tais exemplos visam deixar claro um fenômeno da crise sistêmica do capitalismo, a subjetividade na economia. Os jornais destacam que ―os mercados ficaram nervosos‖, o ―humor dos mercados‖, como se alguma entidade inumana e emocional. O peso da subjetividade no fluxo dos capitais, a reação aos fatos, e seus efeitos práticos, torna-se típico de nossa época porque a base sócio-econômica amadureceu para sua crise, seu ocaso.

CRISE, ALMA E POSIÇÃO SOCIAL DO CIENTISTA A cientificidade marxista percebe que a posição do cientista sobre o mundo afeta e influencia – não determina de todo87 – sua capacidade de ver o mundo, de alcançar a verdade, de ir além da aparência. Quando se toma a posição conservadora da sociedade, de preservar o status quo, tendese a mistificar o real, a avançar menos, a justificar o injustificável, etc. Isso é mais verdade nas ciências humanas do que nas ciências naturais, embora também aí deva haver influência indireta. O cientista é, também, uma ferramenta, mais ou menos qualificada para lidar com o objeto de estudo. Mas isso é metade do caminho: a ciência moderna da mente-cérebro reforça tal concepção ao demonstrar que o stress tende a produzir criatividade assim como a macieira produz maçã quando o ambiente lhe é hostil. Um cientista ou teórico que, além de tomar mera posição em defesa do socialismo do alto de seu apartamento, envolve-se praticamente com situações militantes ativas, dinâmicas, arriscadas, vive precariamente, etc. têm, assim, um estímulo do ambiente para sua produção intelectual. Por isso, Trotsky foi imensamente produtivo em sua vida militante e ainda mais quando no exílio mortífero forçado por Stalin (a experiência de viver 87

Parte dos pensadores atuais afirmam que basta ao cientista reconhecer a influência de sua posição social sobre sua prática teórica para que o problema esteja resolvido. Jamais um economista oficial, burguês, chegaria às conclusões profundas de Marx. Claro, nem tudo depende do ponto de vista e do olhar crítico, pois outros fatores influenciam: a disciplina de pesquisa, o perfil pessoal, o acesso a recursos, o grau de desenvolvimento técnico e histórico, etc.

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no mundo, para além do país de origem, como foi o caso de Marx, também influencia – hoje relativamente compensado pelo atual cosmopolitismo, a internet, etc.). A sabedoria popular diz que ―a necessidade faz a criatividade‖, semelhante ao que afirma o consenso das pesquisas. Com a crise sistêmica, com o declínio da atual curva de desenvolvimento do capitalismo, ou seja, com a baixa estabilidade, a psique dos talentosos e honestos lutadores será pressionada para novas elaborações, para ver em profundidade, etc. Disso, este livro é uma demonstração. Por outro lado, porque vive sob privilégios, porque precisa negar a essência da existência, o lado da burguesia está, neste sentido, em desvantagem relativa – contanto que nunca subestimemos o inimigo. Trotsky, ao tratar da crise nos EUA, após 1929, destaca: os trabalhadores são levados a procurar razões do mundo melhores ao ver que, após uma breve recuperação econômica, outra crise aparece… Hoje, que os comunistas aprendam a ter as respostas certas. No socialismo, o baixo stress será compensado pela alta erudição dos cidadãos, pelo avanço técnico, pelos debates públicos, pela popularização da dialética, pela pedagogia ativa etc. Desse modo, a criatividade terá seu suporte.

A CONSCIÊNCIA SOCIALISTA Ao tratar da consciência socialista, Enio Bucchioni afirma:

[…] a palavra de ordem ―Um, dois, três Vietnãs‖ atingia a consciência dos ativistas e das massas em todo o planeta. É nesse cenário que floresciam militantes no mundo inteiro, que sonhavam e lutavam para, num futuro próximo, expropriarem a burguesia em seus países. Era a consciência socialista que se apossava de milhões de pessoas em várias partes do mundo. […] O principal cenário de fundo desse gigantesco crescimento era a colossal vitória da Revolução Russa de 1917, que inspirava a consciência comunista para os ativistas nos mais variados quadrantes do mundo e penetrava fundo nas massas. (Bucchioni, 2015)

Em polêmica, Hernández opõe-se:

Para tentar demonstrar sua tese, Bucchioni transforma a consciência burguesa em socialista e daí conclui que, há quarenta anos, o fim do capitalismo e do imperialismo

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estava próximo. No entanto, esse não é o principal problema do texto, porque não era a consciência burguesa das massas o que impedia, naquele período, acabar com o imperialismo e com o capitalismo. Afinal, qualquer marxista sabe (ou deveria saber) que as massas fazem revoluções, contra a burguesia, com uma consciência majoritariamente burguesa. (Hernández, 2015)

Resolvamos com dialética a questão acima. Se os trabalhadores fazem uma revolução socialista com consciência burguesa, logo esta consciência imediatamente adquire duplo caráter, socialista e capitalista. O raciocínio aprofunda-se: no caráter duplo, um dos polos domina a relação – o valor domina o valor de uso, o aspecto alienador da religião supera seu aspecto humano, etc. – até que a oposição se desfaça; então, pela tarefa histórica que esta consciência move, o polo central é seu caráter socialista, não o capitalista. A consciência precisa ser expressa. Quando faltam organizações corretas para expressar a consciência socialista, ela se direciona para os partidos centristas e reformistas. Pode haver, portanto, uma expressão deformada do real estado da consciência das massas.

PÓS-MODERNISMO DE ESQUERDA O grande marxista José Paulo Netto afirmou, numa de suas palestras, que, após o surgimento do setor pós-moderno reacionário e de direita, surgiu o pós-modernismo de esquerda e progressivo (dentro de seus limites, claro). Qual a origem, por quê? Desde pelo menos os anos 1970, com a alta urbanização em especial, surgiu uma camada de classe média maior e setores médios novos e precarizados. Isso levou à esquerdização do pensamento. O pós-modernismo propriamente reacionário, mais profundamente irracionalista, gruda no cérebro das pessoas e nas correntes ligadas à aristocracia da classe média, da alta classe média, e a burguesia. Destacamos que o pós-modernismo é mais afeito aos setores médios porque 1) são de vida, trabalho e convívio, mais fragmentado, mais atomizado, mais individualizado – tendências gerais aprofundadas da vida social na história recente para todas as classes, no entanto muito mais forte naqueles setores onde isso já é típico; 2) são mais volúveis emocionalmente, pois não passam pela escola dura da vida prática proletária; 3) tendem a ter mais necessidades democráticas, menos trabalhistas, de tipo formalmente individuais, como os direitos das mulheres, legalização das

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drogas, etc. 4) são incapazes de ter um projeto de sociedade próprio diante da decadência da sociedade burguesa, e apenas em circunstâncias especiais uma parte, a mais precarizada, aceita a liderança da classe operária.

DECLÍNIO GERAL DA PSIQUE É do conhecimento geral que a depressão – com comorbidades como a Síndrome de Burnout – tende a ser a principal causa de afastamento do trabalho no mundo. Tal processo está lastreado nas mudanças materiais da sociedade capitalista na história recente. Já que a cabeça segue o chão que os pés pisam, mesmo que em atraso, exige-se partir da realidade, do objetivo, como nos capítulos anteriores, ao subjetivo. Com o capitalismo recente, encerrou-se a possibilidade de um destino mais ou menos seguro, estável para a maioria, como os anos dourados do pós-II Guerra. A desconfiança quanto ao futuro tem levado a inúmeras angústias, uma incisiva incerteza. A realidade parece que será pior amanhã do que é hoje, embora a força individual de otimismo. As fontes de frustração aumentam e veem por diferentes vias. Nas empresas, a produtividade é a grande religião; o esforço repetitivo por horas, quase todos os dias, e a busca de atender pesadas metas levam ao esgotamento psíquico. Vejamos um famoso caso:

Um trabalhador da Foxconn Technology tentou se matar ontem, tornando-se a 13.ª pessoa neste ano a cometer suicídio ou a tentá-lo na companhia, que fabrica produtos de alta tecnologia para gigantes do setor como Apple, Dell e Hewlett-Packard, segundo a mídia estatal chinesa. Desse total, foram 10 mortes. (…) Os suicídios e tentativas anteriores nas operações da Foxconn Technology Group no sul da China envolveram trabalhadores que saltaram de edifícios. Dois sobreviveram. Outro trabalhador se matou em janeiro em uma fábrica no norte da China. (Foreman, 2010)

Para resolver este problema a empresa teve uma ideia genial:

Gou disse aos jornalistas que estavam sendo instaladas redes para evitar que mais pessoas pulem para a morte. As redes estão sendo colocadas ao redor de praticamente todos os dormitórios e prédios do imenso complexo, que, de acordo com o

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correspondente da BBC em Xangai, Chris Hogg, "é uma verdadeira cidade, com lojas, postos de correio, bancos e piscinas de tamanho olímpico". "Apesar de parecer uma medida estúpida, pelo menos pode salvar uma vida se mais alguém cair", afirmou o presidente da Foxconn. (Idem)

Para garantir a ―imagem‖ da empresa:

Eles [ativistas que prepõe boicotes] afirmam que as jornadas de trabalho são longas, as linhas de montagem têm uma velocidade muito alta e os chefes aplicam uma disciplina militar para lidar com os trabalhadores. De acordo com jornais chineses, a companhia agora obrigou os funcionários a assinar acordos declarando que não vão se suicidar (! – um acordo, veja só! – comentário nosso). A companhia ressalta que apesar da publicidade negativa, todos os dias cerca de 8 mil pessoas se candidatam para trabalhar na empresa. (Idem)

Como expressão da crise do valor, na medida em que cai a taxa de lucro aos baixíssimos patamares atuais, mais a patronal pressiona pela retirada de direitos, por uma maior submissão do trabalhador, por uma taxa de desemprego ―natural‖ maior. A moral também deve se adaptar, pois, para correr em busca dos difíceis lucros, torna-se preciso a luta de todos contra todos, o individualismo exacerbado, o vale-tudo; tal concepção vai contra a natureza humana e causa suas sequelas mentais. No longo prazo, a falta de concepção cooperativa torna o trabalho insuportável já que uma oculta guerra civil surge nos locais de trabalho. A grande urbanidade trouxe consigo, na forma capitalista, a solidão social. Tal efeito de invisibilidade de um lado traz mais liberdade em potência, menor controle direto dos cidadãos, porém pode ter também efeito contrário ao obrigar o indivíduo a adaptar-se ao meio, a ser nada ou pouco autêntico, ou seja, a construir um ―falso eu‖, um eu adaptativo, para ser aceito. Para sobreviver, deve adaptar-se subjetivamente ao grupo, à empresa. Nos EUA, ficaram famosos os casos em que indivíduos completamente normais, provavelmente portadores de normose (doença da normalidade), de repente lançaram tiros sobre alguma multidão antes de cometerem suicídio. Tais atos violentos são vazios de sentido, não possuem conteúdo, porque foram motivados por vidas vazias de um sentido qualquer.

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No Japão, país simbólico da crise sistêmica em inúmeros sentidos, para dar mais um exemplo, a solidão excessiva, a depressão e o suicídio, junto com duríssimas jornadas, são profundas marcas sociais e, ao mesmo tempo, tabus gerais. O mundo das coisas integra-se e enfeita-se naquele país enquanto o mundo dos homens perde poesia e fragmenta-se. Retomando a questão dos grupos sociais, a tendência da classe média aristocrática é isolar-se, tanto quanto pode sua renda, criar um paraíso artificial que é um inferno para a psique. Dunker expõe:

[…] gente pode entender o condomínio mais além da forma concreta de vida entre muros, como uma espécie de patologia das nossas relações com o outro e com o espaço social, no sentido de que os condomínios [físicos] proliferam no Brasil num momento em que o Estado se demite da função de organizar o espaço público. Ele entrega isso para iniciativas independentes que vão ter muita autonomia para definir quais são as regras e a maneira de habitar aquele espaço que não é mais exatamente público. É uma espécie de concessão. Do outro lado, a gente tem uma certa alteração desse modo de vida dentro do condomínio, na medida em que se força e se cria artificialmente uma vida entre iguais. É uma vida em que você desaprende a lidar com as diferenças. É um berçário para modos muito empobrecedores de estar com o outro, nos deixando vulneráveis ao consumo de álcool e drogas de forma superexagerada, à agressividade e à violência de uma forma disruptiva – como eu não sei lidar com a diferença, ela acaba sendo uma espécie de ofensa à minha existência. Fica-se vulnerável ao tédio, à apatia, ao excesso da relação com o trabalho, a uma espécie de hiperinflação da produtividade. Quando você cria essa vida em condomínio, a vida privada passa a ser um pouco mais gerida por regras do espaço público. Então, a gente tem os clássicos sintomas do sentimento de inautenticidade, do sentimento de esvaziamento, de que você está permanentemente representando uma espécie de papel. (Redação Outras Palavras, 2015)

Entre a camada superior dos ricos, os bilionários em destaque, os verdadeiros donos do mundo, destaca-se a perda de noção da realidade por razão do próprio modo de vida. A falta de tato social da classe dominante na época de sua decadência foi observada por Trotsky, na clássica obra A Revolução Russa, quanto à nobreza durante a revolução francesa e o Czar e a Czarina durante a revolução russa. A existência apartada da minoria dominante mostra a alienação como em si uma vantagem ao polo ―aristocrático‖ das relações sociais. A prova de que o capital é incontrolável até para eles e os domina é que portadores de grandes fortunas preparam-se para o possível fim da civilização com caros abrigos especiais…

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Há entre a maioria, incluso políticos (vide Trump), uma loucura relativa que expressa a loucura da existência atual. A boa parte dessa deformação psíquica não tira das pessoas seu lado funcional, podendo até torná-las muito eficientes do ponto de vista desta sociedade. Gente que foi capaz de bloquear boa parte do desenvolvimento de sua vida emocional em nome da sobrevivência é o exemplo comum. Boa parte dos fatores que produzem o declínio da psique é fácil de extrair da realidade. Lukács, por exemplo, observou o desenvolvimento da manipulação das massas sob o capitalismo atual, uma forte influência sobre a subjetividade. De um lado, o capitalismo precisa vender constantemente a ideia de felicidade plena por via do máximo consumo, do acesso às mercadorias, etc. Por outro lado, o próprio capitalismo frustra as expectativas da maioria. Isso passa para uma armadilha interna ao sistema, pois os assalariados e setores médios querem conquistar a qualidade de vida mostrada nas propagandas por toda parte. Isso, a luta pelo acesso, motiva o revolucionamento total da sociedade. Sabe-se da revolução como uma reação a problemas objetivos como o desemprego. O caldo tem alguns ingredientes adicionais: os protestos revolucionários costumam parecer uma grande festa, como diz Lenin, em seus inícios, uma catarse coletiva, irracional do ponto de vista burguês, porque enfrenta também uma situação desumanizante subjetivamente. A mudança socialista do estilo de vida – menor jornada de trabalho, mais espaços de convivência, seguridade social, acesso aos produtos, etc. – tenderá a atuar contra as diferentes formas de alienação, que pesam sobre as mentalidades, ou seja, facilitará a realização da essência humana (ser integrado, ser mutualista e ser ativo) e oferecerá satisfatórias condições materiais. A crise sistêmica do escravismo produziu, por razões socioeconômicas, o declínio da psique naquela sociedade, aprofundado pelo uso do chumbo (no vinho, nos encanamentos, etc. – quase cometemos esse erro sob o capital). O mesmo ocorreu na crise sistêmica do feudalismo, potencializado pela contradição das novas tendências com a necessidade de repressão religiosa (com efeitos como a ―epidemia da dança‖ na Europa – a revolução freudiana em parte evita que repitamos hoje as mesmas causas). Sob o capital em crise, talvez existam outros fatores ocultos, em si – apenas em si – extrassociais e extraeconômicos, influenciando a crise subjetiva como, talvez, o efeito da mudança climática sobre os humores, a alimentação artificial, etc. Um filósofo vulgar dirá que nossa diferença essencial para com os outros seres vivos ocorre porque somos uma espécie capaz de suicídio… Na verdade, o pensamento oficial nega o fator sistêmico, histórico, da crise psicológica.

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CRISE DA FAMÍLIA MONOGÂMICA

―Pois o nome político do amor não é outro senão socialismo.‖ Frei Betto ―A medida de amar é amar sem medida.‖ Santo Agostinho

Além da inspiração evidente em Engels, este capítulo quase que repete de todo, embora chegue a conclusões diferentes e socialistas, o pensamento da grande sexóloga e psicanalista Regina Navarro Lins; ela recebe menos atenção da parte dos marxistas, ligados aos clássicos e limitados pela literatura estrangeira, do que o merecido por suas elaborações. Sua observação de que o amor romântico está em decadência e há uma substituição progressiva, ainda que lenta, por novas formas de amar é uma importante contribuição, pois demonstra que a instituição família nuclear burguesa está em crise e pode ser substituída por outra família com traços comunitários.

O AMOR CONTRA O CASAMENTO Afirma-se que o amor é social, mas podemos demonstrar, ao contrário, que o amor é, de fato, natural socialmente modificado ou, em principal, reprimido na história. Aliás, tal sentimento foi condenado na prática até recentemente, até a década de 1940, por mais que embelezasse obras de arte. Vejamos um exemplo. Manteve-se viva uma lenda dos índios do Piauí que trata do amor de um índio e uma índia de tribos diferentes; eles se conheceram por acaso, amaram-se e, por causa de tal amor, foram amaldiçoados: um transforma-se em pássaro durante o dia e o outro se transforma em onça durante a noite de modo que eles nunca se reencontram… A partir de nossa mentalidade, do ponto de vista que valoriza o amor, é estranho o resultado desta lição de moral indígena em forma mitológica. É o tipo de estória que demonstra: 1) o amor é natural e 2) foi socialmente negado. Entre os bonobos, espécie mais próxima dos humanos, a fêmea fica meio distante, em rejeição, dos membros do bando quando entra na puberdade e, logo mais, afasta-se para entrar em outro grupo, onde se reproduz88. Esse tipo de atitude tem valor biológico, pois aumenta a variedade genética. Vemos que é uma tendência como no caso lendário dos índios e que os valores sociais podem negar ao máximo a mesma força natural (xenofobia, etc.). A história de Romeu e Julieta serve-nos também de exemplo. É uma lição de moral: seguir os impulsos juvenis, amar alguém de uma família outra e adversária, contra a sabedoria racional dos mais velhos, leva à morte, ao desastre. A ideia de que o clássico do teatro ocidental é algo

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Num filme típico de romance, observei a cena final de um quase casamento da protagonista com o próprio primo, que discursou, causando anticlímax, o fato de se conhecerem desde sempre, cresceram juntos, etc. até que o amor real, recém-conhecido, aparece e salva a noiva do desastre.

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romântico trata-se uma releitura posterior, sob novos olhares89. O texto de William Shakespeare já mostrava uma forte tendência social ao amor individual sexual (por urbanização, etc.) ao mesmo tempo em que mediava com a condenação de sua prática, ou seja, o sucesso ficcional da tragédia expressava um conflito real. Há aí uma contradição entre o homem natural e o homem social, contradição esta que, existente sob diferentes aspectos, será resolvida pelo comunismo, em uma nova relação ainda dinâmica entre os dois polos. Como afirmamos, apenas na década de 1940 o casamento por amor tornou-se prática social comum, aceitável. As críticas sociais do início do século, sob uma base social que se alterava (urbanização, trabalho feminino, etc.), e o fato de as tradições levarem a duas grandes guerras, impulsionaram a uma renovação dos hábitos. Antes, o casamento era de caráter financeiro ou formal, onde o amor ficava fora da equação social em si. Agora, o casamento envolve sentimento mútuo, e isso é – e merece máximo destaque – uma bomba de efeito retardado sobre a instituição familiar atual. Como os sentimentos não são eternos, a base emocional da união do casal pode, e frequentemente irá, ser desmanchada com o passar dos anos, ou seja, o fim do amor sexual pede o fim do casamento, o direito de separação. Enquanto o casório aconteceu por motivos sociais ―racionais‖, ele não entrou em crise, diferente de hoje. Como quase tudo que surge negando o velho e surgindo dele, há um período de transição. Entre o antigo casamento econômico e o amor antifamília tradicional do futuro, há a mediação da busca da realização total e plena por meio da união amorosa, por meio do casamento – o amor romântico. Isso gera uma enorme frustração, uma contradição na vida dos casais. O amar é a negação da rotina enquanto a vida de casal é a rotina completa, por exemplo. Os fatores da crise da família monogâmica serão melhor debatidos a seguir. Até aqui, ficamos com estas observações.

PÍLULA ANTICONCEPCIONAL E OUTRAS MERCADORIAS O desenvolvimento tecnológico é também o desenvolvimento de mercadorias cujos valores de uso possam tornar mais fácil certas tarefas. Em A Revolução Traída, Trotsky afirma que o Estado soviético fez em seus primeiros anos o possível para coletivizar as tarefas domésticas, contra a opressão das mulheres, mas, por exemplo, diante de roupas rasgadas e mal lavadas vindas das lavanderias públicas, baseadas ainda no trabalho manual, os cidadãos passaram a preferir o retorno à atividade doméstica. Hoje, com a máquina de lavar, este problema pode, enfim, ser facilmente resolvido por lavanderias públicas, gratuitas e de qualidade. O desenvolvimento técnico atual permite liberar o tempo das mulheres em relação aos cuidados com a casa. Mas muito mais. Para dar profundidade às mudanças em curso, preferimos citar de modo direto Regina Navarro Lins:

A pílula anticoncepcional é a principal responsável pela mudança radical de comportamento amoroso e sexual observada a partir dos anos 1960. O sexo foi 89

Tomo tal conclusão de uma palestra do historiador Leandro Karnal, que, por sua vez, cita de Michel Foucault. Este registro visa evitar plágio.

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definitivamente dissociado da procriação e aliado ao prazer. A mulher se liberta da angústia da maternidade indesejada e passa a reivindicar o direito de fazer do seu corpo o que bem quiser. O sistema patriarcal entre nós há 5 mil anos, que se apoiou na divisão sexual das tarefas e no controle da fecundidade da mulher – uma mulher tinha quantos filhos o homem quisesse, passando grande parte da vida grávida –, recebe assim um golpe fatal e começa a entrar em declínio. A mulher, a partir de então, passa a ter a possibilidade de não só dividir o poder econômico com o homem, como ter filhos se quiser e quando quiser. As fronteiras entre o masculino e o feminino começam a se dissolver – nada mais interessa ao homem que não interesse à mulher e vice-versa –, atenuando a distinção entre eles, o que é uma precondição para uma sociedade de parceria entre homens e mulheres. (Lins, 2012, p. 216)

É conhecida a relação entre opressão das mulheres e propriedade privada. Quando o homem passou a cultivar e cuidar do gado, dando início ao processo de propriedade privada, percebeu que os machos também influem na capacidade das mulheres de ter filhos. Para controlar quem herdará os seus bens, a sexualidade feminina, e toda sua vida, passa a ser controlada. É isso que entra em crise em nossa época. Regina Navarro Lins (2012) complementa que o automóvel e o telefone foram duas ―ferramentas‖ que facilitaram o encontro livre no século XX. Hoje, observamos com facilidade que a vida sexual pode ser mais plena, mais rica, menos ―fiel‖ (contribuindo para a crise do casamento e da monogamia), por causa da internet – isso tem um valor especial para as mulheres já que os homens sempre foram poligâmicos. A família monogâmica burguesa é atacada por todos os lados. A entrada da força de trabalho feminina é outro destaque que corrói a família monogâmica burguesa. A primeira revolução industrial coloca as mulheres nas fábricas, dando-lhe renda própria e, logo, alguma autonomia. De lá para cá, houve avanços e recuos da participação da mulher no trabalho não domiciliar, porém a tendência do capital se impõe e já são as mulheres uma parte do ―mundo trabalhista‖ indispensável. Ao lado desses fatores,

Somem-se as crescentes dificuldades para impor a fidelidade feminina em uma sociedade que está se urbanizando, no qual os contatos sociais vão se tornando cada vez mais frequentes, e na qual, ainda, a abundância possibilita e requer o desenvolvimento (afetivo e racional, lembremos) das pessoas. (Lessa, Abaixo a família monogâmica!, 2012, p. 71)

Como observamos em outro capítulo, a tendência no socialismo é que se formarão grandes bairros com seus próprios centros, onde tarefas sociais serão guiadas, como a educação comum

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das crianças. Serão formas coletivas – como, provavelmente, restaurantes públicos, etc. – de socializar as tarefas nas quais as mulheres efetuam hoje sua segunda jornada de trabalho.

A NATUREZA DO CIÚME Neste ponto, destacamos o debate sobre se o ciúme é natural ou, ao contrário, social, cultural, condicionado. A resposta desta questão tem consequências práticas para os destinos e as ações de convívio. De imediato, a tese culturalista (idealista) deve ser descartada, pois nenhum tipo de sentimento perdura artificialmente, por mera insistente educação, sem que seja sustentada e estimulada pela própria realidade objetiva (social ou natural). O efeito da cultura, por isso, nada é de primário ou primeiro e é, portanto, secundário, resultado e reforço de uma base que está para além de si. Na tese natural, podemos observar espécies de libélula, onde o macho, após copular, vigia a fêmea para garantir que ela não copule com outros machos; mas isso nada significa, por analogia forçada, que seja o mesmo caso entre humanos. O ciúme é, em primeiro lugar, visto de imediato, algo de fato natural em nossa espécie, e nas demais quando ocorre, porque se trata de um processo físico-químico e biológico, corporal, cerebral. Mas a pura natureza acaba aí. Essencialmente, o ciúme, ao menos entre nós, deriva não de um fato em si mesmo, mas de um contexto – assim, algo social, ambiental. Porque há escassez emocional, relacional, há ciúme romântico. Se todos nós tivéssemos o costume, porque a realidade assim o confirma regularmente, de nos sentirmos desejados, amados, com um ―colchão social‖, etc.; se o medo de perder o amado fosse baixo na medida em que logo encontraremos outro ou teremos, ao menos, certa rede de amizade e vida social bem estabelecida, etc. se, dito de outro modo, tivéssemos a sociabilidade íntima bem desenvolvida típica do socialismo – então, só então, nesta abundância afetiva, além de também e necessariamente material, o ciúme amoroso será algo inexistente ou, quando muito, marginal. O ciúme sexual não existiu em tribos matriarcais ou não monogâmicas porque a comunidade cuidava dos filhos, porque não havia herança, porque a solidão social (e sexual) era baixa, etc. Nesse sentido, mesmo se for algo inteiramente natural, refutando a posição aqui apresentada, tal tipo de sentimento pode ser severamente reduzido, sem nenhum peso que hoje tem, pela forma de autocomposição da sociedade. Um cachorro criado preso dentro de uma casa e totalmente dependente para sua sobrevivência e afetividade será imensamente mais ciumento em relação a outro que pode sair quando quer, convive em grupo com outros de sua espécie, tem alimentação fácil, etc. Pensamos ter medido bem o peso daquilo que é natural e social no ciúme romântico, entre fato e contexto. Portanto, o corrosivo sentimento nunca acabará por uma tomada de consciência (embora tenha sua importância), por instalação forçada de relações amorosas mais livres, etc. Augustos dos Anjos, combinando naturalismo e expressionismo, afirmou: ―O Homem, que, nesta terra miserável,/Mora entre feras, sente inevitável/Necessidade de também ser fera.‖ (Anjos, 2002, p. 103) Porém esqueceu de poetizar, junto, aquela selva que faz tais feras ferozes, se mantemos a metáfora.

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Tentemos resolver, agora, outra oposição.

MATRIARCALISMO OU PATRIARCALISMO? Os períodos de transição possuem suas formas claro-escuro, suas mediações negativas. O isolamento social da alta urbanidade leva a uma dependência emocional dos pais em relação aos filhos, o que pode significar a repressão constante para controle ou a manipulação dos infantes (a opressão sobre os jovens costuma ser pouco destacada). Mas, por outro lado, pode levar ao ―rei bebê‖ mimado, ou seja, certa submissão paternal, algo de nossa época. Assim também, as mulheres podem liderar relacionamentos abusivos contras seus parceiros, acontecimento impossível em outros momentos históricos. São fenômenos transitórios, logo substituídos com o revolucionamento social quando e se o socialismo vencer. As sociedades primitivas foram matriarcais, sem opressão dos homens, a diferença dos iguais depois se transformou em oposição e, em seguida, em contradição entre os sexos com o patriarcalismo. Agora, podemos encontrar nova unidade com o fim da dominação sexual de qualquer tipo, com uma comunhão civilizada dos homens, mulheres e crianças. A separação tornou-se um processo comum e aceitável, até desejável, apesar das disputas por propriedade (aspecto esperado sob relações capitalistas). É possível ter vários namorados durante a vida, há o ―ficar‖ por apenas um dia, temos o ―juntar-se‖ sem casamento, ocorrem festas especiais de separação, etc. Neste aspecto, o mundo mudou para melhor (aqui, contrariamos o típico modo operante dos comunistas que pensam de forma negativa sobre tudo, veem apenas crise e derrota); se as características vigentes não alcançam as vanguardas da revolução sexual dos anos 1960, há que reforçar que eram apenas vanguardas, não fenômenos de massa como hoje. Claro, nem tudo está garantido, pois é uma época de transição que pode trazer resultados positivos ou negativos (novo fanatismo religioso durante a decadência sistêmica final, etc.). Neste tempo, os homens vivem esta fase de diferentes formas, incluso com violência contra a mulher: o feminicídio tende a ter novas causas, como a insegurança do homem machista em relação à maior libertação feminina da parceira. Surge a questão sobre como serão as relações de amor no socialismo avançado. Para tal tentativa de prever, combinamos afirmações de Lessa (2012) e Lins (2012): de um lado, satisfaremos a necessidade de afeto com relações estáveis temporárias com um ou mais parceiros; de outro, ao mesmo tempo, a pulsão sexual é permanente e não dirigida a apenas um único amante, logo teremos a liberdade sexual, sexo casual, longe de ciúmes, controles sobre o amado, etc. Deste modo, serão superadas as angústias dos relacionamentos de nossa época. Ao a sociedade socialista oferecer tempo livre, estabilidade financeira, vida social plena, coletivização de atividades domésticas, etc. a família deixará de ser uma ficção idealizada tal como é hoje ou uma fonte de traumas. Os pais terão como enfim acompanhar o desenvolvimento dos filhos, as uniões estáveis temporárias deixarão de ter aquela pequena guerra civil entre quatro paredes. De certa forma, a luta pelo socialismo também é a luta em defesa da família, de uma nova.

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O DESPOTISMO ESCLARECIDO BURGUÊS […] robustece o domínio do capital, amplia-lhe a base e permite-lhe recrutar sempre novas forças das camadas inferiores da sociedade. O mesmo ocorria na Idade Média: a Igreja Católica formava sua hierarquia com as melhores cabeças do povo, pondo de lado posição, nascimento e fortuna, o que era um dos principais meios de fortalecer o domínio do clero e de subjugar os leigos. Quanto mais uma classe dominante é capaz de acolher em seus quadros os homens mais valiosos das classes dominadas, tanto mais sólido e perigoso é seu domínio. (Marx, O capital 3, 2008, pp. 775, 776) As épocas de decadência possuem suas excentricidades, suas combinações improváveis, suas falsas mediações. Neste capítulo, daremos exemplos de como, diante da época vigente e da possibilidade do socialismo, o mundo do capital procura ser o ―tirano esclarecido‖. Demostraremos a percepção universal por meio de suas particularidades e singularidades. Vamos às observações: 1. O século XX inaugurou a formação de grandes partidos de esquerda, mas, na medida em que negavam, clara ou ocultamente, o marxismo, fundaram o que o centrismo estalinista nomeou frentes populares, uma unidade governamental das organizações de esquerda com a burguesia ―progressista‖, ―democrática‖. Em geral, os governos de frente popular surgem quando há intensa luta de classes, quando beira a possibilidade de um conflito decisivo. Assim, este tipo de governo produz uma ilusão social, como se os trabalhadores já estivessem representados no poder. A presença dos chamados ―partidos operários‖ na gestão do Estado burguês é uma das formas mais claras de despotismo esclarecido. Ocorre a generalização da frente popular, ou seja, de governos burgueses com participação – majoritária ou minoritária – de organismos de luta social e de esquerda. Mesmo governos diretamente dirigidos por organizações burguesas agregam sindicatos ou pequenos partidos de esquerda em sua órbita90 – dito de outra maneira: algum nível de frente populismo costuma estar presente ao administrar o Estado. Essa nova normalidade possui um exemplo intenso no PSUV de Chavez com sua retórica ―socialista‖ e medidas governamentais na Venezuela, onde um partido patronal com programa semi-bonapartista91 agrega o grosso do movimento de massas; o

90 Interessante observar que no Brasil, logo após a redemocratização, o presidente de direita Collor de Melo impulsionou a “Força Sindical”. 91 A incompreensão quanto à natureza do chavismo não se deve sempre ou apenas à baixa formação teórica. Após o processo revolucionário desprovido de organização política revolucionária; apoiado nas forças armadas e usando mecanismos de democracia burguesa – à semelhança do Luís

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verniz vermelho do governo é reação à revolução incompleta naquele país, modo de adquirir apoio das massas radicalizadas. Evo da Bolívia, também com vestimentas ―socialistas‖, e Syriza da Grécia são exemplos. No mesmo sentido, inúmeros partidos burgueses usam o termo socialismo em suas propagandas. Diante dos efeitos do período iniciado com a crise de 2008, a eleição presidencial nos EUA (2016, 2020) tornou-se simbólica ao ter um pré-candidato do Partido Democrata, Bernie Sanders, verbalmente radicalizado pela esquerda. Outro caso merece destaque: a esquerdização da Igreja Católica com o Papa Francisco após a renúncia do ultraconservador Bento XVI. A Igreja precisou relocalizar-se diante da crise mundial de modo, de um lado, a atrair novos fieis e, de outro, servir ao capital como contenção ao crescimento da esquerda marxista, desviando o ativismo para a instituição no lugar de irem ao partido revolucionário. Por isso pensaram uma figura pública sob medida com o ineditismo de ser um latino-americano e um franciscano; suas vestes simples e seu discurso são uma peça de propaganda central. Ingressa em tal lista o uso de figuras públicas que supostamente encarnam setores oprimidos (negros, mulheres, operários, etc.) em cargos de destaque. Eis outra armadilha que se combina com o conceito aparentemente progressivo de empoderamento. A função política é também psicológica, pois visa causar empatia dos setores populares com o suposto representante. A escolha do partido Democrata nos EUA do candidato e presidente Obama é apenas o caso mais famoso, por ser no centro do império, como reação burguesa à crise de 2008, de um inimigo da classe trabalhadora que simula identidade com as minorias e a maioria da população. Ainda neste ponto, devemos incluir a ditadura na China. O PC chinês só tem de comunista o seu nome, pois é formado por burocratas estatais que precisam de cargos e da negação da democracia socialista, ou mesmo a burguesa, para manter seus privilégios. Uma organização oportunista nunca é comunista mesmo quando dirige um Estado que, até a década de 1970, tinha elementos socialistas. Após restaurar o capitalismo, o PC tenta manter o controle do movimento de massas com uso da simbologia de esquerda – uma farsa após a tragédia. Lembremos que a ditadura militar no Brasil permitiu a existência de dois partidos oficiais com eleições enquanto a ditadura na China faz, p. ex., uma assembleia que nada de fato decide. O poder real, o poder das armas incluso, está sob domínio do capitalista PCC.

Bonaparte de Marx, 18 Brumário –, o regime de Estado liderado por Chavez, bonapartismo semiparlamentar, parte de um bonapartismo em país atrasado, não imperial, e durante a decadência do capitalismo, quando o socialismo é possibilidade oculta e latente. A LIT e, depois, a UIT foram praticamente as únicas organizações a perceber a essência do fenômeno e a denunciar a farsa.

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2. Com a alta concentração urbana somada à precarização, a democracia burguesa é o regime principal com longa duração em muitos países. Não raro, a classe dominante prefere golpes ―institucionais‖ a militares ou fascistas (embora não descarte as diferentes táticas). O ideal burguês e seu projeto originário é a democracia grega da qual faziam parte a classe dominante e homens livres. As circunstâncias históricas levaram os donos da propriedade privada a ceder, tão devagar quanto possível, o voto aos trabalhadores e às mulheres. O voto universal é um resultado da luta de classes e, ao mesmo tempo, uma forma de disfarçar a guerra na sociedade. Como o imperialismo está em decadência enquanto expressão da decadência do sistema, pensa-se duas vezes hoje se o império apoiará ou não um golpe para implementar uma ditadura. Vários regimes fechados têm enfrentado a decadência social interna em seus países com realinhamento na geopolítica mundial ou, ao menos, com alguma autonomia maior, retardando ou amortecendo suas crises e preservando o governo, o regime e o Estado – isso é possível porque os regimes são mais estáveis, incluso com maior autonomia em relação às classes, incluindo a burguesia mundial. Em democracias burguesas pode-se manipular com mais facilidade as lideranças, trocá-las, etc. Daí os golpes ―leves‖, que não mudam totalmente a organização estatal. Outro fator é o tema da corrupção. O imperialismo e a burguesia têm usado tal pauta necessária e correta para manipulações em disputas políticas e comerciais. Vazam-se escândalos tanto reais quanto fictícios para ganhar a subjetividade da população, implementar projetos, golpes brandos, privatizações, destruir – ao menos a imagem de – empresas concorrentes, etc. A guerra de informação ganhou muito relevo em nosso tempo. 3. O imperialismo ―apoia‖ revoluções temendo que cresçam por demasiado, tirem novas conclusões, implementem o socialismo; enfim, teme a independente reorganização revolucionária da classe, da vanguarda e da sociedade. O império sabe da inevitabilidade das revoltas, então tenta desviá-las para a democracia burguesa, para a direção com líderes duvidosos, etc. 4. Há o que Trotsky nomeia bonapartismo Sui Generis nos países atrasados quando um governo como o de Perón na Argentina coloca-se contra um imperialismo, ainda que seja submisso a outro império, e, para manter-se no poder, usa o movimento de massas ativo de modo ―progressista‖. O bonapartismo Sui Generis, ao ganhar autonomia relativa e ao colocar-se formalmente acima das classes, usa o movimento de massas para pressionar as classes proprietárias. 5. Foram introduzidos métodos como participação nos lucros e resultados, estímulo aos funcionários a obterem pequenas ações da corporação onde trabalham, eleição de representantes

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ao comitê executivo da empresa, concursos internos para subir de cargos, etc. Outro exemplo: o grande capital estimula a formação de empresas cooperativas de trabalhadores para comprar peças ou dispor de serviços. No Estado, surgiram iniciativas como o orçamento popular. 6. Sindicatos e partidos de esquerda estão altamente institucionalizados, adaptados, integrados ao Estado burguês. São organismos burgueses da classe trabalhadora, organismos frente populistas. Sindicatos são convidados a participarem de conselhos, comissões e organismos patronais, participam na gestão de empresas e do Estado. Muitas empresas obrigam seus funcionários a se filiarem às suas representações sindicais. Portanto, a tarefa é tanto ganhar sindicatos como, na primeira oportunidade, modificá-los92. Em situações revolucionárias, parte significativa destes, em geral a maioria, além dos partidos de esquerda, estará do outro lado da trincheira. Leiamos sobre: ―A partir daí, os capitalistas japoneses desencadearam uma feroz repressão ao movimento sindical combativo e impuseram uma estrutura sindical totalmente controlada e atrelada às empresas: sindicatos por local de trabalho, que participam da gestão das empresas num regime de colaboração, partindo do princípio de que cada empresa é, antes de mais nada, uma família…‖ (Costa, Neto, & Souza, 2009, p. 118)

Na crise mundial de 2008, o governo dos EUA salvou as empresas da falência e deu aos sindicatos parte do controle acionário adquirido. A revolução de 1918 na Alemanha fez com que o governo frente populista da social democracia alemã estatizasse os nascentes conselhos (soviets) operários naquele país para tirá-los o caráter de poder alternativo. A mesma tática foi usada pelo chavismo na Venezuela quando a revolução formou as comunas. Se houver condições, será uma manobra usual contra embriões de poder socialista durante as próximas revoluções sociais.

92 Vale recordar que os bolcheviques tinham baixo peso nos sindicatos durante a revolução de outubro; os mencheviques eram maioria nesses organismos. Ou seja, o calor dos fatos pedirá organismos novos e alternativos de luta e poder, que podem ser impulsionados, mas não criados artificialmente pelos revolucionários. A revolução boliviana (1952) pôde quebrar esta lógica mais do que qualquer outro país, por ter naquele momento um movimento sindical novo, ainda não estatizado, baixo peso do estalinismo, concentrada classe operária e relativamente nova, além do impulso trotskista à COB, central sindical, operária e popular daquele país. Enfim, o processo revolucionário exige, entre outras coisas, enfretamento físico contra a burocracia sindical, o pelego, e de outro, o erguimento de novos organismos sindicais independentes (não se trata, porém, de sindicatos vermelhos), junto à renovação dos existentes, e por fora do Estado Operário – como um dos mecanismos antiburocratização deste.

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Esses são os fatores importantes observados; não há dúvida de que existem outros93 na realidade ou ainda por surgir (orçamento participativo, etc.). Podemos extrair deles uma primeira conclusão sobre o futuro: apresenta-se lei histórica antecipar certas tendências de nova organização social de modo invertido e mediador da luta de classes. Assim, o escravismo romano em decadência fundou a Igreja Católica ao abraçar a religiosidade dos escravos; o feudalismo conheceu o despotismo esclarecido diante do crescimento das bases burguesas da sociedade e o capitalismo, por sua vez, antecipa a gestão dos trabalhadores nas empresas e no Estado, a democracia socialista, mas de modo a negar o futuro latente. Para fins de analogia, algo semelhante aconteceu na escravidão brasileira quando leis artificiais e falsas na prática antecipavam a abolição e expressavam sua tendência embora fossem formas de negar o abolicionismo. Em resumo, o despotismo esclarecido antecipa, por falsificação, uma tendência real. O aspecto geral do despotismo esclarecido burguês pode ser assim resumido: envolvimento da não-burguesia nas superestruturas objetivas (Estado, direção de empresas, pequenas ações financeiras, partido, sindicatos etc.) e ações sobre os sentidos da superestrutura subjetiva (valores, moral, percepção da sociedade etc.), com dois objetivos: 1) estimular a passividade frente ao poder burguês; 2) estimular a produtividade. O despotismo esclarecido atual forma uma ficção social. A burguesia pode não reconhecer uma luta geral latente, mas por muito

93 Exemplo: “No México, os sindicatos transformaram-se por lei em instituições semi-estatais e assumiram, por isso, um caráter semitotalitário. Segundo os legisladores, a estatização dos sindicatos fez-se em benefício dos interesses dos operários, para lhes assegurar certa influência na vida econômica e governamental. Mas enquanto o imperialismo estrangeiro dominar o estado nacional e puder, com a ajuda de forças reacionárias internas, derrubar a instável democracia e substituí-la por uma ditadura fascista declarada, a legislação sindical pode transformar-se facilmente numa ferramenta da ditadura imperialista.” *…+ “A nacionalização das estradas de ferro e dos campos petrolíferos no México não tem, certamente, nada a ver com o socialismo. É uma medida de capitalismo de estado, num país atrasado, que busca desse modo defender-se, por um lado do imperialismo estrangeiro e por outro de seu próprio proletariado. A administração das estradas de ferro, campos petrolíferos etc., sob controle das organizações operárias, não tem nada a ver com o controle operário da indústria, porque em última instância a administração se faz por meio da burocracia trabalhista, que é independente dos operários, mas que depende totalmente do estado burguês. Essa medida tem, por parte da classe dominante, o objetivo de disciplinar a classe operária fazendo-a trabalhar mais a serviço dos "interesses comuns" do Estado, que superficialmente parecem coincidir com os da própria classe operaria. Na realidade, a tarefa da burguesia consiste em liquidar os sindicatos como organismos da luta de classes e substituí-los pela burocracia, como organismos de dominação dos operários pelo estado burguês. Em tais condições, a tarefa da vanguarda revolucionária consiste em empreender a luta pela total independência dos sindicatos e pela criação de um verdadeiro controle operário sobre a atual burocracia sindical, que foi transformada em administração das estradas de ferro, das empresas petrolíferas e outras.” (Trotsky, Os Sindicatos na Época da Decadência Imperialista, grifos nossos.)

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percebe a constância das lutas parciais, que representam um transtorno em si ao capital e são manifestações inconstantes de processos em gestação. O despotismo esclarecido burguês faz parecer com que o Estado e as demais relações de poder tenham um duplo caráter, burguês e operário, capitalista e socialista. Mas é de todo falso. Diferente das transições sistêmicas anteriores, a revolução socialista trata de destruir o Estado e demais superestruturas enquanto ferramentas de poder de uma classe sobre outra; precisa, então, de uma ferramenta paralela, outro aparato estatal capaz de expressar a nova sociedade e, com seu avanço, definhar-se94. Se os operários podem hoje eleger um membro para o executivo de uma empresa95, amanhã exigirão a eleição de toda a diretoria com salários limitados e cargos revogáveis a qualquer momento por meio de assembleias gerais regulares onde a base tratará dos assuntos centrais da gestão.

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Dissemos em outro capítulo que o Estado garante, hoje, artificialmente a existência do capitalismo. Em certa medida, inclui o despotismo esclarecido burguês. Cumpre notar, quanto ao tema da artificialidade, que deve ser diferenciado, embora possam estar misturados aqui e ali: 1) a aceleração do desenvolvimento capitalista pelo Estado – como a construção de hidrelétricas ou grandes investimentos arriscados e custosos que a burguesia é incapaz de promover logo; 2) a manutenção sistêmica forçada – aqui entra projetos como o de renda mínima (bolsa família, etc.), que retardam a explosão social e a dissolução desta sociedade. 95 Em casos especiais, em estatais principalmente, pode haver eleições de toda diretoria por meio do voto dos funcionários. Em possíveis casos como esses, que serão exceção, os comunistas devem afirmar que a democracia representativa, ao modo da democracia burguesa, a eleição periódica de representantes, é insuficiente, logo exigimos a democracia operária, direta e participativa na gestão da empresa.

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CRISE DO ESTADO BURGUÊS

Marx e Engels avançaram da concepção de que o Estado burguês deveria ser tomado pela revolução para, desde a Comuna de Paris, mesmo desde a ditadura de Luís Bonaparte, a conclusão de que o processo revolucionário precisa destruir o aparelho burocrático e fundar outro em novas bases. A tese deste capítulo parte de tal consideração, mas afirma que o próprio sistema capitalista, antes, corrói sua instituição central, ou seja, dá parte das condições para superar a atual forma de poder. Vejamos as considerações, reconhecíveis por qualquer observador de nossa época, que nos permitem concluir a crise estrutural da superestrutura estatal. 1. O primeiro elemento ocorre nas finanças de todos os países de alguma forma centrais para a revolução. As dívidas públicas são colossais – importante forma de capital fictício – em relação ao PIB (ver gráficos abaixo) para enfrentar as crises e para manter serviços mínimos ao funcionamento da sociedade muito urbanizada. Tal processo contínuo e crescente de endividamento opera várias mudanças, como a necessidade de aumentar os impostos sobre os de baixo e cortar direitos sociais. Antes, no alvorecer do capital, a dívida pública foi meio de impulso ao capitalismo, dívida esta que era compensada pelas altas taxas de crescimento; hoje, ao contrário, é uma forma de gerir, adiar e prolongar a decadência do sistema. GRÁFICO 20 – JAPÃO

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GRÁFICO 21 - EUA

GRÁFICO 22 – UNIÃO EUROPEIA96

2. Por causa da queda da taxa de lucro e a necessidade de disputar com outros países o destino do capital, ocorre a necessidade de reduzir impostos sobre os ricos e aumentar sobre os trabalhadores e as classes médias, além de cortar direitos. Em outro capítulo, tratamos da crise sob o lado da população, e fomos algo que naturalmente impulsionados a tratar do Estado e dos impostos. Nas crises sistêmicas do escravismo e do feudalismo ocorreram o aumento dos impostos, o aumento do setor improdutivo do aparelho estatal e, como transição feudal ao capitalismo, o incremento de dívida

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Fonte dos três últimos gráficos: (DÍVIDA PÚBLICA % PIB - LISTA DE PAÍSES)

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pública. Seria um método equivocado inferir mecanicamente que este também seria o caso da crise sistêmica do capitalismo (que, tomemos rápida nota, tem mais semelhanças no seu modus operandi com a crise do modo de vida escravista para o feudalista). Mas também nada significa, de antemão, que seja algo incomparável ou não análogo, por isso deve ser confrontado e verificado. O Estado burguês, com seu desenvolvimento alto de uma burocracia política e administrativa, dependente do aparelho, com o governo portador de certo grau relativo de autonomia em relação às classes, incluso em relação àquela ao qual representa, pode mesmo obrigar o aumento dos impostos sobre os ricos, além de sobre os trabalhadores. Se os patrões deixam de investir porque o grau de monopólio é alto e a taxa de lucro está excessivamente baixa, o aparelho de poder central pode forçar investimento tributando lucros; porém, aí, reduz o desemprego, o que pode reduzir os lucros com o aumento de salário – crise conjuntural e aprofundamento da crise sistêmica, estrutural; porém alimenta a já grande quantidade, crônica em tendência, de capital na sociedade – crise; porém, se faz uma renda básica aos mais pobres, enfraquece o chicote invisível do desemprego – crise; porém os mais ricos se reorganizarão, em nome de sua suposta liberdade de lucro, sobre a política – crises políticas; porém o lucro real cairá com maior taxação – crise estrutural alimentada. Há uma contradição imanente entre a necessária manutenção de um Estado burguês capaz, forte, e as necessidades de lucro no ocaso do capital. Os estados escravistas e feudalistas tributaram ainda mais sua classe dominante quando e enquanto caminhavam, inconscientemente, para seu fim; o Estado capitalista passará por crises num ciclo vicioso sobre qual política adotar – veja-se a diferença gritante entre Trump e Biden em tal matéria nos EUA, entre neoliberais e Ciro Gomes no Brasil. Um fortalecimento estatal já não é um fortalecimento real do sistema, e vice-versa; a crise retroalimenta-se. O dilema é irremovível sob as bases atuais do capitalismo, em sua fase tardia, exigindo uma solução nova, completa, o Estado operário. 3. Há o surgimento e a consolidação de grandes empresas no setor militar, públicas e privadas, desde mercenários à fabricação de componentes de guerra. Neste sentido, longe de imaginar o futuro de imensos centros produtivos e serviços militares privados e estatais lucrativos, Maquiavel, o grande teórico da política e do Estado, observa:

De forma que, se um rei não ordenar as coisas de modo que seus infantes em tempos de paz estejam contentes em voltar para casa e viver de suas artes, sucede necessariamente que se arruíne, porque não há infantaria mais perigosa do que aquela composta por soldados que fazem a guerra por arte; porque força o rei ou a promover

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sempre mais guerra, ou a lhes pagar sempre, ou a viver sob o perigo de lhe tomarem o reino. Promover a guerra sempre não é possível, não se pode lhes pagar, eis então que necessariamente se corre o perigo de perder o estado. (Maquiavel, 2013, p. 36)

A citação ganha profundidade imensa em nossa época, muito acima da esperada pelo grande pensador italiano. A guerra tende, cada vez mais, a se tornar um fim em si mesmo na medida em que é fonte de lucro, de consumo e de reconstruções (ação de empresas da construção civil no país destruído). Vejamos o caso mais famoso:

Há hoje entre 100 mil e 130 mil "soldados privados", termo preferido pelas companhias que os empregam, em ação na guerra, a maioria em atividades ligadas a segurança e defesa. O total é quase o equivalente aos 145 mil soldados norte-americanos atualmente no país. "Estima-se que US$0,40 de cada dólar destinado ao Iraque pelo contribuinte americano pare nas mãos de uma empresa de segurança privada", disse a democrata Jan Schakowsky, da Comissão de Inteligência da Câmara dos Representantes. Desde que assumiu o controle do Congresso, em janeiro, a oposição investiga o assunto. (Dávila, 2007)

A matéria continua:

Nele, o jornalista liberal relata palestra que Prince deu em 2006 numa convenção militar na Califórnia, em que o empresário chama a Blackwater de "o Fedex dos Exércitos": "Quando você tem pressa, não usa o correio normal, mas o Fedex. Nossa meta é ser o equivalente para o aparato de segurança nacional." Procurada pela Folha, a Blackwater não quis falar. Segundo o conservador "Wall Street Journal", Prince foi um dos maiores doadores da campanha do presidente, e sua empresa tem perto de US$ 800 milhões em contratos com o atual governo. Mas há outras, como a USIS, subdivisão do Carlyle Group, que já teve Bush pai e filho no conselho. (Idem.)

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Para financiar a guerra, o Estado precisa, com frequência, endividar-se como foi o caso dos EUA nas suas duas guerras no Oriente Médio. Eis um fator adicional sobre a dívida pública enquanto elemento da crise estrutural da superestrutura estatal. Nas fases anteriores do capitalismo, as empresas militares ainda eram não grandes o bastante, pois se tratava da época de livre concorrência. O gigantismo das atuais empresas impulsiona uma influência maior sobre os Estados. 4. Ocorre a transformação de países em protetorados vide Portugal em relação à Alemanha, França e União Europeia. Perder o poder de emissão da moeda e a menor autonomia econômica pesam sobre vários Estados. Também há o fator tecnológico como, por exemplo, depender de satélites de poucos países para ter acesso aos aspectos modernos (veja-se que mísseis guiados tornam-se dependentes de aparelhos de outras nações). 5. A privatização das empresas estatais e de serviços públicos é uma reação burguesa à queda da taxa de lucro. O neoliberalismo revela-se, assim, sinal da crise do sistema e dos limites em si nacionais do desenvolvimento. A perda de capital público reduz as fontes de renda do Estado, além de obrigá-lo a contratar serviços privados, e diminui a ação reguladora estatal sobre a sociedade. GRÁFICO 23

Fonte: (Pikett, 2014, p. 243)

Nestas condições, os keynesianos reclamam alarmados, com algum instinto de época, que o Estado é atacado pelas políticas neoliberais. Por isso, em oposição um tanto desesperada, pedem

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novo empoderamento estatal para salvar o capitalismo, para gerar novo equilíbrio social. Tais economistas e políticos olham para o passado, ao melhor estilo da pequena burguesia, querem inverter o tempo histórico. Neles, há a intuição de que o aparelho estatal é deteriorado, mas deixam de ver a tendência como tendência, ou seja, o devir é percebido apenas enquanto más escolhas governamentais. O limite classista de suas visões os impedem de tirar todas as conclusões necessárias. 6. Empresas parasitam o aparelho estatal ao oferecer serviços, o que inclui a corrupção. 7. O capital especulativo ganhou autonomia com o desenvolvimento tecnológico. O investimento feito em um país pode ser retirado para outro com poucos comandos de computador. A impossibilidade de um governo mundial unificado que controle o capital torna o problema irresolvível sob bases capitalistas. 8. A altíssima urbanização facilita e potencializa as revoluções. Ademais, exige mais do Estado. São razões que acenam para o projeto da construção de um Estado superior, socialista. Em resumo, a lógica do capital alcança o patamar em que corrói sua própria ferramenta de poder. A crise orgânica realiza-se com a crise revolucionária, que possibilita a mudança qualitativa da sociedade. É preciso distinguir aqui, como no conjunto desta obra, em sua unidade, os aspectos conjunturais dos estruturais: apenas em situações específicas, em conjunturas especiais, o Estado burguês pode ser superado; já em nível estrutural a superestrutura passa por um processo mais ou menos oculto, perceptível pela teoria, de aprofundamento das condições de sua superação. A crise estrutural do Estado dá condições para a sua plena crise de conjuntura, que muda a estrutura da sociedade. Em resumo, cada era do capital, em geral, impõe uma consequência, ainda que com atraso, sobre o Estado: a era do capital mercantil dá duplo caráter ao Estado feudal, que adquire traços burgueses – a polêmica, a oposição, sobre se o Estado feudal em seu fim era apenas feudalista ou tinha duplo caráter, também capitalista, é resolvido pela observação de que no caráter duplo um polo é o determinante, neste caso, o polo do feudalismo; a era do capital industrial funda o comitê geral dos negócios da burguesa, o Estado burguês; o imperialismo, expressão da terceira era, financeira e monopolista, tende ao controle mais direto da classe dominante sobre a sua superestrutura; a quarta era é marcada, enfim, pela crise estrutural da principal ferramenta classista.

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SYRIZA, PODEMOS, PSOL: O QUE É UM PARTIDO ANTICAPITALISTA A esperança vinda da Grécia (2015) tem levado a esquerda a imensos debates e diferentes interpretações; pela primeira vez, um partido da ―esquerda renovada‖ chega ao poder de Estado. Qual o significado disso? Neste capítulo, apresentaremos algumas teses sobre a natureza dos chamados partidos anticapitalistas, que têm gerado esperanças entre ativistas e trabalhadores. AS BASES MATERIAIS Toda organização política é uma superestrutura gerada pelas relações da sociedade. Devemos, portanto, buscar na dinâmica social a ordem, a base e as influências que permitem a existência de novas superestruturas. Enumeraremos o que, a nosso ver, consideradas as conclusões expostas neste livro, serviu e ainda serve de combustível para os organismos que estamos estudando – três elementos são centrais: 1. A queda do muro de Berlim e dos ex-Estados operários proporcionou um enorme recuo nas ideologias socialistas, na consciência das massas e da vanguarda militante; 2. A enorme urbanização consolidou a urbanidade em nível planetário. É um fator determinante para o surgimento de uma imensa massa assalariada não-operária, de uma sub-classe de desempregados, de uma numérica classe média empobrecida97. Por outro lado, por automação e fragmentação do processo produtivo e diminuição nos países centrais, além de afastamento das fábricas dos principais ambientes urbanos, a classe dos produtores – os operários – foi, em inúmeros países, reduzida e/ou fragilizada; 3. A principal tática do imperialismo para perpetuar sua ordem tem sido o – e a ideologia do – valor universal do voto e da democracia representativa. Chamamos reação democrática, ou seja: apostar primeiramente em eleições, em plebiscitos, em constituintes ao invés da repressão, do golpe ou da invasão.

97 Ruy Braga, um dos defensores do termo “precariado” – uma tautologia na medida em que ser do proletariado é, em geral, ser precarizado, mesmo incluindo os assalariados não operários neste conceito – afirma: “Tendo em vista a composição social do movimento, não é estranho que suas lideranças sejam cientistas sociais da Universidade Complutense de Madri, tais como Pablo Iglesias, recém-eleito deputado europeu, e Íñigo Errejón, coordenador-geral da campanha do partido para o parlamento europeu. Da crise de financiamento das universidades às condições degradantes do mercado de trabalho, uma geração de estudantes que trabalham e trabalhadores que estudam tem estimulado o diálogo das ciências sociais com públicos extra-acadêmicos.” (Braga, 2014)

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São os principais elementos da origem dos anticapitalistas. Neles há a fonte da utópica proposta "radicalização da democracia". É a mesma antiga relação da vantagem instintiva do campesinato, quer seja, o número. Os setores oprimidos não-operários são uma enorme massa urbana e sua força viria, portanto, pela quantidade e não pela qualidade enquanto classe. Um partido que expresse este desejo inevitavelmente surge (somos 99%, gritavam os protestos). As organizações desse tipo são, então, pequeno-burguesas, urbanas e tendem a ser a expressão também do ―precariado‖ não-operário. A escassez de verdadeiros proletários em todas as suas instâncias internas tem por fonte as relações acima colocadas mais uma: construir-se nas fábricas é difícil e exige enfrentar sindicatos muito fortes e conservadores, burocratizados. O peso militante no movimento e, em geral, nos organismos tradicionais de luta é baixo98. Por este ponto de vista, na orientação organizativa, justificamos a valorização da liberdade individual e formal dos militantes, as tendências por dissolver em outros os agrupamentos internos, o fracionamento em permanência99, a propaganda de uma esquerda renovada e sem recorte de classe muito definido. A valorização da atuação enquanto partido político tem este norte claro: mostrar-se como uma saída eleitoral progressista em um mundo decadente. Por outro lado, vemos com clareza um

98 Syriza, com influência eleitoral de massas e principal organização anticapitalista, fica muito atrás do PC grego quanto ao peso sindical que, por sua vez, não é majoritário: “Na Grécia, o partido comunista se destaca por sua dinâmica suis generis. Ao contrário da grande maioria dos PCs europeus, que ao longo dos anos 1990 se alinharam à socialdemocracia moderada, o KKE fez um caminho de sentido inverso. Ao mesmo tempo, manteve importante peso político e social em seu país. Nas eleições de 2015, conquistaram 5.5% dos votos, um resultado dentro da média do partido ao longo dos últimos 15 anos. De longe a maior corrente da extrema esquerda no movimento sindical, o KKE tem localização privilegiada até mesmo no setor privado. Organizou a principal greve metalúrgica ocorrida em Atenas nos últimos anos, que em 2012 parou o setor por nove meses. Ele também é muito maior que o Syriza entre os estudantes. (LOUNTOS, 2015)” *…+ “Apesar de possuírem 10 dos 45 assentos da direção da confederação sindical nacional, o KKE não é a maior força do movimento sindical no país. Os dois partidos tradicionais do regime democrático, o PASOK e o Nova Democracia, são historicamente as organizações majoritárias, não só do sindicalismo, mas da vida social grega.” (Sauda, 2015) 99 A existência permanente de grupos expressa a heterogeneidade das classes médias politicamente, indiretamente, representadas dentro das correntes internas. Do mesmo modo, a busca por líderes políticos ligados à pequena burguesia – economistas, intelectuais, etc. – para a formação de governos frente-populistas é análogo à formação de frentes populares em torno de líderes operários, ou seja, a ideia de que sua base social tem um governo “seu” e expressa, ao mesmo tempo, o desejo de elevar-se socialmente por parte dos setores médios. Uma forma de expressão de “crescer e mudar por meio da educação”. Estas organizações podem também, com o aprofundamento da crise, sob certas circunstâncias, elevar líderes do proletariado ao posto de principal figura pública caso isto facilite a via eleitoral.

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foco especial entre os anticapitalistas nas – importantes – palavras de ordem democráticas. Há quatro razões fundamentais:

1.

Vivemos uma fase histórica onde o capitalismo não pode promover estáveis e profundas reformas. Por isso, Syriza boicotou o resultado do plebiscito (2015) – ―Não‖ contra a chantagem da UE – que ele próprio ganhou (!)100;

2.

O ideal democratizante é uma alternativa às ideias socializantes desde o enfraquecimento das ideologias igualitaristas na década de 1990;

3.

Muitas reformas democráticas são viáveis e até positivas ao capital. Legalizar a maconha, por exemplo, pode ser uma nova fonte de lucro e impostos;

4.

Uma parte da classe média e dos militantes de esquerda desta classe necessitam, para si, mais de direitos democratizantes já que possuem alguma estabilidade social e econômica. Defendem, por isso, o tipo de direito – na aparência – "individual", do indivíduo: ao aborto, ao uso da maconha, a mais mecanismos de voto, etc.

Partidos como o Syriza e o Podemos, com dirigentes profissionais liberais e pequenoburgueses, dos setores aristocráticos das classes médias (advogados, professores universitários, economistas, etc.), expressam, em larga medida, a origem popular, entre o burguês e o operário, de sua vanguarda e de seus militantes. Inclui o seguinte: um setor social mais letrado do que as gerações passadas, não-proletária (operariado), mais instável socialmente e uma parcela mais jovem. Base social do reformismo e do centrismo, os servidores públicos, também muito presentes entre os anticapitalistas, são classe média assalariada precária ou aristocrática a depender da qualidade de vida. Explorados e oprimidos, mas não produzem valor, não possuem um trabalho necessariamente coletivo nem manual. Inconscientemente, o interesse de classe dos trabalhadores do Estado é fortalecer o Estado Burguês como forma de também fortalecer suas condições de

100 Isto é ainda mais intenso se considerarmos que palavras de ordem mais profundas como “Sair do Euro” e “Sair da União Europeia” são, em si, democráticas e apenas potencialmente – sob certas circunstâncias – transicionais (se, mais provável, agregadas a outras propostas classistas e transicionais).

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trabalho e de vida101. O interesse estratégico dos operários é tomar as fábricas (não as destruir) – para isso, precisam destruir o Estado. Ao contrário, esse não é por si mesmo um interesse estratégico dos servidores públicos, por isso também pertencem à classe média. Nas últimas décadas, tivemos um fenômeno novo: altíssima urbanização. Isso obriga o Estado a criar um corpo muito maior de assalariados ao seu dispor com o mínimo recurso possível destinado aos salários e demais direitos; diferente da Rússia de 1917, com suas únicas duas grandes cidades, uma massa enorme de precários surge. Como setor intermediário, esses assalariados têm duplo caráter, comum aos setores da classe média102: de um lado, são mal pagos, subordinados, humilhados e sofrem alto stress; de outro, seus trabalhos ajudam na administração e manutenção da ordem, livram-se do trabalho fabril. Um exemplo: a função estratégica do professor é implantar a ideologia, o método, a visão e a disciplina burguesa na mente e nos hábitos do alunado – e isso ele faz sem o saber, sem o desejar. O professor cumpre uma tarefa de dominação burguesa e ideológica, de adestramento e repressão mentais. No fundo, nada muito diferente de um policial, embora a educação seja importantíssima. No capitalismo, a educação 101 Base material para uma esquerda keynesiana. Em específico sobre estatismo, Engels comenta: “E digo que tem de tomar a seu cargo, pois a nacionalização só representará um progresso econômico, um passo adiante para a conquista pela sociedade de todas as forças produtivas, embora essa medida seja levada a cabo pelo Estado atual, quando os meios de produção ou de transporte superarem já efetivamente os marcos diretores de urna sociedade anônima, quando, portanto, a medida da nacionalização já for economicamente inevitável. Contudo, recentemente, desde que Bismarck empreendeu o caminho da nacionalização, surgiu uma espécie ~e falso socialismo, que degenera de quando em vez num tipo especial de socialismo, submisso e servil, que em todo ato de nacionalização, mesmo nos adotados por Bismarck, vã uma medida socialista. Se a nacionalização da indústria do fumo fosse socialismo, seria necessário inclui, Napoleão e Metternich entre os fundadores do socialismo. Quando o Estado belga, por motivos políticos e financeiros perfeitamente vulgares decidiu construir por sua conta as principais linhas térreas do pais, eu quando Bismarck, sem que nenhuma necessidade econômica o levasse a isso, nacionalizou as linhas mais importantes da rede ferroviária da Prússia, pura e simplesmente para assim poder manejá-las e aproveitá-las melhor em caso de guerra, para converter o pessoal das ferrovias em gado eleitoral submisso ao Governo e, sobretudo, para encontrar uma nova fonte de rendas isenta de fiscalização pelo Parlamento, todas essas medidas não tinham, nem direta nem Indiretamente, nem consciente nem inconscientemente, nada de socialistas. De outro modo, seria necessário também classificar entre as instituições socialistas a Real Companhia de Comércio Marítimo, a Real Manufatura de Porcelanas e até os alfaiates do exército, sem esquecer a nacionalização dos prostíbulos, proposta muito seriamente, ai por volta do ano 34, sob Frederico Guilherme III, por um homem muito esperto.” (Engels, Do Socialismo Utópico ao Socialismo Cientifico, 2003) A propriedade pública é progressiva em relação à privada, pois desmistifica a “intocabilidade” desta última, mas nada tem de socialismo ou “administração operária e democrática da empresa”. Sob relações capitalista, a propriedade estatal é capitalista e tanto a é mais quanto mais busca o D-M-D’, o lucro. 102 Os marxismos sociológico (portanto, amputado e parcial) e sindicalista consideram quase todos os assalariados proletários ou operários. Mais importante que definir um objeto é compreendê-lo; de qualquer modo, localizá-los como um setor diferente do da produção é a mínima precisão conceitual aceitável, tolerável; porque senão transforma-se num debate de conceitos, lógico-formal, de dicionário, de definição pura.

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será sempre ou quase sempre burguesa, a serviço da burguesia. De imediato, apenas a classe operária e seu partido podem ganhá-los para outro caminho, para outro Estado. No campo estratégico e teórico-prático, por generalização, podemos expressar a questão do Estado nas diferentes classes: 1. Concepção burguesa: o Estado é uma ferramenta da e para toda a sociedade, contanto e sempre que respeite e promova a propriedade privada; 2. Concepção da pequena burguesia proprietária e aristocrática: A pequena burguesia resiste contra qualquer intervenção do Estado, registo e controlo tanto capitalista de Estado como socialista de Estado. Isso é um facto da realidade absolutamente indiscutível, em cuja incompreensão reside a raiz de toda uma série de erros econômicos.

(Lenin, 2012)

Contra qualquer intervenção estatal – impostos, direitos trabalhistas, empresas, etc. –, pois atrapalham a livre iniciativa e a propriedade privada. 3. Concepção da classe média: o Estado pode ser pressionado e gerido para este ou aquele rumo, sua função deve ser gerar e manter um equilíbrio das classes ao gerar qualidade de vida, por meio de governos e decisões progressivos, pois é uma ferramenta mais ou menos neutra, a ser disputada; 4. Concepção proletária: o Estado é uma ferramenta de dominação de uma classe sobre outra, sua essência são as forças armadas, para isso procura manobrar por meio da dominação, antes de tudo, ideológica a fim de servir ao seu caráter de classe inerente. Deve, portanto, ser destruído. Pode haver, aqui e ali, concepções intermediárias e intermediadas no entremundos ou de influência de uma classe sobre outra103. Mas estas são as concepções gerais a guiar todos os pensamentos particulares e partidos, ou seja, tem materialista origem de classe.

103 O centrismo é um exemplo ao, sendo reformista, adotar aspectos do bolchevismo. No mais, a tendência centrista tende a ser um fenômeno mais presente com a crise mundial, radicalizando correntes políticas e formando novas, entre a concepção do reformismo e a revolucionária. Outro exemplo é a concepção do lupemproletariado em defesa da liberdade individual total, prazer imediato, não organização, não critérios etc. Jovens e parte da pequena burguesia podem ter mais simpatia por tais concepções – base de parte do anarquismo.

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PARTIDOS FRENTE-POPULISTAS Um partido revolucionário pode, via classe operária, ser o representante fiel dos precários não-operários e urbanos. Como ocorria com o antigo setor popular, o campesinato, são uma massa fluida e disputável. Por este eixo, queremos apresentar três categorias de partidos de esquerda, sem anular outras categorizações: 1. Partidos frente-populistas. São organizações que, de uma forma ou outra, clara ou disfarçadamente, dizem aos trabalhadores que a mudança vem pelo voto ou outro meio que não seja a destruição violenta do Estado burguês. Os "anticapitalistas" são um exemplo; podemos agregar os reformistas, os centristas (costumam ser as alas minoritárias no fenômeno que aqui descrevemos 104), os neo-estalinistas, os chavistas etc. 104 “Quando se oscila à esquerda e afasta as massas do reformismo, o centrismo cumpre uma função progressiva; não falta dizer que isso não nos impedirá, chegado o caso, de continuar denunciando a hipocrisia do centrismo, já que a galinha progressiva acabará abandonada, cedo ou tarde, nas margens do lago. Quando, por outra parte, o centrismo trata de distanciar os operários dos objetivos comunistas para facilitar – sob a máscara da autonomia – sua evolução ao reformismo, cumpre uma tarefa que já não é progressiva e sim reacionária. Esse é, na atualidade, o papel que desempenha o Comitê pela Independência Sindical.” "Mas, essas são quase as mesmas palavras empregadas pelos estalinistas", repetirá Chambelland; já o escreveu. Seria inútil perguntar quem desenvolve uma luta mais séria e implacável contra a política mentirosa dos estalinistas: o grupo de Chambelland ou a Oposição Internacional de Esquerda comunista. Todavia, um fato é certo: a orientação de nossa luta é diametralmente oposta à da "luta" dos "autonomistas", porque nós seguimos a trilha marxista, enquanto que Chambelland e seus amigos seguem a trilha reformista. Com certeza não o fazem conscientemente: jamais! Porém, por regra geral, o centrismo nunca segue uma política consciente. Acaso uma galinha consciente se sentaria para chocar ovos de pato? Claro que não.” “Em tal caso – poder-se-ia perguntar –, como se pode acusar de centrismo a dois antípodas como Chambelland e Monmousseau? Entretanto, isso somente pode parecer paradoxo a quem não compreende a natureza paradoxal do centrismo: nunca é igual a si mesmo e nem se reconhece no espelho, ainda que bata o nariz contra o mesmo.” (Trotsky, O que é Centrismo?, 2005) "Lembremo-nos quantas vezes os marxistas foram acusados de atribuir os fenômenos multiformes e contraditórios à pequena burguesia. E efetivamente, sob a categoria de "pequena burguesia", é preciso que se inscrevam fatos, idéias e tendências que, à primeira vista, são incompatíveis. Possuem um caráter pequeno-burguês o movimento camponês e o movimento radical na reforma comunal; os jacobinos pequeno-burgueses franceses e populistas (narodniki) russos; os proudhobianos pequeno- burgueses; os anarossindicalistas franceses, o "Exército da Salvação", o movimento de Gandhi na Índia etc. Um quadro ainda mais variado se apresenta se passarmos para o domínio da filosofia e da arte. Isto quer dizer que o marxismo brinque com a terminologia? Não, isso quer dizer apenas que a pequena burguesia é caracterizada por uma heterogeneidade em sua natureza social. Embaixo ela se confunde com o proletariado e passa para o lupem-proletariado; no alto, ela se estende à burguesia capitalista. Pode apoiar-se nas antigas

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2. Os revolucionários. Aqueles que veem a derrubada do Estado por meio de uma revolução como saída. 3. As seitas. Organizações ultra-esquerdistas, sectárias, auto-proclamatórias, anarquistas pós-modernos; que desprezam a política como mediação, como caminho, entre o real e o ideal, etc. SÍNTESE Podemos resumir o fenômeno dos partidos anticapitalistas assim: 1. Partidos frente-populistas; 2. Filhos da consolidação da atual sociedade capitalista surgida na década de 1970; 3. Representam as numerosas classes médias urbanas com maiores tendências, por razão da decadência capitalista, à esquerdização 105; 4. Representam os anseios dos setores populares urbanos pelo instinto do número, pelo voto;

formas produtivas, mas pode depressa desenvolver-se também na base da indústria mais moderna (novas classes médias). Não é de se admirar que se enfeite ideologicamente com todas as cores do arco-íris. O centrismo no meio do movimento operário representa, num certo sentido, o mesmo papel que a ideologia pequeno-burguesa de qualquer espécie representa em relação à sociedade burguesa em geral. O centrismo reflete os processos de evolução do proletariado, o seu desenvolvimento político, assim como sua decadência revolucionária, ligada à pressão exercida sobre o proletariado por todas as outras classes da sociedade. Não é de se admirar que a querela do centrismo se distinga por tal variedade de cores! (...) é indispensável descobrir, por meio da análise social histórica concreta, a natureza real do centrismo da espécie em questão." (Trotsky, Revolução e contrarrevolução na Alemanha, 2011) 105 A “classe média assalariada e precária” não estava clara e perceptível para Trotsky, sendo ele quem melhor expôs o que é a moderna classe média: "Os principais efetivos do fascismo continuam a ser constituídos pela pequena-burguesia e pela nova classe média que se formou: pequenos artesãos e empregados do comércio nas cidades, funcionários, empregados técnicos, intelectuais, camponeses arruinados [...] mil operários de uma grande empresa representam uma força maior do que a de um milhar de funcionários, de escrivães, contando com suas esposas e sogras". (Trotsky, Revolução e contrarrevolução na Alemanha, 2011, pp. 45, 46) "[A burguesia] conseguiu submeter, nos quadros da democracia formal, não só a antiga pequena burguesia, mas também, em medida considerável, o proletariado. Para isso, se serviu da nova pequena-burguesia – a burocracia operária". (Idem, p. 284)

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5. Apoiam-se na ideologia capitalista do sufrágio universal; 6. Possuem baixo peso operário; 7. Frágil relação orgânica com os movimentos e os organismos de mobilização (sindicatos, etc.); 8. Reúnem em si certas características "de luta", "de combate" por causa da decadência social, pela fluidez das camadas médias que representam e para canalizar a indignação em direção ao voto; 9. Privilegiam algumas pautas democráticas – do direito do "indivíduo" – para representar sua base, sua ideologia e por o capitalismo não permitir reformas de outro tipo. A extrema-esquerda eleitoral, os anticapitalistas, é a expressão oposta – do ponto de vista reformista e parlamentarista – da chamada extrema-direita eleitoral. Esta última, burguesa, procura aglutinar as camadas médias urbanas mais favorecidas, enriquecidas e, através delas, influenciar as camadas mais pobres, precarizadas e até o voto proletário. Assim como os revolucionários podem participar de partidos frente-populistas por um curto tempo, organizações fascistas podem compor partidos de direita ou de extrema-direita eleitoral por um período mais ou menos longo. Os partidos anticapitalistas são, assim, uma versão nova do reformismo clássico.

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CRÍTICA AO REGIME LENINISTA PROPOSTO POR MORENO

―A história de nossa corrente é a história de seus erros.‖ N. Moreno ―Não podemos aprender a resolver os problemas de hoje pelos novos métodos se a experiência de ontem não nos abriu os olhos para ver onde foi que estavam errados os antigos métodos.‖ Lenin ―O primeiro dever de um revolucionário é criticar seus dirigentes.‖ Lenin ―Disciplina é liberdade.‖ Renato Russo Como organizamos a democracia e o centralismo partidários em cada conjuntura? Como estes dois elementos existem em cada momento político? Estas são as indagações presentes nas entrelinhas deste capítulo. Aqui, dividiremos com o leitor uma critica à concepção morenista de regime bolchevique, contrapondo-a à de Leon Trotsky no fundamental. Para que se desarme, de já, qualquer desconfiança, sugerimos as seguintes conclusões preliminares: a) como explanaremos, Moreno ao mesmo tempo acertou e errou; b) elaborou um regime partidário conjuntural, temporário, sem atentar-se para as mudanças possíveis; c) o autor deste artigo é morenista e absorve deste revolucionário, o maior trotskista depois de Trotsky, um princípio: d) nunca dogmatizar os mestres e o marxismo. A REALIDADE DE NAHUEL MORENO O primeiro passo é contextualizar a situação. No pós-II Guerra o trotskismo era um movimento marginal sob a ameaça constante de degeneração ou, pior, de desaparecer. Ao contrário daquilo que Trotsky prognosticara, o stalinismo tornou-se uma potência no movimento de massas mundial. Deste período, mesmo as novas revoluções socialistas atrapalhavam um trabalho de fato comunista; vejamos: a) a base social dessas revoluções era camponesa, enquanto o trotskismo é uma corrente tipicamente operária; b) desde o princípio, surgiram sob a mão

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repressora,

antidemocracia

operária,

das

burocracias

estatais.

Estes

elementos

pendiam objetivamente para o desaparecimento completo do trotskismo. Martín Hernandez, veterano trosko-morenista, relata: Lembro-me quando, em 1968, entrei no PRT – La Verdad da Argentina, que era dirigido por Nahuel Moreno, o maior dirigente trotskista do pós-guerra. O partido, após 25 anos de atuação e depois de ter sido protagonista de grandes acontecimentos da luta de classes, como ter dirigido a grande greve metalúrgica de Buenos Aires, tinha somente 200 militantes. Da mesma forma, no Peru, apesar de ter dirigido a revolução agrária na década de 1960 e de ter em nossas fileiras Hugo Blanco, o maior dirigente de massas do trotskismo da época, nosso partido nunca teve mais do que 30 militantes. Nunca me esqueço do informe que recebi, poucos meses após ter começado a militar, sobre as forças da IV Internacional. Nosso partido era um dos maiores. Na França, tínhamos 30 militantes; na Espanha e em Portugal, nenhum. No Brasil e na Venezuela, tínhamos alguns contatos; na Colômbia e na América Central, nada. E, em 1976 (após a derrota do imperialismo no Vietnã), na Itália, ganhamos para a tendência bolchevique um grupo de estudantes secundaristas. E me lembro, como se fosse hoje, da dura discussão que Moreno teve com aqueles jovens, pois eles queriam ir militar na classe operária italiana e Moreno, que sempre teve a obsessão de inserir nossos partidos e grupos na classe operária, após longas discussões, convenceu-os a não irem para o movimento operário. Seu argumento foi muito simples: ―Vocês ainda são muito débeis e se forem para a classe operária o stalinismo vai acabar com vocês.‖ O PC italiano tinha, naquela época, um milhão de filiados e controlava, com mão de ferro, todo o movimento operário. (Hernández, 2015)

A duríssima dificuldade exposta é chave para compreendermos a atualização do regime partidário proposta por Moreno. Um projeto partidário, com sua forma organizativa, sendo uma superestrutura, deve ser explicada a partir da realidade que a forma. Para isso, precisamos recordar que, com a revolução cubana, o imperialismo patrocinou ditaduras militares por toda a América Latina, tradicional base territorial do trotskismo bárbaro (morenismo). Inevitavelmente, agregou-se mais um importante elemento impeditivo. Este tipo hostil de situação alimenta características exóticas, de seitas, nos partidos – e voltam-se para dentro de si. Segundo Cannon, relatando a clandestinidade vivida pelo PC americano: ―O movimento permaneceu ilegal desde 1919 até o começo de 1922 depois que o primeiro choque das perseguições passou e os grupos e células se acostumaram a sua existência ilegal, os elementos na direção que tendiam ao irrealismo ganharam força,

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tanto e quanto o movimento estava então completamente isolado da vida pública e das organizações operárias do país. Então, eu, por minha parte, me dei conta pela primeira vez do completo mau da enfermidade do ultra-esquerdismo. Parece ser uma lei peculiar que quanto maior é o isolamento de um partido da vida do movimento operário, quanto menor é o contato que tem com o movimento de massas, e quanto menor é a correção que este pode exercer sobre o partido, tanto mais radicais se tornam suas formulações, seus programas, etc. (…) Vocês vêm, não custava nada ser ultra-radical porque de qualquer maneira ninguém lhe prestava atenção. Não tínhamos reuniões públicas, não tínhamos que falar aos operários ou ver quais eram suas reações à nossas consignas. Assim, os que gritavam mais forte em nossas reuniões fechadas se converteram em mais e mais dominantes na direção do movimento. A fraseologia do "radicalismo" teve seu dia de festa. Os anos iniciais do movimento comunista neste país estiveram mais que consagrados ao ultra-esquerdismo. […] O movimento teve uma vida interna muito intensa, até porque estava isolado e voltado para si mesmo. As disputas fracionais eram ferozes e largamente extenuantes.‖ (Cannon, 2006, grifo nosso)

COMO MORENO REAGIU O que apresentamos levou Moreno a precaver-se das tendências degenerativas nos partidos. No fundamental, propôs: a) proibir a possibilidade de frações e tendências em períodos não pré-congressuais; b) legalizar a possibilidade de fracionamento para meses antes do congresso partidário. Podemos deduzir que a fórmula proposta pelo argentino é útil para partidos clandestinos e muito minoritários ao girar a organização para fora de si; porém, esta é uma verdade em parte. Queremos demonstrar ao leitor o caráter antidialético da proposta deste marxista. Por isso, finalmente, vamos à defesa dele, nas ―Teses Para Atualização do Programa de Transição‖: Não pode existir democracia sem direitos para as tendências e as frações. Mas este é um direito excepcional porque o surgimento de tendências e fracções é uma desgraça para um partido centralizado para a ação. A discussão permanente em todos os órgãos partidários é a mais grande ferramenta de elaboração política para um partido trotskista. O partido deve viver discutindo sistematicamente. Tem que confrontar experiências individuais ou de organismos distintos e setores de trabalho distintos para que através do choque e da discussão surja una linha correta, a melhor resultante. Porém esta virtude da discussão permanente se transforma no oposto quando um partido vive discutindo permanentemente desde grupos organizados em frações e tendências, e

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muito mais ainda se estas sobrevivem através do tempo (aqui notamos a real origem de sua preocupação – comentário do autor). Quando isto ocorre, as frações deixam de sêlo para converter-se em camarilhas. O partido deixa de atuar em forma unitária para e rumo ao movimento de massas para voltar-se para dentro, se paralisa, cria um ambiente parlamentário de polémica permanente e inevitavelmente deixa de atuar de forma unitária e passa a ter como atividade principal a discussão, isto é, deixa de atuar principalmente no movimento de massas. A discussão é um meio fundamental e decisivo para nossa atividade, mas: só um meio. A existência de frações e tendências permanentes transformam a discussão num fim em si e não num meio do centralismo e da ação unida frente ao movimento de massas. (Moreno, TESIS XXXVIII - El carácter de nuestro partido y de nuestra internacional, 2001, grifos nossos)

Nahuel Moreno inverteu a causalidade. A origem do fracionamento permanente era, como nos indicaram as citações de Cannon e Martín, a permanente tendência à marginalização, a fragilidade interna – não o direito estatutário de fracionamento. Ainda assim, o argumento da Tese encontraria algum acordo em Trotsky? Não. Para este, a simples possibilidade de existir tendências e frações era, em si, uma necessária forma de pressão e controle da base sobre a direção e, por consequência, um mecanismo antiburocrático. Diz Leon: Naturalmente, grupos, assim como diferenças de opinião são um mal. Mas esse mal é uma parte necessária do desenvolvimento dialético do partido, assim como as toxinas o são na vida do organismo humano. A transformação dos grupos em frações organizadas e fechadas é um mal muito maior. A arte de dirigir o partido consiste precisamente em prevenir tal desenvolvimento. É impossível chegar a tal ponto pela mera proibição. […] Porque a tarefa não consiste em proibir frações, mas em evitá-las. (Trotsky, Stalin, o grande organizador de derrotas, 2010, p. 202, grifo nosso)

Como lemos, para Trotsky é o inverso. A contradição apresenta-se como parte inerente da realidade, incluso a de um partido revolucionário. Negar a contradição apenas muda ou camufla seu caráter. A possibilidade de um corpo dirigente sofrer reclamações da base, de perder a direção, de se desmoralizar é – por si mesma – um recurso democrático, um controle, um estado de alerta; além de abrir espaço para que políticas erradas e irrealistas possam ser corrigidas. Sequer precisa uma luta interna existir de fato: basta existir o mecanismo, o meio, uma pressão subjetiva sobre os dirigentes. Porém Moreno enfraquece a democracia vertical, da base para direção, e mantém a horizontal, dentro dos organismos.

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A DIALÉTICA DO REGIME Ao mesmo tempo, há um acerto no erro de Moreno. Precisou adaptar o regime partidário às duríssimas

condições

em

que

militara.

Ou

seja,

a

proposta

dele

seria

correta

apenas conjunturalmente, nunca em permanência. Com o regime partidário que propunha, ocorreu exato o que ele temia: “Assim evitaremos o grave perigo de criar movimentos trotskistas com influência de massas que, chegado o momento da ação, vejam-se anárquicos e incapazes de atuar com a centralização e disciplina de um exército revolucionário.” (Moreno, TESIS XXXVIII - El carácter de nuestro partido y de nuestra internacional, 2001) Entretanto, foi isso de fato o que ocorreu com o MAS da Argentina, criado por Nahuel, após adquirir influência de massas. Tal conclusão também desconsidera a histórica do partido bolchevique, que teve frações e verdadeiras rebeliões internas ao longo do processo revolucionário iniciado em 1917. A tendência geral da matéria é ir do simples ao complexo. Complexidade é, necessariamente e inclusive, acúmulo maior de contradições e de diferenças internas. Assim também acontece com partidos. Quando são marginais e sob ditaduras, precisam de uma forma do regime; quando estão sob democracia burguesa, quando possuem influência de massas ou de vanguarda, quando são inexperientes, etc. precisam mudar a forma de se organizar, senão estagnam ou implodem. Podemos formular, regra geral, o seguinte: quando a realidade e o partido estão mais complexos, então o regime partidário deverá, também, tornar-se mais complexo. De modo sugestivo, Moreno descreve a realidade para justificar o afrouxamento da democracia interna nos partidos: Todos os nossos partidos e nossa Internacional em seu conjunto reivindicam orgulhosos, como seu exemplo, a estrutura do Partido Bolchevique. Isso significa que consideramos que nosso partido tem que estar formado por revolucionários professionais por um lado e que deve ter um regime centralista democrático por o outro. Reivindicamos mais que nunca o centralismo como a obrigação número um de todo partido trotskista. Em esta época revolucionária o trotskismo é perseguido implacavelmente, não só pelo estado burguês, os partidos burgueses e os bandos fascistas, senão também pelos partidos oportunistas, os quais com toda razão nos consideram seus inimigos mortais. Além do mais, nossos partidos se constroem para levar a cabo a luta armada pela tomada do poder, a insurreição. Este supremo objetivo só poderemos alcançar com uma rígida disciplina, cuja única garantia é o centralismo e uma dedicação que só pode ter os militantes profissionais. (Idem, grifo nosso.)

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Mais uma vez, citaremos Trotsky contra Nahuel Moreno. Ao afirmar o caráter temporário e excepcional, quando na fase final da guerra civil na URSS, da proibição de frações no partido Bolchevique; o fundador do Exército Vermelho explica: Mas a decisão do X Congresso do partido sobre frações ou grupos, que mesmo então precisava de interpretação e aplicação jurídica, não é em caso algum um princípio absoluto que está acima de todas as necessidades do desenvolvimento partidário, independente do país, da situação e do momento. (Trotsky, Stalin, o grande organizador de derrotas, 2010)

E critica o stalinismo, que impôs sua fórmula a todos os partidos da IC: Um partido novo representando um organismo político em completo estágio embrionário, sem nenhum contato real com as massas, sem experiência de direção revolucionária, sem formação teórica, já foi dos pés à cabeça com todos os atributos da ―ordem revolucionária‖, ficando parecido com um menino de seis anos de idade que usa a armadura de cavaleiro do pai. […] Sem uma verdadeira liberdade na vida partidária, liberdade de discussão e liberdade de estabelecer seu rumo coletivamente, através de agrupamentos, esses partidos nunca se tornarão uma força revolucionária decisiva. (Idem, p. 206, 207, grifo nosso.)

Centralismo e democracia são polos internos, necessários, opostos, complementares e devese evitar o distanciamento um do outro ou um excessivo domínio contraditório de um sobre o outro, e vice-versa. No partido, o centralismo é uma reação à barbárie capitalista e necessidade de enfrentá-la; a democracia representa a necessidade do futuro, da desalienação e seu desejo, um leve sintoma do comunismo. O capitalismo costuma empurrar-nos mais para a tendência centralista, com a burocratização; no socialismo, a organização partidária, por outro lado, será cada vez mais democrática, frouxa, aberta, pois tenderá ao completo desparecimento em uma sociedade comunista; por hoje, ambos são completamente necessários, sendo a democracia partidária o polo determinante. Os fins justificam os meios, mas nem todo meio é válido (ou não em todas as situações). A democracia partidária não é nem pode ser uma concessão da direção para sua base, senão, do contrário, tratar-se-á de um ―estalinismo esclarecido‖, uma forma de falsa democracia partidária. Todos os partidos estalinistas adotam o centralismo; apenas partidos revolucionários procuram

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preservar em suas organizações a superioridade da democracia interna bolchevique, polo determinante do centralismo-democrático106. Assim: Centralismo burocrático = supremacia do centralismo, resquícios e aparência de democracia como aplicação do centralismo. È proibido a formação de frações, tendências e grupos de opinião; os dirigentes não são eleitos pela base, desde uma disputa política, com cargos revogáveis. Burocratismo não centralista = estabelece-se uma direção partidária dotada de privilégios (parlamentares, audiência, recursos, etc.) enquanto as estruturas de base fragmentam-se em democratismos, liberdade individual sobre a coletiva, indisciplina, lutas fracionais permanentes, organismos de base para intermináveis debates, etc. Centralismo democrático = supremacia da democracia, centralismo como aplicação da democracia. Frações, tendências e grupos de opinião temporários para fins de disputa política e de cargos; dirigentes eleitos pela base com cargos revogáveis. O centralismo democrático evita cair nos dois polos de um mesmo erro. CONSEQUÊNCIAS De forma preliminar, queremos escandir algumas consequências. Na medida em que um partido torna permanente a proposta morenista, ocorre: 1.

Com a escassez de polêmica, atrasa-se a formação dos militantes e quadros;

2.

À medida em que a organização cresce, organismo dirigente tende a ter autonomia,

desloca-se em relação a sua base; 3.

A partir do segundo ponto, é mais difícil a base controlar a direção;

4.

Torna-se difícil perceber os erros e suas consequências na medida em que faltam meios

para expressar polêmicas; 6.

As contradições inevitavelmente acumulam-se, tomando forma fracional;

7.

Via de regra, por causa da proibição, as frações/tendências já surgem deformadas: na

forma de disputas por cargos, frações de direção, grupos de amigos-militantes, reuniões informais, frações secretas;

106 Apesar de seus erros na aplicação e teorização do centralismo democrático, Moreno soube perceber que a grande diferença dos reais comunistas para com resto da esquerda é a defesa intransigente da democracia operária nos sindicatos, nos partidos operários e nos Estados operários.

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8.

No campo psicológico, os militantes movem-se por fé, não por confiar na democracia

interna; teme-se polêmicas; consideram toda diferença como divisão do partido; a direção desenvolve arrogância e desconfia da base; 9.

Surge a tendência a cometer mais erros políticos, com dificuldade de corrigi-los;

10. Ao impedir a existência de válvulas de escape, ocorrem rupturas, à esquerda e à direita, por indivíduos e por grupos, em relação à posição oficial. Em síntese, o partido vive um permanente ciclo crescimento-crise-ruptura. Por isso, tende a estagnar em um tamanho estável. Em 2014, o congresso da LIT, fundada por Moreno nesta concepção estática de centralismo democrático, reconheceu uma lei de seus partidos: frágil relação, em ciclos, de crescimento-crise-ruptura das suas organizações. Percebeu-se uma ―lei‖, mas a direção da internacional foi incapaz de saber o motivo, que parte do problema é a concepção de regime limitada107. Para guiarmos os pontos acima; Leon Trotsky explica que, nos momentos mais decisivos, a direção é sempre muito mais vacilante que a base: ―As bases do partido proletário são, por sua própria natureza, muito menos suscetíveis à pressão da opinião pública burguesa. Mas certos membros do topo e camadas médias do partido irão infalivelmente sucumbir em maior ou menor medida ao terror material e ideológico da burguesia no momento decisivo. Não levar a sério esse perigo é não saber lidar com ele. Não há, é claro, fórmula mágica contra isso que sirva em todos os casos. Mas o primeiro passo necessário para lutar contra um perigo é entender sua origem e sua natureza‖ (Idem, p. 163).

Apresentamos ao leitor algumas perguntas. Se há possibilidade de agrupamentos internos apenas próximo aos congressos, então como os grupos conseguirão formar-se já que estes disporão de pouquíssimo tempo para reunir membros e amadurecer ideias? Como a base efetuará algum controle sobre os dirigentes? Como, em caso de grave erro, militantes conseguirão acionar 1/3 das regionais para convocação de um congresso extraordinário? Como evitarão que a direção adie congressos? Em partidos pequenos estas perguntas/contradições podem ser resolvidas com alguma facilidade, mas a situação muda quando crescem.

107

Para que se evite pensar o problema do regime interno como causa única e mãe de todas as soluções, destacamos, em nossa avaliação, uma das razões: os partidos da LIT são formados por estudantes e setores médios (funcionários públicos, etc.), crescendo dentro de tais camadas sociais, gerando permanente desencaixe entre programa e perfil social dos seus membros.

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Ao mesmo tempo, precisa-se evitar fracionalismos de todos os tipos. Um partido pequeníssimo – constituído de uma única regional com 20 ou 30 membros – suporta, por exemplo, boletins individuais com opiniões e propostas vindas da base. Porém, o mesmo não serve a um partido com 3.000 membros, pois este viraria um clube de debate e papéis; neste caso, a possibilidade de agrupamentos é a alternativa saudável (deve-se negar proibir documentos individuais, pode-se estimular a formação de grupos; pois é sinal de problema imensamente mais profundo, acumulado por longo período no subterrâneo, que surja um mar de boletins internos antes de um congresso). Já em um partido com influência de massas como o Bolchevique a partir de 1917/8, pode-se, como ocorreu, publicitar polêmicas e propostas em espaços específicos da imprensa partidária. São exemplificações para nos guiar a reflexão. Se, por outro lado, um partido de vanguarda tem alta contradição interna, caso de uma luta fracional prolongada, pode adotar aspectos de um partido grande ao divulgar suas polêmicas aos simpatizantes. O nível teórico da base, a experiência prática geral, a cultura nacional, a conjuntura, o tamanho do território onde existe, a composição de classe dos membros108, etc.: todos estes elementos ajudam ou atrapalham, consciente ou inconscientemente. Para perceber e corrigir, uma compreensão correta, dialética, do regime leninista faz total diferença. A INTERNACIONAL Em 1971, no congresso da IV Internacional, Mandel acusou Moreno de proibir grupos internos. Este, sem demora, percebendo a tentativa de desmoralização, respondeu aquilo que expomos: pode-se nos períodos pré-congressuais. Independente disso, o fundador da LIT explica sobre o regime do partido mundial e suas seções: ―Nós estamos construindo a mais formidável arma organizativa revolucionária que tem conhecido a historia: um partido mundial bolchevique. Em este processo de construção do partido se impõe, para esta etapa, fortificar o polo democrático e não centralista, justamente porque nossas direções, tanto nacionais como internacionais, todavia não tem ganhado um grande prestígio político ante as bases de nossas sessões por seus

108 Parte desse debate inclui a presença de militantes que trabalham para os sindicatos ou o partido e mandatos parlamentares. Não há espaço para debatermos este ponto como se deveria. Parte da degeneração de organizações, esses funcionários dos aparatos têm seu nível de vida e emprego – e mesmo seu prestígio pessoal – dependente se o partido no qual militam dirige ou não aquele sindicato, onde trabalha, se o parlamentar revolucionário (no terreno do inimigo) se reelege ou não etc. Vemos que é um setor, por mais honesta sua intenção, tendente a degenerar-se e degenerar uma organização comunista em centrismo ou reformismo. Vetar que tenha direitos a cargos dirigentes e de direção política e também acima das direções intermediárias, além de três anos de aspirância (com deveres, mas sem direitos, como a de voto interno) são contrapressões mínimas necessárias. Retomaremos brevemente este assunto no próximo capítulo.

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êxitos na direção do movimento de massas. Só esse prestígio poderia fortalecer o polo centralista e disciplinado; portanto, deve primar o aspecto democrático.‖ (Moreno, ¿Partido mandelista o partido leninista?, 2001)

A citação acima poderia ser muito bem usada para afirmar que o regime de partido tal qual Moreno propõe vai contra as necessidades partidárias. Se o polo democrático deve ser o mais forte, então o estatuto da organização deve corresponder à observação. Também encontramos uma singularidade. No texto há a valorização do aspecto psicológico, subjetivo, do regime: o centralismo será maior quanto maior for a moral da direção; e o mesmo ao contrário. Porém, sendo importante, este elemento é relativo, auxiliar. Se o prestígio facilita o caminho, a democracia interna é uma necessidade absoluta tanto quanto o centralismo. Ou seja, claras garantias – mesmo aparenciais, estatutárias – de democracia são vitais; do contrário, congressos, reuniões, boletins, debates e autocríticas serão nada mais que manobras para dar algum verniz não-estalinista aos dirigentes. Incluso em nível internacional, uma direção mundial qualificada e testada deve permitir às direções nacionais produzir suas próprias políticas e testá-las na prática, pois apenas assim ocorrerá o amadurecimento de equipes dignas de situações revolucionárias. Exemplifiquemos com a própria história de Moreno. Por suas posições minoritárias, sua corrente ficaria fora da IV Internacional quando do início de sua atuação, após a II Guerra; mas uma nova proposta do SWP criou os partidos simpatizantes ao lado dos partidos oficiais do mesmo país, no caso, da Argentina. Em seguida, Pablo, principal dirigente, tenta fechar o regime interno e organizar uma fração secreta contra o SWP, sua oposição interna; a reação desta corrente, ao lado de Moreno, permite uma luta fracional que desemborca em ruptura – e isto preserva o acúmulo programático, prático e teórico da corrente. Após a revolução cubana, há uma reunificação das correntes trotskystas; Moreno participa do processo para não ficar isolado internacionalmente, a partir das garantias de sua existência política como tendência – tendo organizado, em seguida, rebeliões internas. Sua experiência em tendências e frações até aqui se lhe revelou novos problemas e novos acúmulos. A capitulação final do principal dirigente do SU, Secretariado Unificado, Ernest Mandel, expressando seu centrismo ao colocar-se contra a defesa da brigada trotskysta Simón Bolivar, na Nicarágua, gera uma ruptura internacional. Isto abre caminho para a Fração Trotskysta, de Nahuel Moreno, tornar-se a LIT. O que percebemos, como balanço geral: a possibilidade de Nahuel Moreno, desde o princípio, organizar-se em tendências e frações, permitiu: 1) manutenção da democracia interna, do debate; 2) ruptura e reorganização caso houvesse degeneração; 3) educação acelerada; 4) evitar o isolamento. Não

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teria avançado se o regime da IV fosse igual ao regime que propunha aos partidos de sua fração e as internacionais que dirigiu. Este balançou faltou-lhe. Das afirmações concluímos a defesa de um regime semelhante em um partido mundial, com um adendo: por razões de convivência e espaço, parece mais difícil a articulação de frações e tendências internacionais. Ter em conta esta dificuldade já nos ajuda. O PARTIDO E O SOCIALISMO A revolução socialista deverá fundar uma democracia superior à democracia burguesa. O pluripartidarismo, a organização de apartidários e a formação de correntes por pautas setoriais (meio ambiente, transporte, etc.) farão parte das disputas dentro do novo poder. Entretanto, ainda que surja a possibilidade de frentes revolucionárias, como a dos Bolcheviques com os Socialistas Revolucionários de Esquerda em 1917, a tendência é um grande partido comunista ser a direção reconhecida das massas para a tomada de poder. Surge, então, a pergunta: como evitar a fusão do partido e do Estado? O debate apresentado será foco de outro capítulo; aqui discutimos a questão partidária dentro do tema. Uma organização com influência de massas no socialismo manter-se-á viva do ponto de vista organizativo se permitir a formação temporária e a qualquer instante de partidos dentro do partido na forma de tendências, frações, grupos de opinião e debates públicos. Assim, a democracia partidária reforçará a nova democracia estatal; eventualmente, as polêmicas serão base para rupturas e formação de novas organizações. Mais uma vez, percebemos os limites de proposta fixa, à revelia de inúmeros fatores, do regime leninista proposto por Moreno.

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REFLEXÕES SOBRE O PARTIDO COMUNISTA As observações abaixo partem das características gerais dos partidos comunistas em nossa conjuntura: organizações de vanguarda, inexperientes, de baixo peso operário e sob democracias burguesas decadentes. Os problemas levantados aqui tenderão a permanecer nos organismos citados mesmo com mudanças desde 2008, pois as superestruturas são conservadoras. Feita a apreciação, avancemos. O PERFIL MILITANTE É comum que os membros dos partidos comunistas sejam os melhores lutadores nos movimentos sociais. Mas isso faz deles apenas os mais dedicados, o melhores dentro dos limites da luta de classes sob o capital. O partido revolucionário, enquanto não é de massas, deve ter membros acima dos postos de meros soldados, todos devem ser capacitados oficiais. A organização precisa estar pronta para crescer de um perfil de vanguarda para, por saltos e em curtíssimo período, aglutinar dezenas de milhares de militantes de base. O marxismo militante deve formar, portanto, verdadeiros estadistas, pois é isso que serão caso a revolução seja vitoriosa, caso os partidos vermelhos sejam dignos da tarefa histórica. Dirigir sindicatos ajuda em certos aspectos na educação política prática, na arte de gestão. Mas é limitadíssimo. Apenas com educação teórica profunda os quadros partidários serão mais do que simples radicais de esquerda. O instinto de poder do partido deve formar dirigentes estatais em potencial, gente capaz de pensar grande, profunda e estrategicamente. O poder operário não se consolidará dirigido por gente incapaz. A VALIDADE DOS PARTIDOS COMUNISTAS Há três formas de o partido revolucionário desaparecer: 1) Ser destruído por repressão; 2) Degenerar numa caricatura centrista de si; 3) Dissolver-se na sociedade socialista. A organização, sendo o organismo antissistema dentro do capitalismo, surge e desenvolve-se a partir de uma dada base material. Mudanças de conjuntura, de situação, mudam em geral apenas relativamente a natureza do partido. Mas, ao contrário, mudanças qualitativas do tecido social ou

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da etapa (se revolucionária ou contrarrevolucionária), tende a mudar, com algum atraso, o perfil do organismo, da superestrutura partidária. Isso significa que todo partido revolucionário tem data de validade. Pode durar muitos anos ou até décadas com a mesma natureza, mas a realidade mutante é maior e determina o destino da organização. Serve-nos um exemplo. O Partido Bolchevique e os PCs da III Internacional degeneram com o fim da situação e da etapa revolucionárias, na passagem para uma situaçãoetapa contrarrevolucionária mundial. OS FUNCIONÁRIOS SINDICAIS E PARLAMENTARES Ao discutir a degeneração da II Internacional, destaca-se o peso dos parlamentares no perfil reformista e centrista. A questão fica muito mais clara quando levamos em conta que boa parte dos militantes e quadros dos partidos socialdemocratas era funcionários nos sindicatos e nos mandatos dos representantes no parlamento burguês. Por isso medidas formais devem ser tomadas contra a pressão daqueles que precisam de peso sindical e parlamentar para sua própria sobrevivência. Os militantes que têm empregos nos sindicatos, por exemplo, devem passar por aspirância, com deveres e sem diretos, por pelo menos três anos, a contar a partir do momento em que adquirem o cargo (jornalistas, advogados, economistas, vigias etc.). E quando forem aceitos como militantes plenos, fica proibido: ser dirigente político de células, ter cargos acima do comitê zonal (nunca de dirigente político), votar ou ser votado como representante nos congressos e conferências, participar de tendências ou frações. São medidas que diminuem a pressão externa dos aparatos, que até de modo inconsciente afetam a postura de tais membros. A degeneração de tantas organizações obriga regras duras por permanente precaução. GARANTIAS DA DEMOCRACIA PARTIDÁRIA Temos de formar medidas estatuárias que garantam certo grau de tensão interna saudável, que pese contra a dependência de um quadro em particular ou de um grupo. Os birôs político e organizativo do comitê central devem ter um tempo máximo de permanência nas mãos de certo dirigente e tempo mínimo de sua ausência no cargo. Assim evitamos a excessiva especialização ou a formação unilateral de insubstituíveis. A luta fracional deve garantir 20% dos cargos à fração derrotada que tenha alcançado pelo menos 30% dos votos congressuais com os membros escolhidos pela fração vencedora. Pode-se garantir no máximo 30% dos cargos a mais de uma fração derrotada. Assim, se uma fração

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consegue 40% dos votos e ganha a maioria, fica com 70% dos cargos; se outras duas frações conseguiram cada uma 30%, somando 60%, terão direito cada qual a 15% dos membros eleitos. Esta postura, que pode ser informal, uma boa diplomacia da fração majoritária, melhor uso tem se é formalizada como mecanismo da legalidade do partido. A PROLETARIZAÇÃO Em debate com o SWP americano, Trotsky orientou que os muitos jovens daquele partido fossem girados para apoio ao movimento operário. Tal proposta pode ter a forma permanente de células de proletarização nos partidos: uma parte da juventude e dos assalariados não operários das organizações formarem organismos de base cujas tarefas centrais são marcar presença constante em determinadas fábricas, ajudar as oposições sindicais proletárias, trabalhar voluntariamente nos sindicatos fabris, etc. Tão logo uma organização consolide uma certa quantidade de membros da classe média em seu seio, o que é em si fonte de contradição, deve-se fundar tais grupos para potencializar o trabalho na principal classe da sociedade. Algo semelhante pode ser feito em trabalhos sobre setores populares muito precários como o movimento de ocupação urbana. Um grupo revolucionário deve ser formado por proletários não aristocráticos e assalariados precários em sua maioria e especialmente na direção, por isso tal giro faz-se necessário. OS PROFISSIONAIS Os profissionais do partido devem ter tarefas bastante claras e seus salários deve ser próximo ao da média salarial do país. O critério da renda faz diferença, pois apenas morando e vivendo como um trabalhador não aristocrático o militante pode sentir as mesmas dores de sua classe e ter a necessidade de revolucionar o mundo. Um salário avantajado desregula por diferentes meios seu caráter militante. O fato de dedicar-se a um emprego que dá imenso mais prazer, apesar das dificuldades, do que o emprego comum, o fato de estar em um ―serviço‖ não alienado, deve ser um bom estímulo para aceitar ganhar menos do que sua capacidade no ―mercado de trabalho‖. Como deve ser quase lei interna que os profissionalizados tenham origem no movimento operário, deixa de ser um problema a questão salarial, diferente de se tentar dar tal posição a alguém de origem na classe média bem paga. Naqueles partidos onde esta regra é evitada, deve-se fazer uma transição como congelar e reduzir aos poucos a renda desses quadros, o que fará sobrar finanças para mais profissionais da revolução. É muito comum que os membros de classe média destaquem-se nos partidos ditos operários. Um funcionário público, por exemplo, pode ter estabilidade empregatícia, maior

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tempo livre, menos desgaste no trabalho, mais cultura e mais recursos. Logo torna-se um quadro dirigente, contaminando com seu perfil a organização e sua direção. A profissionalização prioritária de membros advindos dos meios proletários visa dar condições para seu pleno desenvolvimento e a formação de verdadeiros partidos da classe revolucionária. Evitemos também o debate fácil sobre o tema. Nesse limite, alguns defendem que a profissionalização deve ser cancelada após alguns anos para evitar carreirismos. A questão é que quadros capazes demoram a se formar, por isso, se voltam aos trabalhos não partidários depois de anos de dedicação militante, nós na prática perdemos e desperdiçamos potencial militante. Ademais, após longos anos trabalhando para o partido e para a revolução, dificilmente encontrarão emprego regular. Devemos manter financeiramente, mas com salários baixos e sob controle dos organismos partidários, uma camada de profissionais que acumularam capacidades práticas e teóricas. O carreirismo é devidamente evitado com o assalariamento limitado. O PARTIDO LENINISTA COMO O MEIO É um erro considerar, como faz Moreno, a construção do partido como estratégia, pois é o meio para um fim. Esta diferença, que parece desnecessária ou trivial à primeira vista, ganha importância prática quando observada mais de perto. Façamos antes um debate lógico, mais abstrato. O meio é o meio específico de um fim e este é também daquele, fim específico do meio – para um fim, nem todo meio é válido (Trotsky, 16. Interdependência Dialética Entre Fins e Meios, 2002). Há unidade de fim e meio (Hegel). Eis uma primeira consideração da relação entre as duas categorias. Ademais, o fim não está somente em algo como apenas no final mas vai-se realizando no processo; ir-se realizando rumo a si mesmo é o mais próximo que temos de uma teleologia objetiva – unidade de fim e meio, desenvolvimento que dispensa a necessidade de uma consciência maior, um Espírito ou um Deus109. 109

Façamos breve debate lateral. Nos Manuscritos econômico-filosóficos, Marx afirma: "O comunismo é a forma necessária e o princípio dinâmico do futuro imediato, mas o comunismo não constitui em si mesmo o objetivo da evolução humana – a forma da sociedade humana." (Marx, Manuscritos econômicos filosóficos, 2011, p. 148) Assim encerra subcapítulo A Propriedade Privada e o Comunismo. Damos outra resposta. A humanidade, corrijamos o mestre, por longa autotransição, desdobra-se do em si ao para si. O processo histórico de humanização da humanidade ocorre, portanto, de modo contraditório, pela separação e oposição dos homens, pela desumanização. Se por meio do trabalho o homem modifica a natureza e a si; se, por tal modo o desenvolvimento, sua capacidade de transformar e dominar a natureza torna-se necessidade incontornável e irresistível; se todo sistema econômico-social alcança pontos nodais ao se desenvolver desafiando saltos qualitativos; se as necessidades humanas são “cumulativas e irresistíveis” (Marx); se, enfim, a produtividade crescente do trabalho perpassa toda nossa história; então o homem encaminha-se, a humanidade encaminha-se inconsciente (teleologia inconsciente) e, depois, em certo grau de

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Há ainda outra consideração: o meio pode, por assim dizer, degenerar em fim em si mesmo. O dinheiro, por exemplo, avança de puro mediador, meio de troca, para o centro da atividade. Algo semelhante pode ocorrer nos partidos: a autoconstrução passa de meio da estratégia para ser algo em si próprio, em um falso hiperleninismo. Eis um perigo real. Um exemplo deixará mais cristalino: no lugar de elaborar política de modo objetivo, para avançar alguns passos ao socialismo, a organização partidária pode agitar propostas erradas, segundo a conjuntura, que atraiam de modo artificial a vanguarda porque são as mais radicais, porque se diferenciam das demais correntes, etc. A QUESTÃO DO DIRIGENTE Percebemos um padrão sobre a direção geral das Internacionais: os dirigentes mais respeitados atuavam como força objetiva no retardo da quebra ou degeneração de suas organizações. A II Internacional avança sua adaptação ao regime democrático burguês após a morte de Engels; o partido bolchevique e a III Internacional saltam suas degenerações com a morte de Lenin; a IV internacional quebra-se com a morte de Trotsky; a LIT e o partido MAIS na Argentina, que havia alcançado influência de massas, quebram-se depois da morte de Nahuel Moreno. Como afirmamos anteriormente, as mudanças qualitativas da realidade mudam com atraso o perfil das organizações. Mas a superestrutura subjetiva, como grandes líderes revolucionários, tornam-se forças que também interferem no ritmo das mudanças. A formação de grandes líderes leva décadas e muitos se afastam da militância, são presos ou morrem. Uma ―seleção natural‖ vai consolidando alguns militantes raros, de grande estatura. Apenas a democracia partidária, com uma sólida formação prática e teórica, permite reorganizar as tarefas e errar menos diante da falta repentina de algum ―insubstituível‖. A mera consciência do problema do dirigente central ajuda a pensar precauções, como preparar uma nova coluna de quadros de modo antecipado, organizar rupturas diante de degenerações qualitativas, etc. O COMPROMISSO MILITANTE Deve ser estatutário que, para ser membro do partido, é obrigatório o compromisso de apoiar apenas o governo baseado na democracia socialista, que surja da destruição revolucionária

desenvolvimento, quando o igualitarismo começa a estar latente, conscientemente para o comunismo. Por outro lado, não é uma teleologia determinista, dada, inevitável, pois fatores não sociais podem impedir – uma catástrofe de fato natural sobre a qual o homem não pode reagir, etc. – ; o ponto nodal para o comunismo, sabe-se hoje, por ser o ponto de altíssimo desenvolvimento, mas destrutivo, pode antes nos destruir.

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do antigo estado. Nenhum governo ―progressivo‖, ―nacional‖, ―anti-imperialista‖, ―popular‖, ―esquerdista‖ ou ―socialista‖ por meio da suposta renovação do estado burguês deve ser apoiado, mesmo que criticamente, por qualquer membro partidário, interna ou publicamente. Esta é uma das condições vitais para ser considerado parte da organização revolucionária, deve ser do acordo mínimo de militância. A QUESTÃO SINDICAL Pequenas organizações podem degenerar em seitas, em clubes, em casas de intelectuais. Mas há também o risco mais subterrâneo de transformar-se em partidos sindicais. É debate comum no meio militante que a ação eleitoral é algo tático, ainda que tenha de ser lavado muito a sério. Esquece-se, no entanto, que a atuação nos sindicatos é também do nível da tática militante. Os sindicatos produzem uma pressão enorme sobre as organizações como duplo peso: de um lado, dá base para a radicalidade e, de outro, prende a militância aos limites da reforma, aos limites burgueses, nas lutas parciais. Surge aí a condição para a formação de partidos centristas, que estão entre a reforma e a revolução, entre o reformismo e o bolchevismo. O sindicalismo vermelho ou radical esquece que os sindicatos são organizações defensivas e burocratizadas, por isso serão superestruturas secundárias durante situações revolucionárias na maioria dos casos, senão em todos. Dificilmente, por conservadorismo organizacional, os revolucionários serão maioria nos aparelhos sindicais quando chegar a hora mais perigosa e decisiva. O foco perante revoluções girará para ganhar maioria nos soviets, comitês fábrica, assembleias de bairros, isto é, nos embriões de poder operário e popular. Pequenos partidos revolucionários devem ter alguma influência sobre a vanguarda, ter trabalhos poucos e concentrados em determinadas fábricas, categorias e bairros operários. O mais importante é adquirir alguma influência social em bastiões, que possam irradiar-se em momentos oportunos de grandes lutas de classes. Ganhar sindicatos deve ser uma consequência destes trabalhos e posterior meio de ampliar a influência, não o grande fim. SOCIALISMO DO FUNCIONALISMO PÚBLICO No Manifesto Comunista, Marx e Engels tratam de diferentes tendências ―socialistas‖ como o socialismo burguês e o socialismo pequeno burguês. O desenvolvimento da urbanidade e a política keynesiana no pós-II Guerra fizeram surgir uma imensa massa de funcionários cujo patrão é o estado. Este setor esquerdizou-se com sua ampliação numérica e a precarização das suas condições de trabalho. Assim surge o socialismo do funcionalismo público.

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A base programática de tal setor é a defesa de um estado forte, empoderado, e o desejo ao retorno do paradigma keynesiano na política econômica (ainda que use terminologia marxista). Algumas de suas defesas são progressivas; apoiam e focam pautas democráticas, levantam o ―fora governo‖ quando este aparece como dirigente indesejável, criticam o pagamento da dívida pública, centram críticas aos bancos e defendem uma ampla estatização (que nada tem a ver diretamente com socialismo, que é pela gestão operária das empresas, mas é positivo na medida em que destrói a ideia de que é sagrada a propriedade privada capitalista). Tal programa forma partidos pseudocomunistas, reformistas radicais e o centrismo ultraesquerdista. Em determinadas circunstâncias, a base social descrita110 pode ser ganha para projetos reacionários ou mesmo fascistas que encarnam a ideia de um aparelho estatal fortalecido. São, portanto, um setor médio sob disputa, entre o operário e o burguês. AS ELEIÇÕES A eleição é a oportunidade de falar para muitos, de fazer agitação política. No entanto, é comum que partidos vermelhos sejam irresponsáveis no trato dessa tática. Por desvio sindicalista ou por baixo peso social, é recorrente a presença dos comunistas na eleição ser, no lugar de meio para ganhar audiência e simpatia, a fonte de uma visão popular negativa como taxados de seitas, deslocados da realidade ou folclóricos. A presença eleitoral acaba surtindo o efeito oposto ao almejado. O erro tem pelo menos uma origem: não parecer reformista e eleitoreiro perante a vanguarda radical; assim é produzido material de campanha para os ativistas ou para agrado da própria corrente, para sentir-se revolucionário. Numa eleição, devemos aparecer como aqueles que mais levam a política a sério, aqueles que apresentam propostas práticas segundo o realismo da conjuntura. Mas o repetido desleixo estético, a linguagem do militantês, expressões desequilibradas, o uso desnecessário do humor, a defesa de propostas mais radicais possíveis etc. atrapalham o caminho ou isolam ainda mais a organização (ao ponto de perder a noção do quanto é marginal e ser considerado caricatural para a maioria). A rejeição indiferente das massas ocorre em grande medida por erro de apresentação dos partidos comunistas. SOBRE A FORMAÇÃO DE QUADROS Em várias empresas, como nos call centers, uma gerência mais ou menos permanente tem a noção geral do trabalho enquanto jovens da mais baixa patente são levados até ao esgotamento após meses de labor, então são demitidos e substituídos por novos trabalhadores. Algo 110

O operário da empresa estatal pendula entre a concepção proletária e a do funcionalismo.

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semelhante ocorre em alguns partidos vermelhos. Uma velha guarda tem a visão geral, dirigem os postos de comando, e jovens disciplinados são usados até ―quebrarem‖, então são substituídos por uma nova leva de militantes juvenis. É assim que quadros mais velhos mantém suas influências, poderes e prestígios. O tarefismo e o praticismo imperam, exige-se mais do que pode ser dado de modo equilibrado pela militância; assim, de modo artificial, o partido parece mais forte do que de fato é (no movimento, nas finanças, etc.), mas guarda dentro de si uma constante estagnação, quando não crises internas. De um lado, deve-se focar as poucas forças em poucas tarefas, setores e organismos (participar de poucos, de preferência apenas um etc.) e, de outro, deve haver uma verdadeira fixação constante pela formação de quadros capazes de levar para frente tarefas práticas e teóricas. Nada impede, por exemplo, um manual bastante completo, recheado com exemplos práticos, sobre gestão sindical. Aqui vale comparar com as igrejas neopetencostais, pois elas formam seus ―líderes de células‖ com muito material gratuito, claro e de qualidade sobre oratória, organização, etc. Nos partidos de esquerda, na relação dirigentes e dirigidos ou entre militantes e vanguarda sem partido, existe uma tendência ao desejo de ser insubstituível, que se tenha dependência por certos quadros (que sem eles muitos trabalhos militantes definham). É possível que militantes ―espertos demais‖ – pensam de forma autônoma, sabem elaborar política, discordam com propriedade – sejam informalmente excluídos, boicotados ou expulsos. RELAÇÃO PARASITÁRIA Os comunistas podem ser membros de um partido reformista por um curto período. Moreno alerta que o tempo de presença em outra organização deve ser algo em torno de três anos, mas a realidade pode forçar o adiamento da ruptura. Sobre, o argumento do argentino é certeiro: passar muitos anos dentro de uma organização de esquerda do sistema produz pressões ao perfil da corrente revolucionária e vícios que podem se tornar incuráveis (centrismo, etc.). Ocorre que há correntes ditas revolucionárias que acabam se adaptando, focam em orbitar outro partido. Deixam de preparar as condições de crescer e, em seguida, compor um organismo independente. Passam a parasitar a organização reformista. Localizam-se à esquerda da direção majoritária, mas sem uma estratégia de tensionamento que produza uma positiva ruptura. Na prática, embora escondam até de si, abandonam a ousadia de formar um poderoso partido de tipo bolchevique e conformam-se em ser uma pequena corrente ―revolucionária‖ longe de maiores pretensões. A tática do ―entrismo‖, compor por alguns anos outra organização, tem por objetivo ganhar principalmente jovens radicalizados para, no segundo momento, já como partido independente,

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focar com mais força no movimento operário. Mas o meio acaba se tornando um fim, degenerase. O JORNAL DE VANGUARDA O desenvolvimento da TV, algo muito recente na história, e, depois, da internet tiraram do jornal impresso grande parte do espaço que tinha na sociedade. Antes, mesmo com a concorrência do rádio, a esquerda conseguia ter um grande público para sua impressa. Hoje, o jornal é, por enquanto, uma ferramenta para uso dos militantes e da vanguarda em todo o mundo, em parte reflexo das mudanças citadas. Quais alterações na realidade obrigam mudanças na comunicação partidária? O critério de ter no começo bons jornais no lugar de muitos deve ser traduzido em propostas e concepções de conjunto. Em primeiro lugar, a informação é de fácil acesso, mas não a verdade. A impressa socialista precisa explicar a notícia no lugar de oferecê-la, por isso necessita mostrar os nexos interno da realidade naquela ação em aparência isolada do governo, etc. O leitor tem carência de lógica e fundamento, de saber o nexo causal dos fatos, que a realidade faça sentido. Em segundo, os textos teóricos devem ser claros e, ao mesmo tempo, profundos o bastante. Os artigos de formação devem ter o tamanho necessário para o aprendizado, mais do quer dar ―alguma noção‖ nevoenta sobre o assunto. Certos livretos introdutórios podem ser lançados em forma de jornais especiais. Em terceiro, o tema da arte deve estar presente da forma popular e educativa. Poemas, imagem de quadros ou esculturas e contos centrais da história podem ser acompanhados de texto que explica o contexto histórico daquela obra. A educação estética é necessária junto à divulgação das produções. Em quarto, a impressa na internet e, sempre que possível com ajuda de especialistas, o jornal devem explicar as conquistas históricas da ciência e divulgar, de maneira crítica, as vanguardas atuais do trabalho científico. À medida que um partido comunista cresce, tende a atrair alguns intelectuais e sábios que podem ajudar em tal tarefa em suas especialidades. Em quinto, a parte política central da imprensa deve evitar as propostas mais radicais ou de transição quando a conjuntura ainda é imprópria. É preciso separar o que é defesa programática geral para a vanguarda daquilo que é feito para que os militantes agitem como exigências no movimento prático. O jornal deve guiar a ação e torna-se defeituoso quando sua leitura deixa de guiar os debates políticos onde se decide a ação. Se a impressa central é incapaz de ser um guia, uma base para a prática, então deixa de cumprir sua função.

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Em sexto, a prática da militância deve ir a balanço no jornal. Por exemplo: uma greve exemplar deve ser relatada para servir de bom exemplo e educação para os demais militantes. Um importante processo que foi derrotado pela burocracia sindical também deve ir a balanço público sobre o que os revolucionários fariam se estivessem na direção daquele sindicato. Uma ação internacionalista destacável pode servir de inspiração para os demais membros da organização. Em sétimo, deve-se apresentar o ponto de vista comunista daquilo que está na impressa, mas deve-se, também, leva temas e assuntos boicotados pela mídia burguesa. Mesmo um jornal de massas pode ter uma regularidade semanal ou quinzenal, em vez de diário, ao focar na qualidade das notícias e do material. O CLUBISMO Nahuel Moreno foi um dos que observaram que os partidos tendem a degenerar em clubes. Como o mundo é o cenário da brutalidade, quer-se evitar o problema vivendo dentro da organização. Quanto é uma tendência forte, degenera o organismo militante em uma seita apenas com aparência revolucionária. É difícil encontrar um remédio para o problema. Ter a clareza de que é uma tendência comum ajuda na precaução ao empurrar os organismos partidários para a ação efetiva, evitar excesso de atividades internas artificiais, etc. O PARTIDO EM GRANDES PAÍSES Em países continentais – Brasil, China, EUA, Rússia, Índia –, as regionais ganham importância para a dinâmica política dos partidos. É preciso que as direções de cada estado (ou província ,etc.) elevem-se à posição de direções ―nacionais‖ daquela região. Assim como um partido internacional oferece certa autonomia aos partidos nacionais para que aprendam e elevem-se, algo semelhante deve ser feito em grandes países. A política geral para a nação deve ser separada dos encaminhamentos que variam de local a local; uma política para eleição municipal, por exemplo, pode seguir certa tática em uma cidade do sul e outra completamente diferente em outra no nordeste. As direções regionais terão de fato que obter caráter de direção nacional – com eleição de Comitê Central, etc. – com o acúmulo de experiência e influência social, isto é, deverão ter a qualidade militante que um partido nacional exige. Isto era impensável no partido Bolchevique porque, além de pequeno quando ilegal durante o poder czarista, havia apenas duas grandes cidades na Rússia no início do século XX; a urbanidade era também menor, relativo aos nossos dias, nos países avançados.

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A ASSIM CHAMADA CRISE DE DIREÇÃO REVOLUCIONÁRIA No Manifesto Comunista do século XX, o Programa de Transição, Trotsky afirma que a crise da humanidade pode ser sintetizada pela crise da direção revolucionária do proletariado. Quase 100 anos depois do início de tal ―crise‖, sua permanência deve ser vista por nós como normalidade, como regra. Vários partidos trotskystas usam tal frase, que há uma crise de direção, como certo mantra explicativo. Mas o normal é que os partidos revolucionários, por serem o que são, sejam minoria, às vezes, por décadas no movimento de massas e nas eleições. Apenas durante situações revolucionárias ou, com muitos acertos, nas pré-revolucionárias, um partido antissistema pode ser de fato ouvido, ter muitos militantes, ser ou quase ser maioria. É preciso uma dura crise econômica, social e política para que a maior parte dos assalariados, em especial a classe operária, veja os radicais como a real alternativa para a solução de seus problemas. Se um partido dito comunista tem enorme peso social numa situação não revolucionária, reacionária ou contrarrevolucionária há que se pergunta se de fato é uma organização subversiva (caso dos PCs e PSs na Europa antes da fase neoliberal, organizações centristas e reformistas). O comum são as organizações de fato vermelhas serem pequenas por muito tempo, no máximo com certa influência sobre a vanguarda. A figura do burocrata sindical e partidário ou do militante honesto e equivocado nos seus rumos impera por muitos anos, talvez por décadas. Portanto, a janela de oportunidade dos partidos leninistas é aberta em poucos períodos, no amadurecer de momentos decisivos; até lá, devem aprender a ser minoria, tanto odiar quanto perceber a própria marginalidade e construir as condições para fundar um partido marxista de massas. Porém ser minoritário é diferente de ser marginal; um partido de vanguarda sólido ou com influência minoritária nas massas pode ser consolidado nas mais variadas conjunturas evitando a degeneração das correntes em seitas políticas. O TEATRALISMO MILITANTE111 Em especial nos momentos de recuo das lutas, surge um hábito que corrói no subterrâneo um partido leninista: a ação artificial, fictícia. Ocupa-se em demasia os militantes com palestras ou ―debates‖ que são desnecessários, não avançam a compreensão geral da realidade, apenas marcam datas tradicionais e são obrigatórios à militância. A constância de ações artificiais leva inconscientemente ao afastamento de militantes dos partidos e da prática política. O exemplo ajuda a compreender o fenômeno. Panfletar em frente a

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A primeira a observar tal fenômeno foi, se bem recordamos, Maria Rita Kehl. Infelizmente, não reencontramos a entrevista aonde ela defende tal ideia. Tal registro visa evitar acusação de plágio.

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uma fábrica pode ser um ato de fundo inútil; se o panfleto tem uma mensagem deslocada da conjuntura concreta, se não há acompanhamento constante daquela empresa, se inexiste um projeto por detrás daquela panfletagem, então a atitude ―revolucionária‖ torna-se de fato limitada quando não nula. Protestos de vanguarda podem ter a mesmo sentido enganoso, tornando-se pseudoprotestos. O teatralismo tende a ser erro gerado por longo refluxo das lutas – situações não revolucionárias, reacionárias, contrarrevolucionárias –, porém pode ―fazer escola‖ e permanecer mesmo em momentos de maior luta de classes como um vício de rotina. Em geral, a existência em parte artificial da organização política revela em tais atos. Um trabalho constante com finalidade clara, um curso profundo sobre um tema imprescindível, etc. são necessidades para consolidar militantes. É uma necessidade tanto do movimento revolucionário quanto da psique da sua vanguarda. Mover a militância por marcha forçada de atividades tira o sentido da mais importante tarefa que alguém pode assumir em nossa época e é uma forma de alienação. A MORAL MILITANTE O partido revolucionário deve ser um local respirável, diferente do ambiente de trabalho. É preciso uma relação de camaradagem que permita a presença ―desarmada‖ dos militantes, onde o temor de manobras e jogos seja inexistente. Pode acontecer uma ―facilitação do caminho‖ por meio de todo tipo de agrados, reposicionamento de militantes, artifícios psicológicos, etc. Esse tipo de postura deve ser severamente evitado. Peguemos exemplos práticos. A direção pode por si escolher quem será os novos dirigentes preparando militantes específicos; quando chega a hora de votar a nova direção, os militantes apenas reafirmam, em um teatro de democracia partidária, a composição dirigente escolhida pelos quadros; o correto seria a base decidir desde o começo quem seria preparado para os cargos ou renovação geracional. O que parece uma questão administrativa pura revela-se uma questão também moral. Outro exemplo: dirigentes podem fazer constantes autocríticas, o que é correto, para manobrar, para manter-se nos seus postos e evitar maior dureza da base sobre a direção. Temas como a sinceridade, o respeito, a disciplina são tratados nos debates de moral; o que pode faltar são as sinuosidades, as invisibilidades difíceis de acusar e provar. Em geral, se os membros de um partido adotam uma moralidade porca, muitas vezes disfarçada, é porque mudanças de fundo já ocorreram na organização e se expressam na prática. A moral, tomada de modo dialético, passa longe de ser uma receita de conduta, mas há um fim que a norteia nas variadas, até opostas, decisões: destruir a alienação. A ação militante deve

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ter por base diminuir, ainda que por mediações, o grau de alienação dos membros partidários, da classe trabalhadora e da sociedade. Todos os militantes devem ter claro que esta é a tarefa central a partir da qual elaboramos táticas e tomamos medidas desalienantes. Bons resultados em si baseados em meios alienantes escondem na aparência uma derrota essencial. A FORMAÇÃO TEÓRICA É uma obviedade que a formação militante deve incluir uma sólida coluna teórica, mas o desprezo pela teoria costuma ser uma constante inconsciente ou semiconsciente nos partidos. Para fins de exemplo, uma equipe de dirigentes deve ser formada por gente que alia estudo e prática, que supere a oposição que remete à divisão, alienação, entre trabalho manual e intelectual; precisa ser critério de balanço dos militantes se são responsáveis ou irresponsáveis para com o estudo. Em grupos de direção intermediários, pode ser interessante agregar aquele membro pouco especial em outras tarefas, mas que tem um domínio acima da média da teoria e do raciocínio dialético (outro problema surge se militantes de tal perfil tornam-se importante minoria, maioria ou dominem os órgãos dirigentes). De tal modo costuma-se estar aquém do mínimo exigido aos quadros que poucos levam em conta que uma formação sólida de dirigentes médios deve incluir um básico domínio da ciência militar. O centrismo estalinista foi, repetidas vezes, mais ciente da necessidade de dominar aspectos práticos da segurança e aspectos teóricos da arte de combate; isso se dá em parte pela substituição da posição de classe por uma interpretação geopolítica, lutas classistas por luta entre Estados, da realidade112 e em parte pela ligação com as ditaduras nos Estados operários burocratizados no século XX (que ofereciam treinamento, etc.). No trotskismo, raro ver-se a publicação dos escritos militares completos de Trotsky, um dos maiores dirigentes militares da história, e, apesar da origem da corrente no fundador do Exército Vermelho, o tema da formação teórica militar é marginal, senão inexistente. É preciso evitar que um militante mais afeito ao assunto ou uma equipe passe a centralizar o estudo militar. Como em todo partido revolucionário com algum peso social, há infiltrados na organização ou monitoramento estatal e bastaria uma repressão sobre militantes selecionados para quebrar a ―coluna militar‖ do partido. Por isso a solução é diluir tal responsabilidade de estudo entre todos os quadros consolidados; será necessidade também da própria revolução. Todos os dirigentes devem ter aprendizado obrigatório na arte da guerra. ***

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O erro oposto, desconsiderar o peso da geopolítica na análise, também ocorre.

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Deve-se evitar que um partido torne-se rotineiro grupo de debates intelectuais e, ao mesmo tempo, também precisa ser a fonte de novos grandes pensadores, atrair e formar as melhores mentes. A organização deve dar importantes e vitais aportes às ciências humanas (se possível, igualmente nas ciências naturais) por meio de pesquisas profundas e necessárias à própria compreensão da realidade, que é o cenário da prática militante. Intelectuais orgânicos, acadêmicos, integrantes quadros devem ter a responsabilidade de investigar o que interessa à plena compreensão do mundo. É necessário fazer um contraponto à degeneração científica (pósmodernismo, positivismo, pesquisas fictícias, etc.) das universidades.113 A HORA DO TROTSKYSMO? Muitos trotskystas pensaram que a queda do chamado socialismo real e as revoluções antirregime no Leste Europeu abriram caminho para o trotskysmo. Uma derrota prevista por Trotsky, a restauração do capitalismo, pesou e pesa de modo negativo entre as massas, mas dá certa razão histórica entre a vanguarda. A situação seria diferente se as lutas antiburocráticas, que derrubaram o aparato estalinista, desemborcassem em novos Estados operários revolucionários, com democracia socialista. Não foi o caso. A pergunta é, então, se pelo menos se abriu a época dos verdadeiros leninistas. As revoluções socialistas da segunda metade do século XX foram camponesas enquanto o trotskysmo tem seu programa ligado ao movimento operário. Hoje, porém, as revoluções podem ter liderança operária, em principal as primeiras, mas tendem também a ter peso popular urbano. Isso significa que ou os trotskistas atualizam seus programas ou perderão a oportunidade histórica. Se lhes faltar uma compreensão correta de nossa época, a prática será limitada. Surgiram em quase todos os países com alguma real importância pequenos partidos que se reivindicam trotskistas. Mas há um problema acumulado em silêncio: desde a década de 1990, houve um recuo das lutas e da força ideológica do socialismo, então os partidos passaram por períodos mais ou menos reacionários que levaram as organizações à rotina, ao defensismo, ao abandono da teoria114 e à marginalidade. Isso cobra um preço. Quando as crises mundiais começam a balançar o sistema, os partidários oficiais do comunismo encontram-se educados em outro espírito e adquiriram inúmeros vícios. A ave acostumada a voos rasos é incapaz de alcançar grandes alturas. Os partidos vermelhos, portanto, deverão estar dispostos a duras reformas

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Tal consideração foi feita, em primeiro, pelo marxista Santiago Marimbondo de modo informal. Cumpre destaca que a teoria permite também aprender com o exemplo alheio, dispensando ter de passar por longuíssimas experiências para acertar. A prática completa o ensinamento, mas aprender com o outro, com a história do movimento socialista, dispensar começar tudo quase do zero; é o sinal mínimo de sabedoria necessária. 114

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internas e, talvez em muitos casos, suportar rupturas. Neste sentido, o terreno, as conjunturas, e a crise sistêmica pressionarão de modo positivo pela autorrenovação do bolchevismo. Para fins de duro debate programático, campanhas internacionais conjuntas, tarefas unitárias em alguns países (como, por exemplo, a formação de um partido trabalhista e popular nos EUA); os principais partidos internacionais trotskystas – LIT, TMI, ASI –, que adotam o centralismo democrático e se diferenciam da degenerada SU, podem formar uma federação de internacionais, uma frente única revolucionária internacional a partir de certo programa mínimo revolucionário. Tal unidade deve deixar claro que não é a IV Internacional reconstruída, que é respeitada a independência das diferentes correntes, com a autoconstrução enquanto meta legítima, e que uma unificação só poderá surgir após a tomada revolucionária do poder em algum país.

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ESBOÇO PARA UM BALANÇO DO COMUNISMO NO BRASIL O PSTU foi o principal partido comunista do mundo, por isso deve-se destacar sua história, ainda que de modo breve, e fazer o devido balanço para explicar sua degeneração em centrismo ultraesquerdista. É o objetivo, em geral, deste capítulo. Aqui, nós queremos evitar a postura rancorosa ou apenas negativa comum em alguns ex-militantes; por outro lado, faz falta balanços claros sobre as razões das rupturas com este partido, sejam elas mais progressivas ou, ao contrário, mais reformistas. A crítica pública entre os nossos é necessária para a evolução das organizações ou para reorganizações, rupturas, etc. O esboço abaixo – e, por ser esboço, tem linguagem direta – tenta ajudar em tal tarefa, baseando-se de maneira referencial em ―Esquerdismo: Doença Infantil do Comunismo‖ de Lenin. O leitor afeito à obra reconhecerá pontos de contato entre os textos. O fato de que nenhuma organização tenha algum trabalho do tipo leva-nos a crer que podem cair nos mesmos erros na medida em que falta percebê-los, caracterizá-los. UM BREVE APORTE O núcleo inicial da corrente que deu origem ao PSTU, a Liga Operária, surgiu na década de 1970. Seu acerto político garantiu seu desenvolvimento: colocou-se contra a tática ultraesquerdista e vanguardista de formar guerrilhas, apostando, em oposto, na formação de um partido revolucionário da classe operária. Na fase final da ditadura, era preciso uma forma de crescer e aglutinar a vanguarda das lutas que cresciam no país. A primeira proposta foi a formação de um Partido Socialista, com a presença de ilustres intelectuais, mas o projeto não vingou, ficando reduzido aos próprios membros da Convergência Socialista (futuro PSTU). Graças à intervenção do argentino Moreno, da LIT, a política foi corrigida: formar com os sindicalistas um Partido dos Trabalhadores. O acerto é sabido por todos: forçou os limites da ditadura, uniu a vanguarda nacionalmente, impediu maior crescimento de organizações diretamente estalinistas (ainda assim, a direção majoritária do PT tinha formação estalinista). Nesta época, ocorreu um dos auges da corrente ao liderar grandes greves e ocupações de fábrica. Mesmo assim, o partido entrou em crise ao menos duas vezes, gerando rupturas à direita: primeiro por causa do erro da tentativa de formação de um PS e, segundo, por atração imensa e a esperança que o lulismo gerou em parte da militância. No subsolo, uma forte razão para estas crises é a formação de classe média da maioria de seus membros.

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Um importante erro desta época foi não ter elaborado a proposta de criação de uma central única dos sindicatos (e dos demais movimentos populares). Se tivesse impulsionado esta elaboração, teria ganhado mais destaque na luta de classes. De qualquer modo, participou da CUT, embora sem ser protagonista em sua formação. O impressionismo teórico e político da organização, que será tratado adiante, já se revelava na época de formação inicial do comando partidário. A corrente pensava que a queda da ditadura seria seguida de uma revolução socialista. Isso serviu para disciplinar artificialmente os militantes, mas estava errado. A história mostrou que a democracia burguesa foi base para permitir inúmeros ataques contra os trabalhadores e amortecer a luta de classes. No balanço da LIT – corrente internacional da qual participa o partido em avaliação – por seus 30 anos, há um texto sobre o PSTU dentro do PT, em que afirma que o partido se tornou uma organização dos trabalhadores com a tática do entrismo (LIT-QI, 2016). Ora, ao ficar 12 anos dentro do PT, os quadros juvenis… envelheceram. No mais, a tática do entrismo em organizações reformistas é exatamente para ganhar jovens radicalizados e depois romper com algo em torno de 2 ou 3 anos de trabalho interno, não 12115. Sobre, ver Moreno em seu ―Teses para atualização do programa de transição‖: a permanência demasiada por dento de um partido não revolucionário produz pressões e vícios no perfil da organização ―infiltrada‖. Já aí, na década de 1980, vemos pressão para tornar centrista a corrente. De qualquer modo, o entrismo no PT foi praticado com enormes precauções, graças às orientações da LIT: evitava-se assumir cargos dentro do partido; a Convergência Socialista tinha sedes, jornais, finança, etc. próprias e independentes. Tais medidas atuavam com força contra pressões degenerativas – mas 12 anos de convivência permanente deixa suas sequelas. O PT quase monopolizava a esquerda, por isso havia riscos de uma ruptura prematura, como a ameaça de tornar-se seita por razão do isolamento político e social. Isso poderia ser mediado com trabalho na classe operária enquanto as lutas sociais fossem fortes, levando os jovens militantes ao mundo proletário, e também semiorbitando eleitoralmente o PT por algum tempo, até que este se elegesse. Quando a Convergência Socialista decidiu formar um partido próprio, fez uma aposta: Lula seria eleito presidente, a democracia nunca encontra estabilidade e longevidade em países atrasados – e o espaço para um partido revolucionário estava, enfim, dado. Neste aspecto, o erro foi completo. Devia-se, primeiro, deixar as condições objetivas amadurecerem tanto quanto possível e serem confirmadas, como com a eleição de Lula, para – uma vez que esperou longos 115

Valério Arcary demonstra em palestra que os organismos internos do PT, os de base em especial, tinham baixíssima presença de trabalhadores, sendo hegemonizados por jovens militantes (Arcary, De Jango a Lula, 2012).

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12 anos para romper – só então tomar a decisão de formar outro partido. Esse tipo de erro tornou-se típico no partido; por exemplo: no lugar de esperar amadurecer as condições objetivas e subjetivas para fundar uma nova entidade nacional estudantil, a organização decide antecipar-se, chegar primeiro, produzindo abortos (Conlute, ANEL). Usou-se uma tese impressionista para a ação militante116. A ruptura era necessária seja porque já havia ficado muito tempo dentro de outra organização seja porque iria abrir, em seguida, uma situação reacionária no país, que pressionava a degeneração partidária. A Convergência (PSTU) forçou a expulsão do PT ao propor o ―Fora Collor‖. A direção majoritária era contra o ―Fora‖ e o próprio congresso petista votou contra a proposta por ampla maioria. Rompendo a disciplina interna, a corrente impulsionou a luta pela queda do governo. Valério Arcary, ex-militante, faz o balanço: Foi um momento chave para a minha geração. Em especial, para aqueles com quem compartilhava a militância na Convergência Socialista. Tivemos um grande acerto tático e dois erros estratégicos graves, porque irreparáveis, nas consequências. Acertamos que era possível derrubar o primeiro presidente eleito depois de três décadas. Mas: (a) erramos ao subestimar a possibilidade de estabilização democrático-liberal em um país da periferia; (b) erramos ainda mais em apostar na possibilidade de disputar pela esquerda a influência de massas ao PT; (c) erramos ao não sermos capazes de evitar a explosão da corrente revolucionária, essencialmente, latino-americana, em que nos inseríamos. (Arcary, 11 de agosto de 1992: o impeachment de Fernando Collor, 2021)

E completa: O segundo erro foi a subestimação da força do PT e do apoio à liderança de Lula. Acreditávamos que, diante da gravidade máxima da crise econômico-social inflamada pela superinflação, e da linha quietista que saiu vitoriosa no I Congresso do PT, não era razoável aceitar as condições exigidas pela Articulação para permanecer como uma corrente interna ―invisível‖ diante dos movimentos de massas. O que aconteceu na sequência demonstrou que estávamos errados. A direção majoritária do PT se relocalizou a partir de agosto de 1992, chegou atrasada, depois que a UNE acendeu a

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Como no Brasil grandes mudanças aconteceram pelo alto, pela superestrutura – fim da condição de colônia pela vinda da família real, independência, fim da escravidão por decreto, início da república por golpe, modernização por governo ditatorial de Getúlio, queda da ditadura militar por acordos e gradualmente –, isso afeta a mentalidade dos dirigentes partidários, que caem no superestruturalismo. A questão central, por exemplo, é ganhar o sindicato no tudo ou nada, quando o foco deveria ser ganhar a consciência da base no local de trabalho.

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centelha, mas apoiou as mobilizações pelo Fora Collor. Lula foi o principal orador na Candelária e no Vale do Anhangabaú. O resumo da ópera é que derrubamos Collor, uma vitória tática, mas sofremos uma derrota estratégica. Tivemos que esperar dez anos pela eleição de Lula em 2002. (Idem.)

No congresso de fundação do PSTU, as correntes que se unificaram decidiram encerrar qualquer desconfiança entre elas com uma proposta estatutária: proíbe-se a formação de tendências e frações, partidos temporários dentro do partido, antes dos pré-congressos – liberando a formação de documentos individuais para os militantes. A possibilidade de estatuto de os militantes escreverem, a qualquer momento, documentos ao partido caiu em desuso como regra interna, sendo na prática proibida. POLÍTICAS IMPRESSIONISTAS Para melhor localizar-se sindicalmente, para manter os poderosos aparatos sindicais nas mãos de um pequeno partido, o PSTU passou a elaborar políticas para impressionar a vanguarda, que tende a se aproximar das posições mais radicalizadas. Assim, a elaboração deixou de ser um meio para atuar politicamente sobre as massas (mesmo que por meio prévio de convencimento do ativismo) e tornou-se meio de autopropaganda. Aquilo antes meio, ganhar os ativistas para que estes ajam corretamente sobre as massas, tornou-se um fim porque os sindicatos também se tornaram um fim em si mesmo. A busca por diferenciação constante e artificial em relação às demais correntes levou o partido a um perfil político duplo. Agita propostas mais radicais do que a realidade pede enquanto partido117 e, por outro lado, age dentro dos limites realistas do trabalho sindical enquanto organismo sindicalista (lembremos que burocratas, pelegos, também fazem greves duras). Isso é de tal forma que o jornal partidário não é um ―militante e organizador coletivo‖, pois suas matérias defendem os aspectos mais radicais do programa de modo artificial no lugar de serem um ―guia de ação‖ segundo a conjuntura. Damos um exemplo: se ocorre alguma inflação dos preços da cesta básica, exigimos no jornal e no movimento ―Todos às greves!‖ ou ―Todos às greves contra a carestia!‖ ou ―Unificar as greves por salário!‖; porém o jornal Opinião Socialista, do PSTU, frequentemente propôs aquilo que só é exigível em caso de hiperinflação, não inflação moderada, em caso extremo, ou seja, exigiu exageradamente ―gatilho salarial! – escala móvel de salário! – aumento dos salários em 3% a cada inflação de 3%!‖. Na prática, a militância nunca 117

Formalmente, um “mandelismo”, como criticado por Moreno em sua obra O Partido e a Revolução.

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levava tão a sério o que estava escrito, formando-se um grande hiato entre a política elaborada e a realidade dos militantes, e uma relação artificial com a imprensa partidária. Vejamos mais alguns exemplos. Diante do mensalão, sendo corretamente contra o Impeachment de Lula, o PSTU levantou a proposta ―Fora todos!‖, que tinha peso algum nenhum na realidade, na medida em que não era uma situação revolucionária ou de duplo poder (isso mesmo: ―Fora todos‖, isto é, fim do regime burguês imediatamente, até mesmo, no imaginário popular, na prática, fora PSTU). Nos protestos de 2013 por educação, saúde e transporte, a organização teve a chance de levantar propostas democráticas que teriam força transicional como ―10% do PIB para a educação!‖ e ―Rede única estatal de transporte público!‖ – mas radicalizou de modo artificial com ―Nem direita nem PT: trabalhadores no poder!‖ Não havia organismo de poder operário e popular, não havia disponibilidade de luta armada de massas, não havia possibilidade de o exército rachar, e assim por diante, e assim por diante. A proposta simplesmente era muito mais radical que a conjuntura. No dia a dia, o partido agita palavras de ordem as mais radicais, a exemplo da defesa de estatizações, à revelia da conjuntura – mesmo em situações não revolucionárias, etc. No caso da luta por estatizações, vale lembrar que a direita fascista (Enéias, Bolsonaro até antes de ser candidato à presidente, etc.) também fazia tais exigências, contra o privatismo – isso ocorre porque ambos estão baseados nas classes médias, especialmente nos servidores públicos. Já no começo do governo Bolsonaro, este ainda gozando de grande popularidade, o PSTU chamou o ―Fora Bolsonaro!‖. Assim, ganha simpatia da vanguarda por meio de uma política mais radical do que a possível no momento. Por mais desagradável que seja uma governança, só chamamos o ―Fora‖, se chamamos, quando o governo tem baixo apoio na classe trabalhadora e no setor popular; isso é o ABC da análise, caracterização e política marxistas, no entanto dirigentes com mais de 30 anos de experiência comentem este erro primário; o motivo disso é o que explicamos neste capítulo ao afirmamos, em resumo, que tais dirigentes já não são de fato comunistas, estão focados em manter, e manter-se nos, aparatos partidários e sindicais (há casos de militantes que são funcionários dos sindicatos, logo perdem a renda se o partido perde a direção da instituição, etc.). Políticas corretas podem gerar isolamento momentâneo, como ser contra uma guerra quando toda a nação está unida numa onda nacionalista e militarista. Políticas erradas podem gerar popularidade momentânea, como chamar o ―Fora Bolsonaro‖ antes da hora, antes de o governo perder apoio da maioria, junto com a vanguarda inexperiente e não educada cientificamente na escola marxista. A postura ultraesquerdista na verdade é um resultado de seu centrismo. Para manter o trabalho partidário nos sindicatos, precisa atrair jovens e ativistas, que tendem a simpatizar com

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políticas vanguardistas, deslocadas da conjuntura. É o exemplo da ruptura com a UNE, que gerou uma oposição artificial, um destaque ao partido, mas a partir de uma política errada, como se provou com os abortos de duas tentativas de fazer novas entidades estudantis nacionais – a Conlute e, depois, a ANEL (esta última ―fundada‖ sem o menor balanço do motivo daquela ter desandado). Evitamos, aqui, tratar de documentos internos, especialmente daqueles a partir de 2005, por haver dúvida sobre se isso seria moral. De qualquer forma, qualquer um que tenha documentos congressuais do partido perceberá um erro insistente do qual falamos neste parágrafo. O documento político da direção no pré-congresso deve, entre outras coisas, dizer em qual situação estamos (não revolucionária, pré-revolucionária, revolucionária, etc.) e, fundamentalmente, dizer quais tipos de propostas temos de levantar – as mínimas ou as transicionais? As democráticas ou as de poder? No entanto, congresso a congresso, o documento político encerra-se com uma longa lista em resumo de quase todas as palavras de ordens possíveis. E só. Deveria, ao contrário, indicar quais devem ser as propostas imediatas e as possíveis nos dois anos seguintes. Por exemplo: se estamos numa situação pré-revolucionária, deve-se priorizar as propostas transicionais, deixando as mínimas para a mera rotina, deve-se evitar por enquanto as propostas de poder, etc. A direção do partido, entre um congresso e outro, deve elaborar a política diante dos fatos novos e imprevisíveis, pondo suas propostas políticas para balanço no próximo período congressual partidário; mas o próprio congresso deve dar o norte – também aprovando propostas práticas – a partir de uma visão de conjunto do mundo e do país. Ainda entre um congresso e outro, pode-se fazer, sob democracia burguesa principalmente, uma conferência nacional para elaborar novas palavras de ordem e tomar novas decisões caso a conjuntura mude muito ou bruscamente, com os membros da conferência sendo os mesmos eleitos no congresso anterior ou novos eleitos nas regionais. Isso não existe no PSTU porque o centro não é a política partidária, mas a sindical.

TESES DE IMPACTO Outro aspecto do impressionismo são as teses de impacto. O partido elabora teses que visam manter ativas a esperança e a disciplina militantes. O primeiro exemplo foram as nomeadas teses de 90, que afirmavam ―a hora imediata do trotskysmo‖ e a abertura de ―uma nova etapa revolucionária‖; com a queda do muro de Berlim, teorizou-se que era a hora da máxima ofensiva política, o que se demonstrou um grande erro. Na mesma época, a direção do PSTU partiu da ideia da completa impossibilidade de democracia burguesa em países atrasados – algo que era verdadeiro antes de nossa época, modificado hoje por fatores como a alta urbanização – para

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afirmar que o possível governo nacional petista abriria espaço necessário para o partido revolucionário e para a revolução; o erro impressionista ficou claro depois. Recentemente, a tese da ―reorganização‖ é a ideologia movente, de modo artificial, da militância. No lugar de considerar como algo comum e relativamente constante a renovação dos quadros sindicais e políticos, cria-se a tese de que há um processo – pouco explicado, aliás, tal como a tese da ―onda conservadora‖ – de renovação política e sindical de algum modo especial. Todo dado empírico nesse sentido é posto como prova de tal novismo, ineditismo, ainda que seja algo de modo algum incomum. É claro, por exemplo, que a burocratização de uma geração leva a que a próxima surja tendo de enfrentar os novos burocratas, especialmente em tempos de crise. Isto é apresentado como grande tese, pincelado com fortes cores, algo que já é esperado. Ao mesmo tempo, tendese a associar reorganização apenas com ruptura; daí o erro do partido de romper com federações e sindicatos antes da hora; é claro que, se observarmos com atenção, a formação de nova vanguarda também se dá por meio de oposições, ganhar sindicatos, eleger-se para a CIPA, etc., não somente com rupturas institucionais. As teses de impacto ocorreram também quando se imaginou uma ―crise do regime‖ ou ―crise democracia burguesa‖ quando nada havia de fato – e deve-se lembrar que tais crises profundas acontecem se sua base econômica também está em crise. Outro caso: por diversas vezes, caracterizou-se como pré-revolucionárias situações que não eram de tal tipo; o impressionismo sobre o estado político social várias vezes tomou conta dos dirigentes e dos militantes. A perda de noção da realidade, a falta de calibragem, afeta as organizações revolucionárias muito minoritárias ou aquelas que se transformam em seitas. A AÇÃO ELEITORAL O ensinamento geral no PSTU afirma que as eleições são táticas, mas costuma-se esquecer de que o trabalho sindical também o é. Ambos são meios e serão limitados quando chegar a hora da revolução social. A posição sindicalista e a necessidade de uma postura ultraesquerdista para atrair ativistas levou a que a propaganda eleitoral da organização fosse uma antipropaganda na prática: aparecia como organização lunática perante as massas porque apresentava-se com dialeto militante, com propostas deslocadas da conjuntura, desleixo com a qualidade do material, etc. Tornou-se um partido folclórico, apenas abaixo, nesse sentido, do PCO e do PRONA de Enéias. A função da participação nas eleições é ganhar espaço, simpatia, boa audiência – não foi, com raras exceções, o caso.

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O PSTU melhora a estética de suas propagandas de modo incrível a partir de 2010. No entanto, apenas a estética: a apresentação melhor de propostas muito mais radicais do que a conjuntura, por exemplo, não muda a essência do problema. Em 1998, a organização é criticada pela LIT por ter enfrentado nas eleições apenas a direita, que então estava no poder, mas não ter destacado críticas ao PT. Em seguida, em 2002, caiu-se no erro oposto: focar a crítica ao petismo e ao lulismo. Naquele momento, de enorme esperança na frente popular, a melhor tática era pedir votos ao Lula ainda no primeiro turno por pelo menos três motivos: 1) acessar os trabalhadores nas eleições; 2) ganhar parte da vanguarda que surgiu no processo eleitoral; 2) acelerar a experiência dos assalariados com o partido reformista por meio de um governo. A política errada isolou o PSTU. Lembremos do ―Esquerdismo‖ de Lenin, onde ele afirma que os comunistas da Inglaterra deveriam facilitar, não ser obstáculo, a eleição do Partido Trabalhista (Lenin V. , 2020). O motivo: quanto antes os trabalhadores conhecessem um governo daquele partido, mais cedo perderão as esperanças nele. Faz toda diferença se ocorre uma situação revolucionária com os operários já considerando o PT como parte da ordem ou, ao contrário, ainda têm grandes perspectivas nessa organização… Veja-se que a política marxista, tais quais as táticas de guerra, é sofisticada. Com a formação do PSOL, surgiu novo erro. Apresentou-se como princípio a tática eleitoral de frente de esquerda ou chapa pura; qualquer variante diferente punha os militantes em crise, pois eram educados – dentro da política de diferenciação a qualquer custo – a considerar revolucionário apenas um corpo tático limitado (sob certas circunstâncias especiais, pode-se mesmo apoiar um candidato burguês, sendo vetado participar ou apoiar, ainda que criticamente, qualquer governo no Estado Burguês; mesmo no Estado socialista, só apoiamos o governo baseado na democracia direta). Dessa forma, quando há uma frente no Pará com a presença do PCdoB, que ao menos é um partido de esquerda, mas era governista, a militância entrou em crise. A solução foi a pior possível: após eleger o vereador Cleber Rabelo pela frente, o PSTU rompeu com esta de modo denuncista para recuperar a moral perante a vanguarda e sua própria base. Deveria manter o apoio, reeducar a militância, mas não participar do possível governo do PSOL, sendo oposição a ele. O cidadão comum e mesmo o ativista veem o PSTU como seita, em grande parte por sua desajeitada atuação eleitoral. Quando entra no partido, ao ser convencido, ele algo que tem o que chamamos em psicologia de alucinação negativa, esquece o caráter de seita da organização, pensando que isso ocorre apenas porque o partido que é revolucionário é de fato rejeitado por suas qualidades, não por seus defeitos… Apenas quando se afasta por motivos bruscos, tem a possibilidade de ver novamente, agora preenchido pela experiência, o caráter deslocado da

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realidade na organização. O interno externaliza-se, expressando-se, por exemplo, em momentos de mais audiência eleitoral. O PSTU tentou atrair o PSOL afirmando que este é centrista (na verdade, apenas reformista), melhor pressionável – mas a proposta regular de frente eleitoral com os psolistas e por uma unificação sindical revela que é aquele, o PSTU, que estava cedendo às pressões, que estava ―centrizando‖ diante de outro partido. O erro de fazer uma unificação das centrais Conlutas, dirigida pelo PSTU, e Interssindical, dirigida pelo PSOL, logo se revelou com a implosão vergonhosa do congresso que tinha esta tarefa (a burocracia sindical do PSOL queria com isso destruir a grande experiência da Conlutas). Ainda no tema deste subcapítulo, observa-se a pressa de se livrar das tarefas eleitorais, de disputar a consciência da maioria, especialmente no voto nulo. O PSTU aprova em muitos segundos turnos uma nota oficial pelo voto nulo – mas não milita por este voto, não o disputa. Ganharia moral em fábricas e bairros populares se fosse à campanha por este tipo de votação, ainda que com uma disciplina menor em relação a quando apresentou os próprios candidatos. Nestes casos, quanto mais votos nulos tivesse, mais frágil seria o governo burguês de plantão. O GOVERNO DO PT: A GRANDE PROVA O PSTU evitou o desvio oportunista típico das organizações de esquerda durante os governos de frente popular. Mas desaguou-se no erro oposto, quer seja, o sectarismo. O reformismo e suas frentes populares são uma armadilha ilusória não somente porque passam a ideia falsa de que faz um governo dos trabalhadores; também é um risco, pois, na medida dos limites do capital, se possível, faz algumas reformas, ainda que limitadas. O REUNI, por exemplo, ampliou as vagas universitárias e colocou no ensino superior filhos dos trabalhadores. O que seria correto fazer? Denunciar os limites do programa e exigir mais verbas; era preciso dizer ―isso é bom, mas ainda é pouco‖. Essa forma de fazer política, diante de uma reforma exigir sempre mais, é o que Marx nomeou revolução permanente (Marx & Engels, Luta de classes na Alemanha, 2010). O partido deixou de ver as reformas, na maioria dos casos chamando-as contrarreformas, e, logo, deixou de fazer exigência por aprofundamento das melhorias. Por exemplo: numa posição sindicalista, colocou-se contra o programa ―Mais Médicos‖, que melhorava a vida da classe trabalhadora e era contra a aristocracia dos médicos nacionais. O correto seria exigir mais verbas, mais SUS, melhores salários aos cubanos, etc. A combinação de governo de frente popular com algum crescimento econômico, situação não revolucionária, tendeu a colocar os revolucionários em minoria ou com pressões

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degenerativas; faltava base social para um partido comunista. Isso foi aprofundado pelos erros políticos da direção do PSTU. Como é comum, em especial em épocas de crise, a frente popular do PT foi a antessala de um golpe. É uma lei histórica relativa que tal tipo anormal de governo, frente populista, produza o golpismo contra si e contra os trabalhadores. No entanto, o PSTU negou-se a colocar-se contra o golpismo, vendo aí até um fenômeno progressivo (no caso, os protestos da classe média aristocrática pedindo o fim da gestão e… poder militar). O golpe de Estado reacionário, não contrarrevolucionário118, visava acelerar os ataques contra os trabalhadores, pois o governo Dilma, ao perder as ruas e o apoio da população assalariada, era incapaz de aprofundar ainda mais as contrarreformas119 (na mente dos burgueses, o bloqueio do PT sobre fazer mais e novos ataques contra a maioria soou para eles como um limite classista do governo e do partido, como se ligado aos trabalhadores e aos ―terroristas dos sindicatos‖; mas é apenas um engano do pensamento vulgar da classe dominante 120). O governo Dilma merecia cair por derrubar a

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Eduardo Almeida, hoje, infelizmente, apesar de seu balanço real, dirigente da LIT, afirma: “Com o impeachment, não houve nenhuma mudança em relação ao regime democrático burguês. Se houvesse realmente um golpe, teria havido uma mudança para um regime repressor, para uma ditadura. Mas isso não ocorreu.” (Almeida, 2021) Não saber diferenciar um golpe reacionário de um contrarrevolucionário, não saber medir – eis a qualidade dos quadros do PSTU. A LIT colocou-se, corretamente, no caminho aposto ao “critério” de Eduardo almeida, contra os golpes na Bolívia, Paraguai e Honduras, no nosso subcontinente, mesmo sem mudança total de regime, sem novo “regime repressor” – porém não soube ler internacionalmente a realidade, o fato de que a crise de 2008 abriu uma nova tendência, expressa também em golpes parciais, reacionários. 119 Almeida continua: “A maioria da burguesia, que se deu muito bem com o PT por 14 anos, rompeu com Dilma e apoiou o impeachment. O PT já não tinha bases para conseguir implementar os novos planos de reformas que a burguesia queria. Assim, a burguesia aprovou impeachment e colocou o vice-presidente de Dilma, Michel Temer, no poder.” (Idem) Ora, se o golpe visava acelerar e até permitir ataques contra os trabalhadores, logo deveríamos ser contra ele… O autor citado responde: “Naquele momento, o PSTU, corretamente, não saiu em defesa do governo burguês de Dilma, nem apoiou a manobra para empossar Temer, defendendo ‘Fora Todos Eles!’.” Veja-se o grau artificial de impressionismo! A palavra de ordem “Fora todos eles!” serviu apenas para evitar assumir qualquer responsabilidade real na luta de classes, uma consigna inútil para aquela conjuntura, uma proposta – bastante duvidosa até para a revolução – apenas (insistimos, apenas) para situações revolucionárias, nem mais nem menos, apresentada de modo ultraesquerdista numa situação em que ela não cabia e em que ela não mobilizaria a classe trabalhadora. É preciso destacar que aí há um vestígio da política errada LIT, o “nem-nem”. Em vez de elaborar uma proposta real, positiva, a direção da internacional muitas vezes cai em “nem isto nem aquilo”, “nem Assad nem imperialismo”, “nem golpe nem roubo eleitoral”, etc. Isso é uma forma pobre, “fácil” e equivocada de elaborar política, deve ser abandonada, pois nada propõe de fato (e há que se propor de acordo com as circunstâncias, sem políticas mais radicais do que a conjuntura como forma de fugir da responsabilidade). 120 Aí é possível ver como a classe dominante age enquanto máfia, escondendo o que está de fato em jogo. Após o golpe, o vice, Temer, assumiu o governo, sem cair junto à Dilma por “impedimento”; então, para garantir que ele fizesse todos os ataques possíveis contra a classe trabalhadora, a justiça impediu que ele fosse capaz de se reeleger, ou seja, que não buscasse apoio popular. A possibilidade

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qualidade de vida dos assalariados, mas nunca por meio de um golpe jurídico-parlamentar: a saída seria exigir a antecipação das eleições gerais, forçar os limites democráticos do regime cuja patronal queria impor duras derrotas sobre os trabalhadores. O PSTU, neste momento histórico, falhou na prova de fogo do frente populismo. Cristalizou-se como seita. ALGUMAS CARACTERÍSTICAS Vale a pena entrar nos detalhes amplos e de rotina da organização, os ―pequenos nadas‖, as expressões do centrismo na prática, etc. A vida partidária responde à sequência de erros do partido, acomodando-se a eles, e às conjunturas impróprias a uma organização vermelha, gerando uma estabilidade interna negativa. 1. Algo comum na militância, os dirigentes médios argumentam frequentemente que ―esta proposta não é possível, pois a consciência das massas ainda está atrasada‖. Isso é um erro. Nós nunca nos acomodamos à consciência das massas – nós a disputamos, procuramos elevá-la. As propostas práticas partidárias levam em conta, em primeiro lugar, as condições objetivas da realidade: situações de estabilidade exigem propostas mais leves, situações radicais exigem propostas mais radicais. Nem mais nem menos. Após a análise da objetividade, apenas após, consideramos a situação subjetiva. Observamos a subjetividade para melhor elaborar as palavras de ordem, para escolher estas ou aquelas propostas em hierarquia, etc. O fator subjetivo pesa muito, mas nunca é o determinante. Vejamos um exemplo. Se há dura crise econômica com alto desemprego, existe a possibilidade latente de socialismo, porém os trabalhadores consideram o revolucionamento da sociedade uma utopia. O que devemos fazer? Com o baixo emprego, temos de exigir ―Escala móvel de tempo de trabalho!‖ ou ―redução já da jornada, com o mesmo salário, na proporção que gere desemprego zero!‖ De início, tal proposta parecerá bastante radical para a maioria, no entanto, na medida em que a situação não melhora substancialmente, na medida em que agitamos esta proposta com força e em todo canto, os trabalhadores adotarão a fórmula para si – e isso levará a uma tentativa de saída ―reformista‖ que levará o país para as portas do poder operário e popular. 2. Outro hábito ocorre quando ao esperar que os documentos internos, especialmente os congressuais, sejam impressionantes, motivadores. Entra aí o perfil impressionista. Os militantes são previamente condicionados a concordar com a direção nacional, algo quase religioso. O de reeleição, porque o governo quer manter-se, atrasa os ataques sociais; isso foi evitado no governo golpista por ação burguesa por detrás do palco político.

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membro que concorda e defende a posição oficial é valorizado, ganha pontos, enquanto o militante crítico entra numa posição defensiva. O curioso é que, normalmente, o militante só esboça críticas quando está em crise com o partido ou em vias de sair da organização. A cultura de elaboração coletiva, de pensamento livre, não existe aí. Num partido revolucionário, é preciso educar intensivamente para a capacidade de pensamento autônomo (aprender a fazer análise de conjuntura, ganhar experiência, estudar, desenvolver o raciocínio dialético, etc.); num partido onde há pequeno poder, onde se quer preservar os mesmos quadros, um militante que se tornar inteligente demais deve ser excluído. 3. Ao afastar o militante, usa-se comumente uma tática estalinista ao dizer que o antigo membro é ―lupem‖, burocrata, etc. Visa-se blindar os militantes contra as possíveis críticas dos ex-membros. A quantidade enorme de afastamentos formalmente individuais, nucleares, exige superar a visão parcial e ver que tal grande quantidade de desligamentos deve ter uma causalidade comum. 4. Herdou-se de Nahuel Moreno a cultura de fazer autocrítica. No entanto, tal hábito tornou um modo dos dirigentes pouco sofrerem as consequências de seus erros, preservando-se. É um tipo de manobra comum. 5. Formalmente, os dirigentes são eleitos pela base (algo permitido com mais facilidade pela democracia burguesa). Ocorre que é apenas uma formalidade: os dirigentes escolhem quais serão os novos dirigentes, no lugar de essa preparação ser feita por eleição – a base deve, ela mesma, votar quais militantes serão preparados como dirigentes futuros. Isso não ocorre, a escolha é arbitrária. Na prática, os dirigentes escolhem novos membros das equipes de direção e a base apenas confirma, sem ter muito que fazer sobre. 6. O nível teórico dos quadros geralmente é baixa. Quando um militante evita o tarefismo praticista para dedicar-se um tanto mais aos estudos da teoria, passa a ser visto como um diletante e um militante menor. 7. Quando um militante torna-se ―esperto demais‖, os dirigentes oferecem novas e pesadas tarefas ao membro rebelde, como se uma forma de reconhecimento, mas apenas para que este ―quebre‖, tome responsabilidades altas sem ser antes preparado para isso. Aí vem a desmoralização do membro. 8.

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Em regionais e sedes não proletárias, a maioria, a classe média dentro do partido torna o ambiente insuportável aos operários e aos mais precários. Há até mesmo desdém, semiinconsciente em alguns casos, de militantes contra aqueles membros ―com cara de empregada doméstica‖. Fato é que o partido tornou-se uma espécie de clube – como diz Moreno: quer-se viver dentro da organização – em que regras formais e, importante notar, informais devem ser critérios para participação. 9. Entre as expressões do centrismo no cotidiano militante, observamos a tendência a considerar sempre positivo o balanço das tarefas. Porque não foi um desastre evidente ou gritante, tem-se a cultura de ―otimismo‖ na avaliação das ações práticas dos militantes. Entre todas as consequências ruins desse hábito, atrasa-se a formação dos militantes e o desenvolvimento do partido ao deixar de ver seus próprios erros como se deve. 10. Entre as más influências do PT, do entrismo, sobre o PSTU está a tendência à valorização dos militantes de melhor oratória. Tal habilidade é boa para ganhar eleições e sindicatos, mas quase secundário para a causa socialista. Muitos militantes chegam a pensar que fazem muito ao muito e muito bem discursar nas assembleias, enquanto outros militantes envolvem-se em tarefas invisíveis essenciais121. Os militantes que são ótimos organizadores, teóricos, etc. poucas vezes recebem o mesmo crédito informal. 11. Por muito tempo, o partido teve o hábito de reunir-se frequentemente ―às pressas‖ no formato de plenárias. Outro hábito de origem petista, pois a plenária na prática, por reunir muito para tarefas imediatas, pouco debate e o dirigente decide, além de ter importância maior a oratória. Em outros casos, não havia reunião de célula de base (núcleo) regular e o dirigente resolvia tudo por telefonema, decidindo ele mesmo a política e as tarefas. Isso é péssimo para a disciplina que a própria vida sindicalista exige, por isso o partido combate até hoje, com menos ou mais sucesso, esse desvio organizativo. 12. Com a formação mais regular das células (núcleos), contra o erro comum demonstrado no ponto 11, outro problema revelou-se: o pequeno poder. Na prática, o dirigente político do organismo decide tudo e apenas debate detalhes, como aplicar, quem vai para esta ou aquela tarefa. Nada há de debate real e elaboração coletiva.

121

Os operários também dão grande importância ao uso das palavras, mas é algo típico da classe média, cujo trabalho dá grande peso ao discurso ou há baixa ação prática no cotidiano, diferente de entre o proletariado. O caráter de classe dos membros do PSTU, pertencentes aos setores médios, leva a chamar “um quadro de destaque” e “um grande talento” aqueles bons oradores.

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UM PARTIDO DA REVOLUÇÃO? O centrismo ultraesquerdista tem a aparência de um partido revolucionário. Sua natureza vem da presença da classe média – incluso dirigente sindicais – em seus postos de comando, baixo peso operário e largo peso estudantil. A história, no entanto, usa dos meios dispostos diante de si para fazer valer sua vontade. As revoluções sociais do século XX, exceção da revolução russa, foram lideradas por organizações centristas, que se viram forçadas objetivamente ao caminho da economia planejada. Há a hipótese de ser este o caso do PSTU ou PCB no futuro próximo, na falta de uma organização revolucionária independente. É improvável que o partido corrija seu perfil geral. Sua coluna central de dirigentes parece ter cristalizado o caráter pequeno burguês de suas ações. Sendo uma previsão, pode estar errada: se uma reviravolta partidária ocorrer por pressão da luta de classes e da crise?… Há pelo menos dois acertos destacáveis da organização: 1) a formação da CSP-Conlutas; 2) a prática internacionalista. Mesmo um relógio quebrado acerta as horas duas vezes ao dia. Tais acertos demonstram que o centrismo difere-se do reformismo porque aquele tem em si certo hibridismo, entre a reforma e a revolução. E é incapaz de superar seus limites, que expressam a classe média, entre o operário e o burguês. Tais acertos também respondem ao passado da organização, que foi de fato um partido comunista até degenerar-se em centrismo ultraesquerdista perante a soma de governo de frente popular com algum crescimento econômico e o recuo da luta de classes nas décadas de 1990 e 2000. Mais ou menos 20 anos de recuos, derrotas, frente populares, quase marginalidade, etc. cobram um pesado preço. Diante da defensiva, o PSTU focou por mais de uma década no movimento estudantil e foi incapaz de proletarizar-se nos últimos anos, especialmente desde 2005. Na década de 1990 teria acertado se, fazendo um giro temporário, apostasse também no movimento popular urbano por moradia, então nascente. Hoje seria, se estivesse tomado tal caminho, a direção majoritária dos sem-teto. O PSTU é ainda o mais operário dos partidos da esquerda radical. Mas tem peso maior no operariado aristocrático (petroleiros, etc.), nos funcionários públicos, na burocracia sindical de esquerda e entre estudantes de classe média. Em parte, é vítima do destino. A conjuntura reacionária após a queda de Collor de modo algum ajudou na cristalização do recém-fundado partido expulso do PT

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GUERRAS, NÃO CRISES, ESTIMULARAM REVOLUÇÕES SOCIAIS

Entre marxistas, a percepção mais geral da revolução segue este roteiro: o capitalismo produz duras crises, tenta-se resolver por lutas parciais e reformismo, o aprofundamento das tensões sociais eleva com atraso as conclusões dos trabalhadores, um partido de tipo novo demonstra ser a melhor organização para impor, via revolução, nova época de reformas. Ricas em particularidades e singularidades, várias revoluções derrotadas seguiram a tendência, exceção da presença de partidos revolucionários. No entanto, as revoluções sociais, ainda que limitadas, do século XIX e XX foram, em geral, frutos das guerras; os conflitos armados precederam as revoluções. Vejamos exemplos: 1) A guerra franco-prussiana desemborcou na Comuna de Paris; 2) A I Guerra produziu revoluções na Alemanha, na Itália e uma vitória na Rússia. Neste último, foi levada a cabo a proposta dos socialistas de boicote à guerra, transformando-a em revolução social; 3) A II Guerra afastou o Leste Europeu, a Coreia do Norte e a Alemanha Oriental de um desenvolvimento capitalista; A seguinte citação de Trotsky revela o motivo do caminho militar:

―Enquanto escrevo estas linhas, a questão dos territórios ocupados pelo exército vermelho ainda permanece obscura. […] A maior parte dos territórios ocupados serão, sem sombra de dúvidas, parte da URSS. De que forma?‖ […] é mais provável que nos territórios que foram planejados para fazer parte da URSS, o governo de Moscou atue expropriando os grandes proprietários e estatizando os meios de produção. Esta variante é a mais provável, não porque a burocracia continue sendo fiel ao programa socialista, mas porque não deseja e nem é capaz de tomar o poder e os privilégios que comparte com a velha classe dirigente nos territórios ocupados. Aqui, é forçosa uma analogia literal. O primeiro Bonaparte deteve a revolução através de uma ditadura militar. No entanto, quando as tropas francesas invadiram a Polônia, Napoleão assinou um decreto: ―A servidão está abolida‖. Tal medida foi adotada, não porque Napoleão simpatizasse com os camponeses, e nem por princípios democráticos, mas pelo fato da ditadura bonapartista se basear em relações de propriedade burguesa e não feudais. À medida em que a ditadura bonapartista de

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Stalin se baseia na propriedade estatal e não na privada, a invasão da Polônia pelo exército vermelho levará, por si só, à abolição da propriedade privada capitalista, da mesma forma que fará com que o regime dos territórios ocupados estejam de acordo com o regime da URSS. Esta medida, de caráter revolucionário – ―a expropriação dos expropriadores‖ – neste caso é levada a cabo de forma burocrático-militar. O chamado à ação independe das massas nos novos territórios – e sem tal chamado, inclusive formulado com extrema prudência, é impossível constituir um novo regime – seria indubitavelmente esmagado no dia seguinte, por desapiedosas medidas policialescas, visando assegurar a predominância da burocracia sobre as massas revolucionárias vigilantes. (Trotsky, A URSS e a guerra, 2009)

4) A luta contra o Japão e, depois, contra o Kuomintang forçou Mao Tse-tung a mudar a natureza do Estado; 5) A guerrilha vanguardista de Fidel agia sob um programa liberal-burguês. Após a vitória militar, o erro do governo dos EUA de pressão e envio de tropas na chamada Batalha da Baía dos Porcos fez o novo poder radicalizar-se e alinhar-se com a URSS; 6) O Vietnã teve de enfrentar franceses e, depois, americanos, conseguindo sua independência radicalizando, por meio de uma revolução socialista. O título deste capítulo é parcial, pois as guerras têm origem econômica, portanto são expressões das contradições internas do sistema. Os conflitos armados geraram elevadas contradições e exacerbaram as existentes a níveis capazes de forçar revoluções sociais. As guerras fermentaram os trabalhadores, trouxeram problemas sociais (carestia, etc.), formaram novos soldados entre homens do povo e acarretaram problemas ao funcionamento do Estado burguês. A conclusão ―a guerra é a parteira da história‖ adquire significado mais amplo 122. Kurz alcança conclusões semelhantes:

122

Observemos que a passagem do escravismo ao feudalismo na Europa teve como uma das causas, além da crise sistêmica do mundo antigo, as guerras e invasões de povos vizinhos à Roma. Poderia ser que com a crise e decadência romana, outro grande império escravista dominasse em substituição, sem passagem ao feudalismo.

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É bastante evidente que, no sistema capitalista mundial, mais conhecido como imperialismo, a guerra não é de modo algum a consequência direta da 'crise econômica', nem da crise de 'superprodução', nem de qualquer outra, mas se encontra baseada na lógica de concorrência do mercado mundial e na dinâmica interna da política mundial erigida sobre ela. As revoluções mais essenciais deste século não decorreram das crises econômicas e, nesse sentido, também não resultaram da incineração da lógica capitalista enquanto tal, mas de um contexto de crises políticas, conjugado a conflitos militares e derrotas das classes dominantes: começando com a Comuna de Paris de 1870, depois a Revolução de Outubro, a Revolução Alemã de Novembro, a Revolução Chinesa após a Segunda Guerra Mundial… (Kurz, O colapso da modernização, 1992, p. 48)

Algumas revoluções socialistas inconscientes e derrotadas também abraçam tal tendência. França e Grécia quase se tornaram socialistas ao final da II Guerra, mas os partidos de esquerda oficiais cuidaram do desarmamento do povo e do recuo reformista das pautas. O conflito colonial português radicalizou a baixa patente das Forças Armadas e deu origem a uma rebelião que se desenvolveu na revolução dos cravos em 1974, contra a ditadura e com elementos de transição ao socialismo. É do interesse marxista que uma guerra por lucro não preceda uma revolução social, porém agimos segundo a realidade, nunca temos o privilégio de escolher o cenário. As próximas revoluções sociais seguirão o roteiro dominante? Coloquemos condição para a hipótese: se e enquanto houver guerras imperialistas, é provável. Mas estamos diante das últimas décadas do capitalismo, logo as crises econômicas serão mais duras e a possibilidade de uma via socialista mais plena. Estando correta a nossa caracterização de que as revoluções sociais do século XX foram prematuras, concluímos que a exacerbação dos problemas econômicos e sociais por razão da guerra forçou um salto histórico antes das condições de sua realização estarem prontas. O martelo da história comprovou sua verdade com a restauração do capitalismo, isto é, com a resolução negativa da oposição entre as tendências socialistas e capitalistas naqueles países.

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CRISE LATENTE DO APARATO DE REPRESSÃO ―Nesta terra de gigantes que trocam vidas por diamantes…‖ Humberto Gessinger. ―A única garantia possível de democracia é um fuzil no ombro de cada trabalhador‖ Lenin. ―O desarmado rico é o prêmio do soldado pobre.‖ Maquiavel, A Arte da Guerra, LPM, p. 200. A sempre possível luta entre Estados nacionais estimula como lei objetiva o alto desenvolvimento da maquinaria de combate. Por outro lado, para enfrentar a superprodução crônica latente, o capital produz uma pseudodemanda e um pseudoconsumo destrutivo com o desenvolvimento de um Departamento III da economia 123, o complexo industrial-militar (Mészáros, Para além do capital, 2011). Derivamos de tais constatações duas conclusões que se revelam de modo latente, estrutural: 1) as condições são mais favoráveis para enfrentamentos anti-imperialistas e revolucionários; 2) gesta-se uma crise do aparato de repressão. Ao longo desde capítulo, vamos destacar fatores centrais sobre os quais se baseiam as duas caracterizações. O MAQUINÁRIO DE GUERRA Igual como nas fábricas, o maquinário tem ganhado peso significativo no exército burguês. Isto gera uma série de problemas insolúveis: 1. Custos altos de construção e manutenção dos grandes aparatos (tanques, aviões, navios, etc.); 2. Máquinas caras e pesadas, de alta tecnologia, podem tonar-se inválidas por explosivos e armamentos semiartesanais ou de baixo custo: ―Os CBTPs sofrem ameaças ao seus deslocamentos e integridade de diversas fontes, e devido à natureza da guerra contemporânea qualquer forma de atraso ao movimento das colunas blindadas implica em tempo maior de duração do conflito, aumento de 123

Departamento I é o setor de produção de meios de produção; departamento II produz os meios de consumo. Tais conceitos, não o departamento III, são de Marx no livro II d’O Capital.

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baixas e crescente oposição interna e externa às forças amigas. Portanto meros fossos AC podem se tornar armas estratégicas em uma luta onde o campo de batalha físico é apenas uma parte dela, na guerra assimétrica ou não convencional.‖ (Carvalho & Carvalho, 2015)

Em seguida, há exemplos de armas AC – destacamos duas partes do artigo: a) Foguetes - projéteis relativamente simples, providos de ogiva em formato de carga oca revestida por cobre, tem sua capacidade de perfuração associada com o diâmetro da ogica, pricipalmente. Tem baixo custo e não são guiados após o disparo. Os mais simples são os antigos RPG-7 russos e os mais modernos os Panzerfaust 3 alemães. Um mero RPG-7, equipado com granada tipo PG-7V pode perfurar 260 mm de aço balístico plano rolado. […] c) Explosivos Improvisados – Armadilhas nos campos de batalha não representam novidade, mas o acesso à arsenais de governos e o apoio de países simpatizantes faz com que pequenos grupos em luta tenham acesso a explosivos de grande potência e em grande quantidade. Na invasão do Iraque os americanos lidaram com granadas de artilharia e obuses em profusão, obtidos dos paióis dos antigo exército iraquiano, e que eram escondidos nas margens de rodovias e passagens movimentadas do país, causando explosões tão fortes, que eram capazes de despedaçar as viaturas Humvee, caminhões, CBTPs Bradley e mesmo imobilizar alguns CC Abrams M1. Toda viatura que se coloque hoje como sendo capaz de operar em cenários de guerra assimétrica ou convencional, terá que ser preparado desde a concepção do projeto para lidar com isto. (Idem)

Caso russo, vejamos uma das reações a isso: As rodas e as lagartas dos mais recentes veículos blindados nacionais criados na base da plataforma Armata serão equipadas com uma proteção adicional. O projeto é conduzido pelo Instituto de Pesquisa Científica da Rússia (NII, na sigla em russo). Ao longo do perímetro do veículo serão instalados ―escudos laminares‖ que se assemelham visualmente às grades de proteção dos beliches do quartel. Isso irá proteger os blindados contra os meios de destruição mais impactantes: granadas cumulativas e mísseis antitanque. A tarefa do novo kit é deformar a cabeça da granada quando ela acertar o alvo e amortizar parte da energia da explosão. Além disso, os projetistas ressaltam que, em termos de indicadores de desempenho de combate, as grades de proteção não ficam atrás da blindagem reativa.

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"São mais baratas, tecnicamente mais simples, e permitem melhorar em algumas vezes a proteção do motor e da transmissão em condições de combate urbano. A principal desvantagem é a baixa universalidade. As grades de proteção protegem o blindado somente contra alguns tipos isolados de granadas de mão antitanques", disse à Gazeta Russa Dmítri Safonov, analista militar do jornal Izvêstia. (Litôvkin, 2016)

De imediato, percebemos uma das razões de tantos conflitos do pós-II Guerra terem sido derrotados por exércitos rústicos contra os de enorme aparato. A Guerra entre URSS e Afeganistão parece-nos um bom exemplo, pois o primeiro investiu em uma numerosa invasão de tanques fracassada diante da resistência guerrilheira da Al-Kaeda e dos camponeses. Exemplos semelhantes: Guerra do Vietnã, revolução chinesa, revolução cubana. 3.

Surge uma relação dúbia com a urbanidade. Nessa questão, o artigo a seguir revela: O novo tanque será apresentado no stand russo na feira de armas Kadex-2016 […] O modelo, adaptado para combate urbano, é equipado com o novo sistema de controle de fogo com um sistema de mira Multicanal Sosna – o qual inclui um computador balístico digital e um conjunto de sensores bastante complexo (velocidade do vento, temperatura de propulsor, temperatura e pressão do ar, velocidade do tanque e sensores de velocidade angular). De acordo coma Gazeta.ru, o novo T-72 foi concebido como base na experiência russa da guerra na Síria e em outros conflitos no Oriente Médio. (Padilha, 2016)

A matéria conclui-se com chave de ouro: ―Se você olhar bem, os conflitos armados no mundo ocorrem principalmente dentro das cidades; ninguém se atreve a combater em campo aberto, pois isso levaria à destruição instantânea [dos veículos blindados]‖, observou o vice-diretor da Uralvagonzavod, Viacheslav Khalitov. (Idem)

Percebemos, no entanto, no caminho oposto à tendência natural do aparelho burguês, que o espaço urbano é melhor para a infantaria, por sua mobilidade e capacidade de localização/ocultação. ―Digo-vos, primeiro, que os cavaleiros não podem andar em qualquer lugar como o fazem os infantes‖ (Maquiavel, 2013, p. 65). O comentário citado leva em conta a guerra regular enquanto também destacamos a guerra revolucionária. Observamos que a altíssima urbanidade é um fator objetivo da luta revolucionária, pois concentra os oprimidos em grande quantidade para fins de mudança estrutural.

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4.

É conhecimento generalizado o balanço das guerras do Iraque e Afeganistão: a

dominação militar direta demonstrou-se por demasiado custosa financeira e politicamente, empurrando os EUA para um atoleiro instável. Para isso, há influência do custo do maquinário, da matéria-prima (energia etc.) e da logística de transporte. Outro fator colabora: o lado que dispensa fazer engajamento em outra nação, que não precisa deslocar-se de suas fronteiras, em uma posição territorial defensiva (mesmo que ofensiva nas táticas), possui relativas vantagens: facilidade maior de prover seus exércitos, maior capacidade de unir a nação na defesa, custos de transporte e meios reduzidos, intimidade com o terreno, etc. Por si, assim igual à Guerra do Vietnã, temos um fator limitante para o capitalismo imperialista. FATOR HUMANO A infantaria é a essência do exército; o peso do maquinário revela uma lei geral da arte da guerra: ―os povos ou reinos que estimaram mais a cavalaria do que a infantaria sempre ficaram frágeis e expostos a toda ruína‖ (Maquiavel, 2013, p. 63). No subcapítulo anterior, isso expomos como erro inevitável do conflito entre Estados. Porém o homem é uma ferramenta falha, difícil de adestrar: 5. Os exércitos oficiais, principalmente os imperialistas, procuram oferecer aos subordinados alguma qualidade de vida, a mais próxima possível da dos seus países ricos; estes, desacostumados com a dificuldade e com o stress, tornam-se um problema em si nos momentos mais difíceis do conflito – e é um custo financeiro adicional; movimentos revolucionários e mesmo exércitos de países atrasados possuem um material humano acostumado com a escassez, com o stress, com o risco e com o limite. 6. Ao mesmo tempo, os exércitos oficiais, dos Estados, têm um pouco mais de dificuldade para dar aos seus a causa, o sentido da luta e a percepção de ―nobreza no ato‖ – as I e II grandes guerras estão cristalizadas na memória coletiva assim como a desmoralização causada pelas guerras do Vietnã, Iraque e Afeganistão. Do outro lado, exércitos religiosos (ISIS, etc.) ou subversivos e revolucionários possuem este fator ideológico-disciplinador mais apurado. 7. Os filhos dos assalariados são a geração mais letrada, mais culta da história humana. Inteligência quando somada à moral pode ser um empecilho. No Brasil, políticos burgueses criticaram as greves da polícia militar com a justificativa correta de que os soldados eram defeituosos, pois boa parte deles havia feito curso superior, o que motivaria motins… 8. A alta concentração urbana facilita lutas latentes contra as guerras do capital, além de facilitar as rebeliões dos escravos assalariados.

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Das vantagens materiais – e eles são em si importantes – de um poderoso exército imperialista, um fator se impõe: toda a logística moderna envolvida faz com que seja necessário mais homens fora do combate – médicos, engenheiros, limpeza, segurança de perímetro, administrativo, comunicações, mecânicos, etc. – que aqueles para o enfrentamento. Há custo acrescentado e complicabilidade. HIERARQUIA E MOBILIDADE 9.

A gestão do tempo e suas consequências ganha importância maior. Assim sendo, o

exército burguês tem uma dura desvantagem ao adotar uma hierarquia de comando vertical, complexa, cheia de subdivisões e centralizada. Isto torna as forças armadas lentas para ordenar, receber e executar ordens. Hierarquias como a do Exército vermelho de Leon Trotsky, onde cada batalhão respondia apenas a um oficial, possuíam decisão, ação-reação e mobilidade superiores. Neste ponto específico, assim igual organiza-se o ISIS, além de permitirem autonomia de ação de suas células: É um típico combate de infantaria praticado com maestria pelo Estado Islâmico, conduzido de modo descentralizado – a iniciativa é transferida aos pequenos escalões e travado a curta distância – os últimos cem metros. Pressupõe, porém, grande savoirfaire na preparação das operações (reconhecimento, informações, treinamento com base em mapas, cenários e maquetes, instalação de depósitos avançados de munição e suprimentos), da utilização do micro terreno (ravinas, taludes, trilhas, construções, escombros, etc.) e de ações noturnas facilitando a infiltração e o combate aproximado. (Aranha, 2015)

10.

Os oficiais e o alto comando das forças armadas são formados por gente ―bem de vida‖,

acostumados ao trabalho ―intelectual‖ e à vida de poucos círculos sociais. Os grupos militares subversivos, por outro lado, costumam ter no comando gente prática, conhecedora dos aspectos prático da vida, com ligação orgânica com sua base social, que entende a vida comum e estão acostumados a ter pouco. Esta diferença do material humano – acentuada neste momento histórico –, uma diferença que permeia as classes, determina perfis decisórios. Segue válida a contribuição de Clausewitz: os grandes comandantes surgem entre homens do povo. 11.

Em nossa época, os exércitos burgueses procuram profissionalizar seus membros em

todos os níveis de hierarquia. Isto tem algumas consequências: afasta seus membros da vida real e da noção de como ela é para a maioria e recebem uma qualidade formal de vida que os ―desadestram‖ para situações de colapso; além disso, há um custo acrescido para a manuntenção de profissionais. Na crise sistêmica do escravismo romano e, em parte, na do feudalismo, tornou-

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se um sinal do fim daqueles mundos o fim da força militar como sinônimo de cidadãos armados – senhores de escravos, cavaleiros medievais, etc. – e início da profissionalização do exército com salários tendo de ser pagos. Quando o Estado era incapaz de pagar seus funcionários, ocorriam greves e rebeliões. PROBLEMAS LATENTES 12.

Por os pontos acima levantados, o ISIS pode fundar a ―guerrilha ofensiva‖; aproveita a

lentidão do comando e de parte do maquinário oficiais para substituir a tática ―atacar-recuar‖ por ―atacar-desarticular‖ usando os princípio da guerrilha: armas leves, mobilidade, hierarquia simples, autonomia das ações, sabotagem, propaganda e guerra psicológica; porém, com caráter ofensivo, e não o defensivo do fraco em relação ao forte comum às guerrilhas. Como causa, os exércitos burgueses estatais incharam-se para o enfrentamento inter-Estados, mas isso os coloca em dificuldades latentes diante da luta entre classes. 13.

As empresas que atuam no campo militar – da produção de arma à mercenários – tendem a

tornar a guerra um fim em si mesmo, uma fonte direta de lucro. Isso é um problema tratado na história da arte militar como a causa de ruína de reinos. Até mesmo empresas de construção visam a guerra de modo artificial para futuras reconstruções no país destruído. 14.

A urbanidade elevada fez surgir uma ampla categoria de assalariados armados nos setores

públicos e privados, porém precários. As diferenças entre as condições de vida dos comandantes e a dos da baixa hierarquia tende a rachaduras no aparelho de policial e de segurança. Gesta-se, assim, parte da tendência à quebra do Estado burguês: as greves na polícia, por exemplo, são sintomas de que podem, parte da baixa hierarquia, no futuro passar para o lado da revolução. 15.

Em um artigo que serviu de base para este capítulo (Estado Islâmico – aspectos Operacionais:

Revolução Tática ou Infantaria Leve na Era Global, de Frederico Aranha), encontramos uma observação intuitiva do autor: Neste sentido, pode-se conjecturar que uma tal forma de organização é comparável à que existiu entre o século quinto e o oitavo da nossa era, com o surgimento dos nômades das estepes (Vândalos, Avaros, Godos, Magiares) e os árabes, todos capazes de derrotarem os exércitos ocidentais graças a sua mobilidade extraordinária. Esta comparação tem como objetivo colocar a perspectiva "revolução tática" para identificar alguns elementos potenciais. A resposta do Ocidente para as invasões dos cavaleiros da estepe é esclarecedora sob diversos aspectos para a nossa realidade contemporânea. Sob os repetidos golpes, o Império Romano e o mundo carolíngio se desintegraram deixando espaço para outros mais capazes combater as ameaças. No caos deste período surgiram, em função das distâncias muito grandes e comunicações primitivas, inúmeros

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pequenos exércitos aptos a garantir uma defesa eficaz. Desse modo, a solução foi a transferência das responsabilidades militares à aristocracia local mais capaz de proteger áreas nacionais contra invasões e ataques. O historiador Michael Howard (v.bibl.) observa a este respeito: Não é de surpreender que um tipo de sociedade que pode garantir a sobrevivência dos povos da Europa em tais condições, apareceu: as gerações seguintes de historiadores deram-lhe o nome de 'feudalismo'. (John Poole apud Aranha, 2015)

Se o pesquisador fosse comunista, talvez percebesse: vivemos o último momento do sistema capitalista, por isso a realidade necessita e está mais que madura para um sistema de milícias operária e popular. Incluso pela alta urbanização, o armamento dos trabalhadores, sustentado na prosperidade socialista, permitirá a reorganização social após o colapso de nossa Roma, o mundo do capital. Aqui entra a história nos limites internos dos exércitos. O modo do exército feudal provouse algo intrínseco à classe que o sustentava. Assim, Oliver Cromwell conseguiu vencer a capitalista revolução inglesa porque ofereceu New Model Army (Exército de Novo Tipo) adotando a meritocracia e novos modos de comando. Napoleão Bonaparte fez algo semelhante em seu tempo, como instituindo o alistamento obrigatório, para fins de dominação burguesa contra o poder feudal. O que o conjunto desde capítulo argumenta, portanto, é que o modo militar burguês desenvolveu-se para seu limite histórico e deve ser superado por formas novas de força. 16. Para manter o poder geopolítico, posições estratégicas, ameaçar e reprimir a luta dos

trabalhadores mais concentrados na urbanidade, cada vez mais o Estado deve sugar improdutivamente uma parte do valor global. Isso é tão mais verdade quanto a crise do valor, a redução tendencial de sua massa, como crise da sociedade, exige maior tentativa de controle das instabilidades. Algo semelhante aconteceu na Roma Antiga que profissionalizou e ampliou o exército para lidar com o território maior sob seu controle, reprimir as revoltas de escravos então muito concentrados nos campos de trabalho e conseguir nova leva de homens escravizados em territórios mais distantes; o custo social do aparato militar foi acrescido. Quando os impostos deixavam de bastar para pagar as contas estatais, pois o senhor de escravos tinham menos em relação ao custo acrescido, os motins militares facilitaram os motins dos escravizados rumo ao fim daquele sistema. Algo semelhante tende a ocorrer no capitalismo em sua fase tardia. 17. Lenin e Trotsky mal tinham acesso ao artigo de luxo rádio, imaginavam a TV por meio da ficção e é duvidoso que sequer tenham imaginado a internet. Percebemos que nossas questões técnicas são qualitativamente diferentes das deles. E o que tais mentes raras diriam hoje? Eis a tarefa coletiva dos marxistas atuais.

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O uso de robôs e satélites de combate, dois projetos em desenvolvimento, levará a guerra a outro patamar. Porém inexiste força militar contra limites históricos. O fim da civilização ou a consolidação da humanidade são as duas únicas alternativas viáveis nesta transição sistêmica. É evidente que em si a robustez dos exércitos oficiais, os imperialistas em especial, é uma das vantagens imediatas do poder capitalista. Porém guarda fatores latentes que podem se revelar como desvantagens perante resistências anti-imperiais ou revolucionárias. O FATOR HISTÓRICO Parte vital da vitória militar deve-se ao acerto político. Ter uma política de acordo com a necessidade histórica, a implementação do socialismo, facilita vencer as guerras revolucionárias. Mas de modo algum determina, pois a extinção da civilização, talvez mesmo de nossa espécie, estará colocada nas próximas décadas. A certeza de que possui superioridade e de que tende a ganhar as batalhas já foi a ruína de muitos exércitos, já que foram assim pegos na ―guarda baixa‖. O medo é irmão da coragem. O fato de termos a história do nosso lado de modo algum é determinista quanto aos resultados da humanidade já que a crise sistêmica abre um leque limitado de possibilidades opostas. Por outro lado, erro tanto inverso quanto idêntico, enganam-se aqueles a pensar que as duras derrotas são sempre parciais, que o capitalismo sempre existirá enquanto não for derrubado de modo consciente e teremos, portanto, sempre uma outra chance até vencermos… O fim da civilização ou da humanidade é uma possibilidade também latente.

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A ETAPA HISTÓRICA PÓS-QUEDA DO MURO: EM QUAL ETAPA HISTÓRICA ESTAMOS? É verdade que a década de 1990 marca uma derrota com o fim dos Estados operários degenerados e, por consequência, recuo na consciência das massas e degeneração dos partidos vermelhos. Também é verdade, por outro lado, que se liberaram possibilidades contidas pelo aparato estalinista em todo o mundo e a história deu razão ao trotskismo. Como resolver esta equação? A resposta que oferecemos é esta: abriu-se uma etapa reacionária mundial. A hipótese alternativa é a de que, além das etapas revolucionárias e contrarrevolucionárias, há outros tipos perceptíveis. Um exemplo no nível de nação em Moreno: Por exemplo, nesta etapa de revolução iminente que vivemos a nível mundial desde 1943, muitos países atravessaram ou atravessam etapas contra-revolucionárias a nível nacional (Indonésia, o Cone Sul latino-americano, a URSS, etc.). Outros países mantiveram-se em etapas de pouca luta de classes, de equilíbrio na relação de forças entre o proletariado e a burguesia, quer dizer, etapas não-revolucionárias (quase todos os países imperialistas e muitos semicoloniais). E outros que já mencionamos, finalmente, que são os que marcam a dinâmica, o signo da etapa revolucionária, atravessaram etapas revolucionárias que levaram ao triunfo da revolução, que foi abortada ou congelada, ou que foi derrotada. (Moreno, As Revoluções do Século XX, 2009)

Assim, não estamos numa etapa não revolucionária, revolucionária ou contrarrevolucionária, mas numa derrota gerando forte recuo reacionário. Para que o leitor melhor abstraia uma possível etapa reacionária, damos um exemplo comparativo em outra escala, de situação reacionária: Da mesma forma, dentro de uma etapa podemos encontrar diferentes tipos de situações. Uma etapa revolucionária não pode deixar de sê-lo se a burguesia não derrotar duramente, na luta, nas ruas, o movimento operário. Porém, a burguesia, se tiver margem, pode manobrar, pode convencer o movimento operário que deixe de lutar. Assim se abriria uma situação não-revolucionária, porém a etapa continuaria sendo revolucionária, porque o movimento operário não foi derrotado. Inclusive, a burguesia pode reprimir, sem chegar aos métodos de guerra civil, o movimento operário e impor derrotas que o fazem retroceder, abrindo uma situação reacionária, porém continuaria estando dentro da etapa revolucionária. Por exemplo, o governo de Gil Robles, que ocorreu no meio da revolução espanhola, iniciada em 1931, foi um

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governo reacionário que reprimiu duramente o proletariado e criou uma situação reacionária. Porém, ao não ser derrotado o conjunto do movimento operário espanhol, a etapa continuou sendo revolucionária. A melhor prova disso é que poucos anos depois estourou a guerra civil. (Idem.)

Fomos duramente derrotados, entretanto não anulados por nazismos, invasões imperialistas à URSS, etc. Disto vale recordar: os movimentos anti-restauração, como a confusa e heroica luta chinesa, que se encerrou no massacre na Praça da Paz Celestial, nem sempre geraram democracia burguesa, não mudaram o regime político. Mesmo a Rússia fechou seu regime, de democracia para semibonapartismo, pouco após seu retorno ao capital. A etapa é determinada, em primeiro, pela relação de superestrutura objetiva – instituições, Estado, partidos, organização etc. – derivada de uma determina correlação de forças entre burguesia e proletariado. Ao lado da queda do aparato stalinista ocorreu a restauração do capitalismo – a queda do caráter de transição ao socialismo do Estado –, mecanismo que fez recuar a consciência das massas, degenerou e fragilizou organizações, fortaleceu a posição da burguesia no cenário mundial, impôs-se derrotas a movimentos contra o neoliberalismo. A caracterização de etapa reacionária desde a queda do muro de Berlim pretende resolver a polêmica entre duas posições opostas, se estamos numa etapa revolucionária ou contrarrevolucionária. Ambas as posições destacaram na análise aspectos unilaterais da realidade. A crise desde 2008, porém, obrigará novas caracterizações124. Após mais de 30 anos da queda do socialismo ―real‖ e mais de 40 anos sem uma revolução socialista vitoriosa, parece que finalmente podemos sair da ressaca histórica. Para isso, a renovação geracional muito ajuda. O central é que a crise sistêmica, que deu um salto de qualidade em 2008, fará seu papel de pressionar as mentalidades, tendencialmente, para saídas revolucionárias entre os oprimidos.

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Diga-se de passagem, os comunistas tiveram sorte ao o Estado amortecer o peso da crise mundial de 2008. Nossas organizações estavam, na prática e na teoria, despreparadas para uma implosão econômica como aquela que quase ocorreu a partir daquele ano. Agora, pode-se amadurecer os partidos vermelhos com algum tempo para experiência, acumular forças e obter posições mínimas para quando houver as próximas crises. A base real para a fermentação e a consolidação de partidos de fato revolucionários passa a existir.

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CONTRIBUIÇÕES PARA UM PROGRAMA DE TRANSIÇÃO NO SÉCULO XXI ―Existem momentos em que a audácia extrema é o auge da sensatez.‖ Clausewitz, Da Guerra. O programa revolucionário é mais do que uma lista de palavras de ordem; é, na verdade, em primeiro, uma compreensão do momento histórico. Este livro procura ajudar em tal sentido. Uma das vantagens de nossa época é o acúmulo de propostas transicionais na obra ―O Programa de Transição‖ (Trotsky) e em outros textos clássicos. No entanto, ainda precisamos elaborar sobre muitos temas, como violência urbana, moderna propriedade rural e setor de serviços. As propostas que trazemos são tentativas de pensar consignas práticas e transicionais. DÍVIDAS E COMÉRCIO N‘O Programa de Transição, Trotsky afirma:

A fim de realizar um sistema único de investimento e de crédito, segundo um plano racional que corresponda aos interesses do povo inteiro, é necessário fundir todos os bancos numa instituição única. Somente a expropriação dos bancos privados e a concentração de todo o sistema de crédito nas mãos do Estado colocarão à disposição deste os meios reais necessários, quer dizer, materiais e não apenas fictícios e burocráticos, para a planificação econômica. A expropriação dos bancos não significa de nenhum modo a expropriação dos pequenos depósitos bancários. Pelo contrário: para os pequenos depositantes o BANCO ÚNICO DO ESTADO poderá criar condições mais favoráveis que os bancos privados. Da mesma maneira, apenas o banco do Estado poderá estabelecer para os pequenos agricultores, artesãos e pequenos comerciantes condições de crédito privilegiadas, isto é, baratas. Mais importante, ainda, é, entretanto, o fato de que toda a economia, sobretudo a indústria pesada e os transportes, dirigida por um único estadomaior financeiro, servirá aos vitais interesses dos operários e de todos os outros trabalhadores. A ESTATIZAÇÃO DOS BANCOS não dará, entretanto, esses resultados favoráveis a não ser que o poder do próprio Estado passe inteiramente das mãos dos exploradores às mãos dos trabalhadores. (Trotsky, O programa de transição)

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Entre a luta por crédito barato mais luta sindical dos bancários e a exigência de estatização para fundar um banco único, há a questão econômica e política acentuada desde a década de 1970 e, em especial, desde os anos 2000: o crescimento da economia sustentado no endividamento geral dos assalariados e pequenos proprietários. Trata-se de um método de agiotagem. Localizado, do ponto de vista formal, no meio da relação das pautas reformistas com as de enfretamento à propriedade privada, exigimos a ―anulação total e irrestrita das dívidas dos trabalhadores e pequenos empresários‖.125 Nesta consigna, ao mobilizar a classe operária e os demais setores oprimidos, queremos estimular saltos de consciência, novas conclusões e exigências mais avançadas como por um banco único do Estado. Processo semelhante pode ser exigido ao comércio. Uma ―rede estatal única de grande comércio‖ deve ser imposta pela classe trabalhadora e setores populares para combater a hiperinflação, a especulação, o desperdício e as demissões no setor. Uma união entre comerciários, consumidores assalariados e pequenos produtores pode ser frutífera. Supera a limitada palavra de ordem ―congelamento de preços‖ e aparece ao lado do ―gatilho salarial‖, aumento dos salários automaticamente com o aumento dos preços. Tal proposta não visa intervir sobre o pequeno comerciante, antes deve obter meios de integrá-lo na luta. Porém, reforçamos Trotsky, tal proposta apenas pode cumprir todas as suas possibilidades se com a formação de um Estado Operário.

SERVIÇOS BÁSICOS O governo socialista deverá, assim que as condições permitirem, estatizar todos os serviços básicos privados, como empresas de saúde e educação. Tal proposta deve ser levantada ainda sob o regime capitalista quando a luta de classes pôr a questão como inadiável. Em determinadas situações, pode ser exigido imposto sobre lucro e dividendos das empresas privadas semelhantes. O imposto deverá ser destinado ao serviço público correspondente: sobre as escolas privadas para ajudar a financiar as públicas, sobre a rede privada de saúde para custos na rede estatal, sobre grandes franquias de alimento para criar e manter restaurantes populares. 125

Lancei em textos pela internet a proposta desde 2015. Recentemente, ela apareceu em textos militantes sem referência a possível origem em minhas elaborações. É bem possível que tenha surgido em diferentes cabeças a partir da compreensão da realidade. De qualquer modo, este livro formaliza a proposta.

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Para minar o fanatismo religioso, devem ser formados nos bairros operários e populares centros abertos de arte, cultura, esporte e lazer. Tais espaços empregarão pessoas da região e permitirão pequenos negócios internos. Apresentação em palco de grupos musicais regionais, biblioteca, campos de futebol, lavanderias públicas, instituições estatais etc. serão concentrados em tal espaço. A religião oferece encontros (integração), relações amigáveis (mutualismo) e algum protagonismo aos fieis (ativismo), ou seja, satisfaz parte da subjetividade humana. É preciso, porém, oferecer alternativas não mercadológicas e não ilusionistas aos assalariados e setores médios. Junto com as questões de avanço de nossa época, a natureza humana tende a ser irreligiosa, por isso os religiosos têm de travar uma luta constante contra si próprios para afirmar – com música, roupas, etc. – que são partes de uma crença, pois tendem constantemente ao ―desvio‖, como costumam dizer. Fortalecer as condições sociais para acabar com o fanatismo é uma necessidade da civilização.

O QUE TODO ECONOMISTA MARXISTA DEVERIA SABER A esquerda brasileira, erguida em um país muito desigual e contraditório, tem sido um celeiro de quadros talentosíssimo, de alto potencial latente. Apesar disso, os limites práticos da concepção teórica se nos revelam quando o programa e a mediação política são excluídos da educação marxista. Vejamos exemplos. Muitos são riquíssimos na análise e caracterização da realidade, mas, desde o limite acadêmico, pouco avançam ao próximo passo, a elaboração de uma política; outros, adotam o socialismo para si enquanto encarnação de uma futura racionalidade, porém, sendo idealistas informais, por razão de pertencerem à classe média, passam da caracterização marxista para… a política keynesiana126. Como evitar os limites e os erros? Uma tradição foi perdida, infelizmente guardada por poucos: desde os bolcheviques, tenta-se, inspirados no primeiro programa científico presente no Manifesto, produzir o chamado programa transicional. Este, sob sistematização e resumo n‘O Programa de Transição (Trotsky), oferece ferramentas da elaboração política propriamente comunista.

126 O keynesianismo faz parecer os problemas econômicos erros ou falhas corrigíveis por decisões racionais via Estado. Daí a hibridez – na filiação filosófica idealista, por racionalidade e o Estado enquanto tal encarnação racional possível – de muitos simpáticos ao mesmo tempo a Marx e a Keynes.

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Tal programa parte de uma conclusão: há um desenvolvimento desigual entre duras crises capitalistas e o nível de consciência das massas, ou seja, sua percepção sobre a natureza do problema, as tarefas e a possibilidade de um novo mundo. Tal contradição precisa ser resolvida pela prática política, pois é a arena dos partidos revolucionários. Como ela pode ser solucionada? Entre outros aspectos, assim: as características totais da sociedade de transição ao socialismo são separadas, fragmentadas, e apresentadas em forma de palavras de ordem aos trabalhadores dotados de consciência reformista. Aqui, o objetivo está um tanto claro: faz parecer reformistas e viáveis propostas inviáveis sob o sistema em crise. O caso mais simples e popular está em forçar a escala móvel de trabalho em caso de desemprego fortíssimo – já que a burguesia precisa da crise para elevar a taxa de desemprego geral –, fundando o desemprego zero, quer seja, dividir todo o trabalho disponível entre todos os trabalhadores disponíveis. Existir um exército industrial de reserva é uma necessidade inerente ao capital. A proposta comunista, embora pareça óbvia e ―racional‖, entra em contradição com as leis desta sociedade. Logo a luta ―reformista‖ tende a saltar as contradições e conflitos entre as classes, transformando a revolução social em real possibilidade. O acúmulo histórico do programa comunista supera a divisão entre programa mínimo, reformas, e programa máximo, nova sociedade; integra-os de maneira dialética no programa de transição. É, pois, muito mais que uma lista de palavras de ordem: há um método de uso e elaboração. Deve-se selecionar ou elaborar propostas pedidas pela própria realidade, a partir das demandas sociais imediatas, de modo a, ao haver luta da maioria da classe pela consigna, produzir um ―efeito em cadeia‖, tendendo ao poder operário e popular. Assim, a consciência atrasada das massas relativo ao momento social decadente pode deixar de ser um problema, pode ocorrer elevação dessa mesma consciência. Exemplo: organizar comitês operários para avaliar as contas das empresas, contra o segredo comercial, e depois elaborar uma proposta de gestão alternativa para, se o patrão não se subordina, pressionar e, defendem os comunistas, se necessário colocar em prática por iniciativa própria; então surge um poder dual na produção. Leiamos exemplo de Trotsky:

Em contrapartida, e em determinadas condições, é totalmente progressivo e justo exigir o controle operário sobre os trustes127, mesmo que seja duvidoso que se possa chegar a 127

No Brasil, talvez também em toda a América Latina, a proposta de “controle operário” da produção tornou-se sinônima de “gestão operária” da produção. Por isso, proponho que “controle operário” seja traduzido na palavra de ordem “inspeção operária da produção!” – assim fica bem mais claro. E “controle operário” pode ser tratado como “gestão operária da produção!”. Em

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isso no marco do Estado burguês. O fato de que tal reivindicação não seja satisfeita enquanto a burguesia domina deve impulsionar os operários à derrubada revolucionária da burguesia. Dessa forma, a impossibilidade de levar a cabo uma palavra de ordem pode ser mais frutífera que a possibilidade relativa de realizá-la. (Trotsky, Stalin, o grande organizador de derrotas, 2010, p. 306)

Por outro lado, negando a lógica formal, classificatória, palavras de ordem reformistas ou democráticas podem ser transicionais se a decadência é tal que estas exigências só podem levar à revolução. No entanto, em geral, precisam, para maior potência, estar combinadas com propostas em si transicionais. Cada situação exige suas próprias elaborações: situações de crescimento econômico estável, situação não revolucionária, pedem propostas reformistas e democráticas 128; situações prérevolucionárias e revolucionárias necessitam de propostas transicionais e, em apoio, democráticas (em caso de revolução em país sob ditadura, por exemplo) e reformistas. Situações sob ditaduras estáveis ou contrarrevolucionárias, por outro lado, forçam preferência por palavras de ordem democráticas e mínimas. Exemplo prático. O crescimento econômico gera alguma inflação e baixo desemprego, logo exigimos aumento salarial em lutas menos ou mais unificadas. Se surge uma crise manifestada em hiperinflação, a exigência reformista de aumento salarial de pouco nos serve e devemos avançar para ―gatilho salarial‖, ou seja, os salários gerais – não somente de um setor – aumentarem automaticamente e em proporção com o aumento inflacionário mensal. Isto tende-nos a exigir, em combinação, uma greve geral ou outro meio de luta para fazer valer a proposta; dito de outro modo: tende a mover a classe para novas conclusões, na luta prática, e avançar seu nível organizativo em partido e em poder paralelo.

estatais, a luta contra a corrupção do Estado e problemas da empresa – crise, risco de privatização, etc. – pode exigir a democracia direta, democracia operária, na sua gestão como saída classista. 128 Toda exposição exige algo de lógica formal. Porém, uma crise forte pode diminuir a luta por causa do desemprego, que fragmenta a classe e a coloca na defensiva; quando começa novo e fraco crescimento econômico, após a dura crise, palavras de ordem transcionais como “escala móvel de trabalho” podem ficar ainda mais fortes e importantes, pois há uma contradição acumulada, mas não resolvida, desde a crise. Se apenas uma parte dos trabalhadores conseguem novo emprego com o crescimento, a maioria fica estressada desde o desemprego prolongado e podem forçar uma revolução. Por razão do nível de contradição, crescimento econômico = revolução social. O erro seria afirmar crescimento econômico, que pode ocorrer em situação contrarrevolucionária, = situação não revolucionária; seria uma análise economista, parcial. Esta exposição rápida nada tem de original, sendo antes exposta por Trotsky em inúmeros discursos.

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Hoje, em tentativa de antecipar, percebemos a tendência a futuras rebeliões sociais por razão da crise atual. Mas de nada servirão se não encontrarem as propostas certas e os partidos relativamente prontos. Significa a alta possibilidade de nossa derrota após certo movimento espontaneísta das massas em luta. Mas, enquanto depender de fatores subjetivos, a muito possível vitória burguesa não está dada por nenhuma força natural. Contar com o programa de transição fará toda diferença. Aos economistas de vertente marxista, futuros ajudantes nos planejamentos gerais democráticos sob o possível socialismo, fica o desafio de entenderem o estudo enquanto absorção de ferramentas, mais do que informações. Enquanto verdadeira ―ponte para o futuro‖, não somente avaliações geniais. O primeiro programa de transição de fato sob bases científicas surgiu no Manifesto Comunista, em pleno declínio da curva do desenvolvimento do capitalismo (da década de 1820 à 1850). A segunda elaboração de um programa transicional ocorreu-se no declínio da curva seguinte (de 1813 à 1945). Desde 2008, as propostas e métodos transicionais voltam a ser uma necessidade social e precisam ser atualizados. Antes, as propostas mínimas, reformistas e democráticas (contra a ditadura, contra o imperialismo, independência nacional etc.) poderiam ser centrais; agora ocorre o inverso, quer seja, estas precisam contar com um sistema de ―ponte‖ entre o imediato e o possível porque avançamos na tendência incicilizacional do capitalismo.

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COMPREENDER AS VARIAÇÕES DA LUTA DE CLASSES: CATEGORIA ―MOMENTO‖

A decadência atual do capitalismo, apresentado nas teses anteriores, impede reformas estáveis e duradouras. Problemas conjunturais tornam-se estruturais; há um divórcio cada vez maior entre ―crescimento econômico‖ e desenvolvimento da sociedade. Em síntese: a realidade e a luta de classes são mais fluídas e instáveis, alterando parcial e continuadamente, desigual e mutável, a relação de forças entre as classes sociais. Isso faz com que a ondulação da luta de classes, hoje, seja muito mais móvel. A relação entre momentos de avanço e de recuo da luta de classes – já existente antes – em uma determinada situação ganha nesta época novas, maiores e mais instáveis dimensões. Aqui, apresentamos um conceito, momento, subdividido em dois: 1. Momento de refluxo, recuo, defensivo ou regressivo; 2. Momento de ascenso, avanço, progressivo ou ofensivo. O pano de fundo é a chamada crise sistêmica do capital, debatida nesta obra. Tal conceito deve ser observado dentro das ―situações‖: em situações não revolucionárias, por exemplo, teremos ―momentos ofensivos‖ e ―momentos defensivos‖. Apesar de os temos autoexplicativos serem, merecem atenção na medida em que mostram erros entre marxistas. Dentro de uma situação ―não revolucionária‖ nacional, por exemplo, pode haver momentos em que as classes oprimidas agem na ofensiva. Ou seja: mesmo desprovido de ―crise estrutural da democracia burguesa‖, da economia ou do regime pode haver um processo de avanço progressivo nas lutas. Isso acontece sem alterar a caracterização geral da situação que é, neste exemplo específico, ―não revolucionária‖. Uma vitória parcial, uma forte repressão, um erro do movimento, o cansaço e esgotamento ao não obter resultado podem readequar e promover, de forma mais ou menos longa, uma mudança de um momento de fluxo para um de refluxo; e vice versa. Um ―gatilho‖ pode acionar também momentos opostos; no geral, o ―gatilho para a ofensividade‖ é a explosão de energia da insatisfação social acumulada passivamente. Ao mesmo tempo, temos de dimensionar os movimentos de uma classe ou setor de classe em relação às outras; se, por exemplo, as classes

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médias, dirigidas ou não pela burguesia, se movem, protestam pela direita, paralisando os trabalhadores, então temos um momento defensivo dentro de uma mesma situação. Em situações pré-revolucionárias pode acontecer, com mais frequência, um recuo passageiro da classe trabalhadora. Por medo, por desorganização, por uma frente popular, por uma derrota parcial ou por ser convencida; ela pode ficar paralisada por algum tempo dentro de uma mesma situação geral, o que inaugura um ―momento de refluxo‖, por exemplo. Especialmente em situações ―não revolucionárias‖ a soma de crescimento econômico e estabilidade social pode levar aos de baixo a sensação de que podem obter vitórias, reformas e conquistas e que devem arrancá-las – as greves multiplicam-se. Isso parte de uma importante contradição entre crescimento econômico somado às precariedades em diferentes pontos da vida da classe trabalhadora (violência, machismo, baixo salários, serviços públicos ruins, etc.). Já em situações ―pré-revolucionárias‖ pode haver ―momentos defensivos‖ por medo do desemprego, desconfiança com suas direções, desmoralização, frente populares, derrotas parciais fortes, etc. especialmente no início desses processos. O marxismo oferece as ferramentas para calibrar a análise da relação social de forças; esses elementos podem, em sua maioria, ser aplicados e adaptados a outras situações da luta de classes. Para além de sua atual fluidez, a necessidade de explorar esse conceito deve-se à observação de ser aí onde os marxistas tendem à maior confusão, mais impressionismo, menos clareza do que se passa. Momentos de (re)fluxo são da realidade social, não são algo novo. A real novidade, merecedora de maior atenção, é que a constância da variação entre o fluxo e o refluxo dentro de uma mesma situação é, hoje, bem mais presente pela evolução da decadência do capitalismo. Ter, portanto, a clareza desse fenômeno permite às organizações marxistas maior preparação. Assim: 1) Época: desenvolvimento das forças produtivas em confluência ou, ao contrário, em contradição com as relações de produção vigentes – época de reforma e reação ou, oposto e depois, época de revolução; 2) Etapa: estado da relação de forças na superestrutura objetiva – em principal, Estado e regime –, agregando-se, em complemento, a superestrutura subjetiva e demais fatores sociais (economia, etc.); 3) Situação: análise de conjuntura avalia todos os aspectos – economia, relação de classes, superestruturas subjetiva e objetiva;

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Assim como nas etapas, temos as seguintes situações gerais possíveis: não revolucionária, pré-revolucionária, revolucionária, contrarrevolucionária e reacionária. 4) Momento: dentro das situações, relaciona-se com a luta de classes e a superestrutura subjetiva, agregando a objetiva. Alterna-se entre momentos defensivos e momentos ofensivos.

Tratemos do exemplo mais popular. A revolução permanente na Rússia, de fevereiro a outubro de 1917, sustentou uma situação revolucionária. Neste processo, a burguesia e os trabalhadores, com interesses antagônicos de fundo, variaram sobre quem estava na ofensiva ou na defensiva. A revolução de fevereiro colocou a classe operária na ofensiva; o fracasso das jornadas de julho a colocou na defensiva; a tentativa de golpe de Kornilov a colocou na ofensiva. A situação revolucionária resolveu-se com a ofensiva de outubro. Assim como uma determinada situação pode marcar uma mudança de etapa, um novo momento pode marcar a mudança de situação. Exemplo: uma situação de pleno emprego, antessala da crise, pode gerar muita luta de classes por pautas parciais dentro de uma situação não revolucionária e imediatamente antes de uma situação reacionária, recuo das lutas por desemprego alto (entra-se num momento defensivo), ou pré-revolucionária, avanço das lutas como reação à quebra econômica. Com a descoberta deste conceito, conclui-se o tratamento de todas as instâncias do real: época, etapa, situação – e momento. Todas as dimensões e aspectos passam a ser considerados na análise de conjuntura ou teórica. Nenhum acréscimo categorias precisa ser feita aí, por isso a contribuição deste capítulo tem aspecto de conclusão.

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AS PAUTAS DEMOCRÁTICAS

―Não adianta derrubar o príncipe e manter o princípio.‖ Torquato Neto

As pautas democráticas são importantíssimas, ainda que em si burguesas. Se combinadas com as propostas em si socialistas, principalmente as transicionais, podem somar forças para fins revolucionários. Há, portanto, dois erros a serem evitados: primeiro, focar em demasia em exigências democráticas e desconsiderar as palavras de ordem de transição; segundo, esquecer a importância das propostas democráticas. Observemos que a revolução de outubro na Rússia teve as exigências de paz e terra, em si apenas democráticas, como parte das palavras de ordem centrais. Diante da queda da taxa de lucro, o capital tem de tentar novas formas de lucratividade. Daí que as pautas democráticas dos direitos do indivíduo (na aparência) ganham mais forças entre setores burgueses. A legalização da maconha, por exemplo, gera novos lucros e receitas ao Estado. Ao mesmo tempo e pela mesma razão de fundo, a queda da lucratividade, tende-se a corroer e mesmo a suprimir os direitos democráticos mais coletivos. Após a crise de 2008, quando ficou claro aos burocratas da burguesia que a luta de classes entrava em pauta, o governo Obama fez campanha pela anulação de uma enorme conquista democrática dos trabalhadores estadunidenses, o direito ao armamento pessoal; o medo das lutas sociais e da guerra civil revolucionária é o motivo oculto da tentativa de proibição ou limitação do acesso às armas nos EUA; a resistência instintiva dos trabalhadores ao projeto somou-se à ação da indústria de armamentos em defesa de seus lucros. O próprio Estado pode liberar certos direitos individuais para desviar revoltas ou reduzir a tensão das lutas sociais, além de produzir nova fonte de lucro como o direito ao aborto na área de saúde. O desenvolvimento de uma ampla camada de assalariados, operários e classes médias modernas, e sua concentração na urbanidade pressiona a que certos direitos individuais sejam cedidos. No Brasil, é comum que, ao entrar em pauta algo econômico, algum ataque aos direitos básicos, o judiciário promova alguma farsa de ―apoio‖ a algum setor oprimido, mulher, LGBTs, etc. Tal tipo de manobra tenderá a fazer escola pelo mundo.

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O critério das pautas democráticas é o lucro 129. A tendência secular de queda da natalidade, redução de nova prole dos assalariados, pressiona para limitação progressiva do direito ao aborto, por exemplo. Quanto às pautas da democracia burguesa, levemos em conta o debate anterior de que vivemos o período de declínio da última curva de desenvolvimento do capitalismo, ou seja, tendência a crises longas e profundas entremeadas por crescimentos curtos e anêmicos. Isso significa que a base da forma capitalista de democracia, como os direitos sociais, tende a ruir, o que empurra para o fechamento do regime (incluso formas híbridas como o semibonapartismo). Já, ao contrário, pelas mesmas causas, os países com ditaduras serão tensionados para a revolução social e, na aparência, política, para a queda do regime. Neste caso, a tarefa dos socialistas é fazer avançar em curto tempo a revolução das tarefas democráticas para o socialismo, para a democracia socialista. O fato de que nem a democracia burguesa nem o regime ditatorial possam solucionar os problemas econômicos empurra para a possibilidade comunista. Os comunistas devem ser os mais dedicados aos direitos democráticos e, ao mesmo tempo, cientes de que apenas ligando-os ao programa de transição e à estratégia socialista as conquistas sociais poderão ser garantidas.

O PROBLEMA DAS PAUTAS DE MOCRÁTICAS Vamos entrar em uma questão datada, conjuntural. Na Europa, os partidos comunistas – ou seja, trotskistas – reagiram à crise de 2008 com um programa democrático (Romper com a Euro e a União europeia, não pagamento da dívida, etc.). Mas: nos países desenvolvidos é ainda mais necessário as propostas do tipo transicionais como a ausente exigência redução da jornada de trabalho, com o mesmo salário, na proporção que produza pleno emprego. É assim, com propostas de fato socialistas, que o socialismo pode ser uma possibilidade real e as próprias exigências democráticas ganham força extra. Apesar do crescimento dos partidos marxistas na Europa, seus balanços são negativos por não levantarem propostas transicionais durante a crise. O desemprego na Espanha bateu o recorde absurdo de 27,16%, cifra ainda maior entre os jovens, que são a vanguarda nas lutas, mas a Corriente Roja, partido trotskysta daquele país, nunca fez uma campanha insistente e geral pela escala móvel de tempo de trabalho, pela redução da jornada de trabalho na proporção em que produza desemprego zero. 129

Os movimentos por questões democráticas (feminismo, etc.) têm cometido o erro de tentar ganhar direitos de modo vanguardista, sente ganhar, antes, o apoio ou a tolerância da maioria. Por exemplo: a legalização da maconha deve acontecer se houver ação prática dos interessados para ganhar a consciência dos assalariados quanto ao tema. Nada menos que isso. O vanguardismo casase aí coma ilusão de que o Estado é um ente racional, acima da realidade concreta.

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No Brasil ocorre o mesmo erro. No lugar de programa transicional como centro numa crise, foca-se nos pontos democráticos de modo unilateral. Assim, as exigências foram sempre ―Fora o governo‖ de plantão (Fora Dilma ou eleições gerais antecipadas, Fora Temer, Fora Bolsonaro); precisa-se, neste ciclo vicioso, derrubar quantos governos seguidos para chegar ao poder operário? O contra o pagamento de dívida, em si correto, também retorna ao jogo político, mas, infelizmente, sem estar ligado a propostas transicionais. Na Argentina e no Chile os trotskistas abraçam a exigência de Assembleia Constituinte que tem por função real, uma vez que as consignas transicionais estão fora da agitação política, desviar a luta para a legalidade burguesa, desarmar os trabalhadores em luta (são, ademais, exemplos de países sem ditaduras ou sob controle direto de um império). É fato que as pautas democráticas têm mais peso nos países atrasados, porém a combinação do mais avançado com o mais atrasado exige combinação das exigências.

Os países coloniais e semicoloniais, por sua própria natureza, países atrasados. Mas esses países atrasados vivem em condições do domínio mundial do imperialismo. Por isso que seu desenvolvimento tem um caráter combinado: reúne em si as formas econômicas mais primitivas e a última palavra de técnica e da civilização capitalista. É isto que determina a política do proletariado dos países atrasados: ele é obrigado a combinar a luta pelas tarefas mais elementares da independência nacional e da democracia burguesa com a luta socialista contra o imperialismo mundial. Nessa luta, as palavras de ordem democráticas, as reivindicações transitórias e as tarefas da revolução socialista não estão separadas em épocas históricas distintas, mas decorrem umas das outras. Apenas havia iniciado a organização de sindicatos, o proletariado chinês foi obrigado a pensar nos conselhos. É neste sentido que o presente programa é plenamente aplicável aos países coloniais e semicoloniais; pelo menos àqueles onde o proletariado já é capaz de possuir uma política independente. (Trotsky, O Programa de Transição)

Uma das razões, além da baixa formação teórica de seus membros, é que os partidos vermelhos são formados por estudantes, membros da classe média, servidores públicos com estabilidade empregatícia, operários aristocráticos e dirigentes sindicais a muito afastados do chão da fábrica. Nas direções partidárias, o peso de tais setores tende a ser ainda maior já que possuem tempo livre extra para ―prosperarem‖ como militantes. O grande problema do desemprego no Brasil, por exemplo, não pressiona a cabeça de professores bem pagos das universidades públicas.

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Como vemos, os setores médios tendem a focar nas pautas democráticas por sua própria forma de vida. Outro motivo destacável é a pressão empirista ao deixar de perceber que a possibilidade de uma revolução socialista está se gestando em seus países e no mundo desde 2008. No fundo, embora não reconheçam sequer às vezes para si, pensam que a revolução social é algo mais ou menos distante e difuso, que pouco tem a ver com as preparações da atual conjuntura. Mas as mudanças, que demoram muito tempo, explodem rápido quando chega a hora. A burguesia aprendeu com a revolução russa e demais revoluções parcialmente sociais. Em 1917, o Estado burguês russo, o governo provisório da Duma, demorou muito para fazer a constituinte e a reforma agrária, duas pautas democráticas, não em si socialistas. Isso levou a maioria do país ao bolchevismo. A revolução de 1952 na Bolívia evitou tal equivoco distribuindo terras aos camponeses, dificultando a saída socialista da nação. No Chile, Allende atrasou e evitou a revolução social também com reforma agrária, entre outras medidas. Hoje, a alta urbanização, a moderna grande propriedade rural e a própria crise sistêmica dificultam tais manobras, porém é preciso que os socialistas aprendam e acertem. Enfim, observamos que a pauta da reforma agrária foi superada tanto nos países avançados quanto em parte significativa dos atrasados. A reforma agrária é uma pauta da revolução burguesa, imprópria para estes tempos de revolução socialista. Devemos exigir a estatização sob gestão dos trabalhadores das grandes empresas no campo como em qualquer fábrica, não a repartição fragmentária da terra. O Estado operário, ainda em nível nacional, fará alguma reforma agrária secundária, enquanto estimulará a produção cooperada, porém o grosso do agronegócio permanecerá grande propriedade, desta vez pública, para financiar as necessárias exportações e para ter escala produtiva. Uma parte das grandes terras deixará de produzir para o mercado externo e abastecerá o mercado interno, encerrando a época da fome.

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UMA SÓ CRISE ―Se todas as condições de uma Coisa estão presentes, então ela entra na existência.‖ (Hegel, 2017, p. 130) Um observador atento percebe esta ou aquela forma de crise na sociedade contemporânea. Logo mais, vê que várias crises entram em curiosa sincronia: a crise ambiental, a queda da taxa de lucro, os ciclos do capital, etc. Todos caminham para um aprofundamento do caos na sociedade contemporânea com o ponto máximo das diferentes decadências algo próximo a meados deste século. Os limites cada vez mais absolutos aproximam-se. A conexão externa guarda e expressa a conexão interna, pois é um mesmo processo que avança em diferentes formas de manifestação. O desenvolvimento da produção reduz a produção de valor (descoberta de Marx resgatada pelos teóricos da crítica do valor) e aumentam os meios ―parasitários‖ de consumir o valor global, logo a consequência é a redução da taxa de lucro a níveis muito baixos. A queda desta leva à queda da taxa de juros. Por outro lado, a taxa de lucro decaindo empurra investimentos de curto prazo ao mercado financeiro. O desenvolvimento da produção, em parte forçado, alcança um patamar e uma forma – como o desperdício – que extrai do meio ambiente mais do que ele é capaz de repor, então acontece a crise ambiental; a queda da lucratividade pressiona, por exemplo, as empresas a desconsiderar medidas ambientais por causa de seus custos. O mesmo desenvolvimento produtivo, ao suprimir a produção de valor e ao derrubar a citada taxa de lucro, força a burguesia a adquirir novas formas lucrativas, parasitando o Estado ao privatizar e oferecer serviços, ao gerar empresas mercenárias no campo militar e o incremento da dívida pública. O impulso do capital por novas fontes lucrativas – uma fuga para frente – torna mais fácil ou agradável certos hábitos cotidianos, por isso a libertação da mulher está latente dentro da sociedade capitalista; eis uma das bases da crise da família monogâmica. A III revolução técnico-científica produz as condições de crises cada vez mais duras e crescimentos cada vez mais fracos. Com o aumento dos conflitos sociais como resultado do próprio desenvolvimento das forças produtivas, surge em reação o despotismo esclarecido burguês. O envolver da grande produção mecanizada no campo e a atração da cidade, forma-se uma poderosa massa humana com novas necessidades e meios de luta urbanos. A superprodução crônica latente leva a que se tente estimular o consumo por meio do endividamento geral. A queda da lucratividade tenciona a sociedade a adotar um norte moral correspondente à necessidade de maiores lucros.

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Há uma só crise, síntese das diferentes formas, que tem por base a produção capitalista altamente desenvolvida. A correspondente queda da taxa de lucro está na base da explicação da sincronia das diferentes crises, que são uma só crise civilizacional. *** Mészáros percebeu uma crise crônica onde a superprodução de capital e mercadorias continua mesmo com a destruição das crises cíclicas; partiu, assim, do valor de uso, a riqueza real, para sua contradição com o valor. Por outro caminho, Robert Kurz descobre a crise de produção de valor, redução da massa de valor global, desde a racionalização na indústria (automação, robótica, etc.), como processo de colapso do sistema; parte do valor, a riqueza na forma capitalista, para observar sua contradição com o valor de uso. Terceira visão, Michael Roberts descreve a queda da taxa de lucro como o fator de crise do sistema. A grande tarefa, portanto, é unir tais teorizações até agora separadas e desenvolvidas do modo independente. Os três intelectuais citados desenvolveram suas teorias de modo unilateral e parcial, ainda que com enormes avanços, e às vezes ―perdiam a mão‖ porque pouco ligados ao movimento prático dos trabalhadores. Os partidos marxistas, por outro lado, deram menos atenção a estes elaboradores do que o necessário. Parte dessa falta dar-se pela razão de que a anunciação de ―crises finais‖ foi lançada inúmeras vezes desde o próprio Marx, o que levou, diante do erro de previsão, a militância a desconsiderar a teoria do colapso logo quando chegou sua hora. *** O capitalismo entra na época em que é incapaz de promover profundas e duradouras reformas e passa a impor contrarreformas. As conquistas acumuladas por muito tempo pelas classes trabalhadoras são corroídas por diferentes meios em nome da lucratividade. A superprodução crônica latente, a redução da massa global de valor e a queda da taxa de lucro estão no fundamento da fase de recuo civilizacional. É preciso, portanto, uma revolução para impor uma nova era de reformas, que será de novo tipo porque sob nova base. A ideia de que o proletariado nada tinha a perder além de seus grilhões foi substituída pela percepção de que estamos a perder certa qualidade de vida130; os fatores estressantes acumulam-se e transformam a sociedade na panela de pressão da luta de classes. Tomemos o exemplo da China, que em si ainda tem caminho a esgotar no seu desenvolvimento; se as greves impõem maiores direitos trabalhistas, isto é, mais custos sociais, então menos atraente torna-se o país para investimentos; mas o governo, ciente desse problema comum na história de outros países, antecipa-se e investe em tecnologia para a produção, o que acaba, assim, ao substituir trabalhador por maquinário, por reduzir a taxa de lucro, reduzir a massa de valor e aumentar a já grande quantidade de 130

Tomo esta reflexão de palestra de José Paulo Netto.

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mercadorias… De qualquer modo, uma conquista social, sob relações capitalistas, transforma-se numa reação do capital que retira por diferentes vias (desemprego, etc.) os ganhos do período anterior. O processo hoje é tal que limita cada vez mais a capacidade de mediações, de amortecer os conflitos classistas, pelos três fatores destacados acima. Se o sistema de fato entrou na fase em que lhe é impossível melhorar a vida da maioria, logo, e só a partir daí, a luta pelo socialismo é justificável e torna-se socialmente necessária. Na Europa, para citar o mais famoso caso, a luta em defesa da manutenção do passado, pela conservação do Estado de bem-estar social, pode ter força de ruptura sistêmica131 (pode ser transicional principalmente se junta a exigências em si transicionais). No Brasil, os direitos históricos dos trabalhadores são cortados, empresas públicas são privatizadas e o regime ameaça fechar-se para garantir os ataques neoliberais. O reformismo teve sua razão de existir por muito tempo, teve uma base material que o justificasse, porém agora faz falta o partido da revolução, a organização para este novo período histórico. Antes o capitalismo poderia ceder; hoje necessita forçar sucessivas derrotas aos proletários e setores populares para que estes tenham a chance, por desespero, de uma posterior vitória estratégica. *** Alguns teóricos consideram, como crise do sistema capitalista, como transição, que desde a primeira revolução industrial produzimos superprodução real, mas isso é falso. Marx diz sobre as crises de superprodução de sua época: ―Não se produzem meios de subsistência demais em relação à população existente. Pelo contrário, o que se produz é muito pouco para satisfazer, de maneira adequada e humana, a massa da população […] Não se produz riqueza demais.‖ (Marx, O capital 3, 2008, p. 337). Isso mudou. Com a altíssima produtividade de nossa época, temos, além da forma fenomênica de superprodução apenas relativa nas crises cíclicas, uma superprodução absoluta latente, pois agora podemos satisfazer todas as necessidades humanas básicas e ainda fazer sobrar recursos para investimento. Ela é latente porque nunca se revela de mudo puro, total; e absoluta por oferecer finalmente a abundância necessária ao socialismo e tender a afetar todos os setores produtivos. É desse modo, e apenas aqui, o dinheiro, o preço e a forma mercadoria do produto podem deixar de existir – ou tornarem-se marginais na sociedade – já que o mercado pressupõe escassez. Daí o valor de Mèszários sobre a crise estrutural, embora tenha caído em impressionismo teórico. *** O comunismo é o fim 1) Da propriedade privada, 2) Das classes, 131

Tomo tal reflexão de palestra da historiadora portuguesa Raquel Varella.

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3) Do Estado, 4) Da família monogâmica. O trabalho hercúleo da humanidade de superar tais elementos de sua pré-história é facilitado, se podemos falar em facilidade, pelas suas crises estruturais, uma crise sistêmica. A propriedade privada burguesa entra em sua fase final com a redução da massa global de valor, com a queda da taxa de lucro em seus limites históricos até meados deste século. As classes principais sociedade, a burguesia e o proletariado, afastam-se da produção, o que gera uma burguesia parasitária, classe social fictícia em certo sentido, e massa enorme de desempregados com dificuldade de realizar-se enquanto classe. O Estado é corroído pela própria lógica de lucro, e enquanto este se torna mais difícil, por meio da dívida pública crescente, da urbanização, da indústria bélica, etc. Por outro lado, as condições para o Estado socialista fenecer estão imensamente maduras. A família monogâmica entra em crise com o desenvolvimento tecnológico (anticoncepcional, etc.), com a urbanização, etc. Como observamos, a mesma base material – o motor são as mudanças na produção, o aumento da produtividade centralmente – motiva os diferentes aspectos da crise sistêmica, que podem ser abstraídos e tratados separadamente apenas pelo pensamento. Dentro da realidade, amadurecem juntos e combinados, ainda que em ritmo desigual. Estamos, portanto, no ponto crítico de nossa espécie, do ser social. O cálculo histórico bifurca-se em duas possibilidades latentes e opostas: ou libertamos a humanidade e a natureza ou abriremos a transição para o fim civilizacional e, talvez, de nossa própria existência biológica. Os países e os continentes adentram na crise sistêmica de modo desigual; uns amadurecem as condições para a transição socialista enquanto outros, em si, os menos decisivos para o futuro da humanidade em geral, têm elementos ainda em florescimento. Por outro lado, a revolução socialista em algumas nações, as avançadas em especial, por combinação histórica, aceleram o limite de época em nações até então passos atrás no compasso transicional. Decisivas revoluções sociais alteram até os costumes em todo o mundo, em curto período.

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A TRANSIÇÃO AO SOCIALISMO

Ela virá. A revolução conquistará a todos o direito não apenas ao pão mas, também, à poesia. Trotsky.

Enquanto aos relativamente escassos adversários da revolução soviética, se pode confiar no gênio inventivo dos norte-americanos. Por exemplo, poderiam mandar a todos os vossos milionários não convencidos a alguma ilha pinturesca, com uma renda para toda a vida, e que fiquem ali fazendo o que lhes agradem. Trotsky, Se os EUA se tornarem socialistas.

O AMANHÃ Falamos sobre a necessidade de um sistema mundial de saúde, o espaço pós-capitalista como fusão superante do melhor da urbanidade com o melhor do campo, a tendência das características dos produtos, etc.; agora adentraremos um pouco mais em outros aspectos da produção em si e o regime de Estado. Os marxistas do século XXI precisam recuperar a paixão e curiosidade por entender a ciência e a técnica; em última instância, o futuro depende disso, em especial após resolvermos as pendências imediatas da luta de classes. Um marxismo focado apenas nas dinâmicas dialéticas das classes e dos Estados é um marxismo amputado. O socialismo será a superação do paradigma fábrica, no sentido de casa do trabalho manual. Em todos os modos de produção a classe dominante afirmava-se por dominar o trabalho intelectual contra o trabalho manual da ferramenta falante. Se alcançarmos o igualitarismo, toda a humanidade será a ―classe‖ dominante, pois divisões serão inexistes, pois todos os indivíduos serão senhores do trabalho intelectual, diferente e emancipado, que será a forma de trabalho dominante em geral. Quem, por isso, ―pegará no pesado‖? As máquinas, maquinário automatizado, robôs e outras invenções desta sociedade pós-industrial. Em nossa época, isso se mostra em modo embrionário, larval, por exemplo, nas impressoras 3D.

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A fábrica está para o capitalismo como o feudo está para o feudalismo. A fábrica expressa em si a etapa da humanidade, capitalista, da histórica luta da espécie humana: ser social, mais do que natural132. Enquanto o escravismo e o feudalismo tinham na relação imediata com o solo e a natureza sua base econômica mais avançada, as ―casas de ferro‖ da produção sob o capital representam um salto para frente, embora de modo invertido, na humanização da humanidade e da natureza. A revolução social conclui tal objetivo em médio prazo histórico. Guiados pela questão técnica e pelos clássicos, deduzimos o socialismo como uma evolução de três etapas133: 1. A transição ao socialismo; São implementadas, na medida do possível, políticas socialistas por meio de um novo Estado com democracia socialista. A necessidade de etapa preliminar é informalmente percebida por Lenin e Trotsky no calor da revolução Russa. Porém, pode-se afirmar que eles, em termos hegelianos, ―conheceram, mas não reconheceram‖ esse fato. Nesta obra, apresentamos de forma direta e clara a conclusão. 2. Socialismo;

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Como debatemos em outras notas, o ser orgânico realiza tendencialmente sua teleologia com o ser social, com outro ser, de modo cada vez mais aproximado nesta realização. O trabalho, principalmente o "manual", é comum entre animais, não sendo uma particularidade humana (alguns casos sabe-se que têm pensamento complexo, como primatas, golfinhos e corvos – mas não a estrutura corporal especial do homo sapiens, como a mão sendo a primeira ferramenta do cérebro, como a capacidade de falar, como o andar bípede, etc.). O trabalho é categoria fundante do ser social como desenvolvimento e realização em outro do ser biológico. O trabalho manual da humanidade é o que há de ainda natural, historicamente modificado, no social. O socialismo é uma ruptura com a natureza, como diz Zizek. Por isso, a nova sociedade superará nossa pré-história com o fim aproximado, não absoluto, do trabalho (manual). É o afastamento das barreiras naturais; afastamento este nunca total, mas crescente. 133 Ao longo dos três tomos de O Capital, Marx aproveitou as oportunidades dadas pela teorização da economia capitalista para supor aspectos gerais da próxima sociedade. Em outros textos também assim procede (Crítica ao programa de Gotha, etc.). Há no marxismo boa dose de idealismo calibrado e dimensionado pelo materialismo. Isso é típico do latente: o processo de fundação da atual sociabilidade precisou de pensadores capazes de fantasiar como deveria ser o futuro; a necessidade de derrubar o poder absoluto do monarca feudal fez a criatividade solucionar idealmente o problema do poder pela divisão do Estado em três poderes complementares e interelacionados – o executivo, o legislativo e o judiciário. Testes, adaptações, correções ou substituições ocorrem na prática, na aplicação. Se os marxistas desejam voltar ao subversivo, à imaginação, a enfrentar tabus de modo construtivo, o caminho está antecipado pela última fase do sistema ao nos permitir melhor visualizarmos as possibilidades.

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O poder socialista consolida-se em nível internacional e o Estado começa a definhar-se. Ainda há classes, mas a diferenciação é superada de modo progressivo. 3. Comunismo. A organização geral é apenas sobre as coisas, não sobre as pessoas. As organizações classistas – partidos, sindicatos, etc. – deixam de existir com o fim das classes.

O altíssimo amadurecimento do capitalismo ao mesmo tempo exige e possibilita tentarmos antecipar os aspectos gerais da transição ao socialismo. Arriscaremos, nos limites de um modelo exemplificativo, antecipar os aspectos da sociedade futura. Os iluministas, como Montesquieu, deram-se a tarefa de pensar aspectos de uma sociabilidade capitalista plena; a tarefa agora é pensar, tornar imaginável, o resultado da revolução social.

A TRANSIÇÃO AO SOCIALISMO A revolução mundial terá um inicio destrutivo, pois serão guerras civis por todo o mundo; ao mesmo tempo, erguer-se-á a partir das bases econômicas e culturais herdadas do capitalismo. Assim, a fase de transição terá como tarefa consolidar a nova sociedade em nível planetário rumo ao avanço estável. Aqui, elementos do sistema anterior estarão temporariamente em presença, definhantes; o Estado operário revolucionário e a quantidade de organizações, por outro lado e por isso, aumentar-se-ão. Já que corresponde uma luta interfronteiras, trata-se de um processo que pode durar décadas, mas não é secular. Teórico marxista admirável, Iván Mészaros opina em entrevista:

[Entrevistador] Como se dariam essas mudanças estruturais e qual estrutura social o senhor vislumbra a partir delas? O imperativo de se ir para além do capital como controle sociometabólico, com suas dificuldades quase proibitivas, é a condição compartilhada pela humanidade como um todo, pois o sistema do capital, por sua própria natureza, é um modo de controle global e universalista que não pode ser historicamente superado, exceto por uma alternativa sociometabólica igualmente abrangente. Assim, toda tentativa de superar os limites de um estágio historicamente determinado do capitalismo - nos parâmetros estruturais

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necessariamente orientados para a expansão e propensos à crise do sistema do capital está destinada mais cedo ou mais tarde ao fracasso, independentemente de quanto sejam "avançados" ou "subdesenvolvidos" os países que tentarem fazê-lo. A ideia de que, uma vez que a relação de forças entre os países capitalistas e os pós-capitalistas tenha mudado em favor dos últimos, a via da humanidade para o socialismo será uma jornada tranquila é, na melhor das hipóteses, ingênua. Pode-se avaliar a magnitude das dificuldades a serem superadas ao nos lembrarmos da maneira como o processo de produção foi sendo constituído durante um período muito longo, bem antes da emergência e do triunfo do capitalismo. A transformação radical necessária para o bom funcionamento de um processo sociometabólico baseado numa verdadeira igualdade envolve a superação da força negativa das estruturas hierárquicas discriminatórias e das correspondentes relações interpessoais da "economia individual" iniciada há milhares de anos. [Entrevistador] O que isso significa? Significa avançar radicalmente para além do capital, ou não chegar absolutamente a lugar algum, como na verdade aconteceu - tanto com o socialismo democrático do Estado de bem-estar social do capitalismo ocidental como com todas as reformas permitidas pelas determinações autoritárias do sistema do capital pós-capitalista. Como a história trágica da era Stalin, as quatro longas décadas subsequentes demonstraram conclusivamente que as personificações do capital poderiam trocar de pele, mas não poderiam eliminar os antagonismos do sistema do capital, nem remover os dilemas que confrontavam o trabalho. Nem a desintegração dos partidos social-democratas e comunistas poderia realmente resolver a crise estrutural do "capitalismo avançado". Apesar das falsas aparências em contrário, hoje mais do que nunca, a dura alternativa de Marx confronta o trabalho como o antagonista estrutural do capital, clamando pela rearticulação radical do movimento socialista que, em suas formas conhecidas de articulação defensiva, não pode corresponder à magnitude do desafio histórico. Assim, a chave para que ocorram mudanças significativas na complexidade da reprodução sociometabólica é a superação radical da determinação antagônica e conflitante do processo de trabalho, tanto se tivermos em mente a extração de trabalho excedente primordialmente econômica do capitalismo como a forma politicamente dirigida do pós-capitalismo. Nenhum socialista poderia nem desejaria defender o estabelecimento de uma ordem sociometabólica que não satisfizesse as necessidades dos indivíduos como resultado da abordagem simplista das tarefas e dificuldades encontradas. Tenho esperança na transformação radical de um sistema autossuficiente de poder político que controla o todo da sociedade em um órgão autossuperável, que transfira completamente as múltiplas funções de controle político para o próprio corpo social,

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permitindo, assim, a emergência daquela livre associação de homens e mulheres sem a qual o processo vital da sociedade permanece sob a dominação de forças estranhas. (Mészáros , O Marxismo de István Mészáros, 2011)

Lido com atenção, percebemos que o entrevistado tem dificuldade de dar uma resposta à questão levantada. Assim como György Lukács, seu mestre, faz uma crítica teoricista e, por isso, idealista da transição ao comunismo134. Como comum entre marxistas não militantes, esquece que a política e a prática revolucionária são o reino da mediação, e estão entre o real e o ideal. De modo abstrato, suas observações são corretíssimas, mas o papel de uma revolução é inaugurar uma nova época de reformas: o papel da transição ao socialismo, antessala da transição ao comunismo, é promover o definhamento gradual do valor, do capital e da alienação – mas, para isso, o Estado, por exemplo, de imediato crescerá no lugar de definhar. No mundo concreto, o socialismo puro não surgirá um dia após a declaração de fim da guerra civil revolucionária. A prova mais direta de que o Estado será ampliado está numa conclusão simples, desde a revolução russa: para defender-se de ameaças externas, será preciso o exército regular. O programa das ―milícias operárias‖ em substituição ao exército teve de ser mudado e atualizado. O Exército Vermelho oferecia alguns princípios: 1) dirigentes militares eleitos pelos trabalhadores via seus organismos; 2) hierarquia simples e direta: um dirigente por grupo de combate; 3) eleição de um dirigente político para acompanhar o batalhão, propor, informar etc. sem impor-se sobre as decisões militares do dirigente responsável; 4) prioridade à formação de quadros, do núcleo duro, vindos da classe operária; 5) os soldados enquanto tais não poderiam revogar a qualquer momento o mandato de seus comandantes, pois a indisciplina nos momentos defensivos geraria problemas. Para melhor percebermos o peso da transição inicial, demonstração da revolução russa: após a tomada do poder, os bolcheviques focaram na paz, rearticulação da economia e ampliação do poder dos conselhos operários, consolidação da reforma agrária, criação de comitês operários nas fábricas, redução da jornada de trabalho, etc., não defendiam de imediato o controle da grande produção nas mãos do Estado soviético, pois desejam preparar o terreno; mas foram forçados a isso antes das condições almejadas, em 1918, diante do boicote dos patrões em favor da contrarrevolução e invasão estrangeira.

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Tomo tal reflexão de uma palestra de José Paulo Netto.

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Temos em conta que a transição estimula a consolidação de tendências vivas no capital, por exemplo: 1) Concentração e centralização de capitais – formando única propriedade social;

No proceder do avanço ao socialismo o controle social da produção, que é muito mais do que mera estatização, se dará sobre as maiores e mais vitais empresas dos países – a miríade de pequenas e médias fica em geral fora de uma relação direta –, aquelas determinantes do metabolismo econômico e social. A revolução húngara de 1919, por exemplo, na esteira da russa, entre outros erros que a levaram à derrota, tentou ser ―mais bolchevique que os bolcheviques‖ e passou ao controle de toda propriedade, no lugar de apenas as centrais, faltando condições de gestão, de controle e de plano geral. 2) Deflação – ao elevar a produtividade, rumo ao fim do preço e do comércio; 3) Substituição do capital variável por capital fixo – investimento intensivo em pesquisas para automação produtiva; 4) Sistema único de finanças, banco único, contabilidade geral; 5) Queda da taxa de lucro; 6) Expropriação dos próprios capitalistas, antes operada pela concorrência entre capitais;

7) Integração socioeconômica internacional: dissolução das fronteiras nacionais por meio da associação, com autonomia e solidariedade.

Haverá também processo de substituição da forma salário. Parte do processo se dará por serviços públicos gratuitos e de qualidade (educação, saúde, transporte, etc.) que, por escala, diminuem o custo social total e deixam de pesar ao trabalhador. Outro dos modos será o aumento de resistência dos valores de uso, ainda boa parte mercadoria no primeiro momento (enquanto a deflação e o aumento da produtividade ocorrem), descontos por devolução de materiais desgastados, autonomia energética dos produtos, etc. Em parte, poderá haver formas transitórias iniciais, como, confirmado responsabilidade do indivíduo para com o estudo ou o trabalho, estando apto e a sociedade lhe oferecendo meios, uma parte do ganho virá em forma de algo como vales magnéticos (o substituto do cartão de débito e crédito, pois aí não haverá circulação, por isso deixará de ser dinheiro) e outra na forma monetária. 135

135 Ainda haverá classes no começo da transição ao socialismo, logo salários desiguais (médicos ganharão melhor, etc.), o que pede mediação.

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Além do mais, a forma dinheiro será necessariamente superada, mas, por muito tempo, não totalmente. Um dinheiro mundial unificado e virtual – que já é tendência sob o capitalismo por causa da alta produtividade e necessidade de escoar mercadorias – poderá surgir para as poucas e paralelas atividades mercantis da sociedade socialista. ***

A fase de transição pede a construção dos seguintes mecanismos mínimos: 1) Economia democrática e centralmente planejada136; 2) Grande propriedade estatal; 3) Controle do comércio exterior (Herrnandez, 2008); 4) Controle democrático dos trabalhadores e setores populares sobre o regime de Estado, democracia socialista.

A falta de qualquer um desses fatores significaria devolver ao ―sujeito automático‖, a relação baseada no valor, sua força social. O controle do mundo dos homens sobre o mundo das coisas precisa de instituições, de organização, de tomadas conscientes e organizadas de decisões. Nenhuma força ―natural‖ ou ―autogerida‖ substitui a administração da existência coletiva, enfim possível no socialismo pelo seu nível de liberdade, nas primeiras etapas, significando Estado. O justo desejo anarquista de avançar diretamente para o fim do aparelho de Estado, seja capitalista ou socialista, seja democrático formal ou democrático real, das classes, da rede de organizações, das fronteiras ainda que parciais, quer seja, o salto ao comunismo, emperra nos limites materiais da realidade, exigente de transição e medidas construtoras. A necessidade de uma transição, antes do socialismo e do comunismo, tem os seguintes motivos:

136 Complementamos com citação pouco lembrada do Capital II: “Imaginemos que a sociedade, em vez de capitalista, fosse comunista: antes de mais nada, desaparece o capital-dinheiro e por conseguinte, os véus com que disfarça as operações. E tudo fica reduzido ao seguinte: a sociedade tem de calcular previamente a quantidade de trabalho, meios de produção e meios de subsistência que, sem prejuízo, pode aplicar em empreendimentos que, como construção de ferrovias etc., por longo tempo, um ano ou mais, não fornecem meios de produção, meios de subsistência nem qualquer efeito útil, mas retiram da produção global do ano trabalho, meios de produção e de subsistência. Mas, na sociedade capitalista, onde o senso social só se impõe depois do fato consumado, podem ocorrer e ocorrem necessária e constantemente grandes perturbações.” (O Capital II, Civilização Brasileira, p. 357, 358.)

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1) As revoluções vitoriosas tendem a ocorrer, em primeiro, nos países atrasados porque são socialmente mais contraditórios; 2) A maior parte das revoluções tende à guerra civil, à destruição; 3) É impossível, sob risco de dar passo maior que o possível, implementar todo um programa transicional com um só golpe; 4) Avançar ao socialismo só é viável se avançando para a revolução internacional, o que leva algum tempo, com avanços e recuos. *** São mecanismos possibilitadores da democracia operária, socialista: 1) Acesso popular às armas137138;

2) A concentração humana na urbanidade; 3) Experiência prévia com democracia burguesa – fator não obrigatório; 4) Impacto da revolução vitoriosa sobre a cultura e a consciência139; 5) Fim do desemprego, na medida em que permite contato humano e segurança para defender-se (basta observar a quantidade de greves quando o desemprego é baixo sob o capitalismo); 6) Tempo livre para dedicar-se às tarefas sociais e políticas; 7) Reformas que deem qualidade de vida, necessidade de defendê-las e a percepção de que o ato revolucionário tem por fruto melhorias, não frustrações; 8) Luta de frações, de ideias, de organizações impedindo o controle de uma única via organizacional140; 137 Citemos forte exemplo. No Chile, o governo de frente popular de Allende, ou seja, contrarrevolucionário (impedir a revolução por meio de um falso governo operário no Estado burguês), teve de ceder às ocupações de fábrica, pois o movimento foi fortíssimo. Depois, percebendo a inevitabilidade da revolução agrária, antecipou fazendo a reforma no campo, atrasando a revolução social. Após a moral alta – a paciência das massas se esgotando e período de cansaço (momento defensivo na situação revolucionária) –, com a confusão e esperança causada nas massas e na esquerda, abriu-se a possibilidade clara de um golpe de Estado. Nas ruas, os trabalhadores pediram armas para impedir a contrarrevolução: mas o presidente em pessoa as negou, pedindo aplausos ao “antigolpista” e general Pinochet. Um governo burguês, seja qual for o tipo, é capaz de tudo, menos permitir as massas organizadas em armas, já que isto é Estado. A tentativa “bondosa” de Obama, nos EUA, de restringir o histórico acesso dos trabalhadores às armas – desde sua revolução burguesa – é exemplo da decadência após 2008, do medo de uma revolução social interna. 138 “Somente o mau governante teme seu povo em armas” (Maquiavel, 2013). 139 Na luta de classes, as vitórias são muito mais educativas que as derrotas. 140 De modo geral, tratando dos diferentes elementos da vida humana: no capitalismo, a concorrência domina a cooperação; no socialismo, a cooperação domina a concorrência.

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9) Investimento intensivo em capacidade cultural de gestão superando a atual forma

despótica de gerência; 10) Organismos de luta fora e ao lado do poder (sindicatos etc.);

11) Integração socialista internacional.

O sistema de sovietes da URSS nos primeiros anos é o esqueleto geral dos pontos acima, por isso cumpre retomar temas antes aparentemente superados. Primeiro: o estatuto dos sovietes da Rússia erra ao exigir sindicalização para ter direito a voto – ao menos hoje soa absurdo –, pois devemos estimular máxima participação da base, ainda que no dia a dia os representantes eleitos cuidem dos aspectos constantes a partir de um controle dos representados. Segundo: que a eleição de representantes será por votos de variados pesos – igual quantidade elege mais representantes segundo categorias, bairros, classes, etc. Terceiro: durante conflitos duros de guerras, inevitavelmente o regime – aqui acerta Moreno contra Mandel – terá de passar por mudanças parciais, com maior liberdade aos grupos ―pelo retorno ao capitalismo‖ nos momentos de paz e menor nos momentos de tensão física. Quarto: ainda que os mandatos sejam revogáveis a qualquer momento, a experiência com a burocracia nos leva à necessidade de manter, ao lado, referendos de datação regular quanto a manter a composição do governo ou iniciar votações gerais. Quinto: no destaque de avaliação das necessárias tendências à constituição do Estado socialista, parece-nos justo apontar a rotatividade formal dos mandatos, ou seja, dirigentes com tempo máximo de permanência em determinado cargo e tempo mínimo obrigatório de ausência naquelas funções mais gerais cujo controle da base, mais ampla, pede mais mediação. Assim como a democracia representativa, burguesa, a democracia direta e participativa, operária, apenas pode existir se as condições materiais da sociedade estão maduras. Automação (abundância e gestão científica), concentração urbana, integração mundial, internet etc. são os mecanismos permitidores de tal forma democrática superior, antes inviável. São meios da democracia operária, socialista141: 1) Revogabilidade permanente dos mandatos142; 2) Salário dos dirigentes políticos e cargos centrais igual à média nacional ou referência

próxima; 141 Os únicos governos e regimes de Estado apoiados pelos comunistas – mesmo quando criticamente – são os baseados no princípio da democracia socialista. 142 A instabilidade dos cargos gera a estabilidade, pois a) permite a seleção dos melhores, b) gera pressão contínua para o bom trabalho, c) premia os melhores e pune o mau trabalho.

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3) Fusão, por substituição, dos três poderes num único; 4) Assembleias e congressos regulares, de temporalidade formal (quinzenais, diários, anuais, bianuais etc.); 5) Meios de comunicação à disposição dos debates, polêmicas e organizações: internet, rádios, programas e canais de TV etc.; 6) Mecanismos de votação direta em casos de assuntos cujo longo debate prévio é

desnecessário – e mesmo em muito desses casos, em plebiscitos e referendos: votações on line etc. 7) Fim do voto secreto por parte dos representantes; 8) Fim da diplomacia secreta; 9) Criação de um centro legislativo formado por cientistas bem-remunerados e de

mentalidade autônoma cujas decisões serão aprovadas ou não pelo poder dos trabalhadores; Essa proposta exige maiores explicações. Ela foi primeiro elaborada por Trotsky. Lenin a princípio a rejeitou, em seguida a assumiu por sua para combater o processo de burocratização do Estado soviético:

Também penso em propor ao Congresso que dentro de certas condições se dê caráter legislativo às discussões da Gosplan, coincidindo neste sentido com o camarada Trotsky, até certo ponto e em certas condições.

A Gosplan (Comissão do Plano Geral do Estado) foi o grupo de trabalho responsável pela planificação e centralização da economia, criada em 1921. Lenin continua:

Esta idéia foi sugerida pelo camarada Trotsky, me parece, já faz tempo. Eu me manifestei contra, porque estimava que, em tal caso, se produziria uma falta de concordância fundamental no sistema de nossas instituições legislativas. Porém um exame atento do problema me leva à conclusão de que, no fundo, há aqui uma sã idéia: a Gosplan tem agido às margens de nossas instituições legislativas, apesar de que, como conjunto de pessoas competentes, especialistas, de homens da ciência e da técnica, se encontra, no fundo, nas melhores condições para emitir juízos acertados. […] Tenho advertido que certos camaradas nossos, capazes de influir decisivamente na orientação dos assuntos públicos, exageram o aspecto administrativo, no qual, naturalmente, é necessário em seu tempo e lugar, mas que não se deve confundir com o aspecto científico, com a ampla compreensão da realidade, com a capacidade de se atrair

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pessoas, etc. […] Concebo este passo de tal maneira que as decisões da Gosplan não possam ser rechaçadas segundo o procedimento corrente nos organismo soviéticos, senão que para modificá-las condicione-se um procedimento especial; por exemplo, levá-las à reunião do CEC de toda a Rússia, preparar o assunto cuja decisão deva ser modificada segundo instruções especiais, relatando-se, segundo regras especiais, informes por escrito com objetivo de ponderar se dita decisão da Gosplan deve ser anulada; marcar enfim, prazos especiais para modificar as decisões da Gosplan, etc. […] Este trabalho duplo, de controle científico e de gestão puramente administrativa, deveria ser o ideal dos dirigentes da Gosplan em nossa República. (Lenin V. , 2006)

Um governo técnico é impossível numa sociedade dividida em classes, sendo apenas manobra afirmação de tal tipo quanto ao Estado burguês. O mesmo vale às primeiras fases do socialismo, onde ainda há classes – operários, camponeses, funcionários públicos, pequenos empresários, etc. – e diversos extratos. A tarefa socialista é, então, desenvolver mediações de transição ao futuro e ao verdadeiro governo técnico, do comunismo, onde classes sociais e seus partidos serão inexistentes. O senado moderno surge no Estado absolutista, onde legislavam representantes feudais, reacionários. O papel mais conservador relativo à câmara dos deputados foi aproveitado no capitalismo por meio de uma instituição cuja elegibilidade é dificultada, filtrando os tipos de membros. No socialismo ocorrerá o inverso: uma câmara científica terá efeito progressivo sobre a gestão do Estado. Pode-se argumentar que aqui há algo platônico ao abarcar a visão de que os filósofos deveriam governar o Estado. De fato. A boa filosofia deve mais do que apenas negar as produções passadas, deve refazer velhas ideias de modo atualizado, aproveitando-as e modificando-as tanto quanto possível. Ademais, cria-se mecanismo de controle social de suas decisões. 10) Representatividade proporcional ao número e peso social. Exemplo: operários de uma fábrica com dez mil trabalhadores elegem mais representantes do que a assembleia da associação municipal dos pequenos comerciantes, pelo peso social e numérico, qualitativo e quantitativo. 11) Os organismos de poder direto surgirão nos locais de trabalho, moradia, cidades,

vilarejos, estados e nação.

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Um dos teóricos-base desta obra, Mészaros parece não ter conhecido o método do programa de transição. As questões levantadas e não resolvidas por ele pertencem a esta lacuna teórica, viva quase que apenas no meio trotskysta, no marxismo ortodoxo. Muito além de palavras de ordem, o programa transicional, sintetizado pela primeira vez por Trotsky, apresenta uma lógica interna para a ruptura histórica nos campos da economia e Estado, desde a luta de classes. Leitura atenta e comparada da literatura sobre Programa de Transição 143 e o capítulo IV, Política Radical e Transição Para o Socialismo: Reflexões do Centenário de Marx, do livro A Crise Estrutural do Capital, de Mészàros, clareia as dificuldades do marxismo contemporâneo de se atualizar e saber com quais clássicos contar enquanto pontos de partida para suas tarefas. Uma última observação. Na medida em que o comércio e a cooperação artesanal evoluíam, o Estado feudal adquiria duplo caráter, feudal e burguês144. Como a revolução socialista trata-se de destruição da história das classes dominantes, o Estado burguês não suporta ter duplo caráter, além do despotismo esclarecido. No entanto, diferente e ao inverso do caráter duplo na URSS e China145, o Estado Operário de transição será socialista e burguês, definhando esta duplicidade, medida a medida, na proporção em que a realidade o permitir. Como transição para o próximo capítulo, vejamos a passagem possível do capitalismo para o socialismo. Sob o capital, temos a desordem, a desorganização e, ou seja, o caos; sob a bandeira vermelha, teremos a ordem, a previsão e, o que é o mesmo, a organização. Na desordem, há dentro de si a ordem enquanto lei, como tendência, como lei tendencial ao seu oposto, isto é, tornar-se ordem por meio de sua autointeração caótica e seu evolver – a desordem não suporta a si própria, por isso se autossupera; já a ordem tem, por seu lado, dentro de si como se aquele caos por meio de uma realidade ainda e sempre dinâmica146.

143 Indicamos para primeiro contato: O Programa de Transição, de Trotsky; Introduccion al Programa de Transicion (Hansen & Novack, 1978); O Partido e a Revolução, de Nahuel Moreno; este capítulo e o conjunto da obra. 144 Como dissemos em outro momento: a polêmica, a oposição, sobre se o Estado feudal em seu fim era apenas feudalista ou tinha duplo caráter, também capitalista, é resolvido pela observação de que no caráter duplo um polo é o determinante, neste caso, o polo do feudalismo. 145 Estas sociedades elevavam-se por meio da elevação do trabalho abstrato – na produção, onde surge o mais-trabalho e o mais-valor –, não por um processo de sua destruição contínua. 146 Lembremos que a lei da entropia não é, como afirmam certos manuais introdutórios, medida de desordem. Ademais, aqui tratamos de uma instância diferente do real.

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A NOVA DIALÉTICA O método dialético de Marx ainda falta a uma sistematização rigorosa em uma obra. Tal projeto exigirá, para fins de atualização, estudo crítico de toda a ciência moderna. Ademais, a última grande contribuição categorial foi feita no início do século XX com a lei do desenvolvimento desigual e combinado descoberta por Leon Trotsky. Aqui, iremos oferecer alguns possíveis aportes ao sistema lógico; para este objetivo, tentaremos dispor exemplos de como a dialética das categorias propostas está na própria realidade.

CONCRETO E ABSTRATO Temos quatro definições comuns sobre as categorias concreto e abstrato: 1. Abstrato: elevar em conceitos mentais a realidade, fazendo uso de generalizações, de modo a reproduzir a natureza deste último no pensamento. Concreto: a realidade mesma, independente de uma reflexão, e sua dinâmica. 2. Abstrato: um elemento separado de sua totalidade. Concreto: síntese de múltiplas determinações. 3. Abstrato: descrever a realidade, o objeto, em sua generalidade, em seus aspectos gerais, retirado as particularidades, as irregularidades acidentais e fatores externos. Concreto: descrever a realidade, o objeto, em seus aspectos específicos, particulares e conjunturais, agregando fatores externos e irregulares. 4. Abstrato: geral, indiferenciado. O trabalho abstrato, ligado ao tempo é exemplo do abstrato existente na realidade. Concreto: específico. O trabalho concreto, que produz valor de uso, é exemplo.

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No entanto parece existir outra interpretação, outra forma de tratar duas categorias íntimas e próprias da realidade. Antes de expressá-la, convido o leitor a ler este trecho de Marx, Introdução Para a Crítica da Economia Política (1857):

―Os economistas do século XVII [que], por exemplo, começam sempre pelo todo vivo: a população, a nação, o Estado, vários Estados etc.; mas terminam sempre por descobrir, por meio da análise, certo número de relações gerais abstratas que são determinantes, tais como a divisão do trabalho, o dinheiro, o valor etc. Esses elementos isolados, uma vez mais ou menos fixados e abstraídos, dão origem aos sistemas econômicos, que se elevam do simples, tal como trabalho, divisão do trabalho, necessidade, valor de troca, até o Estado, a troca entre as nações e o mercado mundial. O último método é manifestamente o método cientificamente exato. O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, isto é, unidade do diverso. Por isso, o concreto aparece no pensamento como processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto de partida também da intuição e da representação.‖ (Marx, O Método da Economia Política, 2019, grifos nossos.)

Como observamos, está de acordo com os quatro critérios acima apontados. Porém, Marx trata aí de um método do pensamento, de fazer ciência, não da realidade por si mesma; digamos que, de maneira indireta, trata-se apenas de uma dialética do pensamento ao reconstruir a estrutura dialética do real. Muito mais que isso, temos percebido que esse processo de pesquisa, ―mental‖, também ocorre como lei geral do próprio movimento da matéria, como fenômeno material em si. Observemos: a citação segue a seguinte sequência: 1) concreto ―amorfo‖; 2) abstrato, as partes, o adentrar cada vez mais nas partes de um todo; 3) reconexão das partes, retorno ao concreto de modo superior. Demonstraremos que este movimento é o próprio movimento da realidade. Vejamos esse movimento por meio de uma citação de outro dos meus textos:

Os Estados Unidos Socialistas da Europa são mais necessários do que nunca. Na Idade Média a Europa desconhecia fronteiras, nações, nacionalidades, etc. Os habitantes desse continente viam-se como ―o mundo cristão‖ e tinham em comum a história, o Latim, a Igreja Romana, o sistema feudal, etc. De fato, era uma massa única, homogênea e de particularidades internas pouco definidas – chamemos concreto ou

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concreto simples (ou podemos tomar por referência o grande Império romano). Imediatamente após, a burguesia inicia sua tarefa de formar países, Estados-nacionais, exércitos, fronteiras definidas, nacionalismo, identidade, impostos unificados, etc.: a Europa continua Europa, entretanto suas partes separam-se em uma ―relação alienada‖ ou ―relação, porém alienada‖ e isto foi vital para desenvolvimento das partes e do todo; chamemos abstrato. Este processo desenvolveu as partes, os países do mundo europeu, assim como suas interconexões, a tal ponto que amadureceram e agora (!) pedem fusão, integração, união e superação dos limites nacionais; este é o concreto complexo em latência, ou seja, o desenvolvimento econômico-social avisa-nos que deseja voltar ao começo, ao negado, ao antes do abstrato, ao concreto só que de modo diferente, superior, superante. Isso aponta a revolução socialista europeia: o Euro e a União Europeia são mediações, deformantes, propostas pelo capital e pelo imperialismo, para essa necessidade objetiva.

Na história das ciências essa tendência também se revela: todas as ciências eram, em estado inferior, reunidas na filosofia; depois, foi necessário separá-las e desenvolvê-las individualmente; agora, a tendência é reuni-las na físico-química, na psicologia (ciências sociais somadas à biologia), no marxismo (fusão de todas as chamadas ciências humanas em uma única ciência – a ciência humana –, incluindo influência de base da biologia, etc.). A atual fragmentação das ciências sociais em áreas particulares, com muito peso pós-moderno, excluídas umas das outras será reconciliada com a renovação marxista das universidades no socialismo. O movimento concreto-abstrato-concreto revela-se em um novo significado; temos, então, um suporte categorial a mais para auxiliar o trabalho científico e o treinamento dialético do raciocínio. Agora, vejamos um trecho de O Capital I onde observamos um exemplo específico do concreto-abstrato-concreto tal como destacamos:

O que é válido para a divisão manufatureira do trabalho na oficina vale também para a divisão do trabalho na sociedade. Enquanto artesanato e manufatura constituem a base geral da produção social, a subsunção do produtor a um ramo exclusivo da produção, a supressão da diversidade original de suas ocupações é um momento necessário do desenvolvimento. Sobre essa base, cada ramo particular da produção encontra empiricamente a configuração técnica que lhe corresponde, aperfeiçoa-a lentamente e, num certo grau de maturidade, cristaliza-a rapidamente. Além dos novos materiais de trabalho fornecidos pelo comércio, a única coisa que provoca modificações aqui e ali é

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a variação gradual do meio de trabalho. Uma vez alcançada a forma adequada à experiência, também ela se ossifica, como o comprova sua transmissão, muitas vezes milenar, de uma geração a outra. É característico que, no século XVIII, ainda se denominassem mysteries (mystères) [mistérios] os diversos ofícios em cujos arcanos só podia penetrar o iniciado por experiência e por profissão. A grande indústria rasgou o véu que ocultava aos homens seu próprio processo social de produção e que convertia os diversos ramos da produção, que se haviam particularizado de modo naturalespontâneo, em enigmas uns em relação aos outros, e inclusive para o iniciado em cada um desses ramos. O princípio da grande indústria, a saber, o de dissolver cada processo de produção propriamente dito em seus elementos constitutivos, e, antes de tudo, fazêlo sem nenhuma consideração para com a mão humana, criou a mais moderna ciência da tecnologia. As formas variegadas, aparentemente desconexas e ossificadas do processo social de produção se dissolveram, de acordo com o efeito útil almejado, nas aplicações conscientemente planificadas e sistematicamente particularizadas das ciências naturais. [Nota de rodapé 304] Segundo o Statistical Account, em algumas partes montanhosas da Escócia [...] havia muitos pastores de ovelhas e cotters [Camponeses parceleiros nas terras altas escocesas], com suas mulheres e seus filhos, calçando sapatos feitos por eles mesmos, de couro curtido por eles mesmos, com roupas que não haviam sido tocadas exceto por suas próprias mãos e cuja matéria-prima era a lã e o linho que eles mesmos haviam respectivamente tosquiado e plantado. Na confecção de suas vestimentas dificilmente entrava algum artigo comprado, exceto a sovela, a agulha, o dedal e algumas peças de ferro utilizadas para tecer. As tinturas eram obtidas, pelas próprias mulheres, de árvores, arbustos e ervas‖, Dugal Stewart, em Works, cit., v. VIII, p. 3278. (Marx, O capital I, 2013, p. 556)

Na primeira citação de Marx, o concreto-abstrato está expresso numa relação sincrônica do objeto. Por exemplo: o corpo humano (totalidade), complexo de complexos, é dissecado pelo anatomista; este estuda a natureza e função de cada órgão, nervo, osso e pedaço do corpo (abstrato); com isso, procura e percebe as ligações, as interconexões e interdependências de cada parte, umas com as outras; daí, cada vez mais ele vai construindo uma compreensão profunda do todo, do corpo (concreto) (exemplo bastante parcial, pois o marxismo teoriza o sistema orgânico e vivo, em devir). Já a segunda citação do mouro demonstra uma relação também temporal, do objeto no tempo, diacrônico. Por exemplo: primeiro, produção artesanal ou primitiva (concreto); depois, cooperação e manufatura (abstrato); em seguida, grande indústria (cada vez mais concreto). Quando Marx afirma que o abstrato não forma o concreto, ao contrário do que

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pensava Hegel, ele acerta quanto aos modos sincrônicos, as estruturas, porém deixa de observar que a relação categorial ainda assim é útil no diacrônico, como um processo. As diferentes formas de arte encontravam-se misturadas em seus inícios. Depois, ocorreu o desenvolvimento das artes particulares, a especialização, a separação (a poesia da música, o romance da poesia, etc.). Hoje, o cinema e os jogos de vídeo game fundem artes separadas na mesma obra. Padrão da geologia. Do concreto amorfo, surgiram progressivamente os continentes iniciais, proto-continentes elevados no período Arqueano, que, após processo longo, fundiram-se no Pangeia; este, por suas vez, separou-se nos atuais continentes do planeta. O atual afastar aproxima. Com o desenvolvimento do mundo das mercadorias, desenvolveu-se o comércio de dinheiro e a produção de mercadorias. Na época do capital, novas empresas comerciais, industriais, bancárias, de serviços surgiram, cresceram, ampliaram-se. Ainda hoje surgem novas empresas, porém a tendência geral é a fusão de setores produtivos, da indústria com os bancos, do comércio com os demais setores, a formação de oligopólios que tratam desde a extração da matéria-prima necessária até a venda final, a formação de conglomerados, etc. Se vencer, o socialismo conclui tal tendência à fusão e centralização unificando todas as grandes fábricas, os comércios e os bancos em um só corpo a partir de um planejamento centralizado e democrático geral; surgirá o banco único do Estado, por exemplo, antes da extinção ou quase extinção do dinheiro (após certa maior unificação deste); o socialismo, assim, supera o próprio capital no processo de sua unificação. Sem confundir especulação com ciência propriamente dita, podemos fazer algumas observações, sob risco de dizer absurdos. Primeiro, após expandir-se, o universo passará a contrair-se, as partes unindo-se após o desenvolvimento dos abstratos, como teorizam alguns físicos, com os buracos negros cumprindo papel central. Em segundo, lembremos que o bom infinito é o infinito qualitativo, não quantitativo, que funciona como se um círculo, sem começo nem fim – considerado isso, podemos pensar que há uma quantidade finita de universos que estão conectados, mais do que apenas um ao lado do outro, com autonomia apenas relativa em relação aos demais, como um hipercubo em automovimento, em que a expansão de alguns universos corresponde, por interação, por influência recíproca, à contração de outros, e (ou) vice-

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versa, a contração de uns expande outros. Desse modo, fundimos as hipóteses, opostas, do multiverso no tempo e no espaço.147148 No movimento concreto-abstrato-concreto é importante ter em conta que o abstrato é por si próprio a formação processual do concreto, interno, na parte, e externo, no todo. Também destacamos o processo de transição a partir do concreto em latência, quando o desenvolvimento do abstrato, que também é o da inter-relações, tem alto avanço sob suas bases; exemplo é a concorrência de monopólio atual entre a concorrência capitalista, cada vez mais superada, e o monopólio social no socialismo, cada vez mais latente. O primeiro concreto é o mais relativo de modo que o abstrato, rumo ao concreto, aparece como início e base do movimento. Hegel quase alcançou tal conclusão ao afirmar que o entendimento, separar e fixar conceitos, e a razão, ver a unidade dos conceitos, estão também na própria realidade; mas ficou apenas aí como um ótimo idealista. Expomos em primeira forma acaba o que é intuição no hegelianismo. Tal modo de ver o abstrato-concreto está, também, intimamente ligado à dialética da repulsãoatração.

TRÍADE E COLATERAL A lógica dialética de Hegel e, de modo materialista, de Marx apresenta a relação de tríade. Tais relações em trio, que são relações categoriais, também ocorrem no real. Para exemplificarmos, algumas inter-relações de tríade: a) infraestrutura, estrutura, superestrutura; b) ID, ego, superego; c) inconsciente, subconsciente, consciente; d) proletariado, setores médios, burguesia; f) indústria de bens de produção, indústria de bens de consumo, indústria bélica; g) prótons, elétrons, nêutrons; i) forças produtivas natureza, técnica, homem; j) matéria-prima,

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O método hipotético-dedutivo parte de um problema para elaborar uma hipótese e, enfim, testála. O método dialético, ao contrário, caminha-se direto para a totalidade dos dados do real até encontrar seu nexo interno. A dialética evita princípios a priori, hipóteses antecessoras, premissas ou postulados na pesquisa. De qualquer modo, porque busca apreender e expressar a lógica própria da realidade, as categorias do dialético ajudam a secundária intuição científica – tendo-se claro que nunca impomos um modelo logicista ao objeto, ao contrário, extraímos as próprias leis concretas do movimento, da contradição e da totalidade dele e nele. 148 Se a hipótese demonstrar-se, no fundamental, correta, então outra hipótese poderá ser considerada: alguns universos que influenciam a expansão do nosso podem ser formados por antimatéria (talvez até a antimatéria que não se aniquilou após o big bang), atraindo nossa matéria.

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maquinário, trabalhador; etc. Quando e se há, um quarto elemento ou o que destoa chamemos colateral, o que está ao mesmo tempo dentro e fora, separado e integrado. Nessa obra, essa dialética, manifestada no inchaço do colateral, se apresenta em especial na hiperinflação do capital fictício, no alto desenvolvimento do setor de serviços e aumento da subclasse dos desempregados. Esses inchaços colaterais são expressões e consequências do alto amadurecimento e definhar do sistema capitalista. Na física, podemos expressar nos quatro estados típicos da matéria: sólido, líquido, gasoso e plasma. Também observamos nas forças fundamentais: força nuclear forte, força nuclear fraca, eletromagnetismo – e a gravidade. Mas a gravidade está ―dentro e fora‖, pois desde Einstein sabe-se que esta não é uma força mas curvatura do espaço-tempo. Dai a dificuldade dos cientistas de, após unificar as três primeiras, fazer a unificação matemática das quatro forças consideradas. Continuemos com exemplo de tríade na química, em forma de organização estrutural (abstraído, na formulação retirada, o movimento). Ao tentar classificar – método aristotélico, lógica formal – os elementos químicos, agrupando-os de modo lógico, o químico alemão Johann Wolfgang Dobereiner, em 1817, percebeu que no agrupar de elementos de propriedades semelhantes, tomando a forma de grupos de três, um deles tinha a massa atômica (MA) como média aritmética dos outros dois… Chamou ―lei das tríades‖. Exemplo: Cloro (Cl), Z 25,5; Bromo (Br), Z 80; Iodo (I), Z 137. Seu modelo foi rejeitado por considerem limitado para classificação simples dos elementos em geral, reunindo-os. Em versão hoje aceita, na tabela periódica, onde há o avanço do mais simples ao mais complexo na formação de elementos: entre metais e não metais, há os semimetais ou metaloides, de características parciais de um e outro – e os gases nobres ou raros (colateral). Utilizando tal ferramenta, Hegel afirmou existir três macroclimas: muito úmido e frio, muito seco e quente e o rico intermediário entre ambos (tríade). Leitor disciplinado da produção hegeliana, Euclides da Cunha, afirmou na obra Os Sertões (Cunha, 2002) que o filósofo alemão deixou de notar o perfil de alguns climas brasileiros – cap. V, em A Terra, subcap. ―Uma Categoria Geográfica que Hegel não Citou‖ –, em especial o sertão (no livro citado, faz comentários sobre este fator sui generis de norte a sul da nação, em diferentes paisagens), onde as chuvas em excesso por meses ocorrem após secas por maior período, onde o calor violento do dia contrasta com o frio agressivo da noite, etc. Isto é: colateral. Relativo aos anteriores sistemas – o primitivo, o escravista ou o asiático e o feudal –, o capitalismo cumpre a função histórica de colateral. Abre transição para o fim das classes no lugar

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de novas formas, baseia-se nas crises de superprodução substituta das de subprodução, sistema social de dominação disfarçado por uma liberdade geral formal, a mais laica das formas de controle, o lado mais dinâmico da economia ocorre na grande produção não rural, as fontes ―paralelas‖ e secundárias de riqueza em outros sistemas – artesanato, comércio e comércio de dinheiro – tornam-se centrais, apenas pode existir generalizando-se e destruindo as antigas atividades, recruta para as forças armadas do Estado membros das classes subordinadas, necessitou de uma classe à época revolucionária para consolidar-se, expulsa o princípio da tradição e da rotina, a produção de riqueza em valores de uso é secundário em relação à produção de valor e sua acumulação na forma de dinheiro. Por esse ponto de vista, o capitalismo nada mais é do que a forma de transição e transitória entre as sociedades classistas e a sociedade comunista149. No capitalismo, os capitais a juros, industrial e comercial, inflando-se, dão suporte ao setor de serviços e ao capital fictício.

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Isso aponta uma resolução do mau uso da dialética e uma possível solução. Proudhon pensou a tese e a antítese, sem chegar ao menos na síntese, como se tudo tivesse dois lados, o bom e o mau; Marx refuta tal método pobre (Marx, Miséria da Filosofia - Método, 2013) com o exemplo da escravidão, que nada tem de positivo (mas, destacamos para nosso argumento, a escravatura é típica de um sistema anterior). Algo mais sofisticado fez Della Volpe ao afirmar que as contradições são resolvidas tirando o negativo (no sentido de qualidade) e livrando o positivo; por exemplo: há contradição entre produção social e apropriação privada – o que fazer?: Manter o primeiro e encerrar o segundo – uma vez que seriam apenas externos um ao outro. Moreno critica este último autor por não ver que toda contradição está em uma unidade necessária, relação e totalidade (Moreno, Lógica marxista e ciências modernas, 2007, pp. 46, 47, 48). O instinto de Proudhon e a elaboração parcial de Della Volpe ocorrem porque, como dissemos acima, o capitalismo é rebaixado à condição de mera transição entre as sociedades classistas e a sociedade socialista. O atual modo de vida, dessa forma, tem em si aspectos do futuro, embora preso ao passado. Assim: a internacionalização das forças produtivas entram em contradição com os limites nacionais, sendo estes últimos superados; a contradição entre proletariado e burguesia resolve-se suprimindo esta enquanto aquela gradualmente deixa de ser classe; as forças produtivas são preservadas e desenvolvidas com a supressão das antigas relações de produção; sem supor o grau de automação hoje, Marx afirma em O Capital que a mesma maquinaria que serve ao domínio capitalista e produz o “necessário” exército industrial de reserva também serve por excelência para acabar com o desemprego reduzindo a jornada de trabalho no socialismo (neste sentido, não há desemprego tecnológico propriamente), etc. Para que evitemos confusão com as categorias, destacamos que a dialética hegeliana e marxista parte do “nem positivo nem negativo” que avança a si mesmo para uma relação de positivo (não no sentido de qualidade, mas no sentido de afirmar-se na realidade) e negativo; logo depois essa oposição é superada em um novo ”nem positivo nem negativo”, pois também o próprio negativo, que está em “desvantagem”, é superado. Por exemplo: do artesão, nem positivo nem negativo, avançou-se para o positivo, burguesia, e o negativo, proletariado, e o socialismo superará tanto o positivo quanto o negativo, o fim da existência de classes sociais.

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Temos três modalidades do Ser: inorgânico, orgânico e social – e objetal (falso ser correspondente à alienação). O desenvolvimento de uma tríade forma também o colateral e, em conjunto, são parte de um todo que se forma. Hegel apreciava exemplos da mitologia cristã para tratar das categorias. Tomemos tal metáfora: a Santíssima Trindade é trina e una ao mesmo tempo; mas, e mais, saiu de si o externo, o anjo Lúcifer, cuja existência reforça seu oposto. Para encerramos as observações e os exemplos, faremos um último destaque. É comum na tríade que aquilo ―entre‖ seja o ―menos igual a si próprio‖ em sua variedade ao ser transição entre um e outro. Ex.: entre o proletariado e a burguesia há uma miríade de setores médios – a subclasse de desempregados e o lupemproletariado (mendigos, ladrões, prostitutas, etc.) são colaterais. REAL E FICTÍCIO150 O movimento do real ou verdadeiro rumo ao fictício ou falso e o inverso – pois este desenvolve aquele em si – ocorre na materialidade. Exemplo: o desenvolvimento do valor-capital, realização, desenvolve o capital fictício. Veja-se que em sua própria origem o capital já se estimula, no capital mobiliário, à concentração e ao desenvolver do capital imobiliário, a terra, que tem preço, mas não valor. Na economia vulgar, há o instinto de contrapor a superestrutura financeira, incluso o capital fictício, à nomeada economia real. Um lucro especulativo, por exemplo, é em si e em aparência real, mas fictício visto na totalidade e na essência (Carcanholo & Sabadini, 2011). O real produz dentro de si sua própria ficção. Este é meio que tem em si o próprio processo de realização. A própria formação humana, sua realização, produziu o fictício: a arte, ficção do e dentro do real. O fictício, existente, aparece como simulação do real. A categoria fictício deve ser afastada da pura palavra falso no sentido puro de erro, sendo diferentes; o fictício está dentro do real e é autodesenvolvimento deste. A relação entre verdadeiro e falso na lógica formal é correta em seu nível, trata de especificidades externas, parciais e estáticas. Na dialética, o falso, o fictício, o pseudo, o imaginário ou o virtual tem a realidade desenvolvendo-se dentro de si. Também se diferencia da relação dialética real e irreal. 150

Embora não tenham desenvolvido, Reinaldo Carcanholo e Maurício Sabadini perceberam que há dialética real-fictício antes do autor destas palavras. Ver: (Carcanholo & Sabadini, 2011). Chegamos ao mesmo peso das categorias por vias independentes, embora apenas agora haja “formalização”.

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Em matemática, a teoria dos conjuntos numéricos, por meio da evolução social da humanidade, desenvolveu o conjunto dos números reais (naturais, inteiros, racionais e irracionais) até alcançar os números imaginários, fictícios. Marx trata de grandes fatos da história que se repetem acontecendo primeiro como tragédia e depois como farsa. A palavra – e o evento – farsa tem duplo sentido, duplo caráter: significa uma comédia e, além disso, o teatralismo ao imitar símbolos históricos passados. Em psicologia, Lacan, inspirado em Hegel, trata do real, do simbólico e do imaginário. Além do Eu ou Self, Winnicott descobre a existência do falso Eu ou falso Self. Podemos arriscar ao

dizer que o pensamento é uma ficção, uma alucinação relativa (a esquizofrenia seria, assim, sua inflação desregulada como luta contra a realidade estressante). O atual desenvolvimento técnico-científico, precisando de novas relações de produção, produz, nesta forma de sociedade, fenômenos sociais fictícios. É o caso do capital fictício produtivo, valorização do capital sem exploração direta do trabalhador, na automação, que nada terá de ficção no modo de vida próximo; e da onda de falsas notícias, as fake news, permitidas tecnologicamente e sob – por razão das – atuais bases das relações sociais. Numa sociedade cooperada, a falsificação da informação será algo raro e marginal, sendo hoje consequência da luta de classes com sua forma de luta política mais os meios para falsificar (que não são causa, apenas meios e possibilidades). O real encaminha-se ao fictício; e este é, por isso, ficção real. É o caso das partículas fictícias ou quasipartículas em física. Em biologia, os pseudofrutos são bons exemplos. Outros casos, mais abstratos, são a força centrífuga como pseudoforça e as falsas espirais na matemática. Em geral, a própria nomeação científica, embora partindo do sujeito, revela a natureza; nosso trabalho aqui, portanto, é perceber e destacar sua unidade interna. A unidade do real e do fictício é o real efetivo ou completo. Notemos que é preciso evitar a vulgarização do uso da categoria ficção. É o caso de Karl Polanyi ao afirmar que o dinheiro, o trabalho (a força de trabalho) e a terra (natureza) são mercadorias fictícias151. Marx demonstrou que o dinheiro é a mercadoria por excelência, que o capitalismo surge transformando a força de trabalho em importante mercadoria por ser capaz de produzir um valor maior do que custa ao capitalista, que a natureza é a fonte de toda riqueza 151

Ele afirma que os três elementos degeneram se são transformados em mercadorias. O argumento é sofisticado, mas errado. Eles entram em decadência porque já são mercadorias reais – porque, como dissemos em nota de rodapé anterior, o capitalismo é uma transição.

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junto ao trabalho em qualquer sistema econômico. Há aí, em Polanyi, apenas um erro teórico e um erro categorial. *** O leitor acostumado com a dialética pode observar que a relação categorial abstrato-concreto passa-se para a tríade-colateral e, em sequência, passa-se este para real-fictício. O desenvolvimento de si do abstrato dá a base para a tríade-colateral e, por outro ângulo, para realfictício; além disso, da abstração, na medida em que há concentração e centralização, tem-se o central-orbitante (que trataremos a seguir). Há, assim, uma passagem lógica dos conceitos, uns para os outros, em uma sequência não arbitrária. No entanto, concordamos com Engels e Lukács sobre que tais passagens, tais derivações, são artificiais na Ciência da Lógica de Hegel e, complementamos, também aqui. Dito isso, avancemos. CONCEITOS NECESSÁRIOS SUBJETIVOS E OBJETIVOS A dialética trata dos aspectos gerais do movimento da realidade. Nesta concepção, expõe o desenvolvimento do saber científico. O método dialético afirma que os conceitos necessários são objetivos, reais, em oposição ao idealismo, como o de Kant, que os considera subjetivos, externos ao objeto, para fins de organização mental. O conceito de campo avançou de uma consideração ―metafórica‖ para uma verdade objetiva. O mesmo ocorre na biologia com o conceito gene quando Morgan demonstrou em 1910 que a conceituação tinha uma forma física. Algo semelhante acontece, ainda sob larga resistência, com o conceito de energia em física e química. Nas ciências humanas, o conceito de valor ganha sua validade plena com Marx152. Percebemos o movimento do pensamento científico. O conceito subjetivo necessário revelase, no segundo momento, objetivo. Na objetividade do conceito necessário está a sua verdade. O conceito necessário subjetivo só se realiza quando se torna seu outro, quando se demonstra completamente necessário porque real. O conceito ainda subjetivo é necessário porque em verdade é objetivo. O exemplo mais destacável é a do espaço-tempo, isto é, quando Einstein deu forma à concepção do materialismo dialético. O espaço e o tempo existem, são objetivos, diferente do que afirmava a anterior concepção subjetiva, idealista.

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Para Aristóteles, era um artifício para fins práticos. Ricardo chega a considerar a objetividade do valor, mas também acaba por cair no valor subjetivo. A economia vulgar retomou a ideia com o valor como subjetivo.

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Há, porém, uma consideração minoritária. O tempo existe ou é a medida do movimento? O conceito filosófico de movimento estende-se em 1) deslocamento, 2) mudança e 3) mudança por deslocamento. Se levamos a concepção anterior a Einstein às últimas consequências, o que altera é a massa, o volume, o tamanho do objeto segundo sua velocidade, ou seja, reduz ou aumenta, altera-se, a perecibilidade e as dimensões. Assim, as provas práticas da objetividade do tempo seriam demonstrações da alteração do corpo (satélite, relógio atômico, etc.) captadas pela medida. Nessa concepção, o espaço-tempo seria substituído pelo espaço-movimento. Mas a medida, para Hegel, tem presença no mundo objetivo; ―o movimento‖ é ―unidade do espaço e do tempo‖ (Hegel F. G., 1995, p. 339). ETAPISMO E SUBLIMAÇÃO Ser contra o etapismo é diferente de desconhecer a existência de etapas de desenvolvimento. O processo é mais dinâmico, pelo grau das contradições, que a visão linear de evolução. A consideração unilateral dos opostos, etapismo e sublimação, encontra unidade interna no condicionamento recíproco de um no outro. A crítica ao etapismo na política, existente entre os antigos partidos social-democratas e os estalinistas, também criou a posição oposta ao negar etapas necessárias, a que chamamos, nessa vulgarização da negação do etapismo, concepção de sublimação. É evidente que muitas sociedades passaram direta e violentamente do primitivismo ao capitalismo comercial, que há saltos, que há não evolução linear, há recuos que resguardam parte do avanço, etc. Também evidente que no todo a humanidade seguiu etapas: primitivismo, escravismo, feudalismo, capitalismo, no desenvolver histórico geral da produtividade social do trabalho, no evoluir contraditório dos modos de produção. Na cosmologia, a aparente contradição de surgir buracos negros primordiais na fase inicial do cosmos foi resolvida considerando tanto o processo da dinâmica de formação quanto, por meio da simulação computacional, descobrir que o próprio processo geral obrigou a formação direta, por salto, de buracos negros. Ainda assim, o universo tem eras próprias e o caminho comum foi da concentração de hidrogênio e de hélio por meio da gravidade, formação posterior de estrelas e, apenas aí, formação de buracos negros. É preciso considerar a existência real de etapas necessárias para então considerar os saltos. Porque há etapas é que pode haver negação – ou combinação – delas. Enfim, a totalidade segue etapas ainda que as partes, por razão das interinfluências, operem saltos.

CENTRAL E ORBITANTE Lucáks critica Hegel por este deixar de perceber que as categorias de A Ciência da Lógica nos livros Doutrina do Ser e Doutrina do Conceito deveriam seguir a forma de determinações de reflexão do livro A Doutrina da Essência (Lukács, 2018). Assim, por exemplo, pôr o qualitativo

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põe o quantitativo. Pois bem; a obra de Hegel trata do centro apenas, sem colocar aí seu oposto com o qual ―mistura-se‖. Propomos, então, a relação central e orbitante. O centro é ―mais‖, naquilo que é central, do que aquilo que o orbita. Em minha experiência política, o uso de tais conceitos foi-me bastante útil para traduzir a realidade e saber como agir. Assim, pode ser positivo a uma corrente política orbitar ao redor de outra por algum tempo para crescer e posteriormente adquirir mais autonomia. Marx trata da ―mudança do centro de gravidade‖ da economia internacional com a descoberta do ouro na Califórnia, o que sugere naturalmente nações orbitantes. A DIALÉTICA DA DIALÉTICA Se pudermos definir qual a categoria central da dialética, digamos quais, no plural: totalidade, contradição e movimento153154. Então, por que não uma somente? Porque uma apenas é incapaz de expressar o objeto155. O capitalismo, por exemplo, é uma totalidade real – não falsa ou formal156 – autocontraditória (logo, a luta de classes pode passar de reformista para revolucionária) em movimento (constrói as contradições e é, também, ao mesmo tempo, construída por estas – além disso, por superação, formam-se novas totalidades157). Como a realidade, social ou cósmica, temos de observar as categorias e leis dialéticas, expressões abstratas, tal como os processos que estas representam – interligadas. As categorias 153

Movimento é equivalente filosófico de mudança, deslocamento e, complementamos, mudança por deslocamento. 154 Em O Capital, o livro I prioriza – logo não exclui os demais em si – na tríade a contradição, como com a luta de classes (lembremos, porém, que contradição dialética não é igual a conflito, como pensa-se vulgarmente, embora possa também sê-lo em alguns casos); o livro II prioriza o movimento como sua categoria base primeira; o livro III, a totalidade, logo a totalidade que inclui contradição e movimento de modo pleno, total. A seção VII, O processo de acumulação do capital, última do tomo, do Livro I, marca a transição para o Livro II ao aumentar o relevo da categoria movimento; já no livro II, a seção III, A reprodução e a circulação de todo o capital social, também última do tomo, marca a entrada da totalidade como transição para o livro III. Esta é uma linha de pesquisa que ofereço a quem se interessar por desenvolvê-la. 155 Por sua vez, cada uma das categorias, como tríade una, responde a uma “estrutura”: a totalidade exige, antes, integração; a contradição deriva de interação, incluso autointeração; movimento pressupõe pulsão. Esta observação merece um estudo próprio, ainda inexistente. Quando dizemos totalidade, dizemos a integração numa totalidade; quando dizemos contradição, dizemos relação contraditória; apenas movimento permanece nos dois “níveis”, sem sugerir pulsão.* *Se nos for permitido alguma digressão, ver-se relação direta com a natureza humana: integração – ser integrado; relação – ser mutualista; movimento – ser ativo, ativismo. Uma reflexão rápida dirá que isso demonstra que o homem é a realização dialética da dialética da matéria; nós dizemos, com a devida dubiedade, que se trata de uma coincidência total. 156 A ideia de totalidade falsa adquire um significado novo e totalmente diferente nesta obra, onde o fictício ou imaginário desenvolve-se no ocaso do sistema. Suprassumimos a concepção de Adorno. 157 Diga-se de passagem, confundir totalidade com totalitarismo é um erro primário.

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possuem, assim, vasos comunicantes e interdependência. Quando se desconsidera essa multiplicidade, ao se eleger um subordinador conceito-síntese, surgem premissas a atuar como ferramentas falhas para o estudo. Terceiro aspecto a destacar; na medida em que temos de procurar no próprio objeto de pesquisa a natureza empírica de seu processo, o próprio raciocínio dialético tende-nos a um método de escrita teórica circular, polêmico e reconstrutor do processo estudado . A quarta observação destina-se ao sujeito, cientista ou político. Leon Trotsky melhor desenvolve: Exigir que todo membro do partido esteja familiarizado com a filosofia da dialética, seria, naturalmente, inerte pedantismo. Porém um operário que tenha passado pela escola da luta de classes, obtém a partir de sua própria experiência uma inclinação para o pensamento dialético. Ainda que não conheça esta palavra, está pronto a aceitar o próprio método e suas conclusões. Com um pequeno-burguês é pior. Naturalmente, existem elementos pequeno-burgueses ligados organicamente aos operários, que passam para o ponto de vista proletário sem uma revolução interior. Porém, constituem uma insignificante minoria. A coisa é muito diferente com a pequena-burguesia educada academicamente. Seus preconceitos teóricos já tomaram uma forma acabada, desde os bancos da escola. Por conseguirem aprender uma grande quantidade de conhecimentos, tanto úteis como inúteis, sem ajuda da dialética, acreditam que podem continuar, sem problemas, a viver sem ela. Na verdade, prescindem da dialética somente à medida que não conseguem afiar, polir ou agudizar teoricamente seus instrumentos de pensamento, e na medida em que não conseguem romper com o estreito círculo de suas relações diárias. Quando se vêm confrontados com grandes acontecimentos, perdem-se facilmente e reincidem em seus hábitos pequeno-burgueses de pensamento. (Trotsky, Uma Oposição Pequeno-Burguesa no Socialist Workers Party, 2019)

Em resumo, a dialética materialista é potencialmente mais ou menos acessível a depender do modo material de vida dos indivíduos. O triunfo do comunismo, dando razão histórica a Marx e Engels, permitirá a superação do platonismo e da lógica aristotélica tão comuns de maneira menos ou mais inconsciente entre nós; e fará erguer-se de modo natural uma saudável dialética materialista vulgar humanidade.

e cotidiana acompanhada pela elevadíssima educação científica da

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SOBRE A LÓGICA PARACONSISTENTE A lógica paraconsistente afirma, em geral, que duas afirmações podem ser opostas e ambas igualmente verdadeiras (quase-verdades). De imediato, soa um raciocínio muito dialético. Mas ambas são verdadeiras e igualmente falsas porque unilaterais. O erro e o acerto estão em ambos os lados, cabendo a correção numa terceira resposta que suprassuma as duas afirmações. Exemplo: Marx descobre as unilateralidades na ciência econômica sobre o dinheiro; este ser não é, como afirmavam alguns economistas, os metalistas, sua forma material (ouro), embora a sua matéria seja a necessária; por outro lado, concepção oposta, os cartalistas, o dinheiro é uma ―convenção‖ social, mas não é uma escolha arbitrária, uma decisão livre das pessoas ou do governante – o dinheiro é expressão autônoma do valor (Marx). Outro caso: a luz é partícula ou onda? É uma sobreposição de estados. A polêmica sobre se a obra O Capital é ―uma crítica ao capitalismo do ponto de vista do trabalho‖ (Marxismo clássico) ou ―uma crítica ao caráter historicamente determinado do trabalho no capitalismo‖ (Postone, 2014, p. 62) é resolvida com a afirmação de que é uma ―crítica do (ponto de vista do) trabalho ao trabalho no capitalismo‖. A resposta está, portanto, numa terceira visão, que supera as duas anteriores, quando estas têm algum grau de acerto, e são devidamente medidas, criticadas e corrigidas. Por um típico jogo hegeliano, se ―uma sentença e sua negação são ambas verdadeiras‖, então o oposto, a negação, também é verdadeiro, ou seja, que ―a mesma sentença e sua negação são falsas‖. A inconsistência resolve-se na dialética, na superação da oposição. Vejamos um último caso. Conta-se que o grande lógico Newton da Costa, um dos fundadores da lógica paraconsistente, procurou hegelianos para saber se há relação de sua concepção com a dialética de Hegel, e obteve duas respostas opostas, sim e não. Aqui, procuramos demonstrar por qual motivo um sim e ao mesmo tempo um não, ou seja, que as duas afirmações estão tanto corretas quanto erradas. O trabalho científico inclui, portanto, revisar toda a produção sobre o tema em questão e descobrir as posições opostas e unilaterais em que caem as elaborações teóricas e filosóficas 158.

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Mesmo em muitos casos atípicos aos temas preferidos por eruditos, a visão acima aparece. O sistema de combate Wing Chun oferece um exemplo: a oposição entre a postura do arqueiro (boxe, karatê, capoeira, etc.) – base mais firme com menor capacidade de manobra, peso maior sobre a perna dianteira, etc. – e a do gato (Muay Thai, etc.) – base mais móvel com menor capacidade de sustentação, maior peso sobre a perna traseira, etc. –, boas e ruins segundo suas características e qualidades-limites, são nesse aspecto melhoradas pela base do Wing Chun, que distribui o peso corporal 50-50, igual para as duas pernas, numa postura a mais próxima da natural humana (os joelhos para dentro de algumas escolas é exotismo e erro), permitindo uso máximo tanto da mobilidade e das possibilidades de golpes e defesas com as pernas quanto de firmeza, sustentação, etc. As concepções opostas acabam por ser melhor compreendidas e, considerando-as, superadas por uma terceira concepção.

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Pode-se, assim, dar um passo para solucionar os conflitos em que cai o pensamento. Esta obra desenvolveu-se resolvendo ―inconscientemente‖, por meio da própria pesquisa, sem trato lógico a priori, as diferentes oposições em que caiu o marxismo159: se o socialismo é o caminho histórico inevitável ou o capitalismo só pode ser derrubado por ação consciente, se há crise crônica ou as crises regulares, se há fim do trabalho ou sua manutenção, se o centro é crise do valor ou a queda da taxa de lucro, se a revolução socialista será de base operária ou popular, se as sociedades revolucionadas eram (transição ao) socialismo ou capitalismo de Estado, se situações revolucionárias têm presente consciência socialista ou burguesa entre as massas, se a essência humana é histórica ou natural, etc. A verdade, que pode estar no meio, frequentemente está na fusão, mais precisamente na fusão superante, que suprassume. O ELEMENTO PRIMEIRO: O ESPAÇO-TEMPO Vários filósofos indagaram-se qual a composição primeira, central, da realidade. Chegaram a algumas respostas: o ar, a terra, o fogo, a água, o éter. Com o desenvolvimento da física e da química, parece que o assunto saiu do campo amplo da filosofia. Mas o raciocínio especulativo ainda pode ter seu valor, embora os riscos e a boa mão calibradora da ciência. Raciocinemos juntos. Se pudéssemos dissolver as partículas subatômicas e seus possíveis campos, o que teríamos? O conceito real mais simples é – o espaço. Assim: tudo, portanto, são formas de espaço; espaço concentrado, condensado. Ou seja: mais do que curvar o tecido do espaço-tempo, toda matéria é o autocurvar do espaço-tempo para dentro de si (desde Einstein, a ligação de espaço e tempo faz-se necessária). É possível supor, a partir desta conclusão, que o átomo, o indivisível, é o maior, ou seja, o espaço, não o menor. Se correto, há unidade do contínuo e do discreto, este vindo daquele. Porém, diferente dos demais temas deste capítulo, tais pensamentos, filosóficos, carecem de base científica e empírica próprias, logo podem ser negados sem maiores esforços pelos cientistas naturais caso se demonstrem falsos. A tendência de uma totalidade, em geral, é ir-se do simples ao complexo. Isso no seu histórico, no seu evolver. O espaço(-tempo) é o que há de mais simples no cosmos, logo, se não veio antes na temporalidade, vem antes – é primeiro – pelo menos lógico-ontologicamente160.

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Dito der outra maneira. O procedimento é a pesquisa, não apenas o trato lógico, para resolver as oposições. 160 Stephen Hawking criou a hipótese de que antes do universo havia o espaço sem o tempo; ora, se assim for, a criação do tempo deve ser derivado do desenvolvimento do espaço.

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Diz o princípio do impenetrabilidade: dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo. Por qual motivo? Porque, respondemos, dois corpos são, em si mesmos, cada um, espaço-tempo. É a tautologia de que dois espaços-tempos não poderem ocupar o mesmo espaço-tempo; porém o espaço-tempo pode revelar-se, digamos, condensado. Demócrito afirmou que existem apenas o átomo e o vazio. Faltou-lhe, no entanto, ver a unidade de ambos, o átomo é o vazio, embora diferentes e opostos; em nossa linguagem e atualização, o espaço-tempo que se expressa também na matéria, com ou sem massa. Tal modo de ver o mundo pode gerar uma ontologia geral, além de no inorgânico. Na geografia, Milton Santos afirma que ―O espaço é acumulação desigual de tempo‖ (Santos, 2004). Podemos extrapolar para observações biológicas como, quanto maior o animal é, mais tempo vive, contrariando os problemas de reprodução celular (maior possibilidade de câncer), pois são seres com mais espaço-tempo concentrado em si (embora ainda seja necessária uma explicação propriamente científica, não apenas filosófica). Porém, apesar dessa elaboração-especulação, pensamos que a ontologia extraída de Marx, o Ser é histórico, como suficiente e insuperável para a ciência e a filosofia, sendo esta caracterização possível do espaço-tempo apenas uma expressão, também hipotética, particular da ontologia marxista. SUJEITO E OBJETO A ciência conheceu toda uma etapa burguesa, que foi progressiva para a humanidade em essência, pois ofereceu bases ao socialismo. A ciência será socialista – mais do que de forma latente ou oculta como com a III Revolução Industrial – quando der base ao desenvolvimento da nova forma social, suas tecnologias, etc. Entre as condições para a revolução mundial encontra-se um alto desenvolvimento da ciência e da técnica. É preciso grande conhecimento das propriedades do mundo, de suas possibilidades, de sua natureza e de sua história para revolucionar a sociedade. Enfim, é preciso que o homem tenha produzido as condições para perceber que ―somos uma forma do cosmos conhecer a si mesmo‖ (Sagan). Tal identidade entre sujeito e objeto deve estar latente, ainda exigindo uma nova revolução científica, para sua realização socialista.

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