Vocação para a liberdade 8534912769

Este livro parte de uma encruzilhada em que convergem quatro preocupações. Em primeiro lugar, na América Latina, os movi

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Table of contents :
ÍNDICE
INTRODUÇÃO
1. Liberdade e libertação na América Latina
2. A identidade do evangelho cristão
3. A permanência da liberdade na história do cristianismo
4. Liberdade na Igreja
5. Terceiro milênio
1. O clamor dos escravos
1. A escravidão
2. O grito dos escravos na Grécia
3. O homem messiânico
2. Jesus e a vocação para a liberdade
1. Jesus, liberdade e libertação
2. O evangelho de Paulo
3. A liberdade no quarto evangelho
3. Deus é liberdade
1. A via do conhecimento de Deus
2. Deus é vida
3. Imagem de Deus
4. Fraqueza de Deus
5. Deus é misericórdia
6. Deus é Espírito
4. A liberdade cristão no I milênio
1. Liberdade dos mártires
2. Liberdade na vida diária
3. Mulheres e liberdade
4. Escravos e liberdade
5. Doutrinas e heresias: defesa teórica da liberdade
6. O monaquismo
7. Ausência da política
5. II milênio: liberdade da Igreja
1. Liberdade imperial
2. O poder imperial do papa e a liberdade da Igreja
3. O poder imperial do papa dentro da Igreja
6. II milênio: liberdade do povo cristão
1. Os camponeses livres
2. As cidades livres
3. Liberdade da vida religiosa leiga
4. Os movimentos de pobreza e os mendicantes
5. O declínio da liberdade
6. A revolta protestante
7. Modernidade e liberdade
1. Liberdade moderna em geral
2. Liberdade de pensar
3. Liberdade e economia
4. A liberdade política
8. Liberdade na pós-modernidade
1. Condições da nova época
2. Crítica da modernidade
3. A liberdade pós-moderna
4. Crítica da pós-modernidade
9. A liberdade cristã na virada do milênio
1. Discernimento da liberdade pós-moderna
2. A liberdade autêntica
3. Vocação para a liberdade
4. As condições práticas da liberdade
5. Instituições e liberdade
6. A prática da libertação
7. Liberdade política
10. A liberdade na Igreja
1. Liberdade da fé
2. Liberdade na comunidade
3. Liberdade de ação
CONCLUSÃO
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Vocação para a liberdade
 8534912769

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VOCAÇÃO PARAALIBERDADE

Dados Internacionais de Catalogação na Pub!icaçãd (CIP) Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil Comblin, José, 1923Vocação para a liberdade/ José Comblin. - São Paulo : Paulus, 1998. - (Temas de atualidade) ISBN 85-349-1276-9 1. Igreja -América Latina 2. Igreja - História 3. Liberdade 4. Liberdade (Teologia) 5. Teologia da libertação 1. Título. li. Série. 98-2865

CDD-261.8

Índices para catálogo sistemático: 1. Evangelho da liberdade : Teologia social : Cristianismo 261 ;8 2. Liberdade cristã : Teologia social : Cristianismo 261.8

Coleção TEMAS DE ATUALIDADE • Clamor dos pobres e "racionalidade" econômica, Hugo Assmann Desafios e falácias, Hugo Assmann • Deus numa economia sem coração, Jung Mo Sung • Família - contribuições para a pastoral familiar, W. AA. • Crítica à lógica da exclusão, Hugo Assmann • Formação da cidadania, Marco A. Gonçalves . . • Sacrifícios humanos e sociedade ocidental: Lúcifsrea besta; Franz J. Hinkelammert • Cristãos rumo ao século XXI, José Comblin • Viver na cidade, José Comblin • O outro é o demônio, Ivo Pedro Oro • Ser cristão em tempos de Nova Era, J. B. Libânio ··· · • A luta pela terra, CPT . .. • A Nova Era e a fé cristã, Felicísimo Martínez Dies ... • Exclusão social e a nova desigualdade, José de Souza Martins • A pena de morte, Niceto Blázquez • Manual dos direitos humanos e cidadania, Comissão Pastoral de Direitos Humanos • O celibato das mulheres - Sexo: nem fuga nem exploração, Janete Gray • Pós-modernidade, David Lyon • Onde dormirão os pobres?, Gustavo Gutiérrez • Uma Igreja para o próximo milênio, Fr. Clodovis.Maria Boff, osm • Direitos humanos, deveres meus - Pensamento fraco, caridade forte, José 1. · G. Faus • Um Deus para hoje, Andrés Torres Queiruga • Darwin, Teilhard de Chardin e Cia. -A Igreja e a evolução, Jacques Amould • Nossa espiritualidade, Dom Pedro Casaldáliga • Vocação para a liberdade, José Comblin 0

VOCAÔÃÔ) ·. PARA A LIBERD�llE

Coordenação editorial Darci L. Marin Revisão Alexandre Santana

© PAL.JLUS-1998 Ruà Francisco Cruz, 229 04117-091 São Paulo (Brasil) Fax (011) 570-3627 Tel. (011) 5084-3066 http://www.paulus.org.br [email protected] · ISBN 85-349-1276-9

INTRODUÇÃO

O tema da liberdade é inesgotável. Q-uem escreve sobre a liberdade parte de um ponto de vista bem determinado.· Nesse sentido, este livro parte de um ponto em que convergem quatro preocupações - pois, de alguma maneira, o tema da vocação para a liberdade oferece resposta para quatro necessidades da reflexão cristã no presente da América Latina. Em primeiro lugar, na América Latina, os movimentos de libertação descobriram a liberdade. Acabou o _conflito ideológico entre liberdade e libertação. A teologia cristã da liberdade pode iluminar e orientar a busca de uma nova teoria da libertação. Em segundo lugar, ·desde a década de 80, a Igreja latino­ americana anda buscando uma identidade perdida. Teve iden­ tidade clara nos tempos d� Medellín e de Puebla. Logo em se• guida essa identidade foi diluindo-se e, na atualidade, parece ter-se perdido. Consciente ou inconscientemente, muitos tra­ balham como se quisessem refazer a cristandade, procurando apagar - como parêntese inútil - trinta anos de história. Alguns acham que a Igreja recuperaria identidade na inculturação. Porém, na atualidade, inculturação significa integração na sociedade pós-moderna inspiradora da Nova Era. Esta é a nova cultura, na atual fase do capitalismo mundial também no Brasil. A identidade da Igreja somente pode ser recuperada a par­ tir da identidade do cristianismo. A Igreja não é um fim em si própria, mas está a serviço do Reino. Somente um retorno ao evangelho pode fornecer base sólida a uma identidade firme no

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. meio do mundo atual. O evangelho cristão é sinônimo de voca­ ção para a liberdade. Em terceiro lugar, durante séculos, o evangelho permane­ ceu muitas vezes recoberto por revestimentos culturais que ocul­ tavam aspectos importantes. No segundo milênio, sobretudo a .partir do século xrv, o evangelho da liberdade ficou quase es­ quecido diante do triunfo de um catolicismo clerical, patriarcal, verticalista e de inspiração imperiaL Esse tipo de catolicismo foi enfrentado pelo Vaticano II, que não pôde vencê-lo. No entanto, em todas as épocas da história da Igreja o evan­ gelho autêntico sempre permaneceu vivo e foi vivido intensa­ mente por minorias fervorosas que não se conformavam com o esquema dominante. Precisamos refazer a conexão com toda essa tradição, muitas vezes subterrânea, que, :Q.o meio de tanta invasão cultural, manteve a fidelidade ao evangelho de.Paulo e de João, ao evangelho de Jesus nos sinóticos, ao evangelho dos mártires e dos santos. Essa é a tradição que mantém viva a chama da liberdade evangélica. Em quarto lugar, muitos católicos estão cada vez mais cons­ cientes de que. não se pode anunciar o evangelho da liberdade evangélica a partir de estruturas eclesiásticas arcaicas que parecem totalmente alheias à evolução dos povos e, sobretudo, ao surgimento de um laicato que quer ser tratado como adulto. O fato cultural dominante do século XX foi a universalização da alfabetização e cada vez mais a ampla difusão do ensino se­ cundário e da formação universitária. Ora, as estruturas ecle­ siásticas da Igreja romana correspondem a uma fase histórica em que quase todos os leigos eram analfabetos e somente os clérigos eram letrados. Uma Igreja que não é capaz de instalar a liberdade nas suas estruturas não poderá anunciar o verda­ deiro evangelho. Poderá manipular o sentimento religioso, re­ correr às emoções religiosas,· mas tudo isso· é precário e desvia os responsáveis pela evangelização do seu verdadeiro objetivo . . · Esse é o contexto no qual queremos estudar o evangelho da liberdade, isto é, o evangelho que proclama a vocaçãó huma­ na para a liberdade, a vocação de cada um dos seres humanos e da humanidade na sua totalidade.

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lo Liberdade e libertação :na América Latina O primeiro sinal de mudança radical nos rumos da liberta­ ção latino-aineriçana foi dado pelo exército zapatista de liber­ _ tação _nacional (EZLN), revelando-se na ocupação militar de várias· cidades do Estado de Chiapas, no sul do México (12 de janeiro de 1994). O subcomandante Marcos, líder efetivo e por­ ta-voz do movimento, declara: "Aprendemos que _não se pode impor um tipo de política às pessoas, porque cedo 'OU tarde ter.. mina-se fazen_do o que se criticou" 1. O exército. zapatista abandona o tema da revolução que prevalecera na América Latina desde 1959 com a entrada de Fidel Castro em Havana e com a figura emblemática de Che Guevara. O subcomandante Marcos suplanta Che Guevara, sendo reformista e não revolucionário. Não quer o poder. Suas armas não são para vencer o exército mexicano. Essa seria u:ina tarefa impossível. As armas prestam".'se para efei�o de demons­ tração: para a TV divulgar as imagens do movimento. Os zapatistas querem terra para os camponeses, dignidade para os indígenas, democracia e eleições realment� livres, indepên­ dência nacion'al. Qs zapatistas n�o. querem conquistar o poder do Estado. Querem a reforma da sociedade pela pressão da opi­ nião pública, e por isso recorrem à publicidade ·e. aos meios de difusão de massa2 • Com faso fica patente que os novos rumos da América Lati­ na rejeitam o caminho leninista de imposição do socialismo pela força do. Estado supostamente popular e na realidade dirigido por nomenclatura de intelectuais .. Os. novos movimentos sociais descobriram que o único caminho válido para instituir a · democracia é a própria democracia. O caminho da liberdade é a própria liberdade; É. verdade que Paulo Freire tinha ensinado àgeração ante­ rior que a libertação somente pode surgir da conscientização do povo, isto é, do despertar da liberdade no povo latino-america-

unia

1Cf. revi�ta Pasos (Costa Rica), n9 68, 1996, p. 20. 2Cf. Jorge G. Castafieda, Sorpresas te da !,a uida. Mêxico, finde siglo, Aguilar, Mé­ xico, 1995, pp. 40-46.

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no. No entanto, na prática, atuou-se uma forma de conscientiza­ ção que consistia em introjetar no povo a consciência dos inte­ lectuais revolucionários, tentativa que fracassou rotundamente. Hoje fica patente que as "liberdades burguesas" ou "liber­ dades formais", tantas vezes denunciadas pelos revolucioná­ rios, não eram puramente formais nem burguesas. Podiam ser deformadas pela burguesia, confiscadas de alguma. maneira por ela, mas em si mesmas eram um progresso da consciência da humanidade. Eram, até mesmo, uma parte da herança cristã no mundo ocidental, ainda que essa procedência permanecesse bastante desconhecida3 • De alguma maneira a fundação do Partido dos Trabalha­ dores (PT) no Brasil já tinha antecipado a mudança. O PT foi o primeiro movimento esquerdista fundado depois de 1959 sem que tivesse ''braço armado" e se declarando radicalmente de­ mocrático no sentido ocidentai da palavra4 • Dessa maneira) os movimentos de libertaçáo reconciliaram� se com a tradição ocidental da "liberdade". Abrem-se para a problemática mais ampla da liberdade. Com isso, pode iniciar­ se um diálogo com a tradição cristã da liberdade. Um segundo sinal veio reforçar a orientação acima lem­ brada. Trata-se da famosa carta aberta de Fernando Cardenal5 • Fernando Cardenal foi uma personalidade muito significativa: jesuíta expulso da Companhia de Jesus por se ter negado a re­ nunciar à função de ministro da educação do governo sandi­ nista (hoje foi reintegrado oficialmente na Companhia de Je­ sus). A educação tinha sido uma das grandes bandeiras do sandinismo e Fernando Cardenal estava colocado no centro da 3A denúncia das iiberdades burguesas consta, por exemplo, no documento final do "Encóentro de cristíanos por el socialismo", Santiago do Chile, abril de 1972. Ver Cristianos por el socialismo, p. 298, n" 2.6. 4"Para nós que acreditamos na democracia e no pluralismo ... ", Cf. José Dirceu de Oliveira e Silva, em Moacir Gadotti e Otaviano Pereira, Pra que PT? Origem, projeto e consolidação do Partido dos Trabalhadores, Cortez, São Paulo, 1989, p. 13. Como obra representativa; ver Cristovam Buarque, A revolução na esquerda e a invenção do Bra­ sil, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1992, 5A carta foi publicada em diversas revistas. Por exemplo, em Christus (México), 60, 1995, pp. 74-79.

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atuação da revolução sandinista. Acarta foi uma avaliação não somente da educação, mas do conjunto da ação social do san­ dinis:mo, especialmente da reforma agrária. Fernando Cardenal procurou as cá.usas do fracasso da re­ forma agrária na Nicarágua: Encontrou-as na falta de educa­ ção básica. Por isso, deixou o sandiriJsmo e vem se dedicando até hoje a essa educação básica de camponeses nicaraguenses. O que Fernando Cardenal chama de "educação de base" nada mais é do que a ''liberdade''. O que faltou aos camponeses foi uma educação para a liberdade, para a verdadeira liberdade que é as­ surnir responsabilidades, colocar-se volunta...ii.amente a serviço do bem dos outros, buscar a plena realização de si próprio no amor efetivo ao pró:r-.imo. Os camponeses eram cristãos, mas não tinham assimilado o evangelho da libe:rqade. Tudo indica que nunca ha­ vian.1. sido informados desse evangelho e o cristianismo quetinham. recebido era um cristianismo infantil, de submissão a uma. reli­ gião concebida como lei e imposta pelos sacerdotes sem que hou­ vesse uma verdadeira opção pessoal. No fundo, a educação de base era a verdadeira evangelização. Sentiu-se a falta dela. Daí a abertu­ ra pe.ra a problemática da vocação e da formação para a libardade. Esses dois sinais - confirmados por outros numerosos si­ nais convergentes, que estão na memória dos leitores - orien­ tam o evangelho cristão da liberdade. Daí o primeiro motivo para estudarmos o tema da liberdade.

2º A identidade do evami.gellio cristã@ Na.América Latina a Igreja católica está passando por uma crise de identidade visibfüzada no mal-estar do clero e no silên•• cio dos episcopados. Não é que os bispos não falem. Falam, mas o conteúdo do que é dito é bastante frágil. Exemplo típico disso foram os documentos preparatórios e o documento final do Sínodo da América. de 1997. Outro exemplo são os documentos para a celebração do terceiro milênio. Esses documentos falam muito da evangelização, mas se trata de uma evangelização sem conteúdo. Parece que a Igrejajá não sabe mais qual é o evange� lho que deve proclamar.

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Há uma tendência muito forte para entrar na dinâmica do mercado. Atualmente, há um mercado religioso. Há muita de­ manda religiosa e muitas religiões oferecem métodos de terapias religiosas ou caminhos para a felicidade. Daí a tentação de en­ trar nessa competição. Quem quer fazer sucesso procura temas cristãos que possam triunfar no mercado, satisfazendo à uma demanda. Háuma tendência muito forte nesse sentido por par­ te dos movimentos carismáticos e mesmo dos movimentos nas­ cidos na geração passada. Oferecem um evangelho "ao gosto do consumidor''- como dizia um sacerdote missionário ancião que viveu muitos anos no BrasiL Tal tendência cria uma forte tentação por parte de muitos bispos e sacerdotes, assustados pelo progresso das Igrejas pentecostais, chamadas por eles de "seitas". Acham que é preci­ so competir com elas e recorrer aos mesmos métodos, oferecen­ do um evangelho que responda a um pedido imediato. O discur­ so da inculturação serve até mesmo para legitimar a entrada na competição. Dessa maneira, o evangelho fica muito diluído. Muito amor a Jesus, mas a um Jesus emocional, afetivo, sem conteúdo racio­ nal, um Jesus suspeito de não ser nada mais do que uma proje­ ção das_frustrações afetivas tão comuns nos tempos atuais. Há uma tendência para aceitar qualquer evangelho, com a condi-ção de que conquiste o mercado. Sacrificar o cont�údo para reconquistar o poder. Essa não seria a primeira vez que a Igreja ocidental cairia nessa tenta­ ção. Quando a Igreja enfrenta problemas sérios - como, atual­ mente, a concorrência das Igrejas pentecostais - o velho refle­ xo clerical renasce: a vontade de poder toma-se mais forte do que o amor ao povo. Ou melhor, confunde-se a vontade de poder com-o amor ao.povo. Mais do que exercício.de amor ao povo, a evangelização transforma-se em campanha para recuperar parte do poder perdido. Conserva-se a opção pelos pobres. Porém, essa opção vai perdendo o seu conteúdo prático. Desaparecem as antigas prá­ ticas de liberi,ação e a opção pelos pobres permanece mera fór­ mula sem aplicação efetiva. Houve pouca renovação das práti-

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cas. Há grande número de agentes de pa�toral desanimados,.· visto que as suas práticas sociais anteriores itornaram-se irrelevantes. Por outro lado, muitos tinham aceito a opção pelos pobres com:o acréscimo ao discurso tradicionaL A opção. pelos pobres não afetava o discurso sobre Deus, Cristo, a Igreja e os sacra­ mentos. Mantinha-se a teologia tradicional, e seifazia ajusta­ posição do discurso de libertação na opção pelos pobres. A opção pelos pobres será em breve pura fórmula.sem con­ teúdo se não se aprofundarem as suas raízes :no núcleo central dô cristianismo. Esse núcleo central é o evângelho de Paulo e o de João, a vocação para a liberdade. . . A Igreja somente poderá recuperar a sua identidade pelo retorno ao evangelho, independentemente do mercado. Não se trata de responder aos desejos imediatos do homem ou da mu­ lher da pós-modernidade, mas q.e :responder à expectativa mais profunda. de verdadeira libertação. Não adianta· montar uma evangelização a curto prazo que dará momentan�amente satis­ fação a aspirações religiosas. O que se faz necessário é prepa­ rar grupos de cristãos realmente transformados e libertos pelo evangelho que possam ser o fermento de .uma nova sociedade no mundo. As formas da antiga cristandade estão se apagando. Coin o desapatecimentô da cultura. reirai; o cristianismo dos avós já pertence ao passado.Não adianta querer ressuscitar o passado nem querer contar com os movimentos de "entusiasmo" religio­ so para fundar nova cristandade. O problema é co:mó fazer para preparar üm laicato adulto testemunha do verdadeiro evange­ lho de Jesus Cristo. · O evangelho é este: "Cr1sto nos libertou para ql,le vivêsse­ ms em liberdade (Gl 5,1). "Foi para a liberdade que vocês fo., rám chamados;' (Gl 5,13t Deus é liberdade e nos criou· para a liberdade. Esta é a nossa vocação humana. O sentido da nossa vida é construir e conquistar a liberdade. Eis a:maneira pela qual Paulo tornou compreensível para os gregos- e para nós - o evangelho do Reino de Deus, que na- sua formulação nos sinóticos permanece incompreensível.

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A vocação para a liberdade é o núcleo central do evangelho cristão e o ponto de partida da nova humanidade. No decurso do tempo, todavia, esse núcleo central foi muitas vezes obnubi­ lado nas Igrejas - e na Igreja católica sobretudo nos últimos 600 anos. Ao mesmo tempo, a vocação para a liberdade difun­ diu-se além das fronteiras das Igrejas históricas, invadiu ou� tros povos e culturas e hoje, de alg-uma maneira, está presente na consciência de quase todos os povos, mesmo os que não têm nenhum contato com as Igrejas cristãs. Em certos casos, o evan­ gelho cristão pode estar efetivamente mais presente e mais ati­ vo fora da Igreja do que dentro dela. Nesses casos, a Igreja pode não reconhecer o evangelho fora de suas fronteiras e, assim, perder a possibílidade de conversão. A opção pelos pobres decorre da vocação para a liberdade. Não é orientação tomada ao lado da marcha principal da Igre­ ja. Está dentro da caminhada fundamental, ainda que essa iden­ tificação tenha permanecido alheia à consciência de muitos c:rfs.. tãos, sobretudo nos últimos 600 anos - que incluem toda a história da Igreja na América Latina. O imperativo de retorno ao evangelho leva ao tem.a da liber., dade. Eis uma segunda razão que justifica o propósito deste livro.

Em 1888 o papa Leão XIII escreveu uma encíclica sobre a liberdade: "Libertas". Da parte dele, era um sinal de aproxima­ ção ao mundo moderno. Ele sentiu a necessidade de :reverter a situação de afastamento crescente entre a sociedade ocidental - que naquele tempo era o mundo - e a Igreja católica. O papa· constatava·essa situação com estranheza, afirmando: "I-fá um grande número de homens que crêem que a Igreja é adver� sária da liberdade humana"6• O papa atribuía essa situação a 5Enc. Libertas, trad. Ed. Paulinas-(1965), n� lb. As encíclicas de Leão XIII- e dos demais papas dos últimos séculos - estão sendo agora reeditadas por Paulus Editora na série "Documentos da Igreja".

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uma campanha de difamação da Igreja por parte dos liberais. Escandalizava-se porque ousavam "lançar à Igreja a censura que se lhe lança com soberana injustiça, a saber: que ela é ini­ miga. da liberdade dos indivíduos ou da liberdade dos Estados"7• Como prova de que a Igreja sempre tinha defendido a li­ berdade com suma energia, o papa invocava à doutrina do li­ vre-arbítrio8 . Porém, não se tratava disso. A questão era outra, a das "liberdades modernas". Era aí que Leão XIU'continuava manifestando a mesma incompreensão dos católicos, na sua maioria, nos últimos seis ou sete séculos. A propósito das liberdades modernas, o papa dizia: ''Tudo o q:11e essas libe:rda.des contêm de bom é tão antigo como -a ver­ dade. Tudo isso a Igreja aprovou sempre com a:rdor, e o admitiu efetivamente na prática. O que se lhe acrescentou de ,novo apresenta-se, a quem procura a verdade, como um elemento corrompido, produzido pela perturbação dos tempos e pelo de� sordenado amor da inovação',g. Leão XIII fazia a aplicação des­ se princípio às distintas "liberdades modernas": o culto, a pala­ vra e a imprensa, o ensino e aconsciência. Apesar da fama de te:r sido um espírito aberto, sensível ao mundo contemporâneo, Leão XIII não tinha entendido de que se tratava. Deixou de reconhecer o que havia de herança cristã exatamente naquilo que havia de novo nas liberdades moder­ nas. O apelo de S. Paulo passou.incógnito. A sua formação con­ sistiu na escolástica decadente que quis reformar. O Vaticano H foi :mais longe. A declaração sobre a liberda­ de religiosa (Dignitatis Humanae) e a constituição Gaudium et Spes reconhecem as liberdades modernas no essencial, assim como o tinha feito a encíclica Pacem in Terris de João XXIII. No Vaticano II, a Igreja reconhece que "os homens nunca tiveram um sentido de liberdade tão agudo como hoje" (GS 4d). A decla­ ração Dignitatis Humanae proclama "esta exigência de· liber­ dade na sociedade humana" (la). O Vaticano II quis responder a essa. exigência de liberdade aceita como positiva. Enc. Libertas, iliid., n2 la. Enc. Libertas, n2 3-5. 9Enc. Libertas, ng 2a. 7

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Não obstante isso, o Vaticano II não conseguiu mudar. a posição da Igreja católica no mundo contemporâneo em toda a sua extensão. O debate sobre a teologia da libertação mostrou que ainda havia resistência muito forte. O "sistema" católico não é sensível à liberdade. Quando evoca a liberdade, é com a preocupação de limitá-la pelos direitos da verdade e da autori­ dade do magistério. No todo, a liberdade é sentida como amea­ ça à estrutura daigreja católica. Essa situação vem de longe. É o resultado de séculos de história, e não se desfaz em poucos anos um esquema montado de modo perseverante. ao longo· do tempo. Por isso, sobretudo na América Latina, muitos católicos não têm lembrança de ex­ periências de liberdade cristã vividas historicamente. E, no en­ tanto, essas experiências existem. É bom lembrar que, debaixo de estruturas dominantes alheias à liberdade, sempre se man­ teve, com altos e baixos, a mensagem paulina da liberdade. Evocaremos dois momentos importantes. Primeiro, a expe­ riência de sociedade livre, tanto no campo como na cidade, en­ tre os séculos XI e XV� na cristandade ocidental. A história do Ocidente registra momentos altos de liberdade alcançando o campo e as cidades, e fornecendo milhões de pessoas livres para o interior da Igreja, apesar da estrutura autoritária que are­ vestia. Isso porque, durante séculos, a estrutura clerical atin­ giu pouco as massas de camponeses ou de citadinos. Foi somen­ te nos últimos séculos que a estrutura clerical se tornou cada vez mais pesada na sociedade e na Igreja. Por outro lado, a mística foi; durante muitos séculos, o re­ fúgio da liberdade e, sobretudo, o refúgio em que as mulheres - afastadas da estrutura clerical- fizeram para si um inundo de liberdade� Infelizmente, a partir do século XVI as mulheres perderam a autonomia e ficaram cada vez mais enquadradas em estruturas patriarcais e autoritárias. Nalgrejatridentina· foram confinadas pela dominação dos homens clérigos - agora formando um espírito de corpo ameaçador. A vida mística ·foi cada vez mais vigiada, restringida e até posta em suspeita. No entanto, mesmo escondida, manteve a tradição de liberdade na Igreja - apesar da estrutura dominadora.

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É imprescindível recordar que a história da· Igreja não se reduz à história da hierarquia ou do clero, ou, ainda, das instituições reguladas pelo direito canônico; Há uma história escondida, registrada.em poucos documentos. Porém, o quefi­ couregistrado basta para,reconstituir, ainda quede modo in­ completo, a outra face da Igreja.Acontececom estaface da Igreja o que acontece na história das nações: a história baseada em muitos documentos é a história dos homens-· a das mulheres fica nas entrelinhas, sendo necessário adivinhar ó que os docu­ mentos queriam esconder. evangelho· da liberdade nunca· esteve·ausente;· mas há necessidade de renovar a continuidade·com essa presença: per­ manente na tradição. Isso .porque a tradição do evangelho na história da Igreja é a verdadeira tradição, enquanto muitas es­ truturas que predominaram durante séculos· não passam ·de revestimentos culturais. Em 2.000 anos a Igreja inculturou-se tanto, que muitas vezes esteve a ponto de perder o evangelho. O perigo existe ainda hoje. Daí a urgência de se renovar a cone,­ xão com a tradição·antiga do evangelho da·liberdade. Na história do Ocidente, no segundo.milênio, quase todas as heresias ou cismas procederam de .exigências·deliberdade; A todas a hierarquia respondia com a .excomunhão e a conde­ nação como heresia. Por isso, grande parte da tradição de liber­ dade cristã encontra..,se nas Igrejas separadas. A questão da liberdade está no centro do _ecumenismo com as Igrejas separadas no Ocidente 10•

·o

. ·

.

Numa obta publicada em francês, em 1927,'o filósofo-teó­ logo russo N. Berdiaeff escrevia: "A liberdade levou�me a Cris 6 to e não conheçootitro caminho que possaleyar a'ele. Não sou o único que tenha passado por essa experiência.. Todos os que 1ºComo exemplo significativo, lembremos o caso de Lutero: a questão centz:.al do luteranismo é a da liberdade. Ver Walter Altmann; Lutero e liberto.ção, Sinodal-Atica, São Leopoldo/São Paulo, 1994. Lembremos o debate com Erasmo.

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deixaram o cristianismo-autoridade somente poderão voltar a um cristianismo-liberdade" 11• Hoje em dia os tempos mudaram. É possível chegar a Cris­ to por outros caminhos: a emoção, o afeto, a segurança. Esses caminhos, porém, levam realmente a Cristo ou a uma projeção da mente humana identificada equivocadamente a Cristo? Milhões deixaram a Igreja devido à forma pela qual nela se exerce a autoridade. O único caminho certo é voltar pelo caminho da liberdade. Sem liberdade, a Igreja poderá fazer propaganda, recrutar novo.s membros, vencer no mercado das religiões. Porém, não poderá anunciar o verdadeiro evangeiho, que é a sua razão de ser. Poderá ser poderosa, mas não será fiel à sua missão. Nas suaslv.femórias improvisado..s,AJ.ceuP..:m.o:roso Lima­ quem poderia falar com mais autoridade do que ele? - dizia: "Hoje estou convencido de que a exigência maior do B:rasil não é apenas desenvolvimento, mas também e sobretudo a liberda­ de. A dignidade humana exige a liberdade, e a liberdade exige a justiça. Ajustiça e a liberdade exigem responsabilidade". Mais adiante: "A minha conversão se fez contra a minha vontade. Por quê? Porque eu temia que, me convertendo, perdesse a li­ berdade. Daí ter levado quatro anos meu debate a respeito com Jackson de Figueiredo. Pela ortodoxia católica, converti-me peia Graça Divina. Mas desde o começo sentia que ia ser duro. O fato é que encontrei na Igreja mais liberdade d.o que esperava, mas também mais dureza do que se pensa" 12• Essa dureza ainda permanece e mantém muitas pessoas afastadas. Como pregar uma mensagem de liberdade sem prati­ car a liberdade dentro da Igreja? Remover as estruturas de domi­ nação e substituí-las por espaços de liberdade torna'."se tarefa cada vez mais urgente e inadiável. Nas estruturas atuais, a Igreja não pode gerar leigos adultos e livres, dando testemunho válido no meio do mundo, o que equivale a dizer que não pode evangelizar profundamente. Também po:r isso é necessário abor­ dar. a questão da liberdade na Igreja. : 1 Cf. N. Berdiaeff, Esprit et Liberté. Desclée, Paris, 1984, p. 27. '2AlceuAmoroso Lima, Memórias improvisadas, Vozes, Petrópolis, 1973, p. 117.

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Na sua encíclica Ut Unu.m Sint, o papa João Paulo II es­ creve estas pala,.,-ras comovedoras: "O Bispo de Roma há de ser o primeiro a fazer sua, com fervor, a prece· de Cristo pelá con­ versão que é indispensável a 'Pedro' para poder servir os ir­ mãos. Com todo o coração, peço que se associem a esta súplica os fiéis da Igreja católica e todos os cristãos. Rezem todos jun­ tamente comigo por esta conversão" 13. Claro que a conversão de que se fala nesse texto não se refere a defeitos ou faLhas pessoais do papa atual. As falhas estão na estrutura e não na pessoa, e a conversão necessária refere-se à estrutura e não à pessoa. Unanimemente todos re­ conhecem e admiram a santidade pessoal do papa. Porém, o problema está na estrutura e a conversão dar-se-ia na mudan:.. ça de estrutura. O problema é passar de estruturas de autori­ dade para estruturas de liberdade. r.:,,

1,Ji •

.!!.Jdade. De acordo com as explicações de Paulo, trata�se Cf. Jan Lambrecht, The wretched "l" and its liberation. Paui in Romar.s 7 and 8,

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Pete:rs, Leuven, 1992. Sobre a c-oncepção paulína da liberdade, cl. John Buckel, Free to Love. Paul's Defense ofChristian.Liberty in Galatians, Peeters, Leuven, 1993.

de uma impotência radical, uma incapacidade congênita pela qual os seres humanos querem fazer o hem, mas fazem o mal. No fundo, o conceito paulino de pecado não está tão longe do conceito de '�armà' na concepção budista1°, assim como o de li­ bertação se situaparalelamenteao de ''dharma", embora os ca­ minhos para chegar ao "dharma" sejam bastante diferentes. O '�arma" é inclinação ao mal, tendência para ceder ao que o bu­ dismo chama de 'füusões" e a tradição cristã; seguindo a filosofia grega, chamou de "paixões": "o desejo, o rancor e a ignorância"­ .que correspondem aos desejos da carne de Gl5,19-21 11 • . · . O ·que o budismo chama de "ilusões" são os desejos da car­ rie de S. Paulo. Constituem a fraqueza que impede realizar o bem que se quer .e leva a fazer o mal que não se quer fazer. A libertação vem,de Deus pelo Espírito Santo - o mesmo que afirmar que procede de dentro do próprio ser humano. Pro­ cede da mesma fonte da qual provém a existência humana, da fonte de todo o universo. No entanto, ela não funciona automa­ ticamente. A liberdade nasce no ato da sua afirmação. Como é que se realiza isso? Mediante o que Paulo chama "a fé". Daí o tema, também paulino por excelência, da salvação pela fé. O caminho da libertação é a fé 12 • Esta proclamação paulina encontrou na história as mesmas resistências que se opuseram à vocação para a liberdade como caminho de salva­ ção. De novo os grandes autores, as verdadeiras testemunhas de Cristo, reafirmaram o évangelho de Paulo, da salvação pela fé unicamente. Foi o que fizeram Santo Agostinho, Lutero e também Santo Tomás de Aquino13 • O que aconteceu com S. To­ más foi que a sua doutrina sobre a salvação pela fé e sem a lei, pelo Espírito Santo suplantando alei, ficou encaixada no trata'." do da ''lei" segundo um e�quema _ sugerido pela filosofia - grega. 16Cf. O Dalai Lama, O caminho para a liberdade, Nova Era, 1997, p. 9. _._-- _ •· 110 Dalai Lama, o. e., p. 24. ._ . 12Cf. I. de la Potterie, "La unción del cristiano por la fe", em.I. de la Pottérie e S. Lyonnet, La vida según el espíritu, o.e., pp. 111-173. 13Cf. S. lqonnet, Libertad cristiana y ley del Esp�ritu, o. e., pp. 181-193. Marciano Vida!, Nouos caminhos da moral, Edições Paulinas {atual Paulus), São Paulo, 1978, pp. 110-121; S. Iõronnet, Lihertady ley nu.eva, Sígueme, Salamanca, 1967, pp. 276. 272

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Dessa maneira; para muitos ela passou despercebida é esses acha• ram mais prudênte interpretar S. Tomás dentro da :perspectiva mais conveniente à estrutura da cristandade segundo a qual o valor supremo, fonte de salvação, era a lei. No entanto, S. Tomás mantém claramente o testemunho da mensagem paulina14 • O que significa a fé para Paulo? A fé defendida por Paulo não tem muito_ em comum com o sentido vulgar da fé. No sentido comum, a fé é a aceitação de uma religião, principalmente das doutrinas da religião. Em Paulo não se trata disso. A fé consiste em a pessoa se entregar à sua vocação para a liberdade. A fé é lançar-se para a frente, entrar no desabrochar da liberdade. É como jogar�se ao. mar para aprender a nadar, ou como a criança que nasce e respira pela primeira vez. Por isso a fé existe na vida, no ato de come­ çar a vida nova. A fé é risco porque ninguém tem a: experiência daquilo que vem depois. A liberdade é o risco total. Afé é jogar-se no risco. Pascal dizia que era uma aposta. Porém trata-se de aposta radical, aposta pela vida contra a morte,, aposta pelo caminho da vida,·sem tê-la previamente experimentado. Não se pode dizer que a fé seja um ato cego ousem conteú­ do intelectual. Não é ato cego porque tem muitas confirmações racionais e muitos sinais· positivos recon,hecidos como tais. Não é ato de puro pulo no vazio porque a fé ilumina a inteligência. No ato de fé, tudo na vida recebe uma nova iluminação, novo sentido, novo valor. Por isso toda a tradição tomista faz da fé um ato intelectual, destacando o valor de iluminação da mente. No entanto, esse ato de iluminação somente se produz no meio da "nuvem do não-saber", como se dizia na Idade Média 15 • Porém, não se deveria entender o ato de fé como ato inte­ lectual separado do agir. Afé existe no surgimento da vida nova. Num só ato a pessoa descobre a miséria dos outros e de si pró­ pria, tem compa�ão do outra, �ntrega-se ao movimento inte(n. 15); Eduardo López Azpitarte, Fundamentação da ética cristã, Paulus,São Paulo, 1995; pp. 266-288; Walter Altmann, Lutero e libertaçã.o, pp. 77-98 .• 14Cf. S. Lyonnet, Libertad cristiana y ley del Espíritu, p. 193, n. 3s; 15Entre 1350 e 1370 foi escrito na Inglaterra um breve tratado d.e mística que leva o título de Cloud of Unknowing. Nunca se descobriu o autor. O livro foi publicado em tradução .portqguesa por Paulus Editora e leva o título de A nuvem do nã.o•saber.

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rior do Espírito de Deus e age. Sem agir pode--se sempre duvi­ dar da autenticidade da fé e confundi-la com uma experiência religiosa. Tal confusão é mais freqüente hoje - :mais do que nunca-, já que os nossos contemporâneos se satisfazem facil� mente com uma religião "light", sem compromisso concreto. O agir do samaritano do evangelho é exemplo de atitu.de nova perante o outro necessitado. Nesse agir é que a pessoa descobre a sua vocação e lhe responde ao mesmo tempo. Lutero teve expressões abruptas que provocarai."11 muitas polêmicas supérfluas e levaram o Concílio de 'Itento a adotar uma posição dura. Durante séculos a teologia luterana teve de enfrentar muitas "dores de cabeça", embora hoje em dia se :re-• conheça que, no fundo, não há diferença notável ent1·e a con­ cepção luterana da fé e a posição católica. Lutem fez um corte abrupto entre a fé e "as obras'>. Enten­ dia por obras todas as práticas religiosas da Igreja medieval que assimilavam a leijudaica. Por outro lado, exige do cristão o exercício da caridade e faz das obras da caridade o efeito da fé 16 • No entanto, as fórmulas abruptas deram a impressão de que a fé era um ato totalmente constituído em si, independentemen.. te do agír cristão, de tal modo que o agir da caridade aparecia como suplemento dispensável. Na tradição, e provavelmente na própria mente de Lutero - mas não em certas expressões dele -, o agir de compaixão, o agi..r de apoio à libertação do outro, é parte da fé ou do conjunto existencial menciona.do por S. Paulo. Foi assim que Abraão teve fé, porque, ao a.pelo de Deus, deixou a cidade de Ur. Teve fé porque estava para sacrificar o seu filho, qualquer que seja a interpretação a ser dada ao episó­ dio. A fé existe na ação. O próprio Paulo teve fé ao iniciar'í1ma vida nova. , _ Todos os aspectos do ato de fé não se realizam necessaria­ mente no mesmo instante, mas constituem uma unidade real. A liberdade defendida por Paulo não pode ser ide:ntificada com uma liberdade puramente interior. Não tende a considerar o mundo corporal como "ilusão" ou como ''não ser" - corno na i6Cf. Walter P.Jtrnann, Lutero e libertaçãe, pp. 307-328.

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tradição budista, que vê nos desejos ilusões. Mais tarde.a dou­ trina do Novo Testamento sofrerá a influência da filosofia estóica grega e romana dos séculos II e IH. Paulo era judeu e inspirou-se na Bíblia. Na Biblia não há dualismo corpo/alma ou corpo/espí­ rito. O ser humano é corpo vivo, corpo animado. Por isso a libertação enunciada por Paulo não está contida nos limites da experiência interior. Desde o início a fé é ato co:rpo:ral e social, definição da pessoa no seu povo. Paulo nunca se pensa separado do destino do seu povo, Israel, e não imagina que os cristãos possam sentir-se como indivíduos isolados; To­ dos são, em cada momento e em tudo o que fazem, membros de Israel restaurado e renovado por Cristo, pelo Messias. Todos são messias no Messias, todos membros do único corpo que ê Jesus ressuscitado. A libertação é, ao mesmo tempo, pessoal e social desde o início. Por isso ela indui uma nova relação entre amos e escra­ vos como se manifesta na carta a Filemon 17 • E as comunidades pau1inas são u:rgentemente convidadas a pôr em prática a obri­ gação de ig1:i.aldade entre todos os homens e mulheres do mun•· do. Paulo quer que haja "igualdade" e, por isso, que se faça uma redistribuição dos bens: esse é o sentido da chamada "coleta'' pelos irmãos pobres de Jerusalém (2Cor 8,8-14) 18 • Virtualmente a libertação paulina, isto é, cristã, inclui a . libertação econômica, social, política, embora seja claro que tudo tem início na libertação da pessoa da sua própria impotência e incapacidade. Essa totalidade já estava no Antigo Testamento e era o pro­ jeto de Israel, projeto sempre frustrado pela "dureza de cora­ ção" sobretudo das elites, mas que também contavam com a cumplicidade do povo inteiro. O projeto bíblico de libertação envolvia a existência. toda, era libertação da escravidão a partir de e,-..-pressões típicas: Egito e Babilônia, casos bem representati­ vos e significativos na história da escravidão na humanidade. 17Gf. Jacques Ellul, Les combats de la liberté, t. 3, Le Centurion-Labor et fides, Paris•C-eneve, 1984, pp. 148-154. 18Cf. José Comblin, Segunda epístola aos Coríntios, Vozes, Petrópolis, 1991, pp. 117-140.

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O conceito paulino e cristão de liberdade envolve a totali­ dade da situação que existia no império romano: a escravidão em todas as suas formas. Cabe prestar méritos à teologia latino-americana da liber� taçãô pelo fato de retomar a opção pelos pobres que havia sido _apresentada, no Concílio Vaticano II, pelos discursos de João XXIII e algumas intervenções famosas do cardea1Lercaro 19 • A opção pelos pobres não foi claramente adotada pelo Vaticano II. Tratava-se - de uma novidade ainda não bem identificada pela maioria dos membros do Concílio. A ignorância em relação à opção pelos pobres era a conseqüência do silêncio prolongado desde as famosas condenações de João XXII dirigidas contra os Espirituais fransciscanos no século XIV2º No entanto, alguns teólogos latino-america_llos, juntamen­ te com o grupo dos - bispos que fizeram Medelliri, retomaram o tema e lhe deram credibilidade. O essencial da teologia da liber­ tação entrou na doutrina social da Igreja, particularmente nas encíclicas sociais dos Papas e no discurso ordinário da Igreja cap tólica, não somente na América Latina, mas no mundo inteiro. Depois dateologia da libertação, ficou claro que o papel dos cristãos não consiste simplesmente em fazer um discurso sobre libertação social, política, econômica ou cultural, mas em en• trar no agir. Não interessa uma libertação geral ou teórica, e sim aquela etapa da libertação que os sinais dos tempos levam a contemplar como a etapa da realização atual da-libertação._ O aspecto da doutrina paulina da liberdade que suscitou mais oposição foi aaplicação feita à lei. Há oposição entre Espírito e lei, liberdade eJei. Em que consiste essa oposição? Na mente de Paulo, entre lei e liberdade há aquela mesma oposição que se acha entre dois !egimes de vida, duas maneiras de se entender a vida e, particularmente, os valores e_ a vida moral.

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19 Cf. Paul Gauthier, "Consolez mon peuple". Le Concile et_ l '"Eglise des pauvres", Cerf, Paris, 1965. _ •0cr. Gordon Leff, Heresy in the La.ter Múl.dle Ages, Manchester Univ. Pr., New

York,t. 1, 1967,pp. 51-166.

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·Nas'epístolas paulinas a lei representa um regime em:.que o valor supremo está na subordin�ção da vontade-auma vonta­ de alheia. A lei é exterior ao ser. humano e se impõe a ele mes­ mo a fim de exigir o contrário daquilo que a pessoa quer. A lei exige que a vontade se incline diante de uma vontB;de superior. Chega-se, dessa maneira, a fazer da obediência o'. valor supe­ rior, e até certo ponto, nas tendências extremas, o único valor ou a fonte de todos os valores, _porque todos ·os valores deriva· riam da obrigação imposta .pela .lei. Bem sabemos que não foi assim que a lei foi vivid:f sempre pelos judeus, nem pelos cristãos que fizeram dá lei ia regra últi­ ma do seu agir, ignorando a mensagem do Novo Thstamento. No entanto, o culto à lei pode levar consciente ou inconscien­ temente a uma atitude alienada, de negação da própria vontade para fazer a vontade de outro. Bem sabemos dos excessos de pseudo-obediência tantas vezes presentes na vida. religiosa e quantas pessoas foram marcadas ou deformadas pelo legalismo. Quando o Pe. Lyonnet apresentou pela primeira vez a dou­ trina paulina da lei e da liberdade em 1954, foi :censurado e condenado. A sua doutrina pareceu luterana. No entanto, hoje, essa doutrina é adotada por todos os moralistas católicos im­ portantes 21 - o que não·quer dizer que.seja de fato divulgada nas paróquias ou nos catecismos católicos, em que se continua a ensinar uma moral da lei. Mesmo se fosse ensinada, a. maio­ ria católica a interpretaria ainda como moral legalista,porque na América Latina não se conheceu outra teologia. Mudar a mentalidade é processo lento. A liberdade do Espírito não quer dizer que as leis já não existem. mais• ou perderam toda a razão. de ser. ,P próprio S. Paulo não afirma isso.As leii:i"têm uma função pedagógica: con'.' duzem para a liberdade. S. Paulo dava•lhes o papel de pedago­ go� Para as pessoas que não têm ou têm pouca edu,cação huma­ na, a lei moral lembra os limites de todo agir humano. Assim são os dez mandamentos. Quêm se deixa conduzir:p�lo Espírito não vai agir contra os.dez mandamentos. Esses são um míni'

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21Por exemplo: B. Haering, Marciano Vidal, Eduardo López Azpitarte, J. M. Aubert.

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:mo. A pessoa espiritual cumpre o amor ao próximo muito além dos limites dos dez mandamentos. Não é preciso lembrar-lhe que não deve matar. Nunca pensaria em matar. Não precisa lembrar que não pode cometer adultério porque não lhe passa pela mente fazer isso. Os mfu"1.damentos são feitos para a pri­ meira educação das pessoas sem formação espiritual. As leis são feitas também para a sociedade, isto é, para definir as bases morais da subsistência da sociedade. Uma so­ ciedade sem normas morais vai inevitavelmente degenerar e desaparecer pouco a pouco..Além disso, leis são necessárias para a organização e a manutenção da vida coletiva.. Uma coisa é tomar as leis e instituir leis novas pe1o valor que têm, outra coisa é fazer da lei a fonte do valor moral, a base da ética humana. Quem faz da lei o fundamento da vida moral vive na dependência: quer evitar o castigo, quer evitar proble­ mas de convivência., ou quer acumular méritos. Semp:re - subo:r•• dinB.-se a uma vontade alheia por medo de perder, medo do ris� co, medo dos outros. Na liberdade do Espírito não há medo, mas posicionamento de si próprio, amor a si próprio, ao outro e a Deus. Há outra razão para que a lei não seja a referência supre­ ma da vida humana. S. Paulo não a enuncia explicitamente, mas a raiz está na concepção que ele tem da lei. A história encarregou-se de mostrar o que são as leis. Ao contrário do que pensavam os gregos, a lei não é puramente a expressão da jus­ tiça. A lei - toda lei, incluindo a lei moral e as leis que estão na Bíblia - sempre tem um aspecto de dominação. Não foi sem razão que Jesus não enunciou leis novas, mas se contentou com anunciar o Espírito. Ou, então, afirma que a lei toda está num só mandamento - que é como negar a lei . . As leis são feitas por homens, mesmo - como no caso de Moisés - que sejam atribuídas a Deus. As leis são feitas a par­ tir de determinadas situações humanas, individuais e sociais. Elas querem melhorar o indivíduo e a sociedade, mas, para se­ rem aceitas, elas reduzem as exigências. As leis tendem a ex­ pressar o consenso da sociedade ou, pelo menos, da maioria. ·Refletem em. todo caso os interesses e as preocupações dos g:ru-

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pos dominantes e, dessa forma, embora pretendam estabelecer a justiça, consolidam injustiças. .A..s leis refletem dominações de sexo, classe, cultura, raça, clã e de todas as formas de superioridade. Reforçam as domina­ ções estabelecidas e as legitimam. Isso vale inevitavelmente também para as leis inscritas na Bfülia que justificam a escra­ vidão, a superioridade masculina, a superioridade dos chefes. Vale para as leis eclesiásticas, para os códigos morais e para as leis da sociedade civil, corno para os regulamentos das sociedade particulares (empresas, clubes de futebol etc.). Tomar a lei como referência última seria consagrar a in� justiça e a dominação. As leis hão de ser aperfeiçoadas sem ces­ sar, sem que alcancem nunca a justiça. A liberdade é uma vocação. Como vocação, ela envolve o tempo da vi.da. Não se alcança d.e mnà vez para sempre. É tare­ fa, construção. Pode conhecer avanços e :retrocessos. Será o fio condutor da existência. com muitos episódios e, por conseguin­ te, na diversidade de momentos e situações. Alguns descob:rem a vocação bem cedo na vida, outros já no outono. "Tarde te amei", diziaS ...Agostinho. Lutero já estava bem adiantado na vida adulta quando teve a famosa revelação que o transformou. S. Tere­ sinha de Lisieux ainda estava :na adolescência quando teve essa revelação. Parece impossível que uma. pessoa possa crescer na liber­ dade desde a infância sem passar por momentos de conversão. Sempre há momentos de descobrimento. Se os batizados mt11ca na vida passam por semelhante conversão, serão destinados a aumentar o n.úme:r.o de cristãos de aparência que, na :realidade, nem sabem de que se trata o evangelho, porque nunca ouviram o seu apelo. Quando usam a palavra liberdade > assocía.m-na com o oposto da liberdade. É possível confundir a liberdade com o seu contrário. Já S. Paulo fazia essa advertência: ,iQue a liberdade não sirva de pre­ texto para a carne, mas, pelo amor, colocai-vos a serviço uns dos outros" (Gl 5,13). A "carne" são os desejos, maus enu...merados em Gl 5,19-21; as fraquezas da existência, chamadas "ilusões) ' pelo budismo -

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ilusões do dinheiro, da agressividade, do sexo, dos vícios. A liber­ dade não consiste em ceder a tais desejos - seria cair na escra­ vidão dos desejos e das "ilusões". Não é livre aquele que diz que faz o que quer, mas, na realidade, não sabe resistir à pressão dos desejos, tornando-se escravo dos objetos que excitam o seu desejo. A manifestação da liberdade é o serviço mútuo voluntário no amor. Ali a personalidade expressa-se sem constrangimen­ to, sem pressão, sem alienação da própria vontade. O medo dos abusos da liberdade foi o que serviu de pretex­ to para a hierarquia da Igreja deixar na sombra a vocação para a liberdade que, durante séculos, ficou fora dos catecismos, da pregação dos missionários e do aconselhamento dos confesso­ res. A liberdade ficou escondida por medo dos possíveis abusos e das possíveis falsas interpretações. O tema da filiação divina reforça o tema da liberdade. A doutrina da vocação para a liberdade poderia ser introduzida pelo tema da filiação. Acontece que este foi interpretado no discurso da elevação à ordem sobrenatural da teologia escolás0 tica posterior. Na espiritualidade, foi tomado num sentido sen­ timental. Na teologia paulina, filho opõe-se a escravo: "E porque sois filhos, enviou Deus aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: Abba! Pai! De modo que já não és escravo, mas fi­ lho" (Gl 4,6). "Não recebestes um espírito de escravos, para re­ cair no temor, mas recebestes um espírito de filhos adotivos, pelo qual clamamos: Abba! Pai!" A filiação é libertação: faz pas sar do estado de escravo para o estado de livre. Ser filho-· ou filha - de Deus é não ser mais escravo. Pois pelo Espírito co­ meça a história. da liberdade em cada um e cada sociedade. "Onde está o Espírito do Senhor, aí está a liberdade" (2Cor 3, 17). 0

3º A Jliberdade no quarto evangelho···· O quarto evangelho faz a síntes_e entre a liberdade de Je­ sus e a liberdade dos cristãos .. Na literatura joanina a filiação está também identificada ·com. a liberdade. Ser livre é ser filho de Deus. Por sinal, João vai mais longe e une a· liberq.ade de

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Jesus e dos discípulos com a própria liberdade de Deus. Este tema, porém, será examinado no capítulo seguinte. O texto a ser considerado é o capítulo 8 do quarto evange­ lho. Um dos pontos altos do evangelho. O tema é "a verdade". Jesus traz "a verdade" e diz: "Conhecereis a verdade e a verda­ de vos libertará" (Jo 8,32). A verdade é o que o ser humano deve saber, a sua razão de ser, a sua vocação. Não se trata de verdade teórica, e sim da razão de ser da vida, do objetivo final da existência.. Pois Jesus afirma que há uma verdade. A verdade é a vocação humana e esta verdade está em Jesus. Ele tem a chave. Pode dizer "eu sou a verdade", isto é, o objetivo final da humanidade, a expli­ cação de tudo. E o efeito daquilo é a liberdade. Tudo está orien­ tado para a liberdade. Os interlocutores de Jesus, as autoridades judaicas de Je­ rusalém, entendem que as palavras de Jesus são uma denún­ cia. Respondem: "Somos descendência de Abraão, e jamais fo­ mos escravos de alguém» . Eles entendem muito bem o sentido de liberdade: ser livre é não ser escravo. Entretanto, os judeus com quem Jesus conversa não po­ dem chegar à liberdade porque se acham livres, não tendo cons­ ciência da sua escravidão. Eis o erro, eis o pecado fundamental: crêem que são livres porque são filhos naturais de Abraão. Acham que uma filiação natural basta para ser livre. Essa ce­ gueira é fonte dos outros pecados: negam a verdade ("mentem"), querem matar Jesus (Jo 8,37-4 7). Eles se acham filhos de Deus (8,41) e por isso se enganam, e o seu auto-engano impede que descubram a verdade. Não sabem que não_ estão livres e por isso não respondem ao apelo. Não sabem que a liberdade é vo-­ cação. Acham que vem do sangue e da geração· biológica. Con­ fundem a liberdade com_o orgulho da sua raça e da sua nação, erro que tantos cometeram e ainda .cometem! E, por isso, não procuram conquistar a verdadeira liberdade. Ninguém nasce livre, nem sequer os filhos de Israel. Todos devem ser ilumina­ dos, procurar a liberdade, seguindo o apelo de Jesus. Jesus é livre por ser filho de Deus (8,,38.49.5.4). Quem vem da parte do Pai, quem é ou se torna filho ou filha de Deus chega

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à liberdade. Essa é a liberdade que o povo de Israel anseia des­ de sempre e, na hora, não sabe reconhecer. Somente quem é livre pode libertar. Jesus liberta porque é livre. O simples contato com ele já é um apelo. ·No entanto, as autoridades de Israel não acreditaram nele, e até hoje a maioria dos israelitas não acredita nele. Por que será? Qual é o obstáculo? Parece que, desde o início, foi sempre o mesmo. Jesus era fraco demais, simples camponês, que não deu sinais extraordinários - os sinais pedidos pelos escribas e fariseus-, tendo sido condenado pelas autoridades e crucifica� do pelos romanos como subversivo e rebelde. Nessa situação, como poderia ser libertador do seu povo? Paulo sentiu - todos os autores do Novo Testamento tam­ bém, mas sobretudo ele - o paradoxo desse Messias que não tinha nenhuma aparência de Messias. Toda a c-ristologia de Pau­ lo sustenta essa visão contrastante da fraqueza e da força (Fl 2,6-11). Percebeu também que a fidelidade de Jesus até a mor­ te é o meihor sinal da sua liberdade, o ato supremo de liberda­ de. Na cruz Jesus mostrou que tinha vencido o medo da morte. Para ser o sinal perfeito da liberdade, não se podia conceber outra coisa a não ser essa morte na· cruz. Já que a mensagem de Jesus era a vocação para a liberda� de, ele próprio devia dar o sinal inabalável da liberdade. Isso não aconteceu com os fundadores de religião: Buda, Maomé, Lao-tse, ou mesmo os fundadores das Igrejas separadas: Lutero, Calvino e os outros. Estes vieram publicar uma mensagem in� dependente da pessoa deles próprios. Jesus veío mostrar o exem plo da sua pessoa. Não veio ensinar uma doutrina da liberdade, mas chamar para a liberdade, e a sua própria vida havia de ser o apelo. Assim o entenderam os discípulos que viram na sua morte o sinal da verdade da sua vida. Se os homens são chamados para a liberdade - homens e mulheres de todos os povos -, a raiz desta vocação está no próprio Deus. Deus é livre e por isso cria e chama para a liber­ dade. Criar seres sem liberdade não teria significado para um Deu.s que é simplesmente liberdade. Homens e mulheres são imagens de Deus na sua liberdade, porque são chamados para. 0

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a liberdade. O que os teólogos orientais cha'mavam de diviniza­ ção era a vocação para a libêrdade, màá eles não conseguiram vê-la nitidamente. Os teólogos ocidentais também não repara­ ram com exatidão, devido à filosofia grega que nunca teria con­ siderado a liberdade como atributo típico de Deus. No entanto, a mensagem do Novo Tustamento está aí sempre disponível. É o que vamos examinar no capítulo seguinte.

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CAPÍTUL03

DEUS É LIBERDÁDE

No decorrer do século XX a teologia cristã abandonou deci­ didamente o caminho da metafisica para conhecer Deus. Duran­ te séculos, a escolástica - nos seus vários episódios, inclusive nas teologias protestantes -, falou de Deus ·em termos de "es­ sência" ou "substância", procurando explicitar o que Deus "é". Para esse fim, partiu de todas as perfeições que existem no mun­ do, atribuindo-as a Deus de modo eminente. Dessa maneira Deus era "todo-poderoso", "onisciente", "imutável", "auto-suficiente", e assim por diante. Seguindo a metafisica, a teologia chegava a Deus pela aplicação dos conceitos de causa e efeito. Constatou-se, por fim - depois de tantas "neo-escolásticas" e "neotomismos" -,. que este caminho ja não era mais viável no estado atual das ciências e da evolução do pensamento humano. Hoje em dia a teologia fala de Deus em linguajar de ''liberdade" e de "vida". Eis o que escreve um dos representantes mais autorizados e moderados da teologia católica atual, Walter Kasper: "A defi­ nição de Deus em termos de pessoa assume a definição clássica de essência e a ultrapassa ao mesmo tempo. Já não pensa mais em Deus no horizonte da substância, por conseguinte não o de­ termina mais como substância absoluta, mas pensa nele no horizonte da liberdade e define beus como a liberdade perfeita. Esta definição em termos da pessoa de Deus tem a vantagem de funcionar de modo mais concreto e mais vivo do que a defini­ ção metafísica abstrata da tradição�' 1• O instrumental usado 1

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Cf. Walter Kasper, Der Gott Jesu Christi, Grünewald; Mainz; 1982; p. 196.

atualmente para pensar "Deus" é a filosofia davida·e·daliber­ dade2 . No entanto, na divulgação, ainda não se nota e],Il muitos ambientes a mudança teológica radical que se acentuou sobre­ tudo nos últimos 50 anos. lo A via do conhecime:nto d.e Deris Hoje em dia ficou mais claro para todos que há dois cami­ Por um ladó ·há· o cãminhos fundamentais· de conhecimento. . nho "científico": conhecimento que une a indução ê a dedução. Trata-se de conhecimento analítico: divide o campo, daobsérva-: ção em fenômenos separados e distintos para estudar as rela­ ções entre vários fenômenos. Dessa maneira isola ;elementos e depois estuda analiticamente o complexo de relações entre es­ sas unidades. Uma vez acumuladas as observáções� a ciência elabora modelos ou hipóteses das quais se podem deduzir as relações entre os. elementos considerados. Em seguida 1. novas observações ou novos experimentos confirmam ou contradizem o modelo construído. Se as contradições se multiplicam, elas tornam inviável a hipótese de partida e o cientista elabora ou­ tra hipótese e assim sem fim3 • Este conhecimento permite de fato a elaboração de técnicas capazes de consegUir mudanças no mundo material ou mental. Afinal, o conhecimento científi­ co vale pelos efeitos que consegue produzir. As mudanças efetuadas podem se:r úteis à vida dos seres humanos. São as que merecem mais atenção. Esse método de conhecimento é tão antigo cotµo a humani­ dade: sempre foi aplicado pelos artesãos, construtores, agricul­ tores. Porém, no passado todas essas profissões eram despre. zadas e não mereciam muita atenção. • .... · , . Os filósofos gregos tiverama intuição de qué ésse método rigoroso de pensamento era também aplicável à totalidade do universo e de que era possível elaborar uma tebriá geral do '

2Cf. Walter Kasper, o. c., pp. 193�198. 3Para os teólogos não acostumados a praticar o método científico,:ver·como íntrodu� ção Eduardo R. Cruz, "Redução das ciências a teologia", em 'Thologia: pr.ofi,ssão, Soter-Loyola, São Paulo, 1996, pp. 37-57, com boa bibliografia.

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universo feita de conceitos e de relações entre conceitos. A par­ tir de uma intuição direta das idéias que seriam o modelo da construção do universo (Platão), ou a partir da observação (Aristóteles) e da abst:ràção, era possível elaborar um sistema de -conceitos representativo da totalidade: a metafísica. Os gregos pensaram que pelo caminho da metafísica se podia che­ gar a Deus: Deus ocupava um lugar dentro da construção con­ ceitua! do mundo. Achavam que se podia demonstrar a exis� tência de Deus pelo mesmo caminho que permite definir as relações dentro do universo. Na Idade l\1édia esse método foi adotado e tornou-se comum na Igreja católica. As próprias Igre­ jas protestantes, que quiseram emancipar-se dessa teologia, voltaram a integrá-la sub-:repticiamente quase até o século XX. Deus aparecia assim racional, científico, demonstrado, indiscutível. No entanto, desde o século XVI o movimento científico afastou-se cada vez mais da escolástica. As novas observações e os novos experimentos entravam em contradição com os concei­ tos escolásticos. Os gregos achavam que as suas teorias tinham valor absoluto e eram verdades eternas. Não tinham descober­ to a lei do pensamento científico de que nenhuma teoria é defi­ nitiva, que novos descobrimentos obrigam a substituir as teo­ rias superadas por outras mais abrangentes. Os teólogos não queriam mudar as suas teorias e os cientistas não podiam aceitá-las. Começou um conflito que somente terminou neste século XX. O método científico náo entra em contradição radical com a indução e dedução da lógica medieval - simplesmente apli­ ca-as com mais rigor. Ora, o que aconteceu com o conhecimento de Deus? Durante muito tempo os cientistas continuaram achando que· o método de pensamento racional levava ao conhecimento de Deus. Até Newton todos pensavam assim, e o próprio Nevvton - que era muito religioso e muito conservador -procurava na nova· física argumentos para confirmar a existência de Deus. Foi somente a partir da Revolução Francesa que os dentistas · começaram a proclamar que não somente a ciência :não dava

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demonstração da existência de peus, mas- pelo contrário mostrava que Deus era inútil. E· conhecida a famosa resposta do astrônomo Laplace ao imperador N apoleã.o, que lhe pergun­ tava qual e:ra o lugar de Deus na sua fisica. Resposta de Laplace: "Na minha física não.preciso de Deus". Curiosamente, nem todos os cientistas adotaram essa con­ clusão. Como se sabe, mais ou menos a metade dos cientistas de hoje crêem em Deus, no Deus monoteísta tradicional, porém em muitos casos por outros motivos, e não por motivos científi­ cos. No entanto, há também hoje em dia um renascimento da aceitação da existência de Deus a partir de argumentos científicos. É conhecida a desconfiança de Einstein quando lhe deram a conhecer a teoria do big-bang, teoria que explica a origem do universo a partir da explosão ·dê uma partícula primitiva de pura energia, teoria expressada por um sacerdote belga, pro­ fessor na Universidade de Lovaina. Einstein desconfiava e pen­ sava que s� tratava de uma astúcia clerical para voltar à idéia de Deus a partir da ciência. Ele, que era ateu convicto, demo­ rou antes de aceitar o caráter científico da nova teoria. Ora� de fato hoje em dia vários físicos acham que poderia haver na teoria do big-bang um argumento forte a favor da existência de um Deus criador, autor do átomo primitivo. O mais famo­ so, :recuperado há al guns anos por Juan Luís Segundo, é o professor Trinh Xuan 'I'-.1an, vietnamita radicado nos Estados Unidos4 . Entre os argumentos metafísicos da Idade Média e os a,r­ gumentos físicos de hoje há continuidade. Em ambos os casos, pensa-se que se possa chegar a Deus por meio da lógica, usando conceitos tirados da experiência e estabelecendo relações lógi­ cas e:nt:re conceitos. Deus seria. o ponto culminante da teoria representativa do universo. Porém, por este caminho não se sai do universo. O Deus de Aristóteles era o fornecedor de energia ao mundo inteiro, era o ponto de partida de todos os movimen4Cf. Trinh Xuan Thuan, La melodie secrete. Et l'lwmrn,e créa l'uniuers, Gallirnard, Paris, 1988.

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tos. Por conseguinte, era membro e parte do universo. Daí. a dificuldade que sempre houve: como conciliar esse Deus com o Deus da Bíblia? O Deus da Bíblia foi, pouco a pouco, recoberto pelo Deus da metafísica. O que os gregos não tinham pensado- e o que não entrou na escolástica, nem no pensamento. científico derivado da escolástica - é que existe outro caminho de conhecimento. Há um conhecimento não analítico, não conceituai, não.lógico que não se presta a teorias: é o conhecimento da vida, Também este é tão antigo quanto a humanidade. Todos os seres humanos conhecem a vida porque vivem. Têm conhecimento direto, ime­ diato, não transmissível porque ninguém. conhece outra vida, conhece a sua vida - e as outras somente por meio de analo­ gías. Este conhecimento não foi valorizado.Não chegou ao status de "filosofia", e, por conseguinte, não chegou a ser ''teologia", à medida que se deu o nome de teologia ao discurso que usa a filosofia. O conhecimento da vida é sintético porque a vida não. é divisível, é um todo inseparável. Por isso não se demonstra a vida. Nem se demonstra a liberdade. Conhece-se tanto a vida quanto a liberdade porque se vive. O conhecimento da vida expressa-se por meio de metáfo:. ras, parábolas, contos, mitos. Procede de modo narrativo. Não serviria para conseguir os efeitos que se busca pelo conheci­ mento científico. Porém, para viver bem, muito pouco se conse­ gue pelo caminho analítico. Somente o conhecimento da vida tem utilidade. Por isso.as elucubrações dos cientistas !:lObre Deus podem ser interessante, mas contribuem muito pouco para conhecer a Deus - o Deus cristão, o Deus de Israel e da Bíblia. E todos os discursos metafísicos ou científicos contribuem pouco, antes desviam a atenção do que é realmente relevante. O discurso da Bíblia pertence à linha de pensamento vital, . sintético, e por isso.o seu discurso é narrativo. Não diz o que Deus é, mas narra. o que Deus faz. Por sinal, a língua hebraica ignora o verbo "ser". Não havia necessidade de d_izer o que uma realidade era. Bas·· tava dizer o que fazia ou o que acontecia com ela.

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2'º Deus é vida "A Vida manifestou-se, nós a vimos, damos-lhe testemu­ nho e vos anunciamos esta Vida eterna" (lJo 1,2). "Àssim como o Pai tem a vida em si mesmo, também concedeu ao Filho ter vida em si mesmo" (Jo 5,26). O evangelho de João é b evangelho da vida. A vida não se demonstra - "nós a vimos". ' Por isso o nome de Deus é nome de vida: Pai. Por que J:>ai e não Mãe? Hoje freqüentemente se corrige. Deus não tem $exo. O nome Pai não se refere aqui ao sexo, mas à vida. Pai evoca uma relação de vida, e mãe tanfbém. Com certeza há um pro­ blema cultural. Até há pouco, não se conhecia a fisiolõ@a 'da reprodução e os' símbolos usados para representá�la eram de -inspiração "patriarcal". Na opinião comum o elemento ativo na reprodução era o homem, que depositava a semente no vaso que era a mulher, e esta tinha apenas esse papel passivo. A fisiologia científica desmentiu essa concepção simbólica,, e ago­ ra estamos com a tarefa de reequilibrar a linguagem. todo o caso, o nome de Deus é nome de vida. Como se pode demonstrar a existência do.Pai? Mostrando o Filho. Não se chega aí por raciocínios lógicos. O ccmhecimento é direto como o conhecimento vital. O que é a vida? Vida é fecundidade. Vida é dom de vida. A vida que não multiplica a vida deixou de ser vida. Deus é vida porque dele procede'o outro. É'vida perfeita porque produzto­ talmente a vida igualmente perfeita.A vida dá-se rio agir e esse agir é produção de vida. Assim também é a liberdade. Liberda­ ,de é capacidade de fazer surgir vida, dom de vida. Por isso Deus é liberdade perfeita, pofque produz vida perfeita: o Filho e o Espírito Santo, igual a ele5 • A vida de Deus mostra-se mais fecunda ainda. Faz surgir outras pessoas com vida. "Adão é chamado "filho de Deus" (Lc 3,38). Se Adão é filho, Evaé filha. Os seres humanos têmaces­ so à vida, entraram na vida. Esta vida é eterna. Começar a vida não é simplesmente, existir como um objeto qualquer; Viver é

Em

õCf. o livro original, novo, sugestivo de Michel Henry, talvez o melhor filósofo cató­ lico atual, C'est moí la véríte, Seuil, Paris, 1996.

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agir, produzir, ser fecundo. Viver é poder dar. Na vida é que se re.aliza a liberdade. A humanidade é chamada à liberdade porQ que - nasceu para a vida. Esta vida segue um curso biológico, ficando restrita aos limites do mundo em que está inserida. Por isso a liberdade realiza-se por etapas e no tempo, assim como a vida. Pois a vida humana está condicionada pela corporeidade.

3. Kmage:mm. de De1UI.s O tema da imagem de Deus é um dos mais tradicionais da antropologia cristã6• Em que o homem e a muiher são imagem de Deus? S. Tomás responde: o homem é imagem de Deus na liberdade, por ser princípio das suas obras7• O que torna o ho•• mem imagem de Deus é que, como Deus, pode dar vida - ou pode, pelo menos, ajudar a Deus no dom da vida, visto que ne­ nhuma criatura dá a vida, mas somente Deus. Porém, Deus usa a mediação de seres humanos para dar vida. A vida huma­ na precisa de muitas condições exteriores para poder subsistir e mesmo para poder começar. Homem e mulher podem traba­ lhar para reunir essas condições materiais que tornam a vida possível e dessa maneira contribuem para a vida. Eva pôde ex­ clamar: "Adquiri um homem com ajuda de Javé" (Gn 4,1). Os seres humanos são imagem de Deus como pai e mãe porque, dessa forma, exercem a liberdade: livremente fazem surgir um ser humano. Ainda que possam também não que­ rer deixar que os determinismos biológicos funcionem por si mesmos - não se tornando, dessa forma, realmente pai e mãe no sentido humano-, ainda assim têm vocação pa:ra ser pai e mãe. Os seres humanos têm a vocação de colaborar pa:ra que surja mais vida e assim se tornar livres colaboradores de Deu,s. A imitação da paternidade-maternidade de Deus estende�se também além dos laços do parentesco. Realiza-se na comunidag 6Cf. José I. González Faus, Proyecto de hermarw. Vzsión creyente del lwmbre, Sal 'Ibr-rae,Santander, 1987, pp. 79-180. 7Cf. Summa Theoiogica, Iº 2•; proi.

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de humana; Na comunidade todos podem ajudar a todos, pres tando os serviços que :reúnem as condições materiais da vida. A vida corporal precisa de muitos elementos que existem no mundo exterior. Na comunidade humana cada um traz o que é capaz de fazer e assim, pelo intercâmbio de serviços, a vida to:rna-se possível. Ninguém sobrevive sem laços comunitários. Hoje há economistas ensinando que o mercado basta, que ele realiza espontaneamente a colaboração necessária para a manutenção da vida. Não é assim porque nunca foi assim no passado. A base da convivência ainda é o dom gratuito que procede não das leis do mercado, e sim da liberdade humana. A pessoa torna-se livre no serviço gratuito ao próximo e esse serviço deve estar presente em todas as formas organizativas de trabalho. Se numa sociedade não houver vontade de servir, nela não se poderá suscitar vida. 0

4. F'1:'aqu.e�a de Delül.§ Boa parte do ateísmo contemporâneo baseia-se na objeção enunciada com muita força no passado por J. P. Sartre e reto­ mada pelos seus discípulos: "Se Deus e:idste, eu não sou nada". Se existe um Deus onipotente, o que ainda sobra para mim? Essa presença ao meu lado do poder absoiuto torna irrisórias todas as minhas ações. Diante do infinito, todo o finito torna-se irrelevante. Há muitas maneiras de enunciar o argumento. A objeção foi formulada desde a Idade Média, mas não con­ seguiu convencer. A :resposta diz que Deus e ô· homem não se situam no mesmo plano, como duas liberdades em competição. A resposta não convenceu porque durante séculos os teólo­ gos debateram a questão da predestinação,_ isto é; da compati­ bilidade entre a liberdade de Deus todo•poderoso e a liberdade humana. Assim fazendo, situaram no mesmo plano as duas li­ berdades. Se os teólogos - tomistas, dominicanos e jesuítas tomaram essa posição durante séculos, não é estranho que filó sofos façam a mesma coisa. · De qualquer maneira, a pessoa sente tantas vezes o confli­ to entre a sua vontade, o seu desejo e o que se diz que é a vonta0

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de de Deus; que a reação parece inevitável. Os sartreanos sus­ tentam que, para ser livre, é necessário negar a existência de Deus. Infelizmente para eles, Deus não depende das negações ou das afirmações de Sartre. · A verdadeira resposta está na fraqueza de Deus. O nosso Deus é um Deus "escondido" - tema constante da tradição es­ piritual cristã. É um Deus que se manifesta no meio da nuvem, que se faz perceptível, mas não impõe a sua presença. A liberdade consiste justamente nisto: diante do outro, a pessoa pára, reconhece e aceita que exista. Abre espaço, acolhe. Longe de dominar, escuta e permite que o outro fale primeiro. Assim Deus suspende todo o seu poder, quando a criatura apa­ rece. A pessoa suspende o poder de Deus; Nenhuma evidência, nenhuma ameaça, nenhum constrangimento força nem obriga. Deus permite e deixa fazer. Deus respeita o outro na sua alteridade e permite, até mesmo, que o outro se destrua sem intervir. A liberdade de Deus consiste em permitir e ajudar a liberdade do menor dos seres humanos. A liberdade de Deus reprime o poder. Torna�se fraca para que possa manifestar-se a força humana. O hino de Fl 2,6-11, núcleo da cristologia paulina, expressa essa fraqueza de Deus. Pois o aniquilamento de Jesus incluía o aniquilamento do Pai: "Esvaziou-se a si mesmo e assumiu a condição de escravo, tomando a semelhança humana. E, acha­ do em figura de homem, humilhou-se e foi obediente até a mor­ te, e morte de cruz!" (Fl 2, 7-8). Deus escondeu o seu poder até a ponto de as autoridades de Israel não o reconhecerem. É desta maneira que Deus se dirige às pessoas: sem intimidação, sem poder, na dependência de seres humanos, entregando a própria vida nas mãos de criminosos. Quem dirá que dessa maneira D.eus faz violência às pessoas? .. Como comentou Levinas, o outro é o desafio·daliberdade, a provocação que a desperta. Diante do outro há duas atitudes: examiná-lo para ver em que ele me poderia ser útil ou qual é a ameaça que representa para mim, ou, então, perguntar-me o que eu poderia fazer para ajudá-lo. A liberdade de Deus autoli� mita-se. Diante da sua criatura, Deus limita a sua· presença.

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Deus preferiu antes deixar que crucificassem o seu Filho a inter­ -vir para impedir tal injustiça. Trata-se de fraquezavoluntária. É verdade que durante muitos séculos, sobretudo na pre­ gação popular, os pregadores_ apresentaram uma concepção bem. diferente de Deus. Usaram temas e comportamentos da religião popular tradicional: medo diante do trovão, medo da seca e de cataclismos naturais - entendidos co:rtio castigos divinos -, medo das doenças recebidas também como casti­ gos e assim por diante. Era fácil despertar o temoI" a partir de idéias puramente pagãs ou supersticiosas. Essa preg.ação de terrorismo religioso podia dar resultados imediatos, levando milhares de pessoas aos sacramentos. A longo prazo, porém; destruíam as bases da credibilidade da Igreja. Hoje, a maioria das pessoas deixaram de ter medo do trovão, não sendo mais motivo para temer a Deus, como foi no passado. Naquele tempo achou-se válido o método do temor, todavia hoje recolhe-se os frutos dessa pastoral. Pensou-se que os povos precisassem temer um Deus forte - e desprezariam um Deus fraco. Tais erros se pagam cedo ou tarde. Estamos pagando hoje esse preço. Deus tornawse fraco porque ama. Quem mais a:fua é sempre mais fraco. Não será essa a grande característica das mulheres? Quase sempre amam mais e, por isso, sofrem má.is� Porém, nesw sa fraqueza consentida não estará a maior liberdade? Nessa fraw queza a pessoa vence todo o egoísmo, todo o desejo de prevalecer, toda a preguiça ao aceitar maiores desafios. Exige ma:is de si própria, vai mais longe, além das. suas forças. "Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos" (Jo 15,13). Aí está também a expressão suprema da liberdade. A fraqueza de Deus vai até a ponto de se tornar suplicante. O versículo predileto do saudoso teólogo latino-americario Juan Luís Segundo diz: "Eis que estou batendo na porta: se alguém ouvir minha voz e abrir a porta, entrarei na sua casa e cearei com ele e ele comigo" (Ap 3,20). Deus bate na porta e aguarda. Se não é atendido, afasta wse e continua o caminho. Somente entra se é convidado. Depende do convite das pessoas. Deus tornawse pedinte, suplicante.

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O desafio supremo da liberdade é a escravidão, a presença do escravo ao nosso lado. Bem sabemos como costumam.os rea­ gir diante dos escravos: dar graças a Deus porque não sou as­ sim e fugir, procurar esquecer-me. Na economia atual, é o que acontece. Os vencedores do mercado isolam-se :na satisfação dos seus desejos e na tranqüilidade de consciência - conscientes de que a sua condição privilegiada é o prêmio merecido pelos seus trabalhos. O resto que fique o mais longe possível. A socie­ dade atual não tem compaixão. Abandona os vencidos. Crê que goza da liberdade. Mas será mesmo liberdade? Que tipo de li­ berdade? Liberdade de satisfazer muitos desejos, ditados pelas modas ou pelos imperativos da publicidade. Ou simplesmente: é preciso consumir para que o sistema possa produzir e conti-• nuar fabricando dinheiro. Deus manifesta a liberdade na compaixão - como o samaritano 8 • Tem compaixão de Israel no Egito, em Babilônia, tem compaixão dos camponeses da Gal:iléia, enganados, ex­ plorados, atemorizados. Tem compaixão no decorrer da histó­ ria. A compaixão manifesta-se no ministério terrestre de Je­ sus, que tem a missão de dar testemunho dessa misericórdia9. A misericórdia supera o abismo entre a perfeição e a miséria, entre a liberdade e a escravidão. Vai ao encontro para levan­ tar os caídos. O evangelho está repleto de fórmulas semelhan­ tes a essas. Tal exemplo de Jesus suscitou de fato, a.o longo de 2.000 anos, miihares de vocações semelhantes. Cada uma foi original e única, mas todas de alguma maneira reproduzem o modelo. Ali foi vivida a liberdade cristã. Cada um de n.ós encontrou na vida pessoas assim-dentre elas mulheres ou homens habitual­ mente pobres e com pouco estudo. Foram ensinados pelo Espí­ rito Santo, quando a pregação oficial era muito deficiente e es•• condia antes do que revelava o evangelho. Descobriram-no pe� 8Cf. a encíclica de João Paulo II: Diues in misericordia, àe 30-11-1980. 9Cf. Jon Sobrino, El principio-m.isericordia, Sal Terra-e, Santander, 1992.

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los textos da Bíblia ouvidos fortuitamente, pelas narrações de seus avós, ou, então, pelo exemplo de outros cristãos. Mesmo no Brasil, do qual se diz às vezes que não foi evangelizado, são muitas as pessoas que conquistaram a plena liberdade e vivem na realidade de cada dia o princípio da mise­ ricórdia. Manifestam a presença da suma liberdade de Deus. São testemunhas da verdade.

«t Deus é Es:pfriro

o

Jesus disse: "Deus é Espírito e aqueles que adoram. devem adorá-lo em espírito e verdade" (Jo 4,23). Com essas palavras Jesus :responde à samaritana que lhe pergunta a propósito do templo: Jerusalém ou Garizim? Jesus rejeita tanto Jerusalém como Garizim, invocando o Espírito. Não quer dizer que Jesus condena os templos. O que rejei­ ta é a obrigação de ir ao templo. O Espírito não conhece obriga­ ções. O· Espírito é livt'e. Pode querer ir ao templo ou não. Isso não importa, pois o Espírito é a energia de vida. Quem é movi­ do pela energia de vida, que é a própria energia de Deus, não aceita limitações de templo nem de qualquer outro objeto reli­ gioso. Adorar a Deus não ·está ligado a nenhuma obrigação. Não é lei, e sim- espontaneidade brotando do mais íntimo do cristão. Os templos podem te:r utilidades diversas, com a condição de permanecerem livres. Os místicos sempre disseram que o momento culminante da oração é quando se realiza a füsão do sujeito e do Espírito Santo de tal modo, que o místico se sente levado pela força do Espírito e vai além dos seus limites humanos. Pois "a letra mata, mas o Espírito dá vida" (2Cor 3,6). A letra é a lei, a submissão, a obrigação, o temor. O Espírito leva à vida porque liberta da lei. A pessoa que� em nome da Trindade divina, age no mundo e realiza todas as obras é o Espírito. As três pessoas são Espíri­ to, porém era mais conveniente que aquela que age e se mani­ festa. assim constantemente tivesse o próprio nome de Deus: Espírito. Espírito é comum às três pessoas, porém aquela que age tem como nome próprio o nome comum às três.

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.. . O Espírito, isto\�, o agir péló Espírito transfigurá ó· sef humano, torna-o glorioso. Leva o ser humano a uma exaltação acima das suas possibilidades e dos seus sonhos. Para explicar essa transfiguração; Paulo usa uma compa­ ração tirada da história de Moisés. Narra o livro do Êxodo 34,40 que, quando Moisés desceu do monte Sinai - isto é, do encon­ tro com Deus-, o seu semblante estava tão radiante, tão glorio­ so, tão luminoso, que os israelitas ficaram cegos. Moisés teve de cobrir o rosto com um véu. Esta transfiguração de Moisés foi passageira. LogoMoisés voltou à condição normal (2Cor 7-11). Com os cristãos acontece a mesma coisa: são transfigurados, . . mas não de modo passageiro, e sim permanente, e não põem um véu para esconder o rosto: "nós todos que, com a face desco­ berta, refletimos como num espelho a glória do Senhor, somos transfigurados nessa mesma imagem cada vez mais resplande­ cente, pela ação do Senhor, que é Espírito" (2Cor 3,18). Alguns dirão que os cristãos hoje não parecem tão transfiw gurados, que pouco se manifesta neles a glória de Cristo res­ suscitado. Já o dizia F. Nietzsche: a mensagem dos cristãos não se manifesta na glória, na luz resplandecente no seu rosto. In• felizmente muitas vezes é assim, e aí estão todos os problemas da Igreja. A luz não está resplandecendo no rosto dos católicos! Nos primeiros séculos era diferente. Algo muito especial chamava a atenção dos.pagãos. Sentiam no rosto dos cristãos uma coisa especial, uma força, uma tranqüilidade, uma iITadia'.' ção de luz que não havia nos outros. Naquele tempo a liberdade era visível no rosto dos cristãos. Hoje não podemos dizer que essa experiência seja freqüente, embora exista. Há pessoas que irradiam tanto o Espírito que está nelas, que a ninguém isso passa despercebido. A presença do Espírito é visível na liberda­ de.. Importa levá-lo muito em conta m�ste momento que tanto se fala do Espírito e tantas pessoas se prevalecem dos dons do Espírito. Santo.

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···•··... C.ÂPÍTUL04

A LIBERDADE crusTÃ No PRIMEmoMILENio

O primeiro niilêniodo cristianismo foi essenciaitt1ente orien­ tal. De certo modo prolonga.,.se no Oriente até 1453, data da queda definitiva de Constantinopla e do império cristão do Oriente. Porém desde o século XI o peso maior já estava se in" clinando para o Ocidente. No início houve os séculos dos mártires, fundamento de toda a história seguinte. Os 2.000 anos de cristianismo foram até agora dominados - ou, melhor, iluminados _;_ pela.memó­ ria dos mártires dos primeiros tempos. Até hoje, tanto no Orien­ te como no Ocidente, a Igreja identifica-se com os mártires: vê-se a si mesina como continuadora. dos mártires. Alguns dirão que os mártires foram mais vezes venerados do que imitados. Em todo o caso, estão sempre na consciência da Igreja herdeira das duas cristandades. . . . .. . No entanto, desde o início, a Igreja do Oriente reveste-se de caracteres típicos. Houve uma profunda inculturação. Por sinal, a característica dos primeiros 2.000 anos de cristianismo foi a predominância da inculturação. Todos os males de que são acusadas as Igrejas no Oriente e no Ocidente resultam de uma inculturação excessiva e quase que descontrolada> No império romano/sobretudo na parte oriental, a antiga liberdade das cidades já estava esquecida. A estrutura imperial vertical e sacralizada permaneceu e aumentou mais ainda de• pois de Constantino. O cristianismo descobriu o monaquismo e foitotalmeiite orientado pela espiritualidad,e monástica. Esta, por sua vez, não deixou de receber o impacto das id�ias e filoso•

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fias dominantes, em que a influência de Platão prevalecia ao lado da do estoicismo. Daí uma espiritualidade de fuga do mundo e uma Igreja em dois degraus: os perfeitos, que são os monges, e os imperfeitos, que são os que pertencem ao povo comum. Na frente da Igreja, o imperador com os seus bispos. O contexto não era favorável ao desenvolvimento da teologia da liberdade. Apareceu uma forma de cristianismo que ainda subsiste no Orien­ te, que pouco evoluiu e certamente é muito parcial. Certos as­ pectos fundamentais do cristianismo não foram assumidos.

As seitas gnósticas·, que conseguiram atrair muitos cris­ tãos, provavelmente entre os mais letrados e os mais ricos, não davam valor ao martírio. Tudo o que se :referia ao corpo não importava, já que o corpo era uma prisão e somente vali.a o destino da alma. Porém, para a Igreja católica o martírio era o g.ra.nde sinal, o ato mais valioso, o momento culminante da vida cristã. Todos participavam pela oração, pela exortação, pela ajuda, dando apoio aos futuros mártires uma vez que estes estavam presos. A importância dos mártires aparece nos relatos que se fi­ zeram do martírio. Escreviam-se as Atas dos mártires, que eram cuidadosamente conservadas . .AJém da Bíblia, essas Atas cons­ tituíam-se na principal leitura dos cristãos e, durante 18 sécu­ los, as Atas dos mártires foram, em muitas :regiões, leitura ha­ bitual dos cristãos, sobretudo no meio dos pobres. Quem sabia ler fazia a ieitura para todos. Os livros das Atas dos mártires 1 manifestaram uma ideo­ logia do martírio. Ensinavam, antes de tudo, quem eram os már­ tires, e, depois, explicavam o valor do martírio. Esse era o ato religioso por excelência. Com certeza muitos cristãos menos cora­ josos fugiam do martírio, mas muitos outros se preparavam com 1As atas dos mártires foram publicadas na colecão Acta Sanctorum dos nadres Bollandistas. Existe uma coleção em tradução espanh�la, Daniel Ruiz Bueno, ktas de los mártires, BAC, Madrid, 1951 (texto bilíngüe).

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fervor para isso. Era o sacrifício supremo, a prova suprema de fé e de amor. Aliás, o Novo Testamento já tinha elaborado uma teologia dó martírio de Jesus. Esta :inspirou os redatores das

Atas dos mártires.

A ideologia do martírio não exalta tão explicitamente a li� herdade d.os mártires, isto é, o martírio como ato de liberdade, embora certos textos exaltem a atitude de liberdade de que mostraram provas os mártires. Essa ideologia foi desenvolvida a partir da cultura gre-­ co-la.tina, sobretudo a partir dos mitos gregos, histórias dos heróis antigos, e a partir da ideologia dos combates e dos jogos. Os gregos celebravam a memória dos heróis. Os heróis são os g-uerreiros vencedores ou os que morreram vencidos t mas com glória. Heróis são também os vencedores das guerras ou dos jogos olímpicos. O ponto culminante da glória grega é a vitória na guerra. Esses tem.as foram aplicados aos mártires. Eles entraram no combate contra os inimigos de Deus: ídolos, falso culto, imo� :ralidade consag.rada pela religião oficial e, sobretudo, o impe­ rador - pessoa sagrada que mantém todo o sistema. Esse com­ bate tomava a forma d.e resistência na tortura, luta contra as feras, as ameaças, a seduçáo e, finalmente, a pressão das mas­ sas populares reunidas no circo - o martírio era público, era espetáculo para as multidões, e os mártires tinham de comba­ ter diante das multidões que g-.citavam o seu ódio e animavam os torturadores. Aos olhos dos cristãos, o irmáo ou a irmã que tinha perma­ necido fiel até a morte era vencedor ou vencedora do combate e teria o acolhimento de Cristo nos céus - com todos os distinti� vos da vitória. Se contemplamos não a ideologia, e sim os fatos, a :resis­ tência dos mártires era um extraordinário ato de liberdade. O mártir dava-se em espetáculo diante da multidão que queria vê-lo destruído, morto e humilhado. Afirmar a sua fé em tal circunstância era :realmente desafiar o mundo inteiro e, em pri­ meiro lugar, o imperador - pessoa sagrada. Era cometer um ato visto como sacrilégio pela multidáo.

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Por outro lado, os mártires daquele tempo podiam facil­ mente evitar a morte. Bastava expressar alguns sinais de re­ núncia ao cristianismo e eram liberados imediatamente. O ato de, martírio era plenamente livre. A pessoa decidia, escolhia e enfrentava todos os poderes deste mundo. Era preciso ter mui­ ta · fé e muita confiança em Cristo. O que mais chamava a atenção era o ar de triunfo dos már� tires, que iam ao encontro da morte como ao encontro da vitó­ ria, com serenidade e alegria. Chamava igualmente· a atenção a franqueza e a ousadia com que falavam diante dos juízes que os condenavam. O ar de triunfo dos mártires abalava muitos espectadores mais humanos e sensíveis. Não podiam deixar de admirar a coragem e a fortaleza deles. Entre os mártires havia muitas mulheres, muitos escravos, muitos j()vens. Os especta­ dores perguntavam-se: donde lhes vem tanta coragem e tanta fortaleza? Um texto significativo é o que relata o :martírio de Policarpo - um dos escritos mais· antigos narrando um testemunho de mártir. Esse texto· traz a seguinte oração de Policarpo, bispo idoso (86 anos), antes de ser queimado vivo: "Senhor Deus todo-poderoso, Pai de teu filho bem-amado e ben­ dito Jesus Cristo, por quem recebemos o conhecimento do teu nome, Deus dos anjos, das potências, de toda a criação e de toda a raça dos justos que vivem em tua presença, bendigo-te · por ter-me julgado digno deste dia e desta hora, de tomar parte na multidão dos mártires teus, no cálice do teu Cristo para a res­ surreição da vida eterna da alma e do corpo, na incorruptibilidade do Espírito Santo. Como eles, possa eu ser admitido hoje em tua presença como um sacriücio gorduroso e agradável, como tu o tinhas preparado e manifestado de antemão, como tu o realizas­ te, Deus sem mentira e verdadeiro. Por isso louvo-te por todas as coisas, bendigo-te, glorifico-te pelo sumo sacerdote eterno e celestial Jesus Cristo, teu filho amado, por quem seja a glória a ti com ele e o Espírito Santo agora e nos séculos futuros. Amém!''2.

S. Cipriano, bispo de Cartago - também ele mártir-· , foi o criador da teologia do martírio no Ocidente, junto com· Tertuliano. Evoca o marj;írio de Mapopalico: 2Cf. Martírio de Policarpo,

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XIX, 1.

"Assim, pois, este combate que o profeta anunciou, que o próprio Senhor cumpriu, que os apóstolos também realizaram, em nome próprio e em nome dos seus companheiros, o prometera ao pr_ocônsul. E não mentiu a sua voz fiel. A luta que prometeu, ele a exibiu e recebeu a palma qúe merecia. A este que é agora bem-aventurado mártir e aos outros companheiros e partícipes da mesma batalha, firmes na fé, pacientes na dor, vencedores no tormento, desejo e exorto vocês que os sigam. D.este modo, os que juntou o vínculo da· confissão e reuniu como •hóspedes no cárcere, os junte também a consumação da coragem e a coroa celeste"3• No Oriente, o grande teórico do martírio foi Orígenes. Es .. creveu a Exortação ao martírio (ano de 235). Ele•era filho de · mártir. Quando era menino e o seu pai foi levado para o martí­ rio, queria acompanhá-lo, mas �ma astúcia da mãe o reteve na casa e ele não conseguiu seguir o pai na morte, como queria. Teve vários parentes mártires e ele próprio esteve muitas vezes a ponto de ser preso. Sempre escapou por circunstâncias extra­ ordinárias. O livro foi escrito contra os gnósticos discípulos de Valentino que eram contrários ao· martírio e. o consideravam como suicídio. Orígenes invoca a Bíblia e toda a hi�tória cristã: "Grande concurso. reúne•se para contemplar o seu combate, o combate dos que foram ·chamados ao martírio, como quando milhares e milhares se reuniam para assistir à luta dos mais· ilustres atletas. Quando estiverem na arena poderão dizer com S. Paulo: 'Viemos para ser espetáculo para o mundo, para os anjos e para Deus' (lCor 4,9). Pois o mundo inteiro e todos os anjos, os da esquerda e os da direita, e todos os homens, os da parte de Deus e os da parte contrária, ouvir-nos•ão combater o combate pelo cristianismo. E de duas, uma: ou os anjos do céu alegrar•se�ão por nós . e os rios aplaudirão com· as mãos e as môntanhas se alegrarão e todas as árvores da planície estre­ mecerão, ou·-· que Deus não o. permita - se alegrarão as po­ tências debaixo que se comprazem com o mal"4• Um dos textos mais famosos é a narração do �art�rio de Perpétua e Felicidade com os -seus companhefros · na Africa. 3Cipdano, Epist; 10,4. 4Exhortatio ad martyrium, 15. Citado no livro Actas de los mártires,

p. 46.

75

Perpétua era uma jovem de família livre. O pai queria deter a filha e impedir que fosse martirizada. Queria convencê-la de abjurar, mas ela não se deixou convencer. Felicidade era escrà­ va._ Quando a prenderam, estava grávida e deu à luz na prisão poucos dias antes de ser martirizada. Outros foram mortos na mesma circunstância, mas a narração salienta o martírio das duas mulheres. "Brilhou o dia da vitória deles. Saíram da prib são e foram ao anfiteatro como se fossem ao céu, radiantes de alegria e formosos de rosto, como se estivessem emocionados não pelo temor, mas pelo gozo. Perpétua seguia com o rosto ilu­ minado e a passo tranqüilo, como uma matrona de Cristo, como uma regalona de Deus, obrigando a todos pela força do olhar a baixar os olhos. Felicida:de ia também feliz de se ter saído bem d.o parto para poder lutar contra as feras, passando de sangue a sangue, da parteira para o gladiador, para lavar-se depois do parto com um segundo batismo. Quando chegaram à porta do anfiteatro, os sacristãos dos sacerdotes de Saturno e as mulheres sacerdotisas de Ceres qui­ seram forçá-las a vestir-se de homens. Mas a nobre constância das mártires rejeitou. isso até o último momento. Justificavam a razão: 'Viemos aqui de nossa libérrima vontade, a fim de que não fosse violada nossa liberdade. Se entregamos a nossa alma, é justamente para não ter de fazer nada semelhante. rral foi o nosso acordo com vocês'. O tribuno :reconheceu a sua injustiça e permitiu que seguissem como estavam vestidas. Perpétua ca_nta­ ya hinos pisando já na cabeça do egípcio. Revocato, Saturnino e Saturo provocavam o público que os olhava. Quando chega­ ram diante da tribuna de Hilariano, com sinais e gestos come­ çaram a dizer-lhe: 'Você nos julga agora. Você serájulgado por Deus' 5• Por sua vez, o relato dos mártires de Lyon (177) é, segun­ do E. Renan, uma obra literária -ó.nica na literatura univ�:r­ sal. Os mártires aoarecem como �personalidades ao mesmo tem.. po tão humanas, tão simples, tão inocentes, como a jovem 50 martírio àe Perpétua e Felicidade estâ narrado no livro .4ctas de los mártires, pp. 435-436.

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Blandina de 16 anos de idade, e, por outro lado, de uma cora­ gem serena, totalmente donos de si mesmos, decididos a não ceder e a manter até o fim a condenação de uma cultura desu­ mana, mentirosa, imoral. Exemplos de homens e mulheres, anciãos, adultos e jovens de uma qualidade humana sem par. Eram pessoas comuns na sociedade, nada tinham de extraor­ dinário a não ser a sua fé. Na história ulterior do cristianismo sempre houve márti­ res, embora muito menos durante todos os séculos de cristan­ dade. Neste século XX reapareceu o martírio- desta vez numa quantidade infinitamente superior. Houve muitos mártires anônimos. Sobretudo os perseguidores de hoje não querem mar� tfrios públicos. Querem esconder o·martírio. De qualquer maneira, as Atas dos mártires dos primeiros séculos constituem o mais brilhante e incomparável documen­ to de liberdade. Os mártires foram pessoas totalmente livres de qualquer constrangimento, livres porque agiram a partir da sua fé, livres porque tiveram uma força que somente pode pro­ ceder da liberdade de Deus. Os mártires ensinaram à Igreja o dever da desobediência. Já havia o exemplo de Cristo, e, anteriormente, o exemplo dos profetas e o testemunho do livro de Daniel. Porém, uma coisa é ler nos livros e outra coisa é ver a realidade dentro do próprio povo. AB comunidades dos primeiros séculos viram com os pró� prios olhos de que maneira é possível desafiar o poder quase sobrenatural do império e afirmar a própria convicção, afirmar a verdade contra o erro. A morte dos mártires libertou as comu­ nidades cristãs do medo e da covardia, que foram o 1ote da hu­ rnanida.de .desde as origens. O século XX foi um novo século de mártires. Os mártires da .América Latina também libertaram a Igreja do .medo e da covardia. Durante séculos os católicos, clérigos e leigos cede­ ram. ante a arrogância do poder militar. Ficaram calados ou legitimaram todos os atos de dominação. Os mártires rompe­ ram a barreira da covardia. Doravante a Igreja latino-america­ na também está firmeme1Jte construída sobre as tumbas dos mártires.

7'7

.2. Liberdade na vida diária Como sempre, a vida diária da Igreja não é escrita:; Somen­ te os acontecimentos extraordinários, os que marcam ruptura, dãe lugar a documentos. "Os povos felizes não têm história." A vida de cada dia não é escrita e os crimes são mais comenta­ dos do que as virtudes de rotina cotidiana. É normal que seja assim. Isso vale mais·ainda para os tempos remotos.Hoje muitas pessoas escrevem e deixam documentos. Naquele tempo, o cos­ tume de escrever era.raridade. No entanto, foram conservados alguns documentos. ·Existe um documento que-procede de Alexandria (Egito), mais ou menos do ano 200, atribuído por alguns a Panteno, fundador da Escola de Alexandria, mestre de Clemente que, por sua vez, foi o mestre de Orígenes- a maior glória da Escola de:.AJexandria e o maior gênio intelectual da his­ tória do cristianismo até hoje. O texto é simples e percuciente. Não se encontra nele a palavra liberdade, mas a liberdade está onipresente. Citamos, em seguida, o capítulo 5, o mais conhecido. "Os cristãos não se distinguem das outras pessoas nem pelo país, nem pela linguagem, nem pelas roupas. Não residem em cidades que lhes sejam próprias, não usam linguajar estranho, o seu gênero de '.vida nada tem de particular. A sua doutrina não foi descobertá pela imaginação nem pelos sonhos de espíri­ tos agitados. Não se fazem os defensores de doutrinas huma­ nas como tantos outros. Misturam-se nas cidades gregas e bár­ baras conforme a sorte de cada um. Conformam-se com os usos locais no que se refere às roupas, comida, modo de viver, ainda que manifestando as leis extraordi!}ª;das.. e realmente parado" xais da sua rg,Jllil>Jica..espirit.mil. Residem cadl!.11.nU.1ª.§.llil própria pátria,.mas como estran.;. geiros residen� Cumprem todos-Õs-devere·s de cidadãos e su­ portam todos os cargos como estrangeiros. Toda terra estran­ geira é para eles uma pátria e toda pátria uma terra estrangeira. Casam como todo o mundo. Têm filhos, mas não os abandonam recém-nascidos. Compartilham todos·a mesma.mesa, mas.não a mesma cama. Estão na carne, mas não vivem segundo a car­ ne. Passam a vida na terra, mas são cidadãos do céu. Obede-

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cem às leis estabelecidas e o seu modo de viver é inai$._.R_erfeito do que as l§!is ... A.mam todos homens e todos os persegú.em. São desconhecidos, condenados, mortos e assim ganham a vida. São pobres e enriquecem muitos. Carecem de tudo e-.ê_upera­ bundam em todas as coisas. São desprezados e acham sua gló� ria neste desprezo. São caluniados, mas se sentem justificados; insultados, mas abençoam. São ultrajados, mas eles honram. Fazendo o puro bem, são castigados como criminosos; Castiga­ dos, estão na alegria como estivessem nascendo;pa:fâ. a vida. Os judeus fazem-lhes a guerra e os gregos os perseguem, e os que os odeiam não saberiam dizer a razão do seu ódio''l?. -•• Esse texto esclarece luminosamente o paradoxo do cristia­ nismo: os cristãos vivem inseridos completamente neste-mun­ do e participam da vida de todos. No entanto, não se identifi­ cam completamente com a sociedade. Permanecem a distância, uma distância que permite julgar. Vivem na sociedade, mas não se integram, não se . sentem peças do conjunto. Preservam a capacidade de julgar. Assim como o martírio, �_yida diária afir­ ma a prioridade da consciência pessoal. Cada pessoa é superior à sociedade. Podejulgar, condenar e desobedecer. 'Não está na dependência da sociedade. Aqui também há uma novidade. Na própria cidade grega democrática e supôstamente li­ vre, o cidadão deve submeter•se_ à éidade. O próprio Sócrates submete-se e aceita a condenação à morte, sabendo que era in­ justa. SomenteAntígona revolta-se contra a cidade. Sendo mu­ lher, não é cidadã. Protesta desobedecendo. É a Sua maneiráde protestar contra a sua exclusão da cidade como mulher. O cristão é superior à cidade.·Ele mesmo julga: serve quando julga que pode·servir e desobedece quando julga que deve deso".' bedecer. Fato novo no mundodos impérios antigos,;:em que cada desobediência é_ castigada ·com a pena de morte. ; . · · Coma cristandade :tudo mudou. Então o confbrmismo tor­ nou-se a regra e a obediência a virtude suprema. Também já não se aplicou mais âos cristãos a série de paradoxôs aqui enu­ merados: morte-vida, calúnia-justiça, pobre-rico, insultados-aben-

os

se

6Cf. A Diognete, Sources chrétiennes, Cerf, Paris, 1951, pp. 63-65.

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çoan1 etc. Essas oposições são paulinas e mostram o preço da distância crítica dos cristãos. Hoje, de fato, as Igrejas pentecostais são as qu.e mais man­ têm a distância crítica. Houve uma realização ou um redescobri� mento desta distância na Ig.ceja dos pobres e na Igreja da liberta­ ção. Desde então parece que a maioria da instituição quer voltar à tranqüilidade da crista."il.dade. Cuidado! O perigo é grande! Com efeito, hoje a cristandade já :não existe na. América Latina. A nova cultura desce como avalancha dos Estados Uni­ dos. J"á assimilou quase todas as classes médias e fornece os critérios de muitos - mesmo no mundo popular. Os pentecostais resistem. As comunidades eclesiais de base :resistem, quando são fiéis à sua origem. O resto fica entregue à invasão da nova cultura. Ora, a nova cultura não adota princípios cristãos. Doravante ela parte do ':çw..�..fill.§Q:i Procura a média de comportamento da população ou simplesmente busca o mínimo com.um a todos a sua base é o máximo denominador comum7 • Este denomina� dor comum não coincide com a tradição cristã, nem católica nem protestante. O consenso tira elementos de todas as religiões e filosofias, adota preferentemente ideologias mais universais e altamente abstratas. Apresenta muitos pontos em comum com a Nova Era. Parece que a Nova Era está destinada a desempe­ nhar o papel que foi o da maçonaria na modernidade. Os cristãos acostumados ao Ç...Q!l.W?m.:i.smo social deixam-se aspirar inconscientemente pela consenso. Perdem toda a cons­ ciência de distância crítica. Nos primeiros séculos, as comunidades definem um corte: rejeitam a mitologia e suspeitam, por isso, d.e toda a lite:ratura grega e latina; :rejeitam os jogos de circo e o teatro por causa da violência, já que no circo seres hum.anos são mortos pelas feras, pelos gladiadores ou por meio de outros jogos que terminam com a morte do der.cotado. No teatro praticai--n-se todas as for­ mas de imoralidade, sendo proibido aos cristãos. Por sinal, mui­ tas vezes os próprios cristãos são jogados no circo ou ricliculari7IV.lichel Schooyans, L'Éuangile face au désordre mond.ial, Fayard, Pa.--is, 1997, p. 77.

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zados publicamente nas festas pagãs. A negação .de participa­ ção manifesta publicamente a distância crítica; Os cristãos não aceitam qualquer coisa por confürmismo. A sua atitude rompe com a cultura estabelecida. Eles mesmos participam da vida social, porém formam também uma cultura dissidente nas suas :reuniões e celebrações.

.

'

O cristianismo nasceu e se desenvolveu em socie.dadE;is e culturas radicalmente patriarcais 8 • A inculturação não:podia deixar de produzir os efeítos habituais. A medida que a in- • culturação foi profunda, deu à lg-.ceja um caráter patriarcal. A teologia feminista explicitou a evolução que vai das origens do cristianismo até a Igreja totalmente patriarcal já no século III. Jesus manifestou muita liberdade em relação às institui­ ções judaicas. Iniciou um. movimento missionário em que ho­ mens e mulheres colaboravam com espontaneidade, e aparen­ temente a sua conduta de aceitar mulheres para acompanhá-lo escandalizou. Aceitava mulheres fora da sua casa, fora da fa­ mília, mulheres que aparentemente dispunham da sua vida e andavam livremente pelo mundo 9 • Já que Jesus prescinde de todas as leis judaicas, as discri­ minações caem. Homens e mulheres são igualmente discípulos ou discípulas. Parece que, nos primeiros tempos, o mo-vfrhento missionário que nasceu dele continuou sem discriminação. Paulo enuncia o princípio que, para ele, condensa a novi­ dade do evangelho em Gl 3,28: "Não há judeu, nem grego, não - '1· . ' . :nao na, uomem nem muIh1er" , pr1nc1p10 ha, escravo, nem �1vre, fulgurante que destrói virtualmente todas as estruturas sociais estabelecidas 1º "I,..

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8Cf. E. Schüssler-Fiorenza, En mémoire d'elle, Cerf, Paris, 1986, pp. 164-171. Este . iivro foi publicado no Brasil por Paulus Editora sob o título As·•origens cristãs a partir

damulher.

9Cf. E. Schüssler-Fiorenza, o. e., pp. 200-232. 1ºCf. E. Schüssler-Fiorenza, o. e., pp. 291-350.

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Claro que um princípio tão revolucionário não poderia ter conseqüências imediatas radicais. Estava destinado a agir como fermento, penetrando pouco a pouco nas mentalidades e nas estruturas. · Nem o próprio Paulo foi sempre conseqüente com o seu princípio, menos ainda os seus discípulos ou os cristãos que in­ vocaram o seu nome. No entanto, Paulo teve muitos colabora­ dores entre os seus discípulos, missionários como ele, e entre eles houve muitas mulheres 11 • Os escritos joaninos mostram que ainda no início do se­ gundo século há comunidades sem hierarquia em que a influên­ cia das mulheres é determinante: daí o papel de Marta, Maria, Maria Madalena no quarto evangelho. Maria Madalena é particularmente destacada pelo seu papel na ressurreição de Jesus. Até hoje não há documentos dando testemunho da passa­ gem entre os Doze e os bispos. Como nasceu o tema da sucessão apostólica reservada aos bispos exclusivamente? A teologia tra­ dicional, ocidental ou oriental, passa de lado, mas não explica nada. O que se sabe é que o ministério presbiteral e episcopal se estabeleceu pouco a pouco e parece universal na Igreja no final do segundo século. Esse movimento coincide com a res­ tauração do linguajar sacerdotal, com a instauração de uma disciplina maior e com a luta contra as primeiras heresias, de tipo gnóstico; Coincide também com a redução das mulheres ao silêncio. O ministério profético, importante no primeiro século, ten­ de a desaparecer no segundo século. Ora, mulheres entravam também no profetismo. Pouco a pouco todos os lugares de lide­ rança foram retirados das mulheres. Permaneceu uina hierar­ quia que, sozinha, governa as comunidades e é exclusivamente masculina. Como aconteceu isso? Não o sabemos. Mas foium dos motivos da reintrodução de elementos do judaísmo na Igre­ ja: lei, sacrificio, sacerdócio, templo, sacralização do tempo, do espaço, de objetos, discriminação das mulheres. 11Cf. E. Schüssler-Fiorenza, o. e., pp. 233-290.

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Os poucos documentos que chegaram até nós parecem in­ sinuar que a presença de mulheres era muito mais forte nas seitas gnósticas e, certamente, no montanismo. A rejeição das mulheres não seria também conseqüência da condenação das heresias, que- se torna mais vigorosa na segunda metade do 22 século com S. Irineu? Isso não parece ser impossível. O montanismo exaltava o Espírito Santo e os seus dons. Não teria sido a única vez que as mulheres encontrariam na teologia do Espírito Santo uma legitimação e argumentos para a sua promoção: E cada época em que a Igreja se féchou ao Espírito Santo coincidiu também com maior repressão às mu­ lheres. Em todo o caso, no segundo século os fenômenos espiri­ tuais desapareceram da Igreja, provavelmente porque foram reprimidos. Continuaram ainda em certas seitas. Estas, porém, acabaram desaparecendo. Sem uma estrutura forte, os movi­ mentos religiosos novos duram pouco. Claro que, no segundo século, a preocupação dominante da hierarquia foi "durar". Já não se esperava mais a vinda iminente de Jesus. ;Entrando no tempo, a Igreja queria preparar-se para durar. E eliminou tudo o que podia ameaçar a duração. Com isso, a liberdade sofreu, pois o princípio de Gl 3,28 foi atropelado. No entanto, o. essencial permaneceu: o batismo é igual para todos. A atividade cristã é de todos. O :fato é que as mulheres entraram na Igreja em maior número do .que os ho­ mens. Celso ridicularizava a Igreja cristã por ser feita de mu­ lheres e de escravos. Se as mulheres entraram tão numerosas, com certeza é porque aí encontraram vantagens;· /

"Não há mais escravo ri.erri·livre", dizia Paulo :em Gl 3,28. E Jesus tinha proclamado o jubileu (Lc 4,19). O jubileu era a extinção das• dívidas e a libertação dos escravos. Os escravos judeus deviam ser emancipados no ano sabático; Os escravos não judeus deviam ser liberados no 502 ano - o ano do jubileu. Essa proclamação por Deus tornava precária toda a instituição

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da escravidão. Porém, não fazia referência aos meios para a sua aplicação. O Novo Testamento e os documentos da Igreja dos primei­ ros séculos mostram-nos a atitude dos cristãos em face doses­ cravos e de que maneira se viveu o anfu---icio da libertação dos es­ cravos. A tese fundamental está na breve epístola a Filemon. É vérdade que se trata de uma carta pessoal para responder a um caso pessoal. No entanto, Paulo via no caso pessoal a opor­ tunidade de explicitar a novidade cristã em relação aos escravos. O que aparece na epístola a Filemon é que na Igreja não há escravo nem livre. Todos são seres humanos de pleno direito; todos são livres e todos são iguais. A Igreja é um povo novo, o novo Israel espalhado pelo mundo int�iro. Este povo não admite escravos: todos são irmãos. Paulo rejeita o direito romano e a fundamentação desse direito. Não aceita que o esc-.ravo seja obje­ to sem direitos, que tenha perdido a qualidade de ser humano. Não aceita a morte civil.do escravo. Na Igreja o escravo é cidadão de pleno direito. Houve presbíteros, bispos e até papas escravos. Filemon era cristão amigo de Paulo - que o tinha conver­ tido. Onésimo era escravo de Filemon e fügiu. Acontece que Onésimo conheceu Paulo e foi também convertido por ele. Ago­ ra Paulo está preso e Onésimo também - am.bos presos por Cristo. Para Paulo, Onésimo é um filho assim como Filemon. Mas, agora, o que fazer? Um escravo fugitivo deve ser restituí­ do ao seu dono. Deixar Onésimo andar como fugitivo pelos ca­ minhos, condenado a viver uma vida clandestina como vaga• bundo até morrer de fome? Há outra solução. Filemon é cristão e Onésimo também, portanto el�s são agora irmãos. Paulo man•• da Onésimo para Filemon, não como escravo, mas como irmão, pedindo-lhe que Onésimo seja ttatado como a ele próprio, Pau.­ lo - poís Filemon deve muito a Paulo. Paulo transfere a dívi­ da, fazendo com que Onésimo se torne credor e Filemon o deve­ dor do seu escravo. O que Paulo pretende é mudar o relacionamento entre amos e escravos. Ensina a tratar os escravos como sere_s livi·es -- e, al'lsi.m., educá-los para a liberdade. Queria fazer da Igreja um povo - minoritário, mas significativo - profético, em que se

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vivesse uma relação de irmãos, em que não existisse mais a relação que valia na sociedade romana, relação amo-escravo. · Freqüentemente comentadores manifestaram estranheza não somente diante dessa epístola, mas sobretudo diante dos textos ditos códigos domésticos - embora estes já não sejam propriamente paulinos, e sim de discípulos de Paulo: Cl 3,22-25; Ef 6,5-9. Esses e outros textos do Novo Testamento, assim como os textos da Igreja primitiva, mostram que os cristãos não incen­ tivaram os escravos à revolta, não os convidaram para fugir, não lutaram para abolir a escravidão das leis romanas, n'ão cón• denaram os que tinham escravos nem proibiram aos cristãos ter escravos. Ao invés disso, há textos mostrando que muitos cristãos tinham também escravos. Às vezes se responde que naquele tempo a escravidão es� tava tão enraizada que não adianta nem sequei· considerar o problema. Também os filósofos justificavam a escravidão - por razões de natureza humana. No entanto, justamente naquele tempo a escravidão estava sendo discutida. Já não se aceitava comumente que os escravos não fossem seres humanos. Na prá­ tica, recebiam progressivamente vários direitos: de casar e ter filhos, de trabaihar para ganhar dinheiro, de acumuiar um ca­ pital. Certos escravos chegavan1 a ter escravos eies próprios. Apesar disso, os· cristãos não lançaram nenhum grande projeto de emancipação dos escravos. No entanto, estava claro para eles que os escravos eram seres humanos iguais- e pessoas d.e ve:rdade 12 • Porém a estra­ tégia à.dotada consistiu em mudar as mentalidades. Cristãos tratavam os seus escravos como membros da família. Emanci­ pavam-nos com mais facilidade e mais freqüência. De fato, no império cristão a escravidão diminuiu muito e as leis favoreceram cada vez mais o movimento de emancipação. A idéia cristã era a de que provocar, por meios políticos, uma emancipação geral- como no Brasil em 1888_. _. -teria como 12Cf. Jacques Ellul, Les combàts de la liberté, t. 3, Le Centuriori.-Labor et fides, Paris-Geneve, 1984, pp. 144-167.

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único resultado jogar na rua grande contingente de escravos sem meios de subsistência, condenados a morrer de fome. Ha­ via multidões de escravos fugitivos que vagavam errantes pe­ las cidades ou pelos campos, procurando fugir da polícia, e vi­ viàm miseravelmente. Naquele tempo não havia quilombos possíveis - aquela região não tinha espaço para isso. Era preciso mudar a mentalidade, dando oportunidade aos escravos de aprender profissões que lhes permitissem sobrevi­ ver. Havia necessidade de mudar a mentalidade dos donos e também dos escravos, que podiam confundir a liberdade com a vagabundagem 1�. . ..·· .· Nos primeiros séculos, não há dúvida de que a ação da Igreja contribuiu poderosamente para a extinção progressiva da escravidão - notadamente a partir do século V. Claro que o recrutamento foi aos poucos se esgotando, quando os exérci­ tos romanos já não tinham força suficiente para vencer nas guerras e aprisionar escravos 14 • Porém, ainfluência da Igreja valeu, porque fez pressão sobre os imperadores e conseguiu leis mais favoráveis. O argumento marxista segundo o qual a escravidão teria diminuído porque outras formas de trabalho teriam sido mais rentáveis não pro�ede. Não se oferece ne­ nhuma documentação histórica para comprovar que o traba­ lho livre fosse mais vantajoso do que. o trabalh assalariado para os patrões do século Vemrelaçãdàospâtrõês dos século Ia IV. Aí ficou bem explícito que o realismo forma parte da atua­ ção cristã.Hoje estamos acostumados.a.lima culturaem que os discursos são radicais· e extremistas ná defesa dos direitos individuais. Porém, na hora da prática,.· quando se trata de tocar em interesses econômicos ou de prestígio;tudo é diferen­ te. Naqtielestempos a.Jgreja era formada sobretudo de pobres, e os pobres não inventam discursos irreais sem conexão com a práti�a .. 13Cf. Jacques Ellu.l, Les combats. de la liberté, t. 3, pp. 1151�156. 14Cf. Jean Gaudemet, L'Eglise dans l'Empiré romain (IVe-¼ siecle), Sirey, Paris, 1958, pp. 564-568.

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!io Doutrinas e heresiâs: defesa teórica da liberdade O maior perigo do primeiro milênio foi o intelectualismo da cultura helenística. A Igreja estava muito consciente do pe­ rigo e lutou permanenteménte contra ele. Porém não basta es­ tar consciente do perigo para não cair nele. A Igreja fez tudo para evitar o intelectualismo, mas não pôde evitá-lo. Foi pene­ trada ineludivelmente pelo ar que respirava� A Igreja do primeiro milênio não podia deixar de ser fiel ao anúncio da liberdade.Não 'podia renegar ou ignorar o que esta­ va na Bíblia. No entanto, não conseguiu valoriza".!:· a liberdade e, dessa maneira, não pôde ser fiel ao evangelho da liberdade plenamente consciente e vivid�. Essa observação vale sobretudo para as classes superiores na Igreja. Os camponeses. permaneceram impermeáveis aos movi.­ mentos intelectuais.Amaiotianem sequer entendia o grego. Nem sabiam ler, nem tinham acesso aos livros. No máximo podiam con­ tar com um.a Bíblia na igreja e um ministro que sabia ler a Bíblia. Porém, no clero e entre os monges, houve a penetração da cultura helenística e uma profunda inculturação. Ainculturação sempre é problema. Por isso todos os problemas importantes da Igreja vêm das classes letradas, . as que são mais sensíveis à cultura. .. Na cultura grega daquele tempo - muito di.stante da cul­ tura dos séculos de ouro, IV e. V - o eixo é o conhecimento� A influência. do platonismo foi decisiva. Platão, literalmente, ar­ rasou. O valor da vida é conhecer. Ora, o caminho para ó conhe­ cimento são as idéias. Segundo Platão, as idéias descem do mundo superior� São como um presénte do céu para os .·pobres homens prisioneiros.do corpó. No fundódessaprisão, os seres humanos podem ver o céu se abrir e dar-lhes as idéias que lhes permitem conhecer toda a realidade, toda a verdade da vida e do mundo, a verdade que a experíência da vida diária oculta. Por conseguin­ te, o caminho;.do conhecimento é afastar .;.se do mundo sensível, recolher-se, abrir-se para a revelação das idéias. 'É verdade que Aristóteles corrigiu essa teoria do conhecimento e introduziu o 87

papel da experiência sensível no conhecimento e na formação das idéias. No entanto., o essencial permanece, porque a expe­ riência somente fornece a matéria do conhecimento e o verda­ deiro conhecimento é função do intellectu.s agens, uma potência de conhecer pela qual o ser humano recebe algo dos entes espiri­ tuais e se assemelha a eles. Se o valor supremo e o fim da vida humana é conhecer e subir ilimitadamente a via do conhecimento - ideal de vida para filósofos ou cientistas- o que sobra para a liberdade? Na verdade, para Platão, se há algo de liberdade no ente humano, somente pode ser algo negativo. Platão entende a vida como aspiração pela verdade, para a verdade. A pessoa fica atraí­ da e iluminada pela verdade. Se alguém não se deixa atrair, é por ignorância. Convém dissipar tai ignorância, afastar os obs­ táculos sensíveis para que a mente possa aceitar a iuz e cami­ nhar na luz da verdade. No mundo g-.cego o mundo é ordem, submissão a leis eter­ nas. Somente vale a ordem eterna das coisas, e as pessoas de• vem apenas aceitar o seu lugar nesta ordem. Tudo o que é con­ tingente ou particular é sem valor. Exatamente o contrário do pensamento atual, em que somente vale o contingente, o indi• vidual, o específico, o diferente. Na cultura atual, somente vale a exceção, e toda exceção tem direito. Ao invés, tudo o que é universal e permanente, tudo o que obedece a leis constantes, é dominação e alienação. Para os gregos, foi o contrário. O que valia era a necessidade, e não a liberdade. Assim como na me­ cânica clássica. A Igreja teve de enfrentar esse intelectuaiismo grego so­ bretudo em dois itens: a doutrina da criação e o livre�arbítrio. Na Bíblia, a doutrina da criação tem por objetivo afirmar a lib�rdade de Deus. Pois Javé não é parte do universo, não é parte da ordem das coisas. Está acima das coisas, acima da ordem estabelecida por ele. Deus criou por um ato livre, como expressão de amor, como liv.ce manifestação da sua plenitude de vida. Não criou por necessidade, como diziam Aristóteles e o conjunto da filosofia grega ulterior - como opina também a maioria dos nossos contemporâneos, que também entendem

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Deus como parte do universo, aquele que envolve e unifica tudo, a energia fundamental. A Bíblia é incompatível com tais idéias porque a liberdade é justamente o atributo fundamental de Deus, o que o diferencia de todos os deuses das religiões pagãs. A luta de Israel durante 3.000 anos foi contra toda a influência de panteísmo, para manter a liberdade de Javé. Daí a insistên­ cia da Igreja e dos seus doutores. O tema da criação foi o mais desenvolvido nos primeiros séculos, porque o mais ameaçado 15 • O segundo tema foi o do livre-arbítrio, isto é, a liberdade de escolher. O ser humano escolhe livremente entre os bens. Não é determinado a agir de uma ou outra maneira. De modo parl;icular, escolhe livremente entre o bem e o mal, e, por conseguinte, tem a responsabilidade dos seus atos. Sem livre-arbítrio as pessoas não seriam responsáveis. Ora, não há nada que a Bíblia afirme com mais força do que a responsabilidade dos atos humanos. Por isso os Santos Padres, e depois deles a teologia católica - em todas as suas etapas, :reafirmaram constantemente o livre-arbítrio16 • Acontece que, para muitos cristãos, a doutrina do livre-ar­ bítrio esgotava toda a doutrina bíblica da liberdade. Assim pen­ sava também Leão XIII na encíclica Libertas. Ora, a liberdade do Novo Testamento vai muito mais longe e o que lhe é mais específi­ co ficou escondido. A doutrina do livre-arbítrio ocupou o seu lugar. A doutrina do livre-arbítrio não limitava o intelectualismo. . .. Permitia manter o conhecimento como valor supremo da exis­ tência humana e a ascensão do conhecimento para Deus como caminho de salvação. A cada passo fazia-se apelo ao livre-arbí­ trio para que cada um permanecesse no bem, isto é, no seu lugar na ordem universal, fiel à sua natureza e ao destino que a ordem universal lhe assinalou. A escolha era entre obedecer e não obe­ decer, como se esse fosse o grande dilema da vida humana. De fato, os catecismos contentaram-se com ensinar a doutrina do livre-arbítrio de acordo com a formulação que lhe deram os teólo� gos e silenciaram a liberdade segundo o Novo Testamento. 15Gh. Lafont, Histoire théologique de l'Eglise caiholique, Cerf, Paris, 1994, pp. 56-58. 16Cf. Jean Danielou, Message évangélique et Culture he_llénistique au:1: ile et llle siecles, Desclée, Tournai, 1961, pp. 37-39.

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A orientação dada ao pensamento cristão no primeiro mi­ lênio teve graves conseqüências que perduram até hoje. Pois não somente permaneceram nas Igrejas orientais, mas entra­ ram também na Igreja ocidental por intermédio da patrística grega e mesmo dos concílios ecumênicos. Além disso, as tendências da cultura grega estiveram na origem e na base de praticamente todas as heresias do primei­ ro milênio e afastaram boa parte dos cristãos da Igreja, nota­ damente a parte mais intelectual, aquela que fomenta todas as heresias e os cismas. A gnose foi justamente o movimento que procurou introduzir o cristianismo nas categorias da cultura helenística. Procuraram adaptar o vocabulário cristão às enti­ dades espirituais que supostamente constituíam a estrutura do universo. No fundo, deram uma interpretação cosmológica do cristianismo. Fizeram um cristianismo cosmocêntrico, as­ sim como sucede nos movimentos religiosos atuais. Ora, o cris­ tianismo bíblico é antropocêntrico e nunca poderá voltar a ser cosmocêntrico. Para a Bíblia, cosmocêntricas eram todas as re­ ligiões dos impérios orientais. Eram religiões de dominação e de submissão a uma ordem imperial, já que império era a tra­ dução terrestre da ordem universal. Mesmo na Igreja ortodoxa, o cristianismo adquiriu uma tonalidade intelectual - apesar de toda a vontade contrária. A mística foi de conhecimento antes do que de prática. A con­ templação superou a ação: gerou-se o tema da superioridade · da vida contemplativa, tão diferente das doutrinas do Novo Testamento. Além disso, a Igreja oriental acostumou-se a exagerar o valor dos conceitos. Para Platão e Aristóteles, os conceitos são a imagem da realidade. Os gregos chegaram a considerar que o que se diz nos conceitos é a própria realidade. Por. isso as dis- . cussões de conceitos eram tão sérias. Quem não aceitava o con­ ceito parecia negar a realidade. Cada um achava que os seus conceitos eram a tradução exatá da verdade, eram a verdade. Quem negava os conceitos era herege. Daí as intermináveis dis­ cussões que não se confinaram somente no ambiente dos inte­ lectuais, mas envolviam Igrejas inteiras.

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As discussões de conceitos levaram a condenações recípro� cas: cada um acusava os outros de serem hereges. Houve dis­ cussões intermináveis que hoje em dia nos parecem discussões de puras palavras. Naquele tempo houve guerras, mortes, cis­ mas, excomunhões recíprocas por problemas de palavras. Infelizmente, esse conceitualismo que procede dos filóso­ fos gregos manteve-se na Igreja ocidental e gerou a escolástica. Criou-se uma tendência para identificar o evangelho cristão com uma formulação conceitua!. Como.jamais,dois teólogos estão de acordo, o povo cristão fica desnorteado e não· sabe mais, o que pensar. Na incerteza, apega-se à maior autoridade: quer pen­ sar como pensa o papa e assim se despede de todos os teólogos e intelectuais. O conceitualismo teológico levou finalmente, des­ de a Idade Média, a uma rejeição total da teologia. Os escritos de Pascal foram o eco do desprezo generalizado dbs leigos pela teologia desde o século XVII e já antes. A ciência· grega, que é ciência das idéias universais e eter­ nas, não conhece a história nem o tempo. A história não é obje­ to de ciência porque trata de fatos únicos. Com a aplicação do conceito de ciência, a teologia cristã tornou-se incapaz de ela­ borar uma concepção do Espírito Santo na história. Também a teologia teve muita dificuldade para entender fatos novos, mu­ danças nos comportamentos. A ciência grega era feita para en• tender um mundo imutável. Não sabia interpretar a mudança. Ora, o cristianismo é essencialmente mudança. É:cohver• são e transformação do mundo. A ciência grega era instrumen­ to inadequado para expressar o cristianismo. Endureceu a Igreja e todas as suas instituições, tornou o cristianismo pouco aco­ lhedor das novidades porque não cabia na sua estrutura men• ,.�al. Quantas falhas provindas do excesso de inculturação!

6. O monaquismo A grande realização histórica do cristianismo no primeiro milênio foi _o monaquismo. Claro que a vida monástica conti­ nua durante o segundo milênio e existe também no Ocidente. No entanto, no segundo milênio já aparecem outras manifesta-

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ções históricas. No primeiro milênio o monaquismo é a grande realidade, não apenas no Oriente, que é o seu centro, mas tam­ bém no Ocidente, onde o monaquismo oriental penetrou e ge­ rou modelos específicos (monaquismo beneditino, irlandês, in� glês, cluniacense, cisterciense e de outras famílias numerica­ mente menos importantes). No Novo Testamento, nada permitia prever a extraordiná­ ria expansão da vida monástica. De fato, nos primeiros séculos não houve nada bem particular a esse respeito e, de repente, no século IV, produz-se uma explosão. Milhares de homens e de mulheres ingressaram na vida monástica. Também qualitativamente a vida monástica destacou-se no Oriente e no Ocidente. Quase todos os escritos procedem de monges. Quase toda a teologia cristã do primeiro milênio vem dos mosteiros. Os bispos são monges. Os grandes movimentos religiosos e as lutas religiosas foram animados por monges. Por exemplo, a luta. pelas imagens contra o iconoclasmo. O monaquismo aparentemente nasceu no Egito e rapfda-• mente espalhou-se pela Palestina, Síria, Mesopotâmia e Asia Menor. Ninguém até agora pôde explicar o surgimento dessa forma de vida. Em muitos elementos é parecida com o budis­ mo. Seria c9mo uma expressão cristã de budismo. O p:roblema é saber por onde e de que maneira o budismo teria chegado ao Egito. O monaquismo é caminho pa:ra a liberdade. Os monges · eram geralmente trabalhadores manuais sem nenhuma forma­ ção literária. Com certeza, a maioria não sabia nem ler nem escrever. Retiraram-se do mundo habitado do campo ou da ci­ dade e moraram em lugares desertos, seja no sentido próprio, seja no sentido de inabitado. Adotaram o modo de viver solitá­ rio, morando em casinhas pequenas, uns perto dos outros. Reu­ niam-se uma vez por semana para a eucaristia. Ou, então, for­ mavam monastérios em que viviam em comunidades que po•• diam reunir centenas de monges. Viviam geralmente de artesanato e vendiam no mercado os objetos fabricados por eles. O essencial da sua vida era a. oração, concebida como ascensão da pessoa para Deus.

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Entre os monges, alguns escreveram. Os seus escritos re­ latam a caminhada do monge para a união com Deus. Para. escrever, usavam necessariamente o vocabulário que estava à sua disposição. Freqüentemente usavam palavras empregadas também pelos filósofos. No entanto, não se deve concluir daí que houve influência dos filósofos. Os monges usa.vam as pala­ vTas num sentido específico. Sempre expressaram muita re­ pulsão pelas filosofias em que percebiam desvios perigosos notadamente o orgulho da mente, em lugar de simplicidade da escuta de Deus 17• Os monges não usavam o linguajar de liberdade. Não se fala disso na cultura ambiental naquele momento. Liberdade deixou de ser valor. Porém, consta que todo o seu esforço era movimento para encontrar a liberdade na ascensáo da via mís­ tica. Sentiam-se liv-res das ataduras do mundo exterior e tam­ bém dos desejos e das paixões. A sua vida era combate para alcançar a plena liberdade de tudo o que podia desviar da meta final: o encontro com Deus. Praticavam métodos ascéticos, formavam-se escolas de disciplina do corpo e da mente em que os mestres transmitiam aos discípulos os segredos do caminho que leva à perfeição. Filoxeno de Mabbug, monge sírio, explica como é a chega­ da do monge após uma longa caminhada. "Quando su.a alma viu e se alegrou com. o desastre dos que o odeiam e, pela morte dos seus inimigos, você adquiriu a con­ fiança, você dá uma volta para olhar o monte santo de Deus e começa a andar po:r um lugar que nunca tinha pisado. Você ca• minha pelo mundo espiritual; que é a regra espiritual. Desde então, você consegue ver o q_ue está por cima do mundo, comer o maná espiritual que não comeram os seus pais, beber a água doce e agradável que mana por você 'da pedra que e Cristo', estabelecerdse na nuvem luminosa, ser ilurri.iiiado pela coluna do Espírito, ver o que você não via, ouvir o que não ouvia, aproximar-se dia após dia da montanha santa, de Sião, onde 17Cf. Garcia M. Colomi:>as, El 281-285.

monacato primitivo,

BAC, Madrid, t. II, 1975, pp.

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está a morada da Essência escondida; ser. associado à ciência dos anjos, conhecer as coisas espirituais que estão em cima do mundo. E com a sua talha crescem também o seu vestido e o seu calçado, isto é, com o crescimento diário do homem novo em você, revelam-se· a você os ornamentos de 'suas vestes que é Cristo', e cresce com você 'seu calçado que é preparação do evan­ gelho da paz'. E você penetra nos mistérios do Espírito. Você se move a cada momento com vivos movimentos. A contemplação da ma­ jestade inefável de Deus o arrebata. Pois você saiu de todo o mundo visível e a sua morada está no mundo espiritual. Os que o vêem, vêem somente o seu corpo, enquanto o seu ser humano está escondido nos céus. Você tem as suas delícias em lugares que não têm limites nem números, onde não há figura corporal nem composição material, onde não há mudança de natureza, nem movimento de elementos, onde somente há tranqüilidade e repouso, onde todos os habitantes do lugar, os espirituais com vozes que não estão compostas, cantam o Triságio à Essência adorável, onde você saboreia alguma coisa que não podem sen­ tir os sentidos corporais. Você sabe somente que sente prazer, mas não sabe explicar como é. Em vez das conversas que você tinha com os homens, você fala espiritualmente com Jesus Cristo e suporta os trabalhos sem lhes sentir o peso, porque a experiên­ cia de Cristo não lhe permite senti-lo e o rapto da sua inteligên­ cia em Deus o priva de toda consciência das realidades corpo­ rais. Você vê ou ouve, saboreia, e por todos os sentidos do seu homem interior você percebe o sabor do mundo de .Deus, e con­ forme a sua natureza os seus sentidos o saboreiam espiritual­ mente. As revelações divinas lhe são comunicadas como a Moisés: face a face. Visões e maravilhas recebem-no dentro de um Santo dos Santos edificado por Deus, e não pelo homem. Onde o mistério da glória de Deus vive sobre seus pensamen­ tos. Onde sua ocupação está com as potências espirituais e da ciênc�a divina, não em símbolo, mas em verdade, porque a ciên­ cia vem ao encontro da sua ciência sem nenhum intermediário. Onde não está instalado um altar de ouro de onde sobe um in­ censo corporal, mas um altar espiritual que recebe o incenso

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puro de todos os pensamentos puros e razoáveis. Onde não se põe um vaso de maná em figura; nem onde o alimento que foi dado pelos anjos se conserva; mas onde está instalada a mesa vivente que é o próprio Cristo, a fim de que todos os seus mem­ bros espirituais recebam dele, como os membros do corpo, o ali­ mento espiritual" 18• Chegando ao final da caminhada, o monge alcança a situa­ ção de apatheia, que, muitas vezes, foi traduzida por "indife­ rença", porém esta palavra não traduz corretamente. Apatheia significa tranqüilidade, serenidade de uma pessoa qÚejá não se sente perturbada ou agitada por desejos ou paixões.,A pes­ soa chega a se autocontrolar sem esforço, com toda a tranqüilidade. Não e_stá muito longe do darma budista19• Outro aspecto é a "pureza de coração" - que é o estado em que a pessoa está sem maus pensamentos, sem más inclina­ ções, mas somente sente o desejo de fazer coisas boas, Além dessa etapa estáa gnose, o conhecimento, etapa su­ prema na cultura grega e também na vida monástica. Porém o conhecimento aqui é diferente. O conhecimento monástico ou místico vai' além de todas as idéias: é a iluminação da mente por Deus, o contato quase direto com afonte de toda. luz 2º'. A "gnose", conhecimento místico.direto de Deus, leva aparrhesia. É o estado do paraíso. No paraíso Adão e Eva conversavam fami­ liarmente com Deus. O monge que chegou à etapa final entra nes­ sa mesma familiaridade com Deus. Está além de todo o temor, além da timidez, além das dúvidas21• O monge volta à condição de Adão: livre com Deus, como rei da-criação e filho de Deus. Tal caminho de ascensão espiritual não deixa de dar a pri­ mazia ao intelecto - ainda que seja no final um intelecto sem conceitos. O conhecimento é o fim do amor. A fé leva ao amor e o amor leva ao conhecimento perfeito. Restaura-se a · unidade ·· · perdida entre Deus e o homem 22 • 18Cf. Garcia M. Colombas, o. e., pp. 280�281. 19Cf. Garcia M. Colombas, o.e., pp. 281-287. 2ºCf. Garcia M. Colombas, o. e., pp. 290-296. 21Garcia M. Colombas, o. e:, pp. 296-299. 22Cf. Gh. Lafont, Histoire théologique de l'eglise catholique, pp. 28-29.

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A filosofia grega tinha verdadeira fixação pelo Um. O pro­ blema era como, a partir do múltiplo, chegar ao Um. A paixão pela unidade levou, finalmente, a uma vontade de uniformida­ de. Todos um em Deus! Hoje dá ..se o contrário. Todos acham que a unidade é domi­ nação e alienação. T-.ciunfa a diferença. A maior glória consiste em poder ser diferente de tudo e de todos. Ninguém reconhece que poderia ser iguai a outro. Uma mulher que vai a uma festa, por exemplo, sente a maior vergonha quando encontra outra vestida de maneira exatamente igual à sua-parece-lhe que, com isso, perde a sua personalidade. Naquele tempo todos buscavam o Um e todos tendiam para o mesmo fim. Era influência da cultura grega- que permanece até hoje na Igreja-. porque a ideologia do monismo, tão atacada por J. L. Segundo, viu-se reforçada pela ideologia imperial. Este é outro problema a ser trabalhado no capítulo seguinte.

7. Ausência da política A Igreja do Oriente foi vítima da ilusão constantiniana. Quando os imperadores cristãos resolveram cristianizar o im­ pério inteiro, o primeiro efeito - e o único desejado por eles foi a sacralização do império. O imperador cristão assumiu o papel de chefe visível da Igreja, vigário de Cristo na terra. Je­ sus foi representado como imperador :romano, isto é, bizantino. O imperador reúne os concílios e dita as leis religiosas. No Orien­ te não há distinção entre direito canônico e direito civil. Há um direito só e o imperador faz as leis da Igreja. No início houve patriarcas em Constantinopla que resistiº ram ao imperador e à corte. Assim fizeram Gregório Nazianze­ no e S. João Crisóstomo. Ambos foram expulsos da sua sede episcopal pelo imperador e morreram no exílio. Depois, os pa­ triarcas e demais bispos adotaram cada vez mais a ideologia imperial. Ateoria era esta: o reino de Deus foi fundado na terra com a conversão dos imperadores. A sociedade está transformada, tendo sido divinizada. Não somente o indivíduo é divinizado,

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mas a cristandade toda. A Igreja é a comunidade dos redimidos, a reconciliação acabada. Tratavam o imperador como realmente cristão. Achavam que a política já e:ra cristã e, por isso, deixava de ser desafio ou problema. O imperador encarregava-se da justiça. Era sacrilé­ gio pôr em dúvida as decisões imperiais. Com isso, a Igreja deixou de ser fator de contestação. Não se insurgiu mais contra os imperadores, não criticou, não· de­ nunciou, não procurou atuação social. A terra estava nas mãos do imperador. Quando caiu o império constantinopolitano, apareceram reinos eslavos que assumiram a sucessão. A Igreja russa ofereceu-se para ser a nova Roma- a terceira Roma. Manteve a mesma estrutura: Um pormenor significativo: no dia em que Lenin tomou o poder, assaltando o palácio de verão em Petersburgo, capitai do império russo, os bispos estavamjustamente :reunidos em sínodo. Porém, estavam discutindo problemas de rubricas litúrgicas. O que acontecia na Rússia não parecia importante para eles. ]\To entanto, o advento do leninismo na Rússia iria repercutir terrivelmente no destino da Igreja russa.. Durante todo o milênio - no Oriente durante 2.000 anos - a Igreja achou que o reino prometido estava realizado e não lutou pela liberdade. Claro que bastava abrir os olhos para ver a situação real. Porém a teoria oficial impedia que se partisse da experiência para agir. Os monges orientais ficaram alheios aos problemas sociais e econômicos, ao contrário dos monges do Oci­ ·dente. Houve uma convergência muito grande entre a teologia imperial oficial e a doutrina puramente espirituai dos monges. Há circunstâncias atenuantes. A Igreja e a cristandade do Oriente estavam em primeira linha para receber o choque das conquistas muçulmanas. O Islã acabou conquistando, finalmen­ te, a totalidade do Império romano do Oriente e as Igrejas orien­ tais tiveram de agüentar humilhações e perseguições perma­ nentes. Os povos eslavos viveram em luta permanente contra os turcos muçulmanos e a maioria dos povos orientais da Euro• pa (Rússia, Ucrânia, Sérvia, Bulgária e Romênia) uniram numa luta só a vontade de independência nacional e a liberdade da 97

Igreja cristã oriental. Esse estado de guerra quase permanente não era favorável à conquista de liberdades sociais ou políticas. No entanto, acredita-se que o motivo principal da abstenção tenha sido teológico. Ateoria do império cristão atou as mãos e fechou a boca dos cristãos.

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CAPÍTUL05

SEGUNDO MILÊNIO: LIBERDADE DA: IGREJA

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No segundo milênio·· as_: Igr.ejasi orientais- continuam, mas sem grandes, mudanças. Os povos. eslavos substituem os anti­ gos povos cristãos da Ásia e da África do Norte como represen­ tantes do cristiá.nismo.m:iental. NÓ entanto, não trazemmodifi­ cações importantes. As-Igrejas eslavas são fiéis à herança dos Padres gregos e da espiritualidade monástica. As Igrejas ocidentais, ao invés, crescem. A.herança de Carlos Magno não será um império do . Ocidente unido como o império do Oriente, mas serã uma nova cristandade - bem diferente da cristandade oriental. O caráter mais fundamental dessa cristandade foi, ,e ainda é, a coexistência de dois níveis na Igreja: a Igreja de cima e a Igreja de baixo .com duas histórias paralelas, muitas oposições, ·. muitas lutas e muita incompreensão. A Igreja de cima éo clero. A Igreja de baixo são os leigos. Os monges foram atraídos às fileiras do clero. As religiosas ficaram mais perto dos leigos, com alguns dos privilégios do clero. Por isso dividimos esta temá­ tica em dois capítulos, uma vez. que a concepção da liberdade foi muito diferente na Igreja de cima e na Igreja de baixo. .. • . Na Igreja de cima a liberdade é o que chamaram "libertas ecclesiae", a liberdade da Igreja. Ora, essa é a liberdade do clero na sociedade. Já que.o· clero dispõe de muitos privilégios, em muitos casos a defesa da liberdade. da Igreja coincide com a defesa dos privilégios do clero.. Na Igreja de baixo, ao .invés, o problema da liberdade é a liberdade dentro da Igreja;· O adver­ sário do clero é o Império, os reis, os Estados. O adversârio dos

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leigos é a classe clerical privilegiada. Daí a luta entre essas duas concepções da liberdade. Onde estava o cristianismo? Na segunda metade do milênio começou a expansão da cris­ tandade ocidental: a difusão do cristianismo acompanhou os navios e as expedições coloniais das nações atlânticas. Até o século XIX o povoamento cristão ficou muito limitado e as regiões cristianizadas da América, Ásia, África e Oceania ficaram mui­ to marginais. No século XX houve um crescimento demográfico fantástico fora da Europa. Dessa maneira, a América por si só contém a metade dos cristãos do mundo no final do século XX. O próximo milênio começa sendo americano. Na mesma época cristandade dividiu-se em vários f:rag• mentos. A Igreja católica ficou., de modo geral, com os povos latinos e o protestantismo com os povos germânicos. No entan­ to, as Igrejas protestantes históricas conser,ra:ram a maior par­ te da herança da cristandade medieval. Estão conhecendo ago­ ra problemas semelhantes aos problemas da Igreja católica. A liberdade repercutiu de modo diferente nos países colo­ nizados por nações européias, nos países católicos e nos países protestantes. A estrutura clerical manteve-se em boa parte dos países protestantes históricos - salvo, naturalmente, a posi­ ção ocupada pelo Papa na hierarquia.

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A república romana estava animada por um ideal de liber­ dade, embora realmente livres fossem apenas os membros da aristocracia que faziam a composição do senado. Depois de um período muito confuso - que não nos inte• ressa estudar aqui-, interveio César e, sobretudo, Augusto, o seu herdeiro. Na autobiografia oficial do imperador Augusto, Res gestae divi Augusti, diz-se o seguinte: "Na idade d.e 19 anos, po:r decisão própria e à minha custa, formei um exército com o qual lutei com êxito pela liberdade da república, quando esta estava oprimida pela tirania de uma facção"1• 1Cf. Orlando Patterson, La libertad, p. 357.

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A ideologia imperial repetia sem fim esse tema. Para sal-­ var a república, era preciso assumir poderes de ditador. Para salvar a república, era necessário destruí-Ia� Tema que os fas­ cismos contemporâneos repetiram e os governos militares lati­ no-americanos usaram à vontade, ao afirmarem: "para salvar a democracia é préciso estabelecer a ditadura: a ditadura vai ser a origem da verdadeira democracia". Naquele tempo isso funcionou, pois Augusto fundou um im­ pério que durou 15 sécuios e se prolonga ainda nos continuadores. O que Augusto entendia por "salvar a liberdade da: repú­ blica''? Patterson estima que Augusto enxergava o povo roma­ no como o patrão ou o fazendeiro aos seus escravos ou libertos. Augu.sto é o benfeitor de todos. As instituições supostamente democráticas de Roma, e o Senado de modo particular1 esta­ vam de fato a serviço da aristocracia. Augusto e os seus suces­ sores vão assumir a defesa da plebe contra a aristocracia. Este é o esquema de liberdade que prevaleceu durante dois mil anos e continuará à disposição dos políticos po:r muito tempo ainda. Augusto dava à. plebe segurança contra os abusos 4a B.ris-· tocracia e dava pão e circo. Augusto garante à plebe umajusti� ça imparcial, garante o pão e os jogos. Que mais pode desejar um povo?· Para o povo :romano, aquilo era. a liberdade. O povo não queria mais do que isso. Augu.sto recebia o seu poder do povo. Este poder era anti­ constitucional na tradição :romana. PorémAu.gusto invoca a autoridade do povo: recebeu seu mandato dele. O povo dá-lhe o obsequium, a aclamação. Augusto recebe o seu poder do plêbis- .. cito. Se perder o apoio do povo, perde os fundamentos-do seu. poder. Além disso, o povo romano compõe-se cada vez •mais de pes� soas nascidas no Oriente, onde a tradição exige a divinização 'do rei. O povo deu ao imperador não somente a legitimação, mas também a divinização. Ora, os deuses são liv-res porque fazem o que querem. O imperador torna-se a única pessoa livre do império. Ele é livre e fonte de toda a liberdade. Na realidade, esse povo era escravo do imperador. Porém, ser esc-t'avo do deus-imperador é tido como grande honra. Ser

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escravo do imperador quer dizer ser livre. Quando cresce o po­ der imperial, cresce também o poder do povo. Não foram os imperadores que exigiram ser tratados como deuses. Foi uma exigência do povo que, assim, sendo escravo, participava da ver­ dadeira liberdade. Não percamos de vista esta fórmula: ser es­ cravo do imperador é ser livTe. Ela voltará freqü.entemente na hístória do segundo milênio - e não estará ausente nem se­ quer da Igreja2 • Promover a grandeza do império é crescer na liberdade. A aspiração para a liberdade pode identificar-se com o crescimen­ to do poder ditatorial: cada um se projeta no imperador. É o que Patterson chama de "liberdade soberana"3• Cada romano sente-se mais livre quando ouve dos versos de Virgílio o seu destino: ser livre é reinar, dominar. E essa dominação faz-se pela mediação do imperador: "Ele é a pessoa que nos permite dominar o mundo. Ele é a nossa liberdade". Todos os impérios tiveram esse fundamento. "Lembra-te, romano, de governar os povos sob o seu impé­ rio Este é o teu destino. Tens de impor a vida em paz, defender os que se submetem e esmagar os que levantam a cabeça" (A.en. VI, 852-854) 4 • A conversão dos imperadores ao cristianismo não mudou nem o sistema nem a ideologia. O Deus cristão ocupou o lugar do monoteísmo anterior ou dos deuses romanos, mas o impera­ dor governou da mesma maneira. Na corte imperial o impera� dor é tratado como quase deus descido do céu. A Igreja não conse­ guiu suprimir a "proskynesis", isto é, a grande prostração diante do imperador. Mais tarde os Papas vão receber a mesma "proskynesis". Anualmente festas celebram a glória do impera­ dor, suas vitórias e façanhas: vestes simbólicas, procissões, acla­ mações rituais. No Ocidente, o antigo império romano desapareceu em 476. Mais tarde o Papa Leão III tomou a iniciativa de restaurar o 2Cf. Orlando Patterson, pp. 357-363. 3Cf. Orlando Patterson, La libeJ1_ad, pp. 357,28-29. 4'Tu regere imperio Romane populos momento (Hae tivi erunt artes) pacisque imponere morem, parcere subjectis et debellare superbos".

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império na pessoa de Carlos Magno, rei dos francos5 • Assim nasceu uma realidade nova. Carlos Magno; como imperador, imita o imperador do Oriente: torna-sê o chefe da Igreja. O papa.· prostra-se diante dele como o faz o patriarca de Constantinopla. Por outro lado; quem deu o títuio de imperador ao rei dos fran­ cos foi o papa, e quem coroou o imperador também foi o papa. O papa atribuiu-se um poder superior. Aí c-omeçou uma competiN ção que vai durar um milênio. Quem é o maior: o Papa ou o Imperador? Diante da decadência do papado, sobretudÇ) entre '950 e 1050, os imperadores da dinastia germânica levaram muito a sério o seu papel. Quiseram ser "vigário de Deus" e "cabeça da Igreja". Quiseram assumir a missão de reformar a Igreja dos seus vícios. Para isso quiseram reformar o clero, � reformar os religiosos. Os imperadores libertam Cluny da jurisdição dos bispos. Fazem o que fará mais tarde o papa. 'Thndem a centrali­ zar a Igreja do Ocidente sob o seu controle .. No entanto;jamais os i:mperado_res conseguiram impor-se aos :reis fora da Germâ" nia. Nasceram reinos na França, na Inglaterra, nas regiões da Península Ibérica > depois na Hungria, na Boêmia, na Polônia e o império nunca conseguiu integrá-los. Foi a chance do Oci­ dente. A fraqueza do novo império foi o que permitiu o sur­ gimento de novos centros de poder e o Ocidente evitou o destino do Oriente.

2º O ]p>(U)der imperial do papa e a liberdade da Igreja Em meados do século XI a história do Ocidente tomou ou­ tro :rumo. O que então aconteceu orientou a Igreja do Ocidente para o milênio inteiro. Entre 1054 e 1086 realizou-se que al­ guns chamaram de Revolução gregoriana6 -··._ nome provenien'-

o

5Cf. R. Foiz, L'idée d'empire en Occident du. ¼ au XLY e siecle, Aubier, Paris, 1953, pp. 25-35. 6Cf. Fr. Heer, Eu.ropãische Geistesgeschichete, Kohlhammer, Stuttgart, 1957, pp. 80-89. Mais comum é o título de Reforma gregoriana. Em 1049 começa o pontificado de Leão IX, que trouxe consigo Hildebrando e o fez cardeal. Será o futuro Gregório VII, eleito em i073.

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te do papa Gregório VII, que foi o seu principal. artífice. Essa revolução foi feita em nome da "liberdade da Igreja". Tinha em vista a libertação do Papa da dependência imperial e, ao mes• mo tempo, a independência do clero, bispos e presbíteros em relação ao poder do imperador e dos príncipes. Foi a revolução d9 clero contra a nobreza encabeçada pelo imperador germânico. O clero formou-se justamente como classe social e como poder na sociedade cristã a partir dessa revolução. Af começou uma luta de mil anos entre o poder clerical e o poder leigo. Os papas procuraram a aliança de todos os inimigos do império e da nobreza: aliança com as cidades livres, com a prin­ cipiante burguesia, aliança com príncipes hostis ao imperador. Enfim, os papas conseguiram articular ligas poderosas que, fi-· nalmente, impuseram condições ao imperador. O tratado de Worms de 1122 conclui uma luta de 50 anos entre os papas e os imperadores. Doravante e durante quase dois séculos, os papas tiveram uma real supremacia na sociedade cristã e puderam convocar quatro Concílios gerais do Latrão que configuraram � cristandade ocidentaF. Nessa época houve uma aliança virtual entre os papas e as forças de ascensão popular. Esta aliança não durou. Claramen­ te·no final do século XIII a aliança se desfez: o Papa e o clero já �ram uma potência tão grande que os povos já não sabiam mais decidir qual era o mais temível: o poder do clero, encabeçado pelo Papa, ou o poder do imperador e dos reis. Até o final do século XIII manteve-se certa convergência entre a ''liberdade da Igreja", no sentido definido, e as aspirações populares para a liberdade. No século XIV· a divergência fica cada vez mais patente. . O objeto principal da luta contra o poderiniperia1 e O poder dos senhores feudais referia.;se à nomeação dos bispos ou dos padre. O papa acusa os príncipes e o imperador de nomear pes­ soas totalmente dóceis ao poder deles - puros servidores do poder civil. Os bispos alemães acompanham, armados, os prín­ cipes nas suas guerras. As nomeações_ pelas autoridades civis 7Cf. Fr. Heer, o. e., pp. 82-86.

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criam um clero subserviente, ligado ao poder - por ter com­ prado o seu ministério e por viver em concubinato. Com isso o clero tem as mãos atadas. O Papa quer um clero livre da família e livre do latifúndio. Durante séculos os papas empenham-se para formar um clero s�parado dos poderes civis, totalmente a serviço da Igreja. Pa­ rece que somente se conseguiu·no século XX, quando esse clero perde o seu significado, dada a mudança total da sociedade. Foi uma luta constante. O Papa trata q.e aumentar o seu poder para ser capaz de formar um clero independente, que serviránielhor · o seu poder- num ciclo interminável. Tanto o Papa·como o Imperador (e os reis) querenicontro­ lar o· clero. Em tal debate o poder do clero só poc:lia aumentar mesmo. . . . . : Aconteceu que, na luta contra o poder im,perial, os papas reivindicaram uma autoridade superior à autoridade i:rrtperial. A teoria romana distingue poder espiritual.e poder temporal. O poder espiritual pertence ao Papae é superior a� outro. O po­ der temporal também pertence de direito ao Papa, que o rece­ beu de Cristo, mas- o Papa não exerce e o entrega _ao Jmpera­ dor. Este deve permanecer subordinado ao poder espi.ritÚal: deve usar o poder temporal para promover os.valore_sespirituais. Quando desrespeita o poder espiritual, perde a legitimidade­ pois o Papa atribui-se o poder de depor o imperador que· não se · subordina ao seu poder espiritual.. Os conflitos entre as duas.pretensões - a do Pap_a e a do Imperador - foram incessantes. O primeiro desses conflitos ficou famoso, marcando a história. Trata-se. do conflito entre Gregório VII e o Imperador Henrique N. O papatinhapllblica.· do o seu programa de ."liberdade da Igreja'' em forma de 27 pro­ posições (Dictatus Papae) que contêm o essencial da Reforma gregoriana. Aí. se dizia, por exemplo:

o

8. Somente ele (o Papa) pode usar as insígnias imperiais; 9. Somente do Papa os príncipes devem beijar os pés; . 10. Somente o seu nome pode ser citado nas igrejas;· 11. Este nome é único no mundo; 12. A ele e lícito depor o imperador;

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22. A Igreja romana nunca errou e, segundo o testemunho das Escrituras, nunca cairá no erro8 • Tudo era desse mesmo estilo. Henrique IV, sentindo ron­ dar o perigo, reuniu um Concílio em Worms e proclamou a de­ posição do papa. Gregório retrucou, depondo o imperador e des­ ligando todos os príncipes do juramento de fidelidade ao Impe­ rador. Este sentiu a necessidade de recuar, e, em janeiro de 1077, foi a Canossa fazer penitência na porta do castelo local, da princesa Matilde de Toscana, onde o papa estava refugiado. Foi a famosa penitência de Canossa. Naturalmente a história não terminou aí. Muitas vezes o imperador depôs o papa, fazendo os bispos escolherem outro, e este excomungou o imperador, provocando a eleição de outro9 • A luta culminou no pontificado de Gregório IX (1227-1241), que conseguiu derrotar definitivamente o imperador Frederico II, último imperador medieval com pretensões universais. De­ pois dele os imperadores foram confinados na Alemanha. Gre� gório IX escreveu numa carta ao imperador (1236): "Não podemos silenciar de modo algum o que é manifesto e notório no mundo inteiro, isto é, que Constantino, que detinha sozinho o governo monárquico sobre o mundo inteiro, em acordo com o Senado inteiro e o povo, não somente da cidade, mas do mundo inteiro, decidiu que era conveniente que assim como ó vigário do príncipe dos apóstolos governava o império do sacer­ dócio e das almas, assim também recebesse no mundo inteiro o governo das coisas e dos corpos. Achava que as rédeas da justi­ ça terrena não podiam estar em outras mãos que não fossem aquelas nas quais ele reconhecia que Deus tinha colocado na terra a direção das coisas celestiais ... Entregou-lhe o império para sempre''1

º.

84.

8Cf. Roland Frõhlich, Curso básico de história da Igreja, Paulus, São Paulo, p.

9Inumeráveis foram as condenações mútuas, as excomunhões e as deposições mú­ tuas. Já se fe1. a conta: imperadores e reis passaram mais ou menos a metade da sua vida excomungados. E houve muito.s a..,tipapas eleitos para substituírem o papa depos. · to pelo imperador. 10Cf. J. Cahnette, Tuxtes et dccuments d'histoire. 2. MoyenAge, PUF, Paris, 1953, p. 130.

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No século XIII os papas puderam realizar a sua função imperial sobre "o mundo inteiro", isto é, sobre a cristandade inteira,já que naquele tempo eles pensavam que a cristandade abarcava o mundo inteiro (os habitantes da China, provavel­ mente, pensavam a mesma coisa!). A afirmação do poder impe­ riai do Papa atingiu o clímax na bula Unam Sanctam de Boni­ fácio VIII - o papa mais imperial da história (1294-1303). Na bula Unam Sanctam o Papa proclamava que "a Igreja tem os dois gládios, o espiritual e o material. .. Porém, este se exerce pro ecclesia (em favor da Igreja), aquele ab Ecclesia (pela Igreja)". Terminava proclamando que "a submissão ao Romano Pontífice é necessária para a salvação: é o que declaramos, ài­ zemos e definimos" 11• Mas o papa encontrou um �ovo adversário no rei da Fran­ ça, Filipe IV. Este enviou emissários para aplicarem um bofeta­ da no rosto do papa. Bonifácio VIII sentiu muito esse gesto, morrendo de desgosto. Daí em diante os papas não afirmaram mais com tanta arrogância a pretensão de governar um impé­ rio universal. No entanto, esse poder imperial só foi sendo es­ vaziado aos poucos. Foi ainda em nome do seu poder temporal sobre o mundo inteíro que Alexandre VI :repartiu o mundo entre os reis de Espanha e Portugal (1494), e os reis puderam conquistar o mun­ do em nome do poder imperial. do Papa. Esse poder não vem de Cristo. O fundamento sempre invo­ cado foi a Donatío Constantiní (doação de Constantino). Desde· o século X-V Lorenzo Valla tinha demonstrado que o documento era falso. Foi elaborado em Roma provavelmente por ocasião do encontro entre o rei dos francos, Pipino, e o papa Estêvão II (754), a fim de que o rei dos Francos reconhecesse as preten­ sões do papa. Os císmas protestantes do século XVI quebraram a uni­ dade do império do Papa: a terceira parte da Europa eman­ cipou-se e rejeitou o poder papal, tanto na cristandade como na Igreja. IICf. Denz.-Schõnm., n2 875.

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Outro golpe ocorreu no século XIX, após a Revolução Fran­ cesa e a queda sucessiva das monarquias católicas da França, Polônia, império de Áustria-Hungria e, após a dissolução do Sacro Império da Nação Germânica por Napoleão, em 1806, de Espanha e Portugal. Com a separação da Igreja e do Estado, o poder temporaldos papas desaparece. Além disso, os Estados Pontifícios, reconhecidos pelo rei dos francos desde: o século VIII, foram conquistados pelo novo reino de Itália em 1870: última lembrança do poder temporal dos papas. Somente na América Latina ainda há alguns restos dopo­ der papal. Em alguns países invoca-se a autoridade do Papa nas discussões políticas sobre questões de moral ou de relações internacionais. Assim ocorre na Argentina, no Peru, no Chile e na Colômbia. A recente mediação entre o Chile e a Argentina, a propósito da disputa do canal de Beagle, ainda foi um resquício do que ocorria na Idade Média. O poder imperial sempre invocou a liberdade da Igreja. O Papa reivindicava a soberania universal para defender a liber­ dade da Igreja ante as tentativas de dominação do povo cris­ tão por parte do Imperador, dos reis e dos príncipes cristãos, como também dos inimigos exteriores, notadamente os mu. 12 . çu 1manos _.. .· Em que consistia o poder temporal do Papa· ein vista da liberdade da.Igreja? O Papa não exercia por. si mesmo o poder material, mas requeria a intervenção do Imperador, dos reis e de todas as autoridades políticas. Ele podia exigir que as auto­ ridades aplicassem os decretos da Igreja ou as suas decisões. Os papas convocaram os príncipes e o povo cristão em primeiro lugar para defender a cristandade contra o perigo de invasão do Islã e contra os obstáculos colocados pelo Islã. nos caminhos da Terra Santa. Em 1095, Urbano II proclama a pri­ meira cruzada para a conquista do túmulo de Cristo, o. Santo 120 conceito de liberdade da !gr?ja foi evoluindo depois do século XVI: já não era a . .liberdade do povo cristão em face do Império ou os inimigos externos, e sim liberdade de- praticar a religião em Estados indiferentes ou hostis ao cristianismo.

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Sepulcro, em Jerusalém. De fato, em 1099, os cruzados, condu­ zidos por Godofredo de Bouillon, tomam Jerusalém, e,_em 1200, começa o reinado de Balduíno I, primeiro rei de Jerusalém. O reino franco de Jerusalém durará muitos anos, e Jerusalém nunca mais será reconquistada. Os papas vão convocar muitas cruzadas até o século XV: _ Depois da morte de S. Luís, rei da - França (Luís IX)! os reis cristãos deixaram de responder aos apelos dos papas e as cru­ zadas vão ficar sem aplicação prática. Porém, criaram a convic­ ção de que a única autoridade política que cuidava · · da salvação da cristandade total era o Papa. Em segundo lugar, o papa convoca as autoridades políticas para lutar contra as heresias. Em 1208 Inocêncio III faz apelo ao rei da França, Felipe Augusto, para que fosse reprimido o · movimento dos Albigenses, no sul da França. Os barões do nor­ te vieram em grande número e esmagaram todo o sul da Fran­ ça. Os vencedores podiam apropriar-se dos bens dos hereges e não faltaram candidatos para o saque do Languedoc e da Prouence. Esse foi um precedente. No século XIV houve as qua­ tro famosas cruzadas contra a Boêmia depois da morte de João Huss, herói nacional queimado por ordem de Sigismundo e do Concílio de Constância. A Inquisição tinha o poder de apelar para a autoridade, que devia aplicar os seus decretos imediatamente, sob pená de excomunhão. Quando houve a insurreição protestante, e durante todo o século XVI, não houve jeito de lançar uma cruzada contra os .. reformadores. Príncipes alemães apoiaram Lutero. Os outros reformadores acharam apoio na Suíça, em cidades livres, nos : Países Baixos, onde surgiu a· Holanda, que não· quiseram se -· subnietêr ao Papa. O imperador da .Alemanha não conseguiu impedir o cisma. Nem o rei da Espanha pôde impedir a secessão da Holanda. No século XVII ainda -houve, na Alemanha, a Guerra dos Trinta Anos entre católicos e protestantes (1618-1648).'Thrmi-­ nou pelos tratados de Westfalia - sem o reconhecimento pa­ pal. Essa guerra abalou muito a Alemanha.

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Diante da impossibiiidade de continuar impondo a sua von­ tade às autoridades civis, a Igreja católica usou, então, a pres­ são diplomática ou a pressão política das organizações católi­ cas a fim de que os reis ou os Estados. aplicassem as leis da Igreja. Até hoje existe essa pressão do Vaticano. Usa-se muito a força diplomática ou a força moral dos católicos para impor a própria vontade aos Estados - notadamente em alguns países ou regiões geográficas 13 • A tradição do poder imperial criou o reflexo espontâneo de iutar contra as heresias ou os cismas pela intervenção do poder político. Não pela evangelização, e sim pelo poder, peia repres­ são física. A fé defende-se pela força. Essa tradição teve reper­ cussões fortes na América. Bastava acusar pessoas de heresia ou de cisma para ser objeto da repressão do poder civil. Até a independência, a Inquisição contou com o apoio dos reis para reprimir qualquer infiltração protestante na América espanho­ la ou portuguesa. A repressão da heresia faz-se em nome da liberdade - pois a hierarquia e as autoridades políticas que constituem o seu ''braço secular" defendem a multidão dos fiéis contra os mestres do erro e os perturbadores da ordem. Hereges e cismáticos são tidos como os lobos ferozes que invadem o redil para roubar e matar as ove­ lhas. O bom pastor defende as suas ovelhas: usa o poder das armas que estão nas mãos da autoridade do :rei, dos príncipes ou do Estado. Defende-se a "liberdade" de obedecer ao Papa! Outro requerimento do poder imperial da Igreja: o Papa defende a "liberdade" do clero contra o poder temporal. Porém, esta liberdade contém vários privilégios: isenção do dever de fazer a guerra pelos senhores, isenção de impostos, imunidade judiciária - os delinqüentes do clero são entregues a tribunais eclesiásticos e prisões eclesiásticas. Tudo isso é exigência da liberdade da Igreja 14 • 13No século XX multiplicam-se os textos que exigem "liberdade religiosa'' sobretudo em relação ao mundo soviético. As declarações sobre liberdade religiosa foram inu.-ne­ ráveis no presente pontificado. A ironia é que o catolicismo era mais forte no regime ateu do comunismo do que no regime_ capitalista de liberdade religiosa. . "O clero como classe organizada e homogênea nasce com a Reforma Gregoriana. Nasce da luta contra a simonia e o nicolaitismo. Pela simonia o clérigo comprava os

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E, finalmente, a autoridade civil está encarregada de apli� car as leis eclesiásticas: respeito dos tempos sagrados; dos lu-. · gares sagrados e da organização da vida, incluindo o trabalho, o comércio, as finanças. A Igreja rejeita a usura e osju:ros, exige leis que controlem toda a vida econômica. •ÜS princípios da or­ ganização social são do alcance da Igreja. Formam parte da li­ berdade da Igreja. A liberdade consiste em impor todo o conjun­ to legislativo elaborado pelos papas, pela teologia, pelos bispos localmente quando conseguem autoridade. Por isso é que se mantém até hoje, em Roma, a convicção de que não se pode evangelizar sem o poder político - como dizia recentemente um núncio da Santa Sé. Em cada nação Roma pressiona para que os bispos exijam o apoio do Estado às leis morais da Igreja. A hierarquia ainda prefere evangelizar por meios políticos. Mesmo depois de mais de 30 anos do Vaticano II, soh:retudo na América Latina, boa parte da hie­ rarquia ainda crê que a força do Estado seja um fator impor­ tante na evangelização. Depois de Medellín houve certo de­ clínio dessa persuasão. Porém, ultimamente, parece que há um retorno ao caminho político como meio de defesa e pro­ moção da fé católica. O Estado não impõe, mas pode favore• cer, pode pressionar e, sobretudo, pode dis�ríbuir dinheiro para as campanhas de evangelização - direta ou indiretamente. O poder imperial do Papa ainda não desapareceu completamen­ te, não som.ente em Roma,· mas também na mente de muitos católicos.

Na Idade Médía não havia eclesiologia, pois o que nós cha­ mamos hoje de "Igreja" não existia como instituição; A Igreja era todo o povo de Deus, que coincidia com a "sociedade cristã'', . a crista.i---idade. Dentro da cristandade estava o Papa e o Impeoficios eclesiásticos, o que não garantia o valor - eram escolhidos os preferidos dos latifundiários. O nicolaitismo era a vida concubinária. Esta fazia do sacerdote o ho­ mem preocupado pelo futuro da sua família.

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rador, os bispos e os príncipes, os mosteiros e as cidades livres, as universidades e os mendicantes. Tudo isso era a Igreja. O modelo imperial de sociedade atingia tudo. Não havia diferença entre leis civis e leis canônicas. Todas as leis eram leis da sociedade inteira. O poder imperial do Papa exercia-se tanto nos sacramentos como na cruzada, na luta contra as heª résias e na canonização dos santos. Tudo era uma coisa só. Tudo era de estrutura imperial: o poder do Papa deriva diretamente de Deus sem participação nenhuma do povo. O povo recebe os beneficios que a hierarquia lhe confere. O povo é passivo e o clero é ativo, porque toda a atividade vem de cima para baixo. Houve a Reforma, que abalou profundamente a cristanda­ de. Lutero separa os dois reinos, a Igreja e o Estado, e assim inventa a idéia de Igreja. Essa distinção entra progressivamente em todas as monarquias modernas. Os reis absolutos da época dita moderna concebem os. seus reinos como entidades autô­ nomas: a cristandade vira pura metáfora, pois já não existe como entidade política. Na Espanha Filipe II foi, em realidade, o úl­ timo rei católico, porque entendia a Espanha como parte da cristandade - aliás, como parte central da cristandade. No século XVII já não havia mais a cristandade. O papa·re�dôtando ele também a abolição da cristanª d.ade. Aceita a nova realidade, a "Igreja" - doravante distinta da· sociedade civil. Nasce a eclesiologia. A Igreja torna-se uma entidade espiritual com poucas raJzes materiais. Em cada país ela se submete à autoridade dos reis longe de se impor a eles. Na conquista da .A..mérica os primeiros missionários ainda pensaram que estavam em regime de cristandade e que as au­ toridades temporais deviam subordinar-se às autoridades es­ pirituais. Carlos V ainda era um imperador e rei de mentali­ dade medieval, de cristandade. Filipe II achava-se àinda em regime de cristandade mas não agia mais conforme os princí­ pios de cristandade. Depois dele ninguém mais se lembra daª quilo que foi a cristandade: reina o absolutismo monárquico. Em face do protestantismo, depois de muita espera, muita preguiça, finalmente o papa convoca o Concílio em Trento para a reforma da Igreja-pedida ao longo de 300 anos. Ora, o Con112

cílio de Trento foi o primeiro grande acontecimento da nova época. Os concílios gerais da Idade Média reuniam o Papa, o Imperador ou os delegados, os reis e príncipes, os bispos, os mosteiros, as universidades, as cidades. Eram assembléias da cristandade. Em Trento somente havia bispos e teólogos do papa, Jesuítas. Na Idade Média os bispos representam suas inações. Em Trento os bispos aprendem que doravante o seu papel será de representantes do Papa na sua nação. Nasce a Igreja, e o Concílio de Trento define-lhe a nova estrutura. Constata-se que o poder que o Papa perdeu no mundo tem­ poral ficou compensado por um aumento de poder dentro da Igreja. Cria-se um poder imperial na Igreja. A estrutura impe­ rial da cristandade passa para a Igreja - com a diferença que, doravante, o Papa terá mais autoridade na Igreja do que jamais teve na cristandade 15 • Nos séculos XVII e XVIII os monarcas absolutos impedem a expansão do poder do Papa. Exigem um controle absoluto so­ bre os católicos da sua jurisdição. Exigem e conseguem do papa a supressão da Companhia de Jesus· (1773), a última :resistên­ cia papal. Nos Estados liberais nascidos da Revolução Francesa, o poder político do Papa diminui mais ainda, mas o seu poder espiritual aumenta. Uma vez consumada separação entre Igre­ ja e Estado no século XX, todos os obstáculos a um poder impe­ rial do Papa na Igreja desaparecem. Foi somente no século XX - sobretudo na segunda metade do século XX - que o poder do Papa na Igreja católica se tornou total. Nesse período surgi­ ram papas atuando. como verdadeiros imperadores - acumu·· lando enorme poder em suas mãos. · Na teologia imperial, o que justifica a estrutura pirami­ dal da Igreja é a defesa da liberdade dos católicos. O Papa é o defensor da liberdade dos católicos nos Estados que não lhes reconhecem essa liberdade. Por isso o Papa insiste na.necessi-

a

150 Concílio de 'Irento era tal que não exigia nenhuma sucessão. Criava um modelo ,de Igreja definitivo: instalava o Papa como capacitado para resolver todos os proble­ . • mas. Como clizia um prelado romano na véspera do Vaticano II: por que um concílio se . o Papa pode resolver tudo?

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dade de formar frente unida na resistência. Mantém-se a fi­ gura que procede da Idade Média, idéia de uma Igreja sempre em estado de guerra ou de mobilização geral. Exige-se a disci­ plina militar. A vitória depende da obediência total das tro­ pas 16 . Esta é a figura gregoriana da Igreja que percorre todo o segundo milênio. Daí a importância do serviço de inteligência reservado à Inquisição - e as instituições que, embora com outros nomes, substituíram-na. Como todos os exércitos em guerra, a Ig-.ceja sabe que o pior inimigo esté dentro da nação - são os traido­ res. Assim também na Igreja o combate mais importante é con­ tra os inimigos de dentro (os hereges), que destroem a capaci­ dade de resistência ou de combate dos fiéis. O combate é, em primeiro lugar, contra o erro. É o combate da verdade contra o erro. Após a separação dos d.ois reinos, a Igreja vive em si mesma e os seus problemas são espirituais; os inimigos são também espirituais. O Papa é o defensor da verdade e fora da verdade não há liberdade. A encíclica Veritatis Splendor, po:r exemplo, faz a de­ fesa da verdade como "o serviço da verdadeira liberdade do ho­ mem: dado que não há liberdade fora ou contra a verdade" 18• Lutando para extirpar o erro, o Papa luta para que todos te­ nham acesso à verdade. O erro impede o acesso à verdade, limi­ ta a liberdade de ter acesso à verdade. O cardeal Ratzinger explica esse ministério de defesa da verdade que é defesa da liberdade. Justifica a condenação da teologia da libertação da seguinte maneira. A teologia da li­ bertação era ameaça para os pobres que podiam ser engana­ dos e cair no erro sem saber. Era fácil desviar os pobres da verdade. Os pobres são ameaçados pelos intelectuais. Era pre­ ciso defender a liberdade dos pobres que podiam ser domina­ dos pelos intelectuais. A condenação da teologia da libertação libertou os pobres da dominação e do erro apresentado de tal 16Cf. sobre os combates da Igreja na Polônia, Carl Bernstein e Marco Politi, Sua

Santidaà.e, Objetiva, 1996, pp. 239-396. •7Cf. Gh. Lafont, lmaginer l'Eglisê catholique, Cerf, Paris, 1996, pp. 49-86. 18J. Paulo II, Encíclica ¼rito.tis Splendor, nn. 95-96.

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maneira pelos teólogos que eles por si mesmos não tinham defesa 19 • Na encíclica referida supõe-se que a verdade sempre vem de cima para baixo - confiada por Jesus ao Papa. Ela desce de Jesus ao povo mediante o magistério, e o magistério recebe essa verdade do Papa, que é a sua cabeça. Nessa concepção da verdade convergem o esquema impe­ rial e o esquema platonizante. A verdade procede de uma ilu­ minação que vem de Deus. A tarefa dos homens é de pura recep­ tividade. Dada essa noção da verdade, a liberdade consiste somente na possibilidade de optar a favor ou contra uma verdadejáesta­ belecida1 já preparada e pensada. Trata-se do puro livre-arbítrio: poder dizer sim ou não, bem sabendo que o não significa condenação 20 . No esquema ímperial nunca se alude aos erTos do magisté­ 21 rio . Supõe-se que o magistério nunca erra. No entanto, erra e somente reconhece os seus erros depois de muitos séculos como no caso de Galileu. Apesar disso, mantém-se o mito de que o magistério não erra. Se errasse, todo o esquema da ver­ dade de cima para baixo cairia. No fundo dessa concepção da verdade_está o medo. À medi­ da que a hierarquia vai se distanciando do povo, o seu temor aumenta. Os :reis absolutistas vivem no medo.Ahierarquia tem medo dos leigos. Em qualquer iniciativa dos leigos desconfia que se esconde uma tentativa de rebeiião. Neste segundo milênio surge um progressivo temor a res­ peito dos leigos: a persuasão de que eles sempre se deixam en� ganar, cedem ao pecado e estão ávidos por desobedecer. O pro� blema é que, para alcançar os leigos, o Papa precisa apoiar•se nos ciérigos. E como garantir que os clérigos sejam melhores? Daí a prioridade dada à formação do clero depois de Trento. Mas como saber se a formação garante um clero disposto a ser o fiel transmissor da verdade da qual o Papa é o depositário? 19J. Ratzínger, Entretien sur la foi, Fayard, Paris, pp. 208-210. 2ºCf. Gh. Lafont,Imaginer l'Eglise catholique, pp. 51-60. 21 Cf. J. I. Gonzalez-Faus, La autoridad de la verdad, Herder, Barcelona, 1996.

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Atualmente há uma tendência de querer multiplicar as confissões de pecados pessoais. Porém tem-se dificuldade em confessar erros estruturais. Supõe-se que as pessoas da Igreja - incluindo o Papa - pecam. Porém a Igreja como conjunto, como instituição; nunca erra. . Além da verdade e em conexão com ela, a encíclica em alu­ são defende a unidade da Igreja. O Império tem a paixão da unidade: Um Deus, um mundo, um império! A filosofia grega, herdeira de Platão, tem também a paixão pela unidade: tudo deriva do Um, tudo vale à medida da unidade, e a pluralidade é sinal de falha. À medida que se desce na escala dos valores, a multiplicidade cresce. O ·múltiplo é o negativo e o um é o positi­ vo. Por isso desde Carlos Magno a cúria romana tende a unifor­ mizar a Igreja do Ocidente - mesma liturgia, mesma língua, mesmo direito, mesmo modeio de clérigo, mesma formação e mesma teologia. Tudo deve ser igual. A beleza está na unifor­ midade. O modelo da Igreja é o exército. A cúria romana lutou para conseguir a uniformidade total. Nas últimas décadas veio conseguindo progressos enormes nesse sentido. Realmente agora há uma liturgia, um direito, um cate­ cismo, um modelo de sacerdote, uma verdade e uma autorida­ de. O papa nomeia todos os bispos e os nomeia de tal modo que sejam todos semelhantes: um modelo só. Como resultado final de um milênio de trabalho perseverante, conseguiu-se avançar · muito no campo da uniformidade. E agora, depois do segundo milênio,· o que vai acontecer? Parece que fica patente a inanidade de tantos esforços. Tanta perseverança para conseguir, no fim, que a imensa maioria dos católicos se afastem da Igreja com indiferença. Já não têm nem ódio da Igreja, como na geração anterior. Agora há pura in­ diferença. Tantos esforços para chegar a isso! O magistério nunca erra! Mas, e se tivesse cometido utn só· e fundamental erro: o erro de existir? Afinal, o conceito de magis­ tério é recente: nasceu com o conceito de Igreja na: época das gran­ des separações. Não conseguiu restaurar a unidade da Igreja22 • 22Cf. J. I. Gonzalez-Faus, La autoridad de la verde.d, pp. 211-223.

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Agora precisamos ver a outra face. A Igreja hierárquica, imperial, foi somente ·uina face da Igreja do Ocidente. Foi a Igreja clerical. Debaixo dela houve a Igreja dos leigos, a Igreja do povo cuja trajetória foi bastante autônoma. O clero podia ter a ilusão de conduzir a Igreja, porém, debaixo da Igreja· do ma­ gistério, estava o povo cristão com a sua própria história.

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CAPÍTUL06

SEGUNDO MILÊNIO: LIBERDADE DO POVO CRISTÃO

A história não seria completa se se concentrasse apenas nos acontecimentos que afetaram as classes dirigentes. A história da Igreja do segundo milênio não pode reduzir-se à história do clero e das instituições clericais. Isso porque, no segundo milênio, apa­ rece um povo cristão ativo. A ex-pansão da modernidade e do de­ senvolvimento ulterior não começou a partir da cristandade oriental. Também não partiu das outras civilizações tradicionais que alcançaram um alto nível de refinamento e depois pararam a antiga civilização da China, do Japão, da Índia, da Pérsia, do mundo árabe: todas alcançaram um auge e depois entraram em declínio. A conquista pelo Ocidente somente foi possível porque essas civilizações estavam estancadas. Por que essas civilizações ficaram estancadas? Porque não formaram para a liberdade. Não :responderam a uma vocação de liberdade. No Ocidente formou-se um povo livre e todos os desenvolvimentos ulteriores procedem deste espírito de liber­ dade que se desenvolveu no povo do campo e das cidades. Não foi o clero nem a estrutura eclesiástica do Ocidente quem formou para a liberdade. Foi algo que nasceu e cresceu no meio do povo mesmo. Aforça do apelo evangélico penetrou no povo, animou a multidão e gerou um povo feito para a liber­ dade, povo de camponeses livres e independentes e de artesãos livres e independentes. Do seio desse povo saiu a modernidade com as suas imensas energias, a sua capacidade de invenção e &:ventura. Todos os grandes inventores, fundadores, criadores da civilizaçáo do Ocidente foram o produto de gerações de pe-

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quenos agricultores independentes ou de artesãos .das aldeias. ou das cidades livres. A diferença do Ocidente é que ali, pela primeira vez, houve um povo livre. Na América Latina somente houve fragmentos de povo li­ vre: pequenos agricultores ou artesãos que emigraram do seu país de origem e vieram formar os pequenos proprietários li­ vres ou artesãos livres que forneceram às nações as suas reser­ vas de criatividade, iniciativa, vontade de progresso. No caso do Brasil, de onde vieram as forças que constroem a nação? De famílias de pequenos agricuitores ou artesãos íivres do interior de Minas Gerais, do Ceará, de Santa. Catarina, de São Paulo, do Rio Grande do Sul ou mesmo dos sertões do Nordeste. Nem toda a América Latina foi encomenda, mina, fazenda. Houve também ilhas de liberdade, porém nã.o de forma tão extensa como na Idade Média do Ocidente: Quanto aos Estados Unidos, conseguiram chamar camponeses e artesãos de todas as nações e, além disso, aproveitaram a. imigração de todos os homens e mulheres mais criativos da Europa-e agora daAmérica Latina. Devemos evocar o que está na raiz da civilização contemporâ­ nea: um povo livre. Este não fez a teoria. Foi vítima dos preconcei­ tos dos :modernos que não souberam reco:ri..hecer as suas dívidas: saíram do campo para conquistar a liberdade em Londres, Paris ou Berlim sem saber tudo o que deviam aos seus a.."ltepassados. Se tivessem nascido na Europa ortodoxa ou no antigo império turco ou nos outros continentes, não teriam produzido o que produziram. Vejamos o que foi um povo cristão livre. Este povo hoje está desaparecendo com a modernização da agricultura e da indústria. Vejamos o que é um povo livre, porque estamos diante do desafio de :refazer de novo um povo livre. Pois a tarefa não é construir uma boa filosofia ou teoiogia da liberdade, e sim for­ mar um povo livre, o que é muito mais difícil.

}. Os iean11.pone§es Hvr.r-es Em todos os países, os camponeses foram vítimas do pre­ conceito: para a população das cidades, os camponeses são ig­ norantes, mal-educados, selvagens, viciados;beberrões, violen-

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tos, desorganizados. Em toda a literatura, desde sempre o ho­ mem do campo é desprezado 1 ; Por isso não aparece na literatu­ ra tudo o que a civilização lhe deve. Não aparece o que é a vida real do mundo rural. O preconceito perdura até hoje. Estamos em 1998. Acabamos de celebrar o centenário do mar­ tírio de Canudos: a matança de Canudos foi o produto do pre­ ·cohceito da cidade contra o sertão. Os sertanejos eram tidos como selvagens incultos, infra-humanos - embora não fos­ sem nada disso. Eram possuidores de outra cultura e outro modo de viver. No entanto, a historiografia européia das últimas décadas ressuscitou a vida dos camponeses. Historiadores foram procu­ rar entender a realidade do passado nas fontes disponíveis. O que emergiu foi que até o ano 1300 e desde o século V- desde a queda do império romano -, os camponeses foram conquistar direitos e liberdades até constituírem um povo livre do campo. O império romano concentrava a vida nas cidades e nas grandes empresas agrícolas. Com a ruína do império, os anti­ gos camponeses das nações outrora subjugadas por Roma se levantaram de novo. Uma vez suprimidos todos os impostos e todos os encargos aplicados pela administração romana, o povo do campo ficou mais autônomo. A destruição do império foi be­ néfica para o homem do campo. O feudalismo foi mais favorável do que o estatismo roma­ no. Os camponeses foram conquistando liberdades e direitos sobre a terra, a água, a lenha, direitos sobre os animais, direi­ tos na produção. Chegando ao séculoXI,já constituem um povo relativamente livre, cujos direitos.irão aumentando até o final do século XIII 2 • No sistema medieval, e na doutrina social da Igreja que dele procede, não existe propriedade absoluta,. sobretudo da ter­ ra. Ninguém tem direito absoluto. Há o direito do senhor feu­ dal, o direito da comunidade e o direito do lavrador. Melhor dito, sobre a propriedade de cada terra pesam dezenas de restrições, 1Cf. Jacques Le Goff, Pour un autre Moyen Age, NRF, · Gallimard, Paris, 1977, pp.

13F144. ·

..

2Cf. P. Chaunu, La, liberté, Fayard, 1987, pp. 80-87.

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costumes, tradições, direitos adquiridos que constituem uma · limitação dos direitos de todos. A propriedade absoluta é sem­ pre uma violência. Isso é sobretudo visível hoje, em que o anti­ go direito romano de propriedade ressuscitou e se integrou nas constituições e nos direitos modernos. A propriedade é violên­ cia, quando não é compartilhada. A classe camponesa foi promovida também pelo estímulo dos mosteiros que foram, de modo geral, escolas de agricultura e de piscicultura onde se criaram e desenvolveram inúmeras técnicas de cultivo da terra, de uso da energia da água ou do vento e da criação e uso dos animais. Desenvolveram varieda­ des vegetais, multiplicaram os cultivas e os métodos de alter­ nância, melhoraram as raças de animais - foi o terreno de aprendizagem da liberdade. No século XIII havia de 6 a 8 milhões de casais campone­ ses livres, formando 120.000 paróquias. Ali o cristianismo este;. ve na raiz de um movimento de liberdade, embora náo ex­ plicitado por teorias. P. Chaunu, famoso historiador protestante, destaca a im­ .portância do matrimônio católico. Nas comunidades rurais, a média de idade do casamento das mulheres está entre 22 e 25 anos. Ora, em todas as civilizações as mu_lheresjá são!casadas aos 15 anos. Uma mulher casada aos 15 anos nunca,:chegará ao pleno desabrochar da sua personalidade. Além disso, os fi­ . Jhos serão educados pelos avós,já mais fracos e menos capacita­ dos para dar educação. Uma mulher casada aos 22 anos educa ela mesma os seus filhos, o que lhes dá muito mais personalidade. No cristianismo oriental, a média de idade das noivas é de 18 anos. Em dois países vizinhos que falam a mesma língua, •.Croácia e Sérvia - o primeiro católico, o segundo ortodoxo -. , as mulheres da Croácia católica casam aós 22 anos e Sérvia ortodoxa aos 18 anos. A diferença é visível no nível de desen­ volvimento humano em todos os aspectos. A cristandade me­ dieval conseguiu o milagre cultural de adiar o casamento até o pleno amadurecimento das mulheres. Esse fator é funda. mental, pois as mulheres são. as educadoras e as prmotoras · do desenvolvimento humano. Além disso, o adiamento da se-

na

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xualidade permite dedicar todas as energias a obras de cultu­ ra e civilização 3 • Por outro lado, a Igreja católica promoveu a liberdade do casamento, ao reconhecer o consentimento da mulher como con­ díção de validade do sacra..mento. Ora, em todas as outras civi­ lizações os casamentos são decididos pela família, pelo clã independentemente da vontade da mulher. A livre decisão da mulher é também fundamental para a criação de mentalidade de liberdade. Na aldeia, cada moça pode escolher entre 7 a 10 candida­ tos possíveis e, para isso, não depende da sua família. Nas sociedades em que a se:h.rualidade é precoce, as ambi-­ ções permanecem limitadas. Os jovens não fazem projetos. Não desejam melhorar. Não criam transformações no saber, na eco­ nomia, nas relações sociais. Freud já dizia claramente que toda civilização supõe repressão da sexualidade. Livre sexualidade significa estancamento da sociedade - o que de fato aconteceu quase sempre na história da humanidade. Por isso a disciplina sex7J.al é condição de libertação humana. Os casais têm as tarefas e a renda reguladas pela tradição. Na vida doméstica, a mulher ocupa-se da criação de pequenos animais, muitas vezes providencia os derivados do leite, queijo, manteiga. Os produtos da agricultura e a venda dos animais cabem à iniciativa do homem. Cada um tem suas fontes de ren­ da. A mulher não tem de depender do marido. Isso também é condição do amadurecimento da personalidade da mulher. O que de fato ocorreu na cristandade ocidental. Todos têm acesso à feira. A família come boa parte da pro­ dução, mas também vende uma parte, e o comércio na feira é livre. As feiras livres garantem a liberdade dos produtores. Cada um vende e compra livTemente. A partir do século XIV essa condição entrou em declínio aconteceu a grande peste que matou a terceira parte da popu­ lação da cristandade. Houve guerras incessantes, corno a Guer­ ra dos Cem .A..nos entre Inglaterra e França - guerra que desser. P. Chaunu, La liberté, pp. 87-107.

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truiu as colheitas, dizimou as popuiações e abriu caminho para a pilhagem e o saque4 .

2. As cidades livres A partir do século XI começam a aparecer cidades. Nos sé­ culos XII e XIII inúmeras cidades conquistam liberd!'3-des e di­ reitos. Emancipam-se dos senhores civis ou eclesiásticos, arrancando-lhes privilégios e isenções. Nas cidades as pessoas conseguem documentos que lhes asseguram certos direitos em matéria de impostos, liberdade em matéria de polícia 1. direito de organizar milícias próprias; mercados livres e feiras cíciicas, direito de relações comerciais :mesmo internacionais, direito de emitir moeda em certos ca-. sos. Certas cidades recebem o status de "Comuna". As Comunas e outras cidades elegem os seus próprios ma­ gistrados. Estão organizadas a partir das diferentes profissões. Estas podem formar corporações. Cada profissão pede à Comuna uma organização. Todo o trabalho passa a ter ·uma organiza­ ção: condições de salário ) horário de trabalho, formação dos pro­ fissionais, preço da mercadoria, preço da matéria-prima, preço de venda. Até a quantidade da produção está limitada para evi­ tar que alguns mais poderosos esmaguem. outros mais fracos. · Os comerciantes podem atender uma fregu.esia limitada: para evitar a guerra de todos contra todos. Tudo era feito para evitar o capitalismo sempre ameaçador. As cidades livres promoveram uma multidão de obras pú­ blicas e sociais: dístribuição de água, banhos p-ó.blicos, obras de assistência aos doentes, os idosos, escolas,. orfanatos. Todos os cidadãos participam na eleição dos mag:istr11dos e na definição dos regulamentos. Tudo aquilo foi o berço da democracia. Esta não nasceu da cabeça de filósofos, e sim da prática atuada nas cidades medi vais. Essa organização da liberdade não foi obra do clero. Várias

e�

1Cf. Michel Mollat, Les pauures au M.oyen Age, Hachette, 1978, pp. 235-255.

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vezes as Comunas tiveram de lutar contra o bispo".príncipe para conseguir seus direitos5• No século XIII as cidades receberam várias vezes o apoio dos frades mendicantes que se estabeleceram preferencialmente em cidades: franciscanos e dominicanos, sobretudo, foram con­ .· s�lheiros e diretores espirituais. Sua pregação inculcava os va­ lores da vida comunitária e da solidariedade organizada. As cidades tiveram profunda inspiração cristã, porém pra­ ticamente sem a interferência do clero. Foram realizações de leigos, mostrando assim a existência de um laicato cristão. A partir do século XIV começou um lento declínio das cida­ des, até que a Revolução Francesa acabasse com todos os privi­ légios e toda a legislação social. Foi a vitória do capitalismo. Desde o século XIV o espírito capitalista penetra nas cidades italianas e depois nas outras. Os comerciantes mais ricos impõem a sua supremacia, acumulam fortunas, conquistam o poder na cidade. Famílias de banqueiros ou de negociantes associam-se e formam um núcleo de burguesia que tende a explorar os trabalhadores. As rendas do dinheiro começam a ser mais im� portantes do que as rendas do trabalho. Aparecem lutas sociais entre cidadãos ricos e cidadãos pobres. Os Estados nascentes querem dominar as cidades como centros administrativos e como fontes de riquezas. Aparecem· impostos cobrados pelos reis6• Além disso, as cidades crescem. As condições de moradia melhoram para os ricos e ficam piores para os pobres. A concen­ tração de população aumenta e, com isso, os serviços básicos de água e saneamento ficam piores; As cidades da época moderna entre os séculos XVIIe XIX são sujas; cheias de casas, com vias estreitas, lamacentas quando chove, e o ar que se respira está repleto de poeiradas no verão seco. No entanto, durante a época da sua maior liberdade, as cidades medievais conquistaram mais liberdade do que nunca 5J. Le Goff, Pour un autre Moyen.Age, pp. 204-209; Ch. Petit�Dutaillis, Lescommunes fr-:znt:aises, Albin Míchel, 1970, pp. 15�71. · 6 Cf. Ch. Petit-Dutaillis, Les communes françaises, pp. 134-172.

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na história da humanidade e, certamente, mais do que nas de­ mocracias do século XX em que a participação do povo pobre é tão limitada. Na América Latina, as cidades foram fundadas pelos reis como centros do poder central, sinal da presença do conquista­ dor para os povos indígenas e residência das autoridades. Não houve cidades livres, nem se aprendeu a democracia na vida política da cidade. A democracia foi importada e criada µe cima para baixo pelo Estado. Não nasceu do povo. Nasceu dos novos poderes que se instalaram depois da independência, sobretudo por mimetismo.

3º Liberdade da vida rreiigiosa leiga Nas cidades do Ocidente medieval nasceram ·novos centros de vida religiosa. Antes do século XII os mosteiros eram os cen­ tros de espiritualidade. Naturalmente continuaram sendo esses centros até os d.ias de hoje. No século XII nasceram os cister­ cienses, uma ordem destinada a grandes glórias, No entanto, os mosteiros deixam de ter o monopólio. Também as catedràis forne­ cem às vezes certa_ formação religiosa - sobretudo os•. cônegos regulares que ali servem o· povo. Porém, a grande novidade é a ascensão dos leigos. Já no século XII é perceptível à ascensão dos leigos! Como entender que, depois de 800 anos,. o sistema eclesiástico católico não tenha aberto espaço para os leigos (que há tanto tempo demonstram interesse em assumir papel ativ_o)? Na realidade foram 800 anos de incompreensão, incompatibilidade, lutas dos leigos para subir e dos clérigos para não ceder. Nasce uma espiritualidade leiga cujas protagonistas foram .essencialmente as mul4eres. O sistema patriarcal do dero ex­ cluía as mulheres. Elas estiveram também excluídas da filoso- . . fia e da teologia, já que essas ciências eram reservadas aos ho­ mens, os clérigos. No entanto, desde aquele tempo as filhas da· aristocracia .. ·• recebiam uma educação semelhante à dos seus irmãos, e mes­ mo nas cidades mulheres aprendiam a ler e escrever em gran­ de número- pelo menos igual ao número de ·homens. Algumas

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chegavam a aprender o latim. As outras tinham à sua disposi­ ção livros na língua popular. As mulheres estavam afastadas do clericato; porém deram a formação espiritual ao povo das; cidades. Os leigos eram for­ mados por mulheres e os clérigos formavam um mundo separa­ do --o-' mundo dos poderes. Deram.,a,essas mulheres o nome de ''beguinas", sem que se saiba exatament.e a origem desse nome,. Ha:Yia também os "begardos" varões, porém. em número muito menor7 • . Essas iniciativas desenvolveram-se sobretudo no norte da Europa, Países Baixos e Renânia. Multiplicaram-se sobretudo nos século XII e XIII. Depois foram vítimas de muitas reservas - até mesmo condenaçõ.es de.parte de papas ou bispos. Apesar disso, conseguiram sobreviver porque receberam o apoio do po:v:o das cidades, que apreciava. muito o seu tipo de espiritualidade encarnada na cidade. Segundo o papa Joáo XYJI (em 1321), no início d.o século :XIV totalizavam 200.000- o que é uma cifra extraordinária, já que estavam no meio de uma população de, no máximo, 20 milhões de habitantes (provavelmente menos). As ''beguinas" eram moças que não queriam entrar num mosteiro, queriam dedicar a vida ao serviço de Deus e do próxi­ mo. Até os 30 anos de idade viviam na casa d.e uma "beguina" mais velha. Ao completar 30 anos, passavam a viver sozinhas numa casinha. Dedicavam a vida ao trabalho, ao serviço dos pobres, doentes ou anciãos. Realizavam exercícios de piedade em conjunto, mas cada uma tinha sua vida independente. For­ mavam às vezes ruas inteiras de casinhas semelhantes. Em certas cidades formavam como que uma cidade dentro da cida­ de (Begijnhof, Béguinage). Ainda hoje existem essas antigas edificações e ainda há algumas "beguinas" mantendo a tradi­ ção. Foram sobretudo importantes em Flandres. Em síntese, essas ''beguinas" eram leigas, não faziam vo­ tos, viviam na pobreza e na piedade. Praticavam a continência, mas podiam sair da vida de ''begu.inas" quando quisessem. 7Cf. G. Epiney-Burgard e E. Zum Brünn, Femmes Troubadours de Dieu, Turnhout, lf.l!Porém, em certos casos háconflito entre raz·ão e liberdade, e a modernidade fica perplexa. A razão tende promover uma economia organi­ zada racionalmente a partir dos fins morais que busca; Gerou o socialismo em todas as suas formas extremas e moderadas, rec:. formista ou revolucionário; Por outroJado, .a. prioridade dada.à liberdade leva ao capitalismo. Na: realidade, éritre os dois cami­ nhos há oscilação permanente. Às vezes prevalece a razão e o socialismo, outras vezes prevalece a liberdade com a désórga;;

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O socialismo projeta uma economia planejada: o Estado determina os preços e a partir daí organiza a repartição da pro-'-

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dução e a distribuição dos produtos, assim como a organiza­ ção das empresas. No capitalismo professa-se que a determi­ nação dos preços deve ser entregue. ao mercado; e a economia organiza-se espontaneamente a partir dos preços definidos pelo mercado. À primeira vista poderíamos pensar que a experiência ensi­ naria até que ponto seria mais proveitoso que interviesse o Esta­ do · e até que ponto seria melhor deixar funcionar o mercado. Aliás, na prática: nunca houve mercado totalmente livre. Hoje o mercado é.. m�JlosJivre do que.nunca,..pois-os .Estados. têm muitas maneiras de orientar o .merca:do•-�':interferir .nos preços. Mesmo o mais radical socialismo tem de tol�rar um mercado paralelo ou mercado negro. Na prática sempre há adap­ tações a situações concretas. O-problema veio em grande parte das ideologias que radicalizaram a prática: socialistas exageram o planejamento por fidelidade a uma ideologia e capitalistas .. ,' .. .exa. · geram O mercado pelo mesmo motivo17• Os modernos apaixonaram-se tanto pelas duas ideologias opostas - liberalismo e socialismo -· , que com toda a evidên­ cia o movimento dominante da época moderna foi a afirmação crescente da primazia da economia. Hoje em dia essa primazia é dogma indiscutível.Os economistas são.os papas da socieda­ de total, pois se acreditam infalíveis e têm jurisdição universal. A primeira.etapa da modernidade econômica vaidas. ori� gens a 1880. A segunda etapa vai qe 1880 .a 1960. A terceira é .. : • · . aquela em que estamos desde a década de 60 18 ; .• · . Na primeira etapa. a ascensão social da burguesfa é lenta ainda. A burguesia consegue afirmar-se na Inglaterra no sécu., lo XVII. A Inglaterra assume a liderança que vai perder somen­ te no século XX pelo •crescimento dos Estados Unidos. A bur­ guesia inglesa inventa o liberalismo eVai.fazerdainglatena a mestra do mundo.Lutou contra todas as restrições m.edieyais à

Wagn�.

17Cf. Peter Überté ét Discipline. Les deux crises de lei modemité, Métailié, Paris, 1996, p. 265 ss. Esta parece ser a melhor interpretação atual da história da economia ocidental moderna. 18Cf. Peter Wagner, Liberté et Discipline, pp. 191-262.

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expansão do comércio, dos bancos, do desenvolvi..mento econô­ mico 19 . Ao redor de 1780 estoura a Revolução Industrial-eom- a in­ trodução das máquinas: máquinas a vapor -,usando o carvão de pedra· e multiplicando a energia disponível - e máquinas da indústria têxtil. A conquista do mundo pela marinha inglesa abre mercados ilimitados para a nova indústria. Destrói-se a produção artesanal de tecidos na Índia para vender a produção de tecido de algodão de Manchester. Com a Revolução Industrial, a burguesiailuta contra todas as leis de defesa do trabalho que vinham da Idade Média. Os trabalhadores são transformados em escravos - alguns acham8 se piores do que os escravos que trabalham com cana no No:r� deste do Brasil. O Estado está encarregado de organizar uma polícia severa para conter qualquer manifestação de insatisfa­ ção por parte dos operários. Triunfa a propriedade, somente os proprietários são eleitores, triunfa a liberdade econômica e a Inglaterra impõe pela Royal Navy a abertura de todos os portos do mundo aos produtos da indústria inglesa. É a·liberdade da burguesia! Depois de 1820 a Revolução Industrial atinge a Bélgica e após 1830 a França. Entrará na Alemanha na segunda metade do século XIX e no resto da Europa no século XX. Nos Estados Unidos já faz a entrada na Guerra de Secessão, depois de 1860, graças à vitoria do norte sobre o sul conservador. A opressão dos trabalhadores da indústria foi crescendo pouco a pouco. Até o final do século tiveram pouca oportunida­ de de criar órgãos de luta. Foram os burgueses arrependidos ou os intelectuais que antes levantaram a voz. Os cristãos falaram primeiro denunciando a situação e organizando obras de ajuda mútua ou de socorro e atendimento às formas extremas da mi­ séria20 . No entanto, no século XIX o racionalismo já é bem mais 19Cf. Harold J. Laski, Le libéralisme européen du moyen áge à nos jours, Emile Paul, Paris, 1950. 20Cf. G. D. H. Cole, Historia del pensamiento socialista, Fondo de cultura economica, México, 1957, t. 1, pp. 288-299; Pierre Pierrard, L'Eglise et les ouuriers en Fronce (18401940), Hachette, Paris, 1984, pp. 123-172.

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forte do que o cristianismo, e foram racionalistas que criaram o. socialismo como nova variante da modernidade para enfrentâr o liberalismo dominante. K. Marx foi o.mais brilhante desses racionalistas e exerceu .uma imensa atração. sobre todos os mo­ vimentos operários fora da Inglaterra e .dos países anglo'."sa­ xônicos. Ao redor de 1880 começa a luta de classes que vai durar 100 anos na Europa e estender-se a todos os países, incluindo as colônias e novas nações descolonizadas, embora com menos acuidade. E assim começou a segunda época da model'nidade. Não houve apenas o movimento operário. Houve também nos mesmos anos (1880-1890) a formação do Estado�Nação cen­ tralizado e organizado como órgão capaz de intervir na econo•• mia. Até então o Estado liber�l estava quase desarmado. O Estado moderno constitui-se depois d.e 1870 na Europa e tam­ bém nos Estados Unidos. Na.América Latina será depois de 1930. O Estado organiza a economia e, ao mesmo tempo, estabe­ lece novas leis sociais de defesa e promoção dos trabalhadores. Dentro do sistema capitalista, Bismarck inaugura o que será a social-democracia. Durante 100 anos o Estado vai organizar as relações de trabalho, aceitando a pressão dos trabalhadores. A social-democracia nasceú da convergência entre partidos polí­ ticos nacionais e a luta dos trabalhadores com a ajuda parcial das Igrejas (católica, luterana e metodista). A modernidade or� ganizou os salários, os seguros de vida, os seguros�saúde, os seguros-velhice e os seguros-desemprego, concorrendo para melhorar progressivamente a condição dos trabalhadores e dando-lhes acesso a certo nível de liberdade econômica. Foi.a época da maio:r aproximação entre a condição da burguesia e a condição operária: o auge é atingido entre 1960 é 1970. Desde então a condição dos trabalhadores piorou e a nova burguesia conheceu uma expansão que ainda não parou. Nessa época o Estado Nacional foi autor da libertação dostrabalhadores. A burguesia cedéU; renunciou à parte da sua liberdade. Provavelmente agiu: medo da revolução comu­ nista: melhor perder um pouco do que tudo. De fato, desde 1917 a Revolução Russa, confirmada pela conquista da Europa orien-

o

por

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tal pela União Soviética depois da guerra, e da China depois de 1949, serviu como advertência para o capitalismo mundial. O medo do comunismo inspirou muitas leis sociais. O método de desenvolvimento por meio do Estado foi tam­ bém adotado pelos fascismos e pelo comunismo mundial ani­ . mado pelo leninismo. Este criou a expressão extrema de socia­ . !ismo por imposição do Estado. Em nome da liberdade dos tra­ balhadores, os próprios trabalhadores foram dominados pelo aparelho do Estado nas mãos do partido. O extremismo do estatismo leva a uma nova opressão dos trabalhadores. Em todo-caso, o sé.culo que vai de 1880 a 1960 foi século de reconhecimento da liberdade dos trabalhadores21• Depois de 1930 os Estados latino-americanos adquiriram a capacidade de intervir na economia: suscitaram: o desenvolvi­ mento econômico, seja pela criação de indústrias nacionais (no Brasil: Petrobrás, Companhia Siderúrgica Nacional, Eletrobrás, Vale do Rio Doce, CHESF etc.), seja pelo apelo a multinacionais (indústria automobilística), seja pela definição de leis sociais inspiradas na social-democracia, embora com menos extensão do que na Europa, O modelo não intervencionista dos Estados Unidos entra com força e se afirma cada vez mais depois de 1970. Em todos esses imensos debates, alguns católicos sempre estiveram presentes.Vários foram condenados (Marc Sangnier, Daens, Sturzo). Muitas iniciativas foram freadas. A maior par­ te do sistema católico nem percebeu o que estava acontecendo. Recolhidos nos recintos sagrados das paróquias, muitos católi­ cos nem sequer se. davam conta dos dramas em que estava o mundo. Ou, então, consideravam tudo isso como castigo pelos pecados do mundo e sinais anunciadores do juízo final22• Adas21Cf. Peter Wagner, Liberté etDi.scipline, pp. 121-190. NaslÜtás pei� einâricipação, os operários tiveram acesso a -um nível superior de liberdade. No entanto, à medida que se.entregaram a partidos e movimentos totalitários, abdicaram da sua liberdade. Os movimentos sociais exigem a discipliná total em vista da liberdade. Muitos somente conheceram a disciplina e nunca conheceram a liberdade. 22Sobre a religião que se ensina ao povo nos piores momentos de miséria dos traba­ lhadores, cf. Pierre Pierrard, L'Eglise et les ouuriers en France (1840-1940), pp. 75-122. Há pouca diferença entre esse ensino na França e nos outros países católicos. São as

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se operária do mundo inteiro afastou-se do cristianismo. Conti­ nuaram aceitando o batismo e mais nada, salvo às vezes ora­ ções nos funerais. É verdade que houve a Rerum Novarum em 1891. Porém, poucos levaram em conta esse documento. No Brasil, quantos teriam lido a encíclicaRerum Novarum? Não preocupou os pas­ tares até depois de 1950. (Não adiantam os documentos do ma­ gistério, se a massa dos católicos não se interessa.) É não havia interesse porque, para eles, ser cristão era participar das devo­ ções organizadas pelas paróquias, e não se preocupar péia liber­ tação econômica dos trabalhadores. Na Igreja, cada um agia de acordo com a sua classe social e o clero não tocava nessa questão. Na América Latina, pela primeira vez, apareceram movi­ mentos cristãos solidários com os povos oprimidos. Buscaram acordo com o socialismo nas diversas formas que ele assumiu na região. Comprometeram-se com os movimentos detransfor­ mação social23 • Os cristãos comprometidos pagaram uni preço elevado pelo seu compromisso. Também sofreram o impacto da derrota histórica dos movimentos socialistas. E agora sentem-se bastante isolados numa Igreja que se voltou para si própria, confinando-se nas sacristias - salvo raras exceções. ·• • Desde 1970 ficou claro que o modelo de Estado-providência ou social-democrático estava em crise. E, ao mesmo 1 tempo, o socialismo leninista estava agonizando, levando a nomenclatura a praticar o suicídio. Portanto, o comunismo soviético não foi vencido pelo capitalismo, mas suicidou'."se. Tinha tomado por objetivo vencer o capitalismo no seu projeto - produzir mais e dar mais abundância material do que o capitalismo� Não conse­ ·guiu. Sentiu.que tinha perdido sua razão de ser e suicidou-se. Os cristãos favoráveis ao socialismo tinham um projeto diferente, em que a sociedade comunitária-e solidária prevale­ cia, em que os trabalhadores teriam a iniciativa e o controle da mesmas devoções e os mesmos conteúdos, totalmente alheios às situações econômicas vividas pelos trabalhadores e suas famílias. 23Cf. Pablo Richard, Cristiarws por el socialismo. História:r. documentaewl'!,, Sígueme, Salamanca, 1976; Alfredo Fierro Bardaji e Reyes Mate Ruperez, Cristianos por el soci­ alismo. Documentaci6n, Verbo Divino, Estella (Navarra), 1975.

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sociedade. Porém, eram fracos demais. Tiveram de seguir o so0 cialismo dominante e não puderam mudar-lhe os rumos, nem sequer na Nicarágua. Ali, no entanto, houve a maior aproxima­ ção possível. Assim ficou claro que um punhado de pessoas dedicadas não são capazes de mudar um movimento historica­ mente mais forte. Somente se todos os católicos tivessem ado­ tado o sandínismo, teriam podido mudar-lhe o conteúdo num sentido cristão. Desde os anos 70 a anarquia tomou conta da economia mundial. Os Estados-Nação não conseguiram mais orientar os rumos da economia. As multinacionais, que produzem mais da metade do produto mundial e reduzem o comércio mundial a uma troca dentro da mesma corporação, fogem do controle do Estado. Pagam os impostos que querem, declaram os rendimen­ tos que querem. declarar. Os capitais dedicam-se à especulação e viajam ao redor do mundo, de uma bolsa de valores para ou­ tra. Agências capitalistas podem derrubar moedas nacionais, pro­ vocar recessão ou inflação, e se escondem nos paraísos fiscais. No meio do caos instituído, as grandes companhias compe­ tem, lutam, devoram-se umas a outras. O mundo econômico é teatro de uma luta de gigantes entre imensos conjuntos finan­ ceiros que procuram dominar os mercados. Liberdade de mer­ cado é liberdade para competir com todos os meios legais ou não, morais ou imorais, a fim de conquistar o monopólio. A fi­ nalidade não é o livre mercado, mas o mercado dominado por uma só entidade autônoma24 • Os Estados vêem os seus recursos diminuírem e não con­ seguem manter o conjunto das medidas sociais que foram, du­ rante 100 anos, uma redistribuição do produto nacional. O poder político caiu mais do que antes nas mãos do poder econômico. E as grandes companhias exigem a privatização das empresas na­ cionais para debilitar os Estados e aumentar o seu próprio po� der. Parece que os Estados assistem impotentes a sua derrota. Ou, então, interiorizaram de tal modo a ideologia neoliberal 4 " Cf. HugoAssmann e Franz J. Hi.nkellammert, A idolatria do mercado, Petrópolis, Vozes, 1989.

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que praticam o suicídio do poder político com convicção, penª sando assim beneficiar o seu povo '. A anarquia da economia mundial recebe a investidura da ideologia neoliberal. Esta não trouxe elementos muito novos. Consta de uma série de profecias:. promete que o capitalismo neoliberal dará abundância e felicidade a todos, e é o único ca� minho econômico possível a todas as objeções e a todos os pro­ blemas suscitados pelo sistema - ou pela anarquia - atual. Respondem com puras promessas25• Não é o valor da ideologia que faz a força do neolibetalismo, mas a fraqueza e a falta de coordenação entre as nações, e a autonomía adquirida pelas grandes corporações e pelas entida­ des que governam os capitais. A desintegração do socialismo soviético, as dificuldades do sist�ma social democrático são os argumentos invocados para reforçar o valor das profecias. O primeiro liberalismo acabou em horrores sociais. Este novo li­ beralismo acabará da mesma maneira. No entanto, a modernidade está se esgotando e o mundo está à p:rocu.ra de outra coisa. Como julgar a economia moder­ na? Como julgá-la à luz da liberdade cristã? Conseguiu os seus objetivos: libertar a humanidade da penúria, da austeridade, da pobreza tradicional? Sobretudo, conseguiu fazer do homem e da mulher os autores da sua riqueza e da sua propriedade, dando-lhes a alegria de ser os seus próprios salvaào:res, os seus próprios libertadores no plano da economia? No conjunto, o único argu..mento neoliberal consiste em pro• meter que a liberdade de mercado -· · isto é, a. liberdade que as grandes corporações querem no mercado - vai produzir abun­ dâ.ricia de bens. Dessa abundância de bens, prometem que haverá para todos 26• A finalidade da economia é produzir quanD titativamente, sobretudo produzir dinheiro; aumentar os capitais. 25Sobre os temas da ideologia neoliberal, cf. Enrique Dussel, "E! discurso teórico dei pensàmiento neoliberal: evolución cultural, libertad individual y mercado", em Pasos (Costa Rica), n2 71 (1997) pp. 11-16. 26Cf. A:my L. Sherman, Preferential Option. A Christian and Neoliberal Strategy for Latin America's Poor, Eerdmans, Grand Rapids, 1992. As promessas neoliberais para a libertação dos pobres.

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Dizer que o capitalismo é o único caminho para lograr esse resul­ tado é quase tautologia. A questão é: será a abundância material realmente a libertação? Ou seria a grande ilusão da modernidade? À medida que nos aproximamos do final da década e do mi­ lênio, aparece cada vez mais com evidência que neoliberalismo, mercado livre e outros argumentos ideológicos são puros pretex­ tos para legitimar a conquista do mundo pelos Estados Unidos e o fortalecimento da sua hegemonia. Na década de 90, os Estados Unidos distanciaram-se da Europa e do Japão, os seus rivais mais perigosos, conseguiram rebaixar o orgulho dos tigres asiá­ ticos - ridicularizados. por crises econômicas produzidas pela especulação - e impuseram a entrada dos produtos nor­ te-americanos no Terceiro Mundo. A ideologia tomou-se desne­ cessária. Os Estados Unidos podem agora expressar claramente o seu projeto. Trata-se do conjunto da nação, isto é, dos 50% que v:otam nas eleições-. os outros 50% são a presença do Terceiro Mundo no território da própria potência dominante. O próprio governo assume a direção do plano de conquista do mundo pela economia norte-americana: foi a obra do governo.Clinton que desmentiu radicalmente as esperanças que os democratas tinham depositado nele. E o instrumento da conquista são as grandes companhias ditas multinacionais, mas na realidade norte-ame­ ricanas, que podem contar com o apoio.total da diplomacia· de Washington, das leis de proteção das empresas e, eventualmen­ te, das Forças Armadas� a Guerra do Golfo foi uma advertên• eia que todos os governos do Terceiro Mundo entenderam. Já em 1991, depois da Guerra do Golfo, o presidente George Bush declarava: "Os cidadãos dos Estados Unidos temos a res­ ponsabilidade única de fazer o trabalho árduo da liberdade. Entre todas as nações do mundo, somente os Estados Unidos têm ao mesmo tempo a posição moral o os meios para respaldá­ la. Este é o peso da liderança e do poder que faz da União Ame­ ricana o foro da liberercJw:J�, que é 1:1empre a sua meta final, a essência da sua personalidade. · · .. Aparentemente� desde as origens da humanidade, as muª lheres amaram mais e serviram mais do que os homens: apesar das dominações e humilhações, apesar de viver tantas vezes

amor

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numa condição de escravas, muitas vezes conseguiram salvar a sua liberdade pessoal, assim como S. Paulo o dizia aos escra� vos. Um escravo pode perder a verdadeira liberdade na luta para sair da escravidão. Tudo depende da maneira. Pode tornar-se uma pessoa cheia de ressentimento, inveja, amargu­ ra. As mulheres escravas,juridicamente ou não, salvam-se mais freqüentemente. Mesmo assim o amor escravo não cria condi­ ções de liberdade. E os filhos educados por uma mãe escrava dificilmente vencerão o seu egoísmo, sua agressividade, sua do­ m.inação. A Igreja católica deverá confessar que praticou demais a chantagem do serviço e do amor, obrigando os mais fracos a servir cega e gratuitamente para a maior glória e o poder das instituições eclesiásticas. Fez assim do amor o pretexto da es­ cravidão, em lugar de ser o formador da liberdade. Por sinal, poucas vezes as instituições eclesiásticas preocu­ param-se com a liberdade dos seus membros. O critério último é a liberdade da pessoa. Não se pode pedir a uma pessoa serviços que não sejam voluntários, livremente aceitos sem pressão, sem chantagem, sobretudo a religiosa, já que � r�ligião é o setor da vida que mais se presta à chantagem. · Assim mesmo e com todas essas restrições, as mulheres sempre foram educadoras da liberdade. Como será doravante? Ninguém sabe. Nessa matéria, se querem ser iguais aos ho­ mens, terão de rebaixar-se. A educação sempre tinha sido feita pelas mulheres, até a época moderna, quando surgiu o sisre,ma das escolas. Na modernidade fizeram-se programas escolares em que não há educação humana, mas apenas preparação para cidadãos, produtores e consumidores. Muitas mulheres entraram no corpo docente, mas aceitaram simplesmente o programa oficial: .fi­ zeram-se propagandistas do programa da burguesia patriarcal. À medida que a gente vai acumulando experiências na vida, torna:-se mais evidente que o grande obstáculo à liberdade é a covardia, a falta de coragem para assumir as próprias responsa­ bilidades. Pessoas que parecem importantes e poderosas desa­ ·parecem na hora das decisões. Pessoas exaltadas na sociedade 246

cedem à pressão da sua corte. A liberdade revelause nas horas cruciais do risco, da insegurança. Tivemos, no continente latino-americano; nas horas glorio­ sas dos Santos Padres da América Latina, algumas figuras exemplares que marcara..111 para sempre o destino da Igreja: os bispos mártires certa.mente, mas também, para citar apenas alguns nomes: Leônidas P:roafio, Sérgio Mendes Arceo, Paulo Evaristo Arns, Manuel Lar.caín, Aloísio Lorscheider, Samuel Ruiz e a figura incomparável de Hélder Câmara. 'Toda lista é injusta e essa também, porque haveria outros nomes aser acres­ centados - mas ainda que outros nomes fossem acre$centa:. dos, a lista continuaria sendo injusta. · E as mulheres? Na Ámérica Latina, as mulheres se escon­ dem. Po:r trás de cada um dos nomes citados há mulheres sem as quais esses homéns jamais poderiam ter feito o que fizeram. As mulheres heróicas, milhões delas, fizeram com que os povos pudessem sobreviver até hoje. São as mulheres pobres que lun tam diariamente para que a sua família possa sobreviver numa carência total de meios. Inventam cada dia meios de sobrevi­ vência e são vitoriosas, mas a que preço! Poucas vezes os nomes dessas mulheres chegam a. ser conhecidos. Ali está a liberdade.· Citei somente alguns nomes porque foram · as pessoas que pude conhecer, observando-as pessoal• mente. Em todas a mesma impressão prÓruiida.: a impressão de estar na presença da liberdade: Todas são pessoas desinteres� sadas de seus desejos particulares - o seu único desejo é :res­ ponder à vocação profunda e irresistível que sentem no fundo do seu ser. Uma vez que ultrapassarai--n o limiar dos desejos e das as­ pirações e&'oístas, puderam entrar no mundo com.todas as suas energias. As vezes podemos perguntar-nos: e por que este ou aquele não tiveram destino semelhante? Por que não se proje­ taram? A :resposta sempre é a mesma:. covardia, falta de eneru gia na ho:ra. de tomar uma decisão que oriente e comprometa o futuro, fuga diante.das responsabilidales. Assim fazem milhões de homens diante d.as dificuldades da vida: fogem, deixando as mulheres sozinhas para enfrentar a luta. 24'7

Então o amor limita-se ao sentimento, ao discurso, não chega a existir. Foi'assim que houve muito mais discursos em favor dos pobres do,que compromisso real, muito mais discurso de libertação do que agir efetivo. O centro de tudo é a liberdade. Deus não chama para fazer esta ou aquela coisa, realizar tal ou q11al projeto: chama para a liberdade. -', Não adianta perguntar-se: este projeto será ou não vonta­ Deus? Deus quer que eu faça isto ou aquilo? Não adianta limitar-se a rezar, refletir ou meditar. Deus quer a liberdade, quer o agir com liberdade - que torna a pessoa livre. Não im­ porta a Deus tal ou qual projeto-. não tem importância em si, sómente vale enquanto etapa para a liberdade. Por isso, o objeto da reflexão será sobre a liberdade: quais são as vozes da covardia, quais são as vozes da coragem? Nes­ se sentido, a sabedoria popular ensina que as obras que du• ram são de Deus e as que passam são puramente humanas. As que duram são aqueias resultantes do empenho total das pessoas, e as que não duram são aquelas em que os protago­ nistas se retiram diante dos obstáculos. O sinal da presença do Espírito é a liberdade humana. Onde há liberdade, aí está o Espírito.

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· 4. As condições práticás da Uberdade ·• Esta é a vocação de cada·ser humano: todos·são chamados a construir a sua personalidade, uma realidade única,· irrepe­ tível, a se tornar um ."eu" consistente, ativo, fonte de ertérgia e de ação. Cada um se faz por si próprio e esta é a sua exclusiva responsabilidade. À primeira vista, müitos seres humanos parecem ser ore:- .. · sultado das circunstâncias exteriores: são Jeitos e não sefazem. Deixam-se levar pelos estímulos que os provocam, não têm pro• jeto, não têm orientação, não têm linha de conduta. A liberdade não parece ser sua preocupação dominante. Assim é na realida­ de. Parece menos cansativo seguir a corrente e deixar•se levar pelas forças anônimas da sociedade; num movimento antes in­ consciente do que consciente.

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Daí o desafio: como buscar a liberdade no meio de seres humanos que lhe manifestam uma tranqüila indiferença? A personalidade humana não é pura adição de quàlidades ou capacidades: não é a soma das qualidades fisicas, dos bonheci• mentos profissionais, das qualidades sociais, do prestígio públi� co, do papel político, dos recursos econômicos e assim por diante. Tudo isso entra na personalidade, mas não diz o que é justamen• te o mais característico dª-J)essoa, pois esta existe emvirtude de um apelo único: é interpelada por Peus, chamada para uma re; lação única, e a partir dessa vocáção inicia um movimento de busca de §Í própria com o auxílio de tudo o que póde achar neste mundo. O mundo =- realidades materiais e humanas -fornece ó aUXI1io com o qual a pessoa se constrói. A pessoa não é a resul• tante das forças do mundo que influem nela, pois ela própria se faz por meio das realidades que encontra no mundo. Antes de descobrir a resistência do mundo exterior, o ser humano, ainda em estado de infância, pode ter a ilusão de uma liberdade total e absoluta. À medida que se desenvolve, a expe• riência vai descobrir as resistências, os limites e as condições da sua liberdade. Não somos criadores de nós mesmos. Somos parte do uni­ verso, objeto da nossa experiência de cada momento.• A nossa. liberdade realiza.se no meio do mundo. Ora, este mundo tem estruturas, segue constâncias, está inter.;relacionado e não te• mos nenhuma possibilidade de lhe modificar as estruturas. O mundo é um dado que se deve aceitar tal como é .. Quem não aceita o mundo existente condena•se a não poder fazer nada e :fica prisioneiro da sua própria inércia. Para um ser humano, não existe ação pura. Agir. é mover tal ou qual elemento do mundo exterior, sabendo que tal ou qual movimento produz determinado resultado. O ref?liltado do movimento não depende de nós, pois está condicionado pela estrutura do·universo. Essa dependência da estrutura do uni• verso não impede a liberdade, mas impõe-lhe limites e condi­ ciona o seu desenvolvimento. Cada um vive num conteno diferente que lhe delimita os espaços de liberdade possível. Por outro lado, o universo é múl•

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tiplo e as nossas ações sobre ele limitadas, pontuais, múltiplas. Por-isso mesmo a conquista da liberdade realiza-se mediante uma multiplicidade de pequenas liberdades parciais, de acordo com o que permite cada contexto 16 • O linguajar da modernidade enganou: anunciou-se o ad­ vento da "liberdade total", como se houvesse meio de alcançar Únà realidade tão abrangente. Somente existem: liberdades li� mitadas e é possível, por uma acumulação de liberdades parciais, criar correntes de emancipação e de libertação mais abrangen­ tes. Porém o agir efetivo será sempre limitado. Não há sitlla{!áo em que não seja p_os�íveJ a conquista de liberdades parciais .e, por conseguinte, m;d:iante essas conquis­ tas, a libertaçfu>�essoa. O caso mais típico são as prisões e os campos de concentração. A experiência dos prisioneiros mos­ tra que sempre há possibilidade de se criar um espaço de liber­ dade em que a personaiidade se salva e se liberta. A conseqüência dessa inserção dos seres humanos dentro do universo, universo material e universo social, é a necessida­ de do conhecimento. Sem conhecer as relações entre os diver­ sos elementos do mundo, nada se pode fazer, nada se poqe con• seguir, nenhuma mudança, nenhum efeito desejado. Para conquistar liberdades, é preciso conhecer cada vez melhor a estrutura do sistema. É preciso saber o que se conse­ gue, modificando este ou aquele elemento do sistema. Para re­ tomar o exemplo da prisão, à medida que os prisioneiros come .; ç · am a compreender como funciona o sistema e cada uma- das si.las partes, podem agir para conquistar certos espaços de li­ berdade, refazer um minúsculo espaço humano em que a pes­ soa pode afirmar-se e fazer-se a si própria 17 • Por isso, as ciências contribuem para aumentar as possibi• lidades de libertação. Permitem conhecer melhor as estruturas do mundo e, por conseguinte, permitem mais projetos de· longo alcance. 16Cf. Jacques Bllul, Éthique de la liberté, t. 2, Dp. 57-70. 7 ' Cf. Maria Emília Guerra Ferreira:; A produçiÍo da esperança. Casa de Detenção de Sã.o Paulo, Carandiru, EDUC, S. Paulo, 1996.

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O destino das ciências na sociedade ocidental é paradoxal. Todos os cientistas consideraram ti seu trabalho científico como exercício eminente de liberdade: Todos queriam contribuir para' a emancipação da humanidade. Ao mesmo tempo, as suas des• cobertas e as suas teorias levavam a uma imagem do mundo tão estruturado e tão determinado que não deixava espaço para a liberdade. No século XIX as ciências físicas impuseram uma visão mecai.--iicista do mundo: tudo se reduzia a movimentos de partí­ culas materiais totalmente determinados. E as ciências humanas seguiram o mesmo modelo: procuraram na sociedade humana , os elementos básicos constitutivos da vida humana e quiseram mostrar que tudo se explicava pelas ações e reações desses ele­ mentos constitutivos. Tudo era determinado: não havia espaço para a liberdade. A ciência, que devia libertar a humanidade, chegava a mostrar que toda liberdade é impossível. Desde então as ciências físicas evoluíram. Perderam a ar" rogância cientificista. Ainda que sigam afirmando como base do trabalho científico a visão materiàlista do universo, já não têm mais a pretensão de poder tudo explicar. Constatam que à medida que a investigação prossegue, descobrem novas áreas desconhecidas. Perderam a pretensão de dar a explicação últi• ma da realidade. A evolução das ciências humanas é mâis lenta. Para en;. tender o que aconteceu, é preciso levar em conta a sua trajetó­ ria. Nasceram depois das ciências físicas, no final do século XVlII (economia) e no século XIX (sociologia, psicologia, antropofo.. gia). Porém o seu projeto inspirou-se no projeto das ciências fíb sicas: tratava-se de fazer uma "física" do mundo humano se­ gundo o modelo da física do mundo puramente material ou do mundo da vida. Assim como as ciências físicas assumiram a tarefa de "de­ mitizar" o mundo material, eliminando todEis.as entidades mi­ tológicas, mágicas e simbólicas que forneciam as antigas cosmo­ visões e substituindo-as por equações matemáticas, assim também. as ciências sociais quiseram "demitizar'' o mundo social, dan� do-lhe uma explicação "científica" feita de relações constantes

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entre elementos simples supostamente básicos de toda a vida humana. As ciências humanas lutaram para extirpar de mente humana as representações religiosas, míticas e simbólicas dos acontecimentos e dos comportamentos humanos. Procuraram a verdadeira essência do ser humano, mostrando que os com­ portamentos humanos seexplicam por forças básicas inconscien­ tes e as representações das religiões e das culturas tradicionais são puros produtos de imaginação que escondem a realidade. As ciências humanas tiveram a pretensão de descobrir esta "re­ alidade". Ai; religiões, as mitologias, as sabedorias tradicionais, as tradições orais dos povos se�iani puras mentiras, puro enga­ no, e a libertação da humanidade devia supor a emancipação de todos esses sistemas. Para. os "mestres.da suspeita" (Freud, Marx e Nietzsche são os principais, sempre mencionados, mas todos os fundado­ res de ciências humanas pertencem à mesma categoria), a hu­ manidade enganou-se a si própria durante· milênios, até que chegassem eles para tirar os véus e, finalmente, revelar a ver­ dade nua e crua: somente existe a luta de classes, as pulsões sexuais ou a vontade de poder- e assim por diante. Não explicam por que a humanidade se teria empenhado tanto em esconder a verdade a si própria. Nem se perguntaram se as religiões E3 cul­ turas tradicionais, com• todos os seus sistemas siml>ólicos, não podiam transmitir conhecimentos sobre o ser humano,:válidos . . . . .· •· · .· ..... ·..· para todos os tempos. .. As ciências humanas não qui��ram destruir :apenas as cosmovisões tradicionais feitas de símbolos e de mitos, lutaram. também contra as filosofias idealistas-. todas filhas de Platão, claro -, considerando-as tentativas de racionalização dâs ·ex­ plicações simbólicas: as filosofias idealistas colocalil um Deus racional no lugar das entidades mitológicas, porém não modifi­ cam a essência das mitologias: c:onstitüemo último obstáculo à afirmação da explicação científica, isto é, materialista, do ser · ··· .. humano� À ·medida que .as ciências humanas tiveram o .projeto e a pretensão de revelar a plena realidade,.dQ ser ·humano,.a ple­ na realidade da sociedade humana, transformaram-se em no-

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que viraram novas vas teologias. Foram. antiteologias . . teologi�� Pois as ciências humanas, conio as ciências fisicas, '. someh­ te podem conhecer ligações par�iais entre realidades· obser­ vação científica tiradas do seu contexto global. Permitem fazer previsões válidas em determiná.das áreas da vida humana, in­ dividual ou social, mas nunca podem chegar ao conhecimento da totálidade. Todas as observações são limitadas e parciais. Pela adição das partes, nunca se chega à totalidade. Por obser­ vações parciais nunca se pode saber o que é o ser humâno na . trajetória completa. .· . .. .. .·. .sua . Além disso, todas as ciências humanas definem como pon,;; to de partida alguns conceitos básicos. Eles estão longe de expressar o puro retrato da realidade. São, na reálidade; as hi.;; póteses de partida, a teoria que se pretende verificar pelas ob­ servações. Na prática, tais conceitos tiveram sempre uma car­ ga anti-religiosa muito forte. Já continham e já assumiam.ná base da investigação a negação de toda a explicação religiosa da realidade. À medida que queriam fazer uma síntese do ser humano ou da sociedade humana, enunciavam implicitamente uma nova pretensão religiosa supostamente com fundamento científico.Todas essas teorias consagrav� a impossibilidade �a liberdade humana� porque itodos os éomportàmenfos esta­ vam condicionados dêsde o início. No entanto, o vício estava na _reivindicação de fornecer uma explicação completa e definitiva. do ser humano; Todas sublinhavam certos aspectos importan­ tes, mas deixavam o rigor científico para entrar no mundo das mistificações: quando pretendiam explicar tudo ·a partir de alguns princípios simples. ___ Hoje, as ciências humanas torna:ram•se mais ·equilibradas _ _ e menos pretensiosas; Pelo menos essa é a tend�ncia. atµal. Ain­ dfi. há psicanalistas fán.âticos que tudo explicam por Freud ou Jung. Ainda há marxistas incorrigíveis que tudo explicam a ·partir do capital- e assim por diante. No entanto, a'tendência é de admitir que as ciências humanas são muito limitadas pela

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18Cf. John Milbank, Teológia e teoria social, Loyola, São Paulo, 1995.

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adoção dos seus primeiros conceitos, pela localização: das: sllls· experiências básicas. Freud foi muito influenciado pela experiên­ cia dos problemas psicológicos das mulheres da burguesia de -­ Viena do final d-o século XIX e do início do século XX. Nem to­ das as-.mulheres vivem situações semelhantes.às de uma classe tão bem delimitada no tempo e no espaço. E Marx ficou marcado pela condição da classe operária na Inglaterra no início da in­ dustrialização, na época do liberalismo triunfante. Essa condi­ ção não se encontra em outras :regiões e outras épocas. Além disso, os conceitos de base refletem a ideologia do autor, e não somente as realidades observadas. Nas ciências físicas, as experiências conseguem desmentir hipóteses que re­ fletem demais a ideologia do auto:r. Também os físicos ficam apegados a conceitos que procedem das suas paixões e dos seus preconceitos. Porém, as observações são mais rigorosas e obrigam a ceder diante dos números e das exigências da matemática. Nas ciências humanas, o cientista escolhe os fatos que que1· observar, interpreta-os com mais liberdade, sente-se menos ob­ servado ou espiado pelos coiegas. Pode ficar apegado por pura teimosia a conceitos desmentidos por muitos fatos que não quer contemplar. A realidade é mais fluida, não se observa po:r meio de instrumentos precisos. As ciências humanas são, em grande parte, ideológicas. De modo particular :refletem muitas vezes os esforços que faz o cientista para se libertar da religião da infância. Custa libertar-se do infantilismo :religioso. A maioria dos cientistas têm da religião apenas uma concepção infantil que lhes foi dada quando eram crianças. A ciência associa-se à fase de emancipação da adolescência e da juventude e, por isso, traz o reflexo da crise pessoal de dessacralização. As ciências humanas de hoje parece que se desvincularam das crises de adolescência e da emancipação das religiões pri­ m.itivas 19 . São mais objetivas e, portanto, mais modestas, mais conscientes dos seus limites. Ao mesmo tempo, tornam-se mais úteis �ara conseguir efeitos práticos. Houve tempos em que as 1"Ver, por exemplo, Michel De Coster, Sociologie de la liberté, De Boeck, Bruxelas, 1996.

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ciências humanas serviam para emancipar os indivíduos da sua religião tradicional. Agora servem para conseguir efeitos parciais,• porém, efetivos, úteis para todos sem pôr em questão as opções fundamentais do ser humano, que não são objeto de ciências. As ciências humanas são necessárias para se conseguir li­ berdades parciais. Não valem como teorias globais,já que, como teorias globais, não expressam a realidade humana, e sim a ideologia do cientista. Valem para discernir melhor as brechas que oferece a estrutura da sociedade humana, os lugares por onde uma mudança é possível, o elo mais fraco da corrente por onde se pode romper uma estrutura de dominação. A antropologia, ou melhor, as diversas antropologías for­ necem elementos de compreensão da estrutura das culturas e, por conseguinte, permitem imaginar uma rede de atos e efeitos prováveis. A partir dessa rede é possível construir um plano de ação a ser revisado, naturalmente, no decorrer da ação. Como saber de que maneira instalar num povo práticas democráticas, se não se sabe como interpretar os comportamen­ tos desse povo? A experiência da descolonizaçáo mostrou que pouco adiantava proclamar constituições liberais e reproduzir num país instituições inglesas ou norte�americanas, para esta­ belecer uma verdadeira liberdade política,. Tais intituições não se integram na cuitura popular e, por conseguinte, permane­ cem inoperantes. Debaixo do linguajar democrático, o que se 1nstala, de fato, é outra coisa bem diferente da democracia oci­ dental que somente se pode entender a partir.da cultura local. A mesma constatação se aplica à liberdade econômica, ou à lí.;. bertação das mulheres, das raças tidas como inferiores, dos trabalhadores oprimidos - e assim por diante. Sem conhecer a cultura, não se pode distinguir quais são as liberdades possí­ veis e quais são os meios para se chegar lá. A sociologia também é necessária, não para orientar a pas­ sagem de uma sociedade tradiçional, pré-racional, simbólica, religiosa, para uma sociedade moderna, raciomd, materialista, dessacralizada, mas para compreender melhor a inércia das sociedades: a resistência das estruturas, a lentidão das mudan­ ças, a multiplicidade das forças atua.ntes� Não se lhe pode pedir

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uma "teoria geral" sobre a sociedade e sua evolução. Tal teoria não pode existir. Os dados da sociologia são sempre parciais, sujeitos à revisão à medida. que a própria sociedade muda e também à medida· da. maior independência dos. sociólogos em relação aos seus preconceitos. A sociologia pode dar informações úteis: por onde começar, onde a sociedade é suscetível de mudanca; � onde há possibilidade de consenso ou de aliança de forças sociais. A sociologia dependeu muito dos sistemas econômicos vi­ gentes, do capitalismo ou do socialismo, e tende a confundir a sociedade com o sistema econômico, que nunca expressa a tota­ lidade do ser humano. Na modernidade, a sociologia tendeu a aceitar muitas vezes a prioridade da economia. Na atualidade, ela se abre para todos os aspectos culturais e corre o perigo de negligenciar a economia. Na América Latina a sociologia teve um prestígio excepcio­ nal quando prevalecia a idéia de que uma só teoria podia dar conta de tudo o que acontecia na sociedade. A sociologia foi até apresentada como base .científica de uma teologia da liberta­ ção, status que certamente não merecia e perdeu. Daí não se pode concluir que a sociologia é inútil. Pelo con­ trário, ela é mais necessária do que nunca. Estamos numa fase de transição em que os fenômenos sociais se tornam mais com­ plexos e mais difíceis de interpretação.As investigações socio­ lógicas são mais necessárias do que nunca, se queremos promo­ ·ver políticas de libertação. Como interpretar a integração das massas rurais nas cidades atuais? Como entender os movimen­ tos religiosos? Quais são as aspirações populares e quais são as prioridades dos povos das cidades? Como funciona realmente a economia? Como funciona realmente a política? Essas são apenas algumas das questões .prévias a qual� quer política de libertação. Pois precisamos definir quais são as metas de libertação acessíveis na situação presente. . A importância das ciências psicológicas apareceu na Amé­ riéa. Latina com o declínio da sociologia e dos movimentos revo­ lucionários. Coincidiu, de certo modo, com as desilusões revolucionárias e o retorno ao indivíduo e aos seus problemas pessoais. .

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Muitos revolucionários descobriram que tinham também pro­ blemas pessoais e entraram na onda das terapias pós-modernas. Muitas psicologias adaptaram-se a esse apelo para as t�rapias. O papel das psicologias não se limita a curar as crises dos militantes. Qualquer ação de libertação social e humana não pode prescindir das estruturas da personalidade humana. Como se comportam as pessoas nas transformações sociais e cultu­ rais da atualidade? Como interpretar as suas reações às novas circunstâncias? Em que a nova cultura da mídia e da informática interfere na psicologia humana? É verdade que o primeiro contato com as ciências huma.. nas pode deixar as pessoas desconcertadas. Achavam que po� diam fazer tudo com. liberdade e descobrem até que ponto os seus comportamentos são condicionados ou determinados por forças alheias totalmente inconscientes, forças psicológicas ou forças sociais. Muitos já perderam a fé por causa das ciências sociais, que lhes tiraram a ingenuidade da visão simbólica do mundo ensinada pelas culturas tradicionais. As ciências humanas são necessárias para· libertar dessa ingenuidade: pois o sentimento de liberdade não gera liberda­ de verdadeira. Somente depois de conhecer todas as suas de­ pendências, é que o ser humano pode buscar os .caminhos de uma verdadeira libertação, ainda que limitada no espaço e no tempo. As liberdades ·parciais e particulares são o trampolim pelo qual a personalidade se projeta, constrói-se e edifica assim a sua liberdade. Até os escravos. têm· os· seus espaços de liberdade. Os es­ cravos negros tinham os seus ritos de candomblé celebrados clan­ destinamente. Ali estava o seu espaço de liberdade, a possibili­ dade_ de se refazerem um mundo humano e de se promoverem como seres livres. Nos primeiros séculos os escravos cristãos tinham· consciência de reis quando desafiavam os imperadores que queriam obrigá-los a se submeter ao culto do ídolo imperial. Há pessoas livres nas piores favelas, nas piores condições de pobreza. Na literatura cristã não há melhor exemplo de li­ berdade do que O peregrino russo, de autor a_nônimo (livrQ_ de relatos, publicado no Brasil por Paulus). Era aleijado, vivia

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andando pelas estradas do mundo sem outra riqueza a não ser uma velha Bíblia e um pedaço de pão velho que carregava na sua sacola. Os próprios :relatos oferecem um testemunho in­ comparável de pessoa livre. Os menos livres são os mais ricos, porque a preocupação pelos seus bens os obriga a inúmeras dependências materiais e húmanas. Para defender e aumentar as riquezas, quantas de­ pendências e quantas preocupações! De fato, é muito mais fácil encontrar exemplos de pessoas livres entre os pobres do que entre os ricos. Isso era sobretudo realidade na cultura rural tradicional. Ali muitas pessoas viviam com pouquíssimos bens materiais, mas com o suficiente, e não havia muitas necessida­ des. O mundo inteiro estava à sua disposição, e não sentiam a necessidade de ser proprietários. O mundo urbano destrói os pobres. Não lhes reserva espaço, humilha-os com a proximi­ dade da ostentação de riqueza e os reduz ao sentimento de não ser nada. Para ser livre na pobreza urbana, precisa-se de uma virtude heróica. Assim mesmo, existem exemplos que dão testemunho de que a vocação para a liberdade vale para todos. As ciências humanas mostram as estruturas. A história ensina as situações particulares e únicas. Ajuda as pessoas a entender o lugar que ocupam na evolução da humanidade: tal povo, tal região, tal fase de evolução social, tal etapa de evolu� çáo cultural, tal governo, tal chefe, tais vizinhos - e· assim por diante. Até certo ponto, uma pessoa pode escolher o lugar da sua inserção. Não pode fabricá-lo. Tem escolha entre poucas opções, todas condicionantes. Qualquer um pode mudar de ci­ dade - ou, às vezes, até de país-, mas não pode fazer com que o lugar escolhido corresponda aos seus desejos. Terá de aceitá-lo tal quai é. A história não é simples. Não segue linhas retas, não tem evolução racional que se possa compreender e descrever. num livro. Quantos foram enganados pelas pseudofilosofias da his­ tória! Quantos pensaram que o marxismo era uma ciência, a ciência da evolução das sociedades hu_manas. Não há ciência da · história, porque tudo é único nela. Há semelhanças, nada mais.

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Daí a dificuldade de interpretar o momento. histórico em que uma pessoa se encontra. Se se erra· na interpretação, a conse­ qüência será o fracasso e a desilusão. Ciaro que a liberdade se busca também mediante os fra­ cassos e as desilusões. No entanto, o perigo é o desânimo. Há pessoas que se fortalecem pelos fracassos. Há outras que o fra­ casso destrói. O ser humano não escolhe o que poderá fazer na vida. As ocasiões são oferecidas pela história. No entanto, pode pre­ parar-se e permanecer atento. Pode entender o que está acon­ tecendo e aproveitar a oportunidade que aparece� Muitos andam tão distraídos e tão pouco interessados, que deixam passar to­ das as oportunidades. A vida oferece desafios que é preciso sa­ ber aceitar quando aparecem. Muitos admiraram a sabedoria com a qual Nelson Mandela conduziu o processo de transformação radical da sociedade da África do Sul. Depois de tantos anos de cadeia, de falsas ac11sa­ ções e de humilhações, podia ter-se convertido num ressentido social, ávido de revanche, agressivo, querendo vingança. Na realidade, tinha conquistado a liberdade na cadeia e estava pre­ parado para assumir o papel histórico que a circunstância lhe reservou. Basta observar a vida das pessoas realmente livres: tornaram-se livres porque souberam assumir o desafio que apa­ receuem lugar de fugir, como faz a maioria. Em lugar de inven­ tar pretextos para não agir, entraram no jogo da história, sou­ beram aproveitar o momento decisivo que abriu para uma vida nova.

5. In®titwcõe§ e liberdade .:, ..... ·..

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A sociedade urbana inclui instituições. Uma pessoa por si só,. fora de instituições, na,da pode, . m,'1da é. Literalmente. ela não existe. Sua voz nunca será ouvida. Nada poderá mudar na sociedade, nem poderá subsistir dignamente. Para sobreviver, fará como os favelados, os habitantes dos cortiç9s, dos bairros marginais: contar com o apoio dos fragmentos de fann'lia que

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subsistem ou com a solidariedade de alguns vizinhos20 • Com isso não poderá crescer muito, mas apenas sobreviver. As insti­ tuições são as mediações indispensáveis: escolas, hospitais e centros de saúde, associações de bairro ou de vizinhança, de moradores, igrejas ou terreiros, clubes, ONGs, prefeituras e demais estruturas políticas - e assim por diante. · Por conseguinte, a libertação passa inevitavelmente pela ação das instituições e por meio de instituições. Ninguém faz obra de libertação sozinho nem se liberta a si próprio sozinho, e sim com o apoio de instituições. Na pós• modernidade, as instituições foram e ainda são criticadas com muitapa:ixão. Denunciam-se nelas diversas for­ mas de dominação escondidas por trás de discursos libertado­ res. Os católicos de "esquerda" são freqüentemente "anarquis­ tas", inimigos de todas as instituições - começando pela Igreja católica. No entanto,a maioria dos católicos aceitam passiva­ mente o peso de dominação das instituições. Quando não agüen­ tam, praticam o absentísmo, sem falar nada. As instituições merecem todas as críticas que lhes são fei­ tas. O problema é que são inevitáveis numa sociedade comple­ xa como a nossa. Todas as instituições delineiam finalidades para si, escre­ vem estatutos que expressam essas finalidades e elaboram dis­ cursos justificativos que invocam as finalidades propostas, No entanto, na prática; elas são sempre outra coisa. As finalidades propostas não são assumidas na realidade pelos membros nem pela diretoria, ainda que estejam inconscientes da discrepân­ cia. As instituições que·existem de fato procedem·de algumas necessidades de socialização inconscientes, que se infiltram nelas e as desviam da sua intenção consciente. Os membros da instituição não fazem o que querem, mas o que as forças de socialização inconscientes querem fazer' dela. Todos precisam de socialização. Alguns encontram satisfação numa Igreja, ou­ tros num clube esportivo, outros numa associação de benéfi� , r.�"Cf. Larissa A. de Lomnitz, Cómô sobreuiveri los margilUUlos, Siglo XXI, México, .L9{�.

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cência. Sempre e o mesmo impulso para a socialização. Por isso, depois de certo tempo há pouca diferença entre o grupo da Igre­ ja, o grupo do clube ou o grupo da sociedade de beneficência. Todos querem a mesma coisa: um lugar de encontro, �e simpa­ tia e reconhecimento mútuo, de distração, um apoio ria solidão. As finalidades explícitas e específicas das instituições são ex­ cluídas. Dessa forma os membros das instituições são envolvidos e levados a uma série repetitiva de atos e comportamentos que tomam conta deles e não lhes permitem ser originais: tornam-se prisioneiros da instituiÇãC> na.qual ninguém sabe aondevai.A instituição domina de modo inconsciente. Aparê:ritemente·n:in­ . guém domina ninguém, mas a instituição obriga todos e todas a fazer o que é necessário para que funcione. Os maisingênuos pensam que a instituição cumpre as finalidades que se ,enunciam nos discursos. Os outros ficam calados para não des,mimar os ingênuos. As instituições, uma vez estabelecidas, tendem a repetir indefinidamente os mesmos atos, que se tornam rituais inde­ pendentemente do resultado. A escola repete indefinidamente o mesmo programa com os mesmos rituais. Ninguém pode fa­ zer perguntas sobre a eficiência daquiloque ali se faz. Aparó­ quia repete sempre. os mesmos ritos,. os mesmqs discursos, as mesmas celebrações/ sem se perguntar sobre a eficácia de tudo aquilo. As associações de moradores repetem sempre as mes­ mas reuniões com as·mesmas conversas - e assim por diante .. Todas as instituições tendem para a rotina: dessa maneira apa­ gam os carismas e rejeitam as iniciativas novas-·-. sempre fa.· 21 zer o de sempre • As instituições tendem também a crescer e a aumentar o seu poder. Precisam de mais :rrieios, Illais dinheiro, mais capaci­ dade de agir. Dessa maneira, Boa parte das suas atividades con­ siste em buscar meios, verbas, contribuições. Inconscientemente buscam mais poder, com: a persuasão de que mais poder vai gerar mais serviço e mais eficiência. Depois de alguns anos a 21Cf. Jacques Ellul, Éthique de la liberté, t.. 2, pp. 95-111.

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preocupação com os meios torna-se dominante: é o eixo princi­ pal ao redor do qual gira toda a atividade. O poder substituiu inconscientemente as finalidades da instituição. Nem os insti­ tutos religiosos escapam: inconscientemente buscam mais po­ der. .Alguns são mais moderados, outros insaciáveis - como a Opus Dei ou os Legionários de Cristo. Nem as paróquias, nem dioceses, nem a Igreja romana fogem desta dinâmica: como ter mais meios para poder servir melhor. Dai a dominação do poder, isto é, da busca inconsciente (ou consciente?) do poder. As declarações oficiais são sempre edificantes. Porém, pro­ cedem da ideoiogia. Na prática, o que as move é diferente: a tendência para acumular poder. Os membros trabalham a ser­ viço dessa vontade de poder. Quantos religiosos e religiosas ti­ veram a vida sacrificada em razão da busca do poder! Viveram na extrema pobreza a serviço de uma instituição muito rica. Como ser livre nessa. condição? Por fim, a dominação procede também dos dirigentes. Cla­ ro que o autoritarismo dos dirigentes se justifica pela eficácia. Os dirigentes acham que são os únicos que conhecem os meios mais eficazes. Quantas vezes não .se esconde uma vontade de poder na busca dos lugares de responsabilidade! O mau exemplo vem da política. Quantos mandatários públicos ou membros das assembléias legislativas aí estão para, assim, poderem estar mais próximos da fonte do dinheiro? Quantos enriquecem pela política? No Nordeste, é o meio mais comum, e quase o único meio, para enriquecer. São admiráveis exceções os que exercem mandato público sem enriquecer e sem enriquecer a família toda. O exemplo vale. Quantas associações em que os dirigentes buscam dinheiro para si e para a família! Quantas associações em que não se prestam contas ou as contas são faisificadas! O povo sabe, mas náo se atreve a protestar por medo da vingança dos poderosos. O poder rende. Na mais humilde associação po "'.' pular há dinheiro - nem que seja pouco - do qual o poder pode apoderar-se. Essas são, de modo resumido, todas as queixas contra. as instituições: em lugar de libertar, dominam, prendem, impe-

a:s

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dem a libertação.Tudo isso é verdade. No entanto, o que se pode fazer sem instituição? As instituições não impedern·a liberdade:'definem.as con.:. dições em que a pessoa deve conquistar sua liberdade e tornar-se livre. Até as pessoas mais proféticas geram instituições. S. Fran� cisco de Assis - que com certeza foi o cristão que quis ficar mais independente de qualquer instituição - não quis que os seus irmãos tivessem uma regra escrita, justamente para não caírem nos defeitos em que tinham caído, uma após a outra, todas as ordens religiosas - rotina, poder, dinheiro-, e ainda assim ele próprio foi obrigado a redigir uma regra e a criar la� ços jurídicos entre os seus irmãos, formando uma nova família religiosa da qual acabou sendo expulso, mas que sobreviveu e permanece até hoje. Para agir neste mundo, é necessário reunir pessoas e organizá-las de alguma maneira: assim nasce uma nova insti­ tuição, entregue a todas as forças de desvio e corrupção das quais ninguém escapa. Por isso a luta pela reforma da instituição começajá no dia da fundação: "Ecclesia reformata semper reformanda". A luta tem por objeto a fidelidade ao compromisso, o retorno ao com­ promisso esquecido na prática: reforma do agir mais do que das regras escritas, porque as regras se aplicam como se quer. Essa luta pela reforma é parte do agir libertador. Ninguém consegue fazer com que a instituição seja o que quer. Nem sequer o diri­ gente mais autoritário faz da instituição o que quer, pois o peso de inércia das instituições supera as forças humanas. Af3 insti­ tuições são mais fortes do que as pessoas. É preciso lutar peia reforma. em primeiro lugar. Essa luta inclui geralmente a proposta de novos dirigentes� Se as· mes� mas pessoas dirigem durante muito tempo, as forças de inércia aumentam, as novidades não aparecem ou são rejeitadas. Quando se trata de lançar novidades, tomando rumos no­ vos, é preciso criar novas instituições. Af3 instituições nunca se renovam a tal ponto que possfuil criar ações no.vas. São prisfo­ neiras do seu passado. A história das o:rdens e dos institutos 263

religiosos ilustra perfeitamente esta lei da história; Não se põe vinho novo em odres velhos. No século XX, poucos institutos novos nasceram. Nasceram institutos leigos J movimentos de espiritualidade pa-r,a leigos que, na atualidade, são a força mais dinâmica na Igreja. católica. Tudo indica que novas fundações leigas aparecerão no futuro mostrando, assim, novos sinais dos tempos. Somente instituições novas poderão dar respostas a desafios novos. A regra do IV Concílio de Latrão, proibindo a fundação de novas ordens na Igreja, era uma medida de suicídio. Feliz­ mente - exatamente depois dessa disposição conciliar - a iniciativa de Francisco de Assis encarregou-se de suprimir a norma. Instituições antigas são prisioneiras do seu passado: os seus modos de agir, as casas, os métodos, a formação, tudo traz a marca do tempo da fundação. As reformas não fazem de­ saparecer o passado. Diz-se que Pe. Pedro Arrupe - então geral dos jesuítas-, durante uma reunião de provinciais da América Latina, pouco depois de Vaticano II, teria afirmado: "imaginem que estão chegando à América pela primeira vez, procurem saber o que seria necessário fazer para começar; deixem todo o resto e façam isso". Se não for verdade... Em todo o caso, era pedir o impossível. Humanamente é impossí­ vel deixar todo o passado e recomeçar a partir do nada, como se fosse uma instituição nova. As forças -de inércia são maio­ res. Algo pode mudar, mas o mais forte sempre fica. O que não. quer dizer que reformas parciais não sejam possíveis, nem que seja impossível criar obras novas no quadro da velha instituição. Uma pessoa pode ser livre e buscar a liberdade dentro da mais severa instituição;Ü preço a ser pago pode ser muito alto, mas é possível fazê,.Jo. O que se quer dizer com "o peso das ins­ tituições" é que opõem. à liberdade fortes. resistências a. ser vencidas. . .. ··· · . .. Globalmente, no· entanto, o movimento pa��··alibe�dade vai gerar instituições novas. Isso vale tanto para a sociedade civil como para a Igreja.

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6. A prática-da libertação Paulo Freire foi, durante uma geração, o mestre da educa".' ção "como prática da liberdade", o guia na "pedagogiaidos opri­ midos"22. Paulo Freire foi ampliando a sua ideologià e a sua prática nas diversas experiências que lhe foi dado servir de ins­ piração na América ou na África. Porém, os temas básicos já estavam presentes nas primeiras obras. A metodologia de Paulo Freire permanece atual: a opres­ são ainda existe e a conscientização parece ser uma tarefa mais indispensável do que nunca. O método Paulo Freire atingiu o auge da popularidade na década dos 70. Depois, pouco a pouco, o interesse foi caindo. As obras de conscientização popular di­ minuíram e o entusiasmo dos promotores diminuiu mais ain­ da. O que foi que aconteceu? Alguma coisa falhou? Diante do fato de que, em toda aAmérica Latina, 9s pobres continuam apoiando nas eleições aqueles que os oprimêm, pode­ se dizer que a conscientização falhou. Por que os pobres não se conscientizaram? Por que, em todos os países, _à frente dos mo­ vimentos e partidos de esquerda - bem como dos movimentos de transformação social - estão intelectuais de dasse média ·ou de classe alta? Exatamente como há lQ_O anos! Será que nada · mudou? Alguma coisa falhou na relação entre consciência e liberda� ·de.Será que a vocação para a liberdade começa pela consciência da opressão? A consciência do oprimido será suficiente para en­ trar rios combates pela liberdade? Não haverá um pressuposto duvidoso: o pressuposto de que os seres humanos desejam a li­ berdade a qualquer preço, e bastaria despertar a consciência do oprimido para que ele ·queira se libertar? Não haveria ali uma concepção moderna do poder da consciência humana, tonsciên­ cia que história revelou diferente dosgonhos modernos?

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· · · ·· 22Cf. os clássicos: Educaçãt) como prática da liberdade, Paz e 'Thrra:, RiÔ de Janeiro, 1967; Pedagogia del oprí.niido, Tierra Nueva, Montevideo, 1970 .. Síntese: INODEP, El mensaje de Po.ulo Freire. Thoria y práctica de la liberàción, Marsiega, Madrid, 1972. Désde·então uma literatura imensa.sobre a doutrina e a prática de Paulo Freire. Ver também: Paulo Freire, Pedagogia da esperança, Paz e 'Thrra; Rio, 1997; Pedagogia da autonomia, Paz e 'Thrra, Rio, 1997. Paulo Freire faleceu em 2 de maio de 1997.

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é necessária, mas não basta. Primeiro, A conscientizacão " todos os oprimidos estão conscientes do seu estado de opressão. Porém, de modo geral não acreditam na possibilidade da eman­ cipação e preferem não pensar no assunto para não desanimar. Preferem pensar no carnaval .ou no campeonato mundial de futebol. A sua esperança dirige•se, antes, para as religiões po­ pulares, que ajudam a viver num mundo impossível. Uma cons­ ciência forte, a alma de movimentos de libertação, não pode vir ap�nas de simples exposições da realidade material da opres­ são ou das suas causas. É preciso ter motivações muito fortes para enfrentar as resistências, arriscar a vida, sacrificar as várias formas de lazer em vista de uma libertação bem remota. Foi o que a experiência das décadas de 80 e 90 ensinou. Vejamos, brevemente, o que pensar da conscientização na fase atual, nes­ te final do século :X..X, melhor ainda, nesta virada de século. 1. As práticas de libertação não despertaram uma consciênft eia crítica, moderna, transfonnadora, e sim uma consciência messiânica. Os conscientizadores foram revestidos de uma aura de salvadores. Seja na alfabetização, nas organizações popula­ res, nas associações de bairro, seja nos partidos políticos, a res• posta popular era a mesma: esperar que do poder sobrenatural dos conscientizadores viesse a salvação. Somente operários já bastante evoluídos podiam ter uma consciência diferente, po­ rém já não precisavam de alfabetização nem de organizações de bairros: tinham a CUT e o PT. Os outros despertavam para a confiança nos agentes de pastoral ou nos agitadores políticos. Achavam que, por meio deles, viria o paraíso na terra. Quando os agentes de pastoral apareceram sem força diante da repres­ são civil ou militar, ou se negaram. a assumir o papel de salva­ dores, ou simplesmente não fizeram nada do que se esperava deles, veio a desilusão. Não adianta explicar ao povo que ele é quem tem força, que os pobres unidos são invenêíveis, que o pobre deve acreditar no pobre: o pobre não acredita no pobre porque o conhece demais e sabe que não tem força. Os pobres não escutam os discursos, não procuram compreender o que J.he.s é dito. Olham para a cara do fulano que fala e sabem se podem entregar-se a ele com confiança ou não. A desilusão era

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inevitável. A conscientização tinha produzido uma consciência imprevista. 2. O sonho de liberdade total. Alguns despertaram para· uma consciência do absoluto: despertaram para a libertação total. Doravante criticam e descartam tudo o que não é aliher-' taçáo total e absoluta. Na prática, criticam todas as propostas concretas de ação porque nenhuma traz a libertação total e ab­ soluta. Entenderam a conscientização como o evangelho de uma nova religião. Não aceitam conquistas parciais, não ,aceitam alianças, não podem fazer concessões: a libertação é tudo ou na­ da. Muitos, desiludidos pela àtuação da Igreja, foram para os partidos mais extremistas, que adotaram como nova religião. 3. Para querer a liberdade - qualquer liberdade-, é pre­ ciso ter uma mística: os sacrifício são grandes, a luta é demora­ da, há derrotas e fracassos, obstáculos, resistências, temores, traições dos falsos irmãos - e assim por diante. Sem mística forte as pessoas desistem e conformam�se com a mediocridade da sua condição. Sem mística muitos desistem diante do pri­ meiro obstáculo, da primeira ameaça, do primeiro fracasso. Cedem à tentação oferecida pelos poderosos. Qualquer movimento de libertação precisa de líderes com forte espírito de sacrifício animados por úma mística mais forte ainda. O chefe sempre é solitário, porque deve ter mais fé· do que os outros. É difícil achar tais líderes. Os chefes colocados à frente das associações em muitos casos são fracos, covardes que seguem as tropas e não têm coragem de exigir, não cobram, não chamam a atenção, não corrigem os abusos, d.ão cobertura ao relaxamento. A maioria das associações populares fracassa por falta de líderes dedicados e sacrificados que se atrevam a exer� cer autoridade. · . . 4. De onde vem a mística? Naquele tempo, a mística mais forte vinha dos partidos revolucionários de esquerda. Esses partidos funcionavam como novas· religiões ·dessacralizadas: exigiam uma dedicação total e estavam revestidos de caráter transcendente por serem a manifestação da história. Esses movimentos pediram e conseguiram sacrificios radicais: mui• tos aceitaram a morte como mártires da causa da libertação. 267

Outros encontraram a mesma mística nas CEBs ou em movi­ mentos cristãos. A mística desses movimentos, de onde derivava? Sem dú­ vida, do passado cristão. Todos esses militantes de esquerda provinham de famílias de ascendência cristã. A mística cristã ãêcularizou-se, mas guardou o mesmo ânimo, a mesma força. �a.atualidade, depois de 25 anos,é provável que a impregna­ ção cristã seja muito mais fraca. Naquele tempo era forte ain­ da. Podia suscitar grandes sacrifícios. Sem mística, o povo busca comida, casa, televisão, cerveja e, quando as necessidades imediatas estão satisfeitas, deixa de lado a libertação. A busca da liberdade exige motivação forte . .A.B necessidades imediatas não são motivação forte. Por isso a pura conscíentização, sem mística, não tem re­ percussão alguma. Cai no vazio. Encontra passividade, falta de interesse. Ora, de onde poderá vir uma mística de libertação agora, na virada do século? Essa é outra questão. 5. Inúmeros projetos de libertação fracassaram porque os iniciadores não souberam levar em conta a situação social do povo pobre, sobretudo no Nordeste, mas também em todas as ª1'eas pobres do país. O desemprego é generalizado, muito maior do que dizem todas as estatísticas oficiais. Inúmeras pessoas buscam desesperadamente um emprego. Quando um agente de pastoral ou um membro de ONG lança um projeto de libertação ou de desenvolvimento qualquer, o povo só vê uma coisa: ali há possibilidade de emprego! . Qualquer coisa a ser feita vira sinô­ nimo de emprego. As pessoas aprendem o linguajar da organi­ zação, o linguajar da libertação, se for o caso. Com algumas dezenas de palavras vão em busca do emprego. Conseguindo-o, passam a defendê-lo com unhas e dentes. Ora) emprego não quer trabalho. Aqui costuma ha.� ver confusão de linguagem: para os modernos, emprego quer dizertarefa, trabalho .. Para os,pré-modernos, emprego quer di­ zer meio de subsistência - possivelmente sem ter de trabalhar regularmente. Por isso, habitualmente, a produtividade dos projetos de desenvolvimento ou libertação é muito fraca. Úma vez que a pessoa conseguiu o emprego, pode descansar. A única

dizer

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P!eocupação será _dàt aparência_· de atividade .para _guardar o emprego. Quanto à libertação, já está esquecida, salvo o discur­ so oficiaL Não se produz a conscientização porque a pessoa! buscava emprego e achou o que queria. Nem sempre acontece assim, mas os casos são inumeráveis; e os casos de pessoas realmente ativas, produtivas, !3-ge11tes ativos de libertação, são �xceções. O qué á expêriênciâ énsinou é que, para suscitàf:um povo comprometido pela sua libertação, há necessidade de penetrar num -nívelmais pro(m:u:l .. Nl1lLiberdlâdê · pólítica•·-· Na fase da evolução da humanidade em que estamos, cresce cerro coriséftsô rio füundifâtual• a?respeito'da libêrdâd�·polítiea;. A liberdade política é um meio necessári o para o desenvolvi­ mento da .personalidade humaria:.semliberdade.política.predo'." mina o reino_do medo, da vigilância mútua, do temor a, todas as iniciativas e da aut0censura que paralisa o pensamento. A li­ berdade política é a chave que abre o campo para a plena reali­ zação do ser humano. Sem ela, todos se reprimem ainda que 1

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inconscientemente, e a verdadeira liberdade permanece mais vezes clandestina. Basta lembrar que, na cristandade- embo• ra limitada, havia mais liberdade política efetiva, se compara­ da à liberdade política da maioria das nações de hoje -, em geral os místicos cristãos foram objetos de suspeita permanen­ te ou de perseguições abertas, como no caso de S. João da Cruz ou, pior ainda, de Margarida Porete - a mística beguina quei­ mada publicamente em Paris devido a seus escritos místicos. Na fase atual da humanidade, a liberdade política signifi­ ca Estado de direito, respeito aos direitos humanos, proibição da justiça privada, reino das leis, igualdade dos cidadãos pe­ rante a lei, divisão dos poderes, participação dos cidadãos na escolha dos dirigentes e limitacão no tempo dos mandatos dos dirigentes da nação. É o que s; chama "democracia". A democracia supõe um povo democrático, isto é, um povo que se interessa e participa ativamente da vida política. Um povo politicamente ativo gera partidos políticos, grupos de pres­ são, associações de defesa ou de promoção de direitos humanos. O sinal da verdadeira democracia é a participação ativa das massas pobres. Nos Estados Unidos é notório que isso não ocorre, pois a maioria da população não vota nas eleições justamente a metade mais pobre do país. Pode esse país ser considerado verdadeira democracia? Ou a democracia seria a liga dos ricos para reprimir as aspirações dos pobres? Não são as formas que fazem a democracia, e sim o conteúdo. A Ig-.ceja católica resistiu ao advento da democracia prati­ camente até a Segunda Guerra Mundial. Somente Pio XII, no final da guerra, reconheceu o valor do ideal democrático. Mes­ mo assim, localmente, a hierarquia ainda defendeu a.ditadura de Franco e Saiazar na Espanha e em Portugal até o fim. Defen­ deu as ditaduras militares naAmérica Latina: o Vaticano-susten­ tou as ditaduras no Chile, na Argentina, na.A..rnérica Central­ e mesmo no Brasil, contrariando as aspirações do episcopado nacional. Por que a hierarquia resistiu tanto? Em parte porque a democracia se apresentava envolvida numa ideologia liberal. ·No entanto, não era tão difícil fazer a distinção entre a ideolo270

gia projetada por certos ideólogos e a democracia com as suas instituições, que é independente da ideologia liberal e é o resul­ tá.do de uma longa evolução histórica. A hierarquia não soubereconhecer a tempo as origens cris� tãs da democracia, suas raízes nas instituições medievais das cidades e mesmo das ordens mendicantes -· franciscanos e dominicanos. Não soube apreciar a herança grega da cidade ·· anterior à filosofia de Platão. Por que tal atitude? A suspeita é a seguinte: sobretudo de­ pois do Concilio de Trento, a Igreja católica adotou uma estr11tura cada vez mais autoritária, com cada vez menos :partiêi,. pação do povo cristão. Isolada do povo, a hierarquia vive na angústia constante de possíveis erros dos leigos. O leigo é sem­ pre um possível herege, um possível revoltado, um -possível de. sobediente que é preciso reprimir sem cessar. Houve o medo de que as instituições democráticas da sociedade civii tivessem re­ percussões semelhantes e suscitassem aspirações democráti­ cas dentro da Igreja. No entanto, com o Vaticano II, pelo menos na teoria a ati• tude da Igreja católica mudou: virou claian1ente democrática. Na teoria, a Igreja aprova e promove a democracia com as suas instituições. Os papas confirmaram desde então,. repetidamen� te, a adesão clara à democracia. O povo .católico foi convocado para participar ativamente da vida política. Diz o decreto Apostolicam Actuositatem: "Faz-se porém mister que os leigos assumam a renovação da ordem temporal como sua função própria e nela operem de maneira direta e definida" (AA n. 7). O documento de Medellín sobre os leigos, a encíclica Christifideles laici, e inúmeros outros documentos in­ sistem: a missão própria dos leigos é a ordem temporal, a vida pública, a política. No entanto, o que é que se observa? A participação efetiva dos católicos na vida política é muito limitada, pouco prestigiada. Nem sequer é considerada nas assembléias diocesanas ou pa­ roquiais. Para a maioria dos católicos, a política continua sen­ do coisa "suja", da qual é melhor ficar bem distante para não ser contaminado. A conquista da liberdade política interessa

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um número muito limitado e não recebe muito estímulo do cle­ ro. A que se deve essa abstenção tão ampla dos católicos no plano político, seja no plano local, no estadual ou no nacional? Parece que podemos descobrir algumas das razões que explicam tal fenômeno. . . 1. Em primeiro lugar é costume invocar um fenômeno social global: o descrédito.generalizado da política no mundo de hoje. É um fenômeno global: a política não suscita as paixões como na década de 60 ou, mesmo, nos anos 70. Hoje o futebol vale muito mais do que a política, o mesmoacontecendo com os programas de TV com as suas novelas,jogos, concursos e tudo o que soa como "fantástico". Nisso os católicos manifestariam exatamente o fenômeno comum a todos. Seriam fiéis represen­ tantes da cultura dominante na América. Latina. Aí deve estar uma parte da explicação. Porém, não pode­ mos aceitar que os católicos não sejam nada mais do que cópias fiéis da cultura dominante. Há também outras razões para ex­ plicar a abstenção política. 2. Uma razão forte é esta: a doutrina católica oficial diz que a evangelização do mundo temporal - incluindo a política - é missão dos leigos e não do clero, e a missão do clero é essencial­ mente espiritual, religiosa, consistindo na animação espiritual dosleigos. Assim diz a doutrina. Na prática acontece o contrário. Ocorre que o papa; mais do que nunca, define a política da Igreja católica e dirige-a pessoalmente- com o auxílio da Cúria romana. Pelas viagens; pelos discursos, pelo relacionamento com os líderes políticos, pelos apelos feitos aos povos, o papa exerce exatamente o papel teoricamente reservado aos leigos: a evan­ gelização da ordem temporal. Nem permite que católicos te­ nham outra política diferente daquela praticada por ele, como se pode observar em todos os países latino-americanos. Quem pratica a política é o papa, e os leigos são chamados para pro­ longarem a sua política. Nem aos episcopados é lícito tomar inici.ativas distintas daquelas que são tomadas pelo papa. Os bispos são puros repetidores. Com essas condições, .-0s leigos sentem que estão sobran­ do;, Não podem nem pensar, nem imaginar, nem lançar inicia-

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tivas, nem projetar ações políticas. Devem esperar determina• ções vindas de Roma, e aplicar as receitas elaboradas a partir de projetos globais que o próprio papa nunca enuncia. Tudo é segredo do príncipe e o príncipe revela as suas intenções quan­ do o julga oportuno. Tudo depende de um homem só, e nem sequer se pode saber quais são as pessoas que de fato o orien­ tam. Supostamente o papa sabe tudo por si próprio. Como um leigo poderia situar-se nesse mundo fechado? De fato; os leigos preferem ficar calados e aguardam determinações proceden­ tes de fora. 3. Na mensagem final do Vaticano II aos governantes, a assembléia conciliar diz que a Igreja não pede· nada mais do que a liberdade, conforme o decreto sobre a liberdade religiosa. Ora, na prática, a Igreja pede mais do que a liberdade. Ela exi­ ge leis protegendo a moral. católica tradicional, sobretudo em matéria de sexualidade e matrimônio (divórcio, contraceptivos, aborto, homossexualidade). Exige também condições favoráveis às instituições católicas de ensino ou de saúde. Exige privilégios para suas instituições (isenção de imposto, privilégio de serviço militar). Exige posição privilegiada em relação às outras reli­ giões - exige ser tratada na América Latina como a religião nacional, deixando que as outras sejam apenas _toleradas. Nem sempre consegue todas essas vantagens, mas luta para.conse­ gui-las. Mobiliza os leigos para que o Estado conceda tais van­ tagens à Igreja católica. Os leigos percebem muito bem que são convocados e estimulados a agir na área política quando se tra­ ta de defender as posições sociais privilegiadas da Igreja católi­ ca. Sentem que, na prática, a doutrina de Leão XIII ainda é a que vale, e a doutrina do Vaticano II fica no papel para a edifica· ção dos intelectuais. . . Claro que essa situação não provoca os leigos para assumi­ . rem responsabilidades· políticas na vida diária. próprios movimentos de espiritualidade dos leigos somente se mobilizam quando se trata dos interesses da Igreja. 4. Os leigos são constantemente chamados para assumir serviços intra-eclesiais: ministérios dos sacramentos, da cate ª quese, da formação religiosa ou da administração paroquial.

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São, assim, desviados da sua tarefa própria que é a transfor­ mação do mundo temporal pelo evangelho. Enquanto o papa, assistido pelo clero, dedica-se à tarefa política que é o campo próprio dos leigos, os leigos assumem tarefas que são próprias do clero. Para que definir uma doutrina se é para praticar o contrário? As próprias CEBs, que deviam ser a presença ativa do fer­ mento evangélico no meio dos pobres, foram paroquializadas, dedicando-se cada vez mais aos serviços intra-eclesiais. Desse modo o laicato, de boa fe, acha que cumpre sua missão ficando dentro da capela ou da sacristia. 5. As próprias pastorais sociais correm o risco de ser des n viadas da sua finalidade pela ligação com as dioceses e as parón quias. Em lugar de assumir os problemas sociais, a sua finali­ dade é dar um sinal da presença da Igreja no mundo dos po­ bres. Na prática, as pastorais isolam uma pequena porção dos pobres, objeto de todas as preocupações. O restante, a grande maioria, fica abandonada à própria sorte. O que seria tarefa política transforma-se em serviço eclesiástico: dar sinal de pre­ sença no setor. J\Jém disso, as pastorais sociais estão eminentemente ex­ postas aos desvios da burocracia. Transformam-se com muita facilidade em pura burocracia eclesiástica em que prevalece o empreguismo. As pastorais sociais viram sinônimo de Igreja dando emprego - emprego no sentido de meio de subsistência, e não de trabalho produtivo. Sem contar que as pastorais so­ ciais são dirigidas por bispos ou sacerdotes, que nem sempre são os mais qualificados para discernir as qualidades operacio­ nais das pessoas que contratam. A maior parte das vezes vigo­ ra o empreguismo eclesiástico puro e simples. De qualquer mav neira, os leigos que estão nas pastorais soqiais isolam-se do resv to das forças ativas da nação: cada um cultiva a sua porção do bolo. A conseqüência disso é que os leigos estão ausentes da política.. Há algumas exceções. Há setores das CEBs que atuam no PT, no Brasi_l. No entanto, tomando a situação globalmen­ te, podemos dizer que os católicos não são estimulados a se

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dedicar a tarefas temporais, políticas. Se o fazem, é muitas vezes contra a: preferência do clero. Isso, porém, nos leva ao capítulo seguinte: o lugar dos leigos na Igreja e a liberdade na Igreja. Camilo Torres estava certo quando se convenceu de que a prova suprema do amor estava na política. E· assim todos os que se comprometeram com a política na América Latina no último meio século. É verdade que muitos erraram na políticâ., mas foi erro de discernimento humano, não erro de sensibilida­ de cristã. Podemos prestar ao próximo inumeráveis serviços úteis e necessários que não contestam as injustiças estabelecidas, as quais estão na origem e continuam criando tantos males físicos e morais. Muitos evitam a questão das raízes dos males sociais porque assim foram ensinados. Por exemplo, era assim que Frei Damião justificava o seu silêncio sobre ajustiça social: no semi­ nário disseram-lhe que não se devia tocar em tais assuntos. Outros evitam a questão porque não querem expor-se à crítica ou mesmo à perseguição. Outros sabem que a hierarquia não aprecia os cristãos que criam poiêmicas, e passam a invocar a obediência para evitar a política. No entanto, a verdadeira prova de.amor está nas lutas e conflitos: a prova última de amor de Cristo não foram as curas, a atenção dada aos abandonados, a expulsão dos demônios, e sim o conflito com aqueles que mantinham o povo na opressão. Por isso morreu - suprema prova de amor foi essa morte, dou­ trina mais constante da cristologia. No meio dessas lutas polí­ ticas, o cristão também - à semelhança do Mestre - sofre na pele: o seu amor é um amor sofredor, maltratado, humilhante e humilhado. Por isso é o ato supremo da Iiberdàde. A plenitu­ de da liberdade, o cristão a encontrará na sua ação pública como cidadão livre ou como mandatário, mais vezes como:ci­ dadão consciente e ativo. Porque ali :realizará um amor sem consolo, sem retribuição, não raro caluniado e atacado de todas os modos. Apesar da cultura dominante, apesar. do desprestigio da política, mais do que nunca o cristão está convocado para a_ li275

· l:,erdade na vida pública, na política ativa.· A vocação ptira a U.berdade inclui uma vocação para a cidadania ativa, e não há desculpa válida que possa dispensar um cristão nesta virada do sêculo.

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CAPÍTULOlO

A LIBERDADE NA IGREJA

O presente capítulo é o mais difícil e também o mais neces­ sário. Certamente ó cristão pode tornar-se livre Illesmo não ha­ vendo liberdade na Igreja. Pode tornar-se pessoalmente livre mesmo sendo vítima.de-opressão .. na Igreja - do mes;mc, modo que alguém pode tornar-se livre, apesar de ser perseguido ria sociedade civil. No entanto, a Igreja não tem por missão marti­ rizar os seus filhos. Às vezes surgem estas perguntas: Não se­ ria por acaso essa a vocação da Igreja? Como fazer para que descubra a sua verdadeira vocação? Ao iniciar esse capítulo recebi a notícia da morte de um amigo: D.Alexandre JimenezL.;•chileno, sacerdote e:bispo au­ xiliar de Talc8ê, depóis, bispo de Valdívia. Morreu de desgosto e desesperoi devido à forma humilhante pela qual foi destituí­ do da diocese de Valdívia. Após sua destituição, sua vida resu­ miu-se a dois anos de agonia. No testamento pediu que nenhum bispo celebrasse ainissadôSfu.riêrais, inas somente sacerdotes amigos. Por quê? Porque, -não raro, na Igreja católica ocorre como no partido. comunista: quando um membro é ·condenado pela autoridade-suprema, deixa de existir para os outros. Nin• guém mais olha para: ele. Torna-se uma espécie deleproso>Quase todos os bispos daquela região assistiram aos funerais. É diffcil saber o que se passou em suas consciências. Imagino que esti• vessem vivendo o drama da falta de liberdade. Quem s�be? Pode· ser que, em silêncio, estivessem envergonhados da sua falta de liberdade.

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Casos como esse são tantos. Pessoalmente poderia escre­ ver um livro sobre situações que conheci, a respeito dos dramas da falta de liberdade na Igreja católica. É verdade que tais ca­ sos existem também em outras Igrejas - e mesmo, mais ainda talvez, nas instituições civis ou nas empresas. Tudo isso é ver­ dade. Porém, não se poderia esperar da Igreja católica que, em lugar de afastar os fiéis da mensagem de liberdade de Jesus, os aproximasse dela? Não se pode acusar pessoalmente a ningu.ém. Todos têm boa vontade. Porém, todos são vítimas do mesmo sistema, e o siste­ ma é que precisa mudar. Não adianta fazer atos de penitência individual. O que é imprescindível é a mudança no sistema. O sistema gera covardia. Tanto assim que todos os bispos latino-americanos que mostraram coragem e espírito de liber­ dade em face dos opressores foram condenados, denunciados, atacados, ameaçados ou, finalmente, destituídos por ordem de Roma. Parece que a coragem e a liberdade são incompatíveis com a pertença à Igreja, salvo quando a própria instituição está sendo perseguida. Nesse momento exige-se o sacrifício total. Essa situação vem de longe, perfazendo a história de todo o seglmdo milênio í . Quando foi aberto o Vaticano II, surgiu um g-rande movimento de esperança: pelas janelas abertas por João XX.III começou a entrar um ar de liberdade. A primavera não durou muito. Não deu tempo de chegar o verão. O inverno retornou logo. Os historiadores poderão lembrar muítos fatos glorios�s do pontificado de João Paulo II, mas não dirão que favoreceu a liberdade na Igreja. Ficamos com saudades do Con­ cílio Vaticano II. Restam somente saudades? Será possível retornar um dia ao Vaticano II- que foi sepultado com o sínodo de 1985 - ou o que resta é conformar-se, buscando consolo no livro do Eclesiastes? Nem o papa nem o clero querem oprimir. Muito pelo con­ trário, querem servir, sendo servidores. Querem levar todos os homens para a salvação e tudo o que fazem se justifica pela salvação das almas. No entanto, fica a dúvida: de que vale a 1Cf. Ghislain Lafont, Imagi.ner l'Eglise ca.tolique, Cerf, Paris, 1995, pp. 49.-84.

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salvação sem a liberdade? Que salvação é essa que se consegue num ambiente de vigilância, controle, constrangimento e medo? Eis o que diz o teólogo Jacques'.Ellul; que muito escreveu sobre liberdade cristã: ''Precisamos reconhecer que, afinal de contas, os cristãos não assumiram a liberdade de Cristo. Por certo individualmente, tal ou qual cristão, no decorrer dos sé­ culos, bem pôde ter sido um homem livre. Mas e a Igreja? No decorrer da sua história, a Igreja evitou cuidadosamente a ques­ tão da liberdade, colocou-a entre parênteses, escondeu-a, recu­ sou-a ... É verdade que Deus é um Deus de ordem. É verdade que a Igreja deve ter instituições e não pode ser um corpo sem forma, magma de indivíduos. Porém, assim que esta verdade se aplica, serve para apagar a liberdade .. É notável como, por exemplo, na Idade Média, a Igreja, numa extraordinária preo'­ cupação pela.justiça, pela ordem, pelo equilíbrio, pela santida­ de, acumulou instituições, refinando-as sempre, prevendo tudo, examinando tudo com uma seriedade da qual estamos muito longe, nós, c:ristãos do século XX, com uma visão tão ampla de que somos incapazes. Pode-se dizer que todos os problemas que agitam hoje a Igreja - econômicos, políticos e sociais-, todos foram estudados, examinados com um cuidado incrível pelos teólogos, canonistas, decretistas e decret_alistas do século XI até o século XIV. O progresso consistia em regulamentar mais, re 8 finar mais as análises, responder melhor a todas as questões-· fazendo com que penetrasse cada vez mais o cuidado pelajusti­ ça e a caridade nas instituições. Porém, isso significava cada vez mais exclusão da liberdade, recusa da aventura e do risco da vida e da fé. E essa preocupação da Igreja não se voltava so­ mente para a Igreja e a sua organização, mas também para o mundo ... Mas a Igreja, na sua preocupação pelo mundo, na sua convicção de possuir a chave da sabedoria; dajustiça pelo mun• do, de fornecer ao mundo dos homens por fim instituições jus­ tas e boas, onde poderiam viver não somente como cristãos, mas como homens (a Igreja da Idade Média era assim), esta Igreja alcançava de fato uma operação muito positiva, salvo um único ponto: tudo aquilo supunha e exigia a elimi_nação da liberdade. Tudo estava incluído, previsto, calculado para uma maior justi-

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ça e melhor verdade. Porém estava excluído que se pudesse manifestar a liberdade. Esta é exatamente a única dimensão que faz falta na obra da Igreja desde as origens, e esta era a dimensão decisiva, sem a qual a vida cristã tomava-se insigni­ ficante no mundo. Pelo fato da liberdade estar ausente, todas as formas de ação da Igreja tornaram-se jurídicas. Ali ·é que •· reside· a verdadeira traição" 2• Jacques Ellul falava da Idade Média. Desde então a liber­ dade ficou ainda mais restrita. A Igreja medieval, se compara­ da com o presente, ainda era um "paraíso de liberdade". A única diferença favorável para hoje é que a hierarquia já não dispõe mais,do braço secular para aplicar as suas sanções. A medida que os católicos abandonam a liberdade, a Igreja tende a identificar-se com uma cultura. Uma vez perdida a li­ berdade, o que sobra é cultural. Daí a enorme preocupação com o cultural por parte da Igreja católica e do clero. Muitos acham que o caminho correto da evangelização é entrar nas culturas. Esse é o caminho do êxito, da propaganda e do proselitismo eficaz, mas não da evangelização. "Na realidade os cristãos são mais conformistas do que um qualquer. A liberdade dada em Cristo se voltou contra eles, uma vez que não a viveram. Tor­ nou-os escravos dos determinismos, dos conformismos, das ideo­ logias. Não tendo sido e não sendo o modelo de liberdade, foram e são hoje o modelo da mais medíocre e vil escravidão"3• O pior é que muitos cristãos, secreta ou abertamente, pre­ ferem abdicar da liberdade e se sentem tranqüilizados por uma Igreja que. exige submissão e• se encarrega da sua salvação. A Igreja fornece o itinerário: sacramentos, crenças, preceitos mo­ rais e ritos de participação. Basta seguir o itinerário e a salva­ ção da alma está assegurada. Durante séculos, milhões ·preferi� ram essa solução e ainda hoje permanece pequena minoria que se sente à vontade nesse sistema. São os freqüentadores das nossas paróquias, na sua maioria. Esses não têm a menor preo­ cupação com a liberdade. Temem-na. Preferem descarregar so2Cf. Jaques Ellul, Éthique de la Liberté, Labor et fides, Genevé/1973, pp. 326s; 3Cf. Jacques Ellul, op. cit., p; 328.

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bre o vigário a preocupação pela salvação. Farão o mínimo que puderem, mas, pelo menos, esse mínimo necessário farão. (Im­ porta saber qual é o mínimo necessário!) Vale, sim, a lenda do Grande Inquisidor--a página mais profética da literatura dos últimos séculos. Está no romance Os irmãos Karamazou, de F. Dostoievski. O Grande Inquisidor está na praça da cidade, presidindo à cerimônia que vai purificar a cidade dos hereges e das heresias. Está rodeado pela inultidão -·para a qual queimar hereges é uma festa. Então o Grande Inquisidor, a quem nada escapa, porque tudo deve saber-· tudo o que acontece deve ser registrado-, vê que se acerca um po :­ bre estrangeiro. Reconhece-o logo porque nada escapa à perspi­ cácia do Inquisidor. É Jesus que se aproxima. O Grande Inquisidor entendeu qual era "a jogada" de Jesus, mas não a permitirá. Manda um guarda prendê-lo e trazê-lo próximo a si, dizendo-lhe: "Por que você veio incomodar-nos? Você não tem mais nada para fazer aqui. Deu-nos todos os poderes. Deixe que assumamos o nosso papel. Você incomoda. Olhe para esse povo. Todos estão felizes. Não saberiam o que fazer com a liber­ dade. Querem proteção, segurança, querem que sejamos fortes, exigentes, implacáveis. Eles nos aclamam". Então Jesus enten­ deu que tinha perdido e não podia fazer inais nt:tda. Afastou-se tristemente. Naqueles tempos, a supressão da liberdade é peÍo bem do povo, para defender os fracos que pedem proteção, para garanft tir a salvação de quem não seria capaz por si mesmo. A Igreja oferece um sistema de proteção. Quem se submete ao sistema garante a salvação. Se forem deixados livres, não alcançarão a salvação. . . . · O -raciocínio do Grande . I nquisidor é o mesmo dos·missio­ nários entre osíndios4 , desde os mais remotos tempos da colo'." nização: "Compelle intrare" ("obriga as pessoas a· enttar") 5 • ·É preciso salvar as almas pela força. O resultado é mais garanti-

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4Cf. Paulo Suess, "José de Anchieta e memória dos outros", em R.$B fasé'. 227, 1997, pp. 515-536. . . 5Cf. Lc 14,23. O texto foi usado arbitrariamente por Santo Agostinho parajustifi caro apelo ãs forças armaclas para reprimir os hereges donatistas. Desde então o texto

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do do que pela liberdade. Assim respondiam a Bartolomeu de Las Casas. A recusa da liberdade não é exclusividade da Igreja católica. Outras tan1bém o fazem. Porém, na Igreja católica o sistema é hem mais desenvolvido, e a autoridade bem mais implacável. Ju­ ridicamente os leigos não são nada diante do padre, e os padres · e:bispos pouco são diante do papa. Sobra-lhes a passividade. Mesmo o papa, com todo o seu aparente absolutismo, tor­ na-se o primeiro prisioneiro do sistema. Abdica da sua liberda­ de diante das regras estabelecidas por si próprio, sacralizando­ as de tal maneira que se torna servidor delas. Nesse sentido, não há perspectiva de mudança, por exemplo, no que se refere ao celibato obrigatório para os presbíteros ou à falta de acesso das mulheres aos ministérios. O poder do sucessor de Pedro - do qual se esperaria o serviço para muda:r regras obsoletas - é aplicado para manter essas mesmas regras. O poder pessoal, dado para mudar as regras em caso de necessidade, ao invés de ser fator de liberdade, torna-se fator de servidão às regras. Quanto aos bispos, muitos sentem-se constrangidos, limita­ dos, bloqueados por ser prisioneiros de normas e :reg-.cas das quais pouco podem mudar. Resta-lhes aplicar o direito canônico e as instruções dos dicastérios romanos. A condição de sucessores dos apóstolos pode ser manifestada plenamente apenas quan­ do se reúnem em Concílio. No resto do tempo não passam de agentes da administração central- com a obrigação do silêncio e da defesa de normas que, em consciência, não aprovam. Diante das normas do sistema, o bispo não vale mais do que qualquer leigo. Porém, sente mais a sua impotência - uma vez que os leigos "lavaram as mãos" há muito tempo. Daí a crise episcopal, crise latente, escondida, que se manifestá so­ mente de vez em quando em alguma transferência contrária às regras administrativas, na destituição ou renúncia inesperada foi muitas vezes invocado cada vez que se tratava de impor a fé pela violência. Foi citado abundantemente pelos missi