Uma Breve Historia da América Latina 9788531614088, 9788531614125

Loris Zanatta expõe o conjunto de eventos que movimentou a América Latina, desde a colonização até os dias atuais, sem e

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Table of contents :
Folha de rosto
Créditos
Índice
Prefácio
Introdução à história da América Latina Contemporânea
1. Unidade e pluralidade
2. O espaço latino-americano
3. Os latino-americanos
4. Política e religião: a unidade e a fragmentação
5. O extremo Ocidente
Primeira parte: Da independência à II Guerra Mundial 1808-1945
1. O legado colonial
1. A herança política
2. A sociedade orgânica
3. Uma economia periférica
Espanhóis, indígenas e escravos africanos
4. Um regime de cristandade
Crescimento econômico e novas potências
Igreja e Estado no período colonial
5. O desgaste do pacto colonial
As reformas bourbônicas
2. A independência da América Latina
1. As invasões napoleônicas
As causas e o método
2. A fase autonomista
Os crioulos e Cádis
3. A política moderna
O imaginário antigo
4. As guerras de independência
Simón Bolívar
5. Os caminhos para a independência
A doutrina Monroe
3. As repúblicas sem Estado
1. Instabilidade e estagnação
Liberais e conservadores
2. As Constituições
Caudilhismo
3. Sociedade e economia em transição
O século britânico
4. A inflexão da metade do século XIX
Teoria política e debate intelectual
5. Os casos nacionais: a norma e as exceções
México: um caso extremo
4. O período liberal
1. O surgimento do Estado moderno
“State-building” e “nation-building”
2. O modelo primário-exportador
O divisor de águas econômico
3. Uma sociedade em transformação
A grande imigração
4. A ilusão das oligarquias
Histórias de guerras e de fronteiras
5. Juntos em ordem aleatória: México, Brasil, Argentina
6. O início do século americano
A independência de Cuba
5. O declínio do período liberal
1. A crise e os seus problemas
Mais singular do que raro: o caso do Uruguai
2. As causas políticas
A APRA e os partidos radicais
3. As causas sociais e econômicas
A revolução mexicana
4. O novo clima ideológico
O krausismo
5. Os múltiplos rumos da crise liberal
6. O período do “big stick” e a ascensão do nacionalismo
A guerra do Chaco
6. Corporativismo e sociedade de massa
1. O esgotamento do modelo primário-exportador
2. Em direção à sociedade de massa
3. A noite da democracia
4. Os militares: como e por quê
O renascimento católico
5. Os populismos
Getúlio Vargas e o Estado Novo
Lázaro Cárdenas e a herança da revolução mexicana
6. A política de Boa Vizinhança e a Guerra
Segunda parte: Da Guerra Fria aos dias atuais 1945-2010
7. O período do populismo clássico
1. Entre democracia e ditatura
A “Violência” na Colômbia
2. A industrialização para substituição de importações
3. Um vulcão sempre ativo: as transformações sociais
4. Entre nacionalismo e socialismo: o panorama ideológico
Perón e o peronismo
5. A Guerra Fria: primeiros passos
A Guatemala de Jacobo Arbenz
8. Os anos 1960 e 1970: o ciclo revolucionário
1. O período da revolução
Fidel Castro e a revolução cubana
2. O desenvolvimento distorcido e os conflitos sociais
3. Estruturalismo, “desenvolvimentismo”, teoria da dependência
4. A guerra civil ideológica: a frente revolucionária
5. Uma Igreja dilacerada
A Teologia da Libertação
6. A Aliança para o Progresso e o reformismo inoperante
O Chile de Salvador Allende
9. Os anos 1960 e 1970: o ciclo contrarrevolucionário
1. O período da contrarrevolução
O Brasil dos militares
2. Do “desenvolvimentismo” ao neoliberalismo: a economia dos militares
O Chile de Pinochet, vitrina neoliberal
3. A antipolítica e a doutrina da segurança nacional
A repressão: a Argentina dos “desaparecidos”
4. Os Estados Unidos e a hegemonia em risco
1965: os “marines” na República Dominicana
10. A década perdida e a democracia (re)encontrada
1. As transições democráticas
A guerra das Falkland-Malvinas
2. A economia nos anos 1980: a década perdida
A crise da dívida externa
3. A América Central em chamas
Monsenhor Romero e a Igreja
4. A doutrina Reagan e a América Latina
1989: invasão do Panamá
5. As novas democracias: esperanças e limites
Venezuela e Colômbia: democracias enfermas
11. O período neoliberal
1. Mercados abertos e globalização
O “Consenso de Washington”
A integração regional
2. A sociedade latino-americana nos anos 1990: os novos movimentos
O Chiapas zapatista
3. Luzes e sombras das democracias latino-americanas
Neopopulismo e neoliberalismo: o Peru de Fujimori e a Argentina de Menem
4. Bill Clinton e a América Latina
Cuba depois da Guerra Fria
5. A crise do neoliberalismo
2001: o colapso argentino
12. O novo século: entre futuro e déjà-vu
1. A inflexão à esquerda
Lula e Chávez, destinos cruzados
2. O crescimento econômico e os seus limites
A variante chinesa
3. As sociedades latino-americanas no novo milênio
O indigenismo radical
4. A transformação do panorama religioso
5. A América Latina e o mundo
George W. Bush e a América Latina
13. Uma transição turbulenta. A América Latina nos anos 2010 do século XXI
1. Formigas e cigarras: a prestação de contas econômica
A Aliança do Pacífico
2. As novas classes e o núcleo duro da desigualdade
Narcotráfico, criminalidade, corrupção
3. Democracias liberais e democracias populistas
4. Populismos em crise
5. Um lugar no mundo
Cuba volta para a família?
Paz na Colômbia
Um papa latino-americano
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Uma Breve Historia da América Latina
 9788531614088, 9788531614125

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Título original: Storia dell’America Latina Contemporanea Copyright © 2010, 2017, Gius. Laterza & Figli Copyright da edição brasileira © 2017 Editora Pensamento-Cultrix Ltda. Texto de acordo com as novas regras ortográficas da língua portuguesa. 1ª edição 2017. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou usada de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico ou mecânico, inclusive fotocópias, gravações ou sistema de armazenamento em banco de dados, sem permissão por escrito, exceto nos casos de trechos curtos citados em resenhas críticas ou artigos de revistas. A Editora Cultrix não se responsabiliza por eventuais mudanças ocorridas nos endereços convencionais ou eletrônicos citados neste livro. Coordenação editorial: Manoel Lauand Capa e projeto gráfico: Gabriela Guenther Editoração eletrônica: Estúdio Sambaqui Produção de ebook: S2 Books DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) (CÂMARA BRASILEIRA DO LIVRO, SP, BRASIL) Zanatta, Loris Uma breve história da América Latina / Loris Zanatta ; tradução Euclides Luiz Calloni. --1. ed. -- São Paulo : Cultrix, 2017. Título original: Storia dell’America Latina contemporanea. ISBN: 978-85-316-1408-8 1. América Latina - História I. Título. 17-05018

CDD-980 Índices para catálogo sistemático: 1. América Latina : História 980

Direitos de tradução para o Brasil adquiridos com exclusividade pela EDITORA PENSAMENTO-CULTRIX LTDA. R. Dr. Mário Vicente, 368 – 04270-000 – São Paulo, SP Fone: (11) 2066-9000 – Fax: (11) 2066-9008 E-mail: [email protected] www.editoracultrix.com.br que se reserva a propriedade literária desta tradução. Foi feito o depósito legal.

1ª Edição digital: 2017 e-ISBN: 978-85-316-1412-5

ÍNDICE Capa Folha de rosto Créditos Prefácio Introdução à história da América Latina Contemporânea 1. Unidade e pluralidade 2. O espaço latino-americano 3. Os latino-americanos 4. Política e religião: a unidade e a fragmentação 5. O extremo Ocidente Primeira parte: Da independência à II Guerra Mundial 1808-1945 1. O legado colonial 1. A herança política 2. A sociedade orgânica 3. Uma economia periférica Espanhóis, indígenas e escravos africanos 4. Um regime de cristandade Crescimento econômico e novas potências Igreja e Estado no período colonial 5. O desgaste do pacto colonial As reformas bourbônicas

2. A independência da América Latina 1. As invasões napoleônicas As causas e o método 2. A fase autonomista Os crioulos e Cádis 3. A política moderna O imaginário antigo 4. As guerras de independência Simón Bolívar 5. Os caminhos para a independência A doutrina Monroe 3. As repúblicas sem Estado 1. Instabilidade e estagnação Liberais e conservadores 2. As Constituições Caudilhismo 3. Sociedade e economia em transição O século britânico 4. A inflexão da metade do século XIX Teoria política e debate intelectual 5. Os casos nacionais: a norma e as exceções México: um caso extremo 4. O período liberal 1. O surgimento do Estado moderno “State-building” e “nation-building” 2. O modelo primário-exportador

O divisor de águas econômico 3. Uma sociedade em transformação A grande imigração 4. A ilusão das oligarquias Histórias de guerras e de fronteiras 5. Juntos em ordem aleatória: México, Brasil, Argentina 6. O início do século americano A independência de Cuba 5. O declínio do período liberal 1. A crise e os seus problemas Mais singular do que raro: o caso do Uruguai 2. As causas políticas A APRA e os partidos radicais 3. As causas sociais e econômicas A revolução mexicana 4. O novo clima ideológico O krausismo 5. Os múltiplos rumos da crise liberal 6. O período do “big stick” e a ascensão do nacionalismo A guerra do Chaco 6. Corporativismo e sociedade de massa 1. O esgotamento do modelo primário-exportador 2. Em direção à sociedade de massa 3. A noite da democracia 4. Os militares: como e por quê O renascimento católico

5. Os populismos Getúlio Vargas e o Estado Novo Lázaro Cárdenas e a herança da revolução mexicana 6. A política de Boa Vizinhança e a Guerra Segunda parte: Da Guerra Fria aos dias atuais 1945-2010 7. O período do populismo clássico 1. Entre democracia e ditatura A “Violência” na Colômbia 2. A industrialização para substituição de importações 3. Um vulcão sempre ativo: as transformações sociais 4. Entre nacionalismo e socialismo: o panorama ideológico Perón e o peronismo 5. A Guerra Fria: primeiros passos A Guatemala de Jacobo Arbenz 8. Os anos 1960 e 1970: o ciclo revolucionário 1. O período da revolução Fidel Castro e a revolução cubana 2. O desenvolvimento distorcido e os conflitos sociais 3. Estruturalismo, “desenvolvimentismo”, teoria da dependência 4. A guerra civil ideológica: a frente revolucionária 5. Uma Igreja dilacerada A Teologia da Libertação 6. A Aliança para o Progresso e o reformismo inoperante O Chile de Salvador Allende

9. Os anos 1960 e 1970: o ciclo contrarrevolucionário 1. O período da contrarrevolução O Brasil dos militares 2. Do “desenvolvimentismo” ao neoliberalismo: a economia dos militares O Chile de Pinochet, vitrina neoliberal 3. A antipolítica e a doutrina da segurança nacional A repressão: a Argentina dos “desaparecidos” 4. Os Estados Unidos e a hegemonia em risco 1965: os “marines” na República Dominicana 10. A década perdida e a democracia (re)encontrada 1. As transições democráticas A guerra das Falkland-Malvinas 2. A economia nos anos 1980: a década perdida A crise da dívida externa 3. A América Central em chamas Monsenhor Romero e a Igreja 4. A doutrina Reagan e a América Latina 1989: invasão do Panamá 5. As novas democracias: esperanças e limites Venezuela e Colômbia: democracias enfermas 11. O período neoliberal 1. Mercados abertos e globalização O “Consenso de Washington” A integração regional 2. A sociedade latino-americana nos anos 1990: os novos movimentos

O Chiapas zapatista 3. Luzes e sombras das democracias latino-americanas Neopopulismo e neoliberalismo: o Peru de Fujimori e a Argentina de Menem 4. Bill Clinton e a América Latina Cuba depois da Guerra Fria 5. A crise do neoliberalismo 2001: o colapso argentino 12. O novo século: entre futuro e déjà-vu 1. A inflexão à esquerda Lula e Chávez, destinos cruzados 2. O crescimento econômico e os seus limites A variante chinesa 3. As sociedades latino-americanas no novo milênio O indigenismo radical 4. A transformação do panorama religioso 5. A América Latina e o mundo George W. Bush e a América Latina 13. Uma transição turbulenta. A América Latina nos anos 2010 do século XXI 1. Formigas e cigarras: a prestação de contas econômica A Aliança do Pacífico 2. As novas classes e o núcleo duro da desigualdade Narcotráfico, criminalidade, corrupção 3. Democracias liberais e democracias populistas 4. Populismos em crise 5. Um lugar no mundo

Cuba volta para a família? Paz na Colômbia Um papa latino-americano

Prefácio Este livro adota alguns critérios precisos e resulta de algumas escolhas bastante difíceis. Antes que o leitor inicie sua leitura, então, é oportuno especificar esses critérios e opções para dar-se conta das técnicas utilizadas na sua composição. Com efeito, já o título, Uma Breve História da América Latina, é em si mesmo tão amplo e ambicioso, que se presta a expectativas exageradas ou distorcidas e, por conseguinte, a inúmeras decepções. Comecemos com os limites. A primeira escolha foi pela delimitação, por dois bons motivos. O primeiro, mais evidente, é o espaço: seria inimaginável comprimir em pouco mais de trezentas páginas a história de dois séculos de um continente inteiro. O segundo, mais importante, é o respeito ao leitor. Uma história completa da América Latina contemporânea implicaria a inclusão de uma torrente de nomes, datas e circunstâncias para cada república que a compõe, do que resultaria um turbilhão caótico em que apenas alguém familiarizado com o assunto conseguiria se orientar e os demais acabariam por perder-se e enervar-se. Decorre daí a opção de limitar ao máximo o recurso a nomes, datas e circunstâncias, registrando apenas os imprescindíveis, e a decisão de não seguir passo a passo cada caso nacional, mas também de evocálos em espaços oportunos quando se constituem como emblemas das características gerais de uma determinada época. Esse procedimento tem por objetivo dedicar um espaço especial aos países cuja história mais influenciou a trajetória de outras nações e da região em geral, como Brasil, México e Argentina. O leitor poderá perceber uma ou outra ausência ou talvez criticar inclusões e exclusões de um ou outro personagem ou acontecimento. Não obstante, esse foi o critério seguido. Os limites definidos para este livro são compensados por uma aspiração, sendo que explicitá-la constitui questão de honestidade intelectual. Apesar do seu caráter informativo e de divulgação, ele propõe uma chave peculiar de leitura da história latino-americana que o leitor não terá dificuldade em apreender desde as primeiras páginas e em reencontrá-la à medida que prossegue ao longo do volume. Uma chave que também pressupõe escolhas precisas e à qual se deve a especial atenção dedicada à história política, às ideologias e à história religiosa, como também ao entrelaçamento desses constituintes. A convicção é a de que nessa trama está o caminho mais eficaz

para se chegar às esferas íntimas da história latino-americana e para se compreender suas fibras mais profundas. Essas esferas e fibras irão manifestar suas características peculiares, mas também as que fazem da América Latina contemporânea uma região mais próxima da Europa latina do que se está habitualmente disposto a admitir. Por fim, duas palavras sobre a bibliografia, restrita a apenas dez títulos por capítulo. Longe de ser completa ou de pretender indicar os textos básicos para cada tema tratado, ela não passa de um instrumento de orientação, caso o leitor deseje aprofundar um tema ou outro. Isso não significa que os títulos referidos não tenham sido selecionados com todo o cuidado, e tampouco que os não elencados não sejam muitas vezes igualmente ou ainda mais significativos ou válidos.

Introdução à história da América Latina Contemporânea

1. Unidade e pluralidade A dimensão primordial da história é o tempo, mais precisamente, o passado. A história não se desenvolve no vazio, mas em espaços definidos. Da mesma forma não a constroem entidades abstratas, mas homens de carne e ossos, homens inseridos no tempo e no espaço. Assim, este é o ponto de partida para conhecer também a história dessa parte do mundo denominada América Latina: a história do espaço que ocupa e dos homens que a habitam. Antes de iniciar esse estudo, porém, é oportuno desfazer alguns equívocos ou estereótipos. Em primeiro lugar, América Latina é aqui um conceito histórico, não um espaço geográfico, ou seja, trata-se da área do continente americano onde, a partir do século XVI, instalou-se a civilização ibérica, ou ainda, a área colonizada pelos reinos de Portugal e Espanha. A América Latina evoca assim a ideia de civilização, significando que, em termos geográficos, ela se divide em três troncos: América do Norte, a que pertence o México; América Central, da qual fazem parte os pequenos países do Istmo e do Caribe; e a América do Sul. Implica também que nem todas as terras situadas ao sul dos Estados Unidos constituem América Latina: no mar do Caribe e na América do Sul, encontramos territórios que, em termos de civilização, pertencem ao mundo anglo-saxão, como Belize e Jamaica, ou a outras potências não latinas, como o Suriname, ex-colônia holandesa. Dessa perspectiva, esses territórios não compõem a América Latina, embora mantenham laços íntimos com ela e com sua história.

Dessa premissa decorre um princípio de unidade, ou seja, alguma coisa une esse imenso espaço compreendido entre o México e a Argentina, entre o Oceano Pacífico e o Oceano Atlântico. Esse elo de ligação é a história, vale dizer, o fato de que todo esse território pertence há séculos a uma mesma civilização, uma civilização que deixou as respectivas línguas e a própria religião como herança: línguas e religião cuja importância é apreciada na sua exata dimensão, compondo esses dois fatores, efetivamente, os fundamentos de uma visão do

mundo, de um sistema de valores que plasmou as sociedades e as mentalidades; em outras palavras, constituem a trama profunda de uma civilização. Seria errôneo e enganoso, porém, abordar a história da América Latina sem justapor a esse princípio de unidade um princípio de pluralidade, ou de diferença. Com efeito, se a América Latina tem um tronco comum, é também verdade que este se reveste de distintas formas de país para país, de região para região. As razões para isso são incontáveis, todas válidas: porque antes ainda da colonização europeia, havia aqui grandes civilizações, assim como povos nômades, territórios muito povoados e também semidesertos; porque as enormes distâncias de um ponto a outro e os obstáculos naturais, ainda mais gigantescos, fizeram com que a fragmentação prevalecesse sobre a unidade, bem como durante os séculos do domínio ibérico; porque o comércio de escravos antes e as grandes ondas migratórias europeias depois afetaram de modos bem diferentes as inúmeras áreas, mesclando etnias e culturas. Enfim, porque desiguais são os climas e a natureza, os produtos da agricultura e os do subsolo, os níveis de desenvolvimento e os de bem-estar. Assim como, do mesmo modo, a unidade linguística e religiosa não impede a existência de uma infinidade de línguas ou de cultos, em geral minoritários, mas às vezes majoritários em alguns grupos sociais ou étnicos. Essas e outras razões justificam afirmar que a pluralidade se aplica aqui tanto quanto a singularidade e que é perfeitamente válido falar-se em “histórias das Américas Latinas”. Pode parecer complicado, mas é oportuno partir exatamente deste ponto: da realidade una e múltipla da América Latina, sendo recomendável evitar generalizações fáceis em torno dessa história. Não obstante, deve-se também procurar o seu fio comum e condutor, tendo o cuidado de avaliar com atenção o que a une e o que a divide: o que, em suma, faz dela uma história una, e não muitas e diferentes histórias sem coesão.

2. O espaço latino-americano A história propiciou à América Latina uma civilização unitária, mas a geografia é aliada da fragmentação. A grande maioria dos cubanos e chilenos, dos argentinos e equatorianos fala a mesma língua e venera o mesmo Deus, mas vive em ambientes absolutamente diferentes. Princípio semelhante aplica-se aos habitantes de um mesmo país: nos países andinos, por exemplo, muitos vivem nas regiões serranas, ao passo que outros vivem no litoral. A enorme variedade da geografia latino-americana não emergirá em poucas linhas, mas vale a pena expor algumas características. O motivo pode não ser outro senão o de orientar-se nessa área, pois, observando-a bem, ela se revela pelo que é: uma paleta de mil cores. Por outro lado, do mesmo modo que a história, também o espaço plasma as civilizações. Estas, no seu aspecto material, são o resultado do que o clima e o ambiente oferecem ou negam, possibilitam ou impossibilitam. Por isso, é oportuno lembrar que a América Latina se estende através de latitudes muito diferentes e que se grande parte dela se situa nas regiões tropicais, existem extensas zonas fora dessas áreas onde predominam climas temperados: Argentina, Chile, Uruguai, assim como parte do Paraguai e sul do Brasil. É preciso então levar em conta a extraordinária extensão vertical do espaço latino-americano, onde a presença de um grandioso sistema montanhoso define as condições de vida para as mais diversas altitudes e para os mais variados climas: no México, na América Central e em todos os países andinos. Pode-se compreender muito bem o intricado labirinto diante do qual se está e o que implica, caso se acrescentem a tudo isso as pouco povoadas, mas imensas, zonas de florestas tropicais, especialmente na região amazônica, delimitadas por vários países; as vastas regiões áridas e desérticas entre o Peru e o Chile, mas também no México; ou as terras baixas e pantanosas tão frequentes entre o Brasil e o Paraguai, e ainda no Panamá e na costa colombiana. Não é difícil imaginar como tantas diferenças produziram muitas outras e dos mais variados tipos: econômicos, e por isso também, como é inevitável, sociais e culturais. Como o México e as nações da cordilheira andina desenvolveram antigas vocações minerárias, dadas as matérias-primas acumuladas em suas montanhas. Como as terras baixas banhadas pelo mar do Caribe e as de climas subtropicais ao longo do Atlântico ou do Pacífico sul favoreceram o cultivo intensivo dos produtos agrícolas típicos desses climas. Como foram exploradas as condições das grandes planícies aluviais da Argentina e do Uruguai, assim como parte do sul brasileiro e do norte mexicano, para a criação de gado e a produção de cereais. Finalmente, como as faixas costeiras desenvolveram uma propensão maior ao comércio, sendo por natureza mais abertas ao mundo externo do que os extensos territórios que a geografia isolou no coração do

continente ou entre os profundos vales das cadeias de montanhas. Além disso, é fácil imaginar como toda essa heterogeneidade transpõe as fronteiras nacionais. Salvo raríssimas exceções, como os pequenos Uruguai e El Salvador ou as ilhas antilhanas, não há país da região que não contenha em si toda essa variedade: os mais extensos, como Brasil, México e Argentina; os de extensão mediana pelos padrões da região, como Colômbia, Venezuela, Peru, Chile e Bolívia; e também os menores, como Equador e Guatemala, para citar apenas dois. Tudo isso levanta questões importantes. A imensidão dos espaços, a variedade dos climas, produtos, culturas e os obstáculos naturais tornaram extremamente difíceis as comunicações de uma parte a outra dessa imensa área, tanto de um país para outro, como de um ponto a outro no mesmo país; mais no passado do que no presente, mas não raro ainda hoje. Adotando-se o termo “comunicação” no seu significado mais amplo: pessoas, mercadorias, modas, ideias, informações, normas e assim por diante. Assim, fundamentalmente, é o seguinte o que esta breve reflexão sobre o espaço latino-americano nos deixa para prosseguir com a nossa história: o fato de passar a fazer parte dos impérios ibéricos impôs a essa imensa porção da América um princípio de unidade que a geografia tendia a desmentir ou a dificultar. O espaço dividia o que a história aspirava a unir. A unidade e a multiplicidade: a tensão continua.

3. Os latino-americanos Tudo o que se disse a respeito da geografia aplica-se com maior razão à população da América Latina. Além de muito heterogênea devido às origens e à composição étnica, essa população distribui-se de forma bem irregular no território. Decorre daí, uma vez mais, que o princípio da unidade histórica estabelecido pelos impérios ibéricos e transmitido como herança às nações modernas da América Latina encobre realidades humanas muito distintas, estratificadas no tempo à medida que novas ondas migratórias chegavam para preencher os imensos espaços latino-americanos. É impossível descrever em minúcias o complexo quebra-cabeça da América Latina, mas é possível apresentar algumas generalizações, sempre válidas, apesar de antigas. Em primeiro lugar, tem-se uma América indígena, isto é, um território imenso em que a maioria da população descende de ancestrais autóctones que viviam na América no tempo das conquistas ibéricas. Por isso, suas raízes encontram-se nas áreas onde à época se situavam os maiores impérios pré-colombianos e onde se concentrava a população mais numerosa: o México e boa parte da América Central, onde reinavam astecas e maias; e a região andina: Peru, Bolívia e Equador, com importantes ramificações no Chile e na Argentina, domínio dos incas. Depois, tem-se uma América branca, em que a população de modo geral descende dos colonizadores ibéricos ou então dos grandes fluxos migratórios que alteraram as feições de algumas áreas no período compreendido entre a metade do século XIX e a I Guerra Mundial. Essa América coincide com a Argentina e o Uruguai, e em boa parte também com o Chile e o Brasil centro-meridional, mais povoado e moderno. Por fim, sempre generalizando, tem-se uma América negra em todas as áreas em que a escassez ou a retração de mão-de-obra autóctone para o trabalho na agricultura abriu as portas para o comércio de escravos africanos, com duração até o século XIX tardio. Essa é uma área em que boa parte da população descende de avós africanos, coincidindo, por um lado, com a bacia do Caribe e o grupo de países locais e, por outro, com as faixas costeiras tropicais, como o nordeste do Brasil ou as costas do Peru e do Equador. Outras considerações se acrescentam a tudo isso: primeira, não existem fronteiras precisas entre essas Américas, pois ondas imigratórias diversas, como as provenientes da Ásia ou do Oriente Médio, ou ainda as migrações internas, sempre tenderam e ainda persistem em alterá-las; segunda, muitos desses componentes étnicos ou, com maior frequência, todos eles, estão presentes em toda parte, embora em proporções diferentes de um país para outro, com a constatação de que ao lado de países mais homogêneos encontram-se outros em que os contrastes étnicos continuam profundos; terceira, cada um desses componentes é por sua vez heterogêneo, não existindo um protótipo indígena,

branco ou negro; quarta, o povoamento da América Latina quase sempre ocorreu depois de traumas violentos, como a Conquista e a escravidão, com a consequência de que as diferenças étnicas tenderam a se tornar também barreiras sociais rígidas. Por sua história e por sua natureza, esse intrigante mosaico humano se presta tanto para reforçar o princípio da unidade quanto para dar renovado impulso à fragmentação. Ele favorece a unidade na medida em que se torna um melting pot (cadinho), isto é, uma miscigenação étnica e cultural capaz de criar uma raza cósmica, para usar a expressão de um célebre intelectual mexicano que encontraremos no devido tempo. Em outras palavras, capaz de gerar um conjunto humano novo e original, mestiço por natureza. Por outro lado, estimula a fragmentação quando as barreiras entre os componentes étnicos permanecem insuperáveis, caso em que a etnia pode se tornar etnonacionalismo, isto é, uma identidade excludente e autossuficiente. Não por acaso, ambos os fenômenos estiveram e ainda continuam presentes na história da América Latina, onde a heterogeneidade é mais um recurso do que um problema ou mais uma oportunidade do que um desafio.

4. Política e religião: a unidade e a fragmentação Em algum momento, a história sobrepôs o seu caráter unitário a esse panorama humano e geográfico fragmentado, alcançando maior ou menor êxito de acordo com o aspecto levado em consideração. Na origem da unificação dessa imensa área até então desprovida de vínculos internos está um acontecimento traumático: a Conquista espanhola, à qual as coroas de Espanha e Portugal deram continuidade, desde o século XVI, com a colonização e a evangelização. A partir desse momento somente é que a região que chamamos de América Latina começa a ser percebida, e com o tempo a perceber-se, como uma unidade política e espiritual. É preciso esclarecer, porém, que as colônias espanholas e a colônia portuguesa, o Brasil, viveram períodos de conflito mais do que de harmonia desde então. Naturalmente, a unidade política foi por muito tempo mais teórica do que prática, dada a extensão do território e a impossibilidade, nas condições daqueles séculos, de governá-lo com eficiência e eficácia de Madri ou de Lisboa. Essa situação, contudo, não constituía impedimento para que os reis, os seus funcionários e as suas leis instituíssem um princípio de unidade. Este consistia no fato de pertencer a um único e grande império e na obediência a um mesmo soberano. O corolário principal desse princípio de unidade politica foi o da unidade espiritual. Com efeito, os impérios ibéricos estavam desde o início imbuídos da missão de expandir as fronteiras da cristandade até as novas terras, convertendo ao catolicismo, por bem ou por mal, os “pagãos” que ali viviam ou chegavam. Assim os latino-americanos, uns por amor e outros pela dor, cresceram unidos na obediência à Igreja de Roma, que contava com os reis ibéricos e com o clero que lhes era submisso como seus abonadores. É oportuno especificar desde já os sucessos e fracassos, os resultados e as limitações desse poderoso princípio de unidade e seu corolário. Considerando bem, o sucesso principal e mais duradouro está no fato de nos referirmos a toda essa imensa área empregando um termo comum: América Latina, hoje; Hispano-américa ou Ibero-américa, no passado. Ou seja, toda ela não só compõe uma unidade linguística e religiosa, o que é determinante, mas é também vivida e entendida no imaginário coletivo como um conjunto. Em suma, a América Latina continua sendo uma comunidade imaginada, isto é, uma civilização com características próprias e distintas das de outras civilizações. Nesse aspecto, ela é igualmente um mito. Tanto ao longo da história como na atualidade, no mundo político e intelectual como na vida quotidiana, nos estudos como na retórica, permanece mais do que nunca vivo o mito da unidade latino-americana. Mito político e mito espiritual lado a lado. O que está dito, porém, não impede que aquilo que os mitos e o imaginário continuam mantendo unido tenha sido dividido pela realidade. Ou seja, que o

princípio da unidade, com o tempo, tenha revelado os próprios limites. Para começar, a unidade política não sobreviveu à queda do império espanhol e à progressiva decadência do português no início do século XIX. Os projetos unitários e os apelos à coesão não impediram então a fragmentação política do continente nos inúmeros Estados que ainda hoje compõem o mapa da América Latina. No que se refere à unidade espiritual, a fé da imensa maioria e a retórica da fraternidade latino-americana nunca absorveram totalmente os efeitos do trauma da Conquista, materializados na existência de mundos espirituais separados, na maioria das vezes por barreiras étnicas e sociais, de modo particular nos países onde a população é de origem mais heterogênea. Por isso, impulsos centrípetos e forças centrífugas sempre marcaram e continuam a cadenciar o movimento da história latino-americana: num dos lados encontram-se os fortes e recorrentes estímulos à cooperação e à integração, à unidade política e à comunhão espiritual; no outro, igualmente ou ainda mais fortes e recorrentes, situam-se as razões da fragmentação.

5. O extremo Ocidente O último e fundamental passo para cruzar o limiar que leva ao estudo da América Latina contemporânea refere-se à sua localização no horizonte das civilizações modernas. A esse respeito é oportuno afirmar taxativamente: com sua geografia americana e sua heterogeneidade populacional e cultural, por sua história e civilização, a América Latina é parte integrante do Ocidente. A seu modo, óbvio, com as peculiaridades impostas por seu espaço e sua população, e pelo modo traumático como se deu esse acesso. E, do mesmo modo, sem negar que nos seus vincos persistem ecos de épocas remotas, anteriores ao seu ingresso na civilização ocidental. Não obstante, sem dúvida, a América Latina faz parte do Ocidente: não só porque as línguas e a religião que nela predominam são ocidentais, mas também porque foi protagonista da civilização ocidental e da sua parábola durante séculos: desde quando, incorporada aos impérios ibéricos, participou de cada etapa expansionista da civilização ocidental e foi por ela impregnada e plasmada. De forma consciente e determinada nas suas elites crioulas, isto é, americanas, mas de origem espanhola. De forma passiva ou coagida na sua população autóctone, impondo à força a Conquista no Ocidente. Este é um aspecto fundamental da história latino-americana, sobre o qual é preciso insistir. Conquistada pelos reis de Portugal e Espanha, a América ibérica não foi para eles uma mera presa de guerra a espoliar ou um posto avançado a partir do qual seria feita a exploração de riquezas. Sim, foi isso, naturalmente, mas também muito mais. De fato, a América ibérica se tornou ela própria Espanha e Portugal, permanecendo nessa condição por cerca de três séculos. Em outras palavras, para todos os efeitos, ela foi parte dos impérios metropolitanos, que a exploraram, mas povoando-a; a dominaram, mas governando-a; a controlaram, mas como membro de si mesmos, não como elemento estranho e subjugado. Esses impérios projetaram nela não só o próprio apetite de grandeza material, mas igualmente o seu anseio civilizatório, o anseio típico de uma época de impérios universalistas que, no caso, almejavam ampliar as fronteiras da cristandade. Em termos concretos, isso significa que a moderna história política, social, econômica, cultural e religiosa da América Latina é um capítulo da história mais geral do Ocidente. Um Ocidente pelo qual foi forjada e para o qual deu contribuições importantes. Melhor dizendo: a história da América Latina é inconcebível separada da história ocidental, do mesmo modo que a história do Ocidente moderno é incompreensível sem a inclusão da América Latina. Dito isso, que constitui apenas o passo inicial, também é preciso esclarecer a qual Ocidente pertence a história latino-americana, pois o conceito de Ocidente não é unívoco nem imutável na história. Antes de tudo, a América Latina entrou

no Ocidente tornando-se Europa, da qual foi parte importante durante séculos, embora localizada no hemisfério americano. Europeus eram seus soberanos e seus parceiros comerciais; europeus eram o clero que a evangelizava e as origens das suas instituições. Europeias eram as elites que dirigiam o seu destino, tanto por suas origens e cultura, como por suas ideias e costumes. Em síntese, o que a geografia situa na América, a história colocou na Europa. A questão é importante demais para compreender as afinidades íntimas que ainda vinculam a América Latina ao Velho Mundo. No entanto, por outro lado, a sua história nos últimos dois séculos é também, como se verá, a história da deseuropeização da América Latina e da sua progressiva americanização. Ou da “reconexão”, poder-se-ia dizer, entre geografia e história. Contudo, não é suficiente dizer que a América Latina entrou no Ocidente pela porta europeia; é preciso explicitar de que Europa se está falando: essa porta é a da Europa latina, ou, mais precisamente, a da Europa católica, numa época em que a Reforma protestante dividia a cristandade ocidental. Bibliografia Bakewell, Peter, A history of Latin America: c. 1450 to the present, 2nd ed., Malden (Mass.): Blackwell Pub., 2004. Bethell, Leslie (edited by), The Cambridge history of Latin America, Cambridge-New York: Cambridge University Press, 1984-2008. Bulmer-Thomas, Victor, Coatsworth, John H. e Cortés Conde, Roberto (edited by), The Cambridge economic history of Latin America, Cambridge-New York: Cambridge University Press, 2006. Carmagnani, Marcello, L’altro Occidente: l’America Latina dall’invasione europea al nuovo millennio, Torino: Einaudi, 2003. Dabène, Olivier, L’Amérique Latine à l’époque contemporaine, 5éme éd., Paris: Armand Colin, 2003. Halperín Donghi, Tullio, Historia contemporánea de América Latina, Madrid: Alianza Editorial, 1970. Lucena Salmoral, Manuel (coordinador), Historia de Iberoamérica, Tomo III, Historia Contemporanea, Madrid: Catedra, 1992. Malamud, Carlos, Historia de América, Madrid: Alianza Editorial, 2005. Meyer, Jean, Historia de los cristianos en América Latina: siglos XIX y XX, México, D.F.: Vuelta, 1989. Skidmore, Thomas E. e Smith, Peter H., Modern Latin America, 6th ed., New York: Oxford University Press, 2005.

PRIMEIRA PARTE Da independência à II Guerra Mundial 1808-1945

1. O legado colonial 1. A herança política Ao longo de quase três séculos, quando a Conquista se transformou em colonização, na primeira metade do século XVI, até o momento em que conquistou a independência, no início do século XIX, a América Latina foi Europa. Três séculos durante os quais o mundo mudou, e a América ibérica com ele. Mudaram ideias e tecnologias, as mercadorias e as formas de trocá-las, as sociedades e a sua organização. E mudou o equilíbrio entre as potências, pois as ibéricas entraram em declínio, enquanto outras, de modo particular a GrãBretanha e a França, emergiam. Não é possível descrever em poucas palavras o que esses três séculos significaram para a América Latina, por isso é necessário distinguir a situação da América hispânica — à época folgadamente a mais extensa, rica e povoada —, da portuguesa, ainda pouco habitada e concentrada principalmente nas áreas litorâneas, pelo menos até o século XVIII. Não obstante, é possível dizer alguma coisa sobre o que ambas deixaram de herança, sobre seu legado, sem o qual a história subsequente perderia seus imprescindíveis pontos de referência. A primeira observação importante é que uma nova civilização nasceu nesses séculos nesta parte da América. Desde então, essa América assimilou os traços e o destino da civilização hispânica, cujo elemento unitário e princípio inspirador residiam na catolicidade, e cuja missão política consistia precisamente na defesa e na expansão do catolicismo. Bela ou feia, coagida ou consensual, controvertida como toda civilização, este dado é inquestionável; uma vez que, por civilização, entende-se um conjunto complexo de instrumentos materiais e de valores espirituais, de instituições e de costumes com potencial para plasmar tanto a organização social e política quanto o universo espiritual e moral dos povos sob sua influência. Nesse sentido, a civilização hispânica na América não foi exceção, tanto assim que os Estados e as populações protagonistas da história latino-americana contemporânea herdaram as suas características.

A América segundo Theodore de Bry. “America Sive Novus Orbis Respectu Europaerum Inferior Globi Terrestris Pars”, de Theodore de Bry e Girolamo Benzoni, Frankfurt, 1596.

Em termos políticos, os impérios ibéricos, em especial o dos Habsburgos da Espanha que ocuparam o trono de 1516 até 1700, foram organizados e concebidos de modo a deixar como herança, mais uma vez, tanto um princípio de unidade quanto um princípio de fragmentação. Uma dosagem apurada e sábia desses dois princípios constituiu os fundamentos do regime pactual que governou as relações entre o soberano e os seus reinos. Um regime idêntico vigorava do mesmo modo em todos os seus reinos e possessões, seja nos peninsulares ou nos americanos. Em que consistia esse pacto tácito, não escrito, porém fruto de um costume arraigado? Acima de tudo, na unidade imperial. Reino universalista regido pela missão global de expandir a cristandade, o império espanhol idealizou a si mesmo em perfeita sintonia com o imaginário religioso que o inflamava: como um imenso organismo que refletia a ordem divina na harmonia entre as suas partes. Uma ordem cuja unidade política e espiritual tinha o rei como fiador,

coração pulsante e ponto de referência único daquele organismo, titular da lei e protetor da Igreja. Porém, como efeito colateral de um pacto implícito, o rei retribuía o reconhecimento da sua soberania e a obediência dos súditos com concessões importantes. Em princípio, concedia o que vulgarmente se exprime pela fórmula popular la ley se acata pero no se cumple: a lei do rei era reconhecida como sinal de submissão ao seu poder legítimo; o governo, no entanto, era outra coisa, pois baseava-se nos usos, nos costumes e nos poderes das elites locais. Estas faziam parte de um império unitário, que se estendia desde os altiplanos mexicanos até os andinos, unidas pela obediência a um só rei e a um só Deus; mas gozavam de ampla autonomia. Desse modo, os reis, que na realidade não tinham condições de governar essas remotas possessões desde Madri, resguardavam-se do perigo de que as colônias, caso se sentissem oprimidas pelo poder central, desejassem seguir seus próprios caminhos. Mas esses reis admitiam também o princípio da fragmentação política, predominante após a derrocada do império: na verdade, apenas a obediência ao rei conseguia manter unidos os inúmeros membros dispersos do grande império, todos desconhecidos entre si. Outro fator, espiritualmente forte, mas fraco politicamente, somava-se a essa obediência: o fato de pertencer a uma mesma civilização.

2. A sociedade orgânica Pelo período de três séculos, as relações entre as diversas partes dessas sociedades, muito diferentes de uma região para outra, foram muito complexas, articuladas e variadas. Ou seja, não existe um modelo social válido para cada um dos muitos e diferentes territórios governados pelas coroas ibéricas. Por isso, para reunir as características das relações sociais que tanto impregnaram as estruturas e a mentalidade da América ibérica, e que mais tarde mais se fizeram sentir na história da América Latina independente, convém ater-se a algumas considerações de caráter geral. Em termos gerais, pode-se dizer que o espírito e os instrumentos sobre os quais se assentou a arquitetura das sociedades ibéricas na América foram tão importantes, a ponto de forjarem uma ordem corporativa. Essa ordem era a norma para as sociedades da época, mas assumiu significado e formas peculiares nessa América de características espaciais e humanas tão singulares. As leis que regulavam essas sociedades, e mais ainda os costumes e as normas implícitas do regime pactual com a coroa, deram origem a uma sociedade de corporações. Uma sociedade, para sermos mais claros, em que os direitos e os deveres de todo indivíduo não eram iguais aos de qualquer outro, já que dependiam dos direitos e deveres da classe social a que o cidadão pertencia. Essa realidade estava presente no topo da sociedade, onde funcionários, clero e

militares possuíam os seus fueros, isto é, os seus privilégios e obrigações relativas, e na sua base, onde também as massas rurais, principalmente indígenas, tinham muitas obrigações e direitos relativos. Como toda sociedade ocidental da época, a sociedade ibérica nas Américas também era uma sociedade orgânica. Em suma, constituíam sociedades com duas características fundamentais: eram sociedades “sem indivíduos”, no sentido de que os indivíduos eram subordinados ao todo, isto é, à classe social a que pertenciam e ao organismo social no seu conjunto; e eram hierárquicas, pois, como em todo corpo orgânico, neste também nem todos os membros tinham a mesma relevância e cada um deveria desempenhar o papel que Deus e a natureza lhe haviam atribuído. Por isso, sobejavam contrastes e ambivalências nessas sociedades. Contrastes, uma vez que essas sociedades, assentadas sobre desigualdades profundas e institucionalizadas, sobre papéis bem definidos de dominadores e dominados instituídos desde a colonização, estavam sujeitas a revoltas recorrentes ou a uma hostilidade surda contra a ordem estabelecida. Ambivalências, pois sua natureza orgânica abria também aos mais oprimidos, às comunidades indígenas, por exemplo, amplas possibilidades de governar a si mesmos, desde que cumpridas as obrigações pré-estabelecidas, seja dispensando-os de tributos elevados com seu trabalho, seja pagando seus impostos. Significa que, embora permeadas por fortes tensões, aquelas sociedades apresentavam também nos seus rígidos estratos alguns aspectos que em pouco tempo seriam idealizados: senso comunitário, autonomia e proteção. É preciso levar esse fato em conta para compreender a extraordinária resistência ao tempo e à mudança de vários aspectos dessa ordem antiga. Uma ordem corporativa, portanto, que assumiu características inéditas na América Latina, mais marcantes do que as de qualquer outra ordem análoga, sendo a mais evidente e pródiga em consequências a sua natureza segmentada. As espessas barreiras existentes entre um estrato e outro daquelas sociedades não resultavam de fato apenas da riqueza ou da linguagem. Mais do que isso, eram cumulativas, isto é, eram também barreiras étnicas e culturais que, especialmente onde a população indígena ou escrava era mais numerosa, equivaliam a compartimentos que separavam mundos estranhos entre si, todavia forçados a viver em estreita relação. Em linhas gerais e na sua essência mais íntima, assim eram as sociedades que os novos Estados da América Latina herdaram dos impérios ibéricos: sociedades repletas de profundas e perigosas lacunas, mas também unidas por estreitas redes de vínculos antigos. Nelas, “o nascimento do indivíduo”, ou seja, a política moderna baseada no primado dos direitos individuais, caiu como uma imensa pedra num pequeno lago.

Capa do livro Política Indiana, de Juan de Solorzano Pereira, Madri, 1648.

3. Uma economia periférica Para todos os efeitos, como parte da Espanha e de Portugal, a América ibérica passou a integrar-se a esses grandes impérios desenvolvendo uma vocação econômica complementar às necessidades globais desses dois centros. Para citar o exemplo mais notório, sabe-se que os metais preciosos americanos foram decisivos para financiar as grandes ambições e as reiteradas guerras europeias da corte espanhola; e em certa medida para alimentar a acumulação originária que possibilitou à Revolução Industrial alçar voo. Isso não quer dizer que não houvesse reciprocidade entre as fronteiras americana e europeia desses impérios, dado o intenso intercâmbio de produtos que alterou radicalmente o consumo num lado e no outro. Assim, por exemplo, os europeus “descobriram” o tomate, a batata, o tabaco e o abacaxi; e os americanos, o café, a cana-deaçúcar e a banana, culturas essas dos quais se tornaram grandes produtores e exportadores, a ponto de afetar de forma decisiva a história alimentar, e, portanto, demográfica, da Europa.

Espanhóis, indígenas e escravos africanos Em toda a América, a população branca de origem europeia ocupava o topo da hierarquia social e controlava a política, a economia, a justiça, as Forças Armadas e a religião. Além disso, em sua grande maioria, concentrava-se nos centros urbanos. Internamente, no entanto, era heterogênea, traço que foi se acentuando à medida que, ao longo do período colonial, novas ondas migratórias aportavam na América, vindas da península ibérica. Pouco a pouco, novos personagens se juntaram ao núcleo originário dos encomenderos, isto é, dos conquistadores ou dos seus descendentes que num primeiro momento haviam recebido do soberano, como dote, um território definido em termos que incluíam também a população autóctone que o habitava; com o tempo, estes se transformaram em grandes proprietários de terras, donos de centenas de escravos ou indígenas. Entre os novos que chegavam, emergiram com o tempo artesãos, funcionários e profissionais diversos, todos organizados em corporações que delimitavam seus campos de atuação e definiam seus direitos e deveres. Naturalmente, eram muitos também os brancos que se dedicavam ao comércio e à atividade mercantil ou que se empregavam em diversas outras ocupações menores. Tudo isso fazia da sociedade branca o compartimento mais alto daquelas sociedades, embora muito heterogêneo e diversificado. Tanto assim que em seu bojo, com o tempo, tornou-se cada vez mais evidente a distinção entre crioulos, os descendentes de europeus nascidos na América e pertencentes à sociedade local, e os peninsulares, que chegavam da península na qualidade de funcionários; sobretudo desde o século XVIII, quando as reformas introduzidas pela Casa Bourbon incluíram o rígido controle da coroa sobre todos os cargos civis, militares e eclesiásticos mais importantes. A população indígena estava claramente separada da branca, tanto socialmente, submetida a severos regimes de exploração do trabalho, quanto territorialmente, uma vez que em sua maioria estava confinada nas periferias das cidades ou na zona rural. Em geral, as pessoas se referiam a essa população como “República dos Índios”. Ao mesmo tempo, a população indígena da Nova Espanha, o futuro México, mesclou-se com a população branca mais ativamente do que as populações indígenas dos Andes, de modo que estas preservaram características étnicas mais definidas. Isolada nas próprias comunidades, a massa da população indígena conservou grande parte das antigas distinções entre nobres e plebeus, dos seus antigos usos e costumes, da sua organização familiar e do uso das terras comunitárias, já no auge antes da Conquista ibérica.

Capa do livro El primer nueva corónica y buen gobierno, de Felipe Guaman Poma de Ayala, México, Siglo Veintiuno Editores, 1980.

Por fim, algumas linhas sobre a população africana que chegou à América ibérica através do tráfico de escravos. Pelas estimativas mais confiáveis calculados em mais de três milhões e meio de indivíduos durante o período colonial, os que chegavam tendiam a se concentrar nas áreas tropicais, onde os habitantes indígenas eram poucos ou inexistentes, e também em áreas, como as Antilhas, onde os aborígines foram dizimados e desapareceram devido às epidemias causadas pelo contato com os conquistadores. Em um primeiro momento, nos territórios da coroa espanhola, a importação de africanos foi por vezes concebida como um sistema destinado a preservar os índios da escravidão, pois eram considerados juridicamente livres, e a própria Conquista tinha por objetivo protegê-los e evangelizá-los. Assim, a grande maioria dos escravos africanos acabou trabalhando nas plantações, mas também formando o grande contingente dos servidores domésticos ou atuando como intermediários de dignitários brancos em zonas quase sempre povoadas por indígenas. Seu elevado valor comercial e a robusta resistência física que demonstravam tornaram-nos em muitos casos cobiçados aos olhos das elites crioulas, fato que com certa frequência lhes permitiu, sobretudo na América espanhola, sair do nível mais baixo e ascender na escala social.

Por fim, por mais segmentadas que fossem aquelas sociedades, não existiam muros de todo intransponíveis entre os seus compartimentos. De modo que, tanto através dos constantes nascimentos de mestiços ou mulatos, quanto pela via do crescente acesso de indígenas ou escravos africanos à vida social da República dos Espanhóis, com o tempo elas foram assumindo contornos cada vez mais complexos e distintos de região para região. O mais relevante, porém, para compreender a herança econômica transmitida pelo período colonial à América Latina independente é o fato de que nesses séculos essa parte da América passou a ser periferia de um centro econômico distante. Um centro, o espanhol bem mais do que o português, que exerceu e procurou conservar o monopólio comercial com os territórios americanos, algo nada original para aquela época dominada pelas doutrinas mercantilistas. E mais, dominada pela ideia de que o monopólio econômico sobre as próprias possessões era instrumento decisivo de poderio, devendo ser a todo custo salvaguardado da concorrência de outras nações. Esse fato imprimiria características perduráveis e peculiares à economia latino-americana, até porque o centro a que permaneceu vinculada, o das potências ibéricas, era tão poderoso no século XVI quanto decadente dois séculos mais tarde. Ou seja, pouco a pouco, esse mesmo centro também se tornou periferia de outro centro, aquele que do norte da Europa liderou a revolução no comércio e na indústria do século XVIII em diante. Essa redução a uma condição periférica figura entre os principais legados econômicos do período colonial latino-americano, significando que a tendência da economia da América ibérica foi a de se organizar em torno do comércio exterior, tanto para obter as necessárias receitas financeiras via exportação de matérias-primas, quanto para, via importação, prover-se de inúmeros bens fundamentais que o centro do império se dispunha a fornecer. Essa vocação periférica continuou caracterizando a economia latino-americana mesmo quando o monopólio comercial com a península ibérica começou a se desestabilizar sob o impulso da concorrência inglesa, francesa ou holandesa; e com maior razão ainda quando o cordão umbilical com Espanha e Portugal se rompeu por completo e a economia da América Latina ficou órfã de um vínculo de que dependia totalmente e de que tinha necessidade vital. Até que tornou a atá-lo com a nova potência hegemônica, a Grã-Bretanha. Tudo isso resultou também em outros corolários, dos quais a história econômica da América Latina logo expôs marcas profundas. A começar pela fragilidade intrínseca do mercado interno, cujo desenvolvimento foi dificultado pelos imensos espaços continentais e pela estrutura política do império, porém,

ainda mais pela projeção da economia da região para o exterior. E continuando com a tendência à especialização produtiva para a exportação e os escassos incentivos ao desenvolvimento das atividades manufatureiras, inibidas pela complementariedade econômica com um centro distante. Em síntese, a América Latina recebeu como legado estímulos singulares também da economia, pelo menos no sentido de que as suas diversas regiões compartilharam uma mesma “síndrome da periferia”, isto é, problemas análogos e oportunidades semelhantes. Mas herdou sobretudo forças centrífugas, dada a natural tendência e conveniência de cada região a associar-se ao parceiro externo mais adequado, preterindo os territórios limítrofes, que, apesar da vizinhança, eram desconhecidos entre si.

4. Um regime de cristandade De toda a herança do período colonial que a América ibérica deixou para a América Latina independente, a que mais influenciou a sua história talvez tenha sido o aspecto menos visível e mensurável: o imaginário social de caráter religioso que a plasmou e a impregnou até a medula. Esse imaginário fornecia os fundamentos sobre os quais a sociedade costumava organizar-se como comunidade orgânica, por sua vez entendida como reflexo de uma ordem divina revelada, e insuflava a convicção de que não havia distinção legítima entre unidade política e unidade espiritual, entre cidadão e fiel, entre esfera temporal e esfera espiritual. A seu modo, os impérios ibéricos foram regimes de cristandade: espaços em que a ordem política se sustentava sobre a correspondência das suas leis com a lei de Deus e onde o Trono, o soberano, estava unido ao Altar, a Igreja.

Crescimento econômico e novas potências Se, como, quanto e por que a economia da América ibérica cresceu durante o período colonial, especialmente a partir do momento em que a família Bourbon na Espanha e o Marquês de Pombal em Portugal introduziram profundas reformas no século XVIII, é um tema que ainda divide os historiadores. As estatísticas da época, mais confiáveis do que as de períodos anteriores, revelam que o crescimento existiu e que na maioria dos casos foi impulsionado pela forte retomada das atividades de extração minerária, tanto no Peru e na Nova Espanha, com a exploração em geral da prata, quanto no Brasil, com foco no ouro. Esse crescimento, por sua vez, foi resultado de outro que, em termos mais gerais, envolveu a Europa da época, onde a demanda de metais preciosos aumentou e o crescimento da produção da indústria incipiente forçou a buscar novos mercados de

exportação nas colônias. Com o tempo, porém, as transformações em andamento na Europa nos albores da Revolução Industrial deram um estímulo inédito tanto à demanda de prata e ouro, quanto à de outros minerais e também à de produtos agrícolas da América ibérica. Essa realidade compeliu as diversas áreas à especialização e aprofundou ainda mais as fraturas internas do já heterogêneo império espanhol. Fraturas que as reformas comerciais introduzidas pela coroa, segundo as quais aos americanos estava destinado, de um lado, o papel de fornecedores de matérias-primas para a nascente indústria espanhola e, de outro, o de consumidores dos produtos dessa mesma indústria, outra coisa não fizeram senão aguçar. Provas abundantes de todas essas fraturas e das exigências americanas de liberalização do comércio foram oferecidas pelas guerras de independência. No decurso desse século, o crescimento demográfico no México se acelerou e seus cofres guardaram dois terços do total das receitas fiscais espanholas na América. Cuba foi o maior produtor mundial de açúcar, os comerciantes de Caracas enriqueceram vendendo cacau e os rioplatenses se tornaram conhecidos. A abertura de novas rotas, em especial a do cabo Horn que antecipava o caminho para os portos do Pacífico, e os progressos do comércio interoceânico, que se tornou mais econômico e seguro graças às novas e mais sólidas construções navais, criaram as condições que aproximaram como nunca antes a Europa e a América. Essa circunstância aumentou a concorrência na Espanha, onde o monopólio andaluz teve de ceder às pressões para liberalizar o comércio americano abrindo-o a novos portos e ao intercâmbio com colônias de outros países; mas também e principalmente, acirrou a concorrência das potências europeias emergentes. Também neste caso não foi tanto a natureza desse imaginário que diferenciou a América ibérica do restante do Ocidente, onde a fusão da política com a religião era a norma, mas as formas e a intensidade que esse imaginário assumiu aqui em consequência da sua peculiar história. Para compreendê-lo, é preciso ter em mente dois aspectos muito importantes. O primeiro é que a América ibérica ficou imune à Reforma protestante e, assim, alheia à ruptura da cristandade ocidental. Significa que enquanto a Europa, em meio a violentas guerras, entrava numa fase em que a convivência entre as diversas confissões religiosas se tornava difícil, a América ibérica, possessão dos reis católicos resguardada pelo Oceano, consolidou ainda mais a sua catolicidade. Tornou-se terreno de eleição da Contrarreforma, baluarte extremo da cristandade católica impermeável ao conflito religioso e trincheira da justaposição absoluta entre unidade política e unidade religiosa. Em suma, mais do que nunca, na América

ibérica a unanimidade religiosa se tornou o fundamento da ordem política e social. O segundo aspecto fundamental é que, como consequência do primeiro, a Igreja católica assumiu nesses territórios um papel e uma importância sem paralelo em outras partes, por várias razões. Especificamente, não porque o clero fosse numeroso, pois era de fato escasso; nem porque a Igreja fosse uma instituição coesa – pelo contrário, a Igreja da época não era de modo algum unida, disciplinada e obediente às ordens papais; nem apenas porque fosse rica e poderosa, embora se deva dizer que onde o poder imperial era mais sólido, como no México e no Peru, ali também sua riqueza e poder avultavam. Mas, em primeiro lugar, porque ela era o sustentáculo daquela ordem ideológica e política. Com efeito, a legitimação da soberania dos reis sobre essas terras, lembra-se, era função e obra da evangelização que eles haviam empreendido, com o compromisso de preservá-las da contaminação do cisma religioso. Em segundo lugar, porque a catolicidade era o princípio basilar da unidade de um território e de uma sociedade muito fragmentados em todos os outros aspectos.

Igreja e Estado no período colonial Um aspecto decisivo da relação entre poder político e poder espiritual nos territórios da América espanhola durante o período colonial é representado pelo Patronato Real. Este era um privilégio que o pontífice de Roma concedia aos reis católicos espanhóis em virtude da obra de evangelização que eles desenvolviam na América. Esse privilégio consistia na outorga de amplas faculdades à coroa espanhola no governo da Igreja, especialmente para a nomeação de bispos, o que estreitou ainda mais os laços já quase indistintos entre política e religião. Além disso, do mesmo modo que, por um lado, infundiu nos poderes públicos a ideia missionária de que tinham uma função espiritual, assim também, por outro, incutiu na Igreja americana o entendimento de que estava investida de uma missão política, isto é, de que tinha direito a exercer uma espécie de tutela sobre a unidade política e religiosa do império. Esses traços peculiares da relação entre política e religião na América espanhola moldaram, mais do que muitos outros, as instituições e as mentalidades. Não por acaso, os Estados independentes que surgiram no primeiro quartel do século XIX não quiseram renunciar a esse privilégio e reivindicaram a herança do império que haviam acabado de sujeitar; não obstante a Santa Sé não desejar propiciar-lhes o que a seu tempo havia concedido aos reis católicos. Assim ocorreu no caso de governos conservadores, pois o Patronato lhes dava uma autoridade extraordinária e

a possibilidade de usar a Igreja como instrumentum regni (instrumento de governo/poder). Mas ocorreu também com muitos governos liberais e anticlericais, que assim pensavam afirmar a soberania do novo Estado e dessa forma manter sob controle a temível força e influência da Igreja. A mentalidade de íntima união entre política e religião e entre Estado e Igreja, inerente ao Patronato, continuou presente durante muito tempo no próprio meio clerical, que nela encontrava o reconhecimento explícito da sua associação com o poder político e da sua extraordinária função social. Na verdade, a Santa Sé precisou trabalhar longa e arduamente, sempre enfrentando muita resistência, para disciplinar, atrair a si e desvincular as Igrejas da América Latina do antigo vínculo com o poder local.

Capa do livro Doctrina cristiana y catecismo para instrucción de los indios, Lima, 1584.

O que tornou essa herança tão fecunda em consequências para a América Latina independente? Este tema retornará com frequência nos capítulos seguintes, mas podemos antecipar alguma coisa aqui. Antes de tudo, diante dessas premissas, intui-se que o ingresso da América Latina na modernidade

política, complexo por si só, foi ainda mais traumático. De fato, entende-se por modernidade política o processo, comum em todo o Ocidente, de progressiva secularização da ordem política, isto é, da gradual separação entre a esfera política e a esfera religiosa. Separação que não se deve confundir com ruptura violenta, mas que não por acaso despertou fortes reações na América Latina, a ponto de permanecer inibida durante muito tempo. Além disso, pode-se imaginar como foi espinhosa esta outra passagem fundamental da modernidade: a passagem da unidade à pluralidade, tanto política como ideológica e religiosa. Na história da América Latina, o mito originário da unidade política e espiritual resistirá com força extraordinária frente à crescente diferenciação das sociedades modernas.

5. O desgaste do pacto colonial As reformas levadas a efeito no século XVIII tanto pela família Bourbon, ocupante do trono espanhol, quanto pelo Marquês de Pombal, na corte de Portugal, corroeram o regime pactual que até então mantivera os impérios ibéricos coesos. Cada um a seu modo, naturalmente. É preciso esclarecer que essas reformas não causaram a independência, mas criaram algumas condições preliminares para que esta passasse a alimentar a imaginação das pessoas. Para compreender como e por que isso aconteceu, é preciso explicar que reformas foram essas, que sentido tiveram, por que foram adotadas e que efeitos produziram. As reformas atingiram os gânglios vitais da vida imperial: os políticos, com a concentração dos poderes em Madri e Lisboa; os militares, com o aumento do poder do exército real; os religiosos, com a promoção do clero secular, sujeito à coroa, e a penalização do clero regular, incluindo a expulsão dos jesuítas; e os econômicos, com a racionalização e a intensificação dos intercâmbios, acentuando, porém, a diferença entre a mãe-pátria, responsável pela produção de manufaturas, e as colônias, relegadas à função de fornecedoras de matérias-primas. O espírito e o sentido dessas reformas não foi nenhum mistério, nem no território metropolitano nem nos ultramarinos. Tanto assim que aqueles que as implantaram tornaram-se heróis na sua pátria, mas tiranos aos olhos de muitos nas colônias. Essas reformas pretendiam encaminhar um processo de modernização dos impérios e de centralização da autoridade através da qual a coroa pudesse administrá-los com mais eficácia, governá-los de forma mais direta e extrair um volume maior de recursos com métodos mais eficientes. Se assim quiseram os reinos ibéricos, não foi só porque essa era uma imposição do espírito dos tempos, isto é, o ambiente progressista do Século das Luzes, mas também porque procuravam desse modo enfrentar o declínio que os assediava e os desafios que as novas potências lhes apresentavam. Estas

assomavam no horizonte não mais como os impérios universais do passado, mas como Estados-Nações modernos e agressivos. Para acompanhar seus passos e conter suas crescentes incursões militares e comerciais na América ibérica, Espanha e Portugal precisavam modernizar-se, e para modernizar-se precisavam estreitar o controle e intensificar a exploração desses enormes impérios governados de modos já obsoletos. Para bem da verdade, essas reformas nem sempre foram eficazes nem alcançaram o objetivo esperado, sobretudo na América hispânica. Ou pelo menos o foram para alguns aspectos, mas não para outros; e em alguns lugares, mas não em todos do mesmo modo. O importante aqui, porém, é o que conseguiram. Na América, elas difundiram a percepção de que o vínculo com a mãe-pátria poderia ser alterado. A percepção de que se no passado todas as partes do império haviam sido igualmente subordinadas a um soberano, agora havia evidências hierárquicas entre as metrópoles e as colônias, onde as primeiras ostentavam já um primado em relação às últimas. E que não era mais a obediência ao rei que mantinha as partes coesas, mas sim a obediência à Espanha e a Portugal, já unidas em seu interior e entendidas como EstadosNações modernos. As elites crioulas na América começaram então a sentir-se traídas no plano político e prejudicadas no econômico. Traídas porque privadas dos seus direitos antigos, quais sejam, sua autonomia e seus poderes. Prejudicadas porque sujeitas, muito mais do que no passado, às necessidades econômicas da coroa. Deste ponto ao passo seguinte – a perda da confiança no pacto colonial –, faltava ainda muito, mas as condições para que isso acontecesse amadureceram com celeridade.

As reformas bourbônicas O principal objetivo das reformas introduzidas inicialmente na primeira metade do século XVIII e depois de forma sistemática por Carlos III, que reinou entre 1759 e 1788 e foi um típico déspota da Europa da época, era arrecadar mais impostos das possessões americanas, tanto para prover a crescente demanda da coroa quanto para assegurar a defesa das colônias. A guerra dos Sete Anos, concluída em 1763, durante a qual os ingleses conquistaram Havana e a cujo término a Espanha teve de entregar-lhes a Flórida, confirmou efetivamente sua vulnerabilidade. Dado seu objetivo, não surpreende que as reformas se ocupassem de modo particular com a economia e com a administração pública, na tentativa de torná-las mais eficientes. A reorganização do império seguiu nessa direção, e depois aos dois vice-reinos do Peru e da Nova Espanha se acrescentaram os de Nova Granada e do Rio da Prata. Os resultados corresponderam, visto que a

pressão fiscal aumentou, em alguns casos triplicando as receitas dos cofres reais, fato aliás confirmado pelos protestos contra o fisco deflagrados em diversas partes das possessões imperiais. Não obstante, um aspecto fundamental da reforma administrativa foi a instituição das Intendências, órgãos assimilados do sistema francês e estabelecidos pela coroa para criar uma administração mais racional e centralizada e assim romper os fortes laços entre as autoridades coloniais e as elites crioulas, fontes de corrupção, de hábitos perniciosos e de ineficiência. No entanto, o resultado não foi o esperado. Se, por um lado, os novos órgãos não puderam em muitos casos sequer ser instalados ou funcionar como previsto, por outro, o propósito centralizador que os animava suscitou enormes resistências e suspeitas em torno das intenções do soberano. As reformas militares, por sua vez, se tornaram mais urgentes devido às crescentes pressões exercidas sobre as colônias espanholas pelas frotas inglesas e francesas que estacionavam no mar do Caribe, onde essas duas potências em rápida ascensão também possuíam colônias. Assim, o fato de que o continente americano já tivesse se tornado um campo de batalha das guerras entre potências europeias, e de que a fragilidade espanhola atraísse as potências emergentes, não fez outra coisa senão acelerar os tempos. Com efeito, o exército foi reorganizado e modernizado. O aumento da sua força e poderio, contudo, no seu conjunto, teve efeitos imprevistos. De um lado, gerou descontentamento entre grande parte da população crioula, nada satisfeita com a longa prestação do serviço militar e com o custo da manutenção das tropas, sempre cobrado pela coroa. De outro, a americanização do exército – integrado por soldados em sua maioria americanos, embora quase sempre subordinados a oficiais espanhóis – com o tempo acabou por representar um perigo para os próprios espanhóis: foi dessas forças que emergiram os oficiais que lideraram as guerras de independência.

Mapa das Índias Ocidentais, México/Nueva España, 1736.

Por fim, a reforma religiosa da Casa Bourbon deveu-se a inúmeras razões. Em primeiro lugar, muitos intelectuais da corte julgavam a Igreja um obstáculo para o desenvolvimento econômico e para os planos de modernização da coroa, devido tanto à sua doutrina quanto às suas enormes riquezas improdutivas. Em segundo lugar, entendiam que o enorme poder da Igreja, especialmente das ordens religiosas que, como a dos jesuítas, dominavam o ensino superior, limitava a autoridade do rei e dos seus funcionários. Para eles, a racionalização do império e a concentração do poder, seu corolário indissociável, exigiam a erradicação daquele verdadeiro Estado dentro do Estado que eram as ordens religiosas, dos jesuítas de modo especial. Foi nesse contexto que em 1767, na Espanha, quando os jesuítas foram acusados de ter tramado uma rebelião contra o soberano, este decretou a expulsão deles. A esse ato seguiu-se, na América, a secularização das suas incontáveis propriedades, isto é, a expropriação dos seus bens, e o fortalecimento do clero secular, sobre o qual o soberano exercia jurisdição através do Patronato Real, em detrimento do clero regular, sobre o qual não detinha nenhum poder. Essas medidas produziram reações diferentes. Parte da alta hierarquia clerical, imbuída de ideais reformistas, as considerou necessárias e as acolheu de boa vontade. Tanto o baixo clero, porém, quanto amplos estratos populares em muitos pontos da América espanhola se posicionaram contra as autoridades reais, acusando-as de impiedade, formando assim o que com

o tempo constituiu uma aliança recorrente em inúmeros outros momentos da história latino-americana. Por fim, duas observações. Primeira: pelo final do século XVIII, embora em termos mais abstratos do que políticos, os americanos começaram a alimentar alguns vagos sentimentos patrióticos. Estimulados pela reação à centralização ibérica, esses sentimentos tornaram-se depois o embrião das futuras nações. Segunda: o panorama econômico e demográfico americano começou a mudar; ao lado dos antigos núcleos coloniais onde o poder ibérico estava mais enraizado, surgiram outros novos e vibrantes, em especial em torno das cidades de Caracas e Buenos Aires, cidades onde o legado hispânico era mais tênue e superficial, onde o comércio inglês arraigou-se com mais rapidez e onde, não por acaso, os movimentos de independência foram mais fortes. Bibliografia Adelman, Jeremy (edited by), Colonial legacies: the problem of persistence in Latin American history, New York: Routledge, 1999. Annino, Antonio, Castro Leiva, Luís e Guerra, François Xavier, De los imperios a las naciones: Iberoamérica, Zaragoza: IberCaja, Obra Cultural, 1994. Archer, Christon I. (edited by), The birth of modern Mexico, 1780-1824, Wilmington: Scholarly Resources Inc., 2003. Bakewell, Peter J., et al., (coordinador), El Sistema colonial en la América española, Barcelona: Editorial Crítica, 1991. Brading, David Anthony, Orbe indiano: de la monarquia católica a la republica criolla, 1492-1867, Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1991. Burkholder, Mark A. e Johnson, Lyman L., Colonial Latin America, New York: Oxford University Press, 2008. Garavaglia, Juan Carlos e Marchena, Juan, América Latina de los Orígenes a la Independencia, Barcelona: Editorial Crítica, 2005. Halperín Donghi, Tulio, Reforma y disolución de los imperios ibéricos, 1750-1850, Madrid: Alianza Editorial, 1985. Mazín, Óscar, Iberoamérica: del descubrimiento a la independencia, México, D.F.: Colegio de México, 2007. Schmidt-Nowara, Christopher e Nieto-Phillips, John M. (edited by), Interpreting Spanish colonialism: empires, nations, and legenda, Albuquerque: University of New Mexico Press, 2005.

2. A independência da América Latina 1. As invasões napoleônicas O movimento que levou à derrocada dos antigos impérios e à independência da América Latina foi desencadeado pelos acontecimentos europeus, algo inevitável, pois, como se disse, a América ibérica era então Europa. Na verdade, foi Napoleão Bonaparte quem jogou o fósforo que deflagrou o incêndio para o qual as reformas bourbônicas e pombalinas haviam em certa medida preparado o terreno. Tanto por suas guerras, que entre os séculos XVIII e XIX arrastaram a Espanha para os conflitos europeus e interromperam por muito tempo as comunicações entre a península ibérica e a América, quanto, acima de tudo, por suas invasões: de Portugal, em 1807 e da Espanha em 1808. O que então teve início nos reinos americanos de Espanha e Portugal foi um longo, complexo e muitas vezes violento processo histórico que mudou a face da terra. Por inúmeras razões: porque confirmou o declínio dos grandes impérios católicos e universalistas das potências ibéricas; porque, indiretamente, preparou o caminho para a ascensão política, comercial e militar dos Estados-Nações europeus modernos, a começar pela Grã-Bretanha; porque, assim agindo, abriu totalmente as portas dessa parte da América às ideias modernas do Século das Luzes; porque, enfim, favorecendo a emancipação política do Novo Mundo, efetuou um corte abrupto no cordão umbilical que o mantivera ligado à Europa e lançou as premissas para a sua americanização: ou seja, para o início de um caminho destinado a fazer coincidir tempo e espaço, história e geografia, ao longo do qual a América ibérica procurou plasmar uma civilização própria, original. Filha da civilização ibérica, mas diferente e independente dela.

Pintura Juramento de los diputados de las Cortes de Cádiz en 1810, de José María Casado del Alisal, Madri, 1862. Câmara dos Deputados.

Por que, no entanto, as invasões napoleônicas, que enfim se prolongaram por diversos anos, mas terminaram com a derrota francesa em 1815, produziram tanta confusão nas Américas? Para responder, é preciso distinguir desde logo o caso do Brasil do caso da América hispânica. Como a corte portuguesa da Casa de Bragança, com a proteção dos ingleses, conseguiu zarpar de Lisboa antes da chegada de Bonaparte, seu império livrou-se do destino do império hispânico: a decapitação. Em outras palavras, embora atacado, o império português não perdeu aquele que lhe garantia a unidade e a legitimidade: o rei. Este, ao contrário, refugiando-se com a família imperial no Rio de Janeiro, chancelou o prestígio e a importância da colônia brasileira. Ponto de partida, como se verá, de uma independência indolor. Muito diferente, ou melhor, oposto, foi o caso da Espanha e do seu império. Com efeito, em Madri, Napoleão aprisionou o rei, Carlos IV, e o filho deste, Fernando VII, em cujo favor o monarca havia abdicado. Feito isso, instalou seu

irmão José no poder. Assim, a figura do soberano, que por séculos havia garantido a unidade daquele imenso império, desaparecia num estalar de dedos, ocupando seu lugar um monarca imposto pelo invasor. Além disso, agravando a situação, o rei a quem os americanos estavam ligados por um pacto de obediência estava na masmorra. É bem verdade que pouco depois eclodiu na Espanha a resistência contra os franceses e que, em Cádis, uma Junta reivindicou o poder em nome do rei prisioneiro e nessa qualidade exigiu a obediência dos súditos americanos. Mas a queda do rei bourbon já havia suscitado questões importantes na América hispânica – totalmente desnecessárias na América portuguesa – tanto entre as elites crioulas, como entre os funcionários da coroa: na ausência do rei legítimo, quem iria dirigir o reino? Baseado em que direitos? Talvez o rei usurpador, José Bonaparte? Ou a Junta de Cádis, que se arrogara a suplência do soberano? Ou talvez todos, cidades ou reino, na Espanha e na América, ficariam livres, senhores do próprio destino e da própria soberania política até que o rei recuperasse o trono? Além disso, por que obedecer a Cádis? Embora implícito, o seu pacto político era com o rei, não com quem pretendia ocupar o seu lugar. Orgânico, imenso e heterogêneo, cujos membros dispersos mantinham-se unidos pelo poder de um rei agora destronado, o império espanhol viu-se de súbito despojado do seu princípio de unidade.

As causas e o método À semelhança do que acontece com todo evento histórico de dimensões epocais, muitas são também, e quase sempre contraditórias ou concorrentes entre si, as interpretações sobre as causas que levaram os impérios ibéricos na América à derrocada e até provocaram a desagregação do império espanhol. Aliás, é normal um processo histórico de tamanha relevância ter raízes complexas, nenhuma causa sendo suficiente por si só para explicá-lo, sem considerar outras que o precedem ou seguem. Existiam na época causas estruturais, isto é, remotas, sem as quais é impossível imaginar que as invasões napoleônicas teriam desencadeado os efeitos em cadeia que na realidade causaram. Fazem parte desse contexto as reformas bourbônicas e as reações que provocaram, mas também a consolidação ao longo do tempo de usos, interesses, vínculos sociais e identidades capazes de configurar um prenúncio de nação na América. Não menos importantes, porém, são as causas conjunturais, sendo igualmente possível conjeturar que aquelas premissas remotas seriam por si sós insuficientes para causar a ruptura do vínculo americano com a Espanha se Napoleão não tivesse, com a invasão, causado um vácuo de

poder. Em suma, sem ela, a independência não teria se consumado naquela época nem daquele modo. Obviamente, as causas podem ser classificadas segundo outros critérios, e então se destacam algumas endógenas. Estas atribuem a independência, em primeiro lugar, às mudanças profundas ocorridas na sociedade e na política espanholas à medida que o velho império católico passava pelo árduo processo de metamorfosear-se em um Estado-Nação moderno; e também às mudanças que na mesma época afetaram as sociedades crioulas. Reclamam relevância não menor, todavia, as causas exógenas, possíveis de resumir no clima revolucionário daqueles tempos que já haviam testemunhado a separação dos Estados Unidos da coroa britânica e o estremecimento da França na Grande Revolução. A catalogação poderia prosseguir, dispondo as causas em outra ordem: as causas políticas, as sociais, e inclusive as ideais ou espirituais. Por fim, seria lícito e fácil observar que nem todas as causas operaram com igual intensidade em todos os lugares e que os caminhos que conduziram à independência da América ibérica foram na realidade diversos e às vezes muito diferentes uns dos outros. Por isso, o importante aqui, acima de tudo, é estabelecer um método. Um método segundo o qual o estudo de um processo histórico complexo requer a consciência de que suas causas também foram múltiplas e complexas.

2. A fase autonomista Chegada à América com o atraso e a incerteza que a época e os seus meios de comunicação justificavam, a notícia da prisão de Fernando VII semeou inquietação e confusões, precisamente porque sua queda imprevista levantava muitas e espinhosas perguntas. Assim, o que aconteceu na continuidade não seguiu uma ordem linear, mas quase sempre caótica; e longe de reproduzir um padrão único em toda parte, os fatos se encaminharam por vias diferentes. Dois aspectos, porém, se destacam de modo geral. O primeiro é que, ao saber da queda do rei e diante do problema de quem teria agora o direito de exercer o poder de modo legítimo, os principais centros administrativos americanos reagiram tomando medidas semelhantes às adotadas pelas cidades espanholas em condições de reagir, especificamente, criando Juntas, ou seja, órgãos políticos incumbidos de exercer a autoridade. Com o tempo, porém, apenas algumas dessas Juntas se consolidaram, em particular as de Caracas e de Buenos Aires; outras, desde Quito até a Cidade do México, se dissolveram, por motivos diversos, em geral devido às divergências entre crioulos e espanhóis ou entre os próprios crioulos. Dissenções em torno da natureza e do alcance dos novos poderes e também das relações com a Junta de Cádis, logo substituída por um

Conselho de Regência que exigiu a obediência das colônias, a ponto de denominar-se Espanha e Índias. O segundo aspecto geral dos acontecimentos é que as Juntas formadas na América declararam assumir o poder provisoriamente, ou seja, em nome de Fernando VII, chamado por isso el deseado, o desejado, até que ele reassumisse o trono. Elas não anunciaram, portanto, a intenção de separar-se da mãe-pátria, de abandonar o império para sempre. Salvo casos raros, seus protagonistas não expressaram anseios de independência. Os crioulos que lideraram essas Juntas, no entanto, tinham consciência das implicações dos seus atos. Mesmo sem ameaçar o pacto político que os unia ao soberano no seio do império, com efeito, estava muito claro em suas mentes que a ausência do rei lhes dava a oportunidade de recuperar a autonomia perdida ou reduzida pela vontade centralizadora da Casa Bourbon, e de reformular para vantagem própria o vínculo com a coroa. Tanto assim que, além de se declarar soberanas e de exercer os poderes do Estado, em muitos casos essas Juntas cancelaram o monopólio comercial da Espanha e liberaram o comércio com os ingleses. Por esse motivo, esta primeira etapa do processo de independência, que de modo geral durou até a recondução de Fernando VII ao trono da Espanha em 1814, costuma ser chamada de fase autonomista, uma vez que era a autonomia, e não a independência, que na maioria dos casos constituía o horizonte das elites crioulas, as quais assumiram o poder pela primeira vez na América como protagonistas, naquela que por isso já se configurava como uma revolução política. Esse quadro seria parcial e distorcido, porém, se não incluísse o que ocorreu na Espanha: frente aos mesmos dilemas das Juntas americanas, o Conselho de Regência, em Cádis, convocou a população para a eleição das Cortes, ou seja, de uma Assembleia representativa encarregada de redigir uma Constituição. Votada em 1812, a Constituição de Cádis tinha como objetivo instituir um poder legítimo na ausência do rei. Mais do que isso, porém, ela definia e impunha limites ao poder absoluto do soberano assim que este, expulsos os franceses, reassumisse o trono. Nesse sentido, essa Constituição era liberal, como se verá. Mas um fato sem dúvida excepcional foi que para os debates da Assembleia Constituinte de Cádis foram convidados também representantes americanos. Por isso, começaram na América os preparativos para eleger os constituintes que partiriam para a Espanha, exceção feita aos territórios que, na Venezuela e no Rio da Prata, permaneciam sob o controle das respectivas Juntas.

Capa da Constituição de Cádiz, de 1812.

No geral, essa experiência foi muito importante por dois motivos. Primeiro, grande parte da América hispânica viveu a sua primeira experiência eleitoral, da qual participaram também múltiplos estratos populares. Segundo, embora receptivos às reivindicações americanas, os constituintes espanhóis reafirmaram o princípio da primazia peninsular, desferindo assim mais um golpe contra a confiança e as expectativas dos crioulos ultramarinos.

Os crioulos e Cádis No início de 1810, a Junta de Cádis promulgou um decreto convocando eleições para o Parlamento, as Cortes. Estabeleceu ainda que toda Província americana poderia eleger um deputado a ser enviado como seu representante e que também os indígenas e os mestiços tinham direito de participar das eleições – realizadas entre aquele ano e o ano seguinte. Os crioulos americanos viram-se diante de uma encruzilhada: recusavam-se a reconhecer a autoridade do Conselho de Regência de Cádis e governariam de modo autônomo através de suas Juntas, desafiando assim as autoridades

espanholas, ou então aceitavam o convite e aproveitavam a ocasião para enviar os seus delegados à Península e defender os interesses das colônias nos debates constituintes. A reunião realizada em Cádis foi de fato uma Assembleia moderna que congregou os representantes do mundo espanhol no seu todo e, considerando-se a composição social e o perfil intelectual da maioria dos seus membros, intensamente animada por um forte espírito liberal. Ao longo do tempo, dela participaram 300 deputados, 64 dos quais americanos. As reivindicações desses delegados diziam respeito à representação igualitária entre espanhóis e americanos, à liberdade de produção e de comércio, ao livre acesso aos cargos civis, eclesiásticos e militares e à garantia de que metade desses cargos fosse reservada para os residentes locais. Esses pedidos foram objeto de inflamados debates em que o chamado partido americano se viu muitas vezes arrasado pela maioria espanhola, de tal modo que o resultado final não foi o que os americanos esperavam. Por um lado, na verdade, a Constituição aprovada em Cádis era liberal, o que agradou aos liberais americanos, mas indigesta para as elites crioulas, vinculadas à Espanha e mais conservadoras, como as do Peru e da Nova Espanha, que retardaram e dificultaram sua aplicação. Essa constituição demolia o velho absolutismo e instituía a monarquia constitucional, que estabelecia limites rígidos ao poder do soberano. Além disso, definia disposições explícitas com relação ao princípio eleitoral, às liberdades individuais e ao direito de cidadania de indígenas e mestiços. E, ainda, abolia o tributo dos indígenas, os trabalhos forçados e a Inquisição. Ao mesmo tempo, porém, era uma Constituição centralizadora, sendo compreendida pelas elites americanas como uma réplica do espírito centralizador das reformas bourbônicas. Os crioulos não encontraram nela salvaguarda suficiente do direito de representação igualitária e de acesso aos cargos que reclamavam, e tampouco das liberdades econômicas que reivindicavam havia muito tempo.

3. A política moderna Antes de prosseguir e examinar de que modo a que havia surgido como uma reação antifrancesa “em nome de Fernando VII” se voltou contra a Espanha até desmantelar seu império, é preciso esclarecer algumas questões fundamentais então em jogo, questões que ainda hoje provocam debates e divisões entre os historiadores. Para alguns, os movimentos americanos que desembocaram na independência foram movimentos liberais. A independência hispano-americana teria sido parte de uma onda revolucionária mais geral, que já nos Estados

Unidos e na França havia varrido o Ancien Régime, e das novas correntes de ideias que em todo o Ocidente alimentavam o propósito de acabar com o absolutismo invocando a soberania do povo. Realmente, não há dúvida de que os líderes desses movimentos estavam saturados de ideias liberais, nem de que proclamavam a necessidade de demolir os fundamentos da sociedade corporativa para criar uma sociedade de “iguais”, ou seja, uma sociedade teoricamente baseada em indivíduos autônomos, responsáveis, proprietários, todos dotados de direitos civis iguais independentemente da sua posição na escala social ou no espectro étnico. Elemento essencial desse novo mundo, do advento da política moderna que almejavam criar a partir da queda do absolutismo espanhol, era a Constituição, documento que as Juntas, que aos poucos surgiam na América, apressavam-se em promulgar, seguindo o exemplo dos liberais na Espanha. Em outros termos, um novo pacto social e político que codificasse, organizasse e delimitasse o poder político e o legitimasse em nome do povo soberano e não da mera vontade de Deus. Para outros historiadores, porém, a situação foi outra. Para estes, o golpe decisivo desferido ao vínculo da América com a Espanha teria sido a progressiva transformação, por parte da Espanha, de império católico em Estado-Nação moderno. Essa passagem estaria ocorrendo desde as reformas da família Bourbon que, concentrando o poder, racionalizando a economia, interferindo na autonomia das sociedades locais e atentando contra o poder eclesiástico, teriam violado as liberdades antigas até então garantidas às colônias. Liberdades que os americanos haviam usufruído em decorrência do antigo regime pactual. A questão é muito importante, pois nesse caso a independência da América Latina não teria sido fruto de uma revolução liberal contra o absolutismo espanhol que negava as liberdades modernas, tanto civis como individuais, mas da reação americana em defesa das liberdades antigas, as corporativas coloniais, contra a modernização imposta pela Espanha. Nesse caso, as Cortes, as eleições e as próprias Constituições não teriam sido órgãos da moderna soberania popular expressa por cidadãos dotados de direitos políticos iguais, mas da antiga estrutura corporativa em que as corporações eram os sujeitos da ordem política e social e em que a soberania, em última análise, encontrava sua origem em Deus e na sua lei. O tema em si é complexo, mas muito menos abstrato do que possa parecer. Tanto que de agora em diante acompanhar-nos-á passo a passo por constituir o pano de fundo das grandes questões históricas da América Latina. Não obstante, é preciso perguntar-se: quem tem razão? Qual das duas leituras, aqui expostas de forma muito resumida, tem mais fundamento? Apesar de salomônica, é provável que a resposta mais correta seja: ambas. As duas correntes, ainda que

em fluxos variáveis de uma região para outra das Américas, acabaram por confluir na reação àquela que, embora por razões diferentes, elas começaram a viver como dominação espanhola, uma dominação colonial onde antes houvera uma coabitação num mesmo espaço imperial. Alguns, precursores dos conservadores, movidos pela reação contra tudo o que destruía a antiga ordem; outros, liberais em potencial, estimulados pelos aspectos da nova ordem que essa dominação negava. Ou melhor, a própria confluência dessas correntes talvez seja a explicação da brusca queda de um edifício histórico tão antigo. Com a ruína do império, não foi coincidência os Estados independentes consolidarem-se alicerçados sobre a Constituição e a soberania do povo. E tampouco foi casual que, sob essas novas roupagens, a antiga sociedade corporativa se mantivesse mais do que nunca sólida e cheia de vitalidade.

O imaginário antigo Referências antigas e novas se entrecruzaram sem cessar no debate intelectual que precedeu e acompanhou as lutas pela independência da América espanhola. Por um lado, sopraram fortes entre as elites cultas os ventos do Iluminismo; no mundo hispânico, este foi acima de tudo um novo modo de conceber a vida através dos ideais da liberdade individual e da afirmação da razão sobre o dogma religioso. Durante as guerras contra a Espanha, foram filhos desse clima os apelos dos revolucionários aos conceitos sobre os quais desejavam construir a nova ordem independente: o povo, a Constituição, a liberdade, a representação, a pátria. Por outro lado, permanecia arraigada em todos os níveis da sociedade colonial a tradicional concepção organicista da ordem social, para a qual a sociedade era um organismo, ou uma família, tendo o rei, ou quem o representasse, como cabeça. Sem essa cabeça, o corpo estava condenado à dissolução. Esse organismo, por sua vez, era formado por corpos, cada um desempenhando funções precisas para manter a harmonia do todo: os nobres deviam conduzir a guerra, o clero, rezar pelo seu sucesso, os ricos, contribuir com doações generosas, os letrados, lutar com a pena, as mulheres, cuidar dos feridos, as comunidades indígenas, fornecer homens e pagar tributos, e assim por diante. O aglutinante dessa ordem era a religião perenemente invocada como seu fundamento. Por isso, em muitos casos, os mesmos revolucionários acabaram recorrendo à religião e à sua defesa para mobilizar um povo que se mantinha alheio e indiferente às suas ideias, as quais acabaram assim sendo absorvidas ou neutralizadas pela força daquele imaginário antigo.

4. As guerras de independência Com a derrota dos franceses, Fernando VII foi reconduzido ao trono espanhol nos primeiros meses de 1814, mas logo em seguida levou ao arrependimento muitos dos que tanto o haviam desejado de volta. Com o favorecimento do novo contexto que se formou na Espanha e na Europa com a queda de Napoleão, o mesmo ambiente que culminou na Restauração do Congresso de Viena no ano seguinte, o rei anulou a Constituição de Cádis. Em suma, restabeleceu o absolutismo, traindo assim as expectativas dos liberais da Espanha e da América, a quem perseguiu com todo furor. Quanto à América, ordenou o imediato envio de tropas para restabelecer a ordem e a obediência à mãe-pátria, de modo especial onde a sua autoridade mais fora contestada: na Venezuela, onde os reforços espanhóis dispersaram o exército republicano de Simón Bolívar, líder da independência local; e no Rio da Prata, onde os crioulos locais, agentes da revolução de maio de 1810, proclamaram a independência e se puseram a salvo dos exércitos do rei. Foi então que, a partir desses territórios, teve início a guerra propriamente dita pela independência americana, contra o domínio espanhol, isto é, a guerra contra um império que já se tornara abertamente hostil às reivindicações americanas de maior igualdade, liberdade e autonomia. Um conflito que durante anos, até o seu término com a batalha de Ayacucho em 1824, semeou a morte e a destruição na América do Sul, embora nem em toda parte com a mesma intensidade, e que muitas vezes esteve a ponto de tomar outras direções: por exemplo, a de transformar-se de revolução política pela independência da Espanha, como em essência realmente foi, em guerra social entre castas, entre grupos étnicos.

Reprodução fac-similar da ata de independência das Províncias Unidas da América do Sul, que foi declarada em San Miguel de Tucumán no dia 9 de julho de 1816. Cartaz impresso em 1910 pela Comissão Nacional do Centenário.

Batalla de Ayacucho, pintura de Martín Tovar y Tovar.

Os responsáveis pelo término da guerra de independência foram os dois militares mais célebres dessa epopeia combatida em condições extremas, entre climas insalubres e enormes obstáculos naturais: Simón Bolívar que, após entrar em Nova Granada, liderou a libertação das atuais Colômbia e Venezuela, antes de dirigir-se ao Equador e ao Peru – onde havia se entrincheirado a última resistência do poder espanhol e onde também as elites crioulas se mostravam em geral menos propensas do que em outras regiões a abraçar a causa liberal e independentista; e José de San Martín, o general argentino que, partindo do Rio da Prata, atravessou os Andes e libertou o Chile; em seguida, ele também dirigiu-se ao Peru, onde proclamou a independência e desferiu duros golpes contra os espanhóis, mas sem derrotá-los. Finalmente, em 1822, os dois Libertadores, cercados pela última resistência espanhola, se encontraram em Guayaquil, onde reuniram seus exércitos. Um encontro histórico cujos detalhes ainda hoje estão envoltos em mistério, com exceção das conhecidas divergências entre os dois líderes em torno do futuro do continente. Na realidade, Bolívar defendia uma confederação de repúblicas independentes e San Martín propunha uma solução monárquica constitucional sob a coroa de um príncipe europeu. O fato é que enquanto San Martín saiu de cena, Bolívar assumiu a condução das operações e dirigiu o último ataque aos espanhóis na serra peruana. Um ataque efetuado com sucesso, graças também às profundas cisões que já desuniam o exército real e as elites crioulas do Peru. Uns e outros estavam divididos e também desorientados pelas notícias em torno dos acontecimentos que então agitavam a Espanha, onde a rebelião do general

Riego, em 1820, havia novamente imposto a Fernando VII a Constituição de Cádis e as liberdades modernas que nem todos na América estavam ansiosos por introduzir. Finalmente, também essa última trincheira ruiu, pondo fim ao império espanhol na América do Sul.

Simón Bolívar Simón Bolívar nasceu em Caracas, em 1783, de família aristocrática e de formação intelectual iluminista. Além de sua atuação militar, Bolívar deixou uma impressão profunda na história política e intelectual da época e uma herança que, transformada em mito, não cessa de exercer forte influência em grande parte da região. As funções políticas que exerceu foram inúmeras e de importância crescente: em 1810, a Junta de Caracas o enviou à Europa em busca de apoio, e, em 1819, tornou-se presidente da Grande Colômbia, cargo a que acrescentou o de ditador do Peru, em 1824. Nessa função, aboliu a escravidão e propôs, sem sucesso, uma grande confederação americana para contrabalançar a fragmentação política decorrente da queda do império. Com relação ao seu pensamento, expresso tanto em escritos e discursos, quanto, principalmente, nas Constituições de que foi autor, Bolívar enfrentou os problemas da legitimidade do poder no continente que acabara de se libertar, e da forma constitucional mais adequada para sua realidade social. Decepcionado com o fracasso da primeira república venezuelana, no Discurso de Angostura, de 1819 distanciou-se do liberalismo dos primeiros tempos, em nome de uma pessimista e desencantada análise da sociedade venezuelana. Sociedade que ele encontrou tão impregnada de ignorância e atraso, a ponto de impedir o exercício das virtudes republicanas. Suas análises o levaram a defender um governo forte e centralizado, liderado por um presidente-monarca com condições de garantir a ordem e a unidade aos novos Estados, mas também de “plasmar” o povo com a sua ação pedagógica. Essas razões fazem de Bolívar um personagem controverso, passível de inúmeras leituras. Conservador para alguns, por ser defensor de um Estado autoritário fiador da ordem política, foi um líder revolucionário para outros, pelo espírito jacobino com que procurou unir o povo. Morreu derrotado em 1830, sem ver os seus projetos realizados.

5. Os caminhos para a independência Não foi linear o caminho que levou a América ibérica à independência, exceção feita a Cuba e Porto Rico, que por algum tempo continuaram sendo espanholas. Pelo contrário, foi um processo tumultuado do qual acabaram

participando tanto os que temiam a Restauração da Espanha quanto os que receavam a Constituição. Um processo que em alguns casos procurou acima de tudo não incitar as castas à violência, enquanto em outros precisou mobilizá-las; um processo às vezes longo, violento e destrutivo, outras vezes, breve e indolor. De características absolutamente peculiares foi a independência do Brasil, ocorrida em 1822 com o desdobramento da coroa da família imperial Bragança, quando João VI, retornando a Lisboa por insistência das cortes liberais, deixou ao filho Pedro I a regência do Brasil. Diante da hostilidade das elites locais às pretensões portuguesas de impor o centralismo que predominava antes da fuga da corte para o Rio, Pedro I instituiu uma monarquia constitucional independente. Por esse motivo, e em geral porque não se formara, no caso do Brasil, um vácuo de poder, o seu processo de independência foi bem diferente do ocorrido nas demais colônias hispânicas: a independência foi pacífica, não implicando nenhuma mobilização popular. Além disso, enquanto inúmeras repúblicas derivaram do império hispânico, o Brasil conservou a unidade territorial sob a forma de monarquia, mantida até 1889.

Proclamação da Independência do Brasil, de François-René Moreaux, óleo sobre tela, 1844. Museu Imperial de Petrópolis.

As coisas, porém, não aconteceram do mesmo modo em toda parte, nem mesmo na América hispânica. O que ocorreu na sua parte meridional, assolada pelas longas campanhas militares daqueles anos, não se repetiu no México, de

cujo destino dependeu num primeiro momento toda a América Central. Também aqui a invasão napoleônica da Espanha havia provocado na época grande efervescência política e estimulado a formação de uma Junta local, rapidamente dissolvida pelas autoridades reais. Esse ato autoritário levou seus defensores, liderados pelo padre Miguel Hidalgo, a reunir um exército popular, formado sobretudo de camponeses indígenas e mestiços, e a desencadear a guerra contra os espanhóis. No entanto, nem o recurso à violência foi suficiente para derrotar o exército real, nem o apelo aos camponeses indígenas foi do agrado das elites crioulas. Estas, bem conscientes do banho de sangue branco ocorrido no Haiti alguns anos antes, quando a independência só foi alcançada depois de uma violenta guerra étnica e social, temiam muito mais uma revolta indígena do que a dominação espanhola, com a qual, aliás, mantinham fortes vínculos. O fato é que os adeptos da independência foram durante muito tempo vigiados pelo exército espanhol comandado por um oficial crioulo conservador, Agostinho de Iturbide. Este, ao saber que os liberais espanhóis haviam imposto a Fernando VII o restabelecimento da Constituição, decidiu tornar-se fiador da independência mexicana subscrevendo em 1821 o Plano de Iguala, que previa um México independente com suas próprias Cortes, mas decidido a proteger a Igreja e a ter como soberano um Bourbon. Com isso, o México parecia chegar à independência pela via conservadora, mas o plano fracassou devido à resistência espanhola. A pretensão de Iturbide de assumir ele próprio o título de imperador desfez-se por obra da reação liberal e republicana que o depôs e instituiu a República. Quanto à América do Sul, as guerras antes e a queda do império espanhol depois, puseram as elites liberais americanas, até então protagonistas, frente à crua realidade que teriam de enfrentar daí em diante. Em primeiro lugar, constataram que o povo soberano que invocavam como fundamento da nova ordem política era mais imaginário do que real. Também se deram conta de que aquelas sociedades repletas de indígenas, escravos e mestiços de todo tipo eram quebra-cabeças intrincados e não, certamente, “um povo”, e muito menos o povo virtuoso pressuposto pelos liberais e suas Constituições. Eram, acima de tudo, um vulcão prestes a irromper sob seus pés, agora que detinham o poder numa terra onde, até pouco tempo atrás, havia reinado um rei tão distante, a ponto de muitas vezes chegar a parecer benigno àquelas populações.

Miguel Hidalgo, mural de José Clemente Orozco. Palácio Nacional do México.

Em segundo lugar, os líderes independentistas não puderam impedir que, com o desaparecimento do soberano – daquele que havia encarnado a unidade política do império – todo o organismo se fizesse em pedaços, e que cada um destes, liberado do pacto de lealdade ao rei, se considerasse na posse da soberania plena. Tanto que de um império originaram-se inúmeros Estados que foram palco de violentas hostilidades entre cidades e províncias: todas livres, todas soberanas.

A doutrina Monroe Verdadeiro manifesto destinado a orientar as relações dos Estados Unidos com a parte latina do hemisfério, a Doutrina Monroe foi enunciada em 1823 pelo então presidente americano, embora o autor de fato fosse o seu Secretário de Estado. Portanto, no ano seguinte àquele em que o governo estadunidense reconheceu oficialmente a independência da América espanhola; e num momento em que o futuro dos novos Estados emergentes era mais do que nunca incerto, tanto pela sua fragilidade

interna quanto pelos olhares ávidos que algumas potências europeias lançavam sobre eles, especialmente a Grã-Bretanha, mas também a França e em geral toda a Santa Aliança, formada pelas autocracias da Áustria, Prússia e Rússia. É nesse contexto que devem ser vistos os dois pilares sobre os quais a Doutrina se baseava. O primeiro era uma advertência aos Estados europeus para que não interviessem nas questões internas dos novos Estados americanos. O objetivo era proteger a independência desses novos Estados, mas estava expresso de um modo que inaugurava um longo período de unilateralismo dos Estados Unidos. Washington entenderia como ameaça à própria segurança toda intervenção europeia do tipo que a Doutrina pretendia impedir. Com isso o governo da União Americana se erigia como porta-voz de todo o hemisfério e se apressava a prevenir eventuais alianças dos novos Estados com esta ou aquela potência europeia. O segundo pilar consistia no correspondente empenho dos Estados Unidos em permanecer alheios às litigiosas questões europeias e às das colônias europeias já estabelecidas na América. Síntese desses dois pilares era a fórmula “América para os americanos”, que aludia aos pontos fundamentais do excepcionalismo estadunidense do qual a Doutrina estava imbuída. Um princípio segundo o qual a Europa representava o passado, impregnado de absolutismo e constelado de monarquias, e a América encarnava o futuro, e, portanto, o espaço onde os Estados Unidos projetavam a sua civilização democrática e republicana. Este último aspecto prenunciava o direito e a missão de que a partir de então os Estados Unidos se sentiam investidos com relação à América Latina: exportar a nova civilização do qual eram fundadores e dominar o hemisfério para elevar a condição daqueles povos considerados incapazes de se autogovernar devido aos séculos que haviam vivido sob o domínio da monarquia e do clero. Não obstante, um princípio destinado a permanecer pouco mais do que virtual ao longo do século XIX, quando a influência das potências europeias na América Latina não fez senão crescer e em que as suas intervenções militares foram frequentes. Mas que serviu de bússola da política estadunidense e começou a manifestar-se de forma concreta onde os Estados Unidos tinham prioridades estratégicas e força para impô-las: primeiro no México e depois na zona do Caribe. Bibliografia Chasteen, John Charles, Americanos: Latin America’s struggle for independence, New York: Oxford University Press, 2008. Chiaramonte, José Carlos, Nación y estado en Iberoamérica: el linguaje político en tiempos de las independencias, Buenos Aires: Sudamericana, 2004.

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3. As repúblicas sem Estado 1. Instabilidade e estagnação Para os países da América Latina, a entrada na vida independente não foi uma marcha triunfal; muito pelo contrário. Até certo ponto em toda parte, embora não do mesmo modo nem com a mesma intensidade e ao mesmo tempo, dada sua heterogeneidade desde a época colonial e as formas diferentes como haviam alcançado a emancipação política, os diversos países entraram numa era repleta de dificuldades e frustrações, mais de expectativas traídas do que de sonhos realizados. As primeiras décadas após as guerras de independência se caracterizaram por instabilidade política e estagnação econômica, pelo menos como tendência, mas não faltaram exceções aqui e ali. A instabilidade política se manifestou quase sempre na impossibilidade das novas autoridades políticas de impor a ordem e de exigir o cumprimento da lei e da Constituição nos territórios das novas nações, em geral palcos de lutas contínuas entre caudilhos. Nesse sentido, pode-se dizer que novos Estados de fato surgiram mais no papel do que na realidade. Além disso, os seus cidadãos ainda não tinham nenhuma sensação definida de pertencer a uma nação, abrangida como entidade histórica compartilhada. O mesmo princípio federalista, que as novas autoridades adotaram na maioria dos casos em reação ao centralismo espanhol e causa de ásperos conflitos em vários pontos do continente, revelou-se na prática reflexo da manifesta impossibilidade de fundar uma ordem estável e da fragmentação em curso do poder. Quanto à estagnação econômica, mesmo não ficando paralisados sempre e em toda parte, a produção e o comércio sofreram tanto os efeitos destrutivos das guerras de independência quanto os da ruptura do vínculo com a mãe-pátria. Antes de examinar o que aconteceu concretamente nessas frentes, é conveniente perguntar por que a independência reservou essas amargas surpresas. Não há uma resposta unívoca e simples para fenômenos tão complexos e para acontecimentos durante os quais os novos Estados começaram a enfrentar os problemas que os atormentariam daí em diante. Algumas hipóteses são possíveis, todavia. Por um lado, esses graves problemas podem ser atribuídos a fatores estruturais. As economias da região, complementares das economias ibéricas durante séculos e impossibilitadas de contar com mercados

nacionais, em geral asfixiados ou totalmente inexistentes devido à falta de vias de comunicação entre as regiões, viram-se subitamente privadas das receitas vitais do comércio colonial. Receitas que o comércio, com as potências em ascensão, não teve condições de substituir em curto prazo. A consequência foi uma estagnação comercial avultada, acompanhada de uma drástica redução das finanças públicas, quase sempre fruto dos impostos incidentes sobre o referido comércio. Com isso, os novos Estados não dispunham dos recursos necessários para compor suas estruturas e ainda mais para impor sua autoridade sobre o território nacional. Com maior razão ainda, essas condições inibiram a formação de uma classe dirigente forte e coesa com condições de liderar o processo de State-building, decorrendo daí a instabilidade política. Por outro lado, é também possível explicar esses fenômenos a partir de fatores culturais, ou predominantemente a partir deles, uma vez que as duas explicações não se excluem mutuamente. Ou seja, em termos gerais, pode-se dizer que a extinção do princípio de unidade – o império -, impôs àquela imensa região a crua realidade da sua pluralidade. De modo particular, pode-se observar que, se de um lado os princípios liberais foram suficientemente fortes para corroer a antiga ordem orgânica, solapando seus pilares, de outro não tiveram a mesma força para instituir uma nova. Acrescente-se ainda que as novas elites liberais perceberam rapidamente as limitações da revolução, a qual produzira um grande evento político, a independência, mas estava longe de desencadear as transformações sociais e culturais necessárias para o sucesso dos seus ideais. Isto é, ao destituir a monarquia ibérica, as elites crioulas liberais não haviam sufocado e muito menos erradicado a sociedade orgânica que aquela havia plasmado durante séculos. Nesse limbo prosperou a instabilidade política, um limbo suspenso entre uma ordem liberal ainda frágil e uma ordem corporativa ainda forte e resistente, onde a estabilidade parecia possível apenas quando um líder conseguia impor um poder análogo ao exercido pelo rei no antigo império. Essa instabilidade política, por sua vez, com a violência e as divisões que a caracterizaram, foi causa da estagnação econômica.

Liberais e conservadores A história política da América Latina do século XIX é sulcada pelo constante conflito entre liberais e conservadores. De modo geral, não foi a origem social que os dividiu: naquela época, em que a atividade política era privilégio de poucos notáveis, essas duas correntes nasceram no mesmo seio das elites crioulas, ou seja, no topo da pirâmide social. Também não se pode dizer que fossem importantes na distinção dos interesses econômicos ou na adesão maior ou menor aos princípios do livre mercado, nos quais de

modo geral todos depositaram uma grande fé ao longo do século. Mais do que partidos propriamente ditos, essas tendências foram durante muito tempo meros comitês de personalidades conhecidas, brancas, cultas e abastadas. Em muitos casos, fazer parte de um ou outro desses grupos não dependia sequer da ideologia, mas do território ou do grupo familiar a que o pretendente pertencia. Dito isto, é preciso esclarecer que o divisor de águas ideológico entre liberais e conservadores existiu e foi muito importante. Num primeiro momento, referiu-se à forma do Estado e à distribuição dos seus poderes. Com relação a esses temas, os liberais sustentavam com mais convicção o federalismo e o parlamentarismo, julgando provocar assim a queda da velha ordem política. Os conservadores, por sua vez, defendiam o centralismo e governos fortes, julgando que quanto mais se salvasse da antiga ordem, mais se garantiria a estabilidade da nova. As duas correntes nem sempre divergiram de modo muito claro sobre essas questões. O que as diferenciou de modo mais marcante foi o papel que atribuíam à Igreja católica nos novos Estados: os liberais se empenhavam em reduzir a participação da Igreja, ao passo que os conservadores se apresentavam como seus protetores. De fato, essa precisamente foi a maior causa ideológica das violentas guerras civis deflagradas, de modo particular de meados do século em diante, pois até então os frequentes conflitos estavam associados ao poder e seu controle. Não obstante, uns e outros se envolveram também com algumas contradições profundas, impostas pelas circunstâncias históricas. Embora apoiassem a causa da Igreja, que consideravam como um elemento fundamental da ordem social, e ainda que esta assumisse uma posição favorável à origem divina da autoridade política, os conservadores precisaram se apropriar do constitucionalismo liberal e do princípio da soberania popular, pois não havia outra forma de legitimar a ordem política, depois de excluída a opção monárquica. Os liberais, por sua vez, apesar de defensores de uma sociedade formada de indivíduos iguais e livres, proprietários e independentes, aliviada do peso de autoridades fortes e governos centralizadores, com frequência tiveram de recorrer à força do Estado para extirpar a herança corporativa e impor a liberdade num terreno que a história tornara pouco fértil para suas ideias.

2. As Constituições Até meados do século XIX, e sem levar em consideração as diferenças óbvias de um país para outro, o panorama político da América Latina foi dominado por contrastes evidentes. Por um lado, com efeito, deposta a monarquia e o tipo de

legitimidade antiga que ela conferia à ordem política, a única alternativa que restou às repúblicas foi fundar uma nova legitimidade baseada no princípio liberal por excelência: a soberania do povo. Esse princípio encontrava a sua expressão lógica na Constituição, de modo que todos os governos a invocavam como seu fundamento. Por outro lado, no entanto, essas Constituições foram em grande parte meros instrumentos políticos para legitimar poderes conquistados com a força e mantidos através de métodos bem diferentes daqueles pressupostos pelos princípios liberais nelas enunciados. De tal modo que se sucederam uma à outra com grande frequência e em geral não passaram de textos elegantes desprovidos de consequências práticas; letra morta, segundo alguns. Isso acontecia enquanto o poder de fato se organizava à margem delas, se fragmentava e ruralizava, ou seja, enquanto a autoridade política caía nas mãos dos caudillos, chefes políticos e militares em condições de exercê-lo com punho de ferro sobre um determinado território; e enquanto abandonava as cidades, quase como se fossem simulacros vazios de instituições impossibilitadas de impor suas leis aos potentados da província e do campo. Isto é, onde o coração da vida local parecia pulsar desde o momento em que o comércio externo começou a estagnar. O fato de serem em boa medida inoperantes não torna as Constituições insignificantes. Antes, precisamente através delas e dos seus ciclos é possível identificar os pontos históricos cruciais com os quais a América Latina então se deparou. As Constituições da primeira onda, contemporâneas da independência e das lutas para alcançá-la, expressaram em muitos casos um otimista liberalismo romântico, doutrinário, às vezes tão abstrato a ponto de parecer distante da realidade social que devia regular e sobre a qual teve em geral muito pouca influência. Enquanto reações ao absolutismo espanhol e ao temor de que uma nova tirania o substituísse, essas primeiras Constituições não se limitaram a introduzir as liberdades civis individuais e a abolir alguns legados corporativos, como a escravidão e os impostos para as comunidades indígenas. Além disso, favoreceram poderes executivos fracos, Parlamentos com excesso de funções, Estados federais e o amplo direito ao voto. Não obstante, diante da ineficácia desses textos e da constatação de que não bastava anunciar as virtudes para levar os cidadãos a praticá-las, especialmente nos ambientes em que a segmentação social dificultava a demarcação dos limites da cidadania, uma segunda onda constitucional, que se prolongou aproximadamente desde as declarações americanas de independência até meados do século, expressou princípios mais conservadores e centralizadores: ora reportando-se à Constituição de Cádis, apreciada de modo especial pelos profissionais civis residentes nos centros urbanos; ora remetendo ao modelo napoleônico, muito popular entre os militares. Em síntese, essa nova onda

postulou a necessidade de adaptar o princípio liberal da Constituição às tradições e à realidade social locais. Realidade sobre a qual prevaleceu o juízo amargurado e pessimista constatado em Simão Bolívar. Não por coincidência, as novas Constituições deram mais atenção à ordem do que às liberdades, limitaram o acesso ao voto de acordo com o censo e abandonaram as ambições de restringir o poder eclesiástico. Antes, tenderam a ver na Igreja um eficaz instrumentum regni para institucionalizar a Santa Inquisição. Por fim, constituíram governos fortes e Estados centralizadores, sob o peso dos quais extinguiu-se o entusiasmo federalista dos primeiros anos de vida independente. Mas isso não foi suficiente para torná-las mais eficazes do que as precedentes, a não ser por breves períodos, durante os quais algumas regiões, como a Venezuela, o Chile e a vasta província de Buenos Aires administrada pela férrea ditadura de Juan Manuel de Rosas, viveram períodos de relativa estabilidade. Também sob a jurisdição dessas Constituições, na maioria dos casos o poder político foi exercido por caudillos, ou seja, chefes políticos e militares de perfil social heterogêneo e aqui abordados devido ao modo como exerciam o poder; um modo muito mais congruente com os antigos costumes do que com o novo espírito constitucional. Esse poder, às vezes apenas local, outras vezes abrangendo espaços muito mais amplos, era de fato exercido pela força, embora não só. Ele encontrava o seu fundamento numa ampla rede de clientelas informais, familiares, no sentido mais amplo da palavra, à qual o caudilho garantia proteção em troca de lealdade e benefícios em troca de obediência. Sua autoridade sobrepunha-se às leis e às normas, sendo arbitrária e pessoal. A partir disso pode-se dizer que se a ordem legal posterior às independências era muito nova, na prática continuou prevalecendo em boa medida a ordem antiga, onde quem regulava a vida pública era a trama emaranhada dos corpos sociais tradicionais, com a família e o território à frente.

Caudilhismo A história da América Latina da primeira metade do século XIX está repleta de caudilhos e de seus feitos épicos: de Antonio López de Santa Anna, que governou o México onze vezes, ora como liberal ora como conservador, a Juan Manuel de Rosas, que dominou a Argentina de 1829 a 1852 com o título de Restaurador das Leis; do paraguaio José Gaspar Rodríguez de Francia, o teólogo admirador de Robespierre que dirigiu os destinos do seu país isolando-o até 1840, ao guatemalteco José Rafael Carrera, o guardião conservador que em 1854 se proclamou presidente vitalício. E assim por diante, de país a país, de província a província, sem esquecer que havia caudilhos cultos e caudilhos iletrados, agnósticos e

crentes, liberais e conservadores. Em geral, eram homens que, tanto em virtude de sua força e carisma, quanto da fragilidade ou inexistência de instituições capazes de limitar sua autoridade, reuniam um vasto séquito e assumiam o governo com a violência do poder, um poder que exerciam no tradicional modo patrimonialista. Isto é, como um butim que permitia premiar os sequazes e excluir os inimigos, como uma propriedade privada que administravam acima das leis e das Constituições.

José Gaspar Rodríguez de Francia, óleo sobre tela de Pablo Alborno.

Personalidades frequentemente excêntricas, os caudilhos exerciam assim uma autoridade de tipo carismático, mais semelhante à de líderes religiosos do que de chefes políticos; de líderes envolvidos por uma aura sagrada capaz de anunciar a salvação e a proteção para os seus devotos. Estes, por sua vez, obtinham vantagens concretas ao reconhecer a autoridade de um determinado caudilho e colocar-se sob sua proteção, uma vez que não havia leis e instituições capazes de garanti-la. Pode-se então afirmar que naquelas sociedades ainda sem Estado, a relação entre o caudilho e os seus seguidores era a seu modo uma relação de troca, embora desigual, e não uma mera imposição do poder pela força. Aliás, a lealdade pessoal, precisamente, era o fundamento dessa relação típica de uma ordem social tradicional, essencialmente pré-política, onde o poder era absoluto, nunca compartilhado. Onde, em suma, o caudilho se instalava durante determinado tempo no lugar simbólico antes ocupado pelo rei: o de cabeça de um organismo homogêneo e unânime. Essa realidade em nada contradiz o fato de que o caudilhismo, no seu primitivismo, fosse o modo pelo qual os diversos níveis do poder se

articulavam entre si, visto que, depois da independência, este se fragmentara em mil pedaços. De fato, era comum os caudilhos locais, chefes absolutos de um povoado, serem por sua vez clientes de caudilhos mais poderosos e do poder mais amplo, aos quais entregavam o próprio “feudo” como dote, em troca de favores e proteção. E assim por diante, sempre para cima, escalando uma pirâmide em cujo topo em geral se encontrava o presidente da República.

3. Sociedade e economia em transição Já observamos que a independência para a América Latina não foi um mar de rosas e também verificamos que o legado do passado condicionava a sua evolução. Isso não significa, porém, que nada de substancial ocorresse nos estratos mais profundos do continente nos primeiros decênios após a emancipação. Muito pelo contrário, em termos de estrutura social, de relações econômicas e de relações com o mundo externo, começaram a germinar nesse período as profundas transformações que chegaram à maturação na segunda metade do século. Em termos sociais, a mudança mais importante foi o lento desaparecimento da escravidão, primeiro onde era apenas uma realidade marginal, como no México, no Chile e na América Central, e só muito mais tarde onde era um fenômeno abrangente e arraigado. O fato não ocorreu exatamente por influência das Constituições, considerando que na realidade o processo foi bem mais gradual do que elas estabeleciam, mas pelas crescentes dificuldades do tráfico de escravos, pela baixa produtividade destes e por ser com frequência o “preço” a pagar por seu recrutamento pelas Forças Armadas. Assim, pela metade do século XIX, a escravidão mantinha-se resistente apenas nas costas caribenhas e no Brasil, onde vigorou até 1888.

Caricatura alusiva aos decretos de abolição do tributo indígena e da escravatura, Peru, 1854.

Também para a população das comunidades indígenas a independência e suas guerras implicaram mudanças incipientes, embora lentas e flutuantes. Essas mudanças tinham como objetivo suprimir direitos e deveres corporativos, a começar pelo tributo indígena, para que todos nessas comunidades também passassem a ser, pelo menos teoricamente, cidadãos iguais e livres das novas repúblicas. Na prática, esse objetivo se defrontou muitas vezes com problemas fiscais dos novos Estados, fazendo com que estes, em muitos casos, em particular no Peru e na Bolívia, mantivessem ainda por muito tempo os tributos indígenas que haviam se proposto a abolir. Outra dificuldade desse objetivo foi a sua tendência a produzir efeitos muito menos virtuosos do que o previsto, visto que ao liberar os indígenas de um regime social opressor, mas regulamentado, com frequência os deixou à mercê de uma exploração ainda maior. A ponto de provocar violentas reações contra a “libertação” do jogo corporativo e em defesa da “república dos índios” que era seu emblema. Dito isto, onde as comunidades indígenas eram uma instituição muito difundida e arraigada, como no México e na Guatemala, de um lado, e na América do Sul andina, de outro, elas certamente não desapareceram, mas desde meados do século a pressão sobre elas e sobre suas terras aumentou em toda parte. Também na esfera econômica e das relações com o mundo exterior, dois âmbitos indissolúveis entre si, as coisas começaram a mudar depois da independência. Mais lentamente até em torno de meados do século e um pouco além, mas já antecipando as bruscas transformações ocorridas daí em diante. A novidade mais importante foi a introdução e difusão da liberdade de comércio, sobretudo com as potências europeias, e com a Grã-Bretanha em primeiro lugar, com a qual os novos Estados, combalidas as finanças, se endividaram muito rapidamente e cuja Revolução Industrial imprimia um dinamismo comercial extraordinário. Esse dinamismo a levou a buscar, tanto na América Latina como em outras partes, novos mercados e matérias-primas para as próprias indústrias e para consumo da população urbana. Mesmo sem causar ainda o boom comercial que só a revolução tecnológica nos transportes tornou possível na segunda metade do século, esses fatores começaram a pesar desde então. Não tanto em termos de expansão econômica, ainda longe de chegar naquela época de estagnação, mas, por um lado, imprimindo à economia regional uma orientação ainda mais clara para o exterior, atraída pelos grandes lucros prometidos por novos e mais intensos intercâmbios comerciais. Essa orientação inibiu o já raquítico desenvolvimento do mercado interno, mas abriu a perspectiva de financiamento das contas públicas, em muitos países fruto em grande parte dos tributos indígenas, com os impostos sobre o comércio exterior.

E, por outro, lançando as bases da crescente influência política e econômica tanto do setor comercial em crescimento nas principais cidades portuárias, como dos proprietários de terras em condições de produzir para os mercados externos.

O século britânico Embora os avanços nos transportes e nos meios de comunicação no Atlântico Sul fossem bem mais lentos do que os que ocorreram na mesma época no Atlântico Norte, e não obstante as guerras civis latino-americanas crônicas limitarem ou retardarem em muitos casos o comércio e os investimentos nas décadas intermediárias do século XIX, a força liberada pela potência econômica britânica crescente logo começou a repercutir seus efeitos também na América Latina. Esses efeitos ainda são motivo de controvérsias entre os historiadores e os economistas. Para alguns, as mercadorias britânicas que daí em diante chegaram em quantidade significativa aos centros urbanos latino-americanos tiraram o setor artesanal local do mercado, reduzindo-a à miséria. Além disso, o aumento do intercâmbio com a Grã-Bretanha embargou para sempre a diferenciação das economias locais e o crescimento do mercado interno, favorecendo a produção de matérias-primas exigidas em volumes cada vez maiores pelo mercado inglês e europeu, uma demanda que começou a aumentar a ritmos vertiginosos pouco antes da metade do século. Outros, por sua vez, afirmam que, em face da liberdade comercial recém-introduzida, a Grã-Bretanha apenas começou a substituir o asfixiado monopólio espanhol, responsável, por sua vez, por penalizar os artesãos latino-americanos com exportações de têxteis e de outros produtos e por ter inibido na América Latina tanto o crescimento do mercado interno quanto a diferenciação produtiva. Nesse sentido, o capitalismo britânico, muito mais vigoroso do que o hispânico, teria de fato aberto perspectivas inéditas para as economias locais graças ao lento, mas constante florescimento do comércio, o qual, a partir da metade do século, podia contar com a imensa força dos grandes bancos de investimento e com as companhias ferroviárias. De modo geral, pode-se observar que o desenvolvimento naquela época foi bastante desigual de uma região para outra e que em lugares, como no México, que já contavam havia tempo com algum mercado interno, as manufaturas locais sofreram o impacto da concorrência externa, o que não aconteceu onde essas condições não existiam. Por certo, desde então começou a tomar forma o processo que se costuma chamar de “divisão internacional do trabalho”, inspirada pela Revolução Industrial. Nesse

processo, coube à América Latina o papel de fornecedora de matériasprimas minerais e agrícolas.

Caricatura retratando a Inglaterra como o “Polvo do Imperialismo”. Trabalho de 1888, de um cartunista norte-americano.

4. A inflexão da metade do século XIX Talvez porque os líderes da independência estivessem saindo de cena, deixando o palco para uma nova geração formada de jovens intelectuais e não mais de comandantes militares; talvez porque, tanto em termos políticos como econômicos, as primeiras décadas de vida independente, transcorridas entre lutas intestinas e economias estagnadas, tivessem frustrado as grandes expectativas de ver os novos Estados enveredar pelos caminhos da civilização e do progresso; talvez porque o legado do passado colonial se revelasse às elites liberais mais oneroso e alastrado do que o previsto; e, sem dúvida, talvez porque os ecos do ano 1848 europeu – ou seja, das revoluções liberais que varreram o Velho Continente ao qual essas elites ainda pertenciam por história e cultura – tivessem ressoado no outro lado do Atlântico... o fato é que pelos meados do século alguma coisa começou a mudar na América Latina. Em todos os setores começaram a soprar novos ventos; a imperar um novo “espírito dos tempos”, arauto de grandes mudanças e, como sempre acontece nesses casos, de não menos radicais convulsões políticas e sociais. A guinada foi complexa e ocorreu em modos e tempos diferentes em cada país, mas é possível identificar um traço comum a grande parte do continente. O

que a pôs em movimento foram as novas oportunidades que se abriam à região através da integração comercial e financeira com as grandes potências. Ainda mais do que isso, porém, foram a consciência e a constatação cada vez mais difundidas em amplos estratos das elites crioulas de que a independência permanecera a meio caminho, instando-as assim a retomar o impulso originário. Em outros termos, a nova e mais radical geração liberal da metade do século reassumiu o projeto de construir na América sociedades liberais e orientadas para o progresso, sociedades que aspiravam a espelhar-se nas mais avançadas do Ocidente. Esses projetos contrastavam tanto com a onda conservadora, acusada de manter-se apegada aos condicionamentos do passado, quanto com o romantismo liberal abstrato dos primeiros tempos, que sucumbira à ilusão de mudar tudo apenas elaborando boas leis, sem proporcionar-lhes a força necessária para impor-se. Para esses liberais de novo estofo era preciso ir além; era necessário cortar e erradicar de uma vez por todas as raízes do passado: as hispânicas e católicas, as orgânicas e corporativas, responsáveis a seus olhos tanto por obstruir o desenvolvimento econômico, ao impedir o livre fluxo de mercadorias e riquezas, quanto por inibir a afirmação das liberdades civis, ao reter a população nos tradicionais recintos corporativos. Para criar nações novas e progressistas, povoadas de cidadãos independentes igualmente responsáveis perante a lei, era preciso, portanto, adotar medidas drásticas. A primeira seria um ataque decisivo ao pilar histórico da velha ordem, a Igreja católica, seja porque os seus incontáveis bens, subtraídos à circulação da riqueza, constituíam para aquelas elites os símbolos mais evidentes do freio que o passado impunha ao progresso; seja porque o seu monopólio sobre a educação dificultava a difusão das novas ideias e o nascimento de cidadãos fiéis ao Estado e às suas leis mais do que à Igreja e às suas; seja, enfim, porque a Igreja e a sua doutrina eram os bastiões mais sólidos da sociedade orgânica da qual os liberais queriam emancipar-se. Não por acaso, foi em torno da Igreja e do seu papel político, social e cultural que surgiram então os conflitos mais agudos, às vezes contidos, mas em geral muito cruentos, especialmente onde a Igreja era mais forte e enraizada em todos os estratos sociais, como no México. Conflitos que as leis liberais, resolvidas a secularizar os bens eclesiásticos, a laicizar a escola pública e a atribuir à esfera pública a responsabilidade pelo registro civil, pela legalização do matrimônio e pela administração dos cemitérios, haviam previsto. Na América e também na Europa, esses conflitos ocuparam o centro da vida pública durante grande parte do restante do século. Tanto que foi em torno deles mais do que de qualquer outro tema que a elite social e econômica, embora muito unida em inúmeros outros aspectos, dividiu-se em duas posições – liberais e conservadores – e que

também as outras camadas sociais foram com frequência chamadas a manifestar-se e a apoiar uma ou outra causa.

Teoria política e debate intelectual Uma vez alcançada a independência, os passos em falso e as pistas falsas seguidas pela maioria dos Estados latino-americanos estimularam entre as classes dirigentes, desde meados do século, amplos debates sobre as causas que defendiam e sobre o melhor modo de remediá-las. Esses debates levavam em consideração outras discussões que se destacavam na Europa da época à medida que a civilização industrial se desenvolvia. Deles resultaram as lutas políticas que assolaram a região cada vez mais daí em diante, mas também uma produção intelectual muito rica e em geral de excelente qualidade que se movimentava do direito à filosofia, da pedagogia à literatura, e chegava à teoria política. Nessa produção destacaram-se alguns grandes nomes, como o conservador mexicano Lucas Alamán e o moderado venezuelano Andrés Bello, que desenvolveu grande parte de sua atividade no Chile, até os mais brilhantes expoentes da nova geração liberal, como os argentinos Juan Bautista Alberdi e Domingo Faustino Sarmiento, os chilenos Francisco Bilbao e José Victorino Lastarría e vários outros, embora bem diferentes entre si sob muitos aspectos. Na frente conservadora prevalecia a ideia de que a ordem devia preceder a liberalização política. Nesse sentido, homens como Andrés Bello viram com admiração a monarquia constitucional da Grã-Bretanha e sustentaram com determinação a necessidade de um governo forte e centralista. Em essência, Bello nutria a ideia de um governo livre de condicionamentos aos poderes locais e ao povo, que julgava despreparado para participar da vida pública. E mais, de um governo que assumisse a missão pedagógica de formar cidadãos e de difundir um sentimento de nacionalidade, passos prévios para uma gradual liberalização política. Essa concepção, somada à de que, em vez de cortar as raízes do passado colonial, devia-se construir a nova ordem sobre elas, fez de Bello um inspirador da Constituição chilena de 1833, base do governo imposto no país por seu homem forte, Diego Portales. No entanto, tornou-o também um dos alvos prediletos dos liberais da geração seguinte. Com efeito, esses liberais, sob formas mais ou menos radicais, propuseram uma espécie de transplante cultural. Para eles, não só a ordem, mas também o progresso, só prosperariam na América Latina se fossem administradas doses maciças de liberalismo. Consideravam a cultura hispânica, entendida em seu invólucro clerical e corporativo, como a

principal causa do atraso, sendo urgente substituí-la pela cultura liberal, então no apogeu nas potências em ascensão, devendo-se para isso estimular a vinda para a região de homens e técnicas, ideias e capitais. Do mesmo modo que seus adversários conservadores, também os liberais partiam na maioria dos casos de um diagnóstico pessimista com relação à capacidade dos povos latino-americanos de se autogovernarem, julgando-os em geral incultos e submissos ao clero e à cultura tradicional. Essa percepção os estimulava a conceber formas políticas e constitucionais liberais, sempre previdentes, porém, no sentido de assegurar o governo dos “melhores” e de neutralizar a pressão popular, para eles fonte de demagogia e tirania.

5. Os casos nacionais: a norma e as exceções Depois da independência, prevaleceram na América Latina a instabilidade política e as violentas lutas pelo poder entre caudilhos nacionais ou locais. Feita essa constatação, resta verificar se é possível encontrar uma saída desse labirinto de conflitos e se alguma exceção assoma nesse caótico panorama. Para começar, todos os novos Estados, e ainda antes deles, as velhas unidades administrativas do período colonial, tudo se desfez em estilhaços. Com a queda do rei, todo território ou cidade de certa importância se apropriou da própria soberania ou retomou o que considerava ser uma liberdade antiga e posse sua a partir do momento em que o pacto com o soberano fosse dissolvido, pacto do qual ninguém mais, e muito menos uma cidade vizinha ou uma capital ameaçadora, podia apresentar-se como herdeira. Assim, a Confederação CentroAmericana, criada em 1823, dissolveu-se em 1840, e de suas ruínas surgiram os Estados da Guatemala, Honduras, Salvador, Nicarágua e Costa Rica. A Grande Colômbia sonhada por Bolívar, proclamada em 1819, desintegrou-se já em 1830, deixando caminho livre para o aparecimento da Colômbia, da Venezuela e do Equador. O vice-reino do Peru perdeu o Chile e a Bolívia, cada qual assumindo as próprias rédeas. Por fim, as Províncias Unidas do Rio da Prata se desagregaram e a Argentina não conseguiu manter o vínculo com o Paraguai nem impedir o surgimento do Uruguai. Além de divididos entre si, porém, e na maioria dos casos com fronteiras imprecisas e contestadas, causa de antigos conflitos e tensões, desde o primeiro momento os novos Estados ficaram marcados por profundas fissuras, uns mais, outros menos, cada um por motivos próprios e peculiares, mas no fundo todos muito semelhantes. De fato, de um modo ou outro, todos foram vítimas de conflitos entre o centro e a periferia, a costa e o planalto, o porto e o interior, entre cidade e cidade; em suma, entre territórios ciosos da soberania recémconquistada, e nada dispostos a substituir a tênue submissão a um rei distante

por um poder muito mais próximo, rígido e invasivo. Os exemplos se multiplicam: o do México, disputado entre centralistas e federalistas; o da Colômbia e das suas cidades, em guerras intermináveis; o do Peru, com suas guerras civis; o da Argentina, com a irremediável rivalidade entre Buenos Aires e as províncias do interior. E assim por diante. Sobre esse pano de fundo que dominou o panorama político da América Latina até anos além de meados do século, as exceções são raras, mas significativas. A primeira, já conhecida, é a do Brasil onde, é verdade, a unidade política e territorial foi posta à prova por inúmeras rebeliões eclodidas em diversos pontos do seu imenso território; e onde, com o tempo, a monarquia perdeu terreno diante da ascendente oposição republicana. No entanto, onde também o império de Pedro I, e ainda mais o de Pedro II depois de 1840, garantiram uma estabilidade inimaginável em outros lugares, graças também à função de poder moderador, isto é, de fiador da unidade política e territorial, atribuída ao imperador pela Constituição de 1824. Quanto à América hispânica, a exceção mais importante no quadro desolador de lutas intestinas foi a do Chile. Não porque, depois da independência, ele também não caísse vítima de uma década agitada por conflitos análogos aos dos outros novos Estados, mas pelo fato de que, superada essa etapa, viveu um longo período de precoce estabilidade e consolidação institucional. É impossível dizer com exatidão se, e até que ponto, esse estado de coisas resultou da relativa homogeneidade das suas elites e da sua concentração geográfica no que era na época um território bem mais reduzido do que o atual e limitado ao seu Vale Central. O fato, porém, é que a partir de 1831, sob a liderança férrea e conservadora de Diego Portales e com o reforço dos preceitos autoritários da Constituição de 1833, o Chile lançou antes de todos as bases institucionais do Estado unitário, as quais, em sua maioria, subsistiram à queda desse regime em 1861.

Pedro II, o “Magnânimo”, segundo e último Imperador do Brasil, durante 58 anos, de 1840 até sua destituição em 1889.

México: um caso extremo Nas décadas seguintes à independência, o caso do México é o mais representativo dos dilemas em que a América Latina se viu então envolvida, por duas principais razões: primeira, esse foi um caso-limite, como era inevitável que fosse, pelo fato de o México ter sido, mais do que qualquer outro país, o coração pulsante do império espanhol e onde, por consequência, as raízes da sociedade colonial eram mais profundas. A segunda é a sua proximidade com os Estados Unidos, com cuja extraordinária expansão para o oeste se defrontou de forma traumática.

Benito Juárez e as leis de La Reforma. México, Coleção da Biblioteca Digital do Bicentenário.

Quanto à primeira razão, não surpreenderá que precisamente no México os conflitos entre liberais e conservadores se tornassem mais radicais e violentos do que em outros lugares. O prestigioso líder do liberalismo mexicano foi Benito Juárez, inspirador desde 1855 de La Reforma, um pacote de leis criadas com o objetivo de abolir os privilégios da Igreja, confiscando suas propriedades, de laicizar a educação pública e de promover a economia de mercado, libertando-a dos entraves corporativos. Uma medida que ajudaria a alcançar este último objetivo era a extinção das comunidades indígenas, baseada na ideia, depois considerada ilusória, de que, adquirindo cada um a sua terra, os indígenas se transformariam em proprietários independentes e cidadãos iguais aos da nova nação mexicana. Contra essas leis, sintetizadas na Constituição liberal de 1857, insurgiram-se os conservadores, os quais, depois de anos de violenta guerra civil, foram socorridos por Napoleão III, que em 1864 impôs Maximiliano de Habsburgo no trono mexicano, criado para essa finalidade. Essa medida levou Juárez a procurar apoio nos Estados Unidos, irritados com a afronta francesa à Doutrina Monroe exatamente quando estavam em plena guerra de Secessão. Por fim, os franceses abandonaram o país, o Habsburgo não conseguiu manter-se no poder e foi executado, e Juárez reassumiu o cargo

em 1867, vindo a morrer cinco anos depois, sem condições de dizer que havia pacificado o país. No que se refere à segunda razão, a proximidade com os Estados Unidos marcou desde então a história mexicana mais profundamente do que a de qualquer outro país da região. De fato, em 1845, quando o governo estadunidense estava resolvido a anexar o Texas, território mexicano que se proclamara independente desafiando o governo da Cidade do México, os dois países entraram em guerra. Esse confronto não só evidenciou o contraste entre a vibrante força dos jovens Estados Unidos e a intrínseca fraqueza de um México flagelado por incontáveis conflitos, causa última da sua derrota, mas implicou também, com o término da guerra em 1848, a transferência para a soberania estadunidense de imensos territórios até então mexicanos, entre os quais a Califórnia, o Novo México, o Colorado e o Arizona. Com essas anexações, os Estados Unidos aplainaram o caminho para o Pacífico, embora deixando aberto um desagradável contencioso com o vizinho do sul. Bibliografia Anna, Timothy E., Forging Mexico: 1821-1835, Lincoln (Neb): University of Nebraska Press, 1998. Barman, Roderick J., Citizen emperor: Pedro II and the making of Brazil, 1825-91, Stanford: Stanford University Press, 1999. Botana, Natalio R., La Tradición republicana: Alberdi, Sarmiento y las ideas políticas de su tiempo, 2a ed., rev. y actualizada, Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1997. Bushnell, David e Macaulay, Neill, The emergence of Latin America in the nineteenth century, 2nd ed., New York: Oxford University Press, 1994. Chiaramonti, Gabriella, Suffragio e rappresentanza nel Perù dell’800, I: Gli itinerari della sovranità, 1808-1860, Torino: Otto, 2002. Collier, Simon, Chile: the making of a republic, 1830-1865. Politics and ideas, New York: Cambridge University Press, 2003. Hale, Charles A., Mexican liberalism in the age of Mora, 1821-1853, New Haven, Yale University Press, 1968. Lynch, John, Caudillos in Spanish America, 1800-1850, Oxford: Clarendon Press; New York: Oxford University Press, 1992. Sabato, Hilda (coordinadora), Ciudadanía política y formación de las naciones: perspectivas históricas de América Latina, México: Fondo de Cultura Económica, 1999. Sinkin, Richard N., The Mexican reform, 1855-1876: a study in liberal nation-building, Austin: University of Texas Press, 1979.

4. O período liberal 1. O surgimento do Estado moderno Quer se prefira realçar os fatores econômicos e sociais, quer se salientem os mais ideológicos ou culturais, tudo leva a pensar que os elementos que provocaram instabilidade política e estagnação econômica nos primeiros decênios após a independência começaram a atenuar-se na segunda metade do século e, em alguns casos, a desaparecer totalmente perto do fim. Essa realidade foi o prelúdio de profundos distúrbios no curso de todo o período, em princípio compreendido entre os anos 1870 do século XIX e a I Guerra Mundial, pois onde a economia estava estagnada, iniciou-se uma longa etapa de crescimento sustentável, e onde os caudilhos dominavam, a estabilidade passou a prevalecer e as modernas estruturas do Estado-Nação começaram a surgir e consolidar-se. O que aconteceu de fato, e como? Antes de responder a essas importantes perguntas, é preciso fazer uma advertência. Se já antes os caminhos dos diferentes Estados vinham se separando, nas décadas intermediárias entre os séculos XIX e XX eles se distanciaram com velocidade ainda maior à medida que um processo radical de modernização instalava-se na região. Nenhum país ficou excluído desse processo, que assim envolveu a todos em certa medida, mas com intensidades tão desiguais entre eles, que poucas décadas depois de iniciado, as distâncias entre os inúmeros filhos dos impérios ibéricos haviam se tornado abissais: em termos de crescimento e desenvolvimento econômico, de consolidação política, de riqueza e de dinamismo cultural. Alguns países, com a Argentina à frente, mas também o México, o Chile e o Brasil, assumiram a vanguarda. Muitos outros, de modo especial na região andina, incluindo a Colômbia e a Venezuela, e na América Central, ficaram para trás, com frequência ainda presos aos velhos demônios da violência e do caudilhismo. O que aconteceu, então? Em termos gerais, pela primeira vez os governos tiveram condições de impor a lei em todo o território nacional ou em grande parte dele, pelo menos nos países maiores, mais poderosos e ricos. Esses países puderam instituir e garantir a unidade política, ou seja, unificar a soberania e exigir a obediência tanto dos caudilhos quanto dos territórios rebeldes. Nesse sentido, fato inédito na América Latina, plasmaram-se Estados modernos, com

funções típicas dessas instituições. A começar pela dinamização do monopólio legal da violência, que assumiram desbaratando os exércitos particulares e locais ou então providenciando a profissionalização dos nacionais com o auxílio de missões militares alemãs ou francesas. E continuando com a criação de uma administração fiscal, judiciária e educacional nacional. Todas essas medidas eram necessárias para aumentar os impostos, exercer a justiça, formar cidadãos e “construir a nação” através da escola. As Constituições se tornaram então mais duradouras e eficazes, e o horizonte da ação pública se ampliou de modo antes inimaginável, graças também ao boom do papel impresso e das ferrovias que reduziam as distâncias entre lugares, pessoas e costumes. Nesse aspecto, o que então aconteceu na América Latina não foi muito diferente do que ocorria em outras partes do Ocidente, embora com suas peculiaridades próprias e já conhecidas. Mas por que razão o que fora impossível antes começou a materializar-se nesses anos? Para permanecer na linha de pensamento traçada, basta mencionar alguns fatores estruturais e outros culturais, que desenvolveremos adiante. Quanto aos primeiros, pode-se afirmar que tanto a revolução industrial europeia quanto a revolução tecnológica posterior estabeleceram as condições básicas para que a América Latina se integrasse à economia mundial com rapidez e profundidade. Assim, o comércio e os investimentos aumentaram e com eles as receitas dos Estados, que então dispuseram de recursos para consolidar a própria autoridade. Quanto aos fatores culturais, mais complexos, mas igualmente importantes, o que então se efetivou foi um compromisso implícito entre liberais e conservadores e as respectivas concepções políticas e sociais. Um compromisso baseado no interesse comum pela ordem social, pela estabilidade política e pelo progresso econômico. Desse modo, os grandes sonhos liberais de transformação social e a antiga ordem corporativa conseguiram enfim chegar a um acordo.

“State-building” e “nation-building” A construção do Estado na América Latina, como aliás em toda parte, não foi um processo rápido e breve, mas longo e cheio de obstáculos, satisfatório em alguns casos, insatisfatório em inúmeros outros. Isto se aplica, e com maior razão, à formação da nação, àquele delicado processo de ordenamento pedagógico e cultural, além de legislativo e institucional, através do qual a população de um determinado território passa a se imaginar e sentir parte de uma mesma comunidade. Nesse aspecto, a heterogeneidade étnica e a fragmentação social e territorial foram barreiras muitas vezes intransponíveis.

Esclarecido isso, o primeiro e inevitável passo então dado pela maioria dos Estados dispostos a lançar os seus fundamentos foi conhecer o próprio território e a população que o habitava. As elites que tomaram as rédeas do poder sabiam muito bem que sem esse conhecimento não haveria lei que pudessem adotar para “criar a nação”. Assim, foi nessa etapa que muitos países realizaram os primeiros censos nacionais e que se intensificou o anseio estatístico de quantificar, mensurar e catalogar a população e os bens naturais existentes dentro dos limites territoriais da nação, premissas de leis cientificamente fundamentadas e, portanto, mais racionais do que no passado. Para esse primeiro e necessário projeto, foi preciso antes de tudo desenvolver a educação, depois do que, mais tarde, foi possível enviar às regiões mais remotas dos diversos países um grande número de funcionários públicos encarregados de realizar o censo dos habitantes, elaborar listas eleitorais, lavrar registros civis e assim por diante. Dessa maneira, com maior ou menor êxito conforme a situação, e com maiores dificuldades nos países mais heterogêneos, começou a configurar-se uma estrutura pública nacional que tendeu a atenuar o peso dos contextos locais e em certa medida também a romper a impermeabilidade das barreiras étnicas e sociais. Em muitos casos, os militares desempenharam funções essenciais, tanto na progressiva unificação do espaço nacional como na ocupação concreta do território, o que os levou a criar um espírito de corpo e uma imagem de si mesmos e do seu papel na sociedade que no futuro exerceriam enorme influência sobre os destinos políticos da região. Do mesmo modo que, na administração da justiça e na tutela dos direitos constitucionais, até então quase sempre apenas teóricas, foi decisivo o papel do poder judiciário, tanto na esfera central como local. De fato, novos Códigos, civis e penais, foram introduzidos nessa época em muitos países, e também a magistratura se tornou um corpo mais autônomo e profissional.

2. O modelo primário-exportador Da metade do século XIX até aproximadamente o início da I Guerra Mundial, uma forte onda de globalização invadiu a América Latina. Esse fenômeno, impulsionado pela revolução comercial e industrial e viabilizado pelas inovações tecnológicas em níveis antes impensáveis, sobretudo as aplicadas na navegação a vapor no Atlântico e no setor ferroviário no interior dos países, desencadeou consequências fantásticas. Nesses navios e trens não foram transportadas apenas mercadorias a preços mais baixos, em tempos mais rápidos e em condições de maior segurança do que no passado, de modo a aumentar o comércio em ritmos acelerados e a atrair capitais em abundância. Neles viajaram também milhões de homens que deixaram a Europa e se instalaram na

América. Estes trouxeram consigo histórias, culturas, costumes, ideias, ideologias e tradições que enriqueceram e tornaram ainda mais complexa a já intrincada trama social da América Latina. Em poucas palavras, foi como se as ondas projetadas na história pelas grandes mudanças em curso na Europa chegassem ao Novo Mundo, arrastando-o consigo para a modernidade que o Ocidente estava criando. Uma vez mais, o Ocidente compartilhou o caminho para essa modernidade, visto que, desde então, a América Latina se encaminhou para um turbulento processo de transformações econômicas, causa por sua vez de mudanças sociais radicais que rapidamente fizeram sentir seus efeitos sobre a política, a cultura, a religião e os costumes. Como ocorreu a integração da América Latina com o Ocidente moderno, o Ocidente da Revolução Industrial da qual a Grã-Bretanha era a líder inconteste? Com aquele Ocidente embebido da ética protestante e do espírito capitalista que tanto o diferenciavam do Ocidente hispânico do qual essa América sempre fizera parte? Em termos econômicos, ela se integrou como periferia daquele voraginoso centro, mas como seu complemento necessário, tanto que o nexo que se criou entre os dois foi às vezes definido como um pacto neocolonial. Sustentáculo desse nexo foi o modelo econômico primário-exportador, baseado no livre mercado, de acordo com o qual a América Latina se especializou na exportação de matérias-primas para a Europa: minerais para a indústria e produtos agrícolas para o consumo alimentar. No sentido oposto, chegavam à América bens manufaturados pela indústria europeia, especialmente britânica. Mas não só, pois na mesma proporção, se não mais, aqui aportaram capitais europeus e estadunidenses necessários para a implantação de infraestruturas, sem as quais a torrente do intercâmbio atlântico teria se esgotado com rapidez. Capitais para escavar portos de água profunda, estender milhares de quilômetros de ferrovias em espaços intermináveis, lançar as bases de um moderno sistema creditício, explorar minas nos lugares mais inóspitos, e assim por diante. Esses capitais, em síntese, foram o lubrificante e o carburante desse modelo, dele auferindo lucros imensos como contrapartida.

Imigrantes no porto de Buenos Aires. Arquivo do Museu Nacional da Imigração, B.A., Argentina.

Como todas as grandes transformações, por óbvio esta também teve luzes e sombras, razão pela qual a visão dos historiadores nesse contexto é muito divergente e ainda hoje causa de debates exaltados. Simplificando, há quem considere tudo isso símbolo de um novo e fatal domínio colonial que distorceu a economia local e a tornou estruturalmente dependente, subjugando-a às potências estrangeiras. Para outros, no entanto, trata-se dos primeiros movimentos na direção de uma promissora modernização que, porquanto eivada de fragilidades, possibilitou à América Latina sair do atoleiro da produção para o autoconsumo e preservar e consolidar a ordem constitucional liberal. Em síntese, pode-se dizer, por um lado, que a América Latina viveu então uma impetuosa fase de crescimento econômico que implicou o boom do comércio, a criação de infraestruturas vitais, o plantio e o cultivo de novas e imensas extensões de terras férteis nas infindáveis fronteiras internas, a orientação para a urbanização e a expansão das cidades: todos fatores fundamentais para a consolidação institucional e econômica dos novos Estados e para o desgaste dos vínculos sociais pré-modernos, típicos do mundo rural. Por outro lado, esse tipo de crescimento foi também causa de distorções e vulnerabilidades: como as economias foram induzidas a especializar-se na produção dos bens demandados pelo mercado mundial, em geral apenas um ou dois por país, cada uma delas ficou na dependência das vicissitudes desse mercado; essa realidade estimulou a concentração da riqueza e da propriedade da terra, exacerbando ainda mais a já profunda fragmentação social; por fim, as

bruscas oscilações dos preços desses bens com frequência abalaram as contas públicas, as quais dependiam totalmente desses preços.

O divisor de águas econômico Nada melhor do que a frieza dos números para dar a medida do divisor de águas que os trinta ou quarenta anos na passagem do século XIX para o XX representaram para distinguir a América Latina antiga da moderna. Nada como alguns dados aleatórios para dar uma ideia do quanto o peso das transformações então ocorridas foi desigual de um país para outro. Por fim, nada como algumas cifras particularmente indicativas para mostrar o grau de intensidade do vínculo que então a América Latina estabeleceu com as maiores potências europeias e com os Estados Unidos. Nesse sentido, o caso da Argentina foi único e sem paralelos. Tanto em si mesmo, porque nenhum outro país se integrou tão profundamente à economia internacional nem foi tão sacudido pelos efeitos daí decorrentes; quanto pela especial importância que assumiu como fornecedora de carne e de cereais para a grande potência mundial da época, a Grã-Bretanha, passando inclusive a ser, em certa medida, parte integrante e fundamental do seu “império informal”. Basta dizer que o milhão e meio de libras esterlinas em produtos argentinos importados pelas ilhas britânicas em 1860 se transformara em quase 41 milhões às vésperas da Grande Guerra; que os 730 quilômetros de vias férreas de 1870 haviam superado os 33.000 quarenta anos depois; que a superfície cultivada, cerca de 2,5 milhões de hectares em 1888, multiplicada por dez, chegara a 24 milhões em 1914. E assim por diante. Mas se o caso argentino foi único e de certo modo extremo, não menos impressionantes são os números nos demais países, especialmente os maiores e mais atraentes para a economia mundial. O desenvolvimento da malha ferroviária no México, por exemplo, foi igualmente surpreendente, pois em 1910 superava os 19 mil quilômetros, o que não era coisa de pouca monta num país de relevo tão acidentado. As ferrovias mexicanas favoreceram, entre outras coisas, o surgimento de um verdadeiro mercado nacional, motor do notável desenvolvimento econômico entre os séculos XIX e XX, período em que o produto interno bruto mexicano cresceu mais de 50%. No entanto, se a Argentina se aliou ao capital britânico, o México se vinculou ao dos vizinhos Estados Unidos, que logo tomaram a frente na ávida indústria minerária.

Locomotiva em ferrovia mexicana no trajeto que unia a Cidade do México e o Porto de Veracruz, entre 1873 e 1925.

Considerações semelhantes podem ser feitas com relação a quase todos os demais países, cada um com as suas peculiaridades, como é natural. A começar pelo Brasil, onde o boom esteve associado ao café e se concentrou nos Estados de São Paulo e Minas Gerais. Os investimentos britânicos e estadunidenses aumentaram no país em ritmo acelerado, multiplicando-se por sete entre 1880 e a grande crise de 1929. Com isso, a área cultivada aumentou de forma exponencial e o Brasil acabou dominando o mercado mundial do café, detendo cerca de dois terços da produção mundial em torno de 1920. Como, porém, o café era também responsável por três quartos das receitas provenientes das exportações, é fácil compreender que toda a economia nacional dependia dos ciclos dos seus preços. Esta exposição poderia se estender e mover-se de um ponto a outro do continente: do Peru, onde a chegada das vias férreas até o alto dos Andes deu novo impulso à vocação minerária do país, mas onde também a exploração de cobre, zinco e chumbo, dada a exigência de enormes capitais e de modernas tecnologias, acabou sob o controle das grandes empresas estadunidenses; à Bolívia, onde ao novo boom da prata sucedeu o do estanho e onde a elite local que controlava a produção desse minério se instalou no topo da pirâmide social do país, que viveu então um período de relativa estabilidade; ao Chile, cujas exportações aumentaram, chegando a depender até 80% dos produtos extraídos das suas minas, em primeiro lugar do nitrato, dada a elevada demanda de fertilizantes do mercado europeu, e em seguida, cada vez mais do cobre, de que com o tempo se tornou o primeiro produtor mundial; ao Equador, onde as exportações de cacau aumentaram quatro vezes entre um século e outro; à Venezuela e à

Colômbia, onde o detonador das transformações econômicas foi a decolagem das exportações de café. Acrescente-se, aliás, que o café e os demais produtos típicos das regiões subtropicais, como o cacau, o açúcar de cana e a banana, a cuja produção aderiram com prepotência as grandes companhias estadunidenses desde o início do século XX, estiveram na base do boom das exportações na América Central e no Caribe, como também do poder das elites políticas, que em muitos casos conseguiram então impor seu domínio.

3. Uma sociedade em transformação Tanto os efeitos da modernização econômica quanto as mudanças sociais que eles desencadearam tiveram graus diferentes de profundidade de um país para outro e mesmo de região para região dentro do mesmo país. As mudanças foram mais amplas e rápidas nos países que mais se integraram à economia mundial, especialmente os maiores; foram mais lentas e limitadas naqueles cuja integração se deu de modo tardio ou demorado, portanto em países como a Colômbia e a Venezuela, mas também em grandes áreas das repúblicas andinas e centro-americanas. Com intensidades variáveis, o modelo econômico foi semelhante em toda parte, como análogos foram também os efeitos por ele produzidos na vida social. Com ritmos e modos distintos, de fato, as nações da América Latina entraram então numa longa e agitada época de modernização social, que prosseguiria e se intensificaria ao longo do século XX. Essa realidade implicou a brusca aceleração de alguns fenômenos importantes: em primeiro lugar, o crescimento demográfico, devido em alguns casos à imigração europeia, mas na realidade distribuído em toda a região, portanto também nos países onde foi mero resultado do incremento natural da população; a urbanização, particularmente intensa na Argentina, no Chile e na Venezuela, e em geral orientada para uma ou poucas cidades erigidas em elos importantes do vínculo com o mundo exterior, as quais, como a Cidade do México ou Buenos Aires, passaram em poucos anos de grandes aldeias a metrópoles vibrantes; a escolarização, pelo menos nos centros urbanos e onde o Estado mais avançou na criação de sistemas educacionais nacionais; a terceirização, pela proliferação de novas profissões, tanto no âmbito público como no privado, ligadas às necessidades de uma economia e de uma sociedade mais articuladas; por fim, em alguns casos, uma incipiente industrialização, pelo menos nos países, como Brasil, México e Argentina, onde as elites às vezes investiram seus capitais acumulados na indústria, e naqueles onde o aumento da produção de minérios favorecia o surgimento de importantes centros industriais: um fato insólito onde a economia se orientara à exportação, não sendo, portanto, a indústria que capitaneava o desenvolvimento.

Em síntese, pode-se dizer que as sociedades da América Latina começaram a se diferenciar, algumas bem mais do que outras, e embora se constatasse em todas, em contraposição à modernização, uma mais ou menos ampla sobrevivência da sociedade tradicional, de modo especial nas regiões que se mantiveram alheias ou menos influenciadas pela abertura ao mundo exterior e ao mercado mundial. Em suma, as sociedades latino-americanas se tornaram mais complexas. Se antes, simplificando muito, haviam sido polarizadas aos extremos da escala social, com uma limitada elite crioula no topo da pirâmide e uma massa rural indistinta na base, o mais das vezes indígena ou mestiça, agora as coisas começaram a mudar. De modo especial, naturalmente, onde a imigração em massa chegou a abalar as hierarquias sociais tradicionais. Mas também em outros lugares, embora de forma mais lenta. O longo e sustentado crescimento da economia ofereceu de fato novas oportunidades e estimulou a mobilidade social e o surgimento de novas classes, mesmo não tendo extirpado, como se viu, as raízes profundas de vastos setores sociais pré-modernos. E mesmo, também, que as barreiras étnicas e culturais entre um estrato e outro daquelas sociedades segmentadas tenham muitas vezes refreado a mobilidade social. Apesar dessas limitações, as transformações foram profundas e precursoras de mudanças ainda maiores. Mudaram as elites, pois ao lado das tradicionais, impregnadas de espírito aristocrático, surgiram novas, mais atraídas pelos valores burgueses. Na realidade, também estas novas elites, como as velhas, estavam ligadas à propriedade da terra, da qual à época e um pouco em toda parte se produziu uma enorme concentração; não mais entendida, porém, apenas como mera fonte de status social, mas também de progresso e riqueza, base de incursões tanto no setor comercial e financeiro, como no industrial. Mudaram os estratos populares, especialmente nas cidades, ou em setores como o das ferrovias e dos transportes em geral, das culturas agrícolas e da extração de minérios, onde com frequência surgiram sólidos e combativos núcleos proletários, vítimas das primeiras repressões violentas; mas em parte também nos campos, pelo menos onde a antiga hacienda começou a decair e o trabalho se tornou mais livre, isto é, sujeito ao mercado e às suas intempéries. Enfim e principalmente, cresceram as classes médias, em geral constituídas de mestiços ou imigrantes, diversificadas e distribuídas entre o comércio, a administração pública, os bancos, a escola e o exército. Classes às vezes próximas ao proletariado das cidades, por suas receitas e condições de vida, mas também formadas em número cada vez maior por profissionais e intelectuais desejosos de afirmação, de prestígio e de influência, em suma, prontos para ascender na esfera política.

A grande imigração As grandes migrações mundiais que de meados do século XIX até a crise de 1929 mudaram o panorama de grande parte do mundo, dispersando milhões de homens e de mulheres provenientes de quase cada bairro da Europa, produziram efeitos revolucionários em alguns países, e mais ainda em determinadas regiões da América Latina. Literalmente, pois alteraram o perfil demográfico, econômico e cultural. Durante o período liberal, todos os Estados da região, embora em diferentes proporções, procuraram atrair imigrantes, ora expondo razões econômicas, estimando que a chegada de migrantes das zonas mais desenvolvidas do planeta incentivaria o progresso técnico e produtivo; ora alegando razões culturais mais elaboradas, em particular a ideia de que o chicote da ética capitalista do trabalho que traziam consigo abalaria as bases da tradicional indolência latino-americana; ora apelando ao arsenal racista típico, tão caro a muitos positivistas e cientistas da época. Para os defensores desse argumento, a heterogeneidade étnica na América Latina representava um obstáculo para o progresso, e por isso uma substancial injeção de sangue branco que desencadeasse um processo virtuoso de “embranquecimento” da população produziria um salutar rejuvenescimento. Quaisquer que fossem as razões para favorecer a imigração, o fato é que ela só ocorreu de modo mais consistente em algumas zonas, sendo evitadas aquelas habitadas por uma população camponesa indígena numerosa ou as que ainda mantinham uma tradição recente de trabalho escravo. Nesse sentido, foram típicos os casos do México e do Peru, onde, embora os imigrantes tivessem notável influência econômica, por tratar-se em geral de empresários e comerciantes franceses e espanhóis, o seu número foi exíguo. Paralelamente, os grandes fluxos migratórios se dirigiram em sua maioria para as zonas do hemisfério austral, onde o clima era temperado e se apresentavam grandes oportunidades de progresso econômico e social, dada a desproporção entre os imensos espaços existentes e a escassa população local.

Imigrantes no refeitório do Hotel dos Imigrantes, em Buenos Aires, por volta de 1910. Foto do arquivo do Arquivo do Museu Nacional da Imigração

A Argentina e o pequeno Uruguai, então, e depois o Brasil meridional e em parte o Chile, foram os países que mais receberam imigrantes e mais se viram envolvidos com mudanças. A Argentina de novo em primeiro lugar, onde, segundo algumas estimativas, entre 1857 e 1930 ingressaram seguramente seis milhões de imigrantes, em sua maioria italianos e espanhóis; mais da metade desses, ou seja, 3,3 milhões de indivíduos, ali se fixou e fincou raízes. Isso num país que na metade do século XIX contava com um milhão de habitantes apenas, e que em 1930, em boa parte como resultado da imigração, já somava onze milhões. Acompanhando a Argentina, aparece o Uruguai, país que, respeitadas as devidas proporções, por ser bem menor do que o grande vizinho, passou por uma transformação análoga. No que se refere ao Brasil, a sua política migratória teve como objetivos alterar o perfil étnico da população, em boa parte negra ou mulata, e substituir o trabalho escravo pelo assalariado europeu. Em boa medida, esses objetivos foram alcançados atraindo uma enorme quantidade de italianos e portugueses, os quais tenderam a se concentrar cada vez mais na região de crescimento mais rápido, a de São Paulo.

4. A ilusão das oligarquias Os regimes políticos do período liberal eram oligárquicos; é o que se costuma dizer, embora a afirmação seja correta e enganosa ao mesmo tempo. Correta no

sentido de que eram regimes políticos nos quais a participação era limitada e os poderes político e econômico, concentrados numa elite restrita, tendiam a sobrepor-se. Correta também se com esse termo se quer aludir ao fato de que, mais do que pertencer a um partido ou outro, os membros dessa elite representavam uma oligarquia social, normalmente branca e culta, acima de uma sociedade fragmentada pela diversidade étnica. É enganosa, por outro lado, se não se leva em conta que, mais ou menos em toda parte, essa era a política no Ocidente antes do advento da sociedade de massa: uma atividade em geral exercida por notáveis abastados; e se não se considera que a violência, a corrupção e as fraudes que frequentemente caracterizavam as eleições na América Latina eram então fenômenos muito comuns também na Europa. É ainda mais enganosa, no entanto, caso não se mencionem as mudanças em curso nessas décadas à medida que a economia, as sociedades e a cultura passavam por mudanças; mudanças que em não poucos casos revelaram uma clara tendência à ampliação da esfera pública, à liberalização do debate político, à expansão do sufrágio e a disputas políticas mais acirradas do que no passado, pelo menos nas áreas urbanas. Dito isto, é preciso observar que, apesar de todas as suas diferenças, por vezes enormes, em matéria política os regimes da época foram conservadores. Ou seja, as elites foram ao mesmo tempo modernizadoras no campo econômico e conservadoras na esfera política, pois procuraram manter o monopólio do poder político, a ponto de frequentemente transformar as Constituições em pactos entre oligarquias e as eleições em ficções democráticas, realizadas com o objetivo de legitimar ordens políticas dadas de cima para baixo, pouco ou nada representativas dos diversos setores sociais. Pactos urdidos entre as mesmas elites que haviam se enfrentado nos tempos do caudilhismo e que agora encontravam um sólido ponto de convergência nas oportunidades econômicas e no interesse comum pela estabilidade política e a paz social. Convergência entre liberais e conservadores. Em termos mais gerais, entre os seus imaginários políticos e sociais, a visão mais racionalista e individualista dos primeiros, e a mais religiosa e organicista dos segundos. Uma convergência que encontrou seu emblema na ideologia daqueles regimes: o positivismo. Uma ideologia cujas palavras-chave ainda hoje estão inscritas na bandeira brasileira, Ordem e Progresso, e que do México à Argentina, passando pelo Istmo centroamericano e pelas nações andinas, se expressou na invocação de Paz e Administração. Com efeito, o positivismo se prestou a aproximar as duas tradições políticas e filosóficas que até então haviam tentado anular-se e excluir-se mutuamente. Se é verdade que os positivistas eram cultores da razão e do progresso, e, portanto, distantes da primazia do espírito e da fé, caros aos conservadores, também é certo que ambos concebiam a sociedade como um

organismo natural. O organicismo cientificista dos primeiros encontrou assim um sólido ponto de contato com o organicismo católico dos segundos. Da concepção da sociedade como organismo, os primeiros exaltavam o conhecimento das leis científicas que animavam esse organismo; os segundos, o conhecimento do projeto divino que a ele correspondia. Assim, ambos derivavam do organismo o direito igualmente natural de guiar a sociedade, isto é, de ocupar o seu centro nevrálgico, a cabeça que no passado fora o rei. Em resumo, a ideologia positivista legitimou o pacto implícito entre liberais e conservadores e a progressiva suspensão dos enfurecidos ataques dos primeiros contra as corporações tradicionais, as quais, com a Igreja e o exército à frente, se tornaram em muitos casos aliadas preciosas da estabilidade política e social. Essa ideologia, em alguns casos elevada à categoria de dogma público das novas classes dirigentes, além disso legitimou o costume de governar prescindindo da política, por elas entendida como divisão artificial de uma sociedade que Deus ou a natureza haviam concebido unida e harmônica. Nesse sentido, esses regimes inauguraram uma longa e robusta tradição antipolítica de que encontraremos no futuro inúmeros rastros na história latino-americana. Nisso precisamente, porém, consistiu a ilusão das elites da época, que com o tempo tiveram de entender-se com os efeitos da modernização que elas mesmas haviam promovido. Ao transformar profundamente a sociedade e a cultura, a modernização criou o ambiente para que novas classes e ideologias batessem às portas da vida pública: ora contestando a ordem conservadora, ora exigindo a distribuição mais equânime de ônus e bônus, ora pretendendo introduzir a política onde as oligarquias a haviam banido. Desde fins do século XIX, o surgimento de novos partidos políticos em diversas partes da América Latina, e ainda mais o de numerosos e combativos movimentos de trabalhadores, muitas vezes anarquistas e socialistas, mas também católicos, desde o México até o Chile, da Argentina a Cuba, foi sintoma das primeiras e profundas fendas que pouco a pouco se abriam na estável superfície dos regimes liberais.

Histórias de guerras e de fronteiras Época de ordenamento dos Estados-Nações, de ocupação e delimitação dos seus territórios e de definição das hierarquias entre os mais e os menos poderosos, a fase de transição entre os séculos XIX e XX passou por momentos de fortes tensões nas fronteiras. Em muitos pontos, estas eram indefinidas e contestadas desde a independência: entre Argentina e Chile, Peru e Equador, Colômbia e Venezuela, e assim em grande parte do continente, para não falar de quase todos os limites do Brasil. Em alguns casos, tanto os problemas de fronteira como o precário equilíbrio entre

potências culminaram em guerras cruentas entre vizinhos, daí resultando mudanças territoriais drásticas. Um desses episódios foi o da guerra do Paraguai, travada de 1865 a 1870 entre os exércitos da Argentina, do Brasil e do Uruguai, de um lado, e o do Paraguai, de outro. Uma guerra em que delicadas questões geopolíticas e o problema correlato do acesso à extensa rede fluvial da região se emaranharam, redundando na trágica derrota do Paraguai, que perdeu 200.000 homens, cerca da metade da população, e vastas porções de território que Argentina e Brasil dividiram entre si.

Pintura Batalla de Tuyutí, de Cándido López, que faz parte do acervo do Museo Nacional de Bellas Artes, em Buenos Aires. A batalha aconteceu no dia 24 de maio de 1866, próxima ao lago Tuyutí, em solo paraguaio, e foi um confronto entre a Tríplice Aliança e o Paraguai.

A guerra do Pacífico, que se desenrolou entre 1879 e 1883, acarretou consequências semelhantes sobre o mapa da América do Sul. Desencadeada pelo controle das ricas jazidas de salitre no deserto de Atacama, nela o Chile demonstrou maior poderio militar e solidez estatal, derrotou os exércitos do Peru e da Bolívia e assim ampliou imensamente o seu território. Os derrotados, por sua vez, perderam grandes porções territoriais e, no caso da Bolívia, a própria saída para o Oceano Pacífico, que reivindica até hoje.

5. Juntos em ordem aleatória: México, Brasil, Argentina

A América Latina inteira viveu processos substancialmente análogos nas décadas entre os dois séculos, mas de modos e intensidades tão variáveis a ponto de compor histórias muito diferentes. A partir dessa época as histórias nacionais começaram a se distinguir de modo cada vez mais claro da história da região no seu conjunto. Esta se dividiu em tantos capítulos quantos eram os países derivados da sua unidade política originária. No México, o período foi dominado por Porfirio Díaz, que até lhe emprestou o nome, o porfiriato. O regime foi longevo, de 1876 a 1910, exceto por uma breve e virtual intermitência. Em termos políticos, foi uma autocracia, ou seja, um regime personalista e autoritário que impôs a ordem depois de longas guerras civis. Arriadas as bandeiras da reforma liberal que tantas reações havia causado, Díaz tratou de pacificar o país para aproveitar ao máximo as oportunidades de desenvolvimento econômico oferecidas pela rápida abertura dos mercados. Para isso, restaurou as relações com a Igreja e se valeu do apoio dos grandes latifundiários, beneficiados pelo fomento das exportações e pelas terras tomadas às comunidades indígenas. Contra estas, como contra as primeiras agitações anárquicas nas minas, Díaz não titubeou em usar a força. Mas a repressão não foi o único instrumento do seu governo, para o qual empregou largamente também métodos antigos e bem testados: as redes familiares e territoriais. No campo econômico, o seu regime, como os demais da época, foi modernizador, capaz de atrair grandes investimentos, de aumentar as exportações agrícolas e minerárias, de fazer crescer a economia e as receitas fiscais, de promover a expansão da malha ferroviária. Não por acaso, produziuse então um boom demográfico, ainda que os baixos salários e vários outros fatores inibissem uma imigração mais consistente. Em termos ideológicos, por fim, o porfiriato foi um regime positivista típico, tanto que os seus brilhantes intelectuais foram chamados los científicos, os cientistas. Com o tempo, essas e outras transformações o submeteram a duras provas, à medida que as reivindicações sociais e as exigências de democracia política aumentaram e se tornaram mais prementes. Além disso, alcançando Díaz uma idade avançada, impôs-se o problema da sucessão, mas como a sua ditadura não comportava canais representativos, a crise assumiu formas traumáticas. Ele acabou sendo deposto pela revolução.

Porfirio Díaz (à esquerda) durante os festejos do Centenário da Independência, no Méxco, em 1910. Fotografia de Aurelio Escobar Castellanos.

Análogo, mas também diferente, é o caso do Brasil, onde Dom Pedro II, por um lado exposto à hostilidade dos republicanos e, por outro, à dos grandes latifundiários contrários à sua decisão de abolir a escravatura, caiu em 1889 em decorrência de um golpe de Estado militar. Assim, também o Brasil se tornou uma república, com os militares assumindo a função de poder moderador até então exercido pelo Monarca. Esse foi o nascimento da República Velha, que duraria até 1930, um regime que encontrou expressão política na Constituição de 1891, a qual sancionou a natureza federativa do Estado e, com esta, a ampla autonomia de cada unidade federada que o integrava.

Quadro Proclamação da República, óleo sobre tela, de 1893. Acervo da Pinacoteca Municipal de São Paulo.

Elemento de sustentação desse regime foi a alternância regular de poder, salvo raras exceções, entre os dois Estados mais ricos e poderosos, São Paulo e Minas Gerais. Nesse sentido, no Brasil, o pacto se deu entre oligarquias, em que as mais fracas se submeteram às mais fortes em troca da liberdade de ação em nível local, onde as estruturas sociais mudaram de fato bem pouco. O potente motor econômico desse regime bastante estável, também ele impregnado de ideologia positivista, foi o café. O Brasil chegou a controlar grande parte do comércio mundial desse produto e sobre ele assentou a sua modernização econômica, à qual os capitais ingleses e os imigrantes deram grande impulso. Estes chegaram em grandes levas, fornecendo mão-de-obra em abundância e contribuindo de modo significativo para o surgimento de uma nova burguesia. Elitista por natureza num país ainda em grande parte rural e atrasado, com o tempo esse regime sofreu os contragolpes da rápida modernização, perceptíveis nos movimentos incipientes dos operários, na intolerância dos jovens oficiais do exército – os tenentes – a um regime desprovido de um centro de gravidade nacional, mas principalmente no desenvolvimento peculiar do Estado do Rio Grande do Sul, que acabou subvertendo as regras e pondo as fissuras à mostra. De todos, o caso da Argentina é o que mais impressiona, pois a transformação pelo qual passou nesses anos praticamente não tem paralelos na história. Não tanto pelo seu regime político, que encontrou expressão no Partido Autonomista Nacional e que foi também ele um pacto entre oligarquias, mas agora entre as poderosas elites da capital e as do interior do país, com as primeiras impondo sua hegemonia e acabando com os velhos conflitos do passado. Nem pela sua ideologia, tão positivista quanto a dos regimes da mesma época. Mas pela

profundidade inigualável com que foi sacudida pela imigração e pela intensidade ímpar da sua integração ao capitalismo britânico. E, portanto, também das suas transformações sociais e econômicas que fizeram dela um dos países mais ricos do mundo, para o qual todos prognosticavam um grande futuro. Considerados esses fatores, dado o fato de que os imigrantes europeus lhe conferiram uma elevada homogeneidade étnica e cultural ausente em outros lugares, e dada a civilização em geral urbana que ali surgiu, não surpreende que as suas elites cultivassem uma espécie de destino manifesto; ou seja, um sentido missionário e uma vocação para a liderança regional. Também não admira que os efeitos da modernidade fossem sentidos ali em primeiro e com mais força, como, por exemplo, no precoce surgimento dos modernos sindicatos e partidos políticos. Por isso, quando a lei Sáenz Peña introduziu o voto secreto e obrigatório em 1912, o regime argentino parecia ser o único de um grande país latino-americano capaz de evoluir do período liberal ao democrático sem grandes traumas.

6. O início do século americano A guerra de 1898 entre Estados Unidos e Espanha pela conquista da ilha de Cuba, tão fácil para aqueles quanto trágica para esta, a ponto de ficar impressa como el desastre na história espanhola e como uma “pequena e esplêndida guerra” na estadunidense, representou uma virada radical para as relações internacionais da América Latina, embora muito mais para a América Central e o Caribe do que para os grandes países da América do Sul. Assim o Caribe, de lago europeu que fora até então, tornou-se um lago americano, realizando o antigo sonho estadunidense de exercer o controle sobre a região e, com isso, garantir a segurança das suas fronteiras meridionais. Essa guerra não só extinguiu o pouco que restava do império espanhol na América, agora órfão também de Cuba e Porto Rico, mas iniciou em ritmo acelerado a expansão militar e econômica estadunidense na parte latina do hemisfério. A começar por Cuba, que teve sua independência reconhecida por Washington, mesmo ao preço do direito de intervenção nos seus assuntos internos. Continuando com o Panamá, onde em 1903 as tropas dos Estados Unidos ajudaram os nacionalistas locais a proclamar a independência da Colômbia em troca da concessão do direito de construir um canal interoceânico, inaugurado em 1914. E prosseguindo com inúmeros países da área onde a influência estadunidense se projetou, da Nicarágua à República Dominicana, da Guatemala ao Haiti: ora através dos sólidos investimentos das multinacionais agrícolas e minerárias, ora através da intensificação da propaganda cultural e das missões protestantes, ou ainda através das crônicas intervenções dos marines para manter a ordem, sempre precária, nos pequenos e em geral pobres

países da região. O novo estágio que então se inaugurou nas relações entre Estados Unidos e América Latina encontrou expressão no corolário do presidente Theodore Roosevelt à doutrina Monroe. Nesse documento de 1904, Roosevelt reivindicou para o seu país o direito de intervir em todas as Américas com os seguintes objetivos: garantir a ordem política, difundir a prosperidade econômica, manter afastadas as potências europeias, concluir a obra de civilização para a qual os Estados Unidos se consideravam destinados. Assim, essa foi a época em que a doutrina Monroe se transformou em emblema da tutela política e militar estadunidense sobre a área mais próxima às próprias fronteiras meridionais; objeto predileto, portanto, da hostilidade do embrionário nacionalismo latino-americano, o qual, entre outros personagens influentes, teve em José Martí, pai da independência cubana, seu inspirador e adepto fervoroso.

A independência de Cuba Em 1898, enquanto se desenrolava em Cuba a guerra de independência da Espanha conduzida pelos patriotas locais, muitas vezes exilados nas costas estadunidenses, o governo de Washington decidiu intervir militarmente na ilha para preservar a paz e proteger os interesses e a vida dos cidadãos estadunidenses. A esse objetivo o Congresso acrescentou o de favorecer a independência de Cuba, em sintonia com o “excepcionalismo americano” e com a enorme simpatia que a causa cubana desfrutava junto à opinião pública estadunidense. Na realidade dos fatos, porém, o que aconteceu foi a instituição de uma espécie de protetorado estadunidense na ilha de Cuba, medida já insinuada pelo tratado de paz que pôs fim à guerra, e que os Estados Unidos concretizaram para servir de exemplo e demonstração do tipo de esfera de influência que se aprestavam a estabelecer na região. Essa solução foi sancionada pela emenda Platt, derivada do nome do senador que chefiava a comissão de relações exteriores do Senado, e foi inserida explicitamente no texto da nova Constituição cubana. Essa emenda reconhecia o direito dos Estados Unidos de intervir na ilha para preservar a paz interna e a independência, e limitava o direito cubano de contrair dívidas livremente e de estipular alianças internacionais que representassem uma ameaça para a segurança do grande vizinho. No futuro, os Estados Unidos recorreriam a essas prerrogativas sempre que considerassem necessário.

Jose Martí.

Três anos antes, porém, em 1895, José Martí, o escritor e patriota cubano considerado pai da independência, sucumbira em combate contra as tropas espanholas. Martí, exilado nos Estados Unidos, onde viveu escrevendo em espanhol para a grande imprensa, teorizou sobre a necessidade de conciliar em Cuba a revolução nacional com a democrática. Nesse sentido, foi agudo crítico dos regimes oligárquicos do continente, aos quais contrapôs a necessidade de dar voz à representação popular, e da sua ideologia positivista, a que opôs a urgência de integrar os vários componentes étnicos. Liberal idealista, imaginou e defendeu um processo de construção nacional com origem nas bases, na sociedade civil, cuja força e papel tendia a idealizar, e não imposto de cima, como via acontecer ao seu redor. Esses foram os princípios que implantou no Partido Revolucionário Cubano, de que foi ideólogo e fundador em 1892, um dos primeiros partidos nacionais e radicais em vários e amplos setores sociais da América Latina. Típica de Martí foi a consciência precoce com que captou os sinais das aspirações hegemônicas dos Estados Unidos, país, aliás, cujas instituições e cultura democrática muito admirava. Na sua visão, no entanto, a ameaça que desde então representavam o levou a defender, antes de muitos outros, a luta dos povos latino-americanos pela “segunda independência”. Bibliografia Annino, Antonio (coordinador), Historia de las elecciones en Iberoamérica, siglo XIX: de la formación del espacio político nacional, Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1995.

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5. O declínio do período liberal 1. A crise e os seus problemas A fixação de uma cronologia para a crise do período liberal na América Latina é, por força das circunstâncias, uma atitude arbitrária, pois os caminhos seguidos pelos diversos países já eram muito diferentes, alguns já observando o ocaso do que para outros ainda era um tênue vislumbre no horizonte. Além disso, os processos causadores dessa crise vinham de longe e atravessariam a história da região por muitas décadas futuras. Assim, fixá-la nos anos entre a Grande Guerra e o dia imediato à quebra da bolsa de Wall Street não passa de uma convenção. Tanto mais que a I Guerra Mundial não produziu na América Latina, que não participou dela diretamente e muito menos foi campo de batalha, o efeito devastador e intermitente que teve para a história europeia. Não obstante, uma e outra data fazem sentido enquanto delimitam uma fase peculiar da história latino-americana, muito vinculada à história mais abrangente do Ocidente para lhe ser estranha, o que de fato não foi. Por um lado, basta antecipar que a guerra fez soar os primeiros toques de alarme para a manutenção dos regimes oligárquicos e do seu modelo econômico. Por outro, que a Grande Depressão começou na América Latina não só com o colapso do modelo econômico predominante durante várias décadas, mas também com uma imprevista lufada de golpes de Estado nos principais países, nos quais se iniciou assim uma longa era militar. Tanto que o ano de 1930 costuma ser apontado como um momento crucial na história política da região. Antes de examinar as causas e as modalidades específicas dessa crise, anunciada, aliás, pelos dilemas que os efeitos da modernização criaram para os regimes oligárquicos, é preciso estabelecer algumas premissas. A primeira é que os problemas que a América Latina então enfrentou não foram, mutatis mutandis, substancialmente diferentes dos vividos pelas nações europeias. E também as reações predominantes não foram em geral muito diferentes daquelas dos países latinos da Europa, com os quais a América Latina no fundo ainda compartilhava o fato de pertencer a uma mesma civilização. Assim, todos, embora alguns sob a enorme pressão da guerra, outros não, alguns mais modernos e avançados, outros mais arcaicos e atrasados, começaram desde

então a se amoldar à transição da sociedade de elite à sociedade de massa, do universo religioso ao político, do liberalismo das elites à democracia do povo, da miragem do progresso à realidade dos conflitos que este costuma trazer consigo. Em suma, todos tiveram de encarar a delicada passagem para a modernidade, passagem que tanto na América Latina como na Europa gerou longas e muitas vezes trágicas crises políticas, sociais, espirituais e culturais. A segunda premissa é que as crescentes dificuldades dos regimes oligárquicos para governar sociedades cada vez mais complexas, surgidas após décadas de modernização, evidenciaram sua incapacidade de ampliar as bases sociais, ou seja, de construir o consenso. Essa realidade revela o enorme grau de superficialidade e em geral de alienação em que a ideologia liberal se manteve para a maioria dessas sociedades tão fragmentadas, ideologia que haviam invocado para legitimar-se e que tanto teve de conceder para conciliar-se com o poder das corporações tradicionais. Em outros termos, mostra como a estrutura social e a configuração cultural da América Latina foram pouco propícias para a sua aclimatação. O liberalismo, de fato, do mesmo modo que os regimes que o adotaram, acabou desde então como foco da reação que um pouco em toda parte começou a tomar corpo. Uma reação que em geral levantou a bandeira do nacionalismo, uma bandeira multicolorida atrás da qual assomavam as características principais do antigo imaginário organicista, pronto a desforrarse; muitas vezes, embora nem sempre, por obra dos que eram seus pilares de sustentação: os militares.

Mais singular do que raro: o caso do Uruguai Se houve um país que desde o começo do século tomou um caminho peculiar que o distanciou da maioria dos demais da região e que lhe possibilitou atravessar a crise dos anos entre a I Guerra Mundial e a Grande Depressão, esse foi o pequeno Uruguai. Enriquecendo em decorrência do boom das exportações de carne e de cereais, em grande parte urbano e povoado de imigrantes europeus, o Uruguai passou antes de outros países, e de forma mais virtuosa, do liberalismo à democracia, lançando os fundamentos de um sólido sistema democrático destinado a perdurar até a grave crise dos anos 1970, dela renascendo com vigor renovado. Essa democracia se apoiava no elevado grau de laicidade da vida pública uruguaia, no bom nível de vida da maioria da população, na excelente escolarização e nos serviços sociais mais amplos e eficientes do que em outros países. Todos esses elementos tiveram suas bases lançadas precisamente no início do século, no mesmo momento em que a maioria dos demais países começava a descer a ladeira que levava ao declínio

liberal e à impetuosa emergência do nacionalismo. Essa era a realidade que se apresentava, não obstante o Uruguai do século XIX não mostrar nenhum sinal de que teria um futuro diferente daquele dos outros países, com os quais, na verdade, tivera em comum a experiência das frequentes guerras civis entre caudilhos e o bipartidarismo elitista. O homem que encarnou o nascimento e a institucionalização desse sistema foi José Batlle y Ordoñez, a figura que dominou a história uruguaia nos primeiros vinte anos do século XX, ocupando em duas ocasiões a presidência da República. Com efeito, ele foi o primeiro no seu país e no continente a ampliar as bases sociais dos dois partidos tradicionais, adotando o sufrágio universal, que depois seus sucessores nos anos 20 e 30 estenderam às mulheres, muito antes que a maioria dos países ocidentais introduzisse essa prática. Não obstante, o que deu eficácia às suas reformas políticas e durabilidade ao sistema criado foram as inúmeras outras reformas, advindas como corolário. A começar com as sociais, que Batlle incentivou a partir de 1905, quando reconheceu os direitos de greve e de sindicalização dos trabalhadores urbanos, sujeitos na maioria do continente a violências e restrições. No decênio seguinte, essas reformas foram seguidas pela redução da jornada de trabalho para oito horas e por uma moderna legislação social. Batlle não recuou diante da resistência dos grandes latifundiários e criou uma vasta frente social que abrangia desde a classe média urbana até o mais reduzido, mas combativo, proletariado. A política reformista do governo, a sua firme adesão aos preceitos constitucionais e o papel de árbitro atribuído ao Estado nos conflitos sociais levaram essa frente a seguir um caminho moderado e gradual, distante da via radical e revolucionária que tendia a prevalecer em outros países. Desse modo, num clima efervescente, sem dúvida, mas bem diferente daquele que em outras partes desembocou em sangrentas guerras civis, foram introduzidas no Uruguai algumas leis laicas importantes, seja na educação pública, com a exclusão do ensino religioso nas escolas, seja na legislação civil, à qual foi acrescentada, entre outras, também a lei do divórcio.

Montevidéu durante o governo de Batlle.

2. As causas políticas O que causou a crise dos regimes oligárquicos do período liberal? É impossível dar uma resposta unívoca, considerando que nem todos caíram e que no caso dos outros a queda não ocorreu ao mesmo tempo nem do mesmo modo. Mesmo em meio a grandes solavancos, os sistemas do Uruguai e do Chile não sucumbiram totalmente; antes, em sentido mais democrático, evoluíram, embora o primeiro, como seu viu, de modo linear, e o segundo passando por várias convulsões militares. No México, o regime aprofundou a revolução, que abriu cenários novos, mas no Peru ruiu em decorrência de um golpe militar que conteve as mudanças. No Brasil, chegou ao fim por ser obsoleto, enquanto na Argentina agonizou durante toda a década de 1930. E assim por diante, incluídos os casos de tendência oposta, como a Colômbia, onde o que entrou em crise foi o domínio clerical dos conservadores, suplantado por uma onda de liberalismo renovado. A lista poderia continuar, adotando uma casuística bem variada. A pergunta que se impõe, então, é esta: cada regime seguiu seu próprio caminho ou existe um fio condutor em meio a tantas diferenças?

Francisco I. Madero foi eleito presidente do México em 1911 pelo Partido Constitucional Progressista. Foto do arquivo Memória Política do México.

Em termos políticos, costuma-se dizer que o que mais abalou a estabilidade e a legitimidade desses regimes foi a intensificação das exigências de democracia, seja qual for o sentido que o usuário entendesse com essa palavra. Na realidade, em muitos casos, ela evocava soluções que pouco ou nada tinham a ver com democracia. Tanto assim que talvez seja mais correto dizer que a agitação dos tempos se devia a uma demanda de participação ou de mudança, tout court. Expressões de novas classes, em geral de setores intermediários, mas muitas vezes também de partes das elites insatisfeitas com a oligarquia dominante, nasceram ou lançaram raízes profundas nos novos partidos, como a União Cívica Radical na Argentina ou a Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA) no Peru, para mencionar dois exemplos que fizeram escola. Ou o Partido Constitucional Progressista no México, com o qual Francisco Madero desafiou Porfirio Díaz em 1910. Partidos cujo programa normalmente apresentava como primeiro ponto a reivindicação de eleições livres e transparentes, procurando assim deixar as oligarquias sem alternativa e pondo às claras sua evidente contradição, isto é, desafiando-as a respeitar nos fatos os princípios que elas proclamavam nas Constituições. Os regimes oligárquicos teriam, então, entrado em crise e depois desabado para possibilitar o advento fisiológico de uma era democrática? Absolutamente não. Na grande maioria dos casos, o que aconteceu antes e depois de 1930 foi

muito diferente. Onde as elites no poder eram mais sólidas, ou onde as novas forças eram mais fracas porque seus países eram mais atrasados, em geral verificava-se uma reação autoritária, circunstância que levou a democracia política a perder uma preciosa oportunidade. Por outro lado, onde a modernidade se impôs com força suficiente de modo a impedir que os velhos regimes conseguissem conter seus efeitos, isto é, nos países mais modernos e avançados, surgiram outros fenômenos típicos do advento da sociedade de massa. Na verdade, surgiram os populismos, tema do próximo capítulo, também eles, avessos à tradição da democracia liberal e representativa, que por isso também nesses casos perdeu o trem da história. Isto é, nesses países abriu-se a caixa de Pandora de sociedades em plena transformação que os novos partidos surgidos nas primeiras décadas, ligados às classes médias e de cunho em geral reformista, não puderam representar nem conter. Em ambos os casos, como se vê, e do mesmo modo que acontecia na mesma época nas nações latinas da Europa meridional, o declínio dos regimes liberais não preparou o caminho para a democracia representativa, mas para regimes políticos de outra natureza. Emblema da mesma demanda genérica de participação e mudança foi o movimento da reforma universitária, surgido em Córdoba, Argentina, em 1918, com um programa que ressaltava a necessidade de democratizar o acesso e a administração das universidades. Seus ecos se propagaram por toda a América Latina, confundindo-se com os emitidos um pouco antes pela revolução mexicana. Por fim, o que também contribuiu para abalar os frágeis fundamentos dos regimes oligárquicos foi o surgimento de outros partidos ou movimentos, todos inspirados pela moderna questão social, a questão do conflito entre capital e trabalho, que começava a revestir-se de importância também na América Latina. Partidos ou movimentos até aí de orientação principalmente anarquista e socialista, mas depois da revolução bolchevique de 1917 também comunistas, os quais realizaram em 1929 a primeira Conferência dos partidos comunistas da América Latina. Uns e outros constituíam-se em reagrupamentos políticos e sociais quase sempre de dimensões ainda reduzidas, mas mais organizados, motivados e ativos do que a maioria dos demais atores daqueles sistemas políticos em geral ainda inconsistentes. Além disso, e com enorme frequência, capazes de demonstrar com todo o vigor os efeitos das suas lutas, sendo particularmente fortes nos setores-chave da economia, ou seja, os vinculados às exportações, tais como transportes, extração de minérios, indústrias de congelamento da carne e assim por diante. Sempre oscilando entre legalidade e clandestinidade, entre Parlamentos e sindicatos, entre o caminho reformista e o revolucionário, ora tolerados, com mais frequência violentamente reprimidos, esses movimentos não se transformaram em partidos de massa modernos, mas

exerceram um papel importante na corrosão das bases sociais e das certezas ideológicas dos regimes liberais-oligárquicos.

A APRA e os partidos radicais Do partido radical que chegou ao poder na Argentina em 1916 àquele que em 1920 apoiou no Chile o governo reformista de Arturo Alessandri; dos primeiros movimentos que desafiaram o poder numa Venezuela dominada pela férrea ditadura de Juan Vicente Gómez àqueles que igualmente se opuseram ao regime autoritário e modernizador de Augusto Leguía no Peru; passando pelos inúmeros outros que de formas diversas, com maior ou menor força e em vários contextos, proliferaram em quase toda a América Latina, as novas formações políticas então surgidas nessas sociedades cada vez mais complexas foram um traço peculiar da época. Esses partidos encarnaram as imensas expectativas de uma democratização incipiente e do nascimento de um sistema político novo e institucionalizado, em condições de oferecer uma representação articulada da pluralidade social. Expectativas essas em sua grande maioria frustradas quando a crise do sistema liberal atropelou em muitos países também os partidos políticos, seu elemento fundamental, quase sempre suplantados pela força de antigas ou novas corporações. Entre esses partidos destaca-se a Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA), partido fundado pelo jovem líder político peruano Víctor Raúl Haya de la Torre em 1924, no México, onde se encontrava exilado. Sendo expressão das correntes que à época tentavam em diversos pontos da América Latina conciliar democracia, reformas sociais e nacionalismo, o APRA nasceu com ambições supranacionais, tornando-se depois protagonista crucial da atribulada história política do Peru. Além disso, no entanto, também um partido cuja influência política e ideológica se difundiu com o tempo em vários países americanos, especialmente da área andina, e em outros da América Central e do Caribe. A APRA, cuja base social incluía principalmente as classes médias, mas também algumas faixas do proletariado, incitava acima de tudo à luta contra o imperialismo dos Estados Unidos. Esse antagonismo começava a ser comum naqueles tempos de constante intervencionismo estadunidense, muito mais num país como o Peru, onde os interesses minerários americanos aumentavam, e para um jovem como Haya de la Torre, exilado antes no Panamá e depois na corte do regime nascido da revolução mexicana. Além disso, o programa originário da APRA previa a união do que o seu líder definia como Indo-América, referindo-se ao resgate das raízes

indígenas da região, à nacionalização de terras e minas e a uma genérica frente anti-imperialista universal. Embora muitos desses pontos se aproximassem num primeiro momento dos movimentos marxistas que emergiam na onda da revolução bolchevique, a ideologia da APRA logo revelou um acentuado nacionalismo que levava à teorização em torno de uma espécie de terceira via entre capitalismo e comunismo, uma característica típica dos populismos latino-americanos, como se verá. Dito isto, o golpe de Estado efetivado no Peru em 1930 e os sucessivos e violentos confrontos entre o exército e o movimento aprista impediram o seu líder de chegar ao governo, que a APRA alcançou pela primeira vez muito mais tarde, em 1985, num contexto já distante anos-luz daquele das suas origens.

Convenção da APRA capitaneada por Víctor Raúl Haya de la Torre.

3. As causas sociais e econômicas As certezas das elites começaram a vacilar assim que o progresso e o mito que se criara em torno dele passaram a manifestar efeitos secundários desagradáveis, isto é, à medida que os conflitos que os seus regimes haviam procurado neutralizar, expulsando-os pela porta, tornavam a entrar pela janela em forma de tensões e desordens. As oligarquias não estavam preparadas para enfrentar esses fenômenos, e por isso, na maioria dos casos, tendiam a atribuílos a ideologias e a agentes estrangeiros que se juntariam para ameaçar a tranquila harmonia local. Assim, boa parte dessas elites, antes liberais e

cosmopolitas, buscaram refúgio no alentador mito nacionalista da sociedade coesa e equilibrada, sujeita aos ataques de um inimigo externo e dos seus aliados internos. Em suma, os regimes oligárquicos não estavam preparados para enfrentar os modernos conflitos sociais e ideológicos, e tampouco para governar o já irrefreável pluralismo político. Prisioneiros da fé cega no progresso e da ainda mais intensa hostilidade à política, esses regimes haviam efetivamente obstruído, salvo em casos raros, os canais necessários para metabolizar os novos desafios e desativar o potencial destrutivo: os democráticos. Nesse sentido, a I Guerra Mundial foi decisiva também na América Latina. Embora os seus efeitos parecessem dissipar-se por breve tempo, os seus agudos ecos não se desvaneceram na década seguinte. Ela foi decisiva, antes de tudo, pela demolição que provocou: a do mito de uma Europa feliz, berço da cultura francesa, da democracia britânica, da ciência e dos exércitos alemães. Como podia ainda ser modelo de civilização essa Europa que se dilacerava nas trincheiras? O que restava do dogma positivista das elites políticas e intelectuais, o dogma que legitimara o poder estimulando a miragem de alcançar a civilização europeia pela emulação? No entanto, além desses efeitos abstratos, mas prodigiosos, a guerra teve outros mais concretos e imediatos. A galinha dos ovos de ouro dos regimes oligárquicos – o modelo primário-exportador – sofreu durante a guerra os seus primeiros curtos-circuitos sérios. Não porque já não os tivesse tido, mas porque agora abalaram suas bases, como era inevitável, aliás, dado que a sua ramificação europeia, toda voltada aos esforços bélicos, ficou praticamente imobilizada, acarretando consequências importantes. Algumas imediatas, pois muitas economias da região se viram subitamente envoltas em grandes dificuldades, sem saídas seguras para seus produtos e sem os bens que costumavam importar. Outras mais permanentes, a partir do momento em que a guerra acelerou alguns fenômenos já em curso. Em primeiro lugar, levou os países americanos detentores de capital a substituir parte do que não conseguiam mais importar, ou seja, a criar uma rede de indústrias, fato que impulsionou a modernização social e as demandas políticas que já assediavam os regimes oligárquicos. Desse modo, propiciou uma entrada cada vez maior do capital estadunidense na região, em substituição ao europeu, fornecendo combustível novo à já viva chama nacionalista. No entanto, o mais importante é que o conjunto desses fenômenos abalou a convicção de que esse modelo fosse eterno e sempre virtuoso e difundiu a consciência de que ele também implicava sérios riscos, sendo o mais evidente a vulnerabilidade das economias da América Latina; ainda mais que aquelas crises econômicas se traduziram bem rapidamente em alguns terremotos sociais

intensos. A escassez de bens, a inflação que corroía os salários, os grandes bolsões de desemprego, a ausência de sistemas previdenciários, que somente no Chile, no Uruguai e na Argentina começavam a ser delineados: esses e muitos outros problemas estavam na origem da grande onda de greves, muitas vezes violentas e reprimidas com violência ainda maior, que invadiu a América Latina entre 1919 e 1921, da Argentina ao Peru, do Brasil ao Chile. E isso enquanto ainda soava o eco da revolução no México, que havia se propagado por toda a região com intensidade incomum. O clima, em suma, havia mudado, e dez anos depois, quando sobrevieram os dramáticos efeitos da crise econômica mundial, o terreno já estava preparado para grandes convulsões.

A revolução mexicana A revolução mexicana incluiu uma fase armada que se estendeu de 1911 a 1917. O que realmente ocorreu foi uma violenta guerra civil que custou mais de um milhão de vidas e cujo rastro político e de violências se prolongou por muito tempo ainda depois do fim dos combates. Nela coexistiram realidades e fenômenos muito distintos, reflexos, por sua vez, de reivindicações, de grupos sociais e de partes do território muito heterogêneos. Em síntese, a revolução mexicana foi várias revoluções concomitantes, com as quais o porfiriato chegou a um fim traumático e as bases de uma nova ordem política e social foram lançadas. Ela iniciou como revolução política, sob pressão das elites liberais do norte do país que reivindicavam a democratização do regime. O líder dessa revolução foi Francisco Madero, que desafiou Díaz para as eleições, mas empunhou as armas e conclamou a população à revolta diante da resistência com que se deparou. O ditador foi exilado e Madero assumiu o poder, mas logo se viu envolvido pelas divergências entre os revolucionários e pela reação do exército. Muitos revolucionários, de fato, com Emiliano Zapata à frente, não estavam dispostos a depor as armas enquanto não conseguissem a reforma agrária, motivo que os levara a empunhá-las. Foi então, com o caos e a violência no auge, que o general Victoriano Huerta tomou o poder à força, encaminhando aquela que a todos pareceu a iminente restauração da ordem pré-revolucionária. Em contraposição a esses desdobramentos formou-se no norte do país um exército constitucionalista sob o comando de Venustiano Carranza, que recebeu importante apoio também de Francisco ‘Pancho’ Villa, excêntrico produto daquele grande movimento telúrico que foi a revolução, bem mais semelhante ao típico caudilho latino-americano do que ao moderno revolucionário. No sul, entretanto, continuaram as lutas campesinas contra

Huerta, comandadas por Zapata. Essa situação se prolongou até que os Estados Unidos, que num primeiro momento haviam confiado no retorno das elites depostas, mas com a chegada de Woodrow Wilson à presidência procederam a uma mudança de rota, resolveram enviar um contingente militar ao porto de Veracruz. O objetivo era sufocar o governo de Huerta e obrigá-lo a abandonar o território. Os Estados Unidos agiam movidos pela convicção de que o México estava preparado para uma mudança profunda e que somente o apoio aos exércitos constitucionais asseguraria um governo estável e democrático. De fato, Huerta caiu sob a enorme pressão do “alicate” que o apertava de norte a sul. O México então, na prática, se encontrou na estranha situação de não ter um Estado, presa de lutas em que os limites entre política e criminalidade, movimentos sociais e hordas de bandidos eram frequentemente instáveis ou inexistentes. Com efeito, o que teve início nesse momento foi o acerto de contas entre as diversas e entre si estranhas forças que haviam até então combatido o inimigo comum: os exércitos constitucionalistas de Carranza e as tropas de Zapata e Villa, que acabaram sendo derrotados.

Emiliano Zapata e Pancho Villa.

Revolução política, portanto, mas também uma gigantesca explosão social, encarnada pela sua poderosa corrente campesina que teve em Emiliano Zapata seu líder inconteste. Um homem do sul mestiço e

indígena, por índole e formação antípoda dos ricos e cultos constitucionalistas do norte, seu objetivo era recuperar para as comunidades campesinas as terras que o avanço do latifúndio lhes havia tomado na época do porfiriato. Fruto de tantas e tão heterogêneas instâncias, a revolução não podia senão terminar com um compromisso entre os vencedores e as reivindicações daqueles que, mesmo derrotados, haviam imprimido uma marca radical de sublevação social. Seu desfecho foi a Constituição de Querétaro, de 1917, que, por um lado, acolheu os princípios liberais defendidos pelos exércitos vencedores, como as liberdades individuais e a laicidade do Estado, imposta com medidas muito duras contra a Igreja e o seu papel social; mas, por outro, introduziu princípios sociais e nacionalistas à época absolutamente inéditos na região, como a definição da nação como proprietária dos bens do subsolo e o lançamento das bases de uma reforma agrária.

Tropas villistas e zapatistas.

4. O novo clima ideológico Como sempre acontece, o novo clima político foi anunciado primeiro e depois acompanhado pelo surgimento de novas ideias, tanto nos campos político, social e econômico, quanto, antes desses ainda, nos campos filosófico, artístico e literário. O positivismo logo começou a sofrer as primeiras investidas, sobretudo a partir de 1900, com a publicação do ensaio Ariel, de José Enrique Rodó, uma espécie de manifesto do nacionalismo e da reação antimaterialista,

depois continuada pelo Modernismo, cujo representante de maior destaque foi o poeta nicaraguense Rubén Darío. A onda de ideias, esparsas ou estruturadas em ideologias, que acabou transpondo a barreira positivista, abrangia uma ampla variedade de expressões, normalmente distintas e até contraditórias entre si. O que importa aqui é captar alguns elementos essenciais e observar como, em meio a tantas divergências, as novas ideias tenderam a confluir para um paradigma nacionalista genérico. Em suma, se durante o período liberal a tendência predominante fora a de procurar modelos políticos e culturais fora das fronteiras, onde a civilização moderna era mais florescente, agora prevaleceu a de buscar internamente uma nacionalidade e suas origens, para cuja reconstrução ou invenção foram dedicados diligentes esforços. Impunha-se essa busca interna porque, como se viu, os velhos modelos haviam se desestruturado, e também pelo fato de que, consolidados os Estados, a questão agora era forjar cidadãos; em síntese, construir a nação, instilando na população um senso de pertencimento e destino compartilhados. Se então as elites positivistas, ao incentivar a imigração, haviam pretendido atenuar o componente étnico indígena e afro-americano acrescendo o elemento branco europeu, convictos de que a heterogeneidade era um obstáculo para o desenvolvimento da civilização, no novo clima amadureceram algumas correntes indigenistas, além da reivindicação de uma América mestiça, a qual oferecia como peculiar contribuição para a civilização a sua raza cósmica, o homem novo criado por sua excepcional história, como sustentava o mexicano José Vasconcelos. O dogma cientificista foi então substituído por uma reação espiritualista. Uma reação que amadureceu desde os anos 1920 e que depois desaguou num verdadeiro revival católico cujos protagonistas foram às vezes positivistas convertidos. Um renascimento que alimentou grupos, partidos, movimentos e ideias políticas que associaram a catolicidade e a nação na típica mescla nacional-católica de muitos países hispânicos. A otimista fé no progresso foi por isso aos poucos substituída por uma obsessiva busca de identidade, quase sempre voltada à identificação das raízes de uma identidade nacional frequentemente mítica. Tanto que desde então muito se falou de brasilidade, cubanidade, peruanidade, e assim por diante, para representar a identidade eterna e incorruptível da nação. Em vez das virtudes e das liberdades do indivíduo começaram então a ser valorizados a essência e os valores da comunidade, entendida ora como comunidade orgânica formada de corporações e alicerçada sobre a unidade religiosa no caso dos católicos, ora como unidade de classe no caso dos marxistas. Entre estes, aliás, começaram a surgir algumas correntes que se empenharam em nacionalizar essa ideologia, em si mesma de caráter

internacionalista. Como no caso do peruano José Carlos Mariátegui e do seu esforço de reconduzi-la a uma espécie de comunismo incaico primigênio, isto é, anterior à conquista espanhola, verdadeiro ou imaginário que fosse. O cosmopolitismo tão apreciado e teorizado no passado começou desde então a ser objeto de radicais diatribes, ou seja, passou a ser entendido como um hábito de oligarcas que se limitavam a imitar as elites estrangeiras; e, principalmente, como um costume estranho ao povo, cujo ingresso na história aqueles tempos tanto assinalaram. Esse povo se tornou objeto de entusiasmados estudos etnográficos e antropológicos, de pesquisas interessadas em reconstruir os costumes alimentares, musicais, religiosos e outros, em busca do seu sentido e da sua identidade, e com isso, os da nação.

Editorial da revista Amauta, Lima, 1927.

No plano ideológico, essas foram as premissas da maré nacionalista que começou a propagar-se no continente, embora não de modo unívoco, dado que

os nacionalismos foram muitos e de diferentes matizes. Mas tampouco foi uma maré limitada aos aspectos analisados até aqui, uma vez que se manifestou também nos planos político e econômico. O certo é que o clima estava mudando.

O krausismo Hoje praticamente esquecido, e na realidade bem pouco conhecido fora do mundo hispânico e alemão, o krausismo exerceu grande influência na América Latina da época. A doutrina procede do filósofo alemão Karl Krause e consiste numa espécie de liberalismo espiritualista que chegou à América através da Espanha, onde teve inúmeros e respeitados seguidores e divulgadores. O krausismo influenciou de modo significativo a reflexão política de homens como José Martí e José Batlle y Ordoñez e a trajetória de muitos partidos radicais que chegaram à maturidade nos anos 1920. Provavelmente, o que a tornava tão atraente no clima cultural da América Latina e também suscetível de desenvolvimentos diversos a partir das premissas liberais onde encontrava suas origens, era o seu esforço para conciliar liberalismo e organicismo.

5. Os múltiplos rumos da crise liberal A crise dos regimes oligárquicos seguiu rumos múltiplos em cada caso, de modo que efetuar um exame minucioso de cada um equivaleria a acompanhar um a um numa coletânea de nomes, datas e circunstâncias. A mesma apreciação se aplica aos seus resultados, longe de ser uniformes. Por isso, é recomendável tentar reagrupá-los por tipologias, mas sem querer ser exaustivos. O caso mais notório, violento e de impacto continental foi o do México, já visto, onde o porfiriato, depois de muitos anos, acabou se tornando uma perigosa tampa cobrindo uma panela em ebulição: a panela da sociedade mexicana, em que as inúmeras vozes durante muito tempo reprimidas explodiram em uníssono e lançaram as bases da transição, longa e violenta, para uma nova ordem, não só política, mas também econômica e social. No extremo oposto, pelo menos considerando os países maiores, situava-se à época a Argentina, onde a introdução da lei Sáenz Peña em 1912 abriu as portas para aquela que parecia poder operar a virtuosa metamorfose do regime oligárquico em regime democrático com a eleição, em sufrágio universal masculino, do líder radical Hipólito Yrigoyen em 1916. A essa eleição seguiu a de 1922, com a regular alternância constitucional, confirmada seis anos depois, quando Yrigoyen foi eleito novamente; até que o golpe de Estado de 1930 pôs fim àquela incipiente experiência democrática, vítima de diversas causas. Por

um lado, a mais evidente foi a reação conservadora à democracia política por parte de muitos setores: das elites econômicas às altas hierarquias eclesiásticas e militares. Essa reação foi contra o conflito social crescente e a difusão de ideologias revolucionárias, sendo a democracia acusada de não saber enfrentar essas realidades ou até mesmo de preparar-lhes o caminho. Nesse contexto, surgiram grupos nacionalistas antidemocráticos, difundiram-se correntes ideológicas autoritárias e se formaram movimentos contrarrevolucionários. Por outro lado, a jovem e imperfeita democracia argentina sucumbiu devido também à tendência do partido majoritário – o partido radical – ou pelo menos de parte dele, a transformar-se em movimento nacional, ou seja, a monopolizar o poder apropriando-se da própria identidade da nação, desvirtuando assim o espírito pluralista da democracia moderna. Sobre essa situação toda caíram como raios os tremendos efeitos da crise de Wall Street, com o que o país que se erigia em baluarte da civilização europeia nas Américas entrou no túnel de uma crise não muito diferente daquela de muitos vizinhos latino-americanos.

Hipólito Yrigoyen, em Rosário, durante a campanha eleitoral de 1926.

As massas, ou os fantasmas que elas evocavam, não foram decisivas em toda parte para produzir a crise dos regimes oligárquicos. A começar pelo Brasil, onde se deve lembrar que, além dos efeitos já comprovados do crack econômico

de 1929, dois outros fatores aceleraram a queda. O primeiro foi a entrada em cena de um novo Estado, o Rio Grande do Sul, cuja ascensão embaraçou a habitual alternância do poder entre as elites de São Paulo e Minas Gerais. Desse novo Estado provinha Getúlio Vargas, o homem que, derrotado nas eleições de 1930, denunciou a irregularidade e depois foi levado ao poder pelos militares, ali permanecendo por muito tempo, como se verá. O segundo fator, ainda mais importante, foram os militares, especialmente os tenentes, os jovens oficiais de grau intermediário que já nos anos 1920 protagonizaram várias revoltas. Foram estes, com efeito, que encarnaram mais do que outros o novo clima nacionalista, impondo a criação de um Estado centralizado e determinado a organizar sob a sua tutela a população onde as elites haviam criado um Estado disperso em várias autonomias e sem sustentação popular. Esse foi o sentido do golpe de Estado de 1930. A instabilidade política voltou assim a abalar os fundamentos do continente. Do Peru, onde em 1930 caiu a longa ditadura de Augusto Leguía, ao Chile, onde em meio a um período de convulsões e conflitos impôs-se a breve ditadura do general Ibañez; de El Salvador, onde um golpe em 1931 assegurou o domínio das oligarquias do café desafiado pelos primeiros movimentos campesinos, à Venezuela, onde desde fins dos anos 1920 começaram a manifestar-se os primeiros sinais de impaciência com a longa autocracia de Juan Vicente Gómez. E muitos outros casos, todos peculiares e em geral protagonizados por militares. Estes eliminavam ou tomavam sob sua tutela as instituições liberais surgidas durante os regimes oligárquicos e, pelo que tudo indica, muito frágeis para suportar o impacto da modernidade, de modo especial nas sociedades onde a fragmentação social fazia com que essas instituições, para grande parte da população, parecessem expressão de um mundo estranho: o mundo das elites brancas e da sua cultura. No entanto, é preciso dizer que as intervenções militares não foram de sentido único, isto é, sempre a favor de uma classe social específica, como se verá no próximo capítulo.

6. O período do “big stick” e a ascensão do nacionalismo Chegaram a trinta as intervenções militares dos Estados Unidos na área centro-americana e caribenha nos primeiros trinta anos do século XX; às vezes breves, mas outras vezes com duração de décadas, como na Nicarágua ou no Haiti, por exemplo. Em alguns casos, o objetivo foi simplesmente pôr fim às guerras civis locais, impondo um homem ou um partido fiéis a Washington, ou proteger os cidadãos e as propriedades estadunidenses ameaçadas pela desordem local; de modo especial as das grandes multinacionais que à época ampliaram imensamente os seus interesses, seja na extração minerária e nos primeiros passos da indústria petrolífera, seja no campo da produção de bens típicos da

agricultura subtropical, em que se destacou o potente papel da United Fruit Company. Em outros casos, especialmente sob Woodrow Wilson, as intervenções militares estadunidenses tiveram ambições políticas e ideais maiores e expressaram uma clara intenção paternalista e pedagógica. Isto é, procuraram lançar as bases institucionais de Estados e administrações econômicas mais sólidas e racionais. Em todos os casos, porém, a política estadunidense na região foi reflexo da doutrina do destino manifesto e comportou não só a intervenção militar, mas também a profunda expansão comercial, o propósito de abalar os interesses europeus na região e o esforço de difundir os valores da civilização americana, embora em geral sem sucesso.

Armazém de mantimentos da United Fruit Company.

O intervencionismo e o senso de superioridade que com frequência o acompanhava contribuíram desde então para alimentar a planta do nacionalismo que já começava a crescer exuberante nos ainda jovens Estados da América Latina. O nacionalismo latino-americano encontrou não só nos Estados Unidos e na sua ingerência política, mas ainda mais nas próprias bases da civilização que estes desejavam exportar, o inimigo em contraposição ao qual construir a própria missão e a própria identidade. Típico nesse sentido, seja em si, seja pela aura mítica que logo o envolveu, foi o caso do pequeno exército nicaraguense que Augusto Sandino comandou contra os marines. Sandino, uma espécie de Davi nacionalista em luta contra o Golias imperialista, foi assassinado em 1934

pela Guarda Nacional criada pelos Estados Unidos durante a ocupação. De Golias, o nacionalismo latino-americano passou a rejeitar não só o expansionismo, mas também o liberalismo, o capitalismo e a democracia representativa, somados a muitos outros traços da civilização protestante, individualista e materialista, típica dos países anglo-saxões, contraposta à católica, baseada no comunitarismo e na democracia orgânica da América Latina.

A guerra do Chaco As acomodações de Estados-Nações em fronteiras muitas vezes incertas, que já na segunda metade do século XIX haviam sido causa de algumas guerras entre vizinhos, e a fragilidade de alguns governos dispostos a usar a arma nacionalista para suprir suas carências de legitimidade tiveram um papel fundamental nas crescentes tensões que se intensificaram a partir dos anos 1920 nas relações entre a Bolívia e o Paraguai, os dois únicos países sem saída para o mar e também os derrotados nos conflitos do século anterior. Embora seja comum dizer-se que a guerra teve origem na competição entre duas grandes empresas petrolíferas estrangeiras por um território contestado na fronteira entre os dois países, sua verdadeira causa foram outros motivos, especialmente a frustração boliviana pelo fracasso das negociações em torno de uma saída para o Pacífico, o que levou o governo a tentar abrir uma brecha para o Atlântico através do sistema fluvial do fraco Paraguai. Outro fator, de modo geral, foi o clima nacionalista que na época se adensava como nunca. A guerra terminou em 1935, com a assinatura do armistício em Buenos Aires, ato que granjeou ao ministro de Relações Exteriores argentino o prêmio Nobel da Paz, ao Paraguai o reconhecimento da soberania sobre o território contestado e à Bolívia uma nova humilhação, causa de iminentes crises. No terreno, no entanto, ficaram os cadáveres de cerca de 100 mil vítimas. Bibliografia Albert, Bill, South America and the First World War: the impact of the war on Brazil, Argentina, Peru, and Chile, Cambridge-New York: Cambridge University Press, 1988. Caetano, Gerardo (coordinador), Los uruguayos del centenario: nación, ciudadanía, religión y educación, 1910-1930, Montevideo: Taurus, 2000. Gobat, Michel, Confronting the American dream: Nicaragua under U.S. imperial rule, Durham: Duke University Press, 2005. Horowitz, Joel, Argentina’s Radical Party and popular mobilization, 1916-1930, University Park: Pennsylvania State University Press, 2008. Knight, Alan, The Mexican Revolution, Cambridge-New York: Cambridge University Press, 1986.

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6. Corporativismo e sociedade de massa 1. O esgotamento do modelo primário-exportador A quebra da bolsa de Wall Street em outubro de 1929 mostrou ao mundo até que ponto ele já era interdependente. Além disso, apresentou-lhe uma conta bem salgada. Por via de consequência, a conta chegou também para a América Latina, como uma onda avassaladora. Para compreender seus efeitos, é conveniente distinguir os visíveis e imediatos daqueles de mais longo alcance, aqueles que mais tarde incidiriam sobre a própria estrutura do modelo de desenvolvimento da região. No que se refere aos efeitos imediatos, eles foram onerosos e tanto mais graves quanto maior era a exposição ao mercado internacional. Como se manifestaram? Em geral através das reiteradas quedas do preço das matériasprimas exportadas, quedas que, com a contração dos mercados atingidos pela recessão e a redução do fluxo de capitais externos para a região, causaram em toda a América Latina uma drástica diminuição das receitas e do valor das exportações, que chegou em média a 36% em apenas três anos, mas em nove países ultrapassou os 50%. Com diferenças também marcantes de país para país, dado que nem todas as matérias-primas foram igualmente atingidas pela tendência negativa. Tudo isso produziu efeitos em cadeia fáceis de imaginar, seja no plano econômico, seja no social e político. De um lado, a queda das receitas até então garantidas pelas exportações afetou a economia local, com suas consequências em termos de aumento de desemprego, de agitações sociais e de instabilidade política. De outro, as contas públicas ficaram de um dia para outro reduzidas na rubrica que constituía a maior parte das entradas: a arrecadação de impostos sobre o comércio internacional. Com isso os governos foram obrigados a cortar despesas, a reduzir os investimentos públicos, a tentar não soçobrar em meio à tormenta; o mais das vezes, porém, sem o conseguir, visto que a saída política dessa dramática passagem foi em muitos casos a queda manu militari dos governos constitucionais. Dito isso, deve-se esclarecer que tais efeitos foram de duração relativamente curta e que no conjunto as economias da região se reergueram com bastante rapidez a partir da metade dos anos 1930.

Outro, porém, é o discurso sobre o segundo ponto, o que se refere ao modelo de desenvolvimento. A crise de 1929 atingiu com golpe fatal o modelo primário-exportador e criou as condições para abandoná-lo. Seja porque as mudanças ocorridas na economia internacional contribuíram para o seu sepultamento, dado que as grandes potências criaram mercados protegidos por barreiras alfandegárias. Ou porque muitos governos da região, com ritmos e tempos diversos, reagiram àquele dramático teste de vulnerabilidade orientando-se para o nacionalismo econômico e deixando para trás o liberalismo dos tempos passados, agora apontado como símbolo do domínio dos interesses oligárquicos. Por isso, também esses recorreram com frequência a medidas protecionistas. Na América Latina, aumentou a intervenção do Estado na economia, do mesmo modo que, na formação da riqueza, o peso do comércio começou a diminuir e o da indústria a aumentar; aos poucos no início, mais rapidamente durante a II Guerra Mundial, quando o novo colapso do comércio interoceânico impulsionou a produção local, pelo menos nos países mais avançados, onde maiores eram o mercado interno e a disponibilidade de capitais. Sem esquecer, porém, que essa incipiente industrialização em geral operava como substituição de importações. Isto é, orientava-se para a fabricação local de bens de grande consumo cuja produção não exigia tecnologias modernas e capitais elevados: alimentos, vestuário, calçados e assim por diante. Além disso, era bastante limitada, pois em quase toda parte contribuía com menos de 20% para a formação do produto interno bruto; e também não suprimia o peso estratégico das matérias-primas, de cuja exportação a economia local ainda dependia em grande percentual.

2. Em direção à sociedade de massa A Grande Depressão e a guerra mundial mudaram não só o perfil econômico da América Latina, mas também o social, às vezes com guinadas bruscas. É o caso da imigração, que depois de perturbar por décadas o panorama demográfico de boa parte do continente, encalhou nos bancos de areia da crise. De um modo ou de outro, os principais países de destino de imigrantes passaram a adotar restrições severas, de modo que nos anos 1930 o seu fluxo praticamente se exauriu. Esse fato, no entanto, não impediu que após a eclosão da guerra civil espanhola, um grande número de refugiados republicanos, em geral artistas e intelectuais, buscasse abrigo na América Latina, em especial no México. Tampouco foi obstáculo para que a população continuasse a crescer em ritmos sustentáveis, quase 2% nos anos 1930 e de forma ainda mais rápida na década seguinte. Graças principalmente à elevada taxa de natalidade, mas também à significativa redução da taxa de mortalidade registrada em muitos países. De modo particular naqueles do Cone Sul e no México, onde os poderes públicos

efetuaram intervenções importantes para melhorar as condições sanitárias nas cidades e debelar algumas doenças endêmicas, como a cólera, que de fato deixaram de ser epidemias recorrentes. Caso se possa falar de imigração, então, a que normalmente ocorria era a interna, isto é, a das massas de população rural que, forçadas pelo crescimento demográfico e pela concentração da terra, abandonaram as áreas rurais e se estabeleceram nas cidades. Nestas, aliás, era bastante difícil encontrar alternativas, dadas as dimensões ainda limitadas da indústria nascente. Os principais centros urbanos, que em geral se expandiram em poucos anos, não tinham condições de enfrentar a novidade nem de prover os serviços necessários, e assim ao seu redor cresceram aglomerações cada vez maiores e mais numerosas de barracos e casebres feitos de chapas e de papelão, e às quais cada país deu o nome que lhe parecia mais adequado: ranchos, favelas, villas miserias e assim por diante.

Em 13 de junho de 1939 chega ao porto de Veracruz, no México, a bordo do vapor Sinaia, o primeiro contingente de exiliados espanhóis.

Este último fenômeno, parte de uma urbanização mais geral e com frequência caótica, se harmonizava à perfeição com as transformações em curso havia tempo como consequência da modernização econômica iniciada sob os regimes oligárquicos. O que mudou foi o seu ritmo, mais do que a sua substância; e os tempos, de um país para outro, consideradas as nítidas diferenças entre Argentina, Chile e Uruguai, de um lado, onde a população urbana já superava os 30%, e países como México, Peru, Brasil e Colômbia, de outro, nos quais ainda

não chegava a 15% e onde a grande urbanização só aconteceria mais tarde. Esses dados, por sua vez, encontravam correspondência em outros indicadores sociais, a começar pela taxa de alfabetização, mais elevada entre a população urbana e, portanto, nos primeiros países citados, do que entre a rural, mais presente nos últimos, onde o analfabetismo ainda predominava. Na maioria dos casos, portanto, o grosso da população continuava vivendo no campo, do qual dependia em grande medida a atividade produtiva. Não obstante, precisamente o ambiente rural foi o que menos se interessou pela modernização, embora a revolução mexicana e a reforma agrária por ela defendida tivessem como foco da atenção o problema da terra e da sua péssima distribuição. O fato é que, se por um lado a economia de exportação havia favorecido grandes concentrações de terras, em geral exploradas por monoculturas para o mercado mundial, por outro boa parte do ambiente agrícola se caracterizava por um perfil bem mais arcaico. Tratava-se de um perfil em que o autoconsumo predominava e a miséria se alastrava, em que o mercado interno permanecia raquítico, onde a maioria da população não possuía terra ou esta era insuficiente, enfim, onde os contratos de arrendamento eram quase sempre formas legalizadas de escravidão. Considerando as características assumidas pela urbanização e as tensões que permeavam o mundo agrícola, não surpreende que tanto no campo quanto na cidade se criassem então as condições para a explosão de revoltas e conflitos, espontâneos ou organizados. Também não admira que esses conflitos dessem maior substância aos sinais já emitidos pelas greves de 1919, confirmando que o moderno conflito de classes estava desembarcando na América Latina, cujas sociedades estavam assumindo os contornos típicos das sociedades de massa. Nas sociedades de massa, as hierarquias sociais tradicionais e o respeito que as acompanhava estavam a ponto de explodir. Dos movimentos campesinos promovidos pela APRA no Peru àqueles mergulhados no sangue em El Salvador; daqueles no México ao grito de “Viva Cristo Rei” às primeiras ligas camponesas no Brasil, cada vez mais o campo foi terreno de conflitos sociais. Se isso acontecia nas zonas rurais, onde o atraso imperava, com maior razão ocorreria nas cidades. De fato, nos centros urbanos aumentou o número de filiados aos sindicatos de operários e de empregados, e os sindicatos intensificaram as mobilizações para conseguir uma jornada de trabalho de oito horas e a implantação de um sistema previdenciário em caso de acidentes ou doenças. Normalmente, porém, enfrentando uma classe patronal pouco propensa à negociação, e vice-versa, e tentada a atribuir a responsabilidade dos conflitos à perniciosa influência de agentes externos. Com isso, como se viu, culminou a abdicação do liberalismo cultivado anteriormente pelas velhas classes dirigentes, agora prontas a abraçar a segurança do nacionalismo.

Seja como for, desde então começaram a prefigurar-se as correntes sindicais que também no futuro continuariam a disputar o espaço, em frentes opostas ou no seio de uma mesma confederação. A começar pelos sindicatos de classe, onde socialistas e comunistas repeliram o decadente anarquismo e em 1938 constituíram a Confederação de Trabalhadores da América Latina, um organismo colateral antifascista, escolhendo como presidente a figura carismática do mexicano Vicente Lombardo Toledano. Continuando com os sindicatos católicos, na realidade nem sempre em condições de penetrar a fundo no mundo operário, mas muito influentes pela capacidade de atrair consensos em torno da sua invocação da doutrina social dos pontífices, ou seja, de uma terceira via entre comunismo e capitalismo. E terminando com precoces esforços realizados desde então pelos sindicatos estadunidenses para difundir a mensagem do pan-americanismo, ou seja, da unidade continental, entre os trabalhadores da América Latina, em contraposição às ideologias classistas.

Vicente Lombardo Toledano, secretário geral da Confederação de Trabalhadores Mexicanos, fundador e presidente da Confederação de Trabalhadores da América Latina, ilustrado em gravura de Alberto Beltrán.

3. A noite da democracia Como na Europa, onde nos anos 1930 e mais tarde, durante a guerra, a democracia representativa capitulou na maioria dos países, assim aconteceu também na América Latina, onde ela apenas dava os primeiros passos; ou onde

nem mesmo tivera tempo para fazê-lo. Ainda à semelhança da Europa, ela não só capitulou, mas deu mais do que nunca a impressão de ser um ideal sem encanto nem credibilidade, obsoleto e anacrônico, inadequado para representar a nova realidade social. No clima da época, em suma, marcado pelo acesso das massas à vida política e pela difusão do moderno conflito social, prevaleceram ideologias e modelos políticos avessos ou indiferentes à democracia liberal e às instituições do Estado de direito. Estas lhes pareciam meras ficções inventadas pela burguesia para enganar o povo, como no caso das correntes revolucionárias inspiradas pela revolução bolchevique e pelo regime soviético; ou então divisões artificiosas no organismo coeso da nação, introduzidas por uma classe dirigente debilitada e submissa a outras ideologias, como no caso dos nacionalismos atraídos pelos fascismos europeus. O fato é que o encontro das massas com a democracia política, na maior parte dos casos, começou a descambar a partir dos anos 1930, aumentando daí em diante. Se, por um lado, os impulsos para a democratização continuaram e até se intensificaram, por outro encontraram cada vez menos respaldo nas instituições representativas, às quais raramente recorreram. Além disso, se já se revelara árdua a integração política das novas classes médias, quase sempre brancas e alfabetizadas, além de socialmente moderadas, é fácil imaginar a enorme pressão exercida sobre aquelas frágeis instituições quando os protestos começaram a irromper dos setores populares, em geral constituídos de indígenas ou negros, via de regra analfabetos e às vezes influenciados por ideologias radicais ou revolucionárias. Diversos e profundos fatores históricos pesaram então sobre o destino da democracia no exato momento em que o seu tempo parecia ter chegado. Em primeiro lugar, as abissais desigualdades sociais, resultado não só da renda, mas também da etnia e da história. Desigualdades que tornavam as elites ainda mais indispostas ou temerosas do que já eram de abrir as portas da representação política. Em segundo lugar, porém, as mesmas desigualdades eram de natureza tal, que tornavam a democracia liberal estranha e hostil aos olhos dos setores étnicos e sociais que pressionavam pela inclusão. Por isso, estes se mostraram propensos a sustentar uma ideia diferente e mais arcaica de democracia: a democracia orgânica invocada pelos líderes populistas, intolerante com as mediações e as instituições da democracia representativa e voltada a unir “o povo” contra os seus “inimigos”, internos e externos. Em terceiro lugar, e em síntese, nem mesmo a tradição jogou a favor da democracia política, uma vez que, embora por diferentes motivos, o seu espírito não conseguira lançar raízes profundas nos diversos estratos sociais, para os quais os modernos conflitos pareciam outras tantas patologias de um organismo social que, por história e cultura, tendiam a conceber fisiologicamente unido. A inexistência em todos os

níveis de uma cultura do conflito, da consciência de que o conflito é inerente às sociedades modernas e de que para governá-lo são necessárias instituições fortes e democráticas, possivelmente pesou mais do que qualquer outro fator sobre o resultado das muitas crises políticas da época. De fato, contam-se nos dedos de uma única mão os casos em que as instituições da democracia liberal resistiram à pressão e sobreviveram a essa delicada passagem. E mesmo esses tiveram de enfrentar grandes dificuldades, como comprovam o Chile, o Uruguai e a Costa Rica. Nos demais, o movimento democrático foi detido por bruscas reações autoritárias, como no Peru, na Bolívia e na Nicarágua, entre outros, ao preço de torná-lo mais difícil e traumático no futuro; ou então foi absorvido no bojo dos regimes populistas, como no México, no Brasil e na Argentina, os quais responderam à crescente demanda de democracia recorrendo à parafernália nacionalista. O nacionalismo rejeitava o liberalismo, caro às velhas classes dirigentes, e se empenhava em adaptar o antigo ideal orgânico e corporativo às sociedades modernas. Sobre essa base ditos regimes organizaram as massas e as incluíram nas novas ordens sociais, embora ao preço de uma orientação política intolerante ao pluralismo.

4. Os militares: como e por quê Na maioria dos países, a crise dos regimes liberais trouxe as Forças Armadas para o cenário político, seja através de golpes de Estado, como na Argentina, Brasil e Peru, seja pelas funções políticas que assumiram, como na Venezuela, ao término da longa ditadura de Juan Vicente Gómez. Quem eram os militares que com tanta frequência se apoderaram do poder? E por que eles, exatamente? Não é fácil encontrar respostas unívocas para essas perguntas, válidas tanto para a pequena e atrasada República de El Salvador quanto para a grande e desenvolvida Argentina. Alguns elementos gerais devem ser levados em consideração. Em primeiro lugar, é preciso dizer que também no passado muitos militares haviam chegado ao poder. Se então, porém, haviam em geral governado como civis, agora reivindicavam abertamente o status militar e o reconhecimento de que pertenciam às Forças Armadas. Longe de ser simples caudilhos uniformizados como ocorrera antes, agora eram membros de instituições profissionais organizadas e relativamente disciplinadas. Não só, mas em muitos casos, integrantes das instituições mais modernas e eficientes do Estado, como no caso das Guardas Nacionais organizadas pelas Forças Armadas dos Estados Unidos na região centro-americana ou, com maior razão, como os exércitos profissionais formados pelas missões militares europeias na América do Sul. Situações específicas mais tardias como as mencionadas a seguir dependeram mais das diversas condições estruturais de cada país do que da natureza em si

dos militares que assumiram o poder: na América Central e no Caribe, o surgimento de regimes personalistas, semelhantes a sultanatos hereditários, como aconteceu com os Somoza na Nicarágua e os Trujillo na República Dominicana; na América do Sul, a consolidação de regimes autoritários propensos à modernização, como no Brasil, com o Estado Novo, e na Argentina, com o golpe de 1943.

Juan Vicente Gómez, ditador venezuelano, em seus últimos anos. Rostros y personajes de Venezuela, El Nacional, 2002.

Anastasio Somoza García, 1948.

Por que precisamente os militares? Também neste caso a resposta é heterogênea. Pode-se observar que nos países que se debatiam em conflitos profundos, as Forças Armadas submeteram a fragilidade das instituições representativas com a força das armas. Acrescente-se que onde as divisões sociais e étnicas eram demasiado profundas para ser resolvidas no quadro da democracia liberal, as instituições militares, que em muitos países impunham o alistamento obrigatório para jovens de todas as classes e províncias, instituíamse em órgãos “democráticos”. Por fim, pode-se dizer que enquanto os governos constitucionais tentavam ampliar as bases do seu consenso incluindo novas classes e os sistemas políticos estavam quase sempre sujeitos a violentas convulsões, as Forças Armadas pareciam sobrepor-se aos conflitos: sólidas em seu espírito de corpo e muitas vezes dotadas de competências técnicas em vários campos, elas começaram a sentir-se no dever e no direito de tomar as rédeas do governo e de liderar a modernização nacional, assumindo o lugar das elites políticas, as quais já tendiam a considerar como pouco confiáveis e incapazes. Todos esses fatores têm fundamento e ajudam a compreender as razões do período militar que então começou em grande parte da região. Ao mesmo tempo, remetem a mais uma consideração, na qual talvez se encontre o motivo mais medular daquele militarismo endêmico. A julgar pelas diversas intervenções políticas das Forças Armadas, não só nos vários países, mas também através de repetidos golpes num mesmo país, parece evidente que suas ações não se devem a meros fatores contingenciais. Ou seja, não se pode dizer que sempre apoiaram as elites, nem que, por pertencerem os oficiais em grande parte às classes médias, favoreceram a ascensão dessas elites. Do mesmo modo, não foram sempre e apenas contra “o povo”. Na realidade, o que se manifestou

então e se confirmou na continuidade foi que os militares, nessas sociedades de fraturas profundas, tendiam a reivindicar para si uma função tutelar sobre elas e sobre a nação inteira, ou seja, suas intervenções tendiam a impor ou a restaurar a unidade onde as instituições democráticas e os pactos constitucionais fracassavam: a unidade política, entendida como harmonia entre setores ou classes; e a unidade espiritual, entendida como adesão à identidade eterna da nação, da qual as Forças Armadas se proclamavam depositárias, a ponto de se tornarem os focos mais intensos de nacionalismo. Enquanto dedicados à missão de velar sobre a unidade da nação, cuja divisão imputavam ao liberalismo, os militares foram o veículo mais poderoso da reação organicista, expressa na que então se denominava “democracia funcional”. Nela a representação não se exprimia através dos partidos e das mediações políticas, mas diretamente através dos corpos sociais: os sindicatos, as associações profissionais, as universidades, a Igreja, e assim por diante. Um clássico, como seu viu, do nacionalismo latino-americano, o qual, procurando as raízes da identidade local em resposta ao cosmopolitismo do passado, as encontrou no antigo e ainda bem arraigado imaginário organicista. Não surpreende, então, que as Forças Armadas, instituição orgânica por excelência, assim agissem. Como também não admira que, entendendo sua missão desse modo, suas intervenções fossem ora “conservadoras”, ora “reformistas”, ou seja, responsáveis tanto por conservar a ordem e a unidade contra ameaças iminentes, quanto por promover o desenvolvimento e a integração das massas para reconduzir o organismo social à harmonia.

O renascimento católico A reação antiliberal torna-se incompreensível em sua essência quando é separada do ressurgimento católico que começou a difundir-se pela América Latina a partir dos anos 1930. Embora, por certo, não em toda parte com a mesma intensidade e velocidade, até porque nem a Igreja era uniformemente forte nem o catolicismo estava enraizado com a mesma firmeza em toda parte. Além disso, também a sua condição jurídica e a sua força política eram desiguais, dependendo das circunstâncias. Havia uma grande diferença, por exemplo, entre o México, onde a Igreja havia capitulado depois de longos e violentos confrontos com os liberais, antes de ser reduzida à marginalidade pela revolução, e o Chile, onde a separação entre Igreja e Estado ocorrera de modo incruento; entre o Uruguai laico e a Colômbia clerical; entre o tranquilo e tradicionalista catolicismo peruano e o agitado e radical da Argentina. Essas diferenças, no entanto, não impediram que os ventos do renascimento católico contribuíssem para o

declínio do período liberal em toda parte, não só onde os velhos embates com os liberais não a haviam sujeitado, mas apenas relegado a um segundo plano, como no Brasil, na Argentina, no Peru e no Equador; mas também em países em que fora mais atacada, como no México, onde acabou encontrando um modus vivendi satisfatório com o regime revolucionário. Aqui, até mesmo um intelectual de ponta da revolução como José Vasconcelos se converteu ao catolicismo e se tornou seu prestigioso portavoz. Ou como na Colômbia, onde o domínio liberal dos anos 1930 não impediu, mas até alimentou a impetuosa reação católica da década seguinte. Por outro lado, quem encarnava o ideal de sociedade orgânica mais do que a Igreja católica? Quem mais do que ela podia erigir-se de modo confiável em emblema de unidade política e espiritual, em guardiã da identidade da nação? Para compreender esse renascimento em todas as suas dimensões, porém, é preciso considerar tanto os elementos institucionais quanto os doutrinários, melhor dizendo, ideológicos e culturais. No plano institucional, a Igreja latino-americana alcançou na época uma incipiente maturidade, graças de modo especial aos esforços da Santa Sé para centralizar o seu governo, vigiar a disciplina e ditar a doutrina. Além disso, também ela seguiu os passos da modernização geral do continente, daí resultando o aumento do número de dioceses, a multiplicação dos seminários e a retomada das escolas católicas. As obras sociais católicas proliferam e disseminam-se os jornais, os periódicos e as rádios ligadas à Igreja. Toda essa efervescência de atividades moldou um mundo católico verdadeiro, uma direção única e hierárquica – a eclesiástica – encarnada na Ação Católica, uma organização de massa que desabrochou em quase toda parte nos anos 1930 e que depois se desenvolveu com maior ou menor vigor de acordo com as situações, até se tornar uma força impulsora da Igreja e das suas ideias. Uma força ativa na sociedade e na educação, no debate público e nas grandes discussões ideológicas, mas alheia ou hostil à política partidária e mais propensa a simpatizar com os ideais corporativos dos movimentos nacionalistas, com os quais em muitos casos manteve vínculos estreitos, da Argentina ao Chile, do Brasil ao México. No entanto, se a Igreja e a corrente ideal que ela encarnou exerceram tanta pressão sobre a crise dos regimes oligárquicos e do liberalismo, o fato não se deveu apenas à maturidade institucional então alcançada. Muito mais importante foi o mundo ideal que ela evocou, em torno do qual tenderam a juntar-se de modo crescente forças sociais e intelectuais decepcionadas com o desembarque da modernização liberal ou então hostis a ela desde sempre. Desconsiderada por decênios pela ofensiva liberal e

depois revalorizada na sua função de argamassa social pelos regimes oligárquicos, a Igreja começou a alimentar sonhos de desforra, isto é, de aproveitar o declínio da fé liberal no progresso para voltar a ocupar o centro da sociedade, do qual fora alijada. Não por acaso, prevaleceu nessa época entre os católicos e o clero um clima revanchista vibrante, quando também germinou a ilusão de restaurar uma ordem política e social integralmente católica, isto é, totalmente conforme com os ditames do Magistério. Uma ilusão alimentada de modo particular pelo florescimento de novos e dinâmicos cenáculos intelectuais católicos, através dos quais aquela que por décadas parecera a quintessência do obscurantismo, a Igreja católica, ergueu a cabeça oferecendo as suas antigas receitas para os dilemas da modernidade: receitas políticas, invocando uma ordem corporativa; e receitas sociais, apelando à colaboração entre as classes sociais em sintonia com as encíclicas sociais dos pontífices, de modo especial a Rerum Novarum de Leão XIII e a Quadragesimo Anno de Pio XI. Dessa forma, não menos que as Forças Armadas, com as quais frequentes vezes e não por acaso mantinha fortes vínculos, também a Igreja se erigiu em depositária da identidade da nação ameaçada pelas fraturas políticas e sociais e pelas ideologias revolucionárias. Uma identidade de per si católica, para a qual ambicionava levar a nação a convergir e em torno dela unir-se. Empenhava-se em alcançar esse objetivo derrotando o liberalismo e os seus corolários políticos e econômicos, que ela identificava na democracia individualista e no capitalismo desenfreado; combatendo o comunismo, do qual denunciava a apoteose materialista da sociedade que voltara as costas a Deus; e afirmando o ressurgimento de uma civilização católica, expressa numa sociedade harmônica organizada em corporações e representada por uma “democracia orgânica”. Não por coincidência, os modelos políticos desse catolicismo de vento em popa foram os regimes católicos, autoritários e corporativos de Oliveira Salazar em Portugal e de Engelbert Dollfuss na Áustria, o fascista de Benito Mussolini na Itália e, de modo especial, o do general Francisco Franco na Espanha.

5. Os populismos A crise do liberalismo e a ofensiva antiliberal começaram a se disseminar em um número cada vez maior de países, começando pelo Brasil e pelo México nos anos 1930 e pela Argentina depois de 1945, sob a forma de fenômenos peculiares que as ciências sociais denominaram de modo geral populismos. Estes são fenômenos universais, mas encontraram terreno particularmente fértil na América Latina, tanto assim que se os primeiros sinais apareceram nos anos

1930, continuaram a se propagar pela região até hoje, em ondas sucessivas. Do que se trata? Em termos sociais e econômicos, os populismos foram regimes construídos sobre amplas bases populares, delas extraindo sua legitimidade, e dedicados a alcançar a integração política através de políticas de distribuição da riqueza mais ou menos abrangentes. Essas políticas se tornaram possíveis em virtude da mudança do modelo econômico imposto pela crise de 1929. A nova centralidade assumida pelo Estado e a necessidade de incentivar o crescimento da indústria e de ampliar o mercado interno, criaram as condições de uma peculiar, embora transitória, convergência de interesses entre produtores e trabalhadores, unidos pela perspectiva de aumentar o consumo e a produção corroendo o poder até então concentrado pelos setores econômicos ligados à economia de exportação. Desse modo criaram uma espécie de frente nacionalista, de que os populismos se impregnaram à saciedade. Embora essa interpretação tenha algum fundamento, não explica totalmente os populismos de então e muito menos os que os sucederam. Esses populismos são, acima de tudo, fenômenos políticos baseados num núcleo ideológico semelhante, mesmo que de aparência bastante distinta entre si. Quanto à natureza política, caracterizaram-se por uma concepção visceralmente antiliberal da democracia. Para eles, a democracia não pertence à esfera política, mas ao âmbito das relações sociais. De tal modo que um regime autoritário, mas popular e voltado à “justiça social”, como eram em geral os populismos da época com maior ou menor sucesso, constituía a mais verdadeira das democracias. Típica dos populismos foi a pretensão ou a convicção de representar “o povo” na sua complexidade, um povo que entendiam como uma comunidade coesa e homogênea unida por uma história, uma identidade e um destino comuns; um povo que consideravam oprimido por inimigos internos ou externos que ameaçavam sua identidade, unidade e intrínseca pureza e inocência. Esses inimigos às vezes se apresentavam nas roupagens da oligarquia liberal, do comunismo ateu ou do imperialismo anglo-saxão. Nesse sentido, os populismos se propunham a reunificar o que atribuíam ao liberalismo e à modernização, por ele introduzida, a responsabilidade de ter dividido: a sociedade, o “povo”, a nação entendida como comunidade orgânica. Eles não costumavam apresentarse como representantes de interesses específicos ou de ideologias particulares, mas como movimentos e doutrinas nacionais, isto é, como verdadeiras encarnações políticas da identidade eterna da nação, que ressuscitava através deles. Assim, eram movidos pela tendência a absorver o monopólio do poder político em nome do povo e a negar legitimidade aos seus adversários, transformados em inimigos irreconciliáveis.

Essas características transformaram os populismos em fenômenos fecundos em consequências importantes e permanentes que desde então permeiam o panorama histórico da América Latina. Antes de tudo, tornaram-se intérpretes de uma reação antiliberal que em termos ideais se reportava à tradição organicista e corporativa tão arraigada na história da região; uma história em que se somavam e sobrepunham unidade política e unidade espiritual ou ideológica. Ao postular a unidade e a homogeneidade do povo, por outro lado, os populismos tendiam a se exprimir de modo unívoco, sendo natural que um povo coeso se exprimisse com uma só voz. Não é casual que o seu chefe seja sempre e em toda parte um líder carismático, aquele que da sacada dialoga com o seu povo num ritual destinado a dispensar as mediações e as instituições políticas como obstáculos importunos. Fortalecidos em sua missão histórica de devolver ao povo a soberania e a identidade perdidas, além disso, os populismos também tendiam a transformar a política em guerra religiosa entre virtude e pecado, verdade e erro, povo e antipovo, num jogo de soma zero que muitas vezes desencadeou dissensões antigas e destrutivas entre eles e os seus adversários, com graves danos para as já frágeis instituições políticas dessas nações ainda em fase de consolidação. Não só, mas animados pela inspiração religiosa a eles conferida pela missão de redimir e salvar o povo, os populismos tenderam a antepor a fé à razão, a vontade à racionalidade, a política à economia, com frequência adotando políticas sociais e econômicas muito dispendiosas e populares no curso prazo, mas insustentáveis ao longo do tempo. Em síntese, os populismos que desde então começaram a surgir da crise do liberalismo na América Latina continham uma ambivalência intrínseca. Por um lado, foram canais extensos e populares de integração e nacionalização das massas até então excluídas ou marginalizadas pela vida política e social: integração econômica, através da concessão de benefícios efetivos; mais ainda integração moral, pois os populismos lhes conferiram a centralidade e reconheceram a dignidade que antes não possuíam. Ao fazer isso, porém, em nome da unidade política e doutrinária do povo, recorreram a uma ideologia e a práticas políticas autoritárias, impermeáveis e até abertamente hostis ao pluralismo. Desse modo, confirmaram a morte precoce da democracia liberal na América Latina e realizaram o divórcio histórico entre ela e as massas, que de modo geral ingressaram na vida política através de canais corporativos e em contextos autoritários, como nos anos 1930 revelaram os casos do Brasil de Getúlio Vargas e do México de Lázaro Cárdenas.

Getúlio Vargas e o Estado Novo

De 1930 a 1945, a história brasileira esteve ligada à figura de Getúlio Vargas, de fato seu protagonista, até suicidar-se em 1954. Apesar de levado ao poder pelos militares após um golpe de Estado em 1930, o governo de Getúlio Vargas foi constitucional até 1937. Nos primeiros anos, ele promoveu a centralização política, causa de violentos conflitos com o Estado mais poderoso da federação, São Paulo, zeloso da sua autonomia. Fortalecido com o apoio dos tenentes, cultivou um decidido nacionalismo econômico, concretizado no aumento do papel do Estado na promoção da indústria e na proteção do mercado interno. O nacionalismo e o corporativismo encontraram expressão na Constituição de 1934, redigida com a decisiva contribuição de alguns notáveis juristas católicos. O espírito que a orientava era o da colaboração entre as classes e da representação política das corporações. Defensor convicto de um Estado forte e unitário, responsável pela proteção da identidade nacional, a brasilidade, inimigo da democracia liberal e intolerante com o pluralismo, Vargas recorreu então à repressão. Primeiro atacou duramente o partido comunista, talvez o mais organizado do país, que em 1935 esboçou uma tentativa de reação pela via revolucionária. Em seguida extinguiu outro grande partido surgido nessa época, a Ação Integralista Brasileira, de clara inspiração fascista, não obstante concordar com grande parte do ideário desse movimento. Depois disso, em 1937, com o apoio das Forças Armadas e em sintonia com a Igreja católica, impôs uma ditadura que, buscando inspiração na ditadura católica e corporativa instalada em Portugal por Oliveira Salazar, chamou de Estado Novo.

Getúlio Vargas, em 1930, levado ao poder pelos militares.

Levando em consideração as peculiares características sociais e o limitado nível de desenvolvimento do Brasil da época, dentre os regimes até então instituídos na América Latina, o Estado Novo foi o que mais se assemelhou aos fascismos europeus. De fato, Vargas fechou o Parlamento, silenciou a oposição, censurou a imprensa, recorreu sem restrições à tortura e à prisão; com a deflagração da II Guerra Mundial, não escondeu sua admiração por Hitler e Mussolini, conhecidos e respeitados no Brasil devido aos milhares de alemães e italianos imigrados. Com essas ações, e coerente com a sua visão organicista da sociedade e a sua firme condenação do liberalismo, impôs ou tentou impor ao país a unidade política e a unidade espiritual. Com essa intenção, não poupou esforços para integrar ao regime e atrair para a sua ideologia nacionalista as classes médias e populares que assomavam à cena política nas grandes cidades onde cresciam a indústria e os serviços. Com esse objetivo, por um lado lançou as bases de um sistema corporativo em que o Estado controlava as organizações de trabalhadores. Por outro, introduziu algumas leis sociais e concedeu certas vantagens aos trabalhadores da indústria. Essas medidas foram tomadas tanto para prevenir a adesão a ideais revolucionários que considerava estranhos à identidade brasileira, quanto porque a sua vaga ideologia corporativa assim o exigia. Para esta ideologia, a saúde do organismo social dependia do equilíbrio e da harmonia entre os seus diversos membros. Desse modo, o mito popular de Vargas “pai do povo” e

protetor dos humildes começou a criar raízes, desenvolvendo-se plenamente nos anos 1950. A II Guerra Mundial determinou o fim do Estado Novo e a queda de Vargas, destituído pelos militares em 1945, fato que não o condenou ao ostracismo político, porém. Logo ficou claro que, apesar dos erros da ditadura, a maioria da população ainda o tinha em grande estima. De modo geral, esta vivia alheia aos complexos mecanismos da democracia representativa, da qual, aliás, estavam excluídos os milhões de analfabetos brasileiros. Assim, nem o apoio popular que ele conquistara perdeu o encanto com a sua queda; pelo contrário, foi muito útil sob certos aspectos, alimentando o mito da sua ação social em favor do “povo”. Durante a guerra, impelido pela pressão do corpo de oficiais decidido a colaborar com os Estados Unidos e por uma opção racional pelo que mais convinha ao Brasil, considerando a evolução da guerra e a sua posição geopolítica, Vargas contrariou suas afinidades com as potências do Eixo e se alinhou com os Aliados, enviando uma Força Expedicionária à Europa para combater ao lado deles. Com isso, Vargas abriu o caminho para uma estreita aliança com a maior potência mundial e hemisférica, e avantajouse na competição com a Argentina que, ao contrário, protegeu-se durante muito tempo nas trincheiras da neutralidade. Além disso, Vargas obteve grandes benefícios em termos de ajuda militar e econômica, graças à qual o Brasil pôde lançar as bases da sua indústria pesada. Ao mesmo tempo, no entanto, a opção de juntar-se aos Aliados, de lutar pela democracia contra os totalitarismos, pôs Vargas diante de enormes contradições, pois ficou evidente para todos que o seu regime se assemelhava muito mais àqueles contra os quais tomara em armas do que àqueles com que se alinhara. Essa situação o forçou a atenuar os arrochos da ditadura, a dar início à liberalização e a inspirar o que até então se recusara a criar: um partido político para participar das eleições que já se via obrigado a convocar. Na verdade, para maior exatidão, não um, mas dois partidos políticos, visto que, coerente com a sua ambição de encarnar a própria identidade da nação e de reconduzi-la à unidade orgânica, Vargas se propôs a representá-la por inteiro. Daí o surgimento do Partido Trabalhista Brasileiro, criado para dar voz à alma operária e urbana dos seus seguidores, e do Partido Social Democrático, que de social-democrático tinha muito pouco ou nada, pois reunia a base mais moderada do Estado Novo e aspirava a organizar o consenso das elites políticas dos Estados mais atrasados do país, onde os trabalhistas não tinham voz. Mesmo apresentando as características típicas dos populismos latinoamericanos, o regime de Vargas nos anos 1930 demonstrou peculiaridades

evidentes. Em primeiro lugar, tendo surgido em plena noite da democracia representativa, não se legitimou através do rito eleitoral, como acontecerá depois da guerra, mas impôs uma ditadura, algo comum naquela época. Uma ditadura de tal modo inspirada num ideal corporativo, que levou Vargas a recusar-lhe um partido oficial, ao contrário do que haviam feito as ditaduras europeias mais modernas, e a conduzi-la pessoalmente contando com o apoio direto das corporações mais poderosas, a começar pelas Forças Armadas e pela Igreja católica, e continuando com os sindicatos e os setores produtivos. Em segundo lugar, o que distingue o populismo de Vargas nos anos 1930 é o seu perfil parcial, devido às peculiares condições do país e à sua intrínseca índole moderada. Parcial no sentido de que enquanto o esforço de integração social se concentrou nas áreas urbanas e nos novos setores que surgiam, não se pode dizer que fosse incisivo ou mudasse grande coisa nas condições das grandes massas rurais, na maioria ainda sujeitas a relações sociais de tipo tradicional. Nesse sentido, o populismo de Vargas foi limitado, tanto social como territorialmente, e comportou uma baixa taxa de mobilização política das massas. Para terminar, outra característica do populismo varguista foi a natureza da sua liderança: longe de ser o típico líder histriônico capaz de incendiar as massas, Vargas assentava o seu carisma sobre o mistério que costumava rodear a sua figura quase sempre impassível e evanescente.

Lázaro Cárdenas e a herança da revolução mexicana A revolução havia convulsionado as fibras mais profundas da sociedade mexicana de tal modo, que elas continuaram a vibrar intensamente durante muito tempo. Antes que a sua herança se estabilizasse e emergisse o regime político que perduraria até o fim do século, o México passou por muitas outras convulsões. Uma destas se destaca de modo especial, abrangendo a década de 1920 e os primeiros anos da década de 1930, o Maximato, época dominada por Plutarco Elías Calles; desse período, mais do que os esforços de consolidar a ordem revolucionária, costuma-se lembrar a violenta Guerra Cristera, combatida entre 1926 e 1929. Essa guerra, campesina e religiosa ao mesmo tempo, começou com a revolta da população rural no centro do México, liderada pelo clero contra as duras medidas anticlericais tomadas por Calles. A institucionalização da revolução e a organização das massas no âmbito do regime que se instalara ocorreram de fato durante o mandato presidencial de Lázaro Cárdenas, entre 1934 e 1940, um homem que Calles escolhera como seu sucessor com a ideia de controlá-lo, mas que logo se

afastou dele. A propósito, suas medidas foram decisivas em todos os aspectos. No campo social, deu um impulso extraordinário à reforma agrária, eixo cardeal do programa revolucionário e base imprescindível para a adesão da população rural majoritária à nova ordem. Para isso, além de distribuir terras em grande quantidade, ele promoveu a gestão coletiva por meio do ejido, uma prática que remonta à era pré-colombiana e agora coerente com a reação comunitária que Cárdenas encarnava. Igualmente importante, quer para reforçar o vínculo entre o Estado revolucionário e as massas trabalhadoras, quer para promover o nacionalismo econômico, foi a nacionalização do petróleo em 1938, ao final de um longo período de turbulência operária, favorecida por Cárdenas com a criação da Confederação de Trabalhadores Mexicanos. Essa nacionalização foi a origem da grande empresa petrolífera estatal, a Petróleos Mexicanos (PEMEX), e a decisão de efetivá-la provocou grandes tensões com as companhias estrangeiras e com os seus países de origem, Grã-Bretanha e Estados Unidos, mas também fortaleceu o nacionalismo local.

Lázaro Cárdenas, fomentador da reforma agrária, em 1930, antes de se tornar presidente do México. Foto do arquivo Memória Política do México.

Nacionalista mais do que socialista, filho de uma revolução que havia combatido a Igreja reivindicando a tradição liberal e generoso anfitrião dos

republicanos espanhóis que fugiam da reação franquista, também Cárdenas assumiu uma postura corporativa a partir de uma concepção organicista da sociedade. Ou seja, adotou como prioridade absoluta a unidade da nação, e com essa finalidade, na última parte do seu governo, trabalhou no sentido de moderar o ímpeto das reformas e escolheu um líder católico e moderado como sucessor. Tomou essas decisões com o propósito de absorver os conflitos que as suas medidas haviam agravado e de reequilibrar as relações entre os vários setores sociais e as diversas perspectivas revolucionárias. Reflexo fiel da sua concepção corporativa, que dividia com os outros populismos, foi o partido que fundou para institucionalizar o regime gerado pela revolução, o Partido da Revolução Mexicana. Um partido organizado em setores, cada um destinado a representar uma parte da sociedade que almejava abarcar no seu conjunto: os camponeses, os trabalhadores urbanos, os militares e as demais categorias. Além disso, a adesão podia ser corporativa, isto é, por meio da filiação a sindicatos, cooperativas e outras entidades de classe. Em essência, a ordem que emergiu desse conjunto de iniciativas foi um regime semiautoritário baseado em massas que se manteve estável durante muito tempo devido ao seu exitoso esforço de reconduzir à unidade política e ideológica revolucionária a complexa nação em que o México se transformara depois de décadas de modernização e distúrbios políticos. Baseado em massas, pois as grandes organizações populares, tanto urbanas como rurais, ficaram desde então ligadas, por um duplo mandato, ao Estado e ao partido que o encarnava. Autoritário, pois funcionou de fato como uma espécie de regime de partido único, em que o papel das oposições se limitou durante longo tempo apenas a legitimar com a sua presença residual a hegemonia do partido do governo, que a partir de 1946 seria emblematicamente denominado Partido Revolucionário Institucional.

6. A política de Boa Vizinhança e a Guerra No início dos anos 1930, a chegada de Franklin Delano Roosevelt à Casa Bianca possibilitou algumas mudanças importantes nas relações entre os Estados Unidos e a América Latina. Inaugurou-se então a política que o presidente estadunidense chamou de “Boa Vizinhança”, com a qual se comprometeu a abandonar o corolário de Theodore Roosevelt à doutrina Monroe, renunciando às sistemáticas intervenções militares do passado em defesa dos interesses políticos e econômicos dos Estados Unidos. Nesse sentido, a nova política se assentou sobre dois pilares principais: a não intervenção, reivindicada aos brados pelos países da América Latina; e o multilateralismo,

entendido como disposição a relacionar-se com eles num plano de igualdade no quadro de instituições pan-americanas. As razões dessa guinada foram várias e todas muito válidas. A primeira e mais evidente foi a que antes ainda o próprio Roosevelt já expressara: “eles nos odeiam”. Em outras palavras, foi a consciência de que três décadas de recorrente recurso à força haviam alimentado na América Latina a planta do nacionalismo antiamericano e de que, portanto, era urgente adotar outra estratégia, como de fato aconteceu com a renúncia dos Estados Unidos à emenda Platt, que lhes dava direito de intervir em Cuba, e com a retirada das tropas ainda aquarteladas em outros países. Uma segunda razão foi a constatação de que a política do big stick (“grande porrete”) não havia dado os resultados esperados e se tornava cada vez mais dispendiosa. Ou seja, as intervenções não conseguiam estabelecer a ordem onde elas aconteciam e muito menos a democracia, obrigando os Estados Unidos a ingerências sempre mais longas, caras e frequentes. Acresce a isso que a crise de 1929, forçando as grandes potências a adotar estratégias protecionistas para se assegurar mercados e fontes de matérias-primas, levou os Estados Unidos a intensificar os esforços para inserir a América Latina na sua própria esfera de influência econômica. Esses esforços voltaram-se não apenas para as regiões mais próximas às fronteiras estadunidenses, onde isso já acontecia, mas com intensidade sempre maior para os grandes e populosos países da América do Sul. Nesses países, e esta é a última e importante razão dessa guinada, a influência europeia, já prejudicada pela I Guerra Mundial, sofreu mais um duro golpe em decorrência da Grande Depressão. De fato, esta operou como um acelerador do afastamento da América Latina com relação às suas raízes europeias. A derrocada europeia no hemisfério americano, em suma, facilitou para Roosevelt a busca da hegemonia, empregando a política mais do que as armas, o diálogo mais do que atos imperiais. Dessa perspectiva, pode-se entender a política da Boa Vizinhança como um novo modo de alcançar os antigos objetivos, numa situação, porém, em que a forma não era em absoluto secundária em relação ao mesmo conteúdo. Que efeitos essa política produziu? Por um lado, sem dúvida melhorou o clima entre as duas partes do hemisfério e ajudou a lançar as bases de uma comunidade pan-americana. Reflexo desta foram as inúmeras assembleias que nos anos 1930 reuniram em torno da mesma mesa todos os países americanos, nas quais mais vezes reiterou-se o princípio, tão caro aos latino-americanos para conter os alvos de Washington, da não intervenção nos assuntos estrangeiros. Além disso, a partir de então o pan-americanismo se afirmou cada vez mais como a ideologia por meio da qual os Estados Unidos aspiravam a atrair a parte latina da América para os valores da sua civilização: a democracia política e o livre mercado; e para opor-se à agressiva ascensão das correntes nacionalistas,

as quais tendiam a se deixar seduzir pelo canto das sereias europeias, que naqueles anos entoavam loas aos fascismos, especialmente os católicos, cuja inspiração orgânica e corporativa conquistava o consenso em muitos países americanos. Não obstante, se o clima melhorou e as mudanças econômicas entre o Norte e o Sul do hemisfério se incrementaram, nem tudo foram rosas e flores para a política de Roosevelt, que se defrontou também com muitos obstáculos. A começar pelas tendências protecionistas e dirigistas que se impunham em parte da América Latina depois da crise de 1929. Estas, em certos aspectos, estavam no auge também nos Estados Unidos, onde Roosevelt concretizava o seu New Deal; apesar disso, representavam sérios obstáculos tanto à difusão da filosofia econômica liberal estadunidense quanto aos seus interesses econômicos. Aliás, dificultavam também a propagação do liberalismo, sob ataque em toda a região, e da democracia, a cuja difusão a Casa Branca renunciou ao aderir à política de não intervenção. Com isso, o governo de Washington foi alvo de duras críticas de várias forças democráticas latino-americanas, que o acusaram de manter profícuos e amigáveis vínculos com as numerosas ditaduras que se afirmaram no continente depois de 1930. Essa circunstância, porém, não impediu os Estados Unidos de exercer mais do que discretas pressões onde consideravam ameaçados os seus interesses em zonas do hemisfério desde sempre mais vitais do que outras, como em Cuba, por exemplo, onde a chegada de Ramón Grau San Martín ao poder em 1933 pareceu representar um perigo. Mas os dilemas entranhados na política da Boa Vizinhança se tornaram ainda mais prementes à medida que uma nova guerra mundial chegava à iminência, incitada pelo revisionismo hitleriano na Europa. A prioridade que até então os Estados Unidos haviam reservado à economia passou agora a ser dada à segurança do hemisfério. Em Washington, a doutrina da não intervenção começou a ser vista como um entrave à luta contra a penetração das potências totalitárias na região, de modo especial considerando que em vários países da América do Sul tais doutrinas estavam se firmando. De fato, a política estadunidense na América Latina sofreu importantes ajustes a partir de dezembro de 1941, quando os Estados Unidos foram forçados a participar da guerra em decorrência do ataque japonês a Pearl Harbor. Tornou-se sua prioridade então assegurar a unanimidade do apoio político latino-americano à causa dos Aliados; garantir o regular fornecimento de matérias-primas para a indústria bélica; e obter a colaboração contra as potências do Eixo. Bem ou mal, os Estados Unidos alcançaram todos esses objetivos, inclusive no México, onde o contencioso em torno da nacionalização do petróleo acabou sendo resolvido, e no Brasil de Vargas, que apesar de suas simpatias ideológicas, optou por aderir à

frente aliada, como se viu, a ponto de se transformar e manter durante muito tempo como o principal receptor da ajuda militar estadunidense na região. Não obstante, esses mesmos objetivos encontraram também fortes resistências. Em parte, no Chile, país que se manteve neutro por mais tempo do que os demais, mas de modo particular na Argentina, por diversos motivos que fizeram desse país daí em diante o principal espinho no flanco do panamericanismo: por seus antigos e ainda sólidos vínculos com a Europa e pela sua dependência do comércio com a Grã-Bretanha, que a levaram a manter-se neutra para não arriscar suas vitais relações comerciais; porque boa parte da sua população era formada de imigrantes de origem italiana, de modo que declarar guerra ao Eixo, de que a Itália fazia parte, teria causado problemas políticos; porque a elite política e intelectual argentina se considerava investida da liderança entre as nações latinas da América, o que a fazia descartar com desdém o reconhecimento da hegemonia estadunidense; enfim, porque o golpe de Estado de junho pôs no poder um governo militar impregnado de nacionalismo extremo, muito próximo dos fascismos europeus e decidido a fazer-se porta-bandeira da civilização hispânica e católica na América Latina, em contraposição à protestante e anglo-saxã conduzida pelos Estados Unidos. Assim, até reconhecer as potências do Eixo em janeiro de 1944, a Argentina ficou sozinha, sendo a última a lhes declarar guerra em março de 1945, quando os combates estavam para terminar. Bibliografia Conniff, Michael L. (edited by), Latin American populism in comparative perspective, Albuquerque: University of New Mexico Press, 1982. García Sebastiani, Marcela e Rey, Fernando del (editores), Los desafíos de la libertad. Transformación y crisis del liberalismo, Europa y América Latina (1890-1930), Madrid: Biblioteca Nueva, 2008. Gellman, Irwin F., Good neighbor diplomacy: United States policies in Latin America, 1933-1945, Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1979. González Casanova, Pablo (coordenador), Historia del movimiento obrero en América Latina, México, D.F.: Siglo Veintiuno Editores, 1984-1985. Krauze, Enrique, Biografía del poder: caudillos de la Revolución Mexicana, 1910-1940, Barcelona: Tusquets Editores, 1997. Leonard, Thomas M. e Bratzel, John F. (edited by), Latin America during World War II, Lanham: Rowman & Littlefield, 2007. Levine, Robert M., Father of the poor? Vargas and his era, Cambridge-New York: Cambridge University Press, 1998. Rouquié, Alain, The military and the state in Latin America, Berkeley: University of California Press, 1987. Thorp, Rosemary (edited by), Latin America in the 1930s: the role of the periphery in world crisis, New York: St. Martin’s Press, 1984. Zanatta, Loris, Dallo stato liberale alla nazione cattolica: chiesa ed esercito nelle origini del peronismo, 1930-1943, Milano: Franco Angeli, 1996.

SEGUNDA PARTE Da Guerra Fria aos dias atuais 1945-2010

7. O período do populismo clássico 1. Entre democracia e ditatura A II Guerra Mundial mal roçou a América Latina. Ressalvado o caso dos soldados brasileiros que sucumbiram na Europa e dos pilotos mexicanos que combateram na frente do Pacífico, os latino-americanos não participaram da guerra diretamente. Como era inevitável, porém, seus efeitos foram ainda maiores e mais intensos do que os da I Guerra, em todos os sentidos e em todos os setores, a começar pelo político. Esses efeitos se fizeram sentir de imediato, com a vitória aliada liberando uma onda de democratização sem precedentes, e também um pouco mais tarde, com o início da Guerra Fria favorecendo um ciclo de restaurações e reajustes, ao modo de refluxo. A onda democrática que varreu a região na segunda metade dos anos 1940 não encontrava precedentes na América Latina. Diferentes causas operavam na sua origem e desiguais foram também as formas como se manifestou. Quanto às causas, as econômicas e sociais ocupavam o primeiro lugar. Durante a guerra, a urbanização e a industrialização haviam dado passos gigantescos, pelo menos consideradas suas dimensões continentais, criando os pressupostos de uma intensa mobilização social e de uma crescente demanda de participação política, ou seja, de democracia. O contexto também era bastante favorável, pois a democracia saíra vencedora do titânico confronto com os fascismos e, portanto, era beneficiária da indiscutível hegemonia sobre o continente com que os Estados Unidos saíam do conflito. Essa hegemonia se manifestava através da imprensa, do rádio e da indústria cinematográfica, que assumiam um papel de relevância crescente na difusão dos valores do liberalismo estadunidense na América Latina. A aliança de guerra entre os Estados Unidos e a União Soviética, por sua vez, – e as alianças que dela derivaram em muitos países da região, inclusive no seio dos governos, entre partidos e movimentos comunistas e burgueses – parecia ter equacionado uma das questões que no passado mais dificultara a democratização da região. Tanto é verdade que, como consequência dessa aliança, os partidos comunistas, mais ativos no Brasil e no Chile, embora em geral de dimensões bem reduzidas, e os seus sindicatos, mais fortes porque concentrados nos setores-chave das economias nacionais, saíram da clandestinidade a que haviam sido confinados e

pregaram o antifascismo até mais do que a revolução. A pregação antifascista foi uma palavra de ordem então assumida com determinação pelos próprios Estados Unidos que, da Bolívia ao Brasil, do Paraguai à Argentina, não pouparam meios para pressionar os regimes que julgavam versões americanas do fascismo europeu. Além disso, como as próprias elites latino-americanas podiam desdenhar a democracia depois de terem dado seu apoio, na maioria dos casos durante a guerra, à potência democrática por excelência? Com efeito, os resultados foram visíveis, tanto em termos políticos quanto sociais. Basta dizer que, se em 1944, havia apenas quatro governos com credenciais democráticas aceitáveis – Chile, Uruguai, Costa Rica e Colômbia -, em poucos anos esse número se multiplicara, deixando praticamente isoladas, e obrigadas a abrandar sua rigidez repressiva, as ditaduras da Nicarágua e da República Dominicana. O próprio regime militar argentino teve de assumir uma postura mais liberal e convocar eleições, quando então Juan Domingo Perón obteve a vitória. Do mesmo modo, aliás, que o regime mexicano pareceu por um instante abrir uma brecha em seus muros. Em quase toda parte, aumentaram as manifestações democráticas de alunos e operários, de intelectuais e colarinhosbrancos em geral. Com frequência, foram jovens oficiais das Forças Armadas que deram o golpe definitivo a regimes elitistas e autoritários já sem seguidores. Essas intervenções confirmam a tendência dos militares a agir em face do que acreditavam ser o justo equilíbrio entre as diversas forças sociais no seio da comunidade nacional, da qual se erigiam em tutores. O fato é que foi desse modo que alguns grandes países, como o Peru e a Venezuela, viveram sua primeira experiência democrática; mas também outros menores e mais atrasados, como El Salvador e Guatemala. Longe de ser apenas um fenômeno político, a democratização foi também um grande movimento social que se expressou nas agitações operárias, cada vez mais frequentes, para reivindicar melhorias salariais e implantar legislações sociais modernas, e no crescimento exponencial dos filiados aos sindicatos, os quais, no novo contexto, puderam agir com maior liberdade, alcançando por volta de 1946 a cifra de quase quatro milhões de associados. Muito rapidamente, porém, esse clima mudou. Com tempos e modalidades diferentes de um contexto a outro, aquele período pleno de esperanças com relação à democratização da vida política e social da América Latina empalideceu, até transformar-se numa década de reincidência autoritária que envolveu a maioria dos países da região nos anos 1950: desde o Peru e a Venezuela, onde em 1948 as mesmas Forças Armadas que haviam forjado os oficiais reformistas de poucos anos antes levaram aquela breve experiência a um brusco fim, até os vários países da América Central, onde, salvo na Costa Rica, a brisa democrática perdeu forças até finalmente dissipar-se; da Argentina, onde

Perón em pouco tempo revelou a sua índole ditatorial, ao México, onde o regime gerado pela revolução lacrou as portas do seu monopólio político. A mesma situação viveram o Chile e o Brasil que, embora conservando seus regimes democráticos, os blindaram adotando medidas duras contra os partidos e os sindicatos comunistas. Isso tudo para não falar de Cuba, onde Fulgencio Batista, em 1952, encerrou uma agitada década democrática, e da Guatemala, onde, como se verá, foram os Estados Unidos que decretaram o fim de uma experiência que para eles se tornara inquietante. Mesmo em Washington, à medida que a Guerra Fria se impunha, a primazia da unidade antifascista foi sendo aos poucos substituída pela prioridade à unidade anticomunista.

Fulgencio Batista y Zaldívar, militar e presidente de Cuba durante os períodos de 1940–1944 e 1952– 1959.

Evidentemente, o declínio da democracia política não deixou incólumes nem mesmo as organizações sindicais, com frequência sujeitas a severas restrições, ora legislativas, ora repressivas. Nos países onde se instalaram regimes populistas, porém, como na Argentina, México, Bolívia e Brasil, foram em geral unificadas sob a guarida do Estado. Assim os trabalhadores obtiveram benefícios sociais efetivos, mas os sindicatos tenderam a se transformar em correias de transmissão da política governamental junto aos trabalhadores, mais

do que em representantes destes nas negociações com o governo ou nos conflitos com a classe patronal. Além disso, alguns se transformaram em fortes aparatos de poder desprovidos de democracia interna, dependentes das corporações de maior peso no seio dos regimes populistas. Por que essa temporada democrática foi tão breve e quais foram suas consequências? Não há uma resposta válida única para cada caso, tantos são eles e tão diferentes entre si. A mais intuitiva e imediata, evocada com maior frequência, é a Guerra Fria, ou seja, de todos os pontos de vista, a causa principal da brusca mudança de clima político no pós-guerra seria a Guerra Fria. Essa resposta, porém, corre o risco de atribuir peso demasiado aos fatores externos à região e de negligenciar além do permitido os fatores endógenos que, com toda probabilidade, foram decisivos. O que de fato se pode atribuir à Guerra Fria é o fato de que o confronto político e ideológico entre as duas grandes potências e os seus sistemas econômicos e sociais serviu em muitos casos para legitimar a reação das forças que na América Latina acreditavam ter bons motivos para obstruir ou interpor limites severos àquele incipiente processo de democratização. Sem dúvida, além da Guerra Fria, outros fatores ainda mais decisivos contribuíram para a precoce crise de grande parte dessas democracias. Em primeiro lugar, a frágil cultura democrática da região em todos os níveis da escala social, onde a persistência do imaginário organicista e a tendência a exercer o monopólio do poder por parte de quem o conquistava foram poderosos obstáculos à consolidação de regimes políticos democráticos e pluralistas. Em segundo lugar, as instituições representativas frágeis é que foram chamadas a metabolizar aquela grande e inesperada demanda de participação. Em terceiro lugar, onde foi vitoriosa, a reação social das classes médias e burguesas diante da maré crescente de radicalismo plebeu. Tudo isso tornou a democratização bem menos rósea do que o termo poderia sugerir, seja porque em geral imbuída de violência, corrupção e instabilidade ou, de modo especial, porque em muitos casos assumiu as formas do populismo que, como se viu, combinava a integração social com o autoritarismo político e a intolerância ao pluralismo, desencadeando assim perigosas e destrutivas escaladas entre facções antagônicas. Em torno de uma década após o término da guerra, então, a lista de Estados democráticos não era mais longa nem muito diferente daquela de dez anos antes ou de dez anos depois. Ao lado do Chile, Uruguai e Costa Rica, que apesar de inúmeros obstáculos continuavam sua marcha pelas vias da democracia representativa, gravitavam todos os demais países, trilhando caminhos diferentes. Assim, pode-se dizer que sobre a efervescência política do pósguerra caiu na maioria dos casos uma pesada tampa de aço que, ao explodir

alguns anos depois, pôs em evidência uma realidade ainda mais deteriorada e ingovernável. Uma realidade que a democracia liberal e as suas frágeis raízes naquelas sociedades e naquelas culturas políticas não puderam nem souberam absorver. Bem ao contrário, a transtornaram; tanto que em seguida teve início o período da revolução e da contrarrevolução.

A “Violência” na Colômbia Entre os muitos e distintos casos da América Latina da época, o mais extremo foi o da Colômbia, sob inúmeros aspectos. Nesse país, o desafio lançado pelo líder populista Jorge Eliécer Gaitán à ordem política tradicional, dominada por conservadores e liberais, tornou-se sem efeito em decorrência do seu assassinato em abril de 1948. Atos horrendos de violência seguiram-se a esse crime, primeiro na Capital, e na década seguinte no campo, onde os combates incessantes entre as guerrilhas de um ou outro partido causaram um grande número de vítimas, mais de 200.000, segundo algumas estimativas.

Jorge Eliécer Gaitán. Casa Museo JEG.

Desse longo período de violência e instabilidade, também acompanhado, porém, de uma rápida modernização social e econômica, a Colômbia só saiu em 1958, quando os dois principais partidos se conciliaram e

institucionalizaram uma divisão de poder. O caso colombiano mostra assim a outra face do período populista: o que acontece quando o populismo é contido ao nascer e quando as suas instâncias de integração social permanecem sem resposta, na medida em que os partidos tradicionais não querem ou não sabem assumir responsabilidades. Neste caso, o resultado foi a preservação da democracia representativa, embora de bases sociais bem mais restritas e por isso sujeita às enormes pressões e estremecimentos que desde então agitam a história política da Colômbia mais do que a de qualquer outro país da América Latina.

2. A industrialização para substituição de importações Foi então, de modo especial em 1948, ao assumir a direção da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), das Nações Unidas, que o economista argentino Raúl Prebisch lançou as bases teóricas do modelo ISI, fundamentado sobre o desenvolvimento da indústria nacional com o objetivo de substituir importações, e daquela que nos anos 1960, como se verá, recebeu o nome de Teoria da Dependência. Segundo essa teoria, a estrutura do comércio internacional era a causa das desigualdades entre os países centrais e os periféricos do sistema econômico mundial e do fosso que tendia a alargar-se cada vez mais entre uns e outros. Na sua base estaria uma constante e progressiva deterioração dos termos do intercâmbio em prejuízo dos países periféricos e, portanto, também da América Latina. Esta, afirmava Prebisch, precisava exportar bens em quantidade cada vez maior para adquirir dos países avançados uma mesma quantidade de bens manufaturados à medida que as inovações tecnológicas agregavam valor, de modo geral retido nas economias do Norte sob a forma de lucros e de altos salários. A validade dessa teoria tornou-se desde então foco e motivo de acirradas polêmicas entre economistas e entre historiadores. Fato indiscutível, no entanto, é que para toda resposta, Prebisch propôs uma via de desenvolvimento orientada para o âmbito interno, portanto centrada em medidas protecionistas, no crescimento do mercado interno e na integração econômica regional. Essas medidas – às vezes com maior moderação, como desejava o seu idealizador, outras vezes em termos mais radicais, impregnadas de nacionalismo econômico – inspiraram as políticas econômicas dos governos da época. Com o tempo, o que ficou conhecido como modelo ISI, substituto do modelo primário-exportador já definitivamente em crise, na realidade já havia iniciado sua trajetória de modo espontâneo muito antes de receber um conceito e um nome. Como se lembrará, ele foi estimulado pelas limitações do velho modelo durante a I Guerra Mundial, com a posterior contribuição dos efeitos da crise de 1929 e da II Guerra Mundial. Nos anos 1940 e 1950, tornou-se hegemônico em

grande parte da região. Isso não quer dizer, porém, que a indústria tenha se tornado o setor condutor em toda parte, visto que esse modelo pôde lançar raízes mais do que qualquer outro nos países que mais haviam crescido no passado e onde estavam disponíveis tanto capitais quanto mercados internos suficientes para alimentar a industrialização, como na Argentina, Brasil, Chile e México. Nesses países, em meados da década de 1950, a indústria contribuía com mais de 20% para o produto interno bruto. Mesmo não sendo considerável, essa proporção representava o dobro daquela da maioria dos países andinos, e ainda mais da América Central. Esse fato, no entanto, tampouco significa que a transição de um modelo econômica baseado na exportação de matérias-primas para outro centrado na produção de bens para o mercado interno resolvesse a crônica vulnerabilidade das economias latino-americanas. A indústria substitutiva se concentrou basicamente em setores de escasso valor agregado e pouca inovação tecnológica, e mais escassos ainda foram os avanços nos setores fundamentais da indústria pesada e de ponta, setores em que, por consequência, a dependência com relação às potências econômicas mais avançadas não diminuiu. Nesse sentido, também os subsídios e estímulos econômicos e tecnológicos supridos pelos Estados Unidos durante a guerra para incentivar a produção de matérias-primas estratégicas com fins militares tiveram importância significativa para a expansão das indústrias latino-americanas. Assim, por exemplo, foi nesse contexto que em 1946 a primeira grande empresa siderúrgica da América do Sul abriu suas portas em Volta Redonda, Brasil. Essa empresa, além de estimular o setor industrial, serviu de base para o desenvolvimento de uma indústria pesada nacional, símbolo do orgulho nacionalista e da superioridade econômica com relação aos países vizinhos. Em especial à Argentina que, ao contrário, pagou por sua neutralidade durante a guerra permanecendo em grande medida excluída dos investimentos e transferências tecnológicas estadunidenses durante o período peronista, concluído em 1955. Na década seguinte à II Guerra Mundial, a economia da América Latina cresceu em toda parte, em ritmos mais rápidos em alguns países, como o Brasil e o México, e mais lentamente em outros, como o Peru e a Argentina. De modo particular nos primeiros anos, foi impulsionada pela elevada demanda mundial de bens primários latino-americanos, demanda que em seguida diminuiria à medida que muitas economias se recuperavam dos desastres da guerra, até que, pelos meados dos anos 1950 sobreveio uma substancial estagnação. Esse crescimento, porém, não se manteve estável, visto que, deduzida a elevada taxa de expansão demográfica predominante na época, chegou em média a 2% ao ano. Acima de tudo, tampouco foi equilibrado nos vários setores produtivos, com o que avultaram algumas distorções basilares da estrutura econômica

regional, as quais alimentariam as convulsões sociais e políticas que já incubavam por outras razões, já vistas. De fato, tanto a indústria e o setor de mineração se expandiram a ritmos sustentados, quanto, ao contrário, a agricultura entrou numa fase de desaceleração, prejudicada em grande parte do continente por uma péssima distribuição da terra, concentrada nos latifúndios, e mais ainda vítima da sua escassa utilização, também fruto da enorme concentração. Por essa razão, não foi implementada nenhuma “revolução agrícola” que melhorasse a produtividade dos campos, nem estes tiveram condições de absorver o crescimento da população, que assim confluiu em ritmos cada vez mais intensos para as grandes cidades. Estas assumiram em definitivo as características típicas das grandes metrópoles e se transformaram em receptáculos das enormes contradições sociais que se avolumavam. Em geral, o motor do crescimento econômico continuou sendo, também no pós-guerra, a exportação de matérias-primas, em princípio agrícolas. Estas forneceram os recursos que a maioria dos governos empregou depois para promover a indústria de substituição protegida por elevadas barreiras alfandegárias e o consumo das classes urbanas. No final dos anos 1950, porém, essa política começou a manifestar graves limitações, quando as exportações, pelo atraso da agricultura ou porque os governos tendiam a pressionar os produtores para favorecer a população urbana, começaram a estagnar e a América Latina a perder um número cada vez maior de quotas no mercado mundial. Essa situação forçou a adoção de alternativas delicadas e quase sempre dolorosas.

3. Um vulcão sempre ativo: as transformações sociais Nos anos seguintes à II Guerra Mundial, as mudanças sociais já em curso nos grandes países assumiram um ritmo cada vez mais frenético e se estenderam para regiões até aquele momento inalcançadas. Uma grande transformação começou então a ocorrer, uma transformação que no intervalo de quase vinte anos, conferiu em definitivo à América Latina as conotações sociais que a caracterizam ainda hoje. Estas foram de tal natureza, que acentuaram muitos dos contrastes que tanto contribuíram para os grandes conflitos e para as enormes tensões dos anos 1960 e 1970. O dado mais surpreendente diz respeito à população, que cresceu a ritmos sustentados nos anos 1940, ou seja, 2,3%, e ainda mais nos anos 1950, quando essa taxa chegou a 2,7%. Como consequência, os latino-americanos, que somavam em torno de 126 milhões em 1940, totalizavam 159 milhões dez anos depois e 209 milhões em 1960. Esse acréscimo, porém, à diferença do que aconteceu no passado, não resultou do ímpeto de uma onda migratória. Não obstante, apesar de não ter sido um fator determinante, a imigração de fato se

intensificou na Argentina e de modo particular na Venezuela, aqui atraída pelo boom da indústria petrolífera e que por isso registrou taxas recordes de crescimento demográfico. De modo que enquanto os países do Cone Sul, onde a imigração fora maior, cresceram menos do que a média, o aumento real se deu onde a expansão populacional ocorrera até então de forma mais lenta, isto é, no México, na América Central, no Brasil e na região andina. De acordo com os dados, essa realidade deveu-se a uma razão precisa: a diferença cada vez maior entre as taxas de mortalidade, que tenderam a cair em toda parte, às vezes aproximando-se das médias europeias, e as taxas de natalidade, que se mantiveram muito elevadas, próximas às dos países em vias de desenvolvimento. As consequências desse crescimento não tardaram a se manifestar: seja de forma virtuosa, dado que em média a esperança de vida da população aumentou substancialmente; seja de forma perigosa, uma vez que a zona rural, pelos motivos já conhecidos, não conseguiu absorver a enorme massa de jovens que de modo muito rápido chegou ao mercado de trabalho. O problema é que nem as cidades tiveram condições de empregar essa mão-de-obra, pois a indústria não crescia com a rapidez que se fazia necessária. A urbanização, ainda mais rápida, extensa e volumosa do que no passado, foi a nota dominante dessa época. Nesse período, assistiu-se a uma verdadeira corrida para as cidades, com consequências profundas e permanentes, a ponto de configurar um quadro geral esquizofrênico, precursor de tensões sociais de intensidade sempre maior. Não só porque, de modo geral, apenas uma ou poucas cidades em cada país cresceram, sendo estas as que acabaram absorvendo um percentual exorbitante da população nacional, sem ter, porém, condições reais de preparar a tempo as obras de infraestrutura ou as redes de esgotos e hidráulicas, do que resultou um aumento desmedido de bairros periféricos; mas também porque o êxodo rural progressivo indicava uma evidente patologia nos países que ainda dependiam em grande parte do fruto dos seus produtos. Assim, a disparidade entre a cidade e a zona rural se aprofundou ainda mais, refletindo-se nas desigualdades abissais entre os indicadores sociais nos dois contextos, ou seja, nos dados relativos à mortalidade infantil, à escolarização, ao acesso à água potável e assim por diante, muito melhores nos centros urbanos do que nas áreas rurais. Também nas cidades em si, porém, as diferenças de uma região a outra e de um bairro a outro foram se tornando mais agudas e gritantes à medida que aumentava a proximidade entre classes, etnias e culturas, por um lado, mas também um correspondente distanciamento entre elas nas receitas financeiras, por outro. Apenas uma pequena porcentagem da população urbanizada encontrou ocupação nas fábricas, nas oficinas ou nos setores produtivos em geral. A grande maioria não conseguiu emprego ou acabou no

caldeirão dos serviços, sendo que destes só uma pequena parcela representava atividade produtiva natural da modernização econômica. A maioria dos serviços compreendia a imensa quantidade de tarefas humildes e pouco produtivas às quais a crescente faixa dos marginais se agarrava para sobreviver; ocupações de tempo parcial e pagamento exíguo, em geral estranhas aos limitados sistemas previdenciários e muito mais parecidas com a arte do biscate, do “quebragalho”, do que com trabalho de fato. Outros, por sua vez, com mais “sorte”, acabaram engordando a grande máquina clientelista do emprego público, geralmente usado como amortecedor social, pouco ou nada produtivo e quase sempre causa de crescentes turbilhões nas contas públicas. Longe de promover uma maior homogeneidade social, portanto, pode-se dizer que as consequências mais imediatas da modernização, ou seja, do crescimento econômico, da urbanização e da industrialização, foram as de trazer à superfície as antigas e profundas segmentações dessas sociedades tão heterogêneas, de modo especial porque boa parte da população urbanizada e que permaneceu às margens da cidadania social e do mercado de trabalho era em geral indígena, afro-americana, mestiça ou mulata. Além disso, os problemas de segurança, integração, criminalidade e moralidade que ela gerava levaram rapidamente a reações conservadoras e a verdadeiros estremecimentos da ordem nas demais classes sociais; em particular nas classes médias, que foram as que mais temeram os efeitos desse repentino crescimento de uma sociedade de massa que surgiu de modo espontâneo e à margem do controle das autoridades, e às vezes até incitada por governos populistas.

4. Entre nacionalismo e socialismo: o panorama ideológico Não é nada fácil compreender todos os aspectos do vasto universo das ideologias e das correntes culturais e espirituais nos quinze anos posteriores à II Guerra Mundial, em especial porque a volatilidade e a mobilidade de ideias e ideologias foram muito intensas no quadro de efervescência da região, abalada em seus fundamentos pelas transformações sociais, econômicas e políticas até aqui examinadas. Não obstante, como foi nesse decurso de tempo que aos poucos foram tomando forma os pontos de referência ideológicos que impregnaram os grandes conflitos das duas décadas seguintes, é conveniente tentar examinar alguns elementos centrais. O primeiro e mais importante a destacar é que, assim como o modelo econômico tendia a projetar-se para dentro e como as mudanças sociais impunham um pouco em toda parte o problema da integração e nacionalização das massas, do mesmo modo a nota dominante da época, em termos ideológicos, foi o nacionalismo. Este deixou de ser somente uma corrente ideológica e política entre outras de diferentes origens, como fora antes da guerra, e passou a

impregnar cada vez mais todo o panorama ideológico. Isto é, tornou-se uma espécie de nutriente imprescindível das disputas ideológicas, um apelo obrigatório para todas as ideologias em voga e, por fim, também um aglutinador de ideias que no passado pareciam diametralmente opostas, como socialismo e nacionalismo. Assim essas ideias tenderam em geral a confluir para amplos movimentos populistas. Isso não significa que as ideologias em confronto na América Latina fossem diferentes das que se enfrentavam no resto do Ocidente no contexto da Guerra Fria. Como em outros lugares, também na América Latina desencadearam-se combates em nome da democracia liberal ou do comunismo. O que se impôs cada vez mais, porém, foi o esforço de conjugar e legitimar essas ideologias em termos nacionais. Nesse cenário, começaram então a destacar-se um socialismo nacional, um catolicismo latino-americano, um modelo de desenvolvimento adaptado à região e às suas peculiaridades e assim sucessivamente. Não por acaso, esse processo culminou e em muitos casos encontrou a sua síntese mais acabada nas doutrinas nacionais que os movimentos populistas, então mais em voga do que nunca, pretenderam encarnar. O segundo elemento-chave para orientar-se no panorama ideológico do pósguerra é a questão social. Se a principal frente das disputas ideológicas havia sido durante muito tempo a religiosa, e se, primeiro ao longo dos anos 1930 e depois com a guerra, também na América Latina havia se imposto o confronto universal entre fascismos e democracias, mesmo que por breve tempo, o horizonte no pós-guerra foi ocupado pela questão social moderna. Algo inevitável, aliás, num continente em que ela se tornava cada vez mais premente à luz da transição para uma sociedade de massa, em curso em quase toda parte. Assim, durante vinte anos, o nacionalismo e a questão social se impuseram sobre o pano de fundo das lutas políticas e ideológicas da época. Não obstante, é preciso analisar em que termos esse predomínio ocorreu, pois nem todas as correntes ideológicas os enfrentaram do mesmo modo e algumas, as que alimentaram os populismos, tenderam a suplantar outras. Nessa tentativa, associaram-se idealmente a um substrato ideológico muito antigo, já conhecido, o organicista, revelando assim a extraordinária vitalidade deste. Para começar, em quase todo lugar, completou-se então o declínio do liberalismo, pelo menos na versão doutrinária elaborada pelas elites intelectuais do século XIX. Confirmou-se assim seu fracasso em grande parte da América Latina, como de resto já ocorrera na Europa. Em outras palavras, comprovou-se a sua incapacidade de conduzir a transição para a democracia política e a inclusão social. Portanto, embora a América Latina tendesse a gravitar ainda mais do que no passado na órbita da grande potência liberal, os Estados Unidos, e a apoiar a sua causa durante a Guerra Fria, não se pode dizer que o liberalismo

fosse protagonista, a não ser como alvo dos ataques dos seus inimigos, do populismo em primeiro lugar. Em suma, a tradição liberal e democrática parecia residual. Nesse cenário, tenderam a se tornar suas porta-bandeiras algumas vozes de outras origens, esforçando-se para adequá-la aos imperativos nacionais e sociais da época. Entre estas, os denominados católicos liberais, inspirados pelo filósofo francês Jacques Maritain, na América Latina orientados pelo brasileiro Alceu Amoroso Lima ou pelos jovens que fundaram a Democracia Cristã no Chile em 1957. Uma corrente minoritária que procurou conciliar a tradição corporativa católica com a democracia liberal. No entanto, se o liberalismo lamentava, tampouco o marxismo tinha motivos para festejar, não só porque a onda anticomunista que varreu a região em seguida à guerra impediu suas ações e organização, mas também porque a sua versão internacionalista, moldada sobre a marca ateia e materialista do cânone soviético, se revelou bem pouco adequada para atrair as massas. A não ser nas raras ocasiões em que o seu desempenho eleitoral, apesar de favorecido pelo prestígio da União Soviética no pós-guerra, mal alcançou os 10%. Não por acaso, os dirigentes e intelectuais marxistas tiveram a oportunidade de ver inúmeras vezes as bases proletárias ser estremecidas pelas ações dos movimentos populistas em espantosa ascensão. Essa percepção levou o marxismo da América Latina a nacionalizar-se, isto é, a entrar em sintonia com as massas que desejava representar para não se ver condenado ao isolamento e à marginalidade. Para isso, em muitos casos aderiu a movimentos ou sindicatos de tendência populista, onde se deparou com intelectuais e militantes de origem nacionalista, como aconteceu no peronismo argentino, na revolução boliviana de 1952 e em inúmeros outros casos. Mas se esse fenômeno alimentou na época e nos anos seguintes o anticomunismo, cuja tendência era ver o fantasma marxista assombrando todos os recantos, o que na maioria dos casos aconteceu de fato foi que, ao se nacionalizar, também ele tomou o caminho da conciliação com o imaginário popular. Um imaginário que na América Latina continuava impregnado de organicismo católico, no qual logo identificou muitos aspectos em comum. Daí o peculiar vínculo entre católicos e marxistas de que se falará ao abordar os anos 1960 e 1970. O que dominou o panorama ideológico da época, porém, já repetimos, foi o populismo. Em sentido estrito, o populismo não é uma ideologia, visto que ninguém costuma se definir populista, mas contém um núcleo ideológico específico, examinado no capítulo anterior. O nacionalismo e o socialismo tenderam a encontrar seu ponto de fusão nos populismos. De fato, eles se integraram idealmente a um imaginário social antigo que lhes permitia, por um lado, erigir-se em herdeiros da mais pura tradição nacional e, por outro, em defensores da justiça social em nome da harmonia e do equilíbrio entre os

diversos membros do organismo social. Embora o objetivo último dos fenômenos que representavam a identidade nacional, e, portanto, que desejavam monopolizar o poder, fosse ou tendesse a ser a instauração de regimes autoritários, isso não impede que tanto eles como a ideologia que professavam fossem muito populares. Aliás, eram tão populares, que de modo geral podiam contar com o apoio da maioria da população, em especial das classes médias baixas, e destacar-se em eleições livres, com a possibilidade de ocupar todas as posições do poder eventualmente conquistado. De fato, governos e líderes de algum modo relacionados com essa corrente se sucederam em diversos países ao longo desses anos, embora nem todos instalassem, por diferentes razões, regimes inteiramente coerentes com o núcleo ideológico do populismo: de Carlos Ibañez no Chile a Getúlio Vargas no Brasil, ambos alçados ao poder pela via eleitoral no início dos anos 1950; de Velasco Ibarra no Equador ao general Rojas Pinilla na Colômbia; de Victor Paz Estenssoro na Bolívia à primeira fase do governo do general Odría no Peru. Sem esquecer o peculiar caso do México que, considerando o conjunto todo, também faz parte dessa família. E principalmente o protótipo desses regimes, o mais maduro e completo, e que não por acaso almejava elaborar uma ideologia coerente: o peronismo argentino e a sua doutrina justicialista. Para essa doutrina, o que chamamos de populismo era na realidade a via latina para a democracia e para a justiça social. Uma via estranha e oposta, por um lado, ao comunismo, ateu e estalinista, e por outro, ao capitalismo e à democracia liberal do mundo protestante anglo-saxão. Em suma, uma terceira via católica, posto que católicas eram as fibras mais profundas da civilização latino-americana.

Perón e o peronismo Dos populismos clássicos da América Latina, os que surgiram durante a transição à sociedade de massa e à civilização industrial entre os anos 1930 e 1950, o peronismo argentino foi o caso mais emblemático; e também o mais completo, e por isso capaz de granjear partidários em toda a região. O homem que o encarnou foi Juan Domingo Perón, um militar de carreira cuja meteórica ascensão política se deu no ambiente do regime criado pelas Forças Armadas em junho de 1943. Desse regime, Perón exprimia plenamente o nacionalismo visceral, o governo autoritário e a vontade de fechar a página liberal da história argentina. Não obstante, proporcionou também a Perón a adoção de uma política social audaz que lhe permitiu ampliar as bases do regime e reunir os trabalhadores num sindicato único ligado ao Estado. Inicialmente Secretário do Trabalho, depois Ministro da Guerra e por fim vice-presidente da República, Perón se impôs aos poucos

como o homem forte do regime. Contra esse regime levantava-se a oposição, que reclamava eleições livres, e instigavam os Estados Unidos, que nele viam o simpatizante dos fascismos que eles se empenhavam em riscar do mapa europeu. Até que Perón, então acossado e aprisionado, voltou à cena em 17 de outubro de 1945, quando uma grande manifestação popular pediu sua libertação. Depois disso concorreu às eleições, que venceu com 56% dos votos em fevereiro de 1946, ano em que consolidou o seu regime, no comando do qual foi reeleito em 1951 e governou até 1955, quando um golpe de Estado militar o depôs e o condenou ao exílio. O regime peronista foi longo, complexo e comportou diversas fases. Com uma síntese das suas características, porém, é possível reunir alguns elementos sociais, econômicos, políticos e ideológicos que, além de ajudar a compreendê-lo, mostram até que ponto representou o tipo ideal dos populismos. Começando por seus aspectos sociais, não há dúvida de que o peronismo surgiu e persistiu como um grande movimento popular, tendo como núcleo mais ativo e sólido a classe operária. Em torno desta, porém, sempre gravitou um estrato popular mais amplo e marginal de perfil menos definido. Dito isto, é preciso esclarecer que, apresentando-se como movimento nacional e não como partido classista ou ideológico, a tendência do peronismo foi a de englobar nas suas bases setores muito heterogêneos e, com o passar do tempo, também conflitantes entre si. Atraídos pelo seu ideal nacionalista ou pelos interesses que este propiciava, juntaram-se às suas fileiras também radicais e conservadores, membros das elites provinciais ou da burguesia urbana, empreendedores e profissionais. Quanto à política social, é indubitável que o peronismo, que dispunha de uma invejável condição econômica no pós-guerra, favoreceu a distribuição da riqueza entre as suas bases sociais, quer aumentando o poder de compra dos salários, ampliando os benefícios sociais ou assegurando créditos acessíveis à indústria nacional. De modo geral, nos primeiros anos do regime, as condições de vida das classes populares tiveram uma melhora indiscutível, mas pelos anos 1950 a política social peronista começava a expor graves lacunas. Findo o boom econômico, ficou evidente que essa política social era insustentável, dados os enormes custos e desperdícios e também o comportamento parasitário que ela havia estimulado e que se refletia no absenteísmo disseminado, na produtividade muito baixa e no inchaço da máquina estatal. Não por acaso, se o primeiro mandato de Perón se inspirou no dogma dos direitos dos trabalhadores, o segundo se baseou no princípio da produção. No que se refere à economia, os pilares da política peronista foram os típicos do modelo ISI: o Estado e a indústria; e a sua principal técnica de

aplicação foi o planejamento. A tarefa prioritária do Estado foi proteger o mercado interno, estimular o crescimento por meio dos instrumentos de crédito e da contenção dos gastos públicos, assumir o controle da infraestrutura básica, dos telefones às ferrovias, através de nacionalizações, e em geral transferir recursos do setor exportador para os setores urbanos e a indústria. Para isso o governo se serviu de um instituto, o IAPI (Instituto Argentino de Promoção do Intercâmbio), que, entre inúmeras outras funções, teve a de adquirir cereais dos produtores a preço tabelado para revendê-los a preços bem mais elevados no mercado mundial. Com isso o governo pôde dispor de lucros consideráveis para financiar as despesas e os investimentos públicos, os benefícios sociais, o consumo e assim por diante. Quanto à indústria, Perón tinha um objetivo econômico e também político na sua proliferação. Econômico por estar convencido de que não haveria desenvolvimento sem industrialização. Político porque, como bom militar, via na indústria o necessário sustentáculo da soberania nacional, pois sem essa base a Argentina ficaria à mercê das economias estrangeiras e sem forças para reunir em torno de si as demais nações da região, como era seu desejo. Quais foram os resultados dessas políticas? Não há consenso a esse respeito. Certamente o modelo pareceu funcionar nos primeiros anos, mas em seguida emperrou. Ou seja, até 1949 assegurou o crescimento econômico e industrial, além da distribuição da riqueza. A partir daí deparou-se com problemas graves, em tempos e intensidades diferentes devidos aos seguintes fatores: inflação, rápida dilapidação das reservas internacionais, escassa discriminação entre setores estratégicos e secundários, impossibilidade de gastar as libras esterlinas inconvertíveis acumuladas nos bancos ingleses para adquirir bens da indústria estadunidense e escassa produtividade da indústria que se desenvolveu sob a égide da proteção pública. Circunstância crucial, porém, foi a de levar o modelo a depender das exportações agrícolas, que renderam imensas riquezas enquanto o mundo do pós-guerra estava em ruínas e faminto, mas estancaram quando a situação voltou à normalidade e os produtores argentinos, afetados pelo IAPI, tiveram menos interesse em investir e produzir. Em seguida, no início dos anos 1950, quando a essa situação se somaram dois anos de fortes secas, a economia argentina se viu prostrada, a tal ponto que o segundo plano quinquenal, depois interrompido pela queda de Perón, deixou de pressionar os exportadores e voltou-se para os setores estratégicos e a produtividade, enquanto o governo retomou por um

instante sua veemente retórica nacionalista para atrair investimentos externos. Em termos políticos, o peronismo foi um regime híbrido, algo típico dos populismos, aliás. Híbrido no sentido de que, embora tenha chegado ao poder pela via eleitoral e tenha nele se mantido da mesma forma, e apesar de preservar a arquitetura liberal do Estado de direito, ele governou de modo autoritário e profanando o seu espírito. Um autoritarismo popular, por assim dizer, ou uma tirania da maioria, pois foi em nome da vontade do povo que o peronismo amordaçou a oposição, monopolizou a informação, coagiu a magistratura à obediência, remodelou o sistema educacional e procurou enfim, de todos os modos, garantir a plena adesão também da Igreja e das Forças Armadas, as duas poderosas corporações que tanto o haviam apoiado originalmente na sua luta para erradicar as bases do regime liberal na Argentina. Em resumo, mesmo não tendo se tornado um regime de partido único, o sistema peronista criou um emaranhado tão inextricável entre Estado e partido peronista que estes quase chegaram a identificar-se. Além disso, apesar de não se ter transformado num regime totalitário propriamente dito, não há dúvida de que a sua tendência a concentrar os poderes e a impregnar todos os setores da vida social com sua ideologia manifestou sua pulsão nessa direção. Expressão dessas e de outras tendências foi a ideologia desse regime, que Perón chamou de justicialismo, a seu juízo premissa de soberania política, independência econômica e justiça social, seus três eixos cardeais. Além disso, a sua doutrina pretendia erigir-se em Terceira Posição, tanto no plano interno como no internacional, entre Ocidente liberal e Oriente comunista. A ponto de declarar-se hostil ao individualismo e ao coletivismo, à civilização protestante e à ateia, com as quais identificava as duas grandes potências, e de apontar na sua ideologia o retorno a uma sociedade permeada de valores comunitários, filhos da civilização católica. Civilização que Perón nunca deixou de invocar como fundamento da própria doutrina, nem mesmo quando se indispôs com a Igreja. Emblema da sua ideologia foi o objetivo de criar uma comunidade organizada, na qual o povo se mantivesse unido e organizado; unido política e espiritualmente no peronismo; e organizado em corporações, também peronistas, nas quais Perón procurou incluir os vários setores da população, às vezes conseguindo, outras vezes fracassando. Na liderança desse organismo social assim reconduzido à sua unidade primigênia e depurado das divisões causadas pela modernidade, Perón se destacava como chefe indiscutível e carismático, autorizado à reeleição pela reforma

constitucional de 1949. Com efeito, foi reeleito em 1951 com mais de 60% dos votos. Para uma maior exatidão, é preciso dizer que o peronismo constituiu de fato um regime bicéfalo bem peculiar. Ao lado de Perón, não menos poderosa e talvez mais popular, figurou a sua mulher, Eva, até sua morte precoce em 1952. Eva passou a fazer parte do mito e da devoção popular na figura de uma virgem pagã, de mãe dos deserdados que sacrificou a vida devotando-se incansavelmente às suas incontáveis obras sociais. Mas ela foi um personagem muito mais complexo e controverso do que o mito permite entrever. Tanto porque na realidade exerceu também, no mais absoluto e arbitrário dos modos, um enorme poder político: um poder organizado no partido peronista feminino, através do qual canalizou o voto das mulheres para cuja aprovação havia contribuído, na poderosa Fundação Eva Perón, e de modo especial em suas relações com o sindicalismo, a CGT (Confederação Geral do Trabalho), e com os poderes públicos em geral, onde contava com milhares de seguidores. Quanto porque a sua atividade social, mesmo produzindo enormes benefícios para amplos estratos populares, não esteve isenta de suspeição, dado que em grande parte pesou sobre o erário público e sobre cobranças impostas a empresas e trabalhadores, fontes de que subtraiu recursos volumosos que administrou ao seu arbítrio sem prestar contas a ninguém. E dado ainda que sobre a imensa popularidade assim alcançada montou uma contínua e ruidosa propaganda ideológica a favor do peronismo e de ódio contra os seus inimigos.

María Eva Duarte de Perón, “Evita”, em 22 de agosto de 1951. Em discurso no balcão do edifício do Ministério de Obras Públicas, diante de 2 milhões de pessoas, ela renunciou à candidatura ao cargo de vice-presidente da Argentina.

De modo geral, pode-se dizer que Eva Perón encarnou a alma mais popular, mas ao mesmo tempo mais maniqueísta, do peronismo, a alma mais capaz de inflamar o entusiasmo das multidões, mas também tão violenta a ponto de afastar simpatias e consensos, de modo especial entre as corporações eclesiástica e militar que lhe haviam tomado aversão. Assim, Eva insuflou no peronismo uma espécie de sopro religioso que lhe conferiu uma força extraordinária. Mas também o seu milenarismo representou a alma mais totalitária, aquela que, reduzindo a cinzas toda forma de mediação política, isolou o peronismo na sua popularidade. Até que, com a morte de Eva e com a economia abalada, a pretensão peronista de fazer do justicialismo uma espécie de religião política desembocou num violento conflito com a Igreja católica, que se sentiu traída por esse movimento em que vislumbrara a vontade de fazer uma política católica, mas que acabara querendo absorver a Igreja em nome da sua catolicidade. Em meio a esse conflito Perón aboliu as enormes vantagens até então concedidas à Igreja e introduziu algumas medidas, como o divórcio, contra as quais ela mobilizou os fiéis. Muitos peronistas foram tomados de agudas crises de consciência, pois eram em sua maioria católicos. A causa da Igreja encontrou seu apoio decisivo nas Forças Armadas, que destituíram

Perón, mas nem por isso foram capazes de pacificar um país dividido entre peronistas e antiperonistas.

Em 16 de junho de 1955, aviões da marinha bombardearam e metralharam a Plaza de Mayo e a Casa de Governo, em Buenos Aires, na Argentina. Os bombardeios provocaram a morte de 364 civis e deixaram inúmeros feridos.

5. A Guerra Fria: primeiros passos Como já se sabe, os populismos e o modelo ISI contestavam e combatiam a hegemonia estadunidense na América Latina. Pois bem, contrariando ambas as posições, depois da guerra essa hegemonia afirmou-se no plano geopolítico, vale dizer, no plano da segurança; mesmo encontrando resistências e divergências. No geral, porém, foi então que o novo equilíbrio mundial criou as condições para que essa hegemonia se exprimisse de modo mais amplo e profundo do que no passado. E não só pelo superpoder global que os Estados Unidos ostentavam no campo econômico e militar, mas também porque a Europa já era para a América Latina um sócio menor e a União Soviética não estava em condições de influenciar os destinos dessa região tão remota. Em suma, nada parecia interpor obstáculos sérios a essa hegemonia. Esse contexto possibilitou a institucionalização das relações interamericanas; em outros termos, a criação de instituições hemisféricas permanentes de que todos os Estados da região passaram a fazer parte. Consolidou-se assim o histórico objetivo estadunidense de transformar as Américas numa comunidade de defesa; portanto, num continente unido pelo princípio segundo o qual a segurança de cada um dos seus membros era vital para a de todos os demais. Por

consequência, as ameaças à segurança de um deviam ser entendidas como um perigo para o hemisfério em sua totalidade. Com isso, também avançou de modo significativo a premissa ideológica do pan-americanismo, impulsionada pelo imperativo de enfrentar um inimigo global durante a Guerra Fria: a ideia segundo a qual não havia mais sentido, se alguma vez houvera, em distinguir uma América anglo-saxã de uma América latina, pois o continente inteiro constituía uma civilização única e comum – a civilização ocidental e cristã. Uma ideia indigesta para os nacionalismos latino-americanos de todos os matizes, os quais na realidade nunca a assimilaram. Assim, pan-americanismo e anticomunismo foram os pontos de referência da política hemisférica dos Estados Unidos, intimamente entrelaçados. Política que vigorou tanto sob a presidência de Harry Truman, quando a ênfase recaiu sobre o primeiro termo, quanto sob a de Dwight Eisenhower, época em que prevaleceu o segundo. Na realidade, porém, não houve descontinuidade mais acentuada entre um período e outro. No que se refere ao pan-americanismo, três foram suas etapas principais. A primeira em 1945, quando o Ato de Chapultepec sancionou os princípios gerais da nova comunidade hemisférica: a igualdade jurídica entre todos os Estados, a não intervenção em assuntos estrangeiros e a segurança comum. A segunda e mais concreta em 1947, no Rio de Janeiro, quando as nações americanas formularam o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), um pacto militar baseado no princípio de que um ataque a um Estado membro justificaria uma reação de todos os demais. Esse acordo legitimou a tutela militar dos Estados Unidos contra toda eventual ameaça comunista, real ou potencial, mas seu alcance foi em parte limitado pela resistência de alguns países, como Argentina e México, que se reservaram o direito de decidir caso a caso sua participação na resposta coletiva. A terceira etapa, em 1948, durante a Conferência de Bogotá, consistiu na fundação da Organização dos Estados Americanos (OEA), com a qual o sistema interamericano assumiu a sua roupagem institucional definitiva. Quanto ao anticomunismo, não há dúvida de que com o prosseguimento da Guerra Fria, ele se tornou cada vez mais a prioridade estratégica estadunidense para a região. Também é certo que a maioria dos governos latino-americanos, conservadores ou populistas, assumiu essa posição; sem esquecer das Forças Armadas. Mesmo quando não o consideravam uma ameaça iminente, tendiam a exacerbá-la, na tentativa de chamar a atenção de Washington. A verdade é que o governo estadunidense se mobilizou para criar uma frente anticomunista sólida nas Américas, mas nem por isso as considerava uma área de alto risco, de modo especial com relação à Europa e à Ásia. Dito isto, para compreender a natureza do anticomunismo na América Latina, seja o estimulado pelos Estados Unidos

ou o que lançava raízes profundas na cultura política da região, é preciso considerar que ele não costumava se apresentar tanto como reação à ameaça de uma potência estrangeira, mas como a forma predominante que tomava desde então a reação contra um inimigo interno. Um inimigo político e ideológico que passou a ser visto tanto nos que o demonstravam na militância, quanto, cada vez mais, na sua tendência a convergir para o nacionalismo. Em termos concretos, no entanto, as pressões dos Estados Unidos, por um lado, e o anticomunismo de muitos governos da América Latina, por outro, criaram o clima para que os partidos comunistas fossem em muitos países criminalizados ou sofressem restrições; para que, salvo raras exceções, a grande maioria deles rompesse relações diplomáticas com a União Soviética; e para que o esforço dos sindicatos estadunidenses encontrasse um ponto de apoio para fundar uma Confederação Sindical hemisférica em condições de contrapor-se àquela que Vicente Lombardo Toledano dirigia no México, simpatizante de Moscou. Com o tempo, de modo especial com a chegada de Eisenhower à Casa Branca agitando a doutrina do roll back, isto é, da “reversão” do comunismo, as medidas para combatê-lo se intensificaram ainda mais: na frente militar, em que Washington assinou inúmeros acordos militares bilaterais com os governos da América Latina; e na esfera política, na qual os Estados Unidos não pouparam o recurso à covert action (ação encoberta), ou seja, ao emprego indireto da força para se livrar dos poucos governos que, na percepção deles, alimentavam simpatias pelo comunismo, como o guatemalteco de Jacobo Arbenz em 1954. No entanto, tudo isso não impediu que a hegemonia estadunidense se deparasse com obstáculos sérios, alguns pequenos, outros grandes, mas todos precursores dos ainda maiores que o futuro lhe reservava. Tampouco significa que a América Latina fosse mera espectadora do novo contexto. Seja porque procurou obter vantagens, seja porque em seu bojo não cessaram de germinar reações contra essa hegemonia, as quais encontraram o seu emblema nos populismos, como se viu. Estes herdavam e desenvolviam as mais antigas e profundas raízes do antiamericanismo hispânico e católico. Além disso, para eles tendiam a confluir com frequência cada vez maior os nacionalismos antes dispersos, de direita e de esquerda, econômicos e políticos, espirituais e culturais. Todos coesos em torno da aversão aos Estados Unidos e à civilização que estes representavam, isto é, unidos por aquilo que denominavam antiimperialismo. Durante grande parte desses anos, o maior desses obstáculos foi a Argentina de Perón: pela política da Terceira Posição que exprimia; por seus esforços para exportar o peronismo e criar uma frente latino-americana hostil aos Estados Unidos; por ser o símbolo da convergência do nacionalismo de direita e de esquerda para os populismos. Por um lado, as ideias e a propaganda peronistas

encontraram terreno fértil para arraigar-se, inclusive devido à enorme frustração de toda a América Latina diante da escassa ajuda dos Estados Unidos no pósguerra, enquanto a prodigalizavam para a Europa. Por outro, muitos governos reagiram temerosos frente às ambições hegemônicas argentinas, receio que os ajudou a aproximar-se ainda mais dos Estados Unidos em busca de proteção. Não obstante, a queda de Perón não dissipou os fantasmas despertados por seu governo em Washington. Pelo contrário, eles tenderam a reaparecer sob diferentes formas e estilos nos mais variados lugares, ora na Bolívia e na Guatemala, ora no Peru e na Venezuela, onde em 1958 o vice-presidente Richard Nixon pôs em risco sua segurança em consequência dos protestos antiamericanos. Enfim, em Cuba, onde a revolução chegou à vitória em 1º de janeiro de 1959.

A Guatemala de Jacobo Arbenz

Jacobo Arbenz Guzmán, durante a campanha eleitoral de 1950, em Verapaces, na Guatemala.

A história guatemalteca depois da guerra reúne os principais traços da época, que ali se manifestam de forma exasperada por ser a Guatemala um dos países onde os problemas que então a caracterizaram eram mais complexos. Ela se destacava pela rigidez da segmentação social, que separava a maioria indígena das oligarquias crioulas. Mas também pela elevada concentração da terra, pela pobreza generalizada e pela

dependência dos produtos tropicais para a exportação. Como em outras partes da América Central, esses produtos eram em sua maioria explorados pelas grandes companhias estadunidenses, neste caso a United Fruit Company. Esta havia criado alguma infraestrutura moderna útil aos seus interesses, mas aqui possuía também enormes extensões de terras praticamente livres do controle do Estado. À semelhança de outros países, também a Guatemala viveu então um período de democratização e integração social. Em 1944, com o fim da longa ditadura que a dominara nos anos 1930, instalou-se um governo constitucional que estendeu a participação política às mulheres e aos analfabetos. Presidente desde 1951, o coronel Arbenz protagonizou uma mudança radical, elaborando uma reforma agrária com o objetivo de recuperar parte das terras da United Fruit para distribuí-la entre os camponeses. A companhia se opôs a essa medida com toda a sua imensa força, criando um contencioso indenizatório com o governo dos Estados Unidos, apinhado de personagens vinculados à empresa. No entanto, do mesmo modo que em outros lugares, também na Guatemala a democracia logo se revelou frágil, por um lado sujeita à reação social das elites, e por outro à crescente tendência do governo a monopolizar o poder, pressionando a imprensa, os sindicatos e o Parlamento. Como consequência, no contexto da Guerra Fria, Eisenhower passou a considerar a Guatemala um caso típico de fusão entre nacionalismo e socialismo. Isto é, de uma posição que na ótica do seu governo parecia uma evidente ameaça comunista, que se tornou ainda mais suspeita pelo papel assumido pelo pequeno partido comunista local a favor de Arbenz. Daí à decisão de ordenar uma ação contra ele, conduzida por uma facção de militares guatemaltecos apoiados e financiados pelos serviços secretos estadunidenses, faltava apenas um passo, finalmente dado em 1954. Esse desfecho leva em geral a considerar o caso como o único de efetivo roll back bem-sucedido à época. Nem por isso, porém, os Estados Unidos puderam cantar vitória pela ordem restabelecida, seja porque a Guatemala nunca mais deixou de ser um foco de instabilidade, seja porque esse precedente conferiu características ainda mais radicais ao processo que ocorreu na sequência, o caso de Cuba. Bibliografia Bethell, Leslie e Roxborough, Ian (edited by), Latin America between the Second World War and the Cold War, 1944-1948, Cambridge-New York: Cambridge University Press, 1992. Dosman, Edgar J., The life and times of Raúl Prebisch, 1901-1986, Montreal: McGill-Queen’s University Press, 2008. Gleijeses, Piero, Shattered hope: the Guatemalan revolution and the United

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8. Os anos 1960 e 1970: o ciclo revolucionário 1. O período da revolução Da revolução cubana de 1959 à revolução sandinista na Nicarágua vinte anos depois, a América Latina viveu um longo ciclo revolucionário, no sentido de que os diversos movimentos eclodiram em ritmo acelerado. Mas ainda mais no sentido de que a revolução se tornou a palavra-chave da época, invocada por todos para legitimar o próprio pensamento e a própria ação, o horizonte para o qual a região inteira parecia dever orientar-se. Com efeito, os revolucionários – por definição – invocaram a revolução, a socialista, mas nacional. Também a invocaram os reformistas, para dar a entender como pretendiam extirpar a ordem existente; a começar pelo Chileno Eduardo Frei, talvez o mais importante deles, que assumiu o governo em 1964 anunciando a Revolução em Liberdade. Por paradoxal que possa parecer, invocaram-na até mesmo os que fizeram de tudo para combatê-la, de modo especial os regimes militares que surgiram em grande número a partir de meados dos anos 1960 e que, como se verá no próximo capítulo, não se limitaram à contrarrevolução, mas se propuseram a desencadeá-la revolucionando também eles a ordem política e social. O próprio fato de que a revolução se tornou a palavra-chave é por si só indicativo de muitas coisas. A primeira é que as grandes transformações sociais e econômicas ocorridas durante e depois da guerra e que continuaram em ritmos velozes ao longo de grande parte dos anos 1960 exigiam respostas que não haviam ainda chegado, haviam chegado atrasadas ou não foram suficientes. A segunda é que de novo, como nos anos 1930 e depois em 1945, na maioria dos casos as instituições democráticas não pareciam adequadas a dar essas respostas, nem aos revolucionários nem aos seus opositores. Tanto nos países em que, depois da guerra, uma guinada autoritária e conservadora contivera a democratização, quanto naqueles onde regimes populistas prevaleceram, em geral essas instituições se revelaram ineficazes. No primeiro caso porque a demanda de participação acumulada e por tanto tempo reprimida tendeu a atropelá-las. No segundo porque a lógica do confronto amigo-inimigo típica dos populismos as havia reduzido a escombros. A terceira razão é que a força do horizonte revolucionário evidenciava a grande vitalidade, em amplas faixas da população de vários setores, de um imaginário político palingenésico. Isto é, de

ideologias que aspiravam a criar uma comunidade coesa e harmônica, para as quais a democracia era um conceito social, qualquer que fosse a forma política que assumisse. Por isso, essas ideologias se comprometiam a sanar as profundas fissuras sociais não com as ferramentas embotadas da democracia parlamentar, mas com a força da violência revolucionária. Em suma, uma espécie de catarse religiosa. Nesse sentido, a revolução que acendeu o estopim foi a cubana; seja porque, de modo particular nos primeiros anos, procurou exportar o próprio modelo – a guerrilha – financiando ou adestrando os grupos decididos a tomar esse caminho, seja pela imitação que estimulou em muitos países. Seria, porém, equivocado afirmar que ela fosse o único fulcro de um fenômeno, a revolução, que teve raízes endógenas e antigas um pouco em toda parte. Além disso, ela assim procedeu no momento mesmo em que a onda autoritária iniciada na década anterior estava em pleno refluxo – quando a maioria dos países atingidos restabelecia governos constitucionais: do Peru à Colômbia, da Venezuela à Argentina. Estes alcançavam assim aqueles que haviam se mantido incólumes. Em resumo, com a queda de Fulgencio Batista em Cuba, restaram poucas ditaduras propriamente ditas, e todas em países pequenos e atrasados, como Paraguai, Haiti, Nicarágua e El Salvador. Em pouco tempo, uma extensa e poderosa onda de convulsões políticas e sociais levou grande parte das democracias à derrocada, inclusive as antigas e sólidas do Chile e do Uruguai. Essas convulsões não se expressaram apenas por meio das guerrilhas, a ponta mais visível de um iceberg de base muito maior, feita de grandes mobilizações e lutas sociais. Os protagonistas dessas revoltas foram acima de tudo os estudantes e os trabalhadores urbanos, empregados ou não, e em alguns casos também os camponeses sem terra, especialmente nos países de maioria indígena ou mestiça onde a questão rural e a indígena tendiam a se sobrepor cada vez mais. De fato, as primeiras guerrilhas foram rurais e inspiradas nos acontecimentos em Cuba, através da doutrina do “foco guerrilheiro” elaborada por Ernesto «Che» Guevara, o médico argentino que desempenhara um papel de suma relevância ao lado de Fidel Castro. Segundo essa doutrina, a vontade e a motivação ideológica de um núcleo de combatentes decididos e disciplinados seria suficiente para produzir nos campos da região, vítimas de graves injustiças, a faísca capaz de desencadear o incêndio revolucionário. Ou seja, sem atender, portanto, às “condições objetivas” pressupostas pelo marxismo clássico para esse fim. Essas guerrilhas, surgidas não por acaso em países onde os movimentos populistas não haviam encontrado saída e a integração social e política das massas permanecera contida, fracassaram em toda parte: na Guatemala, no Peru, na Venezuela e na Bolívia, onde o próprio Guevara foi assassinado em 1967.

Ernesto Che Guevara foi aprisionado e depois assassinado em La Higuera, na Bolívia, em outubro de 1967.

As razões desses fracassos foram inúmeras e distintas de um país para outro. Entre elas destacam-se: a dura reação dos governos e dos militares locais apoiados pelos Estados Unidos; as condições em geral diferentes daquelas que as favoreceram em Cuba e, como decorrência, a dificuldade de ser aceitas pela população; as divisões entre os revolucionários, em muitos casos hostilizados pelos partidos comunistas locais, contrários ao que consideravam como estratégias aventureiras, precursoras de repressões violentas. Apenas na Nicarágua, nos anos 1970, criaram-se as condições para que uma dessas guerrilhas obtivesse sucesso, quando a ditadura da família Somoza acabou se isolando dos aliados internos e externos, até finalmente cair em 1979 sob os ataques da grande frente oposicionista dirigida pelos sandinistas. Nos anos 1970, enquanto os movimentos armados de cunho rural se extinguiam ou definhavam, outros novos surgiam, agora nos países mais desenvolvidos da região, em geral de base urbana e via de regra estudantil, mas não só. Em alguns casos, derivaram dos velhos movimentos populistas e se opunham aos regimes militares, como os Montoneros argentinos; e como os grupos que surgiram no Brasil entre os anos 1960 e 1970, mas ligados ao partido comunista. Ou então resultaram da decepção com o reformismo dos partidos tradicionais, como o Tupamaros uruguaio. Não obstante, nem esses tiveram êxito, ou se o tiveram num primeiro momento, depois pagaram com juros, ou

seja, sofrendo repressões violentas. Em geral, no entanto, o que esses movimentos indicavam, era a força e a persistência dos populismos, pois em doses diversas e de formas mais radicais do que no passado, estes costumavam propor uma mescla de marxismo e nacionalismo, autoritarismo político e democracia social.

Selo postal em homenagem à reforma agrária, Peru, 1969.

Aliás, inúmeros são os exemplos da vitalidade do populismo como reação às transformações e aos conflitos então em curso: desde o governo de João Goulart no Brasil, o velho ministro de Getúlio Vargas deposto pelos militares em 1964, até o retorno triunfal de Juan Domingo Perón ao poder em 1973, na Argentina, onde morreu um ano depois; da presidência de Luis Echeverría no México, nos anos 1970, que respondeu à carnificina com que o seu antecessor reprimira os protestos de 1968 com a tentativa de reanimar a tradição revolucionária do regime, ao caso mais atípico e fecundo de consequências: a vitória eleitoral de Salvador Allende no Chile, em 1970, e a coalizão de partidos marxistas e radicais por ele formada. Por outro lado, de tendência semelhante, embora expressa de modos e formas diversas, foram os numerosos populismos militares que efervesceram naqueles anos em muitos países onde até então o populismo havia malogrado. Regimes militares ou, melhor dizendo, ditaduras, mas impregnados de nacionalismo e defensores da integração social das massas. Isso foi o que aconteceu no Peru do general Velasco Alvarado, com sua reforma

agrária, e no Panamá do general Omar Torrijos, que se propôs a melhorar as condições da população reassumindo a soberania sobre o Canal e a riqueza por este produzida.

Fidel Castro e a revolução cubana A revolução que chegou ao poder em Cuba no dia 1º de janeiro de 1959, liderada por Fidel Castro, teve diversas causas que fazem dela um caso peculiar no panorama das revoluções socialistas do século XX. Entre elas destaca-se a questão nacional, isto é, o problema não resolvido da independência cubana e das relações com os Estados Unidos a partir de 1898, quando a ilha se emancipou da Espanha apenas para cair sob uma espécie de protetorado político, econômico e militar estadunidense. Uma segunda causa importante decorre da grave questão social: mesmo logrando indicadores discretos para os padrões de vida da América Latina, a expansão do cultivo da cana de açúcar e das relações de produção capitalistas nos campos havia transformado grande parte dos camponeses em boias-frias, desocupados durante grande parte do ano, quando o trabalho na lavoura era interrompido. Mais do que pelo atraso e pela pobreza, portanto, a revolução foi desencadeada pelos efeitos das profundas transformações em andamento na estrutura social cubana. O peso do capital estadunidense na economia da ilha transformou a questão social e a questão nacional em lados de uma mesma moeda. A essas causas somou-se a partir de 1952 uma explosiva questão política, quando o golpe de Fulgencio Batista obstruiu os já frágeis canais da democracia representativa e impeliu à insurreição a geração de jovens nacionalistas que assomavam ao cenário político. Nos anos seguintes, Batista consolidou-se como um dos mais fiéis aliados da administração Eisenhower na região, com o que também a questão política tendeu a confluir com a nacional, prenunciando o confronto entre o regime revolucionário e os Estados Unidos.

Fidel Castro e outros combatentes, responsáveis pelo assalto ao quartel de Moncada, chegando à cadeia de Santiago de Cuba, em julho de 1953.

Às causas estruturais reuniu-se outra, também de caráter decisivo: nesse imenso palheiro prestes a arder, a carismática figura do jovem Fidel Castro teve o efeito de um fósforo que precipitou o incêndio. As principais e célebres etapas que a partir de então até 1959 acompanharam a marcha triunfal da revolução estão todas ligadas ao seu nome: do malogrado ataque ao quartel Moncada em 1953 à posterior fundação do Movimento 26 de Julho, da expedição do Granma em novembro de 1956 à criação de um foco guerrilheiro em Sierra Maestra, onde ele e outros “barbudos”, dentre os quais se distinguiriam os comandantes Raúl Castro, Ernesto «Che» Guevara e Camilo Cienfuegos, lançaram os fundamentos do sucesso militar e da nova ordem revolucionária. Mas numerosas outras forças e fatores contribuíram para a vitória da revolução, especialmente a extrema polarização causada pelo governo autoritário de Batista e sua brutal violência. Com o tempo, essa realidade possibilitou aos guerrilheiros da Sierra, hábeis em invocar um programa político e um ideário genericamente nacionalistas e democráticos, atrair a si e reunir – em torno da inevitabilidade da via insurrecional e da preeminência da guerrilha rural sobre a luta de massa nas cidades – as forças mais diversas e díspares: dos estudantes do Diretório Revolucionário às organizações do laicato católico, dos homens de ponta dos partidos tradicionais aos comunistas do Partido Socialista Popular, antes hostis ao método castrista, dos liberais

estadunidenses aos democratas latino-americanos, avessos os primeiros ao conúbio entre a Casa Branca e os ditadores da América Latina, decididos os segundos, de modo particular o venezuelano Rómulo Betancourt, a purgar a área dos caudilhos militares que ainda a contaminavam.

Ernesto Che Guevara e Camilo Cienfuegos, no início de 1959. Foto: Oficina de Assuntos Históricos de Cuba.

Muitos desses, no entanto, abandonaram a revolução ou foram marginalizados e acabaram combatendo-a quando Castro, após uma primeira fase em que concordou com a formação de um governo moderado, enveredou decidido pelo caminho da revolução social e do antiimperialismo militante, interna e externamente, abandonando o compromisso de restaurar a democracia parlamentar e o império da Constituição de 1940. Até que ponto essa conduta fazia parte dos ideais dos líderes revolucionários e das condições estruturais da ilha e até que ponto constituía uma reação à obsessão estadunidense de renovar a tutela sobre os destinos de Cuba é matéria de infinitas polêmicas historiográficas e políticas. O certo é que a revolução adotou reformas econômicas, sociais e políticas que com o tempo se aproximaram sempre mais do modelo socialista, coroadas pela adesão explícita aos princípios do marxismoleninismo e à versão soviética da Guerra Fria depois da tentativa de invasão da Baía dos Porcos patrocinada pelos Estados Unidos em abril de 1961. No terreno econômico, o governo revolucionário procedeu à nacionalização das indústrias e dos serviços e à realização de uma reforma agrária radical: em poucos anos, o Estado assumiu o controle dos meios de

produção. No entanto, o projeto direcionado à industrialização da ilha e à diversificação da economia não produziu os resultados esperados. Com o embargo estadunidense agravando ainda mais a situação, Cuba não teve outra saída senão integrar-se ao COMECON e confiar-se às generosas subvenções soviéticas. No setor social, a revolução atuou movida por uma radical inspiração igualitária, seja na política salarial e ocupacional, seja no esforço, em geral bem-sucedido, de melhorar e universalizar o acesso à educação pública e aos serviços sanitários. No âmbito político, os revolucionários cubanos imaginaram a instituição de uma democracia popular ou direta, alimentada pela força moral do “homem novo” renascido da catarse revolucionária. Uma democracia muito semelhante, em substância, àquela hostil ao pluralismo dos outros populismos latino-americanos. Com esse fim, conceberam um sistema de participação política alternativo à detestada “democracia burguesa”, criando inúmeras organizações de massa: desde Comitês de Defesa da Revolução até a Federação das Mulheres Cubanas, da União dos Pioneiros à Federação Estudantil, e assim por diante. Rapidamente, porém, com o enfraquecimento fisiológico do espírito revolucionário e diante da necessidade de fazer funcionar a máquina do Estado e da economia, os organismos do chamado “poder popular” perderam o verniz e a espontaneidade, tornando-se em geral órgãos através dos quais ramificaram-se o poder e o controle social do partido comunista cubano, único admitido. À medida que foi se institucionalizando, portanto, o regime político da revolução cubana assumiu os traços típicos dos regimes socialistas de partido único e de ideologia de Estado. Esse regime foi sancionado pela Constituição de 1976 e novamente pela reforma constitucional de 2002, que define como “irreversível” a via socialista adotada por Cuba. Filha em grande parte de uma “questão nacional” gangrenada, porém, a revolução cubana, mesmo sob o grosso manto do regime socialista, nunca abandonou por completo a sua matriz populista originária.

2. O desenvolvimento distorcido e os conflitos sociais O que diz respeito à esfera política, na qual as instituições democráticas, por motivos históricos e contingentes, foram em quase toda parte atropeladas pela polarização entre revolução e contrarrevolução, aplica-se com maior razão às esferas econômica e social, nas quais as tendências amadurecidas após a guerra, e que tanto explicam o paiol de pólvora em que a América Latina foi se transformando cada vez mais, não só não se aplacaram, como chegaram à culminância entre o início dos anos 1960 e a metade dos anos 1970. Inúmeros

aspectos caracterizam esse período como o mais dramático da história latinoamericana no século XX, anos em que também as lutas sociais romperam as barreiras institucionais e os modelos de desenvolvimento foram em muitos casos impostos manu militari. Durante todo o período, o crescimento econômico continuou sendo bastante fraco: um pouco mais alto do que nas duas décadas anteriores, em termos absolutos, mas insatisfatório, considerando que também a população aumentou. Aliás, somente na segunda metade dos anos 1970 foi que a taxa de incremento populacional começou a declinar, dando os primeiros sinais de modernização demográfica. Para resumir, o nível médio de crescimento da economia mantevese em torno de 2% ao ano: muito pouco para uma região onde as massas se debatiam em busca de emprego e as expectativas de ascensão social das classes recém-urbanizadas permaneciam quase sempre frustradas. Como no passado, a indústria progredia, mas a agricultura estagnava, provocando o êxodo rural. O setor que mais se desenvolveu foi o dos serviços, o chamado setor terciário; como já se mencionou, este não era índice de modernidade, mas na maioria dos casos fornecia um parâmetro da expansão do aparato público ou do crescimento de empregos marginais e não produtivos. Em síntese, não eram os setores produtivos que cresciam, o que dizia muito sobre os déficits estruturais dessas economias e também sobre sua incapacidade de absorver mão-de-obra, tanto a não qualificada que, oriunda das zonas rurais, amontoava-se em favelas de barracos nos arredores das cidades; quanto a especializada e escolarizada que frequentava as universidades, em muitos países ao alcance de grande parte das classes sociais urbanas e onde, não por acaso, tiveram origem os conflitos mais violentos e as ideologias mais radicais. Com relação à mão-de-obra especializada, consolidou-se na América Latina um perfil social peculiar, mais semelhante àqueles das outras áreas periféricas do que à típica pirâmide das sociedades europeias; um perfil em que o proletariado urbano não ocupava os escalões mais baixos da escala social, onde se situavam as multidões do subproletariado, que cresceu em toda parte e por vezes muito rapidamente a partir de 1960. Em outras palavras, eram marginais que se caracterizavam não só pela renda exígua, pela etnia ou por serem em grande parte jovens analfabetos de origem rural recente, mas de modo especial por serem substancialmente estranhos às instituições públicas – emblema, portanto, da incapacidade destas de integrar as novas massas – a ponto de se costumar classificá-los como setor informal. Por outro lado, no que se refere aos estudantes, embora as diferenças de um país para outro continuassem enormes, e houvesse um verdadeiro abismo entre os extremos da Argentina, Uruguai e Cuba, de um lado, e da Guatemala e Haiti, de outro, era possível identificar algumas tendências comuns em toda a região. Entre essas destaca-se o fato de

que em toda parte a população escolar cresceu a um ritmo muito maior do que a população em geral e de que esse aumento ocorreu principalmente nos ensinos médio e superior. Outro detalhe importante é que a urbanização não estancou; pelo contrário, tornou-se ainda mais impetuosa, esvaziando os campos e superpovoando perigosamente as cidades. Tanto que, se em 1960 a população urbana, segundo diversas estimativas, girava em torno de 50%, vinte anos depois saltava para mais de 63%. Também é preciso acrescentar que o caudaloso fluxo de capitais estrangeiros investidos nesses anos nas economias da região, mais do que duplicados em comparação com as duas décadas anteriores, ampliou a dependência, ou pelo menos aguçou a percepção de que esse era o efeito. Assim, embora ocorressem também recaídas virtuosas em termos de emprego e transferências tecnológicas, essa sensação de dependência alimentou depois o nacionalismo anti-imperialista das correntes revolucionárias. Além disso, no campo, as numerosas reformas agrárias introduzidas no início dos anos 1960, em geral estimuladas pela Aliança para o Progresso lançada pela administração Kennedy, criaram diversas expectativas, na sua grande maioria frustradas, porém, dada a resistência dos grandes latifundiários. Por fim, a concentração da riqueza, longe de diminuir, aumentou ainda mais, em alguns casos chegando a extremos sem precedentes em outros lugares. Como no Brasil dos anos 1970, onde os 5% mais ricos da população detinham pouco menos da metade da riqueza nacional, em comparação com os apenas 3,4% nas mãos dos 20% mais pobres. No entanto, seria parcial um panorama econômico e social dos anos 1960 e 1970 restrito a esses elementos. Por isso, serão abordados no próximo capítulo alguns aspectos até agora mantidos à margem. O que importava aqui era ressaltar os fatores de instabilidade, capazes de provocar verdadeiras implosões e que, como se vê, não faltaram. Do mesmo modo que sobejaram grandes e crônicos conflitos sociais. Estudantis, como já se disse, nas principais cidades da América Latina: de Córdoba, na Argentina, onde os protestos de 1969 tiveram papel crucial para dobrar o regime militar do general Juan Carlos Onganía, à Cidade do México, onde as reivindicações romperam a couraça do regime instalado pela revolução, o qual encontrou sua melhor saída no uso da violência. Além dos estudantis, ocorreram também conflitos rurais, deflagrados em nome da recuperação de terras comunitárias ou da distribuição de grandes propriedades improdutivas; frequentemente liderados por novos e amplos movimentos campesinos, às vezes dirigidos por líderes sindicais ou dirigentes comunistas e com frequência ainda maior por sacerdotes ou leigos à testa de movimentos católicos, inclusive da Ação Católica. Emblema desses conflitos foram as organizações camponeses que se desenvolveram no nordeste do Brasil,

o movimento surgido em Cuzco no Peru e os que se difundiram no México nos anos 1970, além dos sindicatos rurais que amadureceram no Chile durante a reforma agrária, e muitos outros. Por fim, conflitos industriais, de modo especial nas indústrias de mineração do Chile, do Peru e da Bolívia, mas também onde os sindicatos haviam se expandido à sombra do Estado no período dos populismos, como na Argentina, no Brasil e no México. Como se verá, todos esses movimentos foram contidos pela onda contrarrevolucionária que varreu a região com força crescente naqueles anos. A eles acrescentam-se duas dimensões em grande parte novas e destinadas a assumir maior importância no futuro. A primeira é o indigenismo, entendido como movimento de reivindicação política e cultural de uma comunidade étnica e cultural específica, de origem pré-colombiana, gerado no seio de alguns grupos rebeldes, de modo especial na Bolívia. A segunda é o feminismo: mais político e intelectual, mas também minoritário, entre as mulheres instruídas das classes médias; mais cultural e espiritual, por isso quase sempre tradicionalista, entre as dos setores populares, muito mais influentes nas correntes populistas.

3. Estruturalismo, “desenvolvimentismo”, teoria da dependência Do final dos anos 1950 ao final dos anos 1970, nasceram, amadureceram e começaram a fenecer as premissas intelectuais e as consequências políticas do pensamento econômico elaborado no pós-guerra por Raúl Prebisch e pela CEPAL. Esse pensamento, é bom lembrar, apontava a estrutura do mercado mundial – daí o nome estruturalismo – como o principal obstáculo ao desenvolvimento da periferia, da qual a América Latina fazia parte. No entanto, ao longo dessa trajetória, o estruturalismo também sofreu profundas críticas e mudanças significativas, devidas em grande parte às correntes que mais impregnaram – imiscuindo-se e muitas vezes confundindo-se – o panorama ideológico da região nos anos 1960 e 1970: o nacionalismo e o marxismo. Num primeiro momento, a corrente estruturalista assumiu na América Latina a forma do denominado desarrolismo, para usar a palavra espanhola: uma teoria do desenvolvimento econômico que inspirou vários governos, entre os quais se sobressaem os de Juscelino Kubitschek no Brasil, entre 1956 e 1961, e o de Arturo Frondizi na Argentina, entre 1958 e 1962. Os primeiros esforços de integração comercial então realizados levavam profundas marcas dessa teoria: a Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC) e o Mercado Comum Centro-Americano (MCCA), ambos criados em 1960, a Comunidade Andina de Nações (CAN) de 1969, entre outros. Como os populismos que os haviam precedido ou que em outros lugares lutavam para impor-se, também estes alicerçavam o desenvolvimento na indústria, no papel motor do Estado e na proteção e expansão do mercado interno. Diferentemente daqueles, porém,

que haviam feito da distribuição da riqueza o fulcro da própria ideologia, a ponto de às vezes sacrificar a sustentabilidade econômica, o desenvolvimentismo encontrava o seu principal objetivo político e a fonte da sua legitimidade no desenvolvimento, chegando inclusive a desdenhar a típica submissão populista da economia à política e de professar as virtudes da tecnocracia. Vale dizer, da atitude do governo de separar a economia dos condicionamentos da política. Exemplo típico nesse sentido, por exprimir esse espírito melhor do que qualquer outro, foi o louvável compromisso do presidente Kubitschek e do arquiteto Oscar Niemeyer de construir Brasília segundo os critérios da racionalidade e da funcionalidade. Brasília, a nova capital do Brasil desde 1960, está localizada no coração do território brasileiro, e por isso erigida em símbolo de projeção para o interior da sua vida nacional, e não mais para o exterior. Em pouco tempo, porém, o desenvolvimentismo se tornou alvo de muitas críticas. Os liberais o recriminaram por afrouxar e distorcer as leis do mercado com um forte intervencionismo estatal. Mas a voz liberal era tão fraca naqueles anos, que não conseguiu produzir consequências mais relevantes. Muito mais contundente foi a crítica marxista, que o acusava em primeiro lugar de manterse totalmente na esfera da economia capitalista, um fato indubitável, pois o desenvolvimentismo se propunha a desfrutar da melhor maneira possível as oportunidades do mercado mundial, e não lhe virar as costas em nome do socialismo. A fórmula para isso consistia de modo especial em atrair, como de fato atraiu, o maior volume possível de capitais externos para expandir a indústria nacional e tornar o mercado interno mais autônomo. Essa intenção se materializou com a instalação das grandes empresas automobilísticas nos principais países latino-americanos. Por fim, a crítica marxista se sobrepunha a crítica nacionalista, que acusava o desenvolvimentismo de reproduzir as feições do desenvolvimento ocidental sem propor uma via adequada para a América Latina e, portanto, de operar como instrumento de perpetuação do domínio imperialista.

Vista da cidade de Brasília em construção. A obra começou em 1956, com Lúcio Costa como urbanista e Oscar Niemeyer como arquiteto.

Na metade dos anos 1960, essas críticas deram origem à teoria da dependência, manancial de que sorveram todas as correntes revolucionárias da época, de uma forma ou de outra. Com o tempo, essa teoria adotou diferentes expressões, algumas mais ligadas à tradição marxista clássica; outras, como a representada pelo sociólogo brasileiro Fernando Henrique Cardoso, mais ecléticas e reminiscentes do estruturalismo. Desde o início, a teoria da dependência se apresentou como um esforço para harmonizar marxismo e nacionalismo e para orientar o desenvolvimento da América Latina na direção do horizonte revolucionário do socialismo. Essa tarefa fundamentava-se na análise das “estruturas de dominação” presentes nas sociedades latinoamericanas e no estudo das relações entre a doutrina leninista e o imperialismo. Como consequência, os teóricos da dependência conduziram duras batalhas contra os intelectuais de outras escolas: contra os liberais, em primeiro lugar, condenando a sua teoria das vantagens comparativas por inibir a industrialização da região; contra os teóricos da modernização que bem nessa época inspiravam a Aliança para o Progresso, tanto por proporem o caminho dos países ocidentais mais avançados como modelo, quanto por estabelecerem um vínculo entre modernização e democracia que a América Latina parecia desmentir. No entanto, se foram eficazes no terreno crítico, impregnando o clima intelectual da época com suas concepções, foram bem menos persuasivos no plano propositivo. Depois de concluir que o socialismo era a única via de saída das estruturas injustas da economia mundial, não conseguiram especificar

nem esclarecer que tipo de socialismo tinham em mente nem de que modo chegar a ele, razão pela qual suas ideias se prestaram a propostas de soluções utopistas e a inúmeras vulgarizações.

4. A guerra civil ideológica: a frente revolucionária Nas décadas de 1960 e 1970, a América Latina foi tomada por uma espécie de guerra civil ideológica, ou seja, por um violento confronto entre visões de mundo inconciliáveis. Todas elas estavam convencidas de que até que não se impusessem às adversárias, a paz e a justiça não seriam alcançadas; uma convicção, aliás, também reinante em outras partes do mundo; e à semelhança do que acontecera nos anos 1930, embora, na América Latina, de forma mais intensa do que naquela década. Dadas as dimensões de massa a que a sociedade já chegara e o boom da escolarização, e considerando as diferenças cada vez mais profundas de um país para outro, é compreensível que o panorama ideológico fosse muito variado, embora preservando algumas características comuns. Neste capítulo, examinamos essas características na sua perspectiva revolucionária, deixando para o próximo a análise da sua faceta contrarrevolucionária. Em termos gerais, já vimos que a nota dominante para os revolucionários da época foi o apelo ao marxismo, embora se tratasse de um marxismo “latinoamericanizado”, na esteira aberta muitos anos antes por José Carlos Mariátegui e da difusão, a partir dos anos 1960, da obra de Antonio Gramsci. Na busca de uma via nacional ao socialismo, porém, os marxistas da América Latina muitas vezes de apropriaram de alguns traços da tradição nacionalista. Esta, por sua vez, à medida que aumentavam os conflitos sociais e se encerrava o ciclo populista, engolido por uma nova onda de militarismo, descobriu inúmeros pontos de contato com o marxismo, ou com os que o professavam. Por isso, é tarefa difícil avaliar caso a caso até que ponto o marxismo se nacionalizou e quanto o nacionalismo se impregnou de marxismo. Entre outras coisas, essa ambiguidade aguçou a obsessão pela difusão do comunismo na região, o qual, cúmplice da Guerra Fria, levou seus inimigos a recorrer cada vez à brutal violência repressiva. Assim, a impressão é que essa mescla radical de marxismo e nacionalismo reproduziu na realidade, embora de formas inéditas e de modo inconsciente, uma antiga e profunda essência do universo ideal latino-americano, possível de constatar na tendência ao monopólio do poder e na aversão ao pluralismo político em nome da homogeneidade do povo; na hostilidade para com as formas e os procedimentos do Estado de direito e da democracia liberal, condenada porque formal, e na contraposição a esta de uma democracia substancial genérica, fruto da igualdade imposta pela revolução; por fim, na

prevalência de um imaginário ético e não pragmático, baseado na fé e na vontade, mais do que na razão e na convicção, aspectos esses já observados nos populismos, herdeiros por sua vez da antiga concepção social organicista na sua essência holística. Holística, um termo complexo, mas que exprime melhor do que qualquer outro a pulsão recorrente, tão forte na história política e intelectual da América Latina, a conceber a ordem social como uma totalidade. Isto é, como um todo maior do que as suas partes, no caso os indivíduos, que, portanto, são implicitamente sacrificáveis: em nome da revolução, que purificaria essa ordem, ou então da contrarrevolução, que expeliria o vírus revolucionário. A tal ponto que essa pulsão de origens antigas, mas muito profundas, pode ser rastreada nesses anos tanto nas correntes revolucionárias como nas contrarrevolucionárias. Típico, nesse sentido, foi o guevarismo, a corrente marxista inspirada em “Che” Guevara que desfrutou de relativa aceitação em toda a região e que, mais do que qualquer outra, encarnou a via latino-americana da revolução. Ela se distinguia do marxismo científico soviético e também do rural chinês, tendo maior afinidade com este, porém; além disso, distanciava-se ainda mais dos socialismos em voga na Iugoslávia, na Albânia e nos partidos comunistas da Europa ocidental ou da própria América Latina. O que de fato mais a afastou da ortodoxia marxista não foram os seus elementos fundamentais – a socialização dos meios de produção, a planificação econômica, a ditadura do proletariado, o anti-imperialismo e assim por diante, todos elementos que Guevara compartilhou e professou, imputando ao regime soviético o fato de tê-los traído ou adulterado -, mas o apelo à ética e à vontade como principais motores da revolução, potentes o suficiente para romper os vínculos com a aparência impostos pela realidade e pela razão. Esse ideário o transformou no apóstolo do “homem novo”, um homem que a revolução purificava de egoísmos e imperfeições, à semelhança daquele outro, redimido do pecado e da escravidão das paixões, tão caro à tradição cristã. De tal modo que o próprio Guevara e o sacrifício da sua vida em combate se tornaram o mais sólido trait d’union simbólico entre marxistas e católicos, cujo encontro foi então frequente e intenso, a tal ponto que impregnou todo o panorama ideológico da época. Um encontro, aliás, inerente ao cruzamento geral do marxismo com o nacionalismo, do qual o catolicismo era o baluarte ideal mais firme e consistente. Ideologias de origem marxista e nacionalista encontraram muitos pontos de contato importantes no boom da sociologia e na enorme influência exercida sobre elas na América Latina, de modo direto ou indireto, pelos sociólogos católicos ou marxistas da Europa e dos Estados Unidos. Do mesmo modo que a teoria da dependência e da distinção entre democracia formal e substancial que povoou então a literatura revolucionária, o auge da sociologia confirmou e de

fato refletiu a firme convicção de ambas as correntes de que os males e as soluções dos conflitos e das injustiças que grassavam na América Latina residiam nas suas estruturas sociais, e de que as instituições políticas eram superestruturas, puros reflexos das relações de dominação social. De tal modo que a linguagem estruturalista, tão familiar aos intelectuais marxistas, impregnou naquele clima os próprios documentos da Igreja, que denunciou, através do episcopado latino-americano reunido no Conselho Episcopal LatinoAmericano (CELAM), as injustiças estruturais das sociedades da região.

5. Uma Igreja dilacerada As convulsões que sacudiram a Igreja e o catolicismo da América Latina entre os anos 1960 e 1980 são fatores fundamentais para se compreender o panorama político e ideológico; e ainda mais para se entender as profundas fissuras e traumas que a dilaceraram. Vários elementos causaram esses abalos, a começar pelos conflitos desencadeados pela modernização; esta, trazendo à superfície as violentas fraturas sociais da região, interpelava a Igreja, que sempre se erigira em guardiã e defensora da sua unidade e harmonia. Essa época de grandes mudanças não deixava ilesa nem mesmo a Igreja, seja porque a secularização que começava a se instalar nos centros urbanos a obrigava a repensar os próprios métodos de apostolado e as relações com as diversas classes, ou porque os distúrbios sociais colocavam em crise a sua vida interna, isto é, a relação da hierarquia com os fiéis e com o próprio clero. O catalisador das mudanças já em curso foi o Concílio Vaticano II, realizado em Roma entre 1962 e 1965, que por isso se constituiu num poderoso instrumento de renovação nesse continente católico. As populações, os governos e as próprias Igrejas locais da América Latina foram aos poucos tomando consciência da importância da Igreja, fato que não impediu que ela provocasse um grande alvoroço entre os católicos e, por reação, entre os setores e as instituições que a consideravam o baluarte da ordem. A esse sobressalto seguiu, em 1968, o grande estrondo dos documentos aprovados pelo CELAM na assembleia de Medellín. Esses documentos, redigidos numa linguagem inédita e em tom radical, especialmente em matéria social, não só abalaram as bases dessas Igrejas, mas também produziram um enorme impacto sobre os Estados e as sociedades da região. Concluído o Concílio, boa parte do clero latino-americano aderiu à onda da renovação por ele levantada, procurando quebrar a obstinada resistência das hierarquias eclesiásticas. Esse grupo era constituído de jovens prelados versados em sociologia ou de religiosos mobilizados pelo contato quotidiano com ambientes operários e estudantis ou com condições sociais intoleráveis.

Por outro lado, a idade de ouro da revanche católica contra o liberalismo já ficara para trás, e nas sociedades onde o rápido crescimento da indústria moldava um perfil de massa e a influência de ideologias estranhas ao catolicismo se alastrava, os métodos de evangelização e a ação pastoral, tão eficazes trinta anos antes, já se mostravam inadequados. Como na Europa, muitos sacerdotes e leigos adotaram a perspectiva classista e a crítica social, absorvidas nas fábricas onde exerciam o apostolado e onde a voz da Igreja muitas vezes soava distante. Em muitos casos, porém, essas experiências esbarraram na censura das autoridades eclesiásticas, que refrearam a crescente demanda de reformas sociais e eclesiais, embora em alguns países, como Colômbia e Argentina, bem mais do que em outros, como Brasil e Chile, onde as hierarquias se mostraram mais flexíveis e receptivas. Pois bem, o Concílio legitimou em boa medida essas mudanças, atribuindo um novo papel ao laicato católico e acolhendo o espírito de muitas iniciativas sociais até então suspeitas de heresia, uma atitude que não suprimiu as resistências, porém, nem deteve a radicalização do catolicismo progressista. A tal ponto que a Igreja se viu com frequência dividida entre duas trincheiras, a da guerra ideológica e a da política então em curso. No entanto, para compreender o impacto do Concílio na América Latina, é preciso levar em consideração o cenário internacional em que ele se destaca. O clima criado na região pela revolução cubana e a tendência dos Estados Unidos a não poupar esforços para combater o comunismo insuflaram renovado vigor no nunca domesticado antiimperialismo católico. Este fincava raízes profundas e jamais havia digerido a aliança anticomunista entre a Santa Sé e os Estados Unidos, considerando-a como a única ameaça que pairava sobre a América Latina. A propósito, esse anti-imperialismo católico não deixou de encontrar um terreno fértil comum com o marxismo, como se viu na incessante busca de uma “via latinoamericana” ao socialismo. Na realidade, não se pode dizer que os religiosos progressistas representassem a maioria do clero. E entre esses, nem todos concebiam a renovação do mesmo modo, havendo alguns mais radicais e outros mais moderados, mais políticos uns e mais espiritualistas outros. O fato é que o impulso reformador dos considerados progressistas se intensificou em sincronia com o que incubava nas sociedades em transição, a ponto de impregnar os documentos do episcopado continental. Documentos que até meados dos anos 1970, ou seja, enquanto as reações da Santa Sé e do clero moderado eram apenas fortuitas, revelaram uma peculiar e seletiva leitura da renovação conciliar. Tratava-se de uma leitura latino-americana, em que a questão social era preponderante e a denúncia das injustiças se associava a soluções radicais e, em ocorrências mais extremas, à justificação da violência revolucionária, que alguns religiosos optaram por

apoiar ou praticar, até o caso extremo de Camilo Torres, o sacerdote colombiano assassinado em combate em 1966.

Camilo Torres. Fotografia de Hernando Sánchez.

Nesse contexto nasceu a Teologia da Libertação, em que a contestação da ordem social e a condenação do capitalismo se tornaram mais ferrenhas, a dívida para com as ciências sociais mais direta, o recurso à crítica marxista mais aberto e o elo entre teologia e práxis mais orgânico. Muitos dos seus seguidores, comprometidos com a justiça social, empreenderam então uma cruzada revolucionária que julgavam imprescindível para instituir uma ordem terrena coerente com o Evangelho. Por outro lado, o clero latino-americano dispensou atenção bem menor a outros aspectos do aggiornamento conciliar, como os relacionados com a liberdade religiosa, o ecumenismo e a democracia política, isto é, os que ilustravam com mais propriedade a abertura do diálogo entre a Igreja e o mundo moderno. Assim, nessa impetuosa corrente católica que alimentou o clima revolucionário da época, a ênfase dada à criação de uma sociedade mais justa e livre de opressões não encontrou uma equivalente reflexão sobre democracia e pluralismo, temas quase ausentes do panorama ideológico desse período. A onda impactante da renovação católica deu início a um período de dramáticos conflitos na Igreja e nas sociedades da América Latina: conflitos doutrinários, nos quais o clero conservador acusou o renovador de renegar a

missão sobrenatural da Igreja identificando-a com uma classe social específica, o proletariado, ou com uma ideologia. Vulgarizada, essa incriminação muitas vezes se traduziu como colaboração com a subversão marxista, abrindo as portas para repressões violentas que vitimaram muitos sacerdotes e militantes católicos nos anos 1970; conflitos disciplinares que, somados às rápidas transformações nos costumes sociais, se refletiram num aumento vertiginoso do abandono do sacerdócio e na queda das vocações eclesiásticas; enfim, conflitos políticos e ideológicos, que transcenderam a esfera religiosa e se propagaram para o âmbito social e político. Era inevitável que isso acontecesse, considerando o poder e o envolvimento da Igreja com a questão social, por um lado, e a profissão de catolicidade da maioria dos regimes políticos, por outro. Estes se viram estremecidos em seus fundamentos quando a contestação se manifestou de forma radical e maciça no próprio seio da Igreja.

A Teologia da Libertação Produto original da reflexão teológica de um setor do clero latinoamericano, a Teologia da Libertação teve as suas raízes na renovação eclesial promovida pelo Concílio Vaticano II e em seguida na II Conferência do Episcopado Latino-Americano, realizada em Medellín em 1968, que conjugou o esforço de adaptar os ensinamentos conciliares à realidade continental com o fermento social e ideológico da época. Precisamente nos debates de Medellín encontrou inspiração Gustavo Gutiérrez, o teólogo peruano que iniciou o movimento e lhe deu o nome. Apesar de ser uma corrente bastante heterogênea, concentrava alguns elementos fundamentais, sendo o principal deles a opção preferencial pelos pobres, isto é, o reconhecimento da dimensão social como terreno da evangelização, a qual se realizaria promovendo a libertação do homem das estruturas sociais opressoras. Nessa perspectiva, os teólogos da libertação se propuseram a levar as classes populares a tomar consciência das injustiças sociais, a chamada conscientização, o que seria feito através das Comunidades Eclesiais de Base. Essas “comunidades” eram pequenos grupos que utilizavam a leitura da Bíblia como instrumento para interpretar a realidade vivida no dia a dia. Esses grupos se difundiram extensamente nos anos 1970 e 1980, de modo particular no Brasil, no Chile, no Peru e na América Central. Nesse sentido, tratava-se de uma teologia baseada na práxis, isto é, na ação social. Uma ação pela qual o clero desenvolvia não apenas uma atividade pastoral, mas em muitos casos uma verdadeira obra de organização e orientação intelectual. Esse modo de operar a levou a rejeitar

a tradicional distinção teológica entre esfera natural e sobrenatural e a empregar as categorias analíticas apregoadas pela teoria da dependência e pelo marxismo. Antiliberais no plano ideológico e anticapitalistas no econômico, os teólogos da libertação invocaram em alguns casos a revolução social, mas de modo geral se limitaram a um papel de testemunho e de incentivo às reivindicações populares. Entre os anos 1980 e 1990, a censura pontifícia investiu contra os aspectos mais radicais da Teologia da Libertação, preocupada que estava com sua heterodoxia doutrinária e com a tendência anti-hierárquica que introduzia no seio da Igreja. Muitos atribuem a esses desentendimentos as grandes atribulações vividas pela Igreja naqueles anos.

6. A Aliança para o Progresso e o reformismo inoperante Comprimido entre os extremos opostos das vias revolucionárias e das reações contrarrevolucionárias, o que faltou ou fracassou à época na América Latina foi o reformismo. Do mesmo modo que faltaram ou fracassaram os sujeitos que eram protagonistas em outras partes: das classes médias legalistas ao catolicismo democrático, do socialismo reformador aos militares profissionais. Nesses sujeitos, no entanto, na sua existência e no seu crescimento, apostou o presidente John Fitzgerald Kennedy, ao entrar na Casa Branca em 1961 e lançar o mais ambicioso projeto de cooperação com a América Latina jamais concebido pelos Estados Unidos: a Aliança para o Progresso, apresentada simbolicamente como um Plano Marshall para a região. Era o que todos esperavam depois da guerra, mas que nunca chegara; e que, no final das contas, fracassou. Por que Kennedy lançou esse plano? Quais foram seus fundamentos teóricos? Quais eram seus objetivos? Por que, enfim, fracassou? Várias foram as razões que levaram o jovem presidente estadunidense a anunciá-la. Sem dúvida, pesou o imperativo imposto pela Guerra Fria e pela doutrina Monroe de prevenir o surgimento de “novas Cubas”, ou seja, de regimes comunistas na região. A Aliança se propunha a efetuar essa prevenção promovendo o desenvolvimento e a melhoria das condições de vida e também, como se verá no próximo capítulo, adotando uma meticulosa estratégia contrarrevolucionária. Esses propósitos em nada depunham contra o fato de que a esse detalhado plano de financiamentos e reformas sociais proposto aos países da América Latina correspondesse um genuíno espírito reformador de Kennedy e a intenção de recuperar a liderança política e moral dos Estados Unidos, ofuscada na região durante os anos 1950. O espírito da Aliança era animado pela teoria da modernização, inspirada e elaborada por seus principais expoentes, a começar por Walt Whitman Rostow. Essa teoria, partindo da identificação das etapas de desenvolvimento social nos

países mais avançados, propunha-se a estimular a sua reprodução nos países da periferia, no caso na América Latina. Esse enfoque logo se tornou objeto de duras críticas por parte dos teóricos da dependência, para os quais a estrutura mesma das relações entre o centro e a periferia impedia que esta reproduzisse a via percorrida por aquele. Por outro lado, sustentavam ainda os teóricos da modernização, em princípio não havia qualquer impedimento para que os países periféricos, desde que ajudados e orientados, empreendessem um processo virtuoso de desenvolvimento; este certamente enfrentaria muitos e severos percalços, mas seus frutos compensariam amplamente os sacrifícios. Esse seria um processo orgânico, não limitado à esfera econômica, mas imbuído do propósito de criar as condições sociais favoráveis à democracia política. O plano seria incrementado através de uma enorme, mas direcionada, ajuda econômica, de modo a permitir a decolagem do desenvolvimento industrial na região, por sua vez causa de radicais mudanças sociais e mais ainda do crescimento da classe média. A expansão dessa classe reduziria as enormes distâncias sociais entre o topo e a base da pirâmide social na América Latina, dando equilíbrio e estabilidade às sociedades vítimas de convulsões crônicas. Essas sociedades, então, robustecidas e guiadas pelo espírito democrático inato das classes médias, instalariam por fim democracias políticas sólidas e, portanto, fiéis ao Ocidente no enfrentamento global ao comunismo. Em termos concretos, a Aliança para o Progresso consistia num substancioso pacote de auxílios e investimentos econômicos, equivalendo a 20 milhões de dólares distribuídos ao longo de uma década. O seu alcance e objetivos se estendiam muito além do âmbito econômico, porém, de tal modo que, da mesma forma como foi objeto das críticas de marxistas e estruturalistas, recebeu recriminações também de liberais e conservadores, contrários tanto ao papel ativo que os governos dos Estados Unidos e da América Latina eram chamados a desempenhar, quanto às medidas propriamente ditas que ela pretendia implementar e que resultariam na ampliação do papel do Estado nas economias locais. Entre essas medidas destacavam-se a reforma agrária e fiscal, o fornecimento de crédito para a indústria, a realização de grandes investimentos públicos nos setores sanitário e educativo para reduzir o fosso entre classes e setores sociais, e outros, tudo com o objetivo de alcançar um crescimento médio de 2,5% ao ano durante a década de 1960 e de melhorar de modo substancial os indicadores sociais mais importantes, mensurados segundo critérios precisos definidos pela Aliança. A Aliança para o Progresso fracassou. Não há dúvidas a esse respeito, mas várias são as versões em torno da responsabilidade por esse desfecho. Algumas delas acusam Lyndon Baines Johnson, sucessor de Kennedy depois do assassinato deste em 1963, de ter traído o espírito da Aliança; outras incriminam

todo o seu conteúdo e suas premissas errôneas. Não obstante, alguns resultados foram alcançados, de modo particular nos campos educacional e sanitário, embora em grande parte frustrados pelo rápido crescimento demográfico da população latino-americana. Quanto ao crescimento econômico, apesar de presente em certa medida, não foi tão rápido nem tão robusto como eram as expectativas. No que se refere às reformas agrária e fiscal que deviam propiciar condições de maior igualdade social, defrontaram-se na maioria dos casos com a resistência dos poderosos locais e com a ineficiência administrativa dos governos latino-americanos, de modo que seus resultados foram em geral decepcionantes. O aspecto em que mais se evidencia o fracasso da Aliança, porém, é nos seus objetivos mais ambiciosos: nem as classes médias agiram como os teóricos da modernização haviam imaginado, uma vez que, amedrontadas pela mobilização da classe operária e pelo aumento do proletariado, tenderam a preferir a ordem à democracia e a apoiar os novos regimes autoritários; nem a democracia política se ampliou, mas foi rapidamente abandonada em grande parte da região. Novamente, por que a Aliança para o Progresso fracassou? A historiografia está repleta de hipóteses e explicações, normalmente legítimas e razoáveis. Para alguns, os recursos postos à sua disposição não correspondiam às ambições e em geral foram empregados para saldar dívidas antigas. Para outros, o diagnóstico sobre o comportamento da classe média estava errado desde o começo: imaginava-se que, por posição social e composição étnica, ela se juntaria às elites frente à ameaça de ascensão das massas populares. Outros, ainda, observaram que o paralelo com o Plano Marshall era enganoso, pois o que acontecera na Europa não era possível aqui: enquanto os países europeus já haviam passado pela democracia e pela industrialização, na América Latina essas etapas ainda estavam por ser percorridas, sendo, portanto, precursoras de grandes tensões. Para outro grupo, Kennedy precisava de aliados com características específicas para desenvolver o seu projeto: homens e partidos reformistas e democráticos, anticomunistas, mas não conservadores. Estes, porém, eram praticamente inexistentes no continente, ressalvando-se figuras como o venezuelano Rómulo Betancourt e o chileno Eduardo Frei, que recebeu grande apoio dos Estados Unidos para sua eleição em 1964. A ausência ou carência desses aliados levou a Aliança a depender do apoio de governos em geral dispostos a empunhar a bandeira do anticomunismo como arma para combater as mobilizações sociais, daí resultando grandes danos para a polarização. Por fim, muitos concentraram-se sobre as contradições estadunidenses. Os Estados Unidos haviam imaginado que as mudanças sociais que pretendiam promover ocorreriam num contexto de paz política e social, por isso quando

perceberam que as reformas eram fonte de perigosa instabilidade, deram prioridade ao imperativo da segurança, renunciando às ambições da Aliança. Testemunhou-se essa realidade em 1964, com a Doutrina Mann: através dela o governo de Washington definiu o anticomunismo e o desenvolvimento econômico como prioridades para a América Latina, acima da democracia política e das reformas sociais. Para terminar, é lícito levantar a hipótese de que o fracasso da Aliança para o Progresso refletisse suas excessivas ambições: é muito provável que supervalorizassem o poder estadunidense de plasmar a história latino-americana.

O Chile de Salvador Allende Em setembro de 1970, o socialista Salvador Allende foi eleito presidente do Chile à testa de uma coalizão de partidos, a Unidade Popular, composta em sua maioria por marxistas, mas também em parte “burgueses”, entre os quais o partido comunista chileno. Três anos depois, ele foi destituído e induzido a suicidar-se em consequência de um violento golpe de Estado liderado pelo general Augusto Pinochet, que deu continuidade a uma brutal repressão e instaurou uma longa ditadura. A história desses três anos transformou o Chile no maior emblema da queda-de-braço entre revolução e contrarrevolução, e do seu resultado trágico, mas também o colocou durante muito tempo no centro da atenção mundial, representando as esperanças e os temores de muitos. Vários fatores concorreram para tornar o governo da Unidade Popular um caso mundial. O primeiro e mais evidente foi que pela primeira vez instalou-se pela via eleitoral um governo marxista que expressava sua intenção de construir o socialismo com métodos democráticos. Com isso o Chile se revelou um caso único, diferente de todos aqueles em que o modelo socialista se impusera com uma revolução, como a União Soviética, a China e Cuba. Um caso que colocava a todos, amigos e inimigos, diante de um desafio teórico e prático de enormes dimensões. O segundo fator que tornou esse desafio tão radical foi que o Chile se destacava como um dos raros exemplos de antiga e sólida democracia na América Latina. Portanto, em teoria era um dos países menos sensíveis às vozes sedutoras do comunismo, cuja capacidade de chegar ao governo de forma legal tinha o efeito de um terremoto. O terceiro motivo é que o sucesso de Allende num país democrático do hemisfério ocidental constituía em si mesmo uma delicada crise da Guerra Fria. A sua vitória num país de regime político em muitos aspectos semelhante ao de alguns países europeus, da Itália in primis, e além disso insígnia da Aliança para o

Progresso nos anos 1960, foi um choque para os Estados Unidos. Estes consideraram essa vitória não só como uma afronta à sua liderança e um excelente instrumento propagandístico para os soviéticos, mas também como o potencial detonador de um efeito dominó capaz de estender a sua influência até a Europa. A tal ponto que Richard Nixon, eleito em 1969, estava decidido desde o início a resolver a situação, por bem ou por mal. Mas o que levara Allende à vitória eleitoral? Houve causas sociais e causas políticas. Em princípio, pode-se dizer que o Chile é o exemplo típico de como as transformações sociais ocorreram com rapidez demasiada para ser acompanhadas pelas mudanças políticas. Crescimento demográfico, escolarização, urbanização e todos os demais fenômenos já mencionados mudaram o panorama social do país com enorme velocidade. Tanto que o esforço do governo democrata-cristão de Eduardo Frei (19641970) de contrabalançar seus desdobramentos com uma reforma agrária e ambiciosas inovações educacionais e urbanísticas não surtiu os efeitos esperados. Os conservadores o consideraram muito ousado, as esquerdas, muito tímido. Em consequência, às vésperas das eleições de 1970, o partido de Frei não só havia perdido o apoio dos católicos mais radicais, que aderiram à coalizão de Allende, mas se viu espremido no meio de um sistema político dividido em três partes. Delas emergiu Salvador Allende, embora com apenas 36,3% dos votos e, portanto, sem maioria no Parlamento. A cisão entre a direita e o centro foi assim crucial para a sua vitória, do mesmo modo que a reaproximação dessas correntes iria revelarse fatal para a sua queda.

Salvador Allende no Palacio de la Moneda, sede do governo, ao ser eleito presidente do Chile.

Quais foram as realizações do governo Allende? As medidas por ele implementadas foram as típicas dos governos socialistas, embora tomadas num clima de efervescência revolucionária e de grande mobilização que as tornou ainda mais ameaçadoras aos olhos da oposição. Além de nacionalizar o cobre, o recurso básico do país, na verdade com o voto de todos os partidos, o governo da Unidade Popular promoveu uma reforma agrária radical, assumiu o controle de inúmeras indústrias, nacionalizou o sistema financeiro, imprimiu um grande impulso à economia recorrendo ao crédito e às despesas públicas e atendeu às reivindicações salariais dos trabalhadores. O que, então, provocou a crise e o violento colapso? Obviamente, as razões foram várias, não havendo entre os historiadores consenso a respeito da importância de cada uma delas. De fato, a queda de Allende dividiu o Chile e o mundo tanto como os divide ainda hoje a lembrança do que a causou. Sem dúvida, fatores exógenos tiveram grande peso. Os Estados Unidos fizeram todo o possível para impedir que Allende assumisse a presidência em 1970, seja através da via constitucional ou recorrendo à violência e ao conluio. Mas fracassaram no seu intento, pois não encontraram o apoio necessário na Democracia Cristã e nas Forças

Armadas chilenas, que se mantiveram fiéis à Constituição. Em seguida o governo de Washington adotou uma política de boicote ao governo de Allende e de respaldo financeiro aos seus opositores, a qual teve influência importante, mas não determinante, para sua queda. Para esse desfecho contribuíram muito mais os fatores endógenos, sem os quais, como já se viu em 1970, a mesma hostilidade de Washington não teria produzido os efeitos desejados. Entre esses, os econômicos. No primeiro ano do seu governo, a política econômica de Allende promoveu um enorme crescimento, que logo se mostrou insustentável, porém. Como já acontecera com as economias populistas, a inflação subiu e o governo, para satisfazer a demanda que aumentou em ritmo acelerado, precisou importar quantidades cada vez maiores de bens. Em pouco tempo a balança comercial e a solvência financeira do Chile entraram em colapso e a economia despencou no abismo: começaram a faltar bens de primeira necessidade e o mercado negro se expandiu, uma situação que jogou ainda mais combustível nos já inflamados conflitos sociais que abalavam o país e exacerbou o ímpeto de reação social da burguesia e de boa parte das classes médias chilenas. Mineiros, transportadores, donas de casa e vários outros setores, alguns próximos do governo e outros distantes, organizaram greves e protestos sempre mais exaltados. As causas políticas foram enfim as que atingiram o governo com maior poder destrutivo, em dois sentidos. Em primeiro lugar, a coalizão de Allende se mostrou muito dividida entre os que pressionavam para acelerar a transição ao socialismo, forçando a ordem constitucional, e os que, ao contrário, julgavam prudente proceder pelas vias legais para não provocar uma reação violenta. Essa falta de entendimento não produziu outro resultado, a não ser o de estimular a oposição a unir-se contra um governo que fazia amplo uso da retórica revolucionária. Em segundo lugar, a direita conservadora e o centro democrata-cristão, antes divididos, somaram seus votos no Parlamente com o argumento de que o governo estava violando a Constituição e levando o Chile para o comunismo. Com essa denúncia de inconstitucionalidade, o governo ficou em minoria, o que preparou o caminho para o que os militares haviam se negado a fazer três anos antes, mas que agora, com a adesão da ampla maioria, estavam decididos a não adiar: a deflagração do violento golpe militar de 11 de setembro de 1973. Bibliografia Aricó, José, La cola del diablo: itinerario de Gramsci en América Latina, Buenos Aires, Argentina: Puntosur Editores, 1988. Castro, Daniel (editor), Revolution and revolutionaries: guerrilla movements in Latin America, Wilmington: SR Books, 1999.

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9. Os anos 1960 e 1970: o ciclo contrarrevolucionário 1. O período da contrarrevolução Agitados pelos ventos revolucionários, os anos 1960 e 1970 foram igualmente, ou talvez até mais, revolvidos pelos ventos contrários, os da contrarrevolução, tão intensos que na maioria dos casos levaram os que os insuflavam a afirmar que a única maneira de conter a revolução consistia em adotar uma solução drástica e definitiva, ou seja, revolucionária. Tanto que os regimes militares que assolaram a região na segunda metade dos anos 1970 se autodenominaram exatamente com este nome: revoluções. É preciso esclarecer, no entanto, que nem todos os governos autoritários da época foram iguais, como também não foram unívocas as suas causas e fundamentos. Os seus distintos níveis de desenvolvimento, os diferentes pesos exercidos pelos Estados Unidos sobre o equilíbrio interno de cada um e ainda o contexto da Guerra Fria incidiram em profundidade sobre as formas que adotaram e os modos como governaram. Primeiramente, destacavam-se as autocracias personalistas, como a da família Somoza na Nicarágua e a do general Alfredo Stroessner no Paraguai, que mantiveram o poder e enfrentaram o desafio da mudança social apelando a uma fachada constitucional e certa dose de paternalismo social, de um lado, e à repressão, de outro. Contudo, tanto na América Central, especialmente no Panamá e em El Salvador, quanto na região andina, ou seja, no Peru, Bolívia e Equador, diversos tipos de autoritarismo se alternaram e combateram entre si: um autoritarismo nacional e populista que, como se viu no capítulo anterior, assumiu às vezes a vanguarda; e um autoritarismo mais tradicional, paladino da ordem social e fiel à causa ocidental na Guerra Fria. Nos países em via de rápida transformação, onde algum movimento ou regime populista havia se afirmado até então, as Forças Armadas, guardiães incontestáveis na região diante da fragilidade das instituições representativas, com frequência divergiram quanto ao modo de alcançar os dois objetivos que as orientavam: a segurança e o desenvolvimento. Para parte delas não haveria segurança sem desenvolvimento, e por isso a prioridade era realizar reformas sociais decisivas capazes de integrar as massas. Para outros setores militares, o desenvolvimento era impensável enquanto não

se impusesse a ordem, de modo a possibilitar o incremento da produção e o acúmulo do capital necessário para o desenvolvimento. Não por acaso, grande parte dos países viveu então uma longa fase autoritária, mas contaminada de instabilidade crônica, à medida que os golpes se sucediam e as diversas facções militares substituíam umas às outras: como na Bolívia, onde os oficiais conservadores destituíram em 1971 o general populista Juan José Torres e impuseram uma brutal ditadura; como no Peru, onde em 1975 os oficiais moderados afastaram os populistas de Velazco Alvarado; e como em diversas outras oportunidades e lugares. No México, enfim, enquanto o regime que girava em torno do PRI (Partido Revolucionário Institucional) se mantinha firme, sem necessidade de apoio militar, e enfrentava os novos desafios sociais com a repressão policial, por um lado, e nos anos 1970 reativando o seu instrumental populista, por outro, nos demais grandes e mais desenvolvidos países da América Latina impôs-se uma longa cadeia de intervenções militares, inaugurando o que muitos estudiosos vieram a considerar como um novo autoritarismo, fundador de regimes muitas vezes chamados burocrático-autoritários. Uma cadeia que investiu não só no Brasil e na Argentina, onde os militares já haviam invadido a arena política mais vezes no passado, mas também no Chile e no pequeno Uruguai, até então as democracias mais sólidas do continente. Assim, poucas se mantiveram: a da Costa Rica, onde o exército fora dissolvido depois de uma breve guerra civil em 1948; e as mais imperfeitas, embora sempre resistentes apesar dos problemas, da Colômbia e da Venezuela. Onde, quando e por que esse novo autoritarismo se manifestou? O primeiro e mais longevo desses regimes foi o que se instaurou no Brasil em 1964, o qual se institucionalizou e perdurou até 1985, sem sofrer grandes crises políticas. Bem diferente foi o caso da Argentina, onde um primeiro regime, instituído em 1966 sob a liderança do general Juan Carlos Onganía, não conseguiu se consolidar, contido pela reação da oposição e por divisões entre os militares. A ponto de se ver obrigado a abrir as portas precisamente para aquele que de fato queria fechálas: Juan Domingo Perón, que retornou triunfante à pátria e venceu as eleições presidenciais de 1973. Em pouco tempo, porém, as diversas facções do peronismo começaram a digladiar-se, e a terceira mulher de Perón, Isabel Martínez de Perón, que assumiu o poder com a morte do marido, se revelou incapaz de governar. Pouco depois, em 1976, o poder voltou novamente às mãos das Forças Armadas. Estas extirparam toda forma de oposição, mas fracassaram mais uma vez na tentativa de consolidar o seu regime, que entrou em colapso devido aos escassos resultados econômicos, às divisões dentro do exército e à derrota na guerra das Falkland-Malvinas de 1982.

Representante do chamado “socialismo militar” latino-americano, Juan Francisco Velasco Alvarado ocupou a presidência do Peru entre 1968 e 1975. O autodenominado Governo Revolucionário das Forças Armadas aprovou medidas como as reformas agrária, empresarial e da mineração e da pesca, e expropriou e estatizou importantes setores da economia peruana.

Por sua vez, datam de 1973 os dois golpes de Estado com que culminaram as longas crises do Uruguai e do Chile, pontos de partida de outros tantos regimes militares que se prolongaram, respectivamente, até 1985 e 1989. O primeiro, o uruguaio, chegou com o auge de um prolongado conflito social e armado e da paralela militarização do Estado. O segundo, o chileno, traumático ponto inicial de uma longa ditadura em que o poder pessoal do general Pinochet se consolidou e conduziu, em acordo com as Forças Armadas e os tecnocratas civis, uma recuperação econômica que inaugurou a via das reformas neoliberais na América Latina. Com o tempo, outros países também trilhariam esse caminho, embora de modos distintos segundo cada caso.

Henry Kissinger (esquerda) junto ao general Augusto Pinochet (centro), em junho de 1976. Foto: Reuters.

O que havia de “novo” nesse autoritarismo, especialmente num continente que fora testemunha de tantos, e mais, admitindo que fosse de fato “novo”? Tudo isso se esclarecerá melhor na continuação, ao analisarmos as bases sociais desse autoritarismo, os modelos econômicos em que se inspirou e a sua ideologia. Por ora basta observar que o fato que o tornou peculiar, embora menos do que possa parecer à primeira vista, foi o impulso “revolucionário” das Forças Armadas, ou seja, a sua ambição de recuperar a nação. E, ainda, a determinação com que passaram a assumir o poder como instituição, ora dividindo-o entre as diversas armas, ora delegando-o a um alto oficial que procuravam manter sob controle. Nesse sentido, falou-se com frequência de regimes militares institucionais; em outras palavras, de regimes das Forças Armadas em que elas na realidade se erigiam, como no passado, em guardiães da coesão política e da unidade ideológica da comunidade nacional, em guardiães de nações entendidas como organismos que consideravam como seu dever reconduzir à harmonia e ao equilíbrio, erradicando as que julgavam ser causas remotas da instabilidade política, da agitação social e do subdesenvolvimento econômico; em suma, da sua divisão. Eles encontravam essas causas no comunismo, mas no sentido em que se viu outras vezes, ou seja, em outros termos, que encontravam nas forças sociais, nos modelos econômicos

e nas orientações ideológicas de que se nutria a mescla entre marxismo e nacionalismo, a qual então aumentava na América Latina e contra a qual dirigiram a sua violência. Não por acaso, os países da América do Sul onde esses regimes se instalaram eram também aqueles em que as raízes do populismo haviam se arraigado com mais firmeza e profundidade, como Argentina e Brasil. Ou então onde parecia que o socialismo podia lançá-las pela primeira vez, como no Chile e no Uruguai. A propósito, às vezes se observou que a percepção da ameaça que essas correntes representavam para a aliança com o Ocidente e para a economia capitalista influenciou a natureza mesma desses regimes. Por isso, em termos proporcionais, eles foram menos violentos e demonstraram uma maior boa vontade com relação aos pilares econômicos do desenvolvimentismo nos anos 1960, quando essa ameaça lhes pareceu menor e menos imediata. Por outro lado, nos anos 1970, quando a sentiram mais severa e iminente, recorreram à violência, até o extremo do terrorismo de Estado, e modificaram de modo radical o modelo econômico, aderindo ao neoliberalismo e propondo-se a extirpá-la totalmente.

O Brasil dos militares Iniciando com o golpe de Estado de 1° de abril de 1964, a ditadura brasileira se prolongou até 1985, abrangendo uma longa fase da história nacional, durante a qual o Brasil passou por mudanças profundas. Em suas origens estavam os temores expressos pelos militares com relação à segurança e ao desenvolvimento do Brasil. Segurança que julgavam ameaçada pelo governo em exercício de João Goulart, que acusavam de simpatizar com Cuba e com o mundo comunista, afastando assim o Brasil da causa ocidental. E desenvolvimento que consideravam estancado pelo populismo do governo, que acusavam de estimular o caos social e de dilapidar recursos preciosos encorajando a organização camponesa e favorecendo as lutas operárias cada vez mais numerosas, causa da inflação descontrolada. Baseados na percepção dessas ameaças e com o apoio dos estados Unidos, os militares tomaram o poder com um golpe sem derramamento de sangue. Com esse golpe, que os militares chamaram de “revolução”, iniciou-se um longo regime que passou por várias e diferentes fases e que se caracterizou por inúmeras peculiaridades no panorama das ditaduras da época.

João Goulart, durante um desfile em Nova York, em 1962.

No campo político, os militares governaram através de atos institucionais que lhes davam poder constituinte e, a partir de 1968, poderes absolutos. Realizaram assim profundas expurgações na administração pública, nas universidades e no exército. Além disso, proibiram os partidos políticos tradicionais, exerceram um rígido controle sobre os meios de comunicação, dispersaram as ligas camponesas e instalaram seus aliados na chefia dos Estados da federação, mas mantiveram o Parlamento aberto, embora restringindo-lhe as funções. Além disso, impuseram um bipartidarismo coercitivo, isto é, um sistema político limitado e tutelado, constituído de um partido governista e um de oposição moderada. Pelo fim da década de 1960 e primeiros anos da década de 1970, quando os protestos estudantis e sindicais aumentaram, as guerrilhas surgiram e a Igreja católica se distanciou do governo, o regime não titubeou em usar a força. Estimam-se em cerca de 50.000 as prisões efetuadas, em 10.000 os exilados e em vários milhares os mortos e desaparecidos. A tortura se tornou comum, muitos sindicatos foram

fechados e inúmeros deputados expulsos do Parlamento. A partir de 1974, seja porque a repressão havia produzido os efeitos desejados, porque a oposição tendia a se reunir ao abrigo da Igreja ou enfim porque as divisões sempre à espreita entre os militares afetavam a disciplina, o regime deu início a uma longa fase de gradual liberalização. Nesse período, conseguiu em geral trabalhar com o objetivo de encaminhar-se para uma democracia forte e controlada, ou seja, livre da tendência a recair no populismo. Garantida a segurança, os militares voltaram toda a sua atenção ao desenvolvimento, seu principal objetivo, porque estavam convencidos de que, enquanto o Brasil não se desenvolvesse, seria presa fácil do comunismo, e também porque entendiam que um destino de grandeza aguardava a nação. Nesse projeto, o essencial consistia em aprofundar o processo de industrialização, estendendo-o aos setores mais avançados e aproveitando ao máximo os imensos recursos nacionais. Seus protagonistas seriam o Estado, o capital privado nacional e o capital estrangeiro. Em termos absolutos, os resultados não foram desprezíveis, tanto que durante vários anos o PIB cresceu ao ritmo de 10% ao ano, e em todo o mundo se falava do “milagre brasileiro”. Nesse sentido, o Brasil viveu na época uma modernização autoritária durante a qual as exportações industriais e os empregos na indústria aumentaram. Além de autoritária, porém, foi também muito desigual. Invertendo as prioridades populistas, os militares propuseram uma política em duas fases: primeiro, o crescimento, depois a melhoria das condições sociais. Esta se concretizou em parte, mas sem termo de comparação com o crescimento. Por um lado, houve um boom demográfico sem precedentes, uma rápida urbanização e uma redução significativa do analfabetismo. Por outro, as taxas de desemprego continuaram muito elevadas e, à medida que os salários foram sofrendo reduções, o fosso já largo entre as classes mais abastadas e a massa dos deserdados foi se dilatando ainda mais. Assim, os militares modernizaram o Brasil, mas não conseguiram equacionar de modo adequado o problema da integração social. Não obstante, durante muito tempo contaram com um consenso amplo, embora implícito, de modo especial entre as classes médias, que se beneficiaram do crescimento econômico e em boa medida também da ordem social restaurada pelo regime. Até que a partir de meados da década de 1970, esses mesmos setores começaram a sentir o peso da opressão e a elevar a sua voz para convencer o regime a empreender uma maior liberalização.

2. Do “desenvolvimentismo” ao neoliberalismo: a economia dos militares

Não se pode dizer que todos os regimes militares que se impuseram à época na América Latina adotaram o mesmo dogma econômico. Nesse aspecto, já se viu como, entre os anos 1960 e 1970, iniciou-se a transição do modelo dirigista predominante após a crise de 1929 para um modelo liberal, pois as limitações daquele haviam se tornado evidentes desde o momento em que se rompera o vínculo virtuoso entre crescimento econômico e distribuição da riqueza. Ou seja, a passagem para um modelo aberto ao mercado mundial que começava a revelar o fenômeno que em seguida receberia o nome de globalização. Mas além das suas diferenças profundas, todos tiveram um objetivo em comum, não somente econômico, longe disso, mas também político. Com exceção dos regimes de tendência populista que aqui e ali prevaleceram nos Andes ou na América Central, todos os demais se propuseram a desestruturar a política econômica dos populismos e as bases sociais que os haviam nutrido. E, inversamente, a implantar uma administração da economia voltada ao desenvolvimento, ou seja, não só mais eficiente e competitiva, mas também orientada a favorecer o acúmulo de capital interno e a atração de capital externo necessário para a decolagem econômica. Com essa finalidade, os regimes desenvolvimentistas e autoritários dos anos 1960, como também os liberais e ainda mais autoritários da década seguinte, se dedicaram, por um lado, a eliminar a política e os seus conflitos, antes impostos por eles e, por outro, confiaram o governo da economia aos tecnocratas, em geral formados nas maiores universidades estadunidenses. As bases sociais e o modelo econômico do novo autoritarismo foram explícitos nos regimes dos anos 1960 e tiveram evidentes características classistas. Na realidade, não só nos regimes militares de novo tipo, mas também no México, ou seja, num caso de autoritarismo corporativo alicerçado no tempo, embora sob a enorme pressão da modernização. Todos eles regimes em que o Estado manteve um papel-chave, seja diretamente, de modo especial no campo das indústrias de base consideradas estratégicas, seja indiretamente, assegurando as condições políticas e jurídicas que os militares no poder e os seus aliados consideravam imprescindíveis para o desenvolvimento, isto é, para promover o acúmulo de capital, premissa desse desenvolvimento, o qual concebiam, como no passado, vinculado à indústria. Esta, por sua vez, integrada, ou seja, não mais sujeita à importação de bens de capital e de tecnologias, mas em condições de assegurar o ciclo produtivo completo dos produtos essenciais para o mercado interno. Com essa finalidade, para aprofundar o grau de industrialização e favorecer a transferência tecnológica dos países mais avançados, confiaram no capital privado nacional, mas acima de tudo no capital externo, que se empenharam então em atrair em grande quantidade e em orientar

para investimentos produtivos – como a abertura de estabelecimentos industriais – nos países da América Latina. Esse modelo não se distanciava em si do modelo desenvolvimentista, a não ser pelo radicalismo e pelos métodos autoritários que em geral adotou. Na sua base estava explícita a convicção de que nos países periféricos não existiam as premissas sociais e culturais para a democracia política, a qual por isso tendia a desembocar no populismo, tido como responsável pela falta de desenvolvimento. A solução, sustentavam esses regimes, consistia na suspensão da democracia, com a alegação de que o desenvolvimento não teria criado condições sociais capazes de torná-la sustentável. Esse raciocínio justificou o fechamento dos Parlamentos e dos partidos, a censura à imprensa, a repressão da oposição e o controle dos sindicatos. Esses fatores, além de neutralizar os movimentos populistas, criavam a paz social e a segurança jurídica pretendida pelos capitais externos para arriscar investimentos produtivos de monta e de longa duração. Com efeito, estes praticamente triplicaram, considerando-se tãosomente a segunda metade dos anos 1960. Derivou daí a base social sobre a qual se apoiaram originariamente os novos autoritarismos, incluindo, de modo geral, as classes excluídas pelos populismos: os setores burgueses e proprietários, portanto, mas também amplos estratos dos setores sociais intermediários e da nova classe intelectual de formação tecnocrática. Esta última esteve quase sempre na primeira linha ao lado dos militares, defendendo a causa da modernização autoritária. Essa modernização implicou uma maciça transferência de recursos da coalizão populista, ou seja, dos assalariados em particular e dos setores populares em geral, para a nova coalizão social no poder, que se propunha a dirigir o desenvolvimento econômico agora livre de obstáculos políticos. O sucesso de tudo isso foi diferente de país para país. Comparando resultados e expectativas, os únicos que podem dizer que obtiveram sucesso foram os dois países com o maior mercado interno e onde essas políticas foram conduzidas por mais tempo e com maior coerência: Brasil e México, que na metade do século concentravam 42% da produção industrial latino-americana, mas em meados dos anos 1970 já chegavam aos 60%, fato que nem por isso impediu que ambos deixassem uma pesada herança aos sucessores, em termos de desigualdade social e de endividamento externo. Situação muito pior viveram a Argentina e o Chile, onde a passagem para uma fase mais madura da industrialização enfrentava limitações estruturais bem mais agudas e onde a resistência das coalizões populistas foi muito maior. De fato, foi nesses países que, nos anos 1970, os regimes militares se propuseram a restringir o modelo econômico concentrado na indústria e no mercado interno e a empreender uma radical liberalização econômica. A intenção se concretizou

procurando dar novo alento à teoria das vantagens comparativas, ou seja, sacrificando a indústria que havia se desenvolvido ao abrigo do protecionismo e concentrando-se na produção de bens demandados pelo mercado mundial que podiam ser produzidos em condições vantajosas, de modo geral, matériasprimas. Ou ainda se propondo a desagregar a coalizão de interesses formada com o tempo em torno do nacionalismo econômico. Mas os resultados dos regimes da Argentina e do Chile foram desiguais. Enquanto no primeiro caso a tentativa de introduzir o modelo liberal manu militari fracassou e as lutas intestinas nas Forças Armadas distorceram ou limitaram seus efeitos sem evitar os enormes custos sociais, no caso chileno ele foi introduzido e perseguido com mão de ferro e maior coerência, não obstante serem em parte discordantes os juízos de valor sobre seus resultados, apesar de positivos no conjunto.

O Chile de Pinochet, vitrina neoliberal A longa ditadura militar encabeçada pelo general Augusto Pinochet, com duração de 1973 a 1989, contou com a típica inspiração regeneradora dos regimes da época, no sentido de que não foi concebida como um breve parêntese autoritário devido a uma crise peculiar, mas como o início de uma nova época na história nacional. Mais do que outros regimes, no entanto, ao perseguir os seus objetivos, recorreu a métodos novos e drásticos, seja empregando todos os meios possíveis na repressão aos opositores, seja livrando-se das receitas econômicas seguidas durante várias décadas e adotando as orientações liberais dos tecnocratas em boa parte egressos da escola de Milton Friedman, os chamados Chicago Boys. Somente assim, pensavam eles, e com o auxílio indispensável de um regime autoritário que impedisse a reação política e sindical, o Chile liquidaria o aparato dirigista e protecionista consolidado ao longo dos anos, o sistema que consideravam como obstáculo para o desenvolvimento. Aplicando-se a necessária liberalização, o país tomaria o caminho do crescimento econômico e da redução da pobreza, premissas essenciais do retorno a um sistema democrático que o regime pretendia alcançar ao final do longo processo. Esse era o projeto, embora o conceito de democracia fosse entendido em termos distintos daqueles liberais do restante do Ocidente, isto é, como democracia protegida, sob a tutela das Forças Armadas. Com esse objetivo, o regime chileno aplicou de forma mais radical em alguns momentos, em especial nos anos 1970, e de modos mais brandos e heterodoxos em outros, as receitas econômicas liberais típicas. Assim, reduziu drasticamente a influência do Estado na economia, realizando

privatizações em massa; abriu o mercado nacional ao comércio exterior, forçando o sistema produtivo local à competitividade ou ao desaparecimento; liberalizou o mercado financeiro e desregulamentou o trabalhista; eliminou o controle sobre os preços e incentivou as exportações e a sua diversificação; e assim por diante. O balanço? Os críticos destacam os custos sociais, que foram enormes. Tanto que somente uma ditadura poderia efetivamente impor uma política econômica tão radical. A recessão dos primeiros anos, debitada ao regime, elevou a taxa de desemprego para além dos 15%, e a causada pelo colapso do sistema financeiro no início dos anos 1980 foi ainda mais grave, a ponto de motivar protestos generalizados duramente reprimidos. Ao final da ditadura, o poder aquisitivo dos salários era mais baixo do que o de vinte anos antes e nesse intervalo as despesas sociais foram drasticamente reduzidas. O próprio crescimento econômico, observam enfim os críticos, longe de ser espetacular, esteve sujeito a fortes oscilações. Ao lado das críticas, porém, existem também fortes argumentos a favor da balança econômica da ditadura. Os que lhe reconhecem os resultados, afirmam que foi a sua política que lançou as bases do prolongado, constante e extraordinário crescimento econômico chileno de meados da década de 1980 em diante. Tanto que os governos democráticos que a sucederam, mesmo empenhando-se em atenuar os efeitos sociais mais detestáveis, não abalaram seus fundamentos. Com efeito, não há dúvida nenhuma de que o regime de Pinochet revolucionou a estrutura produtiva chilena, tornando-a mais eficiente e capaz de resistir, melhor do que outras da região, aos desafios do mercado global; e também conduzindo a transformação de um país, em grande parte agrícola e prisioneiro das oscilações do preço internacional do cobre, para uma economia mais articulada e de base industrial bem mais ampla. No vértice dessa economia, durante a ditadura, desenvolveu-se uma classe empresarial robusta, quase sempre beneficiada pelos laços políticos com o regime, mas também fruto da decolagem da atividade produtiva. Uma classe que assegurou a Pinochet uma ampla sustentação, como o que lhe asseguraram durante muito tempo os vastos estratos da classe média a quem a modernização econômica da época possibilitou melhorar o nível de vida. De tal modo que, mesmo derrotado no plebiscito de 1988, realizado com base na Constituição que o seu próprio regime havia redigido oito anos antes, o general Pinochet deixou a presidência com um índice de aprovação de 43% dos chilenos, um percentual seguramente elevado depois de quinze anos de governo ditatorial.

3. A antipolítica e a doutrina da segurança nacional A Doutrina da Segurança Nacional, DSN, foi a ideologia mais ou menos oficial dos regimes militares, uma doutrina elevada a dogma nas academias militares dos grandes países, onde se formaram os oficiais que com o tempo galgaram posições no governo e na administração de grandes empresas públicas ou outros organismos importantes. Com frequência entendida como um transplante, ou seja, mero fruto da cerrada doutrinação dos exércitos latinoamericanos nas escolas militares estadunidenses, na realidade a DSN teve também muitas outras raízes locais, mais antigas e profundas. Não porque a influência profissional e ideológica exercida pelas Forças Armadas dos Estados Unidos sobre as da América Latina fosse insignificante; esta, de fato, existiu e aumentou rapidamente na época, levando ao auge um processo iniciado durante a guerra, através do qual a influência militar estadunidense havia suplantado a europeia junto aos exércitos latino-americanos. Abordaremos esse aspecto em seguida, no entanto; por ora, basta observar que se a DSN foi bem acolhida pelos militares da região, foi porque representava ideias e valores que lhes eram bem conhecidos. A começar pelo anticomunismo e continuando com as funções que ela atribuía às Forças Armadas na tutela da identidade e da unidade da nação, elementos todos esses que os exércitos dos grandes países latino-americanos haviam elaborado e assimilado fazia tempo. Como se viu, nos países onde não foram interpretados em sintonia com os ditames de Washington, como no Peru ou no Panamá, desembocaram em alternativas diversas, no caso em regimes militares, mas populistas. E isso apesar de seus membros terem frequentado as mesmas academias militares estadunidenses dos camaradas de armas argentinos, brasileiros, chilenos ou uruguaios. Pois bem, em que consistia a DSN? Tratava-se antes de tudo de uma doutrina típica da Guerra Fria que partia do pressuposto de que o mundo estava dividido em blocos, que o bloco ocidental representava o mundo livre ameaçado por um inimigo totalitário e que a ele, por história e civilização, pertencia e devia continuar pertencendo a América Latina. Como tal, em segundo lugar, era uma doutrina de reflexos práticos imediatos no contexto subsequente à revolução cubana, quando a América Latina talvez tivesse se tornado a fronteira mais explosiva da Guerra Fria. Estabelecidas essas premissas, a DSN definia as características fundamentais da nação que desejava proteger e preservar e as da civilização em que queria que essa permanecesse. Segundo a DSN, uma e outra se consubstanciavam na noção de um Ocidente cristão, em nome do qual esses regimes procuraram legitimar-se. Essa noção levava a dois resultados, ambos familiares ao substrato organicista que desde sempre atraiu os militares; um substrato, aliás, comum ao imaginário dos populismos que eles combatiam, dos quais reproduziam as

premissas, ou seja, a ideia de nação como comunidade orgânica, revertendo as consequências, isto é, invertendo os papéis entre amigos e inimigos, nação e antinação. O primeiro resultado consistia em que a nação pela qual velavam era um organismo dotado de uma essência, a cristandade, e orientado para a unidade no Ocidente; o segundo, que um inimigo atentava contra uma e outra. Esse inimigo tinha um nome preciso, mas se manifestava de modo desfocado, apesar de estar na boca de todos: comunismo. Um nome, no entanto, que, de longa data, já havia assumido no vocabulário e no pensamento político latino-americano conotações cada vez mais vagas e, por isso, pluridimensionais. Entendido assim como o vírus que ameaçava a essência e a unidade da nação, o comunismo cruzava as fronteiras dos países que o professavam e se confundia com numerosos outros fenômenos. Daí o fato de se apresentar aos militares como um inimigo mascarado, aninhado nas cavidades mais recônditas e inimagináveis. Um inimigo interno e ideológico: interno porque, longe de aparecer nas roupagens de uma potência estrangeira, habitava as fibras mais profundas da sociedade sem dar sinais de distinção; ideológico porque aos olhos dos regimes militares representava um inimigo que, cultivando uma visão do mundo incompatível com a civilização ocidental e cristã, a corroía por dentro; e por isso identificado em quem, evocando a revolução, havia tomado em armas. Com o tempo, porém, também naqueles que, por militância, convicções ideais ou estilos de vida, lhes pareceram “estranhos” à sociedade ou dedicados a minar as bases “envenenando” a juventude com suas ideologias. Definidas essas premissas, não surpreende que a repressão ignorasse limites precisos e tendesse a propagar-se rapidamente, mas também que atacasse com furor particular os ambientes intelectuais: estudantes, professores, jornalistas, escritores, e assim por diante. Para além da DSN e do seu conceito de segurança, todavia, esses regimes aspiravam ao desenvolvimento, e para alcançar esse objetivo confiaram plenamente nos tecnocratas que detinham a posse da ciência econômica necessária para isso. Com esse propósito, e num contexto bem mais moderno, porém, seguiram as pegadas dos regimes oligárquicos de fins do século XIX e do positivismo que os impregnava. Como aqueles, estes viram na política e nas suas divisões e conflitos um fator artificioso que dificultava e tumultuava o desenvolvimento econômico e a harmonia social. Em suma, foram regimes antipolíticos que, livres dos embaraços da dialética política e social, criaram as condições de laboratório onde aplicar as leis e a ciência do desenvolvimento econômico, com resultados bem variados.

A repressão: a Argentina dos “desaparecidos”

A violência política foi de longe a nota dominante dos anos 1960 e 1970 na América Latina: a revolucionária em nome do povo e da justiça social e a contrarrevolucionária em nome da defesa do Ocidente cristão. Em termos de quantidade, esta última superou em muito a primeira, e por tipologia com frequência se diferenciou das violências do passado. Não por acaso, foi durante os anos 1970 que o problema da violação dos direitos humanos nas ditaduras latino-americanas predominou entre a opinião pública mundial. Em geral, o panorama foi semelhante um pouco em toda parte, do Chile do general Pinochet ao Paraguai do general Stroessner, da Bolívia do general Bánzer ao Uruguai, passando pela Argentina do general Videla. Através do Plano Condor, todos esses países se prestaram assistência recíproca para perseguir com maior eficácia os opositores em países vizinhos e onde as prisões, torturas, assassinatos e o desaparecimento de pessoas se tornaram a norma. Isso para não abordar por ora os casos até mais graves da América Central, tema do próximo capítulo. Nesse aspecto, é lícito falar de Estados terroristas, pois todos eles, uns mais outros menos, não só recorreram a atos de repressão brutais e generalizados, mas em muitos casos o fizeram violando suas próprias leis. O número de pessoas que sofreram torturas e prisões arbitrárias, tudo somado, chega a várias dezenas de milhares, enquanto os que perderam a vida superaram a cifra de 200 no pequeno Uruguai, de 300 no Brasil e de 3.000 no Chile. O país em que a repressão assumiu formas mais sistemáticas e modalidades mais odiosas, porém, foi a Argentina, onde o regime militar que se instalou em 1976 causou o desaparecimento de cerca de 11.000 pessoas, segundo as estimativas mais confiáveis, ou até 30.000, de acordo com diferentes organizações. Em que contexto ocorreu toda essa carnificina? Depois de deixar melancolicamente o poder em 1973, apenas três anos depois os militares argentinos voltaram a reassumi-lo sem perpetrar um golpe. Eleito nesse ínterim, o governo peronista se dissolveu como neve ao sol, vítima das suas contradições internas e da incapacidade de deter uma incontrolável espiral inflacionária. E ainda mais de conter uma onda terrorista que varria o país, flagelado pelos atentados cometidos, por um lado, pela Aliança Anticomunista Argentina, um grupo paramilitar de extrema direita e, por outro, pelos Montoneros, a guerrilha peronista que invocava o socialismo nacional. Exatamente aos militares, no entanto, a presidente Isabel Martínez de Perón havia confiado a tarefa de exterminar a guerrilha rural formada no norte do país, missão que eles cumpriram reduzindo tudo a escombros.

Assim, quando as Forças Armadas tomaram o poder em 1976, não só não suscitaram protestos, mas a muitos argentinos, de modo especial das classes médias, cansados de tantos anos de violências e retórica revolucionária, o fato pareceu natural, se não desejável. Esse consenso implícito e o clima de terror que reinava no país, e que desde então aumentou ainda mais, convenceram as Forças Armadas de que eram fortes e legítimas o suficiente para erradicar de uma vez por todas, sem se preocupar com os métodos a utilizar, as raízes da “subversão”, restaurando assim a ordem ocidental e cristã. À semelhança do que Pinochet fazia no Chile, embora com certa precaução, pois a decisão dos generais chilenos de reunir prisioneiros políticos em campos de concentração e de executar condenações à morte sentenciadas pelos tribunais militares havia causado o repúdio mundial, o isolamento internacional e o crescente afastamento da Igreja católica. Os militares argentinos quiseram evitar e resolveram contornar todas essas consequências, objetivo que alcançaram recorrendo de modo maciço à repressão clandestina, ou seja, ao desaparecimento de pessoas que arrebatavam à noite de suas casas, trancafiavam em lugares de detenção secretos, torturavam ao extremo, habitualmente matavam e “desovavam” os cadáveres. Depois disso, negavam ter informações ou responsabilidades com relação ao destino dessas pessoas. Indiferente a toda norma e controle legal, a repressão se fez sentir à direita e à esquerda: atingiu estudantes e militantes sindicais, religiosos e artistas, ativistas políticos e sociais em geral alheios aos movimentos armados, aliás quase derrotados. À violência política juntou-se com frequência a violência privada, contra mulheres grávidas cujos recémnascidos foram dados em adoção aos repressores, contra cidadãos simples que alguma delação sob tortura precipitou num círculo infernal, e assim por diante. Tudo sob uma aparência de normalidade que culminou com a realização pacífica da Copa do Mundo FIFA de 1978 na Argentina. Essa mesma repressão, por outro lado, era o que mais unia as diversas facções das Forças Armadas. E a ordem que haviam restaurado a ferro e fogo era o único “sucesso” que podiam exibir aos olhos da população. A essa mesma população, no entanto, não puderam apresentar as conquistas econômicas que o regime brasileiro e em parte o chileno obtinham. Terminada a fase mais intensa da repressão, reafloraram com força as antigas fraturas que minavam as Forças Armadas argentinas: fraturas no modelo econômico, onde os nacionalistas criavam dificuldades para os liberais, e fraturas nos tempos e modos da liberalização do regime. Este, então, deslizou cada vez mais no plano inclinado dos conflitos internos, agravados pela débâcle econômica e pelos protestos contra as violações dos

direitos humanos, liderados com coragem pelas Mães da Praça de Maio. Até que a tentativa de recuperar o vigor e a popularidade do regime com a ocupação das ilhas Malvinas em 1982, sob soberania britânica, mas sempre reivindicadas pela Argentina, se revelou fatal.

4. Os Estados Unidos e a hegemonia em risco Os anos compreendidos entre a revolução cubana e a década de 1980, quando a Guerra Fria começou a dar os primeiros sinais de arrefecimento, foram os de presença estadunidense mais intensa na região: em termos políticos, econômicos, diplomáticos e militares. Inclusive com a volta das intervenções diretas proibidas desde a época da política de Boa Vizinhança, como na República Dominicana em 1965. Isso para não falar das operações secretas, inúmeras na época, e do cordão sanitário em torno de Cuba com o embargo econômico e a sua expulsão da Organização dos Estados Americanos, decidida em 1962. A justificativa para essa presença mais intensa foi o fato de que a influência conquistada pelos soviéticos graças ao regime de Castro criava problemas de segurança inéditos para os Estados Unidos. Não só, todavia, pois a própria revolução em Cuba e a onda revolucionária que lhe deu seguimento sob diversas formas em grande parte da região os forçaram a encarar a questão da hegemonia, ou seja, da credibilidade da sua liderança e da capacidade de exercêla na sua zona de influência com o consenso dos governantes e da população. Pela primeira vez depois da guerra, os fortes ventos que sopravam contra o Ocidente nos países recém-emancipados do domínio colonial ou em vias de descolonização, se fizeram sentir intensos também na América Latina, onde a mescla de nacionalismo e socialismo encontrava no anti-imperialismo o seu ponto de fusão, questionando não só o poder dos Estados Unidos, mas ainda mais os fundamentos da sua civilização. Isto é, os seus valores, como o mercado, a democracia política e o Estado de direito liberal, que já haviam se esforçado para difundir no passado, apesar da retórica do pan-americanismo. Em síntese, se os Estados Unidos estavam tão presentes na América Latina, e se essa presença acabou o mais das vezes manifestando-se de modo agressivo e não benévolo, foi porque já consideravam a região “a mais perigosa do mundo”, como observou Kennedy, isto é, a fronteira da Guerra Fria. Uma fronteira tão explosiva, que esteve a um passo de causar uma hecatombe planetária por ocasião da crise dos mísseis de Cuba, em outubro de 1962, quando os aviões espiões estadunidenses detectaram na ilha rampas soviéticas de lançamento de mísseis prontas para receber ogivas nucleares. No entanto, foi também porque essa liderança, já bastante enfraquecida, passava por dificuldades.

Nos anos 1960, ao lado do auxílio econômico da Aliança para o Progresso, o segundo pilar foi o emprego crescente da força para combater o comunismo na região e para dar às Forças Armadas locais condições de sustentar esse combate. A Aliança era efetivamente uma estratégia reformista para recuperar a liderança política estadunidense na América Latina favorecendo o seu desenvolvimento, mas tinha também o propósito de repelir a ameaça comunista, contra a qual o governo dos Estados Unidos procurou prevenir-se de diversos modos. Em primeiro lugar, atualizando a doutrina, ou seja, estabelecendo que, na ótica da segurança hemisférica, as Forças Armadas da América Latina não eram mais chamadas a manter-se em prontidão contra uma eventual agressão externa, mas sim a zelar pela segurança interna. Afinal, o inimigo já estava em casa, por isso o que essas forças deviam combater, de acordo com a Doutrina da Segurança Nacional, era um inimigo interno. Nessa visão, a contrarrevolução se tornava a principal função dos exércitos continentais, os quais estavam mais do que predispostos a exercê-la, pelo menos na maioria dos casos.

Crise dos mísseis de Cuba. Fotografia feita pelo exército dos Estados Unidos em novembro de 1962.

As consequências dessa doutrina foram profundas e imediatas. Desde 1962, a ajuda militar dos Estados Unidos às Forças Armadas latino-americanas aumentou a ritmos sustentados. No ano seguinte, o Comando do Sul estadunidense foi transferido para o Panamá para melhor coordenar os

generosos Programas de Assistência Militar oferecidos aos militares da América Latina. Estes se beneficiaram fartamente, recebendo um número sempre crescente de conselheiros militares estadunidenses, de modo particular elevado nas pequenas repúblicas ameaçadas da América Central, ou participando em quantidades até então inimagináveis dos cursos de treinamento e de doutrinação no Panamá ou nas academias militares dos Estados Unidos. Nesses cursos, os oficiais latino-americanos recebiam instruções sobre a guerra irregular contra a guerrilha e sobre a ação cívica, isto é, sobre atividades civis realizadas para reduzir a influência dos guerrilheiros junto à população, como construir estradas ou escolas em lugares onde o Estado estava ausente. Ou, enfim, sendo equipados com armas novas e modernas, não armas pesadas para a guerra convencional, mas leves, precisas e facilmente transportáveis, úteis para combater a guerrilha. Sem dúvida, tudo isso intensificou e solidificou as relações entre as Forças Armadas latino-americanas e os governos dos Estados Unidos, mas deduzir daí que tudo correu por conta de Washington seria desafiar a história e os fatos. A história porque, como já se viu, fazia tempo que, na grande maioria dos casos, essas instituições profissionais haviam se erigido em guardiães da segurança e da identidade nacionais. Os fatos porque não se observa nenhuma relação entre a quantidade e a qualidade da assistência estadunidense às Forças Armadas latinoamericanas e o grau de fidelidade política destas a Washington. Os militares argentinos e brasileiros que nos anos 1960 instalaram regimes alinhados com os Estados Unidos, por exemplo, tinham relações menos intensas com os colegas estadunidenses do que os peruanos ou panamenhos que em 1968 instituíram regimes populistas muito malvistos por eles. Os nove golpes de Estado ocorridos na região nos primeiros cinco anos da Aliança para o Progresso não representaram um sucesso maior para a Casa Branca, que se empenhava em firmar-se como fonte de progresso econômico e democracia política. É verdade que em 1964 a Doutrina Mann legitimou esses golpes ao apontar o anticomunismo como prioridade absoluta da política estadunidense. Mas mais do que dar um sinal de força, essa doutrina sancionou o fracasso do grande projeto kennedyano, obrigado a reconhecer a própria incapacidade de conciliar hegemonia e democracia, e a chegar a um acordo com os regimes militares, ou até preferi-los, em nome da segurança. A confirmação de que os Estados Unidos enfrentavam dificuldades e que acompanhavam os eventos latino-americanos, em vez de liderá-los, foi dada pela administração Nixon. Primeiro em 1969, quando o relatório que encomendou a Nelson Rockfeller não fez mais do que abonar o que o novo autoritarismo já estava fazendo, ou seja, afirmou que os Estados Unidos admitiam não poder impor a quem quer que fosse a melhor maneira de caminhar para a democracia e que onde essa havia fracassado os militares eram os únicos

em condições de garantir ordem, progresso e lealdade internacional. Depois, em 1970, quando não soube impedir a vitória eleitoral de Salvador Allende no Chile nem conseguiu convencer os militares chilenos a impedir sua posse. Até que a brutal intervenção militar três anos depois satisfez a vontade estadunidense de livrar-se daquele governo incômodo, mas instalou um regime muito mais longevo e muito menos dócil do que o desejado. As relações dos Estados Unidos com a América Latina pareceram mudar depois de 1976, com a chegada de Jimmy Carter à Casa Branca. Carter era o herdeiro natural da tradição política dos seus antecessores democratas e, portanto, da intenção deles de reafirmar a liderança política e moral dos Estados Unidos no hemisfério apregoando e favorecendo a democracia. No entanto, ele também se deparava com um contexto diferente: nos Estados Unidos, onde o sucesso da guerra no Vietnã, o escândalo de Watergate, a crise do petróleo e vários outros fatores haviam reduzido ainda mais o prestígio do país e com ele os poderes presidenciais; e na América Latina, onde, com exceção da América Central, não era mais a ameaça comunista que ameaçava o clima e cobria grande parte da região, mas a maré de repressão e militarismo. Uma maré que além do embaraço moral que criava para os Estados Unidos, aliados próximos de regimes de credenciais às vezes sanguinárias, apresentava-lhes também um grave problema político. Com efeito, como enfrentar com eficácia a União Soviética no terreno da liberdade, dos direitos humanos e da democracia, se eles mesmos não conseguiam impor esses valores na sua própria órbita? Postas essas premissas, Carter alicerçou a sua política sobre dois elementos fundamentais. O primeiro era a localização dos conflitos. Em vez de enfrentar cada conflito desde a ótica da Guerra Fria, isto é, como um desafio soviético na América Latina, ele se propôs a desativá-los reconduzindo-os à sua dimensão local, nacional. Daí o seu tímido abrandamento com Cuba, a abertura inicial com relação aos revolucionários que chegaram ao poder na Nicarágua em 1979 e, sobretudo, a assinatura em 1977 dos acordos com o presidente panamenho Omar Torrijos que previam a devolução do Canal à soberania do Panamá em 1999. Com isso, ele fechou a antiga ferida com frequência invocada pelo nacionalismo latino-americano. O segundo ponto fundamental, mais conhecido, foi o dos direitos humanos, com a decisão de entronizar o respeito a esses direitos no centro da sua política para a América Latina e de, com esse objetivo, ameaçar com sanções ou retaliações os regimes que continuassem a violá-los. No conjunto, porém, a política de Carter não teve sucesso e em pouco tempo acabou na mira dos republicanos e da corrente neoconservadora que na época tomava forma nos Estados Unidos. O seu esforço de localizar os conflitos não impediu que os sandinistas nicaraguenses se voltassem para Cuba e que a América Central se tornasse um foco da Guerra Fria. Nem a restituição da

soberania sobre o Canal ao Panamá aplacou o antiamericanismo na América Latina, mas suscitou a animosidade dos conservadores em Washington. Enfim, a própria política dos direitos humanos, embora aplicada com grande circunspeção, não redundou em efeitos concretos: nos Estados Unidos produziu a acusação de que Carter enfraquecia os aliados, fazendo assim o jogo dos soviéticos; com relação às ditaduras latino-americanas, estimulou o sempre latente nacionalismo que estava na origem de todas elas.

1965: os “marines” na República Dominicana Se o uso da força para impor a ordem na própria esfera de influência é sinal de fraqueza mais do que de vigor, isto é, de temor de que os meios pacíficos sejam insuficientes para mantê-la, então os 18 mil fuzileiros navais e as demais tropas que o presidente Lyndon Baines Johnson enviou para a República Dominicana em 1965 foram o símbolo dessa debilidade. E isso apesar de que uma intervenção militar, sob todos os pontos de vista destinada a impor um governo fiel, e ao mesmo tempo impedir a investidura de um presidente suspeito de simpatizar com os comunistas, foi disfarçada como ação de paz para separar as facções antagônicas do exército dominicano e encoberta por uma resolução da Organização dos Estados Americanos. Com efeito, está amplamente demonstrado que os marines favoreceram o sucesso da facção que permitiu no ano seguinte a eleição de Joaquín Balaguer, aliado dos Estados Unidos, e impediram o retorno do presidente Juan Bosch ao poder, deposto pelos militares em 1963, depois de apenas sete meses de governo. Um homem que eles julgavam muito próximo de Fidel Castro e por isso ameaçador, mas que fora eleito democraticamente com cerca de 60% dos votos. Vários fatores contribuíram para tornar essa intervenção militar tão importante e significativa, tanto na história dominicana quanto na história geral da América Latina da época. O primeiro é que nenhum caso se prestava tão bem para estabelecer um paralelismo com Cuba: quer pela proximidade geográfica que transformava Cuba no santuário natural dos revolucionários dominicanos; quer porque a República Dominicana estivera durante três décadas sujeita à feroz ditadura de Rafael Trujillo e da sua família – a quem os Estados Unidos haviam garantido proteção e amizade durante muito tempo; quer, enfim, porque o país contava com uma estrutura econômica e social bastante semelhante à cubana dos tempos de Fulgencio Batista. É verdade que em 1961 o assassinato do ditador havia contado com o beneplácito dos Estados Unidos, já decididos a afastá-lo no clima da Aliança para o Progresso. Mas é verdade também que a transição

que se abriu com a sua morte lhes ofereceu poucas garantias contra a ameaça comunista, considerando-se a eleição de Juan Bosch e a convicção estadunidense de que esse intelectual nacionalista e antiamericano se deixava atrair pelo exemplo cubano.

Juan Bosch, durante um discurso na República Dominicana. Em 25 de setembro de 1963, após sete meses de governo, Bosch foi derrubado por um golpe de estado.

O segundo motivo que fez dessa intervenção militar um evento importante na história regional e nas relações dos Estados Unidos com a América Latina é que essa era a primeira vez desde os anos 1920 que as tropas estadunidenses desembarcavam e combatiam na região. Ou seja, desde quando Franklin Delano Roosevelt havia proclamado a política de Boa Vizinhança e de não intervenção. As Forças Armadas estadunidenses não haviam entrado em ação nem mesmo na Guatemala em 1954, quando Dwight Eisenhower articulara a derrubada de Jacobo Arbenz; e tampouco em Cuba em 1961, onde John Fitzgerald Kennedy autorizou o desembarque malogrado na Baía dos Porcos na tentativa de destituir o ainda recente regime castrista. O fato de que assim procedessem na República Dominicana e de que fossem decisivas para o sucesso daquela crise deu a medida do grau de tensão sem precedentes acumulado pela Guerra Fria na

América Latina e dos meios a que a Casa Branca estava disposta a recorrer para manter a fidelidade da área. Além disso, revelou o precoce declínio do espírito originário da Aliança para o Progresso e da já irrefreável polarização política de toda a região, precursora da violência que marcaria a história durante muitos anos venturos. Bibliografia Collier, David (editor), The New authoritarianism in Latin America, Princeton: Princeton University Press, 1979. Cotler, Julio (editor), Perú, 1964-1994: economía, sociedad y política, Lima: Instituto de Estudios Peruanos, 1995. Dinges, John, The Condor years: how Pinochet and his allies brought terrorism to three continents, New York: New Press, 2004. Huneeus, Carlos, The Pinochet regime, Boulder: Lynne Rienner Publishers, 2007. Loveman, Brian, For la Patria: politics and the armed forces in Latin America, Wilmington: SR Books, 1999. Loveman, Brian e Davies, Jr., Thomas M., The Politics of antipolitics: the military in Latin America, 2nd ed., rev. and expanded, Lincoln: University of Nebraska Press, 1989. Lowenthal, Abraham F., The Dominican intervention, Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1995. Novaro, Marcos, La dittatura argentina, 1976-1983, Roma: Carocci, 2005. Rabe, Stephen G., The most dangerous area in the world: John F. Kennedy confronts Communist revolution in Latin America, Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1999. Skidmore, Thomas E., The politics of military rule in Brazil, 1964-85, New York: Oxford University Press, 1988.

10. A década perdida e a democracia (re)encontrada 1. As transições democráticas O encontro com a democracia política a que grande parte dos países da América Latina deixara de comparecer em diversas ocasiões, uns nos anos 1930, outros depois da guerra, alguns nos anos 1960 e 1970 e vários em todas essas oportunidades, foi ensejado mais uma vez na década de 1980. Como já acontecera no passado, também agora o seu êxito não resultou de uma evolução histórica longa e virtuosa. A democracia enfrentou diversos obstáculos, mais ou menos importantes de acordo com cada caso: crise econômica, desigualdades sociais, culturas políticas autoritárias, conflitos internos e ainda traumas violentos causados em muitos casos pela violência da década que acabara de terminar e por suas sequelas políticas, morais e jurídicas. Ao mesmo tempo, pareceram reunir-se então pela primeira vez, com tempos e modos variados de país para país e de uma região para outra, diversos fatores em condições de facilitar a aclimatação da planta democrática. Por um lado, a onda revolucionária já havia passado ou fora repelida em quase toda a região. Onde ainda persistia, como na América Central, extinguiuse durante a década, seja por reflexo do panorama mundial, onde o modelo socialista antes capaz de alimentar sonhos enveredou pelo caminho do seu melancólico ocaso, seja, ainda mais, pelas derrotas sofridas e a repulsa por parte de amplos estratos sociais depois de vinte anos de predomínio de ideologias e violências. O próprio fascínio que a revolução cubana exerceu durante certo tempo empanou-se depois que o regime castrista assumiu inúmeros traços típicos das ditaduras comunistas. Por outro, contudo, também a onda contrarrevolucionária chegava ao fim e suscitava uma reação em massa inclusive nos setores que antes a haviam aceitado ou tolerado. Tanto que em inúmeros países da região manifestou-se pela primeira vez, de modo concreto e consciente, uma nova sociedade civil, ciente da importância da democracia política em si e dos horrendos danos causados pelas guerras ideológicas ainda recentes; não apenas ciente, mas também decidida a exigir explicações dos militares pelas arbitrariedades cometidas. Uma sociedade civil da qual com o tempo afloraram limites e

fragilidades, mas que na passagem ao novo tempo democrático despertou grandes esperanças e reuniu muitos consensos. Na segunda metade dos anos 1980, as mudanças ocorridas no contexto internacional, fortes o suficiente para causar o colapso do mundo bipolar, só trouxeram benefícios para a transição da América Latina para a democracia. Não porque no passado esse fato teria sido decisivo para selar o seu destino, mas porque se atenuaram e depois dissiparam os pretextos ou as razões que a Guerra Fria sempre oferecera aos protagonistas da vida política latino-americana para não dar valor à democracia: ora em nome da justiça social e da democracia “substancial”, ora da segurança e da democracia “protegida”. O sucesso do Ocidente, feição que o progressivo declínio do império soviético assumiu, só podia conferir à democracia um prestígio e um sentido novos. Antes de mais nada, porém, era preciso chegar à democracia, visto que a América Latina dos anos 1970 estava em grande parte dominada por ditaduras. Então, uma vez encontrada ou reencontrada, a sua qualidade e solidez dependeriam de muitos fatores: históricos, como se viu mais vezes, mas também políticos, econômicos e sociais; e ainda, do modo como cada país mudou de regime, passando da ditadura à democracia. Essa passagem se deu de modos diferentes de um país para outro e a sua história abarcou grande parte da década, motivo pelo qual, para a maioria dos países latino-americanos, essa foi a década da transição à democracia e dos primeiros passos ensaiados pelos novos regimes políticos após as mais ou menos longas e graves temporadas do autoritarismo; passos em geral incertos e caminhos repletos de obstáculos. Deixando de lado por um momento o istmo centro-americano, do qual nos ocuparemos em breve, o arco cronológico coberto pelas transições se estende das eleições em que o Equador escolheu seu novo presidente em 1979 às de dez anos depois, quando o Chile elegeu democraticamente Patricio Aylwin. Entre esses dois marcos, processos eleitorais levaram ao poder Fernando Belaúnde, no Peru, em 1980, Raúl Alfonsín, na Argentina, em 1983, Tancredo Neves, no Brasil, em 1985, além de numerosos outros que em grande parte da América do Sul puseram fim à longa era militar. Sinais evidentes do novo clima e da democratização em curso manifestaram-se pela primeira vez também no México, onde se abriram as primeiras brechas sérias no domínio do PRI: no início, com as vitórias obtidas pela oposição nas eleições em alguns Estados e depois, em 1988, quando grandes massas se reuniram em protestos contra as fraudes imputadas ao governo por ocasião da eleição presidencial de Carlos Salinas de Gortari, cujo mandato não impediu as reformas para democratizar o já desgastado sistema político mexicano; a partir de então, aliás, essas reformas avançaram com rapidez ainda maior.

Ulysses Guimarães, José Sarney e Tancredo Neves, juntos em um palanque em Goiânia, no Brasil, durante campanha presidencial. Candidato à presidência pela Aliança Democrática, Tancredo Neves foi o primeiro presidente civil eleito após mais de vinte anos, em 15 de janeiro de 1985. Foto: arquivo Agência Estado Goiânia.

Em nenhum caso a transição à democracia seguiu vias revolucionárias; melhor, os militares não deixaram o poder por ter sido expulsos. Essa afirmação é muito importante para compreender o grande peso que conservaram ainda por muito tempo no seio dos novos regimes democráticos. Inclusive onde fracassaram com mais evidência, como na Argentina, não foi a pressão popular que precipitou sua retirada, mas as suas insanáveis divisões internas e a humilhação a que expuseram a si mesmos e ao país na guerra das FalklandMalvinas. As rédeas da transição democrática estiveram muito mais firmes nas mãos das Forças Armadas, porém, onde estas se orgulhavam de suas conquistas no campo econômico e com o tempo haviam conseguido criar regimes estáveis e institucionalizados, como no Brasil e no Chile, onde o domínio militar não terminou com os louros da glória, confirmando assim que o impulso democrático aumentara e já pedia passagem, mas a transição seguiu o traçado institucional preparado pelas ditaduras. Assim foi no Brasil, onde em 1985 as praças e avenidas foram tomadas pelas multidões que pediam eleições “diretas já”, mas o novo presidente foi eleito pelo Parlamento, de acordo com os procedimentos previstos pelo regime. Além disso, mais ainda do que as pressões civis, foram as preocupações com as consequências de um governo tão longo sobre a disciplina das Forças Armadas que as convenceram a encaminhar a transição. Esta foi muito longa e comandada pelos próprios militares, que por isso mantiveram uma enorme

influência no regime democrático. Assim aconteceu também no Chile, onde o plebiscito por meio do qual o general Pinochet esperava prolongar o seu governo não teve os resultados esperados, vendo suas ambições frustradas por 56% dos votos. Não obstante, também aqui a transição seguiu as etapas previstas pela Constituição proclamada pelo regime em 1980 e com base na qual, mesmo com a derrota de Pinochet, os militares conservaram amplos poderes durante muito tempo, mesmo depois da volta da democracia. De modo geral, as transições implicaram verdadeiras negociações e acordos entre os militares e as oposições. Aqueles concederam a estas as anistias que eles mesmos aprovaram para eximir-se de eventuais processos por violação de direitos humanos. No Uruguai, por exemplo, onde a derrota sofrida pelo governo militar no referendo com que procurou legitimar-se abriu em 1985 o caminho para o retorno da democracia. Esse fato, porém, não os impediu de negociar com os partidos tradicionais as condições da transição e de assegurar para si mesmos imunidade pelos crimes cometidos. O pacto entre militares e civis caracterizou também a transição democrática no Peru, mas em seguida a democracia encontrou aqui enormes dificuldades para fincar suas raízes.

A guerra das Falkland-Malvinas Falkland para os ingleses que detêm a soberania sobre essas ilhas desde 1833 e Malvinas para os argentinos que a reivindicam desde sempre, esse arquipélago, povoado por poucos milhares de colonos de origem inglesa e exposto aos ventos gélidos do Atlântico Sul, foi pivô em 1982 da última guerra entre países ocidentais no século XX. Essa guerra, entre Argentina e Grã-Bretanha, foi travada depois que o governo militar de Buenos Aires, com a popularidade em baixa e pouca coesão política, aproveitou a paralisia das negociações sobre a soberania das ilhas para ocupá-las militarmente. A resposta que obteve foi na realidade o que esperava evitar: a violenta reação da primeira-ministra britânica Margaret Thatcher. A frota e as forças enviadas levaram a Argentina à derrota após 74 dias de combates, com cerda de 900 vítimas, 70% delas argentinas. Esse confronto acelerou a crise do regime e o impediu de impor as condições da transição para a democracia. Comandados pelo general Leopoldo Galtieri, expressão da ala dura do governo decidida a empunhar as bandeiras nacionalistas na tentativa de construir um consenso popular tendo em vista o fim do regime, os militares argentinos obtiveram inicialmente o efeito desejado. Ao saber que a bandeira argentina tremulava sobre as Malvinas, multidões se reuniram em toda parte para festejar; com poucas exceções, dirigentes sindicais,

políticos e as instituições mais influentes expressaram seu apoio ao governo. Este, porém, logo se deu conta de que as estimativas estavam equivocadas. Além disso, não obteve a oportuna neutralidade dos Estados Unidos, com que imaginara contar, mas que a administração Reagan lhe negou para apoiar os aliados ingleses. Tampouco lhe adiantou manipular as informações, recurso a que apelou durante o conflito para que os argentinos acreditassem que tudo corria bem. Quando enfim a realidade veio à tona e com ela a absoluta falta de perícia política e militar do regime, a guerra que se vislumbrara como sua boia salva-vidas tornou-se o seu túmulo, transformando-o num tremendo bumerangue. Àquela altura, nada conseguiu impedir que os seus inúmeros fracassos se tornassem visíveis, especialmente o caos econômico e as violações dos direitos humanos em que havia incorrido. Um número cada vez maior de argentinos começou a exigir satisfações e a querer virar aquela página traumática da história nacional. Esses objetivos foram alcançados nas eleições de 1983, quando os militares perderam a esperança de se perpetuar no poder e os peronistas foram derrotados, pela primeira vez na história argentina, em grande medida porque os desastres do governo de Isabel Martínez de Perón continuavam frescos na memória de todos. Além disso, o candidato radical, Raúl Alfonsín, granjeara a estima da maioria por representar a ruptura com o passado e por ter sido um dos poucos dirigentes políticos a se distanciar do regime antes que este se tornasse impopular. Como os demais regimes da região, este também pudera contar durante muito tempo com a aceitação passiva de grande parte da população, mas que nesse momento aspirava a ver-se livre dele o mais rápido possível.

2. A economia nos anos 1980: a década perdida Durante todo o decênio, o que contribuiu para tornar ainda mais complexos os primeiros passos das jovens democracias, quase todas elas abaladas por uma história de convulsões políticas e pelo legado dos regimes militares, foi a péssima conjuntura econômica. Não sozinha, porém, mas acompanhada pelo agravamento dos indicadores sociais mais significativos: o desemprego, o percentual da população abaixo da linha da pobreza, a distribuição da riqueza e a mobilidade social. Essa foi uma conjuntura negativa em todos os sentidos, de tal modo que esse período ainda hoje é lembrado como a década perdida: um decênio sem desenvolvimento, durante o qual a região como um todo retrocedeu nos campos econômico e social. No fim dos anos 1980, os dados eram incontestáveis: o produto médio per capita era menor do que o de dez anos antes e a dívida externa havia aumentado de forma exorbitante, de modo que a sua amortização se tornara uma carga insuportável para as economias da região,

atravessada por crises tão profundas que desestabilizaram o sistema econômico internacional no seu todo, do qual a América Latina se tornara havia muito tempo o anel mais fraco. O início se deu com a crise mexicana de 1982, que eclodiu quando o governo mexicano, diante da impossibilidade de pagar a dívida externa, desvalorizou drasticamente a moeda. Frente à ameaça de espalhar-se e arrastar os credores consigo, governos, bancos e organismos financeiros internacionais foram obrigados a encontrar uma solução para o impasse. O término ocorreu com a crise argentina de 1989, quando a inflação descontrolada se transformou em hiperinflação. Esta causou pânico econômico, efeitos sociais dramáticos e uma aguda crise política. Longe de ficar restrita à Argentina, manifestou-se em formas virulentas também em diversos outros países, embora em momentos diferentes, como por exemplo, Brasil, Peru, Bolívia e Nicarágua. Vários fatores estavam na base dessa profunda crise que atingia a América Latina no exato momento em que se processava a delicada passagem para a democratização e que por isso mais precisava de um crescimento econômico robusto que lhe permitisse atender às enormes expectativas. Alguns exógenos, relacionados com a economia mundial e além do alcance dos governos latinoamericanos. Muitos outros endógenos, capazes de exigir escolhas dolorosas de todos. Entre os primeiros destacam-se a estagnação econômica mundial, a consequente drenagem dos fluxos de investimentos e créditos que antes seguiam para a América Latina e, sobretudo, a brusca elevação das taxas de juro. Esta trouxe como consequência o fato de que os abundantes empréstimos obtidos a taxas reduzidas nos anos 1970 venciam agora a taxas muito elevadas, transformando assim a dívida externa numa avalancha capaz de submergir as frágeis economias regionais. Quanto aos fatores endógenos da crise, estes expuseram sua natureza estrutural, ou seja, mostraram que o modelo de desenvolvimento adotado de modos variados nas últimas décadas – o modelo dirigista e voltado ao mercado interno – havia encerrado o seu ciclo. Quase à semelhança de um orçamento, ficou claro ao longo dos anos 1980 que se tratava de um modelo obsoleto do qual nada mais se poderia extrair e que, para agravar ainda mais a situação, estava se transformando em perigoso obstáculo. A estrutura produtiva da América Latina mostrou-se inadequada para enfrentar os desafios de um mercado cada vez mais aberto e global em que perdia quotas comerciais e não conseguia acompanhar a revolução tecnológica que se propagava em muitas outras regiões do planeta. Esses fenômenos podiam ser observados não só na ineficiência do parque industrial, em geral desenvolvido à sombra do protecionismo e inadequado para absorver os enormes fluxos da população para as cidades, e no envelhecimento da infraestrutura, mas também nos desequilíbrios cada vez mais incontroláveis das contas públicas, eivadas de exorbitantes déficits e com frequência prestes a

desencadear espirais inflacionárias em toda a região, e na crônica depressão dos investimentos. Enfim, a fuga maciça de capitais para as rendas seguras garantidas pelos bancos dos países mais avançados, quase equivalente ao volume da dívida externa da década, foi o golpe de graça para as economias com problemas e com urgente necessidade de reinvestimento, isto é, de abrir-se e tornar-se competitivas. Superar esses obstáculos e sanar as contas não eram tarefas nada fáceis nem indolores, dados os custos sociais que implicavam. Custos pesados, reflexo dos planos de ajuste estrutural negociados pelos governos da região com o Fundo Monetário Internacional. Esses planos previam cortes bruscos nas despesas públicas para recuperar o equilíbrio do balanço fiscal, políticas monetárias restritivas para conter a inflação e desvalorizações radicais para estimular as exportações. Essas eram todas medidas onerosas para aquelas democracias ainda jovens e distantes da consolidação, nas quais a confiança nas instituições políticas era baixa e onde a adoção de medidas sociais duras, em geral impostas pelos credores externos, ameaçava alimentar a reação nacionalista, sempre latente; ou então despertar as recém-adormecidas cruzadas ideológicas contra o imperialismo, as quais emitiram de fato alguns sinais quando Fidel Castro procurou assumir a liderança dos países devedores, embora malogrando; ou mesmo desencadear verdadeiras revoltas sociais onde uma maior quantidade de fatores de descontentamento havia se acumulado. Isso aconteceu na Venezuela em 1989, onde o presidente Carlos Andrés Pérez, acossado pela queda das receitas provenientes do petróleo depois da idade de ouro dos anos 1970, adotou um plano de austeridade que, retirando os subsídios de alguns bens primários, produziu uma onda de protestos populares. A violenta repressão a esses atos resultou em cerca de 300 mortos naquele que ainda hoje continua conhecido como o Caracaço e assinalou o início da profunda crise de um dos raros regimes políticos que atravessara ileso as décadas de 1960 e 1970.

Imagens do “Caracaço”, em Caracas, na Venezuela, em 27 de fevereiro de 1989. Arquivo Telesur.

Por todos esses motivos o panorama econômico e social dos anos 1980 na América Latina foi muito sombrio, a ponto de levar a CEPAL a definir um doloroso processo de aprendizado. Pelo final da década, podia-se observar aqui e ali a recuperação de alguns setores industriais e agrícolas, que haviam voltado a ser competitivos. A abordagem dos problemas econômicos tendia a assumir um perfil menos ideológico e mais pragmático do que no passado. Além disso, lançavam-se algumas bases promissoras para uma integração regional mais estreita, de modo especial entre os países do Cone Sul, inimaginável apenas uma década antes. Em suma, começavam a configurar-se as profundas mudanças dos anos 1990.

A crise da dívida externa Na origem da crise da dívida que estrangulou os países da América Latina nos anos 1980 estava a peculiar conjuntura financeira mundial da década anterior. Nos anos 1970, de fato, quando os preços do petróleo se elevaram a níveis nunca vistos, os países exportadores se viram na posse de enormes capitais que depositaram em grande parte nos bancos estadunidenses e europeus. Os bancos, por sua vez, procuraram tirar a

maior vantagem possível dessa imensa liquidez fazendo generosos e abundantes empréstimos aos países em via de desenvolvimento, entre os quais de modo particular os maiores e mais industrializados da América Latina. Estes julgaram então possível financiar o seu desenvolvimento. No início dos anos 1980, esse mecanismo aparentemente virtuoso, mas na realidade muito perigoso, emperrou. A estagnação mundial, a retração das exportações latino-americanas e principalmente o aumento das taxas de juro transformaram as dívidas em corda de enforcado, com laços tão apertados que durante vários anos a região se tornou exportadora líquida de capitais para os países centrais.

Nicholas Brady, secretário do Tesouro norte-americano, autor do plano de reestruturação da dívida externa da América Latina.

Desde 1982, quando o México suspendeu o serviço da dívida, causando arrepios aos credores, e nos anos seguintes, quando a América Latina começou a ser assombrada pelo fantasma de um cartel dos devedores, atiçado de forma radical por Fidel Castro e em termos mais moderados pelo presidente peruano Alan García, a solução para o problema da dívida se impôs como prioridade tanto na agenda econômica como política do continente.

A bolha da dívida começou a desinflar apenas pelo fim da década, não porque o problema tivesse desaparecido, mas pela nova estratégia adotada pelo governo de George Bush. O chamado Plano Brady, de 1989, derivado do nome do secretário do Tesouro dos Estados Unidos, revelava que a maioria dos países da América Latina estava sem condições de pagar a dívida nos termos previstos e que os custos sociais que haviam suportado nessa década eram tão elevados, que ameaçavam pôr em risco os novos regimes democráticos. Nesse contexto, era grande a possibilidade de que toda a região mergulhasse no caos no momento mesmo em que se encerrava a Guerra Fria e se abrandavam pela primeira vez depois de tanto tempo os temores estadunidenses pela segurança na região. Por isso, o Plano Brady desistiu da já tradicional estratégia que consistia em reestruturar vez por outra a dívida e fornecer novos créditos para pagar os juros vencidos. Em seu lugar, previa um pacote de medidas destinadas a reduzir a dívida e a estimular as reformas econômicas dos países beneficiários. Reformas liberais, de modo a reduzir o peso econômico do Estado, a abrir os mercados à competição externa, a incentivar o ingresso de capitais estrangeiros, e assim por diante. O Plano, que no geral apresentou resultados positivos, recebeu a adesão dos principais e mais endividados países da região, os quais puderam assim retornar ao mercado de capitais, fechado para eles durante todos esses anos. Em 1991, pela primeira vez desde o início da crise da dívida, o volume de capitais que entrou nas economias latino-americanas foi maior do que os capitais que saíram.

3. A América Central em chamas Enquanto o autoritarismo e a violência política diminuíam em muitos países da região nos anos 1980, o contrário acontecia na América Central, onde esses dois fenômenos chegavam ao auge, por razões diversas. Em primeiro lugar, porque, exceção feita ao caso peculiar da Costa Rica, onde a democracia política era bastante sólida e os indicadores sociais muito melhores do que em outras partes a despeito da crise econômica da década, os demais países do istmo apresentavam estruturas sociais e regimes políticos muito mais atrasados do que o resto da América Latina. Não obstante, a modernização que havia se acelerado desde os anos 1960 preparou o caminho para distúrbios políticos e sociais radicais análogos aos que já haviam afetado os países mais avançados. Transtornos que surgiram devido à crescente demanda de integração social que se deparou com um obstáculo intransponível nas hierarquias étnicas e sociais rígidas ainda predominantes e na violenta reação das oligarquias no poder. Como consequência, três guerras civis ensanguentaram a região durante muito

tempo: na Guatemala, em El Salvador e na Nicarágua, onde os revolucionários conquistaram o poder em 1979. Tudo isso alimentou o fantasma do efeito dominó, ou seja, da queda de outros regimes em risco por ataques das guerrilhas. O segundo e evidente motivo que fez do istmo centro-americano a zona mais conflituosa da América Latina e uma das mais inflamadas no mundo foi a relevância que ele assumiu no contexto internacional da época: seja pela sua localização geográfica e as suas relações desde sempre especiais com os Estados Unidos; seja pela influência que Cuba e, através dela, a União Soviética exerciam na área; seja enfim pelo rumo que o presidente Ronald Reagan imprimiu à Guerra Fria desde que passou a ocupar a Casa Branca em 1981: a partir daí a região se tornou a encruzilhada de conflitos que iam muito além dos seus limites. Assim, os problemas já graves e radicais da América Central se internacionalizaram, tornando-se ainda mais cruciais e violentos. Das guerras civis centro-americanas, a mais longa e sangrenta foi a da Guatemala, onde o número de vítimas entre os anos 1960 e 1990 chegou a cerca de 200.000, 90% causadas pelos massacres do exército e de grupos paramilitares. As origens distantes desse conflito encontravam-se na brusca interrupção do experimento populista de Jacobo Arbenz em 1954, mas sofreu uma escalada pelo final dos anos 1970. Por um lado, o governo militar adotou uma política de terra arrasada, quer dizer, voltada à formação de um vácuo em torno dos insurgentes recorrendo à violência indiscriminada e à concentração da população rural, em grande parte indígena, em vilas especiais. Esse processo chegou ao seu ponto culminante em 1982, quando o general Efraín Rios Montt assumiu o poder pela força, que pôde assim recuperar boa parte do território, durante muito tempo sob o controle da guerrilha. Esta, na frente oposta, se congregou no mesmo ano numa organização única, a Unidade Revolucionária Nacional Guatemalteca (URNG), que com o tempo, todavia, teve suas ações cada vez mais limitadas. Mais breve, mas igualmente brutal, foi a guerra civil em El Salvador nos primeiros anos da década de 1980, o menor mas intensamente povoado país da região, onde a violência era prática comum havia tempo, mas nesse período degenerou em guerra civil aberta. Melhor dizendo, quando na esteira do sucesso revolucionário na vizinha Nicarágua, El Salvador se tornou, tanto para os militares locais como para a administração estadunidense, a nova trincheira, de contenção primeiro, e em seguida de extirpação, de uma suposta ameaça comunista. A violência do exército, e ainda mais dos esquadrões da morte organizados pelas direitas políticas, se tornou endêmica e não poupou a ninguém, nem mesmo o arcebispo de San Salvador, monsenhor Óscar Romero, assassinado em 1980 por tê-la denunciado. Por sua vez, a oposição política e

militar se reuniu sob um comando único, a Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional-Frente Democrática Revolucionária (FMLN-FDR), que exerceu o controle sobre amplas zonas rurais e tentou atacar várias vezes a capital, mas sem sucesso. O imperativo de impedir o fluxo de armamentos para a guerrilha salvadorenha e o temor do contágio revolucionário estiveram entre os argumentos usados na época pela Casa Branca e pelos militares de El Salvador, a quem ela forneceu muita ajuda e assistência para executar uma política agressiva com relação ao governo sandinista na Nicarágua. Presidida por Daniel Ortega, desde o início chefe da junta de governo criada depois da revolução, e em 1984 eleito presidente em eleições de que grande parte da oposição se absteve, a experiência da Nicarágua sandinista suscitou grandes esperanças, mas igualmente não menores decepções. Por um lado, sofreu o cerco da maior potência mundial, os Estados Unidos, que recorreram a todos os meios, menos o da intervenção militar, para dobrá-la: embargo econômico, covert actions e principalmente o financiamento de um exército contrarrevolucionário, os contras, nas fronteiras do país. Com o tempo, esse exército gerou enorme descontentamento devido à nova orientação política assumida e que contribuiu em grande medida para minar a economia do país e a popularidade do governo. Por outro lado, o governo sandinista manifestou as típicas características do populismo latino-americano, isto é, esboçou planos sociais ambiciosos voltados à integração das massas, especialmente a reforma agrária e uma maciça campanha de alfabetização. Mas tendeu também a concentrar o poder e a monopolizá-lo em nome da revolução, perdendo assim o vital apoio da Igreja e do setor privado, que logo passaram para a oposição. Nesse sentido, contribuíram também as estreitas relações do governo sandinista com Cuba.

Acampamento dos “contras”. Nicarágua, 1984. Fotografia de Marcelo Montecino.

Dadas essas premissas, não surpreende que a transição democrática na América Central, embora ocorrida em toda parte na segunda metade dos anos 1980, por conta de inúmeros aspectos resultasse ainda mais precária da que estava em curso em outras partes; e que as instituições democráticas nascidas da derrocada do autoritarismo fossem na maioria dos casos frágeis e pouco representativas, além de sujeitas a fortes condicionamentos, tanto por parte dos exércitos locais, quanto por parte dos Estados Unidos. Assim aconteceu na Guatemala, onde o governo que emergiu das eleições de 1986 esteve sujeito a enormes pressões militares e evitou investigar as violações dos direitos humanos. E assim aconteceu também em El Salvador, onde as eleições de 1984 não puseram fim à violência, a qual impediu as negociações entre as partes em confronto, retomadas somente no início dos anos 1990. Finalmente, quanto à Nicarágua, os esforços diplomáticos dos vizinhos estabeleceram as bases do diálogo entre governo e contras, o qual redundou nas eleições de 1990, quando a demonstração de força estadunidense e a crise econômica causaram o colapso sandinista e a vitória eleitoral de Violeta Chamorro, candidata da oposição. Com essa vitória, os confrontos armados cessaram.

Monsenhor Romero e a Igreja O assassinato de monsenhor Óscar Romero durante a celebração da missa em 24 de março de 1980, em San Salvador, levantou uma onda de

indignação em toda parte e foi emblema desse período de violência cega que semeou a morte na América Central. A Igreja católica foi testemunha e protagonista desse período, e muitas vezes vítima marcada, tanto que os conflitos que assolaram a região assumiram de modo geral o caráter de guerras religiosas que a dividiam internamente. Um exemplo é o que aconteceu em El Salvador, onde a um governo que pretendia legitimar o extermínio com a alegação de que defendia o Ocidente cristão contra o comunismo, opunha-se uma guerrilha em que militantes católicos e marxistas lutavam lado a lado. Outro caso é o da Nicarágua, onde a Igreja contribuiu para a queda dos Somoza, mas logo se viu dividida diante do governo sandinista. Desde o primeiro momento, este reivindicou a sua natureza cristã e socialista ao mesmo tempo e nomeou três sacerdotes como ministros, acirrando os conflitos com as autoridades eclesiásticas, que se tornaram suas opositoras mais intransigentes. Por que, em todas as frentes, a invocação de Deus e da cristandade ressoou tão intensa para legitimar causas contrárias? E por que tantos mártires católicos em países católicos, governados por militares cristãos em luta contra guerrilhas um tanto marxistas um tanto cristãs? Como já ocorrera em outras partes, na América Central somaram-se na época a crise da modernidade e a crise da cristandade. A primeira foi provocada pelo rápido desgaste das relações sociais tradicionais e pela abertura ao mundo das comunidades típicas do universo rural e provincial do passado. Bem como pelos seus corolários: a fratura da ordem política elitista e o boom da demanda de participação política e democracia social. Basta dizer, por exemplo, que nos vinte anos anteriores ao assassinato de Romero, a população de El Salvador havia praticamente duplicado, de modo especial a urbana, que o produto nacional havia se multiplicado por três, o comércio exterior por dez e que a escolarização triplicara. A crise da cristandade se refletiu na leitura latino-americana da renovação ou atualização (aggiornamento) da Igreja promovida pelo Concílio Vaticano II, que encontrou terreno fértil nas condições sociais da América Central, onde prosperou a Igreja dos pobres, ou Igreja progressista, inspirada pela Teologia da Libertação. Nessas sociedades em rápida modernização e permeadas de rupturas abismais, a Igreja católica conservava um enorme poder moral e um profundo enraizamento social. Além disso, as facções contrárias recorriam à doutrina católica para legitimar-se. Em suma, tratava-se de sociedades pouco secularizadas onde era raro distinguir entre “povo” e “povo de Deus”, entre política e religião. Para os militares, que sempre haviam se erigido em pilares da unidade política e espiritual da nação e encontrado na

Igreja a mais firme aliada, tornou-se inconcebível e intolerável que jovens tomassem em armas em nome da mesma cristandade que eles invocavam. Ou seja, que disputassem com eles as fontes da legitimidade política e espiritual sobre a qual haviam construído o seu papel e a sua função. Por isso, desencadearam contra esses jovens e contra o clero, a quem imputavam tolerância para com o inimigo, a fúria típica de quem se lança contra o herege, acusado de traição à causa comum: a causa da nação católica de quem ainda se sentiam os guardiões. Pelo prisma do imaginário do corpo de oficiais, aqueles militantes em geral movidos pelo sonho de fazer a revolução para lançar as bases de uma sociedade verdadeiramente cristã, visceralmente antiliberais e antiamericanos, nada mais eram do que a manifestação do vírus que havia contaminado o organismo da nação; um vírus que era preciso erradicar, se necessário eliminando também os que envenenavam as mentes, os frágeis, os “traidores”: todas essas acusações odiosas de que monsenhor Romero não escapou e que acabaram custandolhe a vida.

Monsenhor Romero.

4. A doutrina Reagan e a América Latina A política da administração Reagan, instalada em 1981 e com duração de dois mandatos, identificou na América Latina, e de modo particular na Central, um cenário decisivo da queda-de-braço com a União Soviética, ou seja, da última e definitiva fase da Guerra Fria que encerrou uma década de distensão e terminou com a implosão do império soviético. Nesse sentido, a política de Reagan

assumiu uma nova e significativa direção no que se refere à região, diferente da seguida pelo seu antecessor. Com efeito, Jimmy Carter havia se empenhado em regionalizar os conflitos locais, ao passo que Reagan fez o possível para globalizá-los, por ver neles uma peça menor do mosaico mais amplo da Guerra Fria, no qual o que estava em discussão era a credibilidade da potência estadunidense e a sua capacidade de dobrar o braço dos soviéticos e dos seus aliados. Assim aconteceu com a Nicarágua, contra a qual o seu governo se lançou, recorrendo inclusive a meios ilegais, como o de enganar o Congresso que lhe havia negado os recursos para os contras e obtendo-os através da venda clandestina de armas ao Irã, inimigo dos Estados Unidos. Assim aconteceu com El Salvador, cujo exército obteve mais ajuda do que qualquer outro na região. E assim aconteceu em geral com a América Central, uma área onde os interesses estadunidenses eram reduzidos, mas que para seu infortúnio, com a revolução sandinista, entrou no campo de batalha das grandes potências. Por fim, foi o que aconteceu com a pequena Granada, uma ilha britânica do Caribe com muito pouco de latina, mas para onde Reagan enviou em 1983 os fuzileiros navais para depor um regime demasiadamente alinhado com Cuba. Reagan e os seus colaboradores acusaram a administração anterior de ter sido forte com os amigos e fraca com os inimigos; de ter imposto sanções e feito pressões sobre regimes aliados denunciando a violação dos direitos humanos, sem obter resultados desejados, a não ser o de enfraquecê-los. E, ao contrário, de ter afagado os regimes nacionalistas, como no caso do Panamá e da restituição da soberania sobre a zona do Canal, ou comunistas, como Reagan acreditava ser a Nicarágua sandinista, mas para a qual Carter havia reservado uma discreta abertura. O critério sobre o qual se baseou desde então a política estadunidense voltada para a região foi explicitado por Jeane Kirkpatrick, embaixadora junto às Nações Unidas. Ela fez uma distinção entre regimes autoritários e regimes totalitários, “recuperáveis” aqueles, “irrecuperáveis” estes. Essa distinção incluiu entre os primeiros as ditaduras amigas, passíveis de censura, mas capazes de evoluir para uma democracia. E entre os segundos, os regimes de tipo comunista, como Cuba e Nicarágua, que não demonstravam nenhuma intenção de se tornar democracias. Para com os primeiros, portanto, os Estados Unidos deviam ter uma política firme, mas amigável, de modo a incentivá-los à democratização para a qual já tendiam, para que essa gerasse regimes políticos sintonizados com a perspectiva ocidental. Com relação aos segundos, não pouparam meios para isolá-los totalmente, no caso de Cuba, ou estrangulá-los, como no caso da Nicarágua. A doutrina que o próprio Reagan enunciou em 1985 e em que proclamou o empenho dos Estados Unidos em apoiar quem quer que

combatesse a agressão comunista, de fato não fez mais do que confirmar princípios análogos, aos quais com efeito o seu governo se ateve. Essa interpretação em chave bipolar e em termos ideológicos dos conflitos na América Central gerou também reações e tensões com vários países latinoamericanos. Muitos deles, embora mantendo boas ou regulares relações com Washington, a consideravam inadequada, pois não levava em conta as raízes sociais e econômicas das crises em curso, ou potencialmente ameaçadora, pois legitimava o intervencionismo dos Estados Unidos na região. Como consequência, em 1983, surgiu o chamado Grupo de Contadora, formado pela Colômbia, México, Panamá e Venezuela, que dois anos mais tarde recebeu o apoio dos grandes países da América do Sul que no entretempo haviam voltado à democracia. Com isso se consolidava o primeiro esforço diplomático sério com que os países da América Latina se propunham a resolver “em família” as crises regionais. Um esforço que se defrontou com a hostilidade dos Estados Unidos, determinados a não reconhecer em absoluto o governo da Nicarágua, mas que teve um papel importante na assinatura dos acordos de paz concluídos pelos presidentes da América Central em 1987 e que granjearam o prêmio Nobel da Paz ao presidente da Costa Rica, Oscar Arias. Em janeiro de 1989, quando George Bush se instalou na Casa Branca e poucos meses depois a queda do Muro de Berlim revolucionou de chofre a ordem internacional, o contexto da América Latina havia mudado profundamente com relação à década anterior: não só na América do Sul, onde também o Chile se preparava para concluir a sua transição, e pouco depois, no Paraguai, seria deposto o ditador mais longevo da região, o general Stroessner; mas também na América Central, onde as negociações de paz estavam em curso e se anunciavam eleições na Nicarágua. Que tudo isso se devesse às políticas de Ronald Reagan, como sustentam alguns, que acontecesse apesar delas, como insistem outros, ou que enfim fosse fruto de uma evolução história sobre a qual os Estados Unidos na realidade só influenciavam até certo ponto, a verdade é que a administração Bush se viu diante de um contexto muito menos conflituoso do que o seu antecessor. Por isso, talvez, começou a virar a página da política estadunidense para a região, preferindo uma abordagem mais diplomática e menos ideológica dos seus conflitos e procurando de modo particular contribuir para fechar as profundas brechas abertas pela “década perdida”. Decorre daí o compromisso assumido na frente econômica com o já mencionado Plano Brady. Por outro lado, com o inimigo soviético sujeitado, a obsessão estadunidense pela segurança diminuiu drasticamente e as relações com a América Latina voltaram pouco a pouco a percorrer caminhos mais tradicionais. Em um caso, porém, a arma usada por Bush não foi a da política e da diplomacia, mas a da invasão militar: ocorreu no Panamá, em dezembro de 1989, com o desembarque

de 20 mil militares estadunidenses para depor e capturar o general Manuel Noriega, o homem forte que detinha as rédeas do poder. Com isso as relações entre Estados Unidos e América Latina entraram numa nova fase, não mais dominada pelo fantasma comunista que pairava sobre o hemisfério, como durante a Guerra Fria, mas por outros problemas, mais prosaicos, mas não menos importantes. O primeiro destes era a produção e o tráfico de entorpecentes em inúmeros países latino-americanos.

1989: invasão do Panamá Efetuada enquanto o mundo e a América Latina acompanhavam estupefatos a fragorosa queda do império soviético na Europa Oriental, a operação Justa Causa, denominação em código da invasão do Panamá, foi uma operação militar ao estilo antigo. Ou seja, uma intervenção armada destinada a mudar o regime político local e a exportar a democracia que Manuel Noriega mantinha como refém. O fato de que o próprio Noriega tivesse sido no passado um precioso colaborador dos serviços secretos estadunidenses durante os conflitos centro-americanos não foi suficiente para preservar-lhe o poder. No momento em que esses conflitos se encaminhavam para a solução e a ameaça soviética perdia seu encanto, também aqueles que, como Noriega, haviam sido aliados úteis, embora indigestos, passavam a ser para os Estados Unidos o que já alguns anos antes se sabia que eram: no caso, um homem não só dedicado ao exercício de poderes ditatoriais que já representava uma mancha no meio de uma região em fase de democratização, mas também um protetor corrupto do tráfico de drogas cujo destino final eram os Estados Unidos.

Com um bombardeio simultâneo, em 19 de dezembro de 1989, começou a invasão norteamericana no Panamá, denominada “Operação Causa Justa”. De acordo com o presidente George Bush, o objetivo era capturar Manuel Antonio Noriega e proteger os interesses dos Estados Unidos.

Nesse caso, a política de sanções adotada por Reagan em 1987 para livrar-se desse homem incômodo e favorecer a transição democrática no Panamá não havia surtido efeitos. Antes, instigara Noriega a assumir a causa nacionalista e a endurecer ainda mais o seu regime, conspurcando-se com inúmeros crimes, o mais conhecido dos quais foi o assassinato de Hugo Spadafora, um destacado opositor. Foi então que, desprezando as reações internacionais, tão indignadas quanto ineficazes, e fortalecido com o enorme prestígio e poder que a queda concomitante do inimigo soviético conferia aos Estados Unidos, George Bush e o seu governo resolveram empregar as velhas práticas, reminiscentes da já distante época do big stick. De fato, tiveram sucesso, uma vez que Noriega, depois de refugiar-se na Nunciatura Apostólica, foi capturado e deportado para os Estados Unidos, onde foi processado e condenado. Além disso, a grande maioria da população panamenha apoiou as investigações em torno de tudo o que havia acontecido. Não obstante, os custos também foram muito elevados, dado que, longe de ser cirúrgica como prometido, a operação Justa Causa

implicou grandes bombardeios nos bairros onde o apoio popular ao ditador deposto era maior. Segundo diversas estimativas, essas operações causaram milhares de vítimas, entre 1.000 e 4.000, em grande parte civis.

5. As novas democracias: esperanças e limites A volta das democracias ou o seu inédito advento em grande parte da América Latina suscitou um pouco em todos os setores, tanto na opinião pública quanto nas ciências sociais, um acalorado debate e esperanças as mais ardentes sobre o novo período que iniciava. Com efeito, as grandes manifestações que as acompanharam em muitos países eram de tal magnitude que as nutriam e levavam a pensar que o futuro seria muito diferente do passado. O que as pessoas costumavam reivindicar através delas não era uma ordem justa e pura em nome de alguma ideologia redentora, mas eleições transparentes e justiça para os crimes das ditaduras contra os direitos humanos; em suma, liberdade e democracia. Na América Latina, parecia haver-se difundido uma nova cultura democrática produzida por uma ainda mais nova sociedade civil, capaz de dar um fim definitivo à crônica alternância entre inclusão populista e exclusão militar e de pela primeira vez tornar a democracia sustentável no tempo. Uma sociedade civil que se caracterizava tanto por sua confiança nas instituições democráticas como meio natural para alcançar uma equidade social maior, quanto por sua independência do Estado. Com os inúmeros movimentos sociais que formavam essa nova galáxia – movimentos sindicais, grupos religiosos, organizações de direitos humanos, associações feministas – parecia enfim, nesse clima de efervescência, encerrar-se o longo ciclo histórico do corporativismo latino-americano e do seu imaginário holístico, o qual, concebendo a ordem social como uma unidade orgânica, de um modo ou de outro levava a negar a sua pluralidade, a inibir as instituições responsáveis por governá-la e a impor a unanimidade política e espiritual. Por outro lado, parecia iniciar-se um período propício para que se enraizasse na região a cultura do direito e das liberdades individuais, da tolerância e do pluralismo. Nem todas essas esperanças se mostraram infundadas. Com efeito, muitos países lançaram nesses anos os fundamentos da ordem democrática que ainda perdura. Mas nem tudo o que aconteceu então e na continuidade atendeu às expectativas e justificou tanto otimismo entusiasta. Muitos fatos e inúmeras crises levaram rapidamente a admitir que nem a sociedade civil era sempre tão robusta e virtuosa como se pensava, nem as estruturas mentais e materiais do passado haviam se pulverizado de repente. Com a cumplicidade da dramática crise econômica, muitos e complexos problemas vieram à tona na grande maioria dessas jovens democracias ou também naquelas que mesmo sendo mais antigas, nem por isso gozavam de melhor saúde.

Os exemplos se multiplicam, a começar pelos grandes países da região, e de modo particular pelo caso argentino, onde a disparidade entre expectativas e resultados talvez fosse maior. Chegando à presidência com a onda de uma catarse democrática sem precedentes e por ela levado ao processo em que os comandantes da ditadura foram condenados diante dos admirados cronistas de todo o mundo, Raúl Alfonsín logo se viu premido entre a reação militar e a sindical: a primeira expressa em inúmeros motins nas casernas e a segunda na longa série de greves gerais que proliferaram durante esses anos, até que o homem que havia personificado o renascimento do país em 1983, seis anos depois, forçado pela hiperinflação, precisou ceder o poder prematuramente ao sucessor, Carlos Menem. A nova democracia não se sentiu muito à vontade nem no Brasil. A nova Constituição aprovada em 1988 certamente lhe possibilitou avançar alguns passos, introduzindo a eleição direta do presidente com sufrágio universal, restabelecendo o princípio federativo espezinhado pelos militares, reconhecendo o direito de greve e várias outras liberdades civis. A sua rigidez, porém, rapidamente se revelou como obstáculo para as profundas reformas econômicas e sociais de que o país necessitava com urgência para evitar o fracasso do plano de austeridade introduzido pouco antes. Por isso, a primeira presidência democrática se encerrou com uma grave crise econômica e numerosos escândalos, o que favoreceu a eleição de Fernando Collor de Mello, um outsider que recorreu à típica retórica antipolítica dos populismos, representando um parêntese pouco propício para a consolidação da democracia no Brasil. Um parêntese breve, porém, que já em 1992 se fechou quando Collor de Mello renunciou por estar implicado numa rede de corrupção. Também no México as expectativas democráticas dos anos 1980 esbarraram nos anos finais contra velhos e conhecidos obstáculos. O já decrépito sistema do PRI parecia chegar ao fim à medida que os seus planos de austeridade fracassavam, o descontentamento aumentava e a população reclamava mudanças elegendo os candidatos da oposição em alguns Estados da Federação. Do corpo do PRI destacou-se então uma parcela que, invocando mais democracia e equidade, fundou um novo partido e formou coalizão com as outras oposições tendo em vista as eleições presidenciais de 1988. A inflexão parecia iminente, mas uma nova vitória do PRI, mesmo em meio a insistentes denúncias de incontáveis fraudes, a conteve, embora por pouco tempo. Se essas e muitas outras eram as dificuldades da democracia nos grandes países, porém, e se ainda maiores e bem mais graves as que atormentavam as pequenas repúblicas da América Central, a situação não era em nada rósea nem mesmo nos países andinos. Nestes, ainda mais que em outras partes, a democracia manifestava evidentes sinais de fragilidade. A começar pelo Peru,

onde ela viveu sob a espada de Dâmocles da violenta guerrilha do Sendero Luminoso, um movimento terrorista oriundo do partido comunista peruano idealizador de uma ideologia revolucionária indigenista que ressuscitava o mito do comunismo incaico; e onde o mandato do jovem Alan García, que pela primeira vez levou a APRA à presidência, chegou ao fim no meio do desastre econômico e de graves escândalos. Continuando com a Bolívia e o Equador, onde a recessão econômica agravou ainda mais as feridas de um tecido social já profundamente dividido em termos étnicos e também sociais. Tanto que os rígidos planos de ajustamento estrutural adotados pelos governos dos dois países provocaram enormes protestos e que desde o fim da década a oposição começou a conjugar as velhas correntes marxistas e o novo indigenismo: uma mescla desde então destinada a crescer sempre mais e a contestar as bases da democracia liberal recém-fundada.

Venezuela e Colômbia: democracias enfermas Na década de 1970, quando grande parte da América Latina vivia sob o tacão militar, a Colômbia e a Venezuela se destacavam como raros oásis de governo civil e democracia representativa. Nos anos 1980, porém, quando a região começou a encaminhar-se para a democracia, os defeitos de ambas se tornaram mais evidentes e se a Colômbia, mesmo flagelada pela violência, não mudou de regime político, a Venezuela entrou numa longa crise que provocou mudanças drásticas no decênio seguinte. A violência que sempre caracterizara a história colombiana tornou-se nos anos 1980 ainda mais brutal e endêmica, transformando a Colômbia num dos países mais perigosos do mundo. O sistema político tradicional, monopolizado pelos partidos liberal e conservador, cujos planos de pacificação sempre fracassavam, se revelou insuficiente para conter suas causas. As origens da violência eram múltiplas, mas duas prevaleciam sobre as demais. A primeira, a guerrilha, que sobreviveu nas zonas rurais enquanto desaparecia no resto da região, e o seu rival, os violentos grupos paramilitares formados em todo o território para combatê-la. Essas forças se associavam aos serviços de segurança estatais, tanto o exército como a polícia, onde o recurso à violência indiscriminada se tornou sempre mais frequente. A segunda causa era o narcotráfico, chefiado nesses anos pelos grandes cartéis criminais de Medellín e Cali, cujos ricos e potentes tentáculos estenderam-se e contaminaram todos os setores da vida nacional, da política às Forças Armadas, da guerrilha aos seus inimigos, ora corrompendo, ora assassinando.

Por outro lado, as bruscas oscilações do preço internacional do petróleo desferiram um golpe brutal na manutenção do sistema político venezuelano. Os dois partidos tradicionais, o Comitê de Organização Política Eleitoral Independente (COPEI), democrata-cristão, e a Ação Democrática, socialdemocrata, haviam aproveitado as vacas gordas dos anos 1970 para desenvolver planos ambiciosos de desenvolvimento e ampliar a própria base eleitoral distribuindo a renda, mas na década seguinte sofreram as consequências do período de vacas magras. Assim, quando adotaram planos drásticos de austeridade, os protestos se alastraram: tanto nos setores populares, que tiveram de suportar o peso maior, quanto nas classes médias, que tinham grande dificuldade em se adaptar a cortes severos num país que cresceu embalado pelo mito da riqueza petrolífera inexaurível. O trágico e já mencionado Caracaço de 1989 e a tentativa de golpe três anos depois pelo coronel Hugo Chávez foram sintomas evidentes de que o sistema já chegava ao seu limite extremo. Bibliografia Coronil, Fernando, The magical state: nature, money, and modernity in Venezuela, Chicago: University of Chicago Press, 1997. Crandall, Russell, Gunboat democracy: U.S. interventions in the Dominican Republic, Grenada, and Panama, Lanham: Rowman & Littlefield Publishers, 2006. De Giuseppe, Massimo (a cura di), Oscar Romero: storia, memoria, attualità, Bologna: Emi, 2006. Devlin, Robert, Debt and crisis in Latin America: the supply side of the story, Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1989. LeoGrande, William M., Our own backyard: the United States in Central America, 1977-1992, Chapel Hill, NC: University of North Carolina Press, 1998. Morley, Samuel A., Poverty and inequality in Latin America: the impact of adjustment and recovery in the 1980s, Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1995. O’Donnell, Guillermo, Schmitter, Philippe C. e Whitehead, Laurence, Transitions from authoritarian rule, Latin America, Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1986. Palermo, Vicente, Sal en las heridas: las Malvinas en la cultura argentina contemporánea, Buenos Aires: SudAméricana, 2007. Stern, Steve J.(edited by), Shining and other paths: war and society in Peru, 1980-1995, Durham: Duke University Press, 1998. Waisman, Carlos H. e Rein, Raanan (edited by), Spanish and Latin American transitions to democracy, Portland: Sussex Academic Press, 2005.

11. O período neoliberal 1. Mercados abertos e globalização Se a política havia dominado a agenda latino-americana nos anos 1980, a década da transição democrática, os anos 1990 sancionaram a primazia da economia. Foi então que a guinada liberal a que alguns países já haviam se antecipado, com o Chile à frente, se impôs em toda a região, imprimindo a sua marca em grande parte da década. Ela afetou não apenas o plano econômico, mas também o político e ideológico, em que ocupou o centro do palco, tanto para seus partidários quanto para os que no decorrer dos anos passaram a fazerlhe oposição. Não obstante, embora as medidas econômicas fossem mais ou menos as mesmas em toda parte, e ainda que as interpretações mais comuns tenham descrito esses anos com o mesmo colorido, como se tudo e todos marchassem em uníssono numa única direção, as profundas reformas então em evidência não foram adotadas do mesmo modo nem em contextos iguais em toda parte. Por isso, tampouco produziram em todo lugar o mesmo sucesso político e as mesmas consequências sociais. Entretanto, vejamos do que se tratou, lembrando em primeiro lugar que durante grande parte da década havia amplo consenso sobre a necessidade de introduzir mudanças e que os governos que as protagonizaram em geral e durante muito tempo contaram com grande apoio popular. Vários motivos contribuíram para esse consenso, pesando mais do que qualquer outro, talvez, o ponto sem volta a que a crise econômica chegou em muitos países. Essa realidade obrigou os governos que assumiam o cargo a realizar as reformas de mercado até então adiadas. Em alguns casos, tomando como exemplo os mais conhecidos da Argentina e do Peru, “sem anestesia”, como se dizia à época; isto é, em tempo curto e medidas imperativas. Em outros casos, a exemplo do Uruguai e em certa medida do Brasil e do México, de forma mais gradual e respeitando os procedimentos democráticos. Em que consistiram concretamente essas reformas? Para começar, foram reformas estruturais, ou seja, capazes de modificar as próprias bases do sistema produtivo e financeiro dos países da América Latina tal como ele se configurara nas décadas de desenvolvimento voltado para o interior. O objetivo primordial

consistiu de modo geral em abrir as economias locais à competição internacional para obrigá-las a se tornar mais eficientes e inovadoras e incrementar o papel do capital privado à custa do capital estatal. Do comércio às finanças, do mercado de trabalho à previdência social, todos os setores foram atingidos, embora de modos e volumes desiguais de acordo com cada caso. A prioridade foi restabelecer as condições do equilíbrio macroeconômico, reabsorvendo o enorme déficit público, retomando o controle da inflação, reequilibrando a balança de pagamentos. Para alcançar esses objetivos, os governos da região recorreram a maciços planos de privatizações de empresas públicas, à liberalização de setores antes considerados estratégicos, e por isso fechados ao capital privado, e à redução das barreiras comerciais. Todas essas medidas, por sua vez, estimulariam o afluxo de volumosos capitais externos, em geral atraídos por legislações altamente favoráveis. Qual foi o balanço dessas medidas? O econômico, por ora, pois o social e o político serão abordados na sequência. Antes que se iniciasse, no fim da década, uma grave recessão que faria o novo modelo estremecer e por vezes fracassar, a economia cresceu, embora com maior rapidez na primeira metade do decênio. Não em ritmos excepcionais, pois foram inferiores aos de muitas outras áreas e aos registrados no passado na própria América Latina, nem suficientes para preencher as graves lacunas sociais da região, mas pelo menos capazes de inverter o sinal negativo da “década perdida”. Nos anos 1990, o produto per capita cresceu em média 1,6% ao ano, embora em ritmos diferentes de país para país, com o Chile, o Peru e a Argentina à frente e a Venezuela, Equador e Paraguai ocupando as últimas posições. Maiores foram o pesado esforço de equilibrar as contas públicas, cujo déficit diminuiu em quase toda parte a níveis relativamente normais, e o empenho não menos sacrificado de reduzir a inflação, pouco a pouco levada aos níveis mais baixos em muitas décadas. Este resultado contribuiu muito para o sucesso eleitoral de vários governos, que receberam votação maciça dos vastos estratos sociais afetados de maneira profunda pela inflação. Além disso, pode-se dizer que foi então que a economia da América Latina se inseriu plenamente no fluxo da chamada globalização, vale dizer, se integrou em ritmo acelerado ao rápido crescimento das mudanças internacionais, das quais participou não só com o boom das exportações, que então cresceram a taxas mais elevadas do que em qualquer outra época da sua história, com o México desempenhando a parte do leão. Mas também com a sua crescente diferenciação, ou seja, a inclusão de uma maior quantidade e variedade de mercadorias, embora muito mais na América Central e no México do que na América do Sul, onde o processo foi muito mais lento. Em síntese, as reformas estruturais foram mais propícias à disciplina econômica e à abertura comercial do que ao crescimento, o qual recebeu apenas um leve estímulo. Este

foi prejudicado pelas baixas taxas de investimento e pela reduzida competividade do setor industrial latino-americano, dois fatores que retardaram a necessária transformação da estrutura produtiva regional e o aumento da sua produtividade, que de modo geral permaneceu bastante baixa, salvo nos setores recém-privatizados, muito diferentes dos outros para representar uma verdadeira heterogeneidade estrutural. Durante os anos 1990, a maioria dos países latino-americanos aumentou sua dependência dos fluxos financeiros internacionais. Enquanto grandes volumes de capitais entraram na primeira metade da década, atraídos pelas ambiciosas privatizações em curso, as reformas deram em geral bons resultados e se mostraram sustentáveis. Quando, porém, o ciclo se inverteu e o fluxo se interrompeu ou se tornou mais errático, revelou-se a elevada vulnerabilidade das economias latino-americanas aos fatores externos, especialmente aos ciclos do mercado financeiro global. Não por acaso, as crises financeiras, ora mais ora menos longas e graves, se sucederam em diversos países, a começar com a que eclodiu no México em 1994 com o chamado efeito tequila que contagiou toda a região, e culminando na crise argentina de 2001, a mais dramática e profunda, quando o governo de Buenos Aires anunciou a suspensão dos pagamentos aos credores, entrando assim no que tecnicamente se costuma chamar default. Crises devidas à enorme volatilidade dos capitais externos, mas também às políticas monetárias de muitos países da América Latina.

Avenida no centro de Buenos Aires, durante os protestos ocorridos em 19 e 20 de dezembro de 2001. La Tercera, 19 de dezembro de 2011.

O “Consenso de Washington” Considerando suas características dominantes, os anos 1990 são muitas vezes lembrados como o período do Consenso de Washington, expressão que, muitas vezes com tom polêmico, remete a uma época de harmoniosa sintonia entre o governo dos Estados Unidos e os grandes organismos financeiros internacionais, todos igualmente decididos a imprimir uma brusca aceleração à liberalização dos mercados latino-americanos. Nesse sentido, tanto críticos eminentes quanto economistas em geral transformaram essa expressão em sinônimo de neoliberalismo, isto é, de uma filosofia econômica fiel aos ditames do monetarismo e determinada a desmantelar o Estado; em outros termos, a criar um Estado mínimo, desinteressado das políticas de bem-estar social. Consequência: as políticas derivadas dessa filosofia levaram ao agravamento da pobreza e das desigualdades na América Latina. Embora essa leitura seja admissível, contanto que faça a distinção entre diferentes casos e resultados, e de qualquer modo já seja corrente, é justo lembrar que a expressão “Consenso de Washington” foi cunhada pelo

economista John Williamson em 1990. Williamson a adotou não para propor um determinado modelo de desenvolvimento, neoliberal, ademais, mas para se referir ao que as receitas econômicas tinham em comum e de mais adequado para os governos da América Latina; isto é, receitas recomendadas pelo Fundo Monetário Internacional, pelo Banco Mundial e pelo Tesouro dos Estados Unidos, instituições com base em Washington. Ou seja, referia-se às recomendações de liberalizar o comércio, de privatizar, de adotar taxas de câmbio que favorecessem a competitividade, de facilitar o ingresso de capitais externos, de dar garantias jurídicas à propriedade privada. Mas também de adotar reformas fiscais capazes de ampliar a base de arrecadação de impostos e de concentrar a despesa pública nos setores da saúde e da educação, de modo a favorecer a distribuição da riqueza. Williamson considerava estas últimas medidas estranhas à filosofia neoliberal.

A integração regional Embora a América Latina, nos anos 1990, não tenha ficado imune a conflitos e inclusive, em 1995, a uma breve guerra entre Peru e Equador por conta de uma antiga e nunca resolvida questão limítrofe, a década se caracterizou por um rápido crescimento das relações econômicas e políticas entre os países latino-americanos. Se é realmente verdade que as primeiras e ambiciosas tentativas de promover a integração econômica da área ou de algumas de suas partes remontavam aos anos 1960, também é certo que na maioria dos casos as instituições criadas para esse fim haviam tido um alcance limitado ou altos e baixos bruscos. Em consonância com a abertura das economias locais, o que ao contrário se produziu na última década do século foi um forte crescimento do comércio entre países latinoamericanos, seja no âmbito de acordos pré-existentes, como o Pacto Andino, seja de outros recém-surgidos, como o Mercosul, ou Mercado Comum do Sul, fundado em 1991 e reunindo Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. Da crescente diferenciação da estrutura produtiva de alguns países, especialmente os grandes e industrializados, como o Brasil e o México, deu prova na mesma época a multiplicação dos investimentos diretos realizados por algumas das suas empresas, tanto públicas como privadas, em outros países da região, especialmente para adquirir direitos no setor minerário e em geral para o usufruto de matérias-primas. Os duros efeitos da grave crise do fim da década trouxeram, porém, à luz as limitações estruturais e de modo particular a fragilidade institucional dos processos de integração na América Latina.

Nesse quadro, um caso à parte é o do North American Free Trade Agreement (NAFTA/Tratado Norte-Americano de Livre Comércio), formado por Canadá, Estados Unidos e México. Entrando em vigor em 1994, depois de longas e complexas negociações, o NAFTA criou a maior área de livre comércio do mundo, abrangendo cerca de 450 milhões de pessoas. As opiniões a respeito dos seus resultados são muito desencontradas, mesmo sendo indiscutíveis alguns dados, especialmente o aumento do comércio entre os países-membros depois da assinatura do tratado e a crescente instalação de inúmeras indústrias estadunidenses no México, em geral de montagem e no norte do país, as chamadas maquiladoras. Em geral, o NAFTA contribuiu para reduzir a pobreza em vários Estados mexicanos, aumentando o emprego e a renda per capita. Ao mesmo tempo prejudicou alguns setores agrícolas, atingidos pela competição dos produtos estadunidenses. Certamente teve o efeito de estreitar ainda mais os laços entre o México e os Estados Unidos, laços que a história, a geografia e os milhões de mexicanos emigrados, muitos legalmente e outros clandestinos, consideram especiais e fazem do México um país em grande parte afastado dos dilemas em torno da integração política e econômica que afligem a América do Sul.

2. A sociedade latino-americana nos anos 1990: os novos movimentos O panorama social da América Latina no período neoliberal não foi brilhante sob nenhum aspecto. Pelo contrário, produziu-se então uma evidente dicotomia entre o retorno ao crescimento econômico, não pujante, mas concreto, e a deterioração dos diversos indicadores sociais. Sem dúvida, esse quadro apresentou grandes diferenças de um país para outro, pois a realidade se mostrou bem mais favorável para alguns, como Uruguai, Chile, México e Panamá, e bem pior para outros. De modo geral, porém, essa foi a tônica da época. A começar pelo emprego, que diminuiu em vez de aumentar; e nos casos em que foi em parte reabsorvido, o crédito deve ser atribuído ao incremento de empregos marginais, pouco ou nada produtivos. É verdade que as mulheres passaram a integrar o mundo do trabalho nesses anos, aliás em número muito maior do que no passado, o que representou um claro sinal de modernização social; mas também é certo que a diferença entre as receitas da mão-de-obra especializada e a do imenso setor informal se ampliou ainda mais, confirmando a heterogeneidade estrutural já mencionada, isto é, a existência de setores produtivos e de mercados de trabalho totalmente estranhos uns aos outros. O aumento do desemprego e do subemprego teve como contraponto a elevação dos gastos sociais, uma circunstância talvez inesperada num período neoliberal, mas de qualquer modo capaz de elevá-los a níveis nunca antes

alcançados na história da região. Essa escalada ocorreu em alguns países já conhecidos por encabeçar a lista de classificados na matéria, como Costa Rica, Uruguai, Panamá e Brasil, mas também em outros que até então haviam destinado ao setor quotas muito menores do orçamento, como a Bolívia e a Colômbia; o que não impede que a qualidade dos serviços sociais apresentasse enormes variações, de acordo com o setor beneficiado, sendo em geral deficitária na zona rural e nos bairros populares. Os reflexos dessas tendências sobre os elevados índices de pobreza da América Latina não foram fortes o bastante para reduzi-los de modo significativo. Ou melhor, as famílias que viviam na pobreza baixaram de 41% para 37% do início da década até 1997, porcentagem que voltou a subir na virada do milênio com a escalada de uma nova recessão. Em números absolutos, porém, os pobres continuaram ultrapassando a cifra de 200 milhões, acima dos índices registrados antes da “década perdida”. Isto dito, as diferenças de um país para outro foram ou permaneceram tão grandes a ponto de ampliar cada vez mais as distâncias entre os diversos níveis de desenvolvimento. Essa realidade se deve à enorme diferença entre os países onde a taxa de pobreza se manteve dentro dos 20% da população, como Uruguai, Argentina, Chile e Costa Rica, e aqueles em que oscilou em torno dos 50%, como Bolívia, Equador e Colômbia. Ou ainda porque esse índice diminuiu em alguns casos, principalmente no Chile, mas também no Brasil, Peru e Argentina, ao passo que sofreu uma redução bem menor ou nula em muitos outros. A verdadeira nota desoladora do cenário social latino-americano nos anos 1990, porém, é a desigualdade, já muito aguda e que em geral se manteve inalterada ou até mesmo se agravou ao longo da década. Com exceção do Uruguai, onde o crescimento econômico e a distribuição de renda andaram mais em sintonia do que em outros lugares, e Cuba, onde as diferenças sociais permaneceram menores do que nos demais países da região, mas nesses anos se associaram a uma forte redução da renda por habitante. Não há, porém, unanimidade entre historiadores e economistas na avaliação desse fenômeno, ou seja, na determinação de até que ponto essas desigualdades são imputáveis ao modelo econômico do período neoliberal ou a tendências de um período bem mais longo. Para os críticos do liberalismo, velho e novo, não há dúvida de que este causou mais uma vez as feridas de um tecido social antes mais equitativo e coeso. Para outros, liberais ou de outras tendências, os níveis elevados de desigualdade social na América Latina, entre os piores do mundo, teriam sofrido o impacto negativo das políticas neoliberais da época, mas como tais seriam muito mais antigos e fruto das fraturas históricas que ferem a sociedade da região desde as origens. Por isso, para curar essas fraturas não seriam

suficientes apenas algumas reformas econômicas, mas transformações políticas e culturais mais longas, lentas e fatigantes. O panorama social da América Latina nos anos 1990, porém, pareceria truncado se não se mencionasse o surgimento cada vez maior de vários movimentos sociais nos seus meandros ou até à plena luz: movimentos às vezes sólidos e duradouros, outras vezes mais efêmeros; às vezes espontâneos e autônomos e outras vinculados a sujeitos tradicionais, como sindicatos e igrejas ou ao Estado e à sua clientela; às vezes surgidos entre a classe média e os setores profissionais e outras, na maioria dos casos, entre grupos marginais. Esses movimentos nasceram a partir da volta da democracia com o objetivo de dar resposta e representação a uma grande variedade de instâncias sociais: do feminismo à ecologia; da defesa dos serviços públicos à auto-organização de bairros para enfrentar a crise e o desemprego; de novas formas de sindicalismo, como no caso dos cocaleros bolivianos, produtores de folhas de coca contrários aos planos de sua erradicação, às organizações de ocupação de grandes propriedades territoriais para fins de distribuição da terra, como os Sem Terra brasileiros. Apesar de muito diferentes uns dos outros, o que em geral os aproximou até formarem uma rede que, a partir de 2001, instituiu em Porto Alegre o Fórum Social Mundial, foi um antiliberalismo radical e a aspiração a um horizonte social comunitário. Com isso, no novo contexto, eles se tornaram os herdeiros naturais do substrato cultural e ideológico acumulado no tempo como reflexo da confluência de marxismo e cristianismo na América Latina, um substrato cujos ingredientes principais eram e continuam sendo o comunitarismo e o antiliberalismo. A alma mais robusta desses movimentos, enraizada na história e nas sociedades locais, foi desde então o indigenismo. A história do indigenismo já era longa, mas a partir dos anos 1990 começou a manifestar-se nos países ou nas regiões da América Latina onde as divisões étnicas continuavam profundas e irresolutas. Além disso, não mais o fez apenas como um movimento social em condições de atrair um número cada vez maior de seguidores, mas sempre mais como uma corrente ideológica e um movimento político; ou até mesmo como um movimento armado, como aconteceu em Chiapas, no México meridional, onde em 1º de janeiro de 1994 o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) anunciou que estava tomando em armas contra o Estado.

O Chiapas zapatista Estado indígena por excelência, de modo especial a partir dos anos 1980, quando para lá começaram a confluir em massa os refugiados do conflito na vizinha Guatemala, indígenas também estes que ali intensificaram as já

fortes contradições, o Estado mexicano de Chiapas possuía na época, como possui ainda hoje, uma estrutura social mais semelhante à das repúblicas centro-americanas do que à da maioria dos demais Estados mexicanos. Essa estrutura se caracterizava pela sobreposição de duas divisões sociais profundas: a de classe, entre uma elite reduzida de proprietários territoriais e a maioria desprovida de terra, e a étnica, sendo a minoria mestiça e a maioria indígena. Dada essa premissa, dois fatores criaram as condições da insurreição: de um lado, o aumento do clero voltado à defesa e à organização da população indígena; de outro, a nova atenção que muitos militantes marxistas começaram a dedicar à questão indígena depois do refluxo das ideologias revolucionárias. Essa rebelião assumiu significado anti-imperialista ao explodir no dia em que entrava em vigor o tratado de livre comércio que associava o México aos Estados Unidos e ao Canada, e que para os rebeldes correspondia a uma verdadeira “liquidação” da soberania nacional.

Marcha do Exército Zapatista de Libertação Nacional no estado de Chiapas, no México, em 1994.

Reivindicações sociais, com prioridade absoluta à reforma agrária, e reivindicações étnicas, ou o reconhecimento do direito da população indígena local a uma ampla autonomia e a um autogoverno fundamentado nos próprios costumes comunitários, foram os pilares do programa do EZLN. Em seu conjunto, tratava-se de um exército de dimensões reduzidas, cerca de 2 mil homens, composto em sua maioria de camponeses indígenas, mas inspirado pelo seu líder informal, o subcomandante Marcos, um intelectual urbano que se celebrizou pelas suas hábeis e originais técnicas de comunicação. Também a fase mais aguda da guerrilha durou de fato pouco tempo e foi pouco cruenta, especialmente se comparada com os ferozes conflitos encerrados pouco antes na América Central: causou em torno de 150 vítimas. Em 1996, o EZLN e o governo mexicano assinaram acordos de paz, acordos esses logo desrespeitados tanto pelas elites locais,

responsáveis por violentas repressões, quanto pelo exército. Tensões então começaram a surgir, levando os guerrilheiros a declarar unilateralmente a autonomia de alguns municípios. Apesar de um novo acordo entre governo e EZLN assinado no ano 2000, ao qual o Parlamente logo interpôs inúmeros obstáculos, o conflito foi aos poucos arrefecendo, em parte devido aos planos sociais adotados pelo governo para atenuar suas causas e em parte por exaustão interna. Mais do que desaparecer, pode-se dizer que o movimento voltou ao seu curso local.

3. Luzes e sombras das democracias latino-americanas Em termos gerais, é correto dizer que nos anos 1990 a democracia continuou a difundir-se em toda a América Latina. Do mesmo modo que no início da década o próprio Chile a recuperou e ao longo dos anos começou a livrá-la da camisa de força em que os militares a envolveram, a mesma coisa se pode dizer do México, que bem nessa época completou a sua longa liberalização política. Além desses, também os pequenos países da América Central, de passado atribulado e feridas ainda abertas pelos conflitos recentes, tomaram a direção da democracia, a maioria deles pela primeira vez na sua história. Em suma, as eleições, o pluralismo e a salvaguarda dos direitos individuais se tornaram em toda parte, com exceção da Cuba castrista, os pilares centrais dos regimes políticos latino-americanos, confirmando assim que, concluída a Guerra Fria, a América Latina estava enfim prestes a completar a sua longa e penosa viagem rumo à confluência política com todo o Ocidente. Não obstante, em pouco tempo revelou-se também o outro lado da moeda. Se na década anterior muito se falara sobre transição à democracia, na última do século políticos e cientistas sociais se questionaram a respeito da sua consolidação, ou seja, perguntaram-se se essas jovens democracias percorriam de fato o mesmo caminho já trilhado por aquelas dos países ocidentais mais avançados ou se na realidade não continuariam a manifestar algumas distorções estruturais evidentes. Com efeito, não havia dúvida de que, como a democracia lançava raízes profundas em alguns países, especialmente naqueles como o Uruguai e o Chile que já a haviam experimentado durante muito tempo, e que em outros, como o Brasil e o México, havia dado notáveis passos adiante, tanto na América Central como na andina ela se defrontou com muitos obstáculos que já no passado haviam inibido seu enraizamento; obstáculos sociais, econômicos e culturais. A propósito dos primeiros casos, os das democracias em via de consolidação, o que os caracterizou foi a solidez, a legitimidade e a eficiência das instituições políticas. Solidez, visto que se apoiaram sobre um amplo consenso e uma cultura democrática bem expandida, ou seja, sobre a convicção da grande

maioria da população de que a democracia representativa era o melhor, e o menos imperfeito, dos regimes políticos e por isso era preciso protegê-la. Legitimidade, pois quase todos os atores políticos, tanto os partidos como as corporações, reconheciam nos procedimentos democráticos a única modalidade para afirmar as próprias ideias e programas, enquanto as forças extremas desapareciam ou se reduziam à marginalidade. Eficiência, uma vez que, por mais que essas democracias com frequência se revelassem mais lentas e burocráticas ao tomar decisões do que outras onde os poderes eram mais concentrados, essa mesma gradualidade conferia às suas escolhas um grau mais elevado de credibilidade e contribuía para consolidar o estado de direito, garantindo que cada poder desempenhasse as suas funções sem invadir ou absorver as funções dos demais. Nesse sentido, o mais típico foi o caso do Chile, onde nos anos 1990 se sucederam à presidência os candidatos da Concertación, uma coalização de partidos no passado rivais, mas agora aliados para consolidar a democracia chilena, emancipando-a do autoritarismo que o regime cessante lhe impusera, como a proibição dos partidos marxistas e a nomeação vitalícia de inúmeros senadores, sem violar a Constituição vigente. A ponto de às vezes ser acusada de moderação excessiva, como no ano 2000: depois da prisão do general Pinochet em Londres dois anos antes, o governo do Chile se empenhou em evitar o devido processo na Espanha e pediu sua extradição para que fosse julgado pelos tribunais chilenos. Isso ocorreu não obstante a lei de anistia aprovada a seu tempo pelo governo militar limitar em grande medida a liberdade de ação da justiça no Chile. Mas não menos emblemático foi o caso do México, onde pela primeira vez as eleições se tornaram competitivas e, enfim, a reforma do sistema eleitoral foi concluída. O resultado foi que em 1997, pela primeira vez na sua história, o PRI perdeu a maioria parlamentar e em 2000 a transição democrática mexicana culminou com a eleição para a presidência de Vicente Fox, do partido Ação Nacional, um partido de matriz católica e porta-voz de longa data dos setores produtivos; portanto, favorável à economia de mercado e a uma estreita colaboração com os Estados Unidos. Encerrou-se assim o monopólio político dos herdeiros da revolução de 1910.

Os quatro presidentes chilenos da Concertación de Partidos por la Democracia (Patricio Aylwin, Michelle Bachelet, Eduardo Frei e Ricardo Lagos), no aniversário do plebiscito de 1988.

Também a consolidação da democracia no Brasil fez progressos notáveis. Terminada a breve e malograda experiência de Collor de Mello, iniciou-se um novo ciclo político influenciado pela figura de Fernando Henrique Cardoso, o outrora teórico da dependência agora partidário resoluto da urgência de se introduzir reformas econômicas liberais, mas cauteloso o suficiente para não permitir rachas na jovem democracia brasileira. Ele tomou essas precauções primeiro como ministro da Fazenda e em seguida, de 1994 a 2002, como presidente, respeitando os procedimentos legais e constitucionais, sempre respaldado por um amplo consenso. Menos animadora foi a situação na América Central e na região andina, onde vários fatores contribuíram para retardar a consolidação da democracia ou com o tempo a desviaram para novas formas de populismo. Fatores históricos, como as nunca resolvidas fraturas étnicas e sociais desses países tão heterogêneos, e por isso a escassa confiança de parte significativa da população nas instituições da democracia representativa, muitas vezes vistas e vividas como estranhas porque elitistas. E fatores políticos e econômicos, dado que as crises dos anos 1980 favoreceram a já natural tendência em muitos países para a concentração do poder nas mãos dos presidentes, além da propensão destes a governar extrapolando os limites e os controles institucionais típicos das democracias maduras. De modo geral, o resultado foi o enfraquecimento das já frágeis instituições representativas e a ampliação desmedida do fosso entre representantes e representados, premissas da perigosa instabilidade política que

pelo final do século e mais ainda na primeira década do novo começou a manifestar-se nessas áreas. Os casos típicos se multiplicam: do Equador, onde nenhum governo conseguiu consolidar-se e de ano a ano aumentou a sucessão dos movimentos populares, à Bolívia, onde as políticas neoliberais e a luta contra o cultivo da coca financiada pelos Estados Unidos alimentaram a reação dos camponeses indígenas. Da Guatemala, onde os acordos de paz não conseguiram inibir a violência, à Nicarágua, onde os escândalos e o personalismo exasperado puseram as instituições democráticas a duras provas. Da Colômbia, onde uma nova e moderna Constituição não conseguiu conter a escalada do conflito armado, nem tampouco a disseminação da corrupção alimentada pelo narcotráfico, que participou ativamente da campanha eleitoral de 1995, à Venezuela, onde a corrupção, a crise financeira e as revoltas militares sujeitaram os partidos tradicionais criando as condições para a vitória eleitoral de Hugo Chávez em 1998, o qual, fortalecido com um enorme apoio popular, anunciou sua intenção de criar um regime revolucionário e não escondeu a sua aversão à democracia representativa empunhando as típicas bandeiras nacionalistas e socialistas.

Neopopulismo e neoliberalismo: o Peru de Fujimori e a Argentina de Menem É sem fundamento a ideia de que as políticas neoliberais dos anos 1990 foram sempre excludentes e impopulares. Já se viu como em diversos casos elas não impediram a gradual consolidação de alguns sistemas democráticos nos grandes países da região. Mas tampouco tem solidez a afirmação de que foram incompatíveis com a cultura e as práticas políticas do populismo, do qual eram antípodas, pelo menos em teoria. Nesse sentido, os casos de Alberto Fujimori no Peru e de Carlos Menem na Argentina foram emblemáticos. Ambos realizaram campanhas eleitorais nos moldes das típicas promessas populistas, mas mudaram bruscamente de rumo depois de chegar ao poder, onde introduziram planos radicais de reformas econômicas liberais. Dada a estabilidade que restabeleceram em países assolados pela hiperinflação, e considerando o crescimento econômico que essas políticas asseguraram na primeira metade da década, ambos conquistaram um enorme apoio popular. Não obstante, longe de consolidar os princípios institucionais básicos da democracia liberal, suas políticas ressaltaram as características plebiscitárias típicas dos populismos. Características que assim confirmaram pertencer ao profundo substrato da cultura política

predominante na história da maioria dos países latino-americanos. Uma cultura política resistente em muitos casos às diversas formas dos regimes políticos e dos modelos econômicos aplicados. Com efeito, tanto Fujimori quanto Menem tenderam a recorrer à soberania do povo para concentrar o poder e desrespeitar a autonomia do Parlamento e do poder judiciário. Ambos, em resumo, se utilizaram da popularidade de que gozavam para perseguir o clássico objetivo populista da unanimidade em detrimento do pluralismo e para esse fim empregaram os atraentes recursos a eles garantidos pelas privatizações em massa, de que com frequência fizeram uso clientelista. Isto dito, os contextos em que ambos atuaram foram muito diferentes. Alberto Fujimori, eleito presidente do Peru em 1990, baseou a sua popularidade numa retórica antipolítica radical, isto é, sobre a condenação inapelável da classe política tradicional em relação à qual se apresentou como um outsider sem mácula, e sobre a determinação de combater com todos os meios o Sendero Luminoso, o movimento guerrilheiro que se bandeara para o terrorismo urbano e era malvisto pela maioria dos peruanos. De fato, ele alcançou esse objetivo, aniquilando o movimento, mas também empregando meios ilícitos e arbitrários que semearam o terror em várias regiões do país, submetidas ao estado de guerra interno, e deixando uma profunda marca de violações dos direitos humanos. Por esses motivos, Fujimori se sentiu forte o suficiente para introduzir um plano radical de reformas econômicas neoliberais que inicialmente causou uma aguda recessão, mas depois se encaminhou para um crescimento sustentado. Forte também para levar a efeito em 1992, com o apoio decisivo das Forças Armadas, um autogolpe, ou seja, um golpe de Estado para livrar-se das limitações impostas ao seu poder pelo Parlamento e pela Constituição, que reformou para poder concorrer à reeleição. De fato, foi reeleito em 1995 com 65% dos votos, e novamente em 2000; mas então o clima já havia mudado. Os clamorosos escândalos que haviam abalado o seu governo, as fraudes eleitorais de que foi acusado e por fim a recessão que se instalou e esgotou as conquistas do seu modelo econômico decretaram a sua queda e a instauração dos correspondentes processos incriminatórios. Carlos Menem, eleito presidente da Argentina em 1989, também alicerçou a sua popularidade sobre dois elementos de suma importância. O primeiro foi a estabilidade econômica que conseguiu recuperar após o dramático período da hiperinflação, objetivo que alcançou através do chamado Plano Cavallo, nome derivado do seu ministro da Economia. Esse plano se apoiava na lei da convertibilidade, que impôs a paridade cambial

entre o peso argentino e o dólar estadunidense e conteve a inflação, mas com o tempo envolveu a economia argentina numa camisa-de-força da qual ficou difícil livrar-se. O segundo aspecto fundamental foi o peronismo, do qual Menem era um dirigente histórico. O seu governo, porém, submeteu essa corrente a fortes tensões, pois as políticas neoliberais drásticas de Menem contrariavam totalmente os princípios distributivos do primeiro peronismo; apesar disso, garantiu-lhe a estabilidade social que negara ao seu antecessor e uma abundante fonte de votos fiéis. Fortalecido com o consenso assim alcançado e invocando a emergência em que se encontrava o país, Menem governou relegando às vezes o Parlamento ao segundo plano, aliviou as tensões nos quartéis anistiando os militares presos por violação dos direitos humanos, assegurou-se o controle do poder judiciário alterando a composição da Corte Suprema e promoveu uma reforma constitucional que lhe permitiu apresentar-se às eleições de 1995, quando foi comodamente reeleito. Como no Peru e em grande parte da região, porém, pelo fim da década os ventos mudaram de direção também na Argentina, ou porque a recessão causava estragos, ou porque também o governo Menem já estremecia em consequência de diversos escândalos e inúmeras divisões. O resultado final foi que os peronistas saíram derrotados das eleições de 1999.

4. Bill Clinton e a América Latina Levado à Casa Branca em 1992, Bill Clinton não alterou a política latinoamericana adotada por George Bush. No conjunto, prevaleceu a continuidade, especialmente durante o primeiro mandato, etapa em que o presidente dos Estados Unidos não teve oportunidade de viajar para a América Latina. Dois fatores estavam na base dessa continuidade. O primeiro foi que, concluída a Guerra Fria e amainados os conflitos centro-americanos, a região deixara de ser prioridade para a administração estadunidense, envolvida com bem outros e mais urgentes problemas em outras partes do mundo. O segundo foi que, aplacada a ansiedade de iminentes ameaças à segurança hemisférica, os Estados Unidos passaram a se dedicar a uma política orientada à promoção da democracia e das reformas econômicas de mercado na América Latina. As crises aqui em curso tendiam a envolver a Casa Branca quando aqueles princípios corriam perigos ou ainda mais se produziam reflexos imediatos sobre a política interna estadunidense. Tanto que na época as questões do narcotráfico, da imigração e da criminalidade internacional dominaram a agenda das relações hemisféricas. Continuidade e prioridade à política interna caracterizaram o primeiro e importante passo dado por Clinton no panorama das questões latino-americanas:

ratificou o NAFTA, pelo qual se empenhou com convicção não menor do que o antecessor, tomando ao mesmo tempo os devidos cuidados para que a inserção de algumas cláusulas sobre o meio ambiente e as leis relativas ao trabalho assegurassem sua aprovação no Congresso. Sinal não só de continuidade, mas também do inédito clima de confiança e otimismo que caracterizava as relações entre Estados Unidos e América Latina no auge dessa época de democratização e abertura econômica, foi também a cúpula dos presidentes americanos realizada em Miami em 1994 (Cúpula das Américas). Nessa reunião, muitos países latino-americanos se comprometeram ainda mais do que os Estados Unidos a acelerar a integração econômica hemisférica, até criar uma área de livre comércio envolvendo todo o território. Esse projeto se tornou depois conhecido como ALCA, Área de Livre Comércio das Américas, mas se deparou com obstáculos incontáveis que o desviariam do seu caminho. Nessa situação, não surpreende que o governo de Bill Clinton tendesse a enredar-se nas recorrentes crises latino-americanas sempre que atingiam o nível de alerta ou tocavam temas sensíveis para a política interna estadunidense, mas também a manter-se o mais possível à margem depois de controladas. Por essa postura os seus críticos o acusaram de desinteresse pela região. Em termos comparativos, porém, não se pode dizer que ele não manifestasse intenções precisas e não assumisse posições coerentes. Assim, por exemplo, não refreou o decidido esforço da sua administração para apoiar a democracia onde ela corria perigo, normalmente em colaboração com os principais países da América Latina, os quais assumiram desde então um papel cada vez mais influente no governo das crises locais. Nesse sentido, o caso do Haiti foi típico: o golpe que depôs o presidente eleito levou a Casa Branca a apoiar uma resolução de condenação do Conselho de Segurança das Nações Unidas e, por mandato deste, a preparar uma expedição militar cujo desembarque iminente forçou a renúncia das Forças Armadas que haviam assumido o poder na ilha. Mas não menos importantes foram os muitos esforços feitos para evitar rupturas constitucionais no Equador e no Paraguai, para chegar aos tão almejados acordos de paz sob a égide das Nações Unidas na Guatemala, e firmar enfim o acordo limítrofe entre Peru e Equador. Tudo isso e a temporária ausência durante os seus mandatos de disputas particulares entre as duas partes do hemisfério fizeram de Clinton o presidente dos Estados Unidos mais popular na América Latina nas últimas décadas. No entanto, a crise que mais atenção recebeu da administração Clinton foi a da Colômbia. Nesse país, diversos fatores se somavam para fazer dele motivo de preocupação para os Estados Unidos ou um potencial elo mais fraco da estabilidade regional. Em primeiro lugar, o narcotráfico, pois era da Colômbia que partia grande parte da cocaína vendida nas cidades dos Estados Unidos.

Depois a criminalidade organizada, que demonstrou ao longo da década ter poder suficiente para envenenar as já frágeis instituições políticas. Em seguida, a guerrilha das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), a única e ainda ativa e influente na América Latina, ligada a Cuba e à ideologia marxista e em condições, com as suas ações nas fronteiras com o Equador e a Venezuela, países imersos em profundas crises, de internacionalizar o conflito colombiano. A esses fatores, bem como à eleição de Andrés Pastrana a presidente da Colômbia em 1998, um homem de total confiança dos Estados Unidos, deveu-se o anúncio do Plano Colômbia. Esse foi um robusto plano de ajuda estadunidense à Colômbia, sem igual em outros lugares, e em grande parte destinado a combater o narcotráfico com armas novas e mais modernas. Enfim, um plano que levou os críticos a acusar os Estados Unidos de intervir no conflito colombiano e que Clinton defendeu com ardor e decisão, caracterizando-o como um esforço para ajudar o governo local a extirpar as raízes dos males que afligiam o país.

Dois integrantes das FARC vigiam uma rodovia, ao lado de um cartaz publicitário contra o Plano Colômbia, em San Vicente, Colômbia.

Cuba depois da Guerra Fria O colapso da União Soviética e do COMECON (Conselho para Assistência Económica Mútua), do qual ela fora o eixo, obrigaram o regime

de Fidel Castro a tomar importantes contramedidas para garantir a própria sobrevivência sem a generosa assistência soviética que durante décadas lhe possibilitara vender o açúcar a bons preços e ter acesso a provisões de petróleo facilitadas. Não por acaso, a fase que então se iniciou na ilha foi chamada de “Período especial”, momento em que o governo introduziu importantes reformas econômicas, mas mantendo intactos os fundamentos do regime político de partido único e ideologia de Estado. Sem o apoio soviético, e sempre sujeito ao embargo imposto pelos Estados Unidos, Castro adotou algumas medidas no campo econômico para incentivar os investimentos externos na ilha, de modo particular para estimular o turismo e aumentar a baixa eficiência do sistema produtivo, abrindo algum espaço à atividade privada e substituindo as gigantescas e improdutivas fábricas estatais por novas e mais ágeis cooperativas agrícolas. Com isso, criou efetivamente na economia da ilha um canal paralelo em que circulavam bens e moedas, inclusive o dólar, ausentes no mercado oficial. Um canal que, embora tenha possibilitado ao governo conservar intocados os pilares da economia socialista, para a qual a propriedade privada era proibida, ampliou a diferença entre a maioria dos cubanos e uma nova elite formada por dirigentes e funcionários do partido único; esta, tendo acesso ao circuito paralelo, pôde permitir-se inúmeras vantagens. De modo geral, os anos 1990 em Cuba foram acima de tudo caracterizados pelas restrições impostas à vida quotidiana pelo racionamento de inúmeros bens e pelos longos “apagões” devidos à escassez de abastecimento energético. No campo político e ideológico, não se pode dizer que o regime castrista tenha produzido mudanças significativas. Antes, sua prioridade foi impedir que as transformações sociais estimuladas pela tímida abertura econômica tivessem consequências políticas. A única mudança significativa foi a abertura do partido à filiação dos católicos, medida que, mais do que um passo histórico, foi o devido reconhecimento da afinidade ideológica que, desde as suas origens, o regime cubano se vangloriava de ter com as correntes populistas; estas haviam surgido na América Latina com a confluência do socialismo e do catolicismo radical sob a bandeira do nacionalismo. Considerando outros aspectos, o governo não renunciou ao hábito de reprimir os dissidentes e os cubanos que, em número cada vez maior, por ideologia ou necessidade, se viam impelidos a pedir vistos para emigrar. Um dos momentos extremos da repressão ocorreu em 1995 com o afundamento de uma embarcação com exilados que se dirigia para a Flórida. No entanto, diante dos protestos surgidos em Havana, o governo se

viu obrigado a abrir as portas da emigração; à semelhança do passado, esta operou como válvula de escape para as tensões na ilha. No clima dos anos 1990, enquanto a América Latina prosseguia no caminho da democracia política e da economia aberta, o isolamento de Cuba chegava ao ápice e parecia anunciar a derrocada do regime. A própria administração Clinton endureceu o embargo, movida tanto por pressões do Congresso como por reação à derrubada de dois aviões: abatendo essas aeronaves, o regime cubano pretendia impedir a atividade de um grupo anticastrista de Miami, empenhado em resgatar do mar exilados fugitivos da ilha. Pelo fim da década, porém, o panorama começou a mudar e Castro tornou a emproar-se. Por um lado, a economia latino-americana entrou no túnel de uma profunda recessão que destruiu o otimismo que prevalecia até então, ao passo que a de Cuba recuperou até certo ponto o oxigênio depois de ter tocado o fundo do poço. Por outro, as crises políticas que abalaram a estabilidade de inúmeras democracias da área levaram ao auge o antiliberalismo típico do populismo, a começar pela Venezuela, com a qual Castro não tardou em reencontrar a sintonia natural. A histórica visita do papa João Paulo II a Cuba em 1998, enfim, que muitos imaginavam que estimularia a liberalização da ilha, com efeito contribuiu para abrandar as tensões e romper o isolamento. Assim o regime de Castro sobreviveu ao fim da Guerra Fria, confirmando que, por mais que tivesse abraçado a causa do comunismo mundial, as suas raízes penetravam na história e na cultura política da América Latina.

Fidel Castro recebe o papa João Paulo II, em 26 de janeiro de 1998.

5. A crise do neoliberalismo Nos anos envolvendo a virada do milênio, uma profunda convulsão econômica e social abalou a confiança no futuro da região, característica de grande parte dos anos 1990. Uma convulsão que não ocorreu em todo lugar nem com a mesma intensidade, pois alguns países emergiram da crise quase incólumes no plano econômico e fortalecidos no institucional, como o Chile e o Brasil. No entanto, foi forte o bastante para causar catástrofes em muitos casos, com a Argentina e a Venezuela em primeiro lugar, dois entre os mais atingidos. Se a crise apresentou traços inéditos devido a certos aspectos, por muitos outros revelou alguns bem mais antigos e conhecidos. O liberalismo político e econômico que predominara durante grande parte da década se deparou com as limitações que outras vezes no curso da sua história o haviam impedido de fincar raízes sólidas na América Latina. Limitações endógenas, devidas ao fato de que ele, como se viu, se apresentou em muitos casos de modo distorcido, forçando ou desfigurando o espírito do Estado de direito e do constitucionalismo liberal. Limitações exógenas, impostas pelo contexto global de que ele mais do que nunca dependia e a cujos ciclos se revelou altamente vulnerável. E

limitações impostas pela reação nacionalista que, como no passado, ele provocou também nesse momento: uma resistência que assumiu particular vigor onde mais fracas eram as instituições políticas, menor o desenvolvimento econômico e mais profundas as fissuras sociais ou étnicas; de modo especial nos Estados andinos e da América Central. Além disso, manifestou-se com os traços típicos da tradição populista: de um lado, reclamando a integração social das massas excluídas e a luta contra as potências estrangeiras e, de outro, impondo severos limites à separação dos poderes e ao pluralismo político. Em termos econômicos, a crise que mais vezes já estivera prestes a explodir – a ponto de levar os organismos financeiros internacionais a intervir, ajudando o México em 1994 e o Brasil em 1998, para evitar o colapso financeiro – tornouse evidente em toda a região em torno de 1998. A recessão mundial arrastou consigo a economia da região, cujos indicadores estacionaram ou foram negativos durante quase quatro anos, tempo em que não só se agravaram as já graves condições sociais, mas ainda se difundiu entre as elites políticas e a opinião pública da América Latina a convicção de que a época do Consenso de Washington havia passado. Isso ocorreu devido a um problema de vulnerabilidade, relacionada esta com o excesso de dependência da estabilidade econômica das economias regionais de fluxos muito voláteis de capitais sujeitos às crises que esporadicamente sacudiam o sistema inteiro, desde a Ásia até a Rússia, e a uma questão de sustentabilidade, relacionada com a manutenção de um modelo econômico que além de não ter garantido um crescimento robusto e constante, bem pouco havia feito para reduzir as desigualdades sociais. Tudo isso já levava os temas do consenso político e da integração social para o topo da agenda política dos governos latino-americanos. Enfim, encerrou-se então o período do primado da economia e iniciou-se uma etapa em que a preeminência era da política, chamada a demonstrar a sua capacidade de conciliar consenso e crescimento, democracia e desenvolvimento. Essa consciência começou então lentamente a firmar-se também em Washington, onde o Tesouro Americano e a direção do Fundo Monetário Internacional começaram a constatar que as receitas econômicas, anexas durante tanto tempo aos créditos concedidos, eram rígidas e onerosas, a ponto de se transformarem em potenciais bumerangues e produzirem a instabilidade que pretendiam evitar. Nesse sentido, o dramático colapso argentino de 2001 produziu um estrondo que anunciava o fim de uma época, nem tanto por seu efeito em si, dado que a interrupção dos pagamentos anunciada pelo governo argentino não teve sobre o sistema financeiro mundial o impacto devastador que teria produzido, caso tivesse sido declarada por países bem mais poderosos e endividados, como o Brasil e o México; mas sobretudo porque, mais do que qualquer outro país, a Argentina, nos anos 1990, fora o aluno-modelo, aquele

que com maior diligência havia aplicado as receitas dos organismos financeiros. Assim, seu colapso sancionava aos olhos dos demais países o fracasso também desses organismos. Mas a crise então iniciada não se limitou ao horizonte econômico, estendendo-se também à esfera política, onde os efeitos foram muito diferentes de país para país. Em alguns casos, ela causou de fato a derrota eleitoral de governos que haviam feito uma adesão relativamente estrita ao modelo do Consenso de Washington, mas sem efetuar alterações na ordem política e constitucional e também sem retornar ao nacionalismo econômico. Assim aconteceu no Brasil, onde em 2002 foi eleito presidente o ex-sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva, mas também no México e na Colômbia, com as eleições de Vicente Fox e Álvaro Uribe, e até no Peru, uma vez passada a tormenta levantada pela estrepitosa queda do regime de Alberto Fujimori. Em outras partes, por outro lado, antes na Venezuela, mas pouco a pouco também na Bolívia, no Equador e na Nicarágua, já então se manifestaram ou começaram a gestar-se algumas verdadeiras crises de regime, crises que prenunciavam mudanças constitucionais radicais e apelos a modelos econômicos dirigistas e nacionalistas.

2001: o colapso argentino Pelo final dos anos 1990, vários fatores produziram profundas brechas no modelo econômico argentino, expondo sua enorme vulnerabilidade: a crise financeira asiática e a consequente redução dos preços das exportações argentinas; a valorização do dólar, que provocou uma posterior perda de competividade dos produtos argentinos, já grave por efeito da lei de convertibilidade, a lei com que o Parlamento havia congelado a inflação estabelecendo a paridade do peso com o dólar; a desvalorização brasileira, ou seja, do maior parceiro comercial da Argentina. Tudo isso reduziu drasticamente a capacidade argentina de honrar os prazos da dívida externa e obrigou o governo a providenciar novos créditos para poder pagá-la. Mas isso num momento em que a instabilidade financeira global e as péssimas condições das contas argentinas afugentavam os credores, que procuravam livrar-se da perigosa situação e evitar novos riscos. Diante dessa realidade, no ano 2000 bancos e empresas começaram a fugir da dívida argentina. No ano seguinte, temendo a iminente desvalorização que reduziria os ativos, os poupadores argentinos começaram a transferir para o exterior os dólares depositados nos anos anteriores. Enquanto o governo estadunidense e o Fundo Monetário Internacional debatiam se e em que condições deviam intervir com um

novo pacote de ajuda para cobrir o que muitos já consideravam um poço sem fundo, o governo argentino se viu encurralado. Com o objetivo de conter a fuga de capitais, introduziu o chamado corralito, uma medida extrema com que limitava de modo drástico o acesso dos cidadãos às contas correntes. O que ocorreu em seguida foi uma crise sem precedentes que ultrapassou em muito a esfera econômica: crise política, a partir do momento em que os protestos de todos os setores sociais provocaram a queda desonrosa do governo chefiado pelo radical Fernando de la Rúa, que tantas expectativas havia criado com relação à renovação do sistema político argentino, e a sucessão de nada menos do que cinco presidentes em apenas duas semanas; e crise social, dado que a cessação dos pagamentos e a desvalorização impostas pela dramática crise financeira elevaram a taxa de desemprego a 25% em poucos meses e desterraram para baixo da linha de pobreza cerca da metade da população de um dos países historicamente mais avançados da América Latina. Bibliografia Camp, Roderic Ai, Politics in Mexico: the democratic transformation, New York: Oxford University Press, 2003. Domínguez, Jorge I. e Shifter, Michael (edited by), Constructing democratic governance in Latin America, Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2003. Eckstein, Susan Eva, Back from the future: Cuba under Castro, 2nd ed., New York, NY: Routledge, 2003. Lamounier, Bolívar e Figueiredo, Rubens (organizadores), A era FHC: um balanço, São Paulo, SP: Cultura Editores Associados, 2002. MacLachlan, Colin M., Argentina: what went wrong, Westport: Praeger Publishers, 2006. Mainwaring, Scott e Scully, Timothy R., Building democratic institutions: party systems in Latin America, Stanford: Stanford University Press, 1995. Palmer, David Scott, U.S. relations with Latin America during the Clinton years: opportunities lost or opportunities squandered?, Gainesville: University Press of Florida, 2006. Roniger, Luis e Sznajder, Mario, The legacy of human-rights violations in the Southern Cone: Argentina, Chile, and Uruguay, New York: Oxford University Press, 1999. Speed, Shannon, Rights in rebellion: indigenous struggle and human rights in Chiapas, Stanford: Stanford University Press, 2008. Weyland, Kurt Gerhard, The politics of market reform in fragile democracies: Argentina, Brazil, Peru, and Venezuela, Princeton: Princeton University Press, 2002.

12. O novo século: entre futuro e déjà-vu 1. A inflexão à esquerda Sob múltiplos aspectos, o panorama político da América Latina na primeira década do século XXI era inédito. Com a exceção de Cuba, todos os países da região já possuíam regimes democráticos, de uma democracia representativa, fato jamais ocorrido. Não por acaso, alguns historiadores veem nesse fenômeno um indicador da progressiva confluência da região com o restante do Ocidente, do qual, no fundo, faz parte. Mas o copo meio cheio pode parecer meio vazio quando se levam em consideração as carências e limitações de muitas democracias, que em alguns casos podem expô-las a perigosos retrocessos. Algo assim aconteceu na crise de Honduras em 2009, onde as Forças Armadas depuseram o presidente Zelaya, acusado de tentar realizar uma consulta popular com o objetivo de alterar a Constituição para reeleger-se; ou na crise de 2012 no Paraguai, onde o Parlamento votou a destituição do presidente Lugo quase por unanimidade. Em 2008, antes que a sombra da grave crise que atingiu a economia global se projetasse também sobre a América Latina, o horizonte parecia muito promissor. Assim revelavam as pesquisas de opinião, segundo as quais a grande maioria dos latino-americanos, cerca de 70%, expressava satisfação com o presente e confiança no futuro. É praticamente impossível dizer em que medida essas expectativas eram fruto do forte crescimento econômico dos anos anteriores e até que ponto correspondiam à maior estabilidade econômica dos seus países. Não obstante, o fato é que na primeira década do novo século a democracia política se consolidou como nunca antes em muitos países, onde a alternância pacífica dos governos se tornou a norma, as crises políticas se mantiveram dentro dos parâmetros constitucionais, os presidentes terminaram seus mandatos regularmente, as eleições foram competitivas e, em situações cada vez mais comuns, transparentes.

Manuel Zelaya, presidente hondurenho destituído, permanece na localidade nicaraguense de Ocotal, na fronteira com Honduras, à espera de apoio internacional, em 26 de julho de 2009.

Como já se viu desde os tempos das transições democráticas, porém, a qualidade, legitimidade e eficiência das instituições políticas e a difusão da cultura democrática não se instauravam de modo uniforme na região, em absoluto; além disso, não favoreciam a consolidação da democracia em toda parte. Assim, ao lado de democracias mais ou menos estabilizadas e estáveis, como as do Uruguai, do Chile e da Costa Rica, e de outras que apesar de seus descaminhos e carências revestiam-se em boa parte desses atributos, como a do Brasil e, em proporção bem menor, a da Argentina e do México, postavam-se outras muito mais titubeantes. Na cordilheira dos Andes e na América Central, de modo especial, onde em diversos casos a concentração do poder nas mãos do presidente não enfrentava resistências devido à reduzida autonomia do Parlamento e da Magistratura, os sistemas e partidos políticos eram mais frágeis e voláteis, e a sociedade civil era fraca e vincada de fissuras atávicas étnicas e sociais. Reflexo dessas carências eram as tentações recorrentes de vários líderes de governar de forma plebiscitária, isto é, de se valer da própria popularidade para reformar a Constituição com apoio popular, criando assim condições para perpetuar-se no poder, como aconteceu em países ideologicamente opostos como a Venezuela de Hugo Chávez e a Colômbia de Álvaro Uribe. Em muitos países, enfim, a corrupção endêmica e a capilar difusão de práticas clientelistas, associadas ao crescimento do narcotráfico e de poderosas organizações criminosas, solapavam a credibilidade da classe política e alimentam a

ideologia antipolítica que tanto contribui para desgastar as instituições representativas. Em resumo, onde permanecem desigualdades sociais mais profundas somadas a antigas barreiras étnicas, as instituições democráticas encontram muito maior dificuldade para satisfazer as enormes expectativas de integração simbólica e de melhoria material de múltiplos setores marginalizados. Entre estes, a noção populista de democracia conserva em muitos casos uma extraordinária vitalidade. Essa democracia lhes promete a almejada integração, mas corre o risco de prejudicar o pluralismo e de transpor para a esfera política a lógica maniqueísta típica do imaginário religioso, lógica que tende a transformar o conflito político em hostilidade entre amigos e inimigos que se excluem mutuamente. Dito isto, a primeira década do século XXI ficará marcada na história como a época da inflexão à esquerda, guinada que caracterizou grande parte da região, com as relevantes exceções da Colômbia e do México, destacando-se entre suas causas o fracasso ou o esgotamento das experiências neoliberais em voga nos anos 1990. A esses fenômenos sucedeu uma crescente demanda de proteção social e de retorno à primazia da política ante a “tirania” imputada aos dogmas econômicos. Ao mesmo tempo, porém, em meio a essa onda, distinguem-se diferentes esquerdas e diferentes contextos, uma vez que nem todas as esquerdas se afinam pelo mesmo diapasão e nem todos os contextos se caracterizam do mesmo modo pela ruptura com o passado. De um lado, há uma esquerda reformista, em geral desenvolvida nos contextos em que a democracia está mais consolidada. As suas características essenciais são a escolha estratégica da democracia representativa e da cultura política pluralista; a busca da equidade social respeitando os vínculos macroeconômicos; o pragmatismo voltado à conquista das classes médias, decisivas para conferir-lhe a vitória eleitoral; uma política externa aberta e multilateral, livre da tentação do nacionalismo antiamericano; a consciência de que as melhorias sociais demandam tempo e não admitem atalhos, razão pela qual a evolução é preferível à revolução. Não é casual que os representantes dessa corrente, Lula da Silva no Brasil, Michelle Bachelet no Chile, Tabaré Vázquez no Uruguai e de certo modo Alan García no Peru, se tornaram mais moderados no governo do que o foram na oposição e tenham evitado transformar a ordem institucional herdada dos antecessores. Outra vertente é a da esquerda populista, que em geral prosperou em contextos de crise política e de profundas fraturas étnicas e sociais. Decididamente mais radical, utiliza uma linguagem revolucionária e pretende regenerar as estruturas materiais e espirituais da sociedade. Mesmo adaptandose aos procedimentos formais da democracia liberal, aspira a suplantá-la com um modelo participativo em que o povo, entendido como comunidade

homogênea por sua história, etnia ou condição social, encontraria amparo e proteção. Essa esquerda opõe o dirigismo à economia de mercado e a polarização ao pragmatismo, seja em termos do conflito entre classes, seja ainda mais de contraposição ética entre povo e oligarquia. No plano internacional, promove a formação de uma frente antiamericana, tendo como seu emblema a Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA – anteriormente Alternativa Bolivariana para as Américas; a partir de 2009, Aliança Bolivariana para as Américas), um organismo de cooperação política e econômica criado em 2004 através de acordo entre Hugo Chávez e Fidel Castro, ao qual aderiram em seguida os governos da Bolívia, Equador, Nicarágua e Honduras. (Também fazem parte do bloco: Dominica, Antígua e Barbuda, e ainda São Vicente e Granadinas). Onde se consolida, a esquerda populista abandona o contexto institucional herdado e, com o apoio da maioria, embora à custa de agudos conflitos, aplica todas as suas forças à transformação radical desse contexto através da elaboração de novas Cartas Constitucionais.

Lula e Chávez, destinos cruzados Lula e Chávez, o operário brasileiro e o soldado venezuelano, eram as figuras emblemáticas das duas tendências que de modo geral constituíam a heterogênea esquerda latino-americana. O primeiro desenvolveu-se nos sindicatos em luta contra o regime militar e depois no Partido dos Trabalhadores (PT), do qual foi um dos fundadores; o segundo, nas escolas militares do seu país, impregnadas de nacionalismo. Lula, o reformista, assumiu após várias derrotas o governo do Brasil, vencendo as eleições de 2002 e reelegendo-se em 2006. No entretempo, o seu partido se expandira e institucionalizara, havia formado quadros, governado cidades e Estados, costurado alianças e com o tempo amenizado o programa radical de fases anteriores. Por sua vez, Chávez, o populista, chegou ao poder como um outsider, primeiro tentando suprimir pelas armas o agonizante bipartidarismo venezuelano e em seguida formando um movimento popular que lhe assegurou inúmeras vitórias eleitorais e sobre o qual exerceu sua liderança carismática. Assim, tanto o poder de Lula estava sujeito aos limites impostos pelo contexto institucional do seu país, quanto o de Chávez esquivava-se aos controles e evidenciava a tendência a se tornar absoluto. Essas diferenças caracterizaram os seus governos. Lula implementou uma política pragmática e gradualista, promovendo planos sociais ambiciosos sem criar desequilíbrios fiscais, aumentando os gastos públicos sem deixar de honrar a dívida, continuando a reforma agrária, mas muito

lentamente para não ameaçar a propriedade privada. Assim, ficou exposto às críticas da esquerda radical, mas obteve consenso entre a classe média; com o tempo, porém, esta ficou prejudicada pelos graves escândalos de corrupção em que o partido governista se envolveu. O crescimento econômico alcançado pelo seu governo foi lento, mas também constante e sólido, de modo a permitir-lhe atenuar em parte as enormes lacunas sociais do Brasil. Tudo isso aconteceu no contexto político e constitucional herdado e mediante complexas negociações políticas; por isso, num quadro de estabilidade institucional e de conflitos sociais reduzidos, e também com um aumento exponencial da influência e do prestígio do Brasil no mundo.

Luiz Inácio Lula da Silva e Hugo Chávez, em junho de 2008. Fotografia de Marcello Casal Jr.

Chávez, por sua vez, invocou a revolução bolivariana e transformou radicalmente a ordem política e institucional da Venezuela em meio a furiosos embates com a oposição e a violentas polêmicas com os Estados Unidos. Tais embates culminaram no golpe que o depôs em 2004, mas do qual acabou saindo ileso. No seu projeto de construir o que chamava de socialismo do século XXI, alterou duas vezes a Constituição para

assegurar-se o virtual direito à reeleição perpétua e ampliou o controle sobre o poder judiciário e os meios de comunicação. No plano social, empregou parte dos enormes recursos obtidos graças aos elevados preços do petróleo para promover inúmeras missões destinadas a levar educação e saúde aos setores populares. Essas ações, certamente embebidas de espírito clientelista, reabsorveram em parte a pobreza, mas também exerceram funções de doutrinação política. Um grau extremo de polarização caracterizou o seu governo, projetado para a criação de uma nova ordem mediante a demolição da velha e dos seus remanescentes. Esse estado de revolução permanente e de absoluto domínio da maioria sobre a minoria tornou o panorama venezuelano instável e sempre sujeito a reviravoltas e surpresas. Fortalecido com a riqueza do petróleo e com a vocação revolucionária do seu regime, Chávez enfim não poupou esforços para difundir sua ideologia em toda a região, obtendo sucesso onde o nacionalismo e o antiliberalismo que a caracterizavam encontraram terreno fértil, como na Bolívia, no Equador e na Nicarágua. Não obstante, deparouse também com veementes reações entre os muitos que viam nesse regime propósitos hegemônicos e a reedição do populismo autoritário, hostil ao pluralismo e à democracia representativa.

2. O crescimento econômico e os seus limites Se a entrada da América Latina no novo século, em termos econômicos, não teve absolutamente nada de triunfal, tudo começou a melhorar a partir de 2002, quando a conjuntura mundial desanuviou-se, e assim permaneceu até 2008. Nesses anos, o crescimento econômico da região foi efetivamente rápido e constante, a taxas médias em torno de 6% ao ano, igual ao dobro da tendência histórica. Não se restringindo a alguns casos virtuosos, esse crescimento se estendeu a todos, independentemente das orientações econômicas e ideológicas de governos individuais. Pelo final da década, quando a crise financeira estadunidense desencadeou uma nova e profunda recessão, a América Latina obviamente se ressentiu, sofrendo um grande impacto, embora menor do que os efeitos desastrosos de vinte anos antes e do que sofreram muitos outros e mais poderosos países ocidentais – confirmação de que o crescimento dos anos anteriores não fora um mero fogo fátuo, mas havia robustecido as bases econômicas da região. Para alguns economistas, o crescimento da primeira década do século XXI foi de fato diferente daquele do passado. O que o tornou mais robusto e saudável foram o pragmatismo e a racionalidade com que em geral foi administrado, segundo critérios opostos aos ideológicos – quase sempre predominantes até então -, tornando assim a economia latino-americana menos vulnerável às crises

econômicas internacionais. Confirma essa constatação o forte aumento do ingresso de capitais externos, o boom das bolsas locais e o fortalecimento das moedas latino-americanas; além do fato de que a inflação, a praga mais antiga e temida, esteve sob controle em quase toda a parte. Isso tudo para não falar das contas públicas, em geral superavitárias, da redução da dívida, das reservas internacionais acumuladas e das balanças de pagamento no ativo. De modo que muitos países obtiveram o que mais lhes faltara no passado: credibilidade e, no caso do Chile e de outros poucos, inclusive prestígio aos olhos dos investidores. Outros economistas, por outro lado, estimam que o crescimento econômico da América Latina na verdade ocorreu durante uma década bem menos promissora do que poderia parecer à primeira vista, pois em grande parte deveu-se a fatores externos independentes da sua vontade: o crescimento mundial, os preços elevados das matérias-primas e as condições financeiras propícias. Sem esses fatores, as economias da região teriam crescido a ritmos normais. Acrescente-se que essas circunstâncias não impediram um desenvolvimento menor da América Latina e com taxas de produtividade mais baixas do que em outras áreas emergentes. Assim, mais do que da virtuosa administração da economia, os resultados obtidos em matéria fiscal, de balanços, de contas com o exterior, e assim por diante, sempre dependeram dos fatores mencionados. Por isso, a vulnerabilidade aos choques externos se manteria elevada e, salvo raras exceções, os governos da região teriam perdido a ocasião para realizar reformas profundas destinadas a conter os gastos e a incentivar a inovação e a produtividade.

A variante chinesa O panorama econômico da América Latina mudou no primeiro decênio do século XXI ao ritmo das rápidas mudanças dos equilíbrios mundiais. Fazem parte dessa mudança os novos parceiros econômicos interessados pela região, com destaque para a China, cujo impacto sobre as economias latino-americanas foi maciço e rápido, a ponto de revolucionar o panorama econômico regional e de reduzir de modo consistente o tradicional peso estadunidense. Para algumas entre as mais importantes economias latinoamericanas, a economia chinesa se tornou a locomotiva capaz de puxar o crescimento, seja como mercado para matérias-primas, seja como preciosa fonte de investimentos ou de créditos. Nesse sentido, as viagens que as mais altas autoridades de Pequim realizaram a diversos países da região ao longo da primeira década do século XXI abriram o caminho para a intensificação das relações com a América Latina. Os intercâmbios com a China praticamente decuplicaram no período de poucos anos, a ponto de se

tornar um parceiro estratégico para países como Argentina, Brasil, Chile e Peru. Tudo isso no quadro de um verdadeiro boom do comércio exterior latino-americano, que triplicou nos primeiros oito anos do século em consequência do crescimento mundial e da abertura comercial da região.

Chanceleres da Unasur reunidos com seus pares de outros países da América Latina e da Ásia, durante Fórum Sul-Americano de Cooperação Internacional, em Buenos Aires, agosto de 2011.

O início do século XXI, porém, se caracterizou também pela crescente contestação à economia liberal na maioria dos países da América Latina e pelas reações propensas a ampliar o papel do Estado na administração da economia: reações reformistas onde as instituições políticas eram mais sólidas, as sociedades menos divididas e a herança do modelo neoliberal menos negativa, como no Chile, no Brasil e no Uruguai, mas em parte também no México, no Peru e na Colômbia – países em que o Estado ampliou o próprio raio de ação sem, porém, combater a economia de mercado, mas implementando políticas públicas para compensar alguns efeitos sociais. E reações nacionalistas, onde coincidiram com o colapso do sistema político tradicional, como na Venezuela, com a explosão de antigas fraturas étnicas, como na Bolívia e no Equador, ou com profundas crises, como no peculiar caso da Argentina. Nesses casos, tanto os governos como os vários movimentos sociais e indigenistas rejeitaram em bloco a economia de mercado e defenderam o retorno a modelos econômicos dirigistas e nacionalistas, os quais em geral resultaram em novas

nacionalizações e regulamentações. Esse fato não esconde uma realidade histórica: a de que numa região como a América Latina, marcada por profundas fissuras étnicas e sociais, impregnada na sua história de um imaginário social hostil ao capitalismo, em geral imposto manu militari a populações atraídas por políticas populistas, a maior parte dos latino-americanos vivesse já no início dos anos 2000 sob governos democráticos que com graus diversos de eficácia e transparência praticavam políticas econômicas de tipo capitalista.

3. As sociedades latino-americanas no novo milênio Como a economia, também os indicadores sociais que avaliam a pobreza, a desigualdade e o emprego passaram por etapas diversas ao longo da primeira década do século XXI. Ou seja, da etapa cinzenta dos primeiros anos a uma clara melhora desde 2002 até o novo solavanco de 2008. Para os mais otimistas, os resultados foram animadores: o percentual da população pobre, em torno de 30% dos latino-americanos, ficou reduzido em aproximadamente 10% durante a década, com uma diminuição ainda maior do número de indigentes. No entanto, o fosso entre os países com maior bem-estar, como Chile, Argentina e Uruguai, e os mais pobres, como Honduras, Paraguai e Bolívia, continua abismal. Além disso, no mais das vezes, essas reduções se devem mais a um mero reflexo do crescimento econômico do que a políticas eficazes de redistribuição de renda. Tais políticas produziram resultados apreciáveis em poucos casos apenas, entre os quais os da Bolívia, Brasil e Chile. A propósito, os mais céticos observaram que por mais que a América Latina continuasse com uma receita média que a situava numa posição intermediária entre os países mais avançados e os mais pobres, no quesito desigualdades sociais ocupava um primeiro lugar pouco invejável. Se é verdade que ocorreram algumas melhorias na primeira década dos anos 2000, quando a desigualdade chegou ao nível mais baixo dos últimos vinte anos, é igualmente correto dizer que os avanços foram lentos e muito desiguais de país para país. A redução da pobreza e da desigualdade social resultou em boa medida da criação de empregos qualificados e mais produtivos, portanto mais bem remunerados, ou seja, de modo a possibilitar a gradual reabsorção na economia formal dos enormes bolsões de marginalidade acumulados ao longo dos decênios. Nesse sentido, deve-se observar que o desemprego retrocedeu a ritmos bastante rápidos a partir de 2002, o que não era esperado, considerando-se que o crescimento econômico dos anos 1990 não havia produzido um número mais significativo de postos de trabalho. Soma-se a isso o fato de que jovens, mulheres e pobres continuaram em geral relegados às margens do mercado de trabalho e de que ainda se manteve amplamente dilatado o setor informal, quer dizer, o extenso setor de empregos de baixa qualidade e produtividade que não

garantiam segurança nem acesso à previdência social. Basta dizer que, com exceção do Chile, onde 70% dos empregados contribuíam para o sistema previdenciário, em comparação com apenas 30% de países como o Peru e a Bolívia, esse setor ocupava mais de 40% dos trabalhadores. Como consequência, a figura mais difundida na América Latina era a do trabalhador pobre, que tinha uma ocupação, é verdade, mas esta era insuficiente para lhe prover a devida subsistência. Não obstante, ressalte-se que a pobreza entre os trabalhadores diminuiu de modo perceptível depois de 2000 em países como o Chile, o Brasil e o México, onde a produtividade do trabalho aumentou e com ela o salário médio. Outros fatores começaram também a influenciar a melhora dos indicadores sociais dos países latino-americanos: alguns políticos, e por isso sujeitos a variações; em particular, a tendência de alguns governos a abandonar, pelo menos em parte, a lógica da distribuição indiscriminada de recursos para fins eleitoreiros e clientelistas, e a realizar investimentos sociais destinados a produzir resultados no longo prazo. Outros estruturais: grande parte da região passou a desfrutar o bônus demográfico, isto é, ingressou ou avançou naquela peculiar fase em que o percentual da população em idade produtiva aumenta a ritmos mais sustentáveis do que o da população em idade não produtiva, como crianças e idosos – circunstância essa que se prolongará por bastante tempo e que permitirá atenuar a pressão demográfica sobre muitos serviços públicos, mas que somente dará frutos se explorada com investimentos significativos na formação de capital humano. Um capítulo à parte no panorama social da América Latina do início do século é reservado ao tema da violência, que de modo algum era inédita na região, mas que tendeu a assumir novas formas e dimensões ou a representar em muitos países grave obstáculo para a consolidação da democracia e para o avanço das condições sociais. A ação de grandes e poderosos grupos criminosos que dirigem a produção de entorpecentes e o seu comércio através de redes imensas e capilares estendeu-se com o tempo a toda a região, até exercer o controle informal de algumas zonas e penetrar a fundo nas sociedades e instituições locais: especialmente no México e na Venezuela, países entre os mais violentos da região. Do mesmo modo, aumentaram também outras atividades ilegais, como a extorsão, os assaltos, os sequestros e outras mais, em geral praticadas por bandos de jovens, com grande proliferação principalmente nos países da América Central. Nem os planos de prevenção social nem a repressão deram em geral até agora resultados satisfatórios, de modo que em muitos países da América Latina a segurança está no topo da agenda política e entre os maiores temores da opinião pública.

O indigenismo radical As eleições de Evo Morales na Bolívia em 2005 e de Rafael Correa no Equador em 2006 – dois líderes muito diferentes, mas ambos apoiados por muitos movimentos indigenistas em dois países onde o componente indígena da população é preponderante e onde as barreiras étnicas são historicamente mais rígidas – foram um sinal claro da força inédita alcançada pelo indigenismo na primeira década do século XXI. Na sequência, essa força se confirmou em diversas eleições e referendos populares realizados com o objetivo de legitimar as ambições constituintes, ou seja, a ideia segundo a qual a nova ordem de que se consideravam fundadores devia ser incluída nas suas Constituições, destinadas a inaugurar uma etapa de resgate dos povos indígenas discriminados. Essas Constituições, secundadas pelo estilo populista típico dos seus líderes, suscitaram veementes protestos das oposições e às vezes agravaram as divisões já profundas entre classes e regiões. Elementos inovadores e elementos arcaicos conviviam no novo indigenismo, nascido da confluência de diversos aportes, em geral heterogêneos, e por isso sujeito a fortes tensões internas e passível de evoluir em direções muito distintas entre si, a ponto de se poder falar não em indigenismo, mas em indigenismos. Mas não só; na verdade, estes emergiam da experiência social das populações autóctones, mas ainda mais da contribuição de correntes marxistas, de cristãos progressistas e de antropólogos nativistas. A sua maior novidade histórica estava no fato de que, através deles, a população indígena, que em sua maioria permanecera às margens da política e na base da escala social, se encaminhava para a emancipação material e simbólica, avançando assim para a integração na esfera pública através dos meios de que fora habitualmente excluída ou que sempre percebera como estranhos: as eleições, os partidos políticos, a Constituição. Não menos fortes, apareciam nesses novos indigenismos os elementos tradicionais, identificáveis no campo cultural, onde o apelo à autodeterminação da nação indígena corria por vezes o risco de desembocar no exclusivismo étnico; no campo social, onde o apelo ao comunitarismo indígena retomava com frequência os temas da tradição antiliberal católica e marxista; no campo econômico, onde se inseriram no sulco cavado no passado pelo nacionalismo; e por fim no campo político, onde os governos indigenistas seguiram os rastros do populismo, tendendo a monopolizar o poder e a limitar o pluralismo em nome da unidade do povo e da nação, da justiça social e da homogeneidade étnica.

Rafael Correa e Evo Morales, no México, em novembro de 2009.

4. A transformação do panorama religioso Como já considerado em outros contextos, a cultura política e o imaginário social de grande parte da população latino-americana foram plasmados ou profundamente influenciados ao longo da história por esta realidade antiga e peculiar: a região pertence à civilização católica. Essa asserção se estende ao período colonial, quando a América ibérica, para todos os efeitos, fazia parte dos impérios católicos da Espanha e de Portugal, mas abrange também o período contemporâneo, que começou com as várias declarações de independência, dado que ao substrato ideal ou moral católico se reportaram, com maior ou menor consciência, muitas correntes políticas e ideológicas que animaram a história da América Latina. Correntes que com frequência imprimiram direcionamentos divergentes ou mesmo antagônicos, como nas polêmicas entre católicos liberais e integralistas, conservadores e progressistas, ortodoxos e liberacionistas. Ou entraram em colisão entre si porque disputavam o mesmo espaço político e o mesmo universo ideal, como aconteceu com as tensões entre a Igreja institucional e os movimentos populistas ou radicais, ou por vezes entre as autoridades eclesiásticas e os governos ditatoriais que desejavam legitimar-se exibindo sua catolicidade. Por isso, a história política e social da América Latina está visceralmente permeada em todos os níveis por sua história religiosa. Esse fato leva a pensar que algumas transformações importantes ocorridas nesse âmbito ao longo do

tempo, mas aceleradas nas últimas décadas, no futuro terão profundas repercussões sobre todos os aspectos da vida e da história latino-americanas. Duas de modo particular, embora divergentes em vários aspectos: a primeira é a progressiva transformação da América Latina de continente católico que fizera da unanimidade religiosa um fator essencial da sua identidade em um continente em que se constata um substancial pluralismo religioso. Isto é, onde o catolicismo continua sendo de longe a confissão predominante, à qual se declaram pertencer entre 70 e 80% dos latino-americanos. Mas também onde, longe de ocupar a posição monopolista que ocupava trinta anos atrás, quando esse percentual superava os 90%, e de poder nessa qualidade pleitear privilégios públicos ou reivindicar a tutela sobre a identidade das nações particulares, se vê convivendo cada vez mais com outros cultos e credos, de modo especial protestantes de tendências e origens diversas, embora não exclusivamente. Essa transformação de amplo alcance reduz e altera a influência do catolicismo na América Latina, submetendo-a a novos desafios, mas não aponta para a redução do espírito religioso na região. Pelo contrário, indica a existência de uma demanda espiritual ainda não atendida, especialmente entre as classes populares e marginalizadas, tanto rurais como recentemente urbanizadas, que procura – e quase sempre encontra – em novas confissões respostas que julga mais condizentes com suas necessidades. De sinal e natureza bem distintos é a segunda, enorme e profunda transformação em andamento há muito tempo, também de raízes antigas e extensas, mas que se acelerou a partir da volta da democracia, quando o contexto cultural e institucional lhe permitiu manifestar-se em liberdade. Tratase da crescente secularização da população latino-americana – da urbana mais do que da rural, das classes médias e instruídas mais do que das populares e menos instruídas, dos jovens mais do que das pessoas adultas ou idosas – e que se processa em ritmos e em dimensões maiores do que em qualquer outra época. Por secularização entende-se tanto o aumento do número das pessoas que se definem como ateias ou agnósticas e que por isso, na sua vida social, não se inspiram em preceitos de natureza religiosa; quanto, sobretudo, o forte aumento daqueles que, mesmo se declarando católicos, tendem cada vez mais a decidir e comportar-se de acordo com sua própria consciência individual, sem dar maior atenção ao clero e à doutrina da Igreja. Isso se verifica não só no campo político, mas ainda mais no terreno moral e sexual, fato que denota a crescente difusão de uma cultura da responsabilidade e dos direitos individuais de que a história política da região esteve quase sempre carente. Além disso, leva a crer que em muitos países esteja se esgotando o imenso manancial do qual jorraram no passado as culturas políticas de tipo organicista, baseadas na preeminência do

todo sobre as partes, da unidade sobre a multiplicidade, da comunidade sobre o indivíduo. No conjunto, essas transformações indicam alguns movimentos divergentes em curso nas fendas mais profundas das sociedades latino-americanas: uns que pressionam para aumentar o peso da dimensão religiosa na vida pública; outros, ao contrário, para diferenciar de modo mais claro os dois ambientes. Esses movimentos indicam uma acentuada e crescente heterogeneidade espiritual, da qual se encontram sinais evidentes na história política da região. Nos inícios do novo milênio, conviviam nessa história movimentos populistas imbuídos de espírito palingenético de evidente matriz religiosa, a ponto de redescobrir ou reinventar em alguns casos, como o de Evo Morales na Bolívia, antigos ritos pré-colombianos; e regimes políticos mais marcadamente laicos nos países onde se consolidou sobretudo a democracia liberal.

A Marcha para Jesus, organizada anualmente no Brasil pelas igrejas evangélicas, reuniu em 2010 cerca de 2 milhões de pessoas em São Paulo. Noticia Cristiana, 2007.

5. A América Latina e o mundo Visto da América Latina, no início do século XXI o mundo se tornara muito diferente daquele de apenas vinte anos antes. De um lado, porque a Guerra Fria já era uma lembrança distante e a região não era mais joguete e terreno da competição entre grandes potências como no passado. De outro, porque os

fluxos comerciais e financeiros haviam aumentado a ponto de transformar toda a região num espaço econômico muito mais aberto e, portanto, mais permeável aos eventos externos e também mais autônomo na escolha e procura de sócios e mercados. Mas além desses fatores evidentes, as novidades que mais saltavam aos olhos eram essencialmente duas: a primeira foi a dimensão muito mais concreta que o tema da integração regional assumiu na agenda política latinoamericana; a segunda consistiu no abrandamento da influência estadunidense, tanto em termos políticos e econômicos como de hegemonia ideológica. Por via de consequência, no plano das relações internacionais, toda a região manifestava uma maior maturidade e independência em comparação com o passado, condição essa que implicava tanto oportunidades como riscos. Além disso, aplicava-se tanto para os que agitavam as bandeiras do nacionalismo quanto para os que mantinham relações amigáveis com o restante do Ocidente. Quanto ao primeiro aspecto, a integração regional, esta era estimulada por inúmeros fatores: os desafios da globalização, a necessidade de fortalecer o poder de negociação da região nos foros internacionais, a tendência universal a criar macroáreas regionais, e a consolidação das instituições e dos valores democráticos como fundamento da comunidade latino-americana. Tanto assim que a rede de organizações políticas e econômicas regionais ampliou-se de forma imensurável. Ao mesmo tempo, tornava-se cada vez mais claro que, no horizonte da integração, a América Latina tendia naturalmente a decompor-se em diversas partes, isto é, por um lado, México, América Central e a área do Caribe gravitando sobretudo na órbita de Washington, como, aliás, impunha o peso da história, da economia e da geopolítica. Por outro lado, as nações da América do Sul tendiam a congregar-se, apesar de se depararem com obstáculos colossais: históricos, políticos, geográficos e econômicos. Obstáculos que embaraçavam o esforço de levar a área andina, o Cone Sul e as instituições que já surgiam – o Mercosul e a Comunidade Andina – a convergir num único organismo regional, ponto de partida para a futura passagem do âmbito comercial para as esferas monetária, militar e política, mais comprometedoras. Essa foi a ideia propulsora da União de Nações Sul-Americanas (UNASUL), criada em Brasília em 2008. Essa instituição ofereceu as primeiras provas do seu potencial político ao assumir com relativo sucesso a gestão de algumas crises delicadas, como a que eclodiu na Bolívia em 2008 entre o governo e as províncias contrárias à nova Constituição. Sob todos os pontos de vista, o Brasil foi o farol inspirador e essencial dessa política, tanto pela hegemonia objetiva derivada das suas dimensões e da sua potência, como pela peculiar condição de “dobradiça” entre a América indígena e a América europeia; e ainda, enfim, pelo indubitável prestígio que adquiriu no âmbito internacional durante os mandatos de Lula.

Com efeito, na primeira década do novo milênio, a região deu alguns passos importantes na direção de uma maior integração, embora não tão rápidos e eficazes como seria lícito esperar. Os obstáculos que desde sempre refreiam a cooperação regional continuam de modo geral insuperáveis. Pondere-se sobre os frequentes contrastes entre os diferentes interesses nacionais, em particular entre países grandes e populosos solícitos em proteger os próprios mercados, como o Brasil, e países menores e muito dinâmicos, voltados acima de tudo para o exterior, como o Chile, e por isso resistentes a se deixar manietar por barreiras alfandegárias elevadas e rígidas. Ou pense-se sobre o ressurgimento em diversos países de ideologias nacionalistas pouco propensas a favorecer acordos e instituições supranacionais, sem os quais será difícil transitar de uma integração comercial fraca para uma integração política mais robusta. O próprio poder extraordinário do Brasil representa um problema, pois é difícil para os demais países da região, compreensivelmente temerosos de que a integração se transmute em implícita anexação, reconhecer sem objeções a sua liderança, e não procurem contrabalançá-la de algum modo. Enfim, em nada contribuem para a causa da integração os contínuos esforços dos regimes políticos mais radicais para ideologizá-la, ou seja, usá-la como instrumento para ampliar e potencializar a frente antiamericana. Longe de promover a união e a institucionalização, tendem na verdade a alimentar contrastes, defecções, rigidez, e por isso, instabilidade. De fato, a primeira década do novo milênio foi permeada de tensões regionais, às vezes agudas e férteis em consequências duradouras, como, por exemplo, o confronto entre a Argentina e o Uruguai em torno de uma espinhosa questão política e ambiental na fronteira entre os dois países. Ou entre a Colômbia e os vizinhos envolvendo as bases da guerrilha instaladas nos territórios destes e a decisão do governo de Bogotá de bombardeá-las. Ou ainda entre o Brasil e países como o Equador e a Bolívia, que ao nacionalizarem os setores extrativistas, prejudicaram alguns vultosos investimentos brasileiros.

Ambientalistas de Gualeguaychú (Entre Ríos, Argentina), em uma manifestação contra a instalação, na costa uruguaia, de uma fábrica de papel da Botnia, em março de 2009. Agência Télam.

Retrato fiel dessas dificuldades é o Mercosul, o mais ambicioso esforço de integração jamais tentado na América do Sul. Mesmo estimulando os intercâmbios comerciais, incrementando-os substancialmente, depois de quase vinte anos de existência não se podia dizer que apresentasse um saldo positivo animador. Seja porque, em termos econômicos, continuava sendo mais uma área imprecisa de livre comércio do que um verdadeiro mercado comum, uma área minada de contenções crônicas entre os países membros devido às enormes assimetrias entre suas economias. Seja porque permanecera a meio caminho entre um projeto de integração econômica e um esforço de integração política, como revelavam a sua escassa institucionalização e a ausência de qualquer forma de participação da população nos processos decisórios. A segunda e peculiar característica das relações internacionais da área latinoamericana na primeira década do século XXI foi a redução do peso exercido pelos Estados Unidos. Entenda-se: trata-se de redução, não de ausência de influência. Redução desigual, porém, dado que é muito maior na América do Sul do que em outras partes da região. Com exceção, aliás, do caso peculiar da Colômbia, o mais fiel aliado dos Estados Unidos em toda a área – onde a violência política, o narcotráfico e os riscos de desestabilização regional que

representava o tornavam prioritário aos olhos de Washington -, no conjunto a América Latina não estava no topo dos interesses estadunidenses, de modo especial depois de 11 de setembro de 2001, quando esses se voltaram ainda mais para outras partes. Na América Latina, ao contrário, tanto as reações geradas pelo Consenso de Washington quanto as tendências unilaterais manifestadas por George W. Bush depois do ataque terrorista às Torres Gêmeas haviam revigorado o sempre latente antiamericanismo da região. De fato, na primeira década do novo século, a popularidade dos Estados Unidos e do seu presidente desabou. A própria eleição de Barack Obama em 2008, embora bem aceita pela opinião pública latino-americana e coroada de alguns gestos iniciais destinados a abrir uma nova etapa nas relações entre Estados Unidos e América Latina, não suscitou grandes expectativas, uma confirmação de que, para a maioria dos sulamericanos, o que acontecia em Washington já não pesava mais tanto, como no passado, sobre o próprio destino. Não que os Estados Unidos tivessem se resignado ao declínio da sua hegemonia sobre o hemisfério, perseguida durante dois séculos e fundamental para a sua segurança e prosperidade. No entanto, parecia quase impossível que essa hegemonia voltasse a ser o que fora no passado, pois os já vários decênios de globalização haviam ampliado os horizontes internacionais da América Latina, em especial da América do Sul, cujos países, em sua maioria, cultivavam com mais intensidade e proveito do que no passado as relações com outros parceiros, quer se tratasse da União Europeia ou da Rússia, dos tigres asiáticos ou da China. Não obstante, nada disso concorria para impedir que a América Latina continuasse como uma região periférica da nova ordem internacional: por um lado, ela vivia de forma mais abrandada do que outras áreas as vertiginosas mudanças dessa nova ordem; por outro, também sofria com menor intensidade seus violentos traumas. Permeada de divisões internas, empenhava-se em fazer com que sua voz fosse ouvida de modo unívoco e em ser percebida como uma área coesa na defesa de interesses comuns. Entre os países da região, apenas o Brasil e em bem menor medida o México possuíam o potencial para ser protagonistas das relações internacionais. Os demais tinham prestígio, mas não potência, como o Chile, ambições, mas poucas aptidões políticas, como a Venezuela, muito potencial, mas escassa confiabilidade, como a Argentina, e procediam de forma aleatória na política global do século XXI, alguns com maior e outros com menor sucesso.

George W. Bush e a América Latina A chegada de George W. Bush à Casa Branca em 2001 havia suscitado grandes expectativas sobre o futuro das relações entre Estados Unidos e

América Latina, tanto porque durante a campanha eleitoral ele havia criticado o presidente em exercício pela escassa prioridade reservada à região, como pela inédita decisão de visitar o México em sua primeira viagem como presidente e de dar destaque especial ao evento. Esse empenho pareceu encontrar confirmação na sua ativa participação na Cúpula dos Chefes de Estado americanos em Quebec, onde foi aprovada a chamada “Cláusula Democrática”, que implicava o compromisso de defender a democracia na região, pouco depois assumido pela OEA, a Organização dos Estados Americanos. Os atentados de 11 de setembro provocaram uma mudança de contexto. De um lado, porque a decisão da Casa Branca de concentrar-se na guerra global ao terrorismo islâmico alterou significativamente a posição da América Latina como prioridade, sendo ela a área do globo onde essa ameaça estava menos presente. De outro, porque a reação às vezes tíbia dos governos e, em alguns casos, hostil da opinião pública latino-americana abalaram a confiança de Bush na cooperação da região com a política que ele empreendia. Isso se confirmou em 2003 com a decidida oposição da maioria dos latino-americanos e dos seus governos à decisão unilateral tomada pela administração estadunidense de lançar um ataque ao Iraque de Saddam Hussein. Tanto que as fortes pressões exercidas sobre os governos do Chile e do México para obter o voto no Conselho de Segurança das Nações Unidas, de que então faziam parte, foram inócuas. Esse foi o desfecho, não obstante os governos desses dois países serem, dentre todos da região, os que maior sintonia mantinham com a Casa Branca. A total ausência do senso de oportunidade política demonstrada pelo governo de George W. Bush em 2002, quando se apressou a reconhecer as autoridades que haviam deposto o governo de Hugo Chávez na Venezuela, agravou ainda mais a sua credibilidade e imagem na América Latina, onde esse gesto lembrou a muitos o inveterado intervencionismo estadunidense. Este, porém, saiu dessa crise derrotado, pois o caudilho venezuelano logo reassumiu o cargo. Essa crise, por outro lado, revelou a nova perspectiva dos Estados Unidos com relação aos problemas do continente: a que recolocava a segurança, e, portanto, a neutralização dos potenciais focos hostis aos Estados Unidos no hemisfério americano, no mesmo plano da democracia e do desenvolvimento; tanto que a administração Bush potencializou a dimensão militar do Plano Colômbia, em detrimento da dimensão social das suas origens. Esse enfoque despertaria muito poucas simpatias ao governo Bush na América Latina, a ponto de impedi-lo de exercer com eficácia a liderança política na região, então perpassada de delicadas tensões políticas e ideológicas.

A importância assumida pela ideologia na política de Bush para a região atraiu-lhe muitos inimigos e em muitos casos não lhe permitiu desempenhar a função estabilizadora que a potência hegemônica costuma assumir. No entanto, não o impediu de consolidar relações com alguns governos de tendências opostas à sua: em especial com o Brasil, onde o governo Lula garantiu aos Estados Unidos uma cooperação construtiva em diversos campos, a começar pelo energético, e também uma política externa pragmática e moderada capaz de garantir o equilíbrio regional que a política estadunidense parecia não ter condições de assegurar. Bibliografia Borzutzky, Silvia e Oppenheim, Lois Hecht, After Pinochet: the Chilean road to democracy and the market, Gainesville: University Press of Florida, 2006. Castañeda, Jorge G. e Morales, Marco A. (edited by), Leftovers: tales of the Latin American left, London: Routledge, 2008. Crabtree, John e Whitehead, Laurence (edited by), Unresolved tensions: Bolivia past and present, Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 2008. Crandall, Russell C., The United States and Latin America after the cold war, New York: Cambridge University Press, 2008. Dabène, Olivier, The politics of regional integration in Latin America: theoretical and comparative explorations, New York: Palgrave-Macmillan, 2009. Ellis, R. Evan, China in Latin America: the whats and wherefores, Boulder: Lynne Rienner Publishers, 2009. Giraudo, Laura, La questione indigena in America Latina, Roma: Carocci, 2009. Krauze, Enrique, El poder y el delirio, Barcelona: Tusquets Editores, 2008. Panizza, Francisco (edited by), Populism and the mirror of democracy, London-New York: Verso, 2005. Santiso, Javier, Latin America’s political economy of the possible: beyond good revolutionaries and freemarketeers, Cambridge (Mass.)-London: The MIT Press, 2006.

13. Uma transição turbulenta. A América Latina nos anos 2010 do século XXI 1. Formigas e cigarras: a prestação de contas econômica A entrada da América Latina na segunda década do século XXI foi bem menos traumática do que a grave crise financeira desencadeada nos Estados Unidos em 2008 levava a temer. Num passado um pouco mais distante, essa crise teria produzido efeitos devastadores em toda a região. Muita coisa havia mudado, porém, e uma vez absorvido o impacto inicial, a região retomou a via do crescimento iniciada cinco anos antes. A primeira mudança ocorrida saltava aos olhos: o crescimento latino-americano era em grande parte puxado pela elevação dos preços das matérias-primas exportadas, por sua vez alimentada pela enorme demanda da China que se mantinha estável. Além disso, outros fatores influenciavam: salvo exceções importantes, os governos locais haviam aprendido a lição dos fracassos passados e se acostumaram a precaver-se para não abalar o equilíbrio macroeconômico. Além da mescla de estabilidade política, mão-de-obra barata, reformas de mercado e dinheiro a baixo custo no mercado de capitais, esse crescimento atraía recursos para a região: os investimentos externos, em torno de 40 bilhões de dólares em 2003, alcançavam a cifra de 130 bilhões em 2012; um verdadeiro boom. Os números relativos a esses dez primeiros anos são expressivos: o produto nacional bruto (PNB) latino-americano cresceu 35%; a taxa de desemprego recuou ao nível histórico mínimo, 6%; comparada ao produto, a dívida externa encolheu 50%; o volume do comércio exterior duplicou. Tudo isso com uma taxa de inflação estabilizada em 5%. Certamente não era o paraíso, e as diferenças de um país para outro e de uma camada social para outra eram abissais: a renda per capita no Chile, a mais elevada da região, era oito vezes a da vizinha Bolívia. Mas a grande transformação em curso era notória. Como todas as medalhas, no entanto, também esta tinha o seu reverso. Ao lado de países virtuosos por seu crescimento robusto, sistema produtivo sadio, contas públicas em ordem e inflação sob controle, estavam outros nem tão virtuosos assim. Com efeito, alguns haviam aproveitado os cofres cheios para exorbitar as despesas públicas e as subvenções, para introduzir todo tipo de controle cambial e proteção comercial, hasteando as bandeiras do nacionalismo econômico e

tirando dos trilhos as contas públicas e a inflação. Não só isso: por trás da fachada dourada do crescimento econômico continuavam a espreitar algumas deficiências estruturais da economia latino-americana: poucos investimentos e inovação, escassa produtividade e poupança reduzida. E ainda: poucas mulheres empregadas, corrupção desenfreada, violência endêmica. Resultado? A América Latina crescia, mas perdia peso relativo em comparação com outras áreas emergentes, especialmente a Ásia oriental. Nesse estado de coisas, a pergunta que se poderia fazer era como a América Latina reagiria quando os ventos favoráveis cessassem, quando o ciclo econômico revertesse. A resposta está no que em torno de 2014 se começou a ver com clareza sempre maior: a época das vacas gordas acabara e havia chegado a hora de fechar os balanços e pensar em novos projetos. Com a freada econômica da China, a queda concomitante dos preços das matérias-primas no mercado mundial e a retração geral da economia global, os estímulos para o crescimento regional haviam diminuído. De fato, a taxa de crescimento se reduzira drasticamente e os fluxos de investimento para a região haviam arrefecido, e assim os efeitos sobre o emprego e os indicadores sociais não tardaram a aparecer. Então se começou a ver quem resistia melhor ao impacto da crise e quem já dava sinais de fraqueza; quem havia estocado feno no curral na época de abundância e quem, ao contrário, havia dilapidado o patrimônio para garantir consenso a curto prazo e financiar consumos improdutivos. As primeiras economias a entrar em recessão e crises inflacionárias foram as da Venezuela e da Argentina, vitrinas do novo nacionalismo, logo seguidas pelo Brasil, que em pouco tempo passou da euforia de grande potência ao abatimento da recessão, do cauteloso reformismo econômico do primeiro Lula à paralisia e aos desequilíbrios seguintes. Também nos países que margeiam o Pacífico, como Chile, Peru, Colômbia e México, reunidos desde 2008 num acordo de livre-comércio, onde as taxas de crescimento haviam sido ainda mais elevadas na década anterior, o impacto do novo ciclo econômico se fez sentir com força total, reduzindo-as nitidamente. Mais do que nos países que haviam adotado políticas autárquicas e dirigistas, porém, as economias abertas ao mercado e fortemente vinculadas aos mercados asiáticos demonstraram resistir melhor ao impacto da crise: retraíram-se de modo brusco, mas evitaram precipitar-se na recessão. Nesses casos, a margem de manobra dos governos foi maior, graças às contas públicas em ordem e à sustentabilidade da dívida. Esses fatores lhes possibilitaram empregar a alavanca fiscal para aumentar a receita, de modo a enfrentar as recaídas negativas do ciclo econômico desfavorável. Como consequência, enquanto Colômbia, Chile e México aumentavam a despesa pública para amenizar os efeitos da freada econômica, os países que já a haviam levado a níveis insustentáveis, como Argentina e Venezuela, só conseguiam

resistir à voragem das contas desvalorizando a moeda, com todos os custos sociais que essa medida implica. O esgotamento do longo e excepcional ciclo favorável de início do século pôs a economia da América Latina diante de desafios históricos, para cujo enfrentamento alguns países estão mais preparados do que outros graças às escolhas mais cautelosas feitas no passado. A propósito, definindo os objetivos de desenvolvimento para as próximas duas décadas, a CEPAL, Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, criada pelas Nações Unidas, enunciou algumas orientações estratégicas para toda a região. A chave do desenvolvimento estará na capacidade de conjugar produtividade e inovação com a radical redução das desigualdades que ainda pesam como chumbo sobre as perspectivas da região. Para fazer isso, aumentam as vozes e os governos decididos a abandonar a velha e estéril disputa ideológica entre modelos populistas e neoliberais e a trilhar a via pragmática que às vezes se adapta melhor às diferentes realidades nacionais e ao ciclo econômico em curso: tratase da via que um autor definiu como “a política econômica do possível”.

A Aliança do Pacífico Criada em abril de 2011 pelo Chile, Colômbia, México e Peru para integrar os seus territórios de modo a chegar o mais rápido possível à livre circulação de mercadorias, pessoas e capitais e para estimular o desenvolvimento e a competividade, a Aliança do Pacífico foi a novidade mais promissora do panorama econômico latino-americano desde o alvorecer do século XXI. Desde o início, o produto total dos quatro países classificava o bloco como a oitava economia do mundo, responsável na época pela metade do comércio regional e capaz de atrair a fabulosa cifra de 70 bilhões de dólares anuais em investimentos externos. Além disso, os inúmeros acordos jurídicos e comerciais celebrados às pressas pelos paísesmembros demonstraram a determinação com que embarcaram numa aventura talvez menos aleatória do que tantas que malograram na América Latina no passado. Tratando-se em alguns casos de países que entraram em combate uns contra os outros e que ainda têm reivindicações territoriais recíprocas, como ocorre entre Peru e Chile e Peru e Colômbia, sem dúvida o compromisso assumido foi corajoso e de grande envergadura. O que dá projeção global ainda maior à Aliança é o seu estreito vínculo com a Parceria Transpacífico, criada em 2010 como acordo de livre-comércio entre o Chile e alguns países da Ásia e da Oceania e que se propagou rapidamente a inúmeros outros países na orla do Pacífico. Trata-se de uma vasta e rica área de livre-comércio entre economias emergentes, com

efeitos virtuosos sobre países como Peru e Colômbia, que estão entre as economias mais dinâmicas da América Latina. Outros sinais das expectativas geradas por esse organismo e, portanto, das suas potencialidades, são: o grande interesse em sua ação e projetos manifestado por empresas privadas e multilatinas, isto é, multinacionais latinoamericanas, que se expandiram de forma crescente nos últimos anos e às quais os países-membros atribuem um papel de grande relevância para promover sua integração; e a atração cada vez maior que a Parceria demonstra exercer sobre os países da costa atlântica do continente, comprovada de modo explícito pelo pedido do governo argentino de Mauricio Macri, em 2016, de se tornar observador.

2. As novas classes e o núcleo duro da desigualdade Dez anos de acentuado crescimento econômico produziram transformações sociais profundas na América Latina. Ao mesmo tempo, porém, alguns defeitos estruturais das sociedades regionais resistem a toda e qualquer mudança, e assim a inversão do ciclo econômico a partir de 2014 não só interrompeu os processos de mobilidade social em andamento, mas em muitos casos ameaçou subvertê-los. Nesse sentido, quando a década dourada alcançou o apogeu em 2013, alguns dados sociais substanciais mostravam a amplitude das mudanças ocorridas. A taxa da população pobre, na faixa de 43% em 2002, havia baixado para 28%, e o dos indigentes, de 19% para 12%. Em outras palavras: 60 milhões de pessoas haviam espantado o fantasma da pobreza, 30 milhões das quais o espectro da miséria absoluta. Considerando que um número igualmente elevado de latino-americanos havia dado o passo seguinte, o de ingressar numa classe social superior – uma classe média ainda com escassez de recursos, mas sempre uma classe média -, compreende-se que um vigoroso impulso na direção da ascensão social sacudira a região. A própria desigualdade, nota dolens das sociedades latino-americanas, diminuíra 10% numa década: em parte pelas subvenções públicas distribuídas por governos que dispunham de recursos abundantes, de tal sorte que o percentual da despesa pública destinado ao setor social havia aumentado dos 46% em 1990 para 66% em 2013; principalmente, porém, pelos efeitos da maior oferta de emprego e de melhores salários. Por mais relevantes que sejam, esses resultados se revelam parciais, mal distribuídos na região e de modo algum irreversíveis. São parciais porque, de modo especial nas zonas rurais e nas imensas periferias urbanas, subsiste um núcleo duro muito amplo da população que vive no abandono total ou então às margens da economia formal e a descoberto de toda assistência previdenciária. E também porque persistem graves desequilíbrios no acesso ao trabalho e aos serviços sociais em geral, embora de forma mais atenuada do que no passado.

As políticas públicas da maioria dos países se empenharam em reduzir essas desigualdades; não obstante, perduram ainda disparidades resistentes no acesso ao emprego devido aos preconceitos de gênero ou de raça, com as mulheres e as minorias étnicas sendo quase sempre mais marginalizadas e mais mal remuneradas. Acrescenta-se a isso a participação ainda mais limitada das mulheres no mercado do trabalho. Enfim, também as oportunidades educacionais continuam muito desiguais, de acordo com a classe social. Não por acaso, é precisamente à solução desses fatores estruturais atávicos, de raízes tanto sociais e econômicas quanto culturais, que apela a CEPAL nos seus planos de desenvolvimento, sempre visando a uma maior equidade. De todo modo, a partir do momento em que o ciclo econômico enveredou pelo caminho inverso em meados da segunda década do século, uma pesada hipoteca incide sobre tudo isso. Os efeitos sociais da brusca redução do crescimento fizeram-se sentir imediatamente, de modo particular nos países em que a recessão se instalou primeiro, onde boa parte das conquistas sociais da década anterior voltou à estaca zero, numa clara demonstração de que não se sustentavam sobre bases sólidas, mas sobre políticas insustentáveis no plano macroeconômico. Nesse aspecto, dadas as características extremas assumidas pela crise, ressalta o caso da Venezuela; também em outros países, porém, ficam à mercê da incerteza as vastas camadas populacionais que mal conseguiram ultrapassar o limiar de pobreza, sempre muito vulneráveis considerando-se a redução das subvenções sociais e da atividade econômica em geral. Daí a necessidade, detectada em várias partes e reconhecida por um número crescente de governos, de políticas sociais mais concretas e sustentáveis, determinadas a promover a formação técnica e profissional, a favorecer o trabalho independente e a racionalizar o mercado de trabalho, de modo a propiciar uma relação mais tranquila entre oferta e demanda.

Narcotráfico, criminalidade, corrupção A relação entre produção e tráfico de drogas de um lado, violência, criminalidade e corrupção de outro, constitui há muito tempo um dos emaranhados mais inextricáveis que deterioram a vida social de muitos países latino-americanos. Com todas as consequências daí resultantes a montante e a jusante: a montante, com o aumento de cartéis que em alguns casos concentram falanges militares e recursos financeiros capazes de manter o controle sobre as instituições estatais ou de aliciá-las para as suas próprias operações, exercendo uma verdadeira soberania alternativa sobre grandes extensões territoriais; a jusante, alimentando uma sequência infinita de comportamentos ilegais e violências quotidianas, confirmados

pelos dados relativos ao boom do microtráfico de drogas nas principais cidades latino-americanas, que de lugares de passagem se transformaram em centros de consumo de entorpecentes. Com esse propósito, as rotas do narcotráfico na América Latina estão em constante transformação: às extensas áreas do território mexicano e centroamericano há muito interessadas nelas, com a Colômbia, juntaram-se outras que se estendem do Caribe à região andina, de Rosário na Argentina a Caracas na Venezuela. Dada sua natureza fluida e hostil a regras e fronteiras, o narcotráfico representa um dos maiores desafios para os estados latino-americanos. Combatê-lo requer formas novas e mais corajosas de cooperação, seja para interceptar as vias da reciclagem, seja para elaborar estratégias comuns para salvaguarda da segurança. Por isso, a soberania nacional que muitos países da região cultivam como um fetiche quase oitocentista requer uma redefinição em sintonia com os problemas contemporâneos. Nesse sentido, consolida-se cada vez mais na região a convicção de que a estratégia proibicionista perseguida até agora pelos Estados Unidos não produziu os frutos esperados; muito pelo contrário. Por isso a América Latina está se transformando sempre mais num laboratório de estratégias alternativas, as quais em alguns casos propõem a descriminalização de algumas substâncias, e em outros, como o do Uruguai, que suscitou muita polêmica, aprovam a legalização de drogas mais leves e de maior consumo, como a maconha. A vanguarda de países que segue nessa direção não se norteia por tendências ideológicas específicas dos governos, mas pela urgência com que o problema se apresenta e ao qual os próprios Estados Unidos, pela primeira vez, parecem prestar atenção.

3. Democracias liberais e democracias populistas No plano político, a uma época em que com frequência os governos cessantes eram reconduzidos pelos eleitores, quase sempre satisfeitos ou otimistas com as mais promissoras condições que a história latino-americana guardava na memória, seguiu-se a partir de 2013 um novo período, marcado por sinais de mudança. Nem todas as confirmações no poder foram iguais: uma coisa era a reeleição de um partido e de um presidente que repetiam o mandato segundo os procedimentos constitucionais estabelecidos, como Dilma Rousseff no Brasil ou Juan Manuel Santos na Colômbia; outra coisa um pouco diferente era o fato de um presidente procurar e conseguir obter o direito de se recandidatar para um movo mandato alterando ad hoc a Constituição, inclusive com o aval de cortes constitucionais a que havia imposto um controle rígido. Assim aconteceu com

Evo Morales na Bolívia e Rafael Correa no Equador, depois eleitos com grande maioria. Se no primeiro caso o tecido institucional não era submetido a tensões, o mesmo não acontecia no segundo caso, o que conferia aos presidentes no cargo uma aura quase monárquica: tratava-se de líderes muito populares, mas a natureza personalista e arbitrária do seu poder inibia a maturação de um sistema pluralista e relegava as minorias às margens do sistema político. Nesses casos a polarização política podia chegar a níveis muito perigosos e transformar-se em uma espécie de guerra simulada entre duas frentes que negavam legitimidade uma à outra: é o que ocorreu na Argentina ao término do governo de Cristina Kirchner e ainda mais na Venezuela durante o longo período chavista. Em meados da década, porém, os eleitores começaram a exigir uma mudança cada vez maior através do voto. A deterioração do contexto econômico ajuda a explicar essa alteração de humor, mas apenas em parte. Também contribuíram para ela outros fatores, alguns mais profundos. Pode-se dizer que o forte crescimento numérico da “classe do meio” na década anterior e a renovação geracional ocorrida no entretempo levaram governos e classes dirigentes a ter dificuldade em manter o consenso com os instrumentos do passado, ou seja, através do recurso maciço a subvenções para as camadas populares. Isso diz respeito sobretudo aos países mais complexos e avançados, como Argentina, México, Brasil e Chile, onde a classe média é numerosa e crescente, e para a qual a política de generosos subsídios para o consumo da população não basta para satisfazer-lhe as expectativas crescentes de mais transparência, eficiência e oportunidades: aqueles instrumentos asseguram ampla adesão por parte das classes mais marginais, ainda numerosas e mais do que nunca sujeitas a práticas clientelistas e ao paternalismo estatal; mas os jovens e também os menos jovens de classe média exigem em geral coisas bem diferentes. Distinto, pelo menos em parte, é o caso dos países com níveis de desenvolvimento mais baixos, como a Bolívia, por exemplo: esses partem de um estado de atraso muito grande, de modo que a política de distribuição das elevadas divisas provenientes das exportações de gás assegurou efetiva melhora das condições de vida de amplos setores da sociedade e grande popularidade ao governo; de modo especial porque ligada ao apelo ao resgate étnico da maioria da população. Diferentes de um país para outro, os novos sujeitos são mais independentes do Estado classista e ao mesmo tempo mais exigentes: exigem a reforma do sistema educacional, como no Chile, onde Michelle Bachelet fez dele o seu cavalo de batalha, sem no entanto conseguir satisfazê-los totalmente; pedem serviços públicos decentes e honestidade administrativa, como no Brasil, onde boa parte da classe média rejeitou o partido dos trabalhadores quando o

Judiciário expôs a rede de corrupção que se alastrou durante os seus governos; exigem que o Estado de direito tutele os cidadãos, como no México, onde a raiva se volta contra a incapacidade do governo de garantir o Estado de direito frente a uma violência que se instalou não só na sociedade, mas no próprio coração das instituições; e como na Venezuela, onde os estudantes pagaram uma conta salgada à repressão do governo e os protestos se traduziram numa crise política e social sem precedentes. E assim por diante. Não surpreende por isso que vários governos tenham tomado caminhos diferentes, entrado em grave crise ou enfrentado desafios inesperados: o caso mais clamoroso foi o brasileiro, onde, depois da difícil vitória eleitoral de 2014, a presidente Dilma Rousseff foi atropelada pelos escândalos e pela crise econômica, até ser deposta dois anos depois pelo Congresso Nacional. Enorme surpresa causou também a derrota do peronismo nas eleições argentinas de 2015 e a vitória de uma coalizão presidida por Mauricio Macri, de tendência liberal moderada e declaradamente antipopulista. Na Venezuela, no entanto, onde Nicolás Maduro sucedeu a Hugo Chávez, falecido em 2013, as eleições legislativas de 2015 desferiram um golpe fatal no regime político que por mais de uma década se proclamara herdeiro da tradição populista na esteira peronista e castrista. Perdida a maioria parlamentar e envolvido numa dramática crise econômica causada pela queda dos preços do petróleo e pela má gestão dos imensos recursos de que dispusera até pouco tempo antes, o regime entrou numa perigosa fase de decomposição. Até na Bolívia, Evo Morales, não obstante a sua indubitável popularidade, quando procurou obter por plebiscito uma alteração da Constituição que lhe permitisse candidatar-se novamente, sofreu uma inesperada derrota.

4. Populismos em crise A América Latina não costuma seguir em sua totalidade e ao mesmo tempo ciclos políticos unívocos, fato aplicável também aos anos 2010 do século XXI. No entanto, não há dúvida de que a cadeia de eventos descritos sinaliza uma mudança de tendência geral, principalmente porque coroada pela vitória surpreendente do candidato liberal Pedro Pablo Kuczynski no Peru, em 2016, e pelos grandes avanços na Colômbia na direção da obtenção definitiva da paz com os últimos movimentos armados ainda ativos na região. Mais do que uma oscilação do tradicional pêndulo político da esquerda para a direita, trata-se na realidade de um deslocamento dos eleitores de opções mais próximas da tradição populista para outras próximas da liberal-democrata. Isto é, como reedição do que já ocorrera mais vezes no passado, abriu-se diante do liberalismo político latino-americano uma oportunidade para consolidar as instituições da democracia liberal e o Estado de direito. Com toda

probabilidade, o sucesso será muito diferente de um país para outro, e em alguns casos pode-se prever que a sereia populista volte a cantar, mas diversos fatores históricos ajudam a compreender as razões dessa nova oscilação do pêndulo político na América Latina. O primeiro é a já mencionada mudança em curso nas sociedades latino- americanas, onde não só a base social típica dos movimentos populistas vai encolhendo à medida que classes médias mais instruídas e autônomas se expandem, mas também o imaginário religioso que historicamente alimentou esses movimentos perde força com o avanço decidido da secularização. O segundo fator está na herança dos governos do primeiro decênio do século: enquanto no plano social e econômico não se observam diferenças peculiares entre os resultados obtidos por liberais ou populistas, entre governos de direita ou de esquerda, pois todos se beneficiaram com uma conjuntura muito favorável e conjugaram um crescimento significativo com uma maior equidade social, os governos populistas foram os primeiros a entrar em recessão com a mudança do ciclo econômico e os que mais polarizaram o conflito político e geraram instabilidade crônica; na verdade, levou-os a isso a ambição de monopolizar o poder em nome do pueblo, com a concomitante violação dos direitos das minorias políticas, que em geral tenderam a negar-lhes legitimidade. Enfim, a democracia política desenvolveu uma força de inércia própria e forçou os populismos, que no passado haviam sido bastante fortes para esvaziar-lhe o significado impondo a tirania da maioria, a reconhecer-lhe pelo menos as formas, a respeitar alguns limites e a adequar-se, embora contra a vontade, às liberdades civis que ela assegura. Assim a dissensão que encobriam pôde exprimir-se, organizar-se e expandir-se à medida que se revelavam os seus fracassos e emergiam os malfeitos em que estavam implicados, a ponto de sancionar sua decadência ou até a derrota eleitoral. Em geral, no entanto, a questão da qualidade das instituições democráticas em grande parte da América Latina, embora com louváveis exceções, continua sendo um problema não resolvido, do qual a vasta corrupção que ainda grassa é só o sintoma mais visível; sintoma que causa e revela a enorme distância que em geral ainda separa a classe política da opinião pública e as instituições da efetiva capacidade de pôr em vigor o Estado de direito, ou seja, a independência da justiça, a tutela dos direitos individuais, a punição dos arbítrios, a tutela do pluralismo, a extensão dos direitos de cidadania social. É precisamente a partir disso, da relação entre instituições democráticas e Estado de direito, que se mede até que ponto cada país da região está ou não em condições de gerir a delicada conjuntura história que a América Latina enfrenta desde quando o boom das matérias-primas arrefeceu e então se torna necessário governar em condições difíceis.

Nesse sentido, a casuística é diversificada. Para países como Chile, Costa Rica ou Uruguai, por certo não é indiferente que o governo esteja nas mãos da direita ou da esquerda, mas trata-se de alternâncias fisiológicas em países onde democracia e Estado de direito coincidem: o pluralismo é assegurado, a separação dos poderes é a norma, a corrupção é contida, a justiça é independente, os meios de comunicação são livres e a inclusão social é maior do que em outros lugares. Existem conflitos, como em toda parte, mas são os típicos das democracias consolidadas. Em certos aspectos também o Brasil se aproxima desse modelo; mas apenas em certos aspectos. Ainda lhe resta muita coisa a fazer para alcançar padrões semelhantes: a desigualdade entre classes permanece enorme e a violência é endêmica, para não falar da corrupção. Não só: o seu sistema político, um amontoado de partidos que permutam votos no mais opaco dos modos, é totalmente inadequado para um país que almeja desempenhar um papel mundial de primeira linha. Não se pode certamente negar, porém, que alguns elementos importantes do Estado de direito operam ali mais do que na maioria dos outros países, onde o controle dos governos sobre os juízes os teria impedido de pronunciar duras sentenças a próceres do poder, como aconteceu no Brasil antes, durante a presidência de Lula, e depois, com a de Rousseff. O que se diz do Brasil aplica-se com maior razão a outro colosso da região, o México: o contraste entre o crescimento econômico e a ascensão das classes médias, de um lado, e a violência e o controle da criminalidade sobre extensos bolsões do território e setores inteiros do Estado, de outro, ameaçam a solidez e a legitimidade do ainda jovem sistema democrático. Casos semelhantes – de economias em crescimento vertiginoso e grande mobilidade social em forte contraste com sistemas políticos e instituições frágeis – permanecem muito difusos, também em grandes países como a Colômbia e o Peru. Refratários à democracia liberal e em perpétua tensão com os próprios fundamentos do Estado de direito, emergem por fim os países da galáxia bolivariana, sobre os quais paira o fantasma da crise de meados da década. O radical ímpeto antiliberal que anima os regimes políticos lhes confere traços típicos dos populismos do passado. Isto é, concentram o poder invocando o monopólio da representação de um “povo” mítico que encarnaria a identidade da nação e a quem prometem resgate moral e justiça social. Nessa perspectiva, a independência da justiça, a liberdade de informação, o pluralismo político e a tutela dos direitos individuais não lhes parecem prioritários. Antes, esses atributos essenciais do Estado de direito representam para eles obstáculos a contornar invocando a unanimidade do seu povo. Como no passado, esse tipo de regime propende a cair no arbítrio sistemático e a transformar a arena política num jogo de soma zero onde prevalece o embate ideológico e social e as

instituições se tornam espólio de guerra do vencedor. Onde esses regimes se impuseram, como na Venezuela ou na Nicarágua, as eleições deixam de ser momentos fisiológicos de confirmação ou de substituição do governo e se tornam guerras simuladas que ameaçam desaguar em verdadeiros conflitos civis.

5. Um lugar no mundo Num mundo sempre mais retalhado de profundas rachaduras geopolíticas e conflitos civilizacionais, o panorama da América Latina se apresenta mais estável e previsível do que o de outras áreas do globo e do que a própria América Latina dava a impressão de ser no passado recente. O evento que mais amainou o clima foi sem dúvida o encaminhamento do degelo das relações entre Estados Unidos e Cuba. Entretanto, outros fatores também estimulam a confiar na melhoria do ambiente hemisférico, tanto no sentido de maior cooperação multilateral como de mais amplo compartilhamento de valores entre os diversos países da região. Por certo, a crônica crise venezuelana e o processo de paz na Colômbia continuam sendo travessias cheias de armadilhas e com o potencial de reativar os atritos que inflamaram a região no passado. Tudo parece indicar, porém, que essas tensões podem atenuar-se na maior parte dos casos. De forma mais radical e acabada do que qualquer outro país, Cuba representou o eixo geopolítico e o emblema ideológico de uma coalizão panlatina oposta às ideias e ao espírito do pan-americanismo liberal. Com isso em mente, pode-se compreender muito bem que a resolução do conflito em que está envolvida abalaria as razões da luta atávica entre panlatinismo e pan-americanismo. Com efeito, trata-se de uma contraposição muito mais profunda do que o mero contraste econômico entre a América Latina em perene via de desenvolvimento e os Estados Unidos abastados e imputáveis de práticas imperiais. Na sua base está o antigo confronto entre o ideal panlatino, impregnado de valores herdados do legado hispânico e católico, hostil aos fundamentos filosóficos e morais do liberalismo político e econômico, e o ideal pan-americano, inspirado precisamente nas ideias liberais amadurecidas no âmbito protestante e anglo-saxão. Mais do que a qualquer outro motivo, é a essa profunda divergência histórica que se deve o eterno retorno à grande popularidade do antiamericanismo agitado com veemência por regimes e movimentos populistas na América Latina; um sentimento que costuma alimentar tensões agudas tanto entre os países da região e os Estados Unidos, quanto entre os próprios países latino-americanos, desde sempre divididos entre si e no seu interior entre os adeptos do liberalismo panamericano e os seguidores do antiliberalismo panlatino.

Dadas as circunstâncias, assim como a mão estendida de Barack Obama a Raúl Castro distanciou em parte os adeptos panlatinistas do inimigo contra quem agitam as suas bandeiras, do mesmo modo a onda de revezes sofridos pelos governos populistas e seus aliados a partir de 2015 produz um forte impacto sobre os equilíbrios regionais. Reflui assim a onda panlatina que desde fins dos anos 1990 vem aumentando suas forças em reação ao expansionismo da hegemonia pan-americana. Fortalecido com os preços elevados do petróleo, Hugo Chávez tornara-se então porta-voz do panlatinismo, estendendo a sua influência e liderança a países da ALBA, ingressando no Mercosul e ampliando as fronteiras da frente antiliberal global até tecer alianças com Rússia, Irã, Coreia do Norte, Síria, Bielorrússia e China. Com essas ações, a Venezuela não só estimulou a contínua tensão com os Estados Unidos, mas também atiçou frequentes conflitos com os países latino-americanos que com maior ou menor fidelidade aderem aos preceitos do pan-americanismo. Daí as recorrentes crises entre os países da ALBA e os demais: ora a Colômbia, ora o Peru, ora o Chile, com o Brasil tentando exercer uma liderança, a qual se revela pouco eficaz frente a esse antagonismo. Mas agora o degelo cubano e a derrocada dos populismos venezuelano e argentino abrem caminho para políticas externas mais pragmáticas, mais resistentes às violentas contraposições ideológicas do passado e mais abertas à cooperação nos foros multilaterais: seja com os Estados Unidos e com a União Europeia, seja com as potências que, à semelhança da China, já têm uma presença consolidada na América Latina.

Cuba volta para a família? Em 2015, Havana e Washington reabriram as embaixadas fechadas havia mais de cinquenta anos. Além disso, os dois países deram início a um fecundo diálogo sobre uma centena de temas no passado tidos como tabus, desde economia até direitos humanos. Desde então, multiplicam-se as visitas de políticos, empresários, acadêmicos, artistas e turistas estadunidenses à ilha. Retirar o embargo imposto à ilha é tarefa mais complexa do que fazer visitas, porém, dados os equilíbrios políticos em Washington, além de tratar-se de uma medida repleta de subterfúgios. Não obstante, a vontade de boa parte da classe política estadunidense nesse sentido é clara. A virada era um evento histórico maduro havia tempo e gerou uma onda de otimismo. Excessiva talvez, levando em conta que nenhum dos motivos de tensão entre os dois países foi removido. O que levou Estados Unidos e Cuba a promoverem o degelo? De sua parte, Obama se deu conta de que o isolamento de Cuba não resultou em democracia nem em salvaguarda dos direitos humanos. Além disso, o preço

político a ser pago por essa iniciativa era módico, considerando que Cuba tem relevância cada vez menor para os americanos do norte. Antes, desse modo Obama satisfez os inúmeros lobbies que de longa data pressionavam para entrar no mercado cubano, dominado por europeus e chineses. Como se não bastasse, a política adotada a seu tempo para isolar Cuba no hemisfério agora era causa de isolamento dos Estados Unidos, já sozinhos a sustentá-la. E Raúl Castro? De um lado, a mão estendida de Obama representava um objetivo propagandístico esperado havia tempo. Vocês viram? Nós resistimos e eles se renderam; uma grande vitória. De outro lado, porém, a verdade é que Cuba precisa dos Estados Unidos, de mercados, tecnologias, capitais, turistas. A economia cubana nunca operou de modo eficaz e as subvenções externas que por vezes a mantiveram na superfície aos poucos se esgotaram. As últimas a sofrer cortes drásticos foram as venezuelanas, onde o chavismo, do qual Cuba se tornara dependente através do fornecimento estratégico de energia, entrou em crise profunda. A Castro não restava outra alternativa senão agarrar-se às boias salva-vidas que lhe eram lançadas, e a de Obama era a mais importante. O que Obama esperava? O que esperava Castro? Não há dúvida de que tinham em mente objetivos opostos. Os Estados Unidos esperavam obter por essa via aquilo em que haviam fracassado de outros modos: promover a transição de Cuba para uma sociedade aberta e democrática. Nesse sentido, não fazer nada, e mais do que isso, enterrar as armas, podia produzir resultados mais proveitosos do que tratar a ilha como uma pestilência. A ideia era que a intensificação das relações entre os dois países poderia abrir cada vez mais a caixa do regime cubano, promover o nascimento de uma sociedade civil até então esmagada sem piedade, eliminar o medo da repressão de Estado e criar as condições para que a transição para uma Cuba democrática se tornasse tarefa de todos os cubanos. Para Cuba, as expectativas são muito diferentes. A palavra transição não existe no vocabulário dos seus altos escalões políticos. Para eles, Cuba é o país mais democrático do mundo, a sua sociedade, a mais justa, o seu povo, o mais feliz. Pouco importa que a realidade seja totalmente outra. Se assim é, seu escopo é fazer com que o reatamento de relações positivas com os Estados Unidos acabe de uma vez por todas com o embargo e contribua para imprimir novos rumos à economia cubana. Nada mais. Se para Obama o degelo deveria enfraquecer Castro, este sonha em sair fortalecido. No entanto, a deduzir pelas fotografias e pelos sorrisos com Obama e pelo respeitoso silêncio do papa Francisco em visita a Cuba sobre a natureza do regime, Castro pode com razão considerar-se readmitido a pleno título na família latino-americana.

Estes são, portanto, os limites do degelo: os objetivos de um evocam os temores do outro; e vice-versa. Por isso, mais do que um verdadeiro degelo, trata-se de um giro que transfere o antigo conflito para um plano político novo. O risco para Obama é que, em vez de desencadear uma transição pacífica em Cuba, sua política reforce o regime cubano no plano econômico sem nada obter em troca. Muitos em Washington o alertam claramente sobre essa possibilidade e por isso é importante que o presidente contabilize algum sucesso na questão dos direitos humanos e das liberdades civis; sucesso, porém, que Castro não pensa dever conceder, tanto que a repressão em Cuba permanece. Mas riscos corre também o regime dos Castro, desafiados a uma difícil quadratura do círculo: saborear os frutos do degelo sem perder o controle da máquina totalitária. Não conseguindo, Cuba se tornaria uma panela de pressão prestes a explodir. Pareceria assim completar-se um processo de período mais longo: a partir dos anos 1980, a América Latina começou a andar na direção da democracia liberal e da economia de mercado. Não era um evento inédito, mas pela primeira vez caminhava unida, favorecida pelo contexto internacional e por um consenso bem mais amplo do que em qualquer outra época. Como esses eram os valores históricos do pan-americanismo, em nome dos quais os Estados Unidos haviam tantas vezes intervindo na região, esse avanço, embora muito a gosto de Washington, aos poucos privou o governo americano da missão em nome da qual costumava exercer ingerências na política latino-americana. Desprovidos da arma ideológica do intervencionismo em nome da democracia, os Estados Unidos começaram assim a perder hegemonia no hemisfério e a ver-se forçados a tratar os países da América Latina como parceiros adultos com os quais deviam cooperar, mais do que como crianças a ser resgatadas. O abrandamento da hegemonia estadunidense favoreceu o esvaziamento do espantalho do império, contra o qual o panlatinismo forja sua força e identidade. Mais do que dos seus fracassos, é daí que deriva a fragilidade que de repente os populismos latino-americanos evidenciam, órfãos ou quase do inimigo a quem costumavam imputar tudo o que dava errado na América Latina. Tudo isso não exclui absolutamente a possibilidade de que a brecha entre panamericanismo e panlatinismo volte a se alargar. No fundo, foi isso que sempre aconteceu na história latino-americana: a cada passo adiante do liberalismo político, e ainda mais do liberalismo econômico, verificou-se logo um forte recuo panlatino e populista. Precisamente essa constante e brusca oscilação de um polo a outro ajuda a explicar as enormes dificuldades que a integração latino-americana ainda encontra. Os países da América Latina, atraídos por cantos de sereias opostos entre si, não conseguiram consolidar-se em torno de

valores e instituições compartilhados, como ocorreu com a Europa depois da II Guerra Mundial. Não por acaso, malgrado as muitas organizações regionais que surgiram com o tempo, curto foi o caminho percorrido nessa direção.

Paz na Colômbia Depois de décadas de conflitos internos, remontando aos anos 1950 do século XX, e depois de muitas tentativas malogradas de resolvê-los, a Colômbia está perto da pacificação definitiva entre o Estado e a maior organização guerrilheira ainda atuante no seu território, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). Embora a maioria dos colombianos, em referendo realizado em outubro de 2016, tenha se manifestado contrária aos tratados de paz firmados pelo presidente Santos com as FARC, é difícil a Colômbia reviver a violência do passado. Se em suas origens a guerra civil colombiana fora o prolongamento das antigas “faidas” (direito de vingança) entre conservadores e liberais, assumindo em seguida as características típicas da guerra de guerrilha inspirada no guevarismo dos anos 1960, com o tempo e com o declínio do período dominado pela luta armada, ela tomou novas feições e se misturou cada vez mais com outros fenômenos. Nos anos 1980, em especial, a força corruptora do narcotráfico, então com seu epicentro na Colômbia, infiltrou-se até a medula da guerrilha das FARC, dos grupos paramilitares formados para combatê-la e ainda dos próprios aparelhos do Estado. Essa foi uma época de violência extrema que transformou a Colômbia num dos países mais inseguros do mundo. Desde então muitas coisas mudaram. Por certo, o país andino não resolveu todos os problemas, tanto em termos de consolidação do Estado de direito e respeito aos direitos humanos, quanto de inclusão social. A mudança processou-se no sentido de isolar e tornar cada vez mais anacrônicos os movimentos armados, reduzindo progressivamente seus efetivos e deixando-os órfãos das bandeiras ideológicas do passado. Elementos variados, tanto de natureza socioeconômica, como a robusta transformação econômica colombiana, quanto de viés político, como a gradual consolidação das instituições democráticas, ou ainda de caráter militar, em particular os duros golpes infligidos à guerrilha durante o governo Uribe, ajudam a compreender como foi tomando forma o contexto que, agora mais do que no passado, viabilizou uma solução pacífica para o antigo conflito. Fortalecido por esses pressupostos, o governo de Juan Manuel Santos e os dirigentes das FARC iniciaram intensas negociações em Cuba em torno de inúmeros e delicados entraves à pacificação definitiva: a realização de uma reforma agrária, a inclusão política dos que

estão dispostos a depor as armas, a complexa dosagem de anistia e sanções para os crimes cometidos e os mecanismos de verificação do efetivo cumprimento dos entendimentos alcançados. Porquanto à primeira vista parecesse previsível que a ampla maioria da opinião pública apoiaria a exitosa conclusão dos tratados de paz, na realidade a situação não é exatamente essa e nesse sentido a sociedade colombiana convive com divisões profundas. Como o já mencionado referendo demonstrou, muitos colombianos, liderados pelo ex-presidente Uribe, de longa data favorável a uma solução militar do conflito, recusamse a conferir às FARC o status político que as negociações lhes facultam, de modo especial a impunidade que a paz parece assegurar-lhes. Em vez disso, propõem uma espécie de subordinação da guerrilha ao Estado. A guerrilha, por sua vez, mesmo com a perda praticamente total do consenso da população com que contava no passado, resiste à entrega das armas até que sejam alcançadas as garantias que julga necessárias para esse fim, apesar de ver-se cada dia mais isolada, dada a mudança do clima político na região.

Um papa latino-americano Desde 13 de março de 2013, ocupa o trono de Pedro em Roma o primeiro papa latino-americano da história, o ex-cardeal primaz da Argentina, Jorge Mario Bergoglio, com o nome de Francisco. A novidade histórica é de tal dimensão que chegou a suscitar muitos questionamentos e expectativas no mundo inteiro, entre os fiéis católicos e também entre os não-crentes. Entre os primeiros Francisco fez renascer a esperança de uma rápida regeneração da Igreja católica, abalada mais do que nunca por escândalos morais e financeiros; entre os últimos suscitou enorme interesse com sua atitude austera e grande sensibilidade social, que levaram muitos a se perguntar que contribuição ele poderia dar para a solução dos grandes problemas mundiais. Além disso, porém, que expressão da história latino-americana Bergoglio encarna? E que impacto a sua eleição produz na região, tão impregnada de catolicidade? Durante toda a sua vida antes de ser eleito pontífice, Jorge Mario Bergoglio foi protagonista da vida religiosa do seu país, a Argentina; um país onde a presença da Igreja na vida política e social foi sempre imponente e se expressou no triunfo do “mito da nação católica”, ou seja, na ideia de que o fundamento da identidade nacional argentina era, até acima das suas leis e da sua Constituição, a catolicidade de que estava imbuído o seu pueblo; pueblo que havia encontrado a sua religião política

no peronismo, movimento popular por excelência e de declarada inspiração cristã. Em síntese, portanto, no caso argentino afirmara-se não a separação entre esfera política e esfera religiosa que em outros países – vide Uruguai e Chile – havia possibilitado o desenvolvimento autônomo da arena política no respeito ao constitucionalismo liberal, mas sim a típica fusão populista entre nação, religião e povo, expressa num movimento político que aspirava a conter em si toda a identidade da nação. Não é, portanto, coincidência o fato de Bergoglio manifestar desde a juventude uma acentuada simpatia pelo peronismo e uma catolicidade impregnada de radical antiliberalismo, a partir do momento em que precisamente na tradição liberal via a ameaça que pairava sobre a identidade católica argentina e latino-americana. Nesse sentido, o papa Francisco é legítimo herdeiro e intérprete da tradição populista que tanto embebeu a história da América Latina, como testemunham nos seus discursos o constante apelo ao pueblo e a conotação que confere ao termo, a de um povo mítico e homogêneo que conserva de forma espontânea os valores evangélicos, preservando-os da contaminação com a tradição racionalista do Iluminismo, por ele apontada como inimigo. Não obstante a sua enorme popularidade, papa Francisco chegou ao pontificado num momento em que a América Latina passava por profundas transformações que punham a duras provas a sua visão do mundo e a noção de pueblo que a inspira. As sociedades latino-americanas são cada vez mais articuladas e plurais: falar-lhes de um pueblo que conserva identidades puras e imbuídas de religiosidade é quase sempre um exagero. Igualmente, considerar as classes médias, que cresceram aos milhões e ansiosas de ter acesso a mais consumo e melhores oportunidades, classes coloniais inimigas do pueblo não fazem mais sentido: muitos pobres de ontem são classe média hoje. O mercado religioso está em rápida evolução e a secularização avança a passos gigantescos. Até no plano político, os populismos com que o papa compartilha tantas afinidades sofreram duros golpes, a ponto de em alguns casos permanecerem órfãos do pueblo que invocam. Bibliografia Ai Camp, Roderic, The metamorphosis of leadership in a democratic Mexico, New York: Oxford University Press, 2010. de La Torre, Carlos e Arnson, Cynthia J., Latin american populism in the twenty-first century, Baltimore: Woodrow Wilson Center Press with Johns Hopkins University Press, 2011. Flores-Macias, Gustavo A., After neoliberalism? The left and economic reforms in Latin America, New York: Oxford University Press, 2012.

Fornes, Gaston e Butt Philip, Alan, The China-Latin America axis: emerging markets and the future of globalization, Basingstoke: Palgrave-Macmillan, 2012. Levine, Daniel H., Politics, religion & society in Latin America, Boulder: Lynne Rienner, 2012. Madrid, Raúl L., The rise of ethnic politics in Latin America, New York: Cambridge University Press, 2012. Panizza, Francisco, Contemporary Latin America: development and democracy beyond the Washington Consensus, London: Zed Books, 2009. Poggio Teixeira, Carlos Gustavo, Brazil, the United States, and the South American subsystem: regional politics and the absent empire, Lanham: Lexington Books, 2012. Reid, Michael, Brazil: the troubled rise of a global power, New Haven-London: Yale University Press, 2014. Santiso, Javier, The decade of the multilatinas, Cambridge: Cambridge University Press, 2013.

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Os homens explicam tudo para mim Solnit, Rebecca 9788531614231 208 páginas

Compre agora e leia Em seu ensaio icônico "Os Homens Explicam Tudo para Mim", Rebecca Solnit foca seu olhar inquisitivo no tema dos direitos da mulher começando por nos contar um episódio cômico: um homem passou uma festa inteira falando de um livro que "ela deveria ler", sem lhe dar chance de dizer que, na verdade, ela era a autora. A partir dessa situação, Rebecca vai debater o termo mansplaining, o fenômeno machista de homens assumirem que, independentemente do assunto, eles possuem mais conhecimento sobre o tema do que as mulheres, insistindo na explicação, quando muitas vezes a mulher tem mais domínio do que o próprio homem. Por meio dos seus melhores textos feministas, ensaios irônicos, indignados, poéticos e irrequie-tos, Solnit fala sobre as diferentes manifestações de violência contra a mulher, que vão desde silenciamento à agressão física, violência e morte. Os Homens Explicam Tudo para Mim é uma exploração corajosa e incisiva de problemas que uma cultura patriarcal não reconhece, necessariamente, como problemas. Com graça e energia, e numa prosa belíssima e provocativa, Rebecca Solnit demonstra que é tanto uma figura fundamental do movimento feminista atual como uma pensadora radical e generosa. Compre agora e leia

Agilidade Emocional Ph.D., Susan David 9788531614552 296 páginas

Compre agora e leia O caminho em direção à realização pessoal e profissional nunca é uma linha reta. Mas o que separa aqueles que vencem os desafios daqueles que fracassam? Para a renomada psicóloga e professora da Escola de Medicina de Harvard, Susan David, a resposta é uma: Agilidade Emocional. Depois de estudar por mais de 20 anos as emoções e autorealização, Susan descobriu que, por mais inteligentes ou criativas que as pessoas sejam, é a maneira como lidam com seu mundo que determina o quanto serão felizes e bem-sucedidas em todas as áreas da vida. Primeiro lugar na lista dos mais vendidos do The Wall Street Journal, Agilidade Emocional apresenta, com sagacidade e empatia, uma abordagem revolucionária para lidar com as reviravoltas da vida para atingir seus objetivos mais importantes com sucesso. Compre agora e leia

O Poder do Pensamento Positivo Peale, Norman Vincent 9788531610707 264 páginas

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Segredos de um Modo Antigo de Rezar Braden, Gregg 9788531614248 162 páginas

Compre agora e leia Poderiam os nossos sofrimentos mais profundos revelar a chave para uma forma de oração que se perdeu há 17 séculos? O que podemos aprender hoje do grande segredo das nossas mais veneráveis tradições? "Existem belas e impetuosas forças dentro de nós." Com essas palavras, o místico São Francisco de Assis descreveu o que antigas tradições consideravam a força mais poderosa do Universo – o poder da oração. Durante mais de 20 anos, Gregg Braden esteve procurando evidências de uma forma esquecida de oração, que se perdeu no ocidente depois das edições bíblicas realizadas nos primeiros séculos da Igreja Cristã. Na década de 1990, ele encontrou e documentou essa forma de oração, ainda sendo usada em mosteiros remotos do Tibete central. Descobriu-a também sendo praticada em ritos sagrados nos desertos do sudoeste da América do Norte. Neste livro, Braden descreve essa antiga forma de oração feita sem palavras ou expressões externas. E, pela primeira vez em forma impressa, ele nos conduz numa jornada que tem por objetivo descobrir o que as nossas experiências mais íntimas nos dizem sobre as nossas crenças mais profundas. Com histórias ilustrativas e depoimentos pessoais, Braden revela a sabedoria desses segredos atemporais e o poder que está à espera de cada um de nós... Compre agora e leia

Medo Osho 9788531614453 224 páginas

Compre agora e leia Osho leva o leitor passo a passo a uma jornada por tudo que faz os seres humanos terem medo, desde a reação reflexa de "lutar ou fugir" do perigo físico até os medos racionais e irracionais da nossa mente. Só levando a luz do entendimento aos cantos mais sombrios do medo, diz ele, podemos começar a nos aventurar para fora dos limites da nossa zona de conforto e aprender a conviver, e ainda apreciar, a insegurança inerente ao fato de estarmos vivos. O livro termina com uma série de experiências de meditação destinadas a ajudar os leitores a vivenciar uma nova relação com o medo e começar a vê-lo não como um obstáculo, mas como um trampolim para uma maior autoconsciência e confiança na vida. Compre agora e leia

Table of Contents Folha de rosto Créditos Índice Prefácio Introdução à história da América Latina Contemporânea 1. Unidade e pluralidade 2. O espaço latino-americano 3. Os latino-americanos 4. Política e religião: a unidade e a fragmentação 5. O extremo Ocidente Primeira parte: Da independência à II Guerra Mundial 1808-1945 1. O legado colonial 1. A herança política 2. A sociedade orgânica 3. Uma economia periférica Espanhóis, indígenas e escravos africanos 4. Um regime de cristandade Crescimento econômico e novas potências Igreja e Estado no período colonial 5. O desgaste do pacto colonial As reformas bourbônicas 2. A independência da América Latina 1. As invasões napoleônicas As causas e o método 2. A fase autonomista Os crioulos e Cádis 3. A política moderna O imaginário antigo 4. As guerras de independência Simón Bolívar 5. Os caminhos para a independência A doutrina Monroe 3. As repúblicas sem Estado 1. Instabilidade e estagnação Liberais e conservadores 2. As Constituições

Caudilhismo 3. Sociedade e economia em transição O século britânico 4. A inflexão da metade do século XIX Teoria política e debate intelectual 5. Os casos nacionais: a norma e as exceções México: um caso extremo 4. O período liberal 1. O surgimento do Estado moderno “State-building” e “nation-building” 2. O modelo primário-exportador O divisor de águas econômico 3. Uma sociedade em transformação A grande imigração 4. A ilusão das oligarquias Histórias de guerras e de fronteiras 5. Juntos em ordem aleatória: México, Brasil, Argentina 6. O início do século americano A independência de Cuba 5. O declínio do período liberal 1. A crise e os seus problemas Mais singular do que raro: o caso do Uruguai 2. As causas políticas A APRA e os partidos radicais 3. As causas sociais e econômicas A revolução mexicana 4. O novo clima ideológico O krausismo 5. Os múltiplos rumos da crise liberal 6. O período do “big stick” e a ascensão do nacionalismo A guerra do Chaco 6. Corporativismo e sociedade de massa 1. O esgotamento do modelo primário-exportador 2. Em direção à sociedade de massa 3. A noite da democracia 4. Os militares: como e por quê O renascimento católico 5. Os populismos Getúlio Vargas e o Estado Novo Lázaro Cárdenas e a herança da revolução mexicana

6. A política de Boa Vizinhança e a Guerra Segunda parte: Da Guerra Fria aos dias atuais 1945-2010 7. O período do populismo clássico 1. Entre democracia e ditatura A “Violência” na Colômbia 2. A industrialização para substituição de importações 3. Um vulcão sempre ativo: as transformações sociais 4. Entre nacionalismo e socialismo: o panorama ideológico Perón e o peronismo 5. A Guerra Fria: primeiros passos A Guatemala de Jacobo Arbenz 8. Os anos 1960 e 1970: o ciclo revolucionário 1. O período da revolução Fidel Castro e a revolução cubana 2. O desenvolvimento distorcido e os conflitos sociais 3. Estruturalismo, “desenvolvimentismo”, teoria da dependência 4. A guerra civil ideológica: a frente revolucionária 5. Uma Igreja dilacerada A Teologia da Libertação 6. A Aliança para o Progresso e o reformismo inoperante O Chile de Salvador Allende 9. Os anos 1960 e 1970: o ciclo contrarrevolucionário 1. O período da contrarrevolução O Brasil dos militares 2. Do “desenvolvimentismo” ao neoliberalismo: a economia dos militares O Chile de Pinochet, vitrina neoliberal 3. A antipolítica e a doutrina da segurança nacional A repressão: a Argentina dos “desaparecidos” 4. Os Estados Unidos e a hegemonia em risco 1965: os “marines” na República Dominicana 10. A década perdida e a democracia (re)encontrada 1. As transições democráticas A guerra das Falkland-Malvinas 2. A economia nos anos 1980: a década perdida A crise da dívida externa 3. A América Central em chamas Monsenhor Romero e a Igreja 4. A doutrina Reagan e a América Latina 1989: invasão do Panamá

5. As novas democracias: esperanças e limites Venezuela e Colômbia: democracias enfermas 11. O período neoliberal 1. Mercados abertos e globalização O “Consenso de Washington” A integração regional 2. A sociedade latino-americana nos anos 1990: os novos movimentos O Chiapas zapatista 3. Luzes e sombras das democracias latino-americanas Neopopulismo e neoliberalismo: o Peru de Fujimori e a Argentina de Menem 4. Bill Clinton e a América Latina Cuba depois da Guerra Fria 5. A crise do neoliberalismo 2001: o colapso argentino 12. O novo século: entre futuro e déjà-vu 1. A inflexão à esquerda Lula e Chávez, destinos cruzados 2. O crescimento econômico e os seus limites A variante chinesa 3. As sociedades latino-americanas no novo milênio O indigenismo radical 4. A transformação do panorama religioso 5. A América Latina e o mundo George W. Bush e a América Latina 13. Uma transição turbulenta. A América Latina nos anos 2010 do século XXI 1. Formigas e cigarras: a prestação de contas econômica A Aliança do Pacífico 2. As novas classes e o núcleo duro da desigualdade Narcotráfico, criminalidade, corrupção 3. Democracias liberais e democracias populistas 4. Populismos em crise 5. Um lugar no mundo Cuba volta para a família? Paz na Colômbia Um papa latino-americano