Um amor anarquista [3 ed.]
 9788501099402

  • 0 0 0
  • Like this paper and download? You can publish your own PDF file online for free in a few minutes! Sign Up
File loading please wait...
Citation preview

DADOS DE COPYRIGHT

Sobre a obra: A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo Sobre nós: O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso site: LeLivros.site ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link. "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Sanches 1965-

Neto,

Migue

Um amor anarquista S194a Miguel Sanches Neto. – Ri de Janeiro: Record, 2012. Recurso digital Formato: ePub

Requisitos do sistema Adobe Digital Editions

Modo de acesso: Worl Wide Web

ISBN 09940-2 eletrônico]

978-85-01 [recurs

1. Romance brasileiro I. Título CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)-3 Copyright © 2005 by Miguel Sanches Neto Embora baseada em pesquisas históricas, esta narrativa é totalmente fictícia

e seus personagens guardam autonomia em relação às figuras reais, que serviram apenas como pontos de partida, não se referindo diretamente a pessoas e fatos concretos, sobre os quais não se emite opinião. Capa: Nexo Design/Naotake Fukushima Imagem de capa: O Quarto Estado, Giuseppe da Volpedo, 1901. Direitos

exclusivos

de

publicação em língua portuguesa para o Brasil adquiridos pela EDITORA RECORD LTDA. Rua Argentina, 171 – Rio de Janeiro, RJ – 20921-380 – Tel.: 2585-2000 Produzido no Brasil ISBN 09940-2

978-85-01-

Seja um leitor preferencial Record. Cadastre-se

e

receba

informações nossos lançamentos e promoções.

sobre nossas

Atendimento e venda direta ao leitor: [email protected] ou (21) 2585-2002.

SUMÁRIO Capa Rosto Créditos Epígrafe Livro Dedicatória Saiba mais Colofão

“Somos sempre modificados pelo que amamos.” Joseph Brodsky, in Menos que um

Sobre uma banqueta de madeira, deixada ao lado de minha cama, estreita igual à dos demais solteiros, coloquei uma lata com flores silvestres, para que Jean Gelèac encontrasse ambiente agradável. Ele está com o grupo desde meados de 1891 e nunca teve mulheres, recusara o amor fácil de Narcisa, que mais espalhou a discórdia entre casados e solteiros do que amenizou a falta de fêmea. Tímido e jovem, um tanto romântico como sempre somos aos vinte anos, Gelèac tem se dedicado ao vício da virtude, resolvendo-se sozinho. Seu rosto está coberto de espinhas e, ao contrário dos homens casados, ou dos mais maduros, acostumados à solidão destas matas, ele tem a pele cor de papel e os olhos fundos, revelando ânsia de amor. Falei seriamente com ele, estava precisando de mulher, e ele me disse que não, agüentava bem a vida na Colônia, mas bastava ver aquele rosto para perceber o quanto sofria. As mulheres casadas, mesmo se quisessem, e desgraçadamente elas não querem, não poderiam dar-lhe o carinho que merece. Decidi então compartilhar minha cama com ele. Troquei também os lençóis — seria a primeira vez com uma mulher de verdade, e ele merecia algo bonito pelo que fizera à Colônia, por sua coragem e abnegação. Eu estava excitado por poder proporcionar aquele momento de amor. Adele chegou quando a cama estava arrumada. Vinha com um de seus vestidos velhos, remendado na altura da barriga e ao lado da cintura, fino de tanto ser lavado, revelando o corpo miúdo, mas bem-feito, de mulher madura e saudável — esta saúde seria o remédio de Gelèac. Ela não estava nem expansiva nem acanhada, aproximou-se e me beijou na boca, numa entrega pacífica e silenciosa — senti sua pele fresca e os cabelos ainda úmidos do banho vespertino. Por um momento, tive vontade de ficar com ela no quarto, de trancar a porta de nossa casinha e convidá-la para se deitar; eu também me encontrava órfão de amor. Poderia ficar com ela até o

amanhecer, não deixando ninguém tocar naquele corpo, mas este pensamento se desfez logo. Fui à janela e a fechei para que não entrassem pernilongos. Ela acendeu a lamparina pendurada na parede. Para não pensar como um burguês, eu tinha que continuar preparando o quarto. Passei a vassoura nas tábuas do chão, fazendo um barulho áspero, enquanto Adele ajeitou-se na cama, olhando a chama da lamparina, que jogava luzes estranhas em seus olhos. — Você acha que Gelèac vem? — ela quis saber. — Garantiu que sim. E Aníbal? Falou com ele? — Eu disse que viria à sua casa, ele já estava um pouco bêbado e mandou que eu te beijasse muito, você merecia. — Falou de Gelèac? — Ainda não. Talvez ele nem apareça, para que fazer Aníbal sofrer antes da hora? — Ele vai aceitar quando outras mulheres seguirem o exemplo. — Aceitar ele já aceita, não consegue é deixar de sofrer. — É um bom socialista, acabará encontrando força. Adele não prestava atenção em meus movimentos, imóvel, esperava a hora em que atuaria no teatro. Era assim que eu via aquele encontro, uma peça de teatro em que eu era o autor do texto, definindo o que cada um dos personagens deveria fazer ou falar, e esta autoria me livrava da tristeza que os olhos de Adele destilavam em contato com a claridade da lamparina. A luz a deixava bonita. Eu não identifiquei esta beleza quando, em meu retorno à Itália, nos encontramos. Aqui na Colônia, talvez pela luminosidade tropical ou pelo verde das matas ou mesmo pelo silêncio, ela ganhou uma formosura que cresce a cada dia. Só ela não percebe, pois nem espelho tem. E isso é bom. Sua formosura pertence a todos os homens livres que a desejam não como Adele, companheira de Aníbal, e sim como mulher. Percebi que havia mais alguém em casa, mas não ouvi som algum. Fui à cozinha e encontrei Gelèac encostado na parede. Pedi que me acompanhasse, e ele, acanhado, mãos nos bolsos, perto do sexo, lugar que seus dedos conheciam tão bem, me seguiu e eu disse para que se acomodasse na cama, ao lado de Adele. Ele hesitou um pouco, mas ela, com cuidado, tomou suas mãos e foi puxando o jovem. E aquele corpo forte se deixou levar pelos braços finos da mulher, arcando ao ponto de ou se sentar na cama ou se ajoelhar. Sentou-se e recebeu um beijo, eu sabia que dali em diante eles não precisavam mais de mim, abaixei-me, beijei a testa dos dois e

saí, fechando a porta da casinha — o coração acelerado, como se fosse minha primeira vez com uma mulher. Caminhei pelo campo, evitando o refeitório, Aníbal poderia me ver e perguntaria pela companheira. Não era hora de falar que nosso casamento anarquista tinha mais um sócio, um rapaz cheio de vida e de ideais, um dos nossos, defensor da vida comunitária, que merecia Adele talvez mais do que nós dois, pois era jovem e trocara sua juventude por esta vida. Uma parte de mim, no entanto, sentia falta da mulher, era minha raiz egoísta, contra a qual eu lutava todos os dias, lembrando que os interesses da Colônia tinham mais importância e minhas dores não passavam de sentimentos individuais e suportáveis. Caminhava pela estrada, vendo a lua se levantar no horizonte, uma lua cheia, luminosa, pulsando de forma tão intensa que cheguei a sentir vontade de voltar para minha casa, para minha cama, para minha mulher. E de repente eu queria que as coisas fossem minhas. Isso era triste, mais triste do que a solidão. Eu havia conhecido Adele em novembro de 1891, na Itália, quando falava do amor livre, da necessidade de mudança nos relacionamentos, só quando a mulher não pertencesse a ninguém e os filhos fossem não de um pai, mas da comunidade, a noção de família estaria banida. Falava entusiasmado, idealizava bastante, e no final, quando conversava com algumas pessoas, contando as novidades da Colônia, ia muito bem mas ainda faltavam mulheres, que se aventuram menos do que os homens, ela se aproximou e, levando-me a um canto do salão, disse que concordava comigo, a mulher não podia se prender a nenhum homem, devia querer bem a todos; ao querer bem a uma pessoa, o sexo com ela é mais legítimo do que com o cônjuge; no casamento, o sentido de obrigação anula o desejo. Ela falava olhando para mim, e logo eu quis saber um pouco dela, então me contou que era viúva de um dos companheiros, estava pensando em partir para o Brasil, por isso tinha vindo à minha palestra. Como é meu costume, perguntei-lhe diretamente, sem nenhuma lascívia no tom da voz, se o companheiro tinha sido o único homem na sua vida. — Tive outros — e depois de um breve silêncio. — Amei o marido de minha irmã. — E ela sabia de vocês dois? — Não era um homem que estava fazendo estas perguntas, mas um profissional. Ela compreendeu isso e respondeu como o paciente a seu médico.

— Não sabia. — De novo o silêncio. — Ou pelo menos não sabia oficialmente. Talvez desconfiasse, principalmente depois que ficou doente, sem poder receber o marido, que passava as noites com ela e o resto do tempo comigo. — Você sente remorso? — Por ter amado meu cunhado? — Por não ter contado. — Não sei se é remorso, acho que teria sido mais fácil para todos, mas com ela doente não tive coragem de dizer nada. Ela logo morreria. — E morreu? — Segurando minha mão. Tive dó, mas senti alívio. — Você ficou com o marido dela? — Apenas uns meses, então ele adoeceu, tuberculose como minha irmã, e tudo foi ainda mais rápido. — O amor para você foi também alegria? — Até agora tem sido dedicação. — Amou mais alguém? — Um anarquista que me mostrou o que é a solidariedade, fomos perseguidos, passamos fome, mas com ele o amor era algo mais forte. — E ele te abandonou? — Da maneira mais dolorosa, a única que não fere o orgulho de uma mulher, embora a deixe ainda mais desprotegida... Ele morreu. — De quê? — Acho que foi a vida difícil que levávamos, quase sem comida, dormindo mal, mudando de cidade a toda hora, sempre expulsos pelos patrões. — E agora você está com alguém? — Vivo há pouco tempo com um anarquista. Gosto dele tanto quanto dos outros. Como disse, o amor para mim tem sido mais companheirismo. — O amor justo sempre é companheirismo. Nós nos despedimos e não pensei mais em Adele, em seus olhinhos pequenos, sempre brilhantes, apesar da fisionomia de mulher sofrida. Quando, em novembro de 1892, ela chegou com o marido, fui frio. Eles tinham parado vários dias em Curitiba, sem se decidir se viriam ou não para a Colônia por causa da propaganda negativa feita pelos dissidentes. Para estes, não somos uma colônia anárquica, e sim um bando de preguiçosos e idealistas.

Na companhia de uns profissionais, o casal chegou desanimado, temendo o que iria encontrar aqui, e o que encontrou foi nossa pobreza, estas tantas casas de madeira e a pouca comida. As mulheres casadas não gostam quando aparece mais gente, pensam que quem trabalhou foram elas e seus maridos. Adele e Aníbal não traziam muito dinheiro, apenas setecentos réis, que eles colocaram na caixa coletiva, mas nem isso melhorou o ânimo das pessoas. Eu tinha ficado com raiva daquela hesitação inicial, eles não deviam ter acreditado nas mentiras dos antigos moradores da Colônia, que passaram por aqui mais para atrapalhar do que para ajudar a construir nossa família anárquica, e agora queriam dissuadir os novos companheiros. Só depois de uns dias, quando eles já estavam trabalhando — Aníbal nas estradas, Adele no refeitório comunitário e na horta —, pude conhecer melhor aquela mulher. Em um fim de tarde, depois de uma minestra aguada, ela me mostrou a carta que Giannotta, amiga em comum, escrevera. Era mais um bilhete recomendando que me procurasse e se tornasse minha amiga. No final, pedia para Adele me dar um beijo e um abraço. — Você ainda não fez isso — falei, com um tom levemente malicioso. — Quem sabe um dia... — ela me disse, deixando-me sozinho na mesa e indo para perto de Aníbal, que conversava com um grupo de colonos. Muitos dias se passariam antes de Adele cumprir sua promessa. Nós sempre conversávamos e eu perguntava se ela ainda admitia o amor livre, pois alguém devia dar o exemplo, e eu estava tão desgraçadamente só que para mim seria mais do que um experimento socialista, seria a própria alegria naquele estado de privação. Eu tinha trocado a segurança de uma família pela amizade dos companheiros, mas me faltava afeto erótico. — Poderíamos testar o amor livre, esta é uma Colônia experimental, voltada para a liberdade feminina. Adele concordava com tudo, sem se decidir. — Tem medo do que vão falar de você? — perguntei. — Você já me conhece o suficiente para saber que não me importo com a opinião dos outros. — Teme pela dor de Aníbal? — É o mínimo que se pode esperar de uma mulher honesta, não é? — Então vamos contar tudo a ele. Minha determinação moveu Adele, que falou com ele no mesmo dia. Aníbal já desconfiava de nossos encontros, ainda inocentes. Encheu os olhos

de lágrimas, mas não chorou nem protestou. Adele perguntou-lhe se a considerava mulher livre ou serva de seu marido. Livre, ele disse. Ela continuou explicando. Uma mulher livre não só podia como devia ser dona de seu corpo e de seus carinhos. Ele teve que concordar, segurando sua mão na tentativa de prendê-la. Seremos exemplo para essas camponesas que hoje não têm patrão mas continuam obedecendo aos maridos, ela disse. Aníbal não falava nada, olhando a mulher que queria o direito de conhecer outros corpos. — Já aconteceu algo entre vocês? — Não faríamos nada sem sua aprovação. Você não é um burguês odioso. — Também não sou seu dono; se você acha que é assim que as coisas devem ser, concordo. — Mas concorda com raiva? — Concordo sofrendo. — O que você teme? — Que você fique apenas com ele. — Ficarei sempre com os dois. Naquela mesma noite, depois desta conversa, e depois de terem se amado, um amor doído, Adele deixou sua casa, com o consentimento de Aníbal, e veio para minha cama. Entrou triste, mas a tristeza não a impediria de fazer o que ambos desejávamos. Sua atitude era a da freira atendendo ao chamado de um moribundo no meio da noite, pura resignação, nosso encontro levava outra pessoa a sofrer e, por isso, também nos fazia sofrer. — Vim cumprir aquilo de que me incumbiu Giannotta — ela disse, séria. Então me entregou seus lábios sem nenhum gesto caloroso. Eu abracei seu corpo miúdo, era uma mulherzinha que talvez em outras circunstâncias não me encantasse, e senti um arrepio. Apesar de seu corpo frágil, havia tanta força em sua decisão! Ela deixava para trás o desejo de ser respeitada por sua conduta, abandonava, além de nossa triste pátria, o passado inteiro daquela Itália católica, tudo para experimentar comigo uma nova forma de amor. Adele crescia em meus braços e logo estávamos nos beijando com desespero juvenil. Quando nos vimos nus, era como se durante séculos nossos corpos já se conhecessem.

Palmeira, 20 de abril de 1890 Caríssimo Leonida Bissolati Como foi por meio de L’Eco Del Popolo que conseguimos apoio para esta desesperada empresa que é a criação de uma colônia socialista na América do Sul, gostaria que nossa primeira carta fosse dirigida aos leitores desse heróico jornal. Enfrentamos todos os problemas dos imigrantes nesta cansativa travessia marítima que fizemos a bordo do Città di Roma, comendo pão mal-assado, bebendo vinho azedo e água quente, provando assim do sofrimento dos italianos expulsos de suas terras pela miséria. Em dias sem nenhuma atividade, éramos atormentados pelo enjôo, que só nos dava sossego quando nos deitávamos nas cadeiras do convés e ficávamos olhando as nuvens. E olhar as nuvens nos faz sonhar ainda mais com o futuro. Fomos imaginando como seria o Brasil — embora inicialmente tivéssemos vontade de ir para o Uruguai, encontramos mais facilidades de imigração para o Brasil, cujo governo nos deu transporte gratuito e nos prometeu terras a prazo. Saímos de Gênova no dia 20 de fevereiro e chegamos ao porto do Rio de Janeiro no dia 8 de março, indo direto para uma confortável hospedaria na Ilha das Flores, de onde partimos, no dia 26, acomodados no navio Desterro, com destino a Porto Alegre. Toda esta viagem não nos custou nada, pois o Brasil tem dado grande ajuda a estrangeiros que queiram se estabelecer aqui, principalmente italianos, por gostarem de nossos colonos, que melhoram a agricultura e as atividades industriais. Na Ilha das Flores, ficamos bem instalados e fomos alimentados regiamente. E a viagem no Desterro acabou sendo muito melhor do que a do Città di Roma, o que dá provas da hospitalidade deste povo. Embora boa, a viagem nos cansou muito, e Giacomo Zanetti e Lorenzo Arrighini passaram mal no dia 28 de março, o que nos obrigou a descer no porto de Paranaguá, Província do Paraná, na metade de nosso percurso

original. A idéia era seguir viagem logo que nossos companheiros se restabelecessem, mas tantas foram as propagandas que nos fizeram das terras do Paraná que decidimos tentar criar a Colônia aqui mesmo. E por aí se pode ver como é este país. A pequena, antiga e já meio decadente Paranaguá não nos agradou por causa do calor litorâneo que vem nos perseguindo desde o Rio de Janeiro. Resolvemos então subir o planalto e fomos de trem para Curitiba no dia 30, aproveitando a paisagem de uma das mais belas regiões que já vi. Quem vem de um país apagado assusta-se com as cores das plantas, que aqui são mais escuras, mais sadias e mais viçosas. No primeiro de abril, depois de dormir na Hospedaria dos Imigrantes, mais desorganizada do que as outras, procuramos a Inspetoria de Terras e Colonização de Curitiba, com o objetivo de escolher um local para nosso grupo de pioneiros, e, como desejássemos região perto de rio navegável, ofereceram-nos terras em São Mateus, cidade cortada pelo majestoso rio Iguaçu. Escolhidos para o reconhecimento da área, Benedetti e eu seguimos numa diligência arcaica para Palmeira, sofrendo com as estradas em péssimo estado de conservação, porque tudo ainda está sendo construído. As estradas são tão ruins que, chegando aos arredores de Palmeira, no começo da noite, a diligência não pôde continuar por causa da forte chuva que caiu. Com uma vela na mão, coberta por uma folha de papel, tivemos que caminhar os quatro quilômetros restantes, atolando os pés num barro profundo. Mas não pensem que isso nos irritou. Uma súbita alegria fez com que esquecêssemos o cansaço, e fomos vencendo a estrada com disposição, rindo quando um de nós escorregava. Esta alegria aumentou na casa do Dr. Franco Grillo, médico italiano e cidadão respeitado na cidade, pessoa que nos recepcionou, apresentando-nos a principal bebida deste país, a pinga. Depois de um banho e de uma boa refeição, dormimos com a mesma despreocupação de uma criança, pois aquele contato com a terra tinha nos devolvido aos anos matinais. E foram duas crianças que se levantaram no outro dia, acolhidas pelo Dr. Grillo: “Vocês são como irmãos, porque filhos da mesma terra e da mesma idéia. Embora em política eu seja republicano, em economia sou socialista.” Foi este homem excepcional, com dezoito anos de Brasil, que nos ajudou a encontrar, na Colônia Santa Bárbara, as terras de que precisávamos. Definido o lugar, uma propriedade abandonada pelos russos, que preferem o transporte em carroções à lavoura, Benedetti e eu fomos tomar

posse das terras no dia 8 de abril. Era um campo circundado de matas, onde havia uma única e solitária casinha de madeira, abandonada ao lado de uns pés de laranja e de quatro palmeiras altas. A casa quase de brinquedo fortaleceu o sentimento de que estávamos dentro de nosso sonho juvenil. É dela, núcleo de nossa colônia social, que estou escrevendo esta carta, para dizer que aqui o socialismo anárquico já é realidade. Na primeira noite, sem ter onde dormir, arrumamos uma cama com capim verde. Pacificados com o cheiro forte de mato, passamos a noite neste território livre em que hoje, novamente reunido o grupo de pioneiros, cinco homens e uma mulher vivem livremente, algumas décadas à frente do resto da humanidade. Colônia Socialista Cecília Giovanni Rossi

A lua cheia me trouxe nostalgia do futuro, do tempo em que a Colônia estiver povoada por uma geração nascida de encontros momentâneos. E tudo se iniciava nesta noite, em lua propícia para o plantio da nova semente. O nosso era mais do que um caso de amor, estávamos recomeçando a colônia social, com o homem deixando de lado, não sem algum sofrimento, seu direito de exclusividade sobre a mulher. Andei até tarde para, ao voltar, não interromper nada e também para não parecer que nutrisse qualquer sentimento de posse, animal rondando sua fêmea. Pela força da convicção, Adele erguera-se contra todo o preconceito em que se educara. Eu estava orgulhoso, ela era uma pessoa corajosa, vivendo uma experiência que seria ainda mais difícil na Europa. Cheguei batendo as botinas nos degraus da entrada, destravei a porta e acendi a lamparina na cozinha, fazendo barulho para dar tempo de se vestirem, caso ainda estivessem nus. Logo ouvi a voz de Adele, uma voz que não vinha do sono recém-interrompido, e sim da vigília. Ela me chamava. Fui ao quarto, separado da cozinha por caixilho sem porta em que se amarrara uma cortina. Empurrei o pano, encontrando minha sombra na parede. Adele estava coberta, e seu vestido restara esquecido no assoalho, como a pele de uma cobra. Se aquele era um momento tão importante na Colônia, por que eu estava triste? Por que Adele me analisava com seus olhinhos úmidos? Talvez Gelèac tivesse feito algo a ela. — Ele desrespeitou você? — O que é desrespeito para uma mulher livre? — Notei o tom irônico. — Disse algo desagradável ou foi bruto? — Um animalzinho acossado pode ser bruto? Ele me amou como uma criança gulosa come doce, engolindo tudo, sem me ver direito. — Você se desencantou?

— Acho que você não percebe as coisas. Está precisando olhar mais para as pessoas e menos para seus sonhos. Gelèac precisava de mulher, você precisava ampliar seu caso de amor livre, eu, bem, eu... — Fale, não deixe de expressar seus sentimentos. — É isso que recomenda seu método de pesquisa? — Não, quem recomenda isso é um homem que está pondo em prática as teses do anarquismo. — Venha aqui — ordenou. Deitei de roupa, tirando apenas as botinas, e quando fui me livrar das calças, ela me disse, não, apenas me abrace. Eu a abracei e dormimos assim até o dia amanhecer e ouvirmos movimentação na Vila Anarquia. Depois de tomar café e comer o pão feito com o centeio de nosso campo, uni-me aos que derrubavam araucárias e preparavam a madeira para a construção de barris. Quando cheguei à mata, lugar em que a atividade era mais árdua, encontrei um numeroso grupo trabalhando, animado pela disposição de Gelèac, que manejava o machado abrindo, no tronco, a fenda que faria, depois de um leve corte no lado oposto, a árvore deitar sobre a mata, arrancando galhos, cipós, assustando passarinhos, que riscariam traços desesperados no céu límpido daquela manhã. Gelèac assobiava, e notei que seu rosto estava liso, embora um tanto vermelho, sinal de que a lâmina da navalha correra por sua pele, cortando espinhas e uns poucos fios de barbas, mas dando-lhe uma masculinidade que o livrava da adolescência. Em torno de um pinheiro já caído, alguns trabalhadores limpavam os poucos galhos, enquanto uma dupla ia tirando toras curtas com o traçador. Com essas toras, faríamos depois as ripas para os barris. Havia gente demais nesta tarefa. Voltei à vila, passando antes pelos campos, onde equipes masculinas cultivavam a terra. O trabalho estava sendo feito, mas o resultado não seria o bastante para nos alimentar fartamente. O serviço nas estradas dava ocupação a vários companheiros, o que era, para mim, motivo de frustração, pois eles continuavam sendo empregados, mesmo que o patrão fosse a figura simpática do Dr. Grillo, representante do governo. Esses homens tinham vindo para a Colônia em busca de liberdade e acabavam com horário fixo e recebendo ordens. Só uma coisa havia melhorado para eles, o dinheiro não era destinado apenas à família, ia para a caixa coletiva. Mas cresciam os descontentamentos. Sem ter o que fazer, resolvi ajudar a colher verduras na horta,

encontrando lá algumas mulheres que plantavam hortaliças e tiravam os matos do canteiro. Juntei-me a elas e ficamos trabalhando naquela manhã em que eu só pensava em Adele. Uma camponesa robusta, com um corpo que já enfrentara muita fadiga e quase nenhum prazer, de nome Teresa, se aproximou de mim e começou a fazer o que as mulheres mais faziam desde que chegaram. — Você soube que a Rosa Mainardi convenceu o marido a ir embora? Ítalo não foi trabalhar hoje nas estradas e diz que com o salário deste mês vai deixar a Colônia. — Espero que tenham sorte — falei —, na Colônia fica apenas quem quer e tem os mesmos ideais. — Ela reclama dos que não cooperam, enquanto o marido quase morre abrindo estradas. — O serviço não é assim tão difícil. — E depois tem que dividir o salário com todos. — No socialismo anárquico, é desse jeito mesmo. — Ela pensa nos filhos. Em um futuro para eles. Comecei a arrancar o mato com mais raiva, querendo deixar limpa a horta. Quando o sol das dez horas chegou, expulsando as mulheres, que foram para a cozinha coletiva com o avental cheio de legumes para a minestra, resolvi ficar. O mato tinha que ser arrancado, mas sempre nascia mais forte, a terra era fértil, havia uma quantidade de sementes que nunca se acabava, bastava mexer um pouquinho o solo e lá vinham novas mudinhas, roubando a força dos legumes e das verduras. Eu tinha que limpar todos os canteiros e não fui ao refeitório na hora do almoço, embora visse as pessoas voltando de suas tarefas e alguns saindo de suas casas com cara de sono. Eu também deveria comer, mas o mato crescia. Eu ficava olhando longamente uma planta, e era como se ela fosse aumentando o caule, crescendo monstruosamente. Seria preciso arrancar todo este mato, então eu voltava a trabalhar, enfurecido, o que deve ter chamado a atenção de alguns companheiros. Zanetti passou por mim, a camisa suada de quem tinha trabalhado muito no corte de árvores, e brincou: — Deixe um pouco para amanhã. Mas eu não podia, o mato não parava para almoçar, dormir, fazer amor, ver a lua. O mato crescia e ia sufocando as hortaliças, e só as hortaliças deviam prosperar, as ervas daninhas tinham que ser erradicadas, era para isso que o homem tinha inventado as técnicas agrícolas, para isso servia a

civilização, para isso eu estava ali. Eu sentia fome, e quanto mais fome eu sentia mais me vinha o desejo de destruir as invasoras, de limpar aquele terreno. Deveria nascer apenas o que semeamos, e não esta outra semente que ninguém plantara, mas que sobrevive na terra, em grande quantidade, essa semente eterna. Era preciso arrancar essas plantas, mesmo sabendo que outras continuariam nascendo, invadiriam a horta, roubariam os nutrientes e levariam os homens a abandonar aquele chão, julgando-as invencíveis. Passei a tarde toda cuidando dos canteiros, e quando não havia mais serviço ali, fui para a moita de roseiras e me agachei para tirar o mato, também era obrigação nossa cuidar das flores, elas tinham que ter uma terra livre de pragas; eu trabalhava meio enlouquecido, e se não fosse a chegada de Adele, com uma caneca de água, entregue sem nenhuma palavra, eu não teria interrompido aquela febre e, atacando os campos de milho ou o mandiocal, iria noite afora na tarefa insana, mas tão urgente. — É melhor você descansar um pouco — me disse Adele. — As plantas. — Ainda estarão aqui amanhã, e depois de amanhã, e daqui a cem anos. — Mas então por que limpamos os terrenos? Por que só conseguimos viver com os terrenos limpos? — Talvez apenas para acreditar. — Não tenho feito outra coisa na vida. Escrevi manifestos, romance de tese, agora quis viver dentro de um romance. — Vamos pra casa. Minhas mãos estavam enodoadas, os dedos descascaram naquela atividade contínua, as juntas incharam, eram mãos doentes. Fomos juntos para minha casa, iluminados pelo crepúsculo, que desenhava riscos coloridos no céu. Lá, na distância, não tinha mato, era tudo abstração, espaço ilusório, campos pacíficos de idealismo cromático. Dentro de casa, Adele encheu uma bacia de água, pegou sabão e lavou demoradamente minhas mãos. — Não se revolte contra elas. Não podem limpar o mundo. Depois enxugou com muito cuidado meus dedos, passou a toalha branca em meu rosto, umedecendo-a antes, e senti algum bem-estar. Era assim a felicidade, a limpeza das mãos e do rosto depois de um dia de grandes esforços, mesmo que fossem vãos. Eu não lhe falei isso. Adele saiu para sua casa, e, depois de alguns minutos, quando já havia escurecido completamente, voltou com uma caneca de chá.

— Beba, vai fazer você se sentir melhor. Chá de erva-cidreira, doce, muito doce, mas se acomodou bem em meu estômago. Em poucos minutos pude ter ânimo para me levantar e ir ao refeitório, onde já estava sendo servida a janta, compartilhada entre os que trabalharam e os que não trabalharam, como acho que deve ser uma mesa de companheiros, mesmo que alguns ainda olhem os seus vizinhos como inimigos. No refeitório, as vozes femininas se sobrepunham às dos homens, havia alegria entre eles, alguns contavam como tinha sido o dia de trabalho, outros faziam planos para o dia seguinte, outros comiam quietos, pensando talvez em alguma pessoa querida. Eu me sentei ao lado dos sapateiros, que me avisaram da falta de couro para as botinas dos trabalhadores — teríamos que comprar mais algumas peças na cidade. Adele ficou ao lado de Aníbal, que não trabalhara durante o dia e estava com os olhos vermelhos, não só pelo vinho. Rosa e seu marido, Ítalo Mainardi, comiam isolados, sem olhar para as pessoas, fixando-se nos pratos, onde nadavam uns pedaços de carne de porco no meio das verduras. O barulho das colheres era reconfortante. Entre os solteiros, já jogando baralho numa mesa pequena, Gelèac tinha a mesma energia matinal, era a sua juventude que ainda mantinha a Colônia, pessoas nesta idade vivem intensamente e não ficam reclamando, como os que sentem a proximidade da velhice. A vinda para o Brasil fora meu último arroubo de juventude; se tivesse esperado mais uns anos, não teria tido coragem, e agora fico imaginando quanto tempo ainda suportarei esta vida. Olho para Gelèac, e isso me dá entusiasmo. Foi para as gerações mais novas que criamos a Colônia. De uma hora para outra, sinto fome, muita fome, e tomo colheradas de sopa que molham a mesa e minha camisa. Não podemos parar. Entregar-se ao cansaço seria aceitar a velhice antecipada, e o que nos move é este tênue sentimento de juventude. Mire-se em Gelèac, eu me dizia, ele amou uma mulher pela primeira vez, sempre haverá gente amando pela primeira vez, trabalhou alegremente o dia todo, e a sopa que tomou não era proporcional ao seu esforço, ele merecia mais, muito mais, mas nem pensou nisso, e agora joga baralho com os amigos, e dormirá alegre sem imaginar o futuro. Esta planta, em menor quantidade, sempre nascerá, sempre frutificará. Terminei minha sopa e fiquei esperando o fim do jantar. Enquanto isso, fui ajudando a retirar os pratos da mesa, levando-os para a imensa tina na porta do refeitório. Éramos, neste serviço, dois homens e algumas mulheres,

entre elas Adele. Rapidamente, lavávamos colheres e pratos, os que terminavam de comer traziam as vasilhas sujas. Logo, as nódoas se soltavam deixando minhas mãos brancas e enrugadas. Vi esta transformação quando bati palmas, já dentro do refeitório, pedindo atenção para o relato que ia fazer. — No final do ano passado — comecei —, nosso companheiro Aníbal, num ato de grande desprendimento, comunicou a todos, neste mesmo lugar, que estávamos vivendo um casamento socialista. Ele era, naquele momento, a pessoa que vencia os receios e a exclusividade do amor de uma mulher, que o amava e que, nestes meses, não deixou de amá-lo, para que pudéssemos iniciar outro tipo de casamento. Numa Colônia em que sempre foram raras as mulheres solteiras, o amor livre é necessário para que a comunidade cresça dentro de seu espírito libertário, superando a organização familiar, na qual o homem faz as vezes da figura odiosa do patrão. Pois, meu caro Aníbal — falei isso virando-me para ele —, agora chegou a minha vez de ceder um pouco do carinho que tenho recebido, sem que tenha faltado a você, a mais uma pessoa — Gelèac ficou ainda mais vermelho —, uma pessoa que é tão respeitosa quanto nós somos com Adele — ela estava quieta, encostada na parede —, porque ter mais de um homem não é depravação, é apenas exercitar a liberdade sem nenhum remorso. Adele agora está se encontrando com Gelèac — percebi o ciúme nos olhos de Aníbal. — E em nenhum momento me senti traído, como jamais deve ter se sentido Aníbal, pois conhecemos Adele e sabemos que só há traição quando o homem é fantoche nas mãos de uma mulher. Eu comunico isso não para despertar a lascívia em vocês, mas como exemplo, convidando-os para a liberdade sexual, única forma de levar adiante esta Colônia. Gelèac continuava acanhado. Eu o chamei e ele se aproximou, constrangido, mas quando perguntei se estava feliz com os carinhos de Adele, ele sorriu, sem dizer nada, olhando para o canto em que ela se encontrava, um sorriso infantil de satisfação, que despertou risos. Adele em seguida saiu do refeitório, incentivando a dispersão do grupo. Fiquei com uns poucos companheiros, que retomaram a conversa interrompida por minha fala. Aníbal se aproximou e disse que era mais sofrimento para ele. — Agora ela vai gostar de um corpo jovem que nem você nem eu podemos lhe dar — disse. — Sempre ficamos devendo algo à pessoa que amamos, algo que ela só

vai encontrar em outros homens. — Em você ela encontrou a inteligência; em Gelèac, o fogo da juventude. E eu, o que darei a ela? — O seu desespero, pelo que vejo. — Comigo ela será a enfermeira, é isso que você quer dizer? — Os doentes também podem consolar. — Que consolo posso dar? — O da compreensão. Fazendo um gesto de descaso, Aníbal saiu na noite escura e foi sozinho para sua casa, onde não acharia Adele. Ela tinha se encontrado com Gelèac, convidando-o, meio rispidamente, para caminhar pelos campos. Estava decidida, me contou depois, a provar para todos que não havia medo nem vergonha nesta nova entrega. Tinha sim afeto pelo jovem, achava seu corpo bonito, gostava de ser apertada contra os músculos de seu peito branco e sem pêlos, bem diferente do meu, que se confunde com minha barba preta e espessa. Gelèac, disse ela, me lembra meu cunhado, e talvez por isso eu fique triste depois de me encontrar com ele, pois me voltam as lembranças da doença de minha irmã. Nos dias que se seguiram, Aníbal passou o tempo todo dentro de casa, bebendo vinho e pinga, sem fazer nenhum serviço, enquanto Adele não se afastava de Gelèac, despertando a ira das mulheres (“Assim também já é demais, ela está se comportando como Narcisa”) e suspiros de homens casados e solteiros (“Quem sabe um dia também se interesse por nós?”). Eu não dava importância a nenhum dos grupos, Adele era corajosa, desferia as últimas marretadas nas ruínas deste edifício sórdido que é o casamento, e eu a admirava sobre as demais pessoas da Colônia. Desde sua mocidade, quando mantivera relações com o cunhado, vinha destruindo a família. Tal alegria, no entanto, não era suficiente para me deixar dormir em paz, e passei várias noites me virando na cama, sozinho e meio febril, de uma febre que não passava mesmo depois de, constrangido, usar as mãos rachadas e ásperas para me aliviar.

Palmeira, 21 de julho de 1890 Caro Leonida Bissolati Desde que os pioneiros se estabeleceram, nossos dias têm sido de trabalho bíblico, estamos criando um mundo do nada. Eu conhecia a agricultura como médico-veterinário e agrônomo, mas aqui nosso projeto é deixar a teoria em nome da prática, então tenho me entregado a todas as tarefas, da limpeza da casa à construção de cerca, do cultivo do solo à derrubada da mata. Nenhum de nós está habituado às atividades agrícolas, e mesmo assim temos nos dedicado apenas a elas. Estamos confiantes no futuro da comunidade, que já principiou socialista, não por meio de nossas atividades, mas pela acolhida que recebemos do povo paranaense. Não havia melhor lugar para nossa colônia. Viemos como imigrantes comuns, patrocinados pelo governo, e, assim que chegamos a Palmeira, recebemos a distinção da amizade deste médico esclarecido que é o compatriota Dr. Grillo. A ajuda não veio apenas do caríssimo Grillo, o homem local é pessoa hospitaleira e recebe a todos com muita amizade, pois não tem a febre do dinheiro e vê o estrangeiro como salvador. — Temos pouca necessidade — me disse um deles, em sua voz mansa. — Por isso repousamos na rede, tomamos mate, tocamos violão e passeamos a cavalo. — Não temem a vinda de tanto estrangeiro? — perguntei. — Precisamos do estrangeiro, que nunca está satisfeito, sempre quer mais, fazendo o país progredir. Esta situação torna nossa vida mais amena. Não temos que enfrentar o rancor da população local, uma gente afável que gasta muito tempo em conversas, ensina o que sabe e sempre nos convida para um café em sua casa. Tal polidez, tão comum nestas terras ditas selvagens, está contaminando o imigrante, que aqui chega rude e amargurado pelos

sofrimentos em sua pátria. Assim, nossos grosseiros agricultores vão melhorando seus hábitos no contato com o paranaense. O socialismo começou, para nós, já na fundação da Colônia. Pois nossos vizinhos, que acabáramos de conhecer, nos deram a primeira égua, as primeiras vacas e os primeiros porcos, além de colaborarem nas tarefas mais urgentes. Todos se ajudam aqui, num socialismo rudimentar de fraternidade agrária. Um outro exemplo deste socialismo espontâneo está na maneira de se criar gado. Praticamente não existem cercas, as reses, marcadas com as iniciais do dono, têm todo o direito de pastar nas propriedades públicas e particulares, nas beiras das matas, nos campos e mesmo nos jardins. Entende-se que o pasto é para todos, não havendo divisões. Com isso, o cruzamento, o parto e o aleitamento ocorrem em plena liberdade. Que belo exemplo para nós, socialistas! A Colônia tem todas as condições para se desenvolver, mas ainda faltam novas famílias, preferencialmente de agricultores. É preciso divulgar o êxito deste início, as condições extremamente favoráveis de estabelecimento, para que mais gente venha fortalecer uma comunidade que será não só poderoso instrumento de propaganda do socialismo como novo modelo social, favorecido pela natureza fraterna do homem paranaense. Que venham os agricultores desejosos de participar desta nova terra da fartura, mas que tragam, se possível, um pouco de dinheiro, pois a situação ainda é precária e nossa caixa coletiva mal dá para os que aqui se encontram. Colônia Socialista Cecília Giovanni Rossi

Lorenzo Arrighini não tinha ido trabalhar, estava muito cansado, dissera aos companheiros, mas todos já sabiam de sua inaptidão para qualquer tipo de serviço, e como deviam derrubar a mata e abrir terra para o plantio, tarefa mais bruta do que o cultivo da horta ou a construção de cercas e de alojamentos, Lorenzo usara um de seus pretextos para ficar em casa, irritando principalmente Achille Dondelli, que liderava a facção composta por sua mulher, Catharina Benedetti, chamada Cattina, e seu cunhado Evangelista. — O vagabundo não vem hoje — falou Achille. Estavam a caminho da mata, numa manhã fria, as relvas cobertas por uma camada fina de gelo, que ia sendo quebrada pelos sapatos velhos, produzindo o som de cacos moídos. Os pés dos quatro homens estavam congelados, as meias eram insuficientes para vencer o frio. Logo se esquentariam usando foices e machados. Depois, quando o sol, com o poderoso auxílio da geada, secasse as folhas das árvores, os capins e os matos, eles colocariam fogo facilmente naqueles paus, abrindo mais um pedaço de terra para o plantio de verão. — Não devemos obrigar ninguém a trabalhar — lembrou Rossi —, não somos feitores. — Mas Lorenzo está abusando. — É direito dele não querer trabalhar, embora eu desaprove. Quieto, arrancando hastes de capim ao longo do caminho para esgravatar os dentes, Giacomo Zanetti apenas pensava quando chegariam mulheres solteiras na Colônia; não suportava mais aquela vida, que o deixava sem entusiasmo para o trabalho e mesmo para a conversa. — Precisamos de mais gente — falou Giacomo, sem tirar o talo de capim do vazio dos dentes cariados. — Talvez algum de nós tenha que ir à Itália trazer voluntários, a

propaganda das cartas em jornais não está dando certo — lamentou Rossi. — Terá que ser você — concluiu Evangelista —, para Lorenzo não se sentir no direito de fazer a viagem apenas para não trabalhar. — Benedetti tem razão — falou o cunhado. — E não podemos esperar muito. Precisamos de mão-de-obra e de tumulto social — complementou Giacomo. Quando chegaram à mata, cada um pegou um eito e começou a lutar contra as árvores mais finas e os arbustos, uma luta lerda, com pequenos avanços. Quando uma árvore um pouquinho maior caía, produzindo o barulho de galhos sendo rasgados, eles sentiam o prazer de quem vê a natureza render-se à força humana, e aí não pensavam na pouca comida, no nenhum conforto, na preguiça do companheiro, na falta de mulheres, tudo fazia sentido e eles se sentiam primitivos. Numa das batidas do machado, movimentado de forma débil, ninguém ali era experiente nessas atividades, Achille quebrou a lâmina, recebendo uma vibração errada que amorteceu seus braços. — Porcaria — gemeu, jogando o instrumento no chão e sentando em um tronco. Levantou-se, foi até a touceira de capim em que se escondia a moringa, encontrando-a suada, e bebeu um longo gole, sem tocar no bico, erguendoa e virando sobre a boca, sem derramar nada na roupa. Em poucos meses, tinham adquirido vários hábitos da região, e isso os deixava orgulhosos. Num passo decidido, de quem está bem em seu território, Achille subiu até a pequena vila, já com duas casas, a deles e a dos solteiros, para buscar o machado que Lorenzo não estava disposto a usar, pensando no filho por nascer. Tinha saído da Itália durante as núpcias, enfrentando a viagem ao lado da esposa que nunca reclamava, animada com o novo país. Cattina engravidara antes da viagem, em janeiro. Por sorte, e também por ser saudável, não sentira enjôo no navio, e agora, em seu oitavo mês, continuava a mesma mulher, sempre disposta, muitas vezes protegendo o marido e o irmão, guardando para eles algum alimento mais raro, um naco de carne de porco, coxas de galinha, pedaços de polenta. Achille não tomava essas pequenas proteções como traição ao grupo, mas como manifestação de amor. Entrando na sua cabana com a comoção nos olhos, produzida por estes pensamentos, encontrou Lorenzo sentado no banco, olhando Cattina na operação de reavivar o fogo. A mulher estava de costas, as carnes saltando

no vestido velho, e ele percebeu em Lorenzo a chama do desejo. Ao ver o marido, o intruso explicou que esperava a comida para já descer à mata e ajudar os companheiros. Ele estava muito fraco, mas logo.... Antes de terminar de falar, levou um empurrão de Achille e caiu no piso de terra batida. — Seu vagabundo! — Pare com isso, Achille — ordenou Cattina, assustada com a violência do marido. — Esse porco tem que apanhar — e deu um chute na barriga de Lorenzo, que já se levantou, pegando um pedaço de madeira do fogão. — Venha agora, puto. — Ele não fez nada, Achille, estava apenas conversando. — Esse é o problema, fica sempre conversando enquanto nós trabalhamos. — Vá embora, Lorenzo — pediu Cattina. — Ele se sente superior só porque tem mulher, mas a família é a grande inimiga do anarquismo, nós vamos destruir todas as famílias, você é um atraso. Você, sua mulherzinha, seu filhinho. Achille correu para o quarto, em busca do facão guardado sob a cama, e Lorenzo aproveitou para retirar-se, olhando sempre para trás, com medo de um ataque, mas o outro apenas se pôs na porta com o facão em punho, que luzia ao sol matinal. A mulher segurava o braço do marido, acalmando-o com palavras que só os dois podiam ouvir. Quando o grupo chegou para o almoço, estranhando o fato de Achille não ter retornado, não encontrou a comida pronta. A história logo era de domínio de todos, e Evangelista também se indignou, prometendo uma surra no desavergonhado, mas Rossi pediu bom senso. Aquele era um mundo livre, e desde que o sedutor não tivesse usado de violência contra Cattina — e pelo que ela dizia isso não ocorrera, apenas elogiara seus braços fortes, que faziam Lorenzo se lembrar de uma namorada —, não havia nada de errado, cada um podia expressar seus desejos. — Mas com uma mulher grávida! — Evangelista cortava um graveto com o canivete. — Que cada um remexa em sua memória e tente lembrar se, em determinado momento, não teve sentimentos por mulheres casadas, e até mesmo por uma grávida. Eu posso dizer que já me interessei por uma. — Espero que não tenha sido pela minha — falou Achille.

— O que importa se foi ou não a sua? Na gravidez, a mulher continua sendo tão feminina quanto antes. E não amamos o corpo, mais ou menos avantajado, mas o caráter, a voz, as opiniões, tudo isso materializado num corpo, que é onde podemos tocar o amor. — Cattina agora vai evitar as reuniões — falou Evangelista. — Isso é decisão dela ou ordem do feitor? — Rossi mantinha o tom sereno de voz. — É apenas precaução. — Triste Colônia! Tem apenas uma mulher que, mesmo grávida, desperta disputas entre companheiros. — Você fala assim porque a mulher não é sua — indignou-se Achille. — Pobre marido, ainda age como proprietário. Vindo do quarto, a barriga balançando no vestido justo, deixando ver o umbigo saltado, Cattina tinha a face tranqüila. Sabia se defender, jamais se deixaria seduzir pela conversa mansa de um homem, provavelmente não se opusera aos elogios do sedutor, talvez tenha até deixado brechas na conversa para que ele se declarasse. Seus seios estavam imensos, também saltavam do vestido, eram seios sexuados, ela toda tinha uma aura erótica, qualquer homem percebia isso, era uma gravidez exuberante, lábios inchados, bochechas coradas, tudo nela ganhara volume, cor e forma, e se insinuava, pedindo olhares, exigindo atenção. — Vamos parar com essa conversa. Não houve nada, não fui ofendida, não tenho mágoa dele, apenas dó de vocês, perdidos nestes sertões e sem o menor carinho. Todos são uns coitados, até você, Achille, é um coitado, dividindo a pouca comida, o serviço que nunca acaba e brigando por uma grávida. — Cattina tem razão — interferiu Giacomo, que ficara em silêncio —, todos estamos solitários. — Sou uma mulher impedida, mas há mulheres livres na cidade. — Se Lorenzo não ofendeu Cattina, minha proposta é que o grupo lhe peça desculpas e que ele continue recebendo tratamento amigável e respeitoso. — Voto contra — falou Evangelista. — Achile e eu votamos a favor — afirmou Catharina, sem dar chance para que o marido se pronunciasse e se opondo ao irmão, que, ao receber seu olhar, abaixou a cabeça. — Favorável — falou Giacomo, oferecendo-se para ser o porta-voz.

No tempo que antecedeu a vinda do sedutor, ninguém falou nada na cozinha minúscula dos Dondelli. Ao entrar, Lorenzo disse que não se arrependia de ter olhado para Cattina, não devia satisfação a ninguém. — Nós te pedimos desculpa pelo modo como nos comportamos — falou Rossi, abraçando o amigo. — Vamos comer algo, ainda tem uns pedaços de polenta do café. — Cattina já estava mexendo na panela, esquecida sobre a chapa do fogão agora apagado. À tarde, todos foram trabalhar na derrubada da mata, passaram o resto do dia em silêncio, mas sem discórdias, entregues às tarefas pesadas. Lorenzo, dedicado ao trabalho de roçar a quiçaça, batia a foice com força exagerada e compasso ritmado, revelando sua fúria silenciosa, não contra o marido, mas contra a solidão. O resto do mês foi de serviços urgentes e desgastantes, que consumiam a pouca energia dos homens. Os solteiros emagreciam rapidamente, a comida tinha se tornado mais aguada, o café vinha ralo e preto, pois a única vaca leiteira não se deixava mais ordenhar. Apesar da comida escassa, os Dondelli e Evangelista não emagreceram, e a retirada de dinheiro para as despesas de alimentação estava sendo maior do que em outros meses, como percebeu Rossi ao conferir o saldo, numa manhã em que Cattina, a quem fora, desde o início, confiada a caixa social, saíra para comprar mantimentos. Ele seguiu a pé para Palmeira, vencendo os dezoito quilômetros de estrada em pouco menos de quatro horas, prova de que os trabalhos na Colônia tinham melhorado sua resistência. Rossi sentia-se contente com seu desempenho na caminhada, pensando na felicidade: ela só podia ser conquistada com o corpo, e se encontrava, para ele, no trabalho rural. A caixa social chegava ao fim, mas o trigo ia ser semeado, as galinhas engordavam, e logo haveria a primeira colheita. E tudo isso tinha sido feito por um grupo de citadinos, sem nenhuma intimidade com trabalhos agrícolas. Lembrou-se com carinho de Achille Dondelli. Fora vendedor de vinho, mas trocara o comércio, em que não precisava de grandes esforços, por semanas de sete dias na roça — uma das vantagens de ser ateu é não precisar guardar o feriado semanal do Senhor. Achille e sua família comiam mais do que os solteiros, era algo errado, mas não iria acusar ninguém, nem mesmo comentaria isso, pois um dia a fartura seria tanta que não haveria razão para enganar os outros.

Em Palmeira, procurou, como sempre fazia, o Dr. Grillo, que o recebeu com um abraço e um copinho de pinga. Rossi tomou com muito gosto, explicando em seguida que precisavam de um adiantamento, as lavouras e os animais iam bem, mas dinheiro eles só teriam dentro de alguns meses. Pretendia viajar para a Itália na condição de propagandista, falar pessoalmente convencia mais do que cartas enviadas a jornais e amigos. Depois de mexer em sua gaveta, Grillo tirou uma quantia de dinheiro e entregou a Rossi, dizendo que para a viagem arrumaria mais. E logo quis saber como estava o ânimo dos pioneiros. — Eles ainda se desentendem por pequenas coisas, mas não podemos querer que se transformem instantaneamente em homens novos. Isso leva tempo. — A falta de mulher deve ser o principal motivo desses atritos — afirmou Grillo. — Com certeza. Os homens passam a semana trabalhando sem se preocupar com outra coisa a não ser com as tarefas, mas no fundo sentem tanta carência afetiva, que, ao menor problema, como o fato de alguém esquecer de alimentar as galinhas, surge uma discussão em que se é acusado de negligência, e o outro reage, lembrando alguma falha daquele que o acusa. Tudo por não terem estado com mulher nestes últimos meses. — E a solução? — Na Itália, tentarei atrair mulheres livres. — Sabe que pode encontrá-las aqui. — Não estou me referindo a essas. — Elas resolveriam o problema provisoriamente. — Lutamos contra a prostituição na política, na economia, na família, não poderíamos nos servir dessas mulheres sem renunciar a certos princípios. — Mas há algumas que não são propriamente meretrizes, apenas levam vida mais libertina. — Se recebem, são meretrizes. — Talvez você pudesse contratar uma delas para trabalhar na casa dos solteiros. Rossi guardou o dinheiro, depois de folgar a cinta um pouco e abrir a bolsa cosida na parte interna do cós da calça. Até este momento, tinha ficado com aquelas notas na mão, como se não fossem suas e estivessem ali apenas para ele conferir a quantia. Rossi parou, depois desta operação, para

contemplar a sala do Dr. Grillo. A escrivaninha de imbuia soltava um cheiro bom, havia uma estante de livros da mesma madeira. Suas botinas de agricultor pobre contrastavam com o tapete de boa qualidade. O médico tinha uma vida decente, conquistada com seu trabalho. Sabia que os homens da Colônia podiam suportar privações, falta de alimento, mas não suportariam a abstinência sexual. — Você conhece alguma? — Rossi perguntou isso tirando o relógio de bolso e se fixando em seus ponteiros. — Nenhuma que pudéssemos visitar a esta hora do dia. — Quando, então? — Na boquinha da noite. Há uma casa perto do rio. A criada veio avisar que o almoço estava pronto, eles se levantaram e foram para a parte dos fundos. Havia tempo Rossi não usava pratos de porcelana, talheres de prata e taças de cristal. O conforto daquela casa o devolvia, por contraste, à sua cabana. Se tivessem fartura lá, tudo seria mais fácil, o socialismo anárquico poderia se desenvolver, não precisariam passar por provações que não se referiam diretamente à ideologia, mas à pobreza. Comeram em silêncio, Rossi ainda meditando se valia ou não a pena contratar uma mulher para a Colônia. Não virariam meros patrões, pagando por um serviço? Mas talvez fosse a oportunidade de levar um elemento social novo à comunidade, tratando-a como devem ser tratadas as mulheres, sem acusá-la por sua opção de trabalho, pois a prostituição, quando se tirava dela o que havia de sórdido, era ocupação digna por permitir a liberdade feminina. O que realmente o incomodava na prostituição era o fato de servir de instrumento para perpetuar a estabilidade familiar. Os homens se aventuravam nesses corpos libertinos e podiam assim manter uma falsa relação monogâmica com a esposa. A criada que servia o almoço era uma menina magra e bonita, de uma beleza comum, sem atrativos. Rossi a estudou cuidadosamente, despertando a atenção do Dr. Grillo. — Pelo que vejo, precisamos ir àquele compromisso o quanto antes. O anarquista bebeu de uma vez a xícara de café que tinha acabado de receber da moça, queimando a língua, para diversão do anfitrião, que pensava como um homem experiente na política, com formação na Universidade de Pisa, filho de um advogado e de uma professora, podia ser tão ingênuo nas coisas do amor. — Descanse em meu gabinete enquanto resolvo uns problemas. À noite,

vamos juntos à saída da cidade. — Vou aproveitar para escrever algumas cartas. — Sobre a escrivaninha há papel e envelopes. Assim que Grillo saiu, Rossi não quis escrever nada, recostou-se na poltrona de leitura e dormiu um sono longo, pensando que talvez ele também merecesse o conforto de um lar, móveis de qualidade e tempo para livros e hábitos de higiene, praticamente banidos de sua rotina de agricultor. No meio da tarde, resolveu dar uma volta pela cidade. Desde o dia em que chegara, tinha se encantado com a ordem de tudo — os casarões em torno da praça, a igrejinha, as palmeiras altas e soberanas, funcionando como bandeiras da paz doméstica. Foi até as casas de comércio em busca dos mantimentos necessários, queria abundância para que não houvesse mesquinharia nas refeições, tinha sido esse o objetivo de sua visita à cidade. Comprou sal, pedaços de charque, açúcar e café, tudo em grande quantidade. Não iria repreender Cattina pela distribuição adicional de alimentos à família, era uma mulher assustada pela maternidade naquela terra estranha e pelas condições precárias. Tinha recém-saído de um sistema corrupto, levaria tempo para se acostumar a repartir tudo e se relacionar com os outros segundo os princípios da irmandade, deixando de considerá-los inimigos. Ao ganhar a rua, depois de acertar a entrega das compras na casa do Dr. Grillo, Rossi voltou pensando que seria útil o convívio com uma meretriz, agora estava decidido a levá-la. Ela chegaria como uma simpatizante atraída pela Colônia. Ajudaria na horta, nas refeições e dormiria na cama de quem escolhesse. No fim da tarde, foi servido o jantar. Comeram fartamente; Rossi sempre que podia armazenava proteína para os dias difíceis. As compras estavam na cozinha, em sacos amarrados pela boca. Não tinham ainda bebido o café quando chegou um russo, morador de Santa Bárbara, atendendo a um chamado prévio do anfitrião. Os três subiram no carroção de toldo, Grillo avisou em casa que acompanharia o amigo até a saída, e foram para a beira do rio. O casarão tinha várias janelas dando para a rua e uma porta de duas folhas, alta, com vidro na parte superior. O carroção parou, os dois italianos desceram, um toque leve na porta fez com que se ouvissem barulhos de chinelo no assoalho, que parecia coberto de areia. A mulher que atendeu era magra e tinha o rosto enrugado.

— Entre, doutor. — Este é um amigo meu. — Seja bem-vindo. Eles se sentaram em cadeiras de palhinha, as mãos sobre a mesa. De onde estava, Rossi via, no corredor escuro, vultos passando de um quarto para o outro. Grillo explicava tudo para a mulher, tinha que ser moça sem vício, discreta, que estivesse interessada em passar uns tempos fora da cidade, no convívio com gente de bem. Receberia comida e salário. — Acho que tenho uma pessoa que pode se interessar. Levantou-se e voltou com uma menina branca, aspecto de doente, talvez por viver sempre trancada no casarão. Não devia ter mais de vinte anos, embora o corpo miúdo fosse de quinze. Era tímida, e isso agradou a Rossi. — Está precisando deixar a cidade. Engravidou de um rapaz, e a criança morreu na primeira semana. Seria bom abandonar o serviço até se recuperar e o rapaz se esquecer dela. — Como é seu nome? — Era a primeira fala de Rossi desde que entraram na casa. — Maria. — Maria do quê? — Aqui todos me chamam de Malacarne. — Isso nós vamos ver. — Rossi riu, encantado com a moça. Acertaram o ordenado, o primeiro seria pago diretamente à cafetina pelo Dr. Grillo. Maria foi ao quarto e voltou com uma trouxa. As roupas amarradas naquele embrulho tosco e flácido, que ela segurava contra o ventre, devolviam-lhe a silhueta de grávida. Subiram no carroção. Na saída da cidade, o médico desceu, despediu-se do amigo e voltou a pé para casa, enfiando a mão nos bolsos do casaco para se proteger do vento frio daquela noite de agosto. Olhou para o céu e disse: — Amanhã vai gear de novo. Rossi seguiu em silêncio. Quando chegou, todos já estavam dormindo. Ele ajudou o russo a descarregar as compras, ouvindo o ressonar dos companheiros no quarto, pagou pelo transporte e fechou a casa. Na escuridão, não tinha acendido nenhuma vela para não acordar os amigos, ouviu uma voz infantil: — Onde vou dormir? — Na minha cama — ele disse.

Palmeira, 15 de setembro de 1890 Meu caro Leonida Bissolati Nestes últimos seis meses, vivemos aqui na mais completa solidão, e é muito difícil explicar o que é a solidão nestas colinas americanas, onde um crepúsculo triste nos faz lembrar, toda tarde, de pessoas e lugares queridos. Fitamos o céu no fim do dia, com suas luzes morrentes, e depois olhamos para nossa casinha e não encontramos ninguém que possa nos dar afeto. Sem mais o que fazer, pegamos um livro socialista e ficamos lendo até as vistas se cansarem, sonhando com a grande pátria anarquista. Enquanto isso não acontece, embora cada dia estejamos mais perto desse momento, vamos trabalhando na terra com o desejo de que ela dê frutos para que nossa colônia possa acolher muita gente. Prevalece a monotonia, pois somos poucos; isso tem um lado positivo, nós nos dedicamos com maior afinco ao trabalho, embora todos andem meio tristes, não de uma tristeza que vem do arrependimento de estar aqui, mas de outra, produzida apenas por esta falta de calor humano, de longas palestras com pessoas novas e de encenações de teatro, que queremos providenciar assim que tivermos mais companheiros, pois a Colônia só será atrativa se criar entretenimento, não podendo dar certo se persistir o presente regime de trabalho. Quando nossa população crescer, haverá ócio para as artes, para a leitura, para o namoro ou apenas para contemplar os entardeceres, que não nos doerão tanto, pois a solidão estará afastada e o pôr-do-sol poderá ser apenas poesia. Os solteiros sentem como nunca a falta de mulheres. Há apenas uma, que em breve dará à luz o primeiro filho da Cecília, e temos tratado esta mulher com todo o respeito. Se isso mostra nossa civilidade, também revela o velho modelo familiar, pois a mulher aqui é a figura da mãe, ligada ao marido e ao filho vindouro. [...]

Esperamos que cheguem logo as novas levas de imigrantes, que serão muito bem recebidas. Aguardamos todo tipo de gente, mas ficaríamos extremamente felizes se viessem também as companhias amáveis. Como nossa pequena população é predominantemente masculina, sem elas a Colônia corre o risco de continuar reproduzindo todos os vícios desta velha sociedade que queremos reformar. Colônia Socialista Cecília Giovanni Rossi

No escuro daquele quartinho sem forro, Rossi viu Maria. Ela ficou em pé, ao lado de sua cama, e seu corpo brilhava na noite, que não conseguia apagar o fulgor da pele cor de leite. Rossi então lembrou da vaca que não podia mais ser ordenhada e do café aguado das últimas semanas, agora havia alimento para mais de um mês. Pensou também em Cattina, logo viria a criança, a primeira a nascer na Cecília, tinham que arranjar um nome adequado para ela, o nome das coisas era importante, uma escolha errada e tudo poderia estar perdido, ele tinha esta crença no poder da palavra, e ficou pensando que nome daria a um filho que fosse seu, mas não estava apaixonado, não teria filhos tão cedo, se é que um dia fosse ter. Também, com esta vida! Sentado na cama, divagava enquanto as mãos corriam pelo corpo de Maria. O nome, o nome é algo importante, e foi se excitando, sempre com esta idéia. Quando seus dedos se enroscaram nos pêlos crespos de Maria, ele sussurrou: — O nome. — Todo mundo sabe, seu bestão — ela disse, sentando-se no colo dele, pequena como uma menina. Ele levou a boca a um dos seios, que estavam firmes e inchados, mas ela recuou. — Ainda está saindo leite — falou, meio envergonhada. — Eu nunca soube o gosto que tem — e sugou lentamente, primeiro um, depois outro. Quando enfim se deitaram, apertando os corpos num longo beijo, ele sentiu gotas de leite escorrendo entre os pêlos de seu peito e logo já tinha encontrado o caminho tão longamente desejado. Então disse: Boacarne. E ela riu, corrigindo-o, provocativa: — Malacarne. Todo mundo me chama de Maria Malacarne.

Por ser também gabinete de estudo, o quarto de Rossi era separado do alojamento dos solteiros. Ele se levantou mais tarde e foi à casa dos Dondelli para tomar café. Encontrou os amigos sentados nos bancos de madeira, feitos pelos próprios anarquistas, e apresentou Maria, dizendo que ela tinha vindo com ele, estava interessada em levar vida socialista, mas não sabia nada ainda dos ideais deles, e todos tinham que ajudar, ensinando-lhe os princípios do anarquismo. As primeiras lições você aprenderá logo, é só observar como vivemos, falou Rossi, sentando-se na mesa e dizendo a Cattina que na despensa havia café, açúcar e outros alimentos. Evangelista disse que buscaria alguma coisa para ser consumida naquele momento e saiu num passo rápido, enquanto Lorenzo se aproximava de Maria, perguntando de onde ela era. De Palmeira, ela disse, colocando as duas mãos sobre a tábua mal aplainada da mesa. Todos viram suas mãos finas e pequenas, Cattina percebeu que ela não estava acostumada com serviço pesado e ficou com raiva, sentimento que aumentou quando observou as próprias mãos, imensas e ásperas como as mãos de todas as agricultoras, e os braços escuros de tomar sol na horta e de receber o calor do fogão. Eram mãos e braços de uma mulher de trabalho, não tinham nem a brancura nem a maciez que encontrava nos de Maria, e então perguntou a Rossi se ela — havia desprezo no tom escolhido para pronunciar esta palavra — seria mulher dele. O anarquista disse que não tinha documento de posse de ninguém, Maria vinha integrar o grupo dos solteiros e era dona exclusiva de seus afetos. Giacomo, sempre quieto, pediu que Cattina fosse mais educada, a Colônia estava precisando de gente, todos eram bem-vindos, ninguém tendo que provar nada. — Precisamos de quem trabalhe — falou Cattina, mexendo a lenha no fogo, onde fervia um caldeirão de água para a polenta do almoço. — Se ela quiser, pode ficar morando aqui em nossa casa. — Achille dizia isso olhando a parede, com medo de encontrar os olhos de sua mulher. — Esta também é uma escolha de Maria — concluiu Rossi. — Para mim tanto faz, posso ficar na outra casa. — No campo há bastante capim para você preparar seu colchão, depois jogue-o onde você quiser, desde que não seja no meu quarto. A discussão entre as duas mulheres acabou com a entrada de Evangelista, que trazia, em um dos sacos, vários produtos, colocando-os sobre a mesa, onde permaneciam as canecas com o fundo borrado de um

café com aspecto de água suja. Maria comeu um pedaço de polenta fria, e seguiu para o campo. Queria conhecer a propriedade e logo encontrou, poucos metros abaixo, uma cascata de água muito fria. Sentou-se numa pedra e deixou seus pés dentro da correnteza, pensando que, quando esquentasse, ali seria um ótimo lugar para o banho. Olhou longamente a vegetação em volta, que protegia a cascata, e se lembrou do tempo em que era menina e se banhava à luz do dia. Sua vida estava sofrendo nova mudança, depois de meses dormindo de dia e passando a noite na cama com os mais diferentes fregueses, ela agora descobria a manhã — e era bom ficar assim no sol. Ergueu a barra do vestido e deixou suas pernas brancas receberem aquela luz. Não precisou preparar o próprio colchão. Logo depois do almoço, Lorenzo chegou com grande quantidade de capim e foi enchendo um imenso saco com um corte em um dos lados. Ele mesmo tinha costurado uns restos de pano de cores e estampas diferentes, dava para ver que era serviço masculino pelos pontos largos e frouxos. Quando o colchão ficou cheio de capim, Maria viu que era maior do que o de solteiro em que tinha dormido com Rossi, e isso lhe pareceu um bom sinal, passaria mais tempo naquele colchão do que em qualquer outro lugar da Colônia. Percebera desde o primeiro momento que aqueles homens tinham muita sede, mesmo aquele casado com a colona de nádegas imensas e lábios inchados pela gravidez, todos queriam alguém com mãos de mulher, lábios de mulher, pernas de mulher e sexo de mulher. Ela possuía tudo isso e saberia exatamente o que fazer. Muito cedo ainda, descobrira que cada pessoa se relacionava com o mundo de maneira diferente. Tivera esta revelação ao observar o irmão, que só pensava em ir para os rios no desejo nunca saciado de pescar. Voltava para casa com o embornal cheio de peixes, que a mãe distribuía entre os vizinhos, e no outro dia já estava preparado para passar horas nas barrancas dos rios, sofrendo com mosquitos e pernilongos e correndo o risco de ser picado por uma cascavel, das muitas que havia nos arredores de Palmeira. O pai tinha uma maneira mais quieta de participar da vida social. Cuidava dos gatos e cachorros encontrados na rua. Na volta do armazém em que trabalhava, vinha sempre com uns restos de carne para preparar a comida dos animais e depois ficava um longo período conversando com aqueles bichos machucados. Alguns se recuperavam depois dos tratamentos de seu

Francisco e logo estavam de novo na rua, em busca da aventura inexistente naquela casa. Mais prática, a mãe costurava para fora e sempre havia gente na sala; mas não era pela costura que ela participava da vida da cidade, e sim pela conversa, gostava de saber tudo o que acontecia, mas nunca saía falando para as pessoas, tinha um prazer solitário de conhecer as coisas boas e ruins, não comentava nem com os filhos e, antes de dormir, rezava por todos, por aqueles que tinham conseguido alguma distinção, para que não sofressem, e pelos desgraçados, que haviam perdido um filho, sido baleados, passado por uma tragédia. A mãe, no fundo, era como um anjo, Maria pensara muito nisso depois da sua morte, um anjo convencido de que a felicidade das pessoas dependia dela, somente dela. Quando morrera de uma doença que ninguém soubera diagnosticar, Maria pôde seguir seu caminho. Ela não tinha tido nenhum namorado até aquela idade, e já estava para completar dezoito anos, mas sabia que o mundo passaria sempre pelo vão de suas pernas, era ali que estava seu ponto de engate. O mundo funcionava como uma carroça, cujo varal se prendia a ela. Sabia como prender o varal, conhecia um nó que ninguém podia desfazer, para isso tinha nascido, não restava dúvida, tudo que fizesse para contrariar tal vocação seria crime, e ela se sentia pacificada, era uma mulher que apreciava o mistério de existir, a morte da mãe mostrando a urgência de viver tudo rapidamente, da melhor maneira. Resolvera abandonar o pai e morar na casa de Dona Odete, onde foi recebida como um anjo, branca e virgem, presente para os homens bem-postos da cidade, que logo se uniram a ela, uns jovens, outros já velhos, todos encantados com seu corpo, que brilhava à noite, e ela conheceu nestes vários homens o que havia de igual e diferente na natureza masculina, e viu que a novidade era infinitamente menor do que a repetição, aprendendo tudo que desejavam dela. Para se relacionar com o mundo, era preciso apenas deixar que as coisas passassem por seu corpo, furando-o como se fosse terra virgem, plantando uma semente podre, vertendo lágrimas de alegria e de dor em seus cabelos, que eram longos não para esconder o rosto infantil mas para secar os olhos masculinos que só tinham coragem de chorar na intimidade de uma cama. Maria sabia que a sua era uma carne boa, pronta para ser amada, e que enquanto restasse algum sinal desta carne sobre seus ossos não haveria outra maneira de perceber o mundo. Não seria diferente na Cecília. Aqueles homens barbudos e de roupas remendadas não faziam parte da cidade, era uma outra realidade, ela não a

entendia bem, mas eles tinham as mesmas urgências. Enquanto ela ficou sentada sob uma das palmeiras, no alto da pequena colina, Lorenzo, que não fora queimar a mata, carregou o colchão tão carinhosamente preparado. Ela estava quebrando coquinhos secos com duas pedras e comendo a pequena amêndoa que eles guardavam quando ouviu um barulho na porta da casa. Fitou Lorenzo com olhos sonhadores, sabiá preso em gaiola olhando goiaba madura na árvore. Eram olhos meigos e ao mesmo tempo violentos, ela sabia exatamente as imagens que passavam naqueles olhos. Terminou de comer o último coquinho e foi para a casa, o colchão no meio do quarto dos solteiros, sobre as tábuas sujas do assoalho, não sei se fica bom aqui, ele disse. Maria não disse nada, ergueu o vestido pelo pescoço, revelando o corpo branco, deitou-se no colchão e retirou as peças de baixo, jogando-as em uma das camas. Lorenzo estava com sua roupa de trabalho, botinas estropiadas e chapéu comido pela chuva e pelo sol, parece um espantalho, ela pensou, e ficou se lembrando dos espantalhos na horta do quintal de sua casa, e nem reparou quando ele, também nu, desceu ao colchão e segurou seu rosto, não era um homem que estava ali, era o varal da carroça que se encaixava nos arreios, uma operação simples e bela. — Você gostou? — Lorenzo quis saber. Ela apenas sorriu com sua cara de menina e os dentes que começavam a cariar. Sorriu com sinceridade. Tinha gostado. Sempre gostava. Era assim que ela se sentia parte da realidade, esta realidade que podia ser tantas coisas, mas que para ela era sempre aquele frêmito de corpos, aquele suar sem fim, os gemidos, a exaustão. Estava satisfeita. Sofrera com a morte da mãe, mas se esta ainda fosse viva Maria não teria coragem de ser quem era, teria que se fingir outra pessoa, e isso a deixaria descontente. Em alguns momentos, achava que a mãe morrera daquela doença misteriosa apenas para deixar que a filha se encontrasse, tinha lido sua predestinação em seus olhos profundos, circundados por olheiras, descobrindo que eles nunca brilhariam em sua luz obscena enquanto ela fosse viva, então se retirou. O pai e o irmão não sentiram sua falta, tinham os cachorros, gatos e peixes, e a filha pôde enfim se entregar a todos e experimentar não o gozo da carne, tão curto, mas outro que vinha de uma região qualquer dela, da memória de sua mãe, ela pensava, e não sabia muito bem explicar isso para si mesma. — Você não me disse se gostou. — Eu sempre gosto — ela falou, beijando a boca de Lorenzo e deixando

em sua língua um gosto azedo, mistura da fermentação das cáries e dos restos de amêndoa de coquinho, imaginou Lorenzo, mas era apenas o gosto de satisfação. Sujos de cinza, as roupas enegrecidas em vários pontos, a pele cheia de fuligem, os homens da Colônia voltaram um pouco antes do fim do dia, procurando Maria. Lorenzo não disse nada, estava remendando uma camisa, sentia agora a necessidade de estar bem-vestido. — A donzela foi tomar banho na cascata — informou Cattina. — A água ainda deve estar muito fria — falou Achille. — Aquele caldeirão — ela disse apontando o fogão — está cheio de água morna. — Mas não dá para todos — concluiu Giacomo, que foi para sua casa e pegou um pedaço de sabão e uma toalha, passando em frente à casa dos Dondelli, a caminho da cascata, inocente como um menino. — Cuidado para não se afogar — disse, em tom de brincadeira, Evangelista. — Nessa água eu sei nadar — respondeu o outro, sem nem olhar os amigos. Quando voltou, no comecinho da noite, abraçado com Maria, tinha os cabelos escorridos na testa, a barba murcha e os pêlos colados no braço. Maria não molhara o cabelo. Medo de uma gripe, explicou. Mas seu vestido, seco, tinha manchas de umidade em volta dos seios, sinal de que Giacomo tinha continuado com seus carinhos na volta para casa. Entraram na cozinha na hora em que estava sendo servido o jantar, uma sopa de galinha. Lorenzo havia matado uma das galinhas à tarde, dizendo que seria bom para repor a energia de quem tinha trabalhado na queimada, para prevenir um resfriado, e Cattina, contra a sua vontade, fizera o caldo, economizando sal; mesmo assim a sopa ficou boa, e os anarquistas comeram molhando no prato o pão preto. Maria repetiu a sopa, dizendo que, para ela, que perdera o bebê — sempre falava nele como o bebê, e ninguém sabia se era menino ou menina —, para ela, aquele caldo faria bem e que também prepararia sopas para Cattina quando ela tivesse o filho. Olhando as manchas de leite na altura do seio de Maria, Cattina resmungou que não precisava que cozinhassem sua comida e nem gostava muito de galinha, prato para gente mimada, e se Maria queria fazer alguma

coisa boa para todos, era melhor manter o respeito. — Não por nossa causa, somos gente livre, mas pela memória de seu filho morto. — A memória só entristece a gente. — Maria tem razão — falou Rossi. — Nossa liberdade tem que ser conquistada até mesmo contra a memória, contra a gratidão e contra o amor. Tomando sua sopa, Maria não fez nenhum comentário, e mesmo depois, quando os solteiros começaram a decidir onde ficaria o colchão da moça, ela não opinou. — Acho que devemos construir uma casinha para ela, algo pequeno e confortável, aproveitando as madeiras que estamos tirando da mata. — Giacomo era o mais entusiasmado. — Poderíamos até forrar. — A adesão de Evangelista deixou Cattina mais irritada. — Homem é mesmo bicho besta, não pode ver uma saia. Estamos precisando é de sementes, vaca de leite, bois, cavalos, móveis. E vocês pensando em casa para essa moça. Deixando toda a louça na mesa, Cattina foi ao quarto, acendeu uma vela e começou a mexer numas roupinhas de criança, enxovalzinho pobre, de poucas peças, todas de má qualidade. Os que ficaram na cozinha riram baixinho, e até Achille participou da discussão sobre o melhor lugar para Maria. Por enquanto, deveria dormir no quarto do Rossi, que passaria o colchão para o dos solteiros, pois liberdade não quer dizer promiscuidade, assim como anarquismo não é desordem. Dos solteiros, só Evangelista ainda não tinha conhecido Maria, mas naquela noite, depois de jogar o colchão de casal no quarto de Rossi, Evangelista foi direto ao outro cômodo, passando a noite com Maria e deslumbrando-se com a brancura fosforescente de seu corpo. Houve pouco trabalho naquela semana, todos ficando mais tempo em volta das casas, inventando serviços que não tinham urgência, Lorenzo lembrou que estava faltando um canteiro de flores e andou pelas colônias vizinhas e pelas matas coletando mudas, afofou a terra, adubou com muito esterco, aguando as plantas todas as tardes. Rossi escrevia suas cartas, lia os livros e ficava olhando o céu, ouvindo o canto dos pássaros, ia até a cascata e limpava com muito mais freqüência do que antes as lentes de seus óculos.

Maria Malacarne tinha alterado a rotina da Colônia, que quase não era mais agrícola. Só faziam os serviços urgentes, para não ter prejuízo. A comida comprada por Rossi ia diminuindo, eles colhiam algumas coisas, comiam uma ou outra galinha que era para ser vendida e mataram um porco imenso, alegando que ele estava com uma perna quebrada. Giacomo batera com o cabo do machado na perna traseira do bicho, à noite, quando todos dormiam, e no outro dia inventaram de sangrar o animal, Rossi aprovou, estavam precisando de diversão, e encomendou da colônia francesa três garrafões de vinho, o melhor produzido na região, embora, por falta de dinheiro e medo de brigas, eles evitassem bebida na Cecília. O vinho e a carne vermelha em abundância, tudo preparado sem a ajuda de Cattina, que alegara cansaço por causa da gravidez, deram outro alento aos homens, que ficaram comendo e bebendo um sábado inteiro, continuaram pela noite, cantando canções que terminavam com a repetição do hino da Colônia e com vivas à revolução, que viraram logo vivas à mulher livre e depois vivas a Maria Malacarne. Naquela noite, todos dormiram no alojamento dos solteiros, e Maria passou a noite com Achille, que tinha se aproximado dela durante a festa, dizendo que o único sem amor era ele. — Só porque você quer — Maria falou. — Mas Cattina agora me evita. — E quem está falando em Cattina? Achille riu, bebeu mais uma caneca de vinho e não deixou de ficar ao lado da moça, indo com ela para o quarto quando os outros permaneceram nas brincadeiras, alegres como nunca antes tinham estado. Rossi notara que Maria aumentara a irmandade dos homens, não eram apenas irmãos nas idéias, mas também no corpo de uma mulher. Ficou pensando que logo nasceria daquele corpo o primeiro filho da comunidade, sem paternidade definida, um legítimo filho do amor livre, e dormiu em paz, sonhando com o destino de sua Colônia. No outro dia, quando o efeito da bebida passou, Achille Dondelli não sabia o que estava fazendo ao lado de Maria. Olhou para ela, sentiu a cabeça doer, queria sair para beber água, mas aquele corpo o prendia. Cattina devia estar muito braba. Ele inventaria que, por causa da bebedeira, não dormira em casa, passara a noite com os solteiros no alojamento, alguém testemunharia. Depois de fazer estes planos, ficou mais calmo e se encostou de novo em Maria, mas ela dormia, esquecida de tudo,

do lugar onde estava, da pessoa com quem passara a noite, apenas sonhava, e sonhava com a mãe trabalhando no quarto de costura, cosendo um vestido de pano florido; Maria experimentava a roupa, alegre, ouvindo os conselhos da mãe, devia sempre ter um homem a seu lado, e a menina perguntava: e se quisesse ter mais de um? A mãe a olhava com carinho, seria uma escolha dela. O sonho foi interrompido pela entrada de Cattina, que passou da cozinha para o quarto, abrindo a cortina e tirando o lençol que cobria o marido e a moça. — Está te faltando alguma coisa em casa? — Foi a bebida, Cattina, eu juro — ele falou, acordando assustado. Maria se levantou, pegou a roupa pendurada em um prego, vestiu-se e disse que iria caminhar um pouco, tinha sonhado com a mãe. — Antes fosse com o diabo — falou a mulher. Sem dar importância à ira de Cattina, a moça saiu descalça, descendo para a cascata. — Nem colocou a roupa de baixo, a desavergonhada. Vestindo-se, Achille ficou só com a mulher, os outros estavam tomando café. A mulher quis saber de novo o que faltava, ele disse você sabe muito bem, não preciso ficar falando, acha que a vida de um homem é só trabalho, só comer e dormir? — Não podia esperar mais umas semanas? — Quantas já estou esperando? — Você está é apaixonado, a gente vê isso nos seus olhos. — Não, só me dei o que um homem merece. Um homem que trabalha. — Um corpo de vagabunda. — De mulher livre. — Então foi para isso que viemos para cá, para mudar o nome das coisas? Isso virou liberdade, tem o mesmo valor, é agora uma palavra nobre? Apenas com a calça, mas sem afivelar a cinta, Achille ouvia tudo em pé, a boca ainda seca por causa da bebida, uma leve tontura, a mulher crescera diante dele, era a mãe brigando com o filho, pronta para o perdão. Esperava as palavras certas, que ela julgava merecer, não as que usara com Maria (“seu corpo parece quase desaparecer entre meus braços, de tão fino, seus seios de menina cabem em minha boca”, e outros elogios que ele tinha dito na hora da febre). Cattina queria as palavras que só poderiam ser usadas para ela.

— Você sabe que te amo, Cattina, te amo muito. Ele tinha reconquistado a mulher, bastava ver sua irritação afetada. — Vista-se de uma vez, seu imprestável. E foi saindo, deixando o marido com a dor de cabeça, a roupa amarrotada, o remorso e também a memória daquele corpo que nunca se apagava. Posso viver mais cem anos que não esquecerei teu corpo, Maria — ele murmurou enquanto calçava a botina. Na mesa do café, encontrou o sorriso de Lorenzo, mas não falou nada, pegou duas fatias de pão e colocou entre elas uns nacos de carne de porco, sobras da festa. O café estava ralo de novo, mas não iria comentar isto, qualquer coisa podia ser motivo para Cattina ofendê-lo na frente dos demais. Achille ficara na dúvida se o café era ralo por provocação da mulher ou se os mantimentos estavam escasseando novamente. — Temos que fazer a cerca em volta da roça nova. Para não parecer acuado, começou falando sobre assunto sem perigo, uma obrigação coletiva, a cerca para proteger a plantação do gado que pastava solto por toda a região, estragando as roças. — Antes, temos que resolver um problema — falou Rossi, que também sentia dor de cabeça, mas a dele vinha na forma de pontadas nas têmporas. — Se for o meu problema, já acertei tudo com Cattina. Lorenzo se mexeu no banco e começou a provocar o marido pródigo. — Quer dizer que você pode dormir com a mulher dos outros, mas proíbe que a gente chegue perto da sua? — Não comece tudo de novo — pediu Giacomo, com voz conciliadora. — Maria não é mulher de ninguém, é de todo mundo. — Achille não queria parecer um perdedor. — Mas se você reconhece nela o direito de dormir com todos os homens, até com os casados, por que não dá o mesmo direito para sua mulher? — Não quero mais ouvir essa conversa — interrompeu Cattina —, só me digam se aceitam minha proposta. Como ninguém tivesse dito a Achille que proposta era essa, ele teve que perguntar. — Se Maria não for embora hoje, Cattina, Evangelista e você vão deixar a colônia — explicou Giacomo. Ele nem olhou para a mulher, disse que ela estava certa, tinha que pensar na criança. Rossi levantou-se.

— Família, sempre a família. — Fala assim porque não é a sua — revidou Achille, mas Rossi já estava saindo, para comunicar a decisão à moça. Nem precisou. Assim que Maria voltou do passeio, preparou sua trouxinha com alguma roupa a mais do que no dia de sua chegada, e algumas notas miúdas, presentes dos anarquistas, e já estava saindo. Rossi então lhe disse, com os dentes fechados. — Maria. — Maria Malacarne. — Ela riu. — Tem para onde ir? — Todo mundo sempre tem para onde ir, não é verdade? Eu tenho a sorte de ter para onde voltar. — Não deu tempo de te ensinar nada sobre o anarquismo. Nossas aulas nem chegaram a começar. — Vocês tinham tarefas mais urgentes. Ela saiu distraída, sem olhar para a porta onde o grupo estava reunido. Por um instante, observando seu jeito meigo, Rossi a viu como uma menina caminhando numa tarde de domingo.

Porto de Paranaguá, 23 de outubro de 1890 Caríssimo Dr. José Franco Grillo Antes de minha partida, enquanto aguardo o paquete Porto Alegre, que me levará ao Rio de Janeiro, escrevo esta carta para fazer breve relato dos últimos acontecimentos que ocorreram neste curto espaço de tempo. A caminho de Curitiba, fizemos parada em São Luiz do Purunã, nesta hospedaria com o belo nome de Casa da Estrela, onde, como da primeira vez, fomos muito bem servidos, num jantar farto e de bom preço. Melhor do que reencontrar o conforto deste albergue, que talvez seja tão aconchegante pelo desgaste sofrido neste caminho em que sacolejamos no compasso dos buracos, e ainda por cima nestas duras diligências, pois melhor do que este conforto foi, desta vez, o encontro que o destino nos proporcionou. Passavam a noite lá, amolecidos pelos sofrimentos de tais estradas, e propensos a entender melhor o esforço dos imigrantes, o presidente do Paraná, coronel Serzedelo Correia, o senador Ubaldino do Amaral e o Dr. Vicente Machado, este admirável diretor do jornal A República. Sofrendo, como os demais, o aperto no peito comum nestas solidões, passamos boa parte da noite em palestra animada, eles me perguntando todos os detalhes sobre nossa Colônia. São homens instruídos, com grande liberalidade de pensamento, e estavam informados não só de nossa experiência, mas também das idéias socialistas que florescem em toda a Europa. Depois que lhes dei mais notícias sobre os planos de ampliação do número de anarquistas na Colônia, e que minha viagem ao velho mundo tinha o objetivo de promover a vinda de mais gente, o governador disse que os colonos socialistas, do ponto de vista da economia, são tão necessários quanto os demais, mas que superam os outros por introduzirem técnicas e idéias civilizadas, indispensáveis para o crescimento da jovem província. Ainda me disse que no Paraná não faltam terrenos, que podem ser ocupados por qualquer tipo de trabalhador. “Há muitas terras, Dr. Rossi,

para que seus amigos anarquistas testem seus princípios.” Eu, aproveitando a camaradagem do presidente, lembrei-lhe que terras havia em abundância, e não poucos eram os incentivos, mas que mesmo assim era difícil a manutenção de uma Colônia que não tinha como objetivo principal o lucro, o que estava trazendo complicações de sobrevivência neste primeiro momento, em que não havia ainda um número suficiente de trabalhadores para tirar daquela terra fértil tudo que ela podia dar. O presidente gostou de minhas palavras, elogiou muito os anarquistas, dizendo que éramos uma força social sem culto religioso e poderíamos ajudar na melhoria da instrução da província. Para mostrar com um gesto o quanto ele apreciava os anarquistas, iria autorizar a Inspetoria de Terras e Colonização a dar um subsídio complementar, “para ajudar o senhor a trazer seus companheiros para nossa terra”, disse. Depois de uma despedida respeitosa, na manhã seguinte ele ia em direção inversa, cheguei a Curitiba, procurei o inspetor, a quem levei autorização do coronel Serzedelo. Pude retirar cinco mil-réis, estando, por meio deste portador, enviando dois mil e seiscentos para que o amigo entregue aos companheiros que ficaram na Colônia. É mais uma prova material da hospitalidade deste estado, em que o governo não teme aqueles que são tidos em seu país natal como perigosíssimos criminosos. Aqui não há o medo de perder a propriedade, pois vastos são os campos sem dono, necessitando justamente de quem os revolucione, ocupando-os e tornando-os produtivos. Que país esplêndido é este! Vou, de minha parte, divulgar nos jornais da Itália, onde a colonização brasileira sofre todo tipo de difamação, estas provas de generosidade do governo do Paraná. Tenho certeza de que irão causar excelente impressão, encorajando a vinda de italianos, e não apenas de anarquistas, mas de todo tipo de trabalhador, porque aqui, mesmo antes da vitória do socialismo, é possível viver longe da opressão dos patrões. É neste exaltado estado de ânimo que embarco para a Itália, não mais como um italiano regressando à pátria, mas como um propagandista desta nova e maravilhosa terra. O navio só sairá amanhã, mas já sonho com o dia em que estarei de volta a este porto, para retomar, em condições melhores, a vida em nossa Colônia. Receba o abraço fraterno do Dr. Giovanni Rossi

Se uma peça sai fora do lugar, todo o mecanismo tem que trabalhar forçado, até se deteriorar. Rossi pensava nisso quando, naqueles dias depois da saída de Maria, observava Lorenzo cada vez mais inativo, passando tardes inteiras com a espingarda pelas matas, na companhia de Russo, o velho cão de caça, sob o pretexto de arranjar comida, mas sem trazer nada, nem um passarinho morto, sequer se ouviam disparos nas redondezas. Outras vezes, ele se afastava com uma vara de pescar e voltava só de noite, nenhum peixe no embornal, Russo descansado, sinal de que os dois estiveram dormindo sob alguma árvore. Talvez como protesto, ou mesmo para criar uma distância em relação a seu inimigo, Achille trabalhava mais do que todos, e isso também era ruim, as relações estavam perdendo seu precário equilíbrio. Giacomo começou a ir à cidade toda semana, passava dois dias e uma noite fora, voltando sempre com um olhar perdido, cada vez mais quieto em suas atividades, comendo pouco, falando nas parreiras, quando dariam a primeira carga? Não agüentava viver sem vinho, tudo tão monótono nesta terra. O ideal que unia os pioneiros estava se esboroando, e eles precisavam arranjar alguma coisa que os unisse de novo. Rossi sabia que não poderia ser outra meretriz, mas uma mulher, uma mulher que pertencesse ao anarquismo, a sua entrega não sendo só sensualidade, como em Malacarne, e sim prioritariamente princípio, luta pelos direitos femininos, ato político consciente, caso contrário acabaria em mera confusão de sentidos, em perturbação dos instintos masculinos, quando o amor deveria ser arma usada contra o poder e não distúrbio de glândulas, que os levaria de volta à promiscuidade primitiva. Foi Evangelista Benedetti, ponte entre os dois grupos que se formaram na Colônia, o do casal e o dos solteiros, divididos em duas casas, freqüentadas com o mesmo direito apenas por Evangelista, que lembrou do

velho projeto de construir a cozinha, um espaço comunitário amplo para abrigar novos imigrantes. — Que, pela demora, nunca virão — disse Lorenzo. — Virão, sim. Irei buscá-los. Rossi já estava com a viagem marcada, tinha que deixar a comunidade unida, e a construção da cozinha era a oportunidade. — Onde arranjaremos dinheiro? Não há nem 200 réis na caixa social. — Faremos novo empréstimo com o Dr. Grillo — disse Rossi. — Amanhã irei a Palmeira. O que ele não disse, embora tenha pensado na hora, é que a ida à cidade seria uma desculpa para rever Maria. No dia seguinte, logo depois do almoço, bateu na porta do casarão de várias janelas, entrou como um velho conhecido, “o senhor, por aqui, doutor?”, esperou uns minutos para se encontrar com Maria, que, cara de sono, estava saindo de seu quarto, o rosto amarrotado, cabelos desfeitos, mas a mesma feição infantil, que não se desfazia nem naquele lugar escuro. — O senhor também?! Rossi teve confirmada a suspeita sobre as fugas de Giacomo. Riu e se aproximou de Maria. — Quero dormir mais um pouco, venha — ela disse. Como ele continuasse parado e quieto, ela insistiu: — Deita só um pouquinho comigo, depois você pode ir embora, desde que não me acorde. Quando ele saiu do casarão, sem se preocupar com os comentários da vizinhança, tomou o rumo da casa do Dr. Grillo, mas teve que esperar até o começo da noite, quando o médico chegou, convidando-o para jantar. Depois, enquanto tomavam um vinho licoroso, conversaram sobre os amores na Cecília. — Vocês estão fadados à solidão — disse o Dr. Grillo. — Nosso desejo é atrair mulheres. — Tarefa difícil e demorada, meu caro. — Mas possível, desde que haja sacrifício pessoal. Rossi narrou então os planos de construção de uma cozinha coletiva, falando da falta de dinheiro, temporária, pois pretendia obter fundos em sua peregrinação pela velha pátria. Grillo acendeu um charuto, enquanto o visitante guardava no bolso do paletó o que ganhara do médico, era muita coisa para uma noite só: jantar farto e variado, licor, sofá estofado e cama

macia num quarto com forro. O charuto ficaria para uma de suas noites na Colônia, quando quisesse ler seus livros e tivesse que espantar pernilongos. Seria então um prazer e algo útil. Soltando a primeira baforada, que quase fez com que Rossi também acendesse o seu, o Dr. Grillo ficou olhando para a parede. — Tudo que você fizer para manter o grupo unido será bom — ele disse. — Uma cozinha ampla. — Façam já com assoalho, para não espantar os novos colonos. — É o que eu estava pensando. Na manhã seguinte, Rossi partiu com crédito na madeireira, que seria paga com a extração das árvores da Colônia, e uma autorização de gastos no armazém, para as miudezas necessárias. Trabalharam unidos nesta nova empreitada, com a ajuda dos vizinhos, principalmente desta gente prestativa, os Schühli, que passavam as horas de folga na obra. Assim como nas outras duas construções, a cobertura seria de tabuinha, e o preparo deste material coube a Lorenzo, por escolha dele. Cortava troncos de pinheiro em pedaços de 30 cm de comprimento e os rachava com uma cunha de ferro bem afiada, tirando lascas do mesmo tamanho. Enquanto preparava as tabuinhas, empilhadas ao lado da construção, toda tarde trazia uma grande quantidade delas, os outros iam erguendo os pés direitos, colocando as travas para o telhado, depois preenchendo os espaços com tábuas que chegaram da cidade nos carroções dos russos. Quando precisavam de algum material, como pregos, era Giacomo quem ia buscar, passando a noite em Palmeira. Rossi notava o desaparecimento de algumas notas miúdas da caixa social, nada, no entanto, que pudesse comprometer mais do que estava comprometido o futuro da Colônia. Pregar as tabuinhas e as mata-juntas era a última tarefa, e todos se dedicavam a ela com o prazer de quem vê surgir algo de suas mãos. Foi o momento em que Cattina, já de oito meses, pôde ajudar um pouco; ela ficava sentada num banquinho, martelo na mão, pregando a parte de baixo das mata-juntas, enquanto o marido ia fixando a parte de cima. Nesta fase, Evangelista deixou os últimos arremates para os demais e começou a fazer, sozinho, uma mesa e dois bancos imensos. O fogão com chapa de várias bocas já fora construído, obra de um dos Schühli, tornando-se, desde o início, o orgulho de Cattina. No final da obra, satisfeitos com a nova cozinha, que tinha o formato de

um vagão de trem, comprida e estreita, com várias janelinhas e com porta de entrada em uma das extremidades, eles se reuniram em torno da mesa. O peso de Cattina fez a tábua do banco ceder um pouco, produzindo um barulho de madeira torcida, o que foi motivo para que todos rissem, rissem muito além da graça do pequeno episódio. Achille propôs matar um porco para comemorar o fim da construção, a cozinha deveria ser inaugurada com fartura. — Nada de porco — falou Cattina. Todos ficaram em silêncio, temerosos de que a sombra de Maria Malacarne entrasse na cozinha nova, espalhando a discórdia. Giacomo tinha vindo de Palmeira com o odor dela, e, com quase um mês de jejum, Evangelista e Lorenzo podiam fazer a moça surgir ali a partir desta vaga fragrância de sexo. Cattina arrematou o assunto. — Vamos fazer uma polenta com galinha. E todos concordaram, mas tinham o pensamento na carne de porco, a mais saborosa de todas, tão saborosa que fora proibida nos textos bíblicos. A conversa voltou ao normal, e eles ficaram planejando os preparativos. — Vamos convidar os vizinhos. — Não — respondeu Cattina, receosa da vinda de alguma moça. — Por que não? — quis saber Rossi. — Esta festa será apenas nossa. E houve, novamente, silêncio. No dia seguinte, passou pela Colônia um mascate com várias bugigangas em um baú, amarrado em sua mula de forma a ser aberto, para a exposição dos produtos, sem que o vendedor precisasse descer do cavalo. Todos se aproximaram, mais por curiosidade ou simples desejo de conversar, pois não tinham condições de comprar nem mesmo um pente para Cattina ou algo para a criança que iria nascer. Do outro lado do animal, em um cesto de bambu, também amarrado na sela, havia uma ninhada de cachorros, que começaram a soltar latidos fininhos assim que os anarquistas se aproximaram. E logo todos estavam em volta do cesto, olhando os cachorrinhos. — Estes também são para vender — disse o mascate, aproveitando o entusiasmo dos italianos. — Já temos o Russo — falou Cattina. Ao ouvir o seu nome, o velho cão, que estava a pouca distância,

abanando o rabo, soltou dois latidos roucos e baixos. Sem dar ouvidos nem a Cattina nem ao alerta de Russo, o mascate desceu os cachorrinhos, e um deles já saiu rosnando e avançou na barra da calça de Rossi. Por mais que o italiano agitasse o pé, não conseguia afastar o animal. — Ele gosta de anarquista — disse o mascate, que devia ter sido informado sobre a Colônia por algum vizinho. — Animal inteligente — brincou Rossi. — A gente deve deixar que o animal escolha o dono. — O mascate queria mesmo vender o cão, e Rossi ficou com medo de perguntar o preço. Mas o homem, diante do olhar desconfiado do italiano, anunciou. — O senhor pode ficar com ele por três réis. A caixa social estava quase vazia, mas Rossi, mesmo enfrentando a reprovação de Cattina, pediu-lhe que buscasse o dinheiro lá dentro, e quando ela voltou, entregando as notas sem olhar para o mascate, pensando que daria para comprar algo para seu filho, viu que o cachorro continuava rosnando. O mascate ficou ao lado do baú aberto, mas agora a atenção era toda para o animalzinho barulhento, ele já tinha feito o seu negócio, um negócio pequeno, pensou, mas se livrara de um dos animais. Recolheu os demais, subiu na mula e se despediu. — Agora ninguém rouba os anarquistas — e soltou uma gargalhada. O cão era tão pequeno que mesmo se crescesse muito ficaria minúsculo. O mascate se afastou em sua mula de trote duro, o que fazia com que os badulaques dentro do baú produzissem um barulho de pequenos sinos. Cattina estava pensando no que gostaria de comprar para seu bebê, mas o marido também se encantara com o cão. — Que nome vamos dar a ele? — Vai se chamar Chignento — falou Rossi, abaixando-se para pegar o mais novo anarquista. — Viva a anarquia — gritou Evangelista. Pelo grito e por não reconhecer o direito daquela mão que tentava segurá-lo, Chignento firmou seus dentinhos contra os dedos de Rossi. — Maldito traidor — ele gritou, soltando o animal, que saiu correndo em direção à cozinha recém-construída, que acabou sendo seu paradeiro predileto. Quando alguém não tinha nada para fazer e resolvia ir ao pomar pegar umas laranjas, Chignento seguia atrás, divertindo-se. Não gostava das

excursões pelo mato, e Russo continuou a fazê-las sozinho, perseguindo, meio cego, mais as sombras no chão do que os próprios pássaros. Todos se divertiam com o cãozinho, até Cattina aprendeu a gostar dele, comentando, na primeira noite, quando ele latia debaixo da mesa. — Mais um maldito macho para esta Colônia. Ninguém disse nada, mas todos estavam alegres com o animal, que, diferentemente do velho Russo, não tinha outra serventia a não ser a de alegrar a vida daquela gente. Não preenchia os vazios, eles sabiam disso, mas dava aos homens alguns momentos de alegria ingênua, correndo de um canto para outro, avançando numa borboleta, dormindo preguiçosamente, como um gato, sobre as lenhas do fogão e ficando violento, de uma violência inofensiva, quando irritado por algum falador. Todos conversavam com Chignento, ensinando-lhe, por pura brincadeira, os princípios do anarquismo. No dia da inauguração da cozinha nova, havia vinho e também charque, cozido com feijão, além da galinha com polenta. Todos se fartaram com a comida e com a bebida, e Chignento ficou roendo os ossos de galinha, não deixando o velho Russo se aproximar. Tanto rosnou para o cachorro bonachão, que este resolveu deixar a cozinha e deitar sob uma árvore. — O maldito não tem aprendido as verdades socialistas — disse Evangelista. Lorenzo resolveu começar uma série de vivas. — À revolução! — Viva! — À Colônia Cecília. — Viva! — Ao Chignento. — Viva! Estavam rindo, quando Cattina disse: ao meu filho. Saiu um viva fraco, porque os homens ainda não tinham terminado de rir do cachorrinho que latira na hora em que eles gritaram vivas, divertindo-se com a confusão de vozes. Achille se deu conta de que em breve nasceria seu filho. Era apenas o filho, o bebê, mas em poucas semanas, Cattina estava cada dia mais gorda, ele teria um rosto, teria voz, ardida como o rosnado de Chignento, teria fome, dor de ouvido, alergia. E nome ele ainda não tinha. — Nós não pensamos ainda em um nome para ele — disse, olhando para

a barriga da mulher. Ninguém perguntou quem era ele, todos entenderam. — Um nome que seja simbólico — falou o tio. — É o primeiro a nascer na Colônia — completou Giacomo. — Será filho de um tempo de igualdades. Não nasceu ainda da família anarquista, mas no começo de um novo tempo — Rossi falou. — Pensei em Paolo — disse Achille. — Nada de nomes bíblicos — opôs-se Evangelista, ele próprio com um nome religioso, por isso tinha autoridade para refutar a proposta. — Nem sabemos se vai ser menino ou menina — falou a mãe. — Com nosso destino, vai ser mais um homem — era a primeira vez que Lorenzo falava algo. — Você está querendo dizer que se fosse menina vocês logo iam ter companhia? — Achille estava irritado. — Não disse isso, agora você entenda do jeito que quiser. Achille afastou o banco, achando que haveria briga, mas Lorenzo foi para a porta e entrou na escuridão, reclamando: — Esses valores burgueses. — Vocês viram que era uma provocação. — Ninguém provocou nada. — Rossi tinha uma voz cansada. — É cômodo combater a família dos outros. Quem aqui é favorável à morte do próprio pai? — Ter abandonado nossa pátria é a mesma coisa que matar o pai — afirmou Rossi. — Não. Não é a mesma coisa. — Claro que é. — É apenas simbólico. Não deixa a gente com a mão suja de sangue. — A mão da gente sempre está suja de sangue. Ou suja de merda. É enfrentar ou se acovardar. — Paolo é um belo nome. — Cattina queria encerrar a discussão. — Pelo menos simbolicamente, o filho de vocês deveria representar os valores da Colônia — insistiu Rossi. — Estou de acordo. — A adesão de Evangelista era importante. — Libero — falou Giacomo. — Isso, uma criança livre — o tio estava entusiasmado. — Não. O nome. — O que tem o nome?

— O primeiro nascido na Colônia Socialista Cecília recebe o nome de Libero. — Mas nem sabemos se é menino ou menina. — A mãe voltou ao mesmo argumento. — Daí seria Libera.— Evangelista concordava com a escolha. Não queria nome de santo ou a repetição de nomes familiares, e Libero era bonito e sonoro. — Seria uma referência ao amore libero — lembrou Rossi. Este último argumento fez com que os pais se levantassem. Achille concluiu a conversa. — Ainda temos muito tempo. Uma semana depois, como Cattina amanhecera mal, o marido não acompanhou o resto do grupo, para chamar, caso preciso, a parteira, que morava a uns três quilômetros. Assim que todos foram para o campo, arar a terra para o plantio de verão, ele buscou um vizinho que tinha uma carroça e levou a mulher à casa do Dr. Grillo. A criança nasceu no dia seguinte, sob os cuidados do médico e longe da Colônia. Era um menino corado, que chorou muito. — A cara de seu pai — comentou Cattina. E Achille foi no mesmo dia ao cartório de Palmeira e registrou o menino com o nome do avô: Giuseppe. — É apenas mais um imigrante — falou Rossi assim que Evangelista retornou de sua busca aos parentes, trazendo a novidade. — Por mim, seria Libero — ele falou. — Mas os pais fizeram questão de homenagear um antepassado. — Se nem na hora de dar nome eles conseguem ser revolucionários... Não se comentou mais o episódio, ninguém era obrigado a fazer nada contra a própria vontade, mas Rossi teve certeza de que o grupo dificilmente conseguiria chegar à prática do amor livre, única forma de levar adiante as idéias do socialismo; a família sanguínea era um entrave para a conquista da liberdade coletiva. Em sua viagem à Itália, ele pretendia convencer mulheres esclarecidas a virem para a Colônia, iniciando assim outro modelo de relacionamento. As semanas seguintes foram consumidas em vários preparativos para o plantio, Rossi trabalhava apenas pensando na viagem, o entusiasmo tinha voltado à sua temperatura normal, e todos faziam as tarefas sem falar muito.

Na casa, o choro do pequeno Giuseppe se misturava com os latidos de Chignento, Cattina reservando comida para o seu grupo e reduzindo a quantidade de alimento para os demais, sob o pretexto de economizar. A maternidade intensificara seus instintos de sobrevivência, e isso era triste, mas ninguém fez qualquer comentário, aceitando a pouca alimentação como mais um sacrifício em nome da colônia experimental. No dia de pegar a diligência para Curitiba, Rossi acordou cedo, a mala preparada, vestiu sua melhor roupa e, sem tomar café ou esperar pelos companheiros — não gostava de despedidas —, apressou-se para sair. Chignento veio lamber seus sapatos, ele se abaixou para fazer carinho no animal. — Até breve, amigo. Saía como um filho da Colônia, que se ausentava contra a vontade. Deu alguns passos, o cachorro o seguia, bateu o pé no chão, mas ele continuou, e continuaria por mais alguns metros, até desistir daquela brincadeira sem graça. Rossi olhou para trás, viu as casinhas banhadas pelo sol nascente e sentiu melancolia. Era pouco o que tinham feito, pouco no metro dos homens do campo, mas muito para seis pessoas que desconheciam tudo da vida prática numa colônia. Fixou o olhar nas palmeiras, estas árvores altivas que aprendera a amar. Eles estavam emagrecendo à sombra delas. Eram bonitas, imponentes, suas folhas exibiam um verde viçoso. A bainha fechada de uma das palmeiras, apontando para o alto, súbito se abriu, produzindo um barulho de fibras que se rompem e deixando pender um cacho amarelo, de coquinhos ainda minúsculos. Ele se assustou com o barulho e com o espetáculo nunca presenciado, e tomou aquilo como sinal de fartura.

Palmeira, 6 de janeiro de 1891 Meu caro Dr. Giovanni Rossi A demora desta carta foi proposital, eu queria ter boas notícias para enviar ao amigo, que deve estar ansioso por recebê-las. O dinheiro que você mandou, de Curitiba, deu novo ânimo a seus companheiros e tem permitido a continuidade das tarefas da Colônia. As plantações estão todas muito bonitas e sente-se o orgulho dos anarquistas, que ainda ontem eram empregados urbanos, vivendo a humilhação da miséria e da subordinação, e, passado um ano, são pessoas novas, agricultores de fato. Para se ter certeza disso, basta olhar as verdes roças da Cecília. O milho e o feijão já estão grandes, e tudo com um aspecto muito saudável — desculpe o adjetivo, mas lembre-se que quem escreve é um médico, deformado por sua profissão. O clima aqui corre magnífico, com água e sol na quantidade certa, e as plantas agradecem tingindo a paisagem com cores gordas. A colheita será, com certeza, abundante, o que significa um ano próspero. Assim, pode despachar muita gente daí, que teremos polenta de sobra. Não só polenta. A mandioca já foi plantada em uma boa área, e o trigo, que você deixou semeado, germinou muito bem, por causa da adubação correta, e logo os anarquistas poderão deixar o regime monótono, pois haverá pão branco, muito pão branco para todos. Gordas, e cada vez em maior número, as galinhas aumentam a quantidade diária de ovos. Com parte do dinheiro enviado, comprei, para os trabalhos agrícolas, dois bois de carro, que estão dando boa ajuda a nossos amigos. Mandei vir de Ponta Grossa, e devem chegar por estes dias, doze ovelhas e um carneiro reprodutor. Tudo isso mostra que a Colônia está sendo povoada. E não só por animais. Esta talvez seja a principal notícia que temos por aqui. Chegaram duas

famílias de trabalhadores. Entre grandes e pequenos, são treze novos habitantes, comandados por Artusi e Agottani, seus velhos companheiros da causa operária. Eles recordaram longamente a luta contra os proprietários agrícolas de Torricella, de quem guardam um ódio feroz, que não diminuiu nem com a distância e com as possibilidades de trabalho em nossa Palmeira. Uns são operários, mas a maioria é da agricultura, todos convencidos da urgência de acabar com os patrões, e darão novo ritmo ao trabalho e ao socialismo na Cecília. Como chegaram inesperadamente, enviei-os à Colônia para que se acomodassem como fosse possível. No momento, dormem na cozinha coletiva, mas já estão construindo um alojamento grande o suficiente para o dobro de pessoas. Por fim, é preciso louvar o trabalho de Evangelista e Achille, que, sozinhos e com grande determinação, construíram uma cerca forte para proteger as plantações dos animais. Seus companheiros têm trabalhado com a coragem e a abnegação dignas de homens livres. Receba a afeição do Dr. José Franco Grillo

O almoço estava sendo servido, novamente farto, quando Chignento começou a latir, despertando o rosnar rouco e lerdo do Russo; o animalzinho jovem era agora seu guia na vida da Colônia. Chignento correu para a estrada da propriedade e Achille foi atrás, depois de pegar a espingarda; podia ser algum animal selvagem, eles ainda não os encontraram em outro lugar a não ser nos relatos dos vizinhos, mas guardavam o medo adquirido na Itália, onde tanto e tão assustadoramente se falava dos monstros do novo mundo. Sobressaltado, seguiu o cãozinho e então viu um carroção com duas parelhas de cavalos cansados despontando no horizonte trançado de árvores. Chignento foi ao encontro deles e voltou escoltando o carroção. Logo desceu um homem de meia-idade, com uma autoridade silenciosa, apresentando-se como Zéfiro Artusi, revolucionário. Estava acompanhado e já foi entregando quatrocentos réis para a caixa social, enquanto a família pulava para o chão, tímida e desconfiada. Chignento ainda continuou latindo depois de cessado o movimento de descarga do carroção. Mesmo aumentado por Cattina, que tinha que atender o pequeno Giuseppe, também fazendo alarde, num choro ardido, por causa dos estranhos, o almoço foi insuficiente, os adultos tirando apenas colheradas avulsas dos pratos das crianças que comiam com os olhos afundados na sopa, sem encontrar receptividade nos anarquistas. Era como se pressentissem uma discussão que estava para acontecer, violenta, a qualquer momento. Cattina movimentava-se bruscamente pela cozinha, mesmo sem ter muito mais o que fazer, pois a comida já estava multiplicada, sem nenhum milagre, e dividida em pequenas porções. Foi Chignento que evitou o confronto. Achille preparava-se para censurar a vinda do grupo sem nenhum aviso, a Colônia era pobre, só agora estava começando a melhorar de situação, tudo com muito sacrifício, muito trabalho e nenhuma colheita significativa. E eles eram cinco adultos, apenas

três homens para o trabalho mais pesado, embora fossem treze bocas. Ele não via as pessoas, apenas as bocas mastigando o alimento, eram ratos, uma dúzia de ratos famintos, dava para perceber isso pela roupa, de um marrom sujo, de um cinza ensebado, como a pele dos roedores, ratos magros, que comeriam muito, muito mesmo, não haveria milho no paiol, não haveria nada que os saciasse, depois comeriam o que achassem pela frente, ia ser assim. Estava hipnotizado pelas bocas em movimento, algumas já meio banguelas, mas todas ressecadas e curtidas pela fome. Crianças comem mais, muito mais, do que adultos. Comem bastante, não deixam nada. Comeriam os rabanetes antes que eles atingissem o tamanho ideal para a colheita. Comeriam o milho assim que surgissem os pequenos grãos, ainda leitosos. Pensava nisso, não ouvindo os relatos feitos pelos recém-chegados, e as poucas perguntas resmungadas por Giacomo e Lorenzo; Achille nem tinha percebido que os dois não haviam comido quase nada, para que sobrasse aos novos habitantes da Cecília. — O jantar será mais farto — falou Giacomo. Agora Achille achara o pretexto para começar a falação, tinha pensado tanto nestes poucos minutos, vendo os ratinhos e seus pais, cheios de fúria roedora. Ia dizer tudo. Mas Chignento resolveu fazer festa com os sapatos de Andrea Giuseppe, filho de Tranquilo Agottani, que os descalçara, deixando-os sob a mesa. Chignento atirou-se sobre um dos sapatos, avançando violentamente sobre ele, pegando e largando, como se fosse um bicho, ele tinha mesmo o aspecto estropiado de um rato semimorto, e depois de umas poucas investidas, que fez com que muitos rissem, saiu pelo campo com o rato entre os dentes, em uma urgência que somente os heróis têm. Sua maneira de correr, a parte de trás meio torta, por causa do peso da caça, foi mais um motivo de riso, e logo todas as crianças estavam seguindo o cão, que só parou debaixo das árvores do velho pomar plantado pelos russos, primeiros proprietários daquelas terras. Quando os adultos saíram, minutos depois, em busca dos filhos, acompanhados pelos anfitriões, encontraram as crianças batendo nas laranjeiras com varas de bambu. — Tem bastante laranja aqui — disse Aldino, filho mais velho de Tranquilo, segurando uma laranja madura com suas mãos sujas. Tranquilo tirou do bolso o canivete para descascar a laranja, e em um instante havia outras, e ele foi descascando, primeiro para as crianças e depois para os adultos. Revelava grande habilidade no uso do canivete, as

tiras de casca saíam inteiras, em espirais perfeitas. As crianças as catavam do chão e ficavam girando, girando, giran... até que elas se arrebentassem. Ganhava aquele cuja tira agüentasse mais tempo inteira. Sentados ou agachados, os primeiros anarquistas e os novos só agora faziam realmente sua refeição. Chignento ficara ao lado de Tranquilo, acompanhando o movimento do canivete. Assim que o lavrador terminou seu trabalho, sentando-se com as costas apoiadas contra um tronco, o cachorro subiu em seu colo e ficou lambendo aqueles dedos molhados de suco e sumo. Eram dedos ásperos, percebeu Chignento. Nas semanas que se seguiram, Evangelista e Achille trabalharam sozinhos na cerca, aquilo lhes custava muita energia, não estavam acostumados com palanques, cortadeiras e arames, mas a barreira para o gado alheio ia sendo erguida, mais lenta do que se feita pelos agricultores — a chegada destes e a ausência do conciliador Rossi tinham criado uma nova necessidade, a do comando, que vinha sendo praticada naturalmente por Achille, com a autoridade da anterioridade, apesar dos protestos de Lorenzo, cada vez mais ausente das atividades coletivas. — Até o voto do pequeno Giuseppe ele vai querer para si — Lorenzo falou para Giacomo, quando o primeiro grupo decidiu, por votação, durante o jantar, que os cunhados cuidariam da cerca enquanto os demais, e havia um desprezo no tom de voz do chefe da Cecília, ficariam responsáveis pela lavoura e pelos animais. Giacomo levantava cedo e ia limpar a horta, trabalhando com prazer, embora o crescimento das ervas daninhas fosse quase mágico; em poucos dias estavam imensas, e ele se sentia fazendo um serviço de Sísifo, semanas depois tudo voltava ao que era, o sol sempre forte e as chuvas de verão despertavam o instinto de crescimento daquelas plantas, deixando no ar um cheiro doce de terra. Quando passava a enxada pelo solo, produzindo o barulho de pequenos tendões sendo cortados, vinha o perfume de terra, perfume primitivo que dava a Giacomo uma alegria estranha. Aquilo era terra, apenas terra, mas havia algo que o atraía, que o deixava com água na boca. Ele então puxava a enxada mais rápido, excitado, amando com gula aquele solo. Era dali que viriam os alimentos, a fartura, a igualdade, o futuro, as mulheres, o conforto, ele então imaginava a mandioca cozida, comer pedaços macios, com açúcar ou com sal, uma mandioca que só seria

arrancada meses depois. Imaginava também o feijão com charque, o caldo grosso, cheiroso, a gordura cobrindo a panela como nata. O feijão ainda não existia, mas o futuro era tão perto, tão imediato e tão real que Giacomo sentia o sabor do feijão no cheiro daquela terra. Depois de uma chuva, quando tudo deixava odor intenso, atrapalhando seus sentidos, sozinho nesta luta contra o poder multiplicador das ervas daninhas, ele começou a chorar. Não sabia por qual motivo estava chorando, não tinha com quem falar, estava ali apenas com a terra, era ela que o compreendia, pois passavam juntos a maior parte da semana, a terra era tudo, o corpo de Maria, a mandioca, a polenta, a laranja de todas as refeições, era o feijão e também a carne de caça, pois os animais se alimentavam do que vinha daquele chão. Ele só tinha a terra, e não era uma terra gorda, e sim magra, tão magra quanto ele, mas não era doente, era uma terra saudável, podia resistir a muitas secas e muitas geadas, nunca deixaria de ser produtiva; para isso, no entanto, alguém precisava adubá-la, logo ela estaria cansada, não por culpa dele, nem dos demais anarquistas, mas por causa deste desespero de existir das ervas daninhas, das árvores, era este verde violento que esgotava a terra. Terra. Terra. Terra. Comida. Mulher. Fruta. Capim. Roseiras. Couve, cujas folhas pareciam couro. Terra. Futuro. Carne. Leite. Terra. Tudo... Quando percebeu, estava ajoelhado no chão, olhos molhados, a boca cheia de terra. Tinha sabor de mandioca com açúcar, ele engoliu tudo, o gosto era bom, a consistência macia da mandioca. Queria a terra, as mãos cavavam de forma alucinada, ele pensava no corpo de Maria. Maria Boaterra. O corpo. O amor. O sonho. Mandioca. Laranja doce. Terra. A palavra tomava todos os espaços de sua imaginação. Tentava pensar em justiça. Terra. Em sexo. Terra. Em dinheiro. Terra. Quem tinha mexido na sua memória e trocado as palavras? Não lhe vinham outros termos, e isso era um tormento. Queria beijar os lábios de Maria, e ao beijá-los tocava com a boca a terra. Então aceitou sua onipresença. Era muito pequeno e estava fraco, como resistir a esta força? Sempre que saía para capinar a horta ou as roças, agachava-se e comia, animal diante do cocho, grandes quantidades deste alimento. Na cozinha, ele via apenas panelas cheias de lama, e já tinha comido tanta terra durante o dia que sentia enjôo diante dos pratos servidos por Cattina ou por outras mulheres. Por que cozinhar terra, se ela estava lá fora, pronta para ser comida?

Foi ganhando uma cor esbranquiçada; mesmo assim, saía todas as manhãs para a roça, levando apenas a moringa de água, pois a comida era farta. Bastava se agachar e comer. Em suas andanças, Lorenzo gostava de ficar horas pelas matas vendo o trabalho dos pássaros, nunca iria matá-los, observando um ou outro veado campeiro, que também não seria alvo de sua espingarda, ou olhando o céu. De vez em quando, apontava a espingarda e dava um tiro para cima, fazendo voar uma nuvem embaralhada de passarinhos, em trajetórias trançadas, e ficava admirando a precisão do vôo das aves, tão acostumadas com a vida em grupo que uma não atrapalhava a outra. Ele queria passear pelas matas sem interferir em nada, apenas um observador, não tinha raiva do mato que crescia nem dos bichos que causavam danos à plantação, como a capivara. O seu prazer era ver, os outros gostavam de fazer. Queriam mudar a natureza, domesticá-la, ele preferia a ferocidade das matas, não perderia tempo tentando amansar aquela terra, via nela o animal arredio, então apenas a percorria com os olhos de fotógrafo, gostaria de ter dinheiro para comprar equipamentos fotográficos, era a profissão que mais o encantava, e talvez, cogitou isso apenas naquela hora, só tivesse vindo com os demais para poder conhecer estas paisagens, estes espetáculos secretos da natureza, o anarquismo não precisava ser criado, já existia na selva, a civilização era o fim desta força incontrolável. Lorenzo andava por toda a região e via que os agricultores queriam dominar a terra, torná-la submissa, só ele desejava sua beleza bruta. Nunca seria agricultor, descobriu isso em suas caminhadas, era um contemplativo, acreditava na anarquia como força primitiva, não como sistema ou ideologia civilizadora. Coitado do Rossi, estava tão iludido, precisava ver melhor as matas, ler o que elas escreviam o tempo todo, era uma mensagem que não estava nos livros. A natureza fala uma única língua, mas os livros, sempre confusos, falam muitos idiomas, até os mortos, e isso é a prova de que nunca dizem a verdade. Apenas a natureza não mente. Viu um lobo-guará em uma clareira. Já vira outros, e sempre os caçava. Quieto, procurou a melhor posição, apontou longamente a espingarda, acompanhando o movimento do animal, o dedo pronto no gatilho, um olho fechado, outro na mira, e quando o encontrou em posição de ser alvejado, o tiro o colheria indefeso, puxou o gatilho, despertando aquele barulho seco

de metal contra metal. Raramente punha munição na espingarda, ela ficava quase sempre descarregada. Era sua máquina fotográfica. Mais um lobo-guará ficaria para sempre em sua memória. Um passo meio em falso que Lorenzo dera espantou o lobo, mas ele já estava morto, empalhado em suas recordações. Deixou a mata e foi na direção da roça de mandioca, sempre havia catetos por lá, fuçando a terra afofada pelas raízes. Andou pela plantação e viu Giacomo agachado, a boca cheia. Ele comia terra. Tinha lágrimas no rosto, percebeu então seu aspecto doentio. Tratava-se de um animal que sofria, mas sua principal doença era não aceitar o anarquismo da natureza, querer impor ordem ao que por princípio era caótico. Não amava o que a terra dava segundo suas regras, queria ordená-la de acordo com ideais próprios. Estava doente, todos estavam doentes. A saúde era não querer interferir em nada. Aquele mundo já conhecia a ausência de chefes, não precisava dos anarquistas para ensinar esta lição, uma lição difícil, pensou. Lorenzo se afastou para não alterar aquela paisagem triste. Enquanto Achille e Evangelista concluíam a cerca, dispensando ajuda, atormentados pelo desejo de manter o comando, era uma benfeitoria estratégica para o futuro da Colônia, Zéfiro Artusi, Geocchino Lottici e Tranquilo Agottani, por intermédio do Dr. Grillo, trabalhavam na estrada colonial que a administração pública estava abrindo. Como a empreitada não contava com fiscais, eles saíam tarde, podendo antes fazer algumas tarefas agrícolas que, mesmo assim, acabavam sendo mais produtivas do que as dos outros anarquistas — o novo grupo estava acostumado à vida do campo e tinha uma disposição muito maior. Além destas ocupações, ainda ganhavam um salário do governo, mantendo a caixa social. Nos finais de semana, erguiam o alojamento, agora comunitariamente, e Achille se irritava com a força e a habilidade dos lavradores, com sua resistência e perseverança, qualidades que logo foram transferindo parcelas de comando para Tranquilo, cujo grupo recebia maiores quantidades de comida, pois na cozinha o poder já tinha sido totalmente tomado por Adele Artusi, mulher de Tranquilo e irmã de Zéfiro, obrigando Cattina a passar parte do dia em pequenos trabalhos externos. Dividia-se a comida proporcionalmente ao trabalho realizado, o que fazia com que o pessoal de Tranquilo comesse melhor e trabalhasse bem mais, as crianças crescidas ajudando em quase todas as obrigações de

campo. Nas reuniões, à noite, Achille ainda se impunha porque era do primeiro grupo, cuidava da plantação mais importante e tinha o reconhecimento do principal benfeitor da Colônia, o Dr. Grillo, que supervisionava tudo de Palmeira. Achille fazia planos para o dinheiro da primeira safra. — Comprar algumas cabeças de gado. — Precisamos é de escola para estas crianças — falou Tranquilo. O filho de Achille e Cattina ainda era pequeno demais, e a falta de escola, até a vinda dos lavradores, sequer fora sentida pelos pioneiros, era uma necessidade nova e, portanto, difícil de ser aceita. Melhor ignorar; quando se fala sobre um assunto, ele passa a ter importância, mas se a gente finge nem saber do que se trata, acaba convencendo a todos de que tal coisa não só não existe como nunca existiu e nunca existirá. — Bois para engorda e depois para venda. — Escola com uma pequena biblioteca revolucionária. — Um touro de raça para cruzar com as vacas. — Talvez contratar um professor que seja socialista. — E comprar também vacas de leite. — Escola é tudo para o pobre. — Gado bom só traz lucro. Sentado em seu lugar de sempre, distante do fogão, apático como nunca, cor macilenta, Giacomo permanecia ausente da discussão, ouvia apenas vozes, o zumbido de um besouro em volta da lamparina, um barulho que ia crescendo a cada segundo e cresceu tanto que o inseto voejava agora dentro de seu cérebro, fazendo um insuportável barulho de asas. Não tinha como espantá-lo, pensou em enfiar as duas mãos no interior da cabeça e tirar o invasor, mas por onde as mãos entrariam? Súbito se lembrou: pelo mesmo lugar usado pelo besouro, o ouvido, as mãos entrariam pelos ouvidos; ergueu-as e tampou as orelhas, derrubando o rosto sobre a mesa. Foi Lorenzo quem o socorreu. Logo Adele Artusi surgiu com pinga para ele cheirar, mas não resolveu, Zéfiro e Lorenzo carregaram aquele corpo magro para a casinha dos solteiros e o colocaram na cama. Saía espuma de sua boca. — Ele enlouqueceu. Come terra — falou Lorenzo. — Isso é doença. — Zéfiro já tinha visto gente assim antes. — Amanhã levamos ao Dr. Grillo. — Vai morrer?

— Não esta noite. Vamos, tire as botinas dele. Semi-acordado, Giacomo ouviu a ordem de Zéfiro e resmungou: — Tirem também o besouro. Mas ninguém perguntou que besouro nem tirá-lo de onde. Ao amanhecer, o sol ainda acanhado, Lorenzo atrelou ao carro os bois que o Dr. Grillo havia enviado e foi à procura do médico, percorrendo as estradas ruins em que, dali a algumas horas, os lavradores da Cecília estariam trabalhando. Com Giacomo febril, murmurando palavras desconexas, era difícil prestar atenção em qualquer coisa, mas Lorenzo foi aos poucos se esquecendo do doente e de suas pequenas alucinações, entregue à paisagem, perguntando-se, meio melancólico, por quanto tempo aquela ainda seria a terra da fartura. Quando se acabassem as matas e os bichos, o que sobraria? Quase nada, pelo menos para mim. E não queria estar ali para ver o fim daquela região, cada dia mais invadida pelos gafanhotos, sim, pensou, os imigrantes eram gafanhotos. Ao ver Giacomo, o Dr. Grillo disse: Anemia. Abriu-lhe os olhos, estudou suas unhas, e, ao forçar a boca do paciente para ver a língua, notou as gengivas cobertas por uma massa de terra. — Isso geralmente acontece com crianças. Mandou aviar remédios, deu as primeiras doses e despachou os dois anarquistas, que seguiram no carro puxado por bois lerdos. Era uma cena triste, e o médico acompanhou o carro que sacolejava pela rua, até virar numa esquina. — Pobres anarquistas, logo estarão desistindo. Já tinha escrito a Rossi, dando as notícias boas, não escreveria em breve, e mesmo se escrevesse não comunicaria fatos como este ou como as brigas internas, só agora narradas por Lorenzo. Entrou em seu consultório e ficou pensando nas imperfeições humanas, que destroem os ideais mais nobres. Junto com o remédio, Lorenzo levava uma lista com alimentos para o amigo, que deveria passar por uma dieta. Entregaria a Cattina, mas se lembrou, ela não comandava mais a cozinha, seria melhor passar para Adele Artusi. Ao chegar à roça nova, onde haviam trabalhado Achille e Evangelista, Lorenzo viu que a cerca tinha sido derrubada e que o gado da vizinhança invadira a plantação, pisoteando tudo. Pensou em tentar afastar as vacas, mas não adiantaria muita coisa, elas voltariam, nada as impediria de avançar

sobre a lavoura anarquista. Triste ironia, pensou Lorenzo, era uma plantação coletiva, como expulsar os animais que também queriam se apossar dela? Uma plantação anarquista podia ter cerca? — Sim, precisamos fazer uma cerca, desta vez bem-feita — disse Tranquilo, quando informado do desastre. — Começar do zero, fazer as coisas como só um agricultor sabe fazer — disse Zéfiro. — Não é só a cerca que precisa ser refeita. Os cunhados conversavam entre si, agora definitivamente como líderes. — Daqui para a frente tudo vai ser decidido pelo voto... — falou Tranquilo. Como ninguém falou nada, ele completou o artigo único da recémcriada legislação da Colônia Anarquista Cecília. — ... e quem não trabalha não vota. Apesar desta determinação, a vida continuou igual, as famílias novas emagrecendo menos dos que os componentes antigos, e isso não chegava a ser novidade, havia apenas mudado o grupo que se favorecia. Somente três semanas depois, em meados de fevereiro, o método da eleição foi aplicado para decidir o que fariam com o dinheiro de mais um subsídio. As necessidades, por causa dos últimos acontecimentos, tinham sido alteradas, precisavam investir na produção, era esta a idéia dos lavradores que antes queriam escola. — Vamos votar — ordenou Tranquilo. Lorenzo, que nunca trabalhara tão pouco, saiu da cozinha antes de começar a votação e, na manhã seguinte, pegando algum dinheiro da caixa social, com a autorização de Tranquilo, que agora cuidava dela, começou a viagem de volta. A paisagem da Colônia, deixada para trás, tinha perdido a espessura, era algo estranho, como se ele nunca tivesse vivido nela, como se essa memória pertencesse a outra pessoa e lhe tivesse sido narrada sem detalhes. Ele não sentia mais a presença daquelas colinas e daquelas matas. Mas fez o caminho até Curitiba com sua curiosidade habitual, analisando cada árvore, cada montanha, cada animal. Quando chegou à cidade e viu o movimento, sentiu-se como se já estivesse em outra terra.

Pisa, 15 de fevereiro de 1891 Caro Dr. José Franco Grillo Minhas palestras aqui na Itália, para grupos numerosos ou para poucos amigos, têm tido grande êxito, muitos são os compatriotas que desejam participar de uma vida nova, num lugar promissor. O primeiro grupo, seis famílias de Livorno, embarcou em Gênova no Vittoria e foi uma despedida bonita, com amigos e parentes comparecendo ao porto para uma festa de lenços e gritos de viva a anarquia e viva a Colônia Cecília. Nunca me comovi tanto neste exílio em minha pátria, pois já me sinto meio brasileiro, habitante deste pequeno país que é nossa colônia. Tem sido, por isso, dolorosa esta estada já longa em minha cidade. Por mais esforços que eu faça, por mais que procure pessoas conhecidas e enalteça o belo futuro que há na colônia, nossas prósperas lavouras, a terra fértil, as ajudas do governo brasileiro, nenhum dos concidadãos de Galileo tomou a decisão de perder de vista a Torre Inclinada. É um fracasso pessoal. Mas outras cidades me convidam para palestras, e em breve muitos agricultores estarão aí, nem todos seguirão para a colônia, pois há quem deseje apenas se estabelecer no Brasil, e é melhor que seja nesta terra tão acolhedora que é nossa Palmeira. Haverá uma chegada contínua de novos integrantes da Cecília, e juntos, como uma sociedade de múltiplas atividades, atingiremos o melhor momento de nosso projeto. Tenho buscado atrair não somente famílias, mas solteiros, preferencialmente jovens, para que o amor livre logo seja algo corriqueiro nos campos de Santa Bárbara — que futuro bonito para a anarquia! Junto com os amigos de Livorno, estou encaminhando algumas caixas com instrumentos agrícolas, livros para nossa biblioteca e também alimentos, tudo doação de socialistas que vêem com entusiasmo os progressos que estamos fazendo. Os principais colaboradores são figuras excepcionais do

socialismo italiano, como Filippo Turati e Leonida Bissolati. Quando vejo a confiança destas pessoas, tenho certeza de que estamos no caminho certo. Peço receber e encaminhar para a Colônia quantos novos companheiros chegarem a Palmeira. E aguarde para breve este seu amigo, que, no retorno à Itália, descobriu que pátria não é onde nascemos, mas onde deixamos boas sementes. Com a afeição do Dr. Giovanni Rossi

A nova cerca, não mais para proteger a plantação mas para abrigar o gado comprado pela comunidade com o dinheiro dos subsídios, foi feita segundo princípios corretos, sob o comando de Tranquilo, que já não reconhecia nenhuma autoridade em Achille. A composição da Colônia tinha sido alterada com a vinda de novos imigrantes, quase todos da cidade, com experiência apenas na luta política, e isso deixava o mando com Tranquilo Agottani. A cerca era agora firme, levantada por gente que sabia o que estava fazendo. Quando chegou o segundo grupo, saído no dia 10 de março, todos com fisionomia de famintos, os outros imigrantes, embora novos na Colônia, mas recuperados da viagem e com alguns quilos a mais, graças à alimentação menos racionada, sentiram-se no direito de desprezar os recém-chegados que iriam comprometer a vida na Cecília, ameaçando pequenos confortos. Um velho da última leva, querendo contribuir, mas sem intimidade com serviços agrícolas, pediu que lhe ensinassem a arar a terra, e Tranquilo, sem responder nada, indicou-lhe o caminho de saída da Colônia. Os novos executavam trabalhos menores, principalmente na construção de casinhas, pois aumentara tanto a população de famílias que era necessário erguer estas cabanas no alinhamento das primeiras construções, dando forma à Vila Anarquia. Todos tinham sempre uma ponta de revolta contra o Dr. Grillo, pois ele não dava garantias para quem acreditara no governo brasileiro e na propaganda de Rossi. Recuperado da anemia, mas ainda branco, a falta de atividade física só intensificando seu aspecto doentio, Giacomo costumava sair à noite para ver a lua naquelas solidões, ela era um vínculo com sua terra e ele mais do que nunca queria voltar. Andava em movimentos calmos, pensando na vida, quando as crianças das famílias novas, que não o conheciam bem, vendo o vulto pálido entre as árvores da mata próxima, saíram gritando que tinham

cruzado com um fantasma. Giacomo Zanetti ouvira o comentário, e isso era mais do que suficiente para decidir-se — iria embora, para uma cidade onde pudesse trabalhar e conviver com gente esclarecida, estava cansado de tanta ignorância. São Paulo, ele logo se decidiu. Em São Paulo estaria novamente na civilização, lá voltaria a ser gente. Mas esperaria Rossi para devolver-lhe a Colônia, dizendo cuidei desta terra na sua ausência, fiz de tudo por ela, mas não me sinto parte disso aqui, sou uma planta que não se deu bem neste solo. Só esperaria o retorno do amigo, depois estaria livre dos compromissos. Era um bicho perdido na mata. Bicho que comera terra e, agora, sentia ânsia de vômito com o cheiro dela. Bicho. Quero voltar a ser gente — repetiu várias vezes, em voz alta, no meio das árvores, e um adulto, convocado pelas crianças, ouviu esses gemidos tristes, solicitando o retorno ao mundo dos homens, e se arrepiou todo, pronunciou um Creio em Deus Pai e saiu espalhando a novidade: um fantasma vagava pela Colônia. — Era o que nos faltava. Superstição — falou Achille. — A Colônia anarquista e mística — reforçou Evangelista. — Já não existe mais a Colônia. — Então o que estamos fazendo aqui? Começaram a planejar a saída também para quando Rossi voltasse, não fora ele que enviara essa gente toda? Seria bom ver os anarquistas verdadeiros desistindo para dar lugar a imigrantes gananciosos. Eles viveram de acordo com o anarquismo, mas e os novos? Não se lembravam das desavenças passadas, tantas eram as do presente. Ainda cultivavam uns restos de plantação de milho, pelo menos fariam uma safra. Depois da colheita, levaram os carros de milho à cidade, venderam e guardaram o dinheiro, enfrentando a repreensão do grupo de lavradores na voz firme e áspera de Tranquilo. — Aqui tudo é de todos — ele falou, à noite, quando se reuniram para a janta. As refeições estavam sendo feitas em turno, primeiro os pioneiros e as famílias que vieram com Tranquilo, depois os que chegaram por último. Para estes, sobrava menos alimento. Naquela noite, não houve comida para os primeiros integrantes da Colônia. Adele Artusi pôs uma panela na mesa e destampou-a na frente de Achille. O marido falou, em tom bíblico, a polenta que era para estar aqui ficou no moinho, vocês vão comer o quê?

No dia seguinte, feita a partilha da caixa social de acordo com os dias de trabalho de cada integrante da colônia, coube aos Dondelli quase nada e menos ainda aos novos. Os lavradores dividiriam as áreas já abertas da Colônia, os pastos ficariam para eles, pois o gado lhes pertencia, fora comprado com o subsídio recebido pela vinda deles e com o dinheiro que ganharam nas estradas, os mais novos poderiam usar as instalações, eram coletivas, mas cada um que procurasse uma forma de ganhar dinheiro, serviço era o que não faltava na região. Houve um silêncio depois daquela reunião matinal, planejada por Tranquilo durante toda a noite, e esperava-se alguma oposição. Ninguém, no entanto, tentou mudar os critérios de divisão de Tranquilo. Eram eles, os Agottani e os Artusi, que sabiam cultivar a terra, talvez merecessem mesmo tudo, nós conhecemos ofícios que aqui não servem para grande coisa. Mesmo assim, os demais tentaram algum trabalho. Os oleiros começaram, na área coletiva, uma pequena fábrica de tijolo. Alguns homens empregaram-se nas estradas, mas a maioria ficou pela colônia, sem nada fazer, e logo estavam comendo as frutas que encontravam nos pomares vizinhos ou nas matas, matando animais silvestres e atacando lavouras à noite. Quando Giacomo Zanetti viu uma família abrindo um macaco morto, teve nojo e passou a achar que em breve os famintos estariam se alimentando de carne humana. Isso o apavorou. Com o pouco dinheiro que recebera da caixa social, foi embora; em um país tão grande e com tantas oportunidades, um homem, mesmo sem muita saúde, poderia ganhar a vida. Prometeu a si mesmo nunca mais se lembrar da Colônia, mas pensou nela todos os dias de sua vida, embora jamais tenha retornado, a não ser nos sonhos que o perseguiam, em que ele se via em torno de uma fogueira, disputando carne de macaco. Acordava com a boca seca, o sabor doce na língua — de carne humana ou de terra? A propriedade agora era composta por vários lotes, cada anarquista trabalhando por si, para sua família, e os que não tinham como ganhar o sustento saíam pelas demais propriedades em expedições clandestinas para obter salame, garrafões de vinho, galinha, ovos, tudo tirado dos colonos em nome da coletividade faminta e cada vez maior, pois continuavam chegando italianos em busca da terra da promissão. Com um dos carroções em que vieram duas famílias, os Dondelli

partiram, levando ferramentas que julgavam suas e utensílios de cozinha, depois de terem vendido as galinhas e as ovelhas recebidas na partilha. Não havia mais lugar para o anarquismo, Rossi encontraria uma nova, imensa e terrível população. Estranharia a mudança, mas fora o responsável por esta situação, sempre afoito para povoar a Cecília. A atual invasão era mais nociva do que a do gado dos vizinhos que destruíra a plantação. Merda, se ele tivesse ficado aqui e organizado melhor os anarquistas, talvez a Colônia tivesse dado certo. — Não há mais lugar para nós — falou Cattina, segurando o filho contra o peito que secara. — O que fazer? — perguntou Evangelista. — A mesma estrada que nos trouxe... — Deve existir lugar para nós na capital. — É só não se envolver em política. Cattina não dizia mais nada, pensando no peito seco, no filho magro, no caminho de volta. Era isso que ganhara — a desilusão, a mesma fome e o remorso do erro. Tinha sido um equívoco, ela perdera tudo, até as recordações. A raiva mata as recordações, transforma tudo em ódio, não há lugar para memórias. Se você vai pensar nas primeiras noites em volta do fogão, surge a sombra da fome. Vem então a raiva. Se tenta lembrar do canto das sabiás, tão bonito, o que toma conta de sua cabeça são as vezes que tiveram que comer passarinho, por falta de alimento melhor. Raiva de novo. Sua memória seria só raiva, ela sabia disso. Foram se despedir do Dr. Grillo, contando de que forma viviam os novos anarquistas. Ele estava triste. Evangelista, sentindo súbita nostalgia de tudo, resolveu na hora que não partiria, restavam-lhe parentes em Palmeira, ficaria com eles; os pais e uma das irmãs moravam ali, tinham imigrado e tentavam a sorte nas imediações, depois de rápida estada na Cecília. Antes, Evangelista passaria uma noite com Maria Malacarne, o corpo dela lhe devolveria o ânimo. Despediu-se da irmã casada e do cunhado e desceu para o conhecido casarão ao lado do rio. O Dr. Grillo abraçou os Dondelli na hora em que eles subiram na velha diligência, depois deixou algumas notas com Cattina. — Para o Giuseppe — disse. Ela agradeceu e chorou quando os cavalos começaram a se afastar da cidade, tudo agora perdido num espaço que não seria mais deles. Outros também partiam. Zéfiro, sentindo-se cansado para enfrentar as

tarefas agrícolas, planejava a retirada, não queria o filho de um ano crescendo no meio do grupo encaminhado para a vida criminosa, assaltando as colônias vizinhas e deixando a Cecília com fama de reduto de bandidos, de gente à-toa. Sua mulher, Romilda Popoli, estava para chegar, e assim que se reunissem partiriam para Buenos Aires. Não entendia como seu cunhado Tranquilo ainda insistia em ficar, e foi para ele que vendeu suas cabeças de gado, uma quadra de mandioca e mais alguns utensílios. Trabalhou na estrada, guardando o dinheiro para a mudança, contando os dias com a mesma obsessão com que contava as cédulas acumuladas. Acabara sua participação na Cecília, tinha sido um sonho juvenil, criar um mundo justo, onde não houvesse dominação, isso era impossível, um homem tinha que pensar primeiro em sua família, era em nome dela que devia agir, quem tinha família não podia pensar só nos outros, o outro não passava de inimigo, pronto para tirar a comida da gente. Cada núcleo estava cozinhando em suas casas, com medo do ataque dos famintos, pois na Cecília, assim como em outros lugares da terra, havia fome, e Zéfiro se apavorava ao ver os quase duzentos e cinqüenta italianos sem fazer quase nada, submetidos a privações em um país com tanta terra sem dono. Falta um líder, um líder com idéias de justiça, o homem precisa de alguém que diga o que é certo e o que é errado, e se não se vive sem líder, o anarquismo nunca vai prosperar. É um sonho. Sonho bonito. Cada carroção que chegava com mais trabalhadores, prontos para as frustrações, por causa das mesquinharias e das cegueiras humanas, partia com um número maior de desertores, que, segundo se dizia, saíam dali para saquear Palmeira, Ponta Grossa, Curitiba e São Paulo. Um agricultor com propriedade em Santa Bárbara, ao ouvir este comentário, defendeu os anarquistas, eram apenas imigrantes procurando um lugar, seriam sempre bem-vindos em nosso país. Apesar da alegria de poder enfim ir embora, um ano depois de sua chegada, quando se reencontrou com sua mulher, momento em que Rossi já estava de volta, tentando reorganizar a Colônia, Zéfiro Artusi partiu sem olhar para trás, sentindo-se desertor. Tinha que pensar no filho. Todos tinham que pensar nos filhos. Era obrigação dos pais.

Pisa, 10 de maio de 1891 Prezado Dr. José Franco Grillo Tão tristes essas notícias sobre nossa Cecília. Amargurado, parto dentro de alguns dias, esperando poder recuperar o projeto que apodreceu na prática de homens que só devem ser perdoados porque, como está nas sagradas escrituras, não sabem o que fazem. Ainda são movidos pelos preconceitos de séculos de dominação nesta perdida Itália, que os contaminou tão completamente, que nem o remédio da vida anárquica pôde curá-los, antes parece ter produzido efeito inverso, tornando mais grave a doença. Estou preparado. O que encontrarei, por suas notícias, será uma terra devastada, o descaso pelo outro, o desrespeito à liberdade, a produção individualizada e, o pior de tudo, o rancor e a mágoa enraizados no coração dos companheiros. Triste anarquia. Triste Cecília. É duplamente triste que me encontro hoje, mas ainda forte e disposto para recomeçar. Receba o abraço fraterno do Dr. Giovanni Rossi

Tudo tinha as marcas do abandono, o terreno da horta voltara ao estado de matagal, mas as couves, com suas folhas que pareciam leques, sobressaíam no meio das plantas espontâneas, soltando pendões floridos, num desejo de se perpetuar naquele solo. O gado restante, umas vacas magras, andava solto pela região. O cheiro forte começou em um sábado, quando o grupo se reuniu na cozinha para o almoço, mas não chegava a ser insuportável, era sinal de podridão nova, e Rossi pensou tratar-se apenas de uma ilusão de sentidos, produzida pela paisagem desolada. Os sonhos, quando envelhecem, deixam cheiro ruim, meditou, passando as costas da mão no nariz para barrar um odor que só existia em sua imaginação. Almoçou uma comida sem gosto; se comêssemos melhor, com certeza haveria mais ânimo para o trabalho, mas com ração tão rala não se pode esperar o menor entusiasmo desta gente. — O fedor está ficando insuportável — disse Concetto Crollanti, um dos moradores vindos com Rossi. Então não era apenas ele que sentia a fedentina, ela existia no mundo físico, e era melhor assim, bastava localizar a fonte daquele cheiro, algum animal atingido por uma bala ou morto por doença. Sem descansar depois do almoço, saiu procurando a fonte daquele fedor. Logo Chignento estava atrás dele, e foi direto a uma moita de capim a uns poucos metros da cozinha. Chignento latia muito, mas um latido diferente do produzido para farejar caça. Aproximando-se, Rossi sentiu náuseas, era terrível o cheiro de carne podre, ainda mais depois de um almoço precário, que tinha deixado seu estômago instável. Ao se aproximar, vomitou uma água escura e azeda, e a tontura o cegou por uns instantes. Voltando a enxergar, viu a carcaça inchada, de um inchaço monstruoso, do velho Russo. Chignento latia para o amigo morto. Russo morrera em silêncio, esquecido num canto. No meio de tanta

partida, ninguém sentira falta do cachorro, lembrança dos primeiros tempos da Colônia. Uma idade se concluía e Russo devia ser enterrado com ela. Rossi tornara-se sensível a estes atos simbólicos. A morte de Russo era uma mensagem, exigindo um ritual. Os homens não vivem sem ritual, mesmo quando já não são religiosos. Foi ao barracão das ferramentas e voltou com uma cortadeira. Enterraria ali o velho companheiro. Cavou a terra com força, cortando pequenas raízes brancas, ouvindo o barulho do aço contra pedras, afundando cautelosamente a lâmina com o impulso de seu pé sobre as abas laterais, um trabalho que já fizera inúmeras vezes na Colônia, cortar a terra, abrir covas para as laranjeiras, para as videiras, mas agora outro era o seu plantio, um plantio ainda novo na Colônia, o enterro de um corpo, tarefa a que ele se dedicava com o mesmo sentido social de sempre, fazer uma cova bem-feita, a largura ideal, para que a planta pudesse crescer, lançando raízes no solo macio. Ao terminar o buraco, com os quatro cantos bem lapidados pela cortadeira, empurrou o corpo de Russo para dentro. Já não sentia a opressão do cheiro, tudo era carniça em volta dele, tinha se acostumado. Deitou terra com a própria cortadeira, deixando a cova uns centímetros mais baixa. Depois de uma busca rápida pela mata, voltou com uma mudinha de araucária, enfiando-a sobre o primeiro morto da Colônia. Logo seria uma árvore, e uma árvore é mais simbólica, mais útil e mais bela do que uma cruz. Durante todo o tempo, Chignento ficara acompanhando o trabalho, sem latir, prestando atenção naquele lugar, onde poderia vir cavar para enterrar seus ossos. Pela primeira vez, via que os homens também enterravam sua comida, e isso o alegrou, mesmo sabendo que a comida era o corpo de um amigo. Àquele buraco de terra solta ele voltaria assim que tivesse um bom osso. Quando ganhou o osso, não era tão bom quanto esperava, tinha sido fervido longamente na sopa de feijão, Chignento já havia esquecido da cova e ficou com o seu troféu para cima e para baixo, roendo aquela matéria quase mineral, mas onde seu faro identificava alguma lembrança de carne. No dia em que enterrou Russo, Rossi olhou o cãozinho que não crescera quase nada, quieto em seu canto, provavelmente pensando no amigo, e disse, agora, Chignento, a Colônia é toda sua; os velhos devem dar lugar aos jovens, Russo não tinha mais nada que fazer aqui, também resolveu nos abandonar, tal como as famílias.

Nas capinas que se seguiram, os trabalhadores vindos com Rossi cortaram todo o mato, sem prestar atenção na mudinha de pinheiro que crescia alegre. As enxadas puxaram terra sobre a cova, e depois, quando quis identificar o lugar em que estavam os ossos do cachorro, Rossi ficou na dúvida. O cemitério anarquista começava anônimo. — Assim é melhor — falou Rossi. Produzindo muito barulho, mais festa do que reação raivosa, Chignento recepcionara os jovens que chegaram a pé, num finzinho de tarde em meados de junho. Eles não traziam quase nada, apenas a roupa do corpo, algum dinheiro e muitos sonhos. Pelo cansaço da viagem, pareciam mendigos, e isso deixou o cão agitado, mas ele logo reconheceu a bondade nos elementos deste grupo, que era diferente de todos que chegaram antes. Não reclamavam, não perguntavam onde iam dormir, se a lavoura estava boa, se havia comida para eles. Chegaram alegres, cantando hinos que falavam de justiça, revolução e trabalho. Nos últimos meses, o assunto da Colônia era só dinheiro, lavoura, comida. Mas os jovens possuíam o velho vocabulário. Chignento não entendeu a diferença das palavras, apenas reconheceu a alegria e trocou os rosnados de alerta pelos de excitação. Começava um novo tempo, pensou o cãozinho, um tempo de ossos com restos de carne. Chignento não agüentava mais as feições tristes dos poucos moradores da Cecília, e tinha pensado várias vezes em ir embora, mas foi ficando, apesar da pouca alimentação. Gostara desta gente alegre, que cantava e falava alto, desenhando no ar gestos exagerados. Corria de um para outro, e todos faziam festa no animalzinho, logo de língua de fora, mas alegre, muito alegre. Quando o pequeno grupo de anarquistas se reuniu para jantar, encontrou os jovens à mesa, tomando com gosto a sopa de sempre. Eles fizeram festa, abraçando os desconhecidos como se fossem amigos de muito tempo. As mulheres, que os receberam depois de Chignento, estavam animadas na cozinha. Tinham descoberto restos de provisões para melhorar a sopa, gesto de generosidade percebido apenas pelos moradores, pois para os jovens era uma sopa comum e pobre, mas com sabor especial, o da primeira refeição na Colônia. — Qual é o serviço que temos para amanhã? — perguntou Egizio Cini. — Lavrar o campo para o centeio. Vocês têm alguma experiência

agrícola? — perguntou Curzio Corsi, outro que viera com Rossi. — Nenhuma — falou Egizio. — Mas muita vontade de aprender — disse outro dos sete jovens, o francês Saint Pierre, oriundo de Tarbes. E todos riram, riram de satisfação, como ririam se alguém tivesse dito a sopa está quente. A alegria não estava nas palavras, mas no encontro, naquela cozinha coletiva, na noite silenciosa que se estendia por matas que eles apenas haviam divisado da estrada, quando vinham para a Colônia em uma marcha festiva, sem entender aquele entrelaçar de árvores, arbustos e plantas, pois uma mata era para eles algo organizado, árvores plantadas segundo um princípio, e as matas ali cresciam livres, pensara Jean Gelèac, verdadeira lição de anarquismo. Era bom estar no meio daquelas matas, por isso riam, riam sempre. Depois de uma conversa cheia de palavras soltas, em que trocaram impressões avulsas sobre a viagem, a Colônia e as estradas, eles foram dormir no alojamento sem móveis. Os rapazes tiveram que se contentar com mantas emprestadas pelos poucos moradores que tentavam salvar a Colônia, embora um tanto sem esperança, pois lembravam da família passando fome, da desordem, dos campos tomados pelo mato, da falta de sementes. Os jovens riam das camas improvisadas. — Nunca fomos tão bem acomodados — falou Cini. — Espero que as pulgas tenham jantado melhor do que nós — falou Massa. — Amanhã, quando estivermos bem cansados, de tanto virar terra, a cama ficará mais acolhedora — falou Silano. Para cada frase, uma festa de riso, que podia ser ouvida nas outras casinhas, onde as famílias já estavam deitadas, pensando que o mundo pertence aos jovens e solteiros. Os casados rememoraram as aventuras de sua juventude e, antes de dormir, narraram algumas às mulheres e todos acabaram acordando tarde na manhã seguinte, abrindo a janela do quarto e encontrando o sol alto. O sol ainda sorria, mas agora ironicamente, quando os jovens estavam mexendo na terra ou consertando cercas, suando como nunca; estranhavam o trabalho novo, que feria suas mãos, forçava seus músculos e saía errado, tendo que ser, a toda hora, refeito. Os demais moradores ajudavam, embora não entendessem bem essa determinação para o trabalho. Assim que tomaram a sopa de legumes do almoço, já mais rala do que a da janta, os

moços voltaram ao campo, sem que ninguém os chamasse. Não agüentarão uma semana, vaticinou Curzio Corsi. Os rapazes entraram em tumulto na cozinha, dizendo que o serviço era duro, eles não sabiam executar corretamente as tarefas, mas tinham gostado e aquilo fazia sentido, pois precisavam de muita comida. Sentado nas patas traseiras, os olhos voltados para Cini, o mais falante do grupo, Chignento aprovou a idéia com latidos. Latiu porque gostava de ver a bagunça daqueles homens alegres, mas como foi depois de Cini ter dito que precisavam de muita comida, todos riram, e o cão, sem entender nada, resolveu sair da cozinha. — Não precisamos de tanta comida assim — falou Rossi —, agora somos poucos. — Vamos trabalhar para encher a despensa — Cini falou. — E para que um estoque de comida? — era Crollanti quem queria saber. — Um socialista vive com um pouco de pão e seu ideal. — Muita comida, é disso que precisamos — Cini insistia, rindo. — Construções novas, móveis, essas coisas são mais necessárias. — Quando chegarem as novas famílias, teremos comida para todos, não haverá mais discórdias, mesquinharias. Não foi isto que atrapalhou a Colônia? — Isso e outros problemas. — Rossi se opunha aos jovens apenas para que continuassem falando de seus planos. — Vamos trabalhar até encher o paiol — gritou Zerla. — E trabalhar assim, com um objetivo, dá gosto — concluiu Cini. Jantaram rapidamente e já estavam indo para o alojamento, no meio de algazarras, chutando pedras, empurrando uns aos outros, Chignento correndo atrás para não perder nenhuma oportunidade de latir. Encostado no batente da porta da cozinha, olhando para os jovens que se recolhiam, Rossi disse que nunca tinha visto tanto entusiasmo. — Entusiasmo demais pode fazer mal — resmungou Celestina Gordoni, remanescente do grupo liderado por Tranquilo. Mas todos discordaram dela, intensificando um silêncio de admiração. Naqueles dias, contaminados pelos jovens, os anarquistas trabalhavam mais do que o normal, sem que houvesse qualquer obrigatoriedade, mas um ou outro ainda preferia ficar dentro das casas. Semearam centeio no terreno já arado e prepararam outro campo,

fartamente adubado, onde plantaram batatas. Nos matos, tiraram e prepararam muita madeira para a construção, e recuperaram os canteiros das hortas, tudo feito sem nenhum plano. De manhã, alguém dizia que ia cuidar da cerca para o gado, e logo surgiam os voluntários, e se não surgissem, a pessoa ia sozinha, ou desistia de seu plano para ajudar na horta. No prazo de um mês, a Cecília voltou a ser o que era no final do ano anterior, e o Dr. Grillo, em uma de suas visitas, comentou que em breve ela estaria entre as mais desenvolvidas da região, e isso daria prova de que nem os contratempos mais tristes, como as desavenças entre as famílias e a retirada do capital social, poderiam impedir que a vida anarquista prosperasse. E disse isso elogiando os jovens. Eram poucos, mas superavam a limitação numérica pela dedicação. — Nunca vi nem os colonos mais gananciosos trabalhando como vocês — ele disse naquela visita e depois repetiu inúmeras vezes para as pessoas de Palmeira. Sete famílias haviam deixado a Colônia um pouco antes da chegada de Rossi, carregando dinheiro, instrumentos de trabalho, animais, móveis e o carro. Para ocupar o lugar delas, e havia uma coincidência neste fato, chegaram os sete jovens, que trabalhavam a terra com mais empenho do que os agricultores. Rossi ficou pensando que havia um erro em seu raciocínio, pois sempre achara que a Colônia precisava fundamentalmente de bons agricultores, que conhecessem o trabalho, resistentes à dureza daquela vida, e agora estava comprovando que a Colônia necessitava mesmo era de idealistas com coragem de se dedicar a causas coletivas. O poder estava com os amadores e não com os profissionais, e isto também era uma experiência que valia a pena ser anotada em um de seus relatórios. Se vocês querem mudar o mundo, e estão precisando de alguém para fazer uma atividade específica, não chamem os que se mostram mais capazes, que já conhecem tudo sobre ela. Escolham jovens dispostos a aprender. Para aprender, é preciso um profundo estado de alegria. Os melhores agricultores da Colônia não eram agricultores, e tinham renunciado à sua formação para gastar as mãos e os dias no meio do mato, derrubando árvore, plantando um alimento escasso. Não comiam as batatas que compravam para o plantio. E, muitas vezes, enquanto estavam depositando as batatas no sulco, eles pensavam que ela engrossaria a sopa e daria um maravilhoso purê, e, em vez de ficar com raiva, orgulhavam-se pela renúncia. Durante toda a vida só tinham comido alimentos produzidos

anonimamente, era chegada a hora de plantá-los. Alguns agricultores, vindos para desenvolver as lavouras comunitárias, tinham abandonado a Colônia talvez por não entenderem a importância da agricultura na vida comunitária. Estavam cansados daquelas ocupações e, sob o regime da anarquia, renunciaram ao trabalho sério, esperando, pela primeira vez na vida, que a comida lhes chegasse sem que fossem obrigados a tirá-la da terra. Tinham ido embora e agora faziam pequenos serviços principalmente em Curitiba, ou tentavam a sorte em outras regiões, em terras vendidas pelo governo, voltando a ser agricultores como seus antepassados. “Quando você quiser alguém que faça, escolha alguém que nunca fez, mas que tenha a inquietação de fazer”, escreveu Rossi aos irmãos. Quanto mais trabalhavam, mais animados os jovens ficavam, e isso estava levando os homens a um alto grau de excitação. Aqueles eram dias sem trégua, um ímpeto imorredouro movia a comunidade. Estavam plantando para os colonos que chegariam da Itália, havia notícias de novas levas de imigrantes; então, nas poucas horas de folga, eles faziam planos gritando, os anarquistas gritavam sem parar, e quando alguém começava a dominar a conversa, estourava um tumulto de vozes, todos queriam falar e falavam. Cini, mais propenso ao discurso, era freqüentemente interrompido por um dos companheiros: — Agora o feitor vai dar ordens aos operários. E todos riam, Cini também ria, reclamava que não era patrão, só achava que... e tomava de novo a palavra, mas já no meio de uma grande balbúrdia. Ouvindo de longe, os vizinhos achavam que aquela era, enfim, a vida sob o anarquismo, todo mundo falando e ninguém se entendendo, como é que esses italianos conseguem fazer tanto barulho? O entendimento se dava no trabalho, que organizava o grupo de forma natural e não em discussões que não passavam de oportunidade de diversão. A nova camaradagem, as terras cultivadas, o pequeno rebanho voltando a engordar, o começo da fartura, alguns prestando serviço ao município, e a propaganda feita pelo Dr. Grillo, que nunca tinha visto uma Colônia se tornar próspera em tão pouco tempo, mais as frustrações que a vida urbana sempre traz a quem é de forma profunda apenas agricultor, tudo isso acabou despertando o interesse de quatro das sete famílias que haviam deixado a Cecília.

Voltaram sem o dinheiro da caixa social, mas com as ferramentas de trabalho que tinham passado alguns meses de férias, enferrujando nos porões úmidos de Curitiba, onde instrumentos e agricultores descansaram naquele inverno. Com a primavera, eles queriam estar de novo em contato com a terra, e chegaram em dois carroções, pedindo para ser aceitos, o lugar deles era ali, para isso tinham cruzado o oceano, deixando famílias, enfrentando fome e incerteza. Rossi ia dizer que eram bem-vindos, sempre seriam bem-vindos, desde que respeitassem os princípios anárquicos, mas Zerla interrompeu o silêncio que antecedia a fala de Rossi e lembrou a todos que amanhã iam começar a derrubar as árvores sobreviventes ao fogo na velha roça invadida pelo gado, era preciso limpar o terreno. Sem falar nada, Tranquilo Agotanni, que estava à frente do grupo pródigo, foi ao carroção, mexeu na mudança e tirou seu machado. Seu companheiro Geocchino Lotticci fez o mesmo, e eles foram recebidos, não com uma festa, pois a comida ainda era pouca, mas com uma sopa de galinha. Os rapazes queriam uma Colônia cheia de juventude e que fosse pouco numerosa. Com a volta das famílias, sabiam que os alimentos ainda por colher seriam logo consumidos, não sobrando muita coisa para guardar, o que não diminuiu em nada a alegria daquele retorno.

Palmeira, 25 de agosto de 1891 Queridos Sestilio e Properzia O retorno ao Brasil tem sido marcado pela mesma alegria dos dias de nossa chegada; esperava encontrar aqui só desolação, mas um grupo de jovens, que se estabeleceu na colônia depois de as famílias terem-na abandonado, assaltando-a, conseguiu reorganizar tudo, e agora somos novamente uma comunidade socialista. Nunca estive tão contente. Outra surpresa foi minha nomeação, por interferência do bom Dr. Grillo, como farmacista do núcleo. Embora não faça quase nada, recebo um salário que é um roubo. Por causa das despesas de minha viagem, solicitei ao grupo autorização para enviar este dinheiro a vocês, para que saldem as dívidas junto à Azienda Strumenti de Lavoro della Fratellanza Artgiana de Firenze. A partir de agora, vocês receberão meu salário. Não deixem de pagar a nenhum de meus credores. Sestilio, você pensa em se estabelecer aqui no comércio de vinho e azeite. Acho uma atividade arriscada, o melhor seria trabalhar como agrimensor. Nesta função, receberia doze mil-réis de salários e mais a mesma quantia de porcentagem. Mas se quiser mesmo atuar no comércio, espere algum tempo até termos mais informações. Em Curitiba, no varejo, um bom vinho custa quatro réis o litro, e o azeite de primeira, oito. Daqui a alguns dias, deverei ir a Paranaguá e poderei averiguar o custo da aduana. O preço do transporte de Gênova a Paranaguá poderá ser obtido na Navegação Geral Italiana, em Gênova, e não se esqueça do transporte ferroviário de Paranaguá a Curitiba. Nessas viagens, é comum o desaparecimento de parte dos produtos, e tudo isso tem que ser considerado na hora de começar esta atividade que tem os seus riscos. Gostaria que vocês me mandassem muitas mudas de cerejas gigantes, nozes, castanhas, oliveiras, amendoins e videiras. Estamos ampliando o pomar e quero ver quais destas plantas podem se desenvolver aqui nos

trópicos. Uma das principais necessidades de nossa Colônia é de ordem alimentar. Há pouca variação: temos comido carne, polenta, sopa de legumes, feijão e muita laranja, meu Deus, nunca chupei tanta laranja na minha vida! E como este é um problema não apenas nosso, produtos diferentes podem ter boa aceitação no comércio, o que seria mais uma renda para a Cecília, hoje vivendo das lavouras tradicionais e do serviço dos anarquistas em atividades do governo. Sem estas ocupações, nós com certeza estaríamos passando fome, pois só agora está chegando o tempo da colheita. Digam a todos aí que estou muito bem, alegre e cheio de planos para a Colônia, e que não devem se preocupar comigo, em breve nosso experimento social alcançará estabilidade, permitindo condições coletivas de conforto. A presença dos jovens, sempre agitados e falantes, em vez de diminuir a solidão, tem feito com que a sintamos mais forte, e fico imaginando como seria bom contar com uma companheira. Recebam todo o carinho e a saudade do irmão Giovanni Rossi

— Ninguém quer ver um filho passando fome — disse Geocchino Lottici. — Para vocês é mais fácil racionar a comida. — Não queremos ver ninguém passando fome — disse Egizio. — Uma família come mais e trabalha menos — completou Marla, sempre rindo. — Uma família de agricultores trabalha melhor do que um grupo de jovens da cidade — revidou o lavrador, enquanto se adiantava na capina da lavoura, fazendo um serviço rápido e metódico. Os jovens continuavam nas tarefas voluntárias, defendendo o trabalho para o futuro, temos que ser formiga para, depois, conhecer o ócio das cigarras, falavam. E pareciam mesmo formiguinhas, trabalhando sempre agitadas, de um lado para outro, um pouco sem método, mas com muita energia. Não se viam homens encostados em cabos de enxada, e o trabalho ia sendo executado no meio de uma confusão de movimentos e vozes. O centeio estava para ser colhido e em algumas semanas teriam pão em abundância, para encher a barriga das crianças gulosas. Trabalhavam pouco essas crianças, mas comiam mais do que os adultos, e as mães estavam sempre reservando porções extras para os filhos insaciáveis. Se pelo menos caçassem passarinhos, se pescassem nos rios da região, mas as mães tinham medo dos animais selvagens, e as crianças ficavam pela Colônia, desocupadas, e quando não fazemos nada pensamos apenas em comer. Para não lembrar da comida, os rapazes trabalhavam o tempo todo, sempre fazendo muita confusão. — O silêncio fica bem em um palácio, não em uma Colônia de homens livres — diziam, quando alguém reclamava do tom exaltado. Estavam gritando no pátio, cada um defendendo qual cultura deveria ser plantada no novo terreno, Cini achando melhor o milho, precisavam de abundância de polenta para entupir aquela criançada, Zerla defendendo o

plantio de feijão, com comércio certo em Palmeira, e era uma cultura ideal para aquele trecho bem adubado, Silano falando que poderiam plantar um pouco dos dois, outros achando que talvez fosse bom fazer ali um novo pomar ou aumentar as videiras. Assim que viram os carroções entrando na Vila Anarquia, começaram a gritar morte à burguesia. Foram receber os novos imigrantes, que desceram dos carroções meio desconfiados, estranhando a confusão, que podia ser ouvida da estrada. Rossi e Tranquilo se aproximaram, recebendo as primeiras informações — fora boa a viagem, tinham ficado alguns dias em Curitiba, acolhidos pelos ex-colonos. — Desertores — corrigiu Jean Saint Pierre, criando certo constrangimento. Sabiam que os novos colonos chegavam com receio, não tinham vindo diretamente para a Colônia, estavam esperando por eles fazia duas semanas, deviam ter tentado, sem êxito, se estabelecer em outro lugar. Era justamente de gente assim que eles não precisavam — pensou Rossi. Os desertores hoje eram o maior problema para a Cecília, tinham sido bem recebidos, moraram meses aqui, dividimos com eles nosso alimento, e se não bastasse terem levado a caixa social, animais e utensílios, ainda tinham se transformado nos piores detratores dos anarquistas. A má vontade de Rossi era visível na recepção; sem a menor gentileza, esquecendo o papel de anfitrião, mostrou o alojamento coletivo, a cozinha, e disse quais eram os serviços em andamento, o saldo da caixa social. — Trouxeram algum dinheiro? — Muito pouco — disse o mais velho do grupo. — Aqui, o pouco vira bastante. — O que trazemos é muito pouco mesmo. Rossi foi ao refeitório, mostrou a caixa social, uma lata que ficava em uma prateleira, e contou as poucas notas. À noite, homens, mulheres e crianças recém-chegados se agruparam em um canto do alojamento coletivo, tentando manter distância dos jovens, assustados com o comportamento deles durante a janta, que, pela timidez das novas famílias, foi rápida. Os jovens fizeram algazarra, provocando: precisavam de gente nova, sem preconceitos familiares, o amor da família representava um egoísmo, e eram poucas as filhas solteiras, se pelo menos trouxessem companheiras para eles, mas quase só crianças, e criança come muito e trabalha pouco, criança desperta o egoísmo das mães, estavam

cansados de crianças, falavam e riam, lembrando que logo haveria amor livre entre eles, aguardavam companhia feminina, e perguntavam — há alguma nesse grupo? O grupo tinha mulheres casadas, já bastante gastas pelas privações, mas o ciúme dos maridos ainda existia; talvez a lembrança de quando elas eram jovens e outros homens as desejavam fizesse reviver neles um sentimento que não tinha mais nenhum sentido. Comendo pouco e apressadamente, os colonos de Parma se retiraram para o alojamento e se apartaram tanto quanto era possível naquela construção sem divisões. Tinham perguntado, na chegada, se não poderiam dormir nas casas, mas Rossi disse: amanhã veremos isso, faremos uma redistribuição das cabanas. Eles já tinham se deitado quando uma mãe reclamou das condições, mas o marido a animou, seria apenas uma noite. O que era uma noite, depois da longa travessia do oceano, depois dos dias nas hospedarias para imigrantes? Uma noite, para eles, não era nada. Os jovens chegaram depois, fazendo bagunça. Dois bebês acordaram chorando, um menino disse que estava com medo, e os rapazes riram, aqui não tem bandido, somos todos afetuosos, e mais risadas e gemidos. Quando se deitaram, tirando a roupa no escuro, as famílias ficaram esperando que acontecesse algo. Tudo que ocorreu foi uma voz murmurando: meu colchão é macio e perfumado. Uma mãe abraçou a filha de doze anos e só largou dela quando amanheceu. Ninguém tinha feito plano nenhum, mas sem tomar café, assim que nasceu o sol, um grupo saiu e voltou com os carroções de um vizinho, e, antes do almoço, estavam fazendo o mesmo percurso do dia anterior, mas agora em sentido contrário. — Ainda bem que não deixamos nosso dinheiro. — Logo encontramos um lugar em que possamos criar nossos filhos em paz. Passaram perto da roça em que lavradores e operários trabalhavam no plantio de feijão, tinham enfim decidido qual cultura seria, quando Zerla gritou que jamais se esqueceria daquela noite de amor, e agradeceu a liberalidade do marido. Embora os imigrantes soubessem tratar-se de uma mentira, os maridos seguiram feridos em seu orgulho.

A chegada do novo grupo de camponeses de Parma aconteceu na data esperada, alguns dias depois da passagem do primeiro, que não deixou rastros em sua partida, amedrontado com o entusiasmo dos jovens, um entusiasmo bem recebido pelos novos lavradores, todas as brincadeiras foram tomadas como manifestações calorosas de afeto, sinal da boa índole de uma gente que estava ali movida por um ideal. Dois terços do grupo eram mulheres e crianças, representando mais de vinte bocas para serem alimentadas, e só um terço eram homens, que não estavam obrigados a trabalhar, embora desde o primeiro dia tenham se dedicado integralmente às atividades. Os solteiros viram-se em menor número, o que representava uma mudança definitiva de seus planos; tinham que trabalhar para comer e não para preparar um futuro agora incerto. Nem isso, no entanto, diminuía a energia deles. Cada dia que passava, ela era mais intensa. Trabalhavam dez horas lavrando o campo e iam direto, no fim da noite, para a pequena cachoeira, e mesmo se estivesse frio, pois a temperatura subitamente abaixava nas tardes de primavera, eles tomavam banhos barulhentos e chegavam — corpos arrepiados da água gelada que corre nas pedras — ainda mais excitados, brincando com o cachorro e com as crianças, mexendo com as famílias e cantando. — Quando isso vai acabar? Era esta a pergunta que se fazia Pasquale Taligmani, o mais velho do último grupo, com quase sessenta anos. A mesma pergunta, na cabeça de Carlo e Caterina Artusi, pais da jovem Irma, sofria pequena variação, mais preocupante: de que forma isso vai acabar? Por enquanto, não dava para saber quando as coisas terminariam, mas dava para imaginar como acabariam. Nas reuniões depois do jantar, homens, mulheres e crianças faziam pequenas tarefas, de consertar roupa e arrumar ferramentas a lavar panela e escolher o feijão para o outro dia. Rossi voltara a falar da necessidade do amor livre, sem o qual a experiência socialista não se efetivaria, parando no estágio da cooperativa sem conselho administrativo, fase em que eles se encontravam. — As mulheres que vêm para cá — discursava o anarquista — trazem laços familiares muito fortes, reafirmando os preconceitos de relacionamentos fechados. É puro egoísmo não se entregar por desejo. Egoísmo e hipocrisia, pois todos desejam novos parceiros.

Com dezoito anos de casado, Fiorenzo Fecci admitia que desejava outras mulheres, todo homem deseja, sempre pensava nisso quando ouvia os discursos de Rossi, ele tinha razão, era homem, entendia o coração dos homens, e se havia tantas mulheres de vida fácil, era porque eles, homens, vez ou outra, tinham que encontrar um novo corpo para ir suportando o casamento, cada ano mais monótono. Olhava as raras moças da Colônia, algumas bonitas, e sentia um amor de irmão por elas. Sua mulher, tão envolvida na criação dos cinco filhos, nem teria tempo de pensar em outro homem e, achava o marido, não despertaria vontade em nenhum deles, as várias gravidezes e os sofrimentos na Itália, em que conheceram só miséria, tinham transformado seus trinta e quatro anos em velhice. Não precisava se preocupar, ela estava no canto dela, ajudava na cozinha, trabalhava na horta, não era de falar, tinha os filhos para se entreter, mas ele, ele desejava uma mulher sem filhos, que ainda tivesse o corpo de moça, com mãos que não fossem tão ásperas, e ficava pensando nos carinhos, seria bom, conhecer outra mulher seria bom, o problema era que na Colônia não havia mulheres assim, apenas três ou quatro moças de família, que estavam ali não por opção, mas por terem seguido os parentes; elas não eram anarquistas, não eram livres, poderiam estar em outro lugar, acreditavam no socialismo, mas se os pais falassem que agora seriam católicos, elas iriam à missa todos os domingos e virariam religiosas. Para as ricas, era fácil ser livre, ter idéias e viver estas idéias, mas para estas filhas de agricultores não havia outra realidade além da virgindade e do casamento. Se surgissem moças livres, Fiorenzo aprovaria, se Rossi trouxesse tais mulheres, a Colônia saberia recebê-las. Precisavam sim de emancipadas, sem a proteção dos pais, os jovens tinham necessidade destas mulheres, via-se isso na maneira como eles respiravam, forçando as narinas, feito cavalos, ele pensou, os jovens respiravam meio em desespero, aquela força para o trabalho, aquela sofreguidão para tudo, ele conhecia isso, era desejo, falta de mulher. Os jovens precisavam de mulheres, mas os casados também. Ele olhou para Escolina, trinta e quatro anos, quinze de casada, era uma mulher, olhou bem o rosto dela, rosto de mulher, os seios caídos, seios de mulher, os lábios finos, lábios de mulher, as mãos brancas de lavar roupa, mãos de mulher, só que ela não tinha mais a aura do amor, ela tinha perdido, na verdade tinha dissipado, o que era para o amor. Os solteiros precisavam de companhia, e os casados também. Talvez até mais. A Colônia devia iniciar os jogos do amor livre, Fiorenzo concordava com Rossi — mulheres para todos. Mas súbito vê,

sentadas num canto da mesa, rostos ainda infantis, suas filhas Esmelinda e Amália, nove e oito anos. Estavam virando moças. O que queria para elas? Casamento. Queria casamento tradicional, um marido trabalhador e respeitador. Queria o casamento das filhas, mesmo o casamento se transformando, como o dele se transformara, na negação do amor e do prazer. Queria o casamento. — O casamento monogâmico — continuava Rossi — deve ser abolido nas futuras gerações da Colônia. Não vamos obrigar ninguém a largar suas famílias, cada um faz o que quer, abominamos arbitrariedades, mas é preciso dizer que nenhuma mulher está presa por obrigações religiosas ou morais a seu marido, que cabe a elas destruir a prisão da fidelidade conjugal... Mais afoitos, alguns jovens não queriam saber dos discursos que encantavam o Dr. Rossi, ele acreditava que falando mudaria a cabeça desses lavradores. Eles só viveram até agora porque têm a cabeça, as mãos e o coração duros. Rossi não vai conseguir nada com eles, a não ser assustá-los. Precisamos de mais jovens nesta Colônia, pensava Silvano, moços e moças. Ele se ergueu no meio do discurso de Rossi, olhou para as moças e abriu os braços, exageradamente: estou esperando o amor de vocês. Todos riram, menos Rossi, aquilo era coisa séria, urgia doutrinar as crianças, para que crescessem com idéias mais justas, livres das mentiras propagadas por padres e patrões, essas duas pragas. Eles tinham que falar, falar tanto quanto fosse necessário. Depois da janta-discurso, já protegidos em sua casinha, Restilla, mulher de Ernesto Ganazolli, colocou os filhos mais novos para dormir e chamou a um canto Emília — mocinha de olhos sonhadores, apesar da feição meio rude — para lhe explicar que o Dr. Rossi tem lá as idéias dele, anda muito sozinho, e esta mania de falar em amor livre é por não ter se casado ainda; se tivesse mulher e filhos, não ficaria perdendo tempo com tais conversas, está correto lutar por um mundo justo, mas o homem não vive sem família, vive? Ela deve arrumar um marido que respeite o corpo dela, recebendo em troca o respeito dele. Um marido trabalhador, honrado. Respeito vale mais do que amor. Passados seis meses, em 11 de junho de 1892, depois de um namoro rápido, neste lugar é melhor ter uma filha casada, pensaram os pais, para não se correr o risco de vexames, Emília Ganazolli se casava com Cristiano Mueller, no cartório da cidade de Palmeira, sem cerimônia religiosa.

Colônia Cecília, 12 de outubro de 1891 Prezado Sestilio Peço a sua ajuda na seleção de novos adeptos para a Colônia. Esta arregimentação de colonos que são antes fugitivos da fome do que anarquistas só trouxe problemas para os que acreditam na experiência da Cecília. Não precisamos mais desses desesperados do destino, que encontram nos anarquistas uma possibilidade de conseguir imigrar, valendose de nossos precários recursos. Queremos trabalhadores convencidos de nosso ideário e com bom caráter. Por favor, ajude-nos, tirando das listas de imigrantes todos aqueles que tiverem comportamentos egoístas. A Colônia não suporta os saques que tem sofrido. As famílias que aqui chegam atrás não de vida anarquista, que pressupõe trabalho, e, no nosso caso, muito trabalho, embora não obrigatório, mas da boa vida e da comida farta, frustram-se ao encontrar uma propriedade pobre, onde sobram tarefas urgentes e pouco lucrativas e falta diversão. Precisamos sim de trabalhadores, mas não pode ser qualquer tipo de trabalhador, ele antes tem que possuir bom comportamento, tem que ser inteligente e professar o ideal socialista. Operários sem estas características, por melhores que sejam, não servem para nada. Pior, servem para difamar a Colônia, para roubá-la e para criar tumultos, desanimando os que lutam por uma vida coletiva. A última caravana é um exemplo de escolha totalmente errada. Nenhum deles ficou conosco e, pior, saíram da Colônia em situação extremamente desagradável. Ciole e Mansani constituíram um grupo junto com um colono de Livorno e deixaram a Colônia dizendo-se desinteressados da vida socialista, que o objetivo deles é ganhar dinheiro da forma mais rápida possível. Os três são tipos muito feios, que andam sempre armados e provocando brigas, prometendo tiros e facadas. Vivem nas redondezas e nos

incomodam com seus exemplos negativos e com suas confusões, o que leva as pessoas daqui a pensarem que todos os anarquistas são iguais a esses bandoleiros. Os demais componentes do grupo estão em Curitiba, trabalhando por conta própria, e fazem propaganda negativa de nossa Colônia, acusandonos dos mais variados delitos, quando foram eles que agiram de forma criminosa. Roubaram tudo que puderam da comunidade. Dante Venturini, por exemplo, chegou a levar sete machados, deixando-nos em péssima situação de trabalho. Este bando era composto por trabalhadores, isso é inegável, mas não tinha o menor caráter, tudo gente da pior espécie, que está criando problemas para o anarquismo, e vai criar muitos mais, pois não se cansa de alardear, em suas confusões, que vem de nossa Colônia, que sempre contou com o respeito das autoridades e da população. Se as coisas continuarem dessa forma, logo começaremos a sofrer represálias. Não queremos tipos assim, preferimos que a pessoa não seja bom lavrador mas tenha vontade e disposição de aprender. E não podemos acolher famílias numerosas, é melhor que sejam casais jovens, com poucos filhos, pois a comida ainda continua escassa e só dentro de um ano teremos alguma fartura. A Cecília tem sofrido com o excesso de gente e a vinda de pessoas erradas. Agora, quando estamos reorganizando tudo, devemos ter um cuidado muito grande. Ainda não chegaram mulheres que não estejam sob o jugo dos preconceitos familiares, e este é o tipo mais urgente de adepto. Precisamos delas não só para experimentar o amor livre, mas para que alegrem nossa vida, para que nos tirem deste celibato forçado. Receba o abraço afetuoso de seu irmão Giovanni Rossi

Assim que o grupo de Parma se estabeleceu, começando logo a trabalhar nas lavouras e nas estradas, os jovens perceberam que não precisavam mais se esforçar tanto, a Colônia entrava em novo ciclo e o tempo deles estava no fim, mas ainda trabalhavam, agora em ritmo mais lento, não seria mesmo possível garantir fartura para tantas pessoas, e lhes restava esperar para ver o que ia acontecer. Acordavam mais tarde e faziam algumas atividades físicas na frente do alojamento, com o peito nu porque era verão e o calor impunha esta liberdade. Os maridos não gostavam de ver os jovens com troncos brancos, mãos e rosto morenos do sol, o que lhes dava um aspecto demoníaco, conjunção de naturezas conflitantes. Faziam demorados exercícios, exibindo os músculos jovens e retesados naqueles movimentos, que lembravam rituais de acasalamento. E logo ganharam o hábito de descer à cachoeira e tomar banho também no início da manhã, voltando com os cabelos úmidos, os olhos vermelhos por causa da água fria, os lábios levemente roxos, mas agora usando a camisa de trabalho, a barba amansada em um rosto envelhecido. Era assim que entravam no refeitório, quando a manhã ia adiantada, para o café ralo e o pedaço de pão. Eles comiam com olhos distantes, fitando a parede ou as mulheres casadas e suas filhas, envolvidas com as tarefas de cozinha, faces suadas diante do fogão, cabelos amarrados, deixando fios soltos sobre a testa, mãos e braços avermelhados. Em outros momentos, apenas olhavam o fogo lambendo as achas de lenhas, um fogo que queimava tudo rápido, esquentava a cozinha e punha, naqueles olhos solitários, chamas ardentes. Do fogo, o olhar ia para os braços vermelhos, o rosto suado, os movimentos de quadris na lida das panelas, até que alguém, prevendo o perigo, gritava, vamos lá, seus turcos, todos ao serviço, e os jovens saíam para exercitar os músculos em atividades produtivas, um ou outro se escondendo em moitas, com a desculpa de que sentira uma cólica súbita, e depois ressurgindo no meio do grupo, a feição de

menino que fez coisa errada, demorando um pouco para entrar no ritmo dos demais, que iam longe na sua luta diária contra o mato. Eles viam o milho crescer, abrindo-se em folhas macias, e vinha naquelas gargantas secas um aperto estranho, a vida crescia, o solo soltava permanentemente suas hastes, seus pequenos e grandes caules, e fazia-se urgente tomar um gole de água direto da moringa, erguendo-a acima da cabeça, vergando ao máximo o tronco para trás, para que a boca recebesse o jato de água fresca, que escorria pelo queixo, pela camisa, chegando ao peito, eles então se imaginavam de joelhos sob as pernas de uma mulher, a moringa era o corpo feminino, um corpo redondo, com duas aberturas, uma delas vertendo seu líquido sobre o rosto do homem, prazer, era um grande prazer beber água assim, o gosto de terra da moringa, mas de terra com saúde, a frescura da água, o contato das mãos naquela argila porejante, o formato de ventre inchado, que se esvaía sobre eles sem perder a forma bojuda, os braços dos homens muitas vezes se ouriçavam nesta pequena tarefa de matar a sede, repetida tantas vezes durante o dia que sempre tinha alguém indo encher a moringa na mina ou liberando a bexiga na frente dos amigos, o sexo levemente alterado, uma glande roxa e enrugada devolvendo a água que havia passado por aquele corpo, aguçando ainda mais a sede nunca saciada. Os casados não entendiam esta procura de água, não tinham comido charque na noite anterior, não beberam vinho, por que a ressaca? — eles se perguntavam, vendo o prazer naqueles lábios que recebiam a bica da água como um devoto recebe a hóstia, os casados se irritavam com mais aquela perda de tempo, por isso o trabalho não rendia, esta mijação o dia todo, estas idas à mina de hora em hora, num revezamento que mais parecia um jogo e não trabalho. Estamos no anarquismo, defendiam os jovens quando repreendidos, e já trabalhamos muito para a Colônia, dizia algum deles, mais do que era necessário para nossa sobrevivência, completava outro, fazendo com que os casados, que tinham muitos parentes que ainda não trabalhavam, ou trabalhavam minimamente, ficassem quietos, voltando em silêncio à enxada, ao machado, ao arado, ao mourão de cerca, irritados com os jovens que bebiam bebiam bebiam água e mijavam e riam, era com um certo arrepio que eles tocavam no sexo para colocá-lo para fora e liberar o líquido, daí sentiam o cheiro bom da urina branca, igual a água da moringa, que deixava no solo pequenas crateras úmidas, com bordas de terra esculpidas pelos respingos, e sentiam, entre os dedos, sujos e suados, um pequeno terremoto que alterava o volume daquilo que nunca parava de

soltar seus líquidos. — Acho que bebem tanta água porque estão com fome — disse Fiorenzo. — A água deixa com mais fome — falou Rossi, que entendia aquela sede, sua raiz profunda. E, na hora do almoço, os jovens ainda estavam rindo, mas com os olhos sempre perdidos, já não pensavam no trabalho a ser feito, agiam de forma mecânica, como o cavalo que puxa o arado sem saber que daquela terra vai surgir o milho que o alimentará durante o ano, era assim com os jovens, a viseira nos olhos, sem olhar para os lados, indo sempre em frente, sem enxergar nada, prontos para mudar de rumo quando fossem convocados pelo puxão nas rédeas, indo e voltando no mesmo alinhamento, ida e volta, ida e volta, centenas de vezes, ao lado do mesmo rastro, ida e volta, até um desvio súbito, quando seus olhos encontrassem algum obstáculo. Narcisa usava um vestido florido e tão velho que dava pena. A pobreza desses miseráveis — pensou Antonio Massa —, mais miseráveis do que eles somente nós, os solteiros, que nem podemos usar roupa limpa, pois temos que lavá-las, e há certas coisas que um homem, por mais esforçado que seja, não consegue executar, eu não sei lavar minhas roupas, estão velhas e encardidas, a dela está apenas velha, exala um cheiro forte de limpeza, de sabão de soda, cheiro bom, melhor ainda é o seu suor. Narcisa entregou um pedaço de broa preta para Massa, complemento da sopa, sopa era também água, água suja, ele pensou, mas água com gosto, com tempero, água, tudo era água. Ele pegou a broa, afundou um naco negro de pão na sopa, levou-o à boca, deixando um fio de caldo escorrer no queixo, ergueu a cabeça, que tinha sido abaixada na direção do prato, e viu Narcisa com um sorriso que também era água, ele não sabia explicar, há coisas sem sentido, ele pensou, como um sorriso podia ser água?, era difícil entender, mas ele tinha certeza, aquele sorriso era água, água limpa, água fresca, água de moringa, ela estava ali, olhando para ele, o fio de sopa já chegara ao peito, morrendo entre seus pêlos, ele passou a mão no queixo, secando-o, esfregou a mão na perna da calça, sentindo o remendo nos joelhos, meio solto por causa de sua inabilidade em usar agulha e linha, e trouxe a mão de volta para a mesa, Narcisa segurando a broa contra a barriga, fazia menos de uma semana que chegara com os tios, tinha uma maneira estranha, andava sozinha pela Colônia, não gostava de falar, mas servia a todos, casados e solteiros, homens

e mulheres, na hora da refeição, tinha prazer em repartir a broa com suas mãos finas, sem usar faca, arrancando pedaços, deixando a marca de seus dedos no miolo. Massa olhou estas marcas no pedaço que trazia na mão esquerda. Depois que ela começou a distribuir o pão, ele ganhou gosto, nem sonhavam mais com o pão de trigo, estava ótimo pão preto, preto como o olho de Narcisa, ele pensou, mas não disse, ela agora estava um pouco mais à frente, dava pão para Egizio, que continuou comendo com a cabeça baixa, o reflexo de seu rosto na superfície líquida do prato, homem estranho o Egizio, não deve apreciar broa, pegou seu pedaço e comeu em poucos minutos, Narcisa já se retirara, ele nem agradecera, Massa continuava agradecendo, com os olhos, acompanhando-a, a sopa esfriando no prato, nunca gostara mesmo de comida quente, e só tomou as primeiras colheradas quando, o pão já distribuído, Narcisa se sentou com outras mulheres, pegando a colher para levar a sopa à boca, no mesmo movimento de todos, Antonio Massa percebeu que os braços dela, ao contrário dos braços das mulheres que trabalhavam na cozinha, não eram vermelhos, eram brancos, viu isso porque ela estava com as mangas do vestido dobradas, ele então tomou rápido a sopa e enfiou o resto de broa no bolso, para comer sozinho, debaixo de alguma árvore, na hora do serviço, pensando alegremente em Narcisa, nos olhos negros, nos braços brancos, meu Deus, brancos. À tarde, quando ia encher a moringa na mina, tendo que cruzar uma mata que havia sido queimada, os troncos negros de árvores tombados na terra, outros ainda em pé, mas igualmente enegrecidos pelo fogo, dali, daquela terra calcinada, brotariam plantas verdes, ele pensou, cruzando o terreno recém-aberto, a moringa vazia na mão, pendendo como melancia oca, fruto estéril, Massa imaginando o verde que surgiria daquela terra escura, nem percebeu Narcisa sentada a cavalo em um tronco caído, as duas mãos na frente do ventre, segurando a madeira negra, mas quando chegou mais perto, teria que saltar a tora, enxergou a moça, a saia rodada aberta para que pudesse cavalgar o tronco, tronco áspero, de casca torrada, sobre o qual ela tinha a parte mais macia de seu corpo. — Está com tanta sede assim que nem olha para as coisas? — Muita sede — falou Massa e depois apertou a língua contra o céu da boca, engolindo a saliva. — Eu me sinto bem no meio destas árvores queimadas. E Massa olhou para os próprios braços, pretos de sol. Tinham sido tantos dias trabalhando com as mangas da camisa dobradas por causa do calor, um

calor que era interno e externo, que sua pele descoberta fora ganhando cor, enegrecendo. Ele olhou para os braços e para as árvores, havia uma semelhança que lhe dava orgulho. Era parte da paisagem. — Logo plantaremos feijão aqui. — Feijão-preto, como este que comemos com charque? — É, feijão-preto — ele disse, olhando para ela —, feijão-preto como seus olhos. Içando a perna direita sobre o tronco, o que revelou parte de sua coxa, Narcisa colocou os pés no chão, inclinou o corpo para trás, acomodando as nádegas na madeira. Cavou a terra queimada com o pé direito, até encontrar a camada que tinha a cor do solo da região. — Por baixo de todo este cinza, tem uma terra clara — ela falou, rindo, meio tímida. Ouviu-se o barulho chocho da moringa vazia caindo no chão, Massa não a jogara, seus dedos apenas se esqueceram de segurar a alça e, fruto maduro, ela se despregou daquele galho penso. Ele foi se aproximando com passos que nem chegavam a ser passos, era como se, subitamente envelhecido, arrastasse os pés, suas botinas desenhavam no chão riscos contínuos. Ficaram bem perto um do outro, Narcisa tinha quase a altura dele. Seu hálito guardava a quentura do vento que sai da mata durante as queimadas. — Você gosta de feijão-preto? — ela perguntou. — Feijão-preto... — não conseguia se lembrar mais disso. — O feijão que será plantado aqui. — Plantar... Ele tinha se esquecido de tudo, as palavras estavam tão vazias como a moringa, não guardavam nada, faziam um som oco quando pronunciadas, as palavras se gastaram, ele descobriu naquela hora, sempre há um momento em que o sentido se ausenta das palavras, tornando-as apenas casca. — Cascas de cigarra — ele falou. — O quê? — Cascas de cigarra. As palavras. Entende? — Não. — Não importa. — E o que importa? — As coisas. Este tronco. Esta terra. Teu corpo.

— Este? — ela perguntou, erguendo o vestido para revelar barriga, pernas e seios brancos. — É — ele falou, tirando a camisa e mostrando o corpo com duas tonalidades. Voltou para a roça de milho com as mãos e as roupas sujas de carvão. A moringa foi deixada debaixo de uma árvore, e logo Aniceto Artusi, vinte e dois anos, casado com Gentile, vinte e três, estava lá para beber. — Está vazia — falou, olhando para Massa. — Vazia... — ele disse, olhos ainda perdidos. — Você não pegou água? — Água... — ele disse e riu. Agora ia para o serviço mais tarde, demorando-se ao redor de Narcisa, principalmente depois da conversa com os tios, para comunicar que estavam namorando. Passara um pouco de medo até este momento, Narcisa tinha dezesseis anos, eles estavam se encontrando às escondidas, era obrigação dele falar com a família, chegou dizendo que queria se casar, talvez no começo do outro ano, estava ali para pedir permissão, o tio continuou fazendo o cigarro, a tia cerzia uma calça velha do marido, não se alteraram, Massa esperando a resposta, o silêncio depois de sua fala, apenas os três na casinha, a espera era longa demais, talvez devesse dizer que se casariam logo, dentro de um mês, talvez este fosse o motivo da contrariedade. Apertando o fumo na palha com a lâmina do canivete, tantas vezes que parecia provocação, depois enrolando lentamente a palha, deixando apenas uma pequena ponta, o tio, que estava levando o cigarro já quase pronto à boca, parou com o gesto e, em voz pausada, disse: Narcisa querendo, basta. Não eram católicos, ela não precisava da bênção dos tios. Terminou de falar e lambeu o resto de palha ainda não enrolada, lambeu com uma saliva espessa, terminando finalmente a tarefa. Depois bateu a binga na perna, enfiou o cigarro na boca e, sem tirá-lo, lábios meios fechados, falou que ela era moça livre. Acendeu o cigarro e soltou a primeira baforada, Antonio Massa percebeu que a conversa tinha terminado. Saiu da casa, ouvindo o silêncio às suas costas. Era um silêncio envergonhado, ele percebeu. Um silêncio de quem sabia tudo que acontecia entre os dois pelas matas da Colônia, mas logo estariam casados e os tios não teriam mais do que se

envergonhar. Com remorso, quando encontrou Narcisa, no comecinho da noite, antes do jantar, apenas deu-lhe um beijo. Agora eram noivos.

Colônia Cecília, 17 de outubro de 1891 Querido Sestilio Tem sido muito difícil esta fase da Cecília, pois enfrentamos não o governo brasileiro, que sempre nos ajuda, mas os ex-companheiros, sediados principalmente em Curitiba, que não se cansam de falar mal de nossa Colônia, pelas frustrações que tiveram aqui, pois vieram não para uma vida socialista, mas por motivos os mais variados, alguns fugindo da fome, outros por instinto de aventura e outros por falta do que fazer. E assim que deixam nossa comunidade, vivem com um único objetivo: desacreditar os anarquistas perante a sociedade local. Estão agora difamando o sempre correto Dr. Grillo, culpando-o pelas deserções da Colônia. Como você sabe, ele ocupa, desde janeiro deste ano, o cargo de médico dos núcleos de Santa Bárbara e Cantagalo, e os descontentes afirmam para as autoridades que ele não tem ajudado os imigrantes italianos, deixando-os passar fome, o que teria ocasionado a retirada dos agricultores. A vinda desordenada e a pouca convicção anarquista é que afastaram esses elementos, que não tinham nem a índole coletivista nem a persistência necessária para enfrentar dificuldades, que só não são maiores porque o Dr. Grillo sempre nos socorre, com dinheiro próprio, com subsídios e com postos de trabalho em tarefas públicas. Se persistirem as reclamações, acredito que os anarquistas ficarão malvistos no Brasil, o que dificultaria nossa presença aqui. O próprio Dr. Grillo já está aborrecido com os anarquistas, que, ao contrário dos outros colonos, só criam problemas, sem trazer resultados práticos. Ainda não se indispôs comigo e apóia minhas decisões, mas não suporta mais esses caluniadores que o chamam, e publicamente, de traidor, por não lhes ter dado ajuda, pelo menos a ajuda que eles queriam, e pelo fato de o médico receber um salário elevado. O Dr. Grillo não precisa passar necessidade só porque nossos companheiros não ganham o suficiente com o pouco trabalho

que fazem, e Grillo é homem respeitado na política paranaense, nada mais justo que receba bem. Daqui para a frente, teremos contra nós os antigos aliados, o que me deixa muito triste, pois vieram com nossa ajuda, dormiram sob nosso teto, comeram de nossas panelas, roubaram o capital coletivo e hoje tudo fazem para que tenhamos fama negativa. Não foi a fome que os expulsou da Colônia, embora ela realmente tenha existido, mas a ganância desses pobres coitados que se julgam anarquistas só por gritar contra todos os que ocupam cargos. Mais do que nunca, precisamos de adeptos que sejam homens de bem, para que a Colônia não vire alvo de críticas. Minha vida pessoal ainda é solitária, pois mulheres, aqui só as têm os casados. Pobres de nós, os solteiros. Abraço fraterno do Giovanni Rossi

— Você é um patrão ordinário — gritou Massa, erguendo a enxada contra Giuseppe Soldi. — Vai brigar por ciúme? — revidou o outro, e já teve que se defender, também erguendo sua enxada, cujo cabo recebeu a pancada que, não fosse a barreira, teria arrancado parte de seu rosto. Os amigos correram para segurar os dois; Massa, exibindo olhos vermelhos, tremia, sem falar nada. — Esse louco acha que apenas eu tenho saído com a puta de Parma. Foi retirado do lugar. Mal tinham começado o serviço e veio a investida furiosa de Massa, que, ao ver Giuseppe chegar atrasado, cara de satisfação, enviou a enxadada contra o inimigo. — Por que ele não briga com vocês, que também se encontram com Narcisa? Só porque são solteiros? Os casados também têm direito. Não somos anarquistas, não temos que destruir a família? Nas últimas semanas, alguns homens haviam se deitado com Narcisa pelos matos da Colônia, ouvindo seu uivo de fêmea selvagem assustar passarinhos, veados campeiros e outros animais arredios. Ela tinha fome, uma fome que eles podiam matar com seus corpos acostumados apenas com o trabalho, prontos para verter a água longamente acumulada, que jorrava sobre aquela terra, coletiva como a roça em que trabalhavam. Ela saía pelos matos, sempre sozinha, sem combinar nada com ninguém, propondo um jogo, e os homens, que não tinham diversão, nem mesmo uma cancha de bocha, que não conheciam o que era este nada fazer, este se encontrar ao acaso com outro corpo, esta procura, foram imediatamente seduzidos pelo imprevisto, talvez mais até do que pelo corpo de Narcisa. Tinha sido um andar sem destino pelos matos. Pela manhã, sempre havia alguém que, pegando a espingarda e a munição, saía para voltar só na hora do almoço, com um ou outro animal, geralmente preás e pássaros, que

pendiam ensangüentados da mão do caçador. Quando viam que a espingarda não estava pendurada na parede da cozinha, onde descansava à disposição de todos, sabiam que alguém já corria o mato cerrado, abrindo picadas a facão, sempre na companhia do pequeno Chignento, que muitas vezes podia ser ouvido num capão de mato, e que voltava alegre com o explorador do dia, cheirando no chão as gotas de sangue que iam caindo, quando havia animal morto, ou simplesmente correndo atrás de pequenos insetos quando o caçador se confrontara com o que procurava. Vagando desnorteada, Narcisa foi aprendendo a se afastar cada vez mais da vila, dificultando a busca, e os homens, não raro retornavam com caças mas sem saciar o desejo que os atormentava. Assim terminavam a excitação de meses de trabalho, a apreensão quanto ao destino das lavouras, cultivadas de forma precária, e a longa espera de companhia. Espera. Tinham esperado tanto e agora foram vencidos por aquele jogo, percorrendo matas, a fêmea sempre pronta, mas nunca disponível num lugar certo, não recebendo ninguém em sua cama, nos fundos da horta ou na pedra da cachoeira. Amor e jogo. Eles não estavam acostumados nem a uma coisa nem a outra, por isso vagavam sonâmbulos pelas matas, perdidos entre as árvores, olhos atrás da fêmea de corpo branco e vestido largo que seria arrancado num único movimento, como se desembainha uma espada para o ataque, fazendo a lâmina saltar e refletir a luz. Estavam possuídos pelo jogo. Levavam no embornal comida economizada nas refeições, algum dinheiro, um ou outro presentinho, comprado escondido dos mascates ou nas lojas da cidade, quando iam vender ou buscar algum produto. Narcisa se entregava em troca de pequenos favores; se fosse alimento, sentavam-se no chão, depois da cavalgada selvagem, e comiam o salame, cortando-o com o canivete — ela se entregava sim por um salame, mas também por uma caixinha de pó para o rosto, por uma rapadura, aprendera a roer pedaços doces de rapadura, por qualquer pequeno nada, não pensava em acumular dinheiro, mas fazia parte das regras, ela se dava inteira, não economizava uivos, movimentos, tinha por isso que receber algo, uns botões cobertos para seu vestido, um pedaço de pano para uma blusa, que ela costuraria à noite, em casa, sob o olhar dos tios — um olhar, como Massa notara, constrangido. Conheciam a sobrinha, sua vocação para o sexo, era mulher independente, com o amor gravado nos olhos, nas mãos, moldando partes do corpo que forçavam o tecido e saltavam no decote.

— Uma puta, isso é que ela é — disse Maria Soldi. O marido entrara no jogo, ela já desconfiava, mas agora, com a briga entre Giuseppe e Massa, a enxadada que quase acertara seu queixo — que tivesse acertado! —, não tinha dúvidas. Não comeria mais no refeitório, na presença daquela vadia. — Mulher sem pai nem marido acaba sempre nessa vida — disse Maria. — Não respeita nem os homens casados — falou Restilla. — Bela, sempre sem trabalhar, oferecendo pão a todos. — Sabemos agora que tipo de pão. — Será que ninguém vai fazer nada? — perguntou Restilla. — Eu sei bem o que fazer — disse Maria. Na hora do almoço, sem desconfiar da briga, pois não tinha percebido que Massa descobrira tudo, Narcisa entrou na cozinha. Estava com um vestido novo, e isso deixou Maria mais furiosa, seus vestidos eram velhos, sentiu inveja do vestido, mas a inveja maior era do corpo de Narcisa, corpo de cobra, ela pensou, fino e comprido, em contraste com o dela, próximo ao formato de barril. Era mais uma desfeita este corpo alongado e cheio de movimentos, desfeita que ela não aceitaria quieta. Maria tinha os braços vermelhos do trabalho no fogão, os olhos vermelhos pela fumaça e o rosto vermelho, de raiva. Estava mexendo a panela de polenta, o fubá borbulhando a espirrar em seus braços, queimando-os ainda mais. O barulho das bolhas de ar na panela, produzindo pequenas crateras na massa, traduzia a raiva da mulher de Giuseppe, o marido não aparecera para o almoço, tinha se escondido em algum lugar, os outros solteiros estavam quietos, conheciam também o corpo de cobra, esperavam pela explosão, as bolhas da polenta arrebentando de forma mais violenta, Maria mexia a panela com a colher de madeira, para que a polenta não grudasse, Narcisa pegando o pão com seu jeito de cobra, ninguém tinha dito nada, mas ela estranhou o silêncio, nunca era assim, onde a festa dos solteiros? onde a conversa animada de todos? a algaravia das mulheres? Tinha acontecido algo, só ela não sabia. Então notou a ausência de Giuseppe. Ele saíra pela manhã com a espingarda, dando uns tiros sem alvo, até encontrá-la nas margens do rio — seus pés descalços, brancos, era a primeira vez que Giuseppe a via assim. Estava precisando de mulher, pensou, Maria já não era mulher para ele, seus calcanhares estavam rachados, sujos de terra, ela toda cheirava a cebola e alho, ele precisava de mulher, pensou mais uma vez, para isso tinha vindo, tirou do bolso um par

de brincos que fora de sua avó, e que ele guardara para a filha, não deixando a mulher usar, e disse: — Para você. Era o melhor presente que Narcisa ganhava. Ela não agradeceu, apenas tirou a roupa, colocando o brinco, enquanto Giuseppe se aproximava com as mãos calosas, procurando a pele branca e macia. Narcisa ficou imaginando onde ele teria comprado o brinco, era um brinco antigo, teria roubado de alguém, com certeza teria roubado, não poderia ser da mulher, mas ela logo já não pensava nisso, tinha o que fazer sob o corpo daquele homem, um homem velho, ela pensou, que dá um brinco velho, poderia ter trazido um lenço comprado do mascate, ou um litro de vinho, que beberiam ali mesmo, mas escolheu uma jóia, ela viu na hora, uma jóia de família, antiga e bela, com certeza tinha roubado, mas ela não teve tempo de pensar em mais nada, ele já estava satisfeito, deitado sobre seu corpo, cheirando seu pescoço, o rosto contra o brinco, sem ver nada. O suor de Narcisa era bom, pensava Giuseppe, ele queria aquele cheiro todas as noites. Um homem devia ter sempre uma mulher jovem, enquanto a mulher tivesse este cheiro um homem não desanimaria, sempre faria as coisas que deve fazer, e tinha sido tão rápido, agora levantar, vestir as calças, trabalhar o dia todo, deixar Narcisa ali, ele não pensava no brinco ou na família, só olhava o corpo, atordoado pelo cheiro doce de suor, o cheiro de suor era perfume, Narcisa continuava nua, deitada sobre o vestido. O pescoço dela tinha ficado vermelho, ele havia esfregado a barba ali. Olhou o pescoço comprido, o cabelo longo. Viu o pescoço, não viu o brinco, não se lembraria mais do brinco, era como se ele sempre tivesse sido de Narcisa, nunca pertencera à sua avó. Maria viu o brinco quando Narcisa se abaixou sobre o prato de Cini. E gritou: sua vagabunda!, virando, com uma força repentina, a panela de polenta, que voou do fogão à mesa, todos saltando assustados para não serem queimados, alguns caindo de costas no chão, Narcisa sem se mexer, a polenta se espalhou nas tábuas, respingando por todos os cantos, nas paredes, e Narcisa parada, sem cara de susto, ali, em pé, reinando sobre homens, mulheres e crianças, sem nenhum respingo, bela e altiva como uma deusa, pensou Rossi, uma deusa num jardim decadente, mármore branco que os anos não comprometem e a umidade não embolora. Ela se sentou e começou a comer a broa preta, molhando-a no azeite.

Naquele mesmo dia, juntando suas coisas, Antonio Massa, sem olhar para os lados, sem se despedir de ninguém e sem nada de seu, indiferente aos latidos de Chignento, tomou a estrada, procuraria outro lugar, não podia mais suportar a Colônia, os companheiros de todos estes meses tinham sido canalhas. Ao sair da vila, cuspiu no chão, terra maldita, falou, e se foi sem levar nenhum dinheiro, arrumaria serviço fácil em Ponta Grossa, era trabalhador, dominava vários ofícios, seria útil naquela cidade. Não queria mais se lembrar do tempo que terminava ali, com sua partida. Era tudo passado, Narcisa nunca existira, fora só uma miragem, a mulher branca no meio da roça queimada, tantas vezes, um fantasma, ele se libertara, que ela ficasse com os machos, égua no pasto de potros aprisionados. Ele era livre, sentiu a alegria de estar na estrada, queria viver sozinho agora, um dia voltaria a ser anarquista, mas agora era apenas um homem que precisava de amor, de trabalho, de um quarto. Ele tinha a estrada. Quem tem a estrada ainda possui alguma coisa. Ficava pensando nos jovens, quando eles descobririam o sentido daquela estrada? Uns mais cedo, outros mais tarde. Ela existia não só para trazer colonos, mas também para permitir que fossem embora. Antonio Massa tinha trabalhado naquela estrada, o dinheiro fora para a caixa social, ela agora servia para sua partida, e isto era a melhor paga. Não suportaria mais andar pelas matas, queria uma cidade cheia de ruas. E pisou firme o chão que ajudara a aplainar. O passo era leve, suave, quase um arrastar de chinelos no assoalho de madeira tomado de terra, pois não havia tempo a perder com faxina, essa mania burguesa, todos ali eram homens, não queriam a casa organizada, não tinham cruzado o oceano para brincar de proprietários, a terra era a mesma que lavravam todos os dias, as botinas vinham sempre sujas, eles as limpavam na lâmina da enxada, enfiada de ponta-cabeça no chão ao lado da porta, em dias de chuva era preciso rapar o barro, mas entravam com as botinas ainda sujas, deixando uma camada de terra pelas tábuas do assoalho. Agora o barulho dos passos, os amigos dormindo no quarto ao lado, Rossi ainda lendo, a lamparina acesa na cabeceira da cama, ele deitado, apenas com as calças, o dorso nu, a barba se confundindo com os pêlos do peito; ele ergueu os olhos e encontrou, abrindo a cortina da porta, o rosto branco de Narcisa, que a lamparina tingia com uma luz bruxuleante. Era bonita. Uma deusa de mármore, pensou de novo. Depois do incidente na cozinha e da deserção de Massa, todos os

homens passaram a evitar Narcisa, estavam envergonhados do sofrimento causado ao amigo, os casados com medo das mulheres, que agora controlavam suas saídas, Maria Soldi e seu marido foram embora, levando a filha, e Narcisa ficou sozinha, sem seus presentes, era um corpo proibido, depois de ter sido tão freqüentado, todos ali eram contra a prostituição, lembrou Rossi, naquela noite, depois que o silêncio morreu e uma das mulheres começou a limpar a sujeira feita por Maria, que tinha saído chorando, não de raiva do marido, mas por não ter atingido Narcisa, era como se a juventude dela não pudesse ser maculada, e Maria sentira-se ainda mais velha, impotente diante da rival, então chorara, não pelo imprestável do marido, mas por não poder ser como a outra, por nunca ter sido como a outra, e reconhecera que ela era bonita, os homens tinham razão de gostar dela. Nada podia atingi-la, a panela de polenta sujando tudo, e ela invulnerável, era isso que a desgostava, pois ela própria tinha recebido, no ato de lançar a panela, grandes quantidades de polenta no braço, que queimaram sua pele, deixando-a roxa, por que, meu Deus, ela não pode ser atingida?, mas Maria mesmo respondia — juventude, ela tem a juventude, este mundo é dos jovens, não há lugar para uma mulher com quase sessenta anos e um marido desinteressado. Foi direto para a casinha, de onde só sairia dias depois, com a pouca mudança, marido e filha numa carroça, ela sacolejando os peitos flácidos por uma estrada esburacada, o que a deixava ainda mais triste. Com a sua saída do refeitório, as coisas tornaram-se menos tensas, Narcisa comia ainda seu pão, sem sujar os lábios de azeite, Rossi fez um longo discurso moralista, sem citar nomes, cada um era dono de seu corpo, podia usá-lo da forma que quisesse, mas jamais vendê-lo, o comércio era aviltante, estavam ali em vida comunitária, defendiam o amor livre, mas sem interesse econômico, pois se há desejo de vantagens, tudo se perde. A harmonia entre o indivíduo e a sociedade só poderá ser natural e espontânea quando todas as mulheres forem consideradas possíveis amantes, e todas as crianças, filhos coletivos. Só não aceitavam a prostituição, repetiu, a prostituição é uma doença do modelo familiar tradicional. Narcisa levantou-se com calma, como se todo aquele discurso não fosse para ela, e realmente não era apenas para ela, pegou o bule de café que estava na chapa do fogão, despejou um tanto na caneca e bebeu em pé, enquanto todos voltavam a fazer a refeição, ela então olhou para Rossi e viu

a maneira como ele a fitava, não era a maneira de um padre que tivesse trocado Cristo pelo socialismo, era o olhar de um homem desesperado. Tomou o último gole de café e foi ajudar a limpar a bagunça, e, depois, distribuir o pão. Para Rossi, ela deixou um pedaço maior. Agora estava ali, desde aquela noite não tinha tido encontros, era a puta da Colônia, não se importava com a acusação, que falassem dela, não recebia os presentes por ter feito amor com os homens, eles davam o presente antes, era uma forma de agradá-la, e mais do que sexo o que eles queriam era ver seu corpo, eles amavam vê-la, todos queriam o prazer de contemplar seu corpo, era como a terra virgem, depois da queimada, pronta para o cultivo, aqueles homens amavam sua juventude, ela não se importava com intrigas, só não agüentava ficar sem homem, sem ver neles a alegria de contemplá-la, precisava dos homens, dos jovens e dos velhos, era fêmea, sua beleza queria ser adorada, ela não se envergonhava disso, não mercadejava o corpo, que culpa tinha se todos lhe davam presentes?, quem tinha um corpo como o seu merecia presentes, mesmo que fossem ninharias. Naquela noite, depois de ajudar a limpar a sujeira de polenta, ficou sabendo por Escolina que os brincos tinham sido da avó de Giuseppe e que Maria os usara no começo do casamento, ela sempre falava nisso, e já os tinha mostrado a Escolina, mas o marido passara a proibir a mulher de mexer nas jóias, dizendo que seriam da filha. Escolina narrou isso quando foram juntas ao poço buscar água para lavar a louça, então ele não tinha roubado, cometera ato mais louco ainda, gastara a herança da filha, e Narcisa ficou alegre. Para mostrar que não dava valor a presentes, na volta do poço, na frente das mulheres e dos poucos homens que ainda estavam no refeitório, retirou os brincos lentamente, com movimentos sensuais, afastando o cabelo das orelhas e vergando um pouco a cabeça, e depois os colocou sobre as tábuas úmidas da mesa, e saiu em seu movimento de cobra, mexendo todo o corpo. Rossi pegou os brincos para devolver ao dono, mas os guardou e se esqueceu. Agora, ao ver o jovem em seu quarto, lembrou dos brincos, abriu uma lata em que jogava papéis e outras coisas, e os retirou, estendendo-os para Narcisa. — Coloque em mim — ela ordenou, abaixando a cabeça na altura do peito de Rossi. Ele obedeceu, delicadamente.

Um casamento pobre, com pouca comida e nenhuma animação, pois os tempos estavam difíceis, vários colonos chegados naquele fim de 1891 já tinham ido embora, o que diminuía a caixa social, mantida por conta de subsídios e do trabalho externo. Os noivos foram para o cartório no carroção, uns poucos amigos de testemunhas, e se casaram com suas roupas velhas, a mãe da noiva, Jacomina Barone, triste porque queria casamento na igreja, mas Vicente Benedetti, o pai, foi ríspido: eram anarquistas, nunca se esquecesse disso. Evangelista estava esperando no cartório, Cattina, por ter partido, não participou do casamento da irmã Aldina, que vivia com os pais em Palmeira. Ela estava alegre. Casava-se aos vinte e oito anos, quando já não tinha esperança de encontrar um marido, mas Egizio Cini, um dos jovens que não tiveram encontros com Narcisa, estava apaixonado e desiludido com a Colônia. — Vamos tentar a vida em Curitiba — disse. Por isso, a festa de casamento foi também de despedida, mas eles só partiriam várias semanas depois, sem nenhum festejo, envergonhados, encontrando vários conhecidos na capital, onde todos tentavam recomeçar a vida longe das atividades rurais, mas com a marca do anarquismo, que ora eles assumiam, erguendo-se, orgulhosamente, contra os patrões, ora negavam — havia sempre alguém para acusá-los de desordeiros. — Um dia teremos que esquecer o anarquismo — disse Egizio, quando os companheiros começaram a promover arruaças na cidade. Na Colônia, antes de sua partida, mas depois deste primeiro casamento, os jovens voltaram a freqüentar o corpo de Narcisa, agora sem o jogo de antes, ela saía com um e com outro, provocando o ciúme entre os homens, que a queriam só para si, desconhecendo que isso era impossível, Narcisa amava o homem, sem fazer qualquer distinção. Os casados se irritavam com aquela bagunça e com o pouco serviço, só eles não podiam se divertir, tinham famílias para cuidar.

Colônia Cecília, 10 de maio de 1892 Querido Sestilio A cada semana temos mais baixas aqui, estão indo embora alguns dos jovens. Não suportam mais as condições de trabalho, dominadas pelos pais de família, que se sentem no direito de fazer as coisas do jeito deles. São agricultores experientes, ninguém nega isso, mas foram os jovens que salvaram a Colônia, mesmo não sabendo fazer corretamente as tarefas. Sob estas novas rivalidades existe outro motivo. Um motivo de saias. Há meses, uma das colonas solteiras, mulher bonita e sensual — coisa rara nesta comunidade em que são mais freqüentes homens broncos e mulheres sem feminilidade —, tem se entregado a qualquer um. Os casados conseguem resistir a seus encantos, não todos os casados, mas a maioria. Já os jovens, depois de meses de abstinência, trocaram os serviços na lavoura pelo cultivo deste outro terreno, e não posso censurá-los, apesar de ser contra esta prostituição disfarçada — eu mesmo fui atraído pelos encantos da moça, e isso me dá melhor compreensão da fraqueza dos machos, que andam perdidos pelos campos, olhos sonhadores. Todo o entusiasmo inicial e aquele vigor acabaram sendo transferidos para o sexo, eles agora vivem atormentados por esta mulher, que se diverte com nossa necessidade, sem entender que, com seu corpo, ela nos tira de nosso ideal. Agora só pensamos em estar com ela, e quando não estamos a seu lado é impossível trabalhar de forma satisfatória. As famílias reclamam diariamente de nossa pouca produtividade, e isto aqui tem se transformado em uma grande confusão, com gente indo embora, outros chegando para logo desanimar por conta de nossas discórdias e de nossa pouca capacidade de trabalho, de modo que, em momentos como este, penso que a Colônia não sobreviverá por muito tempo. E o que vai destruí-la não é a fome, nem o governo, nem a ganância, mas essa maldita falta de mulher. Se houvesse companhia para todos, se a

gente conseguisse pôr em prática o casamento comunal, aí sim teríamos vencido nosso maior problema. Para não pensar tanto na falta de uma companheira (só em momentos de desespero, e meio constrangido, procuro essa moça que nos presta favores sexuais), tenho me dedicado a ensinar as crianças e passo parte da manhã no refeitório, lecionando primeiras letras, mas também explicandolhes os princípios do socialismo e do anarquismo, e esta tem sido minha melhor lavoura, embora os frutos sejam de maturação longa e imprecisa. Ensinar as crianças me tira um pouco das disputas da Colônia e faz bem, num momento em que tudo perde o sentido. Sei que não devemos deixar isso acontecer. A Colônia pode ter vida longa e gloriosa. Gostaria, por isso, que não se esquecesse de mandar todo tipo de sementes de frutíferas, pois continuamos querendo aumentar o pomar. Receba o afeto de seu irmão Giovanni Rossi

Os balaios feitos de bambu trançado vão deixando nas costas malhas em baixo-relevo, mas os anarquistas sobem a encosta com a primeira colheita grande de milho, despejando as espigas maduras no carroção parado no fim da estrada. A roça de quinze hectares tinha sido feita na parte mais baixa da propriedade, e isso obrigava a um esforço imenso na hora de retirar o produto, o carroção sem poder sair carregado lá de baixo, o serviço seguindo lento. Antes da colheita, eles tinham dobrado os pés de milho com as espigas já granadas, para que secassem, agora iam colhendo as espigas com palhas secas, espigas enormes, e isso era motivo de orgulho. Meses antes colhera-se o feno, embora quase não sobrassem animais, apenas quatro bois, duas vacas e dois cavalos, a maioria do gado fora levada pelos desertores. Isso agora não tinha importância, eles estavam em plena colheita, venderiam parte do milho e um tanto ficaria reservado para o fubá. Quando o milho ainda estava verde, os vizinhos se reuniram para fazer pamonha, comida estranha para eles, e muitos não gostaram. O milho era ralado, depois o caldo preparado com banha e açúcar, com esta massa enchiam os pequenos pacotes feitos com as palhas, e por fim o cozimento em tachos enormes, cobertos com os sabugos refugados. — Prefiro polenta doce — falou Tranquilo. Mas acabaram logo com a pamonha e cozinharam grandes quantidades de milho verde. Os trabalhadores mantinham-se alegres, apesar do peso dos balaios e do incômodo do bambu no ombro ou nas costas. Um outro grupo de voluntários furava um poço ao lado do refeitório, pedaços de pedra iam sendo arrancados pela picareta, erguidos por um balde, e, aos poucos, a água ia aparecendo, era um serviço que roubava a energia e amenizava as discussões, todos tinham o que fazer naquele mês, e a colheita unia novamente os anarquistas, que, após a janta, exaustos, iam dormir sem

tempo para debates. Mesmo durante o serviço, por causa do esforço, falavam pouco, sem esconder a alegria discreta de quem vence a natureza, conseguindo tirar dela o seu sustento. Um ou outro moço se ausentava algumas horas, e todos sabiam que ele também trabalhava, cansando-se de maneira mais prazerosa. Narcisa não ajudava mais na cozinha nem cuidava do jardim da Colônia, que, neste período de trabalhos urgentes, ficara entregue às ervas daninhas. As demais mulheres iam para a horta, mas três hectares eram muita terra e o mato crescia por tudo. Isso, no entanto, não tinha muita importância, pois a carroça vinha cheia de espigas, despejadas nas salas de algumas casas e no barracão de ferramentas, que estava sendo ampliado, pois queriam em breve transformá-lo em oficina. Esta fartura, que ainda não chegara à mesa, animava os anarquistas, e Rossi parou com as aulas para que todos pudessem ajudar nas tarefas agrícolas. O trabalho exaustivo e contínuo unia os grupos, Rossi percebeu isso e passou a ficar mais confiante no destino da Cecília, projetando abrir novas áreas de plantio, aumentar os animais e o pomar. Havia conseguido dezenas de mudas de laranjeiras e logo estaria na época de semear o centeio. A safra de feijão, que não fora grande, estava guardada e só seria usada para consumo. Narcisa era a única que vivia apenas de seu corpo, percebendo que ele podia lhe dar coisas mais úteis do que pedaços de salame ou tecidos baratos, e esperava que a colheita, somada aos trabalhos externos que os anarquistas faziam, trouxesse prosperidade, aí sim poderia levar vida confortável, aqueles homens precisavam dela, deitava-se com eles por pequenos mimos, mas presentes melhores logo começariam a aparecer, e ela sempre olhava, sonhadora, sem ainda poder comprar, as coisas mais caras que os mascates traziam. A primeira carga de milho já inaugurou o moinho construído no rio, e o fubá rendeu uma polenta que todos comeram com o apetite aumentado pelos longos dias de trabalho — era farta, sobrou na panela e foi jogada para as galinhas, numa prova de que outra época começava. O feijão estava armazenado, o milho rendia mais do que o esperado, a horta, apesar do mato, dava verduras e legumes, as galinhas aumentavam e cresciam. E ainda havia quem afirmasse que os anarquistas nada produziriam sem o controle de um chefe. Era só vê-los de um canto para outro, sempre operosos, cantando de novo suas músicas, assobiando, as mãos machucadas,

as costas ardendo, mas os olhos sempre com um brilho de satisfação. À tarde, Jean Gelèac alimentava os porcos. Descia aos chiqueiros com abóboras maduras, capim, um pouco de milho e passava alguns minutos ali. Tinham catorze porcos, ele os contava todos os dias, estavam bonitos, roliços, e era um prazer vê-los fuçar a lama, grunhindo, sujos e alegres. Os anarquistas se assemelhavam àqueles porcos, estavam engordando novamente, ainda andavam com roupas velhas, imundas por causa do muito serviço. Os porcos se multiplicariam rápido, ele olhava as porcas com suas ancas gordas e ficava imaginando como tudo seria diferente se houvesse mulheres para todos. E logo estava excitado — os porcos eram livres, belos na sua sujeira, ele tinha vontade de pular o cercado e amar as porcas, mas sentia vergonha e transformava este entusiasmo em outro tipo de desejo. Lembrava-se de carne de porco assada ou frita, de lingüiça, fazia muito tempo não comiam carne em abundância. Ficava com água na boca ao ver a anca dos porcos. Podia sentir o cheiro de um pernil frigindo no forno, embora ali reinasse apenas o azedo típico dos chiqueiros, ele olhava aqueles animais e os imaginava na mesa, dourados, o cheiro bom da carne, era um pequeno devaneio, por isso gostava de ir à tarde tratar desses animais, depois passava pelo galinheiro, via as dezenas de galinhas, os ovos nos ninhos feitos em cestos, tudo estava indo bem de novo, ainda era um número pequeno de animais, não podiam tirar nem os ovos nem as galinhas para as refeições. Ele sentia uma vontade muito grande de comer carne e ovos, e salivava pensando em receitas nunca experimentadas na Colônia, mas sabia que deviam ter paciência, elas tinham que continuar ali para a multiplicação, o que estava em jogo era a prosperidade de todos e não apenas seu desejo egoísta de saciar uma fome estranha, que se confundia com sexo. Os animais podiam se multiplicar, eles não, eles tinham que esperar. Subindo já noite para o refeitório, Gelèac sonhava com carne assada, podia até sentir o cheiro dela, mastigava-a no vazio da boca, mas, ao sentar para a janta, encontrava polenta ou feijão.

Colônia Cecília, 9 de agosto de 1892 Meu caro Sestilio As colheitas foram boas, todos estão contentes com os resultados deste ano, esperando que, daqui para a frente, com estoque de alimentos, possamos levar vida mais tranqüila, com tempo para o ócio, para a leitura e para as artes, pois queremos montar um grupo de teatro, que vai ajudar principalmente na formação das mulheres casadas, ainda não convencidas dos princípios anarquistas. Elas são o maior problema que enfrentamos, sempre preservando seus casamentos monogâmicos, não sei se por medo de perderem seus maridos ou apenas por acomodação e mesquinharia de sentimentos. Não aceitam outros homens e não deixam que seus homens procurem outras mulheres, criando as filhas para o mesmo tipo de vida que levam. No momento, não podemos receber famílias de agricultores, mesmo que sejam pessoas de boa índole, o objetivo é controlar o aumento da população. Somos pouco mais de sessenta pessoas, e qualquer vinda inesperada pode comprometer o equilíbrio só agora conseguido, com a diminuição dos anarquistas e as colheitas. Nossa situação financeira, pela primeira vez, está estável, e isso é motivo de orgulho para todos. Peço a você que localize, entre os interessados, dois ou três sapateiros, com família, de preferência com filhas moças, e um ferreiro. Precisamos dessas pessoas para criar uma sapataria e para começar a fábrica de embalagens de madeira, o que representará uma renda importante, pois temos em nossas matas árvores suficientes para anos de trabalho. Volto a me entusiasmar com as possibilidades da Cecília, mas ainda nos fazem falta as mulheres emancipadas dos preconceitos burgueses, que queiram diminuir o sofrimento dos solteiros, cada vez mais alheados da vida coletiva, carentes de afeto e de diversão. Essas mulheres livres tirarão o poder das casadas, criando uma nova irmandade, em que o ciúme e a posse

sejam definitivamente banidos, permitindo assim a vitória do clã socialista contra o egoísmo familiar. Espero que todos estejam bem aí. Com a afeição do Giovanni Rossi

A recepção do Dr. Grillo não fora propriamente uma recepção, ele apenas indicara o caminho para a Cecília, sem oferecer nenhum auxílio para o novo grupo, pequeno, três famílias e um casal sem filhos, dizendo aos recém-chegados que os anarquistas só tinham trazido problemas, embora Rossi fosse homem correto, deviam se fiar nele, era o coração da Colônia. Caminharam os dezoito quilômetros até Santa Bárbara sem muita vontade, erguendo os pés com preguiça, mudando os passos o mais lentamente possível, tanto sofrimento para uma coisa que, desde que se encontraram com os anarquistas de Curitiba, vinha se revelando frustrante. Estavam preparados para a pouca alimentação e o muito serviço, a Colônia não prosperava pela falta de trabalho organizado, cada um fazendo o que bem quer, e não o que é preciso, qualquer atividade precisa de bom senso, e bom senso é algo que nem todos possuem — como pode funcionar uma Colônia que se guia até pelas piores cabeças? Tinham pensado em ficar em Curitiba, a cidade era pequena, com indústria nascente, precisava de trabalhadores e havia colocação para sapateiro e ferreiro, mas o companheiro Aníbal, sem profissão nenhuma, que vinha apenas com a mulher, defendeu os anarquistas, não deveriam deixar que maledicências interrompessem a viagem, havia um destino definido, eles iriam até o fim, mas, na dúvida, os dissidentes sempre eloqüentes em suas críticas, eles foram ficando na hospedaria dos imigrantes até que vencesse o prazo, agora ou se estabeleciam na cidade ou procuravam outro lugar. Adele Serventi disse que estava decidida, iria a Palmeira, mesmo sem o companheiro, e isso animou os demais; se uma mulher, uma mulher franzina, sem profissão, sem dinheiro, queria enfrentar este finzinho de viagem, eles também podiam tentar. Aníbal ecoou as palavras de Adele, não ficaria em Curitiba. Com menor convicção, os outros acabaram concordando. Ao saber disso, Massa, que morava desde alguns meses na capital, recomendou-lhes que comessem

bastante antes de partir, seria longo o período de fome e de trabalho. Até Palmeira, na diligência que cortava oceanos de capim, o grupo manteve a força de sua escolha, falando dos novos projetos, mas o encontro com o Dr. Grillo esfriara completamente o pouco entusiasmo que os conduzia àquelas matas, onde não encontrariam animais ferozes, mas as dificuldades do convívio humano; o próprio anfitrião alertara para as intrigas dos colonos da Cecília, querem tudo, esperam tudo, você faz, eles desistem e saem espalhando mentiras. — Um bando de ingratos — desabafara o médico. — Ingratos barulhentos. Sabem fazer confusão, não muito mais do que isso. Os novos anarquistas seguiam com esta frase na cabeça, tinham vindo para viver um sonho de igualdade, para produzir coletivamente, eram pessoas acostumadas ao serviço, o sapateiro Vittorio Torti repetia isso, só queria fazer seus sapatos, levar a vida com alguma fartura, sem precisar se preocupar com o aluguel de um cômodo para a família, não se importava com o fato de não ter salário, desde que houvesse comida, moradia e instrução para os dois filhos, era trabalhador, afirmava para si mesmo Vittorio Torti, trabalhador do ramo sapateiro, não se sentia disposto a ganhar a vida na lavoura, nem sabia direito como se plantava um pé de couve, sempre morara em cômodos na cidade, sem quintal, trabalhando apenas com couro, era só o que sabia fazer, tinha medo de passar fome, por isso estava triste e arrastava os pés. Tinha feito sapatos novos para o grupo, Adele seguia com uma botina masculina, pesada e um pouco grande, mas nova, e isso era uma forma de respeito ao anarquismo, queria demonstrar que em breve todos teriam calçados iguais àqueles, mas eles arrastavam os solados na terra, e quando chegassem lá ninguém notaria, pela poeira que os cobria, que eram sapatos feitos para a viagem. Alegre mesmo, de uma alegria contida, mas profunda, apenas Adele Serventi; ela conhecera Rossi na Itália, falara ternamente com ele, vira a verdade em seus olhos, pode-se ver a verdade no brilho dos olhos de uma pessoa, as pessoas que falam tudo como se fossem chorar, mas sem tristeza, nunca mentem, estão comovidas com a própria fala, ela tirara esta conclusão vendo o médico veterinário Giovanni Rossi divulgar a Colônia, a necessidade de mulheres; também percebera que não era só ideologicamente que ele defendia o amor livre, a mulher que não fosse escrava dos caprichos de seu homem ou de seu pai, havia uma necessidade pessoal, descobrira isso na maneira emocionada do anarquista falar. Procurara-o depois da palestra e

conversara com ele, confirmando sua primeira impressão — estava ali um homem que vivia seus sonhos e os vivia de forma verdadeira, eram estes que mudavam o mundo, mesmo que depois o mundo voltasse a ser o que sempre fora, vale de lágrimas e de intrigas, mas ele tinha o poder da convicção e da obstinação. Desde aquele dia, tudo que ela desejava era estar junto com homens iguais a ele, que lutavam por algo tão difícil e improvável, ela esperava encontrar mais pessoas assim, e agora o Dr. Grillo dizendo que os anarquistas eram mesquinhos como todos os homens, desiludindo-a, mas ele também ressaltara a grandeza de Rossi, e ela pensava — manter um ideal era para poucos, Rossi vivia o seu, ele não a enganara, não enganara ninguém, talvez até enganasse a si próprio com esta história toda, só que este tipo de engano nada tinha de traição, era a qualidade maior dos sonhadores. Cansando suas pernas naqueles caminhos que subiam e desciam colinas, ela ia pensando nos olhos de Rossi — quando ele veria o que estava além de seu sonho? quando sairia desse transe? Nunca, era da raça dos puros, dos generosos, dos idealistas. Aquele brilho úmido nos olhos era sinal de que não pertencia à realidade, mas ao sonho. Adele estava entrando dentro de seu sonho, e umedeceu os olhos, deixando uma lágrima gorda no canto dos cílios. — Não chore, já estamos chegando — falou Aníbal, sem tocar na companheira. — Não estou chorando — ela disse, a voz seca, em contraste com os olhos molhados. Na Colônia, à noite, ninguém lhes deu atenção, tinham ficado em Curitiba mais tempo do que o necessário, o galpão para a oficina já estava pronto, haviam comprado instrumentos para a sapataria e a funilaria, já poderiam estar trabalhando, mas preferiram crer nos desertores, que só sabiam gritar contra tudo e todos. Ninguém falou sobre isso aos recémchegados, rápida foi a conversa, mas eles se sentiram indesejados. Adele se entristeceu, igualando-se aos demais, perdia o único sentimento que a movia, a lembrança dos olhos de Rossi, olhos que ela encontrou frios e raivosos, sem o menor brilho. Havia mudado, ela pensou, coisas muito tristes deviam ter acontecido para que ele deixasse morrer aquela luz úmida, visível sob as lentes de seus óculos. O sonho estava se desfazendo, era isso, o sonho não tinha resistido àquela vida rude, ela olhava as casinhas pobres, as roupas estropiadas, as pessoas sujas, crianças descalças

no pátio, os sapateiros teriam muito serviço, sim, pelo menos seriam úteis, e Adele percebeu que o ideólogo dera mais atenção aos profissionais, que ele não conhecia, do que a ela, tratada com uma indiferença quase agressiva. Os sapateiros melhorariam um pouco a vida daquela gente, mas como eles poderiam ajudar? Aníbal não fazia nada, não era bom trabalhador, não conhecia a agricultura, na Itália tinha vivido mais das ações políticas do que do trabalho, e aqui não havia ninguém para ser convencido, todos já viviam sem patrões, eles precisavam apenas sobreviver fora da velha estrutura social, criando outra, mas para isso tinham que aprender coisas práticas, ela não conseguia imaginar Aníbal trabalhando, era homem de greves, discursos, lutas. Adele compreendeu a situação na primeira noite, quando jantou com os companheiros, recebendo o olhar desconfiado das mulheres, mas queria ser útil e já chegou ajudando na cozinha, Amália Minardi disse — hoje não precisa ajudar, é visita, a partir de amanhã sim. Nunca fui visita em lugar nenhum, ela respondeu, pegando a bacia de almeirão para preparar a salada, levando comida para a mesa, ajudando na distribuição dos pratos e das colheres e só se sentando depois de ter providenciado tudo, para comer rapidamente o feijão com lingüiça e almeirão, e já voltar a se mexer na limpeza da cozinha. Todo este seu interesse não foi suficiente para chamar a atenção de Rossi. Em silêncio, ele olhava o prato. Não existia nada além daquele prato, e ele comeu tudo com movimentos minuciosos, como se a vida dependesse daquelas tarefas insignificantes ou como se estivesse diante de um peixe cheio de espinhas perigosas. Só o prato de comida mereceu sua atenção, e foi Adele que o retirou ao fim da janta, ele então ergueu os olhos e a viu, como se pela primeira vez. Adele percebeu os lábios borrados de gordura. A lamparina jogava sombras naqueles olhos. Alguns dias depois, quando já havia intimidade entre os novos italianos e os velhos anarquistas, Adele Serventi passava com Rossi algumas noites da semana, consolando-o com seu corpo, que é o melhor de todos os consolos, porque feito sem palavras, eles quase não conversavam durante os encontros, ainda assustados com o que o líder anarquista insistia em chamar de experimento social, embora gemesse como criança doente sobre o corpo minúsculo de Adele. Ela enfim tinha achado o que fazer ali além de preparar comida e executar outras tarefas domésticas. Completava-se, a milhares de quilômetros, aquilo que tivera início numa palestra sobre o amor

livre, quando Rossi falara de forma tão convincente sobre mulheres emancipadas, ela era a primeira, pois Narcisa fazia apenas o comércio do corpo, cada um pagando o preço possível, o que desagradava Rossi. — Essa mulher está semeando a discórdia. — Na verdade, os homens é que semeiam a discórdia nela — falou Adele. — Talvez. Mas ela se aproveita de nossas fraquezas. — Nossas? Ele então contou que, mesmo desaprovando, tinha procurado aliviar-se naquele corpo, fizera isso com ódio de si mesmo, era um homem como qualquer outro, não um profeta do Velho Testamento, tinha um pouco mais de controle, mas sofria as mesmas urgências. — Também sirvo para você descarregar a excitação? — Você sabe que é diferente. Há mais do que desejo entre nós. — O que realmente há entre nós? — Afeto, idéias comuns. — Só isso? — Abnegação mútua, companheirismo. O seu sonho cego continuava, ele só via a Colônia, que tinha necessidades mais intensas e mais nobres do que as suas, e isso frustrou Adele, ela queria ser vista não como parte de uma experiência. Os óculos, ela culpou os óculos de Rossi, tinham lentes que deformavam tudo à sua volta, tingiam de princípios o que era apenas sentimento. Não queria parecer um romântico, pensou Rossi ao ser perguntado sobre seus sentimentos, estava ali como socialista, era um socialista que se encontrava com Adele, neste casamento sem interesse egoísta, determinado por uma necessidade ideológica; ele renunciara à vida pessoal, estava chegando aos quarenta anos e só se unira a alguém porque havia uma função científica, precisavam provar a viabilidade do amor livre, a satisfação individual era carente de sentido. Tinha que arrancá-la, como se fosse erva daninha no meio das plantas boas, se crescesse tomaria conta de todo o terreno, sufocaria as plantas tenras que buscavam cultivar. À noite, quando se encontraram na cama de Rossi, ele queimando de desejo, ela tirou seus óculos, que faziam com que enxergasse o que acontecia nos extremos de seu campo de visão, embaraçando o que estava perto. — Por quê?

— O quê? — Tirar os óculos. — Quero você totalmente nu. Ele riu, era uma mulher carinhosa, tinha tido sorte, estava ali com aquele corpo de rã, pequeno, fino, aderente, que se encaixava tão bem ao seu, uma mulher que além de tudo era compreensiva, não usava seu corpo como arma, mas como manto, que protegia, aquecendo. — Você me ama? — ela perguntou. Em tão pouco tempo, seria possível amar alguém? E não havendo outras mulheres disponíveis, não estando ele à procura de uma namorada, como poderia saber se a amava? Sim, ele a amava como amava todo ser humano. Amava-a um pouquinho mais, porque ela era inteligente e carinhosa. Mas não passava disso. O que dizer? — Eu te quero bem, Adele. — E o que é esse querer bem? — Uma forma fisiológica de afeição. — Em mim, encontra apenas conforto? — Mais do que isso. Querer bem está entre vinte e oitenta graus centígrados do amor. — Agora, o termômetro marca exatamente o quê? — ela disse, deixando-se penetrar. — Talvez sessenta, setenta graus. — Com Narcisa, o que foi? — Apenas capricho, simpatia de uma hora, estava abaixo dos vinte graus. — E acima dos oitenta graus, o que é? — A loucura sublime. — Você não sabe o que é isso? — Não — ele disse, com voz comovida. Eles então pararam de conversar e se entregaram violentamente ao amor, nesta mistura de corpos em que, a certa altura, já não se sabe quem o homem, quem a mulher, num tumulto de vozes e gemidos no súbito desaparecimento da realidade física, tudo rodopiando, o centro do mundo se fazendo ali onde se dá a junção dos sexos. Já pacificados, Adele perguntou o que ele tinha sentido. Rossi se calou e voltou a explicar que devia ser uma afeição sem romantismo a modalidade amorosa do novo homem, da nova sociedade, que começava ali com eles.

— Querer bem é uma mistura de volúpia, sentimento e inteligência. — Então você realmente só me quer bem? — Isso já basta para a felicidade emocional de uma pessoa. — Nunca ir além dos oitenta graus? — Nunca. Fez-se o silêncio que antecede o sono. Lá fora, a música irritada das palmeiras anunciava chuva, e aquele vento entrava pelas frestas da casa de madeira, esfriando o quarto. Adele puxou o cobertor sobre os corpos nus. Crianças e adultos, em pouco tempo, estavam bem calçados, os sapateiros trabalhavam rápido, primeiro atendendo aos pedidos dos anarquistas, logo recebendo encomendas das colônias vizinhas, a caixa social crescendo, enfim a Cecília deixava de ser apenas agrícola, era o início da atividade industrial, a fábrica de barris também já produzia, e, semanalmente, uma carroça levava a Palmeira as embalagens feitas na Colônia. Em uma das viagens de volta da carroça, chegou o espanhol Puig Mayol, velho conhecido dos anarquistas italianos, que conviveram com ele na Europa e sabiam de sua propensão para o roubo. Agindo assim, ele julgava estar lutando contra os patrões, por isso alardeava-se anarquista e viera se juntar aos revolucionários. Cabelos crespos e longos, um bigode torcido com capricho, roupas boas, cruzando o colete a corrente de ouro de um relógio, era homem de estatura senhorial, mãos habilidosas para preparar cigarro e para a mesura, visivelmente impróprias para o trabalho. Se sua vestimenta e aparência contrastavam com as dos anarquistas, os sapatos novos destacavam ainda mais a pobreza das roupas e o moreno do rosto, sua voz compassada, quase ciciada, criava em todos a consciência de que a Colônia era barulhenta demais. Quem passou a dominar as reuniões foi o espanhol, formavam-se pequenos grupos para ouvi-lo narrar suas andanças pela Argentina, de onde vinha, vagando num itinerário incerto, com o objetivo de conhecer cidades brasileiras propícias às idéias revolucionárias. A fama de ladrão, atenuada pelo sentido social que ele fazia colar a ela, não criou embaraços a Puig Mayol, logo aceito no grupo; não podiam fazer discriminação, pensava Rossi, e chegou a dizer isso a Adele, que insinuou o perigo daquela presença. — Sua adesão ao nosso grupo vai mostrar como as distorções do meio

burguês se anulam sob o anarquismo. Uma das distorções abolidas por Puig foi o trabalho, passava o dia palestrando, mais com mulheres do que com homens, depois de ter levantado tarde e feito uma caminhada esportiva pela vizinhança, para reconhecer as possibilidades de ampliação de nossas atividades, disse em uma das reuniões, com estilo teatral, convencendo os companheiros. Com postura aristocrática, nunca se sujava, as roupas sempre sem rugas, os sapatos, por mais que ele andasse pelas poeirentas estradas de Santa Bárbara, permaneciam invariavelmente limpos e lustrosos. Amália Minardi disse que era coisa do demo ele não se amarrotar nem se sujar, Adele Artusi riu, coisa de preguiçoso, de vagabundo, apenas isso. Inspecionava os serviços da Colônia, com sugestões para garantir a produtividade das videiras, propondo uma cova mais funda para as mudas de laranjeiras, o sol dos trópicos resseca a terra, sem saber que estavam sobre terreno úmido. Os trabalhadores, no entanto, diante daquela autoridade desinteressada, começaram a aprofundar as covas. Para Rossi, Puig era apenas vítima de sua formação, em breve estaria integrado à vida anarquista, sentiria a necessidade de produzir num meio em que não havia elementos explorando o trabalho alheio, todos com seus papéis naquela pequena comunidade que representava a média da população européia. — Temos até um ladrão charmoso — falou Adele Serventi, quando ouviu esta explicação. Estavam sozinhos na cama, tinham acabado de fazer amor, e Rossi quis saber se ela se interessava por Puig. — Em que sentido? — Sentimentalmente. — Não, talvez um pouco de volúpia. — O que impede de aceitá-lo como amante? — Ausência de caráter. — Você não gosta dele? — Gosto muito dos bons anarquistas para gostar dele. — Acha que ele vai nos trair? — Vai se aproveitar, com certeza. — A desconfiança também é doença burguesa. Adele riu, pensando que a ingenuidade era a doença inversa e mais comum nos idealistas, mas não falou, voltando à sua casa para se encontrar

com Aníbal, que agora bebia mais do que o normal e ficava andando pela Colônia na companhia de Puig — um, corpo e olhos machucados; outro, a altivez de um lorde. Aníbal não tinha encontrado sua função dentro da Colônia, ajudava em pequenos serviços na oficina, nunca ia ao campo, por sua inaptidão para o trabalho agrícola. Quando se unira a Adele, ainda na Itália, meses antes de vir para o Brasil, fizera-o apenas por conveniência, sem sentimentos mais profundos; estava ali uma mulher limpa e inteligente, seu corpo o atraía, provara sua força em uma vida só de sofrimentos, teria cuidados com o novo companheiro, então se uniram sem amor, um pouco acima dos vinte graus, e imigraram juntos, levados pelo sonho da sociedade perfeita. As novidades sexuais que eles estavam vivendo fizeram Aníbal descobrir que a temperatura de seu relacionamento subia, ele agora, principalmente nos momentos em que era preterido, amava Adele, não suportava ficar sozinho por muito tempo, por isso ela voltava para casa depois de seus encontros com Rossi, ouvindo as mesmas reclamações. — A mim você trata como um cão. — Não deixe o egoísmo tomar conta. — Se eu fosse inteligente como Giovanni ou atraente como Puig, você teria aceitado um amante? — Rossi não é meu amante, você sabe. E não suporto esse espanhol. — Algum atrativo... — Como assim? — Para dominar, um homem deve ter algum atrativo. — Nós lutamos contra toda forma de dominação. — Sou um homem sem nenhum atrativo — começou a chorar. Adele se aproximou, abraçou-o e fez carinho em seu rosto, ele sofria mais do que podia confessar publicamente, o socialista nele não o deixava fazer críticas a esta experiência amorosa, tinha que contribuir de alguma forma, seu trabalho era pouco, percebeu que sua ajuda seria essa, compartilhar a mulher. No começo, tinha sido mais fácil, agora ele a amava, muito mais do que Rossi, que amava em Adele apenas o amor por ela praticado. Adele tinha consciência disso, cada dia o amor de Aníbal crescia, tornando-o carente de demonstrações. Dormiram abraçados, ele apertando-a com força contra o peito, ela incomodada com o peso morto daquela perna sobre as suas.

Todo mundo já sabia, principalmente as mulheres, que Puig Mayol estava passando boa parte de seu dia com Narcisa, os dois eram vistos sentados sob as árvores, na beira do rio, ela servia o espanhol na hora das refeições, agora ele era o único a receber este favor, e isso o distinguia ainda mais no meio do grupo barulhento. Foi Adele Serventi quem começou a notar que Narcisa se vestia melhor, esse espanhol está cobrando os favores sexuais dos solteiros, deve ter imposto um valor, Narcisa está na fase profissional, não é mais amadora, recebendo o que lhe oferecem. Da cidade, Puig trazia tecidos e pequenos presentes para Narcisa. Os dois tinham realmente se tornado um perigo para a Colônia. Falaria isso com Rossi, Puig institucionalizava o amor frívolo, que tinha muito menos de vinte graus; na verdade, carecia totalmente de temperatura. E era um risco para o amor livre, em que deviam entrar volúpia, sentimento e inteligência. Adele pensou muito sobre o que seria a inteligência. Volúpia e sentimento eram conceitos fáceis, mas como o querer comportava a inteligência? Então ela concluiu que inteligência era, para Rossi, cálculo, quando um relacionamento atendia também a uma finalidade definida. No caso deles, este cálculo era a destruição da família. No caso de Puig, o favorecimento material. Os dois tipos de relacionamento tinham princípios próximos. O que os distingue é o sentimento. Os sentimentos e não as idéias fazem os homens bons, pensou Adele. Discutiria estas questões com Rossi, não podiam permitir que isso acontecesse. Puig percebeu que a única mulher que não se deixava dominar por seu fascínio era Adele Serventi; tentara dar-lhe um vidrinho de perfume, trazido para Narcisa, e ela dissera que não suportava esse tipo de coisa, provando que não gostava dele. Ela constituía um perigo, principalmente por dormir com Rossi. Então Puig se aproximou de Aníbal, trazendo sempre vinho e pinga para o marido traído, era assim que o chamava, depois que o outro se embebedava, marido traído, embora todos soubessem que a união dos dois fora informal. Aníbal começou a se sentir injustiçado, e o álcool aguçava esta consciência dolorosa. Vendo-o sempre bêbado, apesar da recomendada abstinência alcoólica, e querendo proteger o companheiro que já sofria tanto, Adele não falou com Rossi sobre o perigo que era ter Puig sob o mesmo teto, Aníbal também representava um risco. Poderia recusar-se a compartilhar sua mulher, na intimidade ele sempre repetia, principalmente quando bêbado, que ela era sua mulher, quem tinha trazido Adele para o Brasil? Quem dera segurança a ela quando ficara

viúva? Quem suportara suas crises de enjôo na viagem? Tudo tinha sido feito por ele. O dono. Os solteiros também protegiam o espanhol, que regularizara os encontros com Narcisa, dispensando-os daquela procura pelos campos, que consumia tempo e os deixava tensos. Agora havia horário e lugar para os encontros, usavam a pequena casa em que Puig pretendia instalar uma fábrica de compotas, e que tinha sido cedida para este fim. Sempre aparecia algum homem à luz do dia, com o pretexto de ver os andamentos da indústria de doces, para um encontro tranqüilo e confortável, sobre um pelego posto em um banco, no qual Narcisa descansava o corpo branco. Do lado de fora, fingindo alguma atividade, limpar o terreno, preparar um cigarro, brincar com Chignento, Puig esperava o fim da visita. Rossi sabia de tudo, mas os solteiros precisavam de sexo tanto quanto ele, e agora via como era bom amar regularmente, nunca se sentira tão jovem, nem aos vinte anos. As mulheres casadas falavam, os pais de família temiam por suas filhas e exigiam que as mães nunca as deixassem a sós com o espanhol, aumentando a tensão daqueles dias. Numa noite sem lua, Puig e Narcisa se apossaram de quinhentos milréis, resultado da venda de parte de produtos e do pagamento de uma grande quantidade de barris, dinheiro guardado na lata da caixa social, sempre disponível a todos, e partiram pela estrada construída pelos anarquistas. Levaram também a espingarda de caça, mas isso só foi descoberto quando Jean Gelèac, cansado de comer sem carne, quis caçar algum animal. Ficou com muita raiva e estrangulou três galinhas, entregando-as para as mulheres da cozinha. No ovário, havia ovos de diversos tamanhos, que foram cozidos no meio da carne. Mas ninguém tocou neles.

Colônia Cecília, 2 de janeiro de 1893 Meus caros Sestilio e Properzia A imagem da Colônia está cada vez pior aqui no Brasil, e isso me deixa preocupado. Alguns dos desertores, prefiro não citar nomes, estão confundindo anarquia com desordem, e o resultado mais grave até agora foi a prisão de um grupo que assaltou a casa comercial Lobo & Cia, de Curitiba. Ser contra os patrões e a propriedade é coisa nobre; lutar coletivamente para o fim deles, obrigação de todo socialista. Mas tirar proveito pessoal é abominável. Os responsáveis pelo crime? Dois casais. Um dos homens fugiu e outro acabou condenado a oito anos de prisão, as mulheres foram absolvidas, e isso se tornou notícia em todo o estado, sempre com destaque para a origem deles. Além deste fato, recentemente houve em Palmeira um grande tumulto de colonos, que contou com a presença de alguns dos nossos, e pronto se espalhou que os socialistas da Cecília haviam saqueado casas de comércio, pois de uma hora para outra, não só por culpa de ex-companheiros sem caráter, mas também por nossa fama de exaltados, tornamo-nos inimigos da sociedade paranaense. Tudo que fazemos acaba crescendo negativamente na opinião pública, e tal exagero tem criado problemas. Como o Ministério da Justiça estivesse deportando anarquistas do Rio de Janeiro, saiu matéria no jornal A República, de Curitiba, exigindo que o Governo local tomasse providências contra os anarquistas paranaenses. O Governo do Estado acabou publicando nota em que afirma nos vigiar a pedido do governo italiano. Hoje somos tidos como bandidos, embora os anarquistas da Colônia sejam pessoas honestas e trabalhadoras. Com este estado de coisas, o Dr. Grillo pouco tem feito por nós, o que nos deixa em total desamparo. Só podemos contar com nossas próprias forças, com nosso trabalho, pois nada nos resta. Nossa caixa coletiva foi saqueada

por uma figura desprezível que recebemos como irmão, o espanhol Puig Mayol. Já redigi nota para distribuir à imprensa da Europa, explicando que esse senhor não faz mais parte da Colônia e que partiu daqui levando nosso dinheiro. Se estes episódios conspiram contra nosso experimento, o amor livre foi enfim posto em prática, e logo vocês receberão mais notícias desta grande experiência. Estamos enfim mudando os possessivos, também no amor não existe mais o meu e sim o nosso, e com isso nos tornamos efetivamente anarquistas — o anarquista que defende sua mulher é tão reacionário, tão feroz e tão implacável quanto o pior dos capitalistas defendendo seus milhões. Gostaria que vocês me enviassem sementes de tomates, castanhas, amêndoas, abóboras, cogumelos, lentilhas e tudo o mais que conseguirem — temos que tornar esta Colônia exemplar, para desfazer sua fama negativa. Não se esqueçam de desinfetar as sementes com uma solução de sulfato de cobre, para que cheguem sadias. E recebam o abraço do Giovanni Rossi

— Você não se importaria de responder às perguntas? — falou Rossi, segurando o questionário que tinha escrito na noite anterior. — Não — ele disse. — É importante para convencer as pessoas. — Já disse que vou responder. — Não deve temer a opinião dos demais, o que fazemos nada tem de vergonhoso. — Para você é mais fácil... — Não agora, quando Gelèac está com a gente. — Não muda muita coisa, para você sempre será mais fácil. O marido traído sou eu. — Temos que vencer o desejo de preservar nossa imagem. — Já não tenho imagem nenhuma. — Tente construir uma... O questionário precisa ser respondido não pelo homem que sofre, mas pelo socialista que você é. — Não se preocupe. Rossi começou a fazer as perguntas, anotando as respostas. — Você admitia na mulher a possibilidade de amar com respeito mais de um homem? — Sim, mas não em todas as mulheres. — Você reconhecia em Adele esse direito? — Sim. — Considerava o amor livre útil ao progresso da moral socialista e da paz social? — Sim, eu acreditava nisso e ainda acredito; caso contrário, onde estariam a liberdade e a igualdade? — Acreditava que a prática do amor livre pudesse causar dor a um dos participantes?

— Sim. — Principalmente em qual deles? — Talvez em todos. — Admitia que o companheiro pudesse sofrer com o novo amor de sua mulher? — Sim, se a amasse de fato. — Que pudesse aceitar a situação com indiferença? — Só se não a amasse ou fosse um canalha. — Com alegria? — Quase nunca, mas podia sentir satisfação se soubesse estar fazendo obra consoladora e digna dos princípios socialistas. — Quando Adele revelou meu pedido você sentiu dor? — Não. — Surpresa? — Não, nós já havíamos conversado sobre esse assunto na Itália, e eu estava preparado. — Desprezo? — Nunca. — Humilhação? — Também não. — Algum ressentimento contra mim? — Ressentimento não, compaixão. — Ofendeu sua vaidade? — Não. — O seu instinto de propriedade? — Nunca me imaginei dono de Adele, seria uma ofensa para ela. — Egoísmo ou desejo de exclusividade? — Egoísmo não, mas medo de que ela pudesse diminuir seu amor por mim. — Temor de passar por ridículo? — Um pouco. — De lesar a castidade matrimonial? — E por acaso fui casto eu? — O consentimento foi espontâneo? — Com certeza. — Foi por coerência aos princípios de liberdade? — Um tanto por dó de você, um tanto por princípio.

— Se tivesse sido com outro companheiro, teria agido da mesma forma? — Não poderia definir isso com precisão, mas, se assim tivesse acontecido, acho que teria sofrido mais. — E se fosse com um proletário, mas não nosso companheiro? — Também teria sofrido mais. — E se fosse um burguês? — Teria muita pena de Adele e sofreria muito, mas não sei se a abandonaria. — Você sofreu mais antes de saber que eu estava com Adele? — Não. — Na primeira vez? — Sim. — E em quais outras? — Sempre. — Chorou? — Sim. — Estava magoado com Adele? — Não. — Comigo? — Não. — Chorou por solidão? — Talvez. — Medo de que o afeto de Adele sofresse um desvio? — Conheço Adele o suficiente para não temer isso. — Medo de que eu a tratasse vulgarmente? — Não. — Carinhosamente? — Sim. — Você desejou que ela desfrutasse de outra experiência sensual e intelectual? — Não sei dizer. — Isso causou desgosto? — Se acontecesse, isso não me daria desgosto. — Houve medo de que ela se tornasse menos pura? — Não. — Menos afetuosa? — Sim.

— Houve um instinto irracional e involuntário de egoísmo? — Mesmo sabendo que todos no fundo são egoístas, não creio que meu sofrimento seja fruto do egoísmo. — Vencida a dor, você sentiu a satisfação de quem faz o bem? — Com certeza. — Passou por sua cabeça a possibilidade de fuga? — Sim, mas não apenas por esse motivo. — A opinião dos outros alterou seus sentimentos? — Desprezei sempre as opiniões, mas me causaria pesar saber que meu nome pudesse andar na boca dos imbecis. — A estima por Adele é a mesma de antes? — Sim. — E o amor por ela? — É igual, mas sentido com mais intensidade. — A ausência repetida da companheira reforça a dor que você sente? — Sim. — Faz com que se sinta irritado? — Não. — São mais dolorosas as ausências breves? — Não. — E as longas? — Estas sim são mais dolorosas. — E as ausências de alguns dias? — Aqui entra o egoísmo. As ausências longas fariam de mim um mendigo do amor, tal como você era. — Você sofre com mais intensidade quando me vê com Adele? — Nas primeiras vezes sofri. — Ou quando a vê sair da sua casa em direção à minha? — Agora, tanto faz. — Seria mais aceitável que ela vivesse sozinha e nos convidasse segundo o seu desejo? — Sim, para a liberdade plena dela. — O fato de eu gostar de Adele deixa você com alguma mágoa? — Não. — Você acredita que o amor livre venha a se universalizar com a rebelião das mulheres? — Sim.

— E o consentimento masculino? — Mesmo que os homens não consintam, quando as mulheres se revoltarem, isso acontecerá. Depois, todos ficarão satisfeitos. — Por iniciativa desinteressada dos homens? — Não, salvo algumas exceções, que poderão dar bom exemplo. Era preciso também colher o depoimento de Adele. Rossi preparou outro questionário. Ela recebeu a idéia com um pouco de má vontade. — Tudo que penso já disse a você. — Agora é para servir como estudo psicológico — falou Rossi. Rossi falou que Aníbal já havia respondido e ela então concordou com aquilo, e foi dando respostas frias. — Você foi educada segundo a moral ortodoxa? — Sim, até os vinte anos. — No primeiro amor juvenil você tinha apenas um afeto? — Sim. — E no segundo caso de amor, que foi mais duradouro e intenso, você amou a outro paralelamente? — Não. — Houve alguma simpatia recente? — Sim. — Você a alimentou? — Sim. — Alimentar essa simpatia pareceu algo culpável? — Não. — Você buscou essa oportunidade? — Não. — A afeição por L., a mais breve e a menos profundamente sentida, foi exclusiva? — Naquele tempo me interessei por outra pessoa, mas de forma inocente. — A afeição por Aníbal foi exclusiva? — Sim, até o momento em que conheci você. — Faz bastante tempo que você aceita a possibilidade de amar mais pessoas ao mesmo tempo? — Sim. — Você nunca foi ciumenta?

— Algumas vezes, mas meus ciúmes foram brevíssimos. — Você se entregou a algum homem sem amá-lo? — Nunca sem simpatia. — E apenas por sensualidade? — Jamais. — Você tolerou violências morais? — Não. — Minha solicitação amorosa causou surpresa? — Nem um pouco. — Desagradou a forma breve e direta que usei? — Ao contrário, me agradou. — Você aceitou o pedido por piedade? — Um pouco. — Por simpatia? — Sim. — O receio de desagradar seu companheiro era realmente o único obstáculo? — O único. — E você pensou em entregar-se às escondidas de seu companheiro? — Não. — Ao contar a Aníbal minha solicitação, você revelou o desejo de satisfazê-la? — Sim. — Você fez isso de forma serena? — Sim. — Envergonhada? — Não. — Você sofreu ao imaginar o desgosto de seu companheiro? — Sim. — O sofrimento foi por ele? — Sim. — E por você? — Também por mim. — E por mim? — Especialmente por você. — Considerou a dor dele como uma prova de amor? — Sobre isso não sei o que dizer.

— Quando você se entregou a mim, seu companheiro estava plenamente de acordo? — Sim. — Você precipitou os acontecimentos? — Não. — A dor de seu companheiro era justificável? — Eu a considerei fruto dos preconceitos que ainda agem sobre nós. — Essa dor estava destinada a desaparecer? — Sim. — Nossa conduta às claras pareceu sincera a você? — Sim. — Você veio a mim de forma consciente? — Sim. — Acrescentei um pouquinho de felicidade à sua vida? — Sim. — Você me ama sensualmente, intelectualmente, fraternalmente? — Um pouco das três maneiras. — O afeto que você sentia por mim cresceu um pouco mais? — Muito. — Você gosta ainda mais de Aníbal? — Sim. — Os amores paralelos fizeram com que você se tornasse melhor? — Sim. — Mais sensual? — Não. — Prejudicaram sua saúde? — Não. — A multiplicidade de afetos contemporâneos parece natural a você? — Sim. — Socialmente útil? — Antes de mais nada, socialmente útil. — Seria constrangedor não conhecer a paternidade de um filho que você viesse a ter? — Não.

Colônia Cecília, 12 de janeiro de 1893 Meus queridos Sestilio e Properzia Saibam que enfim estou feliz, minha vida tornou-se serena e alegre com a chegada de uma moça meiga e inteligente que me trouxe o amor. Não esse amor de obrigação que está no alicerce das famílias tradicionais, mas o amor anarquista, que vem com tanta delicadeza, com tanta lealdade, com tamanha castidade que estou pacificado nesta minha longa busca de uma realização que não fosse individual. Um casal e eu vivemos juntos — sem nenhum ciúme, sem desavenças — e amanhã um jovenzito francês passará a fazer parte de nossa família poliândrica. Todos nos queremos bem, e a Colônia nos admira, nos estima, nos ama e logo passará a nos imitar. Tenho o coração cheio de ternura e nunca estive tão contente como agora, espero que o acréscimo de mais um homem em nossa família me tire os últimos sentimentos de posse, libertando-me completamente dessa praga que é o amor exclusivista. A mulher que amamos, dócil como uma menina saída da adolescência, embora tenha trinta e três anos, chama, na intimidade, o seu primeiro companheiro de Ranello, a mim de Ninetto e ao jovem de Bambinelo, pois ela, sempre tão delicada, não quer confundir-se na hora de algum carinho. Eu, que praticamente não conhecia o amor, tenho o coração cheio de felicidade e o corpo transpirando saúde e energia. O verão da vida floresce como primavera. Talvez estas palavras possam significar que estou apaixonado como um adolescente. Mas não é nada disso. Vocês me conhecem bem. Estou feliz porque, nesta embriaguez de sentidos, vivo intelectualmente este relacionamento, que é humano, bom e honesto. Para mim, este amor sem rivalidade, sem ciúme e sem mentira é a prova final da viabilidade do socialismo, demonstrando que a Colônia pôde enfim vencer o temor das famílias e a ignorância herdada de séculos de obscurantismo. Os problemas sociais serão vencidos porque é possível amar

coletivamente, sem senso de propriedade, uma mulher cujo filho será da Colônia e não de um pai. Não preciso dizer que Adele não é mulher vulgar, uma bonequinha sensual, dessas que se valem de seu corpo para conquistar apenas conforto material, ela é uma mente eleita, mulher instruída, com coração bom, caráter íntegro e corpinho delicado. Por tudo isso, é digna de mim e creio que também sou digno dela. Seu companheiro é igualmente um homem bom e corajoso e foi tratado com o respeito que merece. Ela, antes de me dar o primeiro beijo, contoulhe tudo, pediu sua autorização e ele consentiu, lutando contra os fantasmas mais íntimos. Para muitos, será difícil compreender a poesia deste caso de amor, verão apenas promiscuidade onde reina o respeito, e não culpo ninguém por essa visão errada, principalmente quem está longe, mas todos que convivem conosco percebem a grandeza deste casamento. Recebam nossa alegria Giovanni Rossi

Tinha passado o dia todo em casa, a mulher lhe falara da proposta de Colli, ele já estava desconfiado, as longas conversas na cozinha, os carinhos súbitos de Escolina, que voltavam depois do sono de mais de uma década. Ela tinha se transformado de novo em sua namorada, como nos tempos em que não perdiam um minuto com o que não fosse troca de carícias. Este amor havia voltado, não tão intenso, pois só no fim da adolescência o amor tem aquele desespero. Ele estava aproveitando o retorno da mulher, e todas as noites, mesmo que estivessem cansados — ele tinha trabalhado o dia todo no pomar, ela passara o dia na horta, cuidando do replantio —, eles se queriam com urgência e não viam a hora de se deitarem, deixavam os filhos pequenos aos cuidados dos dois mais velhos e iam para o quarto, cobriam-se com um acolchoado mesmo no calor e faziam amor ali, gemidos sufocados pelas camadas de pano, as paredes de madeira eram finas demais para ocultar qualquer palavra sussurrada. Os filhos percebiam a diferença, os mais velhos notaram, além da mudança, a causa, os mais novos apenas as mudanças, gostavam de ver a mãe fazendo as coisas com prazer, ela agora não reclamava quando eles ficavam pela vizinhança, até aprovava tais ausências. Deixara de ser mãe o tempo todo, os mais novos no início se assustaram um pouco, ainda preferiam a mãe ao lado, brigando por pequenas coisas, mas logo se sentiam bem nesta independência antecipada, tomando conta de suas vidas, sem a participação daquela mulher, antes tão cheia de ordens e agora trancada no quarto, rindo com o pai — por mais que eles rissem baixo, todos ouviam e riam também, os mais novos sem malícia, os mais velhos com um olhar diferente, logo teriam um novo irmão. Tudo isso era produto da paixão, pensou o marido, mas não necessariamente por mim, eu sempre estive aqui, não mudei em nada, o desinteresse dela durou mais de dez anos, e aí vem esta ardência toda. Acontecera alguma coisa, e não era por causa dele, ele apenas participava,

era a roda movida por oculta água. Ele começou a prestar atenção na mulher, seus comportamentos eram os mesmos, só que agora tinham vida, alegria, mas de onde vinha tudo isso? O olhar de Colli, em uma das reuniões do barracão, quando Rossi comunicava o novo amor de Adele, um olhar que não se fixava em Escolina, quando ela nem olhava para ele, tinha a mesma alegria, idêntica à que estava estampada em Rossi — era a alegria da paixão. Sua mulher estava apaixonada por Colli, Fiorenzo entendeu isso e ficou triste, todo o carinho da mulher era para o outro, iria tirar satisfações, recusar aquelas carícias, não era homem de passar por uma humilhação dessas, não seria como Aníbal, passivo diante de tudo, e viu o companheiro de Adele com os olhos úmidos, tão difícil ter a mulher compartilhada, agora com dois, um mais jovem e outro mais inteligente, Fiorenzo era dez anos mais velho do que Escolina, ela estava mais próxima de Colli, ele seria sempre um velho, se fosse preciso iriam embora, a Colônia não podia durar muito tempo, tinha recomeçado a diáspora, cada dia havia mais gente insatisfeita, pensava nisso olhando as marcas da alegria no rosto de Escolina, eram marcas fundas, mais fundas do que as primeiras rugas que começavam a sulcar sua pele, Escolina estava amando outro em mim, pensou o marido, isso era uma vergonha, mas tirando o vexame, e olhou de novo o jeito vencido de Aníbal, havia algo bom, ela ainda guardava carinhos, ainda sabia ser mulher, ele achava que a mãe tinha matado a mulher, ela só podia ser mãe, e era como mãe que se entregava, desinteressada, para ele, mas agora a chama, a chama nos olhos, ele tinha gostado da mudança, só que havia um preço, percebeu ali. Não foi ainda naquela noite que Escolina contou tudo, mas o marido ficou sabendo desde aquele momento, e também não falou nada, apenas vigiou mais a mulher, não deixou escapar nenhum olhar, eles não se encontravam fora dos momentos de convivência coletiva, mas se amavam, mesmo distantes, ela de um lado da mesa, ele do outro, quando os dois olhares se cruzavam era como se seus corpos se unissem, daí aquela urgência de ficar a sós com o marido. Fiorenzo pensou em dizer que sabia de tudo, mas havia o medo de deixar de ser a consumação daqueles olhares apaixonados, e foi emprestando-se a ela, a mulher cada dia mais animada, esquecendo-se dos filhos; uma noite o pequeno Giovanni, de quatro anos, não apareceu para o jantar, ela nem percebeu, foi Fiorenzo quem encontrou o menino no mictório, a mãe tinha pedido para eu ficar esperando aqui. Giovanni estava quase nu, sentado na caixa de madeira, aguardando a mãe,

que saíra para fazer algo e se esquecera do filho. O pai não ficou bravo, limpou o filho, ergueu sua roupa e foram até a tina lavar as mãos, depois desceram ao refeitório, Escolina nem viu os dois chegarem, sem se dar conta de seu esquecimento. Ouvia as conversas dos homens, Colli estava quieto, também ouvindo, e era pelo silêncio que eles se uniam. Nesta noite, depois de pôr os filhos para dormir, ela confessou. — Acho que estou gostando do Colli. Ficou esperando a reação do marido, ele estava tão compreensivo nas últimas semanas, isto lhe dera coragem para declarar a paixão. Agora esperava ou o ódio agressivo ou as palavras de incentivo. Mas não vieram palavras, apenas lágrimas. — Por que você está chorando? — Você não devia ter falado. — Queria me sentir em paz. — Eu já sabia. — Quem contou? Ele? Fiorenzo apenas balançou negativamente a cabeça. — Uma das mulheres? — Ninguém me contou. Mas eu já sabia. E preferia que você não tivesse falado. — Não entendo o medo, se você já sabia. — Agora não vai mais precisar de mim para nada. Vocês poderão ficar juntos. — Isso quer dizer que você permite que a gente se encontre? — Como não permitir? Ela abraçou o marido e, ao beijar seu rosto, sentiu o sal das lágrimas, ele sofria sem desespero, e este tipo de sofrimento é sempre mais profundo, pois renuncia ao teatro dos grandes gestos. — Se você não quiser, eu digo não a ele. — E logo voltará a ser a mesma dos últimos anos. — Então digo sim, e vivemos os três. — E em pouco tempo você me deixará. — Nunca! — Não me iludo. — Eu não tenho te amado em todos estes anos? — Nunca como agora. — Então!

— Só que este amor não é para mim. — É também para você. E ela o beijou, agora de uma forma doída, para mostrar que o amor era todo dele naquele momento, não havia ninguém ali além dos dois, o outro só existiria na hora que estivesse com ele, o novo amor não atrapalharia o antigo. Ela não falou nada disso, apenas o beijou. E ele compreendeu, aceitando seus lábios. Estavam todos no refeitório, agora havia reuniões constantes, a Colônia se dispersava, alguns já partiram neste começo de 1893, e a maioria, no íntimo, fazia planos de abandonar a vida de privações. Apesar das roças promissoras, estavam cansados das desigualdades de dedicação às tarefas e havia muitas divergências quanto aos métodos de trabalho, tudo acabando em longas discussões. E foi depois de uma acalorada defesa do aumento do gado, pois seria mais fácil cuidar de animais do que ampliar a área de plantio, embora duas famílias tivessem aversão à pecuária, gostamos mesmo é de mexer com a terra, foi após este debate, em que não se decidiu nada, que Fiorenzo, olhos vermelhos, denunciando mais do que choro, ergueu a voz no meio da confusão e relatou que a mulher, com seu consentimento, estava, a partir de hoje, se encontrando com o companheiro Colli. Todos olharam para o jovem, que se aproximou de Fiorenzo, ainda não tinha conversado com ele sobre isso, embora soubesse da concordância. — Estamos seguindo o exemplo do Dr. Rossi, não tenho do que me envergonhar, e confesso que nunca estive tão bem com minha mulher, sou grato, grato a todos, mas principalmente ao companheiro Colli, espero que a gente viva muito tempo assim. — Vai ser sempre assim — disse Rossi. Sem dizer nada, Colli e Escolina apenas se olhavam. Fiorenzo aproximou-os com um abraço, beijou o rosto do novo casal, e todos gritaram vivas à Colônia Cecília, ao anarquismo, e Rossi viu que apesar das desavenças, das disputas internas, da miséria, havia algo maior que os unia, todos se entusiasmavam com aquele casamento, alguns de forma leviana, tomando-o apenas como divertimento, como quem elogia um passo mal dado, mas havia sinceridade mesmo nos mais brincalhões, pois a nova família realizava aquilo que eles desejavam sem ter coragem de fazer. — Reparem que agora — começou Rossi — não é uma mulher emancipada que está aceitando outro companheiro em seu casamento, mas

uma agricultora, uma mulher com trinta e cinco anos e cinco filhos, alguém que teve que fazer mais renúncias do que Adele. E ninguém e nada obrigaram-na a isso. Nem a ela e nem a seu marido. Hoje é um grande dia para a Cecília, um grande dia para o anarquismo. Repetiram-se os vivas, novamente gritados quando os três deixaram o refeitório. Eles iam acompanhados das três crianças menores, que se divertiam com a gritaria em torno dos pais, sem saber o que estava acontecendo. Os dois mais velhos, envergonhados, tinham saído no meio do depoimento, dormiriam na oficina, longe do que ia ocorrer. Ninguém sentiu a falta deles. O pai aproveitou as camas vagas e dormiu no quarto das crianças, deixando os dois na sua cama, e então descobriu que, mesmo abafando o barulho dos beijos com o acolchoado, eles podiam ser ouvidos no outro quarto. Sorte que as crianças já tinham dormido. Ele se levantou cedo e foi para o pomar, sem descer ao refeitório, as crianças nem estranharam o homem que estava com a mãe. Os filhos mais velhos não foram vistos naquele dia, passaram o tempo todo no mato, e só à noite, sem que ninguém se lembrasse de procurá-los, apareceram e retomaram seu lugar no quarto, como se nada tivesse acontecido. O pai dormiria com a mãe aquela noite e eles não ouviriam barulho nenhum, nem mesmo o de conversa. Passado o entusiasmo inicial, voltou a realidade dos comentários de cozinha e das rodas masculinas, não se esperava uma coisa assim do Fiorenzo, cinco filhos para criar, o mais novo quase de colo, a velhice se aproximando, e agora aquilo tudo, no próprio lar. Ernesto passara perto da casa uma noite e ouvira o que Colli dizia para Escolina, no outro quarto uma criança chorando, com uma família daquele tamanho não era correto, com Adele e Aníbal se compreendia, não tinham filhos, não dariam mau exemplo. Mau exemplo eles sempre dão, porque nós temos filhos, falou Cattarina Agottani, e as mulheres concordaram, o perigo estava muito próximo, e todos indo embora da Colônia, um dia eles também iriam, e as famílias ficariam marcadas como promíscuas, mesmo sem terem se envolvido com aqueles casamentos. — Anarquista vai virar xingamento — falou Pacífico Agottani. — Já está virando — resmungou Giuseppe Soldi. — Temos que tomar cuidado para que não saibam desse casamento em Santa Bárbara e na Palmeira. Indiferentes às conversas, Colli e Escolina andavam pela Colônia sempre

juntos, gostavam de trabalhar lado a lado no pomar, ela fazendo a capina, a poda, sempre de calça comprida sob o vestido, enquanto, cada vez mais solitário, Fiorenzo procurava os trabalhos em que não tinha que encontrar Colli. — O teu amor por mim está diminuindo — disse para a mulher. — Isso é o que o ciúme diz. Na realidade, ele só cresce. — Você quase não fica comigo. — Você é que foge. — Que que posso fazer? Vocês estão sempre juntos. — Ele não precisa sair de perto de mim só porque você chega. — E a minha solidão? — Estou todas as noites em casa. Mas você não se aproxima mais. — Mesmo quando estamos só nós dois, sinto que ele está ao lado. Sinto o cheiro de suor dele no seu cabelo, um suor doce, enjoativo. Você não tem mais o seu cheiro, é como se eu estivesse com ele. — Você quer que eu pare de me encontrar com Colli? — Para ser acusado de egoísmo? Escolina não respondeu, não tinha mais forças para se afastar de Colli, também sentia o cheiro dele no próprio corpo, mesmo depois do banho, era mais a memória deste cheiro, e nem se lembrava do odor do marido. O marido não deixara memória nela, deixara marcas, o corpo mais gasto das tantas vezes grávida, apenas isso. Não tinha como fingir que gostava com a mesma intensidade do marido, pelo marido ela tinha afeto, viviam juntos, tinham filhos, mas amar era outra coisa, descobria agora, amar era guardar este cheiro que só existia em sua memória e que podia ser sentido pelo outro. As mulheres da Colônia não deixavam as filhas conversarem com Escolina, ela tinha passado para o outro grupo, o mesmo de Adele, mas com Adele elas eram mais tolerantes, tratavam-na com certa distância, mas carinhosamente, era a mulher do Dr. Rossi, não deixava os filhos soltos pela Colônia, com dois pais e ao mesmo tempo sem nenhum. Quem cuidaria deles no futuro? Com certeza, era isso que as mulheres se perguntavam. Seria impossível viver aquele amor rodeada de crianças, pensava Escolina, e elas não eram só dela. Diante dos filhos, voltava a ser mãe, e precisava se sentir mulher. Falou baixinho, para si mesma, a palavra proibida: amante. Não havia traição, mas a Colônia inteira a tomava como amante de Colli. Lá vão os amantes. Havia repulsa e fascínio nesta palavra, que não era dita,

apenas anunciada por olhares e expressões. Os amantes. Mas ela tinha prazer em se dizer amante. Nunca mãe ou mulher. Evitava a palavra companheira, ela era mais do que companhia. Ninguém aceitava que deixasse de lado os filhos. Era isso. Queriam que ela continuasse apenas mãe. Os filhos matam o amor, ela pensou e ficou triste. Depois pensou diferente. O amor mata os filhos. E daí sentiu alegria. ELA ESTAVA MATANDO OS FILHOS. Era isso que as mulheres não aceitavam, ela estava matando os filhos. Era preciso dizer isso. Aceitar. Matando de uma maneira diferente. Deixando que eles vivessem a vida deles. Não se recusava a dar comida, a fazer chá, a colocar os mais novos na cama, a conversar com os mais velhos, apesar do silêncio deles, mas não se sentia MÃE, não estava ligada a eles, era apenas a mulher com quem Colli se deitava. Havia uma outra Escolina, estava sendo a outra, não queria deixar de ser a primeira, mas a outra era maior. Pensou no enxerto das frutas. Pegase um pé de limão da pior qualidade, no qual se coloca um galho de laranja doce, e o antigo limoeiro continua existindo, mas quem dá flores e frutos é a laranjeira que cresceu a partir daquele tronco. Era assim no pomar. Era assim com ela. Ela era o pé de limão que dava laranja. Agora sabia que podia dar laranjas. Laranjas doces. Depois que pensou isso, tinha mais gosto ainda de trabalhar no pomar. Ela era o pomar. As mulheres da Colônia? Árvores de uma qualidade só. O Dr. Rossi sempre elogiava essas novas laranjeiras. Escolina preferia confiar no Dr. Rossi, deixassem as mulheres faladeiras, não entendiam um pomar. O Dr. Rossi entendia. Tantos anos para descobrir isso, que podia dar laranjas doces. Não importava que as famílias não gostassem mais dela, pelo menos eles não faziam nada escondido, como Aniceto, continuamente perseguindo fêmeas em Santa Bárbara, mesmo agora durante a gravidez de sua mulher, mas ninguém repreendia Aniceto, estivera tantas vezes com Narcisa enquanto Gentille trabalhava. Isso pode. Não entendia. Todos defendiam a liberdade, mas muitos faziam as coisas escondidas, as mesmas coisas que eles recriminavam quando feitas na frente de todo mundo. Se Fiorenzo, no início, tivesse dito que não admitiria aquilo, teria sido fácil, eles ainda não haviam trocado nenhum beijo, nem tocado as mãos, eram apenas amores distantes, bastava pensar em outra coisa, pensar nos filhos, coitados, perdidos ali, sem estudo, sem nada, mas agora ela conhecia a doçura da laranja, e já não se importava com os filhos, com o marido, com as

famílias, com nada. Ela conhecia a doçura de ser laranja. Os homens casados, mesmo com medo de que o amor livre se alastrasse, aceitavam esta prática, mas tinham medo do que ela podia fazer em suas vidas, por isso viam o caso com desconfiança, mas não podiam deixar de notar que Escolina ficara mais formosa, ela tinha descoberto alguma coisa que não era exterior, continuava com o mesmo corpo de uma mãe de cinco filhos, a novidade estava na feição, nos lábios e nos olhos, principalmente. Era a mulher de sempre, que nunca entusiasmara ninguém, mas agora se tornara outra, e os homens começaram a sentir vontade de ficar por perto, e gostavam quando ela trabalhava com eles no pomar, e perguntavam de Fiorenzo, o que ele estava achando daquilo tudo, perguntavam isso quando Colli não estava junto, e ela respondia com uma palavra — aprova. As mulheres casadas não escondiam o receio de perder seus maridos para Escolina. Não temiam Adele, pessoa instruída, inteligente demais para dormir com agricultores, mas Escolina era igual a elas — lavradora, mulher de lavrador, filha de lavrador. Ela poderia se apaixonar por algum dos homens. Por isso, começaram a reprovar as idas dela ao pomar, as poucas conversas no refeitório, seu jeito de olhar e sorrir, mostrando uma alegria que quase nenhuma outra tinha. Os homens casados também temiam a transformação de Escolina, podia ser exemplo para filhas e mulheres. Era melhor suportar os casamentos sem sal do que sofrer a sina de Aníbal e Fiorenzo. Nas reuniões, Rossi elogiava a coragem dela, é de mulheres assim que o socialismo precisa, e de homens sem ciúme. Não tenho ciúmes, e me alegro vendo Adele com Gelèac ou Aníbal, sinto carinho por todos, os sofrimentos destes três anos estão justificados por estas duas famílias anarquistas. Foi no meio de uma destas conversas que ficaram sabendo da morte de Gentille, dois dias depois de ter perdido o filho. Aniceto foi quem trouxe a notícia, tinha ficado em casa porque ela estava passando mal, mas não imaginava que ia morrer, era tão jovem, vinte e quatro anos, meu Deus — ele disse. E repetia a idade dela. Eram jovens os dois, perdidos ali. Ele, o perseguidor de mulheres, chorava. Também amava Gentille. Foram todos vê-la, entrando em pequenos grupos na sua casinha. Estava na cama rústica, sobre o lençol velho, um baú vindo da Itália era o único móvel além da cama. Gentille morta, a primeira morte humana na Colônia, isso tudo impressionava as pessoas. O primeiro cadáver deveria ter um enterro decente; um carpinteiro começou, na manhã seguinte, a fazer o

caixão, nunca tinha feito um, por isso ficou grande demais para o corpo miúdo da defunta, que parecia deitada em uma canoa. Aniceto fora cedo tirar o atestado de óbito no cartório de Palmeira e chegou no meio da tarde, encontrando grande confusão, o padre não permitia o enterro no cemitério de Santa Bárbara, era uma atéia. — Mas vivemos na República — gritou Rossi, que tinha ido acertar o sepultamento. — A igreja é maior que o governo — revidou o padre. — Temos o direito de ser enterrados no cemitério. — Essa terra só conhece católicos. — E o padre bateu a porta da sacristia. Quando souberam da proibição, os anarquistas se revoltaram, iam marchar juntos contra o padre e enterrar Gentille à força, viviam em um país livre, eram trabalhadores, davam lucro ao estado, ninguém era obrigado a ter religião para ser enterrado dignamente. Não queriam ritual religioso, só o direito de sepultar seus mortos. Alguns chegaram a pegar foices e machados para intimidar os moradores, mas Rossi pediu calma. — Já somos muito malvistos na região. É melhor enterrar Gentille na Colônia. — Como se fosse um cão. Aniceto estava revoltado. Ele sabia que a mulher era religiosa. À noite, ouvia-a murmurando suas orações. Aceitara o socialismo, que lhe tirara a igreja, mas nada conseguira lhe tirar a religião, que era um sentimento íntimo. Queria devolver a religião à mulher, mas era tarde. Ele sabia. Rossi tinha razão. — Você sofre, Aniceto, mas é melhor ser um cão livre do que um católico dominado. O viúvo sentou-se no chão e ficou vendo dois homens pegarem as cortadeiras. Os mesmos instrumentos usados para cultivar a terra iam servir de novo para plantar aquela semente que não nasceria. Mas plantavam-na com mais cuidado do que era usual na lavoura. Ficaria na terra agricultável, não teria uma cruz, apenas uma cerca de madeira levantada pelos carpinteiros, para protegê-la dos animais. Na hora de descer o corpo, houve discursos exaltados contra a igreja, contra os padres, morte aos padres, morte aos patrões. Mas o corpo franzino de Gentille era agora indiferente a discursos, já esquecido naquele caixão que recebia as primeiras pazadas de terra sem que se ouvisse uma oração.

Em silêncio, no entanto, algumas pessoas rezavam.

Colônia Cecília, 5 de março de 1893 Queridos irmãos Esta talvez seja a última carta que escrevo da Cecília, pois vejo que para mim ela já cumpriu sua função. Não conseguimos até agora um padrão de vida satisfatório dentro do socialismo e da anarquia, e vocês talvez pensem que eu esteja frustrado. Não estou. Não conseguimos por acidentes, por falta de um melhor planejamento, por inexperiência. Mas temos a prova de que é possível, a liberdade plena é algo que se pode conquistar aqui e agora, está ao alcance de todos. O principal resultado da Cecília foi o amor livre. O fim da família tradicional deve ser o centro da grande revolução. A liberdade não será conquistada com a destruição de povos e países, mas com a prática sexual fora da família. Tudo de ruim que aconteceu na Colônia, da mesquinharia ao ciúme e à traição, sempre esteve ligado ao instinto de proteção familiar. Vocês já sabiam da beleza de meu casamento com Adele. Pois bem, ele foi agora imitado por uma mulher corajosa, vinda das classes mais rudes da Itália, que aceitou um novo companheiro em seu casamento estável. O amor livre não é apenas privilégio de mulheres instruídas, pode ser praticado por todas, e só faz melhorar os relacionamentos, pois esta camponesa, Escolina Fecci, mãe de cinco filhos, não teve diminuído nem seu amor maternal nem seu amor de esposa. É bonito vê-los sempre animados, recebendo a atenção de todos, pois formam uma família casta, mais do que as monogâmicas. Provamos que é possível este tipo de vida. Quando tivermos condições mais favoráveis, o amor anarquista poderá revolucionar o mundo. Agora, seguirei meu caminho. Sinto que a Colônia se desfaz com os jovens que se retiram. As poucas famílias restantes estão também começando a procurar outros lugares. Peço que não deixem ninguém imigrar, não estarei mais aqui e sinceramente não sei quantos meses ainda se mantém nossa comunidade

socialista. Tudo agora é passado, olho para as casas e é como se elas não existissem, lembro-me do que passei nelas, das nossas lutas, de nossas discussões, dos raros prazeres, mas tudo isso pertence a outro tempo. E estou vivendo o futuro. Conto arrumar colocação em Curitiba ou em outro lugar e não tenho planos de retorno à Itália. Terei contra mim a fama de baderneiro que os anarquistas conquistaram aqui, um pouco por culpa de espíritos levianos, um pouco por preconceito. Desvincular-se desta imagem talvez seja tarefa mais difícil do que a de fundar este pequeno país anarquista de duzentos hectares, que agora deixo ao seu destino. Com o afeto do Giovanni Rossi

Indo a Santa Bárbara para beber, fazia isso sempre que conseguia algum dinheiro, Aníbal percebeu que todos olhavam diferente para ele, havia diversão na face das pessoas, elas não riam, não diziam nada, mas ele sentia o desprezo que lhe destinavam, por causa daquela gravidez vergonhosa de Adele. Ele quase não ficara com a mulher, que passava a maior parte do tempo com Gelèac, para provocar, ele pensou, mas provocar por quê? Era um homem acabado, não tinha mais nada de seu, nem os carinhos da mulher. Aceitava que ela distribuísse a outros seus favores sexuais, mas que fosse rápida, não o deixasse só, não ficasse se expondo. Ele entendia a necessidade de fazer propaganda do amor livre, embora ninguém mais se deixasse convencer, Escolina aderira porque seu casamento estava acabado, cinco filhos, eles ainda não tinham filhos, agora ia nascer o primeiro, ela exibindo a barriga já saliente, e ainda se encontrava com Rossi, e isso também o envergonhava, sim, todos na Colônia sabiam que a mulher estava grávida e que dormira com outros homens mesmo nesse estado. Bebeu mais do que das outras vezes, bebeu o dia todo, o gosto podre de vinho na boca, as idéias em tumulto, Adele era dele, livre sim, mas tinha vindo ao Brasil com ele, não era justo que se saciassem nela; ele passou a temer todos os homens da Colônia, de Santa Bárbara, de Palmeira. E se ela se acostumasse com uma grande quantidade de homens? Ele tinha medo, e bebeu fartamente o vinho dos esquecidos, dos que ficam num canto e não têm outra companhia, para voltar à Cecília resmungando pela estrada, caindo, porque aquele chão não era seguro, estrada ruim, feita por gente sem preparo, por isso caí, tropeçando em pedras. Sentiu-se como nos contos de fada, indo para a casa no meio da floresta, não havia caminhos confiáveis, tudo era labirinto, perdia-se naquela estrada que só ilusoriamente era reta, suas curvas surgiam do nada, desviavam o caminhante, mas ele não desistia. Quando chegou, depois de ter parado inúmeras vezes para certificar-se

da existência da estrada e do chão, encontrou Zerla encostado no tronco da palmeira, seria o próximo a dormir com Adele, todos os solteiros e mesmo os casados só esperavam ele virar as costas para deitar com sua mulher, era sua, não era de todos, a terra ali era coletiva, mas a mulher ainda era dele, outros dormiam com ela, mas a quem ela pertencia? De quem era aquele filho na barriga de Adele? Não importava mais nada, o casal era Adele e ele. E estavam ali os assaltantes. Zerla queria Adele, via isso em seus olhos de salteador, de pombo lascivo, todos uns pombos lascivos, os desgraçados, prontos para o acasalamento. — Hoje bebeu mais do que de costume? — perguntou Zerla, rindo. — Seu grande porco. — Epa! — Vocês são uns ladrões. Zerla se levantou ao perceber que Aníbal avançava em seu passo incerto, mãos pesadas, prontas para a agressão. Não teve tempo de ficar totalmente ereto, recebeu o murro na orelha, voltando ao chão, mas reagindo rapidamente. — Ladrões, isso que vocês... — Interrompeu o xingamento ao receber a investida de Zerla, que pulou sobre ele, segurando-o contra o chão, as mãos em seu pescoço. — Fecha essa boca suja. Aníbal esperneava sob o corpo do agressor, tentando escapar, mas isso só fazia com que as mãos de Zerla pressionassem ainda mais sua garganta, e ele começou a ficar roxo. Sentiu o toque leve de Adele no ombro. — Pare com isso — ela falou. Zerla se levantou e foi para o alojamento dos solteiros, pensando que estava na hora de ir embora, não poderia esperar mais nada da Colônia, tudo estava se desfazendo, por que razão ainda gastava seus dias no meio deste bando de loucos?, era socialista sim, era anarquista, mas queria conviver com gente instruída, queria uma vida com mais conforto, para que esta privação toda? Ele se perguntava isso enquanto ia planejando a partida, talvez para Ponta Grossa, melhor do que me meter no meio dos anarquistas em Curitiba. Tinham feito tudo pela Colônia e sairiam sem nada, como saíram Cini e sua mulher, só com a fama de desordeiros, barulhentos, promíscuos. Tanto esforço para acabar assim, era isso a vida, não deixava espaço para sonhos. E o pobre Aníbal, além de não ganhar nada com a

Colônia, ainda perdeu a mulher e a dignidade, transformando-se em um bêbado, tendo que suportar o asco e a piedade alheia — era o fim para ele. Zerla pelo menos tinha um futuro, mas qual o destino daquele corno? Adele estava ajudando o marido a se levantar, quando Zerla, antes de entrar no alojamento, olhou para trás. Ela já estava com a barriga bem marcada no vestidinho ordinário, quem seria o pai da criança? Na idéia do Rossi, seria a Colônia, mas então ela nasceria órfã, porque a Colônia não duraria muito, tudo estava se deteriorando rápido, era a debandada. Ele não queria ver o fim. Aníbal xingava todos os homens da Colônia, uns grandes putos, e ninguém saiu do refeitório ou das casas por causa dos xingamentos, não queriam que ele sofresse mais, fosse para a cama, amanhã estaria bebendo novamente, mas agora que descansasse, um homem precisa esquecer. A maior parte das casas já estava vazia. Nas lavouras, o mato ia tomando conta, a comida nunca fora tão racionada, famílias de novo comendo às escondidas o que conseguiam de forma clandestina na despensa ou na vizinhança. Desde a morte de Gentille, de seu enterro constrangedor, as mulheres passaram a sonhar com a partida, ficar ali para continuar sofrendo a raiva dos vizinhos?, mas não sabiam que por um longo tempo estava definida a sina deles, seriam anarquistas mesmo fora da Colônia, mesmo quando a Colônia fosse apenas uma propriedade produtiva e familiar como as demais. Em Santa Bárbara, por muitos anos, teriam ainda que enterrar seus mortos num cemitério à parte, sem cruzes, ao lado da estrada, para mostrar sua revolta orgulhosa. — Chega uma hora em que temos que aceitar o erro — falou Arzulina Taligmani. E o que ela disse poderia ter saído de muitas bocas naqueles dias, porque o eixo de madeira daquela engrenagem estava gasto e fazia tudo andar desajustado, como uma roda-d’água, que já não move o moinho, girando no vazio e produzindo o barulho dos maquinismos que trabalham em vão. A barriga de Adele crescia, ela agora ficava em casa, sozinha, conversava com Rossi, mas não dormia com mais ninguém. Mas este seu comportamento não era suficiente para levar paz a Aníbal, ainda bebendo, dormindo de dia, xingando sombras, esse maldito Gelèac.

O jovem francês tinha ido embora nos primeiros sinais de gravidez, quando Adele parara de receber seus homens, agora se transformara em mãe, era esta sua nova função, tivessem paciência, em breve seria dona de seu corpo de novo, neste momento ele pertencia à criança, o corpo não era dela, não podia compartilhar o que não possuía, seria um roubo, um crime, Adele explicou isso primeiro para Rossi, quando ele a procurou, em uma tarde em que o pôr-do-sol ensangüentado lhe deixou uma melancolia profunda. Já sabiam da gravidez, mas ela era ainda invisível; quando seu ventre começou a tomar forma, ela parou de ser casa que recebe para tornar-se casa que abriga. Disse isso a Rossi. — Estamos sempre sendo expulsos de nossa casa — lamentou ele. Ela riu daquele comentário, era um homem inteligente, tinha senso de humor, embora fosse, na maioria das vezes, dramático, levasse tudo muito a sério, até os seus sonhos. Rossi não a procurou mais. Com um beijo em sua testa gordurosa, os cabelos nunca tinham ficado tão feios, ela se sentia viscosa, suja como bebê recém-nascido — com um beijo nesta testa, em que ela, e não ele, sentiu nojo, nojo desta transformação, Jean Gelèac se despediu, não sabia para onde iria, primeiro para Curitiba, depois para qualquer lugar, tudo tinha acabado, não tinha?, não adiantava continuar, logo Rossi também vai embora, repare como ele olha o horizonte, ele não suporta mais essa gente, quase não trabalha nos grupos voluntários, a oficina está parando, as plantas sufocadas pelo mato, Rossi lendo e escrevendo, depois contempla o entardecer, à procura de um motivo para partir, eu não preciso esperar por isso, estou indo embora, vim apenas me despedir, obrigado por tudo. Adele beija a boca de Gelèac, sem encontrar aquele calor desesperado que queimava seus lábios, ele está com medo da partida, com medo de começar a vida sozinho, neste país que não é dele, não é dos anarquistas, um país que pertence aos trabalhadores, aos imigrantes teimosos que não querem mudar o mundo, só querem fartura na mesa. É ainda um menino, apesar dos trinta anos, Gelèac nem repara em sua barriga, é como se não a visse mais, ela se tornara um fantasma, todos são fantasmas. E igual a um menino amedrontado, sem olhar para os lados, ele deixa a Colônia numa manhã em que os passarinhos fazem a eterna festa nas árvores. A gravidez devolveu Adele ao marido, eram novamente uma família. Aníbal tentara se aproximar mais, recebendo um não.

— Sempre há alguém nos separando — ele disse, quando ela se afastou na cama. — Não, nós dois temos... — Nunca mais seremos nós dois, mesmo depois que Rossi for embora — ele lamentou. — Quem disse que Rossi vai embora? — Ninguém ficará, Adele. — Gentille. — O quê? — Gentille ficará aqui, para sempre. — Azar dela. — Não fale assim. — Ela teve menos sorte do que a gente. Aníbal não estava bêbado, tentava se controlar, e prometera para ela que nunca mais beberia se deixassem a Colônia, ele poderia trabalhar no comércio, tinha vocação, um lugar em que não fossem conhecidos, sem os anarquistas, uma vida normal, casa com uns móveis, roupa para nossa criança, cortinas nas janelas, você não sente falta de cortinas nas janelas? De toalhas bordadas na mesa? Adele começou a chorar. — Por que está chorando? — Nada. — Pense em nosso filho. Ele merece um futuro. Aqui só tem passado. Parece uma ruína. As casas vazias, pouca gente no refeitório, a comida racionada. — Tanto sacrifício para quê? — No nosso caso, para nada. Rossi tem os relatórios dele. Vai continuar acreditando que deu certo, vai fazer a propaganda de suas idéias. — Ele também sofre. — Mas ele tem os livros, o diploma, o nome, o respeito. E nós? Adele chorou mais intensamente, virando-se para o outro lado, com muito cuidado, por causa da barriga. — Nós temos uma criança que precisará de comida, casa, roupas, escola. — Ele é um homem bom. — Todos sabem disso. Bom, correto e míope. Ela não dormiu aquela noite. Se ficasse, Aníbal voltaria a beber e a vida se tornaria mais difícil, principalmente com o nascimento do filho, e a Colônia estava realmente morrendo.

Na manhã seguinte, procurou Rossi, que escrevia em seu quarto, não fora ao campo. Tinha uma dignidade mesmo com as roupas velhas, parecia um professor, um advogado, era isto que a atraía? Um pouco, mas também aquele olhar bondoso, a voz calma e firme, os olhos voltados para o sonho, numa imagem interior que era mais forte do que a realidade, pois a realidade para ele não existia, a realidade era falsa, tão vivos os seus ideais. — Aníbal e eu vamos embora. Ele deixou o caderno, tirou os óculos, olhou bem para aquela barriga grande no corpo pequeno, ela tinha direito de tomar esta decisão, era uma decisão errada, podia partir, não com Aníbal, este nunca conseguiria esquecer, a bebida venceria. Vendo um animal, Rossi sabia se ele suportaria ou não o peso do arado ou da carroça. Tinha este dom. Aníbal não suportaria o peso do que havia acontecido com Adele. Ela precisava de um homem mais forte. — Acho que você deve mesmo partir — ele disse, depois de um silêncio carinhoso. — Tudo é tão longe neste país. — Por mais que se distancie, sempre será perto. A gente nunca vai conseguir se afastar daqui. — Qualquer cidade serve, uma cidade em que Aníbal possa trabalhar. — Como disse, acho que você deve partir, mas não com Aníbal. — Ele precisa de mim. — Vai continuar sofrendo, mesmo com você. — A criança vai alegrá-lo. — Pelo contrário, a criança vai ser uma memória viva. — Não posso abandoná-lo como se fosse um cão. — Esse cão vai sempre avançar contra as sombras. — Mas é justo que eu lute contra as sombras ao lado dele. — Justo é. Só não vai resolver nada. Ou melhor, vai piorar. Ela começou a chorar, perguntando o que devia fazer, o que era certo, por que agora o anarquismo não funcionava?, por que o socialismo não tinha uma resposta?, que ele a ajudasse, achasse uma solução que não ferisse ninguém, que fosse boa para todos. — Eu nunca tive poderes mágicos. — Mas você tinha resposta para tudo. — As respostas um dia se gastam. — Mas por que você continua dando as mesmas respostas?

— Por medo das perguntas. — Palavras. Tudo é um jogo de palavras. — No final, o que nos resta? — Um filho — ela disse. — Só nos restam palavras. — E que palavras você guardou para mim? — Fique comigo. Ele tinha o olhar de cão ferido. Os dois homens: animais doentes, e queriam que ela cuidasse deles. Era sua sina, cuidar dos homens, ser enfermeira. E, como enfermeira, ela tinha que tratar primeiro dos doentes mais graves. Olhou com mansidão para Rossi. — Aníbal e eu vamos embora amanhã. O filho mais velho de Fiorenzo, Evaristo Fecci, procurou o pai para dizer que não tinha mais vontade de morar na Colônia, queria um emprego na cidade, estava com quinze anos, os dois juntos poderiam sustentar a casa. — Sua mãe não irá aceitar. — Que fique com o homem dela. Evaristo estava com a razão, pouco lhe sobrava do amor de Escolina, ela era toda dedicação ao outro, não fazia mais sentido manter aquele relacionamento, Adele e Aníbal tinham partido, a Colônia já não precisava de exemplos, estava se desintegrando, nenhum dos jovens permanecera, as urgências deles eram maiores, as famílias, em pequenos grupos, mudavam apenas de propriedade porque eram agricultores, não lhes restava outra coisa. — O que o senhor diz? — Não vamos fazer nada sem falar com ela. — Então será hoje. Com a família reunida. — Os mais novos não precisam participar. À noite, em casa, encontraram Colli levando os dois meninos para a cama. Ele fazia as crianças dormirem contando-lhes as histórias que ouvira em sua infância de uma avó que era a própria figura da bruxa, enrugada, curvada sobre um bordão, roupas escuras e amarrotadas. Quando recontava estas histórias, sentia a presença assustadora da avó e se arrepiava, lembrando que tinha mais medo de quem narrava do que das histórias em si. Transmitindo este estado juvenil, fazia os meninos sentirem pavor, e eles cobriam as cabeças, ouvindo tudo em silêncio.

— Ele não precisava ter vindo — falou Evaristo. — Fiorenzo convocou uma reunião da família. — Por aquela resposta, Escolina já tinha feito sua escolha. — O senhor está vendo? Não dá para viver assim. — Sua mãe não disse nada de mais. — Daqui a uns dias teremos que chamar o intruso de pai. — E existe algum mal nisso? — ela perguntou. — Era o que você queria, que ele fosse nosso pai. — Evaristo começou a chorar, logo Colli entrava na cozinha. — A gente decidiu abandonar a Colônia — adiantou Fiorenzo. — Seria melhor depois da próxima safra, com algum dinheiro — ponderou Colli. O silêncio só não foi completo porque Evaristo fungava o nariz, tentando voltar ao normal, todos pensavam naquela idéia, partir sem nada agora ou ficar mais uns meses para pegar algum dinheiro, embora a regra fosse nunca retirar nada da caixa social na hora da partida. — Melhor agora. — Fiorenzo tinha a voz calma. — Eu fico — disse Colli. — Eu também — disse Escolina. Olharam para os três filhos, o ódio nos olhos de Evaristo anunciava sua decisão. As duas meninas, Esmelinda e Amália, também choravam, mas em silêncio, sem lágrimas, choravam por dentro, na expressão triste. Havia dois pais e dois destinos, elas tinham que decidir. — Vamos com papai — disseram. — Nós ficamos com os meninos — revidou Escolina. — Eles não precisam ser um peso para você — ironizou Fiorenzo. — Eu ainda posso cuidar de todos. — Não queremos viver com a senhora — gritou Evaristo. — Um dia vocês vão me compreender. — Um dia a senhora vai se arrepender — disse Evaristo. Escolina começou a chorar, Colli a chamou para uma volta pela vila. Pai e filhos ficaram mudos, vendo a chama da lamparina se mover violentamente, apesar da porta e janela fechadas. — Vai chover — disse Fiorenzo. E aquilo serviu como um aviso para que os três se levantassem e fossem para a cama. Ganhou um beijo das meninas, Evaristo o olhou com ternura. Tinha bons filhos, era homem de sorte. Ia sentir falta dos dois mais novos,

mas poderia visitá-los. Estavam apenas partindo antes, um dia eles voltariam a se reunir. Ficou imaginando um grande almoço, com todos os filhos juntos, e os netos presentes, pois no seu sonho eles já estariam casados, noras e genros alegres. Não importava que nesta foto ele estivesse sozinho. Não, com certeza não estaria. Sempre há uma mulher que queira a gente. Ficou sentado, pensando no futuro, um futuro em que eram cinco, uma mulher sem face estava com eles. Nos primeiros trovões, Escolina voltou, um raio iluminou seu rosto. — Você ainda está aí? — É, estou. — Vão embora quando? — perguntou, sentando-se. — Amanhã. — Você sabe que nunca vou deixar de te amar. — Mas nunca vai me amar do mesmo jeito que ama o outro. Ele se levantou para ir ao quarto, ela segurou o braço dele, braço forte, sentiu a aspereza da pele e dos pêlos, estava escuro, mas ele viu os dentes brancos dela. — Poderíamos viver todos juntos. — Fora da Colônia seria impossível. Aqui já está sendo difícil. — Talvez a Colônia não acabe. — Para mim, acaba amanhã. — Então, ainda temos uma noite. E seguiram juntos para o quarto. Depois ficaram ouvindo o vento que queria arrancar todas as árvores e os trovões, os meninos mais novos começaram a chorar. Escolina os trouxe para a cama, e Fiorenzo passou a noite em claro, abraçado aos dois filhos. Naquela noite, e isso tinha ajudado Fiorenzo a tomar a decisão, quase não havia comida, apenas umas broas, repartidas em pedaços minúsculos. Alguém lembrou, ironicamente, da multiplicação bíblica dos pães. — Não temos conseguido multiplicar os pães — reclamou Aniceto. Rossi estava em silêncio. Sentia-se responsável pelas pessoas, mas não pelo estado da Colônia. Tinha feito tudo que era possível, os que permanecessem conseguiriam bons resultados agrícolas, tinham que ter paciência, a realidade não é vencida por meio de milagres. Quem ficasse iria colher a recompensa, ou poderia ir para outros lugares, havia muita terra para ser aberta. Quanto a ele, tinha decidido ir embora, não suportava a

Colônia sem Adele, com ela era possível ficar, tentar mais alguns anos; antes de saber de seu projeto de partir, ele ainda acalentava planos de reorganização, mas agora nada fazia sentido. Preferia suportar a solidão na cidade, ocupando-se com outras coisas. Tudo ali era Adele. E ao mesmo tempo tudo era a ausência dela. Não sofria com o pouco pão, e sim por não encontrar entre as mulheres certo rosto, certos olhos sempre atentos. Tudo era menor do que ela. — Eu queria saber onde estão os dois peixes da bíblia — falou Colli. E ninguém disse nada, estavam talvez pensando em peixe ou em outras comidas. Rossi alheava-se longamente e tudo dizia que ele já tinha partido, o que ficara ali era apenas sua imagem, uma recordação. Não fazia mais os discursos, não vociferava contra patrões e padres, nem se lembrava de falar de uma terra em que não houvesse exploração. Seu rosto era só ausência. — Onde você acha que estão os peixes, Rossi? — insistiu Colli. — Onde a natureza os colocou e vocês os deixaram por pura preguiça. Todos riram. Rossi tinha saído de seu transe para dar aquela resposta. Era preciso vencer o desânimo e queriam zombar da própria miséria. — Não somos pescadores. — Eu sei. Esperam por milagres. — No paraíso terreno, correrão rios de leite e os peixes virão até nós — brincou Tranquilo. — Nada vem até nós — disse Rossi, levantando-se. Foi para sua casa, enfrentando um vento forte. Nunca tinha visto um lugar em que ventasse tanto. Esta era uma das coisas que estranhava naquela terra. O vento. O vento um dia transformaria tudo em ruína. O vento tinha esculpido formas estranhas nos arenitos perto de Ponta Grossa, contaram-lhe. O vento era o senhor daquela região. Ele mandava. Ele se irritava e destruía. Estavam a léguas do mar, mas era como se fosse um vento de praia, torcia as árvores mais fortes e arrancava as mais fracas. As casas, durante as tempestades, só não eram derrubadas pela proteção da mata. Agora teriam uma noite de tempestade, seria sua despedida. Ele chegara cheio de sonhos sob uma chuva fértil, chuva abundante e sem ventos, que engordava a terra. Sairia no meio de um vendaval, encontrando árvores caídas no caminho, casas destelhadas. Já tinha visto estes estragos antes, nesses três anos nos Campos Gerais, uma região trágica. Conhecia o vento, aquele era dos perigosos. Entrou em casa e foi direto para a cama. Dormiria com roupa. Tinha

preguiça de fazer qualquer coisa, desejava apenas encontrar-se logo com a manhã. O vento produzia um barulho irado nas árvores; ele, como das outras vezes, não sentiu medo, somente desproteção. Na manhã seguinte, momento também da partida de Fiorenzo e dos filhos, não tinham combinado nada mas era bom não deixar sozinho a Colônia, Rossi saiu para ver os estragos, já com a mala na mão, apenas com as roupas e os livros de agricultura, os outros ficavam para a biblioteca da Colônia. Encontrou os anarquistas alvoroçados. O telhado do refeitório tinha sido arrancado e havia tabuinhas espalhadas por tudo, a maior palmeira da vila estava com suas raízes para fora, circundadas por imenso torrão. No pátio do alojamento, encontrou peixes pequenos e muitos sapos mortos. — Ontem, ao abrir a porta de casa durante a tempestade, ouvi algo caindo no assoalho. Mas não vi o que era. De manhã, encontrei um peixe morto. E agora isso. — Pascoale Taligmani, o mais velho dos anarquistas, apontava para os peixes inertes. Rossi sabia que o vendaval tinha tirado a água dos tanques da vizinhança, dos rios e dos charcos, trazendo junto aqueles peixes, era obra do vento impiedoso, mas uma mulher, depois de ouvir o relato de Pascoale, assustada, fez rapidamente o sinal-da-cruz. O anarquista abraçou os amigos antes de partir.

Taquari, 6 de abril de 1896 Prezado Sr. Sanftleben Fico contente com seu interesse por minha experiência anarquista. Como já disse na carta anterior, tudo agora é recordação, hoje sou professor de Agronomia e Veterinária da Escola de Agricultura do Rio Grande do Sul, e nada mais tenho a ver com questões políticas, principalmente com os princípios socialistas, embora continue acreditando, mais para uso pessoal, no anarquismo. Sobre a razão do fim da Colônia, já disse ao senhor que foi basicamente pela miséria, tivemos que começar um mundo novo sem nada, e com dezenas de pessoas para alimentar. Mas o maior problema interno foi criado pela vinda dos agricultores de Parma em 1891. Era uma leva extremamente operosa, que conhecia os ofícios agrícolas, e foi importante para o cultivo de nossas terras e para o desenvolvimento da pecuária. No entanto, sendo gente rústica, que trazia a desconfiança alimentada pela fome ao longo de gerações, esses parmeses revelaram-se mesquinhos, extremamente egoístas, e começaram a criar divisões dentro da Colônia, divisões segundo os laços de parentesco e a capacidade de trabalho, controlando as atividades de todas as pessoas dentro de um experimento em que a liberdade figurava como o maior bem. A esta mesquinharia deve ser somado o preconceito de tais agricultores, aguçado pela presença de uma moça que se entregou a todos os solteiros, pois todos vivíamos em dramático regime de abstinência, e a alguns casados, aumentando assim as rivalidades. O senhor tem aí os motivos do fim da Colônia, que sobreviveu até abril de 1894. Depois de minha saída, ela ainda foi aumentada pela vinda de mais umas poucas famílias, que só conheceram dissabores. O fim do sistema anarquista ocorreu quando os Artusi, que tinham um parente enterrado na Colônia, deram dinheiro aos remanescentes, para que partissem, ficando

com a responsabilidade de pagar as dívidas integrais da compra das terras, que ainda não tinham vencido. A Colônia, para mim, serviu para provar que sem os laços de família é possível levar vida anarquista, e que o socialismo só será viável se tiver capacidade de produzir bens materiais suficientes, garantindo condições dignas aos trabalhadores; caso contrário, eles preferirão sempre a exploração dos capitalistas. Sobre minhas ocupações após a Colônia, pouca coisa há para se contar. Em Curitiba, tentei todo tipo de trabalho, mas não consegui colocação satisfatória, pois ninguém daria emprego comum ao Dr. Rossi, o ilustre italiano. Acabei, por solidariedade, no corpo médico do Batalhão Italiano, durante a Revolução Federalista, recusando-me a usar farda ou me subordinar à autoridade militar. Hoje, move-me um único objetivo, conseguir uma casa para acomodar Adele e as crianças dela, pois vivem em tristes condições no Paraná, na companhia de Aníbal, que se entregou ao alcoolismo. Com o abraço fraterno do Dr. Giovanni Rossi

Ao entrar no Cemitério de Pisa, cruzando o portal com as colunas e a grade de ferro, elas viram os cedros, crescidos nas alamedas entre os jazigos de mármore. Adele não escondeu um suspiro profundo, de uma profundeza de décadas, que só poderia nascer naquele corpo de mais de oitenta anos, um corpo que sempre foi pequeno, mas que cada dia se curvava um pouco mais, em direção a uma terra que a atraía amorosamente. Ela seguia apoiada no ombro de Ebe, tendo Pierina do outro lado. — Cinqüenta anos! — diz. — Mas foi uma vida bonita — disse Pierina. — Hoje estaria fazendo cinqüenta anos de nosso casamento — repetiu. — Do que a senhora mais sente saudades? — perguntou Ebe. — De tudo. As filhas perceberam que não deviam continuar aquela conversa, tinham sido contra a visita ao cemitério naquele dia, era muita emoção para a mãe, mas ela insistira tanto, queria estar ao lado dele naquela data, se tivesse mais forças viria todos os dias, cuidar do túmulo, conversar com ele, não com palavras, mas com a memória, tinha aprendido que quando não se tem mais com quem compartilhar a vida passada, todos de repente se vão, a única maneira de conversar é pela memória, que traz as pessoas amadas de volta. — As araucárias — disse Adele. As filhas tinham crescido ouvindo falar das palmeiras e das araucárias, havia desenhos delas nos livros da biblioteca do pai, que também não se esquecia destas duas árvores. Mas não entendiam a lembrança deslocada. — O que há com as araucárias, mãe? — Estes cedros me lembraram a araucária. Eram cedros pequenos, com sua copa pontiaguda, nada guardavam da forma e da imponência da araucária.

— São bonitos estes cedros — falou Pierina. — Os cedros se fecham, os galhos crescem unidos, sempre para cima. Os galhos da araucária crescem apenas na copa e para o lado, com muito espaço entre eles, deixando visível o tronco. É uma imagem bonita. Ninguém falou nada, caminhavam em pequenos passos pelo caminho que levava ao túmulo do pai. — Sinto saudade das araucárias — ela disse. — Eram mesmo bonitas — disse Ebe. — Eu me lembro delas, uma lembrança meio apagada, mas me lembro. — Na minha memória nada se apaga — falou Adele. Chegaram em silêncio ao túmulo, as filhas ficaram ali, sem ter o que fazer. Rezar para o pai iria desagradar Adele, ela mantinha os velhos sentimentos anti-religiosos, conversar também seria impróprio. Em pé, olhando o túmulo, as três mulheres não se mexiam, estavam incorporadas à paisagem paralisada do cemitério, nem mesmo o vento mexia as plantas, não havia mais ninguém nas imediações naquela tarde. Só as três senhoras. E o silêncio, maior do que elas, maior do que tudo. Estamos aqui, começou a pensar Adele, estamos aqui, Giovanni, a sua família se reúne em torno de você de novo, e para se lembrar daquele dia em que chegamos à sua casinha em Taquari, você disse que nunca mais nos deixaria, eu e as meninas, nenhuma filha sua, as duas filhas suas, porque filhas de sua idéia, daquele casamento que você inventou. Cinqüenta anos não são nada. A guerra acabou. A Colônia acabou há muito mais tempo, o Brasil acabou para nós e para nossas filhas, mas há algo que nos une, algo maior do que tudo isso, e você demorou tanto para descobrir. Quando cheguei em Taquari, com Ebe e a outra Pierina, você não sabia. Sentia solidão, mas não sabia, você era um homem correto, ia cuidar de mim e de minhas filhas, e me disse, vocês são tudo que sobrou daquele sonho, mas não estava triste, você riu, foi um sonho bonito, não foi?, você me perguntou. Eu disse que sim. Mas chorei. Não chore assim, foi tudo tão bonito. Olhei para as meninas. Não quero que minhas filhas sofram. Nossas filhas não vão sofrer, você falou. Um homem decente, você sabia que as filhas eram de Gelèac e de Aníbal, não eram suas, mas disse nossas filhas. Eu fiquei quieta, a eterna lágrima escorrendo no rosto, você limpou com o dedo, era o primeiro carinho depois de tantos meses, e senti que seu dedo não estava mais áspero, como no tempo da Colônia, era de novo o Dr. Rossi, professor de agronomia e veterinária, e fiquei com medo, agora você não

estava mais no meio de colonos, fazendo uma experiência social, você era um homem respeitado, tinha voltado ao mundo da cultura, talvez não quisesse o que ficara no passado, nas matas do Paraná, tive medo, e você sentiu isso, então me perguntou quando vamos registrar nossas filhas?, eu não disse nada, elas seriam filhas do Dr. Rossi. Já conversei com o pessoal do cartório, vamos registrá-las o quanto antes, têm que ter um pai, porque uma casa elas já têm. Era uma casinha pequena a sua, mobiliada de acordo com sua nova posição, e chorei, você disse não chore, hoje é o nosso casamento, e brincou — sem padres. Eu ri com os olhos molhados, sem padres e sem ninguém, você falou, casamento secreto, depois nós providenciaremos os papéis no cartório, e será como se fôssemos casados desde sempre. Eu sabia que era tudo uma questão ética, você queria ser coerente, tínhamos vivido tudo aquilo juntos, Aníbal se perdera na bebida, eu estava sozinha e desamparada, você me acolhia, pois me queria bem. Sempre disse que me queria bem. E, naquela noite, foi o que me disse, quando deitamos, e chorei ainda mais, você me queria bem. Foi uma noite triste a do nosso casamento, e você me propôs: pense que é a primeira vez, e tirou minha roupa com uma delicadeza de noivo, e me beijou com lábios leves, e me abraçou com um cuidado que tinha algo de paternal, mas não consegui me alegrar, eu conhecia meu corpo, sabia quantas mãos tinham passado por ele, não podia fingir aquela virgindade, pensava nas duas filhas. Os Artusi tinham ficado com as terras, muitas famílias tinham vendido o gado da Colônia, outros receberam uma quantia da caixa social, nós éramos a sua herança, e para ser fiel a tudo que tinha pregado você nos aceitava, nos dava casa, um pai para minhas filhas. Eu me sentia grata, era um gesto nobre, você era um homem de caráter, eu não ficaria desamparada. Só depois fui vendo que a temperatura amorosa estava crescendo. Quando morreu Pierina, quem chorou não foi o anarquista, foi o pai, então soube que a gente era realmente uma família, já não havia mais nada do experimento social, todos ali formavam uma única família, e ao nascer nossa primeira filha, você deu o mesmo nome da morta, para dizer que ela continuava na outra criança, não havia diferença, mas eu só me convenci definitivamente quando, em 1906, depois de mais uma gravidez, perdemos outra filha, nossa Giannina, nascida e enterrada naquele outro lugar, Rio dos Cedros, em Santa Catarina, para onde tínhamos ido, e você não sofreu com menos intensidade, e me disse que estava na hora de voltar a Pisa, não quero continuar deixando uma filha em cada canto deste país, já estava cansado das perseguições políticas, do

controle das autoridades. Mas tudo começou naquela noite em Taquari, eu ainda cismada com o que você sentia por mim, daí você disse hoje é nosso casamento, e começou a tirar minha roupa, como se nunca tivesse feito isso. E eu na hora não entendi completamente aquele gesto. Era 21 de julho de 1896, guardei a data daquele casamento, embora Ebe, nossa filha, tivesse três anos e a primeira Pierina fosse um bebê, nós estávamos nos casando, e só depois vi que era como virgem que me casava, que tudo estava começando naquele momento. Você sempre chamou as meninas de nossas filhas, e eu nunca percebi uma coisa que só pensei agora, elas eram mesmo suas filhas, apesar de terem nascido de outros pais, porque você era o homem com quem eu dormia mesmo quando dormia com Gelèac e Aníbal, elas sempre foram suas filhas, e, sem saber disso, você foi o pai delas, desde sempre e não apenas a partir daquele 21 de julho. — Cinqüenta anos — Adele repetiu para as filhas, rompendo o silêncio. — Recordo-me de papai sempre se exaltando contra a política, lembrando-se da colônia anarquista, que as coisas não seriam assim se vivêssemos de acordo com a anarquia — falou Ebe, tentando animar a mãe. — Cinqüenta anos não é nada. — A senhora se lembra daquela vez em que ele, já doente, queria sair para protestar contra Mussolini? Adele não respondeu, virou-se e começou a caminhar de volta para o portão. As filhas ajudavam naqueles movimentos lerdos, tinham que vencer vários metros até chegar à saída. Depois de andar um pouquinho, Adele se voltou e olhou para o túmulo, o nome de Giovanni e o do sogro, gostaria que as duas filhas estivessem enterradas ali e não no Brasil. — O Brasil é um país muito grande — ela falou. Sem entender, Ebe e Pierina começaram a comentar histórias que tinham ouvido na infância, sobre bichos perigosos, fertilidade da terra, enriquecimento dos agricultores italianos que chegavam sem nada. — O pai nunca guardou mágoa do Brasil — falou Ebe. — Poderia ter ficado rico lá, e voltou sem nada e sempre amou aquela terra, ajudando a melhorar a vida dos pequenos lavradores. — Pierina falou isso com orgulho. — Eu vou dizer uma coisa para vocês, para que compreendam tudo. Elas pararam à sombra de um cedro, em um lugar de onde ainda dava para ver o túmulo de Rossi. Haviam estranhado aquela força nas palavras da mãe, até agora ela só tinha sussurrado, mas a voz adquirira um tom preciso,

de quem pronuncia uma verdade ruminada durante anos, talvez ela estivesse se lembrando dos tempos da Colônia, costumava dizer que nunca falara tão alto em sua vida, sua voz crescia e ficava maior do que ela, todos podiam gritar no anarquismo, ninguém precisava se calar. A voz agora não chegava a ser gritada, mas tinha uma firmeza que só as convicções nos dão. As filhas esperaram um momento, a mãe endireitou o corpo, olhou para o céu limpo, sem nenhuma nuvem, um céu que era só certeza e claridade. — Sabe por que fui para a Colônia? Sabe por que participei do amor livre? Este era um assunto silenciado em casa. Elas sabiam de tudo, Ebe era filha de Gelèac, de quem nunca mais se tivera notícia, era filha de uma experiência, de um desconhecido, um francês que sumira sem deixar sinal, não tinha raiva da fuga do pai, porque o pai para ela era Rossi. Mas não gostava de falar nisso, todas as vezes que ele tentara explicar como as coisas tinham ocorrido, ela se afastara, sabia o essencial, tinha lido o livro dele, entendia a proposta, não queria detalhes. Pertencia a uma família, com o pai enterrado ali naquele túmulo, junto com o avô. Ebe já sofrera demais com tudo aquilo, uns poucos amigos sabiam como ela tinha nascido, mas eles estavam morrendo, logo ninguém mais saberia, ela seria enterrada com o pai. Por que a mãe tinha que tocar nisso agora? — Vamos embora — falou Pierina. — Vocês não sabem por que participei daquele casamento com três homens. Nunca disse isso para ninguém. As filhas queriam ser poupadas. A mãe estava ficando cada vez mais distante da realidade, aquele não era o momento para ela confessar coisas que precisavam ser esquecidas. Sentiam-se como filhas de Rossi, não queriam saber mais nada. — Isso é passado, mãe — falou Ebe. Mas Adele não a ouviu, ainda olhava para o céu limpo. O céu lhe dava uma força muito grande. Aquele azul apagado lembrava, por contraste, o azul intenso do Paraná, aquele verde dos cedros não tinha nem a metade do verde viçoso daquelas matas. Tudo era mais colorido naquele passado. Era mais vivo, mais real. — Eu só aceitei aquele casamento coletivo porque Giovanni queria. Era importante para ele. — Papai era um grande homem. — Eu só dormi com outros porque sempre amei o pai de vocês, desde o

dia em que ouvi uma palestra dele. Falava como um sábio. Fiquei encantada. Fui atrás dele, cruzei o oceano, fiz tudo que ele queria. As filhas seguraram os braços da mãe, que vergou novamente a coluna, e começaram a andar. Ela seguiu pensando nas duas criancinhas enterradas no Brasil, deviam estar aqui. Todo mundo precisava de uma placa com o nome no túmulo, todos precisavam de país, de uma casa, mas principalmente de um túmulo, com o nome bem nítido cortado no mármore. Adele saiu do cemitério, passando pelo portal, gostava daquelas colunas. Logo estaria fazendo o caminho de volta, mas sem se cansar.

A Juliana, minha mulher, Ju, pertence este livro

Um amor anarquista: • http://www.record.com.br/livro_sinopse.asp?id_livro=19470 • http://www.record.com.br/autor_sobre.asp?id_autor=54 • http://www.record.com.br/autor_livros.asp?id_autor=54 • http://www.skoob.com.br/livro/55441-um-amor-anarquista • http://www.herdandoumabiblioteca.blogspot.com/ • http://twitter.com/#!/miguelsanchesnt • http://www.verdestrigos.org/sitenovo/site/cronica_ver.asp?id=747 • http://www.releituras.com/msanches_amor.asp • http://www.verdestrigos.org/sitenovo/site/resenha_ver.asp?id=327 • http://pt.wikipedia.org/wiki/Miguel_Sanches_Neto

Este e-book foi desenvolvido em formato ePub pela Distribuidora Record de Serviços de Imprensa S. A .