Segurança alimentar e nutricional 9788532634467


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Segurança alimentar e nutricional
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Segurança Alimentar e Nutricional

Coleção Conceitos Fundamentais Coordenação: Renata de Castro Menezes – Segurança alimentar e nutricional Renato S. Maluf – Tradução Maria Cristina Batalha e Geraldo Ramos Pontes Jr. – Desenvolvimento sustentável Isabel Cristina de Moura Carvalho, Gabriela Scotto, Leandro Belinaso Guimarães

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Maluf, Renato S. Segurança alimentar e nutricional / Renato S. Maluf. 2. ed. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2009. Bibliografia. ISBN 978-85-326-3446-7 1. Segurança Alimentar e Nutricional, SAN – Brasil 2. Segurança Alimentar e Nutricional, SAN – Leis e legislação – Brasil I. Título. 07-0098

CDD-363.856830981 Índices para catálogo sistemático: 1. Brasil : Segurança alimentar e nutricional : Ação governamental : Bem-estar social 363.856830981

Renato S. Maluf

Segurança Alimentar e Nutricional

EDITORA VOZES Petrópolis

© 2007, Editora Vozes Ltda. Rua Frei Luís, 100 25689-900 Petrópolis, RJ Internet: http://www.vozes.com.br

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora.

Editoração: Maria da Conceição Borba de Sousa Projeto gráfico e capa: AG.SR Desenv. Gráfico

ISBN 978-85-326-3446-7

Editado conforme o novo acordo ortográfico.

Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda.

Para Maria Helena, com carinho e reconhecimento. Para Paula e Adriana, com orgulho e esperança.

Sumário Prefácio do autor, 9 Parte I – Definições e significados, 15 1. Definindo Segurança Alimentar e Nutricional, 17 2. Direito humano à alimentação adequada e saudável, 20 3. Segurança e soberania alimentar, 22 4. A questão alimentar nos processos de desenvolvimento, 24 Parte II – Trajetória internacional da noção, 29 1. Segurança e estabilidade nos países avançados, 33 2. A questão alimentar no plano internacional, 51 3. Equidade e alimentos na América Latina e Caribe, 69

Parte III – Segurança Alimentar e Nutricional no Brasil, 77 1. A construção do conceito no Brasil, 79 2. Manifestações de insegurança alimentar e nutricional no Brasil, 98 3. Elementos da Agenda Brasileira de Segurança Alimentar e Nutricional, 120 A título de conclusão, 159 Glossário, 163 Referências bibliográficas citadas, 165 Para saber mais, 171 Sobre o autor, 173

Prefácio do autor O propósito deste livro é oferecer uma análise introdutória ao tema da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) no Brasil, para o quê descreve a trajetória internacional e nacional dessa noção e aborda seus principais componentes no contexto atual. A SAN diz respeito aos bens alimentares (alimentos) e ao modo como eles são apropriados pelas famílias e grupos sociais (alimentação). Todos sabemos que os alimentos são vitais, no mínimo, porque sua falta degrada o ser humano e pode levar à morte. Além dos problemas pela falta ou escassez, ampliou-se, nos últimos anos, a consciência de que também a ingestão de alimentos de forma inadequada causa danos à saúde e compromete a qualidade de vida. No entanto, talvez pelo fato de a alimentação fazer parte da rotina diária dos indivíduos e das famílias, não raro os alimentos entram nessa rotina como se fossem meras fontes de uma energia vital que é preciso renovar constantemente. Não se dá suficiente atenção aos hábitos alimentares por meio dos quais essa “reposição energética” é feita, além dos cuidados elementares com a higiene e da agora crescente preocupação com os reflexos na saúde e na estética daquilo que se come. Ainda menor é a atenção para com as dimensões sociais, ambientais e culturais que estão na origem dos alimentos, por trás dos rótulos e embalagens.

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Pode-se dizer que grande parte do sofrimento pelo qual passam parcelas significativas da população mundial está relacionada a questões alimentares e nutricionais, seja pela ausência do alimento, seja por sua má qualidade, seja por condições de vida e de saúde que impedem seu aproveitamento adequado. As constantes notícias sobre o expressivo número de famintos e desnutridos ou sobre a carestia alimentar no Brasil parecem se confirmar na visão diária da pobreza e da miséria nas praças e ruas de nossas cidades. Essa é a visão que choca; porém, mais numerosa é a miséria oculta, que só se revela nos elevados índices de desnutrição infantil, na precariedade da vida no meio rural, no custo de alimentar-se para as famílias de baixa renda, etc. A perplexidade e indignação provocadas por uma tal realidade é, particularmente, intensa entre os jovens quando se deparam com a incapacidade do Brasil oferecer condições dignas de vida para o conjunto da população. Imagina-se que isto não deveria ocorrer num país com grande disponibilidade de recursos naturais e capacidade de trabalho, e na verdade não há qualquer fatalidade provocando tal realidade. Pelo contrário, causas identificáveis e conhecidas em sua maioria colocam o Brasil na condição de um dos campeões mundiais em desigualdade social. Entre as manifestações de desigualdade encontra-se o acesso custoso ou insuficiente aos alimentos, ao mesmo tempo em que estes se constituem em fonte de vultuosos lucros apropriados pelas grandes corporações industriais e comerciais e pelos grandes produtores agrícolas. Há muitas gerações “alimenta-se” a expectativa do povo brasileiro em relação a um futuro que só pode ser promissor num país rico, com uma gente generosa e alegre. Não nos faltaram vários períodos de intenso crescimento 10

econômico, um deles chamado, mesmo, de “milagre econômico”. É também verdade que muitos indicadores sociais vêm melhorando ao longo das últimas décadas como, por exemplo, o nível médio de renda, escolaridade, mortalidade infantil, expectativa de vida e, mesmo, desnutrição infantil e manifestação de fome na população adulta. No entanto, ao se iniciar o século XXI, seguimos projetando para um amanhã sempre prometido; conquistas que, há muito, poderiam ter sido atingidas. Vejamos melhor esse ponto. Quase todos os governos podem apresentar dados mostrando melhorias nas condições de vida da população, inclusive dos segmentos mais pobres, exceto quando o país enfrenta crises internas profundas ou conflitos agudos. Em vista disso, a questão relevante passa a ser o ritmo dessas melhorias e os processos dos quais elas se originam cabendo, então, a pergunta: são precisos tanto tempo e sacrifício para obter pequenas melhorias, ainda que elas sejam constantes? Não há alternativa a um avanço no qual os ganhos se dão em ritmo de “conta-gotas”? Este é um tipo de questão na qual quantidade reflete qualidade, isto é, a lenta evolução favorável dos indicadores sociais pode estar expressando a baixa ou má qualidade dos processos que lhe dão origem. Essa qualidade é determinada, principalmente, pelas opções econômicas feitas pelo país. Sugiro que a incorporação da SAN entre os objetivos que orientam as escolhas estratégicas de um país contribui para implementar processos de qualidade superior em termos da combinação de resultados econômicos com equidade social, sustentabilidade ambiental e valorização cultural. Por serem elementos vitais para nossa existência, os alimentos e a alimentação desempenham papéis centrais na vida 11

das comunidades e dos países. A difusão do enfoque da SAN no Brasil permite abordar e atuar sobre um grande e variado conjunto de questões. A SAN constitui, no meu entender, um objetivo de ações e políticas públicas. Assim caracterizada, uma introdução a essa noção leva-nos, necessariamente, para o campo das ações e políticas de caráter público relacionadas com os alimentos e a alimentação, sejam elas de iniciativa governamental ou não governamental. De fato, a construção do enfoque da SAN no Brasil, como em outras partes do mundo, está associada à formulação, monitoramento e avaliação dessas ações e políticas, de modo que o desenvolvimento conceitual da noção se confunde com seu reconhecimento e difusão enquanto um objetivo público a ser perseguido com políticas de Estado e participação da sociedade. Na área social, nota-se que o Brasil dispõe de um bom número de programas públicos voltados para atenuar os malefícios causados pela privação de alimentos ou nutrientes, ao lado das ações de solidariedade e apoio de famílias e entidades para com aqueles indivíduos e grupos sociais que se encontram em estado de carência. Nos últimos anos, a sociedade brasileira vem sendo sensibilizada para a condição dos que não têm acesso adequado aos alimentos. Crescem também as referências à outra faceta da má alimentação que é a obesidade, presente entre ricos e pobres. Mais complexo, porém, tem sido introduzir no debate público considerações relativas às condições em que os alimentos são produzidos e consumidos, bem como quanto ao modo de enfrentar essas mazelas com as óticas do direito humano à alimentação e da soberania alimentar. Espera-se que o crescente uso do enfoque da SAN, como vem sendo desenvolvido no Brasil, contribua no diagnóstico e 12

proposição de ações sobre os mais diversos aspectos relacionados com a produção, o acesso e a utilização biológica dos alimentos. Além de permitir abordar a questão alimentar de modo abrangente, veremos que a SAN diz respeito ao conjunto da população e não somente a seus segmentos mais vulneráveis à fome. Para concluir, assinalo que o enfoque da SAN aqui apresentado é tributário de longa construção internacional e brasileira. O livro aborda avanços conceituais e de intervenção ocorridos nos últimos 20 anos, que fizeram com que o Brasil receba atenção no debate internacional a respeito. Considero uma conquista da sociedade brasileira a ampla utilização da SAN entre nós, fruto de mobilização social e de iniciativas oriundas de governos e organizações sociais. Um marco nesse processo foi consagrar esse enfoque na recém-sancionada Lei Orgânica da SAN (n. 11.346/06) e a futura instituição do Sistema Nacional de SAN. Essa construção produziu um enfoque da SAN com múltiplas dimensões que o presente livro procura abordar. Porém, é preciso reconhecer, desde logo, as implicações da formação disciplinar a que estamos submetidos e que condiciona nossa maneira de pensar. Dessa formação resultam, neste caso, inevitáveis ênfases em determinadas dimensões da questão alimentar, ao lado do tratamento insuficiente ou da ausência de menção a outras. Ficará claro ao(à) leitor(a) que o esforço feito na direção de uma análise interdisciplinar, como exige a intersetorialidade que é própria do enfoque da SAN, não supera as limitações próprias da formação do autor. Por fim, quero registrar que a ideia deste livro nasceu do envolvimento acadêmico e militante do autor com o tema da segurança alimentar que remonta aos meados da década de 13

1980. Uma primeira proposta de escrever um livro introdutório para adolescentes me foi feita pelo Betinho (Herbert de Souza), lá pelos meados dos anos 1990; pensava escrevê-lo para minhas filhas. Estimulado, agora, pelo convite para integrar a Coleção Conceitos Fundamentais, da Editora Vozes, trato de resgatar uma dívida ainda em tempo de ter minhas filhas na faixa dos leitores que a coleção pretende atingir. Minha gratidão ao incentivo e à minuciosa revisão do original feita por Renata Menezes, amiga e editora da coleção.

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PARTE I Definições e significados

Existem várias definições de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), que lhe conferem significados diversos. Isto se deve, por um lado, à evolução da compreensão a respeito desde que se iniciaram as referências à segurança alimentar em meados do século XX, obrigando a contextualização das definições. Por outro lado, o fato de a SAN definir um objetivo de política pública faz dela uma noção suscetível de distintas acepções e meios para sua efetivação, sendo pouco provável uma compreensão única a respeito. Mais do que isso, há um elemento de disputa em torno da SAN que fica evidente quando ela é utilizada para fundamentar proposições de política pública, principalmente ao legitimar a pretensão de algum tipo de tratamento diferenciado por parte do Estado. A diversidade de compreensões e os conflitos nesse campo envolvem governos, organismos internacionais, representantes de setores produtivos, organizações da sociedade civil e movimentos sociais, entre outros. Diferenças

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de visão não impedem, no entanto, a construção de consensos ou acordos, ainda que parciais, visando implementar ações e políticas públicas de SAN, como já ocorre no Brasil. Esclareço que a expressão “ações e políticas públicas” pretende ressaltar que a consecução da SAN tem como elemento nuclear a formulação de políticas públicas com participação social a partir dos organismos de Estado, mas envolve também ações de caráter público por iniciativa da sociedade civil.

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Definindo Segurança Alimentar e Nutricional

Para facilitar a argumentação ao longo do livro, antecipo no quadro a seguir a definição de SAN com a qual trabalharei. Essa formulação foi, primeiro, elaborada em encontro do Fórum Brasileiro de SAN, em 2003, e posteriormente aprovada na II Conferência Nacional de SAN realizada em Olinda, em 2004. Ela recolhe contribuições aportadas pelos movimentos sociais e governos ao longo do processo de desenvolvimento da noção no Brasil descrito na terceira parte do livro. Assim definida, a SAN converte-se em objetivo público, estratégico e permanente, características que a colocam entre as categorias nucleares para a formulação das opções de desenvolvimento de um país. Segurança Alimentar e Nutricional é a realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam social, econômica e ambientalmente sustentáveis (II Conferência Nacional de SAN. Olinda, 2004).

É peculiar da formulação brasileira ter acrescentado o adjetivo “nutricional” à expressão consagrada internacionalmente como “segurança alimentar”. O propósito foi interli17

gar os dois principais enfoques que estiveram na base da evolução dessa noção no Brasil, que são o socioeconômico e o de saúde e nutrição, expressando a perspectiva intersetorial que orientou a construção do enfoque da SAN entre nós. Seria possível adicionar outros adjetivos como resultado das dinâmicas sociais e políticas que lhe conferem significados. Por exemplo, os que pretendem realçar a dimensão ambiental se referem à SAN “sustentável”, enquanto que a dimensão social nos obrigaria a acrescentar o qualificativo “equitativa”. No entanto, os acréscimos tornariam a expressão imanejável. A segunda peculiaridade é englobar numa única noção – Segurança Alimentar e Nutricional – duas dimensões, de fato inseparáveis, que são a disponibilidade de alimentos e a qualidade desses bens. Alguns recorrem ao anglicismo para diferenciar a disponibilidade física (food security – segurança alimentar) da qualidade dos alimentos em termos da inocuidade do seu consumo (food safety – segurança dos alimentos). Chega-se, mesmo, a afirmar que tendo o sistema produtivo superado as restrições na disponibilidade de bens, as questões relevantes de “segurança” passaram a se localizar na prevenção dos riscos à saúde do consumo de alimentos. O enfoque da SAN aqui apresentado reúne ambas as dimensões, e ao fazê-lo coloca em questão os modelos de produção e as referências de qualidade que se tornaram predominantes. Outra peculiaridade está no uso do vocábulo “seguran1 ça” que tem, não apenas entre nós, um significado forte . Quando, pela primeira vez, se propôs uma política de segu-

1. Teria sido possível recorrer ao espanholismo “seguridade alimentar” (seguridad alimentaria), como ocorreu no caso da seguridade social, porém consagrou-se entre nós a expressão segurança alimentar. 18

rança alimentar para o Brasil, em 1985 (MA/Suplan, 1985), era inevitável o contraponto com o ideário da segurança nacional utilizado pelo recém-findo regime militar para justificar a opressão. Não bastasse isto, nos dias de hoje, a segurança pessoal e patrimonial ganhou evidência em razão do grau atingido pela violência em nossa sociedade. Claro que o objetivo da SAN implica atribuir ao vocábulo segurança um significado distinto dos mencionados, em especial por recorrer à ótica dos direitos humanos. A SAN é um objetivo de ações e políticas públicas subordinado a dois princípios que são o direito humano à alimentação adequada e saudável e a soberania alimentar. A vinculação a esses princípios e a intersetorialidade das ações diferenciam esse enfoque dos usos correntes da “segurança alimentar” por governos, organismos internacionais e representações empresariais vinculadas às grandes corporações e ao “agronegócio”.

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Direito humano à alimentação adequada e saudável

A noção de SAN inscreve-se no campo do direito de todo cidadão e cidadã de estar seguro(a) em relação aos alimentos e à alimentação nos aspectos da suficiência (proteção contra a fome e a desnutrição), qualidade (prevenção de males associados com a alimentação) e adequação (apropriação às circunstâncias sociais, ambientais e culturais). Uma alimentação é adequada quando, para além de uma “ração nutricionalmente balanceada”, colabora para a construção de seres humanos saudáveis, conscientes de seus direitos e deveres e de sua responsabilidade para com o meio ambiente e com a qualidade de vida de seus descendentes (VALENTE, 2002). O direito à alimentação deve ser assegurado por meio de políticas de SAN, por sua vez, uma responsabilidade do Estado e da sociedade sobre a qual pesam obrigações frente a normas legais universais. O Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, firmado em 1966 e ratificado pelo Brasil, estabelece “o direito de todos a usufruir um padrão de vida adequado para si mesmo e sua família, incluindo moradia, vestuário e alimentação, e à melhoria contínua das condições de vida”. Colocado como crucial para a fruição dos demais direitos, o direito de estar livre da fome e à alimentação adequada e saudável integra o conjunto dos direitos dos povos promovidos pelo Alto 20

Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas, conforme consta no Comentário Geral, n. 12 (O direito humano à alimentação), de 1999. Contudo, ainda não se dispõe de instrumentos eficazes de promoção, monitoramento e responsabilização pelo cumprimento dessas obrigações, uma conhecida limitação dos acordos dessa natureza em várias áreas. O Conselho da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) adotou, em 2004, uma resolução denominada de Diretrizes Voluntárias para o Direito Humano à Alimentação. Elas foram limitadas a um conjunto de recomendações de adesão voluntária, principalmente pela posição dos EUA segundo a qual obter alimentos é uma questão de “oportunidade”, não cabendo definir direitos que gerariam obrigações domésticas e internacionais para os governos; os EUA não integram o Pacto Internacional de 1966 e foram o único país a não assinar a declaração da Cúpula Mundial da Alimentação, em 1996. Não obstante, as Diretrizes Voluntárias contribuem com definições e sugestões de instrumentos cuja materialização depende de mobilização social para obter a adesão de Estados e demais atores sociais. Pelo lado das organizações não governamentais, várias delas vêm propondo um Código de Conduta Internacional sobre o Direito Humano à Alimentação Adequada.

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Segurança e soberania alimentar

Quando se considera a ordem internacional, o objetivo da SAN se defronta com questões de soberania, usualmente abordadas na perspectiva da soberania nacional. Embora importante, esta última é insuficiente seja para diferenciar os interesses que convivem no interior dos países – afinal, estes não são blocos homogêneos – seja para enfrentar os desafios postos pela construção de um sistema alimentar global. Mais promissora para o nosso tema é a noção de soberania alimentar que vem sendo trabalhada e difundida principalmente pelos movimentos sociais desde meados da década de 1990, cuja primeira e principal motivação foi responder à perda de capacidade dos Estados nacionais formularem políticas agrícolas e alimentares no contexto da progressiva internacionalização da economia (MENEZES, 2001). Assim, valendo-nos da definição apresentada no quadro a seguir, vemos que a promoção da SAN requer o exercício soberano de políticas relacionadas com os alimentos e à alimentação que se sobreponham à lógica mercantil estrita – isto é, à regulação privada – e incorporem a perspectiva do direito humano à alimentação. Deste modo se estabelece a conexão entre um objetivo de ações e políticas públicas (SAN) e um princípio (soberania alimentar) que o qualifica.

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“Soberania alimentar é o direito dos povos definirem suas próprias políticas e estratégias sustentáveis de produção, distribuição e consumo de alimentos que garantam o direito à alimentação para toda a população, com base na pequena e média produção, respeitando suas próprias culturas e a diversidade dos modos camponeses, pesqueiros e indígenas de produção agropecuária, de comercialização e gestão dos espaços rurais, nos quais a mulher desempenha um papel fundamental [...]. A soberania alimentar é a via para erradicar a fome e a desnutrição e garantir a segurança alimentar duradoura e sustentável para todos os povos” (Fórum Mundial sobre Soberania Alimentar. Havana (Cuba), 2001).

Soberania alimentar implica também que as políticas adotadas em seu nome, particularmente pelos países avançados, não comprometam a soberania de outros países; esse risco está presente nos termos dos acordos internacionais (sobre comércio, investimentos, propriedade intelectual, biodiversidade, etc.) e no desmonte de políticas de promoção e proteção de setores domésticos e do patrimônio nacional. Especialmente controversa é a restrição feita pelo enfoque da soberania alimentar ao papel atribuído ao comércio internacional no abastecimento alimentar interno, em oposição ao que defendem muitos governos e organismos internacionais (incluindo a própria FAO), além, claro, das corporações agroalimentares. Sustentarei, mais adiante, que o comércio internacional não é fonte confiável de SAN. Por todos os elementos apresentados, conclui-se que a SAN é um objetivo que expressa um direito que concerne a toda a população, tem natureza estratégica e deve ser buscado de forma permanente com base no exercício de políticas soberanas. Isto nos remete às estratégias de desenvolvimento postas em prática pelos países. 23

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A questão alimentar nos processos de desenvolvimento

Os processos de desenvolvimento econômico ligam-se à questão alimentar por motivos de ordem ética, econômica e política, e esta questão influi de forma decisiva no padrão de equidade social de uma sociedade. Entendo por desenvolvimento econômico o “processo sustentável de melhoria da qualidade de vida de uma sociedade, com os fins e os meios definidos pela própria sociedade que está buscando ou vivenciando este processo” (MALUF, 2000). A maneira como os países enfrentam os vários componentes da questão alimentar pode contribuir ou dificultar que esses processos promovam equidade social e melhoria sustentável da qualidade de vida de sua população. Nesses termos, o objetivo da SAN pode ser colocado entre os eixos ordenadores de ações, políticas e programas que potencializam uma interação positiva entre a questão alimentar e a equidade social. O enfoque da SAN (a) busca ampliar o acesso aos alimentos, ao mesmo tempo em que questiona o padrão de consumo alimentar, (b) sugere formas mais equitativas e sustentáveis de produzir e comercializar os alimentos, e (c) requalifica as ações dirigidas para os grupos populacionais vulneráveis ou com requisitos alimentares específicos. Essas três linhas de ação convertem a busca da SAN num parâmetro para as estratégias de desenvolvimento de um país, 24

como também o são o desenvolvimento sustentável e a equidade social. O acesso aos alimentos engloba não apenas comer regularmente, mas também comer bem, com alimentos de qualidade e adequados aos hábitos culturais, com base em práticas saudáveis e que preservem o prazer associado à alimentação. Essa perspectiva aplica-se também para os indivíduos ou grupos com maior vulnerabilidade à fome, pois não se trata de assegurar-lhes qualquer alimento. Além disso, famílias ou grupos sociais podem ter acesso regular aos alimentos e evitar a ocorrência da fome e mesmo da desnutrição, porém, não se encontram numa condição de SAN caso o custo da alimentação comprometa boa parte da renda familiar e impeça o acesso aos demais componentes de uma vida digna como a educação, a saúde, a habitação e o lazer; esta é uma questão relevante em países com elevada desigualdade social como o Brasil. Pelo lado da oferta de alimentos, a produção de grandes quantidades e a ausência de sinais de desabastecimento (falta de bens) não demonstram que o país esteja contemplando os requisitos da SAN, tanto em termos imediatos quanto numa perspectiva de longo prazo. Isto depende do modo como os alimentos são produzidos, comercializados e consumidos, já que o enfoque da SAN considera os aspectos sociais, culturais e ambientais envolvidos nesses processos. A oferta de alimentos não está dissociada da condição social das populações e das relações que elas mantêm com a cultura e o ambiente. Ao colocar a questão alimentar no centro da problemática social e econômica, não recorri às vantagens econômicas e políticas comumente atribuídas à redução da pobreza e das carências nutricionais, quais sejam, que essa redução tor25

naria as pessoas mais produtivas e atenuaria as tensões sociais. Trata-se de um argumento equivocado e, não raro, cínico, apesar da boa intenção de alguns que o utilizam com o intuito de sensibilizar governantes e as elites em geral para as “vantagens” de adotar ações nessa direção. Nada mais enganoso que escamotear que a questão alimentar pertence, antes de tudo, ao campo dos direitos com valor intrínseco – o direito de todos(as) a uma vida digna e saudável. Nos termos de Sen (2000), as liberdades e direitos são fins primordiais com valor intrínseco, distintos do valor instrumental expresso na contribuição eficaz das liberdades e direitos para a promoção do desenvolvimento. A afirmação do princípio precede as considerações sobre os inegáveis benefícios econômicos da redução da desigualdade social. O estabelecimento de relações entre a questão alimentar e nutricional e os processos de desenvolvimento possui antiga e rica tradição, inclusive no Brasil. Essa tradição foi inaugurada, entre nós, pela abordagem de Josué de Castro cujo pioneirismo incluía, justamente, a relação entre o biológico e o social que se manifesta na fome, para ele, um produto do subdesenvolvimento. Embora influenciado pela visão do “círculo vicioso da pobreza” – a doença reduz a produtividade e, portanto, causa miséria e desnutrição –, Castro ultrapassa os limites da dimensão econômica e coloca a fome como um problema ético (MAGALHÃES, 1997). Desde então, muitos outros analistas caminharam nessa direção. Permanente esforço é requerido para desfazer o erro comum de restringir a SAN aos objetivos de erradicar a fome, cuidar da desnutrição ou enfrentar situações de carestia com ações assistenciais, suplementares ou emergenciais. Ainda carecemos de uma Política Nacional de SAN que estabeleça as diretrizes e eixos prioritários de atuação, 26

coordenando e integrando ações e programas nas várias dimensões por ela abrangidas, entre as quais estão os indispensáveis programas com impacto imediato sobre a pobreza, a fome e a desnutrição. Não se trata de idealizar processos totalizantes. Ao contrário, como é frequente ocorrer com políticas inovadoras, veremos que a construção da Política Nacional de SAN se faz de modo gradativo e por caminhos quase nunca coincidentes com os ditames das lógicas tecnicistas. Antes, porém, farei breve retrospectiva da trajetória internacional da noção de segurança alimentar e das políticas a ela associadas.

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PARTE II Trajetória internacional da noção

Nesta parte serão apresentados os antecedentes que levaram às principais acepções e usos da SAN na atualidade, a saber, a evolução da noção de segurança alimentar em países capitalistas avançados, seu tratamento por organismos internacionais, incluindo a concepção de segurança alimentar global, e a apropriação latino-americana. Alerto para o risco de anacronismo bastante comum em análises retrospectivas, nesse caso, aplicando-se a noção de segurança alimentar a períodos onde ela não existia como tal. As referências à prioridade conferida aos alimentos pelas comunidades e governantes são tão antigas quanto a história conhecida. Não surpreende, também, a associação entre (in)segurança e (falta de) alimentos, pois esses são condição da existência. Não obstante, o emprego da noção de segurança alimentar justifica-se, apenas, no contexto histórico no qual a disponibilidade e o acesso aos alimentos se converteram numa questão de segurança das populações e dos Estados a 29

ser promovida por meio da adoção sistemática e permanente de políticas públicas. Essas circunstâncias corresponderam a um novo patamar da questão alimentar no mundo, tornada mais complexa e não circunscrita às fronteiras nacionais. Era preciso mais do que as diretrizes tradicionais de expandir a produção (dado o prognóstico “malthusiano” da insuficiência de alimentos em face do crescimento populacional) e aprovisionar bens para enfrentar circunstâncias adversas (clima e conflitos). Assim, nas primeiras décadas do século XX a questão alimentar ganhou novos contornos, acentuados no contexto das duas guerras mundiais e da recessão dos anos 1930, tornando-se uma tarefa de Estado. A ação estatal foi, sem dúvida, o nascedouro da noção de segurança alimentar cujos significados e possibilidades de aplicação variam conforme as circunstâncias que condicionam a atuação dos governos. No entanto, a participação da iniciativa privada, notadamente das grandes corporações agroalimentares, tornou-se crescente pela gradativa retração da maioria dos governos, em consonância com as orientações dos principais organismos internacionais. Igualmente importantes, pelo menos, desde os anos 1980, são os movimentos e organizações sociais, pois as entidades e redes da sociedade civil foram as principais responsáveis pela introdução de muitos dos novos componentes do atual enfoque da segurança alimentar. O enfoque da segurança alimentar se voltava, de início, para a disponibilidade de alimentos pela expansão da produção agrícola. Sem nunca abandonar essa marca de nascença, nos anos 1980 ocorreu uma importante inflexão na direção de colocar ênfase na capacidade de acesso aos alimentos pelos indivíduos e grupos sociais. Esse enfoque foi 30

estendido para a capacidade dos países acessarem alimentos por meio do comércio internacional, enquanto especialistas deslocavam o enfoque para o plano domiciliar e individual, no contexto de ascensão do neoliberalismo que retirava relevância da esfera nacional em favor da dimensão micro ou local dos problemas sociais. A interpretação aqui feita supõe que as questões relacionadas à SAN se manifestam em várias escalas (desde os indivíduos e domicílios, passando pelo âmbito nacional até o global), mas são distintas em cada uma delas e comportam interação e relações de determinação recíproca.

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Segurança e estabilidade nos países avançados

A maneira como as questões relacionadas com a produção e consumo dos alimentos são tratadas nos países capitalistas avançados é elucidativa da construção da SAN, constituindo fator determinante do contexto internacional em que ela vem se desenvolvendo. As duas principais referências são, sem dúvida, os Estados Unidos da América e a atual União Europeia. Como se sabe, a capacidade de acesso da população aos alimentos há tempos deixou de ser um problema central nesses países, assim como avanços expressivos foram por eles obtidos na capacidade de produção desses bens. A maior parte da população dispõe de renda para adquirir alimentos de forma regular e em quantidade suficiente, enquanto que se reduziu a parcela do orçamento familiar destinada aos gastos com alimentação, como é próprio das rendas mais elevadas. Os grupos sociais com renda insuficiente, os desempregados e outros segmentos em situação de vulnerabilidade contam com programas sociais e alimentares com ampla cobertura. Pelo lado da disponibilidade, a maioria dos países avançados logrou atingir, individualmente ou em bloco como no caso europeu, um elevado grau de autossuficiência produtiva com base em modelos de agricultura intensiva e integração agroindustrial. Nesses casos, a segurança alimentar (no sentido de food security) significou assegurar a estabi33

lidade do abastecimento alimentar por meio da sustentação da produção doméstica daqueles alimentos considerados estratégicos, em conjunto com a administração de estoques com intenção preventiva, complementando o abastecimento interno por meio do comércio internacional. Equilíbrio, sanidade e assistência nos EUA Equilíbrio agrícola, sanidade dos alimentos e assistência alimentar constituem as referências nucleares da construção, a partir da década de 1930, do que se poderia interpretar como a política de segurança alimentar dos EUA. Digo “interpretar” porque o uso da expressão “segurança alimentar” para denominar políticas públicas naquele país se deu apenas em 1985. Antecedida por processos que resultaram na enorme capacidade de produção agrícola daquele país, a construção pós-1930 dividiu-se em três períodos. No primeiro período foram fincadas as primeiras raízes da política de segurança alimentar estadunidense com as medidas adotadas sob o New Deal, implementado pelo Governo Roosevelt, a partir de 1933. Tratou-se de um programa de reformas profundas, com a perspectiva de intervenção programada e concertada com os atores sociais sobre os efeitos da crise econômica detonada pelo colapso da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929, que se tornou mundial. O “problema” agroalimentar foi enfrentado logo em seguida ao tratamento da crise bancária. As leis do ajuste agrícola (1933 e 1938) pretenderam obter o “equilíbrio agrícola” por meio do controle da produção ofertada (redução voluntária da área cultivada e da produção em troca de pagamentos compensatórios aos agricultores) e da garantia dos preços, com vistas a sustentar a renda dos agri34

cultores, especialmente a agricultura de baixa renda. Ações foram adotadas para promover o acesso aos alimentos em face do desemprego crescente, assim como foram criadas colônias agrícolas e estimulada a transferência de desempregados para o campo. A administração do ajuste agrícola incluiu um conselho do consumidor “com visão urbana e liberal”, inaugurando a coordenação dos distintos interesses no interior do sistema agroalimentar, com conflitos inevitáveis, porém saudáveis, entre os representantes dos consumidores, das organizações rurais e economistas agrícolas. Incorporar o consumo e a nutrição no Departamento de Agricultura (Usda)2 constituía arranjo institucional pouco usual, especialmente se comparado com a tradição brasileira de ter no Ministério da Agricultura um tradicional representante setorial dos grandes proprietários rurais e da agroindústria. Convém esclarecer, porém, que o Usda nunca deixou de atuar em defesa da grande agricultura e da indústria alimentar daquele país, com suas recomendações nutricionais e de outras agências governamentais sendo acusadas de mesclarem diagnósticos científicos, interesses econômicos e contexto político (NESTLE, 2002). O segundo período corresponde às décadas de 1950 e 1960. Durante a II Grande Guerra e logo após seu término, os países adotaram medidas próprias ao contexto bélico. O fator “segurança” embutido na noção de segurança alimen2. O Usda foi criado, em 1862, com duas atribuições: asse- gurar uma oferta de alimentos suficiente e segura; difundir informações relacionadas com agricultura no sentido mais geral, interpretada como mandato para fornecer recomendações nutricionais (NESTLE, 2002). 35

tar costuma ser atribuído àquelas circunstâncias excepcionais. Os EUA iniciaram a promulgação periódica de leis agrícolas em 1948, ao lado de leis alimentares como a Lei da Refeição Escolar (1946), que estimulava a destinação de excedentes de produção agrícola para melhorar a condição nutricional de crianças pobres. Mantinha-se a antiga perspectiva dos programas alimentares de, ao mesmo tempo, enfrentar carências e atender demandas econômicas de agricultores e industriais. Mencione-se, também, a Lei de Desenvolvimento do Comércio Agrícola e de Ajuda (1954) que inaugurou a prática de escoar os excedentes agrícolas através de exportações subsidiadas e de doações de alimentos para países pobres. Procedimentos deste tipo contribuíram para introduzir novos produtos nos hábitos alimentares dos países para os quais os excedentes eram destinados. Eles estiveram na origem, por exemplo, da difusão do consumo rotineiro de derivados de trigo na América Latina, Brasil incluído, chegando a deslocar tradicionais alimentos derivados do milho e da mandioca. Os anos 1960 viram nascer a Lei do Vale Alimentação (Food Stamp Act, 1964) que institucionalizou o maior programa mundial de ajuda direta a famílias e indivíduos inca3 pazes de adquirir alimentos por seus próprios meios , cuja amplitude é proporcional à desigualdade da sociedade estadunidense. Com o início dos levantamentos sobre ingestão de alimentos pelos indivíduos, em 1965, revelava-se um problema aparentemente inusitado, a saber, a significativa

3. Fonte inspiradora do Programa Cartão Alimentação que iniciou o Programa Fome Zero no Governo Lula. 36

ocorrência da fome e desnutrição no país da abundância e afluência. A coexistência das duas manifestações da má nutrição que são a desnutrição e o sobreconsumo resultaram, respectivamente, em crescente assistência alimentar e em recomendações de “comer menos” para evitar doenças crônicas (NESTLE, 2002). O terceiro período localiza-se na década de 1980 quando, pela primeira e única vez, os EUA fizeram uso explícito da noção de segurança alimentar para denominar uma política pública com a edição da Lei de Segurança Alimentar (Food Security Act, 1985; Food Security Improvements Act, 1986). Ela fornecia um marco de cinco anos para vários programas agrícolas e alimentares. Por segurança alimentar entendia-se formar e gerir estoques governamentais de alimentos (escassez eventual e regulação dos preços ao consumidor), e adotar programas alimentares voltados para populações carentes e aspectos nutricionais. Esse significado restrito ajustava-se à reorientação da política agrícola estadunidense na direção de ampliar a competitividade e reduzir os preços agrícolas, via liberalização dos mercados, e expandir a demanda interna e as exportações (RAY et al., 2003). Cristalizava-se uma acepção comum entre governantes, organismos internacionais e representantes do grande negócio alimentar: (a) intensificar a produção mesmo que com impactos sociais e ambientais negativos e expandir o comércio internacional em benefício dos países e setores econômicos mais produtivos (food security); (b) regulamentar os fatores que afetam a segurança dos alimentos (food safety); (c) adotar amplos programas alimentares ou de suplementação de renda para os segmentos sociais mais carentes. A aparente intenção dos legisladores do Congresso Nacional de trazerem a segurança alimentar para o primeiro

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plano, para alguns, devia-se à vigência do ideário da segurança nacional no Governo Reagan. Seja como for, a referência foi abandonada já na lei subsequente (1990) e nas demais (1996 e 2002), que deram seguimento à orientação liberalizante. Em lugar da segurança alimentar, retomou-se a preocupação com a “segurança da atividade agrícola” (Farm Security and Rural Investment Act, 2002), substituindo a sustentação dos preços agrícolas por programa de manutenção da renda dos agricultores. Manteve-se a preocupação de garantir a indivíduos e domicílios o “acesso a alimentos suficientes para uma vida ativa e saudável”, com permanente ampliação dos programas de assistência alimentar, incluindo a edição de uma Lei de Prevenção à Fome (1988). Os levantamentos oficiais revelam que a insegurança alimentar vem se reduzindo desde 1995, porém, em 2004, 11,9% dos domicílios estadunidenses vivenciaram esta condição em algum momento do ano, sendo que em um terço deles (4,4 milhões ou 3,9% do total) um ou mais dos seus membros sofreram fome (“insegurança alimentar com fome”). Os dois terços que puderam evitar a fome o fizeram reduzindo a variedade da dieta e recorrendo aos programas alimentares federais e fontes comunitárias de assistência. Esses percentuais são bastante mais elevados nos domicílios abaixo da linha oficial de pobreza, naqueles conduzidos por mulheres solteiras com crianças e nos de população ne4 gra e hispânica (NORD et al., 2005) . Um em cada cinco habitantes dos EUA participam em pelo menos um dos programas de assistência alimentar e

4. A aferição da insegurança alimentar pelo Usda baseia-se no chamado “Método de Cornell”, agora adaptado ao Brasil (CORREA et al., 2003). 38

nutricional conduzidos pelo Usda. Os cinco maiores programas consumiram, em 2005, 95% dos recursos totais: 5 US$ 31 bilhões para o vale alimentação (Food Stamp) ; US$ 8 bilhões com refeições escolares (School Lunch); US$ 5 bilhões com suplementação alimentar para mulheres e crianças; US$ 2,1 bilhões com alimentações subsidiadas de crianças e adultos (Child and Adult Care); US$ 1,9 bilhão com café da manhã escolar (School Breakfast). No total, quinze programas de assistência alimentar consumiram, em 2005, US$ 51 bilhões, equivalente a 55% do orçamento do Usda, portanto, mais do que os gastos também muito expressivos com a política agrícola (OLIVEIRA, 2006). Como se pode ver, o modelo estadunidense combina a condição de grande produtor e exportador de alimentos, baseada num dos maiores sistemas produtores de alimentos do mundo, com o também maior programa mundial de ajuda alimentar (Food Stamp Program) e outros vultuosos programas destinados a cobrir carências alimentares e nutricionais de parcela significativa de sua população. Claro está que este modelo é fortemente demandante de recursos públicos não disponíveis para qualquer país, para não mencionar seus impactos sociais e ambientais. Segurança, estabilidade e o modelo europeu de agricultura Quanto à Europa, os alimentos ocuparam lugar central na reconstrução posterior à II Guerra Mundial, parte de

5. A marca recorde de 25,7 milhões de participantes (média de US$ 92,7/pessoa/mês) deveu-se a emergências como as vítimas dos furacões na Flórida e Nova Orleans. 39

um processo de integração com reconhecidos êxitos e grande amplitude nas políticas agrícolas e alimentares adotadas. O Tratado de Roma (1957) – início da integração – já trazia inscrito o objetivo da “garantia de segurança do abastecimento [alimentar] a preços razoáveis e estáveis aos consumidores e aos produtores”. Este foi um dos fundamentos do que viria a ser, a partir de 1967, a Política Agrícola Comum (PAC). A pretendida segurança deu origem a uma orientação produtivista visando elevar o grau de autossuficiência produtiva do bloco de países e estabilizar o abastecimento regional, num quadro de escassez e de recuperação econômica que se seguiu ao término da guerra em 1945. Em 1957, os gastos com alimentos podiam absorver até 60% da renda familiar em alguns países europeus. A segurança no abastecimento e a progressiva redução do custo da alimentação no orçamento familiar resultaram da conjunção de aumentos na produção e na produtividade agrícola e agroindustrial, elevação do poder de compra das famílias e regulação pública dos mercados agrícolas. São bastante conhecidas as instituições que compuseram o Estado de bem-estar social europeu. No que se refere à regulação dos mercados, ela englobava compatibilizar, não sem tensões, os objetivos de atenuar o impacto dos preços dos alimentos sobre o poder de compra das famílias, em simultâneo ao estímulo à produção visando assegurar um bom padrão de vida para os agricultores. A proteção aos agricultores se devia também à tendência de os preços por eles recebidos crescerem mais lentamente que os preços em geral, incluindo os que os consumidores pagavam pelos alimentos processados. Lançou-se mão da sustentação dos preços agrícolas internos, com elevada proteção contra o ingresso de produ40

tos de países extrarregião, bem como de subsídios às exportações agroalimentares para dar vazão à geração recorrente de excedentes produtivos em relação à demanda interna, como também ocorreu nos EUA. Assim, a União Europeia praticou e continua praticando elevada transferência de recursos para seus agricultores na forma de subsídios de preço, barreiras tarifárias e de mecanismos mais recentes de pagamento direto. Essa proteção é paga, em grande medida, pela sociedade europeia por meio do uso de recursos orçamentários próprios ou admitindo preços internos superiores aos internacionais, porém ela acarreta ônus para os demais países que sofrem a concorrência das exportações europeias subsidiadas ou têm dificuldade para colocar seus próprios produtos no mercado europeu. Tratam-se de políticas alegadamente soberanas que, contudo, contêm componentes que comprometem a soberania e segurança alimentar dos demais países. A noção de “regime alimentar” (FRIEDMAN & McMICHAEL, 1989) ajuda a compreender o papel das políticas agroalimentares nacionais e as tensões que elas geram no plano internacional. Passado o regime que esteve assentado na importação europeia de trigo e milho de suas colônias e ex-colônias, instaurou-se um “regime de excedente” que se expandiu em nível mundial sob hegemonia inicial dos EUA e se consolidou no período posterior à II Guerra Mundial. Ele reproduziu o modelo estadunidense de produção agrícola intensiva apoiada em fartos subsídios à exportação dos excedentes produtivos e em restrições às importações. A integração simultânea dos sistemas agroalimentares nacionais assim constituídos implicou a geração de excedentes produtivos crônicos, particularmente nos Estados Unidos e União Europeia, e tensões à escala internacional.

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A profunda crise do “regime de excedente” nos anos 1970, num contexto de restrição na oferta internacional de alimentos simultânea às crises do petróleo e do dólar, deixou como herança o maior distanciamento entre a regulação nacional das atividades produtivas e a organização econômica que se tornou transnacional (FRIEDMAN & McMICHAEL, 1989). Essa seria a principal causa dos permanentes impasses nas negociações de regras comerciais que pretendem compatibilizar as políticas nacionais, e também da instabilidade do mercado internacional de alimentos. Nesse mesmo contexto, as corporações transnacionais suplantaram as estruturas reguladoras nacionais sob as quais nasceram, tornando-se os principais agentes a tentar estabelecer uma regulação global privada das condições agroalimentares. Porém, como lembra Friedman (1993), de uma organização privada e competitiva não podem se originar regras estáveis. As posições da Comunidade Europeia e dos EUA são o maior obstáculo para se chegar a acordos sobre o comércio internacional agrícola, apesar do crescente papel desempenhado nas negociações pelos países classificados como “em desenvolvimento”, dentre os quais o Brasil. Ainda não se dispõe das regras e instituições características de um novo “regime alimentar”, enquanto que os países ricos seguem utilizando instrumentos de subsídio às exportações e de proteção dos mercados internos. Não obstante, os países avançados têm caminhado na direção de substituir antigas políticas de sustentação de preços agrícolas pela garantia de uma renda mínima aos agricultores por meio de transferências diretas de renda sem contrapartida proporcional em produto. Deste modo, não estimulam a geração de excedentes produtivos, ao mesmo tempo em que abdicam de

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regular a produção agrícola como requerido pela ótica do livre-comércio. A PAC, tal como a política agrícola estadunidense, difundiu no interior do bloco um modelo de agricultura mecanizada e com elevado uso de agroquímicos, ainda que com diferentes versões e graus variáveis de adesão entre os países membros. Não obstante, esse processo foi acompanhado de tensões internas associadas à preservação de modos peculiares de produção agrícola e alimentar: a transformação das estruturas agrícolas confrontava-se com a intenção, contida em documentos oficiais, de respeitar “o modelo específico de desenvolvimento da agricultura europeia onde predominam a exploração familiar e estruturas produtivas diversificadas”. Este dilema está no centro dos debates europeus atuais. De todo modo, as principais características dos sistemas agroalimentares nos EUA e na Europa foram difundidas no mundo por três mecanismos principais que são a ação das grandes corporações agroalimentares, os reflexos das políticas públicas neles adotadas e a atuação das organizações e redes internacionais nas áreas do fomento e da pesquisa. Importar e proteger Um pequeno número de países capitalistas avançados dispõe de limitada área agricultável em face do contingente populacional, o que os leva a equacionar a disponibilidade interna de alimentos através do recurso regular às importações. O Japão destaca-se entre eles por sua óbvia importância econômica e condição peculiar de ser o maior importador mundial de alimentos. Apesar de contar com uma agri43

cultura que representa apenas 2% do Produto Interno Bruto e absorve 4% da população ativa, esse setor tornou-se um dos mais protegidos da economia japonesa, notadamente o cultivo de arroz. A proteção à agricultura japonesa no período posterior a II Guerra Mundial cresceu mais que nos demais países avançados, com os representantes do bloco rural utilizando a segurança alimentar como razão para a adoção de medidas protecionistas. Contudo, como em outros casos, a crescente afluência da população não rural é que permitiu arcar com os custos do protecionismo agrícola de modo a evitar uma modernização da agricultura “socialmente intolerável” sem uma elevada proteção. A orientação predominante no Japão, neste campo, englobava segurança e estabilidade na oferta de alimentos, garantia de uma dieta básica, proteção dos recursos nacionais e preservação de comunidades rurais. A política de sustentação da produção de arroz constitui-se, sem dúvida, no principal símbolo do que se poderia considerar como uma política de segurança alimentar no Japão. Assegurando aos agricultores preços superiores aos de mercado, o país manteve taxas de autossuficiência da produção doméstica de 100% no período 1990/2003; no extremo oposto encontram-se o trigo (14%) e o conjunto dos cereais (30%). Os vários instrumentos de política sofreram modificações gradativas desde o início dos anos 1970 visando reduzir sua incidência no marco das negociações comerciais internacionais. Assim mesmo, vale destacar a destinação de vultuosos recursos públicos à produção agrícola por razões de natureza sociopolítica, num país que tem podido resolver a questão da disponibilidade de alimentos com base em sua excepcional capacidade de gerar divisas (poder de compra externo) por meio de exportações e do ingresso de ganhos de capital obtidos no exterior. 44

Produção, consumo e segurança dos alimentos Os países capitalistas avançados viriam a ser, ainda, os principais responsáveis pela introdução na agenda mundial das preocupações relacionadas com a segurança dos alimentos (food safety) com vistas a assegurar a inocuidade do seu consumo para a saúde humana. A concepção que associa qualidade dos alimentos com o processamento industrial dos bens primários literalmente “fez escola” na quase totalidade dos países e instituiu um padrão internacional de produção e comércio de alimentos. O processamento tanto ampliou o leque de possibilidades de produtos em todas as cadeias agroalimentares, quanto permitiu o transporte dos alimentos no tempo e no espaço em face de um sistema alimentar cada vez mais integrado e internacionalizado. A evolução dos sistemas alimentares das economias avançadas se deu na direção de conformar um sistema alimentar mundial, principal componente do contexto internacional no qual se desenvolveu a questão alimentar desde meados do século XX. Veremos na terceira parte que a abordagem sistêmica permite evidenciar os fluxos de interdependência e os mecanismos de coordenação que englobam a produção, distribuição e consumo de alimentos, que ultrapassam as fronteiras dos países. A difusão de um padrão de produção agropecuária e o estreitamento dos elos sistêmicos entre as etapas da cadeia de produção e distribuição dos alimentos, mostram que mesmo as decisões dos agricultores sobre o que e como produzir passaram a se orientar pelas tendências do consumo alimentar urbano e pelas determinações dos agentes comerciais e industriais. Como o campo de origem dos enfoques sistêmicos diz respeito às relações com a natureza, eles obrigam considerar também

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questões de disponibilidade e manejo dos recursos naturais e seus impactos na sustentabilidade dos sistemas alimentares e na própria condição de vida no planeta. A antiga lógica “fordista” de produção em grande escala de alimentos padronizados e processados industrialmente vem sendo flexibilizada desde a década de 1970, com a saturação dos mercados massivos e a emergência de um padrão de demanda mais personalizado ou diferenciado. No modelo de industrialização “pós-fordista” flexível, a indústria agrega serviços aos bens (pré-preparo) mais do que processos industriais (transformação dos bens), enquanto que os distribuidores estimulam o desenvolvimento de novos produtos. A eficiência na logística de distribuição dos produtos (“economias de alcance”) tornou-se tão ou mais importante que a obtenção de custos unitários menores pela produção de grandes quantidades (“economias de escala”). Cresce a preferência por produtos “naturais” em mercados segmentados e voláteis. Em suma, nota-se maior valorização (a) da incorporação de serviços ao produto final consumido dentro e fora do lar, (b) das vitaminas (frutas e hortícolas) ao invés de calorias e proteínas, e (c) dos produtos frescos ao invés dos industrializados (WILKINSON, 1996). O Brasil constituiu espaço privilegiado da internacionalização, reestruturando sua produção e incorporando os novos padrões de consumo, além de se colocar entre os líderes do comércio agroalimentar mundial. Contudo, isto se deu num país onde o acesso aos alimentos seguia custoso para uma grande maioria da população, com alto percentual de desnutridos e famintos. Assim, sempre conviveram no Brasil as tendências de diversificação do consumo das camadas de média e alta renda (proteínas, frutas e hortaliças) e a perspectiva “fordista” de incorporar ao mercado 46

um contingente expressivo da população sem acesso regular aos alimentos básicos, massificando o consumo de calorias e proteínas. Assim, o sistema alimentar mundial se reestruturou na direção de focalizar mais o alimento que a agricultura, de modo que o centro da atuação das corporações agroalimentares deslocou-se da agricultura para estratégias conectadas à diversificação do consumo alimentar. Nessa mesma direção, o enfoque das políticas alimentares redirecionou-se da produção agrícola para questões “urbanas” de acesso, distribuição e consumo, entre elas, as relacionadas com a sanidade dos alimentos. Estão em questão a concepção sobre sanidade dos alimentos, as estratégias das empresas e as instâncias públicas de regulamentação e fiscalização abordadas nesse livro. Note-se que o lado mais destacado, porque crítico, são as ocorrências de crises periódicas – como as da “vaca louca” e a recente “gripe aviária” – que ampliaram as preocupações e as suspeitas quanto ao efeito dos alimentos para a saúde humana, num contexto de grandes avanços tecnológicos em sua transformação e conservação. Tais avanços permitiram, entre outros, o crescente distanciamento físico e de conteúdo entre os produtos oferecidos para consumo e os bens agrícolas ou extrativistas que estão na sua origem ou entram em sua composição. Favoreceram a difusão de hábitos alimentares com a associação entre qualidade do produto final e transformação industrial do bem primário, conectada com a propagação de valores simbólicos do consumo. Acrescente-se que a conservação e transporte dos produtos obrigam os indivíduos a ingerirem aditivos e acarretam a sobreutilização dos recursos naturais para embalagens que, quase sempre, retornam à natureza como descarte. Não se trata, porém, de uma tendência única e unívoca. 47

Por certo, há resistências de várias ordens no interior dos países à homogeneização ou padronização de formas de cultivo e de hábitos alimentares. Sempre há diversidade por fatores culturais e naturais que se manifestam no universo bastante diferenciado de pequenos e médios produtores rurais e urbanos de alimentos e, por certo, entre os consumidores. No plano econômico, os próprios agentes industriais e comerciais não ignoram as possibilidades de ganho oferecidas pela diversidade cultural e ambiental. O desenvolvimento tecnológico tem favorecido também a incorporação da diversificação de produtos nas estratégias das grandes corporações nacionais e internacionais. Em suma, a crescente padronização de hábitos alimentares não excluiu a possibilidade de incorporação de peculiaridades locais por parte das grandes empresas e da difusão, inclusive em escala global, de produtos próprios de determinadas culturas ou cuja produção depende da dotação de recursos específicos de um território pelas redes de distribuição comercial. Nesse contexto, uma “política alimentar democrática” (FRIEDMAN, 1993) significaria reconectar a produção e consumo locais, valorizando a proximidade e a sazonalidade na produção e consumo dos alimentos e se contrapondo ao modelo assentado em grandes corporações que valoriza a distância e durabilidade dos produtos e subordina à acumulação de capital as particularidades de tempo e lugar. Para tanto, são requeridas educação política dos consumidores, organização cooperativa de produtores e empreendimentos locais que vinculem a ambos. Vínculos econômicos locais podem ser favorecidos, também, por políticas de uso e tributação da terra (FRIEDMAN & McMICHAEL, 1989). 48

As resistências ao “processamento que distancia” deram origem à valorização das “técnicas que aproximam”, isto é, aquelas que são mais capazes de preservar as características originais dos bens e de favorecer a identificação das pessoas com os bens que consomem. Essa valorização se dá no interior de iniciativas cujas perspectivas se interpenetram, a saber, o estímulo ao consumo de produtos frescos e a aproximação entre a produção e o consumo em circuitos locais e regionais abordados mais adiante. Nos termos de Hervieu (2003) as transformações ocorridas no sistema alimentar trouxeram consigo uma crise de confiança – “a oportunidade da escolha propiciada pela abundância cria também angústia” – e resultaram numa cadeia que tornou a natureza abstrata para os olhos distanciados do consumidor, levando o autor a concluir pela necessidade de estabelecer uma nova relação entre produtores e consumidores. Outro tipo de resposta ao distanciamento entre produção e consumo é a difusão de procedimentos de rastreabilidade (traceability) dos produtos visando fornecer ao consumidor diversas informações sobre a proveniência dos produtos, entre as quais podem estar o respeito às legislações sociais e ambientais em todas as etapas da cadeia produtiva e o controle no uso de agrotóxicos e demais insumos químicos. Embora impulsionada pela lógica comercial dos grandes agentes econômicos, especialmente as grandes redes de supermercado, esses procedimentos se mesclam com iniciativas voltadas para a diferenciação dos produtos por sua qualidade ou origem, muitas das quais oferecem oportunidades favoráveis aos pequenos e médios produtores. As preocupações com a segurança dos alimentos se materializam num conjunto de normas e organismos fiscalizadores nos planos nacional e internacional. Essas normas e o 49

modo de atuação dos organismos fiscalizadores envolvem não apenas questões de concepção sobre segurança ou inocuidade do consumo dos alimentos, como também a equanimidade do tratamento conferido aos agentes econômicos e a mediação dos conflitos de interesse. As normas que regulamentam a produção e o comércio de alimentos refletem concepções de qualidade ou impõem padrões técnicos não consensuais ou generalizáveis, sendo também de difícil acesso por parte dos produtores de pequeno e médio porte. Além disso, elas constituem arenas de conflitos de interesses de vários tipos opondo consumidores e empresas, empresas concorrentes, entes públicos e agentes privados e, também, países em litígio comercial. As normas internacionais são negociadas na Comissão do Codex Alimentarius (Código Alimentar) e deliberadas nas assembleias periódicas reunindo os países membros dessa organização; a elas devem se adequar as normas estabelecidas pelas comissões nacionais do Codex. Entre os temas tratados encontra-se, justamente, a equivalência entre os sistemas nacionais de inspeção e certificação de produtos, o estabelecimento de regras a serem adotadas como padrão internacional, o direito dos países restringirem importações com base no princípio da precaução e a controversa questão da rotulagem dos produtos “transgênicos”.

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A questão alimentar no plano internacional

A criação de organismos internacionais dedicados direta ou indiretamente à questão alimentar data do final da II Guerra Mundial, período em que se acentuou bastante a preocupação com o combate à fome no mundo contemporâneo, com destaque para a FAO, instituída em 1945, e a Organização Mundial da Saúde/OMS, em 1948. As bases dessa criação foram lançadas na Conferência das Nações Unidas sobre Alimentos e Agricultura realizada em Hot Springs (Virginia, EUA), em 1943, por convite do Presidente Roosevelt aos países aliados para traçarem planos relacionados a alimentos e agricultura no bojo da reconstrução posterior ao final do conflito, tanto para ações imediatas quanto de médio prazo. Muitos pontos nela abordados estão ainda presentes nos debates atuais, inclusive no tocante à regulação da produção e ao papel dos acordos comerciais internacionais. A declaração produzida naquela conferência já afirmava, explicitamente, que a causa primeira da fome e da desnutrição era a pobreza, conclamando pela promoção de poder de compra suficiente para uma dieta adequada para todos, embora insistindo também na insuficiência da produção de alimentos. Nesse aspecto, a meta principal seria as pessoas libertarem-se da carência alimentar (freedom from want of food), significando uma “disponibilidade segura, apropriada e adequada de alimentos para todo ser huma51

no”. Forte ênfase era colocada na interdependência entre consumidor e produtor, pois se todos os seres humanos são consumidores, mais de dois terços deles eram também produtores. Essa compreensão levou à proposição de criar uma organização permanente no campo dos alimentos e da agricultura que foi a FAO. Na década de 1950 prevalecia na FAO, OMS e no Fundo das Nações Unidas para a Infância/Unicef a perspectiva de amenizar a má nutrição por intermédio de iniciativas tais como enriquecer alimentos básicos (iodização do sal) e reduzir algumas deficiências (ferro e vitamina A). Nos anos 1960, enfatizam-se programas de nutrição infantil, de educação nutricional e de suplementação alimentar. Outras foram as características da Conferência de Bretton Woods (New Hampshire), em 1945, de onde saíram duas instituições-chave da nova ordem mundial – Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial – e as posteriores negociações de acordos comerciais internacionais. No caso do Banco Mundial, cuja atribuição inicial concentrava-se na reconstrução pós-guerra e promoção do crescimento econômico, os temas da pobreza e da fome serão, posterior e progressivamente, incorporados ainda que com muitas idas e vindas. A partir dos anos 1970, revisando a suposição de que os objetivos do crescimento e da redução da pobreza envolveriam opções conflitantes, o Banco se tornou o principal difusor da adoção do critério do atendimento das necessidades básicas da população na avaliação das estratégias econômicas, enfoque pelo qual tratava a fome e a desnutrição. Segurança alimentar global e falsas oposições Para melhor compreender a atuação dos organismos internacionais é preciso, antes, abordar a emergência da con52

cepção de “segurança alimentar global” que fez parte da internacionalização da questão alimentar. Ela evidencia, de um lado, a interação e mútua determinação entre os múltiplos fatores que condicionam, em âmbito internacional, a questão alimentar, como são as tendências da produção e consumo alimentar, as estratégias dos agentes privados e a atuação dos governos e outros organismos públicos. De outro lado, porém, a questão da segurança alimentar global foi trazida à tona como expressão da produção e do comércio de alimentos em escala mundial, com o intuito de valorizar o papel dos mercados e do comércio internacional de alimentos. Segundo McMichael (2004), a epistemologia do mercado atingiu sua forma mais elevada na formulação neoliberal da segurança alimentar como sendo um arranjo global. Induzida pelos EUA e absorvida pelos organismos internacionais, assiste-se à separação entre autossuficiência e segurança alimentar que passa a ser entendida como a capacidade de adquirir os alimentos quando se necessitar deles. Nesses termos, a segurança alimentar global e a de cada país seriam melhor obtidas através da existência e do bom funcionamento de um mercado mundial de alimentos. Essa concepção fornece o marco geral dos acordos comerciais internacionais e está presente nas formulações da própria FAO, como será visto adiante. Ela contrapõe a autossuficiência nacional na produção de alimentos (food self-sufficiency) com o que denomina de autocapacidade na obtenção dos alimentos por meio do comércio internacional (food self-reliance). No entanto, a primazia conferida ao comércio internacional, com abertura comercial e desregulamentação dos mercados, baseia-se numa opção falsa: buscar a autossuficiência absoluta na produção interna dos alimentos neces53

sários versus ser eficiente nas trocas com o exterior por meio da especialização naqueles produtos (alimentares ou não) em que se é mais competitivo de modo a poder importar todo o restante. Ela é falsa porque tal contraposição não encontra correspondência no modo como os países enfrentam historicamente a questão alimentar, além de obscurecer dois fatos cruciais. Primeiro, a produção doméstica de alimentos tem condição estratégica para todos os países do mundo. Segundo, o comércio internacional não é fonte confiável de SAN. A produção interna de alimentos sempre foi econômica e politicamente relevante, inclusive, nos países que têm elevada dependência do comércio exterior. Assim como as importações de alimentos sempre contribuíram para o abastecimento de todos os países, em maior ou menor grau, como recurso permanente ou eventual. O ponto relevante a discutir é o papel atribuído à produção própria de alimentos ou, alternativamente, o papel conferido ao mercado internacional no enfrentamento da questão alimentar, sendo possível encontrar várias combinações. Era comum associar segurança alimentar com busca de autossuficiência produtiva dos alimentos essenciais. Este objetivo era mais possível para os países cuja dimensão populacional e territorial e disponibilidade de recursos permitiram, mais ainda, exigiram abarcar a produção doméstica de um número expressivo desses produtos (por exemplo: Brasil, China, EUA, Índia e Rússia). Em outros casos, limitações naqueles mesmos fatores levaram a focalizar o objetivo da autossuficiência em um número limitado de produtos (como o arroz no Japão e outros países asiáticos). Blocos supranacionais colocaram a autossu54

ficiência alimentar entre suas principais metas (União Europeia). Acrescente-se que um elevado grau de autossuficiência produtiva não implica orientação exclusiva para o mercado doméstico – como a contraposição mercado interno versus exportações, enganosamente, faz supor –, pois a autossuficiência pode combinar-se à exportação de produtos agroalimentares (como os EUA, a União Europeia e o próprio Brasil). Pode haver, também, coincidência entre os principais produtos de exportação e os produtos básicos de consumo interno (como o trigo e as carnes na Argentina, Canadá e Austrália). O comércio mundial de alimentos sempre foi importante nas relações econômicas entre os países, porém, o fato a considerar é que a conformação de um sistema alimentar mundial fez com que essas relações assumissem uma natureza distinta, mais além do mero comércio de bens. Os sistemas alimentares não se esgotam no interior das fronteiras nacionais ou, em sentido inverso, a própria reprodução dos sistemas nacionais passa pelo espaço internacional. Tal articulação mundial foi liderada pela expansão das grandes corporações multinacionais e redes comerciais que hoje dominam as etapas de processamento, distribuição e comercialização dos alimentos, tendo sido apoiada pela atuação dos Estados nacionais e, de certo modo, referendada pelos organismos e acordos internacionais. O papel das corporações se revela no fato de o próprio comércio internacional ter sido dominado pelo comércio intrafirmas – trocas entre unidades integrantes de uma mesma corporação localizadas em distintos países –, parcela que pode chegar a dois terços do fluxo internacional de

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algumas mercadorias. As exportações agrícolas e de produtos alimentares se concentram em pequeno número de agentes. O alcance das políticas nacionais foi muito limitado pelo arcabouço institucional da internacionalização do sistema alimentar fornecido pela onda neoliberal dos anos 1980 e 1990 e a constituição de blocos regionais. Estas são comprovações empíricas da falácia das teorias de livre-comércio ou da própria possibilidade de um “mercado aberto”, além de tornarem evidentes os riscos para a soberania alimentar dos povos com a adoção irrestrita da diretriz da liberalização comercial. As relações comerciais internacionais constituem via de mão dupla, daí que, para assegurarem mercados externos para as exportações, os países periféricos são obrigados a abrirem seus próprios mercados e a ficarem sob o impacto de bens importados que, num bom número de casos, recebem elevados subsídios nos seus países de origem. Esse impacto vai além do percentual do mercado doméstico ocupado pelos bens importados, com a subordinação da determinação dos preços internos às tendências dos preços internacionais afetando, principalmente, a pequena agricultura. Economias mais abertas e ausência de regulação pública dos mercados implicam submeter os sistemas produtivos nacionais a pressões competitivas que as visões convencionais supõem ser elemento indutor de eficiência – o enfoque baseado na autocapacidade traz implícita essa suposição. Este padrão de obtenção de eficiência, comumente chamado de modernização, termina por ser altamente excludente. Infelizmente, as formulações que enaltecem o papel do comércio internacional, predominantes entre nós, têm se sobreposto à desejada prevalência das políticas de desenvolvimento sobre as políticas comerciais. 56

Acordos internacionais e SAN Os fluxos internacionais de produtos alimentares estão sob a determinação de instrumentos de regulação (acordos e normas comerciais) cujo caráter verdadeiramente público não está assegurado. De fato, assiste-se a tentativas sempre frustradas de liberalização comercial e de estabelecimento de regras justas de comércio, enquanto que a maior parte dos países de baixa renda foi levada à condição de importadores líquidos de alimentos. Um bom número desses países possui, ademais, frágeis estruturas produtivas, como parece ser o caso da maioria dos países africanos. Não por acaso a problemática agroalimentar constitui uma das questões mais complexas para o estabelecimento de acordos multilaterais de comércio, desde o antigo Gatt (Acordo Geral de Comércio e Tarifas) até a atual Organização Mundial do Comércio (OMC) que o sucedeu. A perspectiva do chamado livre-comércio que orientou o acordo sobre agricultura da Rodada Uruguai do Gatt, firmado em 1994, previa apenas duas exceções: restrições devidas à preservação dos recursos naturais e constituição de estoques públicos pelos programas de segurança alimentar para enfrentar situações de desabastecimento e emergências, porém, respeitados os mecanismos de mercado. O marco conceitual não se alterou substantivamente quando as negociações agrícolas passaram a se dar no âmbito da OMC. Pelo contrário, a perspectiva liberalizante manteve-se e mesmo se acentuou, apesar dos diversos indicadores que revelam o irrealismo do suposto livre-comércio nas trocas internacionais. A atual Rodada Doha de negociações da OMC (intitulada Rodada do Desenvolvimento) contém referências à se-

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gurança alimentar em termos conceituais e de políticas públicas, cuja regulamentação dá margem para importantes conflitos. Tais referências se localizam na concessão de “tratamento especial e diferenciado” aos países considerados em desenvolvimento. O parágrafo 13 da declaração que iniciou esta rodada estabelece que “[...] as necessidades dos países em desenvolvimento, em especial a segurança alimentar e o desenvolvimento rural, serão parte integrante de todos os elementos da negociação”. O parágrafo 41, anexo A, fala em “[...] designar produtos especiais, tomando-se como base os critérios relativos às necessidades de segurança alimentar, defesa dos meios de subsistência e desenvolvimento rural”. Não se trata de negar as trocas internacionais, mas de reconhecer o papel estratégico cumprido pela produção doméstica de alimentos e atribuir um lugar definido, porém realista, às trocas internacionais no abastecimento alimentar, simultâneo à busca de novas formas de regulação do comércio. No caso de grandes países como o Brasil, por sua dimensão populacional e territorial, o comércio internacional deve ter um papel subordinado e restrito no abastecimento alimentar relativamente à produção doméstica: subordinado às políticas de desenvolvimento sustentável, com crescente equidade social, e restrito a circunstâncias excepcionais e a produtos particulares. Esta equação deve se ajustar às realidades diferenciadas dos países segundo sua dimensão e capacidade produtiva. De todo modo, descarta-se a falsa oposição que, nos termos em que é formulada, acaba por induzir à opção de ampliar a subordinação das dinâmicas internas aos fluxos internacionais, com fronteiras abertas e mercados sem regulação pública. 58

Essa opção baseia-se em suposição equivocada quanto à natureza dos “mecanismos de mercado” e coloca o abastecimento alimentar sob o domínio de formas de regulação privada com pouco ou nenhum sentido público. Ela também desconhece a importância específica da produção interna de alimentos e como ela é combinada, nos distintos países, com o comércio internacional dos produtos agroalimentares. Por fim, supõe que o comércio internacional, como tal, é fonte confiável de segurança alimentar, o que está longe de ser verdade, sobretudo para os países do Terceiro Mundo, já que ele não assegura a geração das rendas de exportação necessárias para importar alimentos, nem garante a oferta interna regular de alimentos a preços reduzidos. Para concluir, a valorização do comércio internacional como fonte geradora de emprego e renda, como instrumento para obter alimentos de boa qualidade e a baixo custo, não está dissociada da defesa do modelo produtivo dominante, agora acrescido dos “transgênicos”. Organismos internacionais, profissionais especializados e representantes de grandes empresas argumentam que esse modelo tem a capacidade de abastecer um mundo que necessita de uma oferta crescente de alimentos em escala global. Os críticos deste modelo, por sua vez, apontam o caráter excludente dos sistemas de produção e comercialização predominantes que, apesar da abundância dos alimentos produzidos, não impedem que o número de pessoas que sofrem de fome e desnutrição no mundo tenha se mantido e, em alguns casos, tenha até aumentado. Há muito se sabe que as causas desses males não são de insuficiência de oferta. Além disso, esse modelo gera impactos negativos em termos sociais (exclusão de pequenos produtores e baixa geração de empregos), ambientais (poluição, esgotamento dos recur-

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sos naturais e comprometimento da agrobiodiversidade), de saúde (padrão alimentar pouco equilibrado) e culturais (comprometimento da diversidade cultural). O desafio que está posto para os países de baixa ou média renda é construir estratégias alternativas orientadas pelo enfoque da SAN e serem capazes de implementá-las. Ainda que se admita o contexto de sociedades e economias mais abertas ao exterior, é inevitável incorporar questões de soberania à noção de SAN. A efetivação do direito humano à alimentação implica no exercício soberano de políticas de abastecimento. Admitir o suposto de uma economia aberta não significa abandonar toda e qualquer referência à autossuficiência produtiva e aderir, incondicionalmente, ao enfoque da autocapacidade. A FAO e as Cúpulas Mundiais de Alimentação A FAO tornou-se, por suas atribuições, uma das principais referências internacionais no que concerne às questões da fome e da segurança alimentar. A Conferência Mundial de Alimentação, por ela organizada em 1974, realizouse num contexto de crise aguda provocada por restrições na oferta global de alimentos no início da década de 1970, com a consequente alta nos preços desses bens. Os prognósticos alarmistas da época levaram ao lançamento de um conceito de “segurança alimentar mundial” e do Comitê de Segurança Alimentar Mundial (1976), consolidando o enfoque centrado na necessidade de fazer crescer a produção mundial de alimentos para enfrentar a carestia e a fome, acompanhada da montagem de um sistema internacional de ajuda alimentar e de coordenação das reservas de grãos.

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Nos anos 1980, a coexistência da fome em grandes proporções com uma produção mundial de alimentos mais que suficiente para eliminá-la fez com que a FAO e outras organizações passassem a incorporar a questão das condições de acesso adequado aos alimentos pela população enquanto fator determinante da segurança alimentar. A 8ª Sessão do Comitê de Segurança Alimentar Mundial, em 1982, produziu a seguinte definição: “O objetivo final da segurança alimentar mundial é assegurar que todas as pessoas tenham, em todo momento, acesso físico e econômico aos alimentos básicos que necessitam [...] a segurança alimentar deve ter três propósitos específicos: assegurar a produção alimentar adequada, conseguir a máxima estabilidade no fluxo de tais alimentos e garantir o acesso aos alimentos disponíveis por parte dos que os necessitam”. Essa mudança de ênfase teve ampla repercussão. Em documento de 1986, o Banco Mundial definirá segurança alimentar como o acesso por todas as pessoas e em todo o tempo a alimentos suficientes para uma vida ativa e saudável. Sem dúvida, essas mudanças favoreceram a associação da segurança alimentar ao direito elementar de todo ser humano estar alimentado e protegido contra a fome. Não obstante, a adoção de políticas ativas nessa direção enfrentou e ainda enfrenta permanente resistência dos que sustentam ser possível obter-se a segurança alimentar, preferencialmente, pela atuação dos chamados mecanismos de mercado, entre os quais se encontram os próprios organismos internacionais. A importância que passou a conferir às condições de acesso aos alimentos não impediu, porém, que o foco principal da FAO permanecesse concentrado nos problemas relativos à estrutura produtiva dos sistemas alimentares e à disponibilidade agregada de alimentos. A ênfase na produ61

ção dos alimentos – com uma abordagem de tipo “produtivista” – reflete o perfil de uma organização essencialmente voltada para a agricultura, embora possua áreas dedicadas aos aspectos do consumo e da nutrição. Nesse sentido, nos anos 1980, a FAO difundiu uma formulação com ampla repercussão, particularmente na América Latina, segundo a qual a segurança alimentar implica cinco atributos da produção de alimentos: “suficiente” para atender as necessidades da população; “estável” no sentido de compensar as oscilações da oferta de produtos; “autônoma” em relação ao exterior ou aos países extrabloco; “equitativa” por contemplar os diversos tipos de agricultores e setores sociais; “sustentável” no uso dos recursos naturais. Dessa formulação derivou um conjunto de orientações priorizando a pequena e média agricultura de base familiar, o comércio local e a integração dinâmica com a agroindústria alimentar. A dimensão nutricional da questão alimentar passou a receber maior atenção no plano internacional com a realização da Conferência Internacional sobre Nutrição, em 1992, uma promoção conjunta da FAO e OMS. A Declaração Mundial sobre Nutrição nela aprovada asseverou que é essencial o acesso garantido a alimentos nutricionalmente adequados e seguros para o bem-estar individual e para o desenvolvimento nacional, social e econômico. A década de 1990 foi marcada pela realização de várias cúpulas mundiais organizadas pelo Sistema das Nações Unidas. A Cúpula Mundial de Alimentação ocorreu em Roma, em 1996, reunindo representantes de um grande número de países. Não há dúvidas sobre a importância da realização desse encontro para conferir visibilidade aos graves problemas alimentares que afligem parcelas da população mundial e para extrair compromissos sobre como enfrentá-los. 62

A cúpula aprovou a Declaração de Roma sobre a Segurança Alimentar Mundial e um Plano de Ação. Nela se destaca a adoção, em suas deliberações, do princípio do direito humano à alimentação, ainda que não de forma consensual entre os países participantes. O objetivo da segurança alimentar passa a figurar como sendo a busca de uma situação na qual “[...] todas as pessoas têm, em todo momento, acesso físico e econômico a alimentos suficientes, inócuos e nutritivos para satisfazer suas necessidades alimentares e suas preferências quanto aos alimentos que lhes permitam levar uma vida ativa e sã”. Contudo, é preciso observar que a representação oficial de países importantes se fez em nível inferior ao de outras cúpulas, o que indica a pouca atenção atribuída à problemática alimentar à época (por certo confiantes na capacidade da iniciativa privada e dos mecanismos de mercado de equacionarem-na), e limita a eficácia dos compromissos assumidos pelos dirigentes presentes ao evento. Em consonância com os demais setores de atuação do Sistema das Nações Unidas, o Plano de Ação aprovado na Cúpula Mundial de Alimentação incorporou a perspectiva de estabelecer Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (as Metas do Milênio), no caso, definindo um modesto objetivo de reduzir à metade, até 2015, o quantitativo mundial de pessoas que passam fome. Pouco mais de cinco anos após a Cúpula, um novo encontro denominado “Cúpula mais 5” (2002) trabalhou a proposição de uma estratégia de “mão dupla” que atuaria, simultaneamente, no incentivo à produção agrícola e aumento do emprego e também na questão do acesso aos alimentos por meio de programas sociais e redes de segurança. 63

Em 2003, a FAO lançou a proposição de construir uma Aliança Internacional contra a fome, baseada em alianças nacionais com formatos diferenciados, visando mobilizar vontade política e energia social para o cumprimento das Metas de Desenvolvimento do Milênio. Nota-se que ainda prevalece uma ótica de campanha – difundir informações e mobilizar apoios na sociedade – em face das dificuldades de efetivar a formulação de políticas públicas em espaços de participação social, como exemplificado pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) no Brasil. A avaliação do cumprimento das metas adotadas é bastante pessimista e revela o baixo comprometimento dos países signatários da Declaração de Roma e do Plano de Ação de 1996. Em recente reunião do Comitê de Segurança Alimentar Mundial, a FAO divulgou uma estimativa do número de pessoas famintas nos países em desenvolvimento, em 2001-2003, na casa dos 820 milhões de pessoas, apenas três milhões a menos com relação ao período de referência (1990-1992) estabelecido pela cúpula. Mais grave, em três das quatro “regiões em desenvolvimento” (África Subsaariana, Ásia-Pacífico, Oriente Médio-Norte da África) houve acréscimo no número de desnutridos, sendo que apenas na América Latina e Caribe verificou-se leve redução. O indicador de que a modesta meta seria alcançável é dado pelos resultados em 30 países (Brasil, China e Índia incluídos) que reduziram em 25% a prevalência da desnutrição no mesmo período (FAO, 2006). Ajuda alimentar Quanto aos programas internacionais de ajuda alimentar, trata-se de um tradicional instrumento dirigido aos paí64

ses com déficits na disponibilidade interna de alimentos, entre outras razões, por deficiências na sua capacidade de produção. Os programas de ajuda alimentar, sob a forma de doações ou vendas a preços reduzidos, frequentemente constituíram mecanismo de escoamento de excedentes de países do chamado Primeiro Mundo, como já dito. Tais programas tendem a gerar impactos negativos sobre a estrutura produtiva dos países recebedores das doações, especialmente, sobre os pequenos produtores de alimentos, assim como afetam o perfil de consumo desses países. Esse breve diagnóstico é suficiente para evidenciar a importância de serem revistos os objetivos e os métodos de implementação local dos programas de ajuda alimentar, especialmente num momento em que a mobilização de apoios e recursos para erradicar a fome e a pobreza volta a ganhar destaque no cenário internacional. É preciso que esses programas também respeitem o princípio da soberania alimentar que atribui aos povos o direito de decidir, soberanamente, sobre o quê e como produzir e consumir os alimentos que integram os hábitos de seu povo. A circunstância de depender de ajuda alimentar externa não deve se sobrepor, muito menos desestimular como costuma ocorrer, a construção de caminhos próprios em busca da autonomia. Reconheça-se que as dinâmicas econômicas e políticas internas aos países receptores podem ser tão ou mais responsáveis que os programas de ajuda pela perpetuação de mecanismos que trazem consigo controle social e desvio de recursos. É possível, além disso, atuar no sentido de criar condições para que os produtos a serem doados sejam adquiridos de pequenos e médios produtores dos países do Sul. O Brasil tem realizado gestões nesse sentido junto ao Progra65

ma Mundial de Alimentação. A intensificação da cooperação Sul-Sul no campo da SAN deveria englobar não apenas os aspectos econômicos e sociais como, principalmente, a cooperação técnica e o intercâmbio de experiências, inclusive, na formulação de políticas de SAN nas diversas esferas de governo, com participação social. Participação social internacional Para concluir, uma breve menção ao envolvimento das organizações da sociedade civil no campo agroalimentar no plano internacional. Seria pretensiosa a intenção de sintetizar os papéis desempenhados por essas organizações, inclusive porque sua atuação é bastante diversificada e de difícil apreensão. Ela engloba entidades de agricultores com vários recortes, organizações não governamentais de apoio e desenvolvimento de projetos, redes internacionais como a Via Campesina (quadro), entidades assistenciais com matriz religiosa, representações de consumidores, entidades ambientalistas e um amplo leque de iniciativas com as mais variadas conotações como o Slow Food (quadro). Via Campesina é um movimento internacional criado em 1993, congregando organizações regionais e nacionais de camponeses, pequenos e médios produtores, trabalhadores rurais, mulheres rurais e comunidades indígenas da Ásia, Europa e América. Sua atuação está voltada para: promover a solidariedade e unidade na diversidade entre essas organizações; preservação da terra; soberania alimentar; produção agrícola sustentável; igualdade baseada em pequenos e médios produtores.

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Slow Food é um movimento global voltado para preservar e difundir as heranças agrícolas e alimentares associadas com os prazeres da gastronomia e da convivência, idealizado por uma associação da cidade de Bra (Itália) cuja primeira grande aparição pública ocorreu em protesto pela instalação de um McDonald’s em Roma (1986). Lançou seu manifesto em encontro internacional em Paris, em 1989, contando com milhares de núcleos e afiliados pelo mundo, inclusive no Brasil (PETRINI, 2001).

Quatro processos são especialmente relevantes para os objetivos do presente livro. Primeiro, várias organizações não governamentais sediadas nos países avançados têm atuação internacional e presença particularmente importante nas regiões mais pobres do mundo. Para além dos projetos no campo agroalimentar que desenvolvem, tais organizações estão na base da produção de conhecimento e da representação internacional dessas populações. Segundo, a intervenção das entidades da sociedade civil no plano internacional vem se ampliando como reação à proeminência assumida pelos acordos internacionais sobre o destino dos países e setores sociais. As questões agroalimentares, ao lado das ambientais, se destacam entre os fatores que têm levado às recorrentes mobilizações durante os encontros de cúpula da OMC contrárias aos modelos intensivos de produção que comprometem a pequena agricultura e a agrobiodiversidade. Terceiro, a mobilização internacional se deu também na forma da articulação de organizações da sociedade civil em paralelo aos encontros de cúpula promovidos pelo Sistema das Nações Unidas a partir da década de 1990. Durante a Assembleia Geral sobre Segurança Alimentar, evento comemorativo do cinquentenário de criação da FAO reali67

zado na cidade de Quebec (Canadá), em 1995, decidiu-se criar um fórum social que se reuniria, simultaneamente, aos encontros oficiais internacionais relacionados com segurança alimentar. Assim, realizou-se o Fórum em Segurança Alimentar durante a Cúpula Mundial da Alimentação (1996) e o Fórum pela Soberania Alimentar quando da Cúpula Mundial da Alimentação mais 5 (2002), ambos em Roma. Esses encontros internacionais contaram com significativa delegação brasileira representando o movimento social pela SAN no país. Chegou-se a criar, em 1997, o Fórum Mundial de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável cuja secretaria foi sediada no Brasil, mas teve existência breve. Quarto e último processo a destacar se refere ao fato de a noção de soberania alimentar estar se tornando importante referência aglutinadora no âmbito internacional para vários movimentos e redes sociais, como no caso da Via Campesina que a tem como lema principal. A propósito, este e outros movimentos vêm sugerindo substituir a segurança alimentar pela soberania alimentar (STÉDILE, 2004). Embora essa perspectiva acerte ao destacar um princípio essencial e criticar a limitada acepção conferida à segurança alimentar por governos, organismos internacionais e setores empresariais, a meu ver, ela erra ao igualar duas noções com estatutos distintos – o princípio da soberania e o objetivo da SAN – e ignora o desenvolvimento conceitual e enraizamento social da SAN em países como o Brasil.

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Equidade e alimentos na América Latina e Caribe

Para completar a trajetória internacional da noção de SAN, veremos alguns elementos que caracterizam a apreensão da segurança alimentar na América Latina e Caribe. A produção agroalimentar desempenha papel destacado na formação social e econômica dos países desta região, inclusive porque muitos deles são tradicionais exportadores de produtos agrícolas e agroindustriais. Apesar disso, ou por causa dessa característica, a gravidade da situação alimentar de parcela significativa de suas populações e a passagem de muitos países à condição de importadores líquidos de alimentos fizeram com que o tema da segurança alimentar ressurgisse, mais recentemente, nos debates e iniciativas públicas. Esse tema, contudo, possui antiga e importante inserção no continente latino-americano que, assim como o entendo, está associado com a questão da equidade social. Os casos dos países avançados aqui analisados demonstram que as políticas relacionadas com a produção e o acesso aos alimentos integraram as estratégias de desenvolvimento daqueles países por meio de, pelo menos, dois elos entre a questão alimentar e a equidade social. Primeiro, a disponibilidade de alimentos em quantidade suficiente e a preços acessíveis gera benefícios tanto diretos em termos do acesso à alimentação, quanto indiretos ao liberar poder de compra dos salários e demais rendas do trabalho, favo69

recendo assim o acesso aos demais bens e serviços necessários a uma vida em condições de bem-estar. Deste modo, os alimentos participaram na incorporação da maioria da população ao mercado de consumo em sociedades capitalistas nas quais consumir regularmente é a expressão econômica de maior equidade social. O segundo elo é menos evidente e se manifesta de modo diferenciado entre os países. Refiro-me às oportunidades de trabalho e renda oferecidas pelas próprias atividades de produção, distribuição e consumo de alimentos nas formas da agricultura de base familiar, agroindústrias de menor porte, pequeno varejo e serviços de alimentação. Essas atividades são integradas por um conjunto bastante numeroso de pequenos e médios empreendimentos urbanos e rurais que costumam formar a principal base das sociedades mais equitativas, ainda que sob constante pressão do grande negócio. Uma das diferenças entre as estratégias dos países, sejam eles avançados ou não, localiza-se justamente nas políticas de suporte e proteção a tais empreendimentos ou, em sentido inverso, nas facilidades concedidas para a expansão dos grandes agentes econômicos. Por contraste, vamos encontrar no Brasil e em outros países exemplos de estratégias promotoras de iniquidade no estímulo à expansão da grande produção agrícola monocultora e no apoio dado à concentração no varejo. Ainda que sabido, convém destacar que as trajetórias dos países capitalistas avançados foram, como todas, marcadas por tensões e escolhas em condições de incerteza que o olhar retrospectivo tende a subestimar. É comum idealizar tais trajetórias como se elas expressassem uma racionalidade superior em face dos dilemas que persistem nos demais países. Mais do que isso, como demonstra Chauí (2004: 27), a imagem do 70

“desenvolvimento completo” dos países capitalistas desenvolvidos – como se constituíssem uma totalidade completamente realizada – faz com que nossa identidade “subdesenvolvida” surja como lacunar e feita de faltas e privações. Ressalte-se, ademais, que várias das escolhas por eles feitas representaram elos negativos enquanto estratégias de desenvolvimento. Esse foi o caso dos impactos ambientais do modelo de agricultura intensiva – mecanizada e com elevado uso de agrotóxicos – que os países avançados difundiram pelo mundo e se converteu em paradigma – a chamada “Revolução Verde”. Igualmente sérios têm sido os impactos de saúde, ambientais e culturais do padrão de consumo alimentar por eles internacionalizado. As trajetórias da maioria dos países latino-americanos fazem deles casos exemplares para a análise da questão alimentar nos processos de desenvolvimento, num contexto de elevados índices de pobreza e modelos econômicos fortemente geradores de desigualdade: estudos mostraram que os países da América Latina historicamente não conseguem reunir dinamismo econômico com um grau razoável de equidade social. O fato da questão alimentar ser tema permanente e geral na região não significa, porém, uma mesma compreensão ou forma de abordá-la porque seus países são muito diversos. Quando recorrem à ótica da segurança alimentar, usualmente limitam-se à produção agroalimentar e ao aspecto nutricional das dietas alimentares. Muitas proposições e iniciativas de governos e organismos regionais incorporaram a segurança alimentar entre seus objetivos e planos de ação, tendo aumentado seu número nos últimos anos. A experiência pioneira de montagem do Sistema Alimentar Mexicano (SAM-1980/1982) foi breve e de resultados modestos, porém tornou-se referên71

cia obrigatória na América Latina e Caribe. Data desse período o desenvolvimento de abordagens bastante distintas das vigentes nos países centrais, a começar pela ênfase na autossuficiência produtiva nacional em função tanto de características das sociedades latino-americanas, quanto da assimetria do sistema econômico internacional que tornava desiguais as relações de troca entre os países (SCHEJTMAN, 1994). O deslocamento da ênfase na disponibilidade física para os fatores que dificultam o acesso aos alimentos, ocorrido na década de 1980, fez com que a dimensão da equidade fosse incorporada aos atributos da disponibilidade agregada de alimentos, junto com a suficiência, estabilidade, autonomia e sustentabilidade. O papel da FAO na difusão da ótica da disponibilidade de bens foi particularmente importante. É também peculiar da apropriação latino-americana conferir condição estratégica à agricultura “camponesa” em modelos de desenvolvimento “endógenos”. Colocando ênfase no mercado interno sem negar a importância de diversificar as exportações, a opção por esse tipo de agricultura substituiria os pacotes tecnológicos que levaram à “perda da autossuficiência e da segurança alimentar”. Em lugar desses pacotes, sugere-se uma vigorosa agroindustrialização e capitalização da agricultura, inclusive recorrendo às biotécnicas para valorizar produtos próprios mas pouco aproveitados, bem como o apoio à agricultura camponesa com vistas a “eliminar a heterogeneidade estrutural e assegurar um desenvolvimento rural unimodal”. Esse enfoque é informado, sobretudo, pelas características sociais do México, da América Central e América Andina, onde é forte a presença de populações indígenas, base da agricultura camponesa.

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Quase todos os países da América Latina foram marcados pelo chamado ajuste estrutural da década de 1980, com liberalização comercial e desregulamentação econômica, mesmo que com variações entre eles. As avaliações dos impactos da crise econômica dos anos 1980 na segurança alimentar desses países trouxe à tona graves problemas na capacidade de acesso aos alimentos por parcelas da população, mas também chamou a atenção a precariedade na disponibilidade desses bens. O quadro foi de decréscimo nos níveis de emprego e salário mínimo real, queda ou estagnação dos níveis de suficiência produtiva de alimentos e dificuldades de importação pela situação das contas externas, em alguns casos com consequências sobre a dieta alimentar da população (SCHEJTMAN, 1994). Ressurgiram, também, propostas para promover a autossuficiência alimentar através de produção própria ou do comércio intrarregional. A América Latina tem uma antiga e reiterada intenção de superar as limitações econômicas e de recursos naturais por meio da integração regional. O objetivo da segurança alimentar esteve presente em várias iniciativas de âmbito regional e sub-regional nas décadas de 1980 e 1990, ainda que com duas ênfases nem sempre articuladas: uma setorial na agricultura e agroindústria (segurança no abastecimento alimentar), e outra nos indivíduos e famílias (segurança nutricional). A Associação Latino-Americana de Integração (Aladi) e o Sistema Econômico LatinoAmericano (Sela) chegaram a desenvolver projetos de cooperação e assistência voltados para a “segurança alimentar regional”; há outros exemplos se olhássemos no plano sub-regional (América Central, Caribe e Região Andina). As iniciativas de integração no entanto tiveram êxitos escassos, pois se limitaram a promover alguma cooperação e a expansão

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do comércio entre os países envolvidos, e a apoiar planos alimentares nacionais. Já no Cone Sul, a criação do Mercosul adotou perspectiva distinta das anteriores, sem atribuir relevância à segurança alimentar. Isto se deve, em parte, porque esta região concentra alguns dos principais exportadores de produtos agroalimentares do continente (Brasil, Argentina e Chile), com políticas comerciais orientadas pela visão da liberalização comercial e do acesso aos mercados dos países avançados. A retórica adotada quando da constituição do bloco reunindo Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, era que a integração entre esses países e deles com os principais mercados do mundo deveria se realizar com base nos chamados “mecanismos de mercado”. Nenhuma razão, no entanto, justifica um comportamento que parecia desconhecer que parcelas expressivas de suas populações enfrentam, sobretudo por razões de renda, dificuldades de acesso aos alimentos, em especial no Brasil. Sem que ainda se possa constatar uma inflexão na orientação maior que presidiu a constituição do Mercosul, estão em marcha as primeiras iniciativas para introduzir a questão da SAN na agenda regional, seja por indução de setores dos governos, seja pela articulação entre organizações da sociedade civil dos países membros. Cabe uma referência à Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), organismo das Nações Unidas com antigo e reconhecido papel na região. Em seus documentos da década de 1990, a Cepal sugeria reencontrar os caminhos do desenvolvimento com base na transformação das estruturas produtivas dos países, acompanhada de crescente equidade social. Essa importante formulação não reconhecia a existência de uma questão alimentar enquanto tal nos processos de desenvolvimento dos países da região, 74

questão que não se dilui nos objetivos gerais de equidade social e enfrentamento da pobreza, embora contribua para ambos. No nosso tema, a Cepal limita-se à recomendação de compatibilizar o aumento das exportações com “algum grau” de autossuficiência alimentar, deixando subentendida a possibilidade de conflitos entre a orientação exportadora e o atendimento das necessidades básicas da população. A redistribuição espacial das atividades agrícolas e a introdução de progresso técnico na produção dos bens deslocados pelo avanço dos produtos agrícolas para exportação reduziriam a disputa por recursos escassos e aumentariam a produtividade e a competitividade do conjunto do sistema produtivo. Sugeriu, ainda, a articulação do sistema produtivo pelo estreitamento dos laços indústria-agricultura e o abandono da segmentação das políticas setoriais visando o fortalecimento recíproco de ambos os setores. A América Latina e o Caribe têm presenciado, na última década, a retomada, ao que parece, vigorosa da SAN enquanto enfoque e referência de mobilização social e políticas públicas, contando com vários estímulos. A FAO tem procurado difundir a necessidade de adoção de planos nacionais de segurança alimentar por intermédio de seu modelo Pesa – Programas Especiais de Segurança Alimentar. Entre os estímulos figura, também, a contribuição da recente experiência brasileira neste campo, notadamente na construção de ações e programas intersetoriais, na instituição de espaços de participação social e na formulação de leis assemelhadas à Lei Orgânica de SAN brasileira com a perspectiva de instituir sistemas de SAN, como veremos na próxima parte do livro.

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PARTE III Segurança Alimentar e Nutricional no Brasil

Nesta parte trataremos da SAN no Brasil, iniciando com a construção da noção e as peculiaridades da apropriação e desenvolvimento conceitual que resultaram no enfoque hoje adotado no país. Ultrapassa o escopo desse livro a retrospectiva dos diagnósticos e políticas relacionadas com os alimentos e a alimentação no Brasil desde a obra pioneira de Josué de Castro cujo registro, contudo, é obrigatório. O corte cronológico adequado aos propósitos do livro são os eventos que, a partir da redemocratização do país em meados da década de 1980, puseram em marcha os processos que geraram o acúmulo conceitual e a base social atual da SAN. As principais manifestações de insegurança alimentar no Brasil são apresentadas com vistas a abordar os elementos que compõem a agenda de SAN em construção no país e apontar para a necessidade de uma Política Nacional de SAN.

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A construção do conceito no Brasil Josué de Castro

Acompanhando a antiga tradição de tratamento da problemática alimentar na América Latina, destacam-se, no Brasil, as análises pioneiras, clássicas e, à sua época, corajosas de Josué de Castro, referência obrigatória no diagnóstico da ocorrência da fome no país e também para a recente construção do conceito de SAN. Em Geografia da fome (1946) Castro denunciou o silêncio em torno da fome, provocado pelos interesses e preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica da civilização ocidental que tornavam a fome de alimentos (juntamente com a “fome de sexo”) um tema proibido. Este autor entendia o problema da alimentação como um complexo de manifestações simultaneamente biológicas, econômicas e sociais. Sua análise voltava-se, principalmente, para o que chamou de fome coletiva parcial – devido à falta permanente de determinados elementos nutritivos nos hábitos regulares de alimentação – mais do que a fome total ou inanição que se manifesta nas áreas de miséria extrema. As conclusões gerais do seu estudo apresentavam os traços mais marcantes do retrato da fome no Brasil na épo79

ca. Indignava a Josué de Castro ser este um país em fase de desenvolvimento autônomo e acelerada industrialização que não se libertava da fome e da subnutrição, característica que, apesar de distinções em seu grau de incidência e formas de manifestação, se manteve até os dias de hoje, mesmo com o estágio avançado de desenvolvimento do país. Aos fatores de tipo econômico e social, Castro acrescentava a ignorância dos fundamentos da ciência da alimentação, resultando na má aplicação da escassa disponibilidade financeira e na composição de uma dieta alimentar imprópria, isto é, insuficiente, incompleta e desarmônica. Origens do enfoque contemporâneo O enfoque contemporâneo da SAN no Brasil tem suas origens nas formulações saídas de dois eventos de naturezas distintas, já que o primeiro limitou-se à elaboração de um documento técnico, enquanto que o segundo teve a representatividade de uma conferência setorial. Mas ambos se tornaram referências e anteciparam questões que viriam a ganhar fôlego posteriormente. No início da chamada Nova República, em 1985, a segurança alimentar apareceu pela primeira vez como referência de uma proposta de política contra a fome, com certo atraso em relação a sua utilização no plano internacional. Formulado por uma equipe de técnicos a convite da Superintendência de Planejamento do Ministério da Agricultura, o documento intitulado “Segurança alimentar – proposta de uma política contra a fome” teve poucas consequências práticas, porém já continha as bases das principais proposições que surgiriam depois: encontram-se nele as diretrizes de uma política nacional de segurança alimentar, e a proposta de insti80

tuir um Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), presidido pelo Presidente da República, com composição interministerial e ligado à então Secretaria do Planejamento. O documento propunha dois objetivos da segurança alimentar: a) atender as necessidades alimentares da população; b) atingir a autossuficiência produtiva nacional na produção de alimentos. Um ano depois, na esteira da expressiva mobilização no campo da saúde pública, realizou-se a I Conferência Nacional de Alimentação e Nutrição, no interior da 8ª Conferência Nacional de Saúde. A conferência lançou um conjunto de proposições que também se tornaram referências permanentes, estando na origem da posterior incorporação do “adjetivo nutricional” à noção de segurança alimentar entre nós. Ela propunha a instituição de um Conselho Nacional de Alimentação e Nutrição que formulasse a Política Nacional de Alimentação e Nutrição que viria a ser adotada, oficialmente, em 1999. O formato do conselho e várias das diretrizes da política sugerida eram bastante próximas da proposição antes referida. Note-se, ainda, que a Conferência sugeriu a instituição de um Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional integrado por Conselhos e sistemas nas esferas estadual e municipal, proposição que viria a ser retomada, em 2004, pela II Conferência Nacional de SAN e pelo Consea. Outra referência fundamental foi a formulação e difusão, em 1991, de uma proposta de Política Nacional de Segurança Alimentar pelo Governo Paralelo, instituto criado pelo Partido dos Trabalhadores e presidido por Luiz Inácio Lula da Silva. Dois fatores contribuíram para que ela tivesse impacto maior que as proposições anteriores das quais se nutriu. Primeiro, o combate à fome foi incluído entre as pri81

oridades do Movimento pela Ética na Política, no bojo da mobilização social que levou ao impedimento do Presidente Fernando Collor. Daquele movimento originou-se, em 1993, a Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida, que tinha Herbert de Souza (Betinho) entre seus líderes e mobilizou milhares de pessoas sob o lema “A fome não pode esperar”. O segundo fator foi a aceitação da proposta do Governo Paralelo pelo então Presidente Itamar Franco, também em 1993, tomando-a como referência para a instituição do primeiro Conselho Nacional de Segurança Alimentar – Consea. A matriz da proposta do governo paralelo era bastante semelhante à do documento de 1985, acrescida das contribuições oriundas do campo da saúde e nutrição e ampliando o escopo da política de segurança alimentar. Entendia a segurança alimentar como um objetivo estratégico de governo que nuclearia as políticas de produção agroalimentar, comercialização, distribuição e consumo de alimentos, incorporando a perspectiva de descentralização e diferenciação regional. Em paralelo a tais políticas, ocorreriam as ações emergenciais contra a fome. Fariam parte, ainda, as ações governamentais de controle da qualidade dos alimentos e estímulo a práticas alimentares saudáveis, bem como um conjunto de outras medidas no campo da saúde e da vigilância nutricional. Primeiro Consea e primeira conferência O primeiro Consea foi criado em abril de 1993, como órgão de consulta e assessoria do Presidente da República. Era composto por 10 ministros de Estado e 21 representantes da sociedade civil designados por iniciativa do Presidente 82

da República a partir de indicações do Movimento pela Ética na Política. Constituía na época uma forma bastante inovadora de parceria na busca de soluções para o problema da fome e da miséria no país. Uma das novidades era a condução compartilhada do conselho, presidido por um representante da sociedade civil (o bispo católico D. Mauro Morelli) e com uma Secretaria Executiva das ações de governo localizada no Instituto de Pesquisas Sociais Aplicadas (Ipea). Foi uma experiência marcada pelas naturais tensões entre os atores participantes, por exemplo nas relações entre a representação social e os setores de governo, bem como por limitações políticoinstitucionais próprias das circunstâncias que caracterizaram o breve Governo Itamar Franco. No entanto, ela introduziu a segurança alimentar na agenda nacional e deu origem a iniciativas importantes relativas aos programas de alimentação e nutrição (descentralização da alimentação escolar, ampliação do Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT) e distribuição de estoques públicos de alimentos a populações carentes, entre outros), aos assentamentos rurais, à geração de emprego e renda e às ações em prol da criança e adolescente (PELIANO, 1994). Talvez a mais significativa realização do Consea tenha sido a promoção da I Conferência Nacional de Segurança Alimentar (CNSA), entre os dias 27 e 30 de julho de 1994, em Brasília, reunindo cerca de duas mil pessoas entre delegados oriundos de todo o país (escolhidos em encontros estaduais) e observadores convidados. Ela foi antecedida por um processo de discussão de âmbito nacional sobre a problemática alimentar e de conscientização sobre a dimensão da fome no Brasil, recebendo contribuições das conferências realizadas em todos os estados e dos comitês de empresas públicas e universidades.

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O relatório final da conferência compunha-se de um documento político aprovado em plenário (“Declaração em defesa de uma política nacional de segurança alimentar”) e um documento programático consolidando as emendas apresentadas na conferência, com as condições e requisitos para uma Política Nacional de Segurança Alimentar organizados em três eixos gerais: a) ampliar as condições de acesso à alimentação e reduzir seu peso no orçamento familiar; b) assegurar saúde, nutrição e alimentação a grupos populacionais determinados; c) assegurar a qualidade biológica, sanitária, nutricional e tecnológica dos alimentos e seu aproveitamento, estimulando práticas alimentares e estilos de vida saudáveis. O primeiro Consea durou apenas até o final de 1994, quando foi extinto pelo novo governo. No meu modo de ver, quatro fatores principais contribuíram para que os êxitos alcançados fossem limitados, quais sejam: a novidade do tema, o caráter de transição do Governo Itamar, a zelosa resistência dos controladores da política econômica e, reconheça-se, a frágil atuação da maioria dos conselheiros, tanto os oriundos do governo quanto os da sociedade civil. A débil repercussão da extinção do conselho confirma o limitado enraizamento social daquela primeira e breve experiência. Contudo, a brusca e autocrática interrupção prejudicou sua revisão e aprofundamento, em particular, no que se refere à ainda incipiente participação da sociedade civil brasileira na proposição de políticas públicas. Interregno federal e proliferação de iniciativas O Governo FHC, empossado em janeiro de 1995, extinguiu o Consea ao mesmo tempo em que lançava o programa denominado Comunidade Solidária. O Conselho da 84

Comunidade Solidária apresentou-se como inspirado nas experiências de mobilização da sociedade civil brasileira no combate à fome, à pobreza e à exclusão social. Propunha avançar na parceria Estado-sociedade para enfrentar tais problemas com base em enfoque ampliado para além da questão alimentar, de modo a contemplar os elementos que contribuem para a miséria e iniquidade no país. A intenção de dar continuidade a medidas do Consea materializou-se na criação de um Comitê Setorial de SAN. Porém, o que parecia ser um movimento lógico em direção a um programa social mais abrangente, de fato submergiu às prioridades gerais do governo de então, que foram em direção contrária à incorporação da SAN como objetivo estratégico orientador de políticas públicas. A rigor, a mudança significou retrocesso no trato da questão alimentar, pois resultou na sua retirada dos temas que figuravam com destaque na agenda política nacional. A estratégia adotada pela Comunidade Solidária também contribuiu nessa direção. Ela pretendia “combater a fome e a pobreza dentro de um plano de estabilização econômica” (IPEA, 1996). De um lado, conferia “selo de prioridade” a programas governamentais em áreas como mortalidade infantil, alimentação escolar, saneamento básico, agricultura familiar, ensino fundamental e geração de ocupação e renda; de outro lado, buscava a integração e convergência das ações em áreas geográficas (municípios) de maior concentração de pobreza. Sem entrar nos detalhes dessa atuação, é possível afirmar que ao se limitar a priorizar programas (em lugar de construir uma política) a Comunidade Solidária diluiu o objetivo da SAN, tendência que se viu reforçada porque esse objetivo foi subordinado às chamadas estratégias de desenvolvimento local integrado.

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Embora a extinção do Consea tivesse restringido bastante a interlocução das representações da sociedade civil com o Governo Federal, a Comunidade Solidária apoiou intentos de interlocução que integraram a trajetória da construção do enfoque da SAN, inclusive por ter feito emergir consensos e divergências, muitas das quais persistem até os dias de hoje. Uma das principais iniciativas se deu em vista da realização da Cúpula Mundial de Alimentação, em 1996. O governo constituiu uma comissão tripartite – composta por representantes do governo federal, sociedade civil e iniciativa privada – para a elaboração do Relatório Nacional Brasileiro para a Cúpula. Buscava-se adotar um procedimento análogo ao utilizado para as demais cúpulas mundiais daquele período, porém mais restrito na capacidade de consulta à sociedade e resultando num documento com pouca repercussão prática6. O documento, no entanto, teve dois significados importantes. Primeiro, ele apresentava um diagnóstico abrangente que revela um significativo avanço de concepção sobre o tema, sendo que as proposições nele contidas representavam o consenso possível naquele momento entre os representantes dos setores sociais envolvidos na comissão. Segundo, a opção pelo registro das divergências fornece o primeiro mapeamento dos conflitos existentes no interior da sociedade brasileira e no governo quanto às questões relacionadas com a SAN. As controvérsias diziam respeito, principalmente, ao papel do comércio internacional, à condução da política econômica e aos rumos da reforma agrária (Ipea, 1996). 6. O conteúdo do documento foi ignorado no pronunciamento oficial do então Ministro da Agricultura na condição de representante do Brasil perante a Cúpula da Alimentação. 86

O documento brasileiro à Cúpula Mundial propôs uma nova e ampliada definição de segurança alimentar: “Segurança alimentar significa garantir, a todos, condições de acesso a alimentos básicos de qualidade, em quantidade suficiente, de modo permanente e sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, com base em práticas alimentares saudáveis, contribuindo, assim, para uma existência digna, em um contexto de desenvolvimento integral da pessoa humana”. Essa definição foi o ponto de partida para aquela que veio a ser aprovada na II CNSAN (2004) e adotada pelo Consea. Ainda naquele período, é significativo que o segmento empresarial tenha celebrado a fundação da Associação Brasileira de Agribusiness (Abag) com a publicação, em 1995, de um livro propondo uma “abordagem de agribusiness (sic) da segurança alimentar”. Esta era considerada a maior responsabilidade social dos agentes envolvidos no agronegócio, os quais seriam, no entender daquela associação, os principais promotores da segurança alimentar. Com base num enfoque enviesado pelos interesses econômicos e pela autovalorização das atividades do setor que representa, a Abag atribuía à segurança alimentar a capacidade de “imprimir dinâmica ao processo de desenvolvimento de uma sociedade organizada”, assegurando uma demanda sustentada que lhe permite retomar o crescimento. Um marco no campo da sociedade civil foi a criação, em 1998, do Fórum Brasileiro de SAN, justamente como desdobramento da mobilização social em face dos eventos internacionais e também repercutindo iniciativas em curso nas esferas estadual e municipal. Congregando quase uma centena de entidades distribuídas por todas as regiões do país, o FBSAN tem cumprido, desde sua criação, papel decisivo na mobilização social e no avanço das formulações 87

sobre SAN no Brasil, organizando a participação brasileira em fóruns internacionais e direcionando sua atuação para criar fóruns da sociedade civil e Conseas estaduais. Mais recentemente, o FBSAN esteve na base da recriação do Consea nacional (2003) e na conformação da II Conferência Nacional de SAN (2004). Foi de um encontro nacional do FBSAN, realizado em São Paulo em 2003, que saiu a definição de SAN e várias das diretrizes de uma Política Nacional de SAN debatidas e aprovadas na II CNSAN. Enquanto retrocedia a apropriação da noção de SAN no âmbito do Governo Federal, ampliava-se, desde o início dos anos 1990, sua adoção como referência de políticas públicas nas esferas estadual e, sobretudo, municipal da administração pública no Brasil. Pode-se dizer que a SAN teve duas “portas de entrada” principais nessas esferas de governo. A primeira e mais antiga, própria dos anos 1990, relacionava-se ao abastecimento alimentar, como o demonstra a localização de programas municipais e estaduais de SAN no interior das Secretarias ou órgãos de abastecimento. Notase, aí, a intenção de regular as condições de disponibilização dos alimentos para a população – isto é, as condições de acesso a eles – com desdobramentos sobre a esfera da produção e sobre as práticas alimentares. Nesses casos, a perspectiva ainda incipiente da intersetorialidade das ações de SAN levava à construção de relações de parceria intra e extragoverno a partir dos espaços próprios dos organismos de abastecimento; esse procedimento era facilitado pela peculiar e estratégica “localização” da área do abastecimento, mediando as relações entre produtores e consumidores. Veremos adiante que o enfoque da SAN evoluiu, no Brasil, para uma perspectiva de intersetorialidade que vai além das iniciativas setoriais com a participação de parcei-

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ros, demandando ações e programas integrados na sua própria concepção, institucionalidade e execução. A segunda e mais recente “porta de entrada” da SAN na administração pública veio a ser a área de assistência ou desenvolvimento social, tornada a opção mais usual nos municípios e estados brasileiros acompanhando o que se passou no âmbito federal a partir do Fome Zero. Esta tendência fez parte da recolocação da pobreza e da desigualdade social na agenda pública face aos resultados sociais decepcionantes da estratégia econômica dominante desde os anos 1990. Num tal contexto, as dimensões da SAN mais valorizadas são, naturalmente, a erradicação da fome e o enfrentamento da desnutrição, tendo como carros-chefe programas de transferência de renda e ações que promovam ou favoreçam o acesso aos alimentos pelos segmentos mais pobres da população. Ao destacar essas duas “portas de entrada” (abastecimento e desenvolvimento social) não estou desconhecendo um terceiro e antigo uso da noção de SAN por parte do setor da Saúde, porém, de fato, ele pouco ultrapassou seu campo específico de atuação, focalizado nas famílias e indivíduos atendidos pelas unidades de saúde pública. Conforme seja o setor de governo que lidera e serve de âncora para a difusão do enfoque da SAN no interior da administração pública e na relação com a sociedade, essa entrada dará lugar a um tipo de apropriação com implicações quanto às dimensões da questão alimentar a serem priorizadas e sua conversão em ações intersetoriais integradas. Programa Fome Zero Chegamos, assim, ao contexto atual da apropriação do enfoque da SAN no Brasil, marcado pelo surgimento do

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“Projeto Fome Zero – uma política nacional de segurança alimentar para o Brasil”, lançado pelo Instituto Cidadania, em 2001. Esse projeto foi a base do Programa Fome Zero (PFZ), instituído pelo primeiro Governo Lula. A elaboração do Projeto Fome Zero beneficiou-se do conhecimento acumulado e da mobilização social que lhe antecedeu, porém, com duas inflexões em relação às formulações anteriores no tocante ao enfoque e à institucionalidade da política de SAN. A primeira inflexão deriva da prioridade conferida pelo PFZ ao combate à fome nos segmentos da população em condições de pobreza extrema com vistas a lhes assegurar acesso regular à alimentação, sintetizada na meta das “três refeições por dia”. A indiscutível premência do enfrentamento das situações de fome aguda tornou essas ações o eixo ordenador das políticas nesse campo, de modo que o PFZ se superpôs à definição de uma Política Nacional de SAN com um enfoque mais abrangente que o de enfrentar a fome aguda ou o acesso insuficiente à alimentação pelos segmentos mais pobres da população. Esta constatação não reduz o significado político do lema “fome zero”, de fácil apreensão popular e ajustada à compreensão bastante difundida da SAN como erradicação da fome. Essas circunstâncias colocam o desafio de evitar obscurecer a pretensão maior de tornar a SAN um objetivo estratégico a ser perseguido por um conjunto diversificado e articulado de ações e políticas públicas, governamentais e não governamentais, dirigidas ao conjunto da população (e não apenas aos pobres). A segunda inflexão, consequência inevitável da anterior, diz respeito à institucionalidade do PFZ que levou à criação do Ministério Extraordinário de Segurança Alimen90

tar e Combate à Fome (Mesa) – um gabinete extraordinário com estatuto ministerial localizado na Presidência da República. Suas atribuições principais eram coordenar a implantação de programas e ações de segurança alimentar, articular instituições governamentais, gerir o Fundo Constitucional de Combate à Pobreza e apoiar o funcionamento do recém-recriado Consea. A opção de gerir, diretamente, as ações do PFZ se diferenciava da perspectiva de constituir um órgão supraministerial de articulação de ações intersetoriais de SAN, como defendido nos documentos e movimentos que precederam ao Fome Zero. O Cartão Alimentação foi o principal instrumento inicial do PFZ e instituiu um cupom destinado a suplementar a renda das famílias pobres e, desse modo, garantir o que definia como a segurança alimentar desse segmento da população na forma do acesso regular a alimentos (as “três refeições por dia”). Inspirado no Food Stamp Program estadunidense, o programa foi lançado com a pretensão de cobrir, num horizonte de quatro anos, um universo estimado em 44 milhões de pessoas (27,8% da população total), pertencentes a 9,3 milhões de famílias (21,9% do total). Esse contingente correspondia a 19,1% da população das regiões metropolitanas, 25,2% das áreas urbanas não metropolitanas e 46,1% da população rural. Prioridade inicial foi conferida aos pequenos e médios municípios da região do semiárido, onde foram destinados R$ 50,00 mensais para famílias com renda per capita mensal inferior a meio salário mínimo. O Fome Zero classificava suas ações em três tipos: ações estruturais (voltadas para as causas mais profundas da fome e da pobreza), específicas (para atender diretamente as famílias que não se alimentam adequadamente), e locais (implantadas pelas prefeituras municipais e pela sociedade civil). 91

Embora enquadrado entre as ações específicas, o Cartão Alimentação concentrou boa parte das energias do Mesa e funcionou como elemento nucleador das demais ações até ser incorporado pelo Programa Bolsa Família, ao passo que o Mesa se transformou na Secretaria Nacional de SAN do novo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, em 2004. A mobilização social que acompanhou o PFZ desde seu início assumiu a forma de um Mutirão Nacional contra a Fome com o objetivo de criar canais de participação da sociedade civil, principalmente nos pequenos municípios do semiárido – na forma de Comitês Gestores Locais do Fome Zero – ao mesmo tempo em que se dedicava a organizar as doações de alimentos e de dinheiro através de entidades cadastradas no programa. Vale destacar a novidade representada por esse processo, que teve componentes pouco usuais de capacitação e controle social, mas que padeceu de certo embaralhamento inicial de atribuições que levou o governo federal a se envolver com doações, ou a se dedicar a organizar a mobilização social. A mobilização social confluiu, em grande medida, para o atual Talher Nacional de Mobilização Social e Educação Cidadã do Fome Zero e seus correspondentes estaduais, dedicado a constituir uma rede nacional de educadores populares e agentes locais de segurança alimentar atuando junto às famílias atendidas pelo programa. A transição do Programa Cartão Alimentação para o Programa Bolsa Família impôs importantes mudanças de orientação no uso do instrumento da transferência de renda pelo Governo Federal. O Bolsa Família unificou os vários programas que promoviam transferência de renda para as famílias (como o Bolsa Alimentação, Bolsa Escola, Cartão Alimenta92

ção e Vale Gás), estabeleceu novos critérios de participação e buscou sua universalização de modo a atingir, em breve prazo, todos os municípios do país e chegar à marca de 11,1 milhões de famílias atendidas em 2006. Trouxe consigo intensa discussão sobre a inclusão de exigibilidades em programas sociais (compromissos a serem assumidos pelos que recebem a transferência de renda) e as formas de controle social em âmbito municipal. Em paralelo, o Fome Zero caminhou na direção das médias e grandes cidades e regiões metropolitanas, incluindo, além da implementação mais complexa do Bolsa Família, um conjunto diversificado de ações relacionadas com o abastecimento alimentar, agricultura urbana, e a gestão de equipamentos como restaurantes populares, bancos de alimentos e cozinhas comunitárias, entre outras, com a perspectiva de articulá-los em sistemas descentralizados de SAN. A definição conceitual do Fome Zero ainda está por se consolidar no interior do tripé formado pela erradicação da fome, enfrentamento da miséria e desigualdade social e promoção da SAN. As interfaces entre esses objetivos são evidentes, porém há que diferenciar os enfoques correspondentes para fins de adequar e coordenar os instrumentos de implementação e monitoramento das ações e políticas públicas. O Fome Zero vem se redefinindo na direção de se tornar uma estratégia (mais que um único programa) inserida na promoção da SAN cujas ações principais estão dirigidas para os indivíduos e famílias com dificuldade de acesso aos alimentos, isto é, maior vulnerabilidade à fome, deste modo, contribuindo também para enfrentar a pobreza extrema. A pretensão é ultrapassar o estágio da marca “fome zero” associada a variadas ações de governo com impactos sobre a produção e acesso aos alimentos, aglutinando as ações no entor-

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no de quatro eixos (ampliação do acesso, fortalecimento da agricultura familiar, geração de emprego e renda e mobilização e controle social). Essa integração vem sendo buscada em espaços intersetoriais como o Consea e o Grupo de Trabalho Fome Zero vinculado à Câmara de Políticas Sociais da Casa Civil da Presidência da República. As atuais definições deverão ganhar nova feição com a instituição do Sistema Nacional de SAN, abordada mais adiante. Segundo Consea e segunda Conferência Nacional Junto com o lançamento oficial do Programa Fome Zero, em março de 2003, o Governo Lula deu posse aos membros do novo Consea, recriado já no primeiro ato de seu governo. Retomando e buscando avançar em relação à experiência pioneira do seu antecessor dez anos antes, instituiu-se um conselho supraministerial com caráter consultivo à Presidência da República, composto por 17 ministros de Estado, 42 representantes da sociedade civil e das entidades empresariais, mais uma dezena de observadores de outros conselhos, organismos nacionais e internacionais. Como em 1994 o conselho é presidido por um representante da sociedade civil, contando com uma Secretaria Executiva governamental exercida, inicialmente, pelo Mesa e, com sua extinção, pelo MDS. Entre os critérios utilizados para chegar à composição da representação da sociedade civil no Consea, destacam-se a valorização de processos sociais portadores de experiências inovadoras (por exemplo, convivência com o semiárido), a combinação de representações de redes sociais atuando em áreas específicas (por exemplo, agrobiodiversidade e economia solidária) com aquelas que lidam com os vários componentes da SAN, e

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também a diversidade temática, regional, de gênero, étnico-cultural e de atores sociais específicos. O objetivo principal do conselho é propor as diretrizes da Política Nacional de SAN, além de monitorar os programas e projetos integrantes do Fome Zero e de outros programas afetos ao seu campo de abrangência. Cabe ao Consea contribuir, também, para os avanços conceituais necessários à implementação de ações orientadas pelo enfoque da SAN. A transversalidade do tema e o requisito da intersetorialidade dos programas e projetos, quando confrontadas com as sabidas dificuldades para coordenar as ações de diferentes setores da administração pública e destes com a sociedade civil, deixam claro o papel a ser cumprido pelos Conseas como instâncias de “pactuação” ou de “concertação” de enfoques e interesses diferenciados. Na esteira da implementação do PFZ e, especialmente, como parte da mobilização prévia à II CNSAN, assistiu-se à criação de Conseas em quase todas as unidades da federação e num grande número de municípios. Tais conselhos encontram-se em estágios bastante diferenciados de consolidação, inclusive porque alguns deles antecedem ao atual Consea-nacional. A relativa dispersão e fragmentação das iniciativas dos governos municipais e estaduais, assim como no âmbito da sociedade civil, ratificam a necessidade de instâncias adequadas para a articulação e coordenação das iniciativas. Apesar do Brasil dispor de um grande número de conselhos em várias áreas nas esferas estadual e municipal, são poucos os espaços de concertação envolvendo setores distintos de governo e visando a formação de parcerias entre o Estado e a sociedade civil. A II CNSAN – que elegeu como patronos Josué de Castro e o Betinho – constituiu um ponto alto na retomada da 95

mobilização social pela SAN ao restabelecer boa parte dos elos com a tradição antes construída no país, bem como gerou importantes desdobramentos em termos de ações e políticas públicas. Como na I Conferência, o Consea foi o principal organizador da II CNSAN que teve a participação registrada de 1.379 pessoas, sendo 1.111 delegados e 268 observadores. O número de delegados indicados pelas conferências estaduais (precedidas de conferências municipais ou sub-regionais) foi estabelecido de acordo com a população de cada Estado e a proporção de pessoas pobres nos mesmos, assegurada maioria de dois terços provenientes da sociedade civil; vagas especiais foram destinadas a representantes de segmentos com dificuldade de representação nos encontros estaduais (indígenas, quilombolas e portadores de deficiência)7. A preparação da conferência envolveu a elaboração prévia de textos de referência para debate pelos participantes, abordando um amplo leque de temas que reafirmavam a abrangência conferida à SAN pelo enfoque adotado no Brasil (BURLANDY et al., 2004). Não obstante, a abrangência do enfoque torna, ao mesmo tempo, mais complexa a delimitação do campo específico de atuação. A amplitude atribuída à Política Nacional de SAN se expressa nas áreas em que foram organizados os textos de referência mencionados, a saber: (a) produção de alimentos, (b) acesso aos

7. Composição prevista: 800 delegados estaduais; 150 representantes do governo federal; 100 delegados indicados pelo Consea-nacional, sendo 60 conselheiros e observadores e 40 vagas especiais (destinadas a indígenas e quilombolas); participaram também delegações dos seguintes países: Argentina, Canadá, China, Cuba, Espanha e México. 96

alimentos, (c) ações em alimentação e nutrição e (d) questões institucionais. Cada uma dessas áreas englobava vários temas, tais como trabalho e renda, modelos de produção, recursos naturais, abastecimento e regulação de mercados, alimentação saudável, cultura alimentar, ações emergenciais, alimentação escolar, monitoramento e avaliação e participação social8. Importa ressaltar o esforço desenvolvido para contar com significativa participação de representantes dos diversos setores do Governo Federal que integram o Consea, com vistas a ampliar seu comprometimento com as deliberações nela tomadas. Tal procedimento dá origem a uma dinâmica de discussões elucidativa das possibilidades e dificuldades para a construção conjunta – governo e sociedade civil – de propostas de ações e políticas públicas de SAN. As deliberações da II CNSAN, embora muito numerosas e com graus desiguais de abrangência e relevância, serviram de base para a construção da agenda nacional de SAN no Brasil que abordarei mais adiante. Antes, porém, destacarei as principais manifestações de insegurança alimentar e nutricional no Brasil que a referida agenda deve ser capaz de enfrentar.

8. Para detalhes, consulte-se http://www.presidencia.gov.br/consea 97

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Manifestações de insegurança alimentar e nutricional no Brasil

Fome oculta, desnutrição e obesidade As manifestações de insegurança alimentar mais graves, portanto, de enfrentamento imediato são a fome e a desnutrição. A fome, referência forte no debate público, decorre da insuficiência ou ausência de calorias no organismo, porém cumpre diferenciar as “várias fomes”, ou melhor, os diferentes significados da fome (ABRAMOVAY, 1986). A fome aguda corresponde à urgência de se alimentar, como tal, saciada por meio da ingestão de alimentos. Para muitos, a “vontade de comer” constitui fonte de prazer saciável por seus próprios meios. Os que estão nessa condição não são os que “passam fome”, porém interessam ao nosso tema pelo aspecto dos hábitos alimentares que praticam. Por outro lado, aqueles que não dispõem de meios próprios para saciar a fome aguda recorrem à rede social constituída por entidades e indivíduos que oferecem alimentos aos que não podem adquiri-los. Outra coisa é a fome crônica, isto é, a condição na qual a alimentação diária não fornece energia suficiente para a manutenção do organismo e para o exercício das atividades cotidianas, nesse sentido equivalendo a uma das modalidades de desnutrição que é a deficiência energética crônica (MONTEIRO, 1995). A desnutrição ou subnutrição – 98

que Josué de Castro denominou como “fome oculta” – caracteriza-se pela manifestação de sinais clínicos provenientes da deficiência ou inadequação quantitativa (energia) ou qualitativa (nutrientes) da dieta, ou ainda das más condições higiênicas e de doenças que comprometem o aproveitamento biológico dos alimentos ingeridos. As dificuldades tanto conceituais quanto de obtenção de informações impõem exercícios aproximativos. A área da alimentação e nutrição é uma das que mais se ressentem da carência de produção de dados estatísticos em nosso país. A última pesquisa de consumo familiar com representatividade nacional data de 1975 (Endef/IBGE), e sobre demografia e saúde de 1996 (PNDS/MS). Um paradoxo da reconstrução democrática pós-ditadura militar no Brasil foi ter sacrificado o conhecimento sobre a sociedade justamente quando o exercício desse conhecimento já não se encontrava mais sob censura, em nome de metas fiscais no mínimo questionáveis. A forma de desnutrição mais grave é a desnutrição infantil crônica (deficit de altura para a idade) e, em menor grau, a desnutrição aguda (deficit de peso para a altura), também sem inquéritos regulares e atualizados. Um esforço de comparar os resultados de pesquisas distintas realizadas em 1975 (Endef), 1989 (PNSN) e em 1996 (PNDS) revela um declínio de cerca de 1/3 na prevalência de retardo de crescimento em crianças menores de cinco anos no período 1989-1996, porém 10,5% delas ainda se encontravam nesta condição em 1996. Esse percentual variava entre regiões (17,9% no Nordeste e 5,6% no Centro-Sul) e entre as populações rural (19%) e urbana (7,8%), todos percentuais superiores ao esperado para populações saudáveis. O deficit de peso (desnutrição aguda) apresentou declínio signifi-

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cativo nas regiões Nordeste (35,1%) e Norte (27,4%), onde tinha maior incidência (MONTEIRO et al., 1995; MS/ CGPAN, 2005). Importa observar que não foram fatores econômicos como o emprego e a renda familiar as causas principais do declínio na incidência da desnutrição infantil desde a década de 1970, pois entre elas se destacam a evolução da escolaridade, a ampliação do saneamento básico e a maior cobertura dos programas de saúde. Estimativa recente com dados relativos apenas à população brasileira atendida pelos serviços de saúde (cerca de 40% do total), mostrou que o deficit de peso por idade nas crianças com menos de 1 ano de vida diminuiu de 10,1% (1999) para 3,6% (2004), aproximando-se dos valores esperados para países desenvolvidos (entre 2% e 3%). Nas crianças entre 1 e 2 anos de idade, essa redução foi de 19,8% para 7,7%. Ou seja, os distúrbios por déficits nutricionais das crianças de ambas as faixas etárias tiveram queda superior a 60% em apenas cinco anos, mais intensa nas regiões que já apresentavam menor incidência (Ipea, 2005). Uma coleta de dados específica nos municípios da região do semiárido, a de maior incidência de pobreza no país, foi feita pela Chamada Nutricional realizada em conjunto com a campanha de vacinação, em agosto de 2005. Esses dados revelam que a prevalência de formas crônicas de desnutrição (deficit de altura) foi de 6,6%, enquanto que a de formas agudas (deficit de peso) ficou em 2,5%, pouco acima do limite aceitável de 2,3%. Contudo, essas prevalências variam bastante num universo em que três quartos das famílias pertencem aos estratos mais baixos de renda, têm elevados índices de analfabetismo ou baixa escolaridade, 77,1% das mães declaram raça/cor não branca e 7,2% das famílias faziam menos de três refeições por dia. Assim, a 100

desnutrição crônica variou de 10% no estrato de renda mais baixo a 2,5 % no intermediário, de 14% para mães analfabetas a 3,2% nas que tinham 9 ou mais anos de escolaridade. Embora bastante aproximativa, a comparação destes resultados com os das pesquisas nacionais indica que a redução na prevalência da desnutrição infantil crônica acelerou-se bastante na região do semiárido: as taxas anuais de 3,06% (1975-1989) e 4,9% (1989-1996) podem ter chegado a 7,0% entre 1996 e 2005. Por último, pouco mais de um terço das famílias estavam inscritas em programas federais de transferência de renda, participação que determinou redução de quase 30% na frequência da desnutrição (de 6,8% sem o programa para 4,8% com o programa), chegando a 62,1% para as crianças entre 6 e 11 meses (de 5,3% para 2,0%) (MONTEIRO et al., 2006). A mensuração da fome na população adulta é mais difícil e comporta alguma controvérsia. O Índice de Massa Corporal (IMC) é um indicador de reserva energética na população adulta. A associação da fome com deficits energéticos em adultos é considerada insuficiente por não incorporar outros nutrientes (vitaminas e minerais) e por não captar situações de privação alimentar que ainda não se expressaram como déficit energético (MS/CGPAN, 2005). Feita a ressalva, a mesma comparação dos dados das três pesquisas nacionais acima referida (1975, 1989 e 1996) constatou significativa queda no percentual de adultos com deficit energético nas diversas regiões, por local de moradia (urbano e rural) e por estrato de renda, ao mesmo tempo em que ocorreu importante aumento na proporção de adultos obesos e com sobrepeso, verificando-se, nesse caso, desigualdades de gênero e renda (MS/CGPAN, 2005). O sobrepeso e a obesidade correspondem ao peso corporal acima do normal como conse-

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quência de uma acumulação excessiva de gorduras ou uma manifestação de hipernutrição. Mais recentemente, foram colhidos dados antropométricos na realização da Pesquisa de Orçamento Familiar, em 2002-2003. No que se refere às crianças e adolescentes, a pesquisa constatou uma redução na desnutrição infantil acompanhada de um aumento considerável na proporção dos adolescentes brasileiros com excesso de peso. Em 19741975 (Endef), estavam acima do peso 3,9% dos garotos e 7,5% das garotas entre 10 e 19 anos; já em 2002-2003, esses percentuais se elevaram para 18,0% e 15,4%, respectivamente. No que se refere à população adulta, cobrindo um universo de 95,5 milhões de pessoas com 20 anos ou mais, constatou-se deficit de peso em 4% do total (3,8 milhões de pessoas), com maior incidência na região Nordeste e entre as mulheres jovens: 12,2% das mulheres entre 20 e 24 anos e 7,3% na faixa de 25 a 29 anos. Já o excesso de peso afetava a 38,8 milhões de adultos e idosos (40,6%), dos quais 10,5 milhões (11%) são considerados obesos. O excesso de peso e a obesidade entre os homens cresceram a um ritmo bem mais intenso e se aproximaram das proporções observadas entre as mulheres cujo patamar havia se estabilizado no período mais recente. A mesma pesquisa (POF 2002-2003) procurou captar, também, a percepção dos entrevistados sobre a qualidade e quantidade de alimentos consumidos no domicílio, constatando que em 47% dos casos houve referência à habitual ou eventual insuficiência na quantidade dos alimentos; essa proporção variou de mais de 60% nas regiões Norte e Nordeste para cerca de 20% na Região Sul. Para concluir, cabe uma breve menção ao contexto mundial, pois mais da metade da população padece de algum pro102

blema de nutrição. Cerca de um quarto das crianças nos países em desenvolvimento nascem com peso inferior ao normal devido à subnutrição fetal, enquanto que 150 milhões de crianças até cinco anos têm retardo no crescimento ou insuficiência de peso. A subnutrição afeta 250 milhões de adultos, sobretudo mulheres. Um bilhão de pessoas em todas as faixas etárias são afetadas pela carência de micronutrientes (especialmente ferro, vitamina A, iodo e zinco). A chamada “transição nutricional” levou esses países a conviverem, ao lado dos problemas ligados às carências alimentares, com o surgimento de enfermidades não transmissíveis derivadas da alimentação que abrangem obesidade (inclusive infantil) e o risco de sobrepeso, diabetes não insulino-dependentes, doenças cardiovasculares e alguns tipos de câncer (LE BIHAN et al., 2003). A OMS classificou como “epidemia mundial de obesidade” o fenômeno que já conta com 50 milhões de adultos obesos, enquanto que 1 bilhão tem risco de sobrepeso. Em suma, à fome e desnutrição se somou a obesidade enquanto manifestações de insegurança alimentar – a “dupla carga da má nutrição” –, tornando-se problemas de saúde pública em muitas partes do mundo e também no Brasil. Pobreza, vulnerabilidade à fome e insegurança alimentar O enfoque da “vulnerabilidade à fome” ou de “exposição à insegurança alimentar e nutricional” descreve situações de risco através de indicadores indiretos, como o nível de renda, faixa etária, grupos étnicos, etc., e enfatiza possíveis causas dessa condição, em contraste com os indicadores diretos, voltados ao estado nutricional dos indivíduos num dado momento. Nessa linha, o dimensionamento da 103

população “vulnerável à fome” pelo nível de renda familiar reflete a compreensão que fome e pobreza sempre andam juntas, embora não se confundam. Esse foi o método adotado pelo Projeto Fome Zero para estimar seu público potencial com base na “linha de pobreza extrema” do Banco Mundial fixada numa renda per capita diária de US$ 1 (dólar ajustado ao poder de compra das moedas nacionais). Assim medido, o número de pessoas vulneráveis à fome – sem renda suficiente para adquirir os alimentos necessários – chegava a 44 milhões (27,8% da população total do país) em 1999, compreendendo 9,2 milhões de famílias (21,9% do total) distribuídas nas regiões metropolitanas (19,1%), áreas urbanas não metropolitanas (25,2%) e áreas rurais (46,1%). Dos chefes dessas famílias, 64% eram de cor parda ou preta (TAKAGI et al., 2001). A evolução desse mesmo indicador, entre 1990 e 2003, mostra que o percentual de famílias vivendo em extrema pobreza no Brasil caiu quase pela metade (42,4%), passando de 9,9% para 5,7% do total de famílias, enquanto que o número (absoluto) de pessoas nessa condição decresceu quase 30%, de 13,9 milhões para cerca de 9,8 milhões de pessoas. A redução se verificou, basicamente, na área rural (24,2% para 13,5%), enquanto que o percentual mais baixo na área urbana pouco se alterou (4,8% para 4,2%). Esses dados já refletem os impactos da recente expansão dos programas federais de transferência de renda. A incidência da pobreza extrema é maior entre os que se declararam pretos e pardos (15,4% para 8,4%) em relação aos brancos (5,7% para 3,2%); pretos e pardos correspondem a cerca de metade da população e a 67,8% dos mais pobres. Contudo, a melhoria na renda dos mais pobres quase não afetou a dis-

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tância entre eles e os 20% mais ricos que continuaram se apropriando de mais da metade da renda nacional, fazendo com que o Índice de Gini permanecesse praticamente inalterado no período, oscilando entre 0,55 e 0,579. O governo brasileiro estabeleceu nova meta para 2015 que é de reduzir a um quarto a proporção da população que vive com renda diária inferior a US$ 1 PPC em relação a 1990 (Ipea, 2005) (grifo meu). Como a mensuração da pobreza no Brasil carece de definições essenciais, chega-se a números bastante divergentes entre as várias estimativas. O Radar Social do Ipea adota o parâmetro corrente no Brasil para medir a pobreza, que é o salário mínimo oficial. São consideradas pobres as famílias com dificuldade para adquirir o mínimo necessário para sua sobrevivência, condição que corresponde à renda familiar per capita inferior a meio salário mínimo mensal. Em pobreza extrema ou indigentes são consideradas as famílias para as quais nem mesmo a aquisição dos alimentos básicos estaria assegurada, supondo-se ser esta a condição das que têm uma renda familiar per capita inferior a um quarto do salário mínimo mensal. Esse indicador resulta em percentuais cerca de duas vezes superiores aos encontrados pelo parâmetro do Banco Mundial, porém, vem apresentando reduções recentes igualmente significativas (Tabela 1).

9. A renda familiar aferida pela Pnad expressa, basicamente, as rendas oriundas do trabalho (incluindo previdência), portanto, ela não indica a distribuição do total da renda gerada no país. 105

Tabela 1 – População em condição de pobreza e indigência, 1995/2004 Anos

Pobreza Milhões hab.

Indigência %

Milhões hab.

%

1995

49,5

33,4

21,0

14,1

2001

55,6

33,3

23,9

14,3

2002

56,0

33,0

22,6

13,3

2003

58,4

33,9

24,6

14,3

2004

52,5

30,1

19,8

11,3

Fonte: Pnad/IBGE (Elab: Radar Social-Ipea).

Assim, a população em condição de pobreza extrema ou indigência passou de 21 milhões (14,1% do total) em 1995, para 19,8 milhões de pessoas (11,3%) em 2004, correspondendo a uma redução de 19,8% na proporção de indigentes ou de 5,7% no número de pessoas nesta condição. Já a população vivendo em condições de pobreza passou de 49,5 milhões (33,4% do total), em 1995, para 52,5 milhões de pessoas (30,1%) em 2004, uma redução de 9,9% na proporção de pobres, porém com elevação de 6% do seu número absoluto; de fato, registrou-se significativa redução do número de pobres entre 2003 e 2004, interrompendo tendência anterior de elevação desse número. Essa redução ainda não capta, plenamente, os impactos do Programa Bolsa Família que passou de 6,7 milhões de famílias indigentes e pobres atendidas em 2004 para as atuais 11,1 milhões de famílias. É importante diferenciar os significados das medidas de pobreza. O percentual de pessoas vivendo abaixo da li106

nha de pobreza é um indicador de “pobreza relativa”, isto é, de desigualdade social. Portanto, pode-se dizer que a desigualdade social teve redução recente no Brasil, apesar de permanecer em patamar bastante elevado. Já quanto ao número absoluto de pobres, os dados são positivos, mas ainda não permitem afirmar que está em curso uma inflexão na direção da sua contínua redução, inclusive porque ela tende a ser mais complexa na medida em que nos aproximamos da base da pirâmide social. Além disso, tão importante quanto o número de pessoas em pobreza extrema é avaliar a condição em que elas vivem, isto é, a “pobreza absoluta”. A redução da desigualdade social (proporção de pobres) pode estar combinada com o aumento no número de pobres ou, ainda mais grave, com a piora das condições em que vivem os pobres. O indicador de renda aqui utilizado para medir a pobreza não é suficiente para captar essas condições. Uma importante inovação nas estatísticas oficiais brasileiras foi a incorporação de um indicador de SAN em âmbito nacional, na Pnad-2004 (Tabela 2). Para tanto, foi utilizada a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar – 10 Ebia cuja perspectiva é avaliar a capacidade de acesso das famílias às refeições habituais nos aspectos quantitativo e qualitativo, incluindo a percepção dos seus membros sobre a capacidade de assegurarem esse acesso no futuro próximo. A pesquisa constatou que havia segurança alimentar, isto é, garantia de acesso quantitativo e qualitativo às refeições habituais em 65,2% dos domicílios particulares brasileiros

10. A Ebia foi desenvolvida por pesquisadores brasileiros a partir de metodologia criada na Universidade de Cornell e adotada pelo Usda (CORREA et al., 2003). 107

(33,7 milhões de domicílios com 109,2 milhões de pessoas), enquanto que 34,8% deles (18 milhões de domicílios com 72,2 milhões de pessoas) vivenciavam algum grau de insegurança alimentar: 8,3 milhões (16%) com insegurança leve (comprometimento da qualidade da dieta sem restrição quantitativa); 6,4 milhões (12,3%) com insegurança moderada (limitação quantitativa de acesso sem o convívio com situação de fome) e 3,4 milhões (6,5%) com insegurança grave (limitação de acesso com situação de fome). Tabela 2 – Domicílios particulares e moradores, segundo a situação de segurança alimentar, Brasil, 2004 (em %) Situação de segurança alimentar

Domicílios

Moradores

Total Urbano Rural Total Urbano Rural

Seg. alimentar

65,2

66,7

56,5

60,2

62,3

50,1

Inseg. Alimentar

34,8

33,2

43,4

39,8

37,7

49,9

Leve

16,0

15,8

17,4

18,0

17,7

19,2

Moderada

12,3

11,4

17,0

14,1

13,0

19,5

6,5

6,0

9,0

7,7

7,0

11,1

Grave

Fonte: IBGE/Pnad, 2004.

A associação entre pobreza e graus mais intensos de insegurança alimentar fica evidente no fato de a segurança alimentar estar presente em apenas 17,5% dos domicílios com rendimento mensal per capita de até 1/4 de salário mínimo (pobreza extrema), enquanto que 61,2% são atingidos pela insegurança alimentar moderada ou grave. A prevalência de insegurança alimentar moderada ou gra108

ve foi maior nos domicílios das áreas rurais (26,0%, contra 17,4% nas áreas urbanas), assim como ela é mais de três vezes superior nas regiões Nordeste e Norte em relação ao Sul. Essa prevalência maior também está associada aos domicílios em que residiam crianças e menores de 18 anos de idade, naqueles cuja pessoa de referência era do sexo feminino e nos habitados por população de cor preta ou parda. O inquérito permitiu ainda verificar que os programas sociais, por um lado, atingem os domicílios em pior condição, pois entre aqueles em que algum morador recebeu dinheiro de programa social do governo apenas 34% estavam em situação de segurança alimentar; esse percentual é de 71,2% entre os que não recebiam dinheiro. Por outro lado, revelou que em 2004 ainda havia 14,9% dos domicílios que receberam algum dinheiro dos programas sociais que permaneciam em condição de insegurança alimentar grave. Afirmei, anteriormente, que o enfoque na pobreza e as ações correspondentes não dão conta das dimensões envolvidas na erradicação da fome e na promoção da SAN das camadas em situação de pobreza. Os diagnósticos de insuficiência de renda monetária levam à adoção de programas de transferência de renda que permitem às famílias acessarem os alimentos que necessitam, além de outros bens. Esse foi o caso do Cartão Alimentação, do atual Bolsa Família e de vários outros programas adotados no Brasil nas três esferas de governo há tempos. Economistas, sobretudo, têm se dedicado ao aprimoramento das estatísticas que permitem saber o custo em centavos para enfrentar a pobreza e os valores dos retornos econômicos da sua erradicação; sem dúvida são bem-vindos os economistas e seus cálculos, mas do que estamos precisando é de mais política e menos economia. Os progressos havidos no tocante aos instrumentos 109

de diagnóstico e intervenção teriam que avançar mais e em outras direções no sentido de nos aproximarmos da possibilidade de “ver o(s) rosto(s) da fome e da desnutrição” para melhor atuar sobre suas múltiplas dimensões. Os instrumentos de “combate à pobreza”, focados na renda monetária, não contemplam as dimensões socioculturais, nutricionais e ambientais envolvidas na produção dos alimentos e no ato de alimentar-se (comer o que, como e com qual origem). Nem poderiam fazê-lo, pois não é de sua natureza. Ações integradas e intersetoriais são requeridas para enfrentar os desafios de oferecer alimentação adequada, vida digna e emancipação aos indivíduos e famílias atendidas pelos programas públicos. Portanto, dada a amplitude e centralidade que tendem a assumir os programas de transferência de renda como o Bolsa Família, em condições de carência absoluta, torna-se importante ressaltar que, embora indispensáveis para saciar a fome, esses programas podem funcionar como “porta de entrada” para a questão alimentar na medida em que ultrapassem os limites da visão do “combate à fome” ou do “acesso à comida”, visão que o enfoque da SAN pretende qualificar. Poder aquisitivo e preços dos alimentos Uma questão importante e controversa diz respeito à relação entre o poder aquisitivo dos indivíduos e das famílias, fator condicionante do acesso aos alimentos, e o custo para adquirir os alimentos e demais bens e serviços que compõem uma vida digna. O poder aquisitivo depende do nível de renda auferido e dos preços daquilo que se compra, portanto, a relação entre poder aquisitivo e preços dos bens envolve um componente de mútua determinação cuja ex110

pressão popular é conhecida: “não são as coisas que custam caro, a gente é que ganha pouco”. Ambos os lados dessa equação podem ser verdadeiros, porém, nem sempre pelos mesmos motivos cujo desvendamento permite evitar o risco da circularidade embutido na conhecida expressão. Analistas costumam supor que o custo da alimentação deixou de ser, há tempos, uma questão importante em face da tendência de queda dos preços dos produtos agrícolas e dos ganhos de produtividade no seu processamento industrial, somados à elevação da renda média da população. Assim, essas tendências tornaram os alimentos relativamente mais baratos que os demais itens de consumo e reduziram o peso percentual dos gastos com alimentação na renda familiar. Apesar de serem tendências, sem dúvida, verdadeiras em termos gerais, elas são insuficientes para captar o que ocorre quando se procede à necessária diferenciação dos preços dos alimentos segundo os tipos de produtos, os estratos de renda da população e em termos espaciais ou territoriais. Quanto aos tipos de produtos, a tendência ao barateamento relativo é mais evidente nos produtos agrícolas vendidos in natura em relação aos semielaborados e alimentos industrializados. Quanto menos elaborado, mais instável o preço do bem respectivo (sua oferta é mais sazonal), porém, ele tende a ser menos custoso no longo prazo em relação aos demais, onde há crescente incorporação de serviços aos produtos (alimentos pré-preparados). Além disso, os alimentos com maior grau de processamento industrial obedecem à lógica de mercados oligopolizados em que há maior poder de determinação de preços, embora reflitam o barateamento da principal matéria-prima (o produto agrícola). A tendência à queda nos preços agrícolas não é igual para todos os produtos e não tem o mesmo significa111

do para todos os tipos de agricultores, pois penaliza mais fortemente os agricultores familiares. No quesito nível de renda, os preços dos alimentos são um importante determinante do poder de compra dos salários e outras rendas monetárias do trabalho, tão mais importante quanto maior o peso da alimentação no orçamento familiar. Portanto, a sensibilidade às variações nos preços dos alimentos é mais elevada nos segmentos de menor renda cujos gastos com alimentação absorvem uma parte relativamente maior da renda familiar total. As chamadas rendas do trabalho (salários e outras formas), historicamente, não apresentam uma evolução favorável no Brasil, como o revelam os indicadores de distribuição de renda. Assim, embora a participação média dos gastos com alimentação na renda total das famílias brasileiras venha caindo nas últimas décadas, em países com elevada desigualdade como o nosso as médias mais escondem que evidenciam. Nas camadas de menor renda, os gastos com alimentação podem comprometer parcela significativa da renda do grande número de famílias que nelas se encontram. Pesquisa nacional de orçamento familiar (POF-IBGE, 2002/2003) mostrou que as despesas com alimentação representam, na média nacional, 17,10% da despesa total das famílias, porém chegam a 32,68% no estrato que ganha até dois salários mínimos mensais (quase o dobro da média nacional) e 20,9% no estrato entre seis e oito salários mínimos. Igualmente importante, cerca de 47% dos entrevistados responderam que consomem uma quantidade de alimentos insuficiente para atender suas necessidades. A conceituação brasileira de SAN estabelece que o acesso aos alimentos não pode comprometer o acesso aos demais bens que compõem uma vida digna. Ora, uma famí112

lia que despende 30% ou mais da sua renda apenas para comer pode não estar “passando fome” mas não se encontra numa condição de SAN. Um atenuante tradicional dessa limitação sempre foi o barateamento dos alimentos, especialmente dos preços agrícolas, e não a elevação do poder aquisitivo dos estratos de menor renda. Por último, há uma espacialidade na formação dos preços dos alimentos que reflete desde características dos mercados locais das regiões produtoras até a distribuição dos equipamentos de abastecimento nas médias e grandes cidades, passando por questões tais como proximidade, intermediação comercial e meios de transporte. As frutas, verduras e legumes são um bom exemplo de como o acesso pode ser irregular ou mais custoso, dependendo do local de moradia e da estrutura do abastecimento. Geração, gênero e etnia Além do nível de renda, dois outros fatores concorrem para diferenciar as manifestações de insegurança alimentar nos planos individual, domiciliar ou de um segmento social, que são a condição geracional e de gênero e as raízes étnicas ou raciais. Quer dizer, os mais pobres estão mais expostos à insegurança alimentar. Mulheres, crianças e idosos enfrentam carências específicas em relação aos homens e aos mais jovens. Negros e índios compõem parte significativa dos segmentos sob risco de fome. No aspecto geracional, a fome e a subnutrição repercutem, de forma diferenciada, ao longo da vida das pessoas, comprometendo tanto suas próprias possibilidades de existência quanto a qualidade de vida das gerações futuras. Os profissionais da área de saúde e nutrição diferenciam cinco 113

etapas que compõem o ciclo de vida: lactantes, crianças, adolescentes, idade adulta e terceira idade. A elas estão relacionadas características que têm implicações particulares em termos de insegurança alimentar, como por exemplo: mortalidade infantil; desmame precoce; nutrição fetal insuficiente; comprometimento do desenvolvimento cognitivo e retardo no crescimento; enfermidades crônicas e infecções; mortalidade materna; capacidade física reduzida. A desigualdade de gênero se manifesta também nas questões relacionadas com a SAN como resultado da desigualdade de acesso e controle dos recursos. Assim, a SAN requer enfrentar os temas relativos a gênero e reconhecer as múltiplas atribuições das mulheres cujo papel é crucial e, não raro, predominante na produção ou obtenção, preparação e partição dos alimentos entre os membros da família. Essas atribuições fazem que o consumo de alimentos constitua uma das portas de entrada para a percepção sobre questões de gênero na SAN, porém, ela não é a única entrada e, em se tratando do mundo rural, nem a mais importante pois nele se coloca o papel das mulheres rurais como produtoras de alimentos e responsáveis por uma parcela crescente dos estabelecimentos rurais. Dados da FAO indicam que as mulheres produziram mais de 50% do alimento que é cultivado em todo o mundo, em 1995. No Brasil, os avanços já obtidos na redução das desigualdades de gênero ainda não se refletiram em melhoria na situação do trabalho agrícola de homens e mulheres. Justamente por ser “invisível” e estar associada a tarefas sem valorização econômica, o trabalho das mulheres dilui-se nas estatísticas em tarefas como “produção para o consumo” e “trabalho não remunerado” que, em 2002, representavam, respectivamente, 42% e 39% do tempo das mulheres ocupadas 114

na agricultura; note-se que as mulheres respondiam por 72% da população ocupada na produção para o consumo. No entanto, as mulheres que compunham 48% da população rural total representavam apenas 33% do total da população ocupada na agricultura (HEREDIA & CINTRÃO, 2006). O papel da mulher aparece com destaque, também, nas questões relacionadas a nutrição e saúde pública cuja consideração vai além dos limites desse livro. Especialistas colocam a mulher como vínculo crucial, tanto no plano biológico como no social e econômico, sobretudo no tocante a SAN doméstica (LE BIHAN et al., 2004), tornando centrais as ações voltadas para a condição feminina nos aspectos nutricional, educacional, profissional e de participação nas decisões. Especialmente importante na condição feminina é o aleitamento materno, método ideal para a alimentação dos bebês que é benéfico tanto para a criança como para a mãe e, por isso mesmo, considerado um direito de ambas. Esse direito é permanentemente violado ou ameaçado pela promoção do uso de substitutos pela indústria, pelo excesso de medicamentos na alimentação infantil e por razões de estética, entre outras. Mas além da melhoria do estado nutricional de jovens e mulheres, para que lhes sejam asseguradas condições de vida e desenvolvimento é preciso lhes proporcionar oportunidades iguais de formação e inserção econômica, social e cultural. Conferir visibilidade ao seu trabalho, inclusive como produtoras, e tornar as mulheres beneficiárias diretas de programas e projetos relacionadas com a SAN (e não apenas nesse campo) fortalece sua posição na família e na comunidade (SILIPRANDI, 2002). A crescente visibilidade adquirida no debate nacional pelas desigualdades provoca115

das por razões de gênero, etnia e geração ainda demanda avanços no sentido de conferir protagonismo aos segmentos afetados por essas discriminações. A carência geral de dados apontada mais acima é ainda mais grave para grupos populacionais particulares (quilombolas, indígenas, assentados rurais, acampados, catadores de lixo e moradores de rua). As informações são inexistentes, pontuais ou não estão desagregadas por cor ou etnia; são recentes e ainda não concluídas as “chamadas nutricionais” para alguns desses grupos. Vimos alguns dados gerais que demonstram a maior incidência da pobreza, da fome e da insegurança alimentar entre a população que se declara negra ou parda. No entanto, os referidos grupos populacionais convivem com problemas agudos que demandam tratamento próprio, como no caso dos povos indígenas em que a desnutrição pode atingir a 55% das crianças (MS/CGPAN, 2005). Modelos iníquos e insustentáveis Já ressaltei que o reconhecimento do objetivo da SAN e sua concretização dependem das opções feitas pelos governos em termos das estratégias e políticas de desenvolvimento. Falta conferir atenção específica para a contribuição das atividades relacionadas com os alimentos e a alimentação para a configuração dessas estratégias, portanto, também para as mazelas por eles geradas. Isto porque o elevado peso econômico e social da produção, distribuição e consumo de alimentos no Brasil – alardeado pelos porta-vozes do chamado agronegócio para sua própria valorização – significa que essas atividades também têm elevada participação como fontes da conhecida desigualdade social brasileira e da pobreza, e dos crescentes problemas ambientais. Mencionem-se os impactos sociais e ambientais 116

da ocupação e uso da terra com elevada concentração da propriedade e persistência do modelo das grandes explorações agropecuárias e extrativistas, monocultoras e com intensa mecanização e uso de químicos. Pode-se citar ainda o nível relativamente mais baixo da remuneração do trabalho nas atividades industriais e comerciais do setor alimentar; ou o poder de mercado das grandes corporações num contexto de ausência de regulação pública, e sua capacidade de impor modelos de produção e consumo. No entanto, se olharmos desde a perspectiva de reorientar o padrão de desenvolvimento do país, essas mesmas características permitiriam colocar o sistema alimentar como espaço privilegiado para reunir dinamismo econômico e crescente equidade social. Para tanto, ele teria que ser objeto de iniciativas que, ao enfrentarem as fontes de desigualdade nele localizadas, estimulem sua elevada capacidade de criar oportunidades de trabalho, porém, digno e qualificado. Uma estratégia nessa direção englobaria a ampliação da reforma agrária e a priorização da agricultura familiar e do agroextrativismo, combinadas com uma política de abastecimento alimentar que recupere equipamentos públicos e fortaleça os pequenos e médios empreendimentos que produzem e comercializam alimentos. As contribuições do enfoque da SAN na formatação de uma tal estratégia é um exemplo forte de como esse objetivo pode integrar os eixos orientadores do desenvolvimento de um país. Modelos agrícolas excludentes e insustentáveis são fatores de insegurança alimentar. Para uma parcela da população, a posse de ativos e o acesso aos recursos naturais constituem condicionantes principais da sua capacidade de acessar os alimentos. No caso das famílias rurais, um grande número delas não tem acesso à terra com extensão suficiente e 117

de boa qualidade, aos recursos naturais de onde extraem seu sustento ou então se enquadram como agricultores sem terra; a falta de regularização da propriedade aparece como outro fator limitante. Na região do semiárido, acrescentam-se as dificuldades permanentes de acesso à água. Portanto, a elevada concentração fundiária e as restrições no acesso aos recursos naturais, agravadas pela já referida queda dos preços agrícolas, comprometem o resultado econômico da atividade das unidades familiares rurais. Essas famílias têm enfrentado, também, restrições num componente fundamental para sua condição de vida que é a produção de alimentos para o autoconsumo. Antes considerada um sinal de atraso, uma antítese da modernização da agricultura, ela constitui elemento-chave para o acesso a uma alimentação segura em face das flutuações da renda monetária própria da atividade agrícola, e também a alimentos saudáveis oriundos de cultivos onde, raramente, são aplicados agrotóxicos11. Atente-se para a associação entre os objetivos da SAN, equidade social e sustentabilidade ambiental. O enfoque da sustentabilidade nos diz que as relações das sociedades com a natureza podem comprometer as condições em que os recursos naturais estarão disponíveis para as gerações futuras. Contudo, é comum utilizar a segurança alimentar (como food security) para defender modelos produtivistas insustentáveis. “É preciso produzir mais para acabar com a

11. A produção para autoconsumo permite às famílias rurais atenderem uma necessidade constante apesar da variação sazonal de sua renda monetária, e disporem de um padrão alimentar superior em relação às famílias urbanas com renda semelhante (LEITE, 2004). 118

fome”, diziam os defensores da “revolução verde” baseada na mecanização e em insumos químicos. De fato, a produção agroalimentar cresceu muito, mas a insegurança alimentar, sob a forma da fome e da má alimentação, seguiu presente em proporções significativas, agora, acompanhada da degradação ambiental. A pobreza e a fome podem se configurar em grandes elementos de pressão ambiental, gerando um círculo vicioso de carência alimentar e degradação ambiental, levando autores a proporem um enfoque de sustentabilidade alimentar. Retórica semelhante vem sendo usada para justificar a utilização dos “transgênicos”, aqui incluídos entre os fatores de insegurança alimentar. Os organismos geneticamente modificados (OGMs) são apresentados como panaceia para uma suposta insuficiência na produção agroalimentar e também como benéficos ao meio ambiente por reduzirem o uso de agroquímicos. No entanto, eles são fonte de preocupações dos consumidores com os impactos ambientais e de saúde, bem como de temores dos países em desenvolvimento com a erosão de seus recursos genéticos vegetais seja pela contaminação do habitat pelas plantas transgênicas, seja pela expropriação dos direitos dos produtores de plantarem suas próprias sementes e conservarem as variedades locais. A adoção do princípio da precaução, em face dos riscos já identificados e também dos que ainda se desconhece, a implementação de protocolos de segregação de cultivos e a rotulagem obrigatória dos produtos transgênicos são algumas das referências que se contrapõem à liberação não regulada da comercialização de OGMs pela qual pressionam a grande indústria e boa parte dos representantes do agronegócio no Brasil (PESSANHA & WILKINSON, 2005).

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Elementos da Agenda Brasileira de Segurança Alimentar e Nutricional

A construção da agenda Se olharmos para as décadas de 1980 e 1990, constataremos que os sucessivos governos brasileiros abdicaram da perspectiva de construir uma Política Nacional de SAN, chegando mesmo a desmontar instrumentos de política que, revisados, poderiam vir a atuar nessa direção. Isto se verificou tanto nas áreas relacionadas com a produção de alimentos e regulação de mercados quanto na saúde e nutrição, para não mencionar a persistência de elevados índices de pobreza e desigualdade. Considero, porém, que está em curso, desde 2003, a construção de uma agenda de SAN no Brasil simultânea à implementação ou reorientação de ações e programas voltados para a questão alimentar nas três esferas de governo, ainda que nem sempre fazendo uso daquela noção. A construção dessa agenda está se dando por três vias principais. A primeira, com maior amplitude temática e representação social, corresponde às iniciativas no âmbito dos Conseas de transformar as diretrizes aprovadas nas Conferências de SAN (nacional, estaduais e municipais) em propostas de ações e programas públicos; um novo mo-

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mento de grande significado nessa construção é o processo em curso que culminará na III Conferência Nacional, em maio de 2007. A segunda via, em diálogo com a anterior, refere-se à evolução do Fome Zero e dos vários programas na área dos alimentos e da alimentação do governo federal e demais esferas de governo. A terceira via congrega múltiplas iniciativas na área alimentar e nutricional oriundas das organizações da sociedade civil, dos movimentos e redes sociais – onde se destaca o Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional (FBSAN) e seus correspondentes estaduais e municipais. Boa parte das iniciativas não governamentais e demandas dos movimentos sociais conflui para os espaços dos conselhos ou se articula com os programas públicos. É preciso mencionar o recente crescimento das pesquisas acadêmicas e levantamentos estatísticos sobre as várias dimensões da SAN. Para ficar dentro dos marcos de um livro introdutório, abordarei os principais elementos dessa agenda cuja conversão numa Política Nacional de SAN, ainda indisponível, supõe que ela se torne uma política de Estado e não apenas congregue ações deste ou daquele governo. Iniciando pelas diretrizes e princípios da almejada Política Nacional de SAN, detalho a seguir alguns dos seus componentes e concluo com a institucionalização dessa perspectiva no Sistema Nacional de SAN criado pela recém-sancionada Lei Orgânica. Diretrizes e princípios da Política Nacional de SAN Valho-me das definições consagradas na Lei Orgânica da SAN para apresentar as diretrizes e princípios que devem orientar uma Política Nacional de SAN, sem me ater ao texto da lei. As diretrizes gerais da política são: 121

a) Adotar a ótica da promoção do direito humano à alimentação adequada e saudável, colocando a SAN como objetivo estratégico e permanente associado à soberania alimentar. b) Assegurar o acesso universal e permanente a alimentos de qualidade, prioritariamente, através da geração de trabalho e renda, regulando as condições em que os alimentos são disponibilizados à população e contemplando ações educativas em SAN. c) Promover a produção rural e urbana e a comercialização de alimentos realizadas em bases socialmente equitativas, ambientalmente sustentáveis e culturalmente adequadas, com ênfase na agricultura familiar baseada na agroecologia. d) Buscar a transversalidade das ações através de planos articulados intersetorialmente e com participação social equitativa, e apoiar as iniciativas não governamentais. e) Respeitar a equidade de gênero e étnica, reconhecendo a diversidade e valorizando as culturas alimentares. f) Reconhecer a água como alimento essencial e patrimônio público. A formulação, implementação e monitoramento da política deveria promover cinco princípios. Primeiro, a intersetorialidade das ações e programas por meio de espaços e mecanismos institucionais de aproximação entre os diversos setores de governo e destes com as organizações da sociedade civil. Portanto, a política de SAN é abrangente e tem caráter suprassetorial, incorpora ou aproxima diferentes dimensões, formula programas integrados e prevê mecanismos de distribuição dos recursos entre os setores. A radica122

lidade requerida para enfrentar as causas geradoras de insegurança alimentar e nutricional em segmentos significativos da população demanda mais do que ações fragmentadas e programas setoriais, ainda que possam resultar na melhoria gradativa dos indicadores sociais e de saúde, como alertei na Introdução. Segundo, ações conjuntas entre Estado e sociedade, significando a participação social na formulação, implementação e monitoramento de políticas públicas nas diferentes fases da cadeia alimentar e em todas as esferas de governo (nacional, estadual e municipal), assegurando qualidade e fluxo das informações, e mecanismos de responsabilização dos gestores e demais atores sociais. Terceiro, equidade no acesso à alimentação adequada, bem como na formulação e implementação de ações, considerando os processos sociais e as formas de interação entre os atores sociais que geram ou reforçam desigualdades de qualquer tipo, com adequação e transparência dos critérios de elegibilidade e seletividade das ações e intervenções propostas. Quarto, articulação entre ações estruturantes e medidas emergenciais, conjugando medidas diretas e imediatas de garantia de acesso à alimentação adequada com ações que ampliem a capacidade de subsistência autônoma da população. Quinto, descentralização das ações e articulação entre orçamento e gestão, estabelecendo os papéis e atribuições das esferas de governo, prevendo arenas e mecanismos de integração intergovernamental e com as organizações sociais, bem como mecanismos de continuidade das ações. Essas diretrizes e princípios orientaram os esforços para conferir sentido e organicidade as 153 propostas de ação aprovadas pela II Conferência Nacional de SAN (2004), durante a recente avaliação das ações do governo federal pro123

movida pelo Consea (2006) e, especialmente, para a definição das prioridades de uma futura Política Nacional de SAN a serem deliberadas na III Conferência Nacional em 2007 (detalhes no sítio do conselho na internet). Política econômica e políticas setoriais Afirmei, antes, que o principal desafio no futuro próximo é converter a SAN em objeto de uma política de Estado e, como tal, um dos eixos ordenadores das estratégias de desenvolvimento em vários âmbitos (internacional, nacional, regional e local) articulado com a sustentabilidade ambiental e equidade social. A conexão entre o objetivo da SAN e estratégias de desenvolvimento, peculiar ao enfoque brasileiro, visou retirá-lo do campo das políticas meramente compensatórias ou setoriais, embora faça uso de ambas. Se o padrão de desenvolvimento econômico dominante compromete a soberania e a Segurança Alimentar e Nutricional do país, é claro que a contraposição a ele se faz na adoção de estratégias que coloquem a SAN como objetivo de busca permanente que não se conclui ao atingir uma ou mais metas. Mesmo a perspectiva de “zerar a fome” só faz sentido com a presença permanente de instrumentos que compensem a inesgotável capacidade de gerar desigualdade do capitalismo. É fácil deduzir que essa pretensão traz consigo tensões e conflitos com os interesses que sustentam o padrão de desenvolvimento dominante no Brasil, injusto e insustentável. Em sentido inverso, porém, o potencial oferecido pelo enfoque da SAN na reorientação de estratégias fica evidente no fato de que boa parte das iniciativas, programas e projetos que se contrapõem ao referido padrão têm relação, 124

direta ou indireta, com os alimentos e a alimentação. O embate entre alternativas nesse plano mais geral leva o movimento social pela SAN no Brasil a engrossar o coro dos que demandam modificações na política econômica em vigor desde o início dos anos 1990. O atual modelo de gestão da economia e das contas públicas atende prioritariamente os setores do grande capital que lhe dão sustentação e limita as possibilidades de tratar dos fatores que condicionam o acesso aos alimentos e a sua produção em bases equitativas e sustentáveis. Fica também inibida a introdução de instrumentos inovadores de política pública. Entre seus efeitos está o pífio crescimento da produção e das oportunidades de trabalho, a lenta redução da desigualdade de renda, o apoio ao modelo agroexportador concentrador e danoso ao meio ambiente e a timidez da reforma agrária; ao mesmo tempo em que persiste a drenagem de vultuosos recursos para a especulação financeira nacional e internacional sob a forma do pagamento das dívidas interna e externa. Tão importantes quanto os efeitos diretos da política econômica são suas repercussões sobre as chamadas políticas setoriais (específicas para os diferentes setores de atividade) e sociais (dirigidas para a desigualdade social). A importância dessas políticas viu-se reforçada porque o crescimento econômico deixou, há muito, de ser sinônimo de geração de emprego e de melhoria nas condições de vida da população. A taxa de crescimento da economia é incapaz de sintetizar os objetivos da gestão econômica, como se acreditou no passado e ainda se repete em nossos dias, demandando maior interação entre a política econômica e as políticas setoriais e sociais, entre outras. Contudo, essas políticas são constrangidas por um contexto em que seu sig125

nificado real limita-se quase sempre à condição de atenuante das mazelas geradas pela lógica econômica hegemônica. Este é o risco que correm os programas de transferência de renda (como o atual Programa Bolsa Família) e outras formas de suplementação, por mais significativos que sejam os benefícios que proporcionam. Acordos internacionais e soberania A incorporação de considerações de SAN nas negociações internacionais nas várias áreas (comércio, investimentos, propriedade intelectual, biodiversidade, etc.) coloca, de um lado, desafios conceituais, pois se trata de introduzir critérios não comerciais em acordos dominados pela lógica mercantil e também de adotar uma concepção de soberania alimentar que não comprometa a soberania de outros países. Por outro lado, como é de se esperar, esse tipo de enfoque conflita com interesses econômicos nacionais e internacionais de difícil transposição. Contudo, formular proposições nesse sentido adquire relevância quando se considera o importante papel desempenhado pelo Brasil nas negociações internacionais, por mais ambíguo que ele possa ser. Esta ambiguidade advém do fato do país reunir três condições: i) grande e agressivo exportador agrícola que pressiona por abertura dos mercados ao comércio, incluindo o seu próprio; ii) portador de elevada desigualdade no mundo rural, demandando promoção e proteção da agricultura da base familiar; iii) propositor ativo de ações internacionais para o enfrentamento da fome e da pobreza. A retórica livre-cambista dos acordos comerciais reduz os bens (inclusive os alimentos) à condição de mercadorias e supõe benefícios compartilhados por todos os países quan126

do o comércio é livre, o que é altamente questionável. Nos termos usados nos acordos, os enfrentamentos para estabelecer exceções à regra da liberação se localizam, de um lado, na adoção de “considerações não comerciais” que contemplem as especificidades produtivas e sociais da agricultura e, de outro, na concessão de tratamento especial e diferenciado para os países em desenvolvimento pelas “necessidades em matéria de desenvolvimento, incluindo a segurança alimentar e o desenvolvimento rural”. Em documento aprovado pelo Consea, em 2005, sugeriu-se identificar os “produtos especiais” criados pela atual rodada de negociações segundo critérios de SAN próprios a cada país, isto é, conforme sua importância na dieta alimentar da maioria da população e na geração de renda dos pequenos agricultores; o mesmo documento propôs desenvolver o “mecanismo das salvaguardas especiais” para fazer face às ameaças à SAN colocadas pelo comércio internacional. As considerações de SAN nas negociações internacionais dizem respeito também ao acesso aos recursos naturais, à proteção do meio ambiente e do patrimônio natural, da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais. No caso, a imposição de negociações “cruzadas” pelos países desenvolvidos leva-os a vincular eventuais concessões feitas aos países em desenvolvimento nos acordos sobre agricultura, à obtenção de concessões em áreas que lhes são vantajosas (propriedade intelectual, prestação de serviços, proteção de investimentos e acesso às compras governamentais) ou mais delicadas (Protocolo de Kyoto sobre meio ambiente). Por fim, fazem parte desse item da agenda os já referidos compromissos internacionais de redução da fome e da pobreza, e a implementação das Diretrizes Voluntárias do Direito Humano à Alimentação. 127

Acesso aos alimentos, renda e preços Vimos que o principal condicionante da SAN é a capacidade de acesso aos alimentos pela população, e que o acesso deve ser a alimentos saudáveis em termos nutricionais e adequados desde a ótica ambiental e cultural. No tocante à capacidade de acesso, a agenda de SAN engloba, como questões permanentes, a geração de emprego e a criação de oportunidades de trabalho digno, inclusive quanto ao nível de remuneração, fatores cruciais no contexto brasileiro de elevada desigualdade social e extensa pobreza absoluta. A propósito, ganha importância a associação entre promoção da SAN e o estímulo às diversas relações de trabalho sob a ótica da economia popular e solidária, não raro em atividades diretamente relacionadas com os alimentos e alimentação. A SAN ajusta-se, plenamente, a outros princípios de coordenação (reciprocidade, solidariedade e redistribuição) e às formas de organização das atividades baseadas na autogestão, associativismo e troca sem objetivos econômicos (REIS, 2005). O enfoque da SAN contribui em, pelo menos, dois aspectos para a revisão das políticas gerais que afetam o nível dos salários e os preços dos alimentos. O primeiro refere-se à regulamentação do salário mínimo estabelecida pela Constituição Federal em 1988. Estudos e estatísticas têm comprovado a importância da recuperação do valor do salário mínimo para a recente redução da desigualdade social no Brasil e, inversamente, como sua desvalorização contribuiu para preservar a iniquidade social que marca nossa história. A conceituação do salário mínimo e a fixação do seu valor monetário partem de uma dada “cesta de alimentos” cujo significado está longe de ser óbvio com a diluição das

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referências usuais que davam sentido ao que seriam “alimentos básicos”, a saber: produtos pouco elaborados (salvo algumas exceções, já quase não se comercializam produtos in natura e a granel); bens essenciais à reprodução biológica, aspecto questionado por preceitos nutricionais (resistências ao leite bovino, ênfase em micronutrientes, etc.) e, sobretudo, pelo impacto da dimensão simbólica associada ao consumo alimentar; bens de consumo massivo, classificação dificultada pelas mudanças nos hábitos alimentares, pela diferenciação da produção e valorização da diversidade cultural e territorial, alterações que interferiram na composição da dieta, até mesmo na combinação nacional tradicional “feijão com arroz”. Porém, ao menos dois critérios gerais subsistem para a definição de uma cesta básica de alimentos: (i) ela deve fornecer uma dieta saudável e respeitar a diversidade de hábitos alimentares por razões culturais e ambientais; (ii) seu custo deve absorver uma parcela da renda familiar que não comprometa o acesso aos demais componentes de uma vida digna. Este último ponto nos obriga a retomar a relação entre renda monetária e preço dos alimentos, analisada na seção anterior. Vimos ser necessário desagregar a análise dos preços segundo os tipos de produtos, os estratos de renda da população e em termos espaciais ou territoriais, implicando combinar formas igualmente distintas de atuação das políticas públicas neste aspecto. Como condição geral, porém, elas supõem recuperar a abandonada perspectiva de regulação pública dos mercados, hoje, quase que exclusivamente sob regulação privada, e atuar não apenas nas questões dos preços e da inocuidade do consumo, mas também na indução de hábitos de consumo e na promoção de formas equitativas e sustentáveis de produção e comercialização de alimentos. 129

Para o grande contingente com renda mais baixa é preciso ir mais além no sentido de favorecer o acesso e reduzir o custo relativo da alimentação por meio tanto da elevação real das suas rendas (salário mínimo e outras) quanto do barateamento relativo dos alimentos que compram, dado o elevado grau de mútua determinação entre o poder aquisitivo das rendas do trabalho e os preços dos alimentos. No Brasil, como em outras partes, o mais comum é que o barateamento dos alimentos básicos seja obtido à custa da renda dos pequenos agricultores em face das fortes barreiras à recuperação das rendas do trabalho. Em direção contrária atuariam as ações no campo das políticas de abastecimento alimentar, descentralizadas e que apoiem, diferenciadamente, a agricultura familiar em relação à agricultura de tipo patronal. Abastecimento alimentar Os princípios orientadores da SAN requerem o exercício soberano de políticas de abastecimento que se sobreponham às lógicas privadas estritamente mercantis, razão pela qual o Consea buscou reunir todos esses elementos numa proposta de política nacional de abastecimento alimentar disponível na internet, no sítio do conselho. Ela vai na direção contrária das opções dos governos brasileiros que, ao liberalizar o comércio exterior e desregulamentar a economia, retiraram do Estado os principais instrumentos por meio dos quais exerce seu papel regulador da produção, processamento, distribuição e consumo de alimentos. As ações e programas de abastecimento alimentar podem constituir elemento nuclear para a política de SAN nas três esferas de governo, desde que combinem seu objetivo 130

precípuo de ampliar o acesso dos diversos segmentos da população a alimentos de qualidade, com a promoção de uma alimentação adequada e saudável, a valorização das formas socialmente equitativas e ambientalmente sustentáveis de produção e comercialização de alimentos e a proteção e estímulo à diversidade de hábitos alimentares. Assim, a localização das atividades de abastecimento alimentar mediando as relações entre produção e consumo, ademais de estratégica, obriga a adoção de um enfoque sistêmico na forma de sistemas de abastecimento integrados ao Sistema de SAN, de modo a articular os setores e esferas de governo e a sociedade civil afetos aos diversos aspectos do abastecimento alimentar. Vários são os desafios para retomar, em novas bases, o papel do Estado e a participação social nas questões relacionadas com o abastecimento. Em lugar dos incentivos oferecidos, desde a década de 1970, às cadeias integradas desde a grande produção agrícola monocultora até as unidades de distribuição de grande porte (redes de supermercados), trata-se de conferir prioridade nas ações públicas aos pequenos e médios empreendimentos rurais e urbanos, com estratégias descentralizadas e diferenciadas conforme se refiram às realidades das regiões metropolitanas e dos pequenos e médios municípios. Além de socialmente justa, a perspectiva de aproximar, sempre que possível, produtores e consumidores de alimentos gera ganhos pecuniários evidentes para ambos, reduz gastos com transporte e, igualmente relevante, favorece a obtenção de alimentos de qualidade com menor grau de processamento e a diversificação dos hábitos de consumo. O apoio aos circuitos regionais de produção e distribuição de alimentos, frente aos mercados integrados nacionalmente, pode também se articular com a promo-

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ção do desenvolvimento rural ou territorial, com ênfase na geração de trabalho e renda para os pequenos agricultores e na valorização dos produtos regionais diferenciados, bem como com a promoção de formas de economia popular e solidária. As esferas de governo estadual e municipal defrontam-se com a necessidade de implantar ou revitalizar os espaços e equipamentos públicos de comercialização, muitos deles em situação de deterioração funcional e gerencial, para fazer face às deformações nos sistemas locais de abastecimento dominados pela lógica privada. O chamado mercado institucional, que compreende as compras de alimentos para programas governamentais como o da alimentação escolar, representa uma parcela expressiva da demanda e pode também cumprir papel destacado na dinamização da produção de alimentos de pequena e média escala e, portanto, integrar estratégias de desenvolvimento em âmbito local. Agricultura familiar, reforma agrária e modelos sustentáveis A agricultura realizada em bases familiares possui duas peculiaridades. Ela possibilita, por um lado, a ocupação socialmente equitativa do espaço agrário e favorece a valorização das dimensões social, ambiental e cultural da produção agroalimentar, como é próprio do enfoque da SAN. As atividades agroalimentares de pequena escala são, ao mesmo tempo, grandes geradoras de ocupação e de renda e ofertantes de alimentos de qualidade e diversificados, tornando-as componente central de estratégias de desenvolvimento com equidade social e SAN. Por outro lado, as famílias rurais reú132

nem, em sua maioria, a condição de agricultores ofertantes de alimentos com a de pobres com acesso insuficiente aos alimentos, de modo que a promoção dessas famílias enfrenta, simultaneamente, os dois lados da equação da SAN como 12 foi há muito percebido por Amartya Sen . Portanto, a questão da agricultura familiar deve ser abordada tanto pelo ângulo de garantir a essas famílias o acesso a alimentos suficientes e de qualidade quanto pensar sua contribuição para o provimento da sociedade de produtos agroalimentares com os mesmos requisitos de suficiência e qualidade. Valorizar esse papel da agricultura familiar implica enfrentar a mencionada questão dos preços agrícolas decrescentes combinada com estratégias de agregação de valor aos produtos agrícolas pelos próprios agricultores, sem desconhecer que as famílias rurais são pluriativas e recorrem a diversas atividades agrícolas e não agrícolas para sua reprodução econômica. Note-se que a extensão da previdência social para essa parcela da população, além de instrumento de cidadania e de promoção das condições de vida, tornou-se fonte de recursos que viabiliza investimentos essenciais nos estabelecimentos familiares. As características apontadas ficam ainda mais evidentes no caso da reforma agrária. Ela representa a colocação produtiva (por meio do assentamento) de famílias sem acesso suficiente aos meios de produção, oferecendo a possibilidade de cultivo para autoconsumo a quem, não raro, dependia da doação de cestas de alimentos. A produção agroalimentar 12. Para Sen, a produção de alimentos é, ao mesmo tempo, fonte de renda e intitulamento (entitlement) dos indivíduos e fonte de oferta da mercadoria vital para a sociedade. 133

oriunda dos assentamentos, por sua vez, pode cumprir papel relevante numa estratégia de SAN, desde que disponham de assistência técnica e apoio creditício e comercial. As experiências do Brasil (pela negação) e de muitos países (pela afirmação) permitem sustentar que a reforma agrária, se ampla e acompanhada de instrumentos adequados, é essencial para redefinir a estratégia de desenvolvimento de um país, ao mesmo tempo em que o enfoque de SAN contribui para atualizar o significado da reforma agrária. O Plano de Safra da Agricultura Familiar no Brasil, impulsionado pelo Consea em 2003, é um bom exemplo de apoio diferenciado. Em contraste com os planos convencionais voltados essencialmente para a grande produção, essa nova perspectiva levou à ampliação e diversificação das linhas de crédito (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar/Pronaf) e, principalmente, inovou ao criar o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA), com vistas a ligar o aumento da demanda por alimentos impulsionado pelos programas públicos (o Fome Zero entre eles), à produção da agricultura familiar carente de mercados, incluindo os assentamentos de reforma agrária. O enfoque aqui apresentado diferencia-se, radicalmente, daquele que considera suficiente contar com a eficiência produtiva do sistema agroalimentar e do chamado “agronegócio”, medida pela disponibilidade física de bens a baixos preços. É fato que o Brasil apresenta, há décadas, indicadores de disponibilidade agregada de alimentos na faixa de 3.000kcal/pessoa/dia (convertendo a produção agropecuária em calorias equivalentes), bastante acima do

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mínimo de 1.900kcal recomendado pela FAO. Ocorre, porém, que o modelo de produção agrícola que fundamenta essa visão dá origem a conflitos entre estratégias produtivistas de segurança alimentar e o meio ambiente, pois pressiona a base de recursos naturais, além dos seus impactos sociais que engrossam o êxodo rural e o desemprego urbano. Não se trata de “escolher entre fome e destruição do meio ambiente”, mas sim de optar pelo desenvolvimento sustentável com modelos de produção e também consumo igualmente sustentáveis. Fazem parte desse item da agenda as questões relativas à introdução de OGMs (antes abordada) e ao acesso a recursos genéticos e proteção dos conhecimentos tradicionais associados ao uso da biodiversidade. A apropriação desses recursos como fonte gratuita e privilegiada de matéria-prima nos países ricos em biodiversidade como o Brasil é responsável por grande parte do avanço da indústria da biotecnologia. Não por acaso o marco regulatório nacional sobre biodiversidade e recursos genéticos, os espaços de deliberação e a aplicação da legislação correspondente, assim como as convenções internacionais, tornaram-se objetos de atenção constante na agenda do Consea. A recente adoção do enfoque baseado em “direitos territoriais” difunde-se como referência para boa parte das demandas neste campo. Relacionada com o anterior, é necessário dar consequência à questão cada vez mais visível das condições em que vivem os povos indígenas e as comunidades rurais negras quilombolas, por meio da articulação dos diferentes programas a elas dirigidos de modo a preservar direitos

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culturais, o exercício de práticas comunitárias, a memória cultural e a identidade racial e étnica. Os diagnósticos sobre os fatores que mais afetam a SAN em ambos os casos apontam como condição central a garantia da terra nos aspectos da identificação, regularização-titulação, proteção e uso dos respectivos territórios – parte relevante na questão fundiária brasileira – acompanhada do fomento à produção, promoção dos conhecimentos tradicionais e respeito à diversidade cultural no tocante a práticas alimentares e estilos de vida saudáveis e culturalmente aceitos. Por fim, embora não se limite ao mundo rural e à produção agrícola, cabe destacar aqui a questão da água em termos do direito humano de acesso a um recurso vital e também em face do seu crescente reconhecimento como alimento essencial, compreensão de enorme relevância que se manifesta de maneira diferenciada nas várias regiões e ecossistemas. Ela conduz à consideração tanto dos problemas de escassez e contaminação da água quanto das práticas e políticas que levam a sua crescente mercantilização e oferta centralizada em direção oposta às experiências que promovem a oferta difusa da água para produção como as desenvolvidas por agricultores no semiárido. A II Conferência Nacional de SAN já havia indicado que a água fosse tratada como bem público e elemento de soberania alimentar, com uma demanda específica de uma política de convivência com o semiárido e a incorporação do Programa 1 Milhão de Cisternas como política pública (demanda que se concretizou). A III Conferência Nacional se debruçará novamente sobre essa questão, agora com a perspectiva de assegurar água de qualidade com acesso descentralizado, uso difuso para a produção e controle social sobre as políticas em face da crescente privatização dos recursos hídricos. 136

Complementação de renda e suplementação alimentar Os programas de transferência de renda, sob o impulso do Programa Bolsa Família, tornaram-se elemento de destaque na agenda nacional de SAN, especialmente pelo seu papel no combate imediato à fome e desnutrição. Esses programas, assim como aqueles que suplementam carências alimentares e nutricionais ou que atuam junto a grupos específicos, integram o universo das iniciativas comumente qualificadas como assistenciais ou de natureza compensatória, destinadas aos que não conseguem suprir, por meios próprios e adequadamente, suas necessidades alimentares e nutricionais. Eles sempre foram objeto de muita resistência por carregarem a pecha de apenas amenizarem os efeitos das situações de injustiça social, característica que, ademais, dificultaria o enfrentamento dos fatores causadores da injustiça e a promoção de cidadania. É fato também que programas assistenciais constituem campo propício para práticas populistas e demagógicas, além de darem margem para o desvio de recursos e para a corrupção. Assim, é comum o desconforto de lidar com estes programas e lhes atribuir a condição de ações provisórias: admite-se recorrer a tais instrumentos enquanto a situação social assim o exigir. Não obstante a justeza das preocupações, a necessidade desses programas é mais permanente do que gostamos de imaginar, dada a contínua geração de desigualdade e de pobreza pela sociedade capitalista, bastante acentuada no caso brasileiro; ao que se agrega o aspecto urgência, pois a alimentação insuficiente ou inadequada coloca em risco o direito elementar à vida. A ótica dos direitos permite modificar os termos dessa questão. O princípio do direito humano à alimentação que está na base da SAN exige que os programas de suplementação de renda ou alimentar se137

jam permanentes e com acesso universal, pois se trata de uma questão de cidadania, um requisito para assegurar direitos. Provisória deve ser a dependência de indivíduos e famílias que precisam recorrer aos programas de suplementação. Com essa perspectiva, as ações e programas compensatórios devem superar as formas pelas quais são, comumente, implementados, de modo a serem portadores de três elementos: a) emancipadores, visando promover a autonomia e não a dependência dos que a eles recorrem; b) organizativos, para ampliar a capacidade de superar a vulnerabilidade e defender os direitos de cidadania; c) educativos, em relação aos hábitos e práticas alimentares. A complementação de renda e as ações de suplementação alimentar devem ser não apenas adequadas em termos organizacionais e culturais, mas, simultaneamente, articular o assistencial com o estrutural no sentido de questionar os determinantes das situações de carência ao mesmo tempo em que atuam junto às populações atendidas visando apoiá-las na superação dessa condição. Com sentido análogo, as iniciativas e projetos oriundos das organizações da sociedade civil, que existem em grande número no campo assistencial, devem incorporar a perspectiva de gerar demandas por políticas públicas. O princípio que atribui à ação pública o papel de assegurar o direito à alimentação suficiente e adequada aplica-se mesmo, e principalmente, no caso dos programas focalizados em determinados grupos populacionais. A focalização dos programas públicos pode ser conveniente e atuar como elemento de discriminação positiva numa ótica de priorização, sem que essa orientação resulte no descompromisso com direitos universais e na redução do âmbito da ação do Estado. A necessidade de priorizar e diferenciar 138

instrumentos impõe-se em face da grande heterogeneidade social que marca o Brasil: há que definir prioridades e discriminar positivamente, tratando desigualmente os desiguais, combinando os programas assim orientados com ações universais que evitem o crescimento das necessidades dos grupos prioritários destes mesmos programas. Sem dúvida, o maior desses programas é o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), presente em quase todo o território nacional e que atende mais de 36 milhões de alunos, boa parte dos quais tem na alimentação oferecida pela escola sua principal refeição do dia. Almeja-se universalizar o programa para alunos da educação infantil, ensino fundamental, médio e educação de jovens e adultos. O enfoque da SAN potencializa a tendência de reformular o Pnae visando integrar os temas alimentares no processo pedagógico e sensibilizar os atores envolvidos para que a entendam como direito de cidadania; além de contribuir para efetivar a incorporação nos cardápios de produtos regionais, inclusive perecíveis. Porém, ainda falta uma legislação que defina as atribuições das diferentes esferas de governo de modo a comprometê-las com uma implementação do programa orientada por uma noção de cidadania das crianças por ele atendidas. É justamente na identificação de grupos populacionais com carências específicas e na atuação junto a eles que fica mais evidente a relevância das instâncias comunitárias e municipais para o desenho e implementação de ações e políticas de SAN. As situações emergenciais de carência alimentar repercutem diretamente sobre as administrações municipais e sobre as entidades assistenciais ou caritativas locais. Retomarei esse ponto adiante. 139

Por último, embora seja pequena a participação de empresas e entidades do setor privado em geral nesse campo, cabe registrar que ela se baseia na adesão espontânea, mesmo num programa institucionalizado de grande envergadura como o Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT), cuja implementação ainda carece de acompanhamento e avaliação desde a ótica da SAN. Consumo e consumidores Há marcantes diferenças entre os segmentos sociais no Brasil, estratificados segundo o nível de renda, no tocante à capacidade de acesso aos alimentos e aos hábitos alimentares. De modo geral, porém, as tendências do consumo alimentar revelam os problemas e riscos colocados pela conformação de um padrão alimentar que contrasta, em vários aspectos, com o que seria recomendável em termos de práticas alimentares saudáveis, ou ainda de um padrão de consumo sustentável. Sem com isto incorrer na imposição de preceitos nutricionais genéricos por sobre hábitos alimentares adquiridos, mesmo admitindo que estes são também passíveis de revisão. A questão essencial da educação para o consumo de alimentos é, normalmente, abordada desde dois pontos de vista. Um deles é o da educação alimentar e nutricional voltada para aprimorar hábitos, difundir noções de higiene e adequar a composição da dieta alimentar, de modo a prevenir doenças e deficiências. Outra abordagem refere-se à conscientização relativa aos direitos do consumidor, melhor ainda, dos direitos do cidadão. Pode-se acrescentar uma terceira abordagem voltada para a valorização dos aspectos sociais, ambientais e culturais envolvidos na produ140

ção e distribuição dos alimentos. Estas seriam as abordagens do que se poderia denominar “educação em SAN”, tão mais importante quando se considera o papel dos consumidores e organizações sociais como propulsoras de transformações na área de alimentos. A noção de consumo solidário e sustentável guarda proximidade com essa perspectiva. Analogamente, a aproximação entre produção familiar e consumo de alimentos, sugerida em várias seções do livro, contribuiria para a articulação mais estreita entre campo e cidade e ratificaria o papel dos consumidores de alimentos como promotores de modelos de desenvolvimento mais equitativos e sustentáveis. A articulação de entidades de consumidores, agricultores e outras organizações em campanha nacional contrária à utilização dos produtos transgênicos é um exemplo no sentido defensivo. Este ponto coloca em cena o(a) consumidor(a) de alimentos que, enquanto cidadão(ã), dispõe dos direitos do(a) consumidor(a), habitualmente, focados na segurança dos alimentos e protegidos por um conjunto de instâncias, normas e instrumentos. Cabe, contudo, avaliá-los no tocante à participação efetiva dos consumidores e suas entidades e aos impactos da fiscalização. Por exemplo, as normas e o modo de atuação dos organismos voltados para os aspectos sanitários podem levar à marginalização (por ilegais) ou exclusão (pelo fechamento) de pequenos e médios produtores urbanos e rurais de alimentos não adaptados às exigências legais. Adequar a legislação às condições destes produtores, sem comprometer a sanidade dos alimentos, bem como atuar promovendo e não apenas punindo, são procedimentos para evitar que a aplicação cega de uma legislação nem sempre adequada contribua para a concentração de atividades e da riqueza nelas gerada. 141

É digna de nota a iniciativa de incentivar o consumo de frutas, legumes e verduras, originalmente proposta pela Organização Mundial da Saúde no âmbito da “Estratégia Global para a Promoção da Alimentação Saudável, Atividade Física e Saúde”. Este objetivo, quando apropriado pelo Consea, deu origem a um rico debate sobre o conceito de alimentação adequada e saudável e sobre estratégias portadoras do enfoque intersetorial da SAN. Ao conceito foram incorporadas várias dimensões: direito humano; formas socialmente justas e sustentáveis; práticas alimentares adequadas; referenciais tradicionais locais; variedade e prazer; gênero e etnia. Quanto às estratégias visando a alimentação adequada e saudável, com ênfase no consumo de FLV, elas deveriam estar articuladas com: modelos agroecológicos de produção familiar; valorização da agrobiodiversidade; circuitos regionais que favoreçam os produtos próprios das regiões; padrões de consumo sustentáveis, com combate ao desperdício e aproveitamento integral dos alimentos; educação em SAN; resgate do patrimônio alimentar e das expressões dos aspectos simbólicos e culturais nas práticas e comportamentos alimentares. Chamei a atenção, em várias passagens, para a ênfase da SAN nos aspectos culturais associados aos alimentos e à alimentação – a comida, no dizer dos antropólogos e outros que se dedicam ao tema. Sem entrar em detalhes, limito-me a sugerir uma compreensão da natureza dinâmica das culturas alimentares (como em outras dimensões da vida humana) e dos aspectos positivos do intercâmbio entre elas, porém, sem desconhecer a necessidade de (re)construir uma visão de soberania alimentar, criar instrumentos de regulação dos mercados alimentares e proteger práticas e saberes, inclusive, em face dos riscos de perda do patri-

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mônio alimentar que compõe nossa cultura. Como em outras questões, nesta também se manifesta nossa elevada desigualdade social. Pelo lado da produção e distribuição dos alimentos, a dimensão cultural também está contida na perspectiva de promover os pequenos e médios empreendimentos urbanos e rurais, agentes potencialmente portadores de diversidade, em face da hegemonia da grande produção e distribuição. Pelo lado do consumo, ela implica atuar sobre a incorporação de novos hábitos alimentares pelos diferentes segmentos da população, em alguns casos por razões de custo dos produtos, e de uma maneira geral por influência da publicidade. Um Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional A abordagem dos principais componentes da agenda de SAN em construção no Brasil conflui, obrigatoriamente, para a futura instituição de um Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), prevista na referida Lei Orgânica da SAN. Embora recente, já é possível constatar as contribuições da abordagem sistêmica para dar conta da complexidade que o tema alimentar suscita, inclusive no aspecto da implementação de ações integradas. A utilização da perspectiva sistêmica para a SAN no Brasil caracteriza-se por mesclar o desenvolvimento conceitual com as exigências e ensinamentos derivados da aplicação prática de organização das ações de Estado brasileiro neste campo, como costuma ocorrer com noções que definem um objetivo de política pública. Assim, a apropriação da abordagem sistêmica acompanhou a formulação, pelo Consea, de uma proposta de Lei 143

Orgânica da Segurança Alimentar e Nutricional (Losan) instituindo o referido Sistema Nacional, conforme deliberação da II Conferência Nacional. Finalizada em outubro de 2005, a proposta foi encaminhada como projeto de lei pelo governo federal e obteve aprovação unânime em todas as instâncias pelas quais passou nas duas casas do Congresso Nacional, recebendo a aprovação final no plenário do Senado em setembro de 2006, ao que se seguiu a sanção pelo presidente da República. A lei encontra-se na etapa de regulamentação das instâncias do sistema nela previstas e de outros elementos requeridos para que se inicie o processo de implantação do sistema que deverá ser gradativo, como se verificou em outras áreas. A denominação “lei orgânica” reflete o propósito de organizar a ação do Estado nessa área na forma da instituição de um sistema, como ocorreu em outros setores de governo. A área da saúde é a mais antiga neste aspecto, tendo construído um sistema único (SUS) com base numa lei orgânica da própria área. A Assistência Social dispõe de uma lei orgânica (Loas), estando em fase de construção do sistema correspondente (Suas). A construção dos sistemas nas várias áreas obedece a processos gradativos, cujo ritmo é ditado pelo grau de compreensão do tema por parte dos atores sociais envolvidos e pelo aprendizado fornecido pela própria experiência de instituição do sistema respectivo. Claro que ambos os fatores se manifestam em contextos políticos que podem ser mais ou menos favoráveis ao avanço de cada sistema. No campo da SAN, a construção gradativa é ainda mais necessária em face, principalmente, do ineditismo da iniciativa de criar um sistema suprassetorial como exigido pela perspectiva da intersetorialidade das ações e programas pú144

blicos, num contexto de busca de reconhecimento público e de compreensão adequada do próprio objetivo da SAN. A instituição do sistema representa, de todo modo, alçar a problemática alimentar, isto é, os alimentos e a alimentação à inédita condição de elementos nucleares da vida social e das ações públicas. Ultrapassa os limites do livro detalhar as referências teóricas do enfoque sistêmico que fundamentaram a proposição, enquanto instrumental analítico e como princípio organizacional (BURLANDY et al., 2006). Nem caberia estabelecer elos mecânicos de transposição entre o referencial oriundo das teorias dos sistemas e a apropriação da abordagem sistêmica da SAN no Brasil feita pelos atores sociais – governamentais e não governamentais – mobilizados em torno da consecução desse objetivo. Basta registrar que a emergência do paradigma sistêmico está ligada à percepção de que há um conjunto importante de problemas que não podem ser entendidos e resolvidos isoladamente por serem problemas sistêmicos, isto é, interligados e interdependentes. Ao mesmo tempo, a identificação dos elementos que compõem um sistema determinado é feita com a perspectiva de potencializar os ganhos sinérgicos gerados pelas relações sistêmicas entre tais elementos. No caso, isto se faz por intermédio da institucionalização de um sistema de SAN que favoreça o aprofundamento das relações de interdependência e mútua determinação entre os fatores que atuam sobre a questão alimentar e condicionam o objetivo da SAN. Dois motivos principais justificam a adoção da abordagem sistêmica. Primeiro, a questão alimentar manifesta-se em distintas escalas – desde os indivíduos ou domicílios até o âmbito global –, as quais interagem entre si em diversos aspectos, dando ori145

gem a relações de determinação entre essas esferas. A condição alimentar de indivíduos ou famílias é afetada por fatores gerais como a evolução do emprego e da renda, enquanto que, na direção inversa, a condição alimentar do conjunto da população de um país pode ser alterada como resultado de ações desenvolvidas, localmente, junto a indivíduos ou famílias. Segundo, as questões alimentares e nutricionais envolvem, quase sempre, múltiplas dimensões a serem consideradas conjuntamente, sobretudo, para fins de diagnóstico e planejamento das ações. Dois exemplos: a condição nutricional das crianças não será adequadamente enfrentada apenas com procedimentos no âmbito dos serviços de saúde, sem que se tenha em conta a situação socioeconômica das respectivas famílias; a evolução dos hábitos de consumo reflete múltiplos e distintos determinantes como são as estratégias dos agentes econômicos envolvidos com as esferas da produção e distribuição dos bens, as raízes culturais e a dotação de recursos naturais. Portanto, dado o suposto que a realidade tem natureza sistêmica, a operacionalização dessa abordagem se faz pela identificação e atuação sobre os componentes do sistema correspondente. Vale dizer, a perspectiva é de “caracterizar e promover” sistemas de formulação, implementação e monitoramento de ações e políticas públicas de SAN. Isto quer dizer que os componentes do Sisan compreendem tanto relações e processos já existentes na realidade quanto aqueles a serem promovidos seguindo os princípios da política SAN antes expostos. Assim, a formatação do sistema é um processo gradativo em que o marco institucional ganhará substância na medida em que suas instâncias avancem na formulação e colocação em prática da política de SAN. 146

Para caracterizar um sistema é requerida a presença de, pelo menos, dois elementos: (i) fluxos de interdependência entre as partes que o compõem; (ii) mecanismos de coordenação entre os componentes do sistema em questão. Ambos os elementos estão presentes no enfoque de SAN em construção no Brasil. A interdependência entre as partes do sistema está contida, conceitualmente, no próprio enfoque de SAN que se define como intersetorial e, portanto, busca a correspondente integração das ações. Em termos operacionais, tais ações dariam origem a fluxos de interdependência resultantes de decisões integradas envolvendo mais de um setor de governo ou agente social e acarretando operações conjuntas. Vejamos melhor o funcionamento das dinâmicas sistêmicas. Elas englobam fatores endógenos (internos) e exógenos (externos) ao sistema respectivo. A ação dos fatores endógenos leva à construção de relações simbióticas e interações que devem ser apreendidas e promovidas na formulação de programas integrados (intersetoriais) nas várias esferas (nacional, estadual ou municipal) como parte da própria construção do sistema. Por exemplo, o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar envolve diversos setores do governo federal, promove a interação entre as organizações de agricultores e os gestores locais dos programas alimentares que recebem os alimentos adquiridos (alimentação escolar e outros), podendo ainda dar origem a dinâmicas que vão além da mera transferência de produtos do campo para as escolas ou entidades atendidas. Já a ação dos fatores exógenos gera reflexos sobre um dado sistema no sentido de que seu impacto total não se limita ao componente do conjunto sistêmico diretamente afetado por ele, mas inclui também os efeitos indiretos gerados 147

através desse componente. Considerar tais reflexos é importante para bem avaliar a extensão de uma dada ação externa sobre um sistema de SAN. Dois exemplos: os impactos de uma orientação de política econômica sobre a renda e o emprego nas várias localidades, afetando o acesso aos alimentos de suas populações e também as possibilidades de mercado para pequenos produtores; ou então os estímulos ao comércio local derivados da transferência de renda para as famílias atendidas pelo Programa Bolsa Família. Quanto ao segundo elemento do sistema que corresponde aos mecanismos de coordenação, o processo de apropriação da SAN, no Brasil, levou à instituição de um mecanismo principal de coordenação que são os Conselhos de Segurança Alimentar e Nutricional (Conseas). Esses conselhos constituem espaços intersetoriais de concertação (diálogo e pactuação) entre os vários agentes envolvidos – setores governamentais e entidades não governamentais – com vistas a propor ações integradas e promover a participação social. Nos termos da Lei Orgânica, o Sistema Nacional de SAN contaria com as seguintes instâncias de coordenação: (a) Conferências Nacionais de SAN periódicas que indicam as diretrizes da Política Nacional de SAN e avaliam o Sistema Nacional; (b) Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional a quem compete transformar as diretrizes indicadas pela conferência em propostas para a Política Nacional de SAN; (c) Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional, formada pelos setores de governo integrantes do Consea com a atribuição de formular e implementar a política e o plano nacional de SAN. Com relação à natureza ou tipo de sistema mais adequado para promover a SAN, a abrangência do enfoque e a valorização da intersetorialidade das ações permite-nos ca148

racterizar o Sisan como um sistema aberto em função do seu propósito de organizar e monitorar ações e programas de diversos setores governamentais e não governamentais, articulando-os numa política de SAN. Isto implica que o Sisan deverá sugerir diretrizes de política e propor ações integradas para participantes de outros sistemas ou processos decisórios, como são os casos, entre outros, da saúde (SUS), alimentação escolar (Pnae) e apoio à agricultura familiar (Pronaf). Em contraste, os sistemas fechados são aqueles que conduzem políticas ou programas próprios, quase sempre setoriais, com recursos geridos no interior do próprio sistema; o SUS se enquadra na categoria de sistema fechado embora interaja com outros sistemas ou setores de governo. Assim, o Sisan possui interfaces com sistemas associados – aqueles cuja abrangência coincide, parcialmente, com sua área de atuação própria – além de ele próprio ser composto de subsistemas. Três fatores incidem nesse aspecto: a) A natureza da atividade ou da ação: há componentes do sistema que demandam um subconjunto articulado de instrumentos ou ações (circuitos produtivos e comerciais, sistemas de abastecimento alimentar, sistemas de indicadores e monitoramento das condições nutricionais, etc.). b) Os programas públicos permanentes: a descentralização da maioria desses programas leva à formação de subsistemas estaduais e municipais, alguns deles integrando sistemas associados ao Sisan (saúde, alimentação escolar, agricultura familiar e outros) com esferas próprias de decisão.

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c) Os atores e movimentos sociais envolvidos: suas variadas formas de organização (redes sociais de solidariedade, associações de vários tipos, entidades, etc.) geram processos e dinâmicas eventualmente articuladas, cuja amplitude de atuação pode ir além da esfera própria da SAN. Ser um sistema aberto implica que o Sistema de SAN tem um limitado grau de autonomia (autossuficiência) em relação ao contexto político-institucional em que está inserido, se comparado a um sistema fechado, em virtude das interfaces que mantém com os sistemas a ele associados (com suas respectivas arenas e processos decisórios). Fica evidente que a dinâmica de funcionamento do Sisan envolve processos decisórios mais complexos, requerendo representação diversificada em seus espaços próprios de coordenação (Consea), acompanhada de procedimentos para construir entendimentos e ações conjuntas pautadas pelo respeito à autonomia dos diversos processos decisórios e sem hierarquias outras que a prioridade do objetivo a ser buscado conjuntamente, a saber, a promoção da SAN. Por exemplo, ao promover a integração entre os programas de apoio à agricultura familiar e de alimentação escolar, ou entre programas sociais de transferência de renda e os de geração de trabalho e renda, o Sisan faria interagir vários processos decisórios – o seu próprio e os das duas áreas em questão. Subjacente a essa complexidade está o requisito da habilitação dos atores sociais e técnicos envolvidos, seja quanto à apropriação do enfoque, seja para construir capacidades na formulação de propostas integradas de políticas públicas. Sobre a participação no Sisan das organizações sociais, da iniciativa privada e das demais instituições públicas além da administração direta, a Losan estabelece que ela se dará 150

por adesão voluntária, tendo como critério o comprometimento com os objetivos e princípios do sistema. Já com relação à capacidade do sistema atuar sobre elas ou regular seu funcionamento, ela dependerá da recuperação ou aperfeiçoamento da capacidade de regulação e intervenção pública nos mecanismos privados que afetam a SAN. O objetivo da SAN, por sua própria natureza, confere papel central à atuação do Estado na formatação do Sisan, ainda que atribua relevância às ações igualmente públicas originadas das organizações da sociedade civil. As políticas e programas são implementados, fundamentalmente, através das unidades político-administrativas que compõem a federação (União, Estados e Municípios). Assim, a Lei Orgânica indica que a formatação do Sistema Nacional a ser iniciada no âmbito federal seja acompanhada da instituição de sistemas nas esferas estadual e municipal, compreendendo instâncias análogas às sugeridas para a esfera federal. Assim, propõe a realização de conferências e a instituição de conselhos e de câmaras intersetoriais também nas esferas estadual e municipal. As dinâmicas sociais e políticas diferenciadas nas três esferas de governo no Brasil resultaram num processo peculiar de instituição do Sistema Nacional de SAN, de modo que a formulação e aprovação da lei federal foi acompanhada da proposição de leis orgânicas em vários estados, algumas inclusive já aprovadas. Esse processo não compromete, porém torna mais complexa a inserção dos sistemas estaduais ou municipais num sistema nacional que envolve interação e cooperação entre as três esferas de governo. Além disso, há atribuições específicas de Estados e Municípios a serem contempladas pelos respectivos sistemas. 151

Ações e políticas nas esferas estadual e municipal As questões alimentares e nutricionais têm natureza distinta nos vários níveis de abrangência, implicando papéis e instrumentos específicos a cada esfera de governo, ao mesmo tempo em que deve haver uma interação entre elas. As ações numa esfera contribuem para o enfrentamento das questões em outra esfera ou condicionam sua eficácia. De um lado, as orientações adotadas nos planos internacional e nacional bem como os resultados neles alcançados afetam ou condicionam a eficácia das ações nos âmbitos estadual e municipal. De outro lado, e em sentido inverso, há várias questões de SAN próprias dos planos estadual, municipal, comunitário e mesmo domiciliar, cujos resultados contribuem também para o equacionamento de problemas gerais. Por exemplo, as iniciativas de âmbito municipal visando gerar trabalho e renda, ao ampliarem o acesso aos alimentos dos nelas envolvidos, auxiliam no enfrentamento do desemprego e da pobreza que, como se sabe, possuem determinantes nacionais. A condição alimentar das famílias pode ser melhorada por meio de ações no âmbito domiciliar e comunitário, sem perder de vista que tal condição é, fortemente, condicionada pela capacidade de acesso dessas famílias aos alimentos e às políticas públicas. O Brasil é uma república federativa que confere aos governos estaduais um papel relevante na gestão de ações e programas próprios, bem como na implementação descentralizada de programas federais. Além disso, o contexto pósConstituição de 1988 ampliou as possibilidades de ação em âmbito municipal. Assim, os sistemas estaduais e municipais de SAN tratam de questões que lhes são específicas, ao lado das atribuições que se originam da descentralização de programas federais. É preciso observar, no entanto, que 152

esse formato é fonte de conflitos de orientação e demanda complexas negociações entre governantes o que, não raro, compromete a execução de ações integradas; a própria implementação do Fome Zero enfrentou resistências desse tipo. Dispomos de um razoável acúmulo de experiência em ações e programas de SAN no nível municipal que remontam ao início dos anos 1990. Já a formulação de políticas e programas estaduais é mais recente, estando ainda limitada a poucos casos, apesar de significativos. Com poucas exceções, a proliferação de Conseas estaduais por praticamente todo o país foi induzida pela instituição do Fome Zero e a realização da II Conferência Nacional de SAN. Boa parte desses conselhos ainda carece de legitimidade social e reconhecimento pelos próprios governos estaduais, enfrentando condições limitadas de funcionamento. Três campos de atuação em SAN se destacam como próprios da esfera estadual de governo. O primeiro compreende um conjunto diverso de programas voltados para a qualificação da produção agroalimentar, gestão de equipamentos de abastecimento alimentar, além de ações nas áreas da saúde e nutrição, quase sempre carecendo de avanços na direção de adotar o enfoque intersetorial. O segundo campo de atuação engloba as atividades de capacitação. O conhecimento das especificidades regionais, a proximidade com as realidades municipais e a disponibilidade de recursos humanos e materiais fazem da esfera estadual a instância mais adequada para o desenho e execução de atividades de capacitação em SAN. O terceiro campo diz respeito ao suporte às ações e políticas municipais e às iniciativas voltadas à articulação entre os municípios. Há muitas possibilidades nesse sentido na forma de programas estaduais de

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financiamento de projetos exemplares, ou pela organização sub-regional dos municípios para fins de capacitação, execução de projetos de desenvolvimento e outras formas de cooperação entre eles. Além desses três campos próprios, Estados (assim como municípios) estão envolvidos na implementação descentralizada de programas federais, sendo de se notar a persistência de indefinições das atribuições específicas a cada esfera de governo, com a correspondente fixação de responsabilidades, mesmo em programas de grande amplitude e impacto (como a própria alimentação escolar). Esse tipo de definição, no entanto, é essencial para a obtenção de comprometimento efetivo de todos com o objetivo da SAN, especialmente, para a plena implantação do Sistema Nacional. Passando para a esfera municipal, a experiência brasileira está repleta de exemplos que mostram ser possível atuar, localmente, em todas as dimensões relevantes da SAN, havendo orientações suficientes para a formatação de sistemas municipais de SAN (COSTA & MALUF, 2001; BURLANDY et al., 2006). Lembro, no entanto, que ao descrever a trajetória conceitual da SAN no Brasil chamei a atenção para o fato de que a formatação dos programas é tributária da “porta de entrada” da SAN na administração pública, especialmente nas administrações municipais. O viés de apropriação do enfoque da SAN e as dimensões a serem priorizadas refletem o setor que serve de âncora para difundir o enfoque no interior do governo e na sociedade, assim como a possibilidade de se chegar a uma política intersetorial na sua concepção, institucionalidade e execução. Houve importantes mudanças com a recente vinculação dos programas de SAN à área de desenvolvimento social (ou assemelhada), em relação à experiência 154

brasileira anterior de tê-los sediados em órgãos de abastecimento alimentar. Sendo assim, uma primeira e importante condição para se obter a intersetorialidade pretendida é que as instâncias de coordenação do programa de SAN estejam próximas do gabinete do chefe do Poder Executivo (presidente, governador ou prefeito). Contudo, diferentemente da relação mantida pelo Consea nacional com a gestão dos programas federais, quanto mais próximo da esfera local, maior também o envolvimento das instâncias de coordenação da política (Conselhos Municipais de SAN) com a própria execução das ações e programas e respectivas coordenações técnicas. Daí decorre a difícil prática intersetorial e interinstitucional baseada na aproximação de profissionais e organizações atuando em áreas tão diversas quanto fomento à produção, abastecimento, programas sociais, alimentação escolar, serviços de saúde, distribuição de cestas de alimentos e vigilância alimentar e nutricional. Os desafios decorrem das distintas visões e metodologias de trabalho, mas também da inércia do hábito. A intersetorialidade do enfoque e os procedimentos para se chegar a uma política municipal de SAN se adequam à perspectiva, bastante em voga, de conferir matricialidade às ações das administrações municipais com base em técnicas de planejamento estratégico e na fixação de objetivos transversais. O efeito colateral do enfoque da SAN de contribuir para a referida matricialidade – como, de resto, poderia ocorrer com objetivos que tenham natureza análoga – não tem recebido a valorização devida. De fato, as observações anteriores contrastam com o quadro que predomina na maioria dos municípios brasileiros, onde proliferam

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ações no campo alimentar e nutricional com pouca ou nenhuma articulação entre elas. Esta característica se vê reforçada pelo papel das instâncias comunitárias e municipais na identificação e atuação junto a indivíduos e grupos populacionais vulneráveis ou com carências específicas. Caberia à política municipal de SAN articular programas e iniciativas para constituir redes de proteção e de promoção social, ao mesmo tempo em que se vale desta articulação para introduzir os três elementos anteriormente indicados (emancipador, organizativo e educacional) de modo que as ações de suplementação não se limitem à prática tradicional da assistência. É no plano local ou municipal que se põe em prática a integração de ações, preconizada pelo enfoque intersetorial da SAN, ainda que ela pressuponha a construção da visão integrada nas esferas nacional e estadual quando se trata da implementação descentralizada de programas federais e estaduais. A desejada articulação entre o Programa Bolsa Família com ações, necessariamente locais, que emancipem as famílias atendidas (por exemplo, de geração de renda) é um exemplo eloquente desta afirmação. Um ponto frágil nesta e em outras áreas diz respeito à construção e efetivação de metodologias de monitoramento e avaliação, tanto intermediárias quanto finais. É ainda insuficiente o conhecimento acumulado em termos do monitoramento e avaliação na área da SAN, inclusive para ir além de um elenco de resultados quantitativos muitas vezes incapazes de expressar os processos que criam as condições para atingi-los e mantê-los. Além disso, trata-se de uma política inovadora por seu caráter intersetorial e abrangência que precisa conquistar legitimidade e reconhecimento dos setores governamentais e das organizações não governa156

mentais para que o monitoramento e avaliação das ações sejam trazidos para os espaços intersetoriais próprios dessa política; a dificuldade comum de obter relatórios de execução dos programas públicos da parte dos setores responsáveis pode se ver aumentada pela eventual falta de legitimidade das instâncias relacionadas à SAN. Cabe, por fim, mencionar o Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan), ainda buscando sua efetiva implantação em todos os municípios brasileiros. Trata-se de instrumento indispensável à aferição e planejamento da atuação relacionada com a condição alimentar e nutricional da população, particularmente das crianças. Este sistema, ademais, costuma desempenhar importante papel na (difícil) tarefa de introduzir o enfoque de SAN entre os profissionais da saúde.

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A título de conclusão Por se tratar de um livro introdutório a um tema relacionado, essencialmente, com ações e políticas públicas, parece-me inevitável que a conclusão se situe nesse campo, razão pela qual apontarei alguns desafios de ordem geral colocados para a construção de uma Política Nacional de SAN no Brasil. Desde logo, vimos que o nosso país tem sido capaz de apresentar indicadores positivos com respeito à redução da pobreza extrema, mesmo que mantidos muitos dos fatores gerais causadores de iniquidade social e comprometedores do meio ambiente. A estratégia que ganhou corpo aqui e em várias partes do mundo é uma somatória de programas sociais de longo alcance (benefícios previdenciários e assistenciais e programas de suplementação de renda) e modelos econômicos iníquos assentados na concentração das atividades, tendo subjacente um tipo de disciplina econômica que constrange a adoção de estratégias que levem a um crescimento econômico com eqüidade social e sustentabilidade ambiental. A inegável necessidade de dispor de programas sociais – cujos impactos imediatos no acesso à alimentação pelos mais pobres são evidentes – não retira a importância de incorporar a perspectiva da SAN entre os eixos orientadores das estratégias de desenvolvimento do país. Foram apontadas várias contribuições nesta direção oferecidas pelo enfoque da SAN, tais como a canalização dos estímulos eco-

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nômicos derivados dos programas sociais e das iniciativas de geração de trabalho e renda para promover um sistema agroalimentar equitativo, sustentável e diversificado, além da própria revisão das relações estabelecidas com os beneficiários diretos de tais programas. Algumas fontes de controvérsias no interior dos governos e da própria sociedade brasileira terão que ser continuamente enfrentadas. Refiro-me à recuperação do papel do Estado e seus instrumentos de regulação das atividades econômicas, à prioridade conferida ao comércio internacional e suas implicações para a soberania alimentar, aos modelos de produção agroalimentar a serem estimulados e à importância específica da agricultura familiar, entre outros. A construção da Política Nacional de SAN no Brasil está na ordem do dia em face da sanção presidencial da lei que institui o Sistema Nacional de SAN, aprovada no Congresso Nacional. A abrangência dessa política e o fato de interagir com diversos setores de governo e programas com diretrizes e espaço de deliberação próprios demandarão iniciativas inovadoras no plano institucional e na concepção de ações e programas integrados, além do exercício permanente de negociação entre os setores e instâncias envolvidos. Alerte-se, contudo, que apesar de o enfoque abrangente da SAN implicar a natureza aberta do sistema correspondente, é preciso delimitar o escopo da política de SAN e dos programas que lhe correspondem, sob pena da pretensão excessiva de abrangência levar à perda da especificidade do tema alimentar e comprometer a capacidade de diagnóstico e intervenção. Pode-se imaginar a Política Nacional de SAN como sendo composta de alguns programas “basilares”, que atuem em áreas-chave e extrapolem seus objetivos primeiros e es160

truturas específicas, sendo capazes de atuar como nucleadores das ações integradas que expressam a desejada intersetorialidade da SAN. Entre essas áreas-chave se destacam a agricultura familiar, o abastecimento alimentar, as políticas sociais, a alimentação escolar e as ações de nutrição e saúde. Aos programas “basilares” se soma um conjunto variado de ações e programas inovadores pelo tema ou objetivo proposto, pela abordagem territorial, etc. Há, pelo menos, dois caminhos para construir a intersetorialidade requerida pelo enfoque da SAN. Um deles é a formulação de programas integrados, intersetoriais já na sua origem, inovadores e implicando o enfrentamento das formas convencionais de organização da estrutura do Estado. O outro caminho corresponde à introdução do enfoque da SAN nos programas existentes, sobretudo naqueles aqui classificados como “basilares”, tanto na sua formatação, quanto na busca de coordenação entre eles e com as ações inovadoras. Essa coordenação é mais complexa no plano das diretrizes gerais, tornando-se mais viável numa ótica territorializada ou local. Um desafio particularmente complexo diz respeito à participação social nas políticas de SAN. Um olhar retrospectivo nos leva a perceber que o campo da SAN acumula razoável experiência de interação entre governos e sociedade civil no Brasil, marcada por naturais embates e eficácia restrita. Não obstante, essa interação revela também ter havido um certo desperdício de conhecimento acumulado e perda de mobilização na segunda metade da década de 1990, que acarretou no dispêndio de grande energia social para recolocar o acúmulo anterior na recente retomada do debate sobre a SAN no Brasil. Vale dizer, enquanto a SAN não se transformar num objeto de políticas de Estado, mais do 161

que de governos, esses e outros riscos serão, sempre, uma possibilidade. A interação entre Estado e sociedade civil engloba um outro componente que a experiência brasileira recente demonstra ser também bastante complexo, relativo à incorporação das iniciativas de caráter público oriundas da sociedade civil na construção de uma Política Nacional de SAN e, mais especificamente, no futuro Sistema Nacional de SAN. Será preciso enfrentar a elevada fragmentação daquelas iniciativas e seu baixo grau de sistematização para superar a dificuldade de incorporá-las, bem como as particularidades do diálogo com os espaços de participação social e de formulação de políticas públicas nas três esferas de governo (nacional, estadual e municipal). Uma correta avaliação das possibilidades e desafios requer diferenciar as iniciativas não governamentais de larga escala (de âmbito nacional ou suprarregional) e um grande número de iniciativas locais ou regionais nos mais diversos campos. Elas mantêm relações distintas com as respectivas esferas de governo em termos de reconhecimento e conflitos, assim como quanto às formas de cooperação e parceria. Por último, mas não menos importante, registro a questão do sentido a ser conferido à participação social na formulação e implementação de ações e políticas públicas, que abre um amplo campo de debate quando ela pretende ir além do exercício do controle social das ações de Estado e passa a envolver comprometimento e transferências de responsabilidades.

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Glossário Agroalimentar: essa denominação engloba as atividades agropecuárias e extrativistas e também o primeiro processamento industrial de produtos alimentares. Agronegócio: origina-se do vocábulo inglês agribusiness usado para designar o conjunto de atividades articuladas com a agricultura, tendo se convertido no Brasil em categoria sociopolítica e ideológica em defesa de um modelo de agricultura (patronal e intensiva) e de integração agroindustrial. Barreiras tarifárias: estabelecer tarifas que encareçam ou proíbam a entrada de produtos importados no mercado doméstico. Codex Alimentarius: programa conjunto FAO/OMS criado em 1962, sobre normas alimentares internacionais cujos objetivos são “proteger a saúde dos consumidores e assegurar práticas equitativas de comércio de alimentos”. O Comitê Brasileiro do Codex, criado em 1980, é sediado no Inmetro e composto de representantes do governo, da indústria e dos consumidores. Integração agroindustrial: estreitamento dos elos entre a produção agropecuária e o processamento industrial dos bens dela originados, podendo incluir o estabelecimento de contratos de fornecimento entre os agricultores e as agroindústrias. 163

Interdisciplinaridade: busca de uma compreensão integral dos fenômenos que congregue e faça dialogar os diversos saberes organizados em disciplinas. Intersetorialidade: ter em conta as várias dimensões da condição alimentar e nutricional com vistas a implementar ações e programas integrando os diversos setores de governo e da sociedade. Malthusiano: qualificativo aplicado aos diagnósticos baseados na correlação entre o crescimento geométrico da população mundial e aritmético da produção de alimentos, estabelecida pelo economista inglês T.R. Malthus (1766-1834). Produtos transgênicos: produtos que contêm organismos geneticamente modificados, fruto da aplicação das biotecnologias na agricultura. Programa Mundial de Alimentação: criado em 1963 pelas Nações Unidas para fazer face às necessidades emergenciais (vítimas de desastres, populações desalojadas e as mais pobres que sofrem fome) e apoiar o desenvolvimento econômico e social. Subsídio de preço: suplementar a renda auferida pelo agricultor com a venda dos seus produtos aos preços de mercado.

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Sobre o autor Economista formado pela Universidade Metodista de Piracicaba (1973), mestre (1977) e doutor (1988) em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual de Campinas. Realizou programas de pós-doutoramento no International Development Centre/Queen Elizabeth House, University of Oxford (1996/1997), e na École des Hautes Études en Sciences Sociales/Centre de Recherche sur le Brésil Contemporain. Paris (2000/2001). Professor do Curso de Pós-graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ) desde 1990, onde coordena o Centro de Referência em Segurança Alimentar e Nutricional. Integra a Coordenação Nacional do Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional (FBSAN) desde sua criação, em 1998, sendo um dos seus representantes como conselheiro do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), onde exerceu também a função de assessor da Presidência do Conselho (2004/2006). Principais participações relacionadas com a Segurança Alimentar e Nutricional: a) Participação na elaboração de documentos: Segurança alimentar – Proposta de uma política contra a fome (Brasília: Ministério da Agricultura/Suplan, 1985); Política Nacional de Segurança Alimentar (São Paulo: 173

Governo Paralelo, 1991); Relatório Nacional Brasileiro para a Cúpula Mundial da Alimentação (Roma, 1996); Projeto Fome Zero (São Paulo: Instituto Cidadania, 2002); Textos de referência da II Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Olinda, 2004). b) Palestrante na I Conferência Nacional de Segurança Alimentar (Brasília, 1994); integrante da comissão organizadora, delegado e palestrante na II Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Olinda, 2004). c) Integrante da delegação da sociedade civil brasileira nos seguintes eventos internacionais: Assembleia Geral sobre Segurança Alimentar (Quebec, 1995), Cúpula Mundial da Alimentação (Roma, 1996), Fórum Mundial sobre Soberania Alimentar (Havana, 2001), Cúpula mais 5 (Roma, 2002).

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