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Portuguese Pages 176 [178] Year 2013
Saussure
A invenção da Linguística
Conselho Acadêmico Ataliba Teixeira de Castilho Carlos Eduardo Lins da Silva José Luiz Fiorin Magda Soares Pedro Paulo Funari Rosângela Doin de Almeida Tania Regina de Luca
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José Luiz Fiorin Valdir do Nascimento Flores Leci Borges Barbisan (organizadores)
Saussure
A invenção da Linguística
Copyright © 2013 dos Organizadores Todos os direitos desta edição reservados à Editora Contexto (Editora Pinsky Ltda.) Montagem de capa e diagramação Gustavo S. Vilas Boas Preparação de textos Daniela Marini Iwamoto Revisão Karina Oliveira Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) (Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil) Saussure : a invenção da linguística / José Luiz Fiorin, Valdir do Nascimento Flores, Leci Borges Barbisan (orgs.). – 1.ed., 1ª reimpressão. – São Paulo : Contexto, 2019. Bibliografia. ISBN 978-85-7244-803-1 1. Linguística – Estudo e ensino 2. Linguística – História 3. Saussure, Ferdinand de, 1857-1913 I. Fiorin, José Luiz. II. Flores, Valdir do Nascimento. III. Barbisan, Leci Borges. 13-05989 Índices para catálogo sistemático: 1. Saussure : Teorias : Linguística 410.92
2019 Editora Contexto Diretor editorial: Jaime Pinsky Rua Dr. José Elias, 520 – Alto da Lapa 05083-030 – São Paulo – sp pabx: (11) 3832 5838 [email protected] www.editoracontexto.com.br
CDD-410.92
Sumário
Por que ainda ler Saussure?.................................................................................................. 7 José Luiz Fiorin, Valdir do Nascimento Flores e Leci Borges Barbisan
Sobre mitos e história: a visão retrospectiva de Saussure nos três Cursos de linguística geral.........................................21 Cristina Altman
Uma contradição aparente em Saussure: o problema da relação língua-história...................................................................33 Marcio Alexandre Cruz
O lugar do conceito de fala na produção de Saussure...........................45 Eliane Silveira
O Curso de linguística geral e os manuscritos saussurianos: unde exoriar?....................................................59 Hozanete Lima
“Mostrar ao linguista o que ele faz”: as análises de Ferdinand de Saussure.........................................................................71 Valdir do Nascimento Flores
Pequeno ensaio sobre o Tempo na teorização saussuriana. ...................87 Maria Fausta Pereira de Castro
O projeto semiológico...............................................................................................................99 José Luiz Fiorin
Efeitos do pensamento de Saussure na teorização sobre erros e sintomas na fala................................................. 113 Maria Francisca Lier-DeVitto
A contribuição de Ferdinand de Saussure para a compreensão do signo linguístico............................................................. 135 Mônica Nóbrega e Raquel Basílio
Presenças do Curso de linguística geral na Análise do Discurso.149 Carlos Piovezani
Do signo ao discurso: a complexa natureza da linguagem................ 163 Leci Borges Barbisan
Os autores. ......................................................................................................................................... 171
Por que ainda ler Saussure? José Luiz Fiorin Valdir do Nascimento Flores Leci Borges Barbisan
Saussure nasceu no dia 26 de novembro de 1857, em Genebra, e morreu, na mesma cidade, no dia 27 de fevereiro de 1913, há, portanto, cem anos. Este Saussure: a invenção da linguística destina-se a lembrar essa efeméride. Temos o fascínio das datas redondas. Elas ensejam um sem-número de comemorações. No entanto, para além da superfície festiva das efemérides, elas servem também para revisitar autores, obras, acontecimentos históricos, para vê-los sob nova luz, para ressaltar sua importância para o presente, para desfazer equívocos a respeito deles, para dizer aos mais jovens que papel tiveram, para fazer ver sua atualidade. O Curso de linguística geral,1 de Saussure, talvez seja o grande clássico da Linguística moderna. Segundo o grande escritor italiano Ítalo Calvino, “os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo e individual” (Calvino, 1998: 10-11). É o que acontece com essa obra de Saussure, desde sua publicação: criou um novo objeto para a Linguística, a langue, e suas teses sobre a língua como instituição social, sobre a arbitrariedade do signo, sobre as análises sincrônica e diacrônica, etc. transformaram o fazer dos linguistas e alteraram a Linguística; atualmente, repetimos certas teses do mestre genebrino, como, por exemplo, de que na língua só há diferenças, sem sequer saber que ele foi seu primeiro formulador. A Linguística iniciada, a partir do Curso, leva em conta os princípios saussurianos de que a língua “é um sistema que conhece apenas sua própria ordem” (CLG: 31); “é um sistema do qual todas as partes podem e devem ser consideradas em sua solidariedade sincrônica” (CLG: 102); “é uma forma e não uma substância” (CLG: 141) e de que a Linguística “tem por único e verdadeiro objeto a língua considerada em si mesma e por si mesma” (CLG: 271). Greimas diz no texto seguinte:
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A originalidade da contribuição de F. de Saussure reside, cremos nós, na transformação de uma visão de mundo que lhe foi própria – e que consiste em apreender o mundo como uma vasta rede de relações, como uma arquitetura de formas carregadas de sentido, portando em si mesmas sua própria significação – em uma teoria do conhecimento e em uma metodologia linguística. (Greimas, 1956: 192)
O Curso é, para a Linguística, um discurso fundador. No entanto, mesmo os discursos fundadores constituem-se, como todo e qualquer discurso, em oposição a outros. Se seu princípio central é o da prioridade das relações sobre os elementos e, por conseguinte, o de que as relações que definem o sistema formam uma hierarquia, cujas partes estão relacionadas entre si e mantêm relações com o todo que engendram, está, numa relação de heterogeneidade constitutiva com o discurso transcendentalista, com o analogista e com o anomalista. O ponto de vista transcendentalista é aquele que faz da linguagem meio para compreender a sociedade humana, o psiquismo do homem, seu sistema conceitual, a marcha do homem sobre a Terra, as propriedades físicas dos sons, etc. Sem negar que a linguagem possa servir de meio para um conhecimento cujo principal objeto reside fora dela, Saussure opõe ao ponto de vista transcendental o princípio da imanência: “a Linguística tem por único e verdadeiro objeto a língua considerada em si mesma e por si mesma” (CLG: 271). Nesse sentido, a linguagem deixa de ser meio e passa a ser um fim em si mesmo. Isso significa que a explicação para os fatos linguísticos estará no interior da linguagem, a língua, e não numa realidade extralinguística. O discurso saussuriano contrapõe-se também ao dos analogistas e dos anomalistas. Aqueles assentam suas explicações na associação por semelhança. Como nota Mattoso Câmara no seu artigo “O estruturalismo linguístico”, isso “leva sem dúvida à formulação de um conjunto, mas não estabelece um campo de relações em que o todo se explique pelas partes e cada uma das partes pelas outras e pelo todo” (Câmara, 1968: 7). Os anomalistas, por sua vez, prescindem até mesmo de uma soma, “negando a possibilidade de um conjunto por associação de elementos. A rigor não chegam à gramática, que se reduz para eles em seguir o uso (cosuetudinem sequens), como dizia o anomalista Aulo Gelio” (Câmara, 1968: 8). Para eles, a realidade é única, não podendo os fatos ser generalizados. Aos anomalistas, Saussure opôs a noção de sistema: “A língua é um sistema do qual todas as partes devem ser consideradas em sua solidariedade sincrônica” (CLG: 102). Aos analogistas, Saussure opôs o princípio de que a língua é forma e não substância, o que leva a considerar não somente semelhanças, na análise dos fatos
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linguísticos, mas principalmente diferenças. A diferença supõe a semelhança, mas, como diz Saussure, o que importa na língua são as diferenças (CLG: 139). Em relação aos discursos científicos precedentes, Saussure opõe o princípio da imanência, o do sistema e o da forma. Por causa disso, foi acusado de esvaziar a linguagem de sua dimensão histórica, de não levar em conta o sujeito na linguagem. No entanto, é preciso esclarecer que o Curso se opõe ao organicismo da Linguística histórica de sua época, que considerava que a linguagem tinha fundamentos biológicos e inseria a Linguística entre as ciências naturais. Com base em Whitney, um dos poucos autores citados no Curso, Saussure mostra que a língua é uma instituição social (CLG: 24). Ao estabelecer o princípio da arbitrariedade do signo, o que o mestre genebrino faz é desvelar que os signos são produtos dos seres humanos e, portanto, não são naturais, mas culturais. A ordem da língua não é um reflexo da ordem do mundo, mas uma construção das comunidades humanas. A língua está entre os fatos humanos (CLG: 23) e, por isso, a Linguística está classificada entre as ciências sociais. Sua definição de língua passa pelo falante, colocado no quadro das estruturas sociais: “ela é a parte social da linguagem” (CLG: 22); “A língua existe na coletividade sob a forma duma soma de sinais depositados em cada cérebro, mais ou menos como um dicionário cujos exemplares, todos idênticos, fossem repartidos entre os indivíduos” (CLG: 27). Pelo funcionamento das faculdades receptiva e coordenativa, nos indivíduos falantes, é que se formam as marcas que chegam a ser sensivelmente as mesmas em todos. [...] Se pudéssemos abarcar a totalidade das imagens verbais armazenadas em todos os indivíduos, atingiríamos o liame social que constitui a língua. (CLG: 21)
Qual é a importância de Saussure hoje? É ainda o grande Calvino quem nos socorre: “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer” (Calvino, 1998: 11). Num momento em que reaparecem, com força total, as teses biológicas para explicar os fatos humanos, num esvaziamento de sua dimensão social e cultural, Saussure é mais atual do que nunca. É necessário na resistência à desumanização das chamadas “ciências do homem”. O linguista genebrino é daqueles autores que “quanto mais pensamos conhecer, por ouvir dizer, mais se revelam novos, inesperados e inéditos” (Calvino, 1998: 12). Além disso, Saussure, como todo clássico, serve para entender quem somos e aonde chegamos (Calvino, 1998: 16). Ele é fundamental para compreender a Linguística moderna. Descobrimos nos clássicos aquilo que sempre ouvimos dizer, “mas desconhecíamos que ele(s) o dissera(m) primeiro” (Calvino, 1998: 12).
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Este livro foi escrito por autores brasileiros e, portanto, testemunha a recepção de Saussure no Brasil e proclama sua atualidade para a Linguística de nosso país. Patenteia que Saussure não é um autor embolorado, mas que ele ainda tem coisas a nos ensinar. Não queremos fazer o papel dos escolastas medievais, que apenas comentavam os textos considerados definitivos, mas desejamos mostrar que o texto saussuriano ainda aponta caminhos, abre sendas e veredas, permite descortinar horizontes. Essa é nossa homenagem ao mestre em seu centenário. Com esse intuito, a seguir, fazemos algumas considerações sobre a atualidade dos estudos saussurianos com destaque para o estudo das fontes que integram o conjunto dos trabalhos de Saussure.
Uma nota sobre o tratamento das fontes saussurianas na atualidade A primeira grande fonte de pesquisa quando se tem interesse no pensamento do dito “pai da Linguística” é o Curso de linguística geral, cuja autoria é atribuída a Saussure. Mas por trás dessa informação aparentemente neutra de uma cronologia se impõe uma história que é, sem dúvida, um capítulo à parte da biografia da Linguística. Os editores do CLG, no “Prefácio” que escrevem, lembram que Saussure atendera a um convite para ministrar um curso de Linguística geral entre os anos 1907, 1908/1909 e 1910/1911 na Universidade de Genebra. A assistência não era formada por mais que alguns poucos ouvintes. Essa diminuta plateia foi, no entanto, suficiente para dar a conhecer que ali se testemunhava uma verdadeira revolução no campo da Linguística. Por isso, dois grandes linguistas – Albert Sechehaye (1870-1946) e Charles Bally (1965-1947) – recolheram as anotações tomadas pelos alunos dos cursos, para, a partir delas, reunir um material que fosse a síntese dos três anos de curso. Narrada assim essa história, não fazemos reconhecimento justo aos editores, uma vez que não evidenciamos as inúmeras dificuldades do empreendimento que é reunir em texto escrito um conjunto complexo de ideias, tendo por base apenas anotações de terceiros, já que não se sabia da existência de muitas outras fontes. Sobre isso, assim se manifestam os editores no “Prefácio à primeira edição” do CLG,
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Após a morte do mestre, esperávamos encontrar-lhe nos manuscritos, cortesmente postos à nossa disposição por Mme de Saussure, a imagem fiel ou pelo menos suficientemente fiel de suas geniais lições; entrevíamos a possibilidade de uma publicação fundada num simples arranjo de anotações pessoais de Ferdinand de Saussure, combinadas com as notas dos estudantes. Grande foi a nossa decepção; não encontramos nada ou quase nada que correspondesse aos cadernos dos discípulos. (CLG: I)
A situação se torna mais complexa na medida em que sabemos que Charles Bally e Albert Sechehaye praticamente não frequentaram os cursos ministrados por Saussure. Dizem eles: [...] obrigações profissionais nos haviam impedido quase completamente de nos aproveitarmos de seus derradeiros ensinamentos, que assinalam, na carreira de Ferdinand de Saussure, uma etapa tão brilhante quanto aquela, já longínqua, em que tinha aparecido a Mémoire sur les voyalles. (CLG: II)
Bally e Sechehaye informam que utilizaram em seu empreendimento os cadernos de Louis Caille, Léopold Gautier, Paul Regard e Albert Riedlinger, para reconstituir o conteúdo dos dois primeiros cursos, e os cadernos de Mme Sechehaye, George Dégallier e Francis Joseph, para o terceiro curso, além de algumas notas de Louis Brütsch. Ora, a decisão de escrever algo a partir das anotações, embora tenha sido uma alternativa que se impunha, não forneceu o método a ser seguido para a organização editorial. “Que iríamos fazer desse material?” (CLG: II), perguntam os editores. Eis a resposta: Foi-nos sugerido que reproduzíssemos fielmente certos trechos particularmente originais; tal ideia nos agradou, a princípio, mas logo se evidenciou que prejudicaria o pensamento de nosso mestre se apresentássemos apenas fragmentos de uma construção cujo valor só aparece no conjunto. (CLG: III)
E a decisão – de impacto decisivo nas ciências humanas e sociais, como sabemos hoje em dia – é assim apresentada: Decidimo-nos por uma solução mais audaciosa, mas também, acreditamos, mais racional: tentar uma reconstituição, uma síntese, com base no terceiro curso, utilizando todos os materiais de que dispúnhamos, inclusive as notas pessoais de F. de Saussure. (CLG: III)
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Os editores sempre tiveram consciência da envergadura do feito: “Saberá a crítica distinguir entre o mestre e seus intérpretes? Ficar-lhe-íamos gratos se dirigisse contra nós os golpes com que seria injusto oprimir uma memória que nos é querida” (CLG: IV). Esse dispositivo da gênese do CLG não é apenas uma curiosidade a mais. O fato de o livro reconstituir três cursos ministrados oralmente, tomando-se por base anotações de alunos, e o fato de o texto do livro ter sido estabelecido por editores que não foram espectadores desses cursos são indicativos da complexidade que constitui o texto final. Reconhecer essa gênese é determinante para o tipo de leitura que se pode imprimir ao livro e para o entendimento das relações do CLG com as demais fontes saussurianas. Como é fácil supor, então, a organização do livro obedece ao entendimento que se teve do material considerado e está diretamente ligado aos parâmetros da época do que, no fim do século XIX e início do XX, era considerado o discurso científico. É assim que, hoje em dia, há muitas e não coincidentes interpretações do livro. E foi com essa versão dos fatos dada por Bally e Sechehaye, ou melhor, com a versão dada ao que se entendeu como sendo o raciocínio de Saussure, que a Linguística se instituiu solidamente já na metade do século XX. Tudo começa a mudar quando, em 1957, Robert Godel publica sua tese, Les sources manuscrites du Cours de linguistique générale de F. de Saussure, que faz um levantamento profundo das fontes utilizadas para a organização do CLG. Tem início, então, um período (conturbado) de descobertas que inclui desde outros manuscritos de alunos até manuscritos do próprio Saussure. Em 1958, reaparecem os cadernos de notas de Émile Constantin, os mais completos já encontrados até hoje; em 1967/1968, é publicada a edição crítica de Rudolf Engler, em dois tomos, do Cours de linguistique générale, associada às notas dos estudantes; em 1971, é publicado, por Jean Starobinski, Les mots sous les mots: les anagrammes de Ferdinand de Saussure, que reúne os manuscritos sobre os anagramas; em 1996, é descoberto um manuscrito na residência da família de Saussure editado por Simon Bouquet e Rudolf Engler e presente na publicação de 2002 dos Écrits de linguistique générale. A partir de tudo o que dissemos até aqui, é fácil deduzir que falar sobre Ferdinand de Saussure, hoje em dia, é tarefa complexa. E tal complexidade decorre, em grande medida, do vasto número de fontes disponíveis para pesquisa que incluem desde o próprio Curso de linguística geral até obras escritas e publicadas por Ferdinand de Saussure; fontes manuscritas de Saussure (publicadas ou não); cartas de Saussure (pessoais e profissionais); anotações de alunos de Saussure; cartas de alunos; edições críticas do CLG; Anagramas (publicados ou não), entre outras.
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Diante desse panorama, uma conclusão se impõe: é necessário instaurar um ponto de vista a partir do qual se torna possível selecionar um corpus de pesquisa. Não há como falar em Saussure, na atualidade, sem fazer recortes na infinidade de textos que integram o que poderíamos chamar de corpus saussuriano. Do corpus saussuriano – entendido como um conjunto de documentos formado por fontes de natureza heterogênea – recorta-se, com base em objetivos próprios, um corpus de pesquisa em função dos objetivos que se tem. Falemos um pouco a respeito das fontes que integrariam o que estamos chamando de corpus saussuriano. Há, inicialmente, os difíceis trabalhos publicados, em vida, por Ferdinand de Saussure sobre gramática comparada e indo-europeu que estão presentes no Recueil des publications scientifiques de Ferdinand de Saussure organizado por Charles Bally e Léopold Gautier.2 Nessa organização, encontramos, além de cerca de sessenta textos sobre temas de grande erudição linguística, os famosos Mémoire sur le système primitif des voyelles dans les langues indo-européennes, de 1878, e De l’emploi du génitif absolu en sanscrit, tese defendida em 1880 e publicada em 1881. Também há os dois volumes da complexa edição crítica de Rudolf Engler. No primeiro volume, estão dispostas em seis colunas as fontes encontradas por Engler. Na primeira coluna, encontra-se o texto do CLG tal como publicado em 1916, com as modificações introduzidas na segunda (de 1922) e na terceira (de 1931) edições. As colunas 2, 3, 4 e 5 são compostas das notas dos alunos de Saussure no primeiro curso (1907), no segundo curso (1908-1909) e no terceiro curso (1910-1911).3 A sexta coluna traz notas pessoais de Saussure. No segundo tomo, como bem diz Engler no “Avant-propos”, à página IX, encontramos “um apêndice à edição sinótica do CLG [a do tomo 1] e de suas fontes”. Nele, há as notas de próprio punho de Saussure, boa parte delas reeditadas, recentemente, por Simon Bouquet e Rudolf Engler nos Escritos de linguística geral, sob a denominação de “Antigos documentos”. Não menos importante é o trabalho de Robert Godel, Les sources manuscrites du Cours de linguistique générale de F. de Saussure, que apresenta um sem-número de informações oriundas de fontes distintas: notas de Ferdinand de Saussure, cadernos dos estudantes que frequentaram os Cursos de linguística geral, cadernos de estudantes que frequentaram outros cursos, outros documentos manuscritos (cartas e entrevistas de Saussure). Há, ainda, uma infinidade de cartas, notas e manuscritos4 publicados nos Cahiers Ferdinand de Saussure.5 Há os trabalhos publicados no Bulletin de la societé linguistique de Paris e no Annuaire de l’Ecole Pratique des Hautes Etudes.
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Há, também, os “Documents” publicados por Claudia Mejía Quijano, em Le cours d’une vie: portrait diacronique de Ferdinand de Saussure (2008). Não podemos esquecer que os exegetas saussurianos muito se dedicaram para estabelecer novos textos a partir das descobertas de fontes. São exemplos: o Premier cours de linguistique générale / First Course in General Linguistics (1907): d’après les cahiers d’Albert Riedlinger (ed. e trad. E. Komatsu e G. Wolf); o Deuxième cours de linguistique générale / Second Course in General Linguistics (1908-1909): d’après les cahiers d’Albert Riedlinger & Charles Patois (ed. e trad. E. Komatsu e G. Wolf); o Troisième cours de linguistique générale / Third Course in General Linguistics (1910-1911): d’après les Cahiers d’Emile Constantin (ed. e trad. E. Komatsu e R. Harris). Há, também, o Cours de linguistique générale, deuxième cours (1908-1909): d’aprés les notes de Bouchardy, Gautier et Riedlinger. Mais recentemente temos os trabalhos de Pia Marchese: Phonétique: il manuscritto di Havard e Théorie des sonantes,6 os “novos documentos” reunidos por Bouquet e Engler nos Escritos de linguística geral (ELG) e os trabalhos reunidos por Simon Bouquet na revista L’Herne Saussure.7 E se o nosso pesquisador interessado em Saussure continuasse a sua busca encontraria, ainda, os inquietantes anagramas, publicados ou não,8 entre muitos outros trabalhos. A magnitude do corpus saussuriano é argumento inconteste de nossa tese relativa a trabalhos com fontes documentárias complexas, qual seja: eleger um corpus de pesquisa do conjunto que é o corpus saussuriano com vistas a objetivos específicos é condição sine qua non para o estudo de Saussure hoje. E qual critério adotar para a escolha do corpus de pesquisa? A questão não é facilmente respondida. Vejamos o porquê.
A seleção do corpus de pesquisa Sabe-se que há, atualmente, larga discussão a respeito do que poderia, ou não, ser considerado “o verdadeiro”9 Saussure. Questiona-se se o inacabado de manuscritos estabelecidos em texto para fins editorias teria mais autoridade para representar o pensamento de Saussure do que a “reconstituição” levada a cabo por Bally e Sechehaye. Questiona-se se manuscritos descobertos a posteriori a uma edição com autoria atribuída – cujo efeito fundador do campo da Linguística é evidente – teriam o poder de refundar a história de uma ciência. Simon Bouquet, em um artigo polêmico,10 publicado em 1999, questiona a expressão “retorno a Saussure”. Bouquet quer saber se se trata de um retorno
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às ideias que estão contidas no CLG ou se trata de um retorno aos textos inéditos de Saussure. Ele considera que, atualmente, no domínio da Linguística geral, o conjunto dos textos saussurianos – o que Bouquet chama de o corpus disponível – pode ser dividido em três categorias: a) a dos textos efetivamente autografados por Saussure; b) as notas dos estudantes (em especial as referentes aos três Cursos de linguística geral); c) o Curso de linguística geral redigido por Bally e Sechehaye. Parece-nos que o critério adotado por Bouquet para fazer essa divisão é o de uma suposta autenticidade dos textos. A essa divisão Bouquet acrescenta “dois paradigmas editoriais”: a) o paradigma do Curso de linguística geral como obra (que constrói e legitima o pensamento de Saussure na dimensão de uma epistemologia programática da Linguística); b) o paradigma das lições orais e autógrafas de Saussure como obra (que associa à epistemologia programática da Linguística uma filosofia da ciência e uma filosofia da linguagem). Rossitza Kyheng, em um texto publicado em 2007,11 textualmente influenciado pela perspectiva de Simon Bouquet, recorre a uma distinção entre corpus e arquivo ao considerar que é um imperativo hoje em dia distinguir os diversos graus de autenticidade no conjunto do corpus saussuriano e em relação ao arquivo disponível. Para Kyheng, o arquivo saussuriano é composto por um conjunto de documentos historicamente ligados à personalidade de Saussure. Segundo a autora, esse arquivo é aberto e constituído por textos de Saussure, pelo CLG, por cartas endereçadas a Saussure, por documentos de outros autores. O corpus, por sua vez, é entendido como o conjunto de textos de Ferdinand de Saussure (obras, artigos, notas, rascunhos, lições, etc.), e nada mais que os textos cujo autor legítimo seja Saussure mesmo. Kyheng retoma a divisão tripartida feita por Simon Bouquet para, de um lado, examinar a possibilidade de uma estruturação interna do corpus saussuriano segundo uma gradação de autenticidade dos textos e, de outro lado, para provar que o CLG não pertence ao corpus, mas ao arquivo. Isso a leva a criar uma classificação: a) “escritos autênticos” constituídos por textos autógrafos de Ferdinand de Saussure e divididos em categoria 1 (textos cuja versão definitiva foi estabelecida por Saussure e publicados em vida) e categoria 2 (textos não publicados em vida pelo autor); b) “escritos quase autênticos” constituídos por textos, de natureza oral ou escrita, reportados pelos interlocutores de Saussure divididos em categoria 3 (textos que receberam muitas versões de transcrições pelos leitores/ouvintes de Saussure) e em categoria 4 (textos que receberam apenas uma versão de transcrição de um leitor/ouvinte efetivo); c) “escritos pseudoautênticos” constituídos pelo CLG.
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O texto de Rossitza Kyheng é mais complexo do que nossa apresentação deixa supor. A autora lista ainda as fontes que, segundo ela, pertenceriam a cada uma das categorias além de propor uma série de “princípios interpretativos” do corpus saussuriano. Porém, a lembrança desse texto e do texto de Bouquet cumpre, aqui, o papel de ilustrar o que dizem alguns autores que se preocupam em interpretar Saussure a partir de uma seleção de fontes que considera o critério de autenticidade. Outra possibilidade de entendimento encontramos, por exemplo, em Trabant (2005). Conforme o autor, em um texto cuja primeira parte do título já indica o viés assumido – “Faut-il défendre Saussure contre ses amateurs? Notes item sur l’épistemologie saussurienne” (“É preciso defender Saussure de seus admiradores? Notas item sobre a epistemologia saussuriana”) –,12 é verdade que encontramos, nas antigas notas de Saussure e nos atuais escritos descobertos, um pensamento rico e atormentado sobre a linguagem e a Linguística. Porém, a discussão em torno de um pensamento “autêntico” de Saussure, que possa estar ligado a essas fontes, implica uma tomada ética de posição. Trabant diz que há diferentes possibilidades de comportamento do pesquisador frente a essas fontes consideradas por alguns como sendo “a verdade” de Saussure: a) pode-se ignorar o “verdadeiro” Saussure e restringir-se ao estudo apenas do Curso; b) pode-se levar em conta o “verdadeiro” e fazer dele ou um uso eufórico – como informação etimológica que enriquece a leitura do Curso – ou um uso disfórico – como informação etimológica que vai contra o Curso –; c) podese apenas ler o “verdadeiro” Saussure, sem levar em consideração o Curso. Nesse último caso, o Curso é realmente tratado como “um erro, uma catástrofe intelectual e se leem apenas os Escritos de linguística geral” (Trabant, 2005: 121). Como podemos notar, o tema é controvertido e encerra muitas questões, em sua maioria, divergentes. E nós, como vemos essa questão? Como o leitor pode ver anteriormente, fazemos uma diferença entre corpus saussuriano e corpus de pesquisa. Tal divisão não obedece a critério de autenticidade das fontes. O corpus saussuriano é o conjunto de documentos constituído por fontes de natureza heterogênea cuja existência não parece ser negada por nenhuma das partes que integram a arena da polêmica. Kyheng chama-o de arquivo. A denominação para nós é ponto de somenos importância. Interessa-nos apenas resguardar a existência de um conjunto heterogêneo de fontes. O corpus de pesquisa é o recorte que se faz do conjunto, tendo em vista os objetivos da pesquisa. Foi assim que procederam todos os autores que compõem este livro. Cada um escolheu do conjunto das fontes aquelas que melhor informam sobre o tema que está em exame.
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Com esse procedimento desviamo-nos da discussão acerca da autenticidade das fontes e preservamos o lugar fundador do Curso de linguística geral. Afinal, não podemos esquecer que a primeira frase escrita por Rudolf Engler, sem dúvida o maior editor das fontes saussurianas, no “Préface” de sua Édition critique é: “esta edição crítica é a síntese, não a antítese do Curso de linguística geral (CLG) e de suas fontes” (Engler, 1989: IX – grifos nossos). Em nossa perspectiva, uma discussão dicotomizada entre o verdadeiro Saussure e o falso Saussure perde relevância quando se tem claro que se está frente a um corpus heterogeneamente formado: uma carta pessoal não pode ser equiparada a uma carta profissional; uma nota manuscrita encontrada postumamente não tem o mesmo valor que um texto estabelecido em função de anotações de alunos feitas a partir de aulas. São fontes diferentes e devem ser usadas para fins científicos distintos, obedecendo a critérios pontuais. E, nesse ponto, o correto entendimento do que estamos dizendo deve ser assegurado: o que estamos falando não diz respeito a um suposto valor de verdade que as fontes teriam se contrapostas entre si. Não se trata de defender que uma fonte é mais “verdadeira” que outra, trata-se apenas de resguardar as especificidades que cada fonte tem. Finalmente, esperamos ter, com estas considerações, esclarecido o leitor sobre as decisões que tomamos, neste livro, além de firmar nosso ponto de vista segundo o qual a complexidade do corpus saussuriano exige o estabelecimento de critérios claros de recorte de um corpus de pesquisa. Isso parece estar em consonância com um dos aforismos fundamentais de Saussure que, de tão citado, já não carece de indicação bibliográfica: é o ponto de vista que cria o objeto. Neste livro, inúmeros foram os temas tratados e as fontes pesquisadas. Os autores esforçaram-se para dar uma imagem da produtiva pesquisa saussuriana atual no contexto da Linguística brasileira. Vejamos, a seguir, alguns dos problemas investigativos apresentados.
Como está constituído este livro Os capítulos do livro revisam e discutem o pensamento de Ferdinand de Saussure sob diferentes ângulos. Assim, Cristina Altman, revendo documentos referentes aos três cursos ministrados por Saussure, escolhe como tema de estudo a história do pensamento do mestre, tratando da mudança linguística e da família linguística indo-europeia, chegando a conceitos fundadores.
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Outros capítulos retomam conceitos criados por Saussure. Marcio Alexandre Cruz trata da recepção do pensamento do mestre sobre a relação da língua como sistema de signos e a história. Defende a posição de que Saussure não exclui em seus estudos nem a história, nem o sujeito, nem o sentido. Para tanto, faz uma revisão da Linguística sincrônica saussuriana e mostra que diacronia e sincronia são dois olhares distintos sobre a linguagem, mas que na língua tudo é história e que, portanto, o CLG não exclui a história do estudo linguístico. Na mesma linha de repensar conceitos, Eliane Silveira trata da fala. Formula perguntas sobre a importância desse conceito, sobre a natureza que a Gramática Comparada atribuiu à fala, sobre o lugar que a fala ocupa no CLG e nos ELG. Conclui que a fala é centro de preocupação de Saussure, relacionada tanto à língua quanto a outros conceitos. Ainda na perspectiva conceitual, o texto de Hozanete Lima estuda os efeitos que o estabelecimento das concepções de signo e dos eixos paradigmático e sintagmático promoveram na construção da ciência Linguística. Valdir do Nascimento Flores desenvolve uma reflexão metodológica, procurando elucidar o que, em escritos de Saussure e sobre Saussure, define o método do fazer do linguista. Para isso, analisa o conceito de analogia, e mostra que esse fenômeno é tratado, nesses escritos, como fato sincrônico, logo relativo a um estado de língua, como princípio de criação linguística, e, consequentemente, vinculado ao conhecimento que o falante tem de sua língua. Chega, desse modo, à definição da tarefa atribuída ao linguista: a de, a partir de sua competência de sujeito falante, explicar seu saber sobre a língua. Revelando também inquietação metodológica, Maria Fausta Pereira de Castro vai em busca do tempo na teorização saussuriana. Parte da hipótese de que o tempo altera a língua pelo papel da massa falante e conclui que “é o mesmo tempo que intervém no discurso do sujeito e na língua”, com a diferença, no entanto, do papel desempenhado pela massa falante e pela intervenção da massa falante na língua. Outros capítulos presentes nesta obra poderiam ser reunidos pelos diferentes olhares que lançam sobre a teoria saussuriana. É o caso do que propõe José Luiz Fiorin, que apresenta, em seu texto, o desenvolvimento do projeto semiológico, no qual trata a Semiologia entendida por Saussure sob a forma de três postulados: o da inseparabilidade entre significante e significado, o da arbitrariedade do signo e o do valor linguístico. Discute ainda os projetos franceses da Semiologia da Significação e indica o quanto a Semiologia do século XX é devedora de Saussure. Nesse mesmo grupo pode ser incluído o trabalho de Maria Francisca Lier-DeVitto, que mostra que falas sintomáticas, objetos de estudo da Aquisição da Linguagem, podem ser explicadas pelas
Por que ainda ler Saussure?
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noções saussurianas de língua, significante, valor e fala. Está ainda nesse grupo o estudo de Mônica Nóbrega e Raquel Basílio, que tomam como foco de discussão o signo linguístico. Para tanto, analisam a arbitrariedade do signo, a relação com o sistema e com a produção de valores. Por esse meio, procuram compreender a importância que assumem esses conceitos para os estudos do interacionismo sociodiscursivo. Olhar distinto do anterior é o que se encontra no capítulo escrito por Carlos Piovezani, que interpreta, em parte do que foi dito sobre o CLG, o lugar que a Análise do Discurso de linha francesa atribui a esses textos. Conclui seu capítulo vendo Saussure como “fundador de discursividade”, embora afirme também que o Curso de linguística geral contém “lacunas e demasias”. Outro modo de olhar a teoria saussuriana é apresentado no texto de Leci Borges Barbisan, ao circunscrever seu tema à relação entre signo e discurso. Pergunta-se sobre como se realiza a ação por meio da qual signos se relacionam entre si, constituindo o valor linguístico e construindo o discurso. Apresenta, então, a solução, criada por Oswald Ducrot, de orientação semântica, constitutiva do signo, e as construções que decorrem de encadeamentos denominados argumentação externa e argumentação interna, os quais explicariam as relações de semelhança e de diferença entre signos para a expressão do pensamento do locutor no discurso. Antes de finalizarmos esta pequena introdução, cabem algumas palavras sobre o título deste livro. Saussure: a invenção da linguística cumpre, em nossa opinião, um duplo papel. Em primeiro lugar, permite reconhecer que o mestre genebrino, seguindo as concepções científicas de seu tempo, ao discutir teoricamente a questão do objeto da Linguística, cria a ciência da linguagem. Nessa época, cada ciência procurava estabelecer seu objeto de maneira muito precisa. Esses objetos eram puros, eram autônomos, não se misturavam. Quando Saussure estabelece que o objeto da Linguística é a langue e mostra que esse objeto não se contamina da Física, da Fisiologia, da Psicologia, etc., ele inventa a Linguística moderna. Não nos esqueçamos de que o primeiro sentido de inventio é “ação de encontrar, de descobrir”. Foi o que fez Saussure: encontrou um objeto para a Linguística, colocando-a no patamar de outras ciências da primeira metade do século XX. Em segundo lugar, permite prospectar um saber sobre a língua que deriva de um ponto de vista muito singular. Com isso, Saussure, pelo mesmo ato que delimita um objeto, o da sua Linguística, resguarda a legitimidade de outros pontos de vista. Ao leitor, enfim, deixamos o convite para que, inspirado em Saussure, não deixe de criar pontos de vista sobre a língua.13
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Doravante, neste capítulo, utiliza-se a sigla CLG para referir ao livro, inclusive nas citações, onde aparece seguida da página. A edição por nós conhecida é datada de 1984. Trata-se de uma reimpressão da edição de 1922. São apresentadas as notas dos seguintes alunos: Albert Riedlinguer, Louis Caille, Léopold Gautier, François Bouchardy, Émile Constantin, George Dégallier, Mme. A. Sechehaye, Francis Joseph. A lista de manuscritos não se esgota nos títulos listados anteriormente. Há ainda um grande número de cartas e outros textos manuscritos divulgados recentemente. Para maiores informações, acessar: http://www.item. ens.fr/fichiers/Theorie_linguistique/FondsSaussure.pdf e http://www.institut-saussure.org/. Ver, por exemplo, os Cahiers n. 12, 15, 17, 21, 24, 27, 28, 29, 42, 44, 47, 48, 58, entre outros. Houghton Library, edizione a cura de Maria Pia Marchese, Università degli studi di Firenze, Unipress, Padoue, 1995, 241 p.; Il manuscritto di Geneva, edizione a cura de Maria Pia Marchese, Università degli studi di Firenze, Unipress, Padoue, 2002, 132 p. Não tivemos acesso a esses documentos. Nossa referência a eles é feita a partir de Depecker (2009). Éditions de L’Herne, Paris, 2003. A versão brasileira é publicada em 1974 pela Editora Perspectiva. Esperamos que as aspas cumpram o propósito de marcar para o leitor nosso distanciamento do sentido cristalizado da palavra verdadeiro. Simon Bouquet (1999) “La linguistique générale de Ferdinand de Saussure: textes et retour aux textes”, Texto!. Disponível em: . Acesso em: 5 abr. 2013. Rossitza Kyheng (2007) “Principes méthodologiques de constitution et d’exploitation du corpus saussurien”, Texto! Disponível em: . Acesso em: 5 abr. 2013. Apenas a título de exemplo: compare-se o título do texto de Jürgen Trabant com o título de um recente texto de Simon Bouquet: “De um pseudosaussure aos textos saussurianos originais”. Letras e Letras (Revista do Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia), v. 25, n. 1, jan./jun. 2009. Disponível em: . Acesso em: 5 abr. 2013. Este livro é produto de um esforço coletivo. Agradecemos a pronta colaboração dos autores e o apoio técnico da bolsista Larissa Schmitz Hainzenreder. Finalmente, agradecemos à Editora Contexto por divulgar essas ideias.
Bibliografia C ALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. CÂMARA, Joaquim Mattoso. “O estruturalismo linguístico”. Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, 15/16, 1968, pp. 5-42. D EPECKER, Loïc. Comprendre Saussure: d’après les manuscrits. Paris: Armand Colin, 2009. G REIMAS, A. J. “L’actualité du saussurisme”. Le Français Moderne, 1956, n. 24. QUIJANO, Claudia Mejía. Le cours d’une vie: portrait diachronique de Ferdinand de Saussure. Nantes: Éditions Cécile Dafaut, 2008. SAUSSURE, Ferdinand de. Cours de linguistique générale, deuxième cours (1908-1909): d’après les notes de Bouchardy, Gautier et Riedlinger. Org. Robert Godel. Cahiers Ferdinand de Saussure, n. 15. Genebra: Droz, 1957, pp. 3-103. _____. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 1975. _____. Cours de linguistique générale. Édition critique par Rudolf Engler. Wiesbaden: Otto Harrassowitz, 1989. (Tomos 1 e 2) _____. Premier cours de linguistique générale / First Course in General Linguistics (1907): d’après les cahiers d’Albert Riedlinger. Ed. e trad. E. Komatsu e G. Wolf. Oxford/Tokyo u.a.: Pergamon, 1996. _____. Deuxième cours de linguistique générale / Second Course in General Linguistics (1908-1909): d’après les cahiers d’Albert Riedlinger & Charles Patois. Ed. e trad. E. Komatsu e G. Wolf. Oxford/Tokyo u.a.: Pergamon, 1997. _____. Troisième cours de linguistique générale / Third Course in General Linguistics (1910-1911): d’après les cahiers d’Emile Constantin. Ed. e trad. E. Komatsu e R. Harris. Oxford/Tokyo u.a.: Pergamon, 1997. T RABANT, Jürgen. “Faut-il défendre Saussure contre ses amateurs? Notes item sur l’étymologie saussurienne”. In: C HISS, Jean-Louis; D ESSONS, Gérad. Langages. Larousse, Paris, n. 159, septembre 2005.
Sobre mitos e história: a visão retrospectiva de Saussure nos três Cursos de linguística geral Cristina Altman
Uma das questões que costumam motivar os historiógrafos de uma disciplina científica a revisitar os mitos edificados pela comunidade de seus praticantes é a possibilidade de restaurar os conceitos fundadores do paradigma que os uniu em uma especialidade, ou de surpreender algo que passou despercebido da geração que com ele conviveu, ou, ainda, de (re)capturar, da perspectiva privilegiada do presente, o prenúncio do que seria considerado genial anos depois. Revisitar Ferdinand de Saussure (1857-1913) um século após sua morte não será diferente. Reinterpretar textos, anotações, manuscritos, correspondência, rever a literatura crítica e, principalmente, as lições dos Cursos de linguística geral que ministrou na Universidade de Genebra, entre 1907 e 1911, será, uma vez mais, render-nos ao mito. Com efeito, Saussure continua reverenciado pela comunidade acadêmica a Leste e a Oeste (cf. Koerner, 1992-1993) como o grande filólogo comparatista do século XIX, o que efetivamente foi no que escreveu e publicou, e como o grande teórico da Linguística geral e da Semiologia do século XX, embora neste caso, como se sabe, não tenha sido o autor efetivo do que foi publicado postumamente em seu nome. É amplamente conhecido que o Curso de linguística geral (CLG) de 1916 é uma compilação de Charles Bally (1865-1947) e Albert Sechehaye (1870-1946) dos três cursos ministrados por Saussure ao longo de cinco anos, a partir das anotações dos seus alunos, notadamente Albert Riedlinger (1883-1978). Durante este período, é razoável presumir que a prática didática tenha contribuído de alguma maneira para que suas ideias sobre a natureza do objeto e adequação dos métodos de uma ciência da linguagem autônoma tomassem forma e evoluíssem, ainda que em meio às aulas de descrição e história das línguas indo-europeias, sua grande especialidade, e que permaneceram na ordem do dia por exigência programática (cf. Bally e Sechehaye, 1922), e aos cursos de Filologia e Gramática Comparada que alternou com os de Linguística geral (Joseph, 2012: 514; 562; Harris, 2003: 21).
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Consagrado pelos manuais de história da Linguística como o grande revolucionário do século XX em matéria de estudos linguísticos, e quase unanimemente apontado como o responsável pela formação de um novo paradigma em ciências da linguagem – desde os mais tradicionais e óbvios, como Leroy (1971), Malmberg (1964), Mounin (1972), Lepschy (1971), Robins (1983), até os mais recentes, como Dosse (1993), Lespchy (1994), Swiggers (1997), e inesperados, como, por exemplo Newmeyer (1986) e Seuren (1998) – Saussure atingiu, para as gerações que o sucederam, o estatuto de fundador da disciplina linguística “moderna”, stricto sensu. O que se pergunta neste texto é como Saussure teria percebido a si e às suas ideias em relação àqueles que o antecederam na cronologia da disciplina: como continuador, crítico, renovador? Como foi que sua audiência registrou sua percepção sobre as relações entre as tradições clássicas de estudo da língua, a Filologia Comparada, e a Linguística geral? Em outras palavras, qual a visão de Saussure sobre a história da Linguística, tal como a transmitiu a seus alunos? Nosso material de observação principal são os três Cursos de linguística geral proferidos entre 1907 e 1911, tal como registrados por Riedlinger, para os Cursos I e II, editados por Komatsu e Wolf (1996 e 1997), e por Emile Constantin (1888-1963), para o Curso III, editado por Komatsu e Harris (1993).
Curso I: janeiro a julho de 1907 Os biógrafos de Saussure concordam que, entre a aceitação da cátedra de Linguística geral de Joseph Wertheimer (1833-1908), na Universidade de Genebra, e as conferências proferidas no Curso I, não teria havido tempo para preparação. Nada mais natural, pois, que Saussure utilizasse em aula o material de pesquisa disponível e pelo qual se tornara conhecido através do seu Mémoire de 1879 (Komatsu e Wolf, 1996: VIII; Joseph, 2012: 16). Mais da metade deste primeiro curso foi dedicada ao estudo da mudança linguística e à descrição e história da família linguística indo-europeia, embora já se possam antever vários dos termos e temas que o século XX associaria definitivamente a Saussure: alguns deles presentes em trabalhos anteriores, como sistema, signo e valor (cf. Koerner, 1982: 450ss) outros ainda em elaboração, como a distinção entre signo, significado e significante e as relações entre línguas, linguagem, langue e parole e outros, ainda, que só entraram definitivamente em uso nas ciências da linguagem por obra sua, como a oposição sincronia e diacronia (cf. Joseph, 2012: 494-514).
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Acompanhado por seis alunos, entre os quais Riedlinger, a partir de cujos cadernos Bally e Sechehaye o reconstituíram quase que completamente, o que lhe valeu o título de colaborador na versão de 1916, o Curso I começou por uma tentativa de circunscrição do domínio da Linguística. Nas “Preliminares”, embora se leia que a Linguística “é a ciência da linguagem e das línguas”, Saussure a considerou definível, naquele momento, apenas pelos seus limites externos com outras disciplinas como Etnologia, Filologia, Lógica, Sociologia – ou seja, pelo que não era – uma vez que, internamente, pelo que era, julgou impossível defini-la sem uma revisão séria dos seus fundamentos. Com efeito, desde o início, Saussure chamou a atenção para a complexidade do assunto instando seus alunos a considerar as três principais concepções de linguagem e língua em circulação. Uma dessas concepções consistia em adotar a língua como um organismo desprovido de raízes, sem ambiente, crescendo por si mesma; outra via a língua como uma “função natural” do indivíduo, como comer, por exemplo; e uma terceira tomava a língua pelo lado coletivo, como uma instituição social (Riedlinger, Cahier I, apud Komatsu e Wolf, 1996: 27). Ainda que, observe-se, Saussure tivesse considerado esta terceira concepção de língua como aquela que mais se aproximava da verdade, ele as rejeitou todas, sem apresentar com clareza qual seria a sua concepção. Colocar a língua ao lado das outras instituições sociais era ideia notoriamente atribuída ao linguista americano William Dwight Whitney (1827-1894), igualmente aceita pelos neogramáticos contemporâneos de Saussure, que também consideravam a Linguística uma ciência histórica, e não “natural” (cf. Koerner, 1982: 175-176). A dificuldade de definir o objeto linguagem, apontada por Saussure a seus alunos, sugere, a um tempo, insatisfação com o trabalho daqueles que lhe eram contemporâneos e busca de novas respostas a problemas que estavam na ordem do dia. Sabemos que seu pensamento vai evoluir nessa direção, mas, por ora, a especificidade do objeto de uma disciplina Linguística geral, distinta da Filologia Comparada, ainda não parece clara a ninguém. À exceção de pequenos comentários aqui e ali, como este sobre Franz Bopp (1791-1867), por exemplo, registrado no terceiro caderno de Riedlinger e reproduzido a seguir, não há, no Curso I, nenhuma referência sistemática de Saussure à Linguística que o antecedeu Não estamos fazendo história da Linguística, mas a do indo-europeu; mesmo assim lembremos a descoberta de Bopp (1816) [...] que pela revelação do sânscrito teve a ideia do parentesco das línguas indo-europeias. (Riedlinger, Cahier III, apud Komatsu e Wolf, 1996: 107)1
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Curso II: 1908-1909 No Curso II, que se iniciou no inverno de 1908/1909, a conhecida visão dualista de Saussure na reflexão sobre a linguagem assumiu contornos mais nítidos. Apreendese que há a língua individual, a linguagem, que é uma potencialidade, uma faculdade do indivíduo, e a língua social, a langue, que é definida como “um conjunto de convenções necessárias adotadas pelo corpo social para permitir o uso da faculdade de linguagem pelos indivíduos”, distinta, por sua vez, da parole, que é “o ato do indivíduo que realiza a faculdade de linguagem por meio da convenção social que é a langue” (cf. Riedlinger, Cahier I, apud Komatsu e Wolf, 1997: 3-4). Essencialmente, a langue é um sistema de signos que, à semelhança dos signos escritos, são arbitrários, de valor puramente negativo e diferencial, de número limitado, e indiferentes quanto a matéria que os manifesta (Riedlinger, Cahier I, apud Komatsu e Wolf, 1997: 7ss): nada mais nada menos do que o que a Linguística do século XX elegerá como cerne de observação, análise e descrição (Joseph, 2012: 537). Os dezesseis alunos presentes ao Curso II incluíam, além de Riedlinger, Léopold Gautier (1884-1973), François Bouchardy (1889-1974), Constantin e Charles Patois (1888-1947). As anotações de Riedlinger, segundo Komatsu e Wolf, editor e tradutor, respectivamente, desses cadernos, confundem-se em parte com as de Constantin, enquanto as de Patois parecem ter sido mais independentes, refletindo apenas as palavras de Saussure. Seja como for, e embora consultados todos, foram mais uma vez os cadernos de Riedlinger aqueles que serviram de base para a compilação posterior de Bally e Sechehaye. Foi neste segundo curso e no seguinte que Saussure mais se debruçou sobre estudos linguísticos anteriores. De acordo com Joseph (2012: 71), no que diz respeito às principais linhas de reflexão sobre a linguagem que o antecederam, Saussure basicamente retomou o que lhe fora ensinado em Leipzig por Hermann Osthoff (1847-1909), dedicando um espaço especial a Adolphe Pictet (1799-1875)2 e, sobretudo, a Whitney. No Cahier VI de Riedlinger (Komatsu e Wolf, 1997: 70ss), sob o título “Visão geral da linguística indo-europeia como introdução à linguística geral”3 é possível ler em detalhes a periodização proposta por Saussure para a história da Linguística indo-europeia no século XIX: houve um primeiro período de juventude, ou de infância, que durou 60 anos, aproximadamente até 1870; e um período em que, após um exame atento dos fatos, a Linguística reconheceu seu objeto próprio, apoderou-se de seu método e tomou nova direção. Ainda que arcaico, fossilizado, prossegue Riedlinger em seu caderno, a revisão do primeiro período foi conside-
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rada instrutiva por Saussure, donde tê-la retomado neste curso, na medida em que os erros de uma ciência que se inicia reproduzem em grande escala os pequenos erros que acometem a nós, indivíduos. Conhecê-los, presume-se, será evitá-los.
A geração dos pioneiros: de Bopp a Schleicher, segundo Saussure Assim é que, tal como se lê, Saussure atribuiu a fundação da Linguística à primeira obra de Bopp (1816).4 Não tanto porque Bopp fora o primeiro a reconhecer a “analogia do sânscrito com as outras línguas indo-europeias”, mas principalmente por ter sido o primeiro a reconhecer que essa semelhança poderia ser estudada e analisada:5 “esclarecer uma língua através da outra, explicar, se possível, uma forma pela outra, eis o que nunca se havia feito” (Riedlinger, Cahier VI, apud Komatsu e Wolf, 1997: 74). Como sucessores de Bopp, Saussure destacou Jacob Grimm (1785-1863), Friedrich Pott (1802-1887), Theodor Benfey (1809-1881), Adalbert Kuhn (1812-1881), Theodor Aufrecht (1821-1907); ainda neste primeiro período, Georg Curtius (18201885), Max Müller (1823-1900), “[que] muito fizeram pelos estudos comparativos”, e, sobretudo, August Schleicher (1821-1868), que marcou a segunda metade desse primeiro período, de acordo com Saussure, por ter sido o único a tentar codificar e sistematizar a ciência de Bopp: “é preciso observar essa tendência bastante constante nele [i.e., em Schleicher] para o geral, o sistemático. Um sistema, mesmo que seja necessário abandoná-lo logo, é melhor do que um monte de noções confusas” (Riedlinger, Cahier VI, apud Komatsu e Wolf, 1997: 78). Pela longa enumeração, devidamente comentada e anotada, fica-se sabendo, entre vários outros traços do contexto intelectual daquele momento, que a filologia clássica viu com bastante desconfiança o surgimento desta gramática comparada. Para Saussure, foram oito os principais erros dessa geração de linguistas que produziu entre 1800 e 1870, aproximadamente. Resumidamente, o primeiro foi atribuir uma importância exagerada ao papel do sânscrito no estudo do indo-europeu. Na sua versão mais grave, esse erro consistiu em atribuir ao sânscrito o lugar de língua indo-europeia primitiva. Embora essa afirmação não tenha sido formulada diretamente dessa maneira em nenhum lugar, reconhece Saussure, na prática os estudiosos do período procederam como se ela fosse verdadeira, isto é, “como se o sânscrito se identificasse com o indo-europeu. Havia um grande sânscrito e um pequeno grego, latim, etc. (irmãozinhos do grande sânscrito) ao lado” (Riedlinger, Cahier VI, apud Komatsu e Wolf, 1997: 79).
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O segundo erro dessa primeira geração, prosseguia Saussure, foi ser exclusivamente comparativa. Ser só comparativa significava privar-se, de antemão, de qualquer possibilidade de conclusão, só possibilitada pela perspectiva histórica, donde o tratamento inadequado ao estudo do desenvolvimento das línguas, como se fossem vegetais. Como resultado – terceiro erro –, essa Linguística cultivou um conjunto de concepções que não correspondiam a nada na língua. Eram ideias preconcebidas, retiradas de outras disciplinas, como certo simbolismo associado às vogais, como para Bopp, por exemplo, para quem existia uma escala de vogais em que o a, que ocupava o topo, era a vogal mais perfeita (cf. Riedlinger, Cahier VI, apud Komatsu e Wolf, 1997: 82). O quarto erro, extensamente comentado, foi se prender à escrita, ou, pior ainda para Saussure, tomar a escrita pela fala, esta sim, seu único objeto. Faltava a esses linguistas, continuava Saussure, noções de “fonologia” (i.e., de fonética, diríamos hoje). O quinto erro foi ignorar toda a ordem de fenômenos que diziam respeito à criação incessante e diária na língua, a analogia, considerada uma exceção às “leis fonéticas”, como se fosse uma espécie de infração, de irregularidade contrária à ordem, quando, na verdade, é essa a maneira das línguas se renovarem. Saussure reprovou, em sexto lugar, a ausência de método dessa primeira Linguística de modo geral. Em qualquer ciência, prosseguia, só se chega ao método depois de se fazer uma ideia exata da natureza do próprio objeto e dos fenômenos que se incluem na natureza desse objeto. Em sétimo lugar, Saussure condenou em quase todos os ramos de estudo do indo-europeu a tendência a considerar o ramo mais antigo como o mais representativo de todo o grupo de línguas em questão. Assim, em vez do germânico, citava-se o gótico, porque evidências em gótico pré-datavam aquelas em dialetos germânicos em vários séculos: emprestaram-lhe a posição de (falso) protótipo, de fonte dos outros dialetos. O oitavo erro não era um erro linguístico, consistia em atribuir à língua e, consequentemente, ao domínio da Linguística muita coisa que estaria fora dela, como informações sobre os povos que as falaram e sobre sua pré-história.
A “junggrammatische Richtung” (a escola neogramática) Saussure atribuiu uma nova direção à Linguística por volta de 1875, promovida pelo que chamou de a “escola nova” dos Junggrammatiker, cujas discussões se limitaram quase que sempre aos filólogos alemães, pouco familiarizados com as
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ciências naturais: “Não é que lhes tenha faltado o espírito crítico, mas [se fossem mais familiarizados com as ciências naturais] ter-se-ia chegado mais rápido a bases científicas.” (Riedlinger, Cahier VII, apud Komatsu e Wolf, 1997: 92) Entre aqueles influenciados pelo trabalho de Whitney (nem alemão, nem filólogo, registrou Riedlinger) e dedicados ao estudo da Filologia Germânica e da Filologia Românica, domínios com maiores possibilidades de estudo histórico do que a Linguística indo-europeia, na medida em que tinham documentada grande quantidade de dados, Saussure teria destacado Karl Brugmann (1849-1919), Hermann Osthoff (1847-1909) “sem lhe atribuir a mesma importância” (comentou Riedlinger), Wilhelm Braune (1850-1926), Eduard Sievers (1850-1932),6 Herman Paul (1846-1921), August Leskien (1840-1916), e outros sediados nas universidades de Leipzig e Jena, em oposição à “velha escola”, cujos centres de resistance estavam em Berlim e Göttingen, representados pelos trabalhos, entre outros, de Curtius, William Scherer (1841-1886), Johannes Schmidt (1843-1901). “Houve necessariamente uma luta entre a velha e a nova escola.” (Riedlinger, Cahier VII, apud Komatsu e Wolf, 1997: 92) O novo programa, instituído principalmente pelos germanistas, prosseguia Saussure, colocava todo o resultado das comparações em perspectiva histórica; reconhecia as línguas como um produto do espírito humano e como uma obra permanente, contínua, das sociedades pelo trabalho de renovação da analogia, reconhecida na sua legitimidade e universalidade. Os neogramáticos estabeleceram a “fonologia” (i.e. fonética) como estudo auxiliar do mecanismo dos nossos órgãos da fala e libertaram a Linguística da palavra escrita; trouxeram visões novas sobre a Linguística indo-europeia e o sânscrito foi destronado da sua posição (falsamente) privilegiada, donde a renovação de uma série de conclusões como a teoria do vocalismo indo-europeu (Riedlinger, Cahier VII, apud Komatsu e Wolf, 1997: 93). É nesse lugar, portanto, o do movimento neogramático, que Saussure colocou o ponto de chegada de um longo percurso de aprendizado da Linguística em direção à sua verdadeira natureza, a um tempo comparativa e histórica.
Curso III: 1910-1911 A conferência de abertura do Curso III, proferida em 28 de outubro de 1910, foi também aquela escolhida por Bally e Sechehaye para abrir a versão publicada do Curso de 1916 (cf. Saussure, 1922: 13-18). Nessa conferência, Saussure retomou o tema da história da Linguística de forma mais sucinta do que no curso anterior, mas, note-se, tratou do assunto em destacado primeiro lugar.
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Embora as anotações de Constantin sobre o Curso III fossem consideradas de longe as mais completas (Komatsu e Harris, 1993: VIII-X; XIII),7 onze cadernos ao todo, Bally e Sechehaye usaram em sua compilação as notas de Marguerite Sechehaye, mulher de Albert, de Georges Dégallier (1885-1973) e de Francis Joseph. As anotações de Constantin só foram descobertas e publicadas muitos anos depois, em 1958, quando o próprio autor as doou à Bibliothèque Publique et Universitaire (BPU) de Genebra (Joseph, 2012: 567). Assim é que se lê, na primeira página do Cahier I, de Constantin: O curso tratará da Linguística propriamente dita, e não da língua e da linguagem. Esta ciência passou por fases defeituosas. Reconhecem-se três fases, ou seja, três direções seguidas historicamente por aqueles que viram na língua um objeto de estudo. Depois veio uma Linguística propriamente dita, consciente de seu objeto. (apud Komatsu e Harris, 1993:1, os grifos são de Constantin)8
A primeira fase foi a da gramática inventada pelos gregos “e que continua sem mudança entre os franceses”. Este estudo se caracterizou, lê-se, por ser normativo, voltado para a formulação de regras que distinguissem a língua dita correta da língua dita incorreta, “[...] o que exclui desde o princípio uma visão superior do que é o fenômeno da língua no seu conjunto” (Constantin, apud Komatsu e Harris, 1993:1). A fase seguinte (para mencionar apenas as correntes maiores, ressalva-se – e deixando de lado os precursores da escola “filológica” de Alexandria), Saussure a situou no início do século XIX (!), momento em que emergiu o que considerou a grande corrente filológica da Filologia clássica “[...] que continua até nossos dias”. O ponto de partida dessa segunda fase foi o movimento iniciado pelo então estudante da Universidade de Göttingen, Friedrich August Wolf (1759-1824), que, em 1777, quis ser matriculado em “Filologia”. A Filologia de então, prossegue Constantin, seguiu um novo princípio: o método da análise crítica de textos. As línguas, dessa perspectiva, eram apenas um dos objetos da crítica filológica, mas, diferentemente da simples correção gramatical, o método crítico demandava, por exemplo, o exame de diferentes períodos da língua, o que já era um início, de certa maneira, de um tipo de orientação histórica. Mesmo assim – embora seja impossível não notar a supremacia que Saussure atribuiu à perspectiva histórica –, “[...] não era ainda o espírito da Linguística”. A terceira fase foi registrada por Constantin como “sensacional”, ainda que não contivesse o verdadeiro espírito da Linguística. Foi a fase em que se descobriu que havia uma relação entre as línguas, mesmo entre aquelas geograficamente distantes, e que havia vastas famílias de línguas, sobretudo aquela que se denomi-
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nou indo-europeia. O julgamento de Saussure dessa primeira fase, no Curso III, é mortal (ao menos tal e qual o anotou Constantin): “Coisa espantosa, jamais se fez uma ideia mais defeituosa e absurda do que é a língua que nesses trinta anos que se seguiram à descoberta de Bopp (1816).” (Constantin, Cahier I, apud Komatsu e Harris, 1993:2)9 Essa fase, embora de muita produção, e distinta das anteriores porque focalizou um grande número de línguas e suas relações entre elas, não o fez, continua Saussure/Constantin, de uma perspectiva adequada, aceitável, razoável (literalmente, “juste”, “approuvable”, “raisonnable”): foi puramente comparativa. Dos oito erros que Saussure comentou detalhadamente no Curso II, neste terceiro curso, ele retomou apenas aquele que designou “servilismo à letra”, à língua escrita, que não distinguia com clareza o que era a língua falada real e o seu signo gráfico. Foi o estudo das línguas românicas, inaugurado por Friedrich Diez (17941876), que levou os indo-europeístas a vislumbrarem o que deveria ser, na avaliação de Saussure, o estudo da Linguística. Com efeito, no caso dessas línguas, além de bem documentadas desde a origem graças ao conhecimento do latim, foi possível recuperar com segurança o protótipo de cada forma linguística, ao contrário dos indo-europeístas não romanistas que deviam reconstruir por hipótese o protótipo de cada forma. O mesmo se podia dizer das línguas do grupo germânico, igualmente documentadas por longos períodos, embora, neste caso, o protótipo não fosse conhecido. Nos dois casos, colocar os dados em perspectiva histórica, como já enfatizado anteriormente, foi inevitável. Atingido este estágio – e Saussure aqui empresta a definição dada pelo dicionário Hatzfeld, Darmstetter e Thomas,10 diligentemente anotada por Constantin –, a Linguística se define como o “estudo científico das línguas”, que terá por matéria: toda espécie de modificação da linguagem humana; [...] Ela dará sua atenção a qualquer idioma, [...] ela vai lidar tanto com as formas populares [...] quanto com as formas da língua cultivada ou literária. A Linguística se ocupa, pois, da linguagem em todas as épocas e em todas as manifestações em que se reveste. (Constantin, Cahier I, apud Komatsu e Harris, 1993: 3-4)11
Esse estudo científico, acrescenta Saussure, tem como uma de suas tarefas fazer a história de todas as línguas conhecidas e de suas famílias, de onde derivará as leis mais gerais. Outra de suas tarefas será definir-se e reconhecer qual é seu domínio: “no caso em que ela [a Linguística] depender da Psicologia, ela dependerá indiretamente dela, ela permanecerá independente” (Constantin, Cahier I, apud Komatsu e Harris, 1993: 4).
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Comentários finais Mesmo não tendo sido o objetivo desse texto comparar a evolução do pensamento retrospectivo saussuriano ao longo dos três Cursos de linguística geral que ministrou – tarefa por demais ambiciosa para este tema –, é inevitável apontar certas diferenças de ênfase entre eles no que diz respeito à sua didática sobre a história da disciplina. O Curso I, em que não houve muito tempo para preparação, não sistematiza a questão, embora já estejam presentes aqui e ali as críticas do que Saussure considerou os erros decorrentes da não separação nítida entre o estudo do texto e o estudo da língua, tal como promovidos pela Filologia Clássica e Comparada. A revisão histórica entrou com toda a força no Curso II na última aula da parte introdutória, em que detalhadamente se discutiram os descaminhos da Filologia Comparada. A visão retrospectiva da disciplina muito provavelmente foi considerada relevante por Saussure, na medida em que, através dela, se obtinha o necessário recuo crítico do tipo de estudo pretendido e os resultados equivocados a que chegou. No Curso III, essa revisão é bem mais concisa, menos descritiva e detalhada, mas bastante mais mordaz. O Cahier I de Constantin registrou com clareza as razões da hostilidade (foi o termo anotado) da tradição filológica para com os comparatistas: estes não teriam trazido nenhuma renovação que trouxesse algum benefício para o alargamento dos princípios já utilizados. As três fases da história da Linguística aqui apresentadas – e devidamente retomadas na “Introdução” ao Curso de 1916 – a fase da Gramática, a fase da Filologia e a fase da Filologia Comparativa, ou da Gramática Comparada, é a última palavra de Saussure sobre a questão e a que foi difundida a todos pela vulgata. A Linguística só teria começado mesmo por volta de 1870 através do trabalho dos neogramáticos alemães. A ciência da linguagem que emerge desta revisão saussuriana é a de um estudo autônomo, independente da Psicologia, cujo objeto são as línguas e cujo método, que deve lhe ser próprio, consiste em colocar em perspectiva histórica os resultados da comparação entre as línguas. Foi nessa Linguística que Saussure se formou, trabalhou a maior parte de sua vida e publicou. Não fossem as críticas feitas nos cursos orais aos neogramáticos, flagradas aqui e ali nas anotações dos seus alunos, principalmente aquelas relativas aos fundamentos da disciplina linguística, poderíamos interpretar Saussure como tendo feito uso da história em proveito das suas próprias ideias. Não parece ter sido o caso, entretanto. Para Saussure a Linguística será uma ciência semiológica, e não histórica.
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O anunciado curso em “Linguística Estática” nunca aconteceu, não sabemos, pois, se Saussure a teria efetivamente tornado autônoma e precedente em relação à “Linguística Histórica”. Em outras palavras, se Saussure sabia que sua exigência de tomada de consciência do alcance e dos limites de uma disciplina linguística autônoma embutia potencialmente o germe de um novo paradigma, em que a consistência de uma descrição estrutural, sincrônica, seria, ela mesma, a explicação das formas e funções linguísticas, independente do estudo histórico dessas mesmas formas e funções, a resposta é: muito provavelmente não. O que é certo é que foi isso o que lemos no Curso de 1916, e que, cem anos após sua morte, Saussure cumpre uma vez mais com brilhantismo o destino dos mitos, que é o de nos fazer reconhecer a todos, na origem, coparticipantes de um mesmo projeto de ciência.
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“Nous ne faisons pas d l’histoire de la linguistique mais de l’indoeuropéen; rappelons cependant la découverte de Bopp (1816) [...] qui par la révélation du sanscrit a eu l’idée de la parenté des langues indoeuropéennes” (Riedlinger, Cahier III, apud Komatsu e Wolf, 1996: 107). Pictet, autor de volumoso trabalho sobre Origines indoeuropéennes (Paris, 1859-1961) era amigo de família e o responsável por introduzir Saussure nos estudos linguísticos (Koerner, 1982: 80). “Aperçu de la linguistique indo-européenne comme introduction à la linguistique générale”. Franz Bopp, Du système de la conjugaison sanscrite comparé avec celui des langues latine, grecque, persane et germanique, 1816. Outros nomes são mencionados no Cahier VI como precursores de Bopp no estudo do sânscrito, sem que se tenha, “[...] arrivé d’une maière générale à comprendre la valeur du sanscrit” (“sem que se tenha chegado, de maneira geral, a compreender o valor do sânscrito”): P. Coeurdoux (1767); William Jones (1786), o Mithridates oder allgemeine Sprachenkunde (“Mithridates ou linguística geral”) de Christophe Adelung, de 1806, que, embora tenha comparado 26 páginas de palavras do sânscrito com palavras gregas, latinas e alemãs, não tirou nenhuma consequência dessa semelhança (cf. Riedlinger, Cahier VI, apud Komatsu e Wolf, 1997: 72-73). Todos então bastante jovens quando Saussure chegou como estudante à Universidade de Leipzig: Brugmann tinha 27 anos, Osthoff, 29, Sievers e Braune, 26 (Koerner, 1982: 83). R. Godel, “Nouveaux documents saussuriens: les cahiers E. Constanin”, Cahiers Ferdinand de Saussure, t. 16, 1958-9. Utilizados por Rudolf Engler na sua edição crítica do Cours (Wiesbaden: Harrassowitz, 1968). “Le cours traitera la linguistique proprement dite, et non la langue et le langage. Cette science a passé par des phases défectueuses. On reconnaît trois phases, soit trois directions suivies historiquement par ceux qui ont vu dans la langue un objet d’étude. Après est venue une linguistique proprement dite, consciente de son objet” (apud Komatsu e Harris, 1993:1, os grifos são de Constantin). “Chose étonnante, jamais on ne se fit une idée plus défectueuse et plus absurde de ce qu’est la langue que dans les trente années qui suivirent cette découverte de Bopp (1816)” (Constantin, Cahier I, apud Komatsu e Harris, 1993: 2). Trata-se do General Dictionary of the French Language (vs. 1-2, 1895-1900) de Adolphe Hatzfeld, Arséne Darmesteter e Antoine Thomas. “toute espèce de modification du langage humain; [...] Elle donnera son attention à n’importe quel idiome, [...] elle s’occupera à la fois des formes populaires [...] et des formes de la langue cultivée ou littéraire. La linguistique s’occupe donc du langage à toute époque et dans toutes les manifestations qu’il revêt” (Constantin, Cahier I, apud Komatsu e Harris, 1993: 3-4).
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Uma contradição aparente em Saussure: o problema da relação língua-história Marcio Alexandre Cruz
A partir dos anos 1950,1 o pensamento de Saussure relativo à Linguística geral deixa o estreito círculo dos linguistas, penetrando o domínio das ciências humanas e da Filosofia. Trata-se aí do chamado estruturalismo generalizado. Esse movimento, que inaugura uma nova fase na história das recepções do pensamento de Saussure, parece cristalizar a figura do linguista genebrino num corpo doutrinal que, segundo A. J. Greimas, em seu artigo de 1956, intitulado “A atualidade do saussurismo”, não vê na dicotomia sincronia/diacronia senão a “condenação peremptória” da história. Se, no âmbito da vulgarização científica, essa representação continua, em grande medida, a ser veiculada nos cursos e manuais de introdução à Linguística como uma evidência, no âmbito da pesquisa ela tem sido problematizada. Assistimos, inclusive, atualmente, à emergência de outra evidência, oposta a essa, e, do nosso ponto de vista, não menos problemática, segundo a qual não somente não haveria ruptura entre Saussure e a Linguística contemporânea como Saussure seria mesmo o fundador de abordagens como a Análise do Discurso ou a Pragmática. Defendemos em outro lugar (cf. Cruz, 2011) uma revisão dessa representação de Saussure e da história da Linguística. Evitando todo recurso à noção de precursor,2 sustentamos que Saussure não exclui dos estudos linguísticos a história, tampouco o sujeito ou o sentido. Antes, ele inscreve-se numa tradição que representou uma reação a outra tradição que, esta sim, teria excluído tais elementos, qual seja, a tradição naturalista. Nesse sentido, Saussure aparece não como precursor, mas como inscrito numa mesma tradição, que poderíamos chamar de histórica em oposição a naturalista. Para ser breve, a revisão que propusemos consistia no seguinte: a reintrodução de elementos como sujeito, sentido, história... nos estudos linguísticos não se dá nos anos 1960/1970, como normalmente é veiculado
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nos cursos e manuais de introdução à Linguística, mas no final do século XIX, quando do combate à Linguística naturalista, e Saussure participa desse combate. Contudo, assim como há distinções entre as teorizações de Michel Pêcheux e de Mikhail Bakhtin, por exemplo, há, igualmente, distinções entre as teorizações de Saussure e desses autores. Nossos argumentos foram de ordem externa, isto é, não procuramos discorrer sobre as concepções de sujeito, sentido, história... em Saussure, mas tão somente reconstituir o contexto de emergência de seu pensamento, procurando, com isso, fornecer elementos de resposta para a seguinte questão: em que medida se pode dizer que Saussure se inscreve numa tradição que procura justamente resgatar esses elementos supostamente por ele excluídos quando de seu projeto de uma Linguística autônoma? A presente contribuição pretende-se uma continuação desse debate. Se antes desenvolvemos essa investigação apresentando, como dissemos, argumentos de ordem externa, trataremos agora de fornecer argumentos de ordem interna, restringindo-nos à noção de história. O tema ainda não está, todavia, bem delimitado. Sabemos que Saussure desenvolveu estudos de diversas ordens. Sabemos, também, que as fontes saussurianas são muitas. Assim, de qual Saussure estamos falando? Sobre quais fontes iremos nos debruçar? Ainda, que problemática especificamente pretendemos abordar ao tratar da noção de história em Saussure? Vejamos.
Delimitações Em relação ao primeiro ponto, poderíamos estar falando do Saussure das lendas germânicas, um Saussure quase etnógrafo, que estudava a língua tendo em vista o conhecimento histórico. Poderíamos igualmente estar falando do Saussure da diacronia, preocupado com a evolução dos sons e fazendo, assim, abstração total do sentido. Poderíamos ainda estar falando do Saussure da Linguística externa, que teria, segundo Paul Regard, “atribuído o prodigioso arcaísmo do lituano à longa persistência do paganismo nas regiões do falar lituano” (1919: 10-1, apud Mauro, 1972: 347). Não é, contudo, de nenhum desses Saussure que estamos falando, mas, sim, do Saussure da Linguística sincrônica, ou, se preferirmos, da Linguística dita “estática”. Trata-se aqui, em uma palavra, de uma investigação em torno da relação entre a língua concebida como um sistema de signos e a história. Quanto ao segundo ponto – relativo às fontes de pesquisa – poderíamos analisar as fontes manuscritas de Saussure. Poderíamos também estudar as diversas anotações dos alunos atualmente disponíveis. Poderíamos ainda nos debruçar sobre
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o Curso de linguística geral (CLG) redigido por Charles Bally e Albert Sechehaye. Exploraremos aqui em particular este último e os Escritos de linguística geral (ELG). Se decidimos incluir o CLG em nossa pesquisa, é porque acreditamos demasiado precipitada a ideia, atualmente em voga, defendida por uma certa filologia saussuriana, de que essa obra é um “apócrifo”, que teria suscitado uma série de mal-entendidos em torno da figura de Saussure, inclusive aquele segundo o qual a língua concebida como um sistema de signos se opõe à história. De fato, muitos autores sustentam que, se assistimos hoje a uma mudança de representação em relação a Saussure – assim como Marx não foi marxista, Saussure não teria sido estruturalista –, isto se deve à descoberta das fontes manuscritas, que revelariam um Saussure inteiramente outro. É o que defendem, por exemplo, Simon Bouquet e François Rastier, que, certamente, objetariam: “por que não ir diretamente às fontes manuscritas?” É que alguns fatos convidam a uma atitude mais cautelosa: de um lado, temos leituras de Saussure anteriores à descoberta das fontes manuscritas – portanto, leituras baseadas exclusivamente no CLG – que se aproximam de muitas leituras recentes, baseadas nas fontes manuscritas e que mostram um Saussure menos dicotômico, que teria concebido a relação entre sistema e história, língua e fala como uma relação dialética (cf., por exemplo, a leitura de Merleau-Ponty, 1953). De outro lado, mesmo que insistamos nessa ideia de que o CLG é um “apócrifo”, a maior parte das fontes manuscritas já estava disponível desde 1968. Por que, então, se continuou a veicular essa representação de Saussure? Essa questão sugere uma ordem de investigação menos filológica do que histórica e que tem como objeto de investigação privilegiado menos Saussure em si mesmo e por si mesmo do que as recepções de seu pensamento. Por fim, no que diz respeito à questão propriamente dita deste trabalho, trataremos aqui, precisamente, de uma aparente contradição em Saussure quanto à relação entre língua e história. Essa aparente contradição pode ser colocada da seguinte forma: de um lado, lemos no CLG: “[a] oposição entre os dois pontos de vista – sincrônico e diacrônico – é absoluta e não admite compromissos” (Saussure, 1972: 119), de outro, lemos: a cada instante a linguagem implica ao mesmo tempo um sistema estabelecido e uma evolução [...]. Parece, à primeira vista, muito fácil distinguir entre esse sistema e sua história, entre aquilo que ele é e aquilo que ele foi; na realidade, a relação que une essas duas coisas é tão estreita que é difícil separá-las. (Saussure, 1972: 24)
Procuraremos, nas linhas que seguem, mostrar que não se trata aí de contradição. Comecemos pela primeira afirmação.
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Os pontos de vista sincrônico e diacrônico Saussure, de fato, defende que os pontos de vista sincrônico e diacrônico devem ser radicalmente separados. Contudo, não se trata aí da separação entre um domínio a-histórico (a sincronia) e um domínio histórico (a diacronia). Se recolocarmos o pensamento de Saussure em seu contexto de emergência, veremos que se trata aí, antes, da separação entre um domínio cujo objeto é a evolução dos sons de uma palavra considerando apenas seu invólucro material, independente de qualquer significação ou uso por um sujeito falante – é a linguagem reduzida ao seu aspecto fisiológico – e um domínio cujo objeto é a “língua viva” (Saussure, 1972: 253), isto é, a língua segundo a perspectiva dos sujeitos falantes. Com efeito, a diacronia concerne ao estudo das relações entre termos que se sucedem, substituindo-se uns aos outros no tempo, “fora de toda intenção” (Saussure, 1972: 122). Assim, permanece-se encerrado no domínio da fonética e “o caráter diacrônico da fonética concorda muito bem com o princípio de que nada do que é fonético é significativo ou gramatical” (Saussure, 1972: 194). Ignora-se, portanto, o sentido de uma palavra e não se considera senão seu invólucro material. Trata-se de “cortar frações fônicas sem se perguntar se elas têm uma significação” (Saussure, 1972: 194). O fato sincrônico, ao contrário, “não conhece senão uma perspectiva, a dos sujeitos falantes” (Saussure, 1972: 128). Com efeito, a sucessão dos fatos de língua no tempo não existindo para os sujeitos falantes, estes se encontram sempre diante de um estado, e “o linguista que deseja compreender esse estado deve fazer tábua rasa de tudo o que o produziu e ignorar a diacronia. Ele só pode entrar na consciência dos sujeitos falantes se suprimir o passado” (Saussure, 1972: 117). Para ilustrar a oposição entre sincronia e diacronia, Saussure apresenta alguns fatos. Por exemplo, embora hoje os falantes de francês estabeleçam uma relação entre décrépi e décrépit nas expressões “un mur décrépi” e “un homme décrépit”, essas palavras não têm nada a ver uma com a outra do ponto de vista histórico. O radical francês crép- – nos verbos crépir, “cobrir o reboco”, e décrépir, “retirar o reboco” – é dado pelo latim crispus, ou seja, “ondulado”, “crespo”, enquanto décrépit é o resultado do empréstimo ao latim da palavra decrepitus, significando “gasto pela idade” (cf. Saussure, 1972: 119-20). Ao contrário, historicamente a partícula de negação em francês pas é idêntica ao substantivo pas (passo). Contudo, considerado na língua de hoje, esses dois elementos são totalmente distintos (cf. Saussure, 1972: 129). Saussure diferencia, a propósito disso, a análise objetiva da análise subjetiva. A primeira funda-se na história, ao passo que a segunda concerne ao ponto
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de vista dos sujeitos falantes. Em outras palavras, a análise objetiva é, segundo Saussure, a análise do historiador e escapa à consciência dos sujeitos, enquanto a análise subjetiva é justamente aquela à qual os sujeitos procedem quando do uso cotidiano da língua: “a palavra é como uma casa cuja disposição interior e a destinação tivessem sido mudadas inúmeras vezes. A análise objetiva totaliza e superpõe essas distribuições sucessivas; mas para aqueles que ocupam a casa, há sempre uma distribuição apenas” (Saussure, 1972: 252). A distinção entre os pontos de vista sincrônico e diacrônico remete a um debate intenso que teve lugar no final do século XIX, período em que emerge uma tradição que se pretende uma reação à Linguística iniciada por Franz Bopp (1791-1867) e que encontra seu apogeu com os estudos de August Schleicher (1821-1868), para quem “as línguas são organismos naturais que, independentemente da vontade humana, crescem, se desenvolvem, envelhecem e morrem. [...] A glótica ou ciência da linguagem é, consequentemente, uma ciência natural” (Schleicher, 1980 [1863]: 61-2). Trata-se aí de uma Linguística que reduziu seu objeto ao estudo do som, considerado unicamente como realidade física, suscitando um apagamento total da dimensão humana da linguagem. Seu estudo viu-se reduzido, como observou Michel Bréal, “às proporções de um ramo secundário da acústica e da fisiologia” (Bréal, 1897: 1). Assim, pode-se dizer que, em Saussure, a dimensão sincrônica representa nada mais, nada menos que o resgate da dimensão humana da linguagem. Podemos melhor entender, a partir desta reflexão, por que Saussure afirma no CLG que “manter a distinção absoluta entre a diacronia e a sincronia [...] se torna muito difícil a partir do momento em que se saia da fonética pura” (Saussure, 1972: 194). É que, ao sair desse nível, penetra-se um domínio em que a língua concerne, justamente, ao sujeito falante ou, se preferirmos, penetra-se um domínio em que o “signo” se associa a uma “ideia”, o que, para Saussure, representa “o fenômeno primordial da linguagem” (Saussure, 2002: 47). Passemos agora à análise da segunda afirmação de Saussure, anteriormente mencionada, segundo a qual, lembrando, a cada instante a linguagem implica ao mesmo tempo um sistema estabelecido e uma evolução [...]. Parece, à primeira vista, muito fácil distinguir entre esse sistema e sua história, entre aquilo que ele é e aquilo que ele foi; na realidade, a relação que une essas duas coisas é tão estreita que é difícil separá-las. (Saussure, 1972: 24)
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A relação entre sistema e história em Saussure Como se sabe, para Saussure, o signo é arbitrário, ou seja, “[o] laço que une o significante ao significado é arbitrário” (Saussure, 1972: 100). Uma das consequências do princípio da arbitrariedade do signo é que “uma língua é radicalmente incapaz de se defender dos fatores que deslocam, de instante em instante a relação do significado e do significante” (Saussure, 1972: 110). Na ocasião de sua primeira conferência da Universidade de Genebra, em 1891, Saussure pergunta-se até que ponto os estudos linguísticos devem ter seu lugar numa faculdade de Letras e não numa faculdade de Ciências e afirma: À medida que se compreendeu melhor a verdadeira natureza dos fatos de linguagem, tão perto de nós, mas tão mais difíceis de apreender em sua essência, ficou mais evidente que a ciência da linguagem é uma ciência histórica e nada mais que uma ciência histórica. (Saussure, 2002: 148)
Isso porque, para Saussure, tudo na língua é história, o que significa dizer que ela é um objeto de análise histórica e não de análise abstrata, que ela se compõe de fatos e não de leis, que tudo o que parece orgânico na língua é na realidade contingente e completamente acidental. (Saussure, 2002: 149)
A imobilidade absoluta não existe em matéria de língua e “no final de certo lapso de tempo a língua não será mais idêntica a ela mesma” (Saussure, 1972: 273). Trata-se aí, para o autor, de uma evolução fatal, não havendo exemplo de uma língua que possa resistir a essa evolução e isso pode ser verificado mesmo nas línguas artificiais. Segundo Saussure, aquele que cria uma língua artificial a tem sob domínio até o momento em que ela entra em circulação; mas desde o momento em que ela cumpre sua missão e passa a pertencer a todos, o controle escapa [...] Passado o primeiro momento, a língua entrará muito provavelmente em sua vida semiológica; ela se transmitirá por leis que não têm nada em comum com as leis da criação refletida, e não se poderá mais voltar atrás. (Saussure, 1972: 111)
O princípio da mutabilidade do signo pode suscitar, todavia, uma questão: considerando que o “rio da língua corre indefinidamente” (Saussure, 1972: 193), como
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explicar então o fato de que os sujeitos falantes se compreendem – ou, antes, têm a impressão de que se compreendem –,3 o que é, aliás, segundo Saussure (2002: 178-9), o objetivo, o fim e o efeito de todas as línguas? Essa discussão remete à problemática da identidade. Saussure fornece quanto a esse propósito o seguinte exemplo: [u]m sujeito original chamado Boguslawski anunciou recentemente numa cidade da Rússia a abertura de uma exposição de um novo gênero: eram simplesmente 480 retratos fotográficos representando todos a mesma pessoa, ele, Boguslawski, e identicamente na mesma posição. Depois de vinte anos com uma regularidade admirável, o primeiro e o décimo quinto de cada mês, esse homem devoto à ciência se dirigia a seu fotógrafo e ele se encontra agora em condições de fazer o público desfrutar o acúmulo de seu trabalho. Eu não tenho necessidade de lhes dizer que, se nessa exposição, considerássemos duas fotografias contíguas quaisquer, teríamos o mesmo Boguslawski, mas que se considerássemos a de nº 480 e a de nº 1 teríamos dois Boguslawski. Igualmente, se tivéssemos podido não fotografar, mas fonografar a cada dia desde a origem tudo o que foi expresso na fala sobre o globo ou sobre uma parte do globo, teríamos imagens de língua sempre semelhantes de um dia para o outro, mas consideravelmente diferentes e às vezes incalculavelmente diferentes de 500 em 500 anos, ou mesmo de 100 em 100 anos. (Saussure, 2002: 157)
Essa comparação remete, de algum modo, a um questionamento da noção de mudança. Se, conforme o princípio da mutabilidade do signo, a língua encontra-se num processo de transformação incessante, a consciência dos sujeitos falantes não conhece senão a dimensão do presente, lá onde “a língua [...] é a cada momento tarefa de todo mundo”, “algo do qual todos os indivíduos se servem durante todo o dia” (Saussure, 1972: 107), o que torna impossível qualquer revolução. Trata-se aí do princípio da imutabilidade do signo, conforme aparece no CLG (Saussure, 1972: 104), ou, se preferirmos, do princípio da continuidade da língua no tempo, conforme mencionado na primeira conferência de Saussure na Universidade de Genebra. Esse princípio consiste no fato de que “jamais e em parte alguma conhecemos historicamente ruptura na trama contínua da linguagem” (Saussure, 2002: 152). Se consideramos um certo estado de língua e um certo estado de língua anterior, constatamos com surpresa a grande distância entre eles e, assim, tendemos a encontrar aí duas coisas distintas, uma sucedendo a outra. Que exista aí sucessão, isso é para Saussure uma evidência. Mas que existam duas coisas distintas nessa sucessão, isso é “falso, radicalmente falso e perigosamente falso” (Saussure, 2002: 152). Para Saussure, “cada indivíduo emprega no dia seguinte o mesmo idioma que ele falava na véspera e isso sempre se viu” (Saussure, 2002: 152). Com efeito,
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nenhuma sociedade conhece nem jamais conheceu a língua senão como um produto herdado das gerações precedentes cabendo-lhe tomá-la como tal. [...] Um estado de língua dado é sempre o produto de fatores históricos, e são esses fatores que explicam por que o signo é imutável, isto é, resiste a toda substituição arbitrária. (Saussure, 1972: 105)
Saussure afirma no CLG, a propósito da aparente contradição relativa a esses dois princípios, o seguinte: “os dois fatos são solidários: o signo esta em condições de se alterar porque ele continua. O que domina em toda alteração é a persistência da matéria antiga; a infidelidade ao passado é apenas relativa” (Saussure, 1972: 109). Na segunda conferência na Universidade de Genebra, Saussure afirma: “longe de ser contraditórios, [ambos os princípios] encontram-se numa correlação tão estreita e tão evidente que, tão logo somos tentados a esquecer um, fazemos injúria ao outro” (Saussure, 2002: 157). Com isso, Saussure responde à questão relativa à possibilidade de comunicação face ao princípio do movimento da língua no tempo: trata-se de pressupor uma ordem na língua em que, para a consciência dos sujeitos falantes, as mudanças, apesar de reais, não são percebidas. Em outras palavras, embora a língua tenha uma história, esta escapa à consciência dos sujeitos falantes, e essa sucessão contínua de ordem diacrônica não cessa de se dissolver na dimensão do presente, isto é, na dimensão da sincronia. Como afirma Chiss, a heterogeneidade saussuriana da sincronia e da diacronia abre a uma concepção teórica do sincrônico (da sincronia) como presente do conhecimento, que subordina a apreensão do passado da língua à consideração da sincronia como sistema articulado de conceitos. (Chiss, 1978: 102)
Essa ordem que concerne ao presente da língua, isto é, à dimensão da sincronia, é, no entanto, radicalmente histórica e funda-se no fato social, lá onde a dispersão absoluta parece encontrar uma razão relativa. De acordo com Saussure, “em momento algum, e contrariamente à aparência, [a língua] existe fora do fato social, porque ela é um fenômeno semiológico. Sua natureza social é um de seus caracteres internos” (Saussure, 1972: 112). Se a arbitrariedade do signo implica uma ordem própria da língua, ela implica ao mesmo tempo uma determinação social constitutiva do sistema linguístico. Como afirma Saussure,
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A escolha que convoca tal porção acústica para tal ideia é perfeitamente arbitrária. Se não fosse esse o caso, a noção de valor perderia algo de seu caráter, pois ela conteria um elemento imposto de fora. Mas de fato os valores permanecem inteiramente relativos, e eis por que o laço da ideia e do som é radicalmente arbitrário. Por sua vez, a arbitrariedade do signo nos faz melhor compreender por que apenas o fato social pode criar um sistema linguístico. A coletividade é necessária para estabelecer os valores cuja única razão de ser está no uso e no consentimento geral; o indivíduo sozinho é incapaz de fixar um valor qualquer que seja. (Saussure, 1972: 157)
Assim, a língua em Saussure está longe de ser um sistema inteiramente independente das significações ideológicas que se ligam a ele. Ainda, não se trata aí de imobilismo de normas sempre idênticas a si mesmas. A propósito da lei sincrônica, Saussure afirma que esta é geral, mas não é imperativa, e que a ordem que ela define é precária: [s]em dúvida, ela se impõe ao indivíduo pela coerção do uso coletivo [...], mas nós não vemos aqui uma obrigação relativa aos sujeitos falantes. Queremos dizer que na língua nenhuma força garante a manutenção da regularidade quando ela reina num ponto qualquer. Simples expressão de uma ordem existente, a lei sincrônica constata um estado de coisas; ela é de mesma natureza que aquela que constataria que as árvores de um bosque estão dispostas em xadrez. E a ordem que ela define é precária, precisamente porque ela não é imperativa. (Saussure, 1972: 109)
Como observa Tullio de Mauro (1972: XII), os significantes, os significados e sua organização em sistema não estão submetidos a nenhuma realidade lógica ou natural, a língua estando, assim, sujeita às mudanças mais profundas, mais imprevisíveis. Da análise de Saussure do princípio da arbitrariedade do signo, decorre, assim, uma consequência fundamental: a natureza radicalmente social da língua. Na medida em que os signos, em sua diferenciação recíproca e em sua organização em sistema, não respondem a nenhuma exigência natural, “a única base válida de sua configuração particular em tal ou tal língua é o consenso social” (Mauro, 1972: XIII). É esse caráter radicalmente histórico da língua que permitiu a Saussure, depois de um século, realizar efetivamente o projeto, que se inicia com Franz Bopp, de uma Linguística autônoma: “[n]ão apenas um indivíduo seria incapaz, se ele quisesse, de modificar seja como for a escolha que foi feita [de um significante para representar uma ideia], mas a própria massa não pode exercer sua soberania sobre uma única palavra” (Saussure, 1972: 104).
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Conclusão Comecemos por resumir os três pontos que aqui expusemos. Vimos, primeiramente, que a separação entre os pontos de vista diacrônico e sincrônico não remete à separação entre um domínio histórico (a diacronia) e um domínio a-histórico (a sincronia), mas, antes, à separação de duas ordens de estudo que se ocupam de objetos distintos. A diacronia trata da evolução dos sons reduzidos a seu aspecto físico. A sincronia, por sua vez, estuda a língua do ponto de vista do sujeito falante. Vimos, ainda, que a sincronia em Saussure não remete a um domínio desprovido de historicidade, mas, antes, que se trata aí de uma dimensão radicalmente histórica. A única razão que parece governar o funcionamento da linguagem está ancorada no fato social, que representa um princípio de ordem procurando limitar as consequências do princípio da mutabilidade do signo. A ordem que se estabelece é, contudo, sempre fortuita e precária. Finalmente, pudemos mostrar que o próprio CLG permite, em grande medida, desconstruir uma representação normalmente atribuída a ele, segundo a qual Saussure teria excluído a história dos estudos linguísticos. Em relação aos dois primeiro pontos, tratou-se, com esta investigação em torno da relação entre língua e história em Saussure, menos da tentativa de produção de mais uma leitura de Saussure do que da tentativa de desconstrução de representações que, do nosso ponto de vista, não resistem à crítica contemporânea, mas, na qual, ainda estamos, em grande medida, inscritos. Fizemos isso sem descartar o CLG por acreditar que devemos, ao explorar as fontes manuscritas, também nos perguntar se estas apresentam de fato outro Saussure. Ao que parece, o trabalho em torno das fontes manuscritas apresentam, realmente, e, sobretudo no que diz respeito à Linguística geral, outra representação de Saussure. Contudo, esse mesmo trabalho permite mostrar igualmente que o CLG também já apresenta esse outro Saussure e que essa representação de um Saussure que teria fundado a ciência da linguagem ao preço da exclusão de uma série de elementos deve ser buscada em outro lugar. Jean-Louis Chiss e Christian Puech, elegendo como objeto privilegiado de investigação a problemática das recepções do pensamento de Saussure, observam que, em se tratando de Saussure, mal a “era da comemoração” se inicia e já desde a primeira constituição do CLG um ritual ambíguo de homenagem é imediatamente acompanhado do apontamento de lacunas, de tentativas de superação. Há aí, segundo esses autores, um duplo fato, que a paradigmatização pedagógico-universitária sublinha bem: de um lado, inúmeros tratados de iniciação à Linguística iniciam-se
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alegando a conceitualidade saussuriana, considerando-o como fundador. De outro, inúmeros trabalhos iniciam-se criticando a “ortodoxia saussuriana”, mostrando a face escondida do “pai”, que teria impedido tantos desenvolvimentos da ciência linguística, e “[n]este último caso, cada um reescreve sua história da Linguística para justificar seja o advento da Sociolinguística, da Análise do Discurso, da Teoria da Enunciação” (Chiss e Puech,1999: 59, ênfase de Chiss e Puech). Puech (2000) formula a hipótese de que a teoria saussuriana teria sido menos uma teoria efetivamente aplicada, testada e, finalmente, superada/integrada do que uma ferramenta que teria permitido num dado momento da ciência linguística justificar a emergência de uma série de abordagens ao longo do século XX que lançam seus projetos como uma reação à Linguística saussuriana. Para Hans Aarsleff (1982: 313), um certo modo particular do linguista de contar a história de sua própria disciplina – instaurando rupturas lá onde o historiador vê continuidades – é típico de disciplinas institucionalmente bem-sucedidas, que criam sua própria história em função de seus interesses ideológicos. Desconstruir esse modo de organização do passado é essencial para o avanço da disciplina. Acreditamos, com efeito, que todo avanço efetivo, sobretudo no domínio das ciências humanas, passa necessariamente pelo conhecimento da história.
Notas 1 2
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Este texto retoma algumas discussões desenvolvidas em Cruz, 2006. Georges Canguilhem (2002) já havia nos prevenido dos perigos de tal noção, que, segundo ele, apaga a historicidade do pensamento científico. Ao fazer de um autor o precursor de outro, perdemos a coerência interna própria a todo sistema; não lemos mais o suposto precursor a partir de seu projeto inicial, e sim a partir de um contexto outro envolvendo preocupações outras. Saussure afirma nos ELG: “[u]ma forma é uma figura vocal que é para a consciência dos sujeitos falantes determinada, isto é, ao mesmo tempo existente e delimitada. Ela não é nada mais; como ela não é nada menos. Ela não tem necessariamente ‘um sentido’ preciso; mas ela é sentida como algo que é” (Saussure, 2002: 37, destaque em itálico de Marcio Alexandre Cruz).
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O lugar do conceito de fala na produção de Saussure Eliane Silveira
Ferdinand de Saussure tem a sua importância reconhecida no campo das ciências humanas em geral e da Linguística em particular, com um percurso intelectual pouco comum no século XX: escreveu muito, publicou pouco e alcançou notoriedade especificamente pelo que falou ou escreveu e não publicou, mas chegou ao público através daqueles que estiveram mais próximos, em um primeiro momento, do próprio Saussure e, mais tarde, dos seus manuscritos. A genialidade das suas elaborações foi, no entanto, maior do que as dificuldades impostas pelas circunstâncias e pelas limitações do próprio Saussure em publicar. Mas tal conjuntura de produção, circulação e recepção da sua obra configurou-a como bastante polêmica e ela desperta, ainda hoje, nos leitores e estudiosos de Saussure, uma série de hipóteses sobre o desenvolvimento da sua teoria, já que a característica maior dessa obra – tendo como fonte as aulas de Saussure ou os seus manuscritos – é o seu caráter inacabado. No que diz respeito à forma, essa é a característica maior da produção de Saussure, tanto no que se refere aos seus manuscritos, nos quais com muita frequência encontramos frases que ficam em suspenso, quanto em relação aos cursos do início do século XX, que foram interrompidos pela sua morte prematura. Neste capítulo iremos além da forma dessas duas fontes e abordaremos o caráter inacabado de um conceito trabalhado por Saussure. Trata-se do conceito de fala, que alimentou várias polêmicas na Linguística em geral ou particularmente entre os estudiosos da fortuna saussuriana. A recepção da produção saussuriana durante um século é bastante variada, mas é bastante recorrente a interpretação de que Saussure excluiu a fala do escopo da Linguística por ele construída, e aqui se reconhece facilmente a Sociolinguística Variacionista. Essa interpretação, que a priori parece fácil, não é a única possível.
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Na Linguística também tivemos o movimento de reconhecimento da complexidade da elaboração de Saussure sobre a fala atribuindo a ela um lugar importante na elaboração de Saussure mesmo admitindo que ainda havia muito a ser feito, aqui se reconhece, por exemplo, a Linguística da enunciação.1 Essas distintas posições acabam por ratificar a importância do passo de Saussure na direção de colocar em discussão a não coincidência entre língua e fala e a pertinência de um posicionamento teórico em relação a esses elementos na Linguística. Sabemos que o trabalho de Saussure passa por transformar os estudos holísticos sobre a linguagem do século XIX em um estudo especializado sobre a língua no século XX, é o que se lê especialmente nas suas cartas a Meillet,2 mas também em muitos dos seus manuscritos e no livro Curso de linguística geral, taxativamente: “Evitando estéreis definições de termos, distinguimos primeiramente, no seio do fenômeno total que representa a linguagem, dois fatores: a língua e a fala. A língua é para nós a linguagem menos a fala.” (Saussure, 2012: 92). Claro que essa afirmação, aparentemente simples, esconde a complexidade de cada um dos conceitos envolvidos e da relação entre eles, bem como o seus lugares em toda a teorização de Saussure e, ainda mais, a especificidade da produção, circulação e recepção desse cabedal teórico. Algumas perguntas podem ser interessantes para explorarmos a complexidade do conceito de fala em Saussure: I) Qual era o lugar que Saussure, de fato, dava para a fala no interior da sua elaboração?; II) Qual a natureza teórica da fala na Gramática Comparada, ambiente intelectual da formação de Saussure?; III) Que lugar ocupa o conceito de fala no Curso de linguística geral?; e, finalmente, IV) Que lugar ocupa o conceito de fala nos manuscritos de Saussure? Tais perguntas ainda não esgotam todas as questões a respeito do conceito em Saussure – aqui deixamos de fora, por exemplo, a questão da recepção –,3 mas permitem colocar o conceito em exame de uma maneira abrangente, examinando alguns pontos que favorecem uma visão mais geral da concepção de fala no percurso teórico de Saussure.
A “fala” para Saussure O testemunho de Gaultier nos dá alguns indícios a respeito do quanto o conceito de fala era uma das preocupações de Saussure desde as suas primeiras elaborações. Em maio de 1911, após uma conversa com Saussure, seu professor à época, Gaultier anota o que este lhe havia dito:
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Primeira verdade: a língua é distinta da fala. Isso serve apenas para desembaraçar o problema daquilo que é fisiológico. Em seguida restará apenas o que é psíquico. Ora me parece que se chega a esta primeira necessidade por muitas vias opostas. (apud Godel, 1969: 30, tradução nossa)
Bem ao seu estilo, Saussure lamenta a falta de especificidade dos termos nos estudos da linguagem e cada vez que se propõe a esclarecê-los encontra bem mais de uma via para fazê-lo. Esse testemunho é digno de destaque porque é feito já quando o genebrino ministrava o segundo Curso de linguística geral, mas é bastante provável que essa questão tenha ocupado Saussure desde há muito tempo. De fato, o Mémoire, escrito por ele durante a sua formação em Leipzig e publicado em 1878, que é a reflexão de Saussure que marca a sua entrada no meio acadêmico, já mostra o linguista entre os fenômenos da fala e o sistema da língua. Além disso, é preciso considerar que a distinção entre língua e fala não é decorrente de uma atitude teórica isolada, mas tem relação com as diversas empreitadas de Saussure, como muitos autores já notaram em relação às suas análises de versos saturninos.4 Mas é preciso também não desconsiderar que, entre o Mémoire e o trabalho com a versificação ou com as aulas dos Cursos de linguística geral, à época dessa sua afirmação, ele se ocupou de Gramática Comparada, deteve-se sobre as lendas germânicas, estudou e deu aulas de várias línguas, manteve-se escrevendo sobre tudo isso e, especialmente, sobre a natureza da linguagem. Ou seja, cada uma dessas empreitadas, que sempre resultaram em alguma reflexão sobre o caráter geral do objeto da Linguística, pode ter contribuído, a sua maneira, para as especulações de Saussure sobre a natureza da fala. Na edição crítica do Curso de linguística geral, De Mauro, em 1967, retoma Hjelmslev (1942) em artigo específico sobre a fala e nos dá mais uma indicação sobre a importância e a transversalidade da distinção entre língua e fala no percurso teórico de Saussure: Segundo Hjelmslev esta distinção é a “tese primordial” do CLG. Isso é provavelmente verdadeiro no sentido cronológico: desde os anos de Leipzig e da viagem à Lituânia, Saussure percebeu a distinção entre estudo “histórico” e “fisiológico” dos “sons”, mesmo que a distinção entre língua e fala seja bem mais tardia. (De Mauro, 1986 [1967]: 420, destaque e tradução nossa)
A distinção entre língua e fala é mesmo a “tese primordial” de Saussure, seja cronológica ou teoricamente, já que ela afetará todas as outras elaborações suas e por isso é preciso acrescentar que essa distinção é transversal às elaborações saussurianas.
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Mas fundamental é perceber que as preocupações de Saussure com a natureza da fala estão presentes desde o início até o fim de suas elaborações e perpassam vários dos temas tocados por ele no seu intenso percurso pelos estudos da linguagem. É preciso também considerar que o ambiente de formação de Saussure lhe forneceu os elementos para levar adiante essa questão, seja no que já havia sido realizado sobre a fala como conceito ou no que ainda estava por ser feito.
A “fala” na Gramática Comparada As possíveis influências sobre o trabalho de Saussure são citadas frequentemente e entre elas destacam-se os estudos de Gramática Comparada que fizeram parte, na Alemanha do século XIX, das referências obrigatórias à formação do linguista daquela época. Sabe-se que a prática comparatista se ocupava das mudanças das línguas e apoiava-se fortemente na hipótese de uma evolução fonética no centro dessas mudanças. O desaparecimento dos casos latinos teria sido a origem do que era chamado de “erosão fonética”. Essa tese tem, na reflexão de Bopp e Schleicher, os seus fundamentos. Para eles a evolução das línguas seria determinada por uma degradação constante comandada pela lei do menor esforço. Ducrot, analisando essa perspectiva nos dirá que: “Daí resulta que os falares atuais, e, já em grande medida os da antiguidade greco-latina, seriam só ruínas” (Ducrot, 1971: 49). Reconhecemos, nessa perspectiva, a fala tomada no seu viés empírico e na esteira de uma ciência evolucionista e naturalista. A noção de linguagem como organismo evidentemente inclui a fala, dado ao próprio fato da natureza orgânica de alguns dos seus elementos constitutivos. Lembremo-nos também que do princípio ao fim desse século XIX os estudos de fonética estiveram em destaque, seja pela “lei de Grimm”, nas primeiras décadas, ou pelo primado das leis fonéticas, com os neogramáticos, nas últimas décadas. Hermann Paul, reconhecido como um neogramático, portanto um representante de um movimento teórico sobre a língua com o qual Saussure conviveu, divide o ato de fala em três momentos: I) os movimentos dos órgãos fonadores; II) o sentido mecânico e III) as sensações sonoras, com a sua contraparte, as imagens da memória (Paul, 1970: 59). Além disso, tem a fala, para Paul, um caráter absolutamente individual que tem sua melhor representação na realidade psicológica/ psíquica do falante. Mesmo que o apelo ao fato empírico da fala seja bastante grande é preciso considerar que, especialmente entre os neogramáticos, a noção de lei se afastava
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bastante da empiria, como bem nota Milner (1989). Além disso, o aspecto psicológico/psíquico não era de ordem empírica, embora o seu caráter não fosse claro aos linguistas do século XIX. Assim, mesmo que com certa imprecisão do conceito e sem que ele seja contraposto a outros conceitos como o de língua ou linguagem, se pode afirmar que o conceito de fala no século XIX, vigente na Gramática Comparada e entre os neogramáticos, tinha alguma unidade. A fala era, por um lado, fisiológica e mecânica e, por outro, psicológica; tanto em um caso quanto em outro era considerada individual. Claro que essa unidade não é estática e as nuances dessa concepção podem ser recolhidas nos trabalhos individuais de alguns linguistas oitocentistas, o que nos interessa é apresentar uma concepção de fala geralmente bem aceita no século XIX em que Saussure realiza a sua formação de linguista. Podemos, portanto, afirmar que Saussure conhece bem essa concepção da fala e é a partir daí que ele trará a fala para o seu arcabouço teórico e a submeterá a ele, como podemos conferir especialmente no Curso de linguística geral.
A “fala” no Curso de linguística geral O livro Curso de linguística geral5 é um marco da fundação da Linguística moderna por Saussure, contudo a incidência teórica de Saussure sobre o objeto da Linguística, que se lê nesse livro, foi tão comemorada quanto lamentada, durante muitas décadas. Comemorou-se a operação que deu lugar a um objeto específico de estudo, e assim um status que a Linguística ainda não havia alcançado, mas lamentou-se que o processo dessa mesma operação tivesse como consequência uma separação entre língua e fala, mesmo que ela fosse relativizada muitas vezes no CLG. Na verdade, parece difícil ganhar a especificidade do objeto, na Linguística, sem perder seu caráter holístico. Essa distinção entre língua e fala é, portanto, o ponto central da operação saussuriana e o que lhe lega, atualmente, o lugar de fundador da Linguística entre outras coisas por cernir o objeto desta ciência, mas esse lugar suscita, paradoxalmente, reações opostas. A mesma operação suscita entre os linguistas o reconhecimento da fundação da Linguística como uma ciência, no sentido moderno do termo, bem como uma crítica à exclusão da fala do domínio da Linguística. Acompanhemos Saussure no CLG. No capítulo II, “Objeto da Linguística”, ao discutir o caráter social da língua e então buscar descrever o “[...] ato individual que permite reconstituir o circuito da fala” (Saussure, 2012: 43), Saussure
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caracteriza a composição do circuito da fala por processos fisiológicos e físicos e é cuidadoso em diferenciá-los da associação entre o significante e o significado que, segundo ele, é um processo “puramente psíquico” (Saussure, 2012: 44). Esses dois processos distintos, um fisiológico e físico e outro psíquico, dividem língua e fala. Assim, propriamente e totalmente psíquica é a associação entre o significante e o significado que constituirá os signos, que por sua vez engendrarão um sistema, ou seja, a língua como um sistema de signos. Fisiológico e físico são os processos que constituem o funcionamento da fala. Saussure ainda afirmará que “tudo quanto seja diacrônico na língua não o é senão pela fala” (Saussure, 2012: 141) e também que “a analogia nos ensina, portanto, uma vez mais a separar a língua da fala; ela nos mostra a segunda como dependente da primeira” (Saussure, 2012: 222). Como não reconhecer nesses excertos do CLG uma relação com o conceito de fala tal qual Herman Paul nos apresenta, mas explorando uma complexidade que faz jus ao Saussure do Mémoire, no qual o exame das mudanças fonéticas o fez surpreendê-las na morfologia da palavra e a noção de sistema se impôs? Vemos aqui Saussure partindo da concepção de fala própria ao seu ambiente de formação: fisiológica/física, psicológica/psíquica e individual, e reformulando o conceito a partir da sua necessidade de conceituar também a língua. A fala, no seu aspecto empírico, fisiológico e individual, é secundária na constituição do objeto da Linguística. A fala, no seu aspecto psíquico e social, é o que constitui a língua e é o essencial do objeto da Linguística. Sim, ele parece tomar uma posição em relação a essas concepções: no que diz respeito à concepção de fala que considera os órgãos vocais e a fonação, ou seja, os aspectos fisiológicos e físicos da fala, ele é categórico: são estranhos à língua como sistema e não o afetam em si (Saussure, 2012: 50). Ou seja, o conceito de fala do seu tempo deu lugar a um conceito de língua e fala, e o conceito de língua, com todos os mecanismos evidenciados por Saussure, é essencial em relação à fala que, como fisiológica/física e individual, é acidental. Contudo é preciso notar que o fisiológico e o psicológico/psíquico podem até distribuírem-se entre a fala e a língua respectivamente, mas não são sem relação e mesmo os limites entre eles não parecem claros à Saussure. Essa complexidade se mostra com toda a força no capítulo IV, “Linguística da língua e Linguística da fala”, no qual acompanhamos uma apresentação das distinções entre língua e fala que, definitivamente, expõem as intrincadas relações entre um e outro conceito e que reaparecem em outros capítulos do livro. Entremeada a essa distinção, perseguida por Saussure, está a tentativa de estabelecer uma hierarquia entre língua e fala. Hierarquia essa que se faz e desfaz ao longo
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de uma argumentação tortuosa e que se pode resumir bem neste trecho: “Existe, pois, interdependência da língua e da fala; aquela é ao mesmo tempo o instrumento e o produto desta. Tudo isso, porém não impede que elas sejam duas coisas absolutamente distintas” (Saussure, 2012: 51). Sendo a língua instrumento da fala e produto da fala e estando esta em condições de constituir a outra, a hierarquia entre elas seria, no mínimo, frágil. Cabe lembrar também que a noção de fala no CLG está intimamente relacionada às chamadas dicotomias saussurianas – significante/significado; sincronia/ diacronia – e especialmente às relações sintagmáticas/relações associativas. Embora Saussure tenha nos dado alguns indícios de que poderíamos distribuir língua e fala entre esses pares é preciso considerar que ele também não foi preciso e definitivo nessa distribuição. Além disso, mais de um estudioso de Saussure já advertiu que tomar a teoria saussuriana pelas dicotomias é um reducionismo teórico; sendo assim, ceder a tentação de distribuir língua e fala entre elas é escolher o caminho mais fácil e menos consequente com a complexidade da relação entre língua e fala que se descobre por todo o CLG. Sabemos que o CLG é o resultado da edição póstuma dos três cursos ministrados por Saussure entre 1907 e 1911, em Genebra. Bally e Sechehaye fizeram uma edição a partir das anotações dos alunos que frequentaram os cursos de Saussure e publicaram, em 1916, o CLG. Outras publicações relativas a esses cursos se fizeram: Godel publicou, em 1957, a transcrição dos manuscritos de Saussure que teriam sido as suas anotações do segundo Curso de linguística geral, ministrado por ele entre novembro de 1908 e julho de 1909. Komatsu e Harris publicaram, em 1993, o Terceiro curso de linguística geral, a partir dos cadernos de Émile Constantin, que assistiu ao curso ministrado por Saussure entre outubro de 1910 e julho de 1911. Além dessas publicações somam-se a magistral edição crítica de Engler – que apresenta o CLG ao lado das anotações dos seus alunos durante os cursos, bem como uma edição de alguns manuscritos de Saussure – e a clássica edição crítica de Tulio de Mauro, que contextualiza o CLG a partir do percurso teórico de Saussure, da circulação dos conceitos e das fontes dos mesmos. A publicação dessas diversas edições dos cursos proferidos por Saussure é mais um dos capítulos controversos da recepção da obra saussuriana e das discordâncias entre aqueles que o ouviram e publicaram as suas versões do que testemunharam. Interessa-nos, nesse momento, destacar que um dos motivos para publicar outras notas, de outros alunos de Saussure, após a publicação do CLG, tem relação diretamente com o conceito de fala. Uma das maiores críticas à edição de Sechehaye e Bally deve-se à ordenação dos capítulos do CLG, que não obedece
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à cronologia dos cursos ministrados por Saussure. Os editores da publicação optaram por uma ordem segundo a importância dada por Saussure aos elementos de sua teoria durante os cursos, é assim que os capítulos sobre a Linguística sincrônica vêm antes dos capítulos sobre a Linguística diacrônica, embora Saussure tivesse começado os seus cursos com esta. Além disso, Saussure teria deixado para o seu último curso a Linguística da Fala. Komatsu, no prefácio do Terceiro curso de linguística geral, afirma: “O cronograma que ele havia anunciado em 4 de novembro de 1910, dividindo o curso em (I) as línguas, (II) a língua e (III) a faculdade e o exercício da linguagem nos indivíduos, não foi completado jamais” (Komatsu e Harrys. In: Saussure, 1993: xi, tradução nossa). Saussure teria, portanto, se colocado questões sobre a fala e se proposto a uma elaboração sobre o tema para apresentá-lo em seu curso que não chegou a acontecer. O curso inacabado nos lega um conceito também por se fazer. Alonso, no seu prólogo à edição em espanhol do CLG, nos diz que “não há aspecto da Linguística, entre aqueles estudados no CLG, ao quais Saussure não tenha levado clareza e profundidade de conhecimento, algumas vezes chegando a uma interpretação satisfatória, outras obrigando com suas posições aos linguistas posteriores a superá-lo” (Alonso, 1945: 11, tradução nossa). Seria, ao que parece, o caso do conceito de fala, nas várias edições dos seus Cursos de linguística geral. Além desses testemunhos do que Saussure falou em seus cursos, também podemos examinar os manuscritos de Saussure e verificar a sua posição em relação à fala nesse material; esse exame, mesmo que parcial, pode favorecer a reflexão sobre o tema.
A fala nos manuscritos Saussure produziu milhares de folhas manuscritas, a pesquisa e a publicação sobre esse material têm sido feita lentamente após a sua morte. A quantidade de material é imensa e a sua complexidade não é menor, não há possibilidade de abordar os seus manuscritos seriamente senão parcialmente, embora o conhecimento do conjunto favoreça a abordagem parcial. Assim, nos propomos a verificar em dois manuscritos seus, com os quais trabalhamos em outras ocasiões e com outros objetivos, e trazer questões colocadas por Saussure em cada um deles que digam respeito a essa distinção entre língua e fala.6 Trata-se dos manuscritos “Trois premières conférences à l’université” e “De l’essence double du langage”, os dois produzidos por Saussure na última década do século XIX.7
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No manuscrito “Trois premières conférences à l’université”, escrito em novembro de 1891, reconhecemos a preocupação de Saussure em distinguir língua, linguagem e fala. Especificamente nas suas anotações para a aula inaugural, na folha 5 desse manuscrito, em uma frase inacabada, ele se pergunta e em seguida rasura: “A linguagem? Mas A fala? É uma coisa que nós esquecemos geralmente porque”. Na folha número 8 desse mesmo manuscrito os sublinhados destacam a palavra línguas e lá – em uma redação linear por 25 linhas bem distribuídas com uma margem esquerda perfeita, duas rasuras, quatro incisos e dois sublinhados – Saussure distinguiu: línguas, linguagem e língua para – na última frase da folha – borrar os limites entre as últimas.8 Saussure em seguida retoma a questão da fala, mas a partir de uma outra chave: “Supondo-se mesmo que o exercício da fala constituísse no homem uma faculdade natural, nativa ao xxxx esta função natural, o que é um ponto de vista eminentemente falso [...]” (Saussure, 1891: f.10). A fala como faculdade natural do homem, uma concepção largamente aceita no século XIX, foi colocada em xeque por ele e também por Whitney, muitas vezes. Esse tema não se esgota para Saussure, nas anotações para a segunda aula do curso, quando ele irá falar da mudança fonética e a mudança analógica e os seus mecanismos, os seus graus de consciência, seus aspectos psicológicos e fisiológicos, ele retornará ao tema: Podemos opor sob muitos pontos de vista diferentes esses dois grandes fatores de renovação Linguística, chamando dizendo por exemplo que o primeiro representa responde o lado fisiológico & físico do ato da da fala enquanto o segundo representa responde o lado fisiológico e mental do mesmo ato, que o primeiro é inconsciente, tanto quanto o segundo é consciente, sempre lembrando que a noção de consciência é eminentemente relativa [...]. (Saussure, 1891: f. 8, grifos nossos)
Aqui, Saussure acrescenta mais um complicador nessa divisão conceitual da fala, os elementos constituintes desse conceito, no século XIX, se distribuem, para Saussure, em categorias como “consciente” e “inconsciente” o que afasta desse conceito um empirismo fácil e também dá a ver as diferenças conceituais entre os séculos XIX e XX, no que diz respeito às noções de psíquico ou psicológico. Entrelaçam-se nesse manuscrito “Trois premières conférences à l’université” muitos temas dignos de um tratamento detalhado, mas que não é nosso objetivo nesse momento, fundamental é destacar que nesse manuscrito, em que Saussure se atém à questão da mudança linguística e dos conceitos gerais da Linguística, a
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fala, como fato empírico ou como conceito, se apresenta incontornável em cada uma de suas reflexões. O manuscrito que Engler nomeou “De l’essence double du langage” (edl) é um conjunto de quase três centenas de folhas escritas, provavelmente, na última década do século XIX, em Genebra. Ele trata especificamente da Linguística e tem despertado o interesse de muitos pesquisadores. Traremos aqui apenas alguns fragmentos desse fenomenal trabalho de Saussure como índice do lugar da fala nos seus manuscritos. Na primeira folha desse conjunto de manuscritos, no canto esquerdo, na primeira linha e isolada, encontramos escrita a palavra: Préface. Logo abaixo, nas primeiras linhas, se vê o propósito de Saussure nessa sua empreitada teórica: - Parece praticamente impossível de fato de dar uma preeminência a tal ou tal verdade fundamen da Linguística, de maneira a fazê-la o ponto de partida central único: mas há cinco ou seis verdades fundantes que são tão ligadas entre elas que se pode partir indiferentemente de uma ou de outra e se chegará logicamente a todas as outras. (Saussure, edl: f. 1 in AS-BGE)9
Saussure se propõe a falar de algumas coisas essenciais à Linguística, e assim ele o fará nas quase trezentas folhas que se segue. Como ele mesmo afirma nesse fragmento, essas cinco ou seis “verdades” são ligadas entre elas. Ele falará da língua como sistema, dos elementos diferenciais da língua e também da sua realidade negativa, além disso, se aproximará muito da discussão sobre sincronia e diacronia que conhecemos sob a sua assinatura atualmente. Mas, especialmente, Saussure discutirá uma dualidade básica da língua que é a forma e o sentido, cuja terminologia, nesse momento, é bastante flutuante e não coincide com a que conhecemos hoje por significante e significado, mas, ao que parece, essa discussão contribuirá bastante para a construção desses dois conceitos. É significativo o quanto Saussure cuidará em afirmar que essa dualidade não equivale à dualidade física/psicológica: Não há oposição possível entre a forma e o sentido É falso e complet impraticável dizer que seja possível opor a forma e o sentido. É O que é justo, por outro lado justo é opor a figura vocal de uma parte e a formasentido de outra. (Saussure, edl, 372-2: f. 1, grifos nossos)
Saussure estabelece então a distinção entre a figura vocal e o que ele chama de forma/sentido; não sendo a figura vocal da mesma natureza que a forma e o
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sentido, ele será claro sobre a natureza desses dois: “os dois elementos da palavra são da reciprocamente ordem espiritual” (Saussure, edl, 372-3: f. 4). Evidente que se trata aqui do início da conceitualização do signo e da língua, mas é preciso observar o quanto ele traz para a língua o que é da ordem do psicológico/psíquico e deixa o que é da ordem do fisiológico para outra instância. Nesse manuscrito, Saussure também chamará a atenção para o fato de que o som por si só não dará uma resposta às pesquisas sobre as mudanças linguísticas, as características fisiológicas e físicas do elemento suscetível à mudança precisam ser submetidas à relação com os outros elementos da palavra para que se entenda a mudança. Trata-se de uma operação de submissão do fisiológico/físico ao funcionamento próprio da língua. Tanto um manuscrito quanto outro, da mesma época, apresentam o conceito de fala, em suas diferentes facetas, entrelaçado aos outros conceitos em formulação por Saussure.
Considerações finais O percurso de Saussure na teorização sobre a língua aponta para uma preocupação a respeito da fala no cabedal teórico da Linguística e também indica que esse interesse é tão antigo quanto o seu primeiro trabalho de fôlego, o Mémoire, publicado em 1878, tão importante quanto a conceitualização da língua como objeto da Linguística e tão presente que todas as suas reflexões no campo da linguagem tocaram na questão da fala. Em 1878 ele já operava sobre a fala como no seu Mémoire, nos manuscritos de 1891 se perguntou sobre ela enquanto distinguia língua de linguagem e não pôde falar de mudança linguística sem colocar em relevo os mecanismos próprios da fala e buscar lhes dar o lugar no conjunto da linguagem, ou, mais especificamente, em relação aos elementos constitutivos da língua. Nos cursos do início do século ele anunciou um tópico exclusivamente sobre a fala, o que não chegou a se cumprir, mas não evitou que ele tratasse da fala em diversos momentos do seu Curso de linguística geral. Com algumas informações que perpassam materiais distintos em épocas distintas do percurso teórico de Saussure esperamos ter apontado – especialmente a partir desse exame de algumas passagens do Curso de linguística geral e de alguns excertos de dois manuscritos do genebrino – que o conceito de fala, na sua produção, está no centro de suas preocupações, juntamente com o conceito de língua, e, além disso, o conceito de fala está determinantemente interligado
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aos outros conceitos e bastante ancorado na concepção de fala do século XIX que Saussure procurava rearticular, já que a sua insatisfação com a falta de precisão da terminologia corrente na Linguística era patente. Este trabalho, certamente, é apenas um passo no sentido de uma leitura da produção teórica de Ferdinand de Saussure, no que concerne ao conceito de fala, que não opte pela dicotomização ou pela lógica da exclusão que marcou as leituras do Curso de linguística geral. Além disso, é também um passo na leitura de manuscritos que eram tidos como tangenciais à elaboração de Saussure por não trazerem conceitos finalizados. O inacabado é parte constitutiva do cabedal teórico de Saussure, e o conceito de fala participa dessa construção na sua qualidade de parte do processo de Saussure na constituição da Linguística tal como reconhecemos hoje.
Notas Entre outros trabalhos de Flores; a esse respeito, ver especialmente: “Saussure, Benveniste e a teoria do valor: do valor e do homem na língua”, publicado em 2009, na revista Letras & Letras. 2 Benveniste publica em 1961, no Cahiers Ferdinand de Saussure, as cartas que Saussure enviou a Meillet entre 1894 e 1911; em algumas delas o genebrino lamenta a falta de especificidade da terminologia na Linguística. 3 Em 2003, publicamos com De Lemos, Lier-DeVitto e Andrade, no Cahiers Ferdinand de Saussure, o artigo “Le Saussurisme en Amérique Latine au XXème. Siècle”, que trata da recepção de Saussure no Brasil, Uruguai e Argentina. 4 O trabalho de Starobinsky, Les mots sous les mots, tem sido o guia mais utilizado para essas reflexões, desde a década de 1970. 5 Utilizaremos a sigla CLG, para nos referirmos ao livro Curso de linguística geral publicado em 1916. 6 Uma abordagem mais detalhada desses manuscritos encontra-se em Silveira, 2011. 7 Esses manuscritos estão arquivados na Biblioteca de Genebra (bge). O manuscrito “Trois premières conférences à l’université” foi selecionado e reproduzido por mim durante a minha estada em Genebra em 1999. O manuscrito “De l’essence double du langage” foi pesquisado por mim, na bge, em 2011, e as cópias do mesmo, adquiridas em 2012. As transcrições e as traduções, neste artigo, são minhas. 8 Especificamente sobre a (não) distinção entre língua e linguagem nesse manuscrito, ver Silveira, 2007, pp.131-5. 9 EDL é sigla utilizada para referir o manuscrito de Saussure L’essence double du langage. A numeração diz respeito à apresentação do manuscrito tal como se encontra na Biblioteca de Genebra. 1
Bibliografia ALONSO, Amado. Prólogo. In: SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingüística General. Edición crítica de Tullio de Mauro. Buenos Aires: Editorial Losada, 1945. DE LEMOS, Cláudia. Tereza Guimarães; LIER-DEVITTO, Maria Francisca; SILVEIRA, Eliane Mara; ANDRADE, Lourdes. Le Saussurisme en Amérique Latine au XXème. Siècle. In: Cahiers Ferdinand de Saussure: Revue suisse de linguistique générale. Paris: Librairie Droz S. A, 2003, n. 56, pp.165-76.
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DE MAURO, Tullio. Cours de Lingüistique Générale: édition critique. Paris: Payot, 1986. DUCROT, Oswald. O Estruturalismo em Linguística. São Paulo: Cultrix, 1971. FLORES, Valdir. Saussure, Benveniste e a teoria do valor: do valor e do homem na língua. Revista Letras & Letras. Uberlândia: Editora da Universidade Federal de Uberlândia, 2009, n. 1, pp. 73-84. Disponível em: . Acesso em: 15 fev. 2013. GODEL, Robert. Les Sources manuscrites du cours de linguistique générale de Ferdinand de Saussure. Genève: Libraire Droz, 1969. HJELMSLEV, L. Langue et parole. In: Cahier Ferdinand de Saussure, 1942, n. 2, Genève, Librairie Droz S. A., pp. 69-81. MILNER, Jean-Claude. Introduction à une science du langage. Paris: Seuil, 1989. PAUL, Herman. Princípios fundamentais da história da língua. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1970. SAUSSURE, Ferdinand de. Trois premières conférences. Papiers Ferdinand de Saussure, 3951: Notes de Linguistique Générale. Bibliotèque de Genève, 1891. _____. L’essence double du langage. Archives de Ferdinand de Saussure, 372: Les Manuscrits. Bibliotèque de Genève, 1891. _____. Curso de linguística geral. Trad. A. Chelini, J. P. Paes e I. Blikstein. 34. ed. São Paulo: Cultrix, 2012. _____. Cours de Linguistique Générale. Édition critique préparée par Tullio de Mauro. Paris: Payot, 1974. _____. Troisième Cours de Linguistique Générale (1910-1911): d’après les cahiers d’Emile Constantin/Saussure’s third course of lectures on general linguistics (1910-1911): from the notebooks of Emile Constantin. French text edited by Eisuke Komatsu e English text edited by Roy Harris. Oxford: Pergamon Press, 1993. _____. Cours de Linguistique Générale (1908-1909). IIe Cours. Introduction In: GODEL, Robert (ed.). Cahiers Ferdinand de Saussure. Revue suisse de linguistique générale. Publicado por Cercle Ferdinand de Saussure. Genève: Librairie Droz S.A., 1957, n. 15, pp. 2-103. _____. Cours de linguistique générale. Edição crítica de R. Engler. Wiesbaden: Otto Harrassowitz, 1968. Tomo 1. _____. Lettres de Ferdinand de Saussure à Antoine Meillet – 1894-1911. In: BENVENISTE, Émile (ed.). Cahiers Ferdinand de Saussure. Revue suisse de linguistique générale. Genève: Librairie Droz S.A., 1961, n. 21, pp. 89-135. SILVEIRA, Eliane. As marcas do movimento de Saussure na fundação da linguística. Campinas: Mercado de Letras/Fapesp, 2007. _____. Uma leitura de dois manuscritos de Ferdinand de Saussure: “Conférences à l’Université” e “Essence double du langage”. In: Anais do SILEL. Uberlândia, EDUFU, 2011, v. 2, n. 2. Disponível em: . Acesso em: 22 abr. 2013. STAROBINSKI, Jean. As palavras sob as palavras: os anagramas de Ferdinand de Saussure. Trad. Carlos Vogt. São Paulo: Perspectiva, 1974.
O Curso de linguística geral e os manuscritos saussurianos: unde exoriar? Hozanete Lima
O mote unde exoriar, presente no título, foi extraído de uma notação manuscrítica saussuriana. Metaforiza, de imediato, o fato de que o ponto de partida já é, ele próprio, revelador da dificuldade inerente em formalizar leis gerais constitutivas da língua como objeto de uma ciência em construção, a Linguística. Por onde começar – unde exoriar – no centenário de uma ausência física, cuja nomeação, Ferdinand de Saussure, se traduz, em linhas gerais, em causa e efeito? Pela obra, Curso de linguística geral ( CLG), cujo (re)conhecimento, nos dias atuais, parece sedimentar-se mais ainda com a “descoberta” de manuscritos originais ( MFS) doados pela família do linguista à Biblioteca Nacional de Genebra? Os manuscritos perturbam e dão vida a novas pesquisas no interior dos muros acadêmicos. A efervescência em relação aos MFS faz pulsar o CLG, obra quase silenciada pela (in)quietude de um “movimento” chamado estruturalismo. Os manuscritos saussurianos, em que pesem as dificuldades de leituras e de acesso a eles, reaproximaram, de certa maneira, os estudiosos da linguagem ao Curso de linguística geral. Não se pode, ingenuamente, apostar que, espremendo o CLG à exaustão, possamos encontrar todas as respostas; todavia parece não ser possível reconhecer que o nome Saussure ultrapassou o estruturalismo, movimento que teria, supostamente, sido o fundador. Por esse viés, reconheço o valor da grata frase de Silveira (2007: 33): Saussure “não é um a mais na Linguística: ele é aquele que possibilitou haver Linguística tal qual ela é”. Considerações iniciais à parte, desenho quais sejam as questões-objetos de investigação nesse texto. Concentrar-me-ei nos efeitos que o estabelecimento das concepções de signo e dos eixos paradigmático e sintagmático promoveram na construção da Linguística.
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Antes, uma pequena tomada de posição sobre os manuscritos, para situar algumas discussões que eles têm mobilizado. Dentre as recorrentes, destaco o entendimento de que havia no mestre genebrino um projeto em devir, marcado por intensas buscas e inquietações que foram excluídas quando da editoração do CLG. Reconhecemos que a questão do ponto de partida demonstrava, quiçá, uma posição de ordem metodológica. O filólogo e o comparatista já não eram páreos para pensar na notação da sincronia e de um construto que suportasse a matematização necessária a um novo horizonte epistemológico. Tampouco outros campos de conhecimento “saberiam” pensar em como funcionava uma língua em particular e todas as línguas, sem discriminação. Todavia, resvalam para o CLG os estudos e a insistência dos anos saussurianos dedicados a investigações de natureza histórica, materializados, fortemente, nas pesquisas Mémoire sur le système primitif des voyelles dans les langues indoeuropéennes e De l’emploi du génitif absolu en sanskrit;1 a primeira, sua dissertação de mestrado; a segunda, sua tese de doutoramento. De maneira particular, considerando a busca pelo “funcionamento”, seja do sistema das vogais nas línguas indo-europeias, seja do emprego do genitivo absoluto no sânscrito, avistamos uma espécie de particularidade “sincrônica” no seio desses estudos. Um caminho já aberto para as noções de “sistema”, “relações”, “posições”, “diferenças”, “opositividades”, etc. É oportuno escutar Milner (1989), quando da descrição da tarefa de um indo-europeísta. Consoante o autor, o objetivo central, qual seja, buscar/encontrar a origem de todas as línguas, materializava-se através de uma fiação comum: discriminar os ecos homofônicos que ligavam uma língua a outra. As homofonias, nesse sentido, espelhavam em reflexos o indo-europeu, que se deixava analisar nas seguintes partes: a) as semelhanças fônicas têm uma causa e b) esta causa é uma língua. Dito de outra forma, o indo-europeu é a língua que causa as homofonias de língua a língua. Ser indo-europeísta é pois: a) construir uma língua, a língua da causa e b) ligar cada forma das línguas observadas a uma forma da língua causa (é isto que nomeamos etimologia). Vemos imediatamente a estranheza da noção de indo-europeu: é uma língua de estatuto pleno, em todos os pontos comparável a toda língua conhecida, mas que nunca será atestada como sendo falada por sujeitos: de fato, se por ventura se descrevessem traços observáveis, eles só poderiam ser sustentados pelos elementos de uma língua-efeito, a língua-causa procurada continuando a se esconder. (Milner, 1989: 66)
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O indo-europeísta se posicionava na busca de “uma língua para fins racionais”, tentando eliminar qualquer ponto em que um sujeito teria feito signo. Todavia, o que em causa estava era de outra natureza. Cada forma indo-europeia era um nó de associações, origem e eco de um conjunto de formas em que imperam entrecruzamentos indefinidos, matriz e escrita de todos os equívocos. Quando o linguista escreve o indoeuropeu não escreve mais que isto, o excesso (Milner, 1989: 67). Anotar a língua-mãe parecia, naquele momento, discriminar os pontos em que um sujeito teria feito signo. Assim, o indo-europeu, tendo sua existência garantida hipoteticamente ou não, sendo uma língua, apresentaria as mesmas características ou propriedades de uma língua observável qualquer. Segue disto que, longe da positividade procurada, ele também estaria marcado pela diferença enquanto constitutiva do funcionamento de qualquer língua. Se os indo-europeístas buscavam estabelecer as leis que explicassem as mudanças linguísticas, Saussure, embora exímio indo-europeísta, refinava seu interesse: definir as características gerais e propriedades de todas as línguas possíveis; encontrar os princípios que as definem enquanto homogêneas no seio da heterogeneidade absoluta. Encontrar, por assim dizer, o “um” que faz de todas as línguas um conjunto. Normand (2000: 97) descreve com propriedade as diferenças entre o Saussure indo-europeísta e o Saussure do CLG. Entretanto, o ponto de vista mudou a partir do momento em que a regularidade buscada é aquela das leis de mudança em uma língua ou uma família de línguas, ver as tendências universais que serão observadas em todas as línguas, ao invés da regularidade de formas distribuídas em paradigmas, que sustentam o funcionamento de uma dada língua; história ou descrição, o método é diferente, pois o objeto concernido difere, posto não se procurar a mesma coisa, embora nos sirvamos dos mesmos dados. (tradução nossa)
Silveira (2007) é exemplar ao observar, pelas vias de Normand, que aí estaríamos mediante uma Linguística geral, expressão que confere a generalidade dos princípios, e não a generalização dos resultados empíricos e repetíveis demonstrados pela Linguística Histórica.
Os manuscritos: Saussure e novos editores A “descoberta” dos manuscritos de Ferdinand de Saussure sinaliza, para alguns, que o CLG é uma obra que tem a pretensão de um discurso conclusivo, cujos traçados fecham e até diminuem um pensamento mais vigoroso e aprofundado.
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Bouquet (1999) é um dos estudiosos que defendem que o Curso de linguística geral silencia os dilemas e dificuldades que estão marcados nos MFS. Silêncio que poderíamos ler antes como “autorizado”, dada a confissão saussuriana enviada a L. Gautier, um de seus cursistas: Vejo-me diante de um dilema: expor o assunto em toda sua complexidade e confessar todas as minhas dúvidas, o que não pode convir para um curso que deve ser matéria de exame, ou fazer algo mais simples, que melhor se adeque a um auditório de estudantes que não são linguistas. Mas, a cada passo, vejo-me retido por escrúpulos. Para se realizar, é necessário, a mim, menos meditação exclusiva. (Saussure, apud Godel, 1969, tradução nossa)
Consoante Bouquet (1999), porém, esse silenciamento se deve à tomada de posição dos redatores, que pretendiam apresentar ao leitor o claro programa de uma ciência, de sorte que podaram tudo que sugerisse a sombra, por assim dizer, a inquietude e o vigor de um pensamento em ebulição. Outra questão evocada por Bouquet é a falta de prolongamento em determinadas discussões, como o silêncio de uma alongada exposição saussuriana sobre a Semiologia, descrita nas “Notas item”, exposta no livro Écrits de linguistique générale2 (2002), estabelecido e editado pelo próprio Bouquet, em parceria com Rudolf Engler. Se levarmos em consideração os Escritos de linguística geral (ELG) e o CLG, é possível perceber que, mesmo com os não fechamentos de trechos saussurianos, marcados pelos editores (Bouquet e Engler), quase sempre através de colchetes, o desejo de concluir também aí se manifesta, uma vez que é um “texto editorado e estabelecido”; quem tem acesso aos textos originais e compara com a nova edição observa que ela é infiel aos rabiscos, tracejados, apagamentos e borrões que colorem, por assim dizer, a escrita saussuriana.3 Os originais, não estabelecidos ou editorados, borrados de ponta a ponta, como vemos em estudos de Silveira (2007), nos mostram bem essa diferença entre o ELG, o CLG e os originais que se encontram na Biblioteca de Genebra. É natural que os manuscritos saussurianos apontem divergências. Mas é cobrar demais de um “grupo” de alunos, exigir que eles pudessem dizer tudo o que vemos nos MFS, material a que, supostamente, eles não tiveram qualquer acesso. De qualquer maneira, essa doce e superior querela entre os manuscritos e o CLG só nos aproxima ainda mais de um linguista cujo nome pode ser, hoje, como já o afirmamos, maior do que o movimento que anunciam ter fundado.
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Curso de linguística geral: do signo e dos eixos Claudine Normand nos presenteou a palavra francesa bouleverser para falar dos efeitos que a publicação do CLG produzira nos centros de estudos sobre a linguagem. Em entrevista cedida à Silveira, publicada em 2009, no periódico Letras & Letras, Normand (2009: 219) afirma [...] Eu usei o termo “perturbar” para sugerir os efeitos imediatos e de longo prazo desde a publicação do Curso de linguística geral (CLG), em 1916, apresentado em nome de Saussure, mesmo sabendo que ele nem escrevera nem afiançara a publicação. No momento em que apareceu, pode-se dizer que não houve enorme inquietude, mas, provavelmente, certo interesse. (tradução nossa)
Saussure parece ter começado por um ponto de partida decidível: no princípio está a língua, e ela tem um funcionamento. Todavia, apreender esta questão revela um empreendimento e uma tomada de posição (Lima, 2012). Mesmo compreendendo que os dispositivos e as argumentações podem ser de natureza diversificada, o mestre genebrino “filosofava” em modos inéditos. Embora ciente de que seria difícil apreender “o objeto ao mesmo tempo integral e concreto da Linguística” (Saussure, 1999: 15), isso não o impedira de reter aquilo que do objeto língua era passível de notação científica, seja nos MFS, seja no CLG. Todavia, a especificidade de um objeto tão singular não poderia ser abandonada ao comando de diferentes campos de conhecimento, o que desenharia a língua como uma realidade mais escorregadia do que se poderia supor. Mas, se a construção de um objeto reservava sobre si dificuldades inerentes à sua formalização, por onde começar, quando a língua não oferece mais que “realidades aparentes”, “nada permitindo determinar onde está o objeto imediato oferecido ao conhecimento na língua”? (Saussure, apud Bouquet, 1999: 68). O CLG apresenta uma característica assaz interessante, é o uso constante de metáforas de caráter comparativo para orientar e facilitar a compreensão do leitor na discriminação ou “aclaramento” de certos conceitos. Menciono, aqui, aquelas comparações essenciais ao desenvolvimento de nossas questões, citadas no início do texto. Observar o efeito dessas metáforas não se apresenta aqui como inédita; estudos importantes quanto a essa questão podem ser encontrados em Martins (1999).
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1) a metáfora do jogo de xadrez: Numa partida de xadrez, qualquer posição dada tem como característica singular estar libertada de seus antecedentes; é totalmente indiferente que se tenha chegado a ela por um caminho ou outro; o que acompanhou toda a partida não tem a menor vantagem sobre o curioso que vem espiar o estado do jogo no momento crítico; para descrever a posição, é perfeitamente inútil recordar o que ocorreu dez segundos antes. (Saussure, 1999: 105)
Esta metáfora tem, subjacente a ela, o movimento de apreensão da língua em seu aspecto sincrônico. Não seria necessário, por exemplo, que um falante soubesse como se comportou a língua há cinquenta anos para poder estar nela como um real falante. Tampouco o linguista, para ler como a língua se estrutura e funciona. 2) a metáfora da moeda: Os valores parecem estar regidos por esse princípio paradoxal. Eles são sempre constituídos: 1º por uma coisa dessemelhante, suscetível de ser trocada por uma outra cujo valor resta determinar; 2º por coisas semelhantes que se podem comparar com aquela cujo valor está em causa. [...] Para determinar o que vale a moeda de cinco francos, cumpre saber: 1º que se pode trocá-la por uma quantidade determinada de uma coisa diferente, por exemplo, pão; 2º que se pode compará-la com um valor semelhante do mesmo sistema, por exemplo uma moeda de um franco, ou uma moeda de algum outro sistema (um dólar, etc.). Do mesmo modo, uma palavra pode ser trocada por algo dessemelhante: uma ideia; além disso, pode ser comparada com algo da mesma natureza: uma outra palavra. (Saussure, 1999: 134)
É o princípio do valor e o funcionamento dos eixos paradigmático e sintagmático que estão em causa. O valor reside no material mais rico da “filosofia” saussuriana, já que barrava a possibilidade de inserir na nova ciência uma formalização enamorada com uma teoria representacionista da língua – a língua não seria uma simples nomenclatura das coisas do mundo – e sedimentava a concepção de língua como um sistema, cujas “entidades” – lidas aqui como qualquer extrato linguístico – estariam em constante relação. Essa metáfora e os princípios básicos expostos nela retomam a metáfora do jogo de xadrez. Por outro lado, é um anúncio prévio de que a língua não é uma forma “fixa”, de que as entidades rolam umas sobre as outras, cujos valores restariam por determinar. Filósofos e lógicos, por não privilegiarem essa questão, prendem-se unicamente na camada horizontal da língua, “mas sem a menor ideia do fenômeno sócio-histórico que provoca o turbilhão de signos da coluna vertical” (Saussure, 2004: 92).
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Falar em fenômeno “sócio-histórico”, apontá-lo na coluna vertical, parece indiciar sentidos já dados em algum lugar. A coluna vertical é não mais que o eixo paradigmático, lugar em que a língua é aberta para a possibilidade de já-ditos ou cadeias estabilizadas. Nesse eixo, as palavras rolam umas sobre as outras, por similitudes de naturezas variadas. E aí encontramo-nos com outras possibilidades de leitura impregnadas no texto saussuriano. Reconhece Saussure que as relações sintagmáticas e as relações associativas “correspondem a duas formas de nossa atividade mental, ambas indispensáveis para a vida da língua” (Saussure, 1999: 142). Pensando bem, enfatizava, mais uma vez, o que já havia traçado no Curso, a emergência da necessidade de uma Semiologia, devedora, por sua vez, da Psicologia. Saussure ia mais longe com essa afirmação: estabelecer relações era uma característica mental, “inata” ao falante, e não uma propriedade específica da língua. 3) a metáfora do signo linguístico: entidade de duas faces, significado e significante. Essa notação é, provavelmente, uma das mais sobrecarregadas de indagações. A palavra “entidade” é, em si, estranha a um linguista. O ponto de partida para se pensar o signo era um tecido entremeado, pois “palavras”, “formas concretas” e “imaginárias” se ofereceram como “entidades concretas”, “unidades da língua”. Entretanto, nas palavras do genebrino, tudo o que já se “discutiu sobre a natureza das palavras” é “incompatível com a noção que temos de entidade concreta” (Saussure, 1999: 122). A “língua apresenta, pois, este caráter estranho e surpreendente de não oferecer entidades perceptíveis à primeira vista, sem que possa duvidar, entretanto, de que existam e que é seu jogo que a constitui” (Saussure, 1999: 124). Havendo mudança ou não, afrouxamento entre o significado e o significante, um signo, no final das contas, estaria lá. Poderemos explicar os motivos das mudanças, mas não deixaremos, no fim, de anunciar que há signo, que há uma relação entre um significado e um significante. Como anuncia Milner (2002: 35), “no fim do percurso, um signo existe bem”, de sorte que “sua combinação particular é estabilizada; ela tem uma positividade própria e esta positividade depende de processos em que somente intervêm diferenças e negatividade”. Ponto a partir do qual todo e qualquer discurso se constrói. Esta consideração nos faz repensar em uma questão particular: partimos sempre da concepção de signo, cujas partes são amarradas, fixadas, para acusar, por vezes, que Saussure não dera atenção ao fato de que essas relações são
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históricas, contextualizadas, socialmente realizadas através da dialogicidade de sujeitos. Saussure nos ensinara bem que o signo sofre mudanças, mas, antes de pensar em história, no tempo ou na ação da massa falante, seria imprescindível considerar, pelo viés da cientificidade requerida para o objeto língua, que a mudança só seria possível, dada a característica primordial do signo: a arbitrariedade (a amarração não era natural, era, entes de tudo, estabelecida por uma massa falante). Nos manuscritos estabelecidos por Bouquet e Engler (2002/2004), uma pequena assertiva saussuriana é inquietante, posto que, nela, o linguista afirma que a noção de signos não seria necessária, todavia, “somos forçados a proceder com a ajuda de unidades positivas sob pena de ser, desde o início, incapazes de dominar a massa dos fatos” (Saussure, 2004: 76). Milner (1987) nos envia, provavelmente, à compreensão do que estaria por trás desse entendimento: o signo linguístico está no CLG, e nos manuscritos, como entidade de duas faces, mas a suposição de que a duplicidade possa se desfazer interroga sobre a força de evidência de que ela seja como é. Evidência que parecia vir do fato de que não podemos pensar a linguagem senão emparelhando “vibração sonora” e “ideia”. Neste sentido, poderíamos assumir, juntando-se a Milner (1987), que a língua é constitutiva de um todo (ponto de positividades) suportando (ou suportado sobre) o não todo (ponto da oposição e negatividade).4 Por conseguinte, há um ponto na língua que impede que (a partir dela) se diga tudo sobre ela (ou que ela diga tudo, ou que tudo seja dito por ela). As formulações saussurianas sobre a língua estariam desde sempre implicadas com essa ordem. Suas formalizações apontam para o fato de que algo se repete na língua, e isso pode ser categorizado, e algo se repete, a não fixidez, convocando a categorização (imaginária, portanto, histórica e social) a olhar para si mesma. Com isso, defende Milner (1987) que a teorização da língua está presa na forquilha da completude e da não completude que responde por uma “falta” irremediável – sabemos que se trata, para quem conhece as leituras milnerianas, da presença de um sujeito. Mas seria, também, a não positividade constitutiva da língua que permitia considerar a possibilidade de um não idêntico a si. O signo linguístico guarda a marca deste não idêntico, mas suporta, na sua realização, o imaginário (e concreto) fio “indissociável” que permite à massa falante “comunicar-se”.
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Cadê o sujeito, cadê? Este é outro mote, através do qual se interroga no CLG pela falta de um sujeito na/da língua. Há falantes, massa falante, e isso por si só já poderia responder a pergunta. É possível cobrar uma concepção de sujeito de Saussure? Lembremos que, mesmo contemporâneos, não parece haver registro nem da parte de Freud, nem da parte de Saussure, de que ambos eram sabedores ou se interessassem pela pesquisa um do outro. Por outro lado, “decidir” a falta de um “sujeito” (falante), seja ele de que natureza fosse, pode parecer no mínimo curioso, pois este pululava em toda a obra saussuriana: como exemplo, podemos tomar o funcionamento dos eixos associativos e paradigmáticos, já que deveria haver pelo menos “um” que reconhecesse a “diferença” e a “semelhança” neles constitutivas. Caso contrário, a língua, enquanto sistema, correria o estranho risco de funcionar sozinha. Não somos ingênuos a ponto de acreditar que Saussure pensasse dessa maneira. Destarte, o funcionamento da língua encontra-se clivado; de um lado, uma estrutura que tem uma ordem própria; de outro, uma estrutura que depende de pelo menos “um” para poder ter, inclusive, sua ordem própria, que não é uma ordem própria qualquer. Parece que o falante ou o linguista não podem “mudar” a forma como uma língua, e todas as línguas funcionam. Os eixos, paradigma e sintagma, o signo e um sistema de relações são, por exemplo, categorias linguísticas sedimentadas e reconhecidas. O que se pode fazer, a partir delas, é uma das causas-efeitos que exponenciam o pensamento de Saussure. Citamos o caso de Jakobson (2005) que, ao reler os dois eixos com as noções de metáfora e metonímia, vai da língua à linguagem sem escrúpulo algum.
Um não fim para as coisas ditas Este texto não tem a pretensão de decidir, antes problematizar. Muitas discussões foram deixadas de lado, outras vieram em forma de entremeios, afinal, temos que eleger nosso ponto de partida e imaginarizar uma conclusão. Não é fácil, na conjuntura atual, com a chegada dos MFS, sustentar, com a maior tenacidade possível, qualquer conclusão a que se queira chegar. Defendemos, na linha de um repetível acadêmico, que a Linguística nos foi legada pelo CLG, de modo que, seja em falta, seja em falha, seja em reconstituição, o pensamento saussuriano está nele e foi através das ideias do linguista, no CLG,
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que se gerara um corte no curso das ideias linguísticas. Entendeu-se, através do CLG, o movimento de constituição da Linguística como ciência, seus axiomas e princípios de base (Milner, 1987). Saussure morreu prematuramente, em 1913. Após sua morte, seus alunos buscaram o arquivo de notas do mestre no intuito de publicar um livro que apresentasse a doutrina exposta em seus cursos e que abria novos horizontes para a Linguística. Contudo, as buscas foram frustradas e poucas notas foram encontradas. Assim, liderados por Charles Bally e Albert Sechehaye, que resolveram compilar e comparar as notas dos alunos feitas durante as aulas, veio à tona a obra denominada Curso de linguística geral, publicada em 1916. Pode não ter sido escrito de punho próprio. Mas suas aulas, para um pequeno auditório de não linguistas e que não condizia com o pesquisador da natureza de Saussure – realizadas entre os anos de 1907 e 1919 –, geraram um livro, o CLG, que não pode ser, definitivamente, desconhecido dos que estudam a linguagem. A publicação do CLG talvez tenha sido operada no enfrentamento com dispositivos de toda sorte – subjetivista, editorial, etc. –, mas permitiram, senão um modo inédito de concluir, um espaço que garantisse e assegurasse um pensamento exclusivo de um homem surpreendente e misterioso: Saussure.
Notas 1
2
3
4
Em tradução aproximada: “Memória sobre o sistema primitivo das vogais das línguas indo-europeias” e “Sobre o emprego do genitivo absoluto em sânscrito”. Traduzido para o português como Escritos de linguística geral (2004). Daí o uso, aqui, da sigla ELG. Cf. bibliografia. Silveira (2007) analisa um dos originais saussurianos. O texto exposto por ela difere completamente dos estabelecidos por Bouquet e Engler (2002). Essa leitura milneriana extrapola, em seu livro, os limites de nossa tomada de posição. Milner (1987) ressalta a concepção de um não todo na possibilidade de colocar em relação o discurso da Linguística com o discurso da Psicanálise lacaniana. Preferi, neste texto, não adentrar nesta questão.
Bibliografia A RRIVÉ, Michel. Linguagem e psicanálise, linguística e inconsciente: Freud, Saussure, Pichon, Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. A UTHIER -R EVUZ, Jacqueline. Palavras incertas: as não coincidências do dizer. Campinas: Editora da Unicamp, 1998. B OUQUET, Simon. Introdução à leitura de Saussure. São Paulo: Cultrix, 1999. D E M AURO. Tullio. Édition critique du “Cours de linguistique générale” de F. de Saussure. Paris: Payot, 1972.
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“Mostrar ao linguista o que ele faz”: as análises de Ferdinand de Saussure Valdir do Nascimento Flores
Comecemos pelo título deste capítulo: ele faz referência a uma famosa carta de Ferdinand de Saussure a respeito de seus estudos sobre a entonação báltica, enviada a Antoine Meillet, datada de 4 de janeiro de 1894, na qual ele confessa seu desgosto com a situação em que se encontrava a Linguística de seu tempo. Essa carta foi apresentada pela primeira vez, em uma versão incompleta, no livro de Robert Godel, Les sources manuscrites du “Cours de linguistique générale”, em 1957, e foi reeditada, numa versão completa, no Cahiers Ferdinand de Saussure, número 21, em 1964, em uma organização feita por Émile Benveniste. Fazemos, aqui, a citação a partir do Cahiers: Estou muito desgostoso com tudo isso e com a dificuldade que há, em geral, em escrever sequer dez linhas tendo o senso comum em matéria de fatos de linguagem. Preocupado, há muito tempo, sobretudo com a classificação lógica desses fatos, com a classificação dos pontos de vista a partir dos quais nós os tratamos, vejo, cada vez mais, a imensidade do trabalho que seria necessário para mostrar ao linguista o que ele faz – reduzindo cada operação à sua categoria prevista – e, ao mesmo tempo, a grande insignificância de tudo o que se pode fazer finalmente em Linguística. (CFS, 21: 95 – grifos nossos)1
A carta a Meillet é clara: Saussure está preocupado em proporcionar ao linguista a tomada de consciência de sua própria atividade, de seu fazer. O que isso quer dizer? Em nossa opinião, algo de muito singular: a angústia de Saussure era delimitar, no contexto do fim do século XIX e início do XX, o que faz de um linguista um linguista. Secundariamente, e em função dessa preocupação, é que ele cria o objeto da Linguística – a língua – e todas as noções em torno desse objeto. Mas o que nos parece claro é que Saussure queria mesmo dizer a todos o que faz um linguista.
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Com a intenção de aprofundar esse tema, a partir de um conjunto de fontes documentais mais amplo, este texto reúne uma série de notas de leitura – feitas, inicialmente, para fins de ensino de noções básicas de Linguística geral –, cujo objetivo é mostrar, em especial, aos jovens linguistas de nosso tempo – estudantes universitários em sua maioria – como o fundador da Linguística contemporânea pensou o seu ofício. Nosso interesse é, em síntese, responder às seguintes questões: como Saussure caracterizou o fazer do linguista? Quais tarefas reservou-lhe? Que problemas supôs que deveria resolver? Dito dessa maneira, pode até parecer que nos impomos uma tarefa pretensiosa e com certa dose de dogmatismo. No entanto, advertimos: nossas intenções são modestas e nada do que vai aqui escrito passa de uma interpretação preliminar que fazemos do material consultado (cf. adiante). Na verdade, queremos tão somente delinear um programa de investigação que permita trazer à tona um Saussure ainda pouco estudado entre nós, no Brasil: pensamos em valorizar a figura do linguista. Isso não implica, obviamente, desconhecer que Saussure foi também um epistemólogo da Gramática Comparada, um filósofo da linguagem e mesmo o criador de uma nova disciplina, a Semiologia. Quando dizemos que nos interessa a figura do linguista que foi Saussure, queremos circunscrever nosso foco à sua atividade de analista da língua, ao escopo de sua atuação metodológica, propriamente dita. Acreditamos que, ao nos determos na sua atividade de linguista, conseguimos deduzir algo a respeito do fazer do linguista, em geral. Assim, para esboçar, ao menos em linhas gerais, algumas respostas às questões anteriores, assumimos uma hipótese de pesquisa, qual seja: aquilo que Saussure atribuiria ao fazer do linguista deveria ser constitutivo de seu (de Saussure) próprio fazer como linguista, logo, o estudo das análises linguísticas de Saussure podem ser uma forma – talvez a mais importante – de mostrar ao linguista o que ele faz.2 Em outras palavras, cremos que Saussure – no afã de conciliar sua visão de língua e, consequentemente, de Linguística com o programa de ensino que é levado a desenvolver na Universidade de Genebra durante os três anos que dão origem à conhecida obra póstuma Curso de linguística geral (CLG) – elabora a descrição/ explicação de fenômenos linguísticos que têm uma circunscrição fenomenológica stricto sensu e um alcance epistemológico notável. Isso posto, nossa hipótese pode, ainda, ser um pouco mais precisada: consideramos que Saussure, ao estudar determinados mecanismos linguísticos – analogia, aglutinação, etimologia popular, entre outros –, lidou com o mecanismo vivo da língua, com as potencialidades da língua a serviço da criação. Nesses mecanis-
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mos, vemos operar de maneira não dicotômica as grandes noções saussurianas: a língua e a fala, a sincronia e a diacronia, o associativo e o sintagmático, entre outras. O mecanismo da língua – não por acaso um dos capítulos mais complexos do Curso de linguística geral (CLG) – atesta que Saussure não estabeleceu apenas uma Linguística de fenômenos isolados, mas sua Linguística supõe que todos os fenômenos são relação entre relações.3 Para levarmos a cabo, enfim, nossos propósitos, organizamos este texto, adiante, em três seções: a primeira – dedicada a aspectos metodológicos –, “Balizando caminhos”, apresenta algumas considerações sobre os procedimentos de pesquisa e de tratamento das fontes bibliográficas; a segunda – dedicada ao estudo de um fenômeno linguístico estudado por Saussure (analogia) –, “A criação da língua e o fazer do linguista”, desenvolve argumentos em favor das hipóteses postuladas anteriormente; a terceira – dedicada às considerações finais –, “Concluindo: das análises de Saussure ao sujeito falante e ao fazer do linguista”, apresenta, em linhas gerais, a configuração de uma tese específica: a de que Saussure, ao analisar a língua, deparou-se com o aspecto criativo que a constitui, deparou-se, enfim, com o sujeito falante, horizonte último de seu fazer.
Balizando caminhos Para quem entra em contato com as inúmeras fontes saussurianas com propósitos semelhantes aos nossos, é fácil concluir que a busca pela especificidade do fazer do linguista é acompanhada de discussões de grande monta e retomálas não é empreitada simples. O trabalho com essas fontes exige de quem o faz uma série de cuidados metodológicos referentes à análise documental complexa – que inclui textos de autoria atribuída, manuscritos, etc. Além disso, como é fácil prever, as respostas às indagações anteriores não estão explicitamente formuladas em nenhuma parte do corpus de pesquisa constituído pelas fontes que utilizamos para subsidiar este trabalho. No máximo, é possível encontrar uma ou outra passagem esparsa que discorre sobre o ofício do linguista em meio a outros temas.4 Do ponto de vista da pesquisa bibliográfica, a metodologia por nós utilizada para o tratamento das fontes é a seguinte: vamos ao Curso de linguística geral e, a partir dele, buscamos apoio em outras fontes. O conjunto das fontes constitui o nosso corpus de pesquisa. O fio condutor da leitura é o fenômeno linguístico que está em exame. Dessa maneira, interessa-nos muito mais, considerando esse corpus
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de pesquisa, mostrar ao leitor como o fenômeno de analogia, por exemplo, serve para ilustrar o raciocínio de Saussure do que questionar a legitimidade das fontes. Partimos do CLG porque reconhecemos seu valor fundador do campo da Linguística. O recurso às demais fontes vem, esperamos, contribuir com o entendimento do conjunto das reflexões5 já presentes no CLG. Assim, o leitor encontrará, adiante, reflexões apoiadas no seguinte corpus de pesquisa:6 Obras de Ferdinand de Saussure Mémoire sur le système primitif des voyelles dans les langues indoeuropéennes. Utilizamos o texto presente no Recueil des publications scientifiques organizado por Charles Bally e Léopold Gautier. O sistema de remissão a essa obra é composto pela palavra Recueil seguida da página. Por exemplo: (Recueil: 463). A edição utilizada é a publicada em 1984 pela editora Slatkine Reprints, uma reimpressão da edição de 1922 (cf. Bibliografia). Edições póstumas Dos cursos ou de notas dos cursos Curso de linguística geral. Organizado por Charles Bally e Albert Sechehaye com a colaboração de Albert Riedlinger. O sistema de referência é composto pela sigla CLG seguida da página. A edição utilizada é a brasileira, publicada pela editora Cultrix (cf. Bibliografia); Les sources manuscrites du Cours de linguistique générale de F. de Saussure de Robert Godel. O sistema de referência é composto pela sigla RG seguida da página. A edição utilizada é a publicada em 1969 pela Libraire Droz (cf. Bibliografia); Cours de linguistique générale édition critique par Rudolf Engler (Tomo 1 e Tomo 2). Para referência aos dois tomos, o sistema utilizado é composto pela sigla RE seguida: yy da letra “T” e número 1 ou 2 (indicador do tomo) seguido do número (indicador da página); yy da letra “C” seguida de numero de 1 a 5 (indicador da coluna); yy de número romano (I para o primeiro curso; II para o segundo curso; III para o terceiro curso); yy de abreviatura do nome do aluno: R (Albert Riedlinguer), Ca (Louis Caille), G (Léopold Gautier), B (François Bouchardy), EC (Émile Constantin), D (George Dégallier), S (Mme. A. Sechehaye), J (Francis Joseph). Por exemplo: (RE T1: 374, C2 I R) indica Cours de linguistique générale édition critique par Rudolf Engler, Tomo 1, página 374, coluna 2, primeiro curso, aluno Albert Riedlinger. A edição utilizada é, para o Tomo 1, a de 1989 e, para o Tomo 2, a de 1990, ambas publicadas pela Otto Harrassowitz, Wiesbaden. De escritos Escritos de linguística geral. São Paulo, Cultrix, 2004 (organizados e editados por Simon Bouquet e Rudolf Engler). yy Antigos documentos (Edição Engler 1968-1974) – segunda conferência na Universidade de Genebra (novembro de 1891);
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yy Antigos documentos (Edição Engler 1968-1974) – terceira conferência na Universidade de Genebra (novembro de 1891); yy Antigos documentos (Edição Engler 1968-1974) – notas para um livro sobre Linguística Geral 1; yy Antigos documentos (Edição Engler 1968-1974) – Status e motus. Notas para um livro de Linguística geral 2. O sistema de referência é composto pela sigla ELG seguida de página e da identificação da fonte manuscrita entre colchetes. Por exemplo: (ELG: 136 [segunda conferência na Universidade de Genebra]). De correspondência Lettres de Ferdinand de Saussure à Antoine Meillet publicadas por Émile Benveniste, Cahiers Ferdinand de Saussure, n. 21, Librairie Droz, Genebra, 1964. O sistema de remissão é composto pela sigla CFS seguida da indicação do volume e da respectiva página. Por exemplo, (CFS, 21: 10) indica Cahiers Ferdinand de Saussure, número 21, página 10.
À guisa de introdução, cabe dizer, ainda, que o fenômeno linguístico escolhido para guiar nossa investigação sobre o fazer do linguista é a analogia. O critério de escolha é duplo: de um lado, está o fato de que falar em analogia, na visão de Saussure, implica falar em outros fenômenos a ela relacionados (a etimologia popular e a aglutinação, por exemplo). A natureza da analogia é inter-relacional, portanto. De outro lado, está o entendimento de que a leitura do conjunto do CLG permite inferir que a analogia tem, para Saussure, um lugar central porque possibilita ao linguista ilustrar questões teóricas e metodológicas de sua reflexão.7
A criação da língua e o fazer do linguista A analogia é tema frequente nas reflexões de Saussure e o CLG registra isso em vários momentos. Há, porém, dois capítulos no livro dedicados especificamente ao assunto: os capítulos IV (“A analogia”) e V (“Analogia e evolução”) da Terceira Parte (“Linguística diacrônica”). Vale a pena prestar atenção nos títulos dados aos subcapítulos. No quarto capítulo, encontramos: “Definição e exemplos”; “Os fenômenos analógicos não são mudanças”; “A analogia, princípio das criações da língua”. No quinto capítulo: “Como uma inovação analógica entra na língua”; “As inovações analógicas, sintomas de mudanças de interpretação”; “A analogia, princípio de renovação e conservação”. Essa maneira de apresentar o fenômeno encaminha, como é possível notar, um ponto de vista sobre a língua que enfatiza o aspecto criativo sem desconhecer
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o que é da ordem do regular. A analogia tem o estatuto de um princípio, ela “[...] supõe um modelo e sua imitação regular. Uma forma analógica é uma forma feita à imagem de outra ou de outras, segundo uma regra determinada” (CLG: 187). Para Saussure, o nominativo latino honor é analógico porque de honōs : honōsem passamos a honōs : honōrem por rotacismo do s. O radical, inicialmente, tem, então, uma forma dupla que, por sua vez, é eliminada “pela nova forma honor, criada sobre o modelo de orator : oratorem” (CLG: 187). O modelo da analogia é o da quarta proporcional: ōrātōrem : ōrātor = honōrem : X X = honor (CLG: 188). No CLG, Saussure reconhece que é com os neogramáticos que a analogia recebe, pela primeira vez, um tratamento adequado, já que ela é vista, juntamente com as mudanças fonéticas, como o grande fator de evolução das línguas ( CLG: 189): um processo de passagem de um estado de organização a outro. No entanto, Saussure questiona a natureza de mudança dos fenômenos analógicos. Para ele, a analogia não é mudança – o título do segundo parágrafo do capítulo IV já afirma isso, “Os fenômenos analógicos não são mudanças” ( CLG: 189) –, mas um princípio de criação na língua. Vejamos esse raciocínio. Todo o fato analógico é um drama de três personagens: 1º o tipo transmitido, legítimo, hereditário (por exemplo, honōs); 2º o concorrente (honor); 3º uma personagem coletiva, constituída pelas formas que criaram esse concorrente (honōrem, ōrātor, ōrātōrem, etc.). (CLG: 189)
A forma honor não foi gerada por honōs. Ela foi gerada, por analogia, de ōrātor, ōrātōrem. É por isso que Saussure não considera a analogia uma mudança. Não houve mudança, houve criação na língua. Temos apenas uma impressão de mudança porque honor manteve-se e honōs caiu em desuso. Olhando-se para esse resultado – (honōs : honōrem), que é o antigo, e (honor : honōrem), que é o novo –, temos a impressão de uma relação aparente entre honor e honōs. Mas trata-se, apenas, de uma aparência: “a única forma que nada teve a ver com a geração de honor foi precisamente honōs!” (CLG: 189). Em Saussure, a evolução (a mudança) está ligada, entre outras coisas, à substituição; na analogia não há substituição, há criação. Para ele, há em honor o mesmo que há em outros casos do francês, que ele utiliza como exemplo:
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De igual modo, em francês, sobre o modelo de pension : pensionnaire, réaction : réactionnaire etc., qualquer pessoa pode criar interventionnaire ou répressionaire, com o significado de “em favor da intervenção”, “em favor da repressão”. Esse resultado é evidentemente o mesmo que aquele que acabamos de ver engendrando honor: ambos reclamam a mesma fórmula: réaction : réactionnaire = répression : X X = répressionnaire E num e noutro caso não há o menor pretexto para falar de mudança; répressionnaire não substitui nada. (CLG: 190-191 – grifos nossos)
Saussure aproxima, então, a analogia do que chama de “princípio [...] das criações linguísticas em geral” (CLG: 191), ou seja, ela é de ordem psicológica e gramatical – e ambas podem ser entendidas, neste contexto, como algo que faz parte do saber do falante. Exemplos não faltam no CLG para se entender melhor esse aspecto criativo e gramatical da analogia: de um lado, ouve-se dizer analogicamente em francês finaux por finals, o qual passa por ser mais regular; de outro, qualquer pessoa poderia formar o adjetivo firmamental e dar-lhe um plural firmamentaux. Pode-se dizer que em finaux há mudança e em firmamentaux criação? Nos dois casos há criação. (CLG: 191 – grifos nossos)
Ou ainda: “Sobre o modelo de mur : emmurer fez-se tour : entourer e jour : ajourer (em “un travail ajouré”), esses derivados relativamente recentes, nos aparecem como criações” (CLG: 191 – grifo nosso). Em outras fontes saussurianas, encontramos observações semelhantes. No Mémoire sur le système primitif des voyelles dans les langues indo-européennes, Saussure se refere à quarta proporcional como a fórmula cômoda de M. Havet, no estudo que faz das sílabas sufixais com dados do sânscrito. Diz ele: “[...] para nos servir da fórmula cômoda de H. Havet, sendo dadas pánca e a dupla saptásaptamá, ou ainda dáça-daçamá, etc., o hindu deduziu disso muito naturalmente a quarta proporcional: pancamá” (Recueil: 31). Godel registra, com uma nota de Riedlinger, que a formulação que dá o título do terceiro parágrafo dessa parte, “A analogia, princípio das criações da língua”, teria sido pensada por Saussure como “A analogia como uma atividade criativa da língua” (RG: 57). Antes, também recorrendo às anotações, do primeiro curso, de Riedlinger, registra Godel: “Existe de fato mudança analógica quando nós substituímos a uma forma tradicional existente uma outra, criada por associação.” (RG: 57)
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Nos Escritos de linguística geral, a ideia de criação aplicada à analogia é acompanhada de uma observação importante: “não haverá jamais criação ex nihilo, mas cada inovação será uma nova aplicação de elementos fornecidos pelo estado anterior da linguagem” (ELG: 140 [segunda conferência na Universidade de Genebra]). Na edição de Engler, em nota de Riedlinger, lemos: “Nos não devemos ver nos fenômenos analógicos senão as criações, as inovações” (RE T1: 385, C2 I R). Em linhas gerais, e observando o conjunto das fontes pesquisadas, é possível perceber que quatro recursos são utilizados para cercar o fenômeno da analogia: a definição – “Uma forma analógica é uma forma feita à imagem de outra ou de outras, segundo uma regra determinada” (CLG: 187) –; a exemplificação – são dados inúmeros exemplos, o caso de honor é apenas o mais famoso –; a esquematização – a quarta proporcional –; a comparação – além de o fato analógico ser comparado a um drama de três personagens podemos incluir aqui os recursos metafóricos: conforme a metáfora “a língua é um traje coberto de remendos de seu próprio tecido” (CLG: 200) para falar nas inovações da analogia. Isso posto, vale fazer uma última observação: aqueles que se dedicam ao estudo do pensamento saussuriano sabem que, nessa teoria, cada conceito, termo, noção está em relação com outros conceitos, termos e noções. Poderíamos dizer que há em Saussure uma rede de primitivos teóricos. Com isso, queremos enfatizar que a analogia não é um fenômeno que pode ser devidamente compreendido sem se fazer referência a outros elementos do sistema teórico saussuriano. A seguir, portanto, buscamos ver apenas um desses aspectos do edifício teórico saussuriano que, segundo pensamos, está fundamentalmente associado ao de analogia: a dicotomia diacronia/sincronia.
Analogia, sincronia e diacronia (mudança e evolução) Comecemos com uma interessante passagem do CLG: Em resumo, a analogia, considerada em si mesma, não passa de um aspecto do fenômeno de interpretação, uma manifestação da atividade geral que distingue as unidades para utilizá-las em seguida. Eis por que dizemos que é inteiramente gramatical e sincrônica. (CLG: 193 – grifos nossos)
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O que Saussure entende por “fenômeno de interpretação”, embora de grande importância, não poderá ser objeto de discussão aqui. Por ora destacamos dessa passagem apenas um aspecto que não deixa de chamar a atenção: por que uma problemática que é inteiramente gramatical e sincrônica tem lugar tão destacado na Terceira Parte do CLG, dedicada à Linguística diacrônica? No CLG, está explícito que a analogia supõe a compreensão de uma relação que une as formas entre si (CLG: 191). É isso que leva à afirmação de que “tudo é gramatical na analogia” (CLG: 192). Se bem entendemos os trechos destacados a atividade geral que distingue as unidades para utilizá-las em seguida e o gramatical são, ambos, aspectos da sincronia. Tentaremos entendê-los em detalhe. Tullio de Mauro diz que os capítulos da Terceira Parte do CLG são feitos de acordo com as lições do primeiro curso do professor (TM: 472, n. 12 e n. 269).8 Essa informação adquire maior importância se a confrontamos com outra: “O terceiro curso é a base da obra, mas não de sua organização” (TM: 406, n.12). De Mauro quer, com isso, deixar claro que os cursos foram dados em uma perspectiva que vai da análise das línguas – a partir da qual os estudantes deveriam se dar conta do que é contingente, historicamente acidental da organização das línguas – em direção à análise de aspectos universais comuns a todas as línguas, ou seja, aos aspectos da língua. A ordem de apresentação do pensamento saussuriano não é uma questão me9 nor; ela é determinante de uma série de possibilidades de interpretações. O tema é caro ao próprio Saussure. Sobre essa ordem, lemos em uma nota presente nos Escritos que faz alusão a um livro que nunca chegou a ser escrito pelo professor: Seria preciso, para apresentar convenientemente o conjunto de nossas proposições, adotar um ponto de partida fixo e definido. Mas tudo o que procuramos estabelecer é que é falso admitir, em Linguística, um único fato como definido em si mesmo. Há, então, uma ausência necessária de qualquer ponto de partida e o leitor que se dignar seguir atentamente nosso pensamento, de um extremo a outro deste volume, perceberá, estamos convencidos disso, que seria, por assim dizer, impossível seguir uma ordem muito rigorosa. Nós nos permitimos recolocar a mesma ideia três ou quatro vezes, sob diferentes formas, sob os olhos do leitor, porque não existe, realmente, nenhum ponto de partida que seja mais indicado do que os outros para nele basear demonstração. (ELG: 171 [notas para um livro sobre Linguística geral 1] – grifos nossos)
O questionamento sobre a ordem de apresentação dos conteúdos a ser seguida está na natureza da reflexão saussuriana, portanto.
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O CLG, por sua vez, tem uma ordem que precisa ser vista como o produto da interpretação dos editores: nele, primeiro falamos na língua – nos capítulos III e IV da “Introdução” e nos capítulos da Segunda Parte (“Linguística sincrônica”) – e, por fim, nas línguas. Isso gera uma dificuldade de leitura: temos a impressão que Saussure parte da noção de sistema (e da de valor) para chegar às línguas, quando, na verdade, parece que o inverso é mais próximo do que propunha Saussure. É o que sugere este trecho da carta enviada a Meillet:10 “é somente o lado pitoresco de uma língua, o que faz com que ela se distinga de todas as outras como pertencendo a um certo povo que tem certas origens, é esse lado quase etnográfico que tem para mim um interesse” (CFS, 21: 95). Além disso, segundo De Mauro, a analogia é estudada apenas nos dois primeiros cursos e, em cada um, de maneira distinta. Isso quer dizer que o CLG reúne em um único texto as lições, não necessariamente equivalentes, de dois cursos. Por que nos demoramos neste ponto em torno do estabelecimento do texto do CLG? Nossa insistência deve-se menos a algum objetivo de confrontação das fontes e mais ao estranhamento causado pela presença da analogia – fenômeno considerado sincrônico – como tema quase exclusivo da parte dedicada à Linguística diacrônica. Essa presença nos permite formular uma interpretação para o fato analógico: partimos da suposição de que, para Saussure, a analogia tem uma aparência de mudança, mas não se configura propriamente em mudança, o que o faz circunscrevê-la em contraposição a outros fenômenos – a mudança fonética é um exemplo sem dúvida, mas há também a etimologia popular e a aglutinação, entre outros. Consequentemente, falar em analogia, fenômeno sincrônico, levou, por contraposição, Saussure a falar em diacronia e fenômenos de mudança. Essa nossa interpretação encontra apoio, por exemplo, em várias partes da edição de Engler: Outro erro propriamente linguístico, outra grande lacuna é que ela prestou pouca atenção a toda dos fenômenos que constituem a criação contínua, na língua: a analogia. Não falávamos de analogia, mas de falsa analogia, o que aponta para a cegueira diante dessa ordem de fenômenos. (RE T1: 369, C1 I IR – grifos nossos)
Ou ainda:
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É preciso em seguida colocar aqui uma observação importante: na mudança analógica, não existe necessariamente desaparição da forma que foi substituída (honos) enquanto a mudança fonética introduz uma nova forma (honorem) anulando a precedente (honosem) (RE T1: 371, C1 IR – grifos nossos).
Observemos que o tema da analogia – sincrônico – evoca naturalmente outros – diacrônicos – que, embora similares, são de ordem distinta. Isso posto, podemos, agora, tratar com mais vagar o aspecto sincrônico e gramatical da analogia. Ele é reiterado em todas as fontes que consultamos. Na edição de Engler, encontramos muitas notas de Riedlinger – que, como sabemos, assistiu apenas aos dois primeiros cursos – referentes ao primeiro curso. Mas há, também, notas do segundo curso. Em ambas, sincrônico está vinculado a gramatical. Na edição de Engler: “tudo o que está na sincronia de uma língua, aí compreendida a analogia (= consequência de nossa atividade), se resume muito bem no termo gramática na acepção muito próxima da ordinária” (RE T1: 379, C2 I IR – grifos nossos). Na edição de Godel, principalmente nas fontes referentes ao segundo curso, há algo muito semelhante: Analogia.[...]. Fenômeno diacrônico, ao que parece; mas, para produzi-lo, é preciso a ação das forças sincrônicas, do sistema. Exemplos: o mecanismo da analogia consiste inicialmente na interpretação do que foi recebido que se manifesta pela distinção das unidades. (RG: 73 – grifos nossos)
Nesse caso, mais uma vez, vemos a sincronia – as forças sincrônicas, no caso da passagem de Godel – ligada à noção de sistema. No CLG, encontramos: “quem diz gramatical diz sincrônico e significativo” ( CLG: 156). Nos Escritos: IDIOSSINCRÔNICO. Não é idiossincrônico o que é fonético (diacrônico). 000. – Gramatical = idiossincrônico, uma noção que só é clara quando remete à ideia de idiossincrônico. (ELG: 196 [Status e motus. Notas para um livro de Linguística geral 2]) [...] DIACRÔNICO. É oposto a sincrônico ou idiossincrônico. 000. Por que equivalente a fonético. (ELG: 195 [Status e motus. Notas para um livro de Linguística geral 2] – grifos nossos)
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Não há dúvida: Saussure considera gramatical equivalente a sincrônico, logo, oposto a diacrônico. E, sendo um fenômeno gramatical, a analogia é sincrônica. Para explicarmos corretamente a relação de verdadeira necessidade entre sincrônico, gramatical e analogia seria preciso tratá-la com a profundidade que o tema exige. No entanto, não faremos mais que algumas observações. Nosso raciocínio aqui é simples: Saussure utiliza a analogia – que, não por acaso, ele também denomina de “operação de analogia” (ELG: 145 [terceira conferência na Universidade de Genebra]) – como um meio de ilustrar que “existem apenas estados de língua que são, perpetuamente, a transição entre o estado da véspera e o do dia seguinte” (ELG: 144 [terceira conferência na Universidade de Genebra]). A analogia, a operação de analogia, é a prova de que a oposição entre sincronia e diacronia é mais de natureza metodológica do que da realidade da língua. A analogia está ligada à noção de estado de língua que nada mais é que o equilíbrio entre o diacrônico e o sincrônico. Nesse ponto, a argumentação do professor é bastante sofisticada. Há no CLG uma aparente contradição em torno desse assunto. Observemos a passagem abaixo: [...] a analogia não poderia ser, por si só, um fator de evolução; não é menos verdadeiro que tal substituição constante de formas antigas por novas constitui um dos aspectos mais surpreendentes da transformação das línguas. Cada vez que uma criação se instala definitivamente e elimina sua concorrente, existe verdadeiramente algo criado e algo abandonado, e nesse sentido a analogia ocupa um lugar preponderante na teoria da evolução. (CLG: 197 – grifos nossos)
Ainda no CLG: [...] a analogia exerce uma ação sobre a língua. Assim, conquanto não seja por si mesma um fato de evolução, ela reflete, de momento para momento, as mudanças sobrevindas na economia da língua e as consagra por novas combinações. Ela é colaboradora eficaz de todas as forças que modificam sem cessar a arquitetura de um idioma, e a esse título constitui um possante fator de evolução. (CLG: 199 – grifos nossos)
O leitor certamente estranharia se, desavisadamente, lesse as duas citações anteriores. Saussure é contraditório? O CLG é contraditório? Preferimos pensar que nem uma coisa, nem outra. Inicialmente, cabe observar que, nessas passagens do CLG, a analogia não é vista, por si – nas citações lemos por si só e por si mesma –, como um fator de
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mudança, embora possa ocupar um lugar na teoria da evolução. Esse “por si” é fundamental. É isso que aparece mais adiante no CLG: Mas uma coisa interessa particularmente ao linguista: na massa enorme dos fenômenos analógicos que representam alguns séculos de evolução, quase todos os elementos são conservados; somente que se distribuem de forma diversa. As inovações da analogia são mais aparentes que reais. (CLG: 199-200 – grifos nossos)
Ora, quando o falante produz uma formação analógica, o ponto de vista sincrônico é sempre o do falante e de seu saber sobre a língua. Por esse viés, Saussure recusa o aspecto de mudança à analogia: a analogia não é mudança. Por esse viés, também a verdadeira necessidade entre sincronia, gramatical e analogia se explicita: é o falante que os relaciona entre si ao produzir uma analogia, ao criar na língua.
Concluindo: das análises de Saussure ao sujeito falante e ao fazer do linguista O estudo que fizemos sobre a analogia em Saussure nos permite afirmar que, do seu ponto de vista, ao linguista cabe a difícil tarefa de dar a ver o conhecimento que o falante tem de sua língua. Saussure, ao analisar fenômenos linguísticos muito específicos – e o caso da analogia é exemplar –, coloca em relevo o sujeito falante em relação com a língua, com o conjunto de formas lexicais e gramaticais cuja realização é sempre uma potencialidade de uso irrefletido de cada locutor. Essa afirmação pode até surpreender aqueles que se formaram no apogeu do estruturalismo, mas não estamos desacompanhados em nossa interpretação. É sobre o sujeito falante que conclui Claudine Normand ao afirmar que: A inversão operada por Saussure é a de definir o campo da Linguística, colocando-se desde o começo na prática da língua, naquilo que consiste a experiência cotidiana de qualquer locutor. [...] o locutor ordinário não é um estudioso, mas, mesmo assim, ele sabe falar. Trata-se de descobrir a especificidade desse saber, deixando de lado o saber sobre a língua. (Normand, 2009: 45 – grifos nossos)
E acrescenta, adiante: “a tarefa designada ao linguista é a de se situar na língua, como um locutor qualquer, mas para poder aí explicitar o mecanismo
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ignorado pela ‘massa falante’” (Normand, 2009: 47 – grifos nossos). É por isso que Normand afirma: “o ponto de vista é o do locutor, e não o do conhecedor” (Normand, 2009: 45). Com um olhar distinto sobre as fontes, Loïck Depecker conclui de maneira semelhante a Normand ao considerar que o recurso ao sujeito falante permite a Saussure “não somente melhor entrar nos fatos linguísticos, mas ter critérios sobre os quais se apoiar para validar a análise” (Depecker, 2009: 104). Como podemos notar, vincular o objeto da Linguística e seus mecanismos ao sujeito falante não é propriamente uma tese nova. Muitos já a desenvolveram. Citamos aqui apenas dois importantes leitores de Saussure (Normand e Depecker). Gostaríamos, porém de reivindicar alguma originalidade para o nosso estudo, qual seja, a especificidade do que apresentamos anteriormente está no fato de que falamos sobre o fazer do linguista a partir das análises linguísticas de Ferdinand de Saussure. Nossa tese aqui é: Saussure é um exímio linguista e, se bem o entendemos, seu ponto de partida é sempre a fala, o lugar da criação. Logo, relacionar o aspecto criativo da língua com o fazer do linguista é o que mais se destaca em nosso percurso, e isso coloca em destaque o sujeito falante. O trajeto que fazemos anteriormente tem, então, particularidades se comparado com o que é, normalmente, feito em obras de apresentação, interpretação e mesmo introdução ao pensamento saussuriano. O conjunto das reflexões contidas aqui é, de um lado, a tentativa de responder às questões acerca do ofício do linguista, e, de outro lado, o esboço de uma possibilidade de leitura, com base em corpus, que visa elucidar aspectos conceituais da teoria linguística de Ferdinand de Saussure. A pergunta que resta é, então: como o linguista pode lidar com o potencial vivo e criativo da língua? Mantendo-se do lado do falante.
Notas 1
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Trata-se de Cahiers Ferdinand de Saussure, n. 21, Librairie Droz, Genebra, 1964. O sistema de remissão é composto pela sigla CFS seguida da indicação do volume e da respectiva página. No entanto, é importante dizer, pensar sobre o fazer do linguista em Saussure não é procedimento recente – embora seja muito atual e absolutamente necessário. Françoise Gadet, já em 1987, encerra o excelente Saussure: une science de la langue refletindo sobre o que chama de posição do linguista. Para ela, diferentes disciplinas, sob diferentes ângulos, têm se encarregado de estudar a linguagem. Disso, resulta que o linguista pode assumir, no mínimo, duas atitudes distintas: ou rivalizar com essas disciplinas, ou ter clareza sobre o que faz para saber a especificidade de sua prática. Para Gadet, as reflexões saussurianas são extremamente atuais para abordar o assunto. Esta afirmação a encontramos na página 275 da edição crítica de Rudolf Engler, nas anotações de F. Bouchardy e de E. Constantin.
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Fizemos um levantamento preliminar disso, com relação ao CLG, em Flores (2009). Neste texto, quando usamos, para fins de organização textual, a palavra “Saussure” para referir uma fonte o fazemos autorizados pela ideia de corpus aqui apresentada. A divisão a seguir segue o sugerido em Cahiers L’Herne – Ferdinand de Saussure, Paris, Éditions de L’Herne, 2003, p. 505. Há, ainda, um terceiro critério, de menor importância: o tema da analogia tem sido, reiteradamente, objeto de nossas pesquisas (cf. Flores, 2012). Para referência ao Cours de linguistique générale: édition critique préparée par Tullio de Mauro, utilizamos a sigla TM seguida do número indicador da página e da letra “n” seguida de número (indicador da nota). Por exemplo, (TM: 441, n.130) indica Cours de linguistique générale: édition critique préparée par Tullio de Mauro, página 441, nota 130. A edição utilizada é a publicada em 1976 pela Editora Payot (cf. Bibliografia). Para uma discussão aprofundada sobre isso, ver TM: 420, n. 65. Tratamos sobre a relação língua/línguas no CLG em Flores e Endruweit (no prelo).
Bibliografia B USS, Mareik; L ORELLA, Ghiotti; J ÄGER, Ludwig. Bibliographie. Cahiers L’Herne – Ferdinand de Saussure. Paris: Éditions de L’Herne, 2003, pp. 505-25. CAHIERS FERDINAND DE SAUSSURE: revue suisse de linguistique générale. Genebra: Librairie Droz S.A., 21, 1964. D EPECKER, Loïc. Comprendre Saussure: d’après les manuscrits. Paris: Armand Colin, 2009. FLORES, Valdir. O linguista e a linguística no CLG. Nonada letras em revista. Porto Alegre: Uniritter, 2009. Disponível em: . Acesso em: 12 abr. 2013. _____. Sobre a fala no “Curso de linguística geral” e a indissociabilidade língua/fala. In: D I F ANTI, Maria da Glória; B ARBISAN, Leci Borges. Enunciação e discurso: tramas de sentidos. São Paulo: Contexto, 2012. _____; E NDRUWEIT, Magali. Da diversidade das línguas à língua: notas de leitura do “Curso de linguística geral”. (no prelo). G ADET, Françoise. Saussure, une science de la langue. Paris: PUF, 1987. G ODEL, Robert. Les sources manuscrites du “Cours de linguistique générale” de Ferdinand de Saussure. Genebra: Libraire Droz, 1969. N ORMAND, Claudine. Saussure. São Paulo: Estação Liberdade, 2009. S AUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. Organizado por Charles Bally e Albert Sechehaye com a colaboração de Albert Riedlinger. São Paulo: Cultrix, 1975. _____. Cours de linguistique générale: édition critique préparée par Tullio de Mauro. Paris: Payot, 1976. _____. Recueil des publications scientifiques de Ferdinand de Saussure. Organizados por Charlles Bally e Léopold Gautier. Genebra/Paris: Slatkine Reprints, 1984. _____. Cours de linguistique générale: édition critique par Rudolf Engler. Wiesbaden: Otto Harrassowitz, 1989. (Tomos 1 e 2) _____. Escritos de linguística geral. Organizados e editados por Simon Bouquet e Rudolf Engler. São Paulo: Cultrix, 2004.
Pequeno ensaio sobre o Tempo na teorização saussuriana Maria Fausta Pereira de Castro
O título deste capítulo expõe de imediato o seu limite: qualquer estudo sobre o tempo em Saussure é pequeno, se dimensionado frente à extensão e complexidade do tema na obra do autor. Presente em numerosas passagens do Curso (CLG) e em suas edições críticas por Engler ([1968]1989) e Tullio de Mauro ([1967]2005)1 e ainda nos Escritos ([2002]2004), assim como em trabalhos sobre os manuscritos (Godel, [1957]1969; Parret, 1993), sobre as lendas germânicas e o anagrama (Arrivé, [2007]2010; Choi, 2002), o tempo é alvo de uma reflexão nada ordinária na obra de Saussure. Para ele a ciência linguística, pela própria natureza de seu objeto, deve reconhecer o papel peculiar do tempo na abordagem desse objeto. Em uma passagem da edição crítica de Engler ([1968]1989) e presente de forma bastante abreviada no CLG, mas também incluída nos Escritos ([2002]2004: 285), Saussure formula uma de suas hipóteses sobre o modo de intervenção do problema do tempo no estudo da linguagem. Reproduzo abaixo a citação que está nos Escritos. O fato de que o Tempo intervém para alterar a língua, como intervém para modificar qualquer coisa, não parece, de início, um fato muito grave para as condições em que se coloca a ciência linguística. E eu devo acrescentar que vejo apenas uma ínfima proporção de linguistas, ou talvez nem isso, dispostos a acreditar que a questão do Tempo criou, para a Linguística, condições particulares, dificuldades particulares, questões particulares e até mesmo uma questão central, podendo acabar por cindir a Linguística em duas ciências. (Saussure, [2002]2004: 285)
As notas dos alunos nesse trecho, no CLG/E ([1968]1989: 175), dão coloração ainda mais dramática às observações de Saussure. Eles se referem à “encruzilhada”
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em que se encontra o linguista e o que se descortina como dilema. Por exemplo, Constantin (C 326)2 se pergunta se é preciso “ficar no tempo ou caminhar fora do tempo”.3 O mesmo dizem Dégallier, Mme Sechehaye, Joseph. Nenhum leitor de Saussure ignora a cisão mencionada na citação: de um lado, a Linguística sincrônica, que estuda as relações tecidas entre termos coexistentes formando sistema, que rege a mesma consciência coletiva; de outro, a Linguística diacrônica, que se ocupa das relações entre termos sucessivos, “não percebidos pela mesma consciência coletiva e que se substituem uns aos outros sem formar sistema entre si” (Saussure, [1916] 2008: 116). Note-se que a inovação saussuriana vai ainda além. O termo diacronia é criado para se distanciar de uma simples visão de história. Na sua primeira conferência em 1891, quando assumiu o cargo de “professor extraordinário” na Faculdade de História e Comparação das Línguas Indo-Europeias, em Genebra, essa questão é contemplada: “[...] a ciência da linguagem é uma ciência histórica e nada além de uma ciência histórica”; mas a certo momento de sua exposição separa cuidadosamente o ponto de vista da língua na história daquele da história da língua, a que o termo diacronia vai imprimir uma nova dimensão. Ao comentar a relação do empreendimento saussuriano com a Gramática Comparada, Milner (2002: 20) observa: Consciente do fato de que a referência ao histórico é aqui enganadora, Saussure prefere forjar os neologismos “diacronia” e “diacrônico” (CLG, I, 3, §1): quando se comparam estados de língua, cujos documentos são relativos a datas diferentes, não se faz História, faz-se Linguística diacrônica; quando se comparam estados de língua cujos documentos são relativos a datas contemporâneas faz-se Linguística sincrônica.
Voltando à citação de Saussure na página anterior, penso que sua afirmação de que o tempo “altera a língua” deva ser lida como a assunção de que ele dá visibilidade a dois objetos distintos, razão da necessária dualidade da ciência linguística (cf. Pereira de Castro, 2012). Hipótese que se opõe à possibilidade de se atribuir ao tempo o papel de agente direto da mudança linguística. De fato, a questão para Saussure é a impossibilidade de se tratar simultaneamente um sistema de valores tomado em si (ou em um momento) e os sistemas de valores no eixo do tempo. Hipótese que é coerente com as inúmeras críticas do autor a uma visão cronológica da mudança linguística. Uma passagem dos Escritos (Saussure, [2002]2004: 79) vem confirmar essa hipótese; ao tratar do “objeto central da Linguística”, Saussure didaticamente
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enumera dois objetos centrais do estudo do linguista. Um estado de língua revela ao linguista “um único objeto central”, isto é “relações das formas e das ideias, que nele se encarnam”, e uma sucessão de estados oferece ao linguista “um único objeto central”, [...] que está com o objeto precedente não numa relação de oposição flagrante e abrupta, mas numa relação de radical disparidade, abolindo, logo de início, toda espécie de comparação, inaugurando uma ordem de ideias que não tem nenhuma oportunidade de nascer diante de um determinado estado da língua. (Saussure, [2002]2004: 79)
A disparidade entre cada um desses objetos centrais implica necessariamente consequências no encaminhamento do problema do tempo e de suas forças antagônicas de conservação e de mudança linguística; sempre submetidos à vida semiológica da língua, ao princípio da arbitrariedade e às leis do valor linguístico. Do ponto de vista da arbitrariedade, o primeiro princípio que rege o signo linguístico deve ser entendido no que há de mais radical. É o que está, aliás, nas anotações dos alunos do Curso, como por exemplo, as de Dégallier: “[...] A ligação unindo o significante ao significado é radicalmente arbitrária” (D 1117 CLG/E: 151).4 Tullio de Mauro ([1967]2005: 442) critica os editores que aboliram o advérbio dessa nota na edição do CLG. Entretanto, o mais importante aqui é acompanhá-lo na sustentação da força do princípio da arbitrariedade, cujo sentido “no seu grau mais profundo” não está nas “páginas atormentadas” do capítulo I da Primeira Parte do CLG, mas naquelas do capítulo IV da Segunda Parte, dedicada ao valor linguístico: o signo linguístico é arbitrário porque é uma combinação [...] de duas faces, significado e significante, que são arbitrárias na medida em que elas unem (e discriminam) arbitrariamente, sem atenção às motivações de ordem lógica ou natural, sentidos disparates e tipos disparates de realizações fônicas. (CLG/TM, 2005: 365)5
Vê-se por essa observação do autor a necessidade de se compreender o princípio da arbitrariedade na sua relação com a noção de valor linguístico e de sistema de valores. De fato, De Mauro não deixa de tirar as consequências de suas observações, afirmando que a natureza “sistêmica” do signo decorre do arbitrário: liberada de qualquer motivação ligada à substância conceitual ou fônica a “deli-
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mitação dos signos” é confiada aos próprios signos. E é porque essa “delimitação não tem outra base além do usus loquendi de uma comunidade linguística” que o sistema linguístico é de natureza “radicalmente social” em todas as suas faces (CLG/TM, 2005: 365-66). Decorre ainda do arbitrário uma “metodologia renovada da descrição dos signos”, que deve ser levada em termos de diferenças [...] e que foi desenvolvida por inúmeros linguistas pós-saussurianos.6 A radical arbitrariedade do signo é também tematizada por Jean Claude Milner (2002: 32), para quem “não se deve confundir o arbitrário que caracteriza um certo tipo de relação e o arbitrário que caracteriza a ausência de toda relação”. Enquanto o primeiro tipo pode de algum modo receber uma versão positiva, o segundo é estritamente negativo e Saussure o apresenta recorrendo também a termos negativos para qualificar o signo como “imotivado”, por exemplo. Além do mais, desloca conceitos cristalizados, explorando suas possibilidades adormecidas pelo uso comum. Milner relata um caso exemplar; momento em que Saussure, ao definir a instituição em matéria de língua como oposta a todas as outras instituições, contrariamente ao uso corrente, não a relaciona a uma referência fixa, “mas a um puro qualquer”: “não se concebe o que nos impediria de associar uma ideia qualquer com uma sequência qualquer de sons [...] tal caráter arbitrário separa radicalmente a língua de todas as outras instituições” (CLG: 90; apud Milner, 2002: 32). Assim definido, no âmbito de uma associação, o princípio da arbitrariedade do signo desenha um enigma, nas palavras de Milner: como o signo se mantém se não há uma relação interna, se não há um ponto fixo externo, se não há um “senhor das palavras” (maître des mots)? Segundo o autor aqui intervém uma das mais importantes inovações “da doutrina”, que ele resume em uma expressão concisa e rigorosa: “se um signo se mantém, é pelos outros signos” (Milner, 2002: 33). Os comentários de Tullio de Mauro e Jean Claude Milner dão prova de uma leitura aguda da teoria saussuriana, revelando os laços estreitos entre o princípio da arbitrariedade do signo e a noção de sistema, na medida em que um signo só existe pelos outros signos. É na realidade sincrônica que essa relação se revela ao linguista. Por sua vez, na perspectiva diacrônica, o princípio da arbitrariedade é invocado como um ponto de partida para a discussão sobre as forças antagônicas que atuam nas línguas ao longo do tempo: a continuidade e a transformação ou, como consta no título do capítulo II da Primeira Parte do CLG, as forças da imutabilidade e da mutabilidade do signo.
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Saussure abre o problema estabelecendo a relação entre a língua e a massa falante. A língua não pode, pois, equiparar-se a um contrato puro e simples, e é justamente por esse lado que o estudo do signo linguístico se faz interessante; pois se se quiser demonstrar que a lei admitida numa coletividade é algo que se suporta e não uma regra livremente consentida, a língua é a que oferece a prova mais concludente disso. (CLG, [1916] 2008: 85)
É sob a forma de um teorema que o princípio da arbitrariedade é proposto para explicar as forças antagônicas que agem ao longo do tempo nas línguas. É possível resumi-lo assim: porque é arbitrário não há razão para o signo mudar, e também porque é arbitrário nada impede que se estabeleça qualquer outra relação entre a matéria fônica e as ideias. De fato, é por ser arbitrário que o signo não conhece outra lei senão a tradição, e por se basear na tradição, por haver continuidade, é que ele pode ser arbitrário. Por outro lado, o mesmo princípio da arbitrariedade explica a mutabilidade, isto é, o fato de uma língua ser incapaz de se defender dos inúmeros fatores que deslocam a relação entre significante e significado. O caráter arbitrário separa assim a língua de todas as outras instituições. Saussure procura reunir uma série de argumentos que sustentem a sua hipótese. Parte do fato de a “língua estar simultaneamente situada na massa social e no tempo [...]” e, por isso, “[...] ninguém pode, de um lado, lhe alterar nada e, de outro, a arbitrariedade de seus signos implica teoricamente a liberdade de estabelecer não importa que relação entre a matéria fônica e as ideias” (CLG, [1916] 2008: 90-1). Uma vez unidos, esses dois elementos – matéria fônica e ideia, significante e significado – guardam sua vida própria, numa proporção desconhecida em qualquer outra parte (CLG, [1916] 2008: 91). Ao contrário do que se nota na realidade sincrônica, em que o princípio da arbitrariedade está em estreita relação com a noção de sistema, de um estado de língua e fora do eixo temporal, para falar de continuidade e mudança, Saussure associa ao princípio da arbitrariedade do signo a questão do tempo; só assim lhe é possível tratar as forças antagônicas em funcionamento na língua. A imutabilidade e mutabilidade se explicam na sucessão temporal. Nesse sentido merece aqui uma observação sobre esse capítulo do CLG, em que o problema é tratado. Ao ler a edição crítica de Engler (CLG/E, [1968]1989), nota-se que um breve comentário de Saussure recebe por parte dos alunos – Dégallier, Mme Sechehaye, Constantin – notas esquemáticas, praticamente idênticas,
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sobre o que ocorre “fora do dado do tempo” e o que se passa “em virtude do dado do tempo”. Através delas pode-se observar que o princípio da arbitrariedade está no eixo atemporal e “com liberdade”. Não se trata da liberdade do falante, mas da lógica do “qualquer” a que se refere Milner: nada impede a associação de uma ideia qualquer com uma sequência qualquer de sons. Do outro lado do esquema, alinham-se os fenômenos da imutabilidade e da alteração no eixo temporal. Estão em jogo as forças da conservação e de alteração da língua. A “não liberdade” diz respeito à primeira, que garante continuidade. A matéria “velha” de que fala Saussure; a segunda é a mutabilidade de “uma certa ordem”. Na coluna dedicada ao CLG em Engler (CLG/E: 164-65) lê-se: “1244 O que domina em toda alteração é a persistência da matéria velha; a infidelidade ao passado é apenas relativa. 1245 Eis por que o princípio de alteração se baseia no princípio de continuidade”. As notas de Constantin (1245, C III 318) apresentam o esquema abaixo: 1245 O princípio de alteração se baseia sobre o princípio de continuidade. < Voltando ao ponto de partida, teremos: > Fora do dado do tempo Em virtude do dado do tempo Arbitrário do signo, portanto, 1° Não liberdade (imutabilidade). liberdade. 2° Alteração (mutabilidade de uma certa ordem).
Vê-se por que Saussure insiste em afirmar que a língua é uma instituição sem análoga no campo da Semiologia. A arbitrariedade do signo e o sistema de valores garantem o fechamento desse sistema na sua vida própria. Uma observação do autor dá a dimensão da vida da linguagem na sua relação com a coletividade: “A língua, coisa em si sem relação com a massa humana existente, é indissoluvelmente ligada à massa humana. [...] A língua, para se impor ao espírito do indivíduo, deve antes ter a sanção da coletividade” (Saussure, [2002]2004: 258). Considerando a hipótese acima de que o tempo intervém na língua dando visibilidade a dois objetos distintos, pode-se então dizer que toda mudança se projeta no tempo, que não é, contudo, sua causa ou agente (cf. Pereira de Castro, 2012).7 Não há, porém, consenso sobre essa hipótese. Para citar apenas um de seus opositores, lembro aqui o nome de Pétroff (2004: 182), para quem o tempo em Saussure “é um ator, o único ator da mudança”. Seu objetivo é mostrar um “outro Saussure”, através de uma mudança de perspectiva de leitura de sua obra, isto é, pela reconstrução cronológica de todos os textos originais, e não a partir do Curso, publicado em 1916.
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Mas é no próprio Curso e em suas edições críticas que se pode encontrar apoio à hipótese que vem sendo apresentada neste texto. As observações abaixo não só confirmam a hipótese de que as mudanças se projetam no tempo, embora ele não possa ser considerado sua causa, como também sustentam a leitura do comentário do autor, de que o tempo “altera a língua”, isto é, sem ele não se veria o efeito da massa falante na transformação da língua. “Se se tomasse a língua no tempo, sem a massa falante – suponha-se um indivíduo isolado que vivesse durante vários séculos – não se registraria talvez nenhuma alteração; o tempo não agiria sobre ela”. Note-se o deslocamento do fator cronológico para a massa falante, que fornece em negativo – na hipótese de sua ausência – a revelação do seu papel de agente da mudança. Por outro lado, ao dar continuidade ao argumento, Saussure imagina a situação inversa, isto é, a ausência do tempo. “Inversamente, se se considerasse a massa falante sem o tempo não se veria o efeito das forças sociais agindo sobre a língua.” (Saussure, [1916]2008: 92-93) Os argumentos de Parret (1993: 102) e Arrivé (2010: 145) se encaminham para essa mesma direção. Enquanto para o primeiro o fator tempo é externo, não é linguístico, “só deveria comparecer na teoria linguística como conceito primitivo e não analisável”, para Arrivé o tempo é “condição pressuposta pelo próprio conceito de mudança”, já que não se pode concebê-la sem um antes e um depois. Quanto ao agente da mudança, “trata-se [...] da ‘massa falante’, [...] da ‘massa’ dos sujeitos falantes, que transmitem uns aos outros as inovações produzidas em seus ‘atos’ de fala” (Arrivé, 2010: 145). A hesitação quanto ao estatuto causal ou não, da ação do tempo sobre a língua, é um dos pontos que afetam a discussão sobre o tema na obra de Saussure. Problema que está presente em um trecho de Godel ([1957]1969), quando atribui ao tempo o papel de agente e, simultaneamente, o de condição necessária da mudança. A leitura de Godel tem ainda outro ponto de interesse, já que o autor lança a oposição entre o tempo na diacronia e o tempo na sincronia implicada pela consideração do caráter linear do discurso. [...] Saussure utiliza de duas maneiras muito diferentes a noção de tempo, segundo vise à perspectiva diacrônica ou à perspectiva sincrônica: no primeiro caso, o tempo é o agente, mais precisamente a condição necessária, da mudança; no segundo, é simplesmente o espaço do discurso. Poder-se-ia fazer a mesma observação a propósito da palavra sucessivo, oposta de um lado a coexistente, contemporâneo (por exemplo, quando se trata de formas sucessivas de uma palavra; cantare, chanter); e de outro lado a simultâneo (como a propósito
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dos elementos de um signo analisável: signi-fer). [...] Há de certo modo um tempo objetivo, cuja noção é fornecida pelos quadros sociais da memória, e a linha escalonada pelos marcadores naturais ou artificiais: estações, calendário, datas – e, para a língua, textos de épocas diferentes. E de outro lado, um tempo subjetivo, a duração, cujo sentimento acompanha toda a experiência individual. É nesse tempo subjetivo que se desenrola o discurso [...]. Praticamente, esse tempo não conta, ainda que o caráter linear do discurso só se explique por ele. Assim a distinção dos fatos diacrônicos e dos fatos sincrônicos não está em contradição com a experiência linguística dos indivíduos. Talvez tenha apenas faltado a Saussure dois termos diferentes para designar esses dois aspectos do tempo. (Godel, 1969: 207)
Saussure apresenta no CLG a tese do caráter linear do significante como segundo princípio do signo linguístico, estabelecendo sua relação com o tempo: “O significante sendo de natureza auditiva, desenvolve-se no tempo, unicamente, e tem as características que toma do tempo”. Note-se ainda que o tempo é também associado à formação de uma cadeia, termo saussuriano que diz da língua como articulação: “os significantes acústicos dispõem apenas da linha do tempo; seus elementos se apresentam um após outro; formam uma cadeia” (Saussure, [1916]2008: 84). A segunda proposição ocorre no capítulo das relações sintagmáticas e relações associativas: “[...] no discurso os termos estabelecem entre si, em virtude de seu encadeamento, relações baseadas no caráter linear da língua, que exclui a possibilidade de pronunciar dois elementos ao mesmo tempo. Estes se alinham um após o outro na cadeia da fala” (Saussure, [1916]2008: 84). Jean Claude Milner (1989: 385-6) trata da linearidade em um capítulo sobre a teoria das posições, e é no âmbito de uma reflexão sobre a geometria na teoria da linguagem que lê e critica a hipótese saussuriana da linearidade do significante ou do caráter linear da língua. Limito-me a apontar seus comentários a respeito do tempo nessa discussão. Seu ponto de partida são as duas proposições saussurianas citadas acima. Esses fragmentos se sustentam sobre dois fundamentos: “de uma parte a forma auditiva e de outra a noção de dimensão única”. Apenas a segunda justifica que se fale de linha. Para caracterizar essa dimensão, Saussure recorre à temporalidade: “o significante, sendo de natureza auditiva desenvolve-se no tempo unicamente [...]”. Para Milner essa proposição é falsa, se tomada ao pé da letra, já que os fenômenos auditivos supõem vibrações que se produzem no espaço. Uma saída seria tomá-la no sentido figurado, mas ainda assim não se esclarece o debate, pois todos
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os fenômenos empíricos se desenrolam no tempo. Fiel a uma leitura estruturalista do problema, Milner encontra nas palavras do próprio Saussure a possibilidade de tomar a linearidade no seu sentido mais forte, isto é, “a impossibilidade de pronunciar dois elementos ao mesmo tempo”. Eis “o verdadeiro fundamento da linearidade e não uma relação especial com o tempo” (Milner, 1989: 386); um deslocamento que substitui o argumento da temporalidade por aquele do caráter restritivo da linearidade. Esta é uma ínfima parte da extensa discussão empreendida por Milner a respeito do princípio da linearidade que vai atingir a questão “dos lugares e das posições” (Milner, 1989: 393). Mas a relação da linearidade com o tempo ronda o debate sobre Saussure na literatura. Esse é o caso, por exemplo, da discussão minuciosa empreendida por Arrivé ao criticar a hipótese de Godel apresentada na citação acima. É no capítulo quinto “O “T”empo na reflexão de Saussure” que o problema é formulado. Mais uma vez, o que está em pauta inicialmente são as duas principais passagens do CLG em que Saussure se refere à questão da linearidade: a primeira referindo-se ao significante como segundo princípio do signo, e a segunda ao domínio da língua na formação do sintagma, que está no capítulo sobre as relações sintagmáticas e associativas. São, pois, as mesmas proposições tematizadas por Milner. Cessam aí os pontos comuns entre os autores. A partir de uma crítica feita por Hjelmslev (1939, in Zinna, 1995, apud Arrivé 2010: 139) às oscilações de Saussure entre linearidade do significante e linearidade da língua (incluindo, portanto, o significado), Arrivé assume que a linearidade afeta tanto a fala quanto a língua: [...] o tempo do caráter linear incide tanto sobre a língua – sistema de signos – quanto sobre a fala. E também não é ilegítimo perguntar se, inversamente, o tempo da diacronia não incide tanto sobre a fala quanto sobre a língua. Finalmente, é a própria duplicidade do tempo saussuriano que é posta em causa. Não seria ela uma ilusão, reflexo enganador da dicotomia operada entre língua e fala? E essa mesma dicotomia tem o caráter absolutamente nítido que lhe é conferido em algumas passagens do CLG? Será que em realidade não há alguma porosidade entre os dois conceitos? (Arrivé, 2010: 140)
Duas hipóteses são então contempladas: a primeira retomaria a dicotomia proposta por Godel, isto é, de um lado o tempo subjetivo da fala marcado pelo “caráter linear do significante” e, de outro, o tempo objetivo que “diria respeito à
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linguagem” (Arrivé, 2010: 140). A segunda considera que é o mesmo tempo que está em causa no caráter linear – estendido ao significado e, portanto à língua – e na diacronia. Para mostrar que a solução que se impõe é a segunda, Arrivé encaminha um conjunto de proposições saussurianas para sustentar sua hipótese. Recorro àquela considerada a “mais espetacular”. [...] é de grande interesse saber como Messieurs! repetido várias vezes em sequência em um discurso é idêntico a si mesmo, assim como saber por que pas negação é idêntico a pas (substantivo) ou, o que dá no mesmo por que chaud é idêntico a calidum. (CLG apud Arrivé, 2010: 141)8
Arrivé não deixa de observar que tudo é muito explícito, já que “é o mesmo tempo que separa as ocorrências sucessivas da apóstrofe Messieurs! no discurso e os usos sucessivos na diacronia de calidum e chaud” (Arrivé, 2010: 141). As possíveis objeções a esse comentário foram contempladas no próprio CLG. De um lado, com respeito a Messieurs! tem-se o sentimento de que se trata, a cada ocorrência, da mesma expressão, mas há variações de “volume de sopro”, da entonação e apesar dessas “diferenças fônicas perceptíveis – tão perceptíveis quanto as que servem para distinguir palavras diferentes (cf. pomme e paume, goutte e je gôute, fuir e fouir etc.)” – a sensação de identidade persiste, ainda que “do ponto de vista estritamente semântico não há identidade entre um Messieurs! e outro” (CLG apud Arrivé, 2010: 141).9 Para Saussure, a relação entre calidum e chaud não é mais que um prolongamento e uma complicação do fenômeno configurado pela repetição de Messieurs!. A passagem para um fenômeno da diacronia não afeta substancialmente o fenômeno da identidade entre calidum e chaud. Importante argumento contra o ponto de vista de Godel sobre a duplicidade do tempo na teorização saussuriana. Ainda assim, o próprio Arrivé menciona uma passagem da edição crítica de Engler ([1968]1989: 413), em que a identidade dos dois é qualificada de “misteriosa”. “É misterioso o vínculo dessa identidade diacrônica, que faz com que duas palavras tenham mudado completamente (calidus: chaud; aiwa; je)10 e que, contudo, se possa afirmar sua identidade. Em que consiste isso?” (apud Arrivé, 2010: 141) Saussure é bastante cauteloso reconhecendo que a questão da identidade diacrônica é particularmente delicada. No caso do enigma acima, a resposta é que “calidum teve de converter-se regularmente em chaud, pela ação das leis fonéti-
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cas, e que, por conseguinte, chaud = calidum. É o que se chama uma identidade fonética” (CLG, [1916]2008: 212). Para concluir este capítulo é preciso antes procurar extrair algumas consequências dessa série de proposições, ainda que Arrivé reconheça que Saussure, como é do seu estilo, deixa a questão aberta. Atenho-me ao estatuto do tempo, à hipótese de Arrivé de que na concepção saussuriana “é o mesmo tempo que intervém no discurso do sujeito e na língua”. A única diferença está no papel atribuído à massa falante e sua intervenção na língua (Arrivé, 2010: 141). Se o tempo não é agente de mudança – hipótese também adotada por Arrivé, como se viu em páginas anteriores – e, no caso do discurso, são os diferentes “atos de linguagem” (Saussure, Escritos [2002]2004: 129), e não o tempo, que introduzem variações que não chegam a alterar a identidade da palavra, nesse sentido, se o tempo é o mesmo, ele o é pela sua presença pressuposta em toda e qualquer alteração; tanto aquelas pequenas variações do discurso – os diferentes atos se projetam no tempo – como também as alterações pelas leis fonéticas que fizeram com que calidum tenha se convertido “regularmente” a chaud no eixo da diacronia, mas mantendo sua identidade fonética. Não há propriamente um modo de intervenção do tempo. O tempo intervém, como visto acima, na medida em que por ele se revelam dois objetos distintos, criando dificuldades particulares para a Linguística. Falar sobre o tempo na teorização saussuriana nos põe naquela encruzilhada de que falam os seus alunos.
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De agora em diante CLG/E (1989) e CLG/TM (2005), respectivamente. A edição crítica de Engler tem uma organização peculiar. Ela é composta de colunas verticais contendo: na primeira o texto do Curso, nas quatro seguintes as notas dos alunos e na sexta, e última, notas do próprio Saussure. Há diferentes numerações. No caso desta notação o leitor abrindo na página 175 (mencionada no início do parágrafo) encontra em uma das colunas a numeração (C 326) (C, de Constantin). O organizador numerou ainda todo o texto do Curso em segmentos de 1 a 3281 e as colunas seguintes mencionam também essa numeração. Pode-se recorrer ora à numeração como a que foi usada aqui ou àquela dos segmentos. De uma ou de outra forma o leitor encontra facilmente o trecho citado. Tradução da autora, assim como nas próximas citações, cujo original estiver em francês. D, de Dégallier (ver nota 2). Tradução da autora para esta e todas as outras citações de textos em francês. A citação integra as “Notas biográficas e críticas” do CLG/TM. De Mauro diz que essa metodologia foi apenas esboçada por Saussure e só bem depois foi desenvolvida pelas escolas de Praga, a francesa, e glossemática, além de outros pesquisadores.
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Os comentários tecidos aqui sobre essa questão retomam em parte o que foi desenvolvido em artigo. Há aqui um pequeno problema: o tradutor não se serviu do CLG em português, traduziu do exemplar francês. Nada de importante que impeça que se mantenha o texto da tradução do livro de Arrivé. Por outro lado, mantive a numeração do CLG na edição brasileira, como fiz em todas citações. O leitor encontrará uma pequena divergência. Cf. nota 7. Advérbio temporal alemão je (Arrivé, 2010: 141).
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O projeto semiológico José Luiz Fiorin
O lugar que a Semiologia ocupa no pensamento de Ferdinand de Saussure é mais importante do que deixam entrever as citações sobre o tema no Curso de linguística geral. Para comprovar isso, basta contrastar as referências a esse domínio do conhecimento que nele aparecem (Saussure, 1969: 23-5, 82, 91-2, 104, 124, 140) com as menções a ele que ocorrem seja nos escritos de Saussure (cf., por exemplo, Saussure, 2002), seja em anotações dos que seguiram seus cursos (cf., especialmente, Saussure, 1997). Atualmente, uma tendência dominante nos estudos saussurianos é fazer uma radical crítica à redação do Curso, mostrando, a partir dos manuscritos de Saussure, a simplificação que suas ideias sofreram da parte dos redatores. No entanto, é preciso levar em conta que, por mais interessante que seja mostrar todas as sutilezas do pensamento do mestre genebrino, foi o Curso, da maneira como foi redigido e publicado em 1916, que teve o papel de discurso fundador da Linguística moderna. Foram as referências feitas no Curso à Semiologia que fizeram de Saussure o precursor dessa ciência. O primeiro gesto de Saussure, no Curso, foi definir o objeto teórico da Linguística. A linguagem é capacidade que os homens têm de comunicar-se com seus semelhantes por meio de signos (Saussure, 1969: 18). No entanto, esse é o objeto empírico da linguística. Não pode ser seu objeto teórico, porque, “tomada no seu todo, a linguagem é multiforme e heteróclita; a cavaleiro de diferentes domínios, ao mesmo tempo física, fisiológica e psíquica, ela pertence além disso ao domínio individual e ao domínio social; não se deixa classificar em nenhuma categoria de fatos humanos, pois não se sabe como inferir sua unidade” (Saussure, 1969: 17). O objeto teórico é diferente do objeto empírico. Aquele é estabelecido a partir de um objeto observacional, que é a “região” do objeto empírico que será objeto de estudo. Sendo ele delimitado, estabelecem-se entidades básicas, a partir
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das quais serão atribuídas propriedades aos fenômenos pertencentes ao campo de análise e serão determinadas relações entre eles. O objeto observacional convertese, então, em objeto teórico. O objeto observacional recortado por Saussure é a langue. É partir desse objeto que todos os outros conceitos desenvolvidos pelo mestre genebrino ganham sentido. A língua é um elemento homogêneo dentro da heterogeneidade dos fatos linguísticos: é a parte social da linguagem; é exterior ao indivíduo, que não pode criá-la nem modificá-la; existe por uma espécie de contrato estabelecido pelos membros de uma dada comunidade; exige do indivíduo aprendizagem específica; é distinta da fala, pois alguém, por alguma razão, privado da fala, não a perde (Saussure, 1969: 22-3). Com o conceito de língua, estabelece-se a primazia do sistema sobre a variabilidade infinita dos atos de linguagem, a precedência da virtualidade sobre a realização. Muitos pontos de vista são legítimos no estudo da linguagem. O objeto língua é fruto de uma decisão epistemológica, ou seja, é um objeto criado a partir de uma perspectiva: “é o ponto de vista que cria o objeto” (Saussure, 1969: 15). Com o conceito de valor, Saussure transforma esse objeto observacional em objeto teórico, mostrando que a língua é uma forma, e não uma substância (Saussure, 1969: 141). Assim, as entidades básicas que serão estudadas serão as relações, pois “na língua só há diferenças” (Saussure, 1969: 139), ou seja, “o mecanismo linguístico gira em torno de identidades e diferenças” (Saussure, 1969: 126). Segundo o mestre genebrino, “a língua não comporta ideias nem sons preexistentes ao sistema linguístico, mas somente diferenças conceptuais e diferenças fônicas resultantes desse sistema” (Saussure, 1969: 139). Isso quer dizer que a definição de qualquer entidade linguística é diferencial, é negativa, e não positiva. Cada elemento linguístico ganha seu valor na relação com outros: por exemplo, que é que significa a em romeno? Se estiver em oposição a un, -l, le, colocado no final de um nome, é artigo definido feminino singular (bătrîna, un bătrîn, bătrînul, bătrînele); se estiver em oposição a ∅, antes de uma forma curta do verbo, é marca de infinitivo (a iubi); se vier depois do radical verbal em oposição a ea, e, i, î, é morfema de primeira conjugação (cînta; cădea; bate, fugi, coborî); se se opuser a am, ai, aţi, au e seu lugar for antes de um particípio, é a terceira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo auxiliar a avea (am citit, a citit). Os elementos são definidos pela função no interior do sistema. Por isso, a língua é forma (conjunto de relações), e não substância (sons ou conceitos). A substância é puramente acidental. Por isso, o mesmo conjunto fônico (de acordo com o senso comum, a mesma palavra) são unidades diversas em duas
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línguas distintas, pois têm valores diversos: birra e fede significam “cerveja” e “fé”, respectivamente, em italiano e “teimosia” e “cheira mal” em português; fiel quer dizer “fel” em francês e “leal” em português. Depois de definir o objeto teórico da Linguística, Saussure vai mostrar que a língua é classificável entre os fatos humanos, enquanto a linguagem não o é (Saussure, 1969: 23). Isso porque a língua é uma instituição social, que se distingue de outras instituições sociais, como as políticas e as jurídicas (Saussure, 1969: 24). Para compreender sua peculiaridade, Saussure vai estabelecer uma nova ordem de fatos. Diz que a língua é “um sistema de signos que exprimem ideias” (Saussure, 1969: 24). Nesse sentido, ela é comparável à escrita, ao alfabeto dos surdos-mudos, aos ritos, às formas de polidez, aos sinais militares, etc. “Ela é apenas o principal desses sistemas.” (Saussure, 1969: 24) Se há uma série de sistemas de signos, que funcionam como a língua, será preciso criar uma ciência geral desses sistemas, que será denominada Semiologia. A Linguística fará parte dela, que, por sua vez, será parte da Psicologia Social, que, por seu turno, pertencerá à Psicologia Geral (Saussure, 1969: 24). O Curso diz textualmente: pode-se, então, conceber uma ciência que estude a vida dos signos no seio da vida social; ela constituiria uma parte da Psicologia Social e, por conseguinte, da Psicologia Geral; chamá-la-emos de Semiologia (do grego semeîon, “signo”). Ela nos ensinará em que consistem os signos, que leis os regem. Como tal ciência não existe ainda; não se pode dizer o que será; ela tem direito, porém, à existência; seu lugar está determinado de antemão. A Linguística não é senão uma parte dessa ciência geral; as leis que a Semiologia descobrir serão aplicáveis à Linguística e esta se achará dessarte vinculada a um domínio bem definido no conjunto dos fatos humanos. (Saussure, 1969: 24)
Para compreender a natureza da língua, é necessário verificar o que ela tem em comum com outros sistemas da mesma ordem, o que significa que certas características, como o funcionamento do aparelho vocal, que nos parecem muito importantes, na verdade, são secundárias (Saussure, 1969: 25). Nesse estudo dos sistemas de signos, é preciso levar em conta as postulações teóricas de Saussure a respeito do signo. Três aspectos são relevantes. O primeiro é que signo linguístico tem dupla face. Saussure diz que um signo não une uma coisa a uma palavra, mas um conceito a uma imagem acústica (Saussure, 1969: 80). Dessa forma, ele afasta-se de uma tradição que considerava (e até hoje considera) o signo a união de uma forma a um sentido, pois, como
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vai mostrar, as “formas” não independem de seu significado. Ademais, vai dar um novo sentido ao termo forma. Quando ele fala em imagem acústica não está referindo-se à materialidade física dos sons, mas às representações psíquicas desses sons que estão associadas a conceitos (Saussure, 1969: 80). O pensamento não pode ser dissociado do sistema de nossa língua (Saussure, 1969: 130-2). A língua não é uma nomenclatura, pois é uma forma de categorizar a experiência exterior e interior (Saussure, 1969: 136). Assim, os signos não são “coisas” que representam um referente preexistente numa relação de um para um. São eles que dão sentido à realidade fenomenológica. Não há pensamento fora dos sistemas de signos que utilizamos. O significante e o significado estão intimamente unidos como o verso e o anverso de uma folha de papel (Saussure, 1969: 131). Não se pode ter um significado sem o significante correspondente e vice-versa. Esse primeiro postulado significa que, num projeto semiológico, todo significado tem que estar ancorado na materialidade da linguagem. O segundo aspecto a ser levado em conta é a arbitrariedade do signo linguístico. Este é um postulado central da teoria saussuriana: o laço que une o significante ao significado é arbitrário. O conceito de “chuva” não está ligado, por nenhuma relação necessária, à sequência de sons /Suva/, que o veicula. Nada há no significado de chuva que lembre os sons que o manifestam. Esse significado poderia ser sensorialmente concretizado por qualquer outra sequência, como demonstram os termos “equivalentes” de outras línguas, como o inglês to rain, o francês pleuvoir, o italiano piovere, o espanhol llover e o romeno a plouă (Saussure, 1969: 81-2). O principal objetivo da Semiologia é o estudo do “conjunto dos sistemas baseados na arbitrariedade do signo” (Saussure, 1969: 82). Os meios de expressão usados numa sociedade fundam-se num hábito coletivo, numa convenção. Curvar o corpo em sinal de respeito tem evidentemente certa expressividade natural. No entanto, não é ela que importa, pois as regras convencionais do uso desse gesto (quando, onde, como e para quem o empregar) é que determinam seu valor, e não um liame “natural” entre o significado e o significante (Saussure, 1969: 82). A consequência da arbitrariedade é que não há correspondência absoluta entre os signos de línguas diferentes (Saussure, 1969: 82). Por exemplo, o termo inglês skin é traduzido por, pelo menos, três palavras em português: pele, casca e couro. Em inglês, o significado de skin contém os traços semânticos /cobertura/ e /exterioridade/. Assim, skin é a pele do ser humano, é o couro da vaca, é a casca da banana e é até a nata do leite. A relação complica-se, pois, pele, em português,
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tem os traços /cobertura de animal ou frutas e legumes/, /maciez/, /flexibilidade/, /sedosidade/. Assim, tira-se a pele do tomate, mas não a pele da pera. Por outro lado, chama-se pele em português tanto a camada externa que cobre o corpo de um animal, quanto o couro separado do corpo, especialmente de animais de pelo sedoso e abundante, usado como agasalho ou guarnição de vestuário, o que em inglês é fur. A diferença entre /removido/ vs. /não removido/ existe na oposição entre leather e skin, enquanto em português chamamos couro tanto “o tecido epitelial, espesso e resistente, de certos animais” quanto “esse tecido já curtido e utilizado como matéria-prima para diversos setores, como confecção de roupa, calçados, etc.” A arbitrariedade, alerta Saussure, não é a livre-escolha do signo pelo falante, pois o indivíduo não pode alterar nada no signo, já que ele é imposto pelo sistema da língua (Saussure, 1969: 83). Arbitrário significa imotivado (Saussure, 1969: 83). A língua é um fato social, porque o signo é arbitrário, o que quer dizer que seus valores residem no uso e consenso geral de uma comunidade (Saussure, 1969: 132). A arbitrariedade não é um conceito em que dois polos se contrapõem. É antes uma noção que apresenta certa continuidade, pois, como mostra Saussure, há signos radicalmente arbitrários e signos relativamente motivados (Saussure, 1969: 153). O prefixo in é arbitrário, o termo feliz também. No entanto, infeliz, infinito, indisposto, independente, ineficiente são relativamente motivados, pois todos eles indicam a negação de determinada qualidade. A relativa motivação introduz um princípio de regularidade e de ordem no sistema. Nela, um princípio de analogia restringe a arbitrariedade, o que significa estabelecer uma organização. É pela limitação da arbitrariedade que se diz interviu em lugar de interveio. A gramática é resultado dessa relativa motivação. As línguas oscilam entre um mínimo de organização e um mínimo de arbitrariedade. As que têm maior regularidade são chamadas gramaticais, como o grego, por exemplo, enquanto as que têm maior arbitrariedade são denominadas lexicológicas, como o inglês, por exemplo (Saussure, 1969: 152-5). Com seu conceito de arbitrariedade do signo, Saussure contrapôs-se a uma concepção corrente na história das ideias linguística de que nomina sunt consequentia rerum.1 Ao mostrar que não há relação entre o significante e o significado, ele desnaturalizou a linguagem, deixando claro que a ordem da língua é diferente da ordem do mundo, pois ela é uma instituição social. O princípio da arbitrariedade é muito importante no estabelecimento de uma semiologia, pois permite postular a unicidade do sentido independentemente de
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sua manifestação. Assim, o sentido pode ser estudado da mesma maneira em todas as linguagens. O terceiro aspecto importante é a noção de valor. Como se disse anteriormente, o senso comum imagina que a língua seja uma nomenclatura, em que cada item está relacionado com um significado. No entanto, quando comparamos uma língua com outra, percebemos que essa correspondência de um para um não existe. O que em inglês é denominado shell é expresso por, pelo menos, três palavras em português casca, concha e casco. Shell tem os traços semânticos /cobertura/ e /dura/. Assim, shell é a casca do ovo, a concha dos moluscos, o casco da tartaruga. A relação é mais complicada, porque podemos também falar em casca de moluscos, principalmente, quando descrevemos seu preparo como alimento. Em português, casca é um termo mais geral, pois tem os traços /cobertura/ e /mais ou menos rígida/. Serve para ostras, pão (em inglês a casca do pão é crust), ovo, ferida (em inglês, a casca da ferida é scab), etc. Casco e concha são mais especializados. O primeiro tem os semas /cobertura/, /óssea/, /para animais ou partes de animais/; o segundo apresenta os traços /cobertura/, /calcário/, /para invertebrados/. Os elementos linguísticos não são independentes dos demais. Ao contrário, cada um deles tem um valor dado por sua relação com os outros. Por exemplo, a só é marca da primeira conjugação, em português, em oposição a e e i e em relação com um radical verbal; é preposição, quando se opõe a em, de, etc. e está relacionada a dois termos lexicais que une (verbo e substantivo; substantivo e substantivo), como vou ao cinema; amor a Deus. Dessa forma, a identidade de um elemento confunde-se com o seu valor (Saussure, 1969: 128). Os termos são resultado de relações. A realidade da língua, suas entidades concretas, não são sons nem conceitos, mas valores (Saussure, 1969: 128). O valor de um signo provém da diferença com outros signos, o que significa que na língua não há elementos positivos, apenas negativos. “Na língua só há diferenças” (Saussure, 1969: 139), o que implica que a forma pressupõe pelo menos dois termos. No jogo de xadrez, que pode ser comparado a uma língua, é irrelevante a matéria de que as peças são feitas, seu formato, sua cor, bem como o fato de que elas representam a organização social de uma dada época e as mudanças que elas sofreram ao longo do tempo. O que é relevante é o valor de cada tipo de peça, determinado pela oposição a todas as outras no que concerne aos movimentos possíveis e à função dentro do jogo (Saussure, 1969: 128). Cada língua tem um sistema particular de valores, o que significa que a Linguística, apesar da Saussure considerá-la parte da Psicologia Social, aproxima-se da Antropologia, em seu estudo das singularidades de cada idioma.
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A concepção de valor indica que uma teoria semiológica deve fundamentar-se no estudo das diferenças que criam significados e significantes. Dessa forma, ela aproxima-se de uma descrição da cultura. Se o significado, como foi dito antes, apresenta uma unicidade, independentemente das formas de manifestação, os valores que geram os significantes variam de linguagem para linguagem: numa linguagem verbal, são diferenças fônicas, enquanto numa linguagem visual, são distinções cromáticas, eidéticas ou topológicas. No entanto, é preciso levar em conta a solidariedade entre expressão e conteúdo, o que significa que o significante só existe porque tem significação. A forma, mesmo da expressão, só é uma invariante diferencial porque produz diferenças de significado (por exemplo, o inglês distingue um r retroflexo de um r aspirado em início de sílaba: rope significa “corda”; hope quer dizer “esperança”). A “materialidade” da linguagem só ganha esse estatuto porque tem significação. Por outro lado, o elemento inteligível da linguagem só tem existência, porque é veiculado por um componente sensível. As bandeiras que são utilizadas, no sistema de sinais marítimos, não passam de uma série de pedaços de tecido de várias formas e cores enquanto não constituírem um sistema, fundado numa convenção, em que cada pedaço de tecido de determinada cor e forma adquire valor em oposição a outros. Saussure termina o Curso com uma frase, que, para ele, encerra a ideia fundamental de seus ensinamentos: “A Linguística tem por único e verdadeiro objeto a língua considerada em si mesma e por si mesma” (Saussure, 1969: 271). Essa frase valeu a Saussure toda sorte de acusações, desde a de que esvaziou a linguagem de sua dimensão histórica até – um tanto mais espantosa – a de que erigiu um projeto de ciência burguês como uma barragem contra o marxismo (Sartre In: Coelho, 1967: 126). No entanto, ao definir a Semiologia como um projeto futuro de ciência, diz que ela será “uma ciência que estude a vida dos signos no seio da vida social” (Saussure, 1969: 24). Isso significa que, para Saussure, haveria duas dimensões no estudo da Semiologia: a do sistema e a do processo. A vida dos signos pressuporia o sistema responsável pelo sentido e sua circulação na sociedade (nesse caso, tratar-se-ia da realização linguística inserida na comunicação social). Hjelmslev, em continuação a Saussure, em determinado ponto de seus Prolegômenos a uma teoria da linguagem, vai mostrar que o objeto de uma teoria da linguagem não é somente uma língua natural, mas as diferentes semióticas, ou seja, aquelas estruturas análogas à das línguas naturais (Hjelmslev, 1975: 109-10). A distinção entre uma semiótica e uma não semiótica reside no fato de que uma semiótica deve operar com dois planos, isto é, um plano de conteúdo e um plano da expressão. Um conjunto significante opera com dois planos, quando
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eles não têm a mesma estrutura com uma relação unívoca entre os funtivos de um plano e os de outro plano. Hjelmslev vai dizer que, nas semióticas, os dois planos não devem ser conformes um ao outro. Dois funtivos são conformes se não importa qual derivado particular de um dos funtivos contrai exclusivamente as mesmas funções que um derivado particular do outro funtivo e vice-versa. A partir daí, institui-se a seguinte regra: dois componentes de uma mesma classe que se está tentando estabelecer devem ser reduzidos a um só se forem conformes e não comutáveis. A prova do derivado e a prova do comutável decidem se um conjunto significante é ou não uma semiótica. Uma língua é uma semiótica, porque os funtivos do plano da expressão não têm uma relação unívoca com o plano do conteúdo: por exemplo, os elementos da expressão /oclusivo/ e /constritivo/ não têm qualquer relação necessária e, portanto, unívoca com nenhum elemento do plano do conteúdo. É isso que permite que eles façam parte de diferentes unidades da expressão. O traço /oclusivo/ entra em /p/, /b/, etc. Por outro lado, como não há relação unívoca entre um elemento da expressão e do conteúdo, eles podem ser comutados: por exemplo, bala e sala. Portanto, esses elementos da expressão e do conteúdo não podem ser reduzidos, na prova do derivado, a um único. Na língua, os elementos de expressão e de conteúdo permitem uma análise em figuras de um e outro plano, que não têm correspondência unívoca. A língua é, pois, um sistema em que os dois planos não são conformes. Já num jogo como o de xadrez, o elemento de expressão rei tem uma relação necessária e, portanto, unívoca, com o conteúdo que se poderia traduzir como o papel da peça no jogo. Portanto, na prova do derivado, o elemento da expressão e o elemento do conteúdo podem ser reduzidos a elementos de uma mesma classe. Isso significa que não se pode fazer a comutação, dado que a um mesmo conteúdo corresponde sempre uma mesma expressão. Isso significa que, no jogo de xadrez, o plano de conteúdo e o plano da expressão são conformes. Portanto, ele não é uma semiótica, uma vez que não opera com dois planos (Hjelmslev, 1975: 117-8). Hjelmslev vai chamar sistemas de símbolos essas estruturas que são interpretáveis, porque se pode atribuir a elas um sentido, uma substância de conteúdo, mas são monoplanares, dado que não é possível atribuir a elas uma forma de conteúdo, já que expressão e conteúdo são reduzidos a uma só classe. Sistemas semióticos são estruturas biplanares, pois operam com dois planos, uma vez que expressão e conteúdo não são conformes. Os símbolos não admitem uma análise em figuras suscetíveis de compor outros símbolos. Essa análise ulterior em figuras é a característica central dos signos (Hjelmslev, 1975: 118-9). Foice e martelo são o símbolo do comunismo. Pode-se até dizer que a foice representa o campesina-
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to e o martelo, o proletariado. No entanto, a foice só entra com esse sentido na composição desse símbolo e de nenhum outro. O traço do conteúdo /selvagem/ que aparece em lobo entra na composição do conteúdo de onça, tigre, leão, etc. No entanto, pelo que se disse até agora, parece que o objeto da teoria da linguagem são as semióticas denotativas, que são semióticas em que nenhum dos planos é uma semiótica, ou seja, semióticas que operam com um plano de expressão e um plano do conteúdo. No entanto, há semióticas cujo plano de expressão é uma semiótica e semióticas cujo plano de conteúdo é uma semiótica. As primeiras são chamadas semióticas conotativas e as segundas, metassemióticas (Hjelmslev, 1975: 121). Uma semiótica conotativa: é “uma semiótica que não é uma língua e cujo plano de expressão é constituído pelos planos de conteúdo e de expressão de uma semiótica denotativa” (Hjelmslev, 1975: 125). Ademais, Hjelmslev vai distinguir as semióticas em duas classes: as científicas e as não científicas. As primeiras são uma operação, ou seja, uma descrição segundo os princípios do empirismo; as segundas não são uma operação, ou seja, são sistemas que operam com dois planos não conformes. A semiótica conotativa é uma semiótica não científica, em que um (ou vários) plano é uma semiótica. A metassemiótica é uma semiótica científica em que um (ou vários) plano é uma semiótica. É possível prever uma semiótica científica que trata de uma metassemiótica. Nesse caso, teremos uma metassemiótica científica, cuja semiótica-objeto é uma metassemiótica. Para seguir a terminologia de Saussure, Hjelmslev vai chamar semiologia uma metassemiótica cuja semiótica-objeto é uma semiótica não científica e metassemiologia, uma metassemiótica científica cujas semióticasobjeto são semiologias (Hjelmslev, 1975: 126). A metassemiologia das semióticas denotativas, graças à mudança de ponto de vista que implica a passagem de uma semiótica-objeto para uma metassemiótica, vai, na prática, descrever a substância da expressão e do conteúdo. A metassemiótica das semióticas conotativas vai analisar, formalmente, os elementos da Linguística sociológica ou do que Saussure chamou Linguística externa (Hjelmslev, 1975: 129-30). Na França, nos anos 1960 e 1970, houve uma explosão de textos que procuravam fazer uma descrição de domínios da cultura, considerados como um sistema de signos. Escrevia-se sobre a arquitetura, os quadrinhos, o cinema, a publicidade, a moda, etc. Só a título de exemplo, podem-se citar Metz com seus estudos sobre o cinema (1968) e Passeron com suas análises da pintura (1969). No domínio francófono, há dois projetos distintos, baseados nos princípios saussurianos e hjelmslevianos, de construção de uma Semiologia, que Mounin
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vai, com base em Buyssens (1967) e Prieto (1968), denominar Semiologia da comunicação e Semiologia da significação (Mounin, 1970: 11-5). No primeiro projeto, a Semiologia é a “ciência geral de todos os sistemas de comunicação” (Mounin, 1970: 7). Ela deveria ocupar-se dos sistemas de signos expressamente construídos para comunicar, o que significa que ela só analisa o que tem uma clara intenção comunicativa. Por isso, estuda somente a comunicação que se funda em códigos bem identificados, que demandam uma explícita aprendizagem. Por essa razão, o que ela produziu foi um conjunto de estudos sobre sistemas de signos de caráter restrito, denotativo e referencial. Assim, por exemplo, foram analisados os códigos dos sinais de trânsito (Mounin, 1970: 155-68), da heráldica (Mounin, 1970: 103-15), dos sistemas de escrita (Mounin, 1970: 137-43), dos símbolos matemáticos (Mounin, 1970: 144-8), dos símbolos químicos (Mounin, 1970: 149-54). Nessa primeira tendência de construção de uma Semiologia, o conceito de comunicação confunde-se com o de transmissão de informação. Ora, diz Greimas, “a teoria da comunicação deve ser posta sob a égide da significação e não da informação” (Greimas, 1976: 59). Considerá-la apenas informação é reduzi-la, deixando de lado os fenômenos mais interessantes. Ademais, como diz Greimas, se o conceito de valor é que determina a estruturação do sistema, “a língua não é um sistema de signos, mas uma reunião – cuja economia deve ser precisada – de estruturas de significação” (Greimas, 1973: 30). O segundo projeto é o de uma Semiologia da significação. Ele caracterizase por duas ultrapassagens: a) a da Semântica, na medida em que não se ocupa apenas de significações lexicais ou de frases, mas se ocupa dos fenômenos de significação da totalidade discursiva, o que implica tratar do processo e não só do sistema; b) a das línguas naturais, na medida em que vê a significação como um objeto comum às diferentes linguagens. No entanto, esse projeto de uma Semiologia da significação cindiu-se ao longo do tempo: ficou com o nome de Semiologia a tendência encarnada por Barthes; chamou-se Semiótica a corrente personificada em Greimas. A Semiologia barthesiana é uma Semiologia da conotação, pois o que ele faz, a partir das Mythologies (1957), é ler as conotações sociais difundidas principalmente pelos meios de comunicação de massa. Em Elementos de semiologia (1975), ele mostra que o estudo da conotação tem importância fundamental na descrição da cultura, pois ele é uma teoria das ideologias, já que “a ideologia seria, em suma, a forma (no sentido hjelmsleviano) dos significados de conotação, enquanto a retórica seria a forma dos conotadores” (Barthes, 1975: 97).
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O que levou à cisão entre a Semiologia e a Semiótica foi a posição que cada uma dessas teorias adotou em relação ao lugar da Linguística na Semiologia. Greimas manteve-se fiel a Saussure: para ele, a Linguística é parte da Semiologia. Barthes, no entanto, adota outra posição: “a Linguística não é uma parte, mesmo privilegiada, da ciência geral dos signos: a Semiologia é que é uma parte da Linguística, mais precisamente, a parte que se encarregaria das grandes unidades significantes do discurso” (Barthes, 1975: 13). Quando estuda a moda, ele o faz pela mediação da “moda escrita” (Barthes, 1979: XIX-XXII). Essa posição tem uma importância teórica crucial, pois a Semiologia se vale de conceitos da Linguística, como o que fez Barthes em seus Elementos de semiologia, e não desenvolve um aparato teórico e metodológico para estudar as “grandes unidades significantes do discurso” nem para estudar os diferentes planos de expressão que veiculam os sentidos. Poder-se-ia dizer que Barthes sempre fez análises muito finas, como, por exemplo, as da fotografia (Barthes, 1980). No entanto, é preciso esclarecer que essa finura na análise deve-se mais à genialidade do analista do que a um conjunto de conceitos rigorosos para a análise. A Semiótica também opera uma mudança em relação à posição saussuriana: seu objeto é, como dizia, Coquet, “explicitar as estruturas significantes que modelam o discurso social e o discurso individual” (Coquet, 1984: 21). Não se trata mais dos signos, mas da significação, ou seja, das relações diferenciais subjacentes que produzem o discurso. Vai estudar as estruturas, que são sempre relacionais, semânticas e sintáxicas hierárquicas que produzem os sentidos dos universos discursivos. Greimas mostra que o discurso é tanto da ordem do sistema quanto da do acontecimento e, “como tal, submetido à história” (Greimas, 1973: 52-3). O sistema é constituído de invariantes, ou seja, generalizações semânticas feitas por uma dada cultura, tidas por universais. Essas generalizações são concretizadas variavelmente no processo discursivo, que é da ordem do acontecimento. É a enunciação que convoca ou subverte as estruturas do sistema (Greimas e Fontanille, 1993: 69-70). É preciso que fique claro que variante e invariante não são conceitos absolutos, mas relacionais. Assim, vida vs. morte são “universais” responsáveis por distintos discursos em nossa sociedade. Em Morte e vida Severina, de João Cabral, a vida, no quadro de um raciocínio concessivo, é o termo eufórico: – Severino retirante,/ deixe agora que lhe diga:/ eu não sei bem a resposta/ da pergunta que fazia,/ se não vale mais saltar/ fora da ponte e da vida;/ nem conheço essa resposta,/ se quer mesmo que lhe diga/ é difícil defender,/ só com palavras, a vida,/ ainda mais quando ela é/ esta que vê, severina;/ mas se responder não pude/ à pergunta que
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fazia,/ ela, a vida, a respondeu/ com sua presença viva./ E não há melhor resposta/ que o espetáculo da vida:/ vê-la desfiar seu fio,/ que também se chama vida,/ ver a fábrica que ela mesma,/ teimosamente, se fabrica,/ vê-la brotar como há pouco/ em nova vida explodida;/ mesmo quando é assim pequena/ a explosão, como a ocorrida;/ mesmo quando é uma explosão/ como a de há pouco, franzina;/ mesmo quando é a explosão/ de uma vida severina (Melo Neto, 1994: 201-2). Na teologia católica da salvação, a morte concretiza-se, num raciocínio implicativo, como um termo não disfórico, pois ela é a passagem para a verdadeira vida. É o que diz um trecho do prefácio I dos defuntos, do Missal Romano: Senhor, para os que creem em vós, a vida não é tirada, mas transformada. E, desfeito o nosso corpo mortal, nos é dado nos céus, um corpo imperecível. Vieira, também com uma argumentação implicativa, considera, na sétima parte do Sermão da Quarta-feira de Cinzas, para ser pregado na Capela Real, que a morte é eufórica: E como por meio desta perpétua paz cessa a guerra da carne contra o espírito, e cessam as vitórias do pecado e perigos da graça, esta natural impecabilidade da morte é a mais cabal razão de ser a morte o maior bem da vida, porque, sendo o maior mal da vida o pecado, e estando a mesma vida sempre sujeita e arriscada a pecar, só a morte a livra e segura deste maior de todos os males.
Bremond, ao mostrar como se dá o trabalho científico, diz que “Darwin só se torna possível depois de Lineu” (Bremond, 1964: 5). Da mesma forma, Barthes e Greimas só puderam realizar a grande aventura semiológica do século passado depois do Curso de Saussure.
Nota 1
Essa frase é citada por Dante no 4º parágrafo do capítulo XIII do Vita nuova, para mostrar que o nome corresponde à “coisa”: O outro era este: o nome de Amor é tão doce de ouvir que me parece impossível que a sua ação não seja também doce, se é fato que os nomes resultam das coisas nomeadas, como está escrito: “Nomina sunt consequentia rerum” (Os nomes são resultados das coisas). Essa expressão tem origem num passo das Instituições do Imperador Justiniano: consequentia nomina rebus studentes (Os nomes são congruentes com as coisas a que se aplicam) (II, 7, 3 In: Tosi, 1996: 42).
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Efeitos do pensamento de Saussure na teorização sobre erros e sintomas na fala Maria Francisca Lier-DeVitto
Meu interesse por ocorrências linguageiras consideradas patológicas está intimamente ligado à atividade docente que exerci, entre 1985 e 1995, na disciplina Aquisição da Linguagem, do Curso de Fonoaudiologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Instigada por alunos e colegas, eu procurava caminhos teóricos para responder às perguntas sobre falantes com falas estilhaçadas (ou ausentes), que eram dirigidas a mim, uma linguista interacionista.1 Em 1991, fui convidada pelo Prof. Dr. Mauro Spinelli, então diretor geral da Divisão de Educação e Reabilitação dos Distúrbios da Comunicação (Derdic), para fomentar pesquisas naquela unidade da PUC-SP. Na Derdic, ocorreu meu encontro direto (e decisivo) com crianças e adultos cujas falas eram cunhadas como “patológicas” e eles como “pacientes”. Entendo terem sido essas duas experiências acadêmicas as fontes da trajetória da pesquisa à qual tenho dedicado boa parte de meu tempo e reflexão desde 1991.2 Em 1997, propus um Projeto Integrado Interacionismo em Aquisição da Linguagem e Patologias da Linguagem (CNPq 522002/97-8), que se transformou, em 2000, no Grupo de Pesquisa CNPq Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem. Nestes mais de 15 anos, uma bibliografia expressiva, consistente, foi produzida e uma Clínica de Linguagem, com perfil singular, foi instituída e tem sido reconhecida pela comunidade científica por seu rigor teórico e seus efeitos clínicos. Esta linha de pesquisa e de clínica pode impulsionar uma vertente de reflexão e de investigação que promoveu, também, deslocamentos em minha posição de estudiosa e pesquisadora da Aquisição da Linguagem. De fato, fui levada (ao lado dos pesquisadores do GP) a problematizar acontecimentos linguísticos que são marginais no âmbito da Linguística (Lier-DeVitto, 1999; 2006) e a enfrentar necessidades teóricas e clínicas como a de oferecer definições para sintoma (que
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difere de erro), de circunscrever a especificidade do diálogo clínico, de abordar a questão da mudança por efeito de um ato clínico, de especificar a natureza da interpretação; além de avançar discussões sobre quadros clínicos de linguagem e sobre fundamentos. A possibilidade de ter sido afetada por questões levantadas por alunos e colegas e pelo encontro efetivo com falantes e falas sintomáticas deve ser relacionada à escuta particular para a fala, que se instituiu por efeito da teorização inaugurada por De Lemos, no final dos anos de 1970, e que orientou (e orienta) o Projeto Aquisição da Linguagem da Unicamp. Essencial, para a finalidade deste capítulo, é dizer que Saussure e Jakobson são implicados nessa abordagem e nessa teorização, a partir de 1992, para “descrever e explicar as mudanças” que acontecem na aquisição da linguagem. O raciocínio teórico que fundamenta e norteia as pesquisas sobre falas sintomáticas, em sua particularidade, encontraram ali seu ponto de partida – partida, também, para refletir sobre condições e fundamentos exigidos para uma Clínica de Linguagem.
O objeto integral da Linguística: funcionamento “perene e universal” A Linguística científica tem raízes no estabelecimento da bifurcação entre língua (de natureza intelectual, teórica) e fala (de natureza sensível, empírica) e na consequente afirmação de Saussure de que a língua é o objeto da Linguística – trata-se da “língua-Linguística”, como assinalou Hjelmslev (1948). Subjaz a esta tese positiva, a tese negativa de que “a linguagem não é objeto da Linguística” (Milner, 2000: 23). Frente a uma espécie de quebra-cabeças conceitual, estabelecido pela complexa relação, postulada por Saussure, entre os termos linguagem, a língua, língua(s), fala e discurso – é preciso cautela e rigor para que se possa recolher riquezas na obra saussuriana e delas retirar consequências efetivas.3 O primeiro passo nesta direção corresponde, a meu ver, ao reconhecimento da dificuldade que a obra de Saussure coloca e de complexidades que a novidade introduzida envolve.4 Sem esse cuidado, não poderá haver suspensão da vulgata a que ficou confinado o pensamento de Saussure: o sentido profundo da revolução, que ele pode promover, corre o risco de permanecer encoberto no campo dos estudos linguísticos.5 Falar em “revolução” é admitir, com Pêcheux, que Saussure representa “um corte” em relação a todo pensamento linguístico que o precedeu, dado que ele instala um novo saber –6 Saussure é UM e não “mais um”.7
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O retorno a Saussure (Milner, 2000; 2002) só poderá ser efetivo sob a condição de que a (re)leitura que dele se realize seja fina o suficiente para descortinar, na literalidade do texto e nas entrelinhas: “[...] um Saussure muito mais revolucionário do que simples inovador de conceitos novos para a ciência. Quando assim o descortinamos, acordamos de nosso sonho infantil [...]” (Rodrigues, 1975: 18), imposto por uma leitura filológica ou gramatical que, no campo da Linguística,8 deixou em seu rastro o peso ou a pecha de uma “origem repudiada” (Rodrigues, 1975: 17).9 Rodrigues refere-se, aqui, à valorização excessiva e obliterante da “descoberta interessante” de dualidades (língua-fala, diacronia-sincronia, etc.). De fato, as tão louvadas dicotomias são, a rigor, bem pouco representativas da verdadeira “novidade saussuriana”. Elas foram, no Curso de linguística geral (CLG), apresentadas como argumentos críticos ao “método incorreto” assumido pelos linguistas e para, assim, abrir caminho para a introdução do “verdadeiro objeto da Linguística” que é, em oposição às dicotomias, um objeto integral (não dicotômico) e concreto (não abstrato). No Curso de linguística geral lê-se que: [...] qualquer que seja o lado [das dicotomias] por que se aborda a questão, em nenhuma parte se nos oferece integral o objeto da Linguística [...]. Há, segundo nos parece, uma solução para todas essas dificuldades: é necessário colocar-se no terreno da língua e tomá-la como norma de todas as outras manifestações da linguagem. De fato, entre tantas dualidades, somente a língua parece suscetível duma definição autônoma e fornece um ponto de apoio satisfatório para o espírito. (Saussure, 1969: 16-7 – ênfases nossas)
Resumindo, a língua é a solução saussuriana para as dificuldades colocadas pela abordagem da linguagem que a fragmenta em objetos plurais (fonético, fonológico, morfológico, sintático e assim por diante). Ao contrário, diz ele, “a língua é um todo em si mesma e um princípio de classificação” (Saussure, 1969: 16-7) ou, em outros termos, “é a língua que faz a unidade da linguagem” (Saussure, 1969: 18); ela é, portanto, passível de ser “o objeto” de uma área de saber, que, de um ponto de vista lógico, não poderia ser, de forma alguma, parcial e diversificado. Pelo contrário, esse objeto deverá ser teórico e abrangente de toda a diversidade empírica, da surpreendente “assistematicidade” das manifestações da linguagem.10 Interessa que, da diversidade e assistematicidade, participam as ocorrências ditas patológicas e que elas, quando muito, ocupam lugar marginal nos estudos linguísticos (Lier-DeVitto, 2006; 2011). Falas sintomáticas fazem, inegavelmente, parte do tecido heteróclito das manifestações linguísticas, composto “não só [pel]a linguagem correta e a bela linguagem” (Saussure, 1969: 13).
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Esta breve citação é decisiva para a finalidade a que se propõe este texto – ela poderia ser tomada como uma primeira justificativa da importância de Saussure para a reflexão sobre falas estranhas, erráticas, patológicas. Embora Saussure convide ao detalhe, a meta, aqui, não é oferecer uma decifração minuciosa da problemática envolvida nos termos linguagem, a língua, língua(s), fala e discurso. Procuro indicar a relevância de um “funcionamento universal” para a abordagem de falas sintomáticas e delinear um modo de aproximação ao seu pensamento que tem podido recolher riquezas ao sustentar com vigor um retorno a Saussure.11 Reitero que a fundamental importância do nó conceitual (anteriormente mencionado) está no fato dele ser essencial para a apreensão de consequências teóricas, metodológicas e clínicas que puderam ser retiradas, da releitura de Saussure, para o Interacionismo e para a teorização sobre as patologias e a clínica de linguagem.12 Saussure é fundo teórico porque la langue abre portas para a consideração de erros, como veremos, e direções teóricas para a elaboração de uma discursividade consistente para o alçamento de falas sintomáticas à posição de proposição problemática, tanto do ponto de vista teórico quanto clínico. Lições foram retiradas do Interacionismo, sendo uma delas imperativa: aquela que obriga à assunção de compromisso com a especificidade do material que se tem em foco. Deste imperativo decorre que, como interacionista, eu só poderia manter o Interacionismo (fonte do Projeto Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem) em posição de alteridade – longe da possibilidade de mera aplicação: noções cruciais,13 daquele espaço disciplinar, foram operadores de leitura para pensar diferenças (Lier-DeVitto, 2005). Desse ponto de partida, disparador de uma reflexão, questões outras, pressionadas por desdobramentos teóricos, empíricos e clínicos, puderam ser levantadas e têm sido discutidas – a mais essencial diz respeito à diferença entre erros esperados e aceitáveis em falas de crianças, e sintomas indesejáveis em falas de crianças ou de adultos. Migramos, assim, para discussões imprevistas e, de certo modo, irrelevantes para o Interacionismo – refiro-me a debates internos ao domínio da patologia e de campos clínicos.14 Há, contudo, laços inabaláveis entre o Interacionismo e a Clínica de Linguagem, aqueles que remetem à centralidade da teorização sobre a linguagem e sobre o sujeito falante. Voltemos, portanto, a Saussure.
Linguagem: língua e fala Para Saussure, o estudo da linguagem comporta duas direções: uma essencial “cuja realidade é independente da maneira como é executada” e outra secundária,
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“dependente da execução [...] dos que falam”. A Linguística “propriamente dita” – a essencial – tem como meta “conhecer [esse] organismo linguístico interno” (Saussure, 1969: 29). Fica estabelecido, desse modo, que interno à Linguística é o que resta da exclusão de “tudo o que seja estranho ao organismo linguístico” – tudo, portanto, que possa estar relacionado a la parole (domínio da execução, do sensível) – da linguagem em uso. A Linguística interna, de la langue, recebe o título de ciência da linguagem – aquela que se atém “à gramática do jogo” [...] às “forças em jogo, de modo perene e universal” (Saussure, 1969: 13). De fato: “a língua é um sistema que conhece somente sua ordem própria” (Saussure, 1969: 30). A Linguística externa, de la parole, estaria voltada para esfera do uso e dos fatores (externos) que possam afetá-lo. Poderíamos incluir aí, não só a Pragmática Linguística, mas todos os estudos sobre a enunciação e sobre o discurso. Vemos, assim, que fala ganha extensão para além de “uso individual da linguagem” – extensão para além do aspecto que foi tão decantado e criticado em Saussure. Fala refere-se, aqui, a toda esfera das manifestações linguísticas que competem, por definição, à Linguística da fala. Importa assinalar, porém, que a atribuição de um estatuto científico à fala estaria, para Saussure, condicionada à sua articulação com a língua15 enquanto “leis gerais às quais se possam referir todos os fenômenos peculiares da história” (Saussure, 1969: 13), i.e., da mudança e da perturbadora assistematicidade de la parole. Convém lembrar que “pode-se comparar a língua a uma sinfonia, cuja realidade independe da maneira como é executada, os erros que podem cometer os músicos que a executam não comprometem em nada tal realidade” (Saussure, 1969: 26). Disso pode-se retirar que la langue está, necessariamente em operação em la parole, mas a primeira não se confunde com a segunda: erros (ocasionais ou não) decorreriam de afetações externas que interferem na “execução”, mas não no organismo da língua. A exigência de articulação da língua na fala não foi contemplada pelos estudos sobre a linguagem em uso e nem o uso tornou-se essencial para a Linguística da língua. A Linguística bifurca-se, assim, em dois braços distintos, sugeridos por Saussure e, parece, foram tacitamente aceitos pelos pesquisadores que o sucederam. De um lado, há aqueles que, como (ou com) Saussure ou Chomsky, voltaram-se para a língua e outros, aliás, a grande maioria, para questões deixadas à margem pela ciência da linguagem. Neste rol estão, por exemplo, disciplinas interessadas na enunciação, no discurso, na significação, na mudança, na aquisição – enfim, aquelas que, em termos saussurianos, ligam-se pelas questões suscitadas por manifestações linguísticas (pela “fala”) e pelo falante. Na proliferação de estudos e pesquisas sobre o uso, retorna a interdisciplinaridade
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banida dos estudos sobre a língua – são invocadas áreas como a Psicologia, a Sociologia e a Filosofia. Essa direção desconsidera as considerações sobre a ordem própria da língua e se distancia, portanto, do projeto saussuriano, já que uma tarefa da Linguística, diz Saussure, é bastar-se: “delimitar-se e definir-se a si própria” (Saussure, 1969: 13). Ainda que falas (de crianças e/ou sintomáticas) estejam em posição de destaque, o Interacionismo e a Clínica de Linguagem tomaram direção diversa da assumida pelos estudos sobre a “linguagem em uso” – foram saussurianos nesta escolha. Os Grupos de Pesquisa sobre Aquisição de Linguagem do IEL-Unicamp e sobre Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem, do Lael-PUC-SP sustentam o diálogo teórico com a Linguística da língua. Dito de outro modo, reconhecem que, no particular de uma fala, “há língua”, i.e., um funcionamento linguístico fundante da possibilidade de haver fala e falante. Sustenta-se o argumento de que a inexistência de diálogo teórico entre a Linguística da língua e a abordagem da Fala não é sem consequências (Lier-DeVitto, 1994, 1999). Admite-se que, nos estudos sobre a língua, a fala perde sua espessura enquanto ocorrência (como fala de um falante no tempo e no espaço) e adquire o de exemplaridade (lugar de refutabilidade de regras) – apagam-se o falante e o particular de sua fala (De Lemos, 2003; Lier-DeVitto, 2002); o que, diga-se, é inconcebível quando falas sintomáticas estão em foco. Elas não são nem exemplos, nem contraexemplos de uma hipótese sobre propriedades da língua – são um terceiro que não se ajusta a essa polaridade (Lier-DeVitto e Arantes, 1998). Já, nos estudos sobre a fala, procura-se introduzir o falante. A relação entre fala e falante se realiza, via de regra, pelo viés da assunção de que a fala é expressão da intenção do falante num contexto específico – aqui, ganha espaço a interdisciplinaridade e perde-se de vista a língua. Em seu lugar são arregimentadas gramáticas de línguas particulares com vistas a descrever corpora, mas, paradoxalmente, sua espessura é também higienizada porque uma gramática é obrigatoriamente resultado de um processo de regularização, ou seja, de apagamento do particular e irregular que acontecem na fala (Milner, 1987). “Irregular” que, por sinal, escapa à intenção do falante, mas que é, ainda assim, “produção daquele falante”. Com efeito, heterogeneidade e assistematicidade são características da fala e fazem duvidar do sucesso da intencionalidade suposta ao sujeito falante. Embora no CLG leia-se que da fala “o indivíduo é senhor” (Saussure, 1969: 21), é necessário não deixar de considerar que la parole é ali um ponto tensionado e que (ou talvez porque) não foi teorizado. Bom não esquecer, também, que la langue elimina
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qualquer possibilidade de manter, na teoria, o sujeito epistêmico (De Lemos, 2002). Aliás, foi mesmo a insuficiência de teorização sobre a fala que motivou muitas outras discussões, em especial aquelas sobre enunciação e discurso, num vetor que, contudo, mantém a bifurcação da Linguística. Implicar a língua em enunciados erráticos e sintomáticos exige a problematização do sujeito falante, para tanto, deve-se manter em posição a alteridade radical do funcionamento universal da língua (em operação na fala) em relação ao falante. Pode-se trabalhar, então, o fato dele ser surpreendido pelo erro e por tropeços em seus próprios enunciados. Contudo, sob efeito do reconhecimento de seus próprios enunciados sintomáticos, o sujeito falante nada pode fazer, quer dizer, não há recurso cognitivo que o auxilie para alterar sua fala. De fato, dar lugar à ordem própria da língua demanda, por motivo lógico e de coerência, recusar a noção de sujeito epistêmico. Perante falas sintomáticas e à perplexidade dos falantes que as produzem, suspeita-se da centralidade da percepção e da cognição como esferas de controle da relação do sujeito com a linguagem (Andrade, 2003; Fonseca, 1995, 2002). Nesse sentido, tal reconsideração estaria em harmonia com a Linguística interna, que expulsa o sujeito epistêmico/psicológico do coração da língua. Mas deve-se admitir que se este gesto de exclusão não trouxe constrangimentos teóricos à Linguística científica, ele é impraticável para uma Linguística que busque erigir la parole como objeto teórico (não meramente empírico). Sustentar teoricamente a articulação língua-fala contém a exigência de teorizar sobre a fala e sobre o sujeito, levando em conta as restrições que a língua impõe a essa reflexão (Lier-DeVitto e Fonseca, 2001).
A ordem própria da língua: uma escuta para a resistência de falas estranhas A Aquisição da Linguagem e a Clínica de Linguagem são campos em que a questão da fala tem caráter essencial. A noção de língua como sistema de relações foi implicada na teorização. Aceitemos, então, que se nomeie a língua a este núcleo que, em cada uma das línguas, suporta sua unicidade e sua distinção, ela não poderá representar-se do lado da substância, indefinidamente sobrecarregada de acidentes diversos, mas somente como uma forma, invariante através de suas atualizações, visto que ela [a língua] é definida em termos de relações. (Milner, 1987: 12)
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A rigor, a noção de língua de Saussure veio como solução para problemas teóricos e empíricos impostos pelo enfrentamento de falas/discursos, que não podiam ser abrangidos por descrições gramaticais e explicações empiristas inspiradas na Psicologia. La langue veio, acima de tudo, como resposta à constatação empírica de erros.16 Uma teoria de linguagem é, como se vê, incorporada sob a figura dos processos metafórico e metonímico na interpretação da fala de crianças (De Lemos, 1992) e de ocorrências sintomáticas. Consequência importante foi que a implicação da ordem própria da língua aloca as dicussões na esfera do estruturalismo (europeu) e, nessa direção, no domínio da Linguística. Saussure representou uma saída da descrição – la langue e seu funcionamento ofereceram a possibilidade de explicação para as falas imprevisíveis e altamente heterogêneas da criança (De Lemos, 1992, 2002); falas que resistem às tentativas de descrição por aparatos gramaticais que são cegos, por definição, a ocorrências irregulares. Importa-me destacar que a questão do erro foi aspecto decisivo na necessidade teórica de reconhecimento da ordem própria da língua – de Saussure e do estruturalismo europeu (De Lemos, 1992; 2002). Na base de tal necessidade está o fato de que descrições gramaticais stricto sensu (fonético-fonológicas ou sintáticas) fracassam frente ao encontro com falas cambiantes, assistemáticas, como as de crianças. O custo efetivo dessas tentativas de descrição é o apagamento dos indícios que caracterizam “falas de crianças” – elas sistematicamente as “higienizam” (De Lemos, 1982: 14). Se os primeiros tempos dessa escuta para a resistência da fala da criança às descrições gramaticais promoveu uma tensão insuperável do Interacionismo no campo da Aquisição da Linguagem, essa posição rendeu uma metalinguagem alternativa (De Lemos, 1982); os processos dialógicos,17 que acabaram esbarrando em seus próprios limites diante dos erros; eles mostraram-se insuficientes em vista dos desarranjos imprevisíveis, que muito cedo proliferam em falas de crianças. Tratar o aparecimento dos erros como momento em que se apreende “cruzamentos de esquemas interacionais”, que refletem “descrizalizações de blocos incorporados da fala do outro”, seria insistir demais num tipo de argumento que não fazia jus ao achado empírico que ele mesmo havia sido eficaz em revelar. A pergunta levantada foi: “que operação havia entrado em jogo nos erros?” Erros indiciam distanciamento da fala do outro e revelam, de forma inequívoca, a particularidade de não terem sido incorporados de enunciados precedentes. Havia, sem dúvida, algo a esclarecer sobre o aparecimento dos erros. De interesse maior para este texto é que o “salto teórico” que aconteceu por efeito desta pressão teórico-descritiva ocorreu em artigo por De Lemos (1992). Nele,
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a autora enuncia que, nos erros, emerge um tipo de relação cujo estatuto deveria ser buscado na própria linguagem, i.e., no movimento da linguagem sobre a própria linguagem. Trata-se do movimento de substituição que promove combinatórias inesperadas e singulares. Pois bem, esta interpretação dos erros enlaça, na teoria, a mobilidade das leis/operações de referência interna da linguagem. Saussure e Jakobson são implicados, assim, na explicação da fala de crianças. Para iluminar esta questão, trago um segmento de monólogo de criança no berço.18 Monólogos são acontecimentos especiais para a demonstração de efeitos do “eixo da substituição” porque (1) são situações enunciativas em que há suspensão da contribuição imediata do outro e (2) são momentos propícios, na aquisição da linguagem, para a apreensão do que se designa por “fala da criança”. Nos monólogos, o erro se manifesta tanto na montagem/desmontagem/remontagem de enunciados quanto na movimentação desses fragmentos em estruturas paralelísticas.19 Vimos que erros são referidos a efeitos de substituições. As substituições podem abalar a representação gramatical, como veremos a seguir. Pois bem, substituições têm a ver com os eixos sintagmático e associativo de Saussure – elas remetem às operações em ausência, que foram ressignificadas por Jakobson (1960). Operações sintagmática e associativa ressurgem como operações metonímica e metafórica, respectivamente. Reconhecer o impacto de tal ressignificação é recolher a presença indelével de Saussure no texto de Jakobson – o passo formidável realizado por este último foi o de articular a língua na fala a partir da implicação da noção de projeção. Como assim? Dependendo do modo de projeção da língua na fala, esta tenderá mais para a prosa ou mais para a poesia. Os monólogos da criança, por exemplo, tendem para o lado de composições poéticas (sem ser poesia). Entende-se, assim, por que operações metafórica e metonímica sejam mais que meras alterações terminológicas – em causa está uma torção que torna tais operações leis de composição interna da linguagem (Milner, 1987). Na função poética há projeção do eixo metafórico sobre o metonímico (Jakobson, 1960), que faz imperar uma jogada significante sobre a massa sonora (em prejuízo da comunicação e da referência). Verdadeiro “excesso” da linguagem contém e redireciona a ordenação metonímica: a linearidade, que predomina na prosa, cessa, abre lugar para um tempo outro – para o tempo lógico, puramente relacional. Temos, então, a repetição de um mesmo estrutural com grande variação nos elementos que ele contém. Este corte no tempo sequencial e o retorno incessante na cadeia sobre si mesma burlam a sintaxe e perturbam o sentido, como podemos surpreender a seguir, num segmento espetacular de monólogo de Camilla (2,5 a.) no berço:20
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SEGMENTO 1: Camilla (2;5 a) no berço: 1. Num fala no teu nome 2. Num fala no meu nome 3. Num fala MI DANONI (2 vezes) 4. fala MI Á NONI 5. fá’a MI DÁ NOME 6. Num fala no meu nome 7. Não fá’a no ... 8. no – me / nome (2 vezes) (inspira) 9. O / Rá’fa ... 10. no ... 11. Rá’ la no meu nome Procurei, com a notação desta sequência, dar relevo à jogada sonora que se impõe à fala da criança por efeito da dominância do eixo metafórico sobre o metonímico. Tratei de jogar luz sobre a relevância da implicação de Saussure e de sua afetação em Jakobson na interpretação de erros em falas de crianças. Também, a meta foi mostrar que, pela assunção de compromisso com a ordem própria da língua, o acontecimento da suspensão da representação gramatical, que dá lugar a uma “articulação significante” particular na cadeia falada, ainda que não estritamente descritível pelos recursos linguísticos instituídos, uma vez que a articulação que se monta está submetida à projeção que governa a função poética (Jakobson, 1960). Ela impõe a dominância da equivalência ao eixo metonímico, que passa a ser dirigido pela necessidade da repetição estrutural e sonora. Nesses casos, toda sequência torna-se metaforicamente metonímica. É mesmo o que podemos notar no segmento 1: no jogo de composição/ decomposição/recomposição da substância sonora destacam-se descongelamentos de formações sígnicas devido à liberação da matéria sonora que se abre para possibilidades inusitadas e inesperadas de composições enunciativas. É o que vemos acontecer nas muitas substituições que emergem nos segmentos de (1) até (11) – especialmente nos desdobramentos de “no meu nome” à “mi danoni” à “mi á noni” à “mi dá nome” à “no meu nome”, em que se articula, em envelopes sonoros diferentes, a mesma sonoridade. Note-se, ainda, que “fala” passa por movimento semelhante: “fala à fá’a à fala à fá’a à Rá’fa à Rá’la”. Muito se poderia dizer, ainda, sobre segmentação, hesitações, omissões e pausas, mas não me parece ser o espaço para esta discussão.21
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Erros, fragmentos e composições insólitas decorrem, como procurei ilustrar no segmento de monólogo apresentado, da força do funcionamento da língua na fala, de um funcionamento que projeta o eixo metafórico (da substituição) na organização metonímica, que afeta a fala. Em outras palavras, ocorrências insólitas revelam, de forma notável, o funcionamento da língua como determinante do aparecimento de formas que, apesar de “estranhas”, são produtos efetivos de relações dinâmicas. Dito de outro modo: “[...] a natureza idiossincrática tanto da fala da criança, quanto das falas patológicas é, a nosso ver, um entre outros argumentos em favor da implicação do conceito de la langue de Saussure.” (De Lemos, Lier-DeVitto et al., 2004: 4) Gostaria de assinalar que foi a inquietação suscitada pela escuta da resistência que a fala de crianças opõe às descrições gramaticais que o Interacionismo (e a Clínica de Linguagem) chegaram a Saussure e a Jakobson porque: Diferentemente da insistência em reduzir as ideias de Saussure a instrumentos de descrição, o que temos procurado – em Saussure e no Cours – é uma saída da descrição. Em outras palavras, investimos na possibilidade de abordar la langue e seu funcionamento na fala, sem abordar a fala como mera atualização da gramática [...]. (De Lemos, Lier-DeVitto et al., 2004: 4)
Falas sintomáticas: a inquietante faceta do erro Falas sintomáticas impõem maior resistência aos aparatos descritivos que, quando muito, localizam o problema sob a forma negativa da falta ou do desvio (de regras ou normas gramaticais ou pragmático-discursivas) – não há, portanto, em sentido estrito, análise ou descrição dessas produções, mas apenas o reconhecimento de que estas falas ficam à margem – “do lado de fora” dos estudos linguísticos. Se instrumentais descritivos da Linguística podem ter a função de localizar um problema na fala e até realizar a separação entre “certo e errado”, “correto e incorreto”; eles fracassam no tratamento de falas sintomáticas porque não podem separar “sintomas de erros”. Assim, na classe dos “incorretos” ficam reunidos e indistintos erros e sintomas (Lier-DeVitto, 2004; Andrade, 2003, 2006). Pode-se afirmar, por isso, que abordagens tradicionais de falas patológicas (em campos clínicos) não têm podido oferecer quer uma descrição efetiva/positiva, quer uma explicação linguística para as ocorrências faltosas ou desviantes.22
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Importante sublinhar que Saussure é “homem de fundamentos”, como diz De Mauro (1972) e, nesse sentido, ele é, de fato, uma saída da descrição. A releitura e a incorporação de seu pensamento, pela Clínica de Linguagem,23 foi um movimento decidido “para o lado de dentro da Linguística” – para o lado da teorização sobre a linguagem. Deve-se perguntar, então, se a implicação da língua na fala pode favorecer uma resolução definitiva para o sintoma na fala. Adianto que “não” e toco, assim, num problema de difícil penetração.24 Isso não significa, contudo, que Saussure foi de pouca importância. Reafirmo que ele foi da maior relevância para a abordagem positiva dessas falas que, sob seu ensino, “não ficam fora da lei da linguagem”. Resumidamente, se a Linguística (da fala ou da língua) tende a filtrar os dados irregulares para salvaguardar as exigências de regularidade, repetibilidade e reprodutibilidade, que lhe garantem assento na esfera da ciência, falas sintomáticas só poderiam ser marginalizadas. Mas há embaraços de outra ordem. Falas sintomáticas convivem com enunciados perfeitos do ponto de vista gramatical (fonético-fonológico ou morfossintático): SEGMENTO 2: Sessão clínica com adolescente com 16 anos (Terapeuta; Adolescente): 1. A. Eu acho que zá consigo falar todos os sons. 2. T. Você escuta quando você fala errado? 3. A. Lózico! Mas minha mãe anotou que eu não consigo falar: “já”, “cheguei”, “acho” e “a gente”. Ou em: SEGMENTO 3: Sessão clínica com menina com 6 anos (Terapeuta; Menina): 1. T. Como ele chama? Eu não sei! 2. M. FAmu inFEntá! 3. T. Vamos... “Manoel”! 4. M. Manuel VElhinho. Mais ainda, falas sintomáticas podem ser perfeitamente corretas e fluentes e profundamente desajustadas do ponto de vista dialógico/discursivo e pragmá-
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tico – como ocorre, maciçamente, em quadros clínicos de pessoas com demência (Landi, 2007),25 em quadros qualificados como de deficiência mental (Carnevale, 2008) e em alguns quadros de psicose em adultos e crianças. São “falas vazias” (como se lê na literatura sobre as demências), sem sujeito que sustente posição, como veremos, a seguir, em episódios recolhidos na clínica: SEGMENTO 4: Sessão clínica com menina com 9 anos (Terapeuta; Menina): 1. T. O seu pai trouxe você de carro? 2. M. É... ele está trabalhando. 3. T. Trabalhando?! O que o seu pai faz? 4. M. Ele faz de propósito. ------------------------------------------5. T. Você assiste TV? 6. M. Sim. 7. T. Você tem televisão a cores? 8. M. É... é verde. Este diálogo põe em ato outro tipo de insucesso: uma fuga do sentido, uma espécie de nonsense. Os enunciados da menina de 9 anos (com diagnóstico de psicose) são bem formados, mas surpreendem: são sintomáticos porque revelam uma estranha relação falante-linguagem, que aparatos descritivos (gramaticais) não tocam. Estudos realizados sob a ótica da Pragmática Linguística, voltados para a linguagem em uso, chegam, igualmente, a resultados inconclusivos: atestase que “formas linguísticas típicas” (bem formadas) podem ser inadequadas do ponto vista pragmático-discursivo e que “formas atípicas” (malformadas) não violam regras pragmático-discursivas (Lier-DeVitto, 2002, 2006). A insuficiência desses aparatos descritivos é, em si, indicativa de que eles não distinguem entre normal e patológico (Lier-DeVitto, 2006), ainda que cheguem a uma “taxonomia às avessas” (Arantes, 1994, 2001: 7), uma vez que a caracterização do fenômeno é negativa.26 Saussure e Jakobson propiciaram, diferentemente, uma caracterização positiva dos problemas na fala – distante daquelas que retêm o sintoma na condição de violação, de manifestação desviante. Para além dessa caracterização positiva e por efeito do reconhecimento dado a Saussure e Jakobson, diz respeito à posição do clínico. A forte implicação das leis de referência interna da
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língua, na interpretação de materiais clínicos, abriu escuta para a articulação significante e afastou o clínico de uma posição em que prevalece o apoio no significado. Houve suspensão, portanto, da aderência a uma escuta imaginária frente aos problemas na linguagem. Maior visibilidade para o que está contido nessa afirmação poderá ser atingida com a apresentação de outros segmentos de diálogo em sessões clínicas. Inicio com aquele que envolve um adulto com quadro de demência: SEGMENTO 5: Sessão com paciente adulto (Investigador; Paciente adulto) É apresentada, ao paciente, uma foto de uma família (pai, mãe e filho) no banheiro. O pai faz a barba. 1. I – Que lugar é esse da casa? 2. P – Não sei. 3. I – ... esse maior aqui; ele tem uma coisa diferente... [...] olha pra cara dele... o que que que ele tem de diferente? 4. P – diferente ... o olho... rosto! 5. I – Olha essa foto aqui direitinho... é espuma de fazer barba... [...] se ele está com espuma de fazer barba, que lugar é esse aqui... parece que é um... 6. P – Futebol. 7. I – Futebol!? Onde é que as pessoas fazem a barba? 8. P – Na barbearia. (apud Landi, 2008) Vejamos a interpretação que Landi oferece. As respostas do paciente às perguntas da investigadora, diz ela, não fazem referência direta à figura apresentada, mas sua fala faz referência à fala do investigador: (1) “diferente” e “cara”, da fala da investigadora, levam a “olho” e “rosto”, na do paciente; (2) “barbearia” decorre de “barba”, embora frustre a pesquisadora, que esperava “banheiro”. Landi indica que o inesperado “futebol” tem raiz em outra cena de que “barba” participa – tem a ver com Sócrates, um jogador de futebol que usa barba (e que é admirado por P). A autora aponta para o fato de que a fala faz referência à fala – esta operação resguarda a posição do falante, mesmo quando o significado esperado, social/ comunicativo, se dilui. Landi conclui que a queda da referência externa está pre-
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judicada, as operações de referência interna da linguagem perduram e sustentam o sujeito na sua fala e a possibilidade de um laço com o outro. Consequências clínicas importantes são retiradas daí: a escuta para a movimentação significante assenta o clínico numa posição em que sequências e fragmentos do discurso do paciente têm privilégio na manutenção do diálogo. Se o cérebro dá um veredito, diz Landi, a direção do tratamento caminha na direção oposta já que visa a manutenção da pessoa na posição de falante e a sustentação possível de uma relação com o outro. A expressão de Fonseca (2002) de que a Clínica de Linguagem dá “voz e vez” ao sujeito reveste-se de sentido, portanto. Resumidamente, a escuta do clínico de linguagem fica aberta para a articulação significante, que pode ser mantida mesmo se o dizer do paciente o desloca para a esfera do não sentido. Sobre a incorporação das leis de funcionamento da língua na abordagem de erros e de sintomas na fala, há, portanto algo a dizer em seu favor, como procurei mostrar. Há, porém, algo a dizer sobre os seus limites. A implicação das leis de referência interna da linguagem (do sistema de relações) mostrou que falas sintomáticas insólitas e anômalas como são não estão fora das leis de composição interna da linguagem, já que aparecem como produtos de relações dinâmicas entre os eixos metafórico e metonímico. Este resultado é da maior importância, como disse, porque aquilo que, por efeito da aplicação de abordagens gramaticais, tinha existência externa ao campo dos estudos linguísticos, adquire o estatuto de problema interno. Em outras palavras, falas sintomáticas ganharam, por efeito da teorização sobre a Clínica de Linguagem, existência interna ao campo da Linguística. Manifestações sintomáticas, iluminadas pela novidade saussuriana, puderam, sem dúvida, levantar questões teóricas de grande alcance, como se recolhe principalmente no trabalho de Andrade (2003, 2006) e também no de Trigo (2002). Refiro-me (1) ao problema da segmentação, ou, melhor, da escuta da criança para a fala do outro e própria, (2) à questão do tempo da fala e (3) do sujeito e da singularidade. O segmento a seguir, analisado por Andrade (2003) permitirá situar com especial clareza essas questões:
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SEGMENTO 6: T. e P. “fazendo comida” para os bichos. (6/4)
2. P – Vai cumê. 4. P – Come. I us sanchugan /// Já cumeu, ó. 6. P – Ele vai dumi aqui, ó /// acentô /
1. T – Todo mundo vai comer peixe? 3. T – Ninguém come carne de vaca, não? 5. T – Já comeu?
SEGMENTO 7 (18/4)
P – Ó. Ache um tampa da/ da/ sabe di qui é essa tampa aí? Da banana da vaca. P – Ela tá fazendo/ ela tá fazendo suco. Ela tá fazendo é san/ é um gual carne. P – É surrasco.
T – Eu num achei, eu já olhei aí // Ó, isso daí é band-aid para colocar no machucado quando cair, oh. Então, se algum deles (bichos) cair a gente põe band-aid pra não deixar o sangue sair.
T – Hum. Quê que a vaca tá fazendo lá no cantinho, hein?
T – Carne.
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O enigmático enunciado us sanchugan (em 4) fica sem interpretação na sessão em que ocorre, dia 6/4. Na sessão de 18/4, alguns desdobramentos significantes jogaram luz sobre essa condensação de unidades do português. Esse bloco obscurece as sequências estáveis da língua e as cenas em que circularam. Disso resulta a opacidade desconcertante de sequências como essa para o falante da língua. A escuta da criança para a fala levanta uma forte interrogação sobre a identificação de “unidades” a “signos”. Uma escuta que, como vimos, é “obstrutiva da identificação da fala à língua constituída” e naufraga em enigmáticas articulações significantes. Este é o momento adequado para indicar que apenas o Saussure da teoria do valor e do significante poderia render explicações e questões no tratamento de erros e falas sintomáticas – Saussure de la langue como “um sistema de valores” (não como “sistema de signos”); Saussure que dá primazia ao significante (e não ao signo). Mas, como disse, há algo a dizer sobre limites. Nos cruzamentos, inversões, supressões que dissolvem o sentido e ofuscam cenas em que essas unidades circularam, alguns segmentos são impedidos de aparecer e com eles reminiscências do vivido, diz Andrade (2003). Nessas considerações, insinua-se a operação freudiana do recalque e a necessidade de assunção da hipótese do inconsciente. A questão do tempo nos leva na direção porque o tempo da linguagem e do inconsciente é o mesmo: tempo lógico... “perene e universal” (disse Saussure). Na interpretação de Andrade, no diálogo de 18/4, posterior ao aparecimento de us sanchugan (de 6/4), aparecem “machucado”, “sangue” e “suco”, que fazem relação com surrasco e “carne de vaca”: Observe-se o esquema apresentado por Andrade: Us sanchugan sangue/sangue surrasco churrasco machucado Apenas uma escuta marcada pela radicalidade da novidade saussuriana (valor e significante) poderia sujeitar-se ao tempo do significante – perene, estrutural (sistema de relação). Tal escuta pode sustentar a tensão entre elementos ausentes e presentes na cadeia – a suspensão da disposição cronológica das sequências. Ela garante-se no tempo outro e não se perde frente ao efeito “ilógico” do significado e do sentido.
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Procurei abordar pontos importantes relativos aos efeitos do pensamento de Saussure na teorização e na abordagem de falas sintomáticas. Saussure sem dúvida fez render a reflexão sobre falas sintomáticas, mas é preciso ter claro que essa teorização rendeu no seu próprio limite. Se a assunção da ordem própria da língua pode mostrar que falas ditas patológicas são um possível de língua,27 a distinção entre normal e patológico, entre erro e sintoma, não pode ser avançada. Se Saussure, como assinalou Agamben (2007), “viu no dado singular um universal”, essa relação não é recíproca ou simétrica porque o movimento inverso não se realiza: desse objeto universal – la langue – não se constrói o “dado singular” – melhor, não se chega à explicitação do sintoma na fala, que remete à relação tão única e constrangedora de um sujeito com a linguagem. Mas, pergunto, seria legítimo cobrar de Saussure uma resposta sobre isso se o problema de que ele se ocupou o empurrou numa outra direção? Inegável, porém, é que a escuta que vem de certa leitura de Saussure abre-se para a mobilidade significante na fala e para a singularidade de segmentações e de composições estranhas. Por certo, esta escuta para a fala impõe-se e pede mais. Ela interroga sobre “aquele falante” e aguarda pelo passo que foi enunciado neste texto e que continua, na pesquisa, a traçar seu percurso.
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Meu doutorado foi realizado na Unicamp, sob a orientação da Profa. Dra. Cláudia Lemos, que desenvolveu uma reflexão consistente e original sobre a relação criança-linguagem (Lier-DeVitto e Carvalho, 2008). Em 1994, três anos após minha entrada na Derdic, organizei o livro: Fonoaudiologia: no sentido da linguagem, que teve várias reimpressões e uma segunda edição em 1997. Este livro teve, de fato, repercussão nacional e foi, no estado de São Paulo, indicado, por vários anos, em concursos públicos para fonoaudiólogos. Não foi outra posição que assumiram autores como Benveniste e Jakobson, que, da leitura refinada que fizeram de Saussure, desdobraram conceitos e avançaram teorizações originais. Refiro-me a “dificuldades” referentes ao fato de que o Curso de linguística geral (CLG) é uma edição realizada a partir de anotações de aulas pelos alunos de Saussure. Os manuscritos colocam dificuldades de outra natureza – rasuras, incompletudes, fragmentos de textos –, como discutiu Silveira (2007). As “complexidades” decorrem da própria natureza da obra assim constituída – há deslizamentos conceituais, usos que confundem, por exemplo, a língua (objeto da Linguística) com língua(s) (como idioma/s) e de uma obra em movimento, que não recebeu um ponto final. Nesse ambiente, a “novidade saussuriana”, que funda a ciência da linguagem, não pode ser apreendida em toda sua grandeza (De Lemos, Lier-DeVitto et al., 2004). Na Filosofia e nas ciências humanas, Saussure rendeu redirecionamentos teóricos fundamentais – nesses lugares, a noção de significante e a radical mudança de raciocínio (de indutivo para dedutivo) produziram alterações radicais (Koyré, 1991; Fachini, 2013). Vale lembrar que Foucault (1983) reconhece ter sido Saussure, ao lado de Freud e Marx, verdadeiro fundador de discursividade. Ver, ainda, De Lemos, Lier-DeVitto et al. (2004). Recomendo a leitura de “Le ‘saussurisme’ en Amérique Latine au XXe siècle” (De Lemos, Lier-DeVitto et al. (2004).
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Sobre isso, ver De Lemos, Lier-DeVitto et al. (2004). Vale lembrar que o mesmo não ocorreu com Saussure em outras esferas do conhecimento. Basta mencionar autores como Foucault; Levy-Strauss; Derrida e Lacan. Convém lembrar que a língua (la langue) não faz série, é objeto teórico e não comporta singular ou plural. Já, as línguas pertencem ao domínio do sensível, ficam do lado da “fala” – podem ser contadas enquanto “realidades”: podem ser indicadas no singular (uma língua) e no plural (as línguas, aquelas línguas). Sobre isso, ver Milner (2012). Refiro-me a autores como J-C. Milner, Simon Bouquet; Claudine Normand; Harris e muitos outros. No Brasil, o retorno a Saussure foi iniciado por Cláudia de Lemos. Na mesma direção de leitura, temos Eliane Silveira, Maria Fausta Pereira de Castro, Rosa Attié Figueira, Lourdes Andrade e outros pesquisadores ligados ao GP Aquisição da Linguagem (Unicamp), ao GP Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem (Lael/PUC-SP) e do GP liderado por Eliane Silveira na UFU. Este trabalho foi desenvolvido com o Grupo de Pesquisa Aquisição, Patologia e Clínica de Linguagem, no Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (Lael), da PUC-SP. Quero assinalar, com isso, que esta foi uma criação e produção realizadas por vários pesquisadores e assim continua seu curso. Refiro-me a interação, outro, mudança, erro. Como veremos, falas sintomáticas não poderiam permanecer no ambiente indistinto de “erros” (Andrade, 2006). Este projeto, iniciado em 1995, tem sido amplamente reconhecido como original e consistente pela comunidade científica nacional e internacional. Sua extensa produção bibliográfica é referência para pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento (Linguística, Fonoaudiologia e, mais recentemente, para a Psicanálise). Remeto o leitor ao Diretório de Grupos de Pesquisa CNPq para que acesse o GP Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem para se aproximar de linhas de pesquisa desenvolvidas e, principalmente, de pesquisadores que têm, ao longo de mais de 15 anos, construído, ao meu lado, uma reflexão considera sólida e consistente sobre as falas sintomáticas e a clínica de linguagem. Vale sublinhar que a noção de ordem própria/interna da língua está na origem dos dois projetos de Linguística científica, a saber, tanto no projeto estruturalista representado pela obra de Saussure quanto no projeto gerativista representado pela obra de Chomsky, como lembra De Lemos (2002). Erro não é, nesta proposta, antônimo de “acerto”. Erro estenografa a diferença inequívoca das falas cambiantes de crianças e a distancia da fala constituída. O Interacionismo pode “escutar essa diferença e escutar nela a resistência que ela opõe aos objetivos teórico-empírico-metodológicos, visados pela investigação científica” (Lier-DeVitto e Carvalho, 2008). Foram eles: especularidade, complementaridade e reciprocidade. Tais processos foram implementados em análises de produções infantis no Projeto de Aquisição da Linguagem (IEL-Unicamp) por mais de 10 anos (1981 a 1992). Sobre esses monólogos, ver Weir (1962) e Lier-DeVitto (1998). Ver, sobre isso, Lier-DeVitto (1998, 2002) e também De Lemos (2006). A notação em cores tem a finalidade de destacar a variação posicional na estrutura que se repete e de favorecer a leitura de um material que não será, aqui, analisado detalhadamente. Remete o leitor a Lier-DeVitto (1998) para um encontro com interpretações mais refinadas e pontuais sobre os monólogos da criança e sua função na aquisição da linguagem. Ver, sobre isso, Lier-DeVitto e Fonseca (2012). Uma discussão aprofundada sobre esta questão pode ser encontrada em Arantes (1994, 2001 e outros), Lier-DeVitto (1994, 1999, 2006, 2011), Lier-DeVitto e Fonseca (2001) e em outros trabalhos do GP-CNPq Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem. Reitero que os fundamentos da reflexão que se desenvolve no GP Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem decorrem de sua estreita afinidade com o Interacionismo. Abordagens linguísticas, ainda que necessárias ao enfrentamento da exigência de desnaturalização da fala, não operam no âmbito da clínica – seu programa e recorte disciplinar não inclui o sujeito (nem o tema do sofrimento) nem uma discussão sobre normal vs. patológico (Lier-DeVitto, 1998; Lier-DeVitto, 2002; Fonseca, 2002). Ver, também sobre isso, Marcolino (2004), Emendabili (2010). De fato, nunca, a partir de ocorrências “patológicas”, instrumentos de toque na fala foram construídos. Sobre a noção de possível/impossível de língua, ver Milner (1987).
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A contribuição de Ferdinand de Saussure para a compreensão do signo linguístico Mônica Nóbrega Raquel Basílio
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1974), além de obras realizadas por Tullio de Mauro, Claudine Normand, Amacker, Jäger e Wunderli. Trabalhos mais recentes foram realizados por Johannes Fehr: Linguistik und Semiologie (1997) e Saussure: cours, publications, manuscrits, lettres et documents: les contours de l’oeuvre posthume et ses rapports avec l’oeuvre publiée (1996), Yong-Ho Choi, Le Probléme du temps chez Ferdinand de Saussure (2002), Michel Arrivé, Em busca de Ferdinand Saussure (2010), além de cerca de 20 obras em que o autor discute sobre a reflexão saussuriana. Ainda citamos Jean-Paul Bronckart, Cristian Bota e Ecaterina Bulea: Le Projet de Ferdinand de Saussure (2010), entre outros que se dedicam à releitura da reflexão de Saussure. A primeira consequência que podemos tirar dessa constatação da multiplicidade e fragmentação da reflexão saussuriana é a necessidade de ler os documentos saussurianos não como meio de “reconstituir a verdadeira posição de Saussure” (Bronckart, 2010: 3), nem tampouco como meio de reeditar o Curso de linguística geral conferindo uma unidade ao pensamento de Saussure e um caráter de acabamento que não é possível conferir dada a natureza de seu corpus. Segundo Rossitza Kyheng, em seu artigo intitulado Principes Méthodologiques de constitution et d’explication du corpus saussurien, “corpus saussuriano” significa todos os textos escritos por Ferdinand de Saussure (livros, artigos, notas, rascunhos, aulas, cartas, etc.). Já a “coleção saussuriana” seriam os documentos historicamente ligados à personalidade de Saussure. Trata-se de um arquivo aberto que continuamente recebe textos de vários autores: o texto do Curso de linguística geral de Bally e Sechehaye, lembranças, cartas para Saussure, documentos de trabalhos identificados como pertencentes a outros autores, etc. A autora, assim como Bronckart e Bouquet, parte do conceito de graus de autenticidade dos documentos e excetua o Curso da composição do corpus. Concordamos com Kyheng quando compreende que a atividade de ler o arquivo de textos relacionados à reflexão saussuriana impõe adotar um ponto de vista acerca desse material. Dessa forma, partimos do ponto de vista de que o material citado deve ser lido de forma integral, levando-se em consideração os aspectos cronológicos e a natureza de cada um dos textos, questões de autoria relacionadas a cada texto, bem como de sua textualidade, pois constituem gêneros diversos. Porém, sem inferir graus de autenticidade, como se fosse possível encontrar o “verdadeiro e autêntico” pensamento do mestre. Acreditamos que tal postura mitifica o autor e impede que sua reflexão dê frutos, como sublinham as diversas obras de Chartier (2011) sobre as questões de autoria. Concordamos com a necessidade de delimitar um corpus de estudo como decorrência direta do objeto de análise, podendo conter diversos textos de dife-
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rentes naturezas, respeitando e observando as peculiaridades de cada documento no desenvolvimento do trabalho interpretativo. Não podemos deixar de sublinhar a necessidade de partirmos do ponto de vista sistêmico ao ler a reflexão de Saussure, pois acreditamos que é na noção de sistema que podemos observar um efeito de coerência da reflexão saussuriana, embora o sistema não confira à sua reflexão um aspecto de unidade, já que é na multiplicidade de valores que entendemos que se possa fazer uma leitura dos conceitos escritos e reescritos em diferentes momentos e de diferentes formas em seu ensino e reflexão sobre a linguagem humana. A Semiologia, portanto, passa a ter um papel vital no processo de estudo do corpus, não para encontrar a autenticidade da posição saussuriana, mas com o objetivo primeiro de compreender seus conceitos linguísticos construídos nesses e por estes textos. A natureza fragmentária de tais documentos nos impõe a necessidade de compreender o impressionante trabalho empírico anterior sobre a comparação de diversas línguas distribuídas no espaço e no tempo. Esse trabalho realizado por F. de Saussure evidencia a importância de reler a reflexão de Saussure como fruto de uma constante pesquisa sobre a permanência das mudanças que atingem tanto as palavras como os conceitos que elas veiculam e a relação de significação entre essas duas entidades. Em vista da limitação física adotaremos como método de análise a comparação e delimitamos como nosso corpus de análise apenas dois fragmentos que tratam especificamente da questão do signo linguístico: os capítulos da edição de 1916 referentes aos “Princípios gerais”; capítulo I, “A natureza do signo linguístico”, e referente à segunda parte, “Linguística Sincrônica”, os capítulos II, III e IV, “As entidades concretas da língua”; “Identidades, realidades e valores”; “O valor linguístico”; bem como três notas do Acervo 1996 (Biblioteca Pública e Universitária de Genebra),1 “Sobre a essência dupla da linguagem”, as notas “Forma-figura vocal”, “Mudança fonética e mudança semântica”, “Semiologia”, não datados, mas provavelmente, anteriores ao período genebrino, período em que as fontes da edição de 1916 foram constituídas. A partir desse pequeno corpus tentaremos discutir um percurso enunciativo de Saussure sobre o signo linguístico levando em consideração três unidades de análise propostas: o signo e a arbitrariedade; o signo e o sistema; o signo e a produção de valores. Por meio dessa discussão, visamos compreender a importância dos conceitos por ele desenvolvidos para os estudos do signo na Linguística atual, com um recorte específico voltado para os estudos do interacionismo sociodiscursivo.
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O signo Signo é empregado por Saussure, ao longo das aulas e de seus escritos, em duas acepções: como entidade linguística global, composta de uma face fonológica e outra conceitual; e como designando apenas a face fonológica desta entidade. A razão desta dupla acepção reside numa inquietude do mestre genebrino: ele está convencido de que qualquer palavra escolhida para denominar a parte significante da entidade global composta de uma face fonológica e de uma face semântica está naturalmente sujeita a um deslizamento, tendendo infalivelmente a se referir à entidade global. (Bouquet, 2000: 229)
Será apenas na aula de 19 de maio de 1911, no seu último curso, que Saussure introduzirá o par significante/significado. A intenção era desfazer dúvidas deixadas na aula de 2 de maio do mesmo ano, quando o genebrino fala do princípio da arbitrariedade do signo. A frase que está na edição do Curso de linguística geral é: “o signo linguístico é arbitrário” (Saussure, 1996: 81). É possível, numa leitura mais atenta, perceber na edição de 1916 vezes em que signo designa a entidade global, e vezes em que designa apenas a face fonológica desta entidade, causando talvez certa confusão. Mas algo fica evidente na caracterização do signo saussuriano: a associação entre um significante e um significado. A caracterização desta dupla associação pode levar a pensar que um conceito está irremediavelmente colado a uma imagem acústica correspondente. Tal ideia retomaria a questão antes levantada por Aristóteles de uma isomorfia entre a estrutura da linguagem universal do pensamento e a estrutura real. Podemos ler em “Das categorias” (cap. IV): Cada palavra ou expressão enunciada sem nenhuma conexão designa uma das seguintes coisas: o que sou (ou Substância), o quanto (ou Quantidade), que tipo de coisa (ou Qualidade), em relação a que (ou Relação), onde (ou Lugar), quando (ou Tempo), conforme que atitude (ou Postura, Posição), sob que circunstâncias (ou Estado, Condição), quão ativo, o que se faz (Ação), quão passivo, o que sofre (ou Afecção).
Saussure, por outro lado, ao arquitetar o princípio da arbitrariedade, estaria retirando a importância do real e a inserindo no campo/nível semiológico, a língua como sistema de signos arbitrários. Há uma profunda preocupação por parte de Saussure com as delimitações das unidades empíricas que constituem o objeto da Linguística. Ele nega-se a discutir
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o sistema da língua com base em unidades mal definidas, não porque o jogo destas unidades faz a língua, mas porque elas constituem todo o sistema da língua. Vejamos o quadro da edição de 1916 (p. 131) que introduz o capítulo IV, “O valor linguístico”:
A figura tenta esboçar a atividade constante de delimitação das unidades linguísticas. O sentido, diferente de significado, permite delimitar as unidades, numa atividade de associação entre significados e significantes, ambos arbitrários, e, por essa razão, dá origem a uma relação radicalmente, em sua raiz, arbitrária também. O esquema (Saussure, 1996: 80), muito citado pelos estudiosos, apresenta um signo composto de duas faces, que estão em uma relação de associação arbitrária, é a sua consequência: a língua é um sistema. Vejamos o esquema citado:
Apesar das setas em direções opostas não figurarem nos desenhos feito a mão por Saussure em suas anotações descobertas, nem nos cadernos dos alunos que acompanharam as aulas do curso em Genebra, podemos imaginar que foi uma tentativa frustrante dos editores de transparecer a ideia de unidade. Dizemos “frustrante” pela simples razão que o conceito de arbitrariedade em si mesmo é avesso à unidade estática, pois ele permite a união e a separação, ao mesmo tempo, a mutabilidade e a imutabilidade. O que parece primordial para o genebrino é que a língua é um sistema, as unidades deste são delimitadas pelo sentido, que estão inevitavelmente em relação umas com as outras unidades que constituem o sistema, em um vínculo de arbitrariedade. E, como sistema, não há uma hierarquia, como se fosse possível representar a língua por meio de uma linha reta vertical, mas se aproximaria mais da representação de uma espiral.
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Os signos, uma vez reunidos, ganhariam “vida semiológica”, ou, em outras palavras, seriam valorados. Em um dos maços presentes no envelope do arquivo BPU 1996, já citado, podemos ver a seguinte consideração: Supõe-se que existam termos duplos que comportam uma forma, um corpo, um ser fonético – e uma significação, uma ideia, um ser, uma coisa espiritual. Dizemos, antes de tudo, que a forma é a mesma coisa que a significação. E que esse ser é quádruplo (Saussure, 2002: 42, grifos do autor). Visão habitual: A Significação B Forma Visão proposta: I
II
Diferença geral das significações (só existe segundo a diferença das formas).
Uma significação (relativa a uma forma).
Diferença geral das formas (só existe segundo a diferença das significações).
Uma forma (sempre relativa a uma significação).
Figura vocal (que serve de forma ou de várias formas em I).
A “visão habitual”, como a citação anterior diz, é a união de uma forma e uma ideia. A releitura que Saussure apresenta da visão de signo cultivada desde a filosofia grega acrescenta à noção de signo o conceito de diferença. Longe de ser apenas um detalhe de menor importância, a introdução do conceito de diferença e semelhança (matemático) permite, ao lado do princípio da arbitrariedade, a constituição do sistema semiológico, sua capacidade ativa os fenômenos linguísticos habituais. Quando lemos na edição de Bally e Sechehaye que a “unidade linguística é uma coisa dupla” (Saussure, 1996: 79), parece-nos que aquilo que se distingue, som e ideia, forma uma unidade, um Um. Mas, ao comparar os dados trazidos da edição de 1916 com as notas do arquivo BPU 1996 aqui citadas, observamos a impossibilidade de tal leitura. A unidade linguística é algo fluido, uma “aparência” de unidade. O que se pode verificar é um sistema complexo de relações, semelhante a um cálculo matemático, onde os valores são advindos e não preestabelecidos. Saussure continua a usar a oposição entre significação e forma, mas ele nos diz que a unidade está na “diferença geral das significações”, sob “a diferença geral das formas”, sendo que cada unidade formada de “diferenças gerais” só existe
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“segundo a diferença” do seu oposto (Saussure, 2002: 42). Assim, a diferença geral das significações está para “uma significação (relativa a uma forma)”, e a diferença geral das formas está para “uma forma (sempre relativa a uma significação)” (Saussure, 2002: 42). Ele escreve: Declaramos que expressões como A forma, A ideia; A forma e A ideia; O signo e A significação, são, para nós, sinais de uma concepção diretamente falsa da língua. Não existe a forma e uma ideia correspondente; não há a significação e um signo correspondente. Há formas e significações possíveis (nunca correspondentes); há, apenas, em realidade, diferenças de formas e diferenças de significações; por outro lado, cada uma dessas ordens de diferenças (por conseguinte, de coisas já negativas em si mesmas) só existe como diferenças graças à união com a outra. (Saussure, 2002: 42, grifos do autor)
A não correspondência entre significante e significado é essencial para manutenção do sistema. Se houvesse correspondência, não haveria vida semiológica, e, por sua vez, teríamos uma positividade que permitiria uma estabilidade tão grande à língua que ela poderia se configurar como uma estrutura que corresponde ao real. A questão que poderíamos levantar para Saussure é a seguinte: como não há correspondência que leve à união entre significante e significado, como as uniões se constituem? A arbitrariedade absoluta do signo não impediria que tais unidades se formassem, mesmo que de forma fluida? Podemos começar a pensar nesta questão por meio das seguintes palavras de Saussure: Aqui, ao contrário, é muito crítico começar a falar da diversidade do signo na IDEIA una em vez de falar de sua diversidade no emprego uno ou significação una [...]: porque isso é cair no erro de acreditar que haja, anteriormente estabelecidas, quaisquer categorias ideais em que aconteçam depois, secundariamente, os acidentes do signo. (Saussure, 2002: 51, grifos do autor)
Essas palavras nos levam a pensar que um signo só existe no momento de seu emprego. Para Saussure, é um erro acreditar que existam categorias ideais antes do signo, eles são “acidentes”. A palavra “acidente” guarda uma forte carga semântica relacionada à ação, mas uma ação involuntária, pois, apesar de haver algo da consciência, a situação teria em certo momento escapado ao controle do agente da ação. Se seguirmos essa linha de interpretação, a união do signo seria o resultado do uso efetivo que os falantes realizam quando estão em suas diversas atividades de linguagem. O que os agentes da ação de linguagem teriam seriam valores estabelecidos pelos usos que a comunidade de fala da qual eles
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fazem parte já estabilizou de forma relativa. Porém, ao fazer uso de tais valores, o signo escaparia à vontade social e à vontade individual, gerando outros valores por meio de novas uniões. Seria o que Saussure denominou em suas anotações de “quatérnion final”. Lemos: A primeira expressão da realidade seria dizer que a língua (ou seja, o sujeito falante) não percebe nem a ideia a, nem a forma A, mas apenas a relação a/A; essa expressão seria, ainda, completamente grosseira. Ela só percebe, na verdade, a relação entre as duas relações a/AHZ e abc/A, [...]. É isso que chamamos de QUATÉRNION FINAL e, considerando os quatro termos em suas relações: a tripla relação irredutível. É, talvez, sem razão que renunciamos a reduzir essas três relações uma só; mas nos parece que essa tentativa começaria a ultrapassar a competência do linguista. [...] Observa-se que não há, portanto, nenhum ponto de partida nem qualquer ponto de referência fixo na língua. (Saussure, 2002: 39-40, grifos do autor)
Essa relação fundada em quatro diferenças, negativas em si mesmas, é o que Saussure chama de “realidade da língua”. Vejamos ainda sua determinação: [...] eu não pretendo dizer que palavra seja estabelecida por ideia som Ao dizer que a ideia é apenas um dos elementos, eu não quero dizer que eles sejam dois ao todo, por exemplo: ideia a som a
ideia b som b
A , etc. B
Seja qual for a sua natureza mais particular, a língua, como outros tipos de signos, é, antes de tudo, um sistema de valores, e é isso que estabelece seu lugar no fenômeno (Saussure, 2002: 249-50, grifo do autor).
A unidade da língua, fluida por natureza, ganha sua estabilidade num sistema de valores. Ou seja, o signo, do ponto de vista saussuriano, não é apenas uma relação binária, mas ele mesmo comporta um sistema de diferenças, esse não é um ponto de vista simples do signo e, consequentemente, da língua e da linguagem. Esta constatação pode ser inferida também no texto de 1916 quando inicialmente a língua é definida como um sistema de signos e depois como um sistema de valores puros (Saussure, 1996: 130).
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A língua fundada na não coincidência entre significantes e significados conduz à edificação da teoria do valor. Um sistema de valores negativos, ou seja, puros, do ponto de vista semiológico, não poderia ter sido interpretado como um sistema fechado em si mesmo, pois a todo o momento há novos cortes nas massas amorfas, nada é preexistente, nada é positivo, pois só existe enquanto diferenças e negatividades.
Um legado saussuriano É uma audácia supor que poderíamos em um espaço físico e temporal tão curto desenhar, mesmo que em parte, todo o alcance do legado e da influência da reflexão saussuriana sobre a unidade da linguagem na Linguística, dada que esta mesma se encontra, de forma semelhante ao pensamento saussuriano, fragmentada. Por esta razão, fixaremos nosso olhar, neste momento, apenas no legado saussuriano para os atuais estudos interacionistas sociodiscursivos construídos por Bronckart e colaboradores. O grupo genebrino, que tem como uma de suas bases epistemológicas F. de Saussure, visa reintegrar as ciências sociais, constituindo uma ciência do humano fundamentada na concepção saussuriana dos signos linguísticos, relidos numa perspectiva interacionista e a partir de uma visão amplificada do corpus saussuriano. Isto implica dizer que não partem da visão restrita de signo encontrada na interpretação estruturalista do pensamento de Saussure. Podemos visualizar melhor o legado saussuriano no interacionismo sociodiscursivo (ISD) observando a epistemologia interacionista que visa demonstrar como a capacidade humana não resulta apenas das propriedades biológicas, nem das propriedades do ambiente, isoladamente. Ao contrário, elas se constroem na atividade, nos termos de Bronckart: “nas interações que se desenvolvem entre os indivíduos e o seu ambiente físico e social” (2006: 12). Esta constatação implica ver a interação social em planos ou níveis. O primeiro plano é o das interações entre as dimensões praxiológicas e gnosiológicas da linguagem. O legado saussuriano é de fundamental importância nesse plano interacional por esclarecer como os significados se constroem primeiro nas atividades discursivas, dando origem às representações individuais e coletivas dos mundos formais do conhecimento (cf. Habermas, 1987). O segundo nível é o das interações entre as atividades não verbais humanas e as atividades verbais. É neste nível que as atividades linguageiras se organizam em gêneros de textos.
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O terceiro plano é o das interações constitutivas dos signos, ou seja, as condições de sua constituição que é fundamentalmente de natureza arbitrária. Esses signos, na leitura bronckartiana, são, por essência, interativos. Essa característica interativa dos signos constitui a base da natureza dialógica da linguagem em sua estrutura sistêmica. Ainda teríamos um quarto nível, o das interações dialógicas concretas que seriam relativas às organizações das situações da conversação corrente em procedimentos infraestruturais, ao mesmo tempo universais e dependentes dos fatores de contexto social. Deter-nos-emos por hora apenas ao primeiro plano, e não falaremos das interações constitutivas dos signos, pois o primeiro plano evidencia a importância vital da teoria do signo linguístico para as bases epistemológicas do ISD. O estatuto do signo, de sua identidade como fato psíquico-mental, indissociável, como vimos anteriormente, coloca em evidência a concepção de “pensamento” que dialoga diretamente com as grandes teses do ISD, pois evidencia a relação entre os signos e a formação da psique humana. Em relação à questão do papel que tem a interiorização do signo na transformação do psiquismo, ela está baseada no caráter arbitrário do signo, que confere ao funcionamento psíquico uma autonomia em relação às condições do meio e ao estabelecimento de representações (referentes) permanentes, evidenciando a tensão entre a mutabilidade e imutabilidade sistêmica dos signos. Bronckart diz (2006: 113): Por seu caráter discreto, os signos introduzem delimitações, recortes no funcionamento representativo, em outros termos, eles aí estabilizam unidades, o que constitui uma condição para que se possa instaurar um sistema de operações ou de pensamento. Finalmente, por seu caráter radicalmente arbitrário, enfim, os signos provocam desdobramento no funcionamento psíquico; eles introduzem, sobre as imagens mentais idiossincráticas que todo organismo é suscetível de construir em suas interações com o meio, tipos de envelopes sociais que reagrupam essas mesmas imagens primárias, desdobramento gerador de uma possibilidade de se porem em relação essas duas ordens de representações, o que parece constituir uma condição de acessibilidade do pensamento, a ele mesmo, ou seja, da emergência da consciência.
O signo, desse modo, é produto de um duplo trabalho psíquico que constrói uma forma significante e uma forma significada, sempre associadas uma a outra. O caráter arbitrário permite outro duplo trabalho, o de criar representações
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individuais e coletivas que implicam relativa estabilidade do sistema. A natureza social do signo, resultado da troca entre membros de uma comunidade de fala, gera um sistema de valores estabilizados e organizados, evidenciando a natureza interativa dos valores significantes. É a partir desse legado saussuriano que as bases do projeto delineado pelo ISD vai se fundar, numa perspectiva interssistêmica que amplia o projeto saussuriano do sistema da língua relacionado ao sistema das trocas de uma comunidade de fala em relação ao sistema de valores, visto como sistema de discursos, de modo a permitir estudar o sistema da língua em relação aos seguintes sistemas: o sistema das atividades sociais; o sistema dos gêneros textuais (valores do signo: marcas de conexão, vozes e modalizações) e o sistema dos tipos discursivos (coesão). Este seria um plano basilar de todas as interações, pois permitiria a posterior interação entre textos-discursos, língua interior e a língua coletiva, ou seja, permitiria elucidar qual o tipo de relação existente entre a atividade de linguagem (como práxis que se manifesta em gêneros de textos e tipos de discurso) e as línguas e/ ou “a língua”2 (sistema de signos). Desse modo, tentamos mostrar, mesmo que rapidamente, que o legado saussuriano ultrapassa os estudos estruturalistas e formais, bem como não se limita a uma revisão de conceitos com base na comparação entre os diversos documentos relacionados à reflexão saussuriana. O legado saussuriano, mesmo após um século de sua morte, gera frutos e se constitui como estudo vital para os constantes desenvolvimentos da nossa reflexão sobre a linguagem humana em todos os seus aspectos, funcionais e formais.
Notas 1
2
Os documentos descobertos em 1996 (Acervo BPU 1996) estavam agrupados em quatro partes. A primeira sequência de textos estava sob a etiqueta “Ciência da linguagem”, colocada, provavelmente pelo bibliotecário que organizou os papéis. Trata-se de um grande envelope com maços de folhas da mesma natureza e formato, que trazem diversas vezes menção à natureza dupla da linguagem. Bouquet e Engler editaram os textos conforme os princípios filológicos amplamente aceitos, explicados no prefácio dos editores, p. 16 e 17. Teóricos como Johannes Fehr (2000) e, antes dele, Tullio de Mauro, em suas notas, afirmam que Saussure parte das línguas existentes em lugares concretos, isto é, da diversidade geográfica, para construir seu objeto teórico: “a língua” como uma generalização do que há nas línguas. Assim, esse objeto é constituído a partir da pluralidade das línguas existentes “na superfície do globo”. Consequentemente, “a língua” saussuriana não é uma ordem estável e fechada, ela é pensada como um conjunto em equilíbrio frágil, oscilante, exposto às variações constantes, como um sistema que não é mais do que momentâneo. Partir das línguas existentes – o francês, o inglês, o alemão – é definir “a língua” por meio da pluralidade existente das línguas. Fazendo isso, Saussure rompe com a tradição de partir de uma língua única, a língua-mãe, origem da diversidade, e passa a constituir seu objeto – “a língua” – a partir “das línguas”.
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Presenças do Curso de linguística geral na Análise do Discurso Carlos Piovezani
Um aparente paradoxo caracteriza a fala humana: de certo modo, ela é ao mesmo tempo rara e trivial. Os homens falam ordinária e frequentemente, mas há um descompasso entre tudo o que se poderia dizer, com base na língua e na lógica, e aquilo que é efetivamente dito numa sociedade. Ao lado dessa diferença forjada pela história entre a generosa potência e os atos rarefeitos reside uma outra. Desta vez, trata-se do gesto que separa, em tudo o que foi dito, o efêmero do durável. Nossas relações sociais instauram uma espécie de distinção entre “os discursos que ‘se dizem’ no correr dos dias e das trocas, e que passam com o ato mesmo que os pronunciou” e “os discursos que estão na origem de certo número de atos novos de fala que os retomam, os transformam ou falam deles [...] os discursos que são ditos, permanecem ditos e estão ainda por dizer” (Foucault, 2000: 22). Talvez pelo fato de o uso da língua trazer em seu bojo a metalinguagem, tenha se tornado relativamente banal à espécie humana falar de sua fala. Em geral, fazemo-lo certamente com mais assiduidade do que imaginamos. Se falamos todos amiúde sobre a fala, nem todos os dizeres sobre o dizer possuem o mesmo valor: enquanto alguns são esquecidos quase no mesmo instante de sua enunciação, outros continuam a se fazer ouvir por outras vozes em outros tempos e lugares. Entre os pensadores modernos que falaram de nossa fala, Ferdinand de Saussure tornou-se um dos mais célebres, graças à publicação de seu Curso de linguística geral (CLG). O texto que Saussure parece ter preferido não escrever foi aquele que mais repercutiu do conjunto de seus pensamentos e alçou-se à condição de seu próprio nome.1 Já se falou muito e continua-se ainda a falar bastante do que Saussure declarou sobre a fala. É justamente acerca de um aspecto desses ecos que gostaríamos de refletir aqui, apresentando certos discursos sobre Saussure. Pretendemos
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expor brevemente parte do que foi dito a respeito do CLG, no intuito de esboçar uma interpretação do lugar que lhe atribui a Análise do Discurso (AD) francesa em determinados textos e contextos.2 Como Michel Pêcheux e seu grupo leram Saussure, nas décadas de 1960 e 70? O CLG é então para a Análise do Discurso um ponto de partida ou uma obra a ser recusada? E o que dizem hoje sobre Saussure os estudiosos do discurso no Brasil? São respostas parciais e provisórias a essas questões que formularemos nesta nossa reflexão.
Itinerários do Curso de linguística geral: o que foi dito sobre Saussure Desde que veio a lume, o CLG suscitou variados tipos de interesse, adesão, críticas e recusas. Em distintos contextos, diferentes sujeitos produziram diversos discursos sobre Saussure. Hoje, conhecemos relativamente bem certos percursos de seu pensamento: algumas de suas ideias mais ou menos consoantes com o método histórico-comparativo começaram a circular em Genebra, Leipzig e Paris, a partir do final do século XIX; outras, inscritas na Linguística geral, ganharam o mundo no início do século seguinte, com sua difusão pelo Leste Europeu, principalmente, em Moscou e em Praga, passando, em seguida, por Copenhague e Nova Iorque, até sua volta triunfante a Paris, nos pós-guerra.3 Logo após sua publicação, o Curso foi concebido por alguns linguistas como uma perversão do Saussure “real”, o comparatista, consistindo, portanto, numa obra importante, mas não fundadora. A identificação de certa novidade contida no CLG era uma relativa exceção, que confirmava ser outra a regra quanto à compreensão do pensamento saussuriano. Por volta de quinze anos mais tarde, em dois pontos distintos da URSS, Saussure era interpretado de modo sensivelmente diverso e ambivalente: enquanto os membros do Círculo Linguístico de Moscou acolhiam-no favoravelmente, atribuíam-lhe um caráter inovador e apontavam-lhe uma ou outra inconsistência, os componentes do Grupo de São Petersburgo reconheciam-lhe algum mérito, mas, predominantemente, refutavam-no, alegando seu descaso para com a dimensão social das interações linguísticas (cf. Ageeva, 2009).4 Na França, porém, Saussure será uma presença constante somente a partir da segunda metade do século XX. No interior do “estruturalismo francês”, o CLG torna-se uma referência obrigatória para linguistas, mas também para Lévi-Strauss, Greimas, Althusser, Lacan, Foucault, Barthes e Derrida. Com efeito, a suposta prosperidade do pensamento saussuriano na França configura-se pela raridade
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de sua efetiva “recepção” nas primeiras décadas do século XX e pela presença de uma relativa “herança” nos anos de 1950-60, durante os quais Saussure teria desempenhado o papel de uma “origem adormecida”, cujo despertar possibilitaria uma forma fundamentalmente nova de conceber a língua, o texto, a narrativa, as relações de parentesco, o inconsciente, a moda, o sujeito e tudo mais que fosse constituído de linguagem. Enquanto na primeira metade do século XX, Jakobson e Hjelmslev consideravam o Curso como uma obra fundadora e fundamental, mas não cabalmente desenvolvida, o que exigia seu aperfeiçoamento, no estruturalismo francês prevaleceu a concepção de que o CLG era um texto fundador, fundamental e acabado, do qual se deveria partir e ao qual era preciso opor-se, para tratar de outros fenômenos e domínios (cf. Chiss e Puech, 1999: 33-41; Cruz, 2006: 175). Um aspecto da ambivalência contida nessa interpretação parece intensificar-se no advento de várias teorias linguísticas contemporâneas. Seus proponentes costumam atribuir a Saussure a instauração da Linguística moderna, reivindicam eventualmente seu legado e situam-se mais ou menos em sua ascendência, mas advogam também o dever e a capacidade de ultrapassá-lo. Por um lado, conferem a Saussure o mérito de ter estabelecido a positividade científica; por outro, reclamam a necessidade de eleger como objeto de estudo aquilo que teria sido excluído de suas considerações, ou seja, a fala e a variação linguística, o sujeito, a história e o sentido. Ora, aqui estão duas faces pespegadas em Saussure: a do “pai fundador”, que amorosamente possibilitou a concepção da disciplina, e a do “pai censor”, que odiosamente interditou seu pleno desenvolvimento. Nessas interpretações, não parece haver exatamente um equilíbrio entre a fundação e a censura. Para contemplar o domínio da enunciação, Jakobson crê ser preciso alterar a distinção entre língua e fala, separando a dimensão semiótica da comunicativa, no intuito de integrar esta última aos estudos linguísticos; já Benveniste postula, para tanto, a necessidade de continuar e completar a proposta saussuriana. Embora ambos falem em “integrar” a enunciação, suas propostas são sensivelmente diferentes: no primeiro, há a ideia de uma exterioridade da comunicação em relação à língua; no segundo, prevalece a concepção de uma ligação constitutiva entre a língua e seu uso (Puech, 2005: 101-4). De modo geral, as teorias sociolinguísticas, textuais, pragmáticas e discursivas tendem a enfatizar o que acreditam ser as exclusões e interdições produzidas por Saussure, a despeito do reconhecimento de suas conquistas científicas, ao passo que a Semiótica francesa, derivada de Greimas, parece realçar a filiação ao seu pensamento, ainda que seu escopo não seja a análise dos signos, mas dos processos de significação.
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Eis aí sugeridos alguns dos dizeres sobre Saussure. Resta-nos agora tentar identificar uma ou outra marca do que foi dito pela Análise do Discurso francesa a seu respeito, no intuito de aventar algumas respostas às questões formuladas em nossa introdução.
Dizeres da Análise do Discurso sobre o Curso de linguística geral Logo no início de seu texto “Análise automática do discurso” (AAD 69), Michel Pêcheux fala do “deslocamento conceptual introduzido por Saussure”, ao separar a teoria da linguagem do uso da língua: “a partir do momento em que a língua deve ser pensada como um sistema, deixa de ser compreendida como tendo a função de exprimir sentido; ela torna-se um objeto do qual uma ciência pode descrever o funcionamento” (Pêcheux, 1997a: 62). Com Saussure, a Linguística teria deixado de ser uma “ciência da expressão e de seus meios”, cujo fim era a compreensão do sentido de um texto, para tornar-se uma ciência da língua, cujo objetivo passou a ser a descrição das regras de combinação e substituição de suas unidades. Em seguida, Pêcheux observa que a constituição da cientificidade de um campo de saber mediante a delimitação de seu objeto implica deixar a descoberto o terreno que ela abandona. Aqui ocorre, porém, o retorno do que fora recalcado. Questões como “O que quer dizer este texto? Que significação contém este texto?” continuam a frequentar a Linguística e outras ciências sociais. Segundo Pêcheux: “a Linguística excluiu de seu campo as questões do sentido, da expressão das significações contidas nos textos”; tal fato fez com que essas questões fossem respondidas por várias ciências sociais e insistissem ante a Linguística para sua resolução (Pêcheux, 1997a: 63; 2011: 69). As tentativas de responder a essas perguntas empreendidas por diversas áreas das ciências humanas serão duramente criticadas por Pêcheux, principalmente os “métodos paralinguísticos”. Na perspectiva de Pêcheux, o equívoco fundamental dessas abordagens paralinguísticas (a Antropologia, a Semiologia, a Semiótica e a Semântica estruturais) reside na “homogeneidade epistemológica que se supõe entre os fatos da língua e os fenômenos da dimensão do texto” (Pêcheux, 1997a: 66-7). Na sequência, Pêcheux passa a tratar de passagens do CLG, considerando particularmente a oposição entre língua e fala e o conceito de instituição. De acordo com o filósofo francês, Saussure teria estabelecido “duas exclusões
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teóricas”: a fala e as instituições políticas e jurídicas. A Análise do Discurso condena, principalmente, uma das consequências da dicotomia “língua/fala”, qual seja, o par “sistema vs. liberdade”. Assim, decorreria da oposição saussuriana “a reaparição triunfal do sujeito falante como subjetividade em ato, unidade ativa de intenções que se realizam pelos meios colocados a sua disposição” (Pêcheux, 1997a: 71). A crítica frontal à condição da fala como “liberdade humana” é acompanhada por outra, mais discreta, à autonomia absoluta da língua em relação à sua “exterioridade”. Contudo, a consideração dos dois polos da distinção saussuriana – de um lado, o caráter universal da língua e, de outro, a dimensão individual da fala – pode ser entendida como um dos fatores que permitiram a Pêcheux conceber, com base no materialismo histórico, o âmbito particular do discurso. Talvez pudéssemos vislumbrar aqui o delineamento da ideia, cara à AD, da língua como base relativamente autônoma a partir da qual são produzidos os diversos processos discursivos. Considerando que a análise dos processos discursivos supõe o estudo das relações de força e de sentido presentes em determinadas condições de produção do dizer, a AD não aceita a oposição saussuriana entre os sistemas institucionais jurídicos e políticos e os sistemas institucionais semiológicos. Aos olhos de Pêcheux, tal oposição faria com que o pronunciamento de um deputado na Câmara fosse concebido do ponto de vista de Saussure como a expressão da liberdade do locutor, ao passo que um sociólogo o tomaria como parte de um mecanismo institucional, cujo funcionamento compreende “um sistema de normas nem puramente individuais nem globalmente universais [...] no interior de uma formação social dada” (Pêcheux, 1997a: 76-7). O funcionamento do dizer não é integralmente linguístico e, por essa razão, somente pode ser analisado por meio da consideração dos protagonistas e do objeto do discurso inscritos em certas condições de produção e de sua relação com outros dizeres. Em função da importância que lhe é atribuída, Pêcheux discorrerá detalhadamente sobre as condições de produção, no interior das quais o discurso determina o dizer e produz “efeito de sentidos” entre os interlocutores. É ao refletir sobre a produção dos sentidos que Pêcheux critica a “concepção atomística das significações” e volta a referir-se a Saussure. A teoria do valor está no horizonte, quando se dá a elaboração da noção de “efeito metafórico”, que consiste na abordagem discursiva do “fenômeno semântico produzido por uma substituição contextual” (Pêcheux, 1997a: 93-6). Na esteira do distribucionalismo de Harris e do que mais tarde seria chamado de “a subordinação da significação ao valor”, Pêcheux desenvolve a ideia de que os sentidos não são essenciais às
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unidades x e y, mas derivam da relação que elas estabelecem entre si e do deslizamento de um termo a outro. Tratava-se de uma concepção não essencialista do sentido possibilitada por Saussure, cujo desdobramento encontra-se formulado do seguinte modo: “as palavras mudam de sentido segundo as posições daqueles que as empregam. [...] ‘mudam de sentido’ ao passar de uma formação discursiva para outra” (Pêcheux, 2011: 73). Analisar apropriadamente a produção dos sentidos impõe uma “mudança de terreno”, isto é, exige a adoção de uma perspectiva materialista que a conceba como efeito das “relações sociais, que resultam de relações de classe características de uma dada formação social” (Pêucheux, 2011: 72). Essa tese encontra-se desenvolvida no texto “A semântica e o corte saussuriano: língua, linguagem, discurso” (Haroche et al., 1971), em cujo decurso a presença de Saussure é quase uma obsessão que já se prenuncia no próprio título: seu nome é repetido vinte e uma vezes; o CLG, mencionado em oito ocasiões, mesmo número de reproduções do adjetivo “saussuriano(a)”. Há no texto ao menos três posições em relação ao pensamento de Saussure: a) um reconhecimento de suas conquistas científicas – ele empreendeu um corte epistemológico, fundou a Linguística como ciência, afastando-se das evidências empíricas, e concebeu o “princípio da subordinação da significação ao valor”, cujos efeitos foram a constituição da Fonologia, da Morfologia e da Sintaxe e o “corte pela raiz de qualquer retorno do sujeito, quando se trata de língua” (Haroche et al., 1971: 96); b) uma defesa dessa ruptura, uma referência à relativa desatenção quanto a um de seus aspectos e um ataque àqueles que “em seu nome, procederam, em certa medida, de modo inverso” (Haroche et al., 1971: 94 e 99); e c) a reiteração da crítica endereçada a Saussure por sua adesão à “ideologia individualista e subjetivista da ‘criação’” (Haroche et al., 1971: 98). De fato, o lugar de Saussure no advento da “ordem do discurso” é ao mesmo tempo central e controverso. Enquanto Foucault concebe a “ordem da língua” como um obstáculo à constituição do discurso como objeto de conhecimento,5 Pêcheux a considera como um ponto do qual se deve partir e que se deve ultrapassar. A língua é, segundo Pêcheux, possibilidade para o discurso e lugar privilegiado para sua materialização. Porém, o funcionamento da discursividade não é integralmente linguístico, porque constitutivamente histórico. Foucault afirmava que Saussure era “o fundador da Linguística” (Foucault, 1992: 60), mas não reconhece nele o portador de um pensamento fundamental para o discurso. Na perspectiva de Pêcheux, o CLG configura-se como uma obra fundadora e fundamental, mas igualmente perpassada pelo recobrimento ideológico que põe em xeque a própria
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ruptura que ela aporta. Considerando essa ambivalência, Puech (2005: 109) dirá que em Pêcheux a emergência da “ordem do discurso” somente poderia ocorrer com e contra Saussure. Na década de 1970, Saussure será evocado na França de modo análogo por outros analistas do discurso. É o caso, por exemplo, de Régine Robin (1977), em História e linguística. Em seu primeiro capítulo, antes de apresentar a definição de discurso, tal como se fosse uma condição necessária para fazê-lo, a autora refere-se a Saussure nos seguintes termos: “A Linguística constituiu-se, enquanto ciência, a partir de Saussure – tudo isto é bem conhecido” (Robin, 1977: 24). Na sequência, Robin discorre sobre a distinção entre língua e fala, reiterando duas ideias: essa oposição representa o recobrimento do sistema pelo acidental, da instituição social pela “subjetividade do locutor”; e a Linguística derivada de Saussure permite a descrição dos níveis linguísticos inferiores à semântica. Segundo Robin, o objeto do analista não é “a língua, mas fatos de fala precisos, ficando entendido que convém desembaraçar o termo de suas conotações filosóficas precedentemente evocadas – numa palavra, dos discursos” (Robin, 1977: 25). A afirmação de Robin ecoará duas décadas mais tarde nas palavras de Denise Maldidier: “Michel Pêcheux constitui o discurso como uma reformulação da fala saussuriana, desembaraçada de suas implicações subjetivistas” (Maldidier, 2003: 22); “o discurso reformula a fala, esse ‘resíduo filosófico’, cujas implicações subjetivistas devem ser eliminadas” (Maldidier, 2011: 44). Nesse intervalo, entretanto, as interpretações do papel desempenhado por Saussure na emergência da Análise do Discurso não passarão incólumes pela consolidação da “quarta recepção” do CLG na França (cf. Puech, 2005: 96-7). É por essa razão que, diferentemente do que ocorria outrora, quando a tendência entre os analistas do discurso era a de enfatizar as descontinuidades de Pêcheux em relação a Saussure, Maldidier insiste na importância do mestre suíço para o precursor da AD: “O conceito de discurso é forjado a partir de uma reflexão crítica sobre o corte fundador operado por Saussure e não sobre sua superação”; Pêcheux é “resolutamente saussuriano desde o princípio” (Maldidier, 2011: 44 e 49); “Pêcheux não invoca de forma alguma a ‘superação’ da dicotomia língua/fala. Saussure é, para ele, o ponto de origem da ciência linguística” (Maldidier, 2003: 22). Na própria obra de Pêcheux, há textos em que Saussure é onipresente e duramente criticado, outros em que estranhamente ele não é sequer mencionado, e outros ainda em que é muitíssimo valorizado.6
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Alguns dizeres sobre Saussure de outro lado do Atlântico Após nossa exposição do modo como Saussure foi interpretado por Pêcheux, Robin e Maldidier, em alguns de seus textos, apresentaremos agora, num brevíssimo sobrevoo, o que consideramos ser as posições mais frequentemente tomadas por autores brasileiros no interior da Análise do Discurso em relação ao pensamento saussuriano. Ampliaremos ligeiramente esse nosso espectro mediante uma alusão à Semântica Histórica da Enunciação e ao interacionismo sociodiscursivo, tendo em vista o fato de que, ao considerarem as relações entre língua, história e sociedade, as duas áreas avaliam Saussure de modo distinto. Adiantemos que essas posições não exclusivas distribuem-se num gradiente cujos polos são a enfática censura pelas “exclusões” que Saussure teria promovido e a problemática alegação de que ele seria um precursor dos estudos discursivos e cujo interior comporta referências com finalidade instrutiva, adesões com deslocamento e críticas similares àquelas formuladas nos textos fundadores de Pêcheux e seu grupo. Em Orlandi (1986: 62) encontramos a seguinte passagem: “A noção de discurso desloca a reflexão para além da dicotomia língua/fala ou competência/ desempenho. [...] O discurso não é geral como a língua (ou a competência) nem individual e assistemático como a fala (ou performance). Ele tem a regularidade de uma prática, como as práticas sociais em geral.” Aqui, a alusão à dicotomia língua/ fala desempenha funções epistemológica e didática, uma vez que se distinguem os conceitos oriundos de dois campos de saber, a Linguística e a Análise do Discurso, e define-se negativa e afirmativamente aquele nuclear desta última. Quatorze anos mais tarde, novamente num texto com finalidade didática, a autora reiterará essa posição: “não se deve confundir discurso com “fala” na continuidade da dicotomia (língua/fala) proposta por F. de Saussure” (Orlandi, 2000: 21). Em outros textos, nos quais Orlandi propõe desenvolvimentos à teoria do discurso, observamos a ocorrência de uma crítica a certo aspecto da teoria saussuriana (a separação entre histórico e social) em relação ao qual a AD promoveu um deslocamento, ou seja, sua inscrição conjunta no conceito de discurso, e de sua inspiração num postulado de Saussure para tratar do caráter teórico de seu objeto.7 Diferenças significativas quanto à presença ou ausência e ainda ao posicionamento diante de Saussure em textos brasileiros da Análise do Discurso podem ser, portanto, também provenientes do escopo desses textos. Em dois capítulos de dois livros de uma mesma coleção, quais sejam, “Análise do discurso”, de
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Fernanda Mussalim, e “Teoria do discurso: um caso de múltiplas rupturas”, de Sírio Possenti, há respectivamente referências explícitas ao nome de Saussure e sua ausência. Conforme tipicamente ocorre em textos com finalidade didática, percebemos o enunciador apropriar-se de um dizer originário (avaliado positivamente) dos precursores da teoria, no intuito de transmiti-lo a enunciatários, que já conhecem a existência da disciplina e que ainda não conhecem, ao menos não suficientemente, seus postulados, noções e métodos, estando solicitados a fazêlo seja pelo desejo e/ou pelo dever de conhecer. Esse funcionamento pode ser constatado em Mussalim (2003).8 Em contrapartida, tendo em vista seu propósito distinto, Possenti (2004) faz uma consistente exposição das rupturas epistemológicas que a AD estabelece em relação ao modo como outras disciplinas linguísticas concebem objetos, fenômenos, noções e princípios, que apenas equivocadamente poderiam ser considerados idênticos aos da Análise do Discurso. Para tanto, ao tratar, por exemplo, da especificidade da língua – “A língua não é transparente, mas tem uma ordem própria” (Possenti, 2004: 361) – e do sentido – “o sentido de um enunciado decorre de sua substituibilidade por enunciados equivalentes na mesma formação discursiva” (2004: 373) – para a AD, o autor não faz menções manifestas a Saussure, possivelmente por considerá-las prescindíveis aos leitores que buscam aprofundar-se nos conhecimentos da disciplina. O equilíbrio de julgamento e a reivindicação de legitimação epistemológica observados nas leituras que Pêcheux e Orlandi fazem de Saussure, nas quais há crítica a seus limites, mas também reconhecimento de seus méritos, ou a plausível dispensa de referência explícita a seu nome, conforme fez Possenti, nem sempre estarão presentes nos textos cada vez mais abundantes dos analistas do discurso no Brasil. Em nosso campo de saber, entre iniciantes e, eventualmente, mesmo entre iniciados, não são raros os casos em que somente se reitera a censura cristalizada às pretensas “exclusões” promovidas por Saussure: ele “higieniza” a língua e “exclui” a fala, o sentido, o sujeito e a exterioridade... Considerando essa postura, talvez pudéssemos supor que os arautos de uma disciplina tendem, às vezes, a ser mais enfáticos que seus próprios precursores e principais protagonistas. A expressão de avaliações sobre o pensamento saussuriano em termos absolutos não será, porém, exclusividade de alguns de nossos analistas do discurso. Saussure será concebido em outros campos de saber ora como censor (de domínios e fenômenos que considerou a seu modo), ora como fundador (de problemáticas que não faziam efetivamente parte de seu tempo – ao menos não da maneira como são elaboradas atualmente). Num dos textos em que apresenta a proposta de uma “Semântica Histórica da Enunciação”, Guimarães (1995) faz
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reiteradas referências às “exclusões” promovidas por Saussure. Já em seu prefácio, encontramos os seguintes fragmentos: “[...] fizemos nesta obra um percurso que trabalha as exclusões de Saussure no Curso de linguística geral [...].”; “Este é, então, um livro que analisa a constituição da Semântica como o trabalho de incluir o excluído por Saussure no objeto dos estudos sobre a linguagem”; “E do meu ponto de vista [“os diálogos que a Linguística estabeleceu para construir a Semântica”] identificaram questões que me levaram ao que tenho denominado Semântica Histórica da Enunciação, também um gesto de incluir o excluído saussuriano” (Guimarães, 1995: 7). Num capítulo emblematicamente intitulado “O corte saussuriano e a significação”,9 constatamos que o referido “corte” equivale à ruptura epistemológica do CLG “com a posição historicista do século XIX”, mas diz respeito sobretudo às exclusões que ele teria produzido: “O corte saussuriano exclui o referente, o mundo, o sujeito, a história” (Guimarães, 1995: 20). “La langue n’est créée qu’en vue du discours” (“A língua somente é criada em função do discurso.”). Por outro lado, a interpretação radical deste e de outros enunciados de Saussure, nos quais ele afirma a vocação da língua ao discurso, no interior de certos excessos da “quarta recepção” do CLG na França, conduziu pesquisadores europeus (principalmente, Bouquet e Bronckart) e brasileiros, entre outros, a sustentarem que o mestre genebrino seria um dos precursores dos atuais estudos discursivos. Com vistas somente a ilustrar a presença relativamente bem disseminada no Brasil dessa leitura de Saussure, que o concebe como precursor de uma abordagem sociodiscursiva da linguagem, reproduzimos a seguir um fragmento da chamada para o IV Encontro Internacional do Interacionismo Sociodiscursivo, que se encontra no site da Alab:10 “O Encontro também acolherá trabalhos de tradução e edição de textos fundadores da orientação interacionista social em ciências humanas (L. S. Vygotski, V. Volochinov, K. Bühler, F. de Saussure, etc.)”. De modo análogo ao que ocorre alhures, ainda que por aqui possa haver certas especificidades, em vários textos produzidos no Brasil, as referências a Saussure e ao CLG distribuem-se em formas bastante distintas. No surgimento e na consolidação do saber, a memória é constitutiva de sua atualidade e de sua projeção. Em boa medida alheios à cronologia, são construídos a lembrança e o esquecimento, a depender de contingências que lhe são exteriores e de interesses que lhe são intrínsecos. Assim, o presente não herda o passado, mas o fabrica à sua maneira. Por essa razão, a obra de Saussure não poderia passar ilesa por tempos, espaços e campos diversos; talvez ela seja, antes, o efeito de suas interpretações: “é ilusório pensar que os sentidos do texto de Saussure estão fechados nos textos de Saussure” (Orlandi, 1996: 78).
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Saussure está morto, viva Saussure! Sabemos que nossa fala sempre guarda algo de excepcional, porque o discurso é a diferença entre a ampla possibilidade do dizer e sua rarefeita efetivação. Além disso, Foucault também nos ensina que naquilo que é dito haverá enunciados que passarão sem deixar vestígio e outros que estarão destinados a entrar na memória dos homens. Ao serem retomados, estes últimos podem ser alçados à condição de verdade a ser admitida e propagada ou de engano a ser rejeitado e excluído; podem também ser parcialmente consentidos e/ou ainda, mesmo que relativamente despojados de estatuto de validade, ecoar em outros dizeres de diversos modos. A fala de Saussure sobre a fala humana foi constantemente retomada e ressurgiu no decurso do tempo, em diferentes lugares, sob a forma dessas distintas condições. Seu dizer sobre nossa linguagem estabeleceu “uma possibilidade indefinida de discursos”, tal como afirma Foucault (1992) a propósito dos “fundadores de discursividade”. Ali mesmo, porém, conforme dissemos, o filósofo francês atribuíra a Saussure a qualidade de “fundador de cientificidade”. Ao passo que o dizer deste segundo encontra-se no mesmo plano das transformações que ele torna possíveis e compreende “redescobertas” e “reatualizações” do que fora dito, o do primeiro proporciona um “retorno a”, que produz outros dizeres ante os quais se constitui como falta e excesso, porque se presume haver na discursividade fundadora ao mesmo tempo um vazio e uma plenitude. Após traçar as diferenças entre a “instauração discursiva” e a “fundação científica”, Foucault acrescenta que elas não são necessariamente incompatíveis. Embora talvez já fosse possível também conceber Saussure no contexto do estruturalismo francês dos anos de 1960-70 como um “fundador de discursividade”, é compreensível que Foucault o tenha tomado como “fundador” da “ciência-piloto”. Decerto, o CLG produziu “redescobertas” e “reatualizações” da ciência, mas também suscitou dizeres sob a forma de “retornos”, porque nele foram e continuam a ser concebidas lacunas e demasias. O Curso é, pois, “um objeto histórico”. O adjetivo do sintagma equivale aos “clássicos”, que “não deixamos de reler, porque nos dizem, de uma só vez, o seu tempo e a novidade que desejam introduzir”. Já seu substantivo remete ao fato de ele suscitar “paixão, envolvimento ou, ao menos, interesse suficiente para trabalhar para conquistá-lo, sem esperança de, verdadeiramente, conseguir isso”. Talvez ainda de distintos modos duas mortes tenham contribuído para que tanto se fale do que disse Saussure sobre a fala humana: a do autor, que devolveu à escrita o seu devir, conforme diz Barthes, e a do homem, que eliminou “toda possibilidade de resposta às críticas e objeções” e “deixou, com efeito, o campo
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livre a seus exegetas, bem como a seus detratores” (cf. Normand, 2009: 20 e 113). Não podemos fugir aqui a esse último paradoxo: essas mortes não representaram o fim de Saussure, mas certo começo de uma vida muito longa e produtiva. Mestres como ele jamais morrerão enquanto continuarem a nos ensinar que falamos tanto de nossa fala para reafirmarmos, em última instância, um dos caros aspectos de nossa condição humana.
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“‘Curso de linguística geral’: um texto chamado ‘Saussure’” (Normand, 2009: 15). É nessa direção que se inscrevem os trabalhos de Puech (2005), Cruz (2006) e Piovezani (2008). Após descrever mais detalhadamente esse trajeto do pensamento saussuriano, distinguindo quatro recepções do CLG na França, Puech (2005: 96-97) conclui: i) que suas ideias foram consideradas marginais durante aproximadamente quatro décadas na França, ii) que elas apenas tardiamente suscitaram ali um amplo interesse da geração “estruturalista” e iii) que sua interpretação nesse contexto francês foi intermediada por outras leituras. Alhures, Puech já afirmara oralmente que as recepções do Curso demonstram emblematicamente um dos mais importantes princípios semiológicos ali mesmo postulados: “o tempo altera todas as coisas; não existe razão para que a língua escape a essa lei universal” (Saussure, 2000: 91). Entre os membros do primeiro círculo, encontrava-se, por exemplo, Jakobson; entre os do segundo, estavam Bakhtin e Volochinov. “O discurso se anula, assim, em sua realidade, inscrevendo-se na ordem do significante” (Foucault, 2000: 49). Saussure não é citado em “Há uma via para a linguística fora do logicismo e do sociologismo?”, escrito com Gadet e publicado em 1977; e é superestimado em “Sobre a (des)construção das teorias linguísticas”, publicado em 1982. Para verificar como Saussure é interpretado nesses e em outros textos de Pêcheux, ver Cruz (2006). “Um deslocamento fundamental, no estudo da linguagem, permite passar do dado para o fato. Este deslocamento, por sua vez, nos coloca no campo do acontecimento linguístico e do funcionamento discursivo. [...] Na realidade, estou trabalhando aqui uma distinção saussuriana, a que distingue forma/ substância [...], o que nos permite passar para outra relação, desta vez entre forma abstrata, forma material e substância” (1996: 36-37). “A linguística saussuriana, fundada sobre a dicotomia língua/fala – a primeira concebida como abstrata e sistêmica [...]; a segunda, não objetivamente apreendida por variar de acordo com os diversos falantes [...] – permitiu a constituição da Fonologia, da Morfologia e da Sintaxe, mas não foi, segundo Pêcheux (1988), suficiente para permitir a constituição da Semântica. [...] O autor retoma esta dicotomia saussuriana para inscrever os processos de significação num outro terreno, mas não concebe nem o sujeito, nem os sentidos como individuais, mas como históricos, ideológicos” (1988: 105). Registremos ainda que nem sempre a “apropriação” do dizer dos precursores se dá sem derivas: enquanto Haroche et al. (1971: 96) sustentam que em Saussure “a significação é da ordem da fala e do sujeito, apenas o valor concerne à língua”, Mussalim (2003: 105) afirma que “A teoria do valor de Saussure, segundo a qual os signos se definem negativamente, subordina a significação ao valor, de onde decorre que a significação, para Saussure, é concebida como sistêmica.” Também em passagens posteriores do texto, é produzido um efeito de legitimação: “A Semântica Argumentativa é um caso extremamente interessante de busca da inclusão do excluído de Saussure no próprio objeto saussuriano”; e “a reintrodução da exterioridade saussuriana se dá como questão linguística em abordagens como as de Benveniste e Ducrot, por exemplo, na linha prenunciada por Bréal ao tratar do elemento subjetivo. Mas essas posições mantêm a exclusão da história. Para nós interessa, exatamente, a inclusão da história” (Guimarães, 1995: 49 e 65-6). Associação de Linguística Aplicada do Brasil: . Acesso em: 3 mar. 2013.
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Do signo ao discurso: a complexa natureza da linguagem Leci Borges Barbisan
A publicação do Cours de linguistique générale e de textos manuscritos de Ferdinand de Saussure transcritos no livro Ecrits de linguistique générale têm desencadeado, há muito anos e até os dias de hoje, um grande número de trabalhos que analisam, de diferentes formas, o processo de criação, pelo mestre de Genebra, de conceitos sobre a linguagem. Além desses trabalhos, teorias têm sido desenvolvidas, também há algum tempo, fundamentadas em alguns desses conceitos. Na página 277 dos Ecrits de linguistique générale encontramos a “Nota sobre o discurso”. Depois de tudo o que já foi escrito sobre o pensamento de Saussure, os três parágrafos que compõem a “Nota” parecem não trazer nenhuma novidade. Conceitos que conhecemos, desde o Curso de linguística geral, comparecem aí, sem nenhuma surpresa. Entretanto, uma leitura atenta desse texto mostra o quanto é complexa a natureza da linguagem. É dessa complexidade e dessa natureza que pretendemos tratar aqui. Para isso, vamos buscar inicialmente alguns conceitos de Saussure no Cours de linguistique générale. Em um segundo momento, procuraremos o auxílio da Semântica Argumentativa criada por Oswald Ducrot. Esperamos chegar, desse modo, a algumas reflexões sobre o que, a nosso ver, constituiria a própria natureza da linguagem.
A procura de um esclarecimento: a explicação de Saussure Na “Nota sobre o discurso”, Saussure trata da relação entre língua e discurso. Vê, na língua, conceitos isolados revestidos pela forma linguística e se pergunta que ação é necessária – utiliza também termos como “jogo”, “condição”, “ope-
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ração”, a nosso ver referindo-se a ação – para que signos construam um discurso. Pretendemos chegar à explicação a que nos propomos, olhando inicialmente o terceiro parágrafo, no qual o termo discurso é definido como resultado do elo entre conceitos da língua. Escreve Saussure: A sequência dessas palavras [boi, lago, céu, forte, vermelho, triste, cinco, fender, ver] por rica que seja, pelas ideias que evoca, não indicará nunca a um indivíduo humano que outro indivíduo, ao pronunciá-las, quer significarlhe alguma coisa. O que é preciso para que tenhamos a ideia que queremos significar alguma coisa usando termos que estão à disposição na língua? É a mesma questão a de saber o que é o discurso, e, à primeira vista, a resposta é simples: o discurso consiste, mesmo que rudimentarmente, e por caminhos que ignoramos, em afirmar um elo entre dois dos conceitos que se apresentam revestidos pela forma linguística, enquanto a língua, previamente, não faz mais do que realizar conceitos isolados, que esperam ser postos em relação entre eles para que haja significação de pensamento. (Saussure, 2002: 275; tradução nossa)1
Queremos nos deter primeiramente em uma palavra desse parágrafo. Lemos nele que conceitos revestidos pela forma linguística (signos) esperam ser postos em relação entre eles para constituírem discurso. A questão que nos colocamos diz respeito ao sentido assumido pelo termo “esperam” (attendent, em francês). Dentre os sentidos registrados pelo Petit Robert (p. 112), escolhemos, neste contexto, o de “aguardar algo que deve se produzir”. O termo “prontos” (em francês prêts), empregado por Saussure no segundo parágrafo referindo-se a conceitos da língua, de acordo com a escolha que fizemos dentre os diferentes sentidos apresentados no mesmo dicionário, aponta para “ser capaz”, “estar preparado”, “ser suscetível”. O termo “prontos” estaria, então, indicando a propriedade que os conceitos da língua apresentam de conter neles uma significação que, relacionada à de outros conceitos, levam ao discurso. A aproximação entre as significações de “prontos” e de “esperam” parece estar autorizando o leitor a entender que os conceitos da língua, tendo em sua natureza as propriedades de expressar significação e de se relacionar com outros conceitos, esperam, porque estão prontos, já constituídos na língua, ser postos em ação por um indivíduo humano (como diz Saussure) para expressar seu pensamento para outro indivíduo. Em vista das afirmações de Saussure – e se a leitura aqui apresentada é correta – seria possível pensarmos que, se os signos da língua, isto é, conceitos revestidos pela forma linguística, são dotados das propriedades de significar e de
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se relacionar com outros signos, então os signos da língua, por sua própria natureza, contêm neles o discurso. Estaria assim explicada a afirmação de que língua e discurso são indissociáveis, e que a língua só é criada em vista do discurso, como podemos ler no primeiro parágrafo da “Nota”: “A língua só é criada em vista do discurso, mas o que é que separa o discurso da língua, ou o que é que, em certo momento, permite dizer que a língua entra em ação como discurso?” (tradução nossa).2 Mas, continua Saussure, para que constituam discurso, conceitos da língua precisam ser postos em ação. Um melhor esclarecimento do que seja ação encontrase no segundo parágrafo da “Nota”, em que se leem os termos “operação”, “jogo”, “condições”, que poderiam de algum modo referir-se à ideia de ação. Saussure se pergunta, no segundo parágrafo, que ação seria essa: Conceitos variados estão aí, prontos na língua (isto é, revestidos por uma forma linguística) tais como boi, lago, céu, forte, vermelho, triste, cinco, fender, ver. Em que momento ou em virtude de que operação, de que jogo que se estabelece entre eles, de que condições eles formarão o DISCURSO? (Saussure, 2002: 275; tradução nossa)3
A resposta está no terceiro parágrafo: o discurso consiste em afirmar um elo entre conceitos isolados que se encontram revestidos pela forma linguística. O elo entre conceitos isolados é estabelecido pela relação entre eles. Esse é o modo de ação que se produz entre conceitos para a constituição do discurso. Saussure distingue duas esferas de relação na linguagem: no discurso entende que as relações são fundamentadas no caráter linear da linguagem, portanto in praesentia. Pertencem ao domínio da fala, caracterizada pela liberdade de combinação entre signos. Na língua, os signos se associam na memória, in absentia, tanto pelo conceito quanto pela imagem acústica. Voltando à “Nota sobre o discurso”, no terceiro parágrafo Saussure diz: “o discurso consiste, mesmo que rudimentarmente, e por caminhos que ignoramos, em afirmar um elo entre dois dos conceitos que se apresentam revestidos pela forma linguística”. Então, nos perguntamos: que “caminho” permitiria explicar o elo entre signos para a produção do discurso? Ou seja, como o signo, que se caracteriza por conter significação e por ter a capacidade de se relacionar com outros signos da língua, se torna discurso? Como, enfim, se realiza a ação pela qual o signo constrói discurso?
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Certamente a noção de valor deve ser relembrada aqui. No Curso de linguística geral, na página 159, ao tratar do aspecto conceitual do valor linguístico, Saussure apresenta o que seria um paradoxo: o conceito é a contrapartida da imagem acústica e, por outro lado, a relação que liga conceito e imagem acústica é a contrapartida de outros signos da língua. Portanto, o valor de um signo decorre da presença simultânea de outros signos da língua. Então, Saussure se pergunta: como é possível que o valor se confunda com a significação? E responde que todos os valores são constituídos por algo diferente que pode ser trocado, e por algo semelhante que pode ser comparado com outro. Assim, o conteúdo de um signo depende dos signos que existem fora dele. É porque faz parte de um sistema que o signo contém não só uma significação, mas principalmente um valor que decorre do sistema. O valor de um signo é um conceito que se define negativamente por sua relação com outro signo. Então, valores são o que outros não são. Consequentemente, ao se dizer que um signo significa pela relação entre seu conceito e sua forma linguística, não se exprime o fato linguístico na sua essência. É pelo valor que a língua se torna discurso. Mas não vemos ainda como se realiza a operação que faz com que o signo constitua discurso, considerando-se as noções de relação e de valor. Não vemos como as relações de semelhança e de diferença entre signos produzem sentidos para a expressão do pensamento, no discurso. É para Oswald Ducrot que passaremos, a seguir, a tarefa de, apoiado em sua Semântica Linguística, fornecer-nos uma possibilidade de resposta. Tentaremos, a partir de alguns de seus textos, recuperar o caminho por ele traçado, para assim chegarmos a uma possível explicação.
Uma possível resposta: o olhar de Ducrot sobre a natureza da linguagem Oswald Ducrot, professor pesquisador da École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, comenta, no capítulo que escreveu para o livro intitulado Nouveaux regards sur Saussure, como, na qualidade de conhecedor da Filosofia clássica, ao ler o Curso de linguística geral, encontrou a noção de valor que o lançou na pesquisa linguística, que ele nunca mais abandonou. Na noção de valor, o filósofo Ducrot viu a alteridade, criada por Platão em O sofista, a qual, segundo ele, estaria fundamentando a teoria saussuriana. No “Prefácio” escrito
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para o livro O intervalo semântico, de autoria de Carlos Vogt, publicado em 2009, Ducrot retoma o que Platão disse em seu diálogo, quando, ao tratar das categorias da realidade (o Movimento, o Repouso, o Mesmo e o Ser), apresenta a categoria do Outro, que se distingue das demais porque está em todas as categorias. Cita Platão: se cada categoria “é diferente das demais, não é em virtude de sua própria essência, mas de sua participação na natureza do Outro” (Platão, 1993, 255e). Ducrot continua, na página 10 do “Prefácio”: “a diferença entre o Movimento e o Repouso é constitutiva dessas mesmas noções. O Movimento é aquilo que ele é pelo fato de que ele é outro, diferente do Repouso e do Mesmo”. Nestor-Luis Cordero, que traduziu O sofista para o francês, explica a alteridade de Platão no “Prefácio” de sua tradução: as coisas existem porque têm poder de comunicação. É na comunicação que cada coisa constitui sua essência. Identidade e diferença são princípios que definem cada coisa. Cada coisa é idêntica a ela mesma, mas é também diferente das outras. Há um olhar para dentro e para fora. O lado exterior é o início da “região do outro”, em relação a alguma coisa. Então, cada coisa não é só o que ela é; ela é também diferente do que ela não é. No entender de Ducrot, no capítulo sobre o valor, Saussure trouxe para a linguagem o que Platão disse sobre a alteridade ao tratar das categorias da realidade. Diz Ducrot (2009: 11): “o valor de uma palavra é o que a opõe às outras. Indo mais longe, é o de se opor às outras. Seu ser é ser outro”. Estaria mostrando isso o fato de que uma função fundamental na linguagem é a da intersubjetividade, explicada do seguinte modo: É o lugar onde os indivíduos se confrontam, o lugar onde encontro outrem [...], esse outro que me constitui a mim mesmo, porque é somente através dele que posso me ver e é através do seu reconhecimento que posso me conhecer.
Em vista disso, ensina Ducrot, a realidade linguística é fundamentalmente opositiva, e é assim que entendemos Saussure. Foi, pois, fundamentado nessa noção que Ducrot criou e desenvolveu uma teoria semântica, ainda hoje em construção, sem nunca se afastar do princípio básico da alteridade. Mas continuamos procurando resposta para a pergunta: qual é o caminho pelo qual relação e valor, como propriedades do signo linguístico, conduzem ao sentido no discurso? Perguntando a Ducrot: como podemos explicar esse “movimento”, servindo-se da mesma fundamentação filosófica que apoiou a teoria saussuriana? Afirmando que sua filiação a Saussure está em admitir que o significado de um signo consiste nas relações entre signos, Ducrot escolhe estudar a relação
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entre significados (conceitos), não entre significantes (imagens auditivas), o que lhe permite construir uma teoria semântica que toma como objeto de estudo a língua, na qual vê o valor expresso por relações sintagmáticas, in praesentia, por meio de encadeamentos denominados argumentações. Afirma, então, que num encadeamento argumentativo do tipo signo A portanto signo C, como em: estudioso, portanto aprovado O sentido de A (estudioso) contém nele a indicação de que ele deve ser completado por C (aprovado). Na Primeira Conferência proferida por Ducrot, na Universidade de Cali, na Colômbia, em 1988, publicada em 1990, encontramos a afirmação de que o signo indica antecipadamente sua continuação. O signo contém, na língua, uma significação (conceito) que orienta para uma continuação pela relação que estabelece com outro signo. O encadeamento, construído pela relação entre os dois signos, constitui o sentido do enunciado, resultante do encadeamento. Consequentemente, são os signos que, pela sua significação, indicam que sequência pode ser-lhes encadeada. Esse é o valor argumentativo do signo produzido pela relação entre A e C. A significação de A pode ser encadeada a C pelo conector portanto, mas também pelo conector no entanto, como em: estudioso no entanto não aprovado. O sentido de A não se define independentemente do fato de que orienta para C, porque C se apresenta como já incluído em A. O sentido de A, por isso, só pode ser entendido pelo fato de que conduz a C. Fora dessa relação, fora desse encadeamento, A e C não significam nada, não expressam pensamentos. Relacionados num mesmo encadeamento, A e C constituem uma ideia única. Não há, pois, passagem do sentido de um signo A para o sentido de um signo C; há, ao contrário, um sentido único construído pela relação entre A e C. Entendemos, com isso, que os signos da língua são argumentativos e que, consequentemente, a argumentação, do modo como é definida por Ducrot, está na própria língua. De onde o nome: Teoria da Argumentação na Língua. Já Saussure, ao tratar do valor linguístico, explica que os signos relacionamse por semelhança e por diferença. Perguntamo-nos: como Ducrot explica essas relações pela sua Teoria da Argumentação na Língua? Em seu texto de 2006, encontramos a resposta: as argumentações que constituem o sentido de um signo podem estar ligadas a ele de dois modos. De modo externo, o signo “estudar”, por exemplo, é um componente do encadeamento em que se encontram relacionados S1(estudar) e S2 (ser aprovado):
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estudar portanto ser aprovado ou S2 (ser aprovado) e S1 (estudar): ser aprovado portanto estudar, isto é, S1 (estudar) estará em uma das extremidades do encadeamento. Essas são as formas de continuação à direita ou à esquerda do signo, relacionando significações semelhantes. São argumentações denominadas externas. Um encadeamento pode também ser atribuído a um signo de modo interno, ao tornar-se uma paráfrase do sentido desse signo. Nesse caso, o signo não faz parte do encadeamento e põe em relação outros signos, cujos sentidos são distintos dele. Por exemplo: perigo portanto precaução que relaciona signos com significações diferentes, que compõem a argumentação interna de “prudente”.
Para terminar A Semântica Argumentativa, concebida por Oswald Ducrot e Jean-Claude Anscombre, é continuada atualmente por Oswald Ducrot e Marion Carel pela Teoria dos Blocos Semânticos. Esta radicaliza os fundamentos da Semântica Argumentativa, desde sempre constituídos pela noção de valor, tal como foi proposto por Saussure, com base na noção de alteridade criada por Platão em seu diálogo O sofista. Diríamos que Ducrot indica um caminho possível para compreendermos como signos, relacionados com outros signos, por semelhança ou por diferença, tornam-se capazes de expressar pensamentos, na esfera do discurso. Repetiríamos, então, que o signo prevê o discurso porque já contém nele a propriedade de orientar para continuações possíveis (Ducrot, 1990), permitindo certa liberdade de combinações (Saussure, 1995: 172) ao locutor, que o emprega para interagir com outro locutor. Assim constituído, o signo permite escolhas para a construção de sentidos possíveis por meio de determinadas continuações, e consequentemente impede outras que não produzirão nem semelhanças, nem diferenças entre elas. Talvez não seja impossível afirmarmos que é nessa propriedade de que são dotados os signos – propriedade que os leva a diferentes relações possíveis, por semelhança ou por diferença, com outros signos da língua – que identificamos a própria natureza da linguagem. Seria essa complexa natureza que estaria explicando os diferentes sentidos que um signo pode, às vezes surpreendentemente, adquirir no discurso.
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“La suite de ces mots, si riche qu’elle soit, par les idées qu’elle évoque, n’indiquera jamais à un individu humain qu’un autre individu, en les prononçant, veuille lui signifier quelque chose. Que faut-il pour que nous ayons l´idée qu’on veut signifier quelque chose en usant des termes qui sont à disposition dans la langue? C’est la même question que de savoir ce qu’est le discours, et à première vue la réponse est simple: le discours consiste, fût-ce rudimentairement, et par des voies que nous ignorons, à affirmer un lien entre deux des concepts qui se présentent revêtus de la forme linguistique, pendant que la langue ne fait préalablement que réaliser des concepts isolés, qui attendent d’être mis en rapport entre eux pour qu’il y ait signification de pensée.” “La langue n’est créée qu’en vue du discours, mais qu’est-ce qui sépare le discours de la langue, ou qu’est-ce qui, à un certain moment, permet de dire que la langue entre en action comme discours?” “Des concepts variés sont là, prêts dans la langue (c’est-à-dire revêtus d’une forme linguistique) tels que boeuf, lac, ciel, rouge, triste, cinq, fendre, voir. À quel moment ou en vertu de quelle opération, de quel jeu qui s’établit entre eux, de quelles conditions, ces concepts formeront-ils le DISCOURS?”
Bibliografia C ORDERO, Nestor-Luis. Introduction. In: P LATON. Le Sophiste. Paris: Flammarion, 1993. D UCROT, Oswald. Polifonía y argumentación. Cali: Universidad del Valle, 1990. _____. Argumentation rhétorique et argumentation linguistique. In: DOURY, Marianne; MOIRAND, Sophie (orgs.). L’Argumentation aujourd’hui. Paris: Presses Sorbonne Nouvelle, 2004. _____. La Sémantique Argumentative peut-elle se réclamer de Saussure? In: SAUSSURE, Louis de (org.). Nouveaux regards sur Saussure. Genève: Droz, 2006. _____. Prefácio. In: V OGT, Carlos. O intervalo semântico. Campinas: Unicamp, 2009. P LATON. Le Sophiste. Paris: Flammarion, 1993. R EY, Alain. Le Petit Robert: dictionnaire alphabétique et analogique de la langue française. Paris: Robert, 1986. S AUSSURE, Ferdinand de. Cours de linguistique générale. Paris: Payot, 1995. _____. Écrits de linguistique générale. Paris: Gallimard, 2002.
Os autores
Carlos Piovezani é professor adjunto do Departamento de Letras e do Programa de Pós-graduação em Linguística da Universidade Federal de São Carlos, especialista em Análise do Discurso e um dos coordenadores do Laboratório de Estudos do Discurso (Labor/UFSCar). Além de ser organizador de alguns livros, tais como Legados de Michel Pêcheux (Contexto, 2011), é autor de diversos artigos e capítulos de livros publicados no Brasil e no exterior. Cristina Altman é doutora em Linguística pela Katholieke Universität Leuven (Bélgica) e pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente é professora titular do Departamento de Linguística da USP, onde atua desde 1983. Suas principais linhas de atuação de publicação são em historiografia linguística dos séculos XVI ao XX. Eliane Silveira é professora na graduação e pós-graduação da Universidade Federal de Uberlândia, tem doutorado em Linguística pela Unicamp e pósdoutorado na Nouvelle Sorbonne. Atualmente coordena o Grupo de Pesquisa Ferdinand de Saussure (CNPq). Hozanete Lima é professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Atua no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, orientando mestrandos e doutorandos. Publicou recentemente diversos artigos, entre eles “No (per)curso de Ferdinand de Saussure a hetero-dimensão é fundante”. Participou em 2011 da organização do evento Simpósio Nacional sobre os Manuscritos de Ferdinand de Saussure. Integra o Grupo de Pesquisa Escritura, Texto e Criação (CNPq) e o Laboratório do Manuscrito Escolar – L’ÂME, coordenados por Eduardo Calil.
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José Luiz Fiorin é mestre em Linguística pela Universidade de São Paulo e doutor em Linguística pela mesma universidade. Fez pós-doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris) e na Universidade de Bucareste. Fez livre-docência em Teoria e Análise do Texto na Universidade de São Paulo. Atualmente é professor-associado do Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Foi membro do Conselho Deliberativo do CNPq (2000-2004) e representante da Área de Letras e Linguística na Capes (1995-1999). Além de muitos artigos em revistas especializadas, publicou diversas obras, como Elementos de análise do discurso e Em busca do sentido; foi organizador de vários livros, entre os quais Introdução à linguística (volumes I e II) e África no Brasil; publicou também capítulos nos livros Comunicação e análise do discurso, Enunciação e discurso, Bakhtin: outros conceitos-chave e Ethos discursivo, todos pela Editora Contexto. Leci Borges Barbisan é mestre em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, doutora em Didactique des langues pela Université de Grenoble III, França, e pós-doutora pela École des Hautes Études em Sciences Sociales de Paris. É professora titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, onde atua na área de Semântica Linguística, desenvolvendo atualmente estudos e pesquisas concernentes a discurso, com apoio na Teoria da Argumentação na Língua e na Teoria dos Blocos Semânticos, criadas por Oswald Ducrot e Marion Carel. É autora de artigos e capítulos de livros e bolsista Produtividade em Pesquisa do CNPq. Marcio Alexandre Cruz é professor da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Alagoas. É mestre em Ciências da Linguagem e Tradução pela Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris III e doutor em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Alagoas. Em 2004/2005, quando de seu estágio doutoral na Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris III, abandona seus estudos em Aquisição da Linguagem para se dedicar à História e Epistemologia das Ciências da Linguagem. Desenvolve atualmente pesquisa apoiada pelo CNPq em torno das recepções do pensamento saussuriano e da dimensão histórica e social dos fatos de língua em Saussure. Maria Fausta Pereira de Castro é professora titular do Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. É mestre em Psicologia pela Universidade de Montpellier (França), doutora pela
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Unicamp, com uma tese sobre a argumentação na fala de crianças. Coordena o Grupo de Pesquisa em Aquisição de Linguagem (GPAL), do IEL/Unicamp, e é pesquisadora do CNPq. Nos últimos anos tem se dedicado ao desenvolvimento de uma reflexão sobre o conceito de língua materna e a uma articulação entre a teoria saussuriana sobre o tempo e a mudança linguística e a teorização em aquisição de linguagem. Maria Francisca Lier-DeVitto é professora titular e pesquisadora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (Lael), do Departamento de Linguística da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Possui graduação em Letras Anglo-Germânicas pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, mestrado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e doutorado em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas. Tem formação na área de Linguística, com ênfase em Teoria Linguística e em Aquisição e Patologias da Linguagem. É coordenadora do Comitê de Pesquisa da Divisão de Educação e Reabilitação dos Distúrbios da Comunicação (Derdic/PUC-SP) e pesquisadora CNPq e líder do Grupo de Pesquisa-CNPq Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem. É membro fundador do Núcleo de Formação e Clínica de Linguagem (NFCL). Mônica Nóbrega é professora do curso de graduação e Pós-graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba. Possui graduação em Letras pela Universidade Federal da Paraíba (1988), mestrado em Linguística Aplicada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e doutorado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Tem experiência na área de Linguística, com ênfase na interface Linguística e Psicanálise, atuando principalmente nos seguintes temas: psicanálise lacaniana, linguística saussuriana, produção de sentidos, sistema, discurso e sujeito. Raquel Basílio é professora do curso de Letras da Universidade Federal da Paraíba. Doutora em Letras pela UFPB, com experiência na área de Linguística, desenvolve trabalhos voltados para a análise conceitual da teoria saussuriana e na construção de um arcabouço teórico-metodológico de investigação do fenômeno da analogia. Tem interesse na área de Educação a Distância. É especialista em Educação a Distância pelo Senac-Nacional. Atualmente é ligada ao Projeto Ateliê de Textos Acadêmicos (ATA) PNPD/Capes e está vinculada ao Grupo de Estudos em Letramentos, Interação e Trabalho (Gelit).
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Valdir do Nascimento Flores é mestre em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, doutor em Linguística pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, pós-doutor pela Université de Paris XII Val-de-Marne e pela Université de Paris X Nanterre. Atualmente, é professor-associado de Linguística e Língua Portuguesa do curso de graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professor e orientador do Programa de Pós-graduação em Letras da mesma Universidade. É autor de livros, capítulos de livro e artigos. Entre eles, destacam-se: Introdução à linguística da enunciação; Enunciação e gramática; Dicionário de linguística da enunciação, todos publicados pela Editora Contexto. É bolsista Produtividade em Pesquisa do CNPq.