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Portuguese Pages 236
Recife, 2021
@roupa_decinema @2021 Ana Cecília Drumond Organização Ana Cecília Drumond Orientação André Antônio Barbosa Entrevistas Ana Cecília Drumond e Julio Cavani Transcrição Jean Santos e Sarah Coutinho Projeto Gráfico e Diagramação Silvia Guimarães Revisão Thiago Corrêa Ramos Este livro segue o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa
Ana Cecília Drumond
Vacatussa
Catalogação na fonte: Renata Santana CRB 15/689 - PB R861
Roupa de cinema: o design de figurino no audiovisual pernambucano Roupa de cinema: o design de figurino no audiovisual pernambucano [recurso eletrônico] / Ana Cecília Drumond (org.). – Recife: Vacatussa, 2021. Dados eletrônicos (1 arquivo : 74,9 MB) Autores: Beto Normal; Rita Azevedo; Andrea Monteiro... [et al]. Livro eletrônico. Modo de acesso: World Wide Web: www.vacatussa.com.br ISBN e-book: 978-65-992370-5-8 1. Cinema - História. 2. Figurino. 3. Audiovisual - Pernambuco. I. Título.
CDD 792.026 (918.134) CDU 791.43
Para Odila Drumond, naturalmente. (in memoriam)
Agradecimentos Ao figurino, formado não só por figurinistas, mas preenchido por assistentes, produtoras, camareiras, costureiras, modelistas e motoristas que embarcam nessa viagem, entre tecidos, máquinas de costura, linhas e agulhas, criando roupas que sacodem nossa imaginação e ajudam a esquecer o cotidiano monótono. Às colegas e os colegas de profissão, Andrea Monteiro, Babi Jácome, Beto Normal, Chris Garrido, Joana Gatis, Libra, Maria Esther de Albuquerque, Paulo Ricardo, Rita Azevedo e Sosha por compartilharem suas vivências de cinema. Esta contribuição não tem preço e, se não fossem seus relatos, este livro não seria possível. A Julio Cavani, grande amigo e parceiro desde o início nesta aventura, a André Antônio, pela orientação, trocas e escuta sempre atenta, a Silvia Guimarães, por trazer tanta beleza ao livro, a Iomana Rocha, pelo entusiasmo afetuoso, a Álamo Bandeira, colega querido de trabalho, e Thiago Corrêa Ramos, por todos os ensinamentos do mundo editorial. Às fotógrafas, fotógrafos e produtoras audiovisuais que tiveram suas imagens publicadas neste livro. Incluo nesta lista a rede de apoio que facilitou a realização deste trabalho: Camila Valença, Camilo Cavalcante, Fabiana Pirro, Gabriela Alcântara, Henrique Arruda, Isabela Cunha, Jean Santos, João Júnior, Mariana Jacob, Martin Palacios, Monique Oliveira, Neco Tabosa, Ofir Figueiredo, Rayssa Costa, Ricardo Leão e Tiago Melo. À Lei Aldir Blanc, LAB PE, pelo patrocínio.
APRESENTAÇÃO Histórias costuradas
DEPOIMENTOS
8 11
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Beto Normal
14
Rita Azevedo
35
Andrea Monteiro
57
Libra
79
Paulo Ricardo
92
Sosha
108
Maria Esther de Albuquerque
130
Joana Gatis
145
Babi Jácome
161
Chris Garrido
179
ARTIGOS
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Dinâmicas e sensibilidades do figurino no cinema pernambucano
200
Breve guia de figurino: conceitos, cotidiano e ferramentas da profissão
208
A roupa alquímica: o que pode o figurino no cinema queer?
222
Este livro é resultado da minha inquietação, também abraçada por várias mãos e cabeças. A principal motivação para elaborar o projeto Roupa de cinema: o design de figurino no audiovisual pernambucano e inscrevê-lo no Edital de Formação e Pesquisa, da Lei Aldir Blanc, veio de um desejo e necessidade pessoais. Como figurinista atuante na cena audiovisual pernambucana desde 2007, sempre senti falta de ver o figurino cinematográfico em um lugar de pensamento e reflexão, tendo pouco ou quase nenhum espaço nos debates de cinema da cidade. Contrariando, inclusive, a crescente produção local de longa-metragem e curta-metragem, categorias compostas majoritariamente por obras ficcionais, narrativas estas que demandam profissionais do vestuário. Pesquisar sobre o figurino no cinema pernambucano é uma tarefa bem árdua. Não existem documentos que registrem a história do figurino feita no estado. O vácuo teórico acerca do assunto nos joga em um campo desconhecido, pois não temos análises de fôlego que partam da perspectiva do figurino. Esta publicação apresenta como ocorre a atuação destes profissionais e oferece um olhar sobre as contribuições deles na realização audiovisual pernambucana. Através deste trabalho, pretende-se estimular reflexões sobre o cinema a partir da ótica do figurino e proporcionar maior visibilidade aos profissionais que estão na linha de frente do ofício, colaborando para a formação crítica e cultural do público-leitor como uma possível fonte de informação e pesquisa para futuros figurinistas e interessados no assunto. O livro apresenta duas abordagens. A primeira parte é a história viva: dez colegas de profissão foram entrevistados, por videoconferências ao longo de fevereiro de 2021, revelando suas formações, experiências, processos de criação, inspirações e realizações no campo do figurino. As conversas foram editadas em forma de depoimento e o material iconográfico que as acompanha foi produzido durante o processo de criação e execução dos filmes analisados. As entrevistas foram realizadas por mim, em parceria com o jornalista Julio Cavani, contribuição fundamental para composição dos textos. Sua experiência possibilitou a construção de relatos objetivos, mas preservando a essência dos depoimentos e a singularidade de cada participante. Busquei fazer uma curadoria contemporânea e plural. O recorte se inclinou em convidar, sobretudo, figurinistas atuantes no cinema pernambucano, do que escolhas exclusivamente de peso histórico ou figurinistas de filmes de grande repercussão. A escolha foi dolorosa porque, como qualquer seleção, nomes ficam de fora. Minha vivência como uma trabalhadora de cinema balizou minhas decisões. A ótica acadêmica ou de pesquisadora não caracteriza ainda minha trajetória profis9
sional, sou uma profissional do mercado. Optei então por incluir profissionais com trajetória sólida e longeva, que me despertam interesse artístico e que iniciaram esta estrada há pouco tempo. Os dez nomes que compõem este panorama não esgotam a cena pernambucana de design de figurino em cinema. A segunda parte reúne artigos acadêmicos voltados para o modus operandi do figurino feito em Pernambuco e toda sua complexidade. O primeiro texto, Dinâmicas e sensibilidades do figurino no cinema pernambucano, da professora universitária e diretora de arte Iomana Rocha, traz uma análise panorâmica de como se deu a evolução do departamento de figurino a partir da retomada do novo cinema pernambucano. Na sequência, Breve guia de figurino: conceitos, cotidiano e ferramentas da profissão, do pesquisador e figurinista Álamo Bandeira, apresenta o cotidiano da equipe responsável pelo costume design e as etapas de execução necessárias, concebidas através de um processo projetual, com o objetivo de alcançar o resultado final desejado. Por último, A roupa alquímica: o que pode o figurino no cinema queer?, do pesquisador e realizador André Antônio Barbosa, faz uma reflexão/comparação do uso do figurino nos filmes clássicos, que adotam uma linguagem/caracterização padrão, opondo-se à prática nos filmes experimentais queers, que fogem das narrativas convencionais. Acredito que juntar numa mesma publicação a teoria acadêmica e os fazedores de figurino cria um novo caminho de compreensão desta profissão. Ainda que a educação, cultura e arte do país estejam sob crescente perseguição, realizar este trabalho, que tem como objetivo central compartilhar conhecimento, no meio de cenário tão adverso, é revigorante e me lança num movimento contínuo de resistência. Espero que esta iniciativa gere um efeito multiplicador, que seja a primeira de muitas. Ana Cecília Drumond participou diretamente da construção visual do frutífero momento atual do cinema pernambucano como figurinista de filmes de importantes cineastas da nova geração. Assinou o figurino dos longas-metragens Amores de chumbo (2017) de Tuca Siqueira e Passou (2020) de Felipe André Silva, e de premiados curtas como Décimo segundo (2007) de Leonardo Lacca, Nº 27 (2008) de Marcelo Lordello, Mens sana in corpore sano (2011) de Juliano Dornelles, Sob a pele (2013) de Daniel Bandeira e Pedro Sotero e História natural (2014) de Julio Cavani, além de Muro (2008) de Tião, vencedor do prêmio Regard Neuf da Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes. Trabalhou também como assistente em longas como O som ao redor (2012) de Kleber Mendonça Filho e Boi neon (2015) de Gabriel Mascaro. No mercado audiovisual, atuou ainda em campanhas publicitárias e foi figurinista do episódio-piloto de Delegado (2018), série de TV da Trincheira Filmes. Em 2017, fez curso de figurino na Escuela Internacional de Cine y TV de San Antonio de los Baños, em Cuba. Em oficinas, foi aluna de profissionais de referência,como Luciana Buarque, Jum Nakao, Beto Normal e Hubert Arvet-Thouvet. Nasceu no Recife e é neta de costureira.
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Histórias costuradas Os capítulos da primeira parte deste livro são depoimentos. São conversas que foram gravadas, transcritas e editadas, uma combinação entre linguagem oral e escrita. Os textos foram redigidos a partir de memórias e fluxos de pensamento espontâneos de figurinistas que atuam no cinema produzido em Pernambuco. Eu e Ana Cecília Drumond elaboramos as perguntas que serviram de roteiro para o resgate de elementos técnicos, estéticos e pessoais dos processos de criação e construção dos figurinos dos filmes abordados. Desde o lançamento de Baile perfumado, que vi aos 16 anos de idade, tenho acompanhado com extrema atenção os curtas e longas-metragens do Recife, cidade onde sempre vivi e trabalhei. Como jornalista, escrevi críticas sobre filmes pernambucanos, fiz reportagens sobre os bastidores das filmagens de alguns deles, desenvolvi artigos com problematizações sobre a cena local e realizei coberturas de grandes festivais onde eles foram premiados no Brasil e no exterior. Sou também amigo pessoal de diretores e diretoras que sempre me convidaram informalmente para participar, direta ou indiretamente, de várias etapas das produções, seja em visitas aos sets, na leitura de roteiros ou nas ilhas de edição. Ana Cecília é a figurinista do curta-metragem História natural, que dirigi, produzi e roteirizei. A roupa que ela desenhou e confeccionou para o personagem principal, interpretado por Norberto de Souza, é essencial para a construção da atmosfera fantástica do filme como um todo. O campo do figurino não é minha especialidade, mas sempre estive tão atento a este aspecto artístico quanto a todos os demais. Lamento que existam poucas premiações para esta categoria tão importante. Este livro ajuda a entender como figurinistas são essenciais para que uma obra cinematográfica funcione em sua plenitude. É um estímulo para aguçar a curiosidade sobre o que vestem os personagens. É como Dona Tânia diz para Lunga no filme Bacurau: “Que roupa é essa, menino!?” Julio Cavani é jornalista e acompanhou o desenvolvimento do cinema de Pernambuco como crítico e como repórter na cobertura de grandes festivais e de filmagens realizadas no estado nos últimos 20 anos. É também curador do festival Animage e dirigiu os curtas-metragens Deixem Diana em paz e História natural. Editou o livro Janete Costa: arquitetura, design e arte popular, é autor da história em quadrinhos Polinização, da biografia José Cláudio: aventuras à mão livre (ambos pela Cepe) e do infantil O coelho e o leão, publicado pela Vacatussa. 11
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Foto Acervo Beto Normal
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“O figurinista precisa ler muito bem o roteiro e entender que filme é aquele. É de uma responsabilidade abissal enquanto proposta estética, como obra”
Beto Normal faz parte da geração da retomada do novo cinema pernambucano. Sua primeira experiência como figurinista foi no curta-metragem Cachaça (1995), de Adelina Pontual. Em 1998, além de assinar o figurino do curta Clandestina felicidade (1998), dirigiu o filme ao lado de Marcelo Gomes, diretor com quem Beto voltou a trabalhar em dois dos seus trabalhos mais relevantes. Em seu primeiro longa-metragem, Cinema, aspirinas e urubus (2005), dirigido por Gomes, vencedor do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro e premiado na mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes, o figurinista encontrou alguns desafios, para além dos aspectos conceituais. Em momento algum o apuro técnico, que possui um colorido tão rígido, diminuiu a carga estética e o significado poético na construção dos trajes de época baseados em fontes de pesquisa precisas do árido Sertão do Nordeste. Criou também os vestuários do longa Era uma vez eu, Verônica (2012), de Marcelo Gomes, vencedor do Troféu Candango de melhor filme no Festival de Brasília. Além disso, trabalhou nos curtas O pedido (1999) de Adelina Pontual, Tempo de ira (2003) de Gisella de Mello e Marcélia Cartaxo, Retrato (2012) de Adelina Pontual, Olhos de botão (2015) de Marlom Meirelles e Cheiro de melancia (2016) de Maria Cardozo, além do longa Beiço de estrada (2018), de Eliézer Rolim.
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Fred Jordão/Parabólica Brasil
Beto Normal, Luisa Phebo e Marcelo Gomes no set de Clandestina felicidade
Tenho várias influências. Primeiro dentro da minha própria casa. Sou do distrito de Pão de Açúcar, vizinho de Santa Cruz do Capibaribe. Quando eu era pequeno, já existia a cultura da sulanca. As mulheres compravam por quilo os retalhos nas lojas em Santa Cruz, traziam para casa e faziam as peças que chamavam de “sulanca”.
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Minha mãe comprava as tiras de retalhos e fazia o que chamava de coleção. Não era aquela ideia que temos de coleção, de moda. Era juntar os pedaços de tecido mais parecidos e costurar. Ela costurava saias que chamava de anágua, feitas de algodão. Meu pai, que era mascate, levava para vender na Bahia. Dentro de casa, eu ajudava minha mãe a juntar esses pedaços de tecido mais parecidos. Também combinava cores, texturas e estampas. Então, desde pequeno, já tinha esse contato com tecido, máquina de costura e escolha dos retalhos. Isso sempre esteve presente na minha vida. Sou jornalista de formação e só trabalhei na área durante 3 anos. Em 1992 pedi demissão do Diario de Pernambuco. Minha irmã tinha uma confecção em Olinda e comecei a fazer umas camisetas aproveitando as máquinas e a costureira dela. Desenhava como queria, do meu jeito, com minha modelagem, meu design. Em 1992, começa o meu ingresso como estilista. Nessa época, eu tinha amigos que faziam cinema, como Marcelo Gomes, Adelina Pontual e Cláudio Assis. Quando surge a produtora Parabólica Brasil, Marcelo faz Maracatu, maracatus, Adelina faz o curta Cachaça e me chama para fazer o figurino. Eu não sabia o que era um set, nem o ritmo de filmagens de cinema, mas gostei muito. Foi quando aprendi a ler a ordem do dia, o plano de filmagem e fazer decupagem. Aprendi, também, a ler um roteiro e entender o figurino como dramaturgia. Não é um trabalho passivo. Você tem que ler o mesmo filme que o roteirista escreveu e ver o mesmo filme que o diretor visualizou. Você tem que chegar em um acordo. Ou seja, todos têm que estar no mesmo filme. 17
Fred Jordão/Parabólica Brasil
As irmãs Tânia (Izabel Brito), Clarice (Luisa Phebo) e Elisa (Sarah Hazin)
CLANDESTINA FELICIDADE Ninguém tinha contado a história da infância de Clarice Lispector no Recife e era uma coisa que eu achava que precisava ser feita. Dirigi Clandestina felicidade junto com Marcelo Gomes porque escrevemos o roteiro juntos, mas foquei muito no figurino e na direção de arte. Eu ficava mais no video assist para observar a atuação dos atores e a questão do enquadramento, enquanto ele dirigia a mise-en-scène e dava a “ação”. Também acompanhei a edição de som e a mixagem em São Paulo. O diálogo da direção com o departamento de arte e fotografia foi bastante intenso porque era um filme em preto e branco. A fotógrafa Jane Malaquias foi muito receptiva com as nossas perguntas, incertezas e preocupações. Ela nos disse, por exemplo, para não usar branco em nenhum momento no figurino porque ia estourar muito. Filmamos todas as cenas com essa forte luz natural do Recife, do Nordeste. Não é um filme sem cor. A escala de cinza é a base da paleta de cores, com várias possibilidades de variações de tonalidades. A questão é criar texturas, formas, tons e noções de profundidade. Há uma preocupação de saber o resultado que o filme de película vai ter quando sair da lata e passar por lavagens e outros processos químicos de laboratório. 18
Fred Jordão/Parabólica Brasil
Germano Haiut como o pai e as filhas Tânia, Elisa e Clarice
O filme se passa em 1929, então a pesquisa foi bem extensa. Pesquisei em fotografias, vi muita coisa da Fundação Joaquim Nabuco. Para pegar um pouco da atmosfera do Recife da época, me baseei muito na biografia de Clarice escrita por Nádia Battella Gotlib, que tem muitas fotos da família e da infância dela.
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O conceito do figurino parte da ideia de que era uma família judia. Não eram brasileiros natos, tinham uma especificidade. Entendemos que eles eram mais sóbrios. Não eram ricos. O pai de Clarice era mascate, não era um pobre esfarrapado. Até a década de 1950, os homens usavam ternos e chapéus como parte da elegância daquela veste. Foi um acessório que adotamos, também nas mulheres, para demarcar a época.
Fred Jordão/Parabólica Brasil
Luci Alcântara, sentada, como Macabéa
Rica era a família da amiga Reveca, como dá pra perceber no figurino da mãe dela, que consegui em um brechó. Era a menina que toca violino e mora em um grande casarão. O figurino de Clarice era menos rebuscado. A gente pontuou essa diferença de classe entre as duas personagens, com roupas que foram confeccionadas por nós. Além de ir a brechós, alugamos paletós e também pegamos peças de acervos de algumas pessoas.
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Fred Jordão/Parabólica Brasil
Samuel Vieira como Leopoldo, ao lado de Clarice
A Macabéa de Clandestina felicidade é meio caricata. Ela não é uma velha, mas a vestimos como uma velha. É uma serviçal daquela época, uma moça que veio do interior, não casou e ficou no caritó, como uma solteirona. Filmamos a cena do Carnaval na Rua Henrique Dias, em Olinda, com mais de 100 figurantes. Tinha orquestra para vestir e muitos personagens diversos. Foi um garimpo de fantasias de vários lugares, de brechós, de bazares, de agremiações como o Bloco da Saudade e de peças do acervo do Teatro Valdemar de Oliveira.
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CINEMA, ASPIRINAS E URUBUS
Fotos Gil Vicente/Carnaval Filmes
Cinema, aspirinas e urubus foi bem complexo, por ser um filme de baixíssimo orçamento que reconstitui um tempo passado, mesmo que não se passasse em palácios e não precise de um figurino muito glamouroso. Era um filme de personagens simples, mas eram muitos. Além dos protagonistas, interpretados por Peter Ketnath e João Miguel, tinha muitos figurantes e personagens que contracenam com eles no percurso do filme.
Peter Ketnath como Johann
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Era uma questão de ser muito econômico nas escolhas. Não tinha tanta opção de errar. Tudo era muito bem calculado e pensado. A pesquisa foi enorme. Uma das coisas que facilitou foi compreender que a gente não ia fazer um filme de época. A gente ia fazer um filme sobre uma época. Não era essa coisa clássica dos filmes americanos. Era um filme que se passava no Sertão do Nordeste, em 1942. Fiz muita pesquisa com álbuns antigos de famílias do interior da Paraíba. Vi muitas fotos de Pierre Verger que mostravam o Sertão e um livro do Marcel Gautherot com imagens do Sertão do Rio São Francisco. Tinha muita foto em preto e branco, bastante informação.
Gil Vicente/Carnaval Filmes
João Miguel como Ranulpho
A burguesia daquele período não poderia ser um núcleo falso. Tinha que usar muito linho e tecidos naturais. Procuramos não usar nenhum material sintético. Havia uma preocupação grande sobre como as cores entrariam na fotografia, já que o filme teria um trabalho de pós-produção com uma lavagem radical, para parecer com neve. Não sabíamos o que ia acontecer com as tonalidades fortes. Evitamos usar vermelho, rosa e cores vibrantes porque não sabíamos como ficariam depois. É tudo colorido, mas usamos uma cartela bem esmaecida. Foi o filme em que mais fiquei integrado com a equipe de fotografia e direção de arte.
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Fotos Gil Vicente/Carnaval Filmes
Em uma locação como uma cidade com apenas duas ruas, era sempre importante ter uma visão completa do que seria filmado, das cores desse lugar, para dar uma diversidade com várias gamas dos cinzas, dos marrons e de toda a cartela de cores. A gente tinha que criar um universo para que, quem olhasse, entendesse que aquelas pessoas não estavam fardadas. Tínhamos que ter essa noção para não ficar tudo chapado. Tivemos que esmaecer, com tingimento de chá, os paletós de linho brancos para não ficarem brancos demais porque poderiam estourar no meio daquela luz. Usei também sarja, popeline, gabardine e toda a linha de tecidos e texturas que o algodão é capaz de produzir.
Gil Vicente/Carnaval Filmes
Um alfaiate costurou os paletós. Fizemos uns dez ternos de linho para a classe dominante presente nas exibições dos filmes que o Johann, interpretado por Peter Ketnath, realizava para vender aspirinas. Eram eventos sociais com a presença do coronel do lugar. Essa classe dominante ficava toda de linho e gabardine, que era como se vestiam naquela época.
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Gil Vicente/Carnaval Filmes
Todas as roupas dos personagens principais foram confeccionadas, até as cuecas e sapatos. Também confeccionamos as roupas de Fabiana Pirro, que faz Adelina, e de Hermila Guedes, que faz Jovelina. Para os personagens secundários, consegui em brechó algumas peças como camisas e calças de linho. Acho que 95% do figurino foi confeccionado, desenhado e costurado. O restante foi garimpado em brechós e bazares, coisas mais clássicas, sem uma época muito delimitada. O filme não tinha dinheiro para alugar ou comprar roupas do Rio de Janeiro ou São Paulo, por exemplo, onde há acervos mais especializados. A solução foi construir tudo e conseguir algumas peças atemporais. Na pesquisa para as roupas dos funcionários da estação de trem, encontrei, em um bazar do Recife, botões originais da empresa Great Western, a companhia responsável pelos trens que chegavam ao Sertão na época. Esses personagens aparecem na cena da estação ferroviária, que reuniu uma multidão com cerca de 200 figurantes vestidos por nós. Muitos calçavam sandálias de couro que confeccionamos em parceria com a Arteza Cooperativa, que funciona na Ribeira, distrito de Cabaceiras, onde filmamos. Foi uma colaboração luxuosa dos artesãos, que produziram também cintos, chapéus e bolsas que desenhamos baseados em fotografias de pesquisa. 26
Acervo Beto Normal
Johann, por ser alemão, é um detalhe importantíssimo para o figurino. Ele era mais formal e também tinha que estar elegante pois representava a Bayer e sua famosa aspirina. Precisava estar alinhado para vender os produtos. Apenas em alguns momentos, por causa do calor, ele relaxava um pouco e abria a camisa enquanto dirigia o caminhão. Pesquisei roupas de alemães daquele período. Peter Ketnath trouxe da Alemanha o suspensório e o relógio que ele usa, comprados em brechós. O cinto também precisava ter detalhes, como o mecanismo de fechamento com argolas. Uma das camisas tem uma faixa com uma prega nas costas. Em cinema, os detalhes são ampliados milhões de vezes, então os defeitos são amplificados. É importante ter cuidado com todas as camadas.
Carta de Peter Ketnath para Beto Normal sobre o figurino de Johann
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Fotos Gil Vicente/Carnaval Filmes
Acervo Beto Normal
Os homens da época usavam principalmente camisas de manga comprida. Havia uma certa formalidade. Não sei se era por uma questão de elegância formal ou se era para proteger do sol. Vimos também muitos chapéus nas imagens de arquivo. Entre os personagens, há crianças muito pobres, carentes. Em algumas, colocamos roupas de adultos, como se elas herdassem o que já foi dos pais e parentes. Esses tamanhos maiores davam uma estranheza, uma deselegância que reforçava a condição social. Na cena do posto de gasolina, um dos meninos veste um short frouxo, sem elástico, que ele segura para não cair.
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Acervo Beto Normal
Gil Vicente/Carnaval Filmes
Fabiana Pirro como Adelina
A personagem interpretada por Fabiana Pirro é a única que trazia novidades no vestir. É alguém que teve a experiência de morar em Paris. É a única, por exemplo, que veste roupas sem mangas e nunca usa vestido. Está sempre com blusa e saia, sem o pudor das mulheres da época, que sempre cobriam os braços, sem decotes. Originalmente, ela teria quatro figurinos diferentes, mas algumas cenas do roteiro foram cortadas. Adelina era uma mulher com influência europeia, com roupas estampadas que as mulheres da comunidade em torno dela não usavam. Ela tinha que se distinguir das outras, tanto pela posição social do seu marido, quanto para marcar território. Ela tinha esse diferencial. Eu também pude usar mais cores na cena do bordel, mas tinha que ser cuidadoso. Não aparece muito no filme. Tinha mais decotes.
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Acervo Beto Normal
Gil Vicente/Carnaval Filmes
Zezita Matos como Mulher da Galinha
Também gosto muito e vejo beleza na composição de figurino da mulher que carrega uma galinha, vivida pela atriz Zezita Matos, que está em um restaurante de beira de estrada e pega carona no caminhão. É como uma viúva, mas que não está toda de preto, como se o marido tivesse morrido há algum tempo e ela já começou a abrir o luto. Foi maravilhoso ter achado aquele tecido, que parece um patchwork, com uma estampa que lembra retalhos emendados. Mandei fazer aquele vestido e o guardo até hoje no meu acervo. As meias dela são estranhíssimas. Muitas mulheres usavam aquele lenço na cabeça para proteger do sol e dar um jeito para não ter que pentear ou cortar o cabelo, que fica escondido. Quando eu era pequeno, nos anos 1960, muitas mulheres usavam lenço na cabeça e isso já vinha de 1930 e 1940. É um acessório ótimo para personagens, que marca bem. Jovelina, interpretada por Hermila, é uma mulher simples, que não é exuberante, mas usa um trancelim dourado que dá uma realçada no colo do pescoço, com uma clavícula bem saliente e magra. Por causa dos sapatos apertados, ela anda como se estivesse destroçada da noite anterior. Figurino é dramaturgia. 31
Croqui Acervo Beto Normal | Foto Gil Vicente/Carnaval Filmes
Hermila Guedes como Jovelina
As roupas precisavam ter uma memória de corpo. Não podiam ficar armadas, como se fossem novas. Usamos uma técnica chamada “banho de chá” para parecer que as peças eram usadas. Tingimos muito, lavamos, tiramos a goma e lixamos para ter outra textura. Passamos muita lixa em calças e camisas para sugerir desgaste pelo uso. Nas roupas de alguns figurantes das plateias das projeções de cinema, simulamos remendos caseiros. Quando tinha cor demais, deixávamos mais esmaecidas. Nem mesmo as roupas da burguesia poderiam parecer muito novas. Existem outros processos, mas, quando filmamos, fazíamos um envelhecimento mais tradicional, sem tecnologias sofisticadas. Se você erra o figurino ou faz uma escolha equivocada, o filme fica sem credibilidade. Não fica crível. Há suspensão de realidade. O filme tem que convencer do início ao fim, tem que iludir, ser sutil. Precisa ter muito cuidado. O figurinista deve ler muito bem o roteiro e entender que filme é aquele. É de uma responsabilidade abissal enquanto proposta estética, como obra. Todo filme tem que contar histórias com compromisso, respeito e dedicação artística. Cinema, aspirinas e urubus foi filmado em 2003, em película. Foram quase três meses de pré-produção porque precisava, pois era o primeiro longa-metragem de quase todo mundo da equipe. Praticamente todo o figurino foi pronto para a Paraíba. Foi uma loucura, um trabalho incrível e intenso que envolveu muita gente. 32
ERA UMA VEZ EU, VERÔNICA Era uma vez eu, Verônica foi uma experiência incrível, um filme que se passa no Recife contemporâneo, todo gravado na cidade. Cerca de 99% do figurino foi adquirido, comprado. Foram muitas idas aos shoppings e bazares. Fiz um garimpo para criar os personagens e figurantes, como os pacientes do Hospital das Clínicas, onde filmamos em um andar desativado. As únicas coisas que costuramos foram os jalecos dos médicos. A logística de filmar na cidade é uma loucura por causa do tempo e dos deslocamentos. Fotos Gil Vicente/Carnaval Filmes
Hermila Guedes como Verônica e W. J. Solha como Zé
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Gil Vicente/Carnaval Filmes
Foi muito legal construir aquela personagem, uma menina de classe média, filha de um pai comunista. Verônica não era consumista, tinha umas roupas atemporais, low profile. O universo dela era meio como aquela atmosfera da Richards, uma coisa mais limpa, que não é muito modinha ou tendência. A única cena com mais vaidade é a festa com show de Karina Buhr, quando ela usa um vestido da Refazenda, de malha com estampa tie-dye, meio hippie contemporânea.
ALTER EGO Atualmente, estou com uma marca chamada Rosa Curinga. É meu alter ego. É muito chato ser Beto Normal o tempo todo. É maravilhoso ser Rosa Curinga também. 34
Foto Acervo Rita Azevedo
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“Meu lado estilista e meu lado urbanista me transformaram em uma figurinista de cinema”
Rita Azevedo mostrou um Sertão colorido e cheio de identidade no longa-metragem Bacurau (2019), codirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, filme vencedor do Prêmio do Júri no Festival de Cannes. Com bastante ousadia estética, o desenho de figurino ultrapassou a função visual e alinhavou o significado social e político do vestuário. Por esta obra, Rita foi indicada ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro (2020) na categoria de melhor figurino. Em sua trajetória, participou de filmes como Aquarius (2016) de Kleber Mendonça Filho, lançado no Festival de Cannes, Divino amor (2019) de Gabriel Mascaro, selecionado para o Festival de Sundance, Curral (2020) de Marcelo Brennand e do curta-metragem Swinguerra (2019), de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, exibido na Bienal de Veneza, dentre outros.
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Acervo Rita Azevedo
Rita Azevedo no camarim de Bacurau
Aos 13 anos de idade, ia para a casa da minha avó todas as quintas-feiras, quando ela recebia a visita de Nininha, uma costureira. Comprava meus tecidos nas Casas José Araújo e levava para Nininha costurar as roupas que eu mesma desenhava. Sempre desenhei e mantive esse hábito de fazer minhas roupas ou mandar fazer, apesar de ser péssima na máquina de costura. Quando entrei na faculdade de Arquitetura, as pessoas me perguntavam onde poderiam comprar as peças que vestia. Quando respondia que tinha feito, todas diziam que deveria começar a vender.
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O próprio conteúdo do curso de Arquitetura, que concluí em 2004, também me levou para o mundo da moda e da criação, pois estudávamos história da arte, estética comportamental, conforto ambiental e também muito cálculo, lógica e matemática. Percebo que tudo isso é importante para meu trabalho de figurinista até hoje. Na faculdade, escolhi o caminho do urbanismo, uma área que envolve um diálogo muito intenso com a população e desperta o interesse de observar o outro. Minha amiga Germana Valadares sugeriu que criássemos uma coleção pocket. Fizemos 50 peças e vendemos todas em menos de uma hora no dia do lançamento. Percebemos aí que deveríamos investir nisso e criamos a marca Maria da Silva. Nosso primeiro desfile já aconteceu no Oi Fashion Tour Recife e participamos de eventos do calendário de moda durante cinco anos. Foi aí que o processo criativo realmente se profissionalizou, com estudos exaustivos em busca de tecidos, caimento, texturas, modelagens, costura, bordados e toda uma construção. O trabalho com arquitetura e urbanismo já me trazia frustrações, pois os projetos que desenvolvíamos nos escritórios sempre emperravam quando chegavam ao poder público. A moda me trazia um retorno mais rápido para nossas criações. Meu lado estilista e meu lado urbanista me transformaram em uma figurinista de cinema. Aos poucos, percebi que trabalhar com uma pesquisa voltada para o meio da moda me distanciava do meu interesse por gente, pelo outro. A Maria da Silva acabou e passei a trabalhar com produção de figurinos para publicidade e editoriais de moda no estúdio do fotógrafo Chico Barros. Nessa época, Marcelo Pedroso me convidou para trabalhar no longa-metragem Brasil S/A, filmado em 2013. Desenvolvi a transformação de cortadores de cana em astronautas, dez personagens do filme. Foi difícil trabalhar com um orçamento curto, mas depois aprendi a lidar melhor com isso. No início de 2015, meu companheiro, Juliano Dornelles, precisou de ajuda para montar o figurino do elenco e da figuração de uma cena de vernissage nas filmagens do longa-metragem O ateliê da Rua do Brum. Kleber Mendonça Filho estava presente no set e viu tudo aquilo. No mesmo dia, ele me disse que começaria a filmar Aquarius em seis meses e me convidou para ser a figurinista. 38
Victor Jucá/CinemaScópio Produções
Sonia Braga como Clara
AQUARIUS Aquarius foi muito desafiador para mim porque eu ainda não fazia parte do universo do cinema e precisaria ter uma relação de criação intensa com Sonia Braga, uma grande estrela que estava há quase 20 anos sem protagonizar um filme nacional. Nunca fugi de um desafio, mas aquilo foi bem difícil, com um elenco e uma figuração grandes. Eu precisava desenvolver toda uma pesquisa e ainda controlar meus medos, ansiedades, obsessões e paranoias, sem deixar que isso afetasse as relações de respeito e cuidado com a equipe. Sonia Braga estava em praticamente todas as cenas do filme, que tinha uma história que se passava ao longo de vários dias. Com essa cronologia mais longa, a identidade da personagem se torna mais fácil de construir por causa das mais de 20 trocas de roupa. Em Bacurau, por exemplo, cronologicamente eram apenas três dias e foi necessário um processo de construção muito mais avançado para dar uma cara para aquelas pessoas todas. Pesquisei álbuns de fotos de famílias ricas que moravam perto da praia para fazer as cenas de época de Aquarius ambientadas em 1979. Para as cenas nos dias atuais, junto com Sonia Braga, pesquisei mulheres com esse perfil que moravam em Pernambuco, a partir de fotos do cotidiano publicadas nas redes sociais dos filhos e netos delas. Clara era uma mulher forte profissionalmente e era uma pessoa de esquerda politicamente. Desloquei a personagem do que seria essa moradora tradicional e estereotipada da Avenida Boa Viagem, que usaria salto e vestido colado. Adotei o caminho da elegância com o caimento do tecido, solto no corpo, e com uma certa simplicidade na composição das cores. 39
Victor Jucá/CinemaScópio Produções
BACURAU Pensar no processo criativo de Bacurau faz com que eu reviva o grande desafio que tivemos. Eu só conseguiria criar o mundo no qual os personagens viviam se pudesse imaginar o seu passado, pesquisando sobre o bando de Lampião, a seca, a economia do lugar e a sua história. Desmontar a imagem erradamente construída de fragilidade, de “simplicidade”, das pessoas do Sertão era a questão principal dos diretores. As cores vibrantes ajudariam a entender a política daquele espaço. Não era um Sertão pálido com tecidos em algodão, era um Sertão totalmente inserido no consumo dos tecidos sintéticos, roupas baratas e de aspecto descartável. Foi essa grande confusão de estampas, cores e texturas que deu vida a Bacurau. Existia uma lista de filmes referência elaborada pela direção, mas a maioria era do universo do western, que não serviria para o figurino. Antes do início oficial da pré-produção, pedi para participar da última pesquisa de locação, para fazer minhas pesquisas também. No carro, enquanto eu ouvia as conversas entre os dois diretores, percorremos milhares de quilômetros no Sertão de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, por dezenas de cidades. Deu certo. Foi muito rico para que eu pudesse enxergar quem seriam as pessoas de Bacurau, de que forma elas se protegiam do sol, o que as estimulava a procurar roupas e que músicas elas escutavam. Eu fotografava tudo e pedia para acompanhar as pessoas nas redes sociais. 40
Victor Jucá/CinemaScópio Produções
Personagens Sandra (Jamila Facury), Robson (Edislon Silva), Daisy (Ingrid Trigueiro) e Madame (Zoraide Coleto)
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Acervo Rita Azevedo
Victor Jucá/CinemaScópio Produções
Bárbara Colen como Teresa/ Estudo de figurino para Teresa
Bacurau é ambientado no futuro, daqui a alguns anos. Entendi que eu precisava criar alguns estranhamentos de modelagem e de lavagem de tecido para sugerir esse deslocamento de tempo. Criei uma lavagem própria de jeans, em contato com uma fábrica de Toritama. É o que a atriz Bárbara Colen veste quando chega à cidade, um jeans mais marcado por blocos entre o claro e o escuro. O mesmo valeu para os shorts, que não eram nem aqueles dos anos 1990 e nem os dos anos 2000.
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Pedro Sotero/CinemaScópio Produções
Nos tecidos, nunca segui o caminho do algodão e dos tons pastéis que a gente vê em alguns filmes ambientados no Sertão. Os sintéticos já estão inseridos no Sertão há muito tempo, assim como as falsificações de Nike e Adidas, com influência das culturas funk e hip hop, já bastante presentes nas feiras locais. Nessa busca, fui ao Moda Center, em Santa Cruz do Capibaribe, responsável pela distribuição para todo o interior. Envelhecer as roupas foi um processo muito difícil por causa desses tecidos sintéticos, que não são fáceis de lixar para mudar de tom, mas na equipe tínhamos Renato Pascoal, um bruxo, um camareiro com muita experiência em envelhecimento. A cena do velório tem uma mistura de cores que faz aquele lugar ser muito político. Sei que estava fazendo um filme, mas quis fazer algo em que acreditássemos. Meu compromisso é muito mais com o que vejo do que com o que eu desejo esteticamente. Eu queria mostrar os sintéticos e os coloridos logo nas primeiras cenas e isso mostraria muito do que era a comunidade. 43
Vestimos 200 pessoas em Bacurau. Todas fizeram prova de figurino, inclusive todos os figurantes, pois cada um tinha uma identidade pessoal. Na figuração, havia cinco opções de roupas para todos e só escolheríamos três. O raciocínio lógico das aulas de matemática do curso de Arquitetura é muito importante nesses momentos que envolvem criação e praticidade técnica para cumprir metas com agilidade e eficiência.
Victor Jucá/CinemaScópio Produções
Precisávamos dialogar com o realismo e também com a fantasia. Uma referência bastante determinante, no início da pesquisa, foi a exposição À procura do 5º elemento, de Bárbara Wagner, formada por fotos de MCs. São personagens periféricos de cabeça erguida, que não estão no lugar da fragilidade ou da simplicidade, e possuem empoderamento, senso de comunidade e de ajuda ao próximo. Aqueles MCs tinham essa força e isso foi o estalo que me mostrou quem seriam essas pessoas de Bacurau.
Uirá dos Reis como Bidê
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Victor Jucá/CinemaScópio Produções
Sonia Braga como Domingas
Domingas, além de ser uma líder para a comunidade, era escutada, respeitada e tinha outras camadas, como a questão do álcool, que a transformava em uma pessoa extremamente agressiva. Bacurau é incrível porque tudo tem suas contradições, as coisas não são perfeitas. Domingas tinha essa contradição. Quando li o roteiro, imaginei uma parteira, matriarca, com liberdade sexual. As parteiras possuem um processo espiritual muito intenso e também um entendimento do corpo. Meu mural de referências para Domingas era formado por fotos de parteiras. 45
As roupas dos motociclistas são neon porque eles são trilheiros, não são do asfalto. Pesquisei as marcas de roupas motocross, segui o realismo. Isso também gerava um contraste interessante com as cores da paisagem, formada pelo barro e pela vegetação verde ou seca, e indiretamente reforça a ideia de que eles não são daquele lugar. Nas primeiras reuniões de análise técnica, Kleber chegou a sugerir que vestissem preto, mas nunca abri mão.
Victor Jucá/CinemaScópio Produções
Rita Azevedo e Gabriela Marra, primeira assistente de figurino, preparando Antonio Saboia e Karine Teles como os forasteiros
O bando de Lunga era como o de Lampião, com uma vaidade que ficasse bem marcada, com joias e acessórios. Eles têm uma identidade de figurino construída por si mesmos, como se colecionassem aquilo. Não são roupas que parecem ter sido compradas em lojas. Pesquisei alta costura, Gucci, Helmut Lang e artistas pop como Solange. Uma das inspirações principais foi a marca À La Garçonne, de Alexandre Herchcovitch, com intervenções em peças existentes, casacos pesadíssimos, modelagem arrojada e pinturas de coisas como águia, tigre e pantera. Cheguei a entrar em contato com ele, mas não havia tempo disponível
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Victor Jucá/CinemaScópio Produções
Silvero Pereira como Lunga
suficiente para desenvolvermos uma parceria. Confeccionei oito opções de figurino para Lunga e fizemos a prova já em Parelhas. Tudo era criação a partir do zero. Aquele cadarço amarelo bem exagerado estava lá desde o início. Depois que o filme foi lançado, foi muito instigante e inesperado ver Lunga virar esse ícone pop, com toda essa quantidade de fan arts, tatuagens e fantasias de Carnaval. 47
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Victor Jucá/CinemaScópio Produções
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Fotos Acervo Rita Azevedo
Pedro Sotero/CinemaScópio Produções
Os americanos formavam um grupo, mas eu tinha que criar personalidades diferenciadas. Não eram militares e também não esperavam aquela resposta da comunidade. É como se estivessem em um safári. Não estavam indo para uma batalha, pois não esperavam reação das vítimas. Pesquisei sites de escolas de tiro dos Estados Unidos e cursos de preparação para viagens de safári. Comecei a seguir as redes sociais de marcas de armas, como pistolas e espingardas, e olhar quem participa desses grupos. Vi pessoas que exibiam um elefante deitado no chão e um rifle ao lado. Entrei nesse universo maluco e agressivo da valorização da matança. Por tudo isso, acho que ficou tão convincente. Antes de chegarem lá, os estrangeiros provavelmente teriam feito alguma pesquisa sobre a vegetação local e precisavam calçar botas, tomar cuidado com o sol e evitar cortes ou arranhões. Eles estão com uma paleta de cores terrosa porque não imaginavam que a paisagem seria tão verde. Eles não esperavam encontrar isso no Sertão, assim como nós, que fomos pegos de surpresa porque, nas pesquisas de locação, Parelhas estava seca, poucas semanas antes das filmagens. 50
Victor Jucá/CinemaScópio Produções
Udo Kier como Michael
Os americanos formavam um núcleo, mas construí a identidade deles a partir das diferenças entre cada um, com coisas individuais específicas. Desenhei dois casacos e duas calças, mas o restante foi comprado em lojas no Brasil. Eles poderiam imaginar que a paisagem do Sertão era semelhante à do Iraque, por isso usei algumas peças iguais às adotadas pelo exército americano no Oriente Médio, com uma camuflagem pixelada. Fui em lojas como Decathlon, que vende marcas estrangeiras, e quis transmitir também tecnologia. Eu precisava deslocar completamente o figurino dos americanos da comunidade de Bacurau, inclusive em relação à qualidade das roupas. 51
Charles Hodge como Chris
Julia Marie Peterson como Julia
Fotos Victor Jucá/CinemaScópio Produções
James Turpin como Jake
Brian Townes como Joshua
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Cia Extremo
SWINGUERRA
Fotos Pedro Sotero/Ponte Produtoras
Os artistas Bárbara Wagner e Benjamin de Burca desenvolvem uma série de projetos interessados na estética musical das periferias. O filme Swinguerra apresenta os grupos de dançarinos do Recife: Extremo, Bonde do Passinho, La Máfia e As do Passinho S.A . Para eles, a dança é uma forma de reivindicar uma afirmação social enquanto cidadãos. É uma luta por espaço na sociedade, visibilidade, direitos e autorrepresentação. Ao assumir o figurino deles, precisava deixá-los orgulhosos de si quando vissem o resultado.
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Pedro Sotero/Ponte Produtoras
Eduarda Lemos, protagonista de Swinguerra, é baillarina e coreógrafa
O Extremo é um grupo formado por 50 dançarinos LGBTQIA+, dos quais 20 participam de Swinguerra. Visitei os ensaios para ouvir as conversas entre eles, descobrir do que gostavam e entender o que os motivava a criar. Também vi vídeos para compreender seus caminhos estéticos. O figurino serviria para o filme e também para uma apresentação anual, um concurso. Eu tinha que estar muito atenta na escolha de tecidos que valorizassem o movimento do corpo e precisava criar uma identidade de grupo. Usei hot pants bem coladas ao corpo combinadas com
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Pedro Sotero/Ponte Produtoras
Cia La Máfia
calças mais soltas que davam fluidez à dança, assim como tops combinados com casacos, que em determinado momento eram amarrados na cintura. As peças vermelhas são de lycra e as pretas são de uma malha leve texturizada com detalhes de veludo vermelho escuro. Para usar na competição, eles mesmos precisariam reproduzir rapidamente as roupas para uma quantidade bem maior de dançarinos, o que me fez evitar materiais caros e modelagens trabalhosas que demandassem muito tempo. Com La Máfia, recriei um figurino que eles já tinham usado em uma apresentação. Confeccionei as roupas do zero, mas fiz uma adaptação da mesma lógica. Fiz algumas modificações em relação aos originais, mas respeitei a identidade. Modifiquei alguns tecidos e detalhes por uma questão cinematográfica, como a trama que eles usam, produzidas a partir de meias-calças arrastão. 55
Bárbara Wagner e Benjamin de Burca/Ponte Produtoras
As do Passinho S.A.
Pedro Sotero/Ponte Produtoras
Nos grupos de passinho, um dos eixos são as torcidas organizadas de futebol, universo que conheço bastante porque já frequentei a Inferno Coral em jogos do Santa Cruz. Já estava quase tudo pronto porque eles amam as roupas da marca 24 por 48, dos MCs Shevchenko e Elloco e do grupo A Tropa. Fiz uma bancada cheia de camisas cedidas por Shev chenko e coisas do meu acervo, como acessórios, óculos e correntes do funk ostentação. A ideia era deixar os dançarinos escolherem o que quisessem para construir o figurino junto comigo.
Bonde do Passinho
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Foto Acervo Andrea Monteiro
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“Começo a criar na primeira leitura do roteiro, desde a primeira página. Quando estudo um roteiro, visualizo os personagens, suas cores e emoções”
Andrea Monteiro faz parte da geração da retomada do novo cinema pernambucano, com mais de 20 anos de carreira. Para conceituar o figurino naturalista do seu primeiro longa-metragem, Amarelo manga (2002) de Cláudio Assis, grande vencedor do Festival de Brasília, ela se inspirou na moda popular dos moradores do centro e da periferia do Recife. Através da pesquisa de observação e criação artística, encontrou o equilíbrio ideal para realçar a interpretação do elenco com seus personagens guiados pela paixão e frustração. Por este trabalho, foi premiada no Cine Ceará (2003) e indicada na categoria de melhor figurino no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro (2004). Assinou os longas A salamandra (em fase de finalização) de Alex Carvalho, Piedade (2019) de Cláudio Assis, Todas as cores da noite (2015) de Pedro Severien, Propriedade privada (em fase de finalização) de Daniel Bandeira, Acqua movie (2019) de Lírio Ferreira e Desterro (2019) de Maria Clara Escobar, selecionado para o Festival de Rotterdam (2020), e O céu de Suely (2006), como produtora de figurino, premiado filme de Karim Aïnouz. Além disso, entre outros trabalhos, fez o figurino dos curtas Ex-humanos (2020) de Mariana Porto, Soledad (2015) de Daniel Bandeira, Flávia Vilela e Joana Gatis, e Vitrais (1999) de Cecília Araujo, que marcou sua estreia.
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Nasci em Fortaleza, capital do Ceará. Meu pai, baiano, minha mãe, pernambucana. Quando completei 4 anos de idade, minha família se mudou para o interior da Bahia. Isso foi em 1978. Na Bahia, convivi muito com meus avós paternos. Minha avó Doralice, além de professora, amava fazer crochê. Passava horas a fio crochetando peças imensas, que continuam intactas até os dias de hoje, tesouro da família. O crochê de Dodó é elegantíssimo e as mãos dela bailavam numa fluidez impressionante enquanto ela compartilhava comigo sabedorias, histórias, parábolas. Aquilo tudo me fascinava e eu sentava ao lado dela com linha e agulha na mão para aprender. Ela achava graça e não acreditava que eu aprenderia aos 7 ou 8 anos mais ou menos, mas aprendi e nunca esqueci. Era o começo dos anos 1980. Íamos juntas a armarinhos e lojas de tecido comprar fazendas, que era como se chamavam os cortes de tecido no interior. Minha avó só se vestia com roupas feitas, sob medida, em costureira. Em alguns anos da década de 1980, minha mãe e uma amiga montaram um ateliê de costura sob medida para mulheres. Elas criavam uma pequena coleção de acordo com a moda da época, um alfaiate modelava as peças e faziam desfile. Lembro vagamente que desfilei com uma minissaia tão curta que a calcinha foi confeccionada do mesmo tecido e, por incrível que pareça, lembro desse tecido, era veludo cotelê marrom com estampa de florzinhas miúdas amarelas. Nunca esqueço desse espaço, desse lugar cheio de papéis imensos, linhas, tecidos, máquinas de costura e uma enorme mesa de corte. Aos 13 anos, nos mudamos para Recife, eu, minha mãe e meu irmão. Fui adolescente nos agitados anos 1990. Aprendi técnicas de pintura em tecido como tie-dye e outras. Meu irmão era baterista de bandas de rock da cidade e o ajudava com os figurinos quando ele ia tocar. Daí os amigos dele começaram a me pedir também e, quando vi, estava fazendo o figurino da banda toda. Eu pintava, rasgava, fazia crochê. 59
O crochê que aprendi com minha avó começou a aparecer aí em minhas criações nessa época. Dividimos ateliê na icônica Galeria Joana d’Arc com alguns artistas como Fernando Peres, Kleber Pedrosa e Jeims Duarte. Nesse tempo, havia passado no vestibular da UFPE em Artes Plásticas, mas não cursei. Ainda assim me conectei com vários artistas e fizemos alguns trabalhos juntos. Meu primeiro trabalho em audiovisual foi o videoclipe da banda que meu irmão era baterista e que eu já fazia os figurinos, chamada Lara Hanouska. Foi divertido, juntamos diversos objetos e roupas e montamos um cenário num estúdio. Tudo muito experimental. O clipe é o 10 anos como sempre e está no YouTube. Ainda não me via nesse lugar de figurinista. Gostava de pintar em tecido, crochetar, criar e transformar roupas (que chamam hoje em dia de upcycle). Cláudio Assis primeiramente me convidou para ser atriz do curta Texas Hotel, filmado em 1999, mas recusei. Em seguida, ele fez outro convite, que experimentasse criar os figurinos para o curta Vitrais de Cecília Araújo e para o primeiro longa dele, o Amarelo manga. Pra esse convite, eu disse sim. Mesmo sem nunca ter feito nem estudado nada sobre figurino para cinema. Cláudio Cruz, querido, diretor de arte do curta Vitrais, com toda sua sabedoria, elegância (e paciência), foi meu primeiro mentor e muito me ajudou e orientou. Fomos juntos à biblioteca da UFPE pesquisar sobre direção de arte e figurino. Pouco encontramos sobre figurino. O que achamos de mais interessante e que descrevia bastante sobre a relação entre figurino e personagem foi uma tese sobre o longa brasileiro A dama do lotação. E, foi como tudo começou… Depois de minhas primeiras experiências no cinema, assinando figurinos (Vitrais e Amarelo manga), estudei um pouco sobre moda, fiz um curso de introdução à moulage com um estilista italiano que passou pelo Senac, Tino Adamo, e fiz um curso no Senai de Paratibe, técnico em vestuário, totalmente voltado à indústria de confecção. Minha formação se deu em vivências e nas práticas, trabalhando e pesquisando. 60
Walter Carvalho/Perdidas Ilusões
AMARELO MANGA Amarelo manga foi um marco na minha vida profissional. Foi meu primeiro longa-metragem. Me inspirei muito em pessoas que via na rua. Em algumas cenas, os personagens apareciam no meio do cotidiano real do centro e da periferia, em imagens documentais. Isso me fez procurar roupas nas mesmas lojas que aquelas pessoas compravam. Via um açougueiro e me inspirava para vestir Chico Diaz. Via uma vendedora de jogo do bicho no Alto José do Pinho e a imaginava como a personagem de Magdale Alves. Para criar o figurino de Dunga, interpretado por Matheus Nachtergaele, me inspirei em uma pessoa que encontrava sempre no Pátio de Santa Cruz, onde filmamos as cenas da pensão. Era um cara muito magrinho, que usava calças jeans bem coladas, vestia blusas femininas e calçava saltos. Acho que era cabelereiro, pois estava sempre maquiado e mudava de cabelo quase todos os dias. Ele era uma vanguarda. 61
Acervo Andrea Monteiro
Dunga era uma pessoa que não tinha muitas posses e era apaixonada pelo açougueiro. Tinha trejeitos femininos, cuidava das sobrancelhas. Uma das camisetas dele é uma pequena cropped, que cortei bem curtinha. Coloquei um detalhezinho na gola, um cordão, para dar a entender que ele mexia nas próprias roupas. Era um personagem criativo em Walter Carvalho/Perdidas Ilusões
Matheus Nachtergaele como Dunga
Chico Diaz como Wellington
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Acervo Andrea Monteiro
seu visual. Com o pouco que tinha, precisava arrasar... Em uma cena de caminhada, fiz Dunga calçar uma plataforma Melissa vermelha com uma bolsa animal print. Para ele, era um momento de ir para a guerra, de jogar uma bomba em um lugar. Ele precisava fazer aquela maldade porque estava indo atrás do amor da vida dele. 63
Walter Carvalho/Perdidas Ilusões
Leona Cavalli como Lígia
A atriz Leona Cavalli, que interpretou a dona do bar, entrou no elenco de última hora e só chegaria ao Recife um dia antes de filmar. Tive menos de uma semana para criar a roupa dela. Decidi por um vestido jeans, que poderia ser facilmente abotoado e desabotoado, algo que funcionava bem dentro da ação nos momentos em que ela ia dormir nua. Precisávamos de algo que a deixasse ao mesmo tempo graciosa e interessante, mas dentro do limite daquele cenário de boteco decadente. Walter Carvalho, diretor de fotografia, insistiu que eu acrescentasse algum detalhe amarelo. Não concordei, achei redundante. O nome do filme era Amarelo manga e já havia muitas coisas amarelas na direção de arte, em detalhes dos cenários e objetos. Chegamos a testar outros figurinos para Leona, mas preferimos marcar que ela teria apenas um vestido. Queríamos transmitir uma ideia de tédio, por causa da frase que ela fala na abertura e no fim do filme. Essa fala nos deu um norte, um conceito para a personagem: “Primeiro vem um dia. Tudo acontece naquele dia até chegar à noite, que é a melhor parte. Mas logo depois vem o dia outra vez.” 64
Acervo Andrea Monteiro
Conceição Camarotti como Aurora
Para criar os personagens, gosto de inventar histórias que não estão no roteiro. É como ler um romance, a mesma história, lida por pessoas diferentes, carrega nuances e cores diferentes para cada um. Sigo o que eu sinto. A personagem de Conceição Camarotti parecia ter sido uma grande dama no passado, talvez uma prostituta. Coloquei nela cores, estampas e vaidade. Era como alguém que já foi rica e envelheceu sozinha, sem família e doente. É mais glamourosa do que as pessoas ao seu redor, que vestiam shortinho de malha e jeans muito surrado. Ela usava ouro, brincos, colares e pulseiras. Cheguei a bordar pérolas em uma camisola preta.
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Acervo Andrea Monteiro
Para alguns personagens, eu dava um tom a mais. Everaldo Pontes, por exemplo, interpreta um cara meio cavernoso, meio malandro, com óculos Ray-Ban, que poderia ser um policial ou um funcionário do Instituto Médico Legal (IML) e transportava cadáveres no carro. Achei que o estilo dele combinava com aquela jaqueta, que eu fiz com um jeans reaproveitado de peças do meu acervo.
Everaldo Pontes como Rabecão
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Walter Carvalho/Perdidas Ilusões
O personagem de Jonas Bloch tinha aquele jeito violento, com uma energia agressiva meio rock pesado. Para as calças cargo que ele vestia, me inspirei em Cláudio Assis. Os óculos dos anos 1980 eram da minha mãe. Me inspirei também em Roger de Renor, que nos deu de presente um tecido que transformamos em uma camisa para esse personagem, com estampa de dry martini, azeitonas e uma pinup dentro de uma taça, bem kitsch. Roger também tinha um carrão antigo, meio estiloso. Usei também uma camisa verde, camuflada, floral e desbotada, com uma estética americana. Também era um cara bem cavernoso. Acervo Andrea Monteiro
Jonas Bloch como Isaac
Andrea, Jonas Bloch e Neta, camareira
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Walter Carvalho/Perdidas Ilusões
Walter Carvalho/Perdidas Ilusões
Dira Paes como Kika
Fizemos de ônibus a produção de figurino. Só tivemos direito a carro quando começaram as filmagens. Não havia verba, o valor era irrisório. Pedimos roupas usadas emprestadas da equipe, compramos em brechós e recebemos apoio da Seaway. Para algumas cenas, precisamos confeccionar tudo. A cena da briga entre Dira Paes, Chico Diaz e Magdale Alves foi uma das mais caras, pois envolvia sangue e seria necessário trocar tudo a cada take, aí fizemos roupas triplas. Chico Diaz também aparecia em várias cenas com uma camisa laranja quadriculada. Pegamos uma parte do dinheirinho que tínhamos e compramos cinco camisas iguais em uma loja popular no calçadão da Rua da Imperatriz. Como a loja não tinha cinco do mesmo tamanho, compramos de tamanhos diferentes e adaptamos. 69
Acervo Andrea Monteiro
Andrea Monteiro e Paulo Ricardo
A cena da igreja foi uma das mais caras porque havia uns 40 figurantes e todos precisavam estar bem-vestidos. Na locação da pensão, havia muitos figurantes que apareciam e reapareciam em diferentes momentos, como se morassem naquele lugar. Para dar a ideia de passagem do tempo, precisamos criar mais de uma roupa para cada um deles também. Aos poucos, percebemos que precisávamos de uma equipe maior. A solução foi duas estagiárias, que me ajudaram bastante. Uma delas era Bárbara Cunha, que depois tornou-se figurinista, fotógrafa e diretora. Um colaborador incrível no processo de Amarelo manga foi Paulo Ricardo, que foi contratado para ser meu assistente, mas era mais experiente e foi como um professor.
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Bárbara Cunha/Perdidas Ilusões
Fernanda Montenegro como Dona Carminha e Matheus Nachtergaele como Aurélio
PIEDADE Foi interessante trabalhar com Matheus Nachtergaele no longa Piedade depois de tantos anos do marcante Dunga do Amarelo manga. O personagem de Matheus no longa é Aurélio, um alto funcionário de uma petroleira que chega na cidade de Piedade com a missão de desapropriar as terras dos moradores, que ainda insistem em continuar na região. A caracterização desse personagem, o figurino, o visagismo, foi tudo pensado para destacá-lo. Ele não pertencia àquele lugar e isso precisava aparecer de maneira muito clara e objetiva, principalmente nas externas. As roupas eram inadequadas para o clima, fazia muito calor em torno e ele sempre suando, nervoso, incomodado, deslocado. Esse desconforto físico e visual fazia parte do sentimento daquele personagem, ali naquele lugar. 71
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Flora Negri/Perdidas Ilusões
Bárbara Cunha/Perdidas Ilusões
Dona Carminha e Cauã Reymond como Sandro
Muitos personagens de Piedade são pessoas que vivem na beira-mar. Vestem roupas lavadas com água salobra, que secam em um sol muito quente. É uma roupa exposta à maresia, àquela erosão. É colorida, mas é desbotada. Em um documentário sobre os problemas socioambientais daquela região de Suape, vi um homem com um boné com a frase “meu trabalho tem valor” e resolvi incorporar esse detalhe em um dos participantes daquelas cenas de reunião comunitária. 73
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Fotos Bárbara Cunha/Perdidas Ilusões
EX-HUMANOS
Fotos Ernesto de Carvalho/Vídea Filmes
No curta Ex-humanos, Recife não era Recife. Poderia ser qualquer cidade onde não existam mais pessoas, em 2050. Era algo muito surreal, que eu já tinha visto em filmes de ficção científica. A diretora Mariana Porto me trouxe muitas referências cinematográficas, mas preferi me descolar daquilo tudo. Não sou muito de beber de uma fonte que alguém possa identificar. É um filme que tem muito essa coisa do sonho, do onírico, de um futuro sem contrastes.
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Ana Lúcia Diniz/Vídea Filmes
Para a atriz Vera Valdez, usei um vestido cinza, comprido, que foi trabalhado nas costuras, envelhecimentos e objetos, amuletos que ela própria escolheu em meu ateliê. No personagem do ator Cláudio Marinho, não queríamos que a pele dele aparecesse. Não poderia aparecer nenhum vestígio de humanidade. A capa tinha pinturas e texturas que o ajudavam a se camuflar nos cenários. Era um mundo de chuva ácida. Lembrei muito disso durante a quarentena na pandemia, quando ficamos trancados em casa. Na dança final, o figurino é inspirado em butô, com alguns detalhes costurados no corpo da atriz.
Cláudio Marinho e Vera Valdez
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Prova de figurino
77 Fotos Acervo Andrea Monteiro
Sâmia Emerenciano
MERGULHO PROFUNDO Eu já começo a criar na primeira leitura do roteiro, desde a primeira página. Quando estudo um roteiro, visualizo os personagens, suas cores e emoções. Me entrego totalmente, mesmo que ainda faltem meses para as filmagens, e já começo a criar. Um figurino envolve tantos detalhes e tantas coisas que me identifico muito com o que devem sentir as atrizes e atores quando estão no processo de criação das personagens. Preciso mergulhar profundamente para me conectar com as personagens, elenco e equipe. 78
Foto Rod Souza Leão
“No meu processo, a simbologia surge a partir do instinto”
Libra vem da experiência de performances em festas de música eletrônica e traz novas visões e vivências sobre os significados sociais dos corpos nos seus trabalhos. Sua primeira experiência como figurinista em uma produção cinematográfica foi Inabitável (2020), de Matheus Farias e Enock Carvalho, curta-metragem selecionado para o Festival de Sundance e premiado nos festivais de Brasília, Gramado e Toulouse. Participou do curta Tempestade (2019), de Fellipe Fernandes, construindo o figurino da sua própria performance. No longa-metragem Rio Doce (em fase de finalização), também de Fellipe Fernandes, fez assistência de figurino. Em Swinguerra (2019), curta de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, assistência de caracterização. Em outras linguagens, assinou o figurino e caracterização dos videoclipes Útero (2019) da cantora Una, dirigido por Ana Olívia Godoy, e Escorrendo céu pela canela (2021) da cantora Biarritzzz, com direção de Ayla de Oliveira, além de ter dirigido o documentário Frervo (2019) junto com Thiago Santos.
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PH Reinaux
Preparação do figurino da cantora Una para o clipe Útero
Eu sou de Olinda, mas minha família vem de Surubim, cidade do Agreste de Pernambuco. Meus avós vêm de uma perspectiva da terra. Eu percebi que minhas tias e minha mãe são de uma geração muito prática e manual que adota a costura como oportunidade de mudar de realidade. Uma de minhas tias fazia os vestidos de casamentos e eventos de formatura da família, vendia confecções e dava aula sobre costura no centro do Recife. Na minha infância, a costura não era apresentada 81
para mim como uma possibilidade. Mesmo que me interessasse, minha relação ainda era de distância, mas já flertava com outras áreas das artes, como desenho e fotografia. Tudo isso retornou pra mim quando fiz 17 anos, no colégio, quando comecei a querer me montar, a me explorar esteticamente de um outro jeito. O ambiente em que vivia, em um colégio extremamente católico em Olinda, não me permitia pensar a partir desse lugar, tanto esteticamente quanto internamente. Passei a compreender a estética como algo potencial para mim através do vestuário. Comecei a desenhar looks de drag e a sair com eles. Outras drags viram e começaram a me pedir pra fazer para elas. Depois de um tempo, criei uma marca e trabalhei com confecção não só para as drags, como também para outras pessoas, com vestuário feminino. Nesse trabalho artístico, que se iniciou com a vontade de me montar, desenvolvi uma linguagem performática. Eu já tinha uma vivência na noite, como DJ e performer, mas ainda em um momento muito contido. A partir dessa relação entre vestuário e performance, comecei a entender e a estudar o figurino de outro jeito. Estudei artes visuais e me relacionava muito com o trabalho manual. Em plataformas de trabalho como o figurino, gosto de decifrar as formas de materializar minhas ideias. O trabalho manual me apetece e me faz entender quais as possibilidades de criação, inclusive com coisas que nem tenha planejado antes. Tenho muitas referências, mas não específicas de artistas. Gareth Pugh foi um susto na minha vida. É como se estivesse me vendo na minha frente. Existiram esses choques, mas sinto que é como se o processo fosse uma piração minha com texturas e materiais que me sensibilizam de algum jeito. Já trabalhei muito, por exemplo, com plásticos de lixo, roupas de São João e colagens de aviamentos. Tenho uma performance chamada Luxo, onde construo um corpo repleto de sacos de lixos cheios de ar através de amarrações em segundas peles arrastão. De uma perspectiva social, existem corpos que são descartados e descartáveis como o lixo e precisam ser separados de outros corpos. No meu processo, a simbologia surge a partir do instinto. Poucas vezes busco a simbologia primeiro. 82
Maíra Iabrudi/Ponte Produtoras/Áspera Filmes
Performance de Libra
TEMPESTADE Nas produções da festa Hypnos, comecei a trabalhar com André Antônio e ele me convidou para fazer Tempestade. Ele me via no papel daquele fantasma, daquele personagem, daquele corpo. Isso foi uma abertura para mim no audiovisual, ainda dentro de uma perspectiva muito da performance. Em Tempestade, construí meu próprio figurino. Meu trabalho não teve relação com o figurino do filme como um todo. Participei especificamente para performar ainda como criação própria 83
Maíra Iabrudi/Ponte Produtoras/Áspera Filmes
Kildery Iara, protagonista de Tempestade
para mim mesma. Me atentei muito à referência do espaço, que é um barco no meio do mar. Isso foi um start para eu entender um figurino que dialogasse com aquela água e não entrasse em conflito com ela. Trabalhei mais com a textura do que com a tonalidade, pois não queria brilho. Aí veio a ideia da seda e da camurça. O roxo só aparece no meu rosto. A ideia era que a personagem não tivesse um rosto e nem um corpo humano. A ideia é um corpo-névoa que representa a angústia da protagonista e tem poder sobre ela nesse sonho. Na cena da festa de Tempestade, também apareço. Sou um corpo preto lá atrás, em um detalhe, também com um figurino meu. Nesse processo, já estava gravando um documentário, que se chama Frervo, documentando as experiências da noite recifense nas quais eu estava inserida. A partir disso tudo, estava me relacionando pela primeira vez com o cinema de uma maneira direta.
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PH Reinaux
Cíntia Lima, diretora de arte, Libra e a cantora Una, no set de Útero
ÚTERO No clipe Útero, da cantora Una, a diretora de arte Cíntia Lima construiu o roteiro junto com a diretora Ana Olívia Godoy a partir de uma divisão entre óleo, terra, escuro e o peso que puxa pra baixo, em uma perspectiva muito conceitual. A música fala desse lugar de voltar para o útero e não sair. São seres que transpassam o corpo social. O figurino das cabaças era o mais desafiante porque eu tinha uma expectativa volumétrica que deixava aquilo muito pesado para transportar no corpo. Isso foi interessante porque acabei me metendo um pouco na preparação do corpo, ao interferir nos movimentos corporais de Una, já que ela tinha que se esforçar. Precisei também costurar sobre o figurino já vestido no corpo dela, para obter uma volumetria. Estávamos em busca de um material que simbolizasse corpos e terra e que sugerisse uma sonoridade, um barulho. No figurino obscuro, onde criei e confeccionei um vestido de 9 metros de diâmetro, com a ideia de fazer Una parecer um ser gigante naquela mata fechada, acabei também participando como performer. No processo, existiu uma relação do obscuro que Una não conseguiria expressar, então eu mesma precisei aparecer também. A caracterização e o figurino nessas personagens colidem como se fossem uma coisa só. O clipe tem ainda um terceiro figurino, que é uma roupa mais feminina. Gosto de pensar que eu crio ficção. Enquanto ficcionista, me sinto em um lugar de experimentar através da estética. Acho que a estética sobrepõe o pano, que é o figurino. Na maioria dos meus trabalhos, assino o figurino e também a caracterização. Meu trabalho nasce da perspectiva do corpo, dos impulsos do corpo, tanto na plataforma do som quanto da imagem. Minha perspectiva é do surreal, para além de estilos. 85
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Fotos PH Reinaux
Gustavo Pessoa/Gatopardo Filmes
Luciana Souza como Marilene
INABITÁVEL Eu acho que criei uma metodologia minha de etapas de produção. No cinema, Inabitável vem de uma metodologia minha inspirada em pessoas com quem trabalhei, por exemplo, no longa-metragem Rio Doce, de Fellipe Fernandes, que foi minha primeira experiência como assistente, junto com Rita Azevedo, Clarissa Saraiva e Duda Antonino. Aprendi muito, com todas elas, a metodologia do fazer acontecer e as necessidades do cinema, com o tempo do cinema e com as trocas profissionais que precisam existir entre uma equipe. Isso me deu uma base para fazer Inabitável com uma metodologia minha, mas também a partir de uma experiência de construção e vivência de set. Hoje em dia, entendo uma série de complexidades sobre meu corpo social, que representa outras coisas para além desse surrealismo visual. Existem outras desconstruções e dissidências que me atravessam politicamente e socialmente. Em Inabitável, quando tenho que pensar em uma personagem travesti, isso foge do surreal, mas me toca. Eu tenho que pensar na personagem como uma pessoa que tem uma história e tenho que entendê-la esteticamente e expressá-la a partir disso. Os diretores tiveram um carinho e um apreço com minha opinião sobre a 87
filha de Marilene, sobre o que é esse corpo e como ela se representa no filme, como ela se denomina e como é que a gente se relaciona com a amiga que Marilene encontra, que é uma travesti. Essa amiga era a principal pista sobre quem era a filha de Marilene. Marilene não avisa que vai visitar Juliana. Ela simplesmente chega lá desesperada porque quer encontrar a filha. Juliana também não estava preparada pra receber ninguém, ela estava fazendo uma faxina em casa. Ser trans não determina a estética de uma pessoa como um todo. Existem estereótipos e esforços de uma leitura cisgênero que coloca esses corpos trans com leituras muito específicas, como se elas não pudessem sair desse lugar em condições diferentes. Essas identidades se transpassam, mas não são tudo pra mim.
Gustavo Pessoa/Gatopardo Filmes
Sophia William como Juliana
Existia um figurino não realista, mas ele não entrou no filme. Cheguei a desenhar e a confeccionar essa roupa, a atriz chegou a vestir. Era a única roupa que tinha sido criada para o filme. A ficção científica inicialmente estava presente no figurino, mas, em um processo coletivo, a gente entendeu que o filme não precisava dessa representação estética porque existia uma representação política muito forte que necessitava de protagonismo. Foi uma decisão correta para que, na experiência audiovisual do Inabitável, a gente desse mais atenção ao que a gente realmente queria falar para além do estético. Para mim, isso foi muito importante.
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Fotos Enock Carvalho/Gatopardo Filmes
Mariana Souza (assistente de figurino) e Libra
Foi o primeiro filme em que assinei oficialmente como figurinista. Pude ter uma metodologia e aplicar essa metodologia com uma assistente. Foi muito importante, tanto por trabalhar em um filme de ficção científica no qual o figurino não fazia parte dessa estética, como também pensar em todo esse lugar de Marilene como uma pessoa preta periférica que perde uma filha travesti. Me atrai a ideia da ficção, de me entender como um ficcionista tanto na construção surreal quanto na realista.
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Gustavo Pessoa/Gatopardo Filmes
Eu tive ajuda de alguns acervos de figurinistas, como Maria Esther e Rita Azevedo, e de alguns brechós, como Marte e Cabrochas. Existia um orçamento previsto para compras, mas, para mim, isso era um apoio, pois existiam muitas possibilidades. Usei algumas roupas da minha mãe em Marilene. Lembro de ter aproveitado também uma roupa trazida por uma das atrizes, Laís Vieira, que faz uma médica. Amei muito o processo desde o começo. A gente sentou um dia para conversar e entendeu porque o filme fazia muito sentido para nós e porque eu estava na equipe. Foi um processo de cautela e observação. Mariana Souza, minha assistente, já tinha experiência com figurino e isso foi importante para me dar segurança. A metodologia própria funciona quando você entende o sistema de um set. A pesquisa se deu a partir da decupagem do roteiro, de todas as personagens do filme. Como não eram muitas, tive tempo para focar em cada uma. Procurei outros filmes pernambucanos, novelas e peças de teatro que tinham personagens parecidas, além de mulheres que conheci. Eu já tinha trabalhado com Eduarda Lemos no curta Swinguerra, então já 90
sabia o que ela gostava de usar e o que ela não gostava. A própria Eduarda foi uma referência muito forte para a personagem Roberta. A partir dessas referências, criei uma base do que eu queria, mas também me mantive aberta para o imprevisível, para o contato com o roteiro e para o diálogo com a direção de arte e com a equipe durante a produção. Foi mesmo uma metodologia de pesquisa, de seleção e de descarte. O filme como um todo tinha cores base, que eram o azul e o branco, sem vermelho, sem muito amarelo. Tinha a pele. O roxo aparecia às vezes, mas sempre puxando para o azul... Mesclar com o jeans, com a seda. Havia também uma perspectiva limitante, pois uma mãe que está procurando por uma filha não escolhe a roupa que vai usar. Ela simplesmente sai de casa. O filme já começa com a filha perdida.
Acervo Libra
Ver a roupa no corpo diz muito pra mim, mas às vezes uma coisa funciona muito bem para aquele corpo, só que tem outras coisas do contexto que interferem. Quando a gente tem autonomia criativa, o processo é mais instintivo. No cinema, tem sempre algo a mais que precisa ser olhado. Para mim, ser figurinista é um processo artístico pessoal, mas a gente tem que ter abertura para os outros profissionais. É sempre muito potente quando essas construções se colidem.
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Foto Acervo Paulo Ricardo
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“O que definiria bem meu trabalho seria o próprio processo de pesquisa e construção”
Paulo Ricardo faz parte da geração da retomada do novo cinema pernambucano. Sua primeira experiência foi no curta Ocaso (1997), de Camilo Cavalcante, assinando figurino e direção de arte. A parceria com o diretor continuou nos curtas Os dois velhinhos (1998), Matarás (1999), O velho, o mar e o lago (2000), Ave Maria ou mãe dos oprimidos (2003), Rapsódia para um homem comum (2005) e O presidente dos Estados Unidos (2007). Em 2014, Paulo Ricardo trouxe bastante equilíbrio à visualidade dos personagens do seu primeiro longa-metragem, A história da eternidade de Camilo Cavalcante, grande vencedor do Festival de Paulínia. Ambientado no Sertão arcaico, a atemporalidade do figurino, dentro dos limites rígidos impostos por aquele lugar, contribuiu harmoniosamente para a visceralidade do roteiro e o rigor estético da produção. Com o diretor, ainda trabalhou no longa King Kong en Asunción (2020), vencedor do Festival de Gramado. Por esse trabalho, que assinou o figurino junto com Luján Riquelme e Lia González, conquistou o prêmio de melhor figurino no Fest Aruanda. Fez também os curtas TheLastNote.com (2005) de Leo Falcão, Poeta urbano (2013) de Antônio Carrilho (onde também fez a arte), Carne (2013) de Caco Nigro e João Heleno dos Brito (2014) de Neco Tabosa, além do longa A seita (2016) de André Antônio.
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Minha primeira lembrança em relação a roupas, na infância em Surubim, entre 8 e 12 anos, é minha tia costureira, com quem eu convivia muito. Era uma mágica vê-la pegar aqueles tecidos, cortar e colocar na máquina de costura. Além das peças produzidas para clientes e para todo um mercado profissional, ela costurava as roupas das minhas primas, que ficavam belíssimas para irem aos bailes, e também das bonecas delas, coleções inteiras, maravilhosas, verdadeiros desfiles. Podíamos produzir muita roupa naquela época por causa da Feira do Loré, que vendia tecidos baratos, reaproveitados das indústrias. Eu também tinha uma vizinha que era uma grande bordadeira, muito conhecida na cidade. Eu estava sempre ao lado dela, que me dava linhas para brincar enquanto ela bordava. Sempre me interessei por todas as artes, mas não pensava em ser figurinista ou estilista, como se essa relação da infância com a costura estivesse adormecida. Já adulto, no Recife, nos anos 1980, comecei a fazer teatro. Um dia, fui a um evento de moda no Shopping Center Recife para encontrar um amigo que trabalhava na produção. Precisavam de alguém para ajudar nos bastidores dos desfiles e, para minha surpresa, me convidaram. Aceitei porque achei que teria facilidade por causa da minha experiência em camarins teatrais. Foi algo que aconteceu por acaso, pois estava lá apenas para buscar um amigo para ir a uma festa. Isso ilustra a forma como esse fazer entrou na minha vida. A partir daí comecei a trabalhar com moda e comerciais. Paralelamente, eu já participava de uma cooperativa de cinema, junto com Camilo Cavalcante e Camerino Eloy. Revezávamos as funções, cheguei a dirigir alguns vídeos, mas aos poucos começaram a me chamar para fazer principalmente direção de arte e figurino. Ainda trabalhei mais um pouco com moda e cheguei a desenvolver duas coleções, mas o figurino me engoliu, me escolheu e tomou conta de mim. Aí tudo aquilo da infância, que estava adormecido em mim, finalmente despertou. Meu primeiro curta profissional filmado em película foi Ocaso, de Camilo Cavalcante, em que fiz direção de arte e figurino. Depois passei a fazer quase todos os filmes de Camilo, já com patrocínios de editais e participação de profissionais do Sudeste, com quem aprendíamos por serem mais técnicos e experientes. Ao mesmo tempo, fazia cada vez mais vídeos publicitários e campanhas políticas. Meu primeiro longa94
Leonardo França/Aurora Cinema
Auri Mota, maquiador, Paulo Ricardo e a atriz Marcélia Cartaxo nas filmagens de A história da eternidade
-metragem foi Amarelo manga, de Cláudio Assis, como assistente da figurinista Andrea Monteiro. Fazer cinema ainda era uma espécie de sonho e havia bastante liberdade de criação, inclusive para os assistentes. Em Árido movie, de Lírio Ferreira, trabalhei na assistência de Juliana Prysthon. Assinei o figurino dos curtas Poeta urbano, de Antônio Carrilho, e TheLastNote.com, de Leo Falcão, que foi interessante por ser bastante fantasioso, de ficção científica, com um personagem artista plástico, com a camisa melada de tinta, mas ao mesmo tempo com limites rígidos por causa dos storyboards desenhados pelo próprio diretor. Minha afinidade com Camilo começou quando ele ainda era estudante de jornalismo, depois passamos pelos curtas juntos, fizemos publicidade e a parceria continuou até os longas. Eu já sei tudo o que ele quer e o que ele não quer e também já sei como conseguir o que quero dele para atingir os resultados. 95
Nicolas Hallet /Aurora Cinema
Santa Fé, principal locação de A história da eternidade. Na foto, Leonardo França como Cego Aderaldo
A HISTÓRIA DA ETERNIDADE No filme A história da eternidade, havia uma certa atemporalidade, que não deixava claro se estávamos nos anos 1970 ou no momento atual. Questionei Camilo sobre como Joãozinho, interpretado por Irandhir Santos, poderia saber de tantas coisas e conhecer tanto sobre poetas e sobre música se ele vivia em uma vila tão isolada. Ele respondeu que o personagem teria servido ao Exército na capital, onde passou a morar e a entrar em contato com a arte e a expressão cultural que via nas ruas, até mesmo em um sebo de discos de vinil, onde ele poderia ter comprado o LP de Secos e Molhados. Por isso ele tinha botas militares, calças camufladas, um casaco com emblemas e aquele cabelo curtinho. Ele vivia em um paradoxo, uma linha tênue entre o metódico e a liberdade. Quando ia para a feira vender poesias, vestia um uniforme, como se quisesse uma proteção, uma defesa. Essa dualidade de Joãozinho é bem representada pela cena da dança, uma explosão, quando ele joga fora o casaco para se expor àquela gente tão conservadora. O que o protege é aquela rede no corpo, que foi toda inventada pelo próprio ator e apropriada pela direção de arte e pelo figurino. Eu também dei a Irandhir uma camiseta vermelha, uma T-shirt, e o pedi para fazer a intervenção que quisesse, pois Joãozinho era esse tipo 96
Leonardo França/Aurora Cinema Nicolas Hallet /Aurora Cinema
Irandhir Santos como Joãozinho
de pessoa que pinta as próprias camisas. Ele bordou nomes de artistas que, como o personagem, sofriam de epilepsia e inseriu uma carranca, para espantar os maus olhados ou alguma dominação do mal que provocaria os ataques epiléticos. Sempre gosto de me aproximar dos atores o máximo que puder, criar uma troca, uma coisa de mão dupla. Zezita Matos e Débora Ingrid bordaram comigo. Levei o ator Maxwell Nascimento para ir comigo em lojas de departamento de Petrolina e Juazeiro para escolhermos juntos as roupas do seu personagem, que tinha acabado de chegar de São Paulo e veste camisetas de malha, tênis Adidas e bermudas tactel de surfe.
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Leonardo França/Aurora Cinema
Maxwell Nascimento como Geraldo
Nicolas Hallet /Aurora Cinema
A única referência cinematográfica que Camilo me deu foi o filme Luz silenciosa, de Carlos Reygadas, que tem uma família pobre e bem vestida. Nossos personagens também não eram pobrezinhos, queríamos fugir da miséria. Apenas o cego começa mais simples e depois fica mais bonitinho quando se apaixona. A roupa de Querência (Marcélia Cartaxo) tem um corte bem elegante. As roupas dos filhos e do pai (Claudio Jaborandy) também eram sempre bem cortadas.
Marcélia Cartaxo como Querência e Leonardo França como Cego Aderaldo
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Nicolas Hallet /Aurora Cinema
Zezita Matos como Das Dores
Leonardo França/Aurora Cinema
Personagens Aluisio (Aluan Smuk), Emmanuel (Luandson de Sousa), o patriarca da família, Nataniel (Claudio Jaborandy), Maviael (Alan Moreira) e Ednardo (Robério Brasileiro)
As três personagens femininas são fundamentais na história por causa da questão do desejo e por isso o figurino delas se transforma ao longo do filme. É como se fossem três gerações. Elas têm uma cartela de cores bem definida entre o vinho, o rosa, o roxo e o azul. Das Dores deixa as roupas mais escuras e passa a usar cores mais claras após a morte do neto. Já Querência, quando volta da cidade, está com uma calça jeans, uma ruptura em relação ao que ela costumava usar. Alfonsina usa um vestido vermelho que representa um certo rito de passagem para a vida adulta. Em outro momento, usa um outro vestido que imaginei pertencer à filha ausente de Das Dores, talvez da festa de 15 anos dela, meio rosa, meio cobre, meio salmão e curtinho, como se não coubesse bem.
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Débora Ingrid como Alfonsina
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Nicolas Hallet /Aurora Cinema
Marcélia Cartaxo, Zezita Matos e Claudio Jaborandy
A maioria dos vestidos foi confeccionada para o filme. Como os tecidos eram novos, houve esse trabalho de vivência, de lavagens, amolecimentos na bacia d’água e tingimentos, para as peças não ficarem com cara de novas. Consegui comprar também alguns tecidos mais velhos de uma loja que encontrei em Petrolina, que já estavam guardados no almoxarifado. Para fazer a calça camuflada marrom, que não poderia ser verde por causa da paleta de cores do filme, comprei um tecido de oxford que era mole demais e o desafio era torná-la encorpada. A solução para criar uma rigidez foi costurar por dentro um forro mais pesado e depois houve um processo de envelhecimento com lavagens e lixa, para dar mais vivência.
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Gosto muito do trabalho artesanal. Prefiro terceirizar a construção em si, contratar costureiras e bordadeiras, que trabalham como eu quero, mas também com alguma liberdade artística. Sou melhor no envelhecimento, em coisas como tingir, lavar e lixar, mas terceirizo muito essas funções também. Acho que o que definiria bem meu trabalho seria o próprio processo de pesquisa e construção, desde o momento solitário de ler o roteiro até as trocas com os departamentos relativos ao figurino e especialmente com o elenco. O rigor daquele ambiente também é representado pela predominância de cores terrosas e pela própria elegância em um sentido arcaico, de cortes sóbrios. Fujo desse estereótipo em um ou outro momento, às vezes apenas em detalhes no meio da figuração. Eu estava seguro porque sou do Agreste e já tinha feito muitos filmes no Sertão. Eu já estava no projeto desde o início da gestação. Anos antes do começo da pré-produção, comprei um vestido que sabia que poderia servir para a A história da eternidade, mesmo ainda sem saber como. Acabou sendo usado por Marcélia Cartaxo na festa de aniversário de Alfonsina. Encontrei em um brechó, era bem antigo, vintage, azul carbono com roxo, com uma espécie de trama de fitinhas bem delicadas, com um forro de cetim, como se tivesse pertencido a uma pessoa rica do interior. Fomos para o Sertão um mês antes das filmagens para produzir quase todo o figurino lá. Levamos do Recife apenas coisas aleatórias que correspondiam a 10% do trabalho. Foi um grande desafio, pois não conhecíamos as costureiras, brechós e os lugares onde compraríamos os materiais, e as pessoas da região hoje em dia já não usam mais as roupas que aparecem no filme com aqueles tons terrosos. Encontrávamos uma ou outra peça garimpada. Achar costureiras disponíveis também era difícil porque todas estavam absorvidas pelos fabricos industriais. No caso dos vaqueiros, ainda se usa chapéus e roupas de couro, que eles ainda vestem como proteção contra os espinhos da vegetação. 102
JOÃO HELENO DOS BRITO As principais referências do curta-metragem João Heleno dos Brito, de Neco Tabosa, eram o faroeste e a cultura hippie dos anos 1960 e 1970. Eu poderia viajar à vontade nos elementos, com um equilíbrio entre realidade e psicodelia, com toques hare krishna. Fiz coletes para os personagens com tecidos de forração. Era um curta com muitas trocas de roupa e um elenco grande. O banho de sangue foi o momento mais desafiador, com duplicatas de 20 roupas que precisavam ser produzidas por nós, pois você não encontra o mesmo modelo repetido em brechós.
Fotos Pedro Escobar
Tagore Suassuna como João Heleno dos Brito e Harumi Harada como Ono Yoka, casal protagonista de João Heleno dos Brito
Luiz Simão como um dos Capangas dos Arapuan
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Figuração João Heleno dos Brito
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Chico Lacerda/Surto & Deslumbramento/Ponte Produtoras
Júlio Emílio, ator coadjuvante
A SEITA Inicialmente, A seita, de André Antônio, seria um curta-metragem, mas virou um longa porque o projeto tinha, literalmente, “muito pano pra manga”. Dividi esse figurino com Alysson Santos, que também é estilista e se ocupou mais do personagem principal, enquanto eu assumi os coadjuvantes e a figuração. Queríamos criar um universo atípico, gay, que se passava no futuro, com um estilo pintoso e fashion, com detalhes punk. Usei principalmente roupas de brechós e de acervos, pois o filme tinha um tom retrô, meio anos 1950 e 1960. Trabalhar com André Antônio foi fantástico porque ele tem um conhecimento de moda e de cinema. Ele nos deu liberdade para criar. As camisas de mangas compridas, por exemplo, que não são normais para o calor do Recife, sugeriam uma afetação, um refinamento. O diretor de arte Thales Junqueira alertou que as roupas não poderiam ter cara de brechó. Gosto muito do resultado e acho que conseguimos provocar um estranhamento nas plateias. Acho que nos inspiramos mais na moda do que no cinema. 105
Fotos Chico Lacerda/Surto & Deslumbramento/Ponte Produtoras
Figuração de A seita
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Leonardo França/Aurora Cinema
Paulo Ricardo no camarim de A história da eternidade
FIGURINO E POLÍTICA Fui o primeiro e por muito tempo o único figurinista negro no cinema pernambucano. É um pioneirismo desbravador. Trabalhar com figurino e ser uma pessoa negra e LGBT significa enfrentar três preconceitos. Já houve até um caso de uma figurinista negra que foi destratada em uma loja de shopping onde foi buscar roupas para uma produção em São Paulo. No audiovisual, essa já é uma área bastante preterida, mesmo quando os profissionais são brancos. Eu pessoalmente luto para valorizar nosso trabalho e sempre compartilho nas redes sociais quando algum figurinista ganha um prêmio, por exemplo. Acho importante batalhar por esse reconhecimento. Em um set de filmagens, é normal esperarmos horas por causa da afinação das luzes ou do conserto dos cenários, mas os figurinistas são sempre obrigados a executarem tudo rápido. Nós, figurinistas, estamos lutando por respeitabilidade e já vencemos algumas batalhas. É um trabalho muito árduo. Quando brigamos pelo figurino, estamos brigando pelo filme. Fazer mal ao figurino é algo que pode acabar com um filme. O figurino é a primeira coisa que vemos nos personagens e pode transmitir aspectos como o estado de espírito, a classe social e o posicionamento político. 107
Foto André Antônio
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“Quem se define, se limita. Não quero que me rotulem e nunca vou estar vinculado a nada”
Sosha (Sócrates Rodrigues) tem a autoimagem e a moda como os principais gatilhos para suas criações. No desejo de se destacar, se expressar e realizar filmes experimentais apresentando seu próprio universo repleto de referências à cultura pop, o multiartista buscou autonomia e independência nas suas produções, tanto que acumula diversas funções nos seus trabalhos. Assinou todos os figurinos, maquiou, dirigiu, fotografou, editou e produziu a maioria de seus filmes. Sem recursos e despreocupado com classificações, Sosha incorpora o conceito do “do it yourself”. Os curtas Lotta love (2011), Eyes without a face no Recife (2012), Metrópole (2013), Recife XXI (2014), GIF (2015), A lenda do galeto vegano (2016) e Prysmah (2016) compõem a filmografia do artista.
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Cássio Bonfim
Minha história começa na vontade de se destacar e se expressar. Sempre entendi que a indumentária era um veículo de expressão. Comecei a frequentar um lugar no Recife que se chamava Fun Fashion, ali atrás do Shopping Boa Vista, onde se juntavam todas as tribos. Foi ali que rolou o boom, onde comecei a me identificar com essa questão 110
Acervo Sosha
de estilo, porque ali as pessoas buscavam ser originais. Comecei a criar vestimentas, aproveitar retalhos, pedaços de roupas, jeans e tecidos para costurar nas minhas próprias roupas, no lema punk da Vivienne West wood: “Do it yourself”. Eu produzia muito em cima desse tema: “Não tenha medo de ser julgado”. Não me preocupava também com o acabamento, queria só expressar o que sentia através da indumentária.
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A partir daí, conheci uma pessoa que era representante da Vicunha Têxtil e comecei a frequentar eventos de moda oficiais. Esse amigo tinha conhecimentos técnicos, mas precisava da minha ajuda para saber quem eram as pessoas do meio, para poder fazer contato. Ele conhecia coisas como tecelagem, padrão de qualidade e acabamento, enquanto eu sabia os nomes de todas as modelos, designers e tipos de roupas. Eu era um assistente dele, podemos dizer assim. Sempre li revistas, mesmo aquelas bem cafonas sobre a moda mais hegemônica, e depois passei a acompanhar tudo também pela internet.
Super Sosha Magazine
Créditos de GIF, um filme de Sosha
O conceito “do it yourself” me deu várias possibilidades, não só na indumentária, mas também na fotografia e nos vídeos que fazia e editava. Vi que essa possibilidade se expandia além da moda. Comecei de uma forma muito despretensiosa no cinema e na moda, mas passei a levar a sério mesmo quando as pessoas começaram a reconhecer meu trabalho enquanto um artista de fato. Aí foi quando me aprofundei mais em ter um domínio de tudo.
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Super Sosha Magazine
Eu frequentava as festas na cidade e sentia um distanciamento entre as pessoas, principalmente em relação aos mais marginalizados. A gente estava no mesmo lugar, mas ao mesmo tempo a gente estava distante, então meu processo criativo parte muito de um universo de rejeição. Essa rejeição me deu a possibilidade de criar meu universo e tive autonomia total da minha obra. Eu mesma comecei a fazer maquiagem, editar, fotografar, chamar as pessoas, elaborar as ideias e criar os figurinos com as minhas próprias mãos. Quando trabalhei no festival Janela Internacional de Cinema, percebi que alguém estava projetando meus filmes no mezanino. Foi quando conheci Chico Lacerda, André Antônio e o pessoal da Surto & Deslumbramento. Eles já gostavam muito desses trabalhos, que eu ainda não levava muito a sério. As pessoas não constroem nada sozinhas, mas, perante a logística do cenário hegemônico nacional, não busquei veículos no qual pudesse alavancar minha carreira. Simplesmente aconteceu, caiu nas graças das pessoas que trabalhavam profissionalmente na área, fui tocando para frente e até hoje está me rendendo frutos. Comecei a criar no audiovisual porque tinha a sensação de que meus desenhos e pinturas não eram suficientes para alcançar as pessoas da maneira que eu queria. Com a era da digitalização, comecei a explorar vários recursos que tinha em minhas mãos ligados à internet, vídeo e fotografia. O intuito de produzir audiovisual sempre foi para divulgar a minha imagem como artista e meus outros trabalhos, não só os audiovisuais. 113
Fotos Caetano Costa e Sosha/Super Sosha Magazine
LOTTA LOVE Lotta love foi totalmente despretensioso. Eu não tinha anseio por beleza. As pessoas que estão fora desse universo das artes, do audiovisual e da fotografia esperam que a arte sempre seja bela, mas nem sempre é por aí. Nunca tive vontade de exibir algo com primor, delicadeza ou sutileza. Queria mesmo era mostrar o meu universo, juntar os signos que tinha na minha cabeça e tocar isso pra frente de uma maneira bem descontraída e divertida. Se está gerando uma repercussão boa para meu trabalho como artista, então vou continuar fazendo. Eu imaginava o personagem de Lotta love como um ser meio prostituído pela cidade, vivendo todas as aversões de viver no Recife. Ele reflete muito o abandono de todas as coisas que a cidade empurra para a marginalidade. É uma questão de revisitar nossa cidade. Fiz com que as pessoas enxergassem a maravilhosa cidade que vivemos.
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Super Sosha Magazine
Linda de Morrir, protagonista de Eyes without face no Recife
EYES WITHOUT FACE NO RECIFE Os meus figurinos são algo totalmente sem limites, como no filme Eyes without face no Recife, em que a roupa tem vários olhos de papel pregados. Peguei o tecido de uma cortina, cortei, costurei à mão e chamei minha amiga Linda de Morrir para participar. São olhos sem face, olhos navegando e é assim que me sinto às vezes. Sinto que esse corpo que tenho não vale de nada e o que importa para mim é o meu olhar, como se eu fosse olhos flutuando. Não sinto como se eu fosse essa imagem que todos veem, sou simplesmente olhos. Minha obra é a soma de tudo que me circula, assim como das pessoas que falam comigo, das coisas que estou fazendo no momento. Não me vejo como independente porque eu preciso da cidade, preciso das pessoas que também moram na cidade, preciso ver a cidade respirando. 115
Super Sosha Magazine
A pegada pop existe para invocar as pessoas a assistirem e gerar signos para ficar mais marcante. Quando criamos uma obra, temos nossas concepções. Fica bem claro que Eyes without face no Recife foi inspirado na música, mas fica a critério do espectador captar a referência através do seu próprio olhar. A gente que trabalha com arte está aí para criar sensações nas pessoas. As pessoas devem se sentir felizes ou tristes, achar feio, bonito ou cômico, não cabe a mim encaixar esse pensamento. É como se meu corpo fosse uma tela em branco e eu fosse preenchendo. Acho interessante fazer refletir através da roupa assim como traduzo isso com os pincéis.
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Fotos André Antônio e Chico Lacerda/Super Sosha Magazine
METRÓPOLE O primeiro look do filme emitia uma coisa do século XIX e eu queria que na película ficasse uma coisa expressionista, podemos dizer assim, com esses efeitos de traços de luz e de cor. Era o look de uma pessoa que estava prestes a enfrentar tudo o que viesse pela frente, tanto que ela estava com a mala na mão. É uma personagem que estava disposta a tudo, que precisava ser leve e colorida, precisava passar uma sensação 117
Fotos André Antônio e Chico Lacerda/Super Sosha Magazine
Sosha com o segundo look ao lado de Chico Lacerda como o Bofe Coxinha
de liberdade. O segundo look era um vestido longo que comprei, com uma barra que eu mesmo fiz, e funcionou muito bem com a pegada expressionista da fotografia de Chico Lacerda.
Sosha e André Perez como Vlada
Para o terceiro look, me inspirei em Liza Minnelli na cena da canção Mein herr do musical Cabaret. Tem um chapéu cloche, um sapato oxford, uma camisa navy e uma calça cortada, meio cintura alta. É uma
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Fotos André Antônio e Chico Lacerda/Super Sosha Magazine
pele mais pálida, com cores que vazam o contorno do rosto. Eu não me inspirava em nada pontualmente, era uma mistura, com referências também de Galliano e Pat McGrath, a melhor maquiadora do mundo, naquela sobrancelha meio arco e naquele tracinho meio Greta Garbo, uma coisa meio diva dos anos 1920.
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RECIFE XXI Vivienne Westwood, Galliano e Karl Lagerfeld são alguns dos designers que tiveram uma referência muito forte na minha construção de indumentária. Recife XXI tem uma coisa bem forte com o universo da moda. A personagem interpretada por Brenda Bazante sai de Londres, que é uma capital fashion, uma das capitais da moda, pega um avião da Chanel e desce no Recife. Inicialmente, o primeiro look de Recife XXI foi pensado através da história da atriz Brenda Bazante, que fez serviço militar no Rio de Janeiro. Por isso, a personagem tem algumas roupas que remetiam a esse momento, que achei um fato super interessante. Era o primeiro filme dela e eu queria deixá-la mais confortável e familiarizada, então achei que precisava ter um pouco de quem ela é. A fotógrafa Annie Leibovitz diz que você precisa conhecer um pouco da história da personagem para fotografá-la e fazê-la se sentir bem, aí você cria todo o universo. Um dos papéis da direção é deixar o elenco confortável. Foi com essa pré-con120
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Brenda Bazante, protagonista de Recife XXI
cepção que montei o primeiro look, uma jaqueta militar e uma saia de tule. Achei interessante misturar algo super arrojado com algo super delicado. É uma coisa que vem muito dos orientais, do life style retratado na revista japonesa Fruits Magazine. Os jovens de Osaka misturavam coisas que eu achava super inusitadas e foram aflorando na minha cabeça, para me dar a possibilidade de pensar além do que a moda do Ocidente trazia. Estilistas como Rei Kawakubo, por exemplo, são muito ousadas nesse sentido e não estão preocupadas com regras. Grandes designers orientais quebraram paradigmas, com roupas totalmente desproporcionais, que vazam da silhueta do corpo humano. Tanto na matéria-prima quanto na textura, são roupas que não querem exatamente serem belas, como seria na Chanel ou nos vestidos Armani.
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Fotos Super Sosha Magazine
Alexis Colby como Tanya
Em uma cena de Recife XXI, Brenda tira o salto, guarda dentro da bolsa e calça uma rasteirinha. Resolvi implementar no filme um hábito das modelos, que sempre andam com um salto na bolsa porque na vida real ninguém aguenta ficar de salto 15 horas por dia, por mais confortável que seja. A personagem Tanya, a amiga dela, tem muitas referências das divas dos anos 1920 e de Joan Crawford.
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Tanya e Brenda na Praia Aurora
Brenda sentiu desconforto quando vestiu o maiô, mas eu disse para ela que era domingo de manhã e fazia um calor de 38 graus, então ela poderia estar super à vontade como se estivesse na praia, de salto. Quando ela percebeu que estava mesmo uma delícia, começamos a filmar. Todo mundo precisava estar em clima praieiro. A galera realmente se entregou ao máximo, de shortinho, chinelo e sunga na Rua da Aurora e na Rua do Sol. Já vi a beira do Rio Capibaribe ser usada como praia em fotos antigas dos anos 1950 e 1960 no centro do Recife, assim como a beira do Sena é usada em Paris para piqueniques e para as pessoas beberem cerveja. Queria traduzir essa possibilidade para o cidadão recifense. Eu, pessoalmente, passei a usar apenas shortinhos no Recife depois que peguei menos 20 graus de frio na Europa e percebi que nós usamos calças jeans por uma questão de estilo, porque, na verdade, elas servem para esquentar.
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Personagem Tita ao lado do espelho d’água no Complexo Cultural da República
GIF Em GIF, o personagem de shortinho é a Tita, que sempre foi uma pessoa muito ousada. Eu quis dar um clima de beira da piscina, pois acho que, naquele projeto de Niemeyer, com água no meio de todo aquele concreto extremamente quente, aquilo de fato é uma piscina, tanto é que inúmeras performances de artistas de Brasília usam aquilo como piscina há décadas. É algo que traduz o desejo que os brasilienses sentem por piscinas públicas. 124
Fotos Super Sosha Magazine
La Conga Rosa, protagonista de GIF, saindo do Museu Nacional da República
A personagem sai do Museu Nacional da República como se fosse uma obra de arte que tivesse se libertado dali. O figurino foi baseado em um look da coleção de alta costura da Dior para o inverno de 2009. Achei que casava com aquele cenário todo branco. É uma saia tulipa, botas vermelhas, óculos de sol, peruca amarela e um sutiã que fez minha amiga sentir como se tivesse seios, que era um desejo dela e eu achei que a deixaria com mais conforto.
Tita e La Conga Rosa
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La Conga Rosa, protagonista de Prysmah
PRYSMAH A questão da cartela de cores vem muito do pensamento sobre o que contrasta no plano. Como meus filmes geralmente são muito externos, procuro contrastar ao máximo com o que os ambientes oferecem. Não tenho domínio sobre as locações, pois são espaços públicos, e procuro não deixar os personagens muito carregados, mas eles têm uma identidade própria onde as cores são elementos-chave para que se destaquem em meio à escuridão ou em meio à luz. A utilização das cores é imprescindível. Nos espaços que uso como locação, sempre procuro dar uma cor que destoa totalmente daquilo, para dar mais vida ao personagem. Na maioria, meus filmes são mudos, então a indumentária entra mais forte para eu me expressar de uma forma mais intensa. 126
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Super Sosha Magazine
Isabel Coelho/Super Sosha Magazine
O figurino de Prysmah partiu muito de orientações sobre fotos que as pessoas do elenco mandavam. Escolhi roupas interessantes para aquele cenário de concreto de Brasília. Queria que o principal destaque fosse a personagem La Conga Rosa. Eu queria remeter a uma estudante universitária, com uma roupa bem leve e despojada e, ao mesmo tempo, que tivesse uma personalidade que não seja muito comum. Queria que as pessoas vissem que existia um trabalho de cabelo, de maquiagem e de construção de styling. A segunda troca de roupa remete a uma bruxa, quando ela veste um vestido longo, com uma make inspirada novamente na Pat McGrath quando assinou o primeiro desfile da Maison Margiela para Galliano. Criei uma bruxa fashion.
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Acervo Sosha
Sosha abrindo o desfile de Theodoro Sadi na Galeria Joana d’Arc em 2009
SOSHA Quando entrei em uma loja de Rick Owens em Estocolmo, comecei a vasculhar as peças e perguntei: “Essa roupa é feminina ou masculina?” Disseram que “nessa loja não existe isso e se você gostou da peça, você pode levar”. Isso é algo que sempre trouxe pra mim. Quando vestia vestidos, saias, maquiagens e perucas, nunca pensava nessa coisa do não binarismo, algo já muito mercantilizado na moda. Eu já era isso, mas nunca discuti a respeito. Um amigo me convidou para gravar um vídeo falando sobre uma marca enquanto uma pessoa trans. Respondi que, sinceramente, preferia não participar porque sempre fui a pessoa que eu quis, sempre usei saltos e vestidos, mas nunca me preocupei se eram para homem ou mulher. Acho muito desagradável mercantilizar a sexualidade das pessoas. Acho cafona quando as pessoas do Recife enchem a boca para falar o sobrenome. O nome Sosha tem essa conotação política. É uma abreviação do meu nome, sem sobrenome, sem essa coisa ultrapassada. Às vezes sinto que algumas pessoas acham que Sosha é uma personagem, mas eu surfo nessa onda e gosto dessa ambiguidade porque é através disso que a gente se torna uma lenda. Quem se define, se limita. Não quero que me rotulem e nunca vou estar vinculado a nada. Parto desse pressuposto. Quero ser “fluido como a água”, como já dizia Bruce Lee. 129
Foto Kennel Rogis
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“Precisamos repensar toda a geografia humana e não só o que estamos comunicando por meio das imagens”
Maria Esther de Albuquerque passeou por diversas referências no curta-metragem queer futurista Os últimos românticos do mundo (2020), de Henrique Arruda, lançado na Mostra de Cinema de Tiradentes. Divas pop, drag queens e punks se misturam a materiais inusitados, que extrapolam a silhueta do corpo, como latas de cerveja, plástico bolha, luz pisca-pisca, isopor e pedaços de fôrmas de bolo. O trabalho rendeu a Esther seu segundo prêmio de melhor figurino no festival Curta Taquary. O primeiro foi conquistado pelo curta Geronimo (2018), da realizadora Anny Stone. Assinou o figurino dos longas-metragens Organismo (2017) de Jeorge Pereira, selecionado para Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e Janela Internacional de Cinema do Recife, e Noites alienígenas (em fase de finalização), de Sérgio de Carvalho. Entre outros, também é a responsável pelo figurino dos curtas Volta seca (2019) de Roberto Veiga, Rosário (2019) de Igor Travassos e Juliana Soares, A menina banda (2018) de Breno César e Nanã (2017) de Rafael Amorim.
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Anny Stone
Set de Organismo
Desde criança, sempre gostei de cortar roupas e customizar. Minha mãe conta que até ficava nervosa quando chegava em casa depois das compras e eu já queria passar a tesoura nas roupas novas. Ela era amiga de Izabel Carvalho, que me influenciou desde bem pequena, com seis anos de idade, a aprender a costurar. Na adolescência, não me identificava com o gosto das pessoas do bairro onde morava, Boa Viagem, o que me fez perceber questões de identidade relacionadas à maneira de se vestir. Entrei na faculdade de Moda do Senac e percebi que as alunas e professoras estavam muito ligadas nesse universo Vogue das fashion weeks. Todo mundo era fashionista, algo que nunca fui, pois sempre me vi, na minha maneira de ser, no contrafluxo. Havia também aquela ditadura da moda, do jeito certo de se vestir para ser aceita, do corpo dentro de padrões, algo que não tinha nada a ver comigo. As referências ainda eram as revistas, 132
já que poucos blogs existiam. Quando descobri o blog RIOetc, lembro de perguntar às professoras qual era a identidade da nossa década 2000-2010 e não souberam responder por estarmos passando por ela. Só dá pra construir uma identidade de uma década quando passamos por ela. Sempre fui muito mais fascinada por esse lugar comportamental da coisa do que pela moda enquanto moda. Um pouco antes, fiz também muitos cursos com a própria Izabel, principalmente de modelagem, que já era minha área preferida e me fez querer ser modelista quando eu tinha 17 ou 18 anos. Quando cursei a disciplina de figurino, meu pai era amigo das atrizes da peça A árvore de Júlia e me levou para conhecer o camarim, os bastidores. Fiquei encantada. Começou assim, vi que eu gostava. Depois que terminei a faculdade, Cláudio Assis estava para começar a filmar Febre do rato e meu pai, que é músico, também era amigo da figurinista do filme, Joana Gatis, que me convidou para trabalhar como estagiária, sem cachê. Quando cheguei em Febre do rato, na pré-produção, começamos a trabalhar no processo de envelhecimento porque o filme seria em preto & branco. Joana me explicava que as texturas eram mais importantes do que as cores e que não deveríamos usar tons muito chapados de branco ou de preto. Foi fantástico aprender tudo isso com ela, com a primeira assistente Renata Carrazoni e com Paulo Ricardo, produtor de figurino, a quem eu ajudava na organização da figuração. Nessa época, ainda não sabia nada sobre trabalhar com cinema, nem sequer sabia ler a ordem do dia. 133
Bárbara Hostin/Filmes de Marte
Camarim da boate onde Magexy e as Lunáticas se apresentam
OS ÚLTIMOS ROMÂNTICOS DO MUNDO Nas primeiras reuniões do curta Os últimos românticos do mundo, junto com o diretor Henrique Arruda e com o diretor de arte Carlota Pereira, entendemos que queríamos encontrar um fio estético entre o ano de 2050 e o momento atual. Precisávamos de um meio termo, um elo entre passado, presente e futuro. Uma das referências do filme era o episódio San Junipero, da série Black mirror, do Netflix, com uma história que pula de tempos em tempos. Falei que achava interessante uma proposta de contracultura, de nichos revolucionários que se colocaram como marcos históricos, como o movimento punk. Foi o primeiro filme em que tive uma abundância de criação e pude me expandir como figurinista. A personagem Magexy era uma drag queen que tinha uma personalidade bem romântica, mas em sua versão Pedro vestia uma jaqueta preta, então era meio dúbio. Miguel já é mais calmo, só que sem chegar a ser careta, como alguém que circula no meio das artes mas não é necessariamente artista e pode ter um emprego mais formal, com uma des134
Foto Esquerda Bárbara Hostin/Filmes de Marte | Foto Direita Sylara Silvério/Filmes de Marte
Os protagonistas Pedro (Carlos Eduardo Ferraz) e Miguel (Mateus Maia) jovens
Bárbara Hostin/Filmes de Marte
contração sugerida por uma roupa mais folgada. O desafio era encontrar um mesmo figurino, exatamente as mesmas roupas, que servisse para os dois personagens vestirem nas versões mais jovens e também quando ficassem idosos, sem ser caricato. Chegamos então a uma identidade de velho punk, que são essas pessoas que estão aí pelo mundo, com 70 anos de idade, sempre gostaram de rock e nunca deixaram de se vestir e de viver com o mesmo estilo de vida de quando eram mais jovens.
Atores Gilberto Brito e Sóstenes Fonseca como Pedro e Miguel mais velhos
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Breno César/Filmes de Marte
Eles usam bota de exército porque é como se estivessem a caminho de uma guerra, como se fugissem para lutar, com aquelas jaquetas pesadas. Ao mesmo tempo, sentem-se desconfortáveis com o calor do Recife em um sol rachante, principalmente quando o carro quebra. Aí de repente começam a cantar, fazer uma performance, o que dá uma leveza para a imagem, e de repente estão em uma cachoeira, nus. Como existem esses contrapontos, esses balanços meio flutuantes, eu não queria que tudo ficasse colorido e cantante, como nos grandes musicais, até porque eles são personagens inconformados. 136
Bárbara Hostin/Filmes de Marte
Carlos Eduardo Ferraz como Magexy
No contrafluxo disso tudo, surgem as referências que eram uma exigência do diretor, que é muito ligado na cultura das divas pop. Ele queria uma citação direta ao clipe Telephone, de Lady Gaga e Beyoncé, quase um remake, com aquela loucura irreal. Ele mostrou também um outro clipe com Britney Spears de vermelho, mas era uma produção que ficaria muito cara. Para o show de Magexy, levei Madonna, com cones nos peitos.
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Acervo Maria Esther de Albuquerque
Foi engraçado fazer referências diretas às divas pop, coisas grandiosas, com orçamento pequeno. Eu mesma bordei as tachinhas no casaco de Pedro, inspirado em Lady Gaga. Na jaqueta de Miguel, que era Beyoncé, costurei vários brincos bem fora de moda, com pedrarias coloridas loucas. Para o sutiã no estilo de Madonna, comprei uma fôrma de bolo em um atacadão, fiz um furo no meio e pedi para um soldador cortar nas laterais e fazer a presilha. O fogo cuspia e não atingia o ator graças ao mecanismo de um vulcãozinho de fogos de artifício. Também coloquei em Magexy uma hot pant de lurex alta prateada, um cinto com mini espelhos inseridos por mim e uma peruca de cabelo rosa, liso, brilhante e espelhado, inspirada nos cabelos dos maracatus. Camilina, minha assistente, foi uma figura primordial e muito importante na construção dos figurinos. Por ela ser aderecista, nós conseguimos realizar e materializar vários elementos. 138
Fotos Bárbara Hostin/Filmes de Marte
Magexy e as Lunáticas
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As ideias das saias grandes, tipo godê, balonê, veio de uma necessidade de ocupar melhor o espaço do palco, uma preocupação de Carlota. Tive a ideia de fazer as saias com plástico-bolha a partir de uma referência que Henrique mostrou. Fizemos a estrutura de arame, preenchemos e acrescentamos luzes pisca-pisca. As atrizes também trouxeram muitos acessórios maravilhosos. Xuxa também foi uma referência trazida por Henrique, que adotamos na construção dos diademas de algumas meninas. O capacete foi feito por Camilina com uma bola de isopor. Os bobs com latas de cerveja também são de Lady Gaga em Telephone. O filme sugere a ideia de que as roupas foram feitas pelos próprios personagens, tudo é meio reciclado. Acho muito rico aquele detalhe da jaqueta jeans com o nome do filme escrito nas costas, bordado por mim, que é baseado em um desenho da artista Laura Pascoal.
Bárbara Hostin/Filmes de Marte
O rosa era a cor de referência geral, mas em alguns detalhes tive mais liberdade, como no público da boate, onde caberia de tudo, como uma personagem de chapéu grande baseada em uma boneca de Toy story, um cara com bermuda de ciclista, pessoas com máscaras e um casaco que piscava.
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Bárbara Hostin/Filmes de Marte
Sharlene Esse como Cindy Vina
A mãe de Miguel tinha que ser glamourosa. Me inspirei na beleza das travestis antigas do teatro, que se montam completamente. Uma coisa interessante do filme é que a mãe de Pedro é interpretada por uma travesti que faz o papel de uma cis. O roteiro sugere que ela é uma professora, que corrige tarefas, aí pensei em uma roupa mais fechada, com saia depois do joelho, organizada, engomada, com ombreiras, bonita, que quebrava a ideia de estar em casa. Imaginamos que ela estava arrumada para aguardar o fim do mundo, como em um lugar de passagem, de despedida. Os últimos românticos do mundo foi um filme muito inclusivo em relação a travestis, não só entre as atrizes, mas também por trás das câmeras. Ainda existe muito machismo, misoginia, gordofobia, transfobia e racismo no meio cinematográfico. Eu quero fazer um cinema que fure essa bolha e construa um pensamento autocrítico. Precisamos repensar toda a geografia humana e não só o que estamos comunicando por meio das imagens. Atualmente vivemos em um momento de caretice crescente. Nesse contexto, o exercício era imaginar o risco de, em 2050, voltarmos para valores de antigamente. É um mote muito atual porque o governo é fascista e tem gente propagando a ideia de que o apocalipse será culpa dos gays, como se houvesse uma nuvem rosa que vai engolir tudo. Eu não queria trazer para o filme elementos do agora, da cultura da roupa sintética produzida em um esquema escravocrata que libera resíduos tóxicos 141
Sylara Silvério/Filmes de Marte
na natureza e contribui para o processo do fim do mundo. Na cena da cachoeira, por exemplo, um dos personagens veste uma ceroula e o outro está com uma cueca branca de copinho, diferente dessas cuecas atuais elásticas moldadas no corpo. Acho mais interessante o movimento da re-roupa, do brechó, das trocas, de não consumir mais em lojas de grande escala, como uma forma de pensar no planeta. Quando você se concentra em elementos comerciais, não vai fazer diferença se o filme é em São Paulo, na China, no Chile ou em Caruaru, pois as mesmas peças são vendidas em todos os lugares. Hoje em dia, os jovens fumam menos cigarro do que antes do ano 2000 e cada vez mais gente está deixando de comer carne. Na moda, temos que prestar atenção no crescimento dessas vertentes anti-hegemônicas também, pois os grandes desfiles já não ditam mais as identidades das pessoas. No filme, os personagens não usam celular, ouvem um rádio antigo e dirigem um carro velho. Lápis e papel são coisas que nunca vão deixar de existir. 142
Inquieta/Divulgação
Bianca Joy Porte como Helena e Rômulo Braga como Diego
ORGANISMO No desenvolvimento do figurino de Organismo, pesquisei sobre a forma como se vestem os cadeirantes e as pessoas com deficiência. Algumas usam camisas e calças divididas em duas, com um velcro nas laterais para soltar a parte da frente, por exemplo. Preferem camisas de botão porque sentem dificuldade de retirar a camiseta pela cabeça. Usam botões que abrem e fecham com ímãs, pois às vezes não podem usar as mãos. O diretor Jeorge Pereira me ensinou muito a partir das próprias experiências dele. Não é uma realidade fácil. No caso do filme, entretanto, o personagem interpretado por Rômulo Braga tinha alguém para ajudá-lo 24 horas por dia e era um cara de classe média, com privilégios, além de ser egocêntrico, intransigente e orgulhoso. Era uma pessoa acostumada a não precisar de ajuda, que de repente se vê naquela situação de dependência em relação aos outros.
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Inquieta/Divulgação
O figurino que desenvolvi para a atriz Bianca Joy Porte tem muita relação com a personalidade da personagem. Ela é uma mulher linda, mas que é muito altruísta e generosa, sem muita vaidade, movida pelo amor romântico. Ela poderia ser mais independente, mas mantém uma dependência emocional. Gosta de se arrumar, mas se mantém no padrão, com tecidos mais fluidos, sem querer ser sexy. Não chega a ser reprimida ou oprimida, mas faz uma espécie de autossabotagem ao não assumir que é prejudicada pelo comportamento do namorado diante daquela situação.
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Foto Melissa Haidar
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“Todo figurino é político, pois temos o poder de modificar as pessoas ao mudar os olhares sobre as pessoas”
Joana Gatis utilizou os signos da estética brega em um enredo de drama psicológico no longa-metragem Amor, plástico e barulho (2013), de Renata Pinheiro, premiado no Festival de Brasília. Entre o sonho e o declínio, a cultura da periferia na qual as personagens estão inseridas é evidenciada pelo uso de cores, brilho, lantejoulas e materiais sintéticos em roupas carregadas de sensualidade, embaladas pelas canções do tecnobrega. Assinou outros longas pernambucanos premiados, como Baixio das bestas (2007) e Febre do rato (2012) de Cláudio Assis, Azougue Nazaré (2018) dirigido por Tiago Melo, pelo qual venceu o prêmio de melhor figurino no Fest Aruanda, e Carro rei (2021) de Renata Pinheiro, além de filmes paulistas como Hotel Atlântico (2009) de Suzana Amaral, Meu mundo em perigo (2007) e Se nada mais der certo (2008), ambos de José Eduardo Belmonte, Tungstênio (2018) de Heitor Dhalia e A febre (2019) de Maya Da-Rin. Foi também diretora, argumentista e atriz principal do curta-metragem Soledad (2015).
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Por ser filha de artistas, sempre vivi no meio da arte. Minha mãe tinha o hábito de fazer roupas para mim, minha irmã e meus irmãos. Ela nunca foi de ir às lojas e comprar tudo pronto, preferia costurar e fazer na costureira. Eu adorava desenhar e pegar pedaços de retalhos para fazer as roupas das minhas bonecas. Uma das minhas diversões era me montar e apresentar espetáculos para a família. Virar outra pessoa já fazia parte das minhas brincadeiras desde pequena. Morava em Caruaru, cidade do interior, e estudava em um colégio de freiras. Eu me vestia diferente, já tinha minha vestimenta como uma linguagem de expressão. Usava roupas, joias e maquiagem da minha mãe e já cheguei a ser suspensa da escola por causa disso. Fui ficando adolescente e gostava de ficar antenada, sempre muito ligada em música. Quando fui morar em São Paulo, logo depois de concluir o colegial, comecei a trabalhar com roupas, como produtora de figurino, assistente da stylist Lara Gerin. Fizemos editoriais durante uns três anos. Foi aí que começou a surgir essa vontade de criação. Fiz curso de estilismo e comecei a conviver com o métier da moda, mas logo me desiludi, pois ter uma grife exige muito investimento. Depois de São Paulo, morei em Olinda, uma cidade muito importante para mim, onde participei do coletivo de estilistas Mulheres do Mundo, que tinha uma loja e vários eventos de moda, como desfiles ao ar livre, junto com Carol Azevedo, Joana Pena e Camila Guedes. Sou amiga de Cláudio Assis e sempre me oferecia para trabalhar com ele, sempre dava umas cantadas. Quando ele me convidou para trabalhar em Baixio das bestas, eu já tinha sido assistente de figurino em televisão e outras linguagens, tinha alguma experiência de set, sabia como funcionava uma produção audiovisual, mas ainda não tinha experiência com cinema. O filme dele foi meu primeiro trabalho em cinema, já assinando como figurinista de um longa-metragem. Foi minha primeira vez e senti que me encontrei ali, era disso que eu gostava. 147
Antônio Melcop/Aroma Filmes
Maeve Jinkings como Jaqueline Carvalho e Nash Laila como Shelly
AMOR, PLÁSTICO E BARULHO Amor, plástico e barulho tem duas protagonistas com uma força dramática muito forte, mas que são bem distintas entre si. Coloquei muito brilho e lantejoulas nas duas, só que por motivos diferentes. Eu tinha dois biotipos diferentes, mas não podia deixar uma muito maior que a outra. Eu não poderia escolher um vestido que favorecesse uma delas pois essa não era a ideia do filme.
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Fotos Antônio Melcop/Aroma Filmes
Shelly, interpretada por Nash Laila, tem todo aquele deslumbre quase adolescente, meio espevitada e meio ingênua. Para reforçar essa juventude, trouxe algumas referências orientais, do Japão, da cultura dos mangás. Procurei trazer essa leveza para o figurino, mas ao mesmo tempo com sensualidade, só que sem virar uma coisa de Lolita, pois isso seria contra minha religião feminista. Ela também sabe usar tudo isso a seu favor, o poder da novinha, uma coisa muito forte no brega daquela época.
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Com Jaqueline, me identifiquei mais, pelo fato de ser mãe, ser uma mulher mais velha, independente, sexualmente forte e, por outras questões, como esse cansaço do métier, quase desistindo do show business. Era dolorido. Eu me via muito nela e chorava quando conversava sobre isso com Maeve Jinkings.
Antônio Melcop/Aroma Filmes
Maeve precisou quebrar muitas barreiras para vestir o figurino de Jaqueline. Inicialmente, ela me disse que não tinha condições de usar aquele biquíni, mas depois foi à praia, morrendo de vergonha, aí apareceram umas meninas que adoraram, ficaram passadas, acharam “tudo”. Ela confirmou então que aquela peça não era para ela, era para Jaqueline. Entender as personagens e os corpos das atrizes é um trabalho psicológico e técnico de extrema importância. Várias daquelas questões também iam de encontro ao que eu acreditava, por causa do fetichismo e do machismo, mas cheguei a um resultado que me deixou feliz.
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Fotos Antônio Melcop/Aroma Filmes
Leo Pyrata como DJ Perigo
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Antônio Melcop/Aroma Filmes
Tivemos bastante contato com artistas do brega, mas seria melhor um pouco mais, se houvesse mais tempo disponível para a pré-produção. Dedesso, vocalista da banda Vício Louco, estava sempre com a gente. A cantora Michelle Melo participou do processo e inspirou muito Maeve. Os dançarinos também ficaram muito próximos de nós. Senti um grande reconhecimento quando fomos filmar e o pessoal do brega achou o figurino incrível. Considero essa a maior retribuição que recebi pelo trabalho. Antes do filme, costumava ir a alguns shows de brega, mas, depois de ter essa aproximação maior, percebi que minha visão era superficial. Hoje faço essa crítica a mim mesma porque não dá para ser superficial. Muitas daquelas dançarinas têm uma vida como a de Jaqueline, com filhos novos, e ainda precisam ter força para serem suscetíveis aos homens. É algo que vai muito além das correntes nos pescoços, das saias e dos shorts curtinhos. É uma coisa social e me questiono sobre o olhar que temos da periferia. Fazer Amor, plástico e barulho foi como receber um tapa em relação à profundidade desse lugar. Acredito que todo figurino é político, pois temos o poder de modificar as pessoas ao mudar os olhares sobre as pessoas. O mínimo que posso fazer é que meu trabalho seja uma ferramenta de transformação. Eu teria ficado muito triste de colaborar para o emburrecimento das pessoas ao trabalhar em certos filmes, mas essa culpa não carrego. Também não quero fazer cinema para o ego, para tomar champanhe em Cannes. Tem que acabar com esse formato burguês, temos que desconstruir muita coisa. 152
Antônio Melcop/Aroma Filmes
Tive muita sorte de ter trabalhado com Xuxu em Amor, plástico e barulho. Se não fosse ela, como costureira e modelista, talvez o resultado não tivesse ficado tão maravilhoso com todos aqueles materiais. O brega romântico da época envolvia muita lycra, calças jeans super justas, sutiã, brilho, bolerinhos e shortinhos com os bolsos saindo, todos bordadinhos. Os homens também estavam nessa linha do sintético, sem quase nada de algodão. Xuxu tinha muita sagacidade de fazer de uma forma rápida, pensada para o cinema, que não precisava de acabamento interno, mas que por fora estivesse impecável. Não é fácil fazer um bom acabamento com lycra no corpo da atriz. Para fazer um collant de lycra, não basta costurar os lados, como na cena em que Shelly está com aquele macacão vermelho vazado com correntes, listrinhas e uma gola alta. É todo um conjunto de elementos que envolve também Dona Meirelles, maquiadora e caracterizadora que fez o cabelo frisado. É um momento em que a personagem está no inferno e vira uma capeta.
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Antônio Melcop/Aroma Filmes
Comprei algumas coisas em lojas, mas as modelagens nem sempre eram boas e também não encontrávamos as peças com as cores que precisávamos, pois cada personagem tinha sua cor. Não queríamos roupas lisas, tinha que ter brilho e tinha que ter uma sujeira boa. Aquele corpete, que Shelly usa quando fica com Allan, foi todo pintado por mim. Naquela blusa preta mesclada de Allan, a gente aplicou umas tachinhas. Quando eu mostrava as peças para Renata Pinheiro, ela sempre falava que queria ver minha mão mais presente ali. Às vezes, eu achava que já estava pronto, mas ela sempre queria mais. Primeiro fazíamos as provas de figurino, depois íamos customizar as roupas e tingir até a hora de filmar. 154
Fotos Antônio Melcop/Aroma Filmes
A direção de fotografia também queria pontos com luzes, o que nos fez colocar muito brilho também nas roupas dos homens. Tem brilho até na poça d’água que aparece na abertura com o título do filme. Amor, plástico e barulho tem toda essa coisa da decadência e do brilho, seja o brilho da bebida ou da música em alto volume. Quando você tira a ilusão, o que resta é o normativo. Nas cenas do cotidiano delas, as roupas são mais normais. Ninguém sustenta esse brilho o tempo inteiro e Jaqueline é a prova de que isso cansa. No figurino, tudo foi pensado, inclusive os momentos em que elas estão tristes.
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No meu computador, salvo imagens de tudo o que acho bonito de outros artistas pelo mundo. São referências que carrego comigo, tanto para meu trabalho com figurino quanto para meu trabalho de artes plásticas. Sempre que vou fazer um filme, acesso esse banco de dados, cato uma coisa ou outra e faço um painel lindo, mas não sou aquela figurinista que apresenta uma enxurrada de referências para o diretor. A minha criação vai além disso. No Amor, plástico e barulho, desenhei uma infinidade de croquis. Antes de desenhar, fui no Bate-Papo, a casa de shows de brega onde filmamos, para fotografar o público e conversar com as meninas. Foi todo um trabalho de pesquisa e de fotografias de rua. Meu caminho não é recortar e colar referências, prefiro fazer um caldeirão de tudo e depois botar pra fora. Prefiro aproveitar apenas a gola de uma referência e misturar com outra cor para criar um universo paralelo. Acho sem graça pegar o que já existe e simplesmente vestir nos atores, pois a forma como você envelhece as peças e faz a caracterização é um trabalho de construção criativa. Hoje em dia, quem quiser me contratar precisa saber que tenho um modelo de equipe. É triste ver o desestímulo de figurinistas com 50 anos de carreira sem o reconhecimento merecido. Nesse sentido, até percebo que minha geração do cinema pernambucano tem amadurecido tecnicamente e profissionalmente. Isso traz força para o figurino. Um trabalho pensado faz a diferença. O núcleo do figurino tem várias vertentes que envolvem assistentes, caracterização, costureiras, produtoras e modelistas. É uma equipe grande e as pessoas precisam ter a consciência dessa importância, mesmo quando a proposta é ser mais documental. 156
Aroma Filmes/Divulgação
Luciano Pedro Jr. como Uno, Matheus Nachtergaele como Zé Macaco e Jules Elting como Mercedes
CARRO REI Em Carro rei, o figurino é uma parte muito forte da narrativa e é onde melhor consigo enxergar minha maturidade enquanto figurinista. A produção aceitou minhas condições sobre a composição da equipe e o trabalho fluiu. A primeira assistente, Vanessa Martinez, era a produtora, que ia para a rua, como se fosse meu segundo olho. A segunda assistente, Anália Nogueira, ficava ao meu lado o tempo inteiro, organizava pastas e cuidava de coisas mais burocráticas, mas às vezes ia para a rua também. A caracterizadora Mauricéia Conceição, com quem tenho uma química muito boa, fazia toda a parte de envelhecimento, de tingir, envelhecer e lavar as peças novas. Trabalhamos com quatro costureiras porque havia uma grande demanda por macacões. Não trabalho com camareira, todas cuidam do camarim e todas precisam saber fazer bainha. Acredito que um bom figurinista tem que começar no camarim fazendo serviço de camareira. No set, a equipe diminuía e ficávamos apenas três pessoas, com uma assistente para desproduzir e outra para ficar ao meu lado. No set, eu não me faço presente, não toco nos atores, pois sei que aquilo incomoda. Prefiro ficar o tempo inteiro no monitor do video assist. Sempre falo para as meninas não chamarem mais o ator pelo nome depois de vestirem as roupas, pois tenho um respeito absurdo pelo transe do elenco. A gente veste o ator e cuida dele, mas não mexe com o personagem, que tem uma energia muito forte. 157
Fotos Aroma Filmes/Divulgação
Clara Pinheiro como Amora
Jules Elting, intérprete de Mercedes, é artista não binária
O figurino de Carro rei é bastante atual, com muitas mulheres que vestem peças consideradas masculinas e também o contrário. Uma das personagens principais é uma pessoa não binária. Um figurinista que diferencia roupas de mulheres e de homens, que ainda pensa dessa forma, precisa mudar um pouco os conceitos porque o mundo já está adiante.
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AZOUGUE NAZARÉ
Gustavo Pessoa/Lucinda Filmes/Urânio Filmes
Caboclo-de-lança, personagem do maracatu rural
Azougue Nazaré foi um dos últimos trabalhos que fiz nessa contramão de trabalhar praticamente sem orçamento e foi com ele que ganhei meu único prêmio de figurino, no Fest Aruanda. Uma parte das roupas era do próprio elenco ou foi confeccionada pelos próprios atores. Selecionamos os caboclos-de-lança, por exemplo, e acrescentamos alguns elementos novos, como os óculos, mas todos eles já estavam quase prontos. As roupas de Darlene (interpretada por mim) e Tita (Mohana Uchôa) vieram do meu acervo. Na época, eu estava com um acervo gigante formado principalmente por sobras de outros filmes. A vantagem é que já estava tudo meio preparado, tudo pronto para usarmos, já com envelhecimento. Um acervo de figurino de cinema é muito diferente da publicidade ou da moda porque são roupas mais propositalmente envelhecidas.
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Mohana Uchôa como Tita
Fotos Gustavo Pessoa/Lucinda Filmes/Urânio Filmes
Joana Gatis como Darlene e Valmir do Coco como Catita
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Foto Sâmia Emerenciano
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“Não consigo ser totalmente naturalista, carrego sempre algo lúdico comigo, algo de fantasia. Meus figurinos são sempre muito estéticos”
Babi Jácome estudou na Escola de Belas Artes da UFRJ com especialização em indumentária e, durante sua formação, passou por diversas experiências como estagiária de escola de samba e assistência de figurino em publicidade, séries e longas. Essas diferentes vivências contribuíram para a existência do componente lúdico como marca de suas criações audiovisuais. Foi assistente das séries Cara metade (2011) de Julia Rezende, Adorável psicose (2011) de Gustavo Chermont e África da sorte (2018) de Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira, e do longa Eu não faço a menor ideia do que eu tô fazendo com a minha vida (2012) de Matheus Souza, lançado no Festival de Gramado. Assinou os longas-metragens Superpina: gostoso é quando a gente faz! (2018) de Jean Santos e Frei Damião: o santo do Nordeste (2019), dirigido por Deby Brennand, a série para TV Os ovos da raposa (2018) de Valdir Oliveira, além dos curtas O amor é uma construção burguesa (2016) de Alexandre Mortagua e Quando chegar a noite, pise devagar (2021) de Gabriela Alcântara.
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Tenho uma relação muito próxima com minha avó paterna, que é como uma segunda mãe para mim. Ela tinha uma marca chamada Benélia, que é o nome dela. Comprava peças de manufaturas e colocava a própria etiqueta. A loja funcionava na sala da casa onde ela morava. O quarto onde eu dormia às vezes ficava cheio de sapatos, bolsas e roupas, adorava experimentar tudo. Também sempre ouvi histórias relacionadas ao modo de se vestir de minha avó materna, que não cheguei a conhecer pessoalmente, mas de quem posso ter herdado algo. A mãe do meu ex-padrasto também tinha uma confecção no Rio de Janeiro. Quando viajava para lá, um dos programas das férias que eu amava era passear pelas ruas de Copacabana para ver as vitrines antigas, algumas dos anos 1950. O audiovisual sempre esteve muito presente na minha vida por causa de pessoas da família e amigos delas. Quando eu era criança, frequentava a TV Viva e participava do elenco de comerciais. Lembro de uma campanha do Hiper Bompreço, quando escolhi o vestido que eu mais gostei, como um primeiro marco na minha memória infantil dessa relação entre audiovisual e figurino. Na época, os VTs publicitários não tinham figurinistas. Quando eu tinha 14 anos, minha irmã morava em Barcelona e me convidou para passar as férias com ela, para fazer um curso de dança, pois na época eu queria ser bailarina. Percebi que as pessoas da cidade tinham ousadia em relação à moda. Reparei muito nas formas de vestir e nos núcleos étnicos, pois via gente do mundo todo, de diferentes culturas. Fomos juntas a um cinema que exibia clássicos e assistimos à Morte em Veneza. Fiquei completamente chocada com as locações, os cenários, o figurino e a fotografia do filme. Foi aí que comecei a fazer uma ligação entre os elementos do audiovisual enquanto arte, criação e estudo. Estudei no curso de Artes Cênicas, com especialização em Indumentária, na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Quando entrei na faculdade, queria ser carnavalesca de escola de samba. Fui estagiária do barracão da Imperatriz Leopoldinense, colando paetê, pedrinhas e plumas durante três meses. Sempre tive, desde criança, um fascínio pelas histórias contadas pelas fantasias dos desfiles carnavalescos. Como sou de Olinda, sempre brinquei Carnaval com uma fantasia para cada dia. Começava a fazer as fantasias já em dezembro. Isso faz parte da minha construção como figurinista e como estilista. 163
Sâmia Emerenciano
Babi Jácome, atriz Mayara Millane e Thaís Carneiro, assistente de figurino, no set de Os ovos da raposa
No Rio de Janeiro, fiz meus primeiros trabalhos profissionalmente na área de figurino, como assistente em filmes publicitários, de empresas como Banco do Brasil e Guaraná Antarctica, grandes produções. Em 2011 fiz duas séries de TV do canal Multishow, Adorável psicose, com direção de Gustavo Chermont e roteiro de Natália Klein, que também era a protagonista, e Cara metade, de Julia Rezende, em ambas como assistente de figurino de Melina Akerman. 164
Em 2012, participei do longa-metragem Eu não faço a menor ideia do que eu tô fazendo com a minha vida, de Matheus Souza, também como assistente de Melina. É um filme de baixo orçamento, com Clarice Falcão. O curta O amor é uma construção burguesa, de Alexandre Mortagua, foi o primeiro trabalho no cinema que assinei como figurinista, junto com Raquely Ramalho. Foi filmado em São Paulo. Gosto muito por causa da fantasia da loucura, com roupas baseadas na noite paulistana underground. Considero que foi mais uma escola. Em Pernambuco, meu primeiro trabalho em audiovisual foi a minissérie África da sorte, de Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira. Fui assistente da figurinista Rita Azevedo, que é uma pessoa minuciosa, eficiente, metódica e perfeccionista em todos os detalhes, como na organização do camarim. Outra experiência que foi uma grande escola para mim foi a série Os ovos da raposa, onde fiz o figurino e aprendi muito com Chris Garrido, responsável pelo desenho de figurino. Trabalhei também como produtora de figurino no longa-metragem Propriedade privada, de Daniel Bandeira, junto com a figurinista Andrea Monteiro, uma das pessoas que mais me deu apoio e ensinamentos, que sempre me recebeu muito aberta, com muito carinho. Meu trabalho de conclusão de curso foi uma monografia sobre o trabalho dela no figurino de Amarelo manga. Com Rita, aprendi a metodologia de criação. Com Garrido, a fazer pesquisas minuciosas, detalhistas e muito ricas. Com Andrea, a treinar o olhar para o que as pessoas vestem, seus modos e escolhas. 165
Fotos Érica Rocha/Baba Produções
Dandara de Morais como Paula
SUPERPINA Superpina: gostoso é quando a gente faz! é um longa-metragem produzido a partir de verbas destinadas originalmente para videoclipes e um curta, que foram todos lançados primeiro separadamente e depois juntos em forma de longa. Nas filmagens, já sabíamos que haveria o longa. Quando entrei no projeto, havia referências cinematográficas para o figurino e um direcionamento criativo já elaborado pela atriz principal, Dandara de Morais. Diante de nossa realidade de tempo e orçamento, sugeri pensarmos nos personagens de uma forma ao mesmo tempo realista e bastante estética, sem naturalismo. Minha proposta era assumir o absurdo e certa loucura, pois era uma história fantasiosa sobre uma galera do Recife.
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Tiago Calazans/Baba Produções
Paulo César Freire como Augusto e Inês Maia como Sônia
A proposta era pensar em como o recifense se diverte, o que está na moda na cidade, exagerar nisso, assumir a loucura, o absurdo e deixar tudo muito colorido. É um filme com humor, uma viagem. A ideia é divertir. Apesar de cansativos, os dias de filmagem também foram engraçados, com um clima brincalhão. Quase todas as pessoas da equipe estão na figuração, todo mundo vestiu a camisa. Não tínhamos tempo e nem dinheiro para uma produção de figuração mais técnica. Nas roupas dos figurantes, procurei seguir a cartela de cores para fazer algo minimamente bonito sem atrapalhar a narrativa. 167
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Pedro Luna/Baba Produções
Nathália Gomes/Baba Produções
A cabeça do Fofão foi criada pelo diretor Jean Santos e pela diretora de arte Lia Letícia. Ele é uma mistura entre animador de festa infantil, personagem de programa de TV, Carreta Furacão e bonecos de propaganda de lojas, borracharias e supermercados. O mascote da marca Michelin foi uma das referências que usei. As roupas dele foram construídas do zero. Em uma das cenas, ele está um pouco mais produzido, com um macacão verde e lilás com espuma por dentro para criar lombadas.
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Bersa Mendes/Baba Produções Nathália Gomes/Baba Produções
Iza do Amparo como Dona Isaura
A personagem interpretada por Iza do Amparo é um exemplo de como meus figurinos podem representar a forma como vejo as coisas, uma visão muito minha. Quis trazer um pouco da energia de algumas mulheres de Olinda, que estou acostumada a ver desde criança, meio bruxas, mágicas, como as artistas plásticas Tereza Costa Rêgo, Silvia Pontual, Guita Charifker, Marília Lacerda, Marisa Lacerda e a própria Iza. É uma mulher mais velha e cheia de vida dentro de si. 170
Érica Rocha/Baba Produções
O vestido vermelho usado por Dandara na cena do show estava descrito no roteiro como “Buceta Flamejante”. Pegamos um vestido de festa e colamos um triângulo vermelho no peito, as chamas e os botões, para trazer uma coisa meio carnavalesca com um tom de diva. 171
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Érica Rocha/Baba Produções
Fotos Aline Belfort
Mohana Uchôa como Caia
QUANDO CHEGAR A NOITE, PISE DEVAGAR Não consigo ser totalmente naturalista, carrego sempre algo lúdico comigo, algo de fantasia. Meus figurinos são sempre muito estéticos, talvez porque minha influência inicial tenha sido Morte em Veneza. No curta-metragem Quando chegar a noite, pise devagar, dirigido por Gabriela Alcântara, decidi que os personagens teriam cores específicas bem marcadas. Como os personagens da história têm seus orixás, tentamos respeitar essa dinâmica de cores do candomblé. 173
Fotos João Penna
A pesquisa de figurino para o curta foi bastante baseada nas roupas dos frequentadores dos bares da Rua Mamede Simões, no centro do Recife. Não mandamos fazer nada. Cerca de 70% das roupas eram do meu acervo ou foram emprestadas. Pedi também roupas de algumas pessoas que encontrei e fotografei durante as pesquisas. Eu tinha muita consciência sobre o que a diretora precisava porque ela é uma das minhas melhores amigas, assim como a atriz principal, Mohana Uchôa, também é uma grande amiga. Diferente de Superpina, o filme de Gabriela Alcântara não tinha abertura para coisas loucas.
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João Penna
Pablo Lopes/Fábrica Estúdios
Carlos Eduardo Ferraz (em destaque) como Frei Damião jovem
FREI DAMIÃO Frei Damião: o santo do Nordeste, de Deby Brennand, é um documentário intercalado por momentos lúdicos e poéticos, que me permitiram trabalhar com uma cartela de cores bem marcada em sintonia com a direção de arte e a fotografia. O filme foi realizado em parceria com a Igreja Católica, o que facilitou minha vida absurdamente porque nos emprestaram tudo o que pedimos. Mesmo assim, tivemos que fazer toda uma pesquisa porque as roupas usadas pelos freis de hoje em dia não são as mesmas das épocas retratadas. Estudei bastante as fotos e materiais de arquivo. Algumas das peças que aparecem no filme costumam ser usadas por padres apenas em conferências ou ocasiões especiais e exigem muitos cuidados. São coisas bordadas à mão, cheias de recomendações, muito luxuosas, que mostram como a igreja do passado tinha mais elementos fantásticos do que tem hoje. 176
As roupas dos monges de hoje ainda são iguais às antigas, mas os materiais mudaram. O tecido atualmente é sintético, de poliéster, mas na época era natural, de linho. O cordão atualmente é de nylon e antigamente era de algodão. Decidi procurar freis que ainda guardavam os originais antigos e consegui pegar alguns emprestados.
Fotots Pablo Lopes/Fábrica Estúdios
João Vigo
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Pablo Lopes/Fábrica Estúdios
Babi Jácome e Andrade Júnior
A foto de Frei Damião mais antiga que tínhamos para usar de referência foi feita no dia da cerimônia de entrada dele na congregação na Itália. Para as cenas da infância, na primeira década do século XX, costuramos tudo a partir de pesquisas sobre famílias italianas da época. Tive a sorte de contar com um estudioso de Frei Damião, que prestou consultoria ao filme e contribuiu para o figurino. Também troquei muitas informações com minha avó, que é uma católica fervorosa. Para interpretar Frei Damião nos anos 1990, o ator Andrade Júnior precisou usar próteses na barriga e nas costas, feitas com espumas de nylon, construídas por Cris Malta e Andrea Afonso, da equipe de maquiagem. Montávamos juntas por ser bastante trabalhosa. Para a corcunda caber, pegamos uma roupa maior do que o tamanho dele. É um hábito normal de monge, mas amarrado com um tipo de nó específico que eu tive que aprender a fazer. 178
Foto Dani Neves
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“Minha grande inspiração são as pessoas. Já tenho como hábito sempre observar o estilo das pessoas por onde ando”
Chris Garrido foi a primeira figurinista brasileira a ganhar o Prêmio Fênix de melhor figurino, conhecido como o Oscar Ibero-Americano, na Cidade do México, em 2014, por seu primeiro longa-metragem Tatuagem (2013), dirigido por Hilton Lacerda e grande vencedor do Festival de Gramado. Pela mesma obra, também foi indicada ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro (2014). No longa, Garrido construiu, por meio da anarquia e do deboche, um vestuário de época que suscita resistência política e uma reflexão sobre o conceito de liberdade. No seu currículo, entre séries e longas, acumula trabalhos de destaque, como Pacarrete (2019) de Allan Deberton, grande vencedor do Festival de Gramado, Açúcar (2017) de Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira, Lama dos dias (2018), minissérie do Canal Brasil dirigida por Hilton Lacerda e Helder Aragão, Lucicreide vai pra Marte (2021) de Rodrigo César e Fim de festa (2020), de Hilton Lacerda, vencedor do Troféu Redentor de melhor filme no Festival do Rio.
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Suzanne Queiroz
A primeira coisa que me fez gostar de figurino foi o Carnaval. Meu pai amava a festa na rua e minha mãe os bailes nos clubes. Aprendi a gostar de todo tipo de folia. Todos os anos da minha infância, meu pai me presenteava com uma roupa de havaiana, dessas bem baratas que vendiam no comércio do centro da cidade. Eu amava. Sempre gostei de fantasias. Dancei caboclinho e pastoril e amava as roupas de São João da escola. Na adolescência, comecei a fazer minhas próprias fantasias e a de algumas amigas. Então, em relação a ter vontade de fazer figurino, o que me fez botar a mão na massa foi o Carnaval e minha relação afetiva com as manifestações folclóricas de Pernambuco. Outra influência forte foi a convivência com minha avó materna. Meus avós eram espanhóis. Meu avô era uma pessoa muito rígida e resistente à cultura brasileira, então vivi bastante dentro da cultura espanhola. Trouxe 181
meu olhar para um mundo diferente do mundo daqui. Vovó ouvia valsa e tinha coleções de leques e luvas. E eu não conhecia mais ninguém com esses hábitos. Nas minhas fotos de infância, todas as minhas roupas são da Espanha. As que não vinham de lá, minha avó fazia. E eu gostava de me vestir diferente das outras pessoas. Sou formada em Turismo pela Universidade Católica de Pernambuco. Logo em seguida comecei a cursar Jornalismo na mesma instituição. Meu primeiro trabalho em cinema foi como jornalista. Fui assessora de imprensa do curta Cachaça, de Adelina Pontual, lançado em 1995. Muitos professores da faculdade eram ligados ao cinema, como Celso Marconi, Alexandre Figueirôa e Jomard Muniz de Britto. No primeiro dia de aula, conheci Hilton Lacerda, e a partir daí criamos uma amizade e parceria no trabalho. O que me levou para o figurino no audiovisual foi minha experiência como produtora na TV Viva, no programa de auditório Tela viva. Eu cuidava de tudo, inclusive das roupas do apresentador. Era a época em que o movimento Mangue estava fervilhando e um monte de coisas estava despontando na música, no cinema e nas artes plásticas. Fizemos videoclipes de bandas como Mundo Livre S/A, produzimos muita coisa bacana, às vezes por pura diversão. Foi uma época incrível e muito inspiradora. Na TV Viva, participei também da cobertura das filmagens de Baile perfumado, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, que acompanhamos durante quase um mês, produzindo o programa Tela viva em paralelo ao set do filme. No final da década de 1990, grandes campanhas publicitárias começaram a ser realizadas no Recife. Isso me ajudou muito a ter experiências com um olhar mais completo para o set de filmagem. Comecei a trabalhar com figurino e produção de elenco. Eu já tinha interesse por roupa, fazia fantasias de Carnaval para amigas, organizava bazares e gostava muito de tingimentos. Sempre gostei de roupa, mas não com um olhar de moda. Era um olhar muito mais de comportamento, de entender roupa como atitude. Meu primeiro trabalho como figurinista no cinema oficialmente foi no curta Café Aurora, de Pablo Polo. Depois fiz assistência de elenco no longa-metragem Lisbela e o prisioneiro, de Guel Arraes. Fui assistente de figurino no filme musical A luneta do tempo, de Alceu Valença, encarregada especialmente de confeccionar as roupas dos cangaceiros, inspiradas no Baile perfumado. 182
Flávio Gusmão/Carnaval Filmes
Elenco da Trupe Teatral Chão de Estrelas
TATUAGEM Tatuagem foi o primeiro longa que assinei como figurinista. Eu tinha muita intimidade com o roteiro, que Hilton escreveu em parte na minha casa, onde ele se hospedava quando vinha de São Paulo. Não senti o peso de ser um primeiro trabalho por causa da minha relação com ele e porque eu já tinha certeza sobre o que queria. Estava muito segura. Tinha aquele roteiro na ponta da língua. 183
Flávio Gusmão/Carnaval Filmes
Jesuíta Barbosa como Arlindo Araújo, o Fininha, e Irandhir Santos como Clécio Wanderley
Em Tatuagem, havia o cotidiano dos personagens e os espetáculos que eles encenavam. O figurino que eles usavam no palco precisava parecer ter sido feito por eles. Por isso, às vezes, eu tinha que propositalmente deixar as roupas meio mal feitas. Para a cena do pastoril, por exemplo, meus assistentes me trouxeram roupas de pastoris da periferia, mas não consegui usar. Preferi partir do zero, produzir tudo para poder rasgar e descosturar.
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Flávio Gusmão/Carnaval Filmes
Flávio Gusmão/Carnaval Filmes
Os atores Erivaldo Oliveira e Irandhir Santos
Recebi 645 peças de roupa emprestadas da equipe de Tatuagem. Isso foi uma coisa linda. Eu tinha um elenco enorme e um grupo de 30 personagens do Exército que tomava todo meu orçamento. A roupa mais importante do filme, por exemplo, veio de uma sacola de roupas trazida por Amanda Gabriel, preparadora de elenco, que é o casaco de Clécio uando ele canta a música de Caetano Veloso. Cheguei a ir a São Paulo procurar esse casaco e não encontrei o ideal, que era inspirado em Caetano no exílio. Não podia ser muito pesado porque, na época retratada, um artista periférico como Clécio não teria acesso a coisas do resto do mundo e eu queria trazer isso para a realidade tropical. Quando abri a sacola de Amanda, vi um bolero e na hora decidi que aquela seria a peça a ser usada por Clécio. É linda essa história. Como o próprio personagem diz para Fininha, eu não pensei no calor, pensei na elegância. 186
Flávio Gusmão/Carnaval Filmes
Rodrigo García como Paulete
Muita coisa foi construída manualmente nesse figurino. O clima do set era muito bonito. Foi um trabalho coletivo bonito e isso ajudava muito diariamente. Todo mundo se ajudava. Aquela procissão, filmada em super-8, que é um momento lindo, ainda não tinha figurino definido um dia antes. Acabou virando uma das principais fotos de divulgação do filme. A trupe era de 13 pessoas, separei umas três opções para cada um e definimos tudo em uma hora.
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Fotos Flávio Gusmão/Carnaval Filmes
Na pré, todos os dias, no final do dia, os atores se reuniam para ensaiar e criar os espetáculos. Eu ficava para assistir com Hilton. Esses espetáculos não estavam no roteiro, então ainda não tinha como ter figurino. Foram criados ali no ensaio. Isso já estava combinado. Para enfrentar um desafio assim, você tem que estar muito imersa para dar conta e não pode transmitir insegurança. E foi muito divertido de fazer.
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Fotos Flávio Gusmão/Carnaval Filmes
Criar o figurino junto com os atores é uma coisa com a qual a gente precisa ter muito cuidado. Como preciso da personalidade do personagem, preciso também entender como o ator está entendendo essa personalidade da personagem. Por isso estou sempre muito junto dos atores e eles estão sempre pelo camarim.
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Flávio Gusmão/Carnaval Filmes
Outro momento muito importante do filme é a música cantada por Dolores del Samba, personagem interpretada por Yasmim Salvador, que nessa cena dubla a voz de Isaar. O sabor da melancia, de Tsai Ming-Liang, era uma das principais referências de Hilton, mas é um filme de muitos figurinos de alta costura e não tínhamos orçamento para reproduzir aquilo. Mas eu sabia da importância dessa cena para Hilton e contei com a ajuda de amigos para confeccionar esse figurino. Decidi elaborar esse vestido em segredo. Nos intervalos das filmagens, ia escondida encontrar com Clesinho Santos e Márcia Lima, na grife Período Fértil, que era perto da locação. Disse a eles que queria fazer uma coisa inspirada nos mantos de maracatu. Eles me presentearam com um tecido bege que dava pra fazer o estilo que eu queria, que era aquela coisa tubinho com uma leve cauda. O charme era o desenho. Eu não sabia se ia dar certo e se ia conseguir terminar a tempo. Comprei um monte de galões, cortei todas as flores à mão com Clesinho e fomos preenchen-
Everton Gomes
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Flávio Gusmão/Carnaval Filmes
Nash Laila
do o vestido. Acrescentamos uns caminhos de linha para completar. Quando terminei, vesti Yasmim e a levei para Hilton. O olho dele encheu de lágrimas. No dia de filmar, Ivo Lopes, o diretor de fotografia, fez uma surpresa e mudou a movimentação de câmera para valorizar mais o figurino. Foi a coisa mais linda do mundo. Quando acabou a cena, todo mundo chorou no set nesse dia. Isso traz uma força que você vê na tela. Apesar de nossos olhares serem muito realistas, adotamos essas licenças poéticas, mas ao mesmo tempo conseguimos respeitar a época. Hilton, inclusive, pediu que não usasse calças boca de sino, que eu só encaixei em um único detalhe de uma cena. No Tatuagem, o grupo de teatro Vivencial foi uma inspiração por causa da época, mas o figurino deles era muito diferente. 191
Flávio Gusmão/Carnaval Filmes
Os diferentes núcleos de personagens funcionam de forma muito separada. Decidi ser mais fiel à época apenas no caso dos militares. Deu muito trabalho identificar qual era o figurino militar certo. As camisetas que eles usam nos treinamentos, por exemplo, tinham que ser 100% algodão porque isso imprime. Um amigo nosso, Marcelo Taulbert, mandou fazer as camisetas e cuecas e nos deu de presente. Depois eu envelheci. As fardas foram lavadas 11 vezes com cloro na lavanderia para envelhecer no ponto que eu queria. Foi uma construção muito difícil. Quase todo o orçamento do figurino do filme foi usado na ala militar.
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Fotos Flávio Gusmão/Carnaval Filmes
Bruna Barros como Jandira
Soia Lira como Albanita e Georgina Castro como Ceminha
A parte da família de Fininha foi a mais fácil de fazer, que são as pessoas do interior, pois já estou mais acostumada. O filme como um todo tem um certo glamour, então não queria rebaixar esses personagens e fazê-los muito lascados. Queria trazer a elegância do povo do interior. Já a namorada dele, que tinha uma lambreta, era mais moderninha, então resolvi colocar uma calça jeans para dar uma modernizada.
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Joana Pena
Chris Garrido, entre os figurinos de Tatuagem, na exposição da Cinemateca Pernambucana
O figurino de Tatuagem teve toda uma repercussão que eu não esperava, inclusive no mundo acadêmico. Fui indicada para a Academia Brasileira de Cinema. Cedi muitas entrevistas para pesquisadores. Quando fui a Manaus, no Amazonas Film Festival, recebi um elogio de Ney Matogrosso por causa do figurino. É uma recompensa que não tem preço. Quando ganhei o Prêmio Fênix em 2014, Alejandro Jodorowsky era um dos figurinistas concorrentes. Não esperava nunca ganhar aquele prêmio e já estava orgulhosa simplesmente por concorrer com ele. 194
Acervo Chris Garrido
LUCICREIDE VAI PRA MARTE Eu queria que as fardas dos astronautas e cientistas fossem fidedignas para não ficar caricato. Como o filme é uma comédia, correria esse risco. Assisti a um bocado de filmes americanos e de ficção científica. Antes de começar a filmar, entramos em contato com empresas dos Estados Unidos, mas era muito caro alugar os uniformes. Não queria fazer com uma costureira ou em facção de costura, queria uma empresa profissional, que tivesse registro reconhecido na confecção de fardamentos. No primeiro dia de pré-produção, já encomendei os macacões na única empresa brasileira que faz macacão de treinamento para astronautas. Seria muito mais fácil trabalhar com um alfaiate ou uma confecção, até por conta dos prazos curtos que tinha, mas eu queria uma roupa que pudesse ser aprovada para filmar na Nasa. A Nasa normalmente não aceita o que vem de fora, tem que ser o figurino deles. Eu sabia que era algo entre o laranja e o azul. Eu e o diretor já tínhamos decidido que seria azul. Íamos filmar nos Estados Unidos em dezembro, mas só conseguimos ir em fevereiro por causa das várias negativas que recebemos por causa de exigências da Nasa, com um protocolo complicadíssimo. Aí aconteceu o detalhe mais bonito: a única coisa que eles realmente aprovaram desde o início foi o figurino. 195
Pela minha experiência com Pacarrete e Lucicreide vai pra Marte, confirmei que fazer um filme com uma personagem muito central é às vezes mais difícil do que fazer um filme que tenha um volume maior de personagens principais. Pacarrete, interpretada por Marcélia Cartaxo, está em todas as cenas do filme e o figurino muda de acordo com o humor dela. Meu trabalho é muito emotivo. Preciso da ferramenta da emoção. Com Lucicreide, foi difícil porque eu não queria seguir uma fórmula. Era uma personagem que já estava no imaginário das pessoas. Fabiana Karla estava realmente aberta a uma nova proposta, mas tentei retirar o lenço da cabeça e ela não abria mão desse detalhe. Não consegui. Tive que incorporar, mas fiz do meu jeito. Usamos variações de acordo com cada roupa que ela vestia. Fiz mais de 50 lenços para Lucicreide.
All Screens Films / Divulgação
Lucicreide e os filhos nas filmagens no Recife
Não quis ver muitas imagens anteriores da personagem na TV. Minha ideia era partir para um figurino mais real, mais orgânico. Na TV, o figurino dela é mais bonitinho, com cara de fantasia. Eu não podia trazer para uma realidade pesada, pois é uma comédia, mas tive que buscar um equilíbrio entre uma roupa real e uma personagem fictícia. Cuidei de tudo na roupa dela, desde a cor das linhas e dos botões, até a combinação de tecidos.
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Donna Meirelles
Chris Garrido e Hilton Lacerda no set de Fim de festa
INSPIRAÇÃO Gente é o que me inspira. Minha grande inspiração são as pessoas. Já tenho como hábito sempre observar o estilo das pessoas por onde ando. Quando fui fazer Fim de festa, o último longa de Hilton, eu ficava sentada na praia do Pina para observar as pessoas que chegavam no ponto de ônibus, para identificar qual era a última moda do verão na periferia. Sempre procuro registros reais, seja de época ou contemporâneos. 197
Dinâmicas e sensibilidades do figurino no cinema pernambucano Iomana Rocha Apesar de diversas tentativas de classificação, apesar da crítica muitas vezes buscar especificidades formais que o descrevam, apesar da criação de termos (como “novo cinema pernambucano”), o cinema pernambucano é plural e heterogêneo. Mas, dentro dessa heterogênea existência, inegavelmente há alguns aspectos que impactam esse cinema, que delineiam os modos de produção, que expandem as possibilidades criativas. Este texto tem o objetivo de observar o figurino do cinema realizado no estado de Pernambuco, em um período que se inicia no que popularmente se chama retomada do cinema pernambucano e vai até os dias atuais. Assim, será observado como alguns aspectos estéticos, culturais e práticos atravessam o modus operandi do departamento de figurino. Diante de um recorte de profissionais, olhamos para os processos criativos inerentes ao figurino desses filmes e como ele contribui na construção visual e sensível desse cinema pernambucano contemporâneo.
Um pouco sobre o cinema em Pernambuco O cinema pernambucano marcou sua presença na história do audiovisual brasileiro em vários momentos, foram vários ciclos, cada um embebido de seu contexto cultural e político. E em cada ciclo, esse cinema se renova, se transforma, se transfigura. Aqui vamos observar um período de produção que se inicia a partir do que entendemos na história do cinema brasileiro como período da retomada e segue até os dias atuais. Iomana Rocha é formada em Arte e Mídia (UFCG), tem mestrado e doutorado em Comunicação (UFPE), e pesquisa cinema independente e experimental brasileiro. Trabalha no departamento de Arte desde 2007. Fez direção de arte para diversos curtas e longas-metragens, com trabalhos exibidos em importantes festivais nacionais e internacionais. Na área acadêmica desenvolve pesquisa sobre a direção de arte no cinema brasileiro. É uma das responsáveis pelo seminário temático de direção de arte da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual – SOCINE. Faz parte do Núcleo de Investigação em Direção de Arte Audiovisual – NIDAA (CNPq). Foi professora de direção de arte no curso de Cinema da UFPA. Atualmente é professora de direção de arte no Núcleo de Design e Comunicação da UFPE/CAA. 200
Período que a crítica se acostumou a chamar de “novo ciclo do cinema pernambucano” ou apenas “novo cinema pernambucano”, mas que possui dinâmicas, processos e mutações que o torna heterogêneo e muito mais diverso do que classificável. Esse dito período de retomada tem como marco o filme Baile perfumado, de 1996, dirigido por Lírio Ferreira e Paulo Caldas. Neste período um grupo de realizadores promove com seus filmes uma renovação da linguagem audiovisual no estado, com um modo de produção que se desviava do método “industrial”, propondo-se a produzir filmes com baixos orçamentos e inovações estéticas que se diferenciavam do cinema mainstream. Não existe necessariamente uma unidade estética ou formal relacionada a esse grupo de cineastas que encabeçou a retomada pernambucana. O que pode ser sublinhado é o vínculo afetivo que se estabelece entre eles, vínculo que originou a famigerada terminologia “brodagem”, associada exatamente ao modus operandi próprio dessa fase. Mas, para além das produções serem realizadas com ajuda mútua, os vínculos coletivos também repercutiram diretamente em um engajamento político na busca por recursos financeiros frente ao governo brasileiro, visando a legitimação e profissionalização do cinema do estado.
1 NOGUEIRA, Amanda Mansur Custódio. A brodagem no cinema em Pernambuco. 2014. 235 f.: il. Tese (Doutorado Comunicação) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2014.
Existe, inegavelmente, em Pernambuco, uma estratégia de produção que se desenvolveu às margens do que era comumente feito no contexto sudestino. Uma prática colaborativa de produção, envolvendo trocas de ideias e serviços, “um conjunto de reciprocidade e jogos de interesses apoiados numa lógica que parte do pessoal para o profissional” como coloca a pesquisadora Amanda Mansur1. Para além da “brodagem”, ganha força dentro do cinema pernambucano uma consciência sobre o fazer coletivo. Esse fator, presente até hoje, foi decisivo na produção da retomada e, nas gerações posteriores, contribuiu para a formação de diversos coletivos de realizadores. Nesse contexto colaborativo e coletivo, destaca-se outro importante aspecto: a formação empírica. Esses cineastas aprenderam vivenciando cineclubes e a crítica cinematográfica, e trabalhando uns nos filmes dos outros, exercendo funções diversas. O método, associado aos baixos orçamentos de produção, colaborou com uma inventividade estética que permeia o cinema pernambucano até os dias atuais. Esse modo de produção, que se estabeleceu em Pernambuco a partir da década de 1990, impacta nas escolhas técnicas e nos caminhos estéticos dos filmes. O improviso, o acaso, o naturalismo, passam a ser recursos de linguagem. O processo criativo se torna orgânico, aberto, passível de mudanças e adaptações, algo tão atacado pelo cinema de mercado, mas que ganha potência e vira marca estética em Pernambuco. Esse naturalismo vai envolver a opção por uma linguagem mais documental, assegurada por fatores como: locações reais, luz natural, não atores, câmera observativa. Se nos anos 1990 existiu um grande empenho em busca de recursos que possibilitassem a produção do cinema local feito por um pequeno grupo, aos poucos foi sendo conquistada a garantia de importantes editais estatais voltados para o audiovisual. O que repercutiu em uma produção quantitativamente maior e gradativamente mais diversa. Isso impacta de modo direto na formação e no fortalecimento da área técnica do cinema, como é o caso do departamento de figurino.
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Influenciado pelas inovações estéticas do cinema contemporâneo mundial, as novas gerações investigam linguagens, propõem novas estruturas narrativas e problematizam a imagem cinematográfica. Assim, atrelado a certo experimentalismo, observa-se um refino visual, uma construção sensível e simbólica que requer a participação ativa dos processos criativos técnicos do cinema, como a fotografia, o som, a direção de arte e o figurino. Mantendo alguns aspectos já presentes no cinema pernambucano, como a produção colaborativa e o sistema de guerrilha, a geração mais recente de diretores se beneficia dos editais e das facilidades do cinema digital. Os coletivos viram pessoas jurídicas, o aprendizado empírico se mantém, mas existe uma maior experiência e maior acesso a tecnologias, bem como o advento de cursos de cinema no estado, que também vai impactar nos modos de produção. Podemos identificar nos filmes dessa geração um engajamento político mais consciente, uma preocupação com a alteridade, com os processos de urbanização da cidade e seus impactos sociais.
2 AGUIAR, José de; BEZERRA, Júlio; PESSANHA, Marina. O novo cinema pernambucano. Rio de Janeiro: Conde de Irajá produções, 2014.
Diante da filmografia do audiovisual pernambucano, da retomada aos dias atuais, existem caminhos estilísticos muito diversos, bem como diferentes abordagens temáticas. Como já dito, o cinema pernambucano é marcadamente heterogêneo. Todavia, existem alguns pontos recorrentes que atravessam, em diferentes medidas, a maioria desses filmes. Um deles é a presença de tensões entre modernidade e tradição, entre o global e local, entre a urbanidade contemporânea e o passado patriarcal, entre a liberdade e o conservadorismo moral2. Essa complexidade social proposta nos filmes vai refletir uma tentativa de compreender mais profundamente os processos históricos e as contradições sociais presentes no estado. Juntamos a isso um modelo de produção atravessado por afeto e inventividade. Aspectos que certamente agigantam o cinema pernambucano.
O figurino e seus processos O figurinista é responsável por vestir os atores em uma obra cinematográfica. Ao criar figurinos, o profissional colabora potencialmente na construção da imagem. O figurino respalda a narrativa, comunica sobre o personagem, seu entorno, seu universo pessoal. As roupas são capazes de marcar períodos históricos, eventos, festividades, o status do personagem, sua profissão, faixa etária, origem geográfica, personalidade, visão política e de mundo. O processo de criação de um personagem envolve o desenvolvimento de uma sistemática de elementos visuais que se complementam: as cores, os materiais, os volumes, as texturas, as modelagens, dentre outros, permitem que o “espírito” do personagem preencha o corpo do ator. E, a partir desse momento, o corpo passa a ser parte constitutiva da imagem cinematográfica. Esse corpo vestido (ou propositalmente desnudo) não apenas fala de si, como propõe diálogos com os demais corpos, com os cenários e com as paisagens. LURIE, Alison. A linguagem das roupas. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. 3
Alison Lurie3 aborda o ato de vestir como uma forma de linguagem, uma forma de comunicação não verbal composta por elementos que funcionam como uma espécie de “vocabulário”, e defende que o vestuário seja talvez o mais eficiente meio de comunicação não verbal que o ser humano usa, nos dias de hoje e há séculos. Por meio desse jogo de interpretações, a cada aparição o figurino constrói sensações e colabora na construção do universo fílmico. Por vezes, a leitura possibilitada
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4 LA MOTTE, Richard. Costume design: the business and art of creating costumes for film and television. Michigan: McNughton & Gunn, Estados Unidos, 2. ed., 2010.
pelos indícios do figurino aparece antes mesmo do gesto ou da palavra. Isso se dá muito fortemente pela potencialidade cultural das vestimentas e adereços. Sobre este ponto, La Motte4 aponta que as roupas estabelecem condições culturais, marcam lugares sociais. Os figurinos são metáforas de seus personagens. Quando observamos o figurino no cinema feito em Pernambuco, diante de sua característica intrínseca de demarcar os personagens e seus contextos, é notória a presença de escolhas que marcam, enfatizam, realçam aspectos culturais, sociais, temporais e comportamentais que são próprios da cultura e da sociedade pernambucana. Existe uma busca por representação, não aquela estereotipada que por tanto tempo foi associada à região Nordeste pelas produções audiovisuais nacionais, mas uma representação que observe cuidadosamente as nuances e multiplicidades culturais que de fato constituem a sociedade. E é diante dessas complexas dinâmicas sociais que o cinema pernambucano encontra muitas de suas inspirações. Os filmes aqui observados, em sua maioria, refletem embates culturais. Dentro dessa proposta, o processo de criação dos figurinos segue na busca por demarcar tais sutilezas, contrastes e especificidades que desenham essa sociedade. Diante do que é sublinhado por essa construção visual, as escolhas dos figurinistas refletem também escolhas políticas que, por consequência, direcionam as relações de identificação entre espectador e personagem.
5 TAKEUCHI, Teresa Midori. Notas sobre o figurino no cinema brasileiro – do novo ao novíssimo. In: BUTRUCE, Débora; BOUILLET, Rodrigo (org.). A direção de arte no cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Caixa Cultural, 2017. 6 HAMBURGER. Vera. Arte em cena: A direção de arte no cinema brasileiro. São Paulo: Edições SESC. 2014.
As estratégias para desenvolver um projeto de figurino não são padronizadas, pois a cada filme são diversas as opções, as articulações, os caminhos. É preciso entender a vestimenta, seus aspectos sociais e culturais e como cada peça irá funcionar em cena5. A pesquisa é uma ferramenta importantíssima para o processo, é através dela que a equipe de figurino pode reconhecer os sistemas de pensamento, organização social e as representações simbólicas da sociedade e dos indivíduos. Vera Hamburguer6 afirma que precisamos ser fiéis aos códigos estabelecidos, códigos esses que não dizem respeito exclusivamente à direção de arte e figurino, mas ao comportamento do filme como um todo dentro daquele universo. Cada peça de roupa é lida como um signo relacionado a códigos sociais. Assim, o figurino trabalha com o imaginário do receptor, propondo diferentes sensibilidades no decorrer da trajetória narrativa.
Algumas observações sobre o figurino no cinema pernambucano Baile perfumado (1996) é o filme marco da retomada do cinema pernambucano. E é também um marco do princípio de uma trajetória de profissionalização das equipes de cinema do estado. No filme, assim como em vários outros do período, as equipes ainda eram formadas com muitos profissionais de fora. Gradativamente, com a constância da produção, surgem e se consolidam profissionais locais em diversas áreas técnicas do cinema. Diante dos caminhos do cinema pernambucano e observando a trajetória formativa dos figurinistas desse cinema, é interessante observar que a maioria dos profissionais adquiriram seus conhecimentos de forma empírica. Mesmo tendo formações em áreas transversais ao figurino, como moda, artes visuais, comunicação, dentre outras, é na atividade prática que a maioria absorve as dinâmicas do ofício.
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O gradativo processo de profissionalização e especialização é também vivenciado pelo departamento de figurino. Essa profissionalização provocou o amadurecimento de técnicas e processos, gerando modos de trabalho e redes cada vez mais sólidas. Diante das trajetórias individuais dos profissionais de figurino de Pernambuco, é interessante observar o quanto a carga subjetiva e cultural de cada um perpassa os processos criativos. Com isso, o conhecimento empírico que marca esses profissionais vai transbordar os limites do saber “técnico”, levando a processos e resultados mais viscerais. Cada figurinista, diante das diversas experiências pessoais, transfere para as propostas artísticas sensibilidades que refletem suas existências. Seja valorizando a ancestralidade por meio da evidência dos detalhes manuais, seja quebrando valores estéticos tradicionais com propostas modernas, seja evidenciando a representação da sociedade por meio da opção estética naturalista; os caminhos do figurino pernambucano ganham uma potência visual que engrandecem o olhar sensível sobre a sociedade, sobre o vestir, sobre o impacto das suas escolhas enquanto figurinistas. Os processos criativos gerados por esses profissionais no decorrer de todo esse tempo são heterogêneos, mas antes de tudo a força está no fato de serem processos instintivos, atravessados pela errância e pelo acaso, baseados em uma vivência imersiva que valoriza a observação da sociedade. Observando os resultados desses trabalhos é interessante frisar a experimentação como um elemento marcante do figurino pernambucano, seja no modo de fazer, no processo de criação, ou mesmo no figurino em si. Essa experimentação vista no departamento de figurino também se configura como uma estratégia de adaptação ao sistema de produção do cinema pernambucano, que se baseia majoritariamente em produções de baixo orçamento. Mesmo com os editais de apoio à produção audiovisual, o cinema pernambucano tem um valor de produção abaixo dos valores de outros estados, o que resulta muitas vezes na falta de uma estrutura ideal de produção e a consequente busca por alternativas criativas que possibilitem os resultados desejados. O baixo orçamento gera uma adaptabilidade criativa. Associado a esse modo de produção, podemos apontar também para o conceito da “brodagem”. Podemos dizer, baseado na observação dos processos do cinema pernambucano, que grande parte das produções dos departamentos de figurino dependeram e dependem em muito dessa relação de “brodagem”, que se estabelece entre figurinistas, nas trocas de acervos e contatos, bem como numa rede de colaboradores como brechós, lojas parceiras, estilistas e profissionais da moda e de outros setores que também são, por vezes, acionados nessas redes. Esse modus operandi específico, que envolve empirismo, errância, adaptabilidade e criatividade, colabora diretamente para o destaque do cinema pernambucano contemporâneo, que tem como marca uma renovação estética e formal frente ao cinema nacional. Diante desses filmes, e pensando em traçar alguns comentários sobre seus figurinos, aponto e dou ênfase a algumas recorrências e questões. A partir de alguns pontos de comunhão observados, é latente em parte da produção do cinema pernambucano a presença de tensões entre dualidades como
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o moderno e o global, o urbano e o passado patriarcal, a liberdade e o conservadorismo. Uma sociedade em contraste. Em vários filmes o figurino explora essa complexidade cultural própria de Pernambuco, seja de forma comparativa, seja de forma alegórica. Como é o caso dos contrastes morais em Amarelo manga (2002), filme de Cláudio Assis e figurino de Andrea Monteiro; o contraste de personalidade das protagonistas de Amor, plástico e barulho (2013), filme de Renata Pinheiro com figurino de Joana Gatis; os contrastes culturais e temporais em Bacurau (2019), filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles com figurino de Rita Azevedo; o contraste desnorteante entre os corpos e as ruínas da cidade em A seita (2015), filme de André Antônio com figurino de Alysson Santos e Paulo Ricardo; o contraste ideológico entre os personagens de Tatuagem (2013), filme de Hilton Lacerda com figurino de Chris Garrido, dentre vários outros. Outro aspecto que pode ser enfatizado nesse recorte de filmes pernambucanos é a recorrente opção por uma estética naturalista, por vezes com tons documentais. Primeiramente acho necessário frisar a importância e responsabilidade que há diante da construção de imagens que se propõem naturalistas. Exige muita pesquisa e respeito ao contexto retratado. E dentro desse universo, o figurinista precisa compreender o tom dos personagens, para que esse realismo seja crível e, ao mesmo tempo, comunique aspectos intrínsecos ao personagem e ao recorte social e cultural ao qual ele está inserido. Refletir imageticamente a realidade que é posta no roteiro de forma naturalista é um trabalho árduo e requer sensibilidade, imersão e pesquisa profunda. É preciso ter consciência sobre o impacto das escolhas do figurino na interpretação da imagem. O naturalismo enfatiza os atritos culturais próprios dos tempos contemporâneos no Nordeste do país, enfatiza contradições históricas da formação social e cultural de Pernambuco. Já a opção pela estética documental se preocupa em ser fiel ao tempo representado, quase como um documento histórico, enfatizando inclusive o processo de transformação social. A credibilidade dos figurinos contribui diretamente para a credibilidade dos universos como um todo (sejam reais ou não), e na compreensão simbólica das dinâmicas sociais que se desenrolam nesses espaços. Um contraste cultural e ideológico, por exemplo, é apresentado pelo figurino de Chris Garrido para o filme Tatuagem. O grupo de artistas de Chão de Estrelas é apresentado com figurinos descontraídos, com cores marcantes, modelagens ousadas, que refletem um posicionamento político e uma sede de liberdade, enquanto, em contraponto nos outros núcleos, os figurinos apresentam cores e modelagens mais sóbrias, transparecendo posicionamentos morais tradicionais. A escolha de uma estética naturalista, em muito, está atrelada a uma forma de ver o mundo, a um olhar mais político. Isso também reverbera muitas vezes nos processos criativos do figurino, nas escolhas que são feitas e nas leituras imagéticas que são propostas. No caso de filmes naturalistas, a preocupação em respeitar a realidade do outro e, principalmente, em propor ao espectador, por meio do figurino, uma leitura do outro que seja respeitosa e que contribua, inclusive, para a desconstrução de estereótipos. Esse posicionamento pode ser observado, por exemplo, no filme Amor, plástico e barulho com figurino de Joana Gatis, no qual o processo de pesquisa para construção dos personagens buscou ser fiel à realidade do universo brega recifense e,
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por meio de pesquisa e imersão, a equipe buscou as nuances que permeiam esse contexto social, visando a construção de um figurino que fosse representativo, dramático, mas que ao mesmo tempo desconstruísse estereótipos relacionados àqueles personagens. Em Tatuagem, Amor, plástico e barulho e diversos outros filmes pernambucanos é interessante observar que, para além do naturalismo, existe uma plasticidade sofisticada no processo de construção da imagem, que se usa dos elementos naturalistas, mas potencializa e reconfigura seus signos. Partindo dessa observação, aponto que, nos figurinos do cinema pernambucano, existe esse caminho que perpassa por variações de uma estética naturalista, mas também se evidencia um caminho que flerta com a estética do artifício, que propõe uma linguagem mais alegórica, mais lúdica.
LOPES, Denilson. Afetos. Estudos queer e artifício na América Latina. E-compós, Brasília, v.19, n.2, maio/ ago. 2016, p. 03.
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Essa ideia do artifício está ligada a uma construção imagética que contrapõe a ideia realista do registro cinematográfico. Em filmes com a presença do artifício, o fenômeno estético é tão importante quanto a narrativa. Segundo Denilson Lopes7, “O artifício possui um vasto campo semântico, da teatralidade barroca à simulação midiática, da tradição do travestimento nas artes cênicas aos desafios da performatividade do sujeito contemporâneo”. Em muitos desses filmes, o artifício é utilizado esteticamente como uma estratégia de criticar o “real” e uma potência de transgressão, a exemplo de filmes como Bacurau, A seita, Os últimos românticos do mundo (2019) e Superpina (2018), este com figurino de Babi Jácome. O figurino nesses filmes explora elementos simbólicos, explora uma plasticidade mais ousada, poetiza a relação dos corpos com os espaços. Em Os últimos românticos do mundo, a figurinista Maria Esther de Albuquerque propõe, com recursos inventivos, a construção de um universo queer futurista e transgressor influenciado por elementos do camp. Em Bacurau, a construção do personagem Lunga feita por Rita Azevedo agrega elementos do cangaço, das gangues urbanas, do brega, da cultura pop, do universo queer, numa miscelânea que reflete de forma alegórica a complexidade daquele personagem e da sociedade em que vivemos. No filme A seita, vemos a estética do artifício se mesclar a outro aspecto recorrente nas temáticas do cinema pernambucano: a crítica ao espaço urbano e ao progresso desenfreado. Muitos filmes vão problematizar o futuro das cidades diante da falta de planejamento, o caos urbano que também se confunde com resquícios do passado. E em muitos destes filmes o figurino possui um papel importante ao evidenciar as relações imagéticas do corpo com a cidade. Seja por meio de contraste, ou explorando aspectos mais simbólicos, o figurino muitas vezes direciona uma observação política dos corpos no espaço, como é o caso do filme A seita, no qual, dentro de uma estética do artifício, figurinos com modelagem e tons inspirados no barroco e rococó contrastam com imagens de uma Recife futurista em ruínas, suja, pós-apocalíptica. Vemos o personagem percorrer a cidade e propor um olhar contemplativo e crítico sobre esse espaço, um contraste temporal que propõe a falência dos sistemas sociais. Observamos a relação do figurino com a cidade também no filme Tatuagem, a exemplo da cena em que os artistas do teatro, em um momento quase idí-
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lico, desfilam em bloco pela cidade, o figurino dos personagens causa estranheza e sublinham a existência de outras formas de ver e viver o mundo. Diante do que foi posto, podemos observar que o figurino do cinema pernambucano envolve diversos olhares, com diversos processos criativos, diversas metodologias que, apesar de seguir certa “metodologia do figurino de cinema”, a forma “oficial” de se fazer figurino vai sofrendo algumas adaptações locais, reflexo do empirismo e das demais especificidades observadas. Mas, inegavelmente, a construção estética do cinema pernambucano é fortemente marcada pela presença criativa dos figurinos e a visceralidade dos processos transborda para as imagens. Em conjunto com a direção de arte, a paisagem, a iluminação, a fotografia, o figurino colabora e potencializa a construção imagética desse cinema.
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Breve guia de figurino: conceitos, cotidiano e ferramentas da profissão Álamo Bandeira
Imergindo no tema
VIANA, Fausto. Para documentar a história da moda: de James Laver às blogueiras fashion. São Paulo: ECA/USP, 2017, p. 48.
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Quando as luzes da sala de exibição se apagam e a imagem da câmara clara emerge, mesmo diante da expansão do mercado audiovisual no país e o destaque do cinema local, a maioria dos espectadores não imagina a quantidade de profissionais envolvidos para que cada etapa da narrativa se torne real. Mas, em especial, há uma equipe técnica que segue silenciosa traduzindo os sonhos impressos no roteiro em trajes de cena1 que dão vida a cada uma das personagens das tramas. Partindo do desejo de trazer à luz o cotidiano das pessoas responsáveis pelo costume design e tomando como ideia básica a premissa de que, para produzir bons figurinos, é preciso sobretudo revelar cada uma das etapas de execução das peças, este capítulo sintetiza as diversas fases que compõem a criação de figurino em suas múltiplas facetas (seja no cinema, na televisão e em materiais diversos) e se propõe como um guia rápido para as principais dúvidas e métodos de execução da profissão. Ao longo do texto serão abordados os perfis profissionais esperados para atuação nos diversos formatos de projeto, quais habilidades necessárias e quem são os envolvidos e suas atribuições para facilitar o entendimento de quem atua ou pre-
Álamo Bandeira é figurinista para o mercado publicitário e cinematográfico, além de professor universitário e pesquisador. Mestre em Design, Cultura e Sociedade pela Universidade Federal de Pernambuco. Doutorando em Design pela mesma instituição – com pesquisas nas áreas de Tendências, Comportamento de Moda e Costume Design. Atualmente é professor substituto de Moda do bacharelado em Design da UFPE, onde leciona temas como: História da Moda, Moda e Cinema, Modelagem Plana Básica e Planejamento e Projeto de Moda.
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tende atuar no setor. Além disso, algumas perguntas básicas serão respondidas e exemplificadas para desmistificar as principais dúvidas da atuação hoje. Para finalizar, será traçado um breve panorama dos métodos de figurino usados em cada uma das três etapas que envolvem a criação audiovisual: a pré-produção, o set de filmagem e a desprodução. Como base argumentativa, são tomadas entrevistas com profissionais apresentando a ótica do backstage por quem a vive, além das experiências práticas do autor no set. Mas antes da imersão instrumental, um conceito-chave precisa ser apresentado.
Afinal, o que é traje de cena? 2 VIANA, Fausto e BASSI, Carolina (org.). Traje de cena, traje de folguedo. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2014.
3 VIANA, Fausto e VELLOSO, Isabela M. . Roland Barthes e o traje de cena [recurso eletrônico]. São Paulo: ECA-USP, 2018, p. 9. 4 LAVER, James. A roupa e a moda: uma história concisa. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 5 Apud ERNER, Guillaume, VEBLEN, Thorstein. A sociologia das tendências. São Paulo: Gustavo Gili, 2015, p. 72.
LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 83.
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SARAIVA, Clarissa, assistente de figurino, durante entrevista online por áudio realizada em 21 de março de 2021.
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VIANA e VELLOSO. op. cit., p. 9.
Para facilitar os estudos das várias funções sociais da roupa, Fausto Viana e Carolina Bassi2 distinguem o traje de cena do figurino. Para os autores, o segundo termo refere-se às ilustrações de vestuário (muito comuns no século XIX, por exemplo) que serviam como referencial imagético (uma espécie de croqui). Já a primeira expressão traduz todo e qualquer objeto que recobre o corpo do ator em cena. Entretanto, aqui, ambas as palavras são tomadas como sinônimas de costume design, e a profissional figurinista (ou costume designer) como chefe de uma equipe responsável por dar vida a qualquer detalhe ligado ao vestuário dos palcos e narrativas audiovisuais. “Traje de cena não é moda, ainda que possa representá-la quando necessário. Quando a moda sobe ao palco teatral (ou é retratada pelas lentes do cinema), torna-se traje de cena”3. Em outras palavras, a roupa quando aplicada em performances artísticas – tomando desde os quítons vestidos nos anfiteatros helênicos como exemplo seminal4 e chegando até a contemporaneidade com o agasalho em rede que Irandhir Santos dança no longa A história da eternidade – é bem mais antiga que o efêmero calendário regido pela lógica do descarte e do uso focado no “consumo conspícuo” de Veblen5 e ditado pelo sistema da moda, tão bem desenhado por Lipovetsky6, estruturado com a ascensão burguesa na modernidade e que marca toda a estética ocidental após a Revolução Industrial e o nascimento da Haute Couture parisiense. Tem-se então uma premissa central: o figurino não é um braço da moda, até porque este é bem anterior e ocupa função social distinta. A assistente de figurino Clarissa Saraiva sugere em entrevista que o traje de cena está mais próximo esteticamente da fotografia que da moda. “A gente tem uma tendência para pensar que, de cara, talvez, a Moda contribuísse (majoritariamente com o figurino), e, de fato, contribui muito essa pesquisa. Mas eu acho que tem que pensar muito em: referência de filme, de fotógrafo, até uma pintura. Claro que isso vai depender do projeto: se algo histórico, então vai ter que se debruçar bastante em pesquisa de época.”7 Pode-se então ir além e concluir que o verdadeiro produto do costume design é a mancha gráfica impressa no filme: a roupa vestida pelo ator é um suporte para criação desta imagem. O resultado definitivo só é visto nos monitores do diretor de fotografia e na tela do cinema – suportes bidimensionais. Da mesma forma é a pintura para as artes plásticas em geral. As vestes, quando elevadas aos holofotes, ganham contornos ritualísticos: a atuação tem o poder de desmembrar o corpo físico do corpo em performance, o ator cede a si próprio para que sua personagem venha à tona e o figurino tem papel fundamental nessa passagem do real para o imaginado, traduzindo-se como uma segunda pele deste humano camaleão. Os especialistas Fausto Viana e Isabela Monken Velloso ainda completam: “Quando o traje de cena sai às ruas sem uso social, há nitidamente uma inversão dos seus valores ritualísticos e artísticos. Seu status muda”8.
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Dessa forma, é preciso que haja o contexto do roteiro artístico para que então exista traje de cena, caso contrário, a aura mágica dá lugar à banalidade da indumentária cotidiana.
Profissão: figurinista Para além das questões conceituais apresentadas, o cotidiano da equipe de figurino é marcado por agendas e orçamentos apertados gerando desafios que se repetem trabalho após trabalho. É bem comum nos relatos dos nomes consagrados ver o próprio set de gravação como escola, mas e se, ao entrar num job pela primeira vez, já houvesse um “mapa” resumindo os principais temas? Além disso, o que se espera de alguém que decide trabalhar no setor? E quais as principais funções? Cursos de Referência em Figurino: 1. Programa de Pós-Graduação Gratuito (Mestrado e Doutorado) em Artes Cênicas da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP); 2. Pós-Graduação em Cenografia e Figurino - Centro Universitário Belas Artes de São Paulo; 3. Curso Técnico Gratuito em Cenografia e Figurino da Escola de Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco (SP); 4. Curso Livre de Figurino para Cinema e TV com Alice Alves (SP).
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10 JOFFILY, Ruth e ANDRADE, Maria de. Produção de Moda. São Paulo: SENAC Nacional, 2013, p. 53. 11
Ibidem, p. 53.
QUEIROZ, Suzanne. Trecho de entrevista online para esta pesquisa, realizada em 23 de março de 2021.
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No Brasil, o número de cursos9 em costume design cresce mais lentamente que a necessidade do setor. Tanto em Recife como no eixo Rio-São Paulo, a formação se dá de modo transversal, ou seja, profissionais com origens acadêmicas diversas encaram cotidianamente o processo de criar trajes de cena empiricamente. Ruth Joffily e Maria de Andrade em seu livro Produção de moda deixam claro: “O mercado de trabalho do figurinista é bem amplo: inclui muitas áreas de produção na TV (novelas, minisséries, programas de humor, especiais), além de cinema e palco: peças de teatro e shows.”10 Mas é preciso se preparar, independentemente se sua origem é moda, cinema ou comunicação. As pesquisadoras afirmam que “o produtor de moda, para ser um figurinista, deve estudar movimento de artes plásticas, precisa saber ler um roteiro, conhecer tecidos e, de preferência, desenhar bem, pois é muito comum ter que criar peças de época”.11 Paralelo ao domínio técnico, a fala de profissionais ouvidos para este artigo, atuantes entre Recife, Rio de Janeiro e São Paulo, deixa claro algumas características interpessoais (e subjetivas) essenciais. Pensando nisso, alguns conhecimentos básicos para quem decide dar vida a diferentes personagens, nas palavras de Suzanne Queiroz, assistente de figurino, que elaborou uma lista de conhecimentos básicos na profissão de figurino: “1. Entender de planejamento estratégico e ser ágil com habilidade nas demandas do dia a dia; 2. Estabelecer método de desenvolvimento que se relacione bem com o limite financeiro de cada projeto; 3. Vínculo ético e profissional com quem estiver à frente assinando o projeto e apresentar as possibilidades viáveis para executar cada etapa; 4. Ter bom relacionamento com colegas de departamento, entender as funções e necessidades de cada um para fazer o projeto fluir; 5. Ter senso estético e olhar apurado para pesquisa de referências e produção; 6. Ser organizado, ter caderninho de anotações ou fazer uso de aplicativo que auxilie na parte operacional do dia a dia; 7. Ter conhecimento técnico sobre decupagem, plano de filmagem, análise técnica e continuidade; 8. Ética e postura profissional com a própria equipe e outros departamentos – sobretudo, no set; 9. Entender a importância sobre limpeza, higienização e desprodução de cada projeto.”12
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ALGO, Armando. Entrevista online semi-estruturada, realizada entre 21 e 23 de março de 2021. 13
Destacam-se ainda: proatividade, organização, fôlego para carregar e descarregar carros de produção e camarins a cada nova diária, além de “olhar o mundo com esse olho de que o diferente não quer dizer ruim”, como destaca Armando Algo13.
Equipe de figurino: quem é você no set?
14 GREMIÃO, Renato. Entrevista online semi-estruturada, realizada entre 21 e 23 de março de 2021.
Vestir o elenco principal e inúmeros figurantes requer uma equipe afinada e bastante atenta aos detalhes. Para compreender melhor este universo, as entrevistas com profissionais da área trazem um olhar de dentro dos camarins para este cotidiano. Como lembra o assistente de figurino Renato Gremião em seu depoimento: “cada equipe se configura de uma maneira diferente, de acordo com a figurinista”14. Em linhas gerais, o setor de costume design possui de 3 a 6 integrantes, dentro da seguinte ordem: • Figurinista: chefia o departamento, monta seu time, assina artisticamente e projeta as linhas gerais de todo o projeto, desde a decupagem do roteiro, produção até o set. Detém grande domínio e experiência sobre o tema, além de um acervo de figurino próprio, que serve como base para suas criações. Remete-se diretamente à direção para traduzir em trajes de cena o que o roteirista imaginou. Encarrega-se de desenhar e vestir o núcleo central de personagens, criar a imagem final de todos os atores, além de acompanhar as gravações pelo monitor.
BANDEIRA, Álamo. O design de figurino na produção de cinema no Recife: comparação de realidades e imersão etnográfica. 2017, 136 f., Dissertação (Mestrado em Design) – Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Artes e Comunicação. Recife, p. 28.
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Cada chefe de figurino tem um perfil que é traduzido no estilo das produções. Algumas são especialistas em filmes de época, assim é a italiana Milena Canonero, diversas vezes vencedora do Oscar de melhor figurino. Já outras podem colaborar com inúmeros diretores e assumir estilos distintos, como a pernambucana Chris Garrido, premiada internacionalmente pelo seu trabalho no longa-metragem Tatuagem, mas que é capaz de desenvolver desde figurinos naturalistas a materiais publicitários com maestria.15 Algumas funções tornam-se de toda a equipe, mas podem ser direcionadas pela figurinista a alguém em específico, são elas: continuidade, envelhecimento e produção de rua durante a pré-produção, domínio do roteiro, vestir determinado ator ou atriz; • 1ª assistência de figurino: acompanha o set de gravação e está sempre ao lado do figurinista. Observando atentamente os relatos, pode se notar que este profissional participa de todas as etapas, desde a pesquisa de referência (colaborando com as pastas de inspiração para cada personagem), reuniões de análise técnica, produção na rua e cocriação dos trajes de cena. Executa ou orienta as etapas de envelhecimento das roupas. Cuida da marcação das provas do núcleo principal, soluciona dilemas com a assistência de direção, controla a verba entregue pela produção geral, articula os horários e demais escalonamentos de funções de toda a equipe, participando da desprodução e devoluções, fechamento e prestação de contas. Fornece ainda lista de créditos e agradecimentos: é o lado sistemático no costume design. • 2ª assistência de figurino: além de colaborar na pré-produção com as pesquisas gerais e produção de rua, é responsável por questões burocráticas ou ligadas à base de figurino (espaço de apoio onde fica o acervo temporário do filme), como o carregamento do carro de figurino no dia anterior
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QUEIROZ, Suzanne, Op. cit.
AMARAL, Thiago. Entrevista online semi-estruturada, realizada entre 21 e 23 de março de 2021.
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GREMIÃO, Renato, Op. cit.
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GREMIÃO, Renato, Op. cit.
19 CARNEIRO, Marília, MÜHLHAUS, Carla. Marília Carneiro no camarim das oito. Rio de Janeiro: Aeroplano: Senac-RIO, 2003, p. 105.
20 CONCEIÇÃO, Mauricea, atriz e camareira. Entrevista online redigida em março de 2021.
às gravações e organização do camarim. Além disso, pode cuidar e vestir as personagens secundárias ou figurantes. Em muitos casos, registra a prestação de contas da equipe segundo o manual fornecido pela produção geral. E como explica Suzanne Queiroz, em entrevista: cabe ainda alimentar a lista de medidas dos atores e o “carômetro de figuração, (…) medidas de núcleo secundário, desenvolver briefing de figuração” (em outras palavras, o texto entregue aos produtores de elenco orientando as roupas usadas pelos figurantes ou, em projetos mais elaborados, trata-se da pesquisa de acervo e aluguel das peças para figurantes). Queiroz ainda completa: “acompanhar provas de núcleo secundário e set, quando necessário”. Cabe também à 2ª assistência desproduzir, junto à equipe, os materiais após finalização da trama16. • 3ª assistência de figurino: “suporte, organização e estrutura de camarim”, segundo o assistente de figurino Thiago Amaral, formam o mantra desta função17. Já Renato Gremião completa: “geralmente (os terceiros assistentes) cuidam do entorno do projeto, como produção para guarda-roupas da figuração, vestir figuração em sets de filmagem, organização da base de figurino. Listar e comprar todo material de organização da base de figurino, como aluguel de araras, compra de cabides, material de escritório. Mas, do 1º ao 3º, todos também podem fazer produção de rua. Muitas vezes as funções se entrelaçam devido às urgências.”18 • Camareiro: Além de passadoria, manutenção e higienização de todas as roupas e adereços, o camareiro colabora com as provas de figurino, executando pequenos reparos e adaptações. De acordo com a figurinista carioca Marília Carneiro, os camareiros “cuidam da continuidade – quando o personagem precisa estar com a mesma roupa da cena do dia anterior –, ficam de olho na lavanderia, passam roupa sempre que necessário, organizam em maletas e sacolas etiquetadas todos os acessórios.”19 Já Mauricea Conceição – referência no cinema pernambucano – conta que as longas jornadas de 12h elevam o camarim a um espaço de refúgio para protagonistas, coadjuvantes e figurantes, cabendo a ela recepcioná-los. “Costumo falar para pessoas com menos entendimento da minha função de camareira no cinema, teatro ou publicidade que: eu aperto o que está folgado, folgo o que está apertado, limpo o que está sujo, sujo o que está limpo – se necessário. Monto o que está desmontado, desmonto o que está montado, passo o que está amassado, amasso o que está passado, seco o que está molhado, molho o que está seco. Bem: lavo, passo, tinjo, bordo, costuro. Tento realizar os desejos de figurinistas e diretores – de forma eficiente e tranquila”20. Além disso, ela afirma que organiza o camarim e as araras separando por personagem e sequências de cenas e que pode auxiliar no set de filmagem. Sua profissão transita entre o domínio empírico de tecidos ao jogo de cintura para lidar com os diversos perfis (e pedidos inesperados) de figurinistas. Um detalhe importante, tanto pessoas que se identificam com o gênero masculino (camareiro) como com o gênero feminino (camareira) são frequentes no cargo e devem ser igualmente requisitadas para assumir a função. • Motorista: não basta ser bom de volante para preencher os quadros de figurino, espera-se que o piloto de cinema domine mentalmente o mapa das
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principais lojas, acervos e fornecedores de cada cidade, além de compreender bem a rotina de carga e descarga de figurino. Em orçamentos maiores, outros cargos ganham destaque, entre eles: • Figurinista assistente: figura bastante experiente no mercado que coassina o projeto;
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QUEIROZ, Suzanne, Op. cit.
CARNEIRO e MÜHLHAUS, Op. cit., p. 45.
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• Coordenação de figurino: responsável por gerir o cotidiano dos demais profissionais – tal função é tradicionalmente delegada à 1ª assistência, como descreve Queiroz em entrevista: “coordenar as demandas da equipe com olhar mais crítico e assim administrar o volume do departamento”21; • Produção de figurino: cargo focado na “produção de rua”. A função é antiga, como lembra a figurinista global Marília Carneiro: “O negócio era bater perna na rua o dia todo. Exatamente o que, hoje, todos os figurinistas fazem.”22 Mas geralmente novelas, séries com muitos episódios e longas-metragens com vários núcleos exigem alguém especializado. Este profissional cria pontes com as assessorias de imprensa das marcas para consignar looks e fechar parcerias com empresas de moda e diversos outros fornecedores. Dessa forma, o produtor de figurino se desdobra em desde lojas populares, acervos e brechós a shoppings e showrooms para cumprir as demandas surgidas na base de figurino – tendo sua agenda de contatos (mailing) e capacidade argumentativa como seus diferenciais; • Envelhecimento: através de processos artesanais de desgaste e tingimento, transforma os trajes de cena dando aspecto de usados, ou antigos, adequando-os à estética do roteiro; • Costureira: modela e costura sob medida as roupas imaginadas pela figurinista, serviço terceirizado ocupado por uma única pessoa ou por diversos ateliês e facções de costura especializadas. A existência da profissional não retira a necessidade de compreender noções básicas de execução, para ajustes e customizações dentro da base de figurino. A porta de entrada para novos profissionais se abre através do estágio em figurino – estudantes de Moda, Comunicação ou Cinema são convidados a ajudar nas pesquisas de inspiração (criando painéis de referência para personagens e épocas), a vestir figurantes e podem acompanhar as compras ou arrumar camarins e bases de produção. É importante salientar que o figurino é um dos nichos entre os vários departamentos de uma produção audiovisual. Para tanto, é essencial delimitar quais os outros envolvidos e quais as relações de poder observadas.
Hierarquia do cinema: você sabe com quem está falando? Ao fechar os olhos e se lembrar da primeira vez em que se entrou em um set de gravação, pode-se, perfeitamente, evocar a mesma sensação presente na parábola descrita pelo cineasta norte-americano Gus Van Sant, em 2003, ao explicar o título de seu filme Elephant, vencedor no mesmo ano da Palma de Ouro em Cannes: diante de um gigantesco elefante, mesmo inúmeros sábios tocando partes dis213
23 MARQUES, Barbara Cristina, CODATO, Henrique. Estratégias de fragmentação no cinema contemporâneo: Short Cuts: cenas da vida, de Robert Altman, e Elefante, de Gus Van Sant. Animus: Revista Interamericana de Comunicação Midiática, Universidade Federal de Santa Maria, v. 17, n. 34, p. 83, 2018. Disponível em:. Acesso em 25 de março de 2021. 24 CONCEIÇÃO, Mauricea, atriz e camareira. Entrevista online redigida em março de 2021.
25 SALLES, Filipe. Apostila de Cinematografia. São Paulo: 2008. p. 96. Disponível em:. Acesso em 22 de março de 2021.
Ordem do dia (O. D.): Ficha impressa e distribuída na diária anterior pelo A. D. com: a lista de equipe, a ordem elenco, o plano de filmagem e os horários das cenas de cada dia. O assistente de figurino deve “bater” com o A. D. com antecedência gargalos (como muitos figurantes ou tempos curtos para preparo da primeira cena).
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Duplicata: cópias idênticas das roupas produzidas para facilitar a repetição de cenas em que haja algum tipo de dano ao figurino ou quando há presença de ator dublê. Por ex.: no roteiro, a personagem rasga propositalmente sua camisa. 27
tintas chegam a conclusões distintas – como se analisassem formas tão díspares como uma pedra ou uma cobra.23 Mas, ao ser observada com uma maior distância e atenção, é possível compreender a enorme engrenagem fílmica que gira em torno das múltiplas hierarquias impressas nas ordens de filmagem. A equipe técnica de um longa, desconsiderando atores, gira em torno de 60 profissionais24, distribuídos em grupos relativamente autônomos entre si. E para uma compreensão superficial, apresenta-se aqui uma visão geral25 e empírica dos departamentos e suas relações com figurino – dentro de cada trabalho, pode haver variações conjunturais, mas considerando cinema, publicidade e televisão, há formatos estruturais que convergem para um mesmo caminho: • Direção geral: Como um enorme maestro, o chefe artístico é o criador principal da narrativa e quem assina o filme, várias vezes é também o roteirista da história. O formato final da história tem sua aprovação e a relação figurinista X direção é de grande afinidade estética. Ao aceitar convites para uma obra, o costume designer deve pesquisar profundamente a filmografia do realizador para compreender qual estilo será traçado, podendo as roupas adotarem, por exemplo, traços mais documentais e naturalistas ou um realismo fantástico e lúdico. • Assistência de direção (A. D.): É o elo entre as ideias da direção e os departamentos, sendo responsável pela produção da ordem do dia26, pela organização do elenco (que afeta diretamente o trabalho do figurino), filtrar as informações que chegam ao diretor (sugere-se que as dúvidas de set de figurino sejam solucionadas com a A. D., como a necessidade de duplicatas27 ou encaminhamento de provas de roupa, deixando o diretor geral livre para as reflexões estéticas). Além disso, o processo de continuidade requer apoio da A. D. • Direção de fotografia: Responsável por definir a imagem da película na tela, o conceito de cada enquadramento nos diversos planos, a iluminação e como as cores são retratadas. É bastante comum o diretor de fotografia sugerir trocas de cores nos figurinos dentro do set, para uma melhor harmonia fotográfica, mesmo em figurinos já aprovados. Portanto, é importante o figurinista preparar algumas opções extras para cada ator ou figurante. • Produção executiva: Quem gere financeiramente e custeia de fato o filme, investindo recursos próprios ou levantando montantes através dos editais e leis de incentivos fiscais. Negocia e contabiliza os pagamentos dos cachês ao término do trabalho e cobra a prestação de contas da verba total gasta pelo figurino. Em alguns jobs, esta função pode ser acumulada pela produção geral. • Produção geral: Encarregada de todas as soluções logísticas e de cronograma – como mapa de transporte, reserva das locações, hospedagem da equipe, alimentação de boa qualidade (catering), contratação de equipamentos, serviços terceirizados e qualquer ação para o bom funcionamento dos projetos. O figurino deve manter ótima relação com a produtora geral e agendar com antecedência o aluguel de equipamentos como mesas desmontáveis ou biombos para trocas de looks dos figurantes, além de carros e solicitação de verbas de produção.
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28 FILIPECKI, Beth. In.: Entre tramas, rendas e fuxicos. São Paulo: Globo, 2007, p. 14
29 CARNEIRO e MÜHLHAUS. op. cit., p. 37.
• Direção de arte (production design): Concepção de toda a unidade estética da trama: desde a cenografia, aos objetos (“dressando” os cenários e locações), definindo inclusive a cartela cromática básica do projeto. O figurino e a caracterização, tradicionalmente, fazem parte do guarda-chuva da arte: cabe ao costume designer apresentar os painéis imagéticos, os croquis e estilo geral à direção de arte. Como numa pintura, o traje de cena é um dos elementos que compõem o quadro: as roupas devem espelhar a estética geral da arte. A figurinista Beth Filipecki reflete que o “figurino, muitas vezes, é um cenário trazido à escala humana que se desloca com o ator”28. Via de regra, peças que componham a cena (como malas ou roupas dentro dos armários) não são responsabilidade do produtor de figurino, mas da arte. Entretanto, manter boas relações de troca com todos os departamentos garante um set tranquilo. • Maquiagem (visagismo ou caracterização): Esperar que o make do elenco tenha como objetivo apenas corrigir imperfeições diante da câmera é simplista diante das atribuições dos maquiadores hoje: o visagista busca caracterizar o ator, ou seja, transformá-lo nas características descritas pelo roteirista, servindo como suporte para construção da personagem. Caso o script peça, envelhecer, desenhar cicatrizes, tatuagens ou propor cortes de cabelo e uso de perucas são algumas das ferramentas disponíveis. A aplicação de próteses temporárias é uma realidade no cinema brasileiro (criando texturas no rosto, na arcada dentária e na pele). O diálogo com figurino é uma constante, como conclui a criadora Marília Carneiro: “O desenho que eu fazia dos personagens incluía desde as bijuterias ou joias que seriam usadas até a forma de pentear os cabelos, passando também por acessórios”.29 Mesmo com tanta intimidade no backstage, é importante que o figurino respeite os espaços físicos e ouça com seriedade as pesquisas e abordagens da maquiagem, engrandecendo assim o trabalho em conjunto final. • Elenco: Protagonistas, coadjuvantes e figurantes são a razão central dos filmes e possuem contato íntimo com os figurinistas. É importante alinhavar bem os próprios desejos estéticos, as aspirações dos atores e o objetivo do diretor. Afinal, o bom figurino revela sutilmente pistas sobre o enredo: é possível preencher lacunas psicológicas apenas observando a silhueta e as cores escolhidas por um bom figurinista para cada cena, ratificando a evolução narrativa.
30 Entre tramas, rendas e fuxicos, op. cit., p. 134
“O figurino, sem dúvida, é um dos primeiros elementos de comunicação do ator, peça-chave na construção de um personagem. Se ele não se sente bem, isso pode atrapalhar seu trabalho. Uma simples cintura apertada ou uma manga com cava muito estreita, por exemplo, podem causar um estrago. Todo cuidado é pouco, afinal, atores não são bonecas nem manequins. Não é raro, no entanto, eles amarem um projeto e ficarem eternamente gratos pelos seus figurinos. (…) Os figurinistas sempre procuram conversar com seu elenco para saber o que cada um pensa sobre os personagens, como imagina os figurinos, e até para informar-se sobre as preferências de cada um e saber detalhes como uma possível alergia a bijuterias, por exemplo. Também costumam realizar provas de roupa técnicas para afinar os figurinos com os atores antes da prova para o diretor.”30
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• Som: Equipe enxuta que cuida da captação do áudio direto, mas que tem uma relação constante com figurino para “lapelar” o elenco, ou seja, colocar discretamente os microfones e suas respectivas baterias no corpo do ator, por baixo do traje de cena. Geralmente os fios são presos com topstick (adesivo micróporo) em locais estratégicos, como entre os seios das atrizes – já as baterias são fixadas no cós traseiro das calças. Todavia, é bastante comum pequenas perfurações nas golas das camisas para esconder completamente os fios (o que não é possível quando os looks são consignados ou emprestados). • Elétrica e maquinário: Focados na montagem da iluminação baseada nas orientações da direção de fotografia, frequentemente operando gruas, travelling, guindastes e até geradores em locações ermas. Possuem o maior número de mão-de-obra e podem facilitar bastante a vida do figurino, oferecendo “prolongas” elétricos e iluminação de camarim nas cenas de externa. • Catering (alimentação): Serviço gerido pela produção geral, quase sempre terceirizado, mas essencial para o clima tranquilo nas 12h de gravação. Vale lembrar que, de acordo com decisão da figurinista, todo o elenco deve retirar as roupas para se alimentar. Durante a pré-produção e a desprodução, as equipes recebem uma verba para compra das refeições (que deve ser prestada conta ao final da produção). Há ainda o formato de “per diem”, termo em latim que significa “por dia”. Ou seja, é dado uma quantia a cada participante para as refeições, sem a exigência de comprovação do seu uso, desburocratizando o processo. • Transporte (motoristas): Em orçamentos maiores, é destinado ao figurino um minicaminhão para transporte (e realização de trocas dos figurantes). Em jobs menores, vans e carros de passeio podem levar tanto a equipe como os materiais. Já em produções de baixo orçamento, múltiplas equipes podem dividir os automóveis, criando uma agenda de uso coordenada pela produção geral. É comum que o carregamento do carro de figurino fique a cargo do 2º assistente de figurino, exigindo total atenção e organização, geralmente a cada noite anterior às filmagens.
Como nasce o figurino? Os trajes de cena vistos na tela são concebidos através de um processo projetual que pode ser dividido em três estágios: a pré-produção, o set de gravação e a desprodução. É possível para a execução do figurino traçar um paralelo com as etapas metodológicas do design – em língua inglesa, inclusive, costume designer é o termo utilizado para descrever aqueles que se dedicam à criação do vestuário usado por atores e atrizes em cena – tanto para cinema, teatro, publicidade. Para Sue Jenkyn Jones, inclusive, esse processo (muitas vezes artesanal) busca revelar significados através dos tecidos, usando uma ampla gama de estereótipos que caracterizam cada personagem através de signos. “Compramos roupas e as vestimos em combinações que são deliberadas ou subconscientemente planejadas para transmitir aos outros impressões verdadeiras ou falsas de nós mesmos. Algumas das características pessoais que desejamos revelar ou ocultar incluem nossa idade, orientação sexual, tamanho, forma, situação econômica
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31 JONES, Sue Jenkyn. Fashion design. London: Laurence King Publishing, 2011, p. 68.
ou conjugal, ocupação, afiliação religiosa, autoestima, atitudes e importância. No teatro e no cinema, os figurinistas manipulam ativamente o significado simbólico das roupas, vestindo nos personagens itens que reconhecemos como típicos de várias ocupações e atitudes. Uma ampla gama de estereótipos evoluiu dessa forma.”31 (tradução nossa) Através de vasto domínio estético, o figurinista é capaz de propor, através da cartela cromática ou de um acessório correto, uma infinita série de referências que contam silenciosamente detalhes cruciais do enredo. Ser capaz de “contar histórias” pelo figurino torna-se importante principalmente ao produzir curtas-metragens, onde o tempo para desenvolver cada personagem é mais curto. Já em trabalhos longos (como uma série ou novela), o figurino pode se modificar sutilmente, seguindo o ritmo do script. Mas, na prática, por onde começar? Primeira etapa: pré-produção O trabalho do figurino começa no momento em que o convite para o projeto é aceito. Ao receber sua cópia do roteiro, o primeiro passo é ler duas vezes todo o material: inicialmente para compreender o texto geral com o olhar do público. Já a segunda leitura busca “decupar” a narrativa, em outras palavras, interpretar e marcar em cada parágrafo as pistas sobre as personagens e onde acontecem as mudanças de roupa – toda nova troca de figurino é chamada de “R”. Já cada cena é nomeada de “S” (sequência). Os R’s e os S’s são listados em ordem de aparição (ex: R1, R2, R3 e S1, S2, S3…). Assim, é importante criar uma lista com o número total de looks de cada personagem. Exemplo: a composição R1 é vestida pelo protagonista nas cenas S1, S2 e S3. Depois, ele veste a segunda roupa (R2) em S4, S5, e assim por diante. Sendo mais claro: protagonista aparece pela primeira vez na sequência 1 (S1), vestindo a roupa 1 (R1) e fica com o mesmo look até a sequência 4 (S4). Portanto, ele veste R1 em S1, S2, S3, S4. Já na sequência 5 (S5), quando ele troca de roupa, surge a R2 e assim por diante. O cuidado com a ordem de aparição das roupas é chamado de continuidade, que será melhor abordada em breve. O bom profissional já lê o roteiro calculando quanto é preciso de verba de produção para o guarda-roupa de cada personagem e já planejando um calendário de execução. Algumas perguntas devem ser respondidas claramente: qual o período e local onde a história se passa? Qual a classe social, o número de personagens e quantas trocas de roupa? Haverá necessidade de compra, aluguel, costura ou envelhecimento? De posse destas informações, ocorre a primeira reunião de análise técnica – onde é importante ouvir atentamente os desejos da direção geral e as orientações da direção de arte, além de elucidar as dúvidas presentes no roteiro. Ao longo de toda a pré-produção, haverá outras reuniões pontuais para apresentar o andamento das criações, sobretudo após a instalação da base de pré-produção do filme, espaço geralmente alugado pela produção geral que serve de morada para todos os setores. A partir de agora, o figurinista inicia um mergulho estético no universo a ser contado, realizando profunda pesquisa de referência. Há uma busca intensa por materiais sobre o contexto histórico e levantamento de campo. Figurinista e assistentes contribuem ativamente investigando fontes primárias (visitas a museus, entrevistas e realização de laboratórios) e fontes secundárias (livros, sites, jornais, revistas), como também coletando elementos subjetivos (texturas, tecidos, músicas, objetos
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afetivos, fotografias clicadas no campo). O resultado da imersão, que ocorre tanto para trabalhos de época como para enredos contemporâneos, é organizado em grandes painéis imagéticos ou pastas de inspiração que devem ficar visíveis para consulta constante, ajudando no desenho dos croquis de cada personagem.
CARNEIRO e MÜHLHAUS. op. cit., p. 49.
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33 HEAD, Edith. In.: LANDIS, Deborah Nadoolman. FilmCraft: costume design. Lewes: Ilex, 2012, p. 24.
“Quando o figurino de um personagem é criado, o requinte de detalhes é grande. Se pergunto a um diretor qual o signo de determinado personagem, ele sabe que não estou brincando. Esta é só uma das peças do quebra-cabeça: tem também a marca do cigarro, o tipo de carro, a bebida preferida e os lugares que ele gosta de frequentar à noite, mesmo que nada disso esteja na sinopse. Assim, são montadas as colagens, ou as chamadas pranchas. É um trabalho de recorte e colagem, mesmo, daqueles de sentar no chão, com tesoura, cola, cartolina e uma pilha interminável de revistas.”32 A esta altura, o elenco principal já está definido e a equipe pode entrar em contato solicitando medidas – diretamente aos intérpretes ou a seus agentes. É importante respeitar essa hierarquia, caso haja. Além disso, por mais apertados que sejam as agendas ou os prazos, jamais objetificar os corpos dos atores, sempre os compreendendo como profissionais capazes de enriquecer a construção do figurino. A partir dos desenhos já aprovados com a direção e medidas anotadas, os trajes de cena são confeccionados, comprados e envelhecidos. Cabe lembrar que o perfil do figurinista, o orçamento e possíveis imprevistos podem alterar as ordens aqui elencadas, mas, de um modo geral, realizam-se as provas do núcleo principal (momento acompanhado com atenção pela direção geral, pessoalmente ou por fotografias). Esta é uma etapa crucial, onde o maquiador também participa ativamente já realizando os testes de caracterização. O trabalho não acaba na prova, pelo contrário, ganha fôlego. Vários ajustes surgem daí, é um processo de lapidação constante no qual o figurino parte do corpo do ator como suporte para alcançar o personagem, como bem cita Edith Head, oito vezes premiada com o Oscar de melhor figurino, façanha até hoje jamais superada: “Se o figurinista conseguir fazer com que o público sinta a atriz naquele personagem, então esse é um bom trabalho de figurino.”33 (tradução nossa) É bastante comum que um dos figurinos básicos (ou similar) seja emprestado às atrizes para que elas já ensaiem adentrando no universo fílmico, pois, antes das provas, a roupa nas araras não passa de um objeto inanimado que ganha vida sobre o corpo de seu intérprete. Cada “R” deve ser vestido, fotografado, numerado e encabidado por um dos assistentes que organiza os guarda-roupas e monta a “bíblia”, pasta impressa ou digital compartilhada com o continuísta, profissional responsável para que nenhum detalhe de continuidade da trama seja esquecido (geralmente, o terceiro assistente de direção). Com todas as peças prontas, envelhecidas, enumeradas e os demais departamentos empenhados a todo vapor, ocorre a última reunião geral da pré-produção, marcando o início das gravações. Agora o projeto é exposto às lentes. Segunda etapa: uma diária no set O termo set refere-se tanto ao espaço onde ocorrem as gravações do filme (que podem ser locações alugadas, ambientes externos ou estúdios), como também o período em que se executa tais filmagens (levando de 3 a 7 dias, em média, para curtas-metragens) chegando a alguns meses em projetos de grande orçamento.
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Nesta fase, o cuidado com o cumprimento dos horários é uma questão clara de orçamento: cada dia equivale à produção executiva um grande aporte financeiro. Assim, a pontualidade é cobrada rigidamente minuto a minuto através dos assistentes de direção, que emitem as ordens do dia, acompanham (e readaptam) o plano de filmagem – segundo a escaleta desenhada durante a pré-produção com cópia entregue à 1ª assistente de figurino. As semanas possuem 6 diárias de trabalho, com no máximo 12h cada, além de um dia de folga para todos os departamentos. Não é permitido um intervalo menor que 12h entre uma diária e outra – exigindo bom planejamento entre as cenas noturnas e diurnas. A diária clássica é regida pelas ordens do diretor geral e se inicia com café da manhã (momento precioso de socialização entre componentes de equipes distintas). A preparação de figurino e maquiagem marcam a abertura das manhãs e levam, em média, 1 hora, tempo previamente acertado e monitorado pela assistência de direção. Geralmente, a maquiagem é realizada antes das trocas. Sobretudo, nas personagens mais sofisticadas, onde o vestuário não pode amassar ou transpirar. O segredo para um bom andamento do figurino nesta fase é organização. Termo que se traduz na agenda com divisão das funções entre dois grupos básicos:
JOFFILY e ANDRADE. op. cit., p. 101.
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Figurinista e primeiro assistente acompanham as cenas, cuidam para que os atores e atrizes permaneçam caracterizados ao longo do dia e que a continuidade seja respeitada (através de fotografias e atenção aos detalhes acertados na bíblia). É comum que o figurino leve ao set uma pequena mala de produção34 com materiais básicos: alfinetes de segurança, fita crepe, caneta, fita dupla-face para ajuste de bainhas, caixa com linhas e agulhas, adesivos topstick, absorventes, bastões de envelhecimento rápido, tesoura(s), vaporizador portátil, ferro pequeno, borrifador d’água ou amaciante, desodorante e toalha branca. Cada figurinista possui seu arsenal particular que varia entre cada trabalho, além do uso constante de pochetes (item presente nos profissionais de todos os departamentos) onde é possível ter sempre à mão os artefatos mais usados, como o rádio de produção. Enquanto os demais assistentes e camareiro seguem na base carregando e descarregando o carro, separando as roupas das próximas gravações (segundo as informações da O. D. entregues pelo A. D.) e realizando ajustes, manutenções, controlando a entrada e saída da lavanderia e mantendo contato constante com o set através dos rádios de produção e mensagens de texto. É importante projetar bem as (inúmeras) bases e camarins temporários que podem ser levantados a cada nova locação, exigindo atenção do segundo assistente. Por experiência, transporte todo o guarda-roupa do núcleo principal e organize acessórios e calçados em caixas plásticas transparentes com etiquetas claras: acontecimentos adversos como chuvas e mudanças de ordem das cenas exigem inversões inesperadas do figurino. Além disso, não deve ser adesivada fita crepe com anotações dentro das roupas e calçados, porque ela pode ser vista pelos espectadores mais atentos na tela do cinema. Quando há cenas com grande número de trocas ou a presença de figurantes, geralmente no início da diária, toda equipe desloca-se para dar apoio, mas é o equilíbrio em dividir claramente as obrigações que garante que nenhum profissional se sobrecarregue.
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É bem comum, mas não é o ideal, que a equipe acompanhe as cenas ao longo do dia e ainda se estenda à noite finalizando o carregamento da diária seguinte, extrapolando assim a carga horária prevista, o que é perfeitamente evitável com bom preparo e definição precoce das demandas. É possível ainda, já durante os últimos dias de gravação, adiantar o processo de desprodução (devolvendo itens que não serão mais usados), otimizando a finalização. Terceira etapa: desprodução
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BANDEIRA. op. cit., p. 56.
A última etapa do costume design é um processo estritamente logístico, com duração média de uma semana35 no qual a equipe de figurino realiza as devoluções das salas de produção e dos materiais alugados, como araras, cabides, biombos, mesas de produção e acervos de indumentária. O aluguel de acervos pessoais entre figurinistas é uma prática corriqueira, também fornecida por pequenas empresas especializadas no serviço de peças para cinema, publicidade e teatro – o empréstimo gratuito ou a preços simbólicos para este último ramo ainda pode ser conseguido em instituições governamentais, como nos acervos dos cursos de teatro das universidades federais e nos teatros públicos municipais das grandes capitais. A mesma iniciativa ainda não é vista para acervos de cinema. É um caminho valoroso que exige aporte financeiro estatal, mas que em cidades com vocação regional para o audiovisual, como Recife, Rio de Janeiro e São Paulo, permitiria a entrada de novos nomes no mercado, descentralizando as oportunidades de trabalho e democratizando um setor ainda bastante elitizado. Os acervos de figurino são onerosos. Informalmente, as figurinistas enfatizam que os valores por elas cobrados servem basicamente para a manutenção dos espaços físicos, mas nota-se ainda uma relação afetiva latente, sobretudo nos períodos de grande crise no setor. O processo de devolução também envolve, sobretudo em filmes contemporâneos, o retorno de grande número de peças de moda aos showrooms de empresas parceiras – que cedem gratuitamente suas coleções em troca de vestir atrizes consagradas ou vincular suas marcas a diretores prestigiados. Este é um processo que exige atenção ainda na fase de retirada (durante a pré-produção). É importante que os produtores de figurino emitam um ofício (chamado de romaneio) detalhado com a lista de todas as peças consignadas para o trabalho e o prazo de uso, além de registrarem qualquer avaria prévia, evitando a necessidade de compra de possíveis peças. Além disso, ainda na fase de escolha e organização das peças, é importante, detalha a assistente de figurino Luiza Rabêlo, fotografar todas as roupas, registrando as lojas, seus detalhes individuais e arquivar este material em nuvens de fácil acesso por toda equipe, otimizando o processo de devolução segundo recebido. É necessário também que as peças sejam lavadas e devolvidas passadas, dobradas e separadas por grupos (por ex: todas as roupas do mesmo designer, em suas embalagens, separadas por gêneros, facilitando a conferência no recebimento). Já as peças adquiridas ou fabricadas especialmente para cada projeto seguem caminhos distintos: quando em acordo, podem ser destinadas aos cuidados da
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figurinista chefe (como parte de seu cachê ou em contrapartida pelo uso gratuito de seu acervo particular no filme); como também podem seguir para o acervo da empresa produtora (produção executiva); acontece, por fim, a venda a preços populares a todos que participaram do roteiro, proporcionando um breve, porém oportuno, capital aos investidores na reta final do projeto – esta terceira via não inclui os trajes de cena do elenco principal ou looks icônicos, porque algumas cenas podem ser regravadas. Há uma quarta solução, vista no Brasil e constante nos mercados cinematográficos maduros (como países europeus e EUA): a doação a museus e instituições de ensino e de conservação – ratificando o valor de objeto de arte ao costume design. Tal qual este texto, o trabalho da equipe de figurino no filme encerra-se aqui. Entretanto, como as carreiras de cada profissional e os desdobramentos possíveis dos assuntos abordados apenas se iniciam, este breve guia não pretende esgotar o tema. Pelo contrário, trata-se de um portal inicial para o diálogo entre os diversos atores da área: produtores, estudantes e pesquisadores.
Para ver & ouvir: 1. Curta-Metragem: A seita (2015). Figurino: Alysson Santos & Paulo Ricardo. Dir.: André Antônio. 2. Longa-Metragem: Tatuagem (2013). Figurino Chris Garrido. Dir.: Hilton Lacerda. (Prêmio Ibero-Americano de Cinema Fênix de melhor figurino) 3. Podcast: Pano Pra Manga (2020). Apresentação: Ana Kühl, Gabi Schembeck & Laura Fançozo.
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É importante afirmar ainda que o volume de informações apresentadas ao longo das páginas é extenso e cada nova consulta pode levar o olhar a explorações mais densas de outros materiais de referência – outras fontes36 expandirão ainda mais a capacidade criativa. Além disso, as vivências individuais e saberes que cada figurinista constrói dentro do set de gravação pode gerar novas alternativas sequer imaginadas neste projeto inicial. Este é tomado como um ponto de partida, um trampolim para a construção de métodos próprios que caibam em cada nova realidade filmada. Assim, a leitura constante deste guia espera incitar o desejo de criação de novos guias, por novas vozes além do figurino, alcançando todas as áreas do audiovisual. Tornando-se essencial a generosidade de dividir o conhecimento com outras pessoas do setor.
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A roupa alquímica: o que pode o figurino no cinema queer? André Antônio Barbosa
“Eu escrevi para informar, compartilhar e alavancar trabalhos. Eu escrevi para mostrar outra visão dos trabalhos produzidos sob o âmbito do filme experimental. Escrever sobre filme era e continua sendo uma forma de se firmar e lutar por uma alternativa aos modos dominantes de pensar com e sobre imagens que se movem. Escrever compartilha com a programação e a distribuição um tipo de investimento no estabelecimento e na manutenção de uma cena, e isto faz parte de um ativismo” (Yann Beauvais em 40 anos de Cineativismo, 2014).
A prática cinematográfica habitual, seja a partir de um esquema produtivo de caráter industrial, seja a partir do circuito econômico que possibilita o “cinema independente”, considera a tela de exibição uma janela para o mundo. Através dessa janela, espectadores podem ver cenas que, umas depois das outras, nos comunicam sentimentos, emoções, situações e histórias. É um esquema que veio, por um lado, do romance e do teatro oitocentistas e, por outro, da visualidade linear neoclássica que atingiu seu apogeu na pintura europeia acadêmica do século XIX antes de continuar sua tradição nos meios técnicos subsequentes (fotografia e cinema). Nessa prática habitual, o figurino – as peças de roupa que cobrem os corpos dos atores durante as cenas – exerce um papel fundamentalmente ilustrativo e portanto secundário. As roupas devem estar de acordo com as informações que se têm a respeito da classe social, por exemplo, de determinada personagem. Às vezes,
André Antônio Barbosa ([email protected]) é doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ e professor no curso de Fotografia da Universidade Católica de Pernambuco. É também realizador de cinema junto ao coletivo Surto & Deslumbramento (deslumbramento.com) tendo dirigido o longa A seita (2015) e o média Vênus de Nyke (2021). 222
1 Cf. LO BRUTTO, Vincent. The filmmaker’s guide to production design. New York: Allwort Press, 2002.
as roupas podem ajudar a reforçar a emoção predominante de uma cena: uma personagem que está psicologicamente sufocada vai usar uma blusa apertada. Mas, de qualquer maneira, a roupa está à serviço da cena – sincronizada com ela, garantindo o seu funcionamento. Manuais tradicionais de direção de arte e figurino para cinema dizem: você realizará tanto melhor a sua função quanto ela permanecer invisível para o espectador1. Ninguém deve ver a cena e pensar: “que figurino singular!” É a “janela para o mundo”, através da qual as pessoas que podem ser vistas se vestem discretamente, isto é, de acordo com certos conceitos de como alguém de determinada classe, gênero ou passando por determinada situação emocional “deveria” se vestir. Estou exagerando, claro. E é possível lembrar de vários exemplos de filmes totalmente clássicos e narrativos onde um pensamento de figurino se destaca e as roupas brilham, perdendo a sua timidez discreta. Mas é que aqui me interessa uma outra prática cinematográfica, cuja força talvez comecemos a entender opondo-a a essa prática mais padrão. Quando se sai da prática cinematográfica habitual, o que acontece? Em particular, que outras funções as roupas podem exercer numa tela de cinema?
2 Cf. HALBERSTRAM, Jack. A arte queer do fracasso. Recife: CEPE, 2020; EDELMAN, Lee. No future: queer theory and the death drive. Durham, N.C.: Duke University Press, 2004; PERRA, Hija. Interpretações imundas de como a Teoria Queer coloniza nosso contexto sudaca, pobre de aspirações e terceiro-mundista, perturbando com novas construções de gênero aos humanos encantados com a heteronorma. Revista Periodicus, UFBA, 2014. Disponível em: https://portalseer. ufba.br/index.php/revistaperiodicus/ article/view/12896/9215. Acesso em mar. 2021. 3 Cf. BEAUVEAIS, Yann. Coisas de viados! Coisas de bichas!. 2016. Disponível em: https://yannbeauvais.com/?p=1544. Acesso em mar. 2021; LAURETIS, Teresa De. Queer texts, bad habits, and the issue of a future. GLQ: a journal of lesbian and gay studies, 17/2-3, 2011.
Neste ensaio, pretendo investigar como o cinema queer tem praticado, há bastante tempo, um outro uso do figurino. Queer é um termo de origem inglesa que significa aquilo que é estranho, raro, não habitual, dissonante. No Brasil e América Latina, a palavra tem sido usada sem tradução (ou às vezes com uma marcação que a diferencia da origem anglófona: “kuir” ou “cuir”), na esteira dos movimentos sociais que trouxeram os sujeitos LGBTQIA+ para o palco das discussões políticas globais. Para além de ser gay, lésbica ou bi, um sujeito queer é alguém sexualmente dissonante, que, seja por práticas eróticas não convencionais ou por identidades de gênero que ameaçam o pensamento binário, incomoda os pressupostos e desenhos da visão de mundo heteronormativa2. Nesse incômodo, a roupa exerce um papel fundamental. É possível, por exemplo, descartar a importância dos genitais no ato sexual e direcioná-lo para o uso lúdico de determinadas peças de roupa. É possível também embaralhar o que a heteronormatividade considera, numa roupa usada em público, como luxo ou como miséria, como masculino ou como feminino, explorando misturas, quebras e fronteiras impossíveis de surgir no esquema burguês da família nuclear hétero e monogâmica. Tudo isso é queer, e o queer costuma levar a roupa para patamares que cavam brechas nas regras da heteronormatividade. Ora, se os queers estão fazendo cinema, esse cinema não pode ser menos incômodo, menos estranho que eles próprios. É por isso que se diz que todo cinema queer já é cinema experimental e que existiria uma diferença entre um filme queer e um filme com “temática” ou simplesmente com personagens LGBTQIA+3. Se os queers incomodam quando se vestem e incomodam fazendo cinema, o que pode o figurino no cinema queer? Quando enxergamos filmes experimentais através da moldura de teorias do cinema que pressupõem a linguagem clássica como a mais “natural” do medium, esses filmes surgem como peças interessantes, mas bizarras, incompletas, precárias. Obras que não conseguiram “chegar lá”, isto é, fazer um filme que mostre o começo, meio e fim e uma história envolvendo conflitos psicológicos entre personagens. Aqui eu quero fazer diferente: quero usar a moldura teórica das artes visuais. A partir dessa moldura, são os filmes clássicos que são bizarramente precários, pois, apesar do seu caráter polido e da sua sustentação financeira, eles
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estranhamente continuam preservando uma visão estética de mundo moribunda. Os filmes experimentais, pelo contrário, por sempre terem borrado a fronteira entre cinema e artes visuais, surgem como peças que nos interessam por promover novas experiências estéticas, outras cognições do mundo e da vida, sensações outras. Eles usam a câmera e a tela cinematográficas para explorar procedimentos pelos quais a pintura não acadêmica outrora se interessava, por exemplo. E assim eu queria começar por observar uma longa sequência de personagens se vestindo, presente no curta-metragem, dirigido pelo estadunidense Kenneth Anger em 1963, Scorpio rising. É difícil dizer exatamente sobre o que é este filme, mas uma forma de descrevê-lo é falar que é uma espécie de “registro” da subcultura de motociclistas da Los Angeles dos anos 1960. É o universo extremamente masculino das motos paramentadas, jaquetas de couro, caveiras de metal, cigarros e vandalismo, que permeia o imaginário norte-americano desde pelo menos o fim da década de 1940 e que, até hoje, deixa marcas na cultura pop globalizada. Como cantou Lana Del Rey na música Venice bitch, de 2019, “I dream in jeans and leather”. Como na maioria de seus filmes, Anger utilizou sozinho sua câmera 16mm para concretizar essa obra, sem a equipe tradicional de uma produção cinematográfica. Scorpio rising não é nem um documentário com entrevistas e narração em off falando sobre o surgimento e os costumes dessa subcultura. Tampouco é uma ficção onde alguns personagens vão ilustrar o modo de vida de motociclistas. O filme é uma montagem não narrativa com dois tipos de imagem: por um lado, registros que o próprio Anger fez desses motociclistas e, por outro, imagens pré-existentes que ele retirou da cultura de massa da sua época (quadrinhos, cinema, televisão). Dando liga às sequências dessa montagem, Anger usa hits musicais contemporâneos seus. Na sequência que quero focalizar aqui, onde vemos vários motociclistas se vestindo, compondo, cada um, seu “uniforme característico”, Anger sobrepõe a música Blue velvet, de Bobby Vinton, de 1963. Vemos, então, vários planos consecutivos ao som dessa canção, onde homens com uma postura extremamente “macho” vestem, de forma cuidadosa, quase como numa espécie de ritual, suas jaquetas de couro, camisetas, caps de couro preto com joias de prata, calças jeans, óculos escuro estilo “policial”, anéis de caveira e correntes prateadas, cintos de couro preto com círculos de prata e botas de couro preto. Por um lado, é uma sequência quase “etnográfica”, que mostra um conjunto de costumes e gostos de determinado grupo social. Mas por outro, a música cria uma tensão que suscita outras portas de entrada para a imagem. A atmosfera sonora da música é romântica e, na letra, o eu lírico recorda melancolicamente uma mulher por quem continua apaixonado e que usava veludo azul. Um choque então se estabelece entre uma atmosfera terna de desejo amoroso (música) e uma pré-disposição para a violência inconsequente (imagem). Ao mesmo tempo, a insistência de Anger em mostrar longamente os vários atos do se vestir e de perto (a câmera está sempre bastante próxima dos corpos) também nos convida a abandonar os discursos pré-fabricados que porventura poderíamos ter a respeito das pessoas que vemos em tela. Sem texto ou diálogos, apenas com música, Anger nos convida a experimentar o que vemos de modo sensorial, especificamente apelando para o sentido do tátil: o couro, o jeans, a pele dos homens vista de muito perto e sem nenhum texto que possa “explicar” essas aparências, esses sinais sensoriais, que possa fechá-los num sentido racional. Scorpio rising é uma experiência mais tátil que cerebral. É um filme que não está interessado em contar uma história, mas em compartilhar uma sensação.
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DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: lógica da sensação. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
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Em seu texto mais diretamente dedicado às questões de estética visual, Gilles Deleuze define a sensação como um ser, um bloco de forças que atinge o sistema nervoso4. É algo de natureza diferente do discurso racional, que atinge o cérebro. Deleuze define, na história da pintura, o regime da representação clássica como uma forma específica de visualidade onde o tátil está submetido ao ótico: por mais que um pintor seja hábil em representar sombras, volumes e texturas, todas essas aparências sensoriais estão submetidas a um esquema maior, orgânico, que é a cena. É a organização dos corpos num espaço-palco fundo (perspectiva linear), uma organização apta a tornar inteligível alguma emoção, evento ou história para quem vê (privilégio do ótico sobre o tátil). A cena é orgânica porque funciona: é um organismo. É um esquema que dá ordem ao caos do mundo. Ora, uma das formas de fugir do orgânico, em pintura, é investir no que Deleuze chama de “espaço manual violento”. É não uma tentativa de organizar o caos, mas de mergulhar nele da melhor forma possível, para sentir suas energias. Aqui o tátil predomina: é a carne e suas afecções, seus devires animais, que são trazidos à tona. E não há mais organismo: os órgãos que antes funcionavam, isto é, exerciam suas funções específicas e “corretas”, ganham funções novas, inauditas, estranhas, inesperadas. O corpo, que era o personagem numa encenação, vira um corpo sem órgãos, deslizando nos fluidos da materialidade e da carne. Nessas condições, peças de roupa podem se transformar em novos órgãos provisórios, próteses de um devir pós-humano. É o que ocorre, me parece, com as botas, jaquetas e jeans dos motoqueiros de Scorpio rising. Blue velvet reitera uma insistência tátil, referindo-se à textura prazerosa do veludo enquanto material. Existe algo de perverso, da parte de Anger, em sobrepor a música de Vinton à montagem, sem o conhecimento das pessoas filmadas. O efeito, junto com a câmera aproximada, é certamente o de erotização daqueles corpos. Mas, seriam esses corpos assim tão inocentes, inconscientes? Em que momento passamos da subcultura das motos para a subcultura do sadomasoquismo gay? Os homens filmados por Anger são héteros inconscientes de estarem sendo fetichizados por um olhar gay ou são gays que voluntariamente se vestem como personagens “héteros violentos” apenas para satisfazer as pulsões sexuais insensatas da carne? A câmera tátil de Anger e a beleza material que nos chega pelas imagens do seu filme parecem mostrar que a vida da carne, a vida sólida real, é muito mais complexa, mais bela e maravilhosa (no sentido que os surrealistas davam a esta palavra) do que as limitações racionais e binárias que dão origem a esse tipo de pergunta. O modo como a roupa aparece em Scorpio rising faz exatamente o contrário da caracterização clássica, isto é, da ilustração do figurino para confirmar a inteligibilidade racional e social de determinado personagem. A roupa, aqui, antes embaralha e confunde nossas certezas e, mais do que caracterizar, transmite ao espectador uma sensação. Trata-se de um devir erótico, e um que incomoda de forma cortante a organização heteronormativa: é um erotismo que vai buscar prazer no perigo, na agressividade e nos fetiches. O sexo deixa de ser o local sagrado da procriação e se transforma num locus de libertação, ainda que arriscado. Nele, podemos experimentar os limites do nosso corpo e da nossa subjetividade. E podemos nos transformar num laboratório para novos órgãos. Num filme com temática LGBT, o figurinista pode vestir os personagens gays e os héteros, diferenciando-os. Mas em Scorpio rising – cinema queer – um olhar gay observa corpos teoricamente héteros, que podem muito bem ser gays “se fantasiando” de héteros por causa da sua sexualidade sadomasoquista. A verdade é que
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o filme de Anger dilui a binaridade dessa forma de olhar e de colocar as coisas. Não existe a “roupa do gay” e a “roupa do hetero”, existe apenas a materialidade tátil de certos tecidos que podem ser a porta de entrada para determinados prazeres, independente de como a mente conceitual define e fecha identidades de gênero. Scorpio rising mostra que motoqueiros machões vestindo seus uniformes não são tão diferentes de drag queens fazendo uma montação. Tudo é fantasia. As regras, do que se pode ou se deve vestir, são heteronormativas. Anger convida o espectador para essa fantasia. Fantasias não podem se estruturar com regras binárias, elas são, antes de tudo, experiências que tentam fugir dos limites da racionalização. Na fantasia, a roupa não pode ser discreta, ilustrativa. Ela é a própria condição da experiência fantástica, ela é o ponto de virada onde o organismo que funcionava se transforma num corpo sem órgãos: corpo que busca novos, ainda que provisórios, órgãos. Para além de Scorpio rising, outros dois curtas de Anger também parecem explorar e desenvolver essa prerrogativa: Puce moment (1949) e Kustom kar kommandos (1965). O espaço manual violento, como definido por Deleuze para as artes visuais, tem um caráter caótico, infernal, é uma sensação “catastrófica” (nas palavras do próprio autor) de carne, de pele, de fluidos. Mas este não é o único caminho para escapar do espaço representativo clássico. E podemos ver uma resposta diferente na poética desenvolvida por outro cineasta queer, dessa vez na década de 1970: o mexicano Teo Hernandez. Do mesmo modo que Anger, Hernandez fazia filmes sem equipes, usando apenas uma câmera 8mm e convidando amigos para participar de suas peculiares encenações. É importante salientar esse lugar “marginal” à prática cinematográfica habitual, porque, tanto em Hernández quanto em Anger, é exatamente isso que os aproxima mais das artes visuais que do cinema (narrativo clássico). Eles usam a imagem em movimento de forma mais autônoma, mais livre, para investigar formas de ver e de conhecer o mundo, um pouco como os videastas usaram o vídeo a partir da década de 1960. A partir de seus baixos custos de produção comparado ao cinema de película, a videoarte explorou a imagem em movimento como material plástico e não como meio representacional. Ora, no cinema queer de Hernandez, a roupa, mais especificamente o tecido, desempenha um papel fundamental.
Cf. o excelente dossiê a respeito de Teo Hernández feito pela revista Lumière: http://www.elumiere.net/especiales/teo/. Acesso em mar. 2021. 5
É possível dizer que o principal assunto do cinema de Hernandez é material: véus, tecidos, vidros, cristais, água, luz5. Há aqui uma não diferenciação radical entre o que é roupa (figurino) e o que é objeto (direção de arte). Tudo é material, tudo – corpos, tecidos, coisas – flui numa mesma corrente de energia sagrada. Trata-se de uma recusa radical da visão antropomórfica que hierarquiza o humano no lugar de maior importância, enquanto que os outros seres e estados materiais estariam girando em sua órbita, funcionando como sinais que apenas confirmam a racionalidade e inteligibilidade dos seus dramas e histórias. No cinema de Hernandez, é possível esperar eternamente uma história humana que nunca chega, porque a câmera insistentemente filma apenas véus, lenços e tecidos. Esses panos se movem languidamente, descobrem objetos, frutas, rostos e corpos de pessoas. Eles compõem arranjos com flores, pedras e cristais. Eles deixam passar luz pelos minúsculos furos do seu trançado. Eles refletem brilho nos caprichados bordados, nas joias incrustadas, nas tonalidades de cor. Ou, então, mergulham na escuridão, lentamente. É o drama das coisas e não das pessoas. É o devir trágico dos materiais, dos panos. Na verdade, nossa pele é roupa também.
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É que, nos filmes de Hernandez, não existe uma diferença entre nós e os objetos: fazemos parte do mesmo continuum, temos a mesma natureza, fazemos parte de um mesmo fluxo cósmico. Em seu filme de 1977, Cristo, Teo Hernandez faz surgir, do seu fascínio pela materialidade dos véus e tecidos, uma sucessão de vários tableaux vivants onde corpos de amigos seus são arranjados em poses hieráticas, como em pinturas de um passado esquecido. Nesses planos longos, os gestos são muito lentos, como se as figuras estivessem suspensas em conexões essenciais, que ultrapassam o funcionamento orgânico de dramas ou histórias (um pouco como nos filmes de Werner Schroeter da década de 1970). No centro desses quadros, está o corpo masculino magro do Cristo – não exatamente de Jesus Cristo, mas da imagem do Cristo que o Ocidente veio construindo ao longo de muitos séculos. Trata-se de um corpo de mártir, um corpo que, no próprio sentir da dor e do sofrimento, transcende num estado de graça. É por esta entrada que o olhar queer de Hernandez se apropria do mito (da imagem) de Cristo e o reposiciona dentro de uma obra onde o Cristo é o centro de um ser de sensação fundamentalmente homoerótica. No filme, muitos personagens tocam o corpo de Cristo, o acariciam, o descobrem removendo véus, túnicas e sudários. Em determinado momento, um homem beija o Cristo-mártir na boca, num gesto de amor. Se em Anger a sensorialidade tátil do jeans e do couro nos rebaixa a uma espécie de inferno, em Hernandez a suavidade delicada e a brancura sagrada dos tecidos e véus que cobrem os corpos hieráticos nus nos fazem transcender para um estado de graça amoroso, celestial, onde as regras e sanções que, do ponto de vista heteronormativo, criam proibições e permissões a respeito de quais corpos devem ser amados e quais odiados, adorados e rebaixados, sentidos ou ignorados, caem por terra. Hernandez sempre assina o figurino de seus próprios filmes. Trata-se de uma pesquisa muito pessoal de material que tenta, através de texturas, transparências, brilhos e esquemas de cores determinados, criar um espaço sensorial “nirvânico” nas precárias imagens em 8mm. Como que convidando o espectador a entrar numa miragem-aparição extremamente rara, etérea e benéfica, ainda que sensual. A luz é com frequência muito clara, e as roupas e tecidos se juntam aos objetos alegóricos que constroem a direção de arte do filme: taças douradas, coroas de louro, flores, chaves misteriosas, espelhos e janelas. Porém, Hernandez em nenhum momento esconde que o que vemos naquelas imagens são apenas seus amigos. Uma calça jeans, uma camiseta polo extremamente ordinária, uma parte de um apartamento comum, o erro ou a falha de uma gestualidade, um sorriso que escapa; tudo isso entra na imagem e é fundamental para que esta escape da higienização sufocante das imagens publicitárias dos grandes editoriais de moda. Diferente destas, que são absolutamente controladas e calculadas em seu acabamento e efeito, as imagens de Cristo são fundamentalmente abertas, soltas, alegremente precárias e, portanto, rarefeitas. É como se Hernandez precisasse mostrar que o milagre não é uma imagem megaproduzida e espetacularizada. Antes, o milagre está no cotidiano mais banal, mais modesto – são as extremas pobreza e humildade do Cristo que, em seu martírio underground, e apenas por ele, atinge os céus. Trata-se de um raro curto-circuito entre aquilo que é mais rasteiro e aquilo que é mais divino.
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O fato de Hernandez investir, junto com a insistência tátil dos materiais investigados, numa composição dos corpos – os tableaux –, leva suas obras para um caminho diferente do de Anger, que, em Scorpio rising, investe muito mais no caos ao aproximar sua câmera da pele e dos materiais. Poderíamos dizer, seguindo ainda os parâmetros plásticos de Deleuze, que as imagens de Hernandez abrem um espaço háptico. Neste, a presença de sensação da materialidade se conecta instantaneamente à abstração essencial das formas. Ou seja, não experimentamos a sensação como o inferno da carne, mas como a bem-aventurança do cosmos. No espaço manual violento, há uma predominância da catástrofe. No espaço háptico, a carne encontra seu sentido último, que não é uma narrativa cerebral, um drama inteligível (espaço representativo clássico), mas um ser essencial. Ou seja: a carne não volta a funcionar no organismo. No háptico, a organização clássica vira uma composição abstrata. É dessa forma que, na pobreza palpável desses filmes quase “caseiros”, um fascínio por véus, tecidos e lenços de uma requintada beleza desvela um continuum queer e homoerótico dentro do qual estamos todos conectados à ordem divina. Dentro desta, somos todos irmãos e podemos nos tocar, nos acariciar, nos amar e nos sentir. Não é sobre construir família, procriar, casar. Tampouco é sobre afirmar uma identidade gay diferente da hétero. É sobre um amor sem fronteiras que transfigura as feridas do martírio e do sofrimento. É sobre a generosidade sensual de tratar o corpo masculino com compaixão. Muito mais do que caracterizar o Cristo com um “figurino de época”, Hernandez mistura as roupas ordinárias do dia a dia de seus amigos com o luxo dos véus requintados de um mundo cristão hierático, pré-Igreja, e assim traz à luz a sensação cósmica que o enlaçamento de dois corpos masculinos pode despertar. Para chegar no recorte geográfico deste livro – o cinema feito em Pernambuco – eu poderia agora mergulhar num filme como Noturno em Ré-cife maior (1981), de Jomard Muniz de Britto. Filmado em 8mm, este média acompanha um vampiro que aterroriza os espaços visivelmente heteronormativos do Recife (a estação de trem, os bares boêmios), mas que também encontra brechas (a pista de uma discoteca onde outras bichas dançam embaixo do globo de luz, o banheiro onde se faz pegação). Por cima das imagens, músicas nacionais de atmosfera e imaginário tropicalistas. É possível traçar diversos paralelos e conexões entre a prática fílmica de Britto e as de Anger e Hernandez. Porém, talvez seja o momento de verificar quais as reverberações desse tipo de cinema no audiovisual contemporâneo, que é o recorte temporal desta publicação. E isto me leva ao cinema underground feito pelo multiartista Sosha. Aqui eu queria fazer um paralelo tecnológico, uma vez que um cinema como o de Sosha só pôde ser possível graças ao acesso que a tecnologia digital garantiu a câmeras de vídeo na virada dos anos 2010. Exatamente como Anger, Hernandez ou Britto, Sosha realizou cada um de seus curtas acumulando muitas funções (direção, roteiro, fotografia, arte, figurino, maquiagem) e com a autonomia e liberdade que apenas o estar à margem dos circuitos institucionais do cinema contemporâneo garante. Não quero com isso romantizar a marginalidade dessa condição, mas apenas enxergar como o caráter experimental dos filmes de Sosha tem necessariamente a ver com uma situação que permitiu que ele não seguisse o caminho habitual que os valores institucionais do circuito cinematográfico perpetuam. Assim, os celulares e câmeras digitais baratas encontram o 16mm e o 8mm de outrora. E de forma não surpreendente, os filmes de Sosha apresentam uma hibri-
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Para análises de mais fôlego sobre o trabalho de Sosha, cf. BARBOSA, André Antônio, LOPES, Denilson, NEVES, Pedro Pinheiro e DUARTE FILHO, Ricardo. Inúteis, frívolos e distantes: à procura dos dândis. Rio de Janeiro: Mauad X, 2019; FALTAY, Paulo. Lotta Love: Sosha e o dandismo diante das telas, 2016, artigo não publicado.
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dização borbulhante. Se em Anger e Hernandez o cinema encontrava as artes visuais e a performance, em Sosha, além disso, há diálogos férteis com o videoclipe e com o mundo da moda (tanto as passarelas quanto os assim chamados fashion films – curta-metragens comissionados por grifes para apresentar suas coleções também numa narrativa de imagens em movimento e não apenas no antigo formato de editorial com fotografias)6. O videoclipe e os fashion films são, no mundo contemporâneo, as principais formas comerciais pelas quais a imagem em movimento se liberta do formato oitocentista da narrativa inteligível através de cenas – formato que domina hoje tanto o cinema (“comercial” e “independente”) quanto a TV (o sucesso estrondoso que as narrativas seriadas representam hoje é a maior prova do enraizamento deste formato específico nas nossas formas de conhecer e apreender o mundo). Em outras palavras, o videoclipe e os fashion films são a videoarte tornada comercial e, sem dúvida, o preço que foi pago para isso acontecer foi a higienização dessas imagens. Isto é: seu atrelamento à lógica da criação de celebridades e a valores que impõem um limite ao que de fato pode ser visto, sentido e discutido nessas imagens – embora, obviamente, seja sempre possível encontrar brechas aqui e ali. A questão é que o cinema de Sosha redescobre a força do glamour fashion e das sequências videoclípticas ao justamente encená-la tendo por protagonistas, na maioria das vezes, pessoas trans e queer (uma mudança que, por incrível que nos soe, ainda caminha a passos muito lentos na indústria da moda contemporânea), e por cenário, locais decadentes de cidades brasileiras: Recife, Rio de Janeiro e Brasília.
7 Cf. MARTINEAU, Paul. Icons of style: a century of fashion photography. Los Angeles: Getty Publication, 2018.
Nos filmes de Sosha, o figurino não é algo secundário ou ilustrativo. Ele é, pelo contrário, a chave estética da força que esses filmes têm. Muitas vezes, temos a sensação de que aqueles filmes foram feitos apenas para mostrar aqueles corpos usando determinados looks, vivendo a vida com eles, andando com eles pelo espaço público – e não que um figurino foi pensado para caracterizar um personagem para uma cena narrativa. A grande alegria dos filmes de Sosha é que, neles, seres que são excluídos das imagens higienizadas da cultura midiática contemporânea estão performando o chic e o blasé – o que em fotografia de moda é conhecido como “atitude”7. Eis a diferença mais radical e fundamental entre essa estética e o modo como esses mesmos seres tendem a aparecer nos longas-metragens do circuito do cinema independente. Nestes, esses corpos são dados sociológicos. Há uma ansiedade muito grande dos roteiros narrativos significarem essas pessoas através de coordenadas como a injustiça social, o drama político, a comoção sentimental. É o que Deleuze chamou de miserabilismo: uma tendência da arte moderna de achar que a crueldade dos temas é o bastante para iluminar aspectos da vida através das sensações. Tal crueldade, porém, nunca consegue esconder totalmente seu lastro sensacionalista, sua moralidade kitsch. As personagens no mundo de Sosha são como modelos usando looks e desfilando, e não como personagens atuando a partir de um roteiro. São personagens extremamente artificiais. Elas aparentam tristeza, empolgação, confusão, determinação, mas com uma superficialidade fundamental. É a maneira teatral, debochada, mas ao mesmo tempo fria (afinal, estamos no domínio da moda) como as modelos apareciam nos desfiles perversos, devassos e decadentistas de John Galliano nos anos 1990 – referência fundamental da estética de Sosha . O cinema contemporâneo pode nos proporcionar vários comings of age explicando de for-
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ma didática o que significa transicionar quando se é uma pessoa trans. Na prática habitual do cinema, entender qualquer fenômeno significa cercá-lo de uma inteligibilidade cênica ou de drama que desemboca numa lição edificante. Mas talvez esse tipo de filme não consiga transmitir a sensação do que é, para uma pessoa queer, a realização de se vestir para aparecer no espaço público. Em Recife XXI (2014), a top model Brenda (interpretada por Brenda Bazante) decide deixar seu apartamento em Londres e ir de férias ao Recife. Neste enredo de Sosha, não apenas uma das mais importantes modelos do mundo é uma pessoa trans, como, de maneira mais fundamental, isso não é o assunto do filme. Não temos dramas sobre preconceito ou aceitação aqui. É a naturalidade com que Sosha aposta nessas escolhas ousadas que permite que ele atinja o chic underground que é a marca da sua estética. Muito mais do que um filme narrativo, Recife XXI é uma espécie de libelo sobre a liberdade de uma mulher trans desfilar pelas ruas degradadas do Recife com sua bolsa Louis Vuitton. Essa liberdade é chic justamente por recusar a ingenuidade da higienização dos fashion films e apostar na ironia, no contraditório, no deboche: os aspectos mais feios das ruas de Recife (uma pessoa em situação de rua que dorme na calçada, as paredes craqueladas e arruinadas dominam o visual do centro da cidade) não são escondidos. Um motorista de ônibus solta uma piada transfóbica para Brenda e sua amiga Tanya (Alexis Colby). Os garotos que tomam sol à beira do Rio Capibaribe são filmados com a erotização de um vídeo pornô, mas ao mesmo tempo são visivelmente figurantes amigos de Sosha que estão longe da beleza padrão dos corpos masculinos do mundo institucional da moda. A excitação das trilhas sonoras sempre marcantes dos curtas de Sosha se misturam com o humor ácido e, não obstante, com o prazer que é usar looks para ser quem você quer ser no mundo. Ser chic, aliás, é uma espécie de savoir-vivre com dignidade, não importa quais obstáculos o mundo social imponha ao fluxo calmo da élégance. FOUCAULT, Michel. A pintura fotogênica. In: Estética: literatura e pintura, música e cinema (Ditos e Escritos Vol. III). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, pp. 346-355.
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Em outro lugar, tentei enxergar essa sensibilidade ou atitude estética através do termo “frivolidade”. Cf. BARBOSA, André Antônio. Constelações da frivolidade no cinema brasileiro contemporâneo. Tese (Doutorado em Comunicação e Cultura), Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2017.
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Em um ensaio de 19758, Michel Foucault faz uma conexão entre dois momentos distantes. O primeiro é a época pós-invento da fotografia, em meados do século XIX. Época de montagens, colagens e brincadeiras com a imagem. Pintava-se a mão, com cores, a imagem em preto e branco. Compunham-se ambiciosos tableaux a partir de uma infinidade de fotografias recortadas. Fantasiavam-se corpos pelo puro prazer de ficcionalizar registros: pela brincadeira. Foucault diagnostica que essa “anarquia das imagens” se eclipsa na primeira metade do século XX. O discurso modernista da pureza dos medium, cada um com sua função, sua estética, sua especificidade (que chega ao ápice no pensamento de Clement Greenberg) tolhe a despretensão lúdica e estabelece regras muito restritas, graves, sérias, do que pode e do que não pode cada forma de arte. Porém, a partir da pop art na década de 1960 e da irreverência híbrida de várias práticas estéticas correlatas, Foucault prevê um retorno daquela anarquia plástica, onde a inconsequência lúdica andava de mãos dadas com o encantamento e a descoberta de novas formas de ver o mundo. Ao meu ver, é imprescindível, no momento em que mais pessoas do que nunca têm acesso a câmeras digitais, seus filtros, seus efeitos frívolos e suas possibilidades de intervenção, montagem e pós-produção de imagem, que tentemos manter esse espírito de anarquia em nosso horizonte9.
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Pedir que os filmes de Sosha sejam “mais” do que são – mais narrativos do que aquela simples apresentação de roupas em paisagens urbanas – é revelar uma limitação fundamental de quem está pedindo. É a limitação de achar que as imagens em movimento precisam de uma ancoragem estrutural narrativa, cerebral, racional, sociológica. Práticas cinematográficas como as de Sosha, Kenneth Anger e Teo Hernandez tocam num lugar incômodo – como poderia ser diferente no caso do cinema queer? – e que gera muita ansiedade: as imagens podem ser livres. Elas podem ter a vulgaridade de serem confeccionadas apenas para satisfazer um prazer, sem nenhum outro grande projeto intelectual por trás delas. Mas ao terem a coragem de brincar com imagens, com a despretensão de quem está de fora dos grandes circuitos, porém com a atenção aos detalhes de quem verdadeiramente está obcecado por realizar determinados prazeres, filmes queer como os vistos neste texto adquirem o status precioso de compartilhar conosco sensações complexas, vivas e francamente ameaçadoras ao binarismo da visão heteronormativa de mundo. É como se a roupa para o cinema queer fosse responsável não pela definição que advém da caracterização, mas pela transformação que vem da alquimia. Pelas sensações alquímicas das roupas – e acredito que muitas pessoas queer vão entender o que eu estou falando – conseguimos nos libertar dos conceitos discursivos limitantes e vemos o que estava o tempo todo embaixo do nosso nariz: o encantamento e a magia de estar vivo.
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Este livro foi composto em fonte Museo no corpo de texto e Baro nos títulos, em 2021.
Foto Isabela Cunha
Com a experiência de participar de forma ativa como figurinista no cinema pernambucano, Ana Cecília Drumond assumiu o desafio de pensar o audiovisual pela perspectiva do figurino. Nas páginas deste livro, você encontra depoimentos de dez figurinistas, responsáveis por alguns dos principais filmes produzidos em Pernambuco. São relatos sobre seus processos criativos, métodos de trabalho, soluções encontradas em meio às dificuldades para se adequar aos limites de tempo e orçamento, bem como reflexões sobre seus trabalhos em prol da narrativa e da importância dos trajes de cena na construção de um cinema mais representativo. A edição ainda traz análises de pesquisadores da área sobre o figurino na produção local.