293 11 38MB
Portuguese Pages [572] Year 1971
ROGER
BASTIDE
Professor
da Sorbonne
As Religiões Atricanas no Brasil Contribuição a Uma Sociologia das Interpenetrações de Civilizações PRIMEIRO
VOLUME
Tradução
de
MARIA
ELOISA CAPELLATO e OLÍVIA KRAHENBUHL
LIVRARIA
Ns
PIONEIRA
EDITORA DA UNIVERSIDADE SAO PAULO
EDITÓRA
DE SÃO PAULO
BIBLIOTECA
PIONEIRA
DE
CIÊNCIAS
SOCIAIS
SOCIOLOGIA
Conselho
Diretor: Prof. Prof. Prof.
Conselho
Ruy COELHO OCTAVIO IANNI LUIZ PEREIRA
Orientador:
Profs.: Nestor de Alencar — Vicente Unzer de Almeida — F. Bastos de Ávila — Júlio Barbosa — Tocary Assis Bastos — Paula Beiguelman — Cândido Procópio Ferreira de Camargo — Wilson Cantoni —- Fernando Henrique Cardoso — Orlando M. Carvalho — Helena Maria Pereira de Carvalho — Orlando Teixeira da Costa — Levi Cruz — Mário Wagner Vieira da Cunha — A. Delorenzo Neto — Florestan Fernandes — Pinto Ferreira — Marialice Mencarini Foracchi — Frank Goldman — Augusto Guelli Netto — Juarez Brandão Lopes — Sílvio Loreto — J. V. Freitas Marcondes — Maria Olga Mattar —- Laudelino T. Medeiros — Djacir Menezes — Douglas Teixeira Monteiro — Evaristo de Moraes Filho — Aldemar Moreira — Edmundo Acácio Moreira — Renato Jardim Moreira — Oracy Nogueira — L. A. Costa Pinto — Maria Isaura Pereira de Queiroz — João Dias Ramalho -—— Alberto Guerreiro Ramos — José Arthur Rios — Aziz Simão — Nelson Werneck Sodré — Henrique Stodieck — Oswaldo E. Xidieh.
Título
do original francés:
LES RELIGIONS “Vers
une
sociologie
AFRICAINES
AU BRÉSIL
des interpénétrations
de civilisations
Covyright
PRESSES
UNIVERSITAIRES 1960
Capa MÁRIO
DE
FRANCE
de
TABARIM
1971 Todos ENIO Rua
os
direitos
MATHEUS
reservados
GUAZZELLI
15 de Novembro, 228 — Telefone: 33-5421 — Impresso
Printed
no
&
por CIA.
4.0 andar, São Paulo
Brasil
in Brazil
LTDA. sala
412
ÍNDICE Introdução,
9
PRIMEIRA
PARTE
4
AusnNm
A DUPLA HERANÇA A Influência de Portugal e da Africa na América, 47 Os Novos Quadros Sociais das Religiões Afro-brasileiras, 85 O Protesto do Escravo e a Religião,
113
O Elemento Religioso da Luta Racial,
141
Os Dois Catolicismos, 157 As Sobrevivências Religiosas Africanas,
181
O Islã Negro no Brasil, 203
CONCLUSÕES l.
Religiões, Grupos Étnicos e Classes Sociais, 219
Introdução A miséria religiosa, escreveu Marx, é, de um lado, a expressão da miséria real e, de outro, o protesto contra essa mesma miséria.
A religião é o suspiro
da criatura
acabrunhada
pela
desgraça.(1)
Assim, os valóres religiosos, na Sociologia nascente, eram ligados às estruturas sociais ou, mais exatamente, à condição dos homens em sociedade. Mas, esta ligação que constitui o objeto essencial
dêste
trabalho,
era
concebida
em
têrmos
bem
mais
particulares. Uma vez que a vida social é encarada, antes de tudo como atividade prática, ela se confunde com as fórças da produção. É certo que o jovem Marx nos seus primeiros escritos considerava a produção em seu sentido mais amplo — produção de idéias do mesmo
modo
que produção material —
aparecendo-lhe já a religião sob a forma de uma ideologia. À medida que restringe seu conceito de produção Uúnicamente ao setor da produção
material,
êsse caráter de ideologia se acen-
tua.(2) Os marxistas têm insistido em considerar a religião o ópio do povo, a função das igrejas, debilitar a revolta operária e ligar as classes exploradas à opressão das classes dominantes.
Não é êste, porém, o aspecto do marxismo que nos interessa aqui. É impossível, nos quadros da teoria marxista, fazer da religião
uma simples ideologia inventada pelos senhores para melhor dominar seus escravos. A religião não é falsa por ser uma visão unilateral da realidade, da
classe
dominante.
a expressão
Este
aspecto
dos interêsses económicos
é secundário,
uma
reação
ideológica sóbre a infra-estrutura social, sôbre a perpetuação do
regime de classes. É um aspecto importante, sem dúvida, pois Marx em seus Escritos Políticos se preocupa menos,com a ação
causal das técnicas de produção do que com a relação dialética oposta e, nos Escritos, são idéias “falsas” aquelas que não exprimem as realidades econômicas do momento. Mostram-se as.
mais
(1)
eficazes
no
Karl MARX,
curso
dos
acontecimentos
“Contribution
históricos, uma
vez
à la Critique de la Philosophie du Droit.
de Hegel”, Oeuvres Philosophiques, t. 1, ed. Costes, ?p. 94, (2) Karl MARX, Le Canital, t. HI, p. 9n.
9
que é por meio delas que a classe dirigente pode manter um
poder condenado pelos fatos. Ainda assim, não é senão um aspecto secundário. Se a religião pode ser utilizada por uma classe para melhor assegurar
seu domínio, por que irá ela abandoná-la? da “miséria do homem”.
cial.
Sem
dúvida,
Mas como?
encontramos
nos
A religião nasceu
Para nós, aí está o essen-
marxistas
tentativas
mais
ou menos frutíferas de relacionar a religião às técnicas de produção ou, de modo
mais geral, às conjunturas econômicas, espe-
cialmente tratando-se do cristianismo primitivo ou do totemismo. Mas, tanto um como outro não são mais que soluções para
abrandar um sentimento poderoso, o mêdo.
No fundo, quando
se analisam os principais textos marxistas sóbre a religião, percebe-se que, sob uma roupagem econômica nova, volta-se à velha idéia dos antigos: Primus in orbe Deos fecit temor. O que
a religião exprime não são as relações de produção
entre os
homens mas, sim, o fato de que essas relações são contraditórias, o que não é geralmente reconhecido. Foi Engels quem cuidou
dêste aspecto, mostrando que a religião primitiva traduz a angústia do homem em face das fórças misteriosas de uma nature-
za que êle não pode domesticar; tomam elas, por isto, o aspecto de fôrças supraterrenas, enquanto a religião contemporânea ex-
prime a angústia do homem em face de fórças sociais, como as leis do mercado,
semprêgo,
as crises econômicas,
as bancarrotas
ou o de-
fôrças sociais que o proletário não pode prever o
que sôbre êle se abatem de maneira inesperada e brutal, com
um caráter simultâneo de estranheza e de necessidade, tornando-
-se, também, fórças sobrenaturais e supra-sociais. Deus, assim, não é mais que a imagem do capitalismo irracional. Daí, ser
psicológica
e sociológica
a explicação
definitiva
da religião:
sociológica no sentido de que nasce do esfôrço fracassado do trabalho humano em face da natureza ou das contradições de um regime; e psicológica no sentido de que êsse revés ou essas
contradições agem excitando o eterno mêdo pânico ante o irracional, o incontrolável e o selvagem. dade
cado
Piaget louva Marx por haver, ao ter descoberto a relatividas superestruturas em relação às infra-estruturas, apli-
conceitos
ideológicos
às explicações
concretas
nas
coisas executadas em comum para assegurar a vida do grupo social em função de um determinado meio material que se prolonga em
representações (3)
10
Jean
coletivas. (3)
PIAGET,
L'Epistémologie
Génétique,
t. II,
cap.
XII.
Não deveremos, nas páginas subseqiientes, negligenciar esta
ação comum.
Mas,
o marxismo,
passando
do sociológico
ao
psicológico, voltando à explicação da religião pelo mêdo, não faz mais que insistir numa solução ultrapassada. Chega à conclusão de que não há sentimentos religiosos, mas sentimentos
normais, facilmente identificáveis, que dizem
respeito à cons-
ciência comum e da qual a religião é sômente um efeito ou objeto.(*) Mesmo onde a religião surge como algo aterrador,
onde se exprime pela angústia, ela parece surgir de um domínio particular e fazer-se absoluta não apenas em face do fracasso do trabalho humano mas, em tôda parte
onde a vida atinge seus pontos culminantes, no nascimento, na morte, no coito, onde o homem se debruça à margem da existência
e é tomado
uma
de
vertigem. (5)
Entretanto, presença
a presença de fôrças religiosas não é sempre
de mêdo,
mas
também
de fôrça, de paz
ou de
alegria. E dizendo isso, não aludimos únicamente ao cristianismo atual mas também às formas primitivas da religião. Durkheim, posteriormente, insistirá sôbre êste aspecto da questão. Recusamo-nos neste trabalho a pesquisar as origens da religião, o que nos faria passar da Sociologia à Filosofia (mesmo que seja Filosofia Sociológica, não deixa de ser Filosofia). Propomo-nos, sim, a estudar, num caso específico, os diversos tipos de relações que podem se estabelecer entre as estruturas sociais (inclusive
suas condições econômicas)
no
que
seio
do
fenômeno
essas relações
social
podem
e o mundo total.
tomar
Em
dos valôres religiosos,
certos
o sentido
de
casos,
veremos
ideologias
ou,
ainda, se misturarem e se tingirem de ideologias, não na acepção lata do têrmo, de produção intelectual, de “obras” da consciên-
cia coletiva, mas no sentido mais tradicional de “deformação inconsciente” ou de fantasmagorias atuando sôbre as infra-estruturas econômicas.(*) Queremos analisar como e por que, em que circunstâncias opera esta distorção do “sagrado”, nunca coloca-
do como um problema a ser resolvido em têrmos de “ideologia”, mas considerado como uma parcela da realidade social global. Durkheim retoma o problema pôsto por Karl Marx dando-lhe, porém, base mais ampla, suscetível, por isso, de conse(4)
Lucien
HENRY,
Les
Oríigines
de
la
Religion,
p.
21.
(5) Van der LEEUW, L'Homme Primitif et la Religion, p. 189. (6) Georges GURVITCH, La Vocation Actuelle de la Sociologie, pp, 587-88 e 601 (sôbre a distinção entre obras e ideologias); Déterminismes Sociaur et Liberté Humaine, nota da p. 136 (sôbre os diversos sentidos da palavra ideologia para Marx).
11
guir mais fâcilmente nossa adesão. definição
de religião
e depois
em
Recusa-se, primeiro em sua
sua crítica ao marxismo,
identificar o sentimento religioso com o de mêdo.
mitivo, longe de se sentir esmagado
O homem pri-
por fôrças contra as quais
nada pode,
“atribui-se sôbre as coisas um poder que não possul”, e é ilusão que “o impede de se sentir por elas dominado”.(7)
Em
a
esta
segundo lugar, recusa-se a fazer da religião um sim-
ples epifenômeno, uma pura fantasmagoria: É
inadmissível
que
os
sistemas
de
idéias,
como
as religiões,
que tiveram lugar tão considerável na História, e nos quais os povos de tôdas as épocas buscam a energia que lhes é necessária para viver, sejam tão-sômente tecidos de ilusões. (8)
Em suma, em Formes Elémentaires de la Vie Religieuse, não
é a uma
infra-estrutura
econômica
que
a religião
está ligada,
mas à totalidade da estrutura social e sua organização morfológica. Mas, da mesma forma que em Marx, embora sob forma mais requintada e complexa, o mesmo problema causal preocupa Durkheim:
Às concepções religiosas, longe de produzirem o meio social, são produtos dêle, e se, uma vez formadas, reagem sôbre as causas
que
as
engendraram,
esta
reação
nunca
será
muito
radical.(º)
Sendo essa citação tomada ao Suicide, é o caso de pergun-
tarmos se do Suicide a Formes Elémentaires,
o pensamento
de
dos
está inteiramente
Durkheim não se modificou mais ou menos profundamente. Ao distinguir os símbolos religiosos das imagens, êste pensamento não só se afasta da religião definida como ideologia, mas ainda da religião como simples representação, que era a idéia de Suicide. A religião torna-se, pois, a expressão da sociedade, de sua estrutura e de suas tendências, da reunião ou da dispersão homens.(!º)
resolvido.
Por
certo,
o equívoco
não
Durkheim parece hesitar sempre entre a religião como
“produto” e como “expressão”. Os dois temas acham-se intima-
mente ligados e torna-se difícil separá-los.
Se essa separação é difícil é porque todo homem é um animal social e a religião se reduz à consciência da vida coletiva.
(7) É. DURKHEIM, Formes Élémentaires de la Vie Religteuse, pp. 121-22. (8) Id. Ibid., p. 98. (9) É. DURKHEIM, Le Suicide, p. 245. (10) '“Talcott PARSONS, Éléments pour une Sociologie de VáÁction, pp. 28-31, introdução de F, BOURRICAUD.
12
Ela é, ao mesmo tempo, o produto da comunhão e a expressão
própria em que se manifesta êsse sentimento de comunhão,
a
saber, a distinção entre dois mundos: o “profano” da consciência individual e o “sagrado” da consciência coletiva, exterior e
superior às consciências individuais.
É inútil retomar aqui mais
uma vez a crítica da tese durkheimiana já várias vêzes elaborada, O que nos impressiona é a descontinuidade
e bem elaborada. ('!)
entre os fatos citados por Durkheim e as conclusões a que chega.
O que ressalta dos fatos é o contrôle do grupo sóbre as mani-
festações da mística,(1º) é a ligação efetiva das normas de paren-
tesco com as da vida cerimonial,(!º) é, em uma palavra, a impossibilidade de separar a religião do fenômeno social total, não
que esta religião seja o produto da reunião dos homens formação,
no
seio
do
de
povo,
consciência
uma
e da
coletiva.
A
conclusão ultrapassa os múltiplos exemplos coligidos por DurKheim em favor de sua tese, porquanto êsses exemplos mostram que a religião está sempre presente no social e não que o social cria a religião. Se Formes Elémentaires teve o mérito, ao des-
tacar o símbolo da imagem,
marxismo,
de eliminar certas insuficiências
do
explicando, por outro lado, em última análise, êsses
símbolos pelo estado da sociedade em conjunto, ela não nos deixou sair de uma investigação causal que já recusáramos aceitar por filosófica. (!*) Por sua vez, a Sociologia Religiosa alemã, como a francesa, pode
xismo,
ser considerada em
sua
forma
uma
tentativa de superar o que
clássica,
tinha
de
demasiado
o mar-
estreito.
E
começa com Cassirer, opondo à dialética histórica o que se poderia chamar de eternidade psicológica do espírito humano.
De fato, para êle, não é da sociedade que é preciso partir, mas
de categorias religiosas consideradas no sentido do a priori kantiano e ver como essas categorias servem para unificar tanto a
sociedade quanto o mundo. Sem dúvida, não se pode mais falar de uma causalidade temporal, a religião não sendo a causa
da sociedade uma vez que esta é cronolôgicamente anterior aquela, porque constitui sua condição lógica, A sociedade não
pode se constituir senão através das categorias do pensamento místico, do mesmo modo que a natureza em Kant se constitui
(11) De Gaston RICHARD, L'Athéisme Dogmatique en Sociologie Religteuse, Cahiers de la “Revue d'Histolre et de la Philosophie Religieuse”, Istra, Estrasburgo, 1923, 48 pp. a G. GURVITCH, “Le Problême de la Conscience Collective dans la Sociologle”, de Durkheim, Vocation Actuelle, pp. 351-408, e PARSONS, The Structure of Social Actim, por exemplo, p. 425. (12) Por exemplo, Formes Elémentaires, pp. 565-67. (13) Por exemplo, Formes Élémentaires, p. 359. (14) Claude LÉVI-STRAUSS, Sociologie au XXe sSiêécle, II, p. 527.
18
pelas formas da sensibilidade ou das categorias do entendimen-
to.(18) Pode-se
adversário
ver também
de Marx,
em Max
apresentando,
Weber,
contra
antes de tudo, um
êle, em
seu célebre
ensaio sôbre as origens do capitalismo industrial, a ação dos
fatôres ideológicos sôbre os econômicos. Contudo, a Sociologia Religiosa de Max Weber não se reduz a essa obra e seria uma caricatura considerá-lo um puro idealista.
Inicialmente,
no ensaio
a que
aludimos,
o protestari-
tismo não aparece como a causa absoluta do capitalismo total,
mas como uma entre muitas causas e sômente de certos aspec-
tos do capitalismo.
Weber procura, sobretudo entre o religioso
e,o econômico, um elemento de união que possa nos fazer com-
preender a ação eficaz desta causalidade, e êsse elemento é a ética social do calvinismo. A religião não atua diretamente sôbre a economia, mas orienta sempre o comportamento moral dos indivíduos em relação uns aos outros e são, única e exclusivamente, êsses comportamentos morais que podem modificar as relações econômicas.(1º) Enfim, se Max Weber em Gesammelte Aujsitze zur Religionsoziologie insiste sôbre a ação causal da religião, em Wirtschaft und Gesellschaft é a ação contrária que,
se não domina a ação causal da Economia, pelo menos domina a das classes ou dos grupos de interêsse.
De fato, cada classe
ou grupo social, seja o campesinato, a aristocracia, a burguesia comercial, os artesãos ou os proletários, tem sua religião própria, que é a expressão de sua situação no interior da sociedade,
de sua posição de domínio ou de dependência e o mais comumente de sua mudança sua decadência.(17)
de situação —
de sua ascensão ou de
O que opõe Max Weber ao marxismo não é ter invertido
o encadeamento materialista de causas e efeitos. Weber está bastante ciente das diferenças, da complexidade do real e da
variação das seqiências causais, para não reconhecer a existência de um fator econômico na Sociologia Religiosa, da mesma
forma que Marx estava interessado na reação das superestruturas sôbre as infra-estruturas. A verdadeira oposição, a meu
ver, reside na substituição de uma Sociologia Positiva por uma Sociologia Compreensiva.
Marx, como Durkheim,
estuda os fa-
tos sociais de fora, ou se se deseja, como “coisas”, ao menos como “ações”, suscetíveis de uma explicação objetiva. Weber
(15) CASSIRER, Philosophie der Symbolischen Formen, II Teil: Das Mvythiscne Denken, Berlim, 1924. (18) Raymond ARON, La Sociologte Alemande Contemporaine, pp. 137-38. Ás o WEBER, Wirtschaft und Geselischaft, t. III (categorias, classes er es
14
não
se contenta
em
estabelecer
correlações
variáveis
entre
os
fatos econômicos e os místicos; êle quer compreender o significado profundo dessas correlações, o sentido do comportamentq
humano. Mas aí há um perigo e Weber não o soube evitar: o do subjetivismo. Desde que esta compreensão é feita pelo observador, quer dizer, pelo sociólogo que interpreta as correlações,
não se deve esquecer que êle participa de uma sociedade, que é moldado
sequência,
forma,
os
dependem tamentos
por uma
dada cultura, que sua psicologia, em con-
está condicionada
“significados”
de fenômenos
vêm
à luz.
dos
por fatôres
sociais.
comportamentos
sociais totais em
Tornaremos
que
Da
mesma
êle analisa
que êsses compor-
a encontrar
êsse problema
da compreensão quando passarmos da Sociologia à Etnologia.
A esta altura apenas diremos, para terminar nossa crítica, que não podemos aceitar que o subjetivismo weberiano penetre em nosso trabalho.
Se Max Weber está mais próximo da posição marxista do problema — relações entre os fatos econômicos e os religiosos —
Max
Scheler
parece
mais
próximo
da
posição
durkheimiana
— relações da religião com a estrutura social e não unicamente
com a econômica. Este último, de fato, distingue uma Sociologia cultural e uma Sociologia real, o estudo da religião per-
tencendo à primeira e o de grupos e instituições à segunda; ora, se os fatôres econômicos aparecem na Sociologia real, é em terceiro lugar, depois
dos raciais e políticos,
cronolôgicamente
anteriores do ponto de vista da sua preponderância — o que faz com que a questão colocada pelo marxismo tenha mais significação para as religiões atuais que para as primitivas. Isto dito, quais são as relações causais entre essas duas sociologias?
Há, de pronto, duas ordens de causalidades independentes:
o
espírito determina os conteúdos ou, como disse Scheler, “o modo de ser dos conteúdos da cultura”; paralelamente, as necessidades
humanas determinam a formação e a organização dos grupos ou das instituições. Entretanto, ao lado desta dupla causalidade,
há ligações entre o mundo
mas
essas, por
vez,
da cultura e o da realidade
complicam-se
de outra forma.
social,
O conteúdo
cultural exerce uma influência manifesta sôbre as formas de organização; por exemplo, o conteúdo da fé, protestante ou católica, influi na organização adotada pelas respectivas igrejas. Contudo, o espírito não tem “eficiência causal”, seja êle individual ou coletivo, nem ação dinâmica sôbre o real; não se pode deduzir
“do conteúdo
ou dos
valôres
religiosos
as relações
reais dos
15
homens em sociedade. Na recíproca, as religiões são condicionadas sociológicamente pelas formas de relações existentes entre os homens e pelas de seus grupos, mas essas condições sociológicas não são mais que uma atividade de seleção. Os interêsses sociais dominantes, primeiro os biológicos, depois os políticos e, por fim, os econômicos, podem excluir certas realizações possíveis da lógica do espírito, ou favorecê-las, ou selecioná-las, mas a história real, a das instituições ou das situações sociais, é “indiferente” em relação à história da vida espiritual. O determinismo sangúíneo, por exemplo, favorecerá a religião familiar ou tribal que o determinismo político eliminará em seguida,
mas o conteúdo das religiões tribais ou políticas depende da pura lógica causal do espírito individual ou coletivo. (18): Max Scheler, é verdade, estabelece um outro tipo de ligação
entre a Sociologia da cultura e a da realidade. As necessidades humanas, os impulsos vitais que estão na origem dos grupos ou das instituições podem superar a barreira que separa os dois mundos a fim de penetrar no nível das idéias e dos valôres. Mas, nesse caso, elas ou êles sofrem logo uma metamorfose, pois que são prontamente “sublimados” pelo espírito.
da Sociologia do Saber compreendeu
Em
suma, o autor
a dificuldade do proble-
ma das relações entre o que Marx chamou de “infra-estruturas”
e de “superestruturas” quando são postas em têrmos de seqiiên-
cias causais. Como êle queria a todo custo manter essas seguências, não encontrou outro recurso que o dualismo mais
intransigente, separando a lógica do espírito e a do real.
vão
tentou
investigar
ainda
assim
ligações,
Em
condicionamentos
recíprocos, deparando com a mesma dificuldade que Descartes, o qual, separando tão radicalmente a alma do corpo, não conse-
guia depois explicar sua união.
Nem tudo deve ser rejeitado, cremos, nesta Sociologia Religiosa que acabamos de resumir; mas, não se torna válida
sômente quando tenta escapar ainda que desajeitadamente de uma explicação puramente causal? As dificuldades que encontra não provêm sempre do predomínio que dá à causalidade sôbre outras formas de explicação? Somos assim levados a examinar uma outra Sociologia Religiosa, radicalmente diversa da precedente.
x %
EA PD.
16
-
Max .
SCHELER,
Sociologia
%*
del
Saber,
trad.
esp.
particularmente
Parece que a Sociologia contemporânea tende a substituir as antigas ordens de segiiências, isoladas, desligadas da realida-
de total, por justificativas em têrmos de situações, de configurações ou de integrações. E é assim que o velho problema das relações entre os fatos econômicos e os religiosos, do qual partimos,
aspectos de
é substituído pelo das relações entre os diversos
uma mesma civilização. O causal desaparece ante o situacional. Em certa medida, êsse movimento segue as transformações
da Lógica clássica que abandona a concepção aristotélica de classes ou de substâncias para substituí-la por uma Lógica das Relações ou pela Matemática dos conjuntos.
Vemos,
de fato, o
mesmo movimento operar primeiro na Física, depois na Psico-
logia (com a teoria do campo de Kurt Lewin) e, por fim, na So-
ciologia. Mas, se a nova lógica, que explica as partes pelo todo e não o aparecimento de um fenômeno pela ação eficiente de um
outro,
social,
criou um
parece-nos
que
clima favorável
a uma
o fator determinante
teoria
do
das novas
campo
concep-
ções sociológicas deve ser procurado na própria evolução da Etnologia, no comêço do século XX. A grande dificuldade da Etnologia está na compreensão
do
“outro”.
O
evolucionismo
mascarou-a
por
um
momento,
mas, com Lévy-Bruhl, o reconhecimento da riqueza e da relati-
vidade das civilizações fê-la reaparecer. As relações entre os homens não são da mesma natureza que as relações entre as coisas; elas têm um significado, colocam o problema da com-
preensão; mas, temos o direito de interpretá-las através dos moldes de nosso próprio pensamento, talhado pela nossa sociedade ou nosso sistema de valôres sem cair no etnocentrismo? Podemos nos comunicar com o “outro” além das barreiras que as diferenças culturais erguem? Lévy-Bruhl compreendeu a dificuldade desta questão e procurou durante tôda a sua vida um método que permitisse enquadrar-nos nas atitudes mentais dos primitivos, ao invés de lhes atribuirmos as nossas.('º) Mas esta
longa busca resultou na proclamação da “opacidade” do pensa-
mento dos “primitivos” em relação ao do etnógrato que procura
compreendê-lo.
No
fim
de
sua
vida,
êste método
reduzia-se
ao conselho dado ao pesquisador para não se abandonar à ilusão
de esclarecer o que, por natureza, nos é obscuro.(2º)
Não era isso
uma espécie de reconhecimento da impossibilidade da transfe(19)
O
caráter
compreensiva”,
foi
Espíritoà pjentifico”,
pp.
121 (20)
Lucien
da
teoria
evidenciado Revista
de de
LEVY-BRUHL,
LÉVY-BRUHL,
por
Florestan
Antropologia,
Les
Carnets,
vista
coma
FERNANDES, S.
p.
Paulo,
uma
“sociologia
“Lévy-Bruhl
Brasil,
IJ,
2,
e o
1954,
214.
17.
rência da Sociologia compreensiva a um mundo de homens pertencentes a outras civilizações que não a ocidental? Em todo
caso, é assim que a Etnologia contemporânea em geral concebeu a tentativa
de Lévy-Bruhl,
e ela retomará,
abandonando
tôda
interpretação compreensiva, um método essencialmente positivo. O
estudo
das
estruturas
daqui
por diante leva vantagem
sôbre o das representações coletivas. E a religião será interpretada como parte desta estrutura social, muito mais do que um
conjunto
de representações
“místicas”.
Desta
maneira,
o
comportamento dos indivíduos e dos grupos não é mais interpre-
tado de dentro, mediante um esfôrço de “expatriação” do etnólogo, mas de fora, como “coisas”, ou melhor, como “ações” conju-
gadas, complementares, recíprocas, suscetíveis de um tratamento
científico objetivo. Desta maneira, a Etnologia procura escapar ao risco do etnocentrismo e da valorização, por uma evasão da
vida vivida na imobilidade quase inorgânica das estruturas, das
ordens ou das organizações.
Há, fora disto, fases nesta imobili-
zação, conforme se dê ao têrmo estrutura social um sentido concreto, visível, considerando o dinamismo das sociedades, (2!) ou
ainda, os fenômenos de “desvios” ou de “alternativas de comportamento” que permitem aos modelos mais rígidos se adaptarem
aos acasos da vida,(22) ou, ao contrário, o sentido de regras abstratas, de modelos normativos, variáveis, sem dúvida, conforme as civilizações, mas se concentrando em um determinado núme-
ro de tipos formais, em ligação com a estrutura mental incons-
ciente, que se atinge por uma espécie de psicanálise institucio-
nal. (28) O problema
da compreensão
não
está, porém,
completa-
mente afastado, porque a ligação dos homens ou dos grupos, dos sexos ou dos grupos de idade é definida por um sistema de
símbolos inclusive precisamente os símbolos religiosos, que lhe dá um sentido. Como disse Radcliffe-Brown, a ordem social depende, em última análise, da existência, nos espíritos de seus
membros, de sentimentos que controlem os comportamentos individuais ou grupais, uns em relação aos outros. A estrutura funciona segundo modelos, valóres, idéias ou ideais que têm um
significádo para os seus elementos constituintes.
in
(21)
Com
Primitive
RADCLIFFE-BROWN,
Society,
por
exemplo,
Structure
O problema and
Function
(22) Com Raymond FIRTH, por exemplo, “Social Organization and Social Change”, J. Of R. J. Of G. B. and 1., 84-1954. (23) Com Claude LÉVI-STRAUSS, por exemplo, Les Structures Elémentaires de la Parenté, cf. também do mesmo autor: Trístes Tropiques, cap. XXVIII, onde o problema da pesquisa de modelos está voluntáriamente ligado com o ultrapassar do etnocentrismo.
18
da compreensão
não está, portanto, eliminado,
parece-nos, rejeitado.
está unicamente,
Pode-se-lhe dar diversas soluções.
A
primeira, que é a de Kardiner, nos reconduz uma vez mais ao psicológico: é a “personalidade básica” que dá significação às insti-
tuições sociais; nesta perspectiva, o problema das relações entre à: Economia
e a Religião,
ou entre
as estruturas
sociais e as
representações coletivas não se coloca mais no nível do socioló-
gico, nas ações e reações das instituições entre si, mas na cons-
ciência dos indivíduos que as unem, as integram, nas suas har-
monias ou com suas tensões internas e externas. (2*) Mas a difi-
culdade que Lévy-Bruhl encontrada nesse caso: trar êsse significado? verificar suas hipóteses,
tão bem trouxera à luz será novamente como o etnólogo terá certeza de penePara não interpretar sômente, ou para êle poderá muito bem valer-se de testes
como o de Rorschach(2º) mas, para quê? O significado das respostas não é válido universalmente, visto que tem tantos sentidos quanto há civilizações. A segunda solução consistirá em não ver os mitos, as representações coletivas, as crenças religio-
sas que como justificações ou racionalizações, nos sentidos mar-
“xista e freudiano dos têrmos, de realidades ocultas e mais essenciais.
Quando
Lévi-Strauss,
por exemplo,
critica Marcel
Mauss
por haver desejado estabelecer as regras da troca, dos presentes e contrapresentes, das prestações e contraprestações na noção explicativa do hAau, quando declara contra êle que o hau não é mais que o juízo que os indígenas fazem de seus próprios modelos culturais e que esta teoria não tem mais valor que aquêle
que nós mesmos podemos fazer. Por conseguinte, faz dêle um simples epifenômeno, dissimulando estruturas inconscientes do
espírito, ainda por descobrir, dando-nos um bom exemplo desta
segunda
solução.(28)
A atitude de Lévi-Strauss parece-nos ser a
contentar com isso?
Os estudos de M. Granet sôbre a China
única verdadeiramente positiva em Etnologia, mas podemos nos mostram-nos, ao contrário, que as crenças religiosas excedem as leis da troca e da solidariedade, as regras fundamentais da
complementariedade, a lógica das relações, para explicar a complexidade tem menos ções entre atenuar os
240
do funcionamento de modelos estruturais. A religião por função explicar essas regras da troca, essas relagrupos, entre os sexos ou entre grupos de idade, que efeitos perigosos das aproximações, e é menos uma
(24)
Cf. Mikel DUFRENNE,
(26)
Claude LÉVI-STRAUSS, Prefácio do livro de M. MAUSS, Soctologte
dE)
Abram
et Anthropologie,
KARDINER,
pp.
La Personnalité
The
Psychological
de Base.
Frontters
of
Society,
Pp.
XAXVIII-XL,.
19
ideologia do equilíbrio que uma solução para suas rupturas.(2?)
Ademais, a estrutura social inclui os mortos, os ancestrais deificados, os totens e os deuses da mesma forma que os vivos, com
seus status e papéis.
relações
de
troca,
mas
Os indivíduos com “participam”
dêles,
êles não só mantêm identificam-se
com
êles, como bem mostra M. Leenhardt em seus estudos sôbre os Canaques, a tal ponto que o etnólogo não pode fazer separadamente o estudo econômico da religião e da categoria do sagrado, se desejar compreender a sociedade que analisa. Uma civilização não toma seu verdadeiro sentido se não a apreendermos através de sua visão mística do mundo, que mais que sua ex-
pressão ou justificação, constitui verdadeiramente seu suporte.(2*)
Não tem, por conseguinte, a Etnologia recursos para compreender, para apreender o “diferente”? É certo que não, já que êsse diferente é de ordem cultural, não impedindo a uni-
dade mental da espécie humana. Se é verdade que os símbolos revelam ocultando e ocultam revelando, isto que é uma defini-
ção(*º) pode se transformar em regra metodológica. De fato, essa mistura de oculto e revelado nos possibilita um meio de atingir o sentido oculto pelo que é ao mesmo tempo revelado. Compreende-se então a razão da evolução da Etnologia com a escola de M. Griaule, interessada no estudo, em profundidade, das diversas categorias do pensamento simbólico.(3º) As estruturas sociais não são esquecidas mas colocadas em íntima correlação com o universo dos valóres míticos ou rituais. Pode-se censurar o exagêro desta escola, mas essa censura não provém de um método demasiado positivo que se atenha apenas ao que é visível ou ligue de um só golpe as estruturas sociais normativas às estruturas inconscientes do espírito, para não ver no símbolo mais que a expressão da ligação e não seu significado?
Seja o que fôr êsse problema, a Etnologia forneceu à So-
ciologia o meio de passar de uma Sociologia causal a uma Sociologia integrativa. Permitiu eliminar as teorias que valorizavam certos fatos, considerados privilegiados, como os da produção econômica para os marxistas ou os da ética social-religiosa para Max Weber. Mostrou-lhe que, numa sociedade, tudo
se realiza, tudo age e reage sôbre tudo, e que a causa dos fenômenos sociais deve ser pesquisada nas suas inter-relações com
186,
(27)
Marcel
(28)
Maurice
etc.
GRANET,
Études
LEENHARDT,
Sociologiques Do
sur
la Chine,
84,
166,
184,
Kamo.
(29) G. GURVITCH, op. cit., p. 77. (30) Marcel GRIAULE, “Réflexions sur les Symboles Internattonauz de Sociologie, XIII, 1952, pp. 9, 29-30.
20
pp.
Soudanais”,
Cahiers
a estrutura do conjunto. Esse processo se fêz em duas etapas. A primeira foi a aplicação de métodos descritivos da Antropologia Cultural ao estudo da sociedade contemporânea dita “civilizada” (estudo de comunidade) e a segunda foi a aceitação do estruturalismo e do funcionalismo pela Sociologia norte-ame-
Ticana.
“A Sociologia norte-americana em seus primórdios sofreu grande influência do formalismo alemão, limitando-se a reduzir o social a. uma nebulosa de relações interindividuais ou inter-
grupais. estudo
O que a Sociologia francesa unira tão estreitamente, o
das
instituições
ou
das
organizações
sociais,
o estudo
das representações coletivas e dos valôres, o estudo da ação da sociedade sôbre o psiquismo individual foi dividido em três ciências diferentes, a Sociologia prôópriamente dita, a Antropo-
logia Cultural e a Psicologia Social. Entretanto, sentia-se igualmente a necessidade de sair do nominalismo e de refazer o que estava
dissociado;
ora,
a Etnologia
mostrava
que
as relações
interindividuais se faziam no interior de uma dada estrutura glo-
bal que as orientava, permitindo
assim
à Sociologia desembara-
çar-se do nominalismo; por outro lado, essa orientação se fazia
segundo normas ou ideais, o que possibilitava a ligação dessa
nova Sociologia com a Antropologia Cultural. Os norte-americanos, por certo, estavam presos a uma tradição universitária diferente da francesa; não chegaram a confundir sociedade com civilização, tanto mais que a civilização podia emigrar e passar de uma sociedade a outra; mas, com Sorokin, por exemplo, ou com
Parsons, as partes separadas — sociedade, civilização e persona-
lidade — tentam unir-se. Mas, se o pensamento norte-americano tinha o mérito de despertar a atenção dos pesquisadores para a importância das configurações totais, por outro lado, tendia a confundir os diversos níveis da realidade que a Sociologia marxista e durkheimiana haviam distinguido. Gurvitch mostrou a origem do que chamou
de “Sociologia em profundidade” tanto numa como noutra. (8!) É, pois, inútil voltar aqui ao assunto. Ora, a estratificação de
níveis da realidade social permitia uma dialética mais rica, que não temia fazer intervir até mesmo a causalidade única, quando
a necessidade se fazia sentir.
Ela percebia ao mesmo tempo as
implicações mútuas sôbre as quais a nova Sociologia americana insistia, como também pelas divisões, tensões e polaridades. Por (31)
G.
GURVITCEH,
op.
cit.
pp,
376-77,
590.
21
isso mesmo, permitia passar da estática à dinâmica, do situacional ao causal, numa palavra, moldar mais eficazmente a explicação
sôbre o concreto, em perpétua transformação. podemos
obter as normas
Sem dúvida, só
culturais a partir do comportamento
humano e êsse comportamento situa-se sempre num todo orga-
nizado, estruturado ou em reorganização; indubitávelmente também, os símbolos são compreendidos nas instituições, amiúde delas inseparáveis. Mas não resta dúvidas de que não se podem colocar normas, símbolos, grupos, etc., num mesmo plano sob
o pretexto de que êles funcionam simultâneamente.
A Sociologia Religiosa deve considerar, como a Sociologia
Geral, essas duas exigências que são a da configuração e a dos níveis superpostos. O mérito de Gurvitch está em ter justamente
proposto uma Sociologia profunda, respeitando o fenômeno
cial total e as formas diversas de que êle se reveste.
so-
É, pois, a partir da obra de Gurvitch, o qual encerra tôóda
uma longa história de debates, de lutas de escolas, de hesitações
teóricas, que devemos empreender nossa pesquisa. Mas parece-nos útil antes de tudo fazer um certo número de observações
sôbre esta obra:
|
Em primeiro lugar não se pode esquecer que os conceitos
propostos por Gurvitch são conceitos operacionais e que, por conseguinte, o número de níveis a considerar ou sua ordem de
importância varia de um caso concreto a outro.
Isso se nota
bem quando se compara a Vocation Actuelle, por exemplo, com Déterminismes Sociaux onde a simples passagem do descritivo ao explicativo ocasiona uma revisão do número de níveis e mesmo
o deslocamento do oitavo. Em segundo lugar, a Sociologia em profundidade não faz
com que desapareçam os velhos problemas mas, ao contrário, ela os complica para melhor resolvê-los de acôrdo com a riqueza e a complexidade do real. Isto é, as relações do religioso e do não-
religioso no fenômeno social total se efetuam ao mesmo tempo
no plano vertical e no relações dialéticas entre fológico à consciência Por exemplo, entre os
horizontal; inscrevem-se no estudo das os diversos estágios da realidade, do morcoletiva e em cada um dêsses estágios. grupos econômicos, as classes sociais, de
um lado, e as organizações religiosas, de outro; ou, ainda, entre
os símbolos místicos e os valôres políticos ao nível das obras culturais. É preciso acrescentar que êsses dois movimentos não
podem separar-se, que êles se entrecruzam a cada instante, não se devendo
28
tratá-los isoladamente,
mas,
ao contrário, relacionar
simultâneamente coordenadas.
cada fenômeno
social a êsses dois eixos de
Em terceiro lugar, Gurvitch deixou de lado o problema das
interpenetrações entre os diversos tipos de sociedades globais. Certamente, sente-se o interêsse que êle atribui a essa questão quando, por exemplo, escreve:
Talvez poder-se-ia supor que o equilíbrio das formas de sociabilidade tenderia a predominar sôbre a hierarquia específica dos níveis na estruturação e na desestruturação dos grupos, enquanto a tendência seria inversa no caso da sociedade global. (32)
Isto parece ser uma alusão a certos trabalhos norte-americanos em que se vê o contato de duas civilizações ocasionar o
desaparecimento de uma sociedade global que pode se dissolver sob a forma de sociabilidades. Mas, num mundo onde domina o amálgama das raças, das etnias e das civilizações, a questão que se coloca é a de mais completa teorização de tais fenômenos.
Portanto, não podemos saber a priori se é preciso con-
siderá-los como relacionados a um único fenômeno social total (por exemplo, o da cultura nativa em contato com elementos
estrangeiros)
ou em relação a dois fenômenos totais (como
sugere Durkheim quando define a colonização, o nascer de “tipos sociais” inteiramente novos).(88) Somos assim levados por enquanto a deixar de lado o primeiro problema que nos preocupou — o das conexões entre as estruturas e as atividades religiosas — para ver a que conclusões chega o estudo das interpenetrações de civilizações e se podemos com elas nos satisfazer.
e %
x
As interpenetrações de civilizações não constituem fenômeno nôvo, ligado à expansão européia do século XIX. Ao contrário, pode-se dizer que a História da humanidade tôda é a História do contato, das lutas, das migrações e das fusões culturais. São, pois, os historiadores os primeiros a se ocupa-
rem
dêsse
fenômeno,
mais
particularmente
do
encontro
entre
o mundo grego e o asiático, da assimilação dos povos mediterrâneos ao Império Romano, dos sincretismos religiosos que marcam o fim dêsse Império, da invasão dos bárbaros, das Cruzadas
(32)
188) P.
e da
difusão
Id. tbid., p. 101.
DURKEHEIM,
Les
progressiva
Rêgles
de
la
dos
Méthode
valôres
ocidentais
Sociologique,
Alcan,
8."
no
ed,,
e
28
resto do mundo. Mas êles estudam êsse fenômeno como historiadores, quer dizer, destacando a individualidade de cada caso; não tentaram, com auxílio do método comparativo, construir uma tipologia, ou, no mínimo, um esquema conceitual permitindo passar da descrição à explicação.
A
Sociologia
nascente
herdou
da História
esta primeira
posição do problema, mas procurou um modêlo teórico, com Karl Marx, que pudesse explicá-lo. O qual será, naturalmente, o materialismo histórico. O sincretismo religioso é o efeito do desenvolvimento do comércio e da formação de cidades, locais de encontro de marinheiros e viajantes; êle não faz mais que traduzir no plano das superestruturas os laços econômicos que se tecem entre os países, tornando-os interdependentes. Mas cada “sincretismo” tem sua própria originalidade e luta com os outros; o triunfo do cristianismo será a consequência do desaparecimento, ou, ao menos, da decadência das cidades comer-
ciais e da ruralização que marcou
Infelizmente,
o organicismo,
a invasão dos bárbaros. (**)
desfazendo
os laços entre a Socio-
logia e a História para buscar modelos dos antigos modelos marxistas, ressaltou
da fixidez dos tipos sociais, análogos
vegetais,
impedindo
à Sociologia,
biológicos em lugar o fenômeno oposto,
às espécies animais
desta maneira,
ou
incorporar
em
fenômeno
da
seu campo de estudo as interpenetrações de civilizações. Durkheim, que ultrapassou o organicismo, mas que dêle partiu com Espinas, reconhece, entretanto, o problema quando estuda nas Regras as relações entre os tipos sociais; êle distingue dois casos: aquêle — que é o mais geral — onde a causalidade externa atinge apenas a periferia da sociedade, o que lhe permite, com a primazia da causalidade interna na explicação dos fenômenos sociais,
descobrir,
remnterpretação;(*º)
bem
antes
de
Herskovits,
e aquêle do nascimento
o
de espécies . dife-
rentes, do qual a colonização seria um exemplo; a formação moderna pela interpenetração da família paternalista franca e da família patriarcal romana continua a ser o único caso dêsse segundo fenômeno estudado por Durkheim. O que impediu, todavia, a criação nessa época de uma verdadeira Sociologia das interpenetrações de civilizações foi o que se chamou a superstição do primitivo, a pesquisa das “origens”, origem da religião, origem do poder político, etc., que considerava os fatos da “aculturação” como indignos do interêsse do pesquisador. (34) HENRY, op. cit., 190. (35) R. BASTIDE, Initiation auz Civilisations, pp. 28-9,
24
Recherches
sur
lVInterpénétration
des
O fracasso de certas formas
de colonização na Oceania
ou
na África, o malôgro da incorporação das massas ameríndias à civilização ocidental, a dupla crise do capitalismo europeu e norte-americano, que os forçam a sair de seus mercados limita-
dos para se preocuparem com os países subdesenvolvidos, colocaram
hoje, ao contrário, em primeiro plano,
o problema
que
a Sociologia do fim do século XIX e início do XX tendia a ne-
gligenciar. Aqui não serão mais os historiadores ou os sociólogos que terão um papel a desempenhar e, sim, os etnólogos e os antropólogos. Daí, a passagem de uma concepção histórica a uma concepção naturalista. Tentemos vislumbrar o que distingue a segunda da primei-
ra.
Ela de início se verifica, pelo
menos
nos
Estados
Unidos,
na oposição tradicional entre a Sociologia e a Antropologia Cul-
tural, uma estudando as relações grupais, a outra as relações entre as culturas, o que faz com que tenhamos dois sistemas de conceitos sem nenhuma relação: o da Sociologia — competição,
conflito, acomodação — e o da Antropologia Cultural — aceitação seletiva, adaptação
e sincretismo, resistência e contra-acul-
turação.(*º) Em segundo lugar, o estudo da aculturação seguirá o progresso da Etnologia e não o da Sociologia. Inicialmente, na época em que a cultura é definida analiticamente por um complexo
de traços,
tirar-se-á do
encontro
de civilizações
uma
imagem mecânica e procurar-se-á nas culturas sincréticas os traços pertencentes à civilização nativa e os traços emprestados
à civilização alienígena.
Quando
a Etnologia trouxer à luz o
caráter “pgestaltista” da cultura, estudar-se-á, ao contrário, o contato entre os povos em têrmos de culturas totais, o que, constituindo um progresso inegável, colocaria do ponto de vista me-
todológico uma grande dificuldade ao pesquisador, porque êsse
contato é ainda assim seletivo, isto é, isola do todo os traços culturais específicos, aceitando uns e recusando outros. O que conduz a Antropologia Cultural, em uma terceira etapa de seu desenvolvimento, à noção de “foco cultural”.(*?) Esta concepção naturalista deve ser ultrapassada, nós o veremos;
mas,
devemos,
todavia,
integrar os resultados
em
nosso
próprio trabalho. Quais são, pois, as conclusões a que ela chega?
De início, ela permite uma tipologia que nos ajuda a superar a (36)
R.
(37)
Ver
the Study 140-52.
of
REDFIELD,
HERSKOVITS,
R. LINTON
e M.
Acculturation”,
American
esta
e
Man
evolução
and
o
hits Works,
J. HERSKOVITS,
Anthropologist,
estado
caps.
27
atual
à 32.
da
“Memorandum
XXXVIII,
questão
1936,
em
M.
for
Pp.
J.
2s>
individualização histórica da qual partimos.
Bateson, por exem-
plo, distingue o caso da completa fusão entre os grupos originais — o caso da eliminação de um ou dos dois grupos em contato e o caso da persistência dos dois grupos em equilíbrio dinãmico
no
interior
de
uma
comunidade
maior.(º%)
Sobretudo,
ela descobriu, em íntima ligação com a heterogeneidade das ci-
vilizações em inter-relação, os dois grandes processos de destruição e de reinterpretação. No primeiro caso, os modelos cul-
turais que estruturavam a sociedade desaparecem, e esta mesma sociedade se reduz a uma poeira de relações interindividuais — a causalidade externa domina a causalidade interna.
os
elementos
estranhos
são
modificados,
No segundo,
metamorfoseados
em
função dos modelos predominantes e reinterpretados em têrmos
da cultura original — a causalidade interna domina, nesse caso,
a externa.
No primeiro caso, faz-se Patologia e, no outro, Gené-
tica. (*?) Entretanto,
êsse
naturalismo
percebe
bem
suas
próprias
insuficiências e tenta superá-las introduzindo sucessivamente em sua descrição Psicologia.
dos
fenômenos
de
aculturação,
a História
e a
O naturalismo, com efeito, interpretou e explicou os fenô-
menos de interpenetração das civilizações em têrmos “quantitativos”. Os resultados do contato dependiam do número relativo de grupos em contato, grupos restritos ou grupos amplos, da
duração
cronológica
dêsse
etc., enquanto a aculturação históricas determinadas e em
contato,
da
extensão
territorial,
sempre se verifica em condições evolução constante. Era preciso,
portanto, reagindo contra a condenação feita por Malinowski
contra “os estudos de antiquário” em nome de sua doutrina funcionalista, voltar ao continuum histórico, que explica como e por que se opera o sincretismo entre as diversas civilizações. (*º)
Herskovits exige do etnólogo a análise da documentação dos Arquivos e lembra oportunamente ao americanista que o que é preciso pôr em contato não é a civilização africana de hoje com a indo-européia, mas as civilizações africanas dos séculos AVII e XVIII, tais como podemos conhecê-las pelos viajantes de outrora. Infelizmente, esta História a que aspiramos, (38)
GG. BATESON,
“Culture
Contact
and
Schisnogenesis”,
Man,
XKXKV,
Too, (35) LEVI-STRAUSS, bibliografia sôbre aculturação em L'Année Sociologique, 3.º série, 1940-48, t. I, pp. 335-36. (40) J. M. HERSKOVITS, “The Significance of the Study of Acculturation for Anthropology", Amer. Anthrop., 39, 2, 1937, pp. 260-63. “Some Comments on the Study of Cultural Contact”, ibid. 43, 1, 1941, pp. 3-5, e o livro The Myth of the Negro Past.
20
ou permanece restrita aos documentos ao ponto de se limitar a uma simples descrição cronológica dos fatos, ou é concebida como
uma
“dinâmica
cultural”,
quer
dizer,
como
uma
História
parcial: a dos fenômenos culturais desligados dos fenômenos sociais totais.(*!) E é justamente por ser esta História parcial que ela não chega a perceber os fenômenos de aculturação e que
o etnólogo que não quer se limitar à simples descrição é obrigado, em última instância, a recorrer à Psicologia. mens.
Não
são as civilizações que estão em
contato,
mas
os ho-
Por conseguinte, os mecanismos psíquicos é que são res-
ponsáveis pelo que se produz quando duas civilizações se encon-
tram. Assim, o causal deve ser, em última análise, procurado nos desejos dos indivíduos, desejo de ser diferente dos outros,
desejo de prestígio, desejo de melhorar, desejo de ser imitado,
reivindicação do eu, afirmação da defesa do eu...
e a reinter-
pretação está menos ligada, como em Boas, à existência de nor-
mas culturais, de modelos estruturais, do que à constatação de
que as inovações ou os empréstimos são mentais, que não podem, pois, se manifestar além dos limites impostos pelas próprias experiências dos indivíduos.(*2) Esta Psicologia sômente
não pode, cremos, ser separada dos condicionamentos sociológicos em que opera; não é uma Psicologia de indivíduos isolados, mas de indivíduos pertencentes a grupos, a castas, a clãs, tendo status
diferentes
de sexo,
de idade
ou
de classes.(4)
Isso
faz
com que o psíquico nos reenvie, queira-se ou não, ao sociológico. Aceitemos, entretanto, que o macroscópico se reduza em definitivo a uma multiplicidade de microprocessos psicológicos, do mesmo modo como se quis reduzir os fenômenos visíveis de evo-
lução (o aparecimento de novas espécies) a uma infinidade de fenômenos bioquímicos, atuando no nível dos genes. É evidente, nesse caso, que a nossa explicação nunca se concluirá, porque ela precisaria incluir o exame completo de todos os indivíduos em contato, o que é impossível mesmo no caso de grupos
pequenos.
revela
Felizmente, cada vez que a análise microscópica se
impossível,
há
um
outro nível
de
explicação,
o plano
macroscópico, onde o caos dos fenômenos individuais se neutraliza para deixar aparecer novas formas de regularidade tão DERA
PP.
15
(422)
o estudo
Tullio .
SEPELLI,
La
Já o Memorandum
dos
mecanismos
Acculturazione
de REDFIELD,
psicológicos,
come
LINTON
Problema
Metodologico,
e HERSKOVITS
Cf. HERSKOVITS,
“Some
reclama
Psychological
Implications of Afro-american Studies,” XXIXth Congress Of Americ., t. III, pp. 152-60 e Man and his Work. (43) R. BASTIDE, “Sociologle et Littérature Comparée', Cahiers Internationauz de Soctologie, KVII, pp. 94-5, e Tullio SEPELLI, op. cit., pp. 15-8
objetivas
e visíveis
quanto
as
primeiras,
como
Durkheim
Halbwachs verificaram em suas pesquisas (embora divergentes)
e
sôbre o suicídio. (**)
A Rússia Soviética, elevando o nível de vida pela introdução
de novas técnicas de produção nos países ditos “periféricos” (em relação à Rússia
Central), muitos dos quais ainda pertenciam a
civilizações “arcaicas”, é hoje levada a se interessar pelos fenômenos de aculturação, porém os estuda através do materialismo histórico, na base das relações dialéticas entre as infra e as superestruturas. Ela ultrapassa, assim, o psicologismo que supõe uma psique eternamente idêntica a si mesma, ligada a seus
próprios conflitos internos, independente da História, capaz, pelo
contrário, de dirigir causalmente o curso dos acontecimentos históricos. A consciência dos indivíduos é sempre determinada pelas condições do momento; ela está em estreita relação dialética com as transformações socioeconômicas. (4%) É êsse nôvo ponto de vista que foi aplicado, por exemplo, no Haiti por Gué-
rn para compreender a sobrevivência do vodu, que outrora teve uma função útil numa escravista,
como
sociedade com um
expressão
sistema de produção
da resistência do povo frente a seus
senhores, mas que hoje não é mais que um epifenômeno condenado, manejado pela burguesia mulata para melhor assegurar seu domínio político.(*') E, por certo, numa sociedade de classes, não podemos negligenciar a ação desta espécie de agrupamento
nos fatos ditos de aculturação, porém, com
a condição
de repor êsses grupos na sociedade total. Não se pode aqui valorizar a História Econômica mais que a Cultural; é preciso recolocar a interpenetração das civilizações, como diz Sepelli,
numa concepção unitária e orgânica da dialética da sociedade total no processo de desenvolvimento.
Desde já esta História está bastante afastada da História historicizante. Para vir a ser uma História Social e Sociológica, não é preciso ir mais longe ainda? Esses processos históricos se de-
senvolvem
no
a colonização
interior
de certas “situações”
como
a escravidão,
ou os auxílios aos países subdesenvolvidos.(*”)
Como Balandier mostrou, não se pode estudar os contatos entre as civilizações, assim como os fenômenos ou processos de evo(44)
R.
BASTIDE,
“La
Causalité
Externe
et
la
Causalité
WVExplication en Sociologie”, C. 1. S., XXI, 1951. (45) T. SEPELLI, op. cit., p. 17. (46) RB. GUÉRIN, “Un Futur pour les Antilles?”, Présence série, fev.-março, 1956, pp. 20-7. da
Cahiers
Internationauz
de Soctologte, XI,
dans
Africaine, nova
(47) Para as relações entre a História e a Sociologia no caso colonização, ver Georges BALANDIER, “La Situation Coloniale:
Théorique,”
28
Interne
1951, pp. 47-61.
específico Approche
lução, separando-os
dessas “situações”.(*º)
Bem
entendido,
o
que é verdadeiro para a colonização permanece válido para todos os outros tipos de “situação”. O estudo das interpenetrações
de civilizações ultrapassa um de seus capítulos mais que sociológico, se quiser As conclusões a que pretações sucessivas dos
a “Sociologia Colonial”, que constitui importantes, mas não poderá ser mais ser explicativo. chegamos no exame das diversas inter» fenômenos de aculturação encontram,
como se vê, aquelas resultantes do exame do nosso primeiro problema, ou seja, a necessidade de encarar os encontros de civili-
zações através de uma Sociologia em profundidade e a de utili-
zar as dialéticas de níveis respeitando o fenômeno
social total;
no caso presente, os diversos tipos de situações ou de configurações.
ax
*o
Esses dois temas que brevemente historiamos vão misturar-se, interferir-se ou, às vêzes, se opor, em nossa pesquisa sôbre as religiões afro-brasileiras — mas sem jamais se contra-
dizerem, antes, completando-se mútuamente, enriquecendo-se um ao outro, já que, como vimos, surgem igualmente da mesma interpretação sociológica. '*
Nosso ponto de partida é o tema das relações entre as infra
e as superestruturas, ou se se prefere, o do condicionamento
so-
cial da religião; mas, para poder julgar o papel respectivo das diversas camadas da realidade social, das ações e das reações de cada uma sôbre aquelas que as precedem ou que as suce-
dem,
como
o fenômeno
total sôbre
as partes,
não
é o melhor
método, o comparativo? Entretanto, êste método apresenta perigos, se se comparam religiões diversas em várias sociedades,
mesmo se tomarmos o caso de civilizações do mesmo tipo, em que os elementos de diferenciação seriam mínimos, de maneira
a melhor aplicar a regra durkheimiana das variações concomitantes; porque se êle permite mostrar como a variações de estruturas correspondem variações de símbolos ou de valôres, não
nos permite compreender in statu nascendi a dialética do fenômeno
se formando e, se possibilita a formação de hipóteses de
trabalho, não nos permite verificá-las. Numa aplicação semelhante do método comparativo, passa-se de uma sociedade global para outra, mas é difícil encontrar duas sociedades globais análogas exceto num ponto, pois tudo está em relação com tudo. (48)
G.
BALANDIER,
Soctologte
Actuelle
de
VAfrique
Noire,
pp.
3-36.
29
Parece que a melhor maneira de se proceder é permanecer no
seio
de
uma
mesma
sociedade,
desestruturando-se
e reestrutu-
rando-se, evoluindo mais lenta ou mais rápidamente, nas formas de produção ao longo do tempo, criando novas obras culturais
e comparando êsses diversos momentos da sociedade em desen-
volvimento.
Trata-se, em suma, de substituir à comparação geo-
gráfica, a histórica. Trata-se, contudo, de comparação e não de História, porque o que desejamos é examinar estruturas e reli-
giões em “idades” diferentes — a documentação não sendo, infe-
lizmente, jamais assaz rica para se poder acompanhar o curso das ações e das reações. A dialética histórica poderá completar a comparação pelo menos em certos pontos, e isto com maiores possibilidades à medida que nos aproximarmos do período
contemporâneo com a massa da documentação aumentando, per-
mitindo assim seguir mais de perto as temporalidades dos diver-
sos níveis do real. Escolhemos,
como
exemplo,
para aplicar êste método,
as
religiões afro-brasileiras que se constituíram e continuaram em meio a profundas alterações da estrutura social, modificando-se em relação a elas.
Os negros introduzidos no Brasil pertenciam a civilizações diferentes e provinham das mais variadas regiões da Africa. Porém, suas religiões, quaisquer que fóssem, estavam ligadas a certas formas de família ou de organização clânica, a meios biogeográficos especiais, floresta tropical ou savana, a estruturas aldeãs
e comunitárias. O tráfico negreiro violou tudo isso. E o escravo foi obrigado a se incorporar, quisesse ou não, a um nôvo tipo de sociedade baseada na família patriarcal, no latifúndio, no regime de castas étnicas. Que se passou então? Esta é a pri-
meira questão que teremos de resolver. Mas o período de escravidão durou três séculos e no curso dêsse tempo a sociedade brasileira não permaneceu imóvel. O século XVIII, por exemplo, viu a produção mineira dominar o regime das grandes plantações; o século XIX,
o desenvolvimento da urbanização; enfim,
a miscigenação e a ascensão do mulato modificaram, pouco a
pouco,
Como
ções?
a
antiga
estratificação
de
castas,
no
fim
do
Império.
reagiram as religiões africanas a tôdas essas transformaEsta
é a segunda
questão
que
precisaremos
examinar.
A diminuição do tráfico negreiro, inicialmente sob a imposição da Inglaterra, mais a abolição da escravatura, conduziram o Brasil a uma crise que, sem dúvida, repercutiu na Economia e na Política — passagem do Império à República $0
—,
porém,
mais
gravemente
ainda,
nas antigas estruturas.
É o
regime de produção que muda, o trabalho forçado sendo substi-
tuído pelo trabalho livre; mas a estrutura demográfica transfor-
ma-se também primeiro com o êxodo do campesinato de côr para
a cidade, depois com a chegada em massa, no Sul, de imigrantes
europeus, em seguida japonêses, para substituir o negro nas plantações, modificando com sua vinda a distribuição racial no solo; da mesma forma, o regime familiar, o grupo da Casa-grande destituído de seus escravos, lavradores ou empregados domésti-
cos; é, por fim, a sociedade brasileira que passa, com a indus-
trialização, tornada possível graças aos capitais outrora utilizados na compra da mão-de-obra servil e depois disponíveis, de uma sociedade de castas para uma sociedade de classes. Tudo isso não deixou de repercutir nas religiões afro-brasileiras. Contudo, êsse movimento se opera com velocidade variável
nas diversas regiões do Brasil. Ás vêzes se diz que o Brasil se compõe mais de estratos históricos que de camadas sociais e que
uma viagem do litoral ao interior nos faria passar sucessivamente da civilização contemporânea à civilização imperial, depois à
colonial, para chegar finalmente à neolítica dos índios do campo
ou da grande floresta amazônica.(*º) Sem chegarem até essas nuanças, os geógrafos ou os sociólogos franceses que se ocuparam do Brasil(*º) opõem o Brasil arcaico ao moderno. A tenta-
tiva de Redfield feita no México para seguir no espaço o conti-
nuum folk-urbano é possível também no Brasil, e hoje aí vemos
multiplicarem-se os estudos de comunidades, distinguindo “comunidades de folk” e “comunidades em transição”.
As estruturas e
as civilizações, rurais e urbanas, não são idênticas; as estruturas
das cidades do Nordeste, onde a industrialização é menos acentuada,
diferem
daquelas
do
Sul
e, mesmo
nêle,
o capitalismo
ainda se apresenta em suas diversas etapas, de uma região a outra. Uma vez que o negro seja camponês, artesão, proletário, ou constitua uma espécie de subproletariado, sua religião se
apresentará diversamente ou exprimirá posições diversas, condi-
ções de vida e quadros
sociais não identificáveis.
O que complica a questão é que essa religião sofreu não só a influência dessas variações da estrutura social mas, também, (49)
mente,
Cf.
não
em camadas Fernando de
Pedro
é uma
CALMON,
estratificação
História
Social
de classes,
mas
do
Brasil:
de épocas.
“O
Brasil,
Éle não
social-
se divide
humanas, mas numa justaposição de séculos”; e a discussão de AZEVEDO, “Para a Análise e Interpretação do Brasil”, Kev. Bras.
de Estudos Pedagógicos, XXIV, 60, 1955, pp. 12-4, (50) J. LAMBERT, Le Brésil, Structures Sociales tiques, A. Colin, 1953, p. 64 e segs.
et
Institutions
Poli-
81
da
pressão
cultural
do
europeu
branco,
política seguida pelo Estado português,
católico,
e da
dupla
representado por seus
governadores, e da Igreja Católica Romana, representada por seus monges mais que por seus capelães de engenho ou curas das paróquias. Isto faz com que as superestruturas, as representações religiosas como os símbolos da mística, os valôres culturais dos africanos ou de seus descendentes se achem subordinados a uma dupla influência: uma no mesmo nível, a das repre-
sentações coletivas dos cristãos, dos símbolos culturais europeus, dos valôres portuguêses e, a outra, em nível diferente, a das
modificações
morfológicas
das
estruturas,
organizadas
ou não.
De outro lado, esta cultura religiosa lusa foi importada também
e não deixou, como a outra, de sofrer as influências de uma mudança ecológica e de desestruturações e restruturações da sociedade brasileira em formação. Não evocamos ainda senão um dos aspectos dos processos
dialéticos que deveremos seguir.
Porque se a Religião Católica
sofreu a influência das modificações da estrutura social, ela, de outro lado, moldou a nova sociedade; encarnou-se nela como
uma alma que, de dentro, modelaria o corpo onde passaria a
viver. Roma, aliás, não estava tão longe que não pudesse lutar contra os desvios, contra as influências dissolventes e, com um sucesso maior ou menor. tentar unir em tôrno de sua Igreja os núcleos
dispersos,
as células
vivas
do
organismo
brasileiro
em
gestação. Da mesma forma, a religião africana tendeu a reconstituir no nôvo habitat a comunidade aldeã à qual estava ligada e, como não o conseguiu, lançou mão de outros meios; secretou, de algum modo, como um animal vivo, sua própria concha; suscitou grupos originais, ao mesmo tempo semelhantes e todavia diversos dos agrupamentos africanos. O espírito não
pode viver fora da matéria e, se essa lhe falta, êle faz uma nova. O marxismo teve razão em nos alertar contra o idealismo, lem-
brando que não há vida social e cultural possível fora da matéria que a condiciona; seu êrro foi crer que ela nasce sempre da matéria. Não devemos, ao contrário, esquecer êste poder de criação das correntes profundas da alma coletiva. Por conseguinte, o problema das interpenetrações de civilizações complica, mas
ainda assim não nos liberta do problema mais profundo, o das relações entre os níveis superpostos da Sociologia em profundi-
dade.
A tarefa que nos atribuímos é, pois, uma tarefa sociológica. Trata-se de, num exemplo que nos parece privilegiado sob diver32
sos aspectos, melhor compreender essas relações dialéticas. Parece assim necessário, para terminar esta introdução, ver o que nos separa das interpretações já dadas às religiões afro-brasileiras como também a contribuição que cada qual pode trazer à nossa
tentativa. | Não foi senão no fim do século XIX que essas religiões despertaram a atenção dos investigadores. O término da escra-
vidão colocou, de fato, um enorme problema ao Brasil, o da assimilação dos negros como cidadãos e como produtores assa-
lariados.
O aumento da criminalidade,
da vagabundagem,
da
prostituição, o retôrno dos negros libertos da agricultura comercial à mera agricultura de subsistência, tudo isso levava o bran-
co a inquirir se esta assimilação seria possível. Não tinha o africano uma mentalidade diferente da do brasileiro branco? Seu cristianismo não éra um simples verniz que mal dissimulava a
manutenção de “superstições” ancestrais?
Sua evangelização não
havia sido uma “pura ilusão”? É para demonstrar esta tese, da heterogeneidade dos espíritos, que Nina Rodrigues, pela primeira vez no Brasil, estuda a religião dos negros, em
1900.(º!)
Precisamos insistir na obra de Nina Rodrigues porque é a partir dêle que tôdas as pesquisas se desenvolveram. Ele foi, segundo a expressão de seu discípulo, Arthur Ramos, “um chefe de escola”, quer dizer, fixou os dois pontos de referência do estudo das religiões afro-brasileiras para tôda a primeira metade do século XX, o psicologismo e a Etnografia. Poder-se-á corrigi-lo, recusar seus preconceitos raciais ou seus estereótipos sôbre
o negro, mas sempre colocar-nos-emos nas mesmas perspectivas que êle, as da Psicologia e da Etnografia.
Nina Rodrigues era médico-legista e naturalmente o que mais o impressionou nas seitas africanas foi o que interessava ao médico, isto é, as crises de possessão. Isto o levou a: 1.º — Centralizar todo o culto no transe estático e negligenciar, por conseguinte, outras manifestações religiosas menos éspetaculares mas, talvez, tão importantes como o ritual da divi-
nação, as cerimônias privadas, a mitologia, etc.;
2.º —
Propor
uma
interpretação
dessas
religiões
através
dos quadros da Psicologia Clínica. A iniciação dos fiéis no culto aparece, nesta perspectiva, menos como uma incorporação a uma sociedade e a uma cultura, do que um processo de perturbação
(51) Com O Animismo Fetichista dos Negros meiro em francês e depois em português.
da
Bahia,
publicado
pri-
33
do sistema nervoso, uma educação do êxtase.
É com a ajuda das
idéias que o Dr. Janet estava elaborando na mesma época sôbre o sonambulismo e o desdobramento da personalidade que Nina Rodrigues explica os fenômenos do transe místico nos negros do candomblé; é verdade que o sonambulismo era então aproximado
da histeria e que certos psiquiatras negavam a existência da his-
teria entre os negros.
Nina Rodrigues é, pois, obrigado a de-
monstrar que os negros conhecem a histeria tão bem como os brancos e que as festas religiosas africanas constituem, do mesmo
modo,
exercícios
de
sonambulismo
provocado;
em
se-
gundo lugar, e à guisa de subterfúgio, que o desdobramento da personalidade pode aparecer em outras moléstias que não a his-
teria, por exemplo, na neurastenia ou na imbecilidade.
Daí, sua
conclusão final de que o baixo desenvolvimento intelectual do negro primitivo, auxiliado pelo esgotamento nervoso das ceri-
mônias de iniciação, provoca estados de neurastenia nos africanos
e que, portanto, a histeria existiria nos negros crioulos ou nos mulatos. A religião africana seria, em ambos os casos, um fe-
nômeno patológico.
:
Mas a prática intensiva dêsses fenômenos patológicos supunha a existência anterior de seitas africanas, não assimiladas
pela civilização brasileira. Portanto, era preciso centralizar o êxtase no complexo teológico-litárgico no qual se manifestava.
Daí a passagem da Psicologia (ou Psiquiatria) à Etnologia. Nina Rodrigues não era um etnólogo profissional, já o dissemos, mas esforçou-se muito para descrever objetivamente o mundo
dos candomblés e para pesquisar nos livros dos africanistas as raízes africanas das religiões da Bahia. Por certo, êle exagerou ou insistiu muito sôbre o que essas religiões podiam apresentar
de exótico, de estranho, à nossa mentalidade; não quis nelas ver
mais que um emaranhado de superstições, o que fêz com que confundisse magia e religião própriamente dita e negligenciasse, infelizmente,
os aspectos
comuns,
cotidianos,
da vida
religiosa.
Mas isto dito, se se pode reprovar-lhe as lacunas ou certo excesso de pitoresco, não resta dúvida de que o esfôrço de objetividade
do autor foi tão arrojado que sua descrição mais de meio século depois permanece válida e mesmo, na opinião dos sacerdotes afro-brasileiros que conhecem bem as obras de seus discípulos, a mais justa de tódas. Nesse campo da Etnologia, a grande descoberta de Nina Rodrigues foi a do sincretismo religioso entre os deuses africanos
34
e os santos católicos.
e quem
despertou
Portanto, foi êle quem descobriu primeiro
a atenção
dos pesquisadores,
como
acentua
Arthur Ramos, para as formas modernas de aculturação. Nesse ponto, êle se encontrava numa situação privilegiada, pois que no seu tempo existiam, lado a lado, africanos puros e negros crioulos.
Era êle assim levado a distinguir dois tipos de candomblés — os africanos e os nacionais — e dois sincretismos —
o dos africanos
puros que simplesmente “justapõem” o culto católico a suas cren-
-ças e práticas “fetichistas” e que concebem os orixás e os santos
“como de categoria igual ainda que perfeitamente distintos”, e o
dos crioulos, em que êle nota “uma tendência manifesta e incoer-
cível para identificar os (dois) ensinamentos”. A aculturação é então por êle concebida como uma europeização progressiva do negro, moderada pela “incapacidade ou morosidade de progredir
por parte dos negros”.(*2)
Em 1902, ainda, um médico da Bahia, desta vez Oscar Freire, escreve sua tese sôbre a Etiologia das Formas Concretas
da Religiosidade no Norte do Brasil, que marca um progresso em relação à tese de Nina Rodrigues na medida em que atribui a fatôres sociais o que êste atribuía à raça. Mas o mais célebre discípulo de Nina Rodrigues seria Arthur Ramos, igualmente médico-legista e que consagraria quase tôda sua existência ao estudo cuidadoso das civilizações africanas no Brasil. O grande mérito de Arthur Ramos
é seu anti-racismo,
seu antietnocentris-
mo, o de ter substituído o velho princípio de civilizações superiores ou inferiores pelo da “relatividade das culturas”. Ninguém fêz mais que êle para dar ao brasileiro de côr o orgulho pelas suas origens étnicas. Os critérios por êle utilizados na pesquisa são os mesmos Etnologia.
de Nina Rodrigues,
isto é, o psicologismo
e a
Nota-se em seus livros, do ponto de vista psicológico, uma ampliação do pensamento de seu predecessor. Sem dúvida, êle
se interessa sempre pela crise de possessão e a relaciona sempre a “estados mórbidos”, mas, antes de tudo, utilizou a psicanálise para explicar fenômenos de sobrevivência africana; os mitos e os
ritos subsistitam na medida em que se inscreviam no inconsciente
coletivo ou racial, onde eram as expressões de complexos gerais (52)
Mais
ou
menos
na
mesma
época
de
Nina
Rodrigues,
um
homem
de côr da Bahia, Manuel QUERINO, em seu desejo de glorificar “sua raça” e a contribuição que ela trouxe ao Brasil, escreve uma série de estudos sôbre a religião e o folclore do negro. Ésses estudos permanecem isolados, fora da corrente geral, mas trazem uma documentação, a nosso ver, particularmente interessante e cuja importância tem sido subestimada.
85
como o edipiano e o narcisista; e O sincretismo só foi possível onde
o santo católico correspondia exatamente aos mesmos complexos
fundamentais
que os orixás, São Jorges fálicos ou Virgens ma-
ternais.
O sincretismo não é mais simplesmente o resultado do
recursos
da
encontro de duas civilizações; resulta em definitivo da analogia entre o inconsciente do negro e do branco. O que se pode censurar nesta Psicologia não é seu princípio, a aplicação dos Psicanálise
ao
fenômeno
uma Psicologia sem Sociologia. (3)
de
aculturação,
mas
ser
Uma vez que o inconsciente
é modelado da mesma forma que o consciente pelas estruturas
sociais, êle está condicionado pelo fenômeno social total no qual
se inscreve e, aqui, êsse fenômeno é o da dominação econômica
e política de uma
classe sôbre outra.
A Etnologia de Arthur Ramos também
amplia considerá-
velmente a de Nina Rodrigues. Para começar, há um conhecimento melhor de pesquisas feitas no Continente Africano, o que lhe permite esclarecer sobrevivências que até então permaneciam
no esquecimento.
Estendeu principalmente o estudo que Nina
Rodrigues fizera na Bahia a outras áreas culturais do Brasil, em
particular à macumba
do Rio de Janeiro, sôbre a qual não se
possuía mais que uma reportagem jornalística, aliás sugestiva, de João do Rio (Paulo Barreto). Mas esta Etnologia prende-se
ainda aos quadros da Antropologia Cultural norte-americana modificada pelos estudos de Lévy-Bruhl sôbre a mentalidade pri-
mitiva. Os fenômenos de aculturação são descritos mas não explicados pelas conjunturas econômicas e sociais, embora a mis-
tura de civilizações não se faça no vácuo: repousa em bases ma-
teriais que condicionam os processos e os efeitos. Ao lado de Arthur Ramos, considerando-o como o iniciador, seria preciso
citar tôda uma série de pesquisadores que, por sua vez, amplia-
ram a pesquisa começada, seja em outros pontos do território brasileiro (o Dr. Gonçalves Fernandes com Xangôs de Recife,
Nunes Pereira com a Casa das Minas do Maranhão), seja em
outras formas de culto (Edison Carneiro com o Candomblé de
Caboclo).
É a época do tema negro invadindo a poesia, o ro-
mance, o jornalismo, afastando o índio e o caboclo da Literatura e das preocupações dos intelectuais. Três grandes congressos afro-brasileiros reunindo etnógrafos, psiquiatras, antropólo-
gos, lingiiistas, historiadores, folcloristas e mesmo sociólogos marcam êste período: o de Recife em 1934, organizado por Gilberto Freyre, o da Bahia em 1937, organizado por Aydano do Couto em
36
(53) Tentamos uma crítica dêste aspecto da obra nosso livro Sociologie et Psychanalyse, pp. 248-50.
de
Arthur
RAMOS
Ferraz e Edison Carneiro, e o de Belo Horizonte, nas vésperas da II Grande Guerra, organizado por Ayres da Mata Machado e João Dornas Filho.
Herskovits vem, durante a guerra, ao Brasil, aí continuando
a grande investigação sôbre os fenômenos de aculturação afro-americana que já o levara ao Daomé, ao Haiti e à Guiana Holandesa. Envia aos Estados Unidos jovens pesquisadores brasileiros para formá-los nas disciplinas da Antropologia Cultural e dessa maneira abre-se um segundo período na história das pesquisas sôbre os negros brasileiros: a influência de Herskovits substituindo a de Arthur Ramos.
Os dois representantes
nova corrente são Octavio da Costa Eduardo,
desta
que estudou os
Vodun do Maranhão, e o Dr. René Ribeiro, que exaustivamente
estuda as seitas religiosas em Recife. Mas se esta escola aperfeiçoa os processos da primeira, utiliza novas técnicas e uma
nova conceituação, não muda a perspectiva da antiga, isto é, a
religião afro-brasileira continua sendo interpretada pelo psicologismo e pela Etnologia. Entretanto,
e é talvez o maior
mérito
da contribuição de
Herskovits, o transe místico é destacado do estudo clínico para
relacionar-se,
com
o auxílio
da teoria
dos
reflexos
condiciona-
dos, a um complexo cultural normal. As perspectivas psicológica
e etnográfica, em lugar de serem separadas, acham-se assim integradas e constituem
civilização.
as duas faces de um mesmo
fenômeno
de
Esse nôvo ponto de vista tem não só a utilidade de
nos libertar, de maneira que esperamos seja definitiva, das interpretações do êxtase pelos dados da Psicopatologia — concebendo-o como um momento do ritual — mas também, e principalmente, a de começar o trabalho de unificação entre o psicológico e o cultural. Infelizmente, de apenas começar, porque o cul-
tural é interpretado ainda isolado de seu condicionamento social. É preciso reconhecer dêsse ponto de vista que Herskovits e seus discípulos
estão,
fato, torna-se
ainda,
necessário,
empenhados
nesta
última
êles nos recomendam,
direção;
estudar
de
o can-
domblé em seu conjunto e não só como religião; as seitas africanas do Brasil têm um aspecto econômico, uma estrutura sociológica que se impõe e modela as relações interindividuais. Tôda descrição que negligencia êsses aspectos não pode ser válida. A investigação, nesse sentido, certamente não faz mais que começar,
mas já revela a preocupação com o fenômeno social total. O êrro está em negligenciar o fenômeno
a sociedade
brasileira,
ou
em
social mais geral ainda, que é
só considerar
a influência
desta
87
sociedade pela sua transformação em sincretismo, isto é, na única
expressão que ela toma no seio dessas seitas. Em certa medida, êste ponto de vista é válido porque a civilização africana está “enquistada”, mas a dialética dêste enquistamento escapa-nos to-
talmente a esta altura. Em suma, o que censuraríamos na posição de Herskovits é permanecer no domínio único da Antropologia Cultural, ao invés de ultrapassá-lo para fazer uma Sociologia da interpenetração das religiões. Melhor dito, visto que sob a forma que damos a esta crítica, a objeção toma um aspecto demasiado radical, o que lhe censuramos é não ver as relações entre o social e o cultural senão através do funcionalismo e da Ecologia. De início, pela Ecologia. O método preconizado por Herskovits é o do estudo de pequenas co-
munidades por meio da observação participante. Ora, na comunidade, a religião parece bem unida aos outros elementos da vida social e como o etnólogo de que falamos tem a preocupação da História, ela está compreendida no seu continuum
espaço-tempo. Este estudo de comunidades de negros permitiu ultrapassar o pitoresco e a preocupação com o exotismo que
estragaram frequentemente os primeiros trabalhos dos etnógrafos;
permite-nos descobrir a vida cotidiana dos habitantes, os gestos
de todos os dias, o que é essencial para uma melhor compreensão do conjunto. Mas esta ligação entre o cultural e o social conti-
nua a ser feita do ponto de vista da Antropologia Cultural, isto é, ela se opõe às duas críticas seguintes: 1.º —
O estudo de comunidades não pode ter um sentido
enquanto essas comunidades não forem ligadas a um conjunto, regional ou nacional; as civilizações locais não passando de re-
flexos particulares de uma 2.º —
civilização geral que as abrange e
O funcionalismo tende a ser a única perspectiva pela
qual o social é compreendido. |
de
Normas
e
ajustamento
sanções do
culturais
indivíduo
(...)
representam No
caso
modos
dos
tradicionais
grupos
de
culto
afro-brasileiro, constituem-se êstes não somente em unidades de convivências particulares, dentro de nossa sociedade geral, como em vetores de um sistema de valôres e de patterns frequentemente diversos daqueles adotados nos outros grupos dessa sociedade. Éles fornecem ainda aos indivíduos que dêles participam, sem que lhes seja necessário repudiar os demais valôres e estilos da cultura luso-brasileira, um sistema de crenças e um tipo nôvo de relações interpessoais amplamente favorável à redução de tensões. Pessoas cujos status e papéis na sociedade global não lhes oferecem chance
38
para
colimarem
crenças,
de
seus
objetivos
relações
(...)
interpessoais,
de
encontram
aí um
hierarquia,
bem
sistema como
de
um
tipo de relações com o sobrenatural e de aparente contrôle do acidental, que lhes permitem a satisfação das necessidades psicológicas indispensáveis a seu ajustamento ao mundo em que vivem. (54)
Precisamos notar, desde o início, o que êsse texto tem de significativo na mudança completa por que passou a pesquisa afro-brasileira. Partimos do patológico e chegamos agora à
conclusão oposta, de que a religião africana é o fator de ajustamento do indivíduo à sociedade. Longe de ser uma experiência mórbida, o transe é uma técnica de solução de tensões. Estamos inteiramente de acôrdo e amiúde insistimos nesse ponto. Mas onde vemos um efeito, quer-se ver uma função. O funcionalismo tem seus méritos, êle nos lembra que todo organismo funciona,
o que alguns às vêzes esquecem. Uma pura sobrevivência que não desempenhasse nenhum papel teria de desaparecer; muitas
descrições de cultos afro-brasileiros transformam, infelizmentc, êsses cultos em peças de museu recendendo naftalina, em obje-
tos preciosos de vitrina devidamente catalogados e fichados. Mas a religião negra do Brasil é uma religião viva. Devemos porém observar que:
1.º —
Com
Durkheim,
a pesquisa das funções vem
em
segundo lugar, após a pesquisa causal e histórica, pois se ela nos mostra por que um determinado fenômeno subsiste, não nos
explica por que êsse fenômeno existe, e isto fica particularmente
claro nos candomblés
tempo;
que mudaram
de funções
no
correr
do
2.º — Quando se pesquisa de um ponto de vista funcionalista a razão última de um fenômeno, chega-se sempre à mesma conclusão: assegurar a satisfação das necessidades humanas (se
se parte de Malinowski), assegurar a existência do grupo (se de
Radcliffe-Brown). Tanto num caso como no outro a explicação é muito geral para ter um valor explicativo. Uma vez que as mais
diversas instituições políticas, religiosas, familiares permitem
a
satisfação dos mesmos desejos de prestígio, de segurança, de novas experiências, do mesmo modo os grupos, quaisquer que
sejam, organizam a solidariedade entre seus membros. O que é importante não é a banalidade do comum, mas as diferenciações: por que o indivíduo procura satisfações aí e não em outro lugar? Por que a integração se faz nesse grupo e não em outro? (54)
René
RIBEIRO,
Cultos
Ajro-brasileiros
de
Recife,
pp.
142-49.
39
Só uma análise sociológica da sociedade brasileira total pode-nos
permitir responder a essas questões.
Gilberto Freyre, ao contrário dos autores precedentes, estuda a situação racial brasileira como sociólogo, mais que como
etnólogo
ou antropólogo,
se bem que seja discípulo de Boas.
Sem dúvida, êle não estudou particularmente o domínio da Re-
ligião, contentando-se nesse campo com observações feitas de passagem, como sôbre o culto de São Jorge ou sôbre a seita
panteista de Pernambuco; mas traçou, pelo menos para as épocas
colonial e imperial, o quadro sociológico no qual ocorreram os fenômenos de aculturação.
Fazendo isso, êle ultrapassa os dois
pontos de vista, opostos mas igualmente valorizadores, do branco
e do negro, A aculturação, na verdade, tem sido estudada no grupo negro; mas contrâriamente ao que pensa Guerreiro Ramos,
nem Herskovits, nem seus continuadores brasileiros, têm a inten-
ção de fazer a apologia da “brancura”; ao contrário, e justamente
porque sempre se parte do negro, é descobrir, por meio de rein-
terpretações, a conservação das civilizações africanas. A Africa ocultou-se sob roupagens ocidentais, mas sua forma de família
habitual sobrevive no concubinato, suas formas de trabalho coletivo no mutirão, a independência econômica da mulher na divi-
são sexual do trabalho e pelo comércio do grupo feminino... As duas censuras que Guerreiro Ramos faz à Antropologia Brasileira, a apologia do “branqueamento” e o excessivo interêsse no exotismo (o negro como tema em lugar de ser problema), valem talvez para a primeira escola de que falamos mas não para a segunda, que insiste na pesquisa do cotidiano e na importância do “não-branqueamento” cultural, Guerreiro Ramos não faz tampouco distinção entre a obra sociológica de Gilberto Freyre
e a dos etnólogos.
Sem embargo, há entre essas suas concep-
ções uma diferença capital, além do fato de se relacionarem a
ciências diversas.
O que os antropólogos ressaltam sob a ilusão
do sincretismoé o perpetuamento da civilização africana; o que ressalta Gilberto Freyreé o estabelecimento de uma civilização brasileira pela fusão das contribuições culturais do índio, do português e do africano, os traços da civilização frequentemente se encontrando mais entre os brancos que entre os negros e os da civilização luso-ameríndia entre os negros mais que entre os brancos.
Podia-se esperar de Pierson, sociólogo da escola de Chicago que consagrou um livro importante à Bahia e que estuda o can-
LO
domblé, esta integração da religião afro-brasileira nos quadros do conceito sociológico. Ele realmente tentou, por exemplo, examinar as relações ou reações das diversas classes sociais da Bahia, ou de diversas épocas, em relação ao candomblé.
Mas
seu livro é mais a justaposição de dois “sistemas de referência”,
o. dos sociólogos (conflito, acomodação, etc.) e o dos antropólogos (assimilação, sincretismo, aculturação, etc.), que uma integra-
ção num todo bem coordenado. Éle permanece prêso à tradição norte-americana que separa as ciências da sociedade e das relações interpessoais, das ciências da civilização e das relações entre
valóres, ideais e representações coletivas.
leiras não
são, portanto,
recolocadas
no
As seitas afro-brasi-
quadro
do
fenômeno:
social total que por si só lhe pode dar uma interpretação. Isso bem compreendeu Tullio Sepelli, que nos propõe uma definição da aculturação afro-brasileira através do quadro das transformações do regime social.
Sepelli censura o caráter unilateral das interpretações ante-
riores. Á Antropologia negligencia as relações sociais entre senhores e escravos e se preocupa apenas pela dinâmica dos fenômenos
culturais.
Gilberto
Freyre
descreve essas relações
mas
põe em segundo plano o fato de que a civilização do escravo não se originou dos quadros da sociedade brasileira, que foi trazida da Africa e que era ali o fundamento da existência. Restaria, pois, a fazer, e é o que tenta nosso autor, uma interpre-
tação
unitária
do
sincretismo,
considerando
a relatividade
dos
diversos fatóres causais estabelecendo uma hierarquia das integrações psíquicas e históricas. O quadro em que tenta esta integração lhe é fornecido pela situação social da escravidão, mais tarde a proletarização do negro, ligada a sistemas de produção (a
monocultura e as minas, a industrialização do Brasil). É nesta direção que, de fato, é preciso empenhar-se. E os pequenos ensaios de Sepelli constituem certamente um grande progresso em
relação às tentativas precedentes.
Infelizmente o autor, proclamando seu repúdio ao unilateralismo e recusando aceitar unicamente a explicação econômica, acha-se ainda bastante ligado ao marxismo.
a religião sempre
como
uma
ideologia,
De início, êle define
o que impede de ver
que a Teologia Afro-brasileira pode, em certos casos, se conver-
ter em ideologia. A confusão entre obra cultural e ideologia torna-o cego para certas variações importantes da religião, que examinaremos. Em segundo lugar, sua explicação repousa, em última análise, mais sôbre as formas de produção que sôbre as
estruturas sociais, o que lhe permite perceber certos aspectos im-
41
portantes da questão, o papel da escravidão, por exemplo; mas a religião afro-brasileira nos parece menos ligada à escravidão que ao trabalho artesanal dos negros “livres” e é preciso recolocar a escravidão no conjunto dos quadros sociais da sociedade brasileira: sua estrutura familiar, sua organização política, corporativa, religiosa. Deveremos considerar todos os fatôres que entram em jôgo — demográficos, econômicos, sociais — em todos os níveis e em tôdas as suas inter-relações. A dialética social é mais rica que a marxista.
Se esta Sociologia não pode substituir a Etnologia, deve integrá-la e dar-lhe sentido. O que faltou a Sepelli foi justamente esta base etnológica. Ela é indispensável, como poderemos ver apenas por um exemplo. Na falta de uma pesquisa pessoal no campo, constatando nos livros que consultou sômente a pobreza dos mitos africanos, o autor considera como inexistência o que, em realidade, é falta de informação, uma lacuna da pesquisa. Ora, êle acha para isso uma explicação na dialética histórica. É
sempre mais fácil encontrar explicações a posteriori... sobretudo quando se tem um sistema! Quanto a nós, devemos desconfiar de nossos modelos de interpretação, de nossos esquemas conceituais, porque poderíamos justificar tudo o que quiséssemos,
tanto o falso quanto o verdadeiro. O papel da Etnologia é de nos fornecer a base sólida sôbre a qual construiremos depois. É
por êsse motivo que nós, após traçarmos num artigo os quadros conceituais da pesquisa que iríamos empreender, (5) nos entregamos, sem idéia a priori e sem pensar em qualquer teoria, a
uma
investigação
direta no ambiente
das
seitas
afro-brasileiras,
com o fim de verificar primeiro a validade pelas descrições anteriores e, em segundo lugar, para completar as partes que haviam sido negligenciadas (culto dos mortos, mitologia, divinação, cerimônias privadas. ..). Por certo nossa investigação é insuficiente em face da riqueza dêsses cultos.(**) Pelo menos, estamos conscientes de suas falhas e não tentaremos explicar o que ainda está por descobrir. Nossa tese é uma tese de Sociologia, mas que se fundamenta numa longa observação etnográfica de vários
anos.
Todavia uma
dúvida nos assalta ao fim desta introdução.
Pode um branco tentar esta pesquisa etnográfica? interpretação sociológica?
Vamos
Propor esta
aqui de encontro à recusa de
(55) Aludimos ao nosso artigo de Renaissance, “Structures Sociales et Religlons Afro-brésiliennes”, publicado em 1945, mas escrito anteriormente. (58) Esperamos que Pierre VERGER, que conduziu mais longe a invêstigação etnográfica, nos dê, um dia, resultados mais completos.
42
Guerreiro Ramos, brasileiro:
que escreve na sua problemática
do negro
As teorias sôbre o negro brasileiro são o fruto de uma visão alienada, de uma visão exterior ao país. Mesmo quando são redigidas por brasileiros, se inscrevem na tradição das antigas relações para com a metrópole (...) Os epígonos da nossa socioantropologia do negro desde Nina Rodrigues não fazem mais que compilar comentários (...) às categorias de peritos europeus e norte-americanos sôbre o assunto... Entretanto, a compreensão efetiva da situação do negro no Brasil exigirá um esfôrço de criação metodológica e conceitual. Ela tem particularidades históricas e sociais que não podem ser captadas por processos puramente simétricos (aquêles da ciência de exportação) (...) A tarefa que se impõe como necessária para conjugar esta mistificação do tema -—— o negro no Brasil — é a de promover a purgação dêsses clichês conceituais e tentar examiná-lo pondo entre parênteses as conotações de nossa ciência oficial e tentar compreender o objeto a partir de uma situação vital... Qual será esta situação vital? Ao autor parece que esta é a do homem com a pele escura, quando o indivíduo se afirma de um modo autêntico como negro. Quero dizer que se começa a compreender melhor o fenômeno quando se parte da afirmação — niger sum. Esta experiência do niger sum é, inicialmente, por seu significado dialético, na conjuntura brasileira onde todo mundo quer ser branco, um processo de alta rentabilidade científica (...) A partir desta situação vital o problema efetivo do negro no Brasil é principalmente psicológico e secundáriamente econômico. Desde que se defina o negro como ingrediente normal da população do país, falar de um problema econômico do negro desligado daquele das classes não favorecidas ou do pauperismo é um absurdo. (57)
No fundo, dois temas se confundem nesta crítica: a necessidade do niger sum e o repúdio da Sociologia “Consular” ou de Exportação. Não vamos aqui discutir a questão de saber se se
deve partir da experiência da negritude para poder compreender as relações raciais ou se esta experiência não é deformante (e se é melhor,
no caso, como
pensam
os norte-americanos,
escolher
um observador “neutro”, o que fêz recair a escolha para estudar as relações raciais nos Estados Unidos sôbre Myrdal, estrangeiro em seu país). Mas, quando se passa do nível de grupos e das organizações ao nível dos símbolos e dos valóres, então a compreensão supõe a participação ou, como diz Guerreiro Ramos, “uma situação vital”. Sômente no Brasil, por motivos que exa-
minaremos, há uma dissociação entre a cultura e a raça. Encontram-se, no candomblé, espanholas “filhas-de-santo”, membros
franceses e suíços, com títulos diversos da hierarquia sacerdotal
(57) Cadernos
Guerreiro RAMOS, “O Problema do Negro do Nosso Tempo, 2, 1954, pp. 207-15.
na Sociologia Brasileira”,
43
(não falo, naturalmente, de estrangeiros que têm títulos honoríficos sem iniciação prévia); basta aceitar de coração a lei africana; e a partir dêsse momento, não obstante ser-se branco, a pessoa é tomada pelas participações místicas, pelos tabus, pela permeabilidade à vingança mágica. É o que faz com que se possa ser negro no Brasil sem ser africano e, reciprocamente, ao mesmo
tempo, branco e africano.
Posso, por conseguinte, dizer no prin-
cípio desta tese, africanus sum, na medida em que fui aceito por
uma dessas na fé, com outros do experiência
seitas religiosas, considerado por ela como um irmão os mesmos deveres e os mesmos privilégios que os mesmo grau. A experiência que daremos será uma vivida.
Quanto
à crítica da Sociologia Consular,
ela constitui, cre-
mos, uma tomada de posição útil contra aquêles que querem aplicar métodos ou conceitos extraídos da Sociologia Européia ou Norte-americana às realidades brasileiras sem uma crítica prévia. Por si só, esta objeção de G. Ramos é válida apenas para uma conceituação de tipo substancialista e não para uma de tipo operacional, isto é, subordinada ao contrôle dos fatos,
moldando-se nêles, mudando com êles. Nossa tarefa é compreender a realidade rá-la no geral, ela trouxer algo dialéticas entre heterogêneas.
dd
brasileira em tôda sua originalidade e não encermas chegar até a generalização apenas quando de nôvo a uma Sociologia Teórica das relações estruturas sociais e religiões e entre civilizações
Primeira
A DUPLA
Parte
HERANÇA
CAPÍTULO
I
A Influência de Portugal e da África na América
A colonização da América, a princípio, não foi uma colonização de povoamento: o português, como o francês e o inglês, criou feitorias no litoral para comerciar com os indígenas, com
paus-de-tinta,
particularmente,
e os primeiros
brancos
chega-
dos ao Nôvo Mundo, longe de impor ou propagar sua própria civilização, deixaram-se influenciar pela dos índios. Essas feitorias, que eram simultâneamente mercados e pequenas fortalezas,
não eram numerosas porque o Oriente, com suas riquezas em
especiarias, em pedras preciosas e em tecidos resplandecentes, dominava ainda o comércio luso. Só depois que o português foi banido das Índias Orientais é que seu interêsse se voltou para a
América.
Mas, a América só lhe podia fornecer poucas mercado-
nente
comércio
rias, algumas plantas medicinais, o pau-brasil, papagaios multicores e macaquinhos divertidos. Para poder abrir o nôvo contiao
culturas como
era
preciso,
de
início,
a do açúcar, cujo consumo
introduzir
aí novas
começava
a crescer
na Europa, e a criação de uma agricultura comercial não podia ser bem sucedida sem o povoamento dos novos territórios descobertos
pelo branco.(!)
Por
outro
lado,
os espanhóis
en-
contraram nos caminhos de seus conquistadores minas de prata e pedras preciosas; não conteria o Brasil também em seu vasto interior jazidas de minérios? A sêde de ouro vai impelir a me-
trópole a organizar expedições, entradas ou bandeiras, à procura de metais preciosos,(?) o que supunha, antes de tudo,
o povoamento relativo do país. (1)
8Sô0bre
MARCHANT, cional, 1943,
De 205
esta
primeira
forma
Por conseguinte, a colonização
de
colonização
Escambo a Escravidão, trad. port. pp.; e sôbre a fusão dos primeiros
do
Brasil,
ver
Alexander
S. Paulo, Cla. Ed. Naexploradores na clvili-
zação indígena, G. FREYRE, Casa-grande e Senzala, trad. fr., p. 86. (2) As bandeiras partidas de 8. Paulo, ao contrário das entradas que safam das cidades do Nordeste, parscem à primeira vista mais espontâneas.
Mas Jaime 1948,
CORTESÃO,
mostrou
que
numa
o govêérno
série!tde artigos do O Estado
contrclava
também
de S. Paulo,
o movimento
em
bandeirante.
47
no século XVI
vai mudar de caráter e, permanecendo unida ao
capitalismo comercial, característico da época, efetuar-se-á com o povoamento. Portugal,
mesmo
entretanto,
se ressentia da falta de mão-de-obra,
para sua agricultura local; grande parte dêsse país em-
bora pequeno, continuava no século XVI carente de homens, quase sem cultura, pois as guerras de conquista, as pestes, as epidemias fizeram grandes claros na população. É por isso que a
colonização americana vai tomar uma forma especial, vai se fazer sob o signo da escravidão. Aliás, Portugal a isto já estava habi-
tuado pois que fizera trabalhar em seus campos os descendentes
dos árabes conquistados e depois os prisioneiros de guerra feitos
na Africa do Norte. Tinha mesmo adotado, em seguida à sua exploração das costas africanas, a escravidão dos negros; sabe-se que, em 1550, perto de 10% da população de Lisboa era composta de escravos negros. Bastava, pois, transportar êste costume da
metrópole ao Brasil e fazer trabalhar nas plantações que aí se iam
instalar a massa de indígenas escravizados sob o contrôle e em benefício de uma minoria branca.(*) Deixar-se-ia, ademais, êsses brancos, excitados por um clima mais sensual e pelo contato com belas jovens nuas, misturarem-se com a gente da terra,
dando origem a uma multidão de bastardos e de mestiços que
formariam, entre o colonizador branco e o índio selvagem, uma “classe intermediária de maneira a amortecer os choques de civilizações, a propagar os valôres portuguêses no sertão e a ajudar o povoamento do país graças a uma população mais assimilável «que a população indígena às formas modernas do trabalho.(*) Mas, para atrair os colonos brancos para uma terra estranha e inóspita, coberta de vastas florestas, povoada por índios antropófagos, era preciso, naturalmente, dar a êsses ousa-
«dos conquistadores privilégios consideráveis. A costa do Brasil foi dividida em doze setores por linhas paralelas e tôda a exten-
são do país, a partir do litoral até q mistério de seu interior, foi
dada a título hereditário a capitães que, em troca das despesas
de transporte e de instalação, recebiam direitos de soberania sóbre o território outorgado: direito de nomear as autoridades administrativas, direito de justiça, direito de distribuir terras, direi-
to, enfim, de receber em seu proveito taxas e impostos sóbre seus futuros súditos. Discutiu-se muito o caráter dessa primeira (3)
não
48
(4)
Caio
G.
apenas
PRADO
FREYRE,
“sexual”
Júnlor,
op.
desta
cit.
História pp.
primeira
46-7,
Econômica nsistiu
forma
do
sôbre
Brasil, o
pp.
caráter
de miscigenação,
21-31.
“politico”
e
cf. p. 214 e segs.
colonização; certos historiadores quiseram aí ver a implantação
do regime feudal na América, exatamente quando êle se desmo-
ronava na Europa; outros, pelo contrário, insistiram sôbre seu caráter capitalista.(º) É preciso, cremos, distinguir entre a organização jurídica e as finalidades do sistema; juridicamente, constituía uma feudalidade, mas êste nôvo regime feudal não
era mais que um meio de atrair os brancos ao Brasil, sem ônus
para a Coroa portuguêsa e o fim último da emprêsa, finalmente,
tem conexão com a mentalidade mercantilista do século XVI. O
problema,
aliás, não nos deve reter longamente,
visto que essas
capitanias hereditárias deviam malograr, e a metrópole foi obrigada a substituir êsse primeiro sistema de povoamento por um outro, o contrôle feudal pelo contrôle governamental. Em 1548
a Coroa nomeia um governador geral para representá-la na Colônia e, a partir desta data até o fim do período colonial, a centralização e o refôrço do poder real irão aumentar sem cessar. Todavia, essa mudança política não devia ter influência no
desenvolvimento da economia porque a cana-de-açúcar não se prestava a pequena cultura; reclamava, para prosperar, a grande
plantação.
|
Já
desbravar
para
e
preparar
convenientemente
o
terreno
(tarefa custosa nesse meio tropical e virgem tão hostil ao homem)
tornava-se necessário o esfôrço reunido de muitos trabalhadores; não era emprêsa para pequenos proprietários isolados, Isto feito, a plantação, a colheita e o transporte do produto até os engenhos onde se preparava o açúcar, só se tornavam rendosos quando realizados em grandes volumes. Nestas condições, o pequeno produtor não podia subsistir. (8)
A monocultura forçava ao latifúndio e êste, por sua vez, reclamava a escravidão. Recorreu-se naturalmente, de início, à
mão-de-obra que se encontrava no país, isto é, à mão-de-obra indígena. Esta devia se manter por muito tempo ainda, sob formas mais ou menos hipócritas, nos extremos Norte e Sul do Brasil; porém, nas grandes plantações de cana, o africano, desde o fim do século XVI e sobretudo no século XVII, devia substituir
gradualmente o índio. Os historiadores pesquisaram as causas dessa mudança da mão-de-obra. A primeira e a mais importante delas foi o estado de civilização do aborígine, habituado ao (5)
Fernando
de
AZEVEDO,
4
Cultura
Brasileira,
p, 89.
Oliveira
VIANA,
Pequenos Estudos de Psicologia Social e Instituições Políticas Brasiletras, t. 1, cap. IX, Caio PRADO Júnior, Evolução Política do Brasil, cap. I, A. RAMOS,.
Introdução à Antropologia Brasileira, t. II, p. 120. R. SIMONSEN, História
Econômica
(6)
do
Brastl,
Caio PRADO
t
I,
pp.
Júnior,
124-27.
História
Econômica
do Brasil,
p. 41.
49
nomadismo e a uma agricultura itinerante que não podia se sub-
meter ao trabalho sedentário, do mesmo modo que “à disciplina,
ao método e ao rigor de uma atividade organizada”. A segunda foi a reação da Igreja Católica contra a escravidão do índio que
impedia a sua cristianização.
Sem querer subestimar êsse segun-
do fator, êle nos parece ainda assim menos
importante
que o
primeiro porque, no Maranhão e em São Paulo, onde os brancos não eram tão ricos para importar “peças de ébano” da África,
os senhores se levantaram contra as ordens religiosas que os im-
pediam de escravizar os indígenas e chegaram mesmo até a expulsar os jesuítas. Se o elemento índio tivesse se mostrado apto ao trabalho agrícola, não há dúvida de que se teria encon-
trado um modus vivendi como na América Espanhola; foi seu fracasso nas plantações mais que a proteção da Igreja que causou sua substituição pelo negro.(”)
Quantos negros foram trazidos ao Brasil? É evidente que se pudéssemos dar uma resposta exata a esta pergunta, ela seria para nós da maior utilidade porque a solidez da implantação de uma civilização num país depende do número de seus migrantes.
Infelizmente, os documentos oficiais sôbre o tráfico negreiro foram queimados depois da supressão do trabalho servil, a fim de apagar a mancha escravocrata do brasão do país apesar dêsse gesto sentimental não facilitar a tarefa dos historiadores. Por certo, sempre existe nos Arquivos Municipais dos portos uma
documentação
dos
escravos,
sôbre os direitos alfandegários pagos à chegada
mas
esta
documentação
—
que,
aliás,
não
está
ainda totalmente publicada — não é suficiente, e os historiadores são obrigados a confiar em generalizações a partir de dados frag-
mentários ou a sugerir hipóteses.
Não é surprêsa, nessas condi-
ções, que os números variem de um autor a outro. Se ao menos essas variações fôssem pequenas teríamos uma certeza aproximada; mas, elas variam de 12 a 14 milhões para Calógeras(*) para apenas 2 500 000 para Pedro Calmon! E evidente que êste últi-
mo número é bastante baixo porque equivale a uma média de 8 333 negros por ano, número êsse que é desmentido pelos documentos já publicados. Calmon percebeu isso e modificou êsse número em seguida, elevando-o para a ordem de 6 milhões.(?) De outro lado, a cifra de Calógeras é muito alta porque, para
(7)
G. FREYRE, op. cit. pp. 152-54.
(8) Pandiá CALÓGERAS, 4 Política Exterior do Império, e segs. e 302. (9) Pedro CALMON, História Soctal do Brasil, citado Subsídios para a História do Tráfico Africano no Brasil, p.
50
cap.
IX,
p. 289
por 239.
TAUNAY,
transportar 54 500 africanos todos os anos, era preciso uma flo-
tilha de 185 barcos com capacidade para 300 pessoas cada um,
exclusivamente
XVIII
mais
que
empregada
50 barcos
no tráfico, não havendo
no século
entre os portos do Nordeste
e da
Africa fazendo uma viagem cada 2 anos; e o número de veleiros que chegavam ao Rio não devia ser muito maior.(!º) Para encontrar cifras mais exatas, restam dois possíveis métodos, um mais econômico e o outro mais histórico. Roberto
Simonsen parte da duração média da vida dos escravos, segundo
os testemunhos de seus contemporâneos (que seria de sete anos de vida efetiva) e da produção do país: A produção total do açúcar, no século XVII, é calculada segundo
nossos
gráficos,
perto
de
180
milhões
de arrôbas. (Il!)
Admitindo-se
que a produção média por escravo seja de 50 arrôbas, que não é grande para terras virgens, e uma perda ocasionada pela duração de vida de 7 anos do escravo, concluiremos que a produção açucareira do século XVII absorveu 520000 escravos. Dêsse número, deve-se ter importado do Continente Africano no máximo 350 000 (...) O total do volume de açúcar exportado de 1700 a 1850 deve chegar ao máximo de 450 milhões de arrôbas. Segundo nosso critério, esta produção necessitaria, na pior das hipóteses, de 1 300 000 escravos. Não parece exagerado calcular que um quarto dêste montante seria constituído do braço indígena e de escravos nascidos no Brasil. Chegaríamos assim à cifra de 1000000 de escravos importados neste período. O século XVIII foi o século do ouro (...) Estabelecemos mais acima a produção de 200 gramas de ouro por homem. Teremos, pois (...) supondo uma produção geral de (10) A. de E TAUNAY, op. cit., p. 247 e Maurício GOULART, víidão Africana no Brasil, p. 275. É preciso acrescentar ainda: 1) Que
4 EscraCalógeras
superestima o tráfico clandestino que certamente existiu, mas que seguramente não duplicou o tráfico regular e, 2) Que êle elimina a reprodução do negro no Brasil, baseando-se no depoimento de Eschwege, que atribui ao negro uma taxa negativa de crescimento, Oo que está em contradição com as estatísticas conhecidas, e o próprio cálculo de Eschwege está errado. De fato, êle atribuía uma taxa de -2,19% para os mulatos e -3,95% para os negros.
Calógeras concluí que todos os negros gãriamente ao fim de 20 a 25 anos, constante,
deveria
haver
para
de
4
Minas
a
no
5
importados deviam desaparecer necese que “logo, para manter um nível
renovações
século
por
XVIII.
século”.
taxas
as taxas XIX (de
negativas do século XVIII tornam-se positivas a partir do século +7,6 a +18%). Mesmo para o século XVIII o cálculo de Calógeras
mostra-se falso, seria realmente
de de
95,5 não 25 anos
porque se se deduz uma diminuição de
Goulart
essas
só valem
outras regiões e para outras épocas coeficientes As pesquisas que eu mesmo realizei nos arquivos
Maurício
Mas
negativas
os
Minas,
mesmos,
para
positivos de 0,05% a 0,2%. de São Paulo mostram qua
de 100 escravos aos primeiros -4,5, isso 4,5; mas os segundos -4,5 tirados agora
farão mais que 4,03, e assim sucessivamente, até que no fim restaritam ainda 32 negros dos 100 primeiros importados. A
êsses erros capitais, Calógeras acrescenta outros; por exemplo, aos 92 128 escravos contados nos impostos por cabeça do primeiro
em
cita
os
o
92740
do
pagamento
segundo do
semestre,
impôsto
se
sendo
fazendo
que
em
êsses
duas
adiciona semestre
indivíduos
vêzes;
ou
são
ainda,
como entre 1575 e 1591, 52053 negros saíram da Colônia Portuguêsa de Angola, conclui que todos êles entraram no Brasil, quando Portugal nesta época estava prêso ao tratado com as Índias de Castela, M. GOULART, op. cit., p. 155. (11) Arrôba: pêso português de 32 libras de 16 onças cada uma,
51
1 200 000
quilos
e uma
duração
média
de
vida
de
7 anos,
um
total
de 860 000 escravos dos quais 600 000 ou 2/3 teriam sido importados. O café começou a aparecer como valor nacional apreciável a partir de 1820 (...) Sua exportação total durante o período do tráfico africano não atinge 150 milhões de arrôbas. A produção média anual por escravo deveria ser superior a 100 arrôbas. O café não é, pois, responsável senão pela importação de 250 000 escravos aproximadamente,
o
que
produções agrícolas de 3 300 000.(12)
nos
dá,
e para
com
1 100 000
os serviços
negros
domésticos,
para
uma
as
outras
cifra total
Taunay com a ajuda da documentação histórica chega a uma cifra aproximada de 3 600 000. O tráfico foi bastante re-
duzido de 1540 a 1560; elevou-se progressivamente a partir desta
data, mas não atingia no fim do século uma cifra superior a 3 ou 4 000 cabeças por ano.
No século XVII, quando a navegação
marítima foi fortemente perturbada pela pirataria francesa e inglê-
sa e pela guerra com os holandeses para a conquista do Brasil, não se pode ultrapassar a média de 6 000 escravos entrados anualmente. No século XVIII a mineração criou uma necessidade maior de mão-de-obra e provocou um afluxo mais elevado das entradas de africanos, mas a segunda metade do século vê a decadência da indústria açucareira como também a da mineração, o que faz com que Taunay proponha uma média anual de
13 000 escravos.
ticas, Taunay,
por
Se essas primeiras cifras permanecem hipotéoutro lado,
conseguiu
reunir para o século
XIX uma documentação assaz rica sôbre o tráfico, permitindo-
“lhe calcular entre 1800 e 1856 uma entrada de 1 562 000 afri-
canos no país. Isso nos dá em definitivo o seguinte quadro: século século século século
XVI XVII XVIII XIX
.......... o... .......... e...
100 600 1 300 1 600
000 000 000 000
3 600 000(1º) Maurício Goulart, o último historiador que se preocupou com a questão, recusa-se a fazer hipóteses como Simonsen, cujos
dados
lhe parecem
análise dos
por
documentos
demais
arbitrários.(!*)
e estatísticas com
Éle prefere
a condição
a
de sub-
metê-los a uma reflexão crítica, já que muitos dos documentos q 12) PD.
2
01-5.
(13). (14)
Roberto
C. SIMONSEN,
História Econômica
A. de E. TAUNAY, op. cit., pp. 304-5. M. GOULART, op. cit., p. 149.
do Brasil, 1500-1880, t. 1,
são inúteis como, por exemplo, as narrativas de certos viajantes
onde o gôsto pelo exotismo leva a ver no Brasil “um país negro”.(15) Entretanto, êle também chega a uma cifra total que
não está tão longe daquela de Simonsen: para
o período
colonial,
daria uma importação
nos.(1º)
Certamente
1 350 000
2 200 000 a 2 250 000
para
o século
XIX,
o que
africanos foram
arran-
total de 3 500 000 a 3 600 000 afriça-
que muitos
outros
cados de seu país para serem transportados ao Brasil, mas acorrentados nos navios, comprimidos uns contra os outros, foram
dizimados por moléstias contagiosas, pela fome ou sêde, e seus corpos lançados ao oceano. Ás vêzes, sômente a metade da carga chegava ao seu destino.(1!") Por conseguinte, podemos concluir que hoje há um acôrdo em relação a uma quantia aproximada de 3 milhões e meio de
negros chegados ao Brasil desde os primórdios da colonização até ao fim do tráfico legal ou clandestino. (1º)
Se os navios negreiros desembarcavam cargas cada vez mais numerosas de africanos, a emigração portuguêsa ao Brasil,
por sua vez, acelerou-se sobretudo com a descoberta de minas de ouro no século XVIII e com o progresso dos empreendimentos comerciais no século XIX. Malgrado nosso, não dispomos de estatísticas bastante seguras sôbre a composição racial da população no curso dos diferentes séculos. Segundo o Padre Anchieta havia em 1585: 24 750 brancos, 18 500 índios civili-
zados e 14 000 africanos.
Rocha Pombo
calcula a população
brasileira de 1600 em 30 000 brancos, 30 000 negros e 70 000
indígenas civilizados ou mestiços. Em contra os holandeses, haveria 74 000
1660, no fim da guerra brancos e índios livres,
110 000 escravos, em geral africanos ou crioulos.
gundo Perdigão Malheiro,
Em
1798, se-
1 010 000 brancos, 250 000 índios,
406 000 mulatos ou negros livres, 1 582 000 negros ou mulatos (15)
que
na Bahia
211, 275, 279. (16) Id, ibid. p. 272. (17) Ver sôbre o tráfico negreiro e seus horrores, TAUNAY, 123-31. J. F. de ALMEIDA PRADO, Pernambuco e as Capitanias
Op. cit,, do Norte
havia
pp.
pp. do
20
Brasil,
JId., ibid. negros
p.
246
pp.
para
e segs.
1
114-15, FREZIER, branco,
J.
Relation
DORNAS
por exemplo,
Filho,
de
4
Voyage
calculou dans
Escravidão
no
Charles de LA RONCIBRE, Neégres et Négriers, cap. III. (18) Ao lado das obras gerais sôbre o tráfico, existem
la
Mer
Brasil,
du
Sud,
pp.
57-61,
algumas
sôbre
o tráfico particular para uma região, como a de Luiz VIANNA FILHO, O Negro na Bahia, Rio, J. Olympio, 1946, p. 167 ou a de Ciro T. de PADUA, O Negro no Planalto, 8. Paulo, Imprensa Oficial, 1943, pp. 127-228. Deixamos
de lado propositadamente 0 estudo do tráfico negreiro e da escravidão negra no Brasil holandês, que não deixou traços suficientes para, serem registrados na história ulterior do Brasil. Ver sôbre a questão: WATJEN, O Dominio Colontal Hollandez, p. 378 e segs., 487. Gonçalves de MELLO NETO, Tempo dos Fiamengos, pp. 208, 222, 229.
58
escravos. A estatística oficial de 1817-1818 dá para todo o Brasil uma população total de 3 817 000 habitantes dos quais 585 000 mulatos e negros livres e 1930 000 escravos.(!º) Desta maneira, no início do século XIX os negros dominam demográficamente os brancos, o que permite compreender porque êles pude-
ram manter parte de sua herança cultural e mesmo, por motivos
que posteriormente veremos, influenciar a civilização dos portuguêses. Entretanto, é preciso não esquecer que os brancos
comandam e dirigem, que o escravo é rejeitado da comunidade
nacional e que esta estratificação das côres prejudicou em maior ou menor grau a ação do fator demográfico.
A partir do século XIX as proporções se invertem, não em benefício do grupo branco e sim do grupo dos mestiços; todavia, aqui ainda os dados que temos são pouco seguros. Rugendas,
por exemplo, estima para 1827 a população total do Brasil em 3 758 000 habitantes ao passo que Malte-Brun a eleva em 1830
para 5 340 000; Rugendas pensa que não havia mais que 845 000 brancos e 628 000 mestiços, enquanto as cifras dadas por Malte-
-Brun para êsses dois grupos étnicos são respectivamente 1 347 000 e 1 748 000. Os dois autores estão mais ou menos de acôórdo em relação ao número de negros: 1 987 000 para o primeiro e 2017000 para o segundo. Mesmo as estatísticas de escravos que aqui nos poderiam ser de grande utilidade apresentam grandes divergências: o conselheiro Velloso de Oliveira estimava
seu número
em
1819, em
1 107 000; em 1850, o senador
Cândido Baptista de Oliveira o elevou para 2 500 000 e em 1869, o senador Thomaz Pompeu de Souza Brasil o reduziu para
1 690 000.(2º) Tomando-se por base o recenseamento de 1872,
não obstante a maioria das pessoas de côr serem analfabetas e sua qualificação racial depender ou de seus senhores quando
escravas,
ou
dos
recenseadores
quando
livres,
ainda
assim
êle
constitui o dado mais seguro que podemos utilizar: permite-nos verificar a inversão a que aludimos. Naquela data, havia no Brasil 3 854 000 brancos, 4 862 000 mulatos ou mestiços (dado
no qual é preciso computar
um certo número
de mestiços de
índios) e apenas 1 996 000 negros.(2!) Começara o branqueamento do país ou sua “arianização” como às vêzes se diz.
(19) Perdigão MALHEIRO, A Escravidão no Brasil, 3 vols., Rio, 1867. F. CONTREIRAS RODRIGUES, Traços da Economia Social e Politica do Brasil
Colonial, pp. 93-4. (20) Giorgio MORTARA, O Desenvolvimento no Brasil, IBGE, Estudos demográficos, n.º 18,
(221) Recenseamento da cedeu no Dia 1.º de Agôsto
54
População de 1872.
do
da População p. 2.
Império
do
Brasil
Preta a
que
e Parda se
Pro-
Mas, a herança africana já então se manifestara largamente
no curso dos três séculos precedentes,
tempo
suficiente para se
implantar e subsistir ao lado da herança portuguêsa. x
%
Todavia, é preciso distinção capital.
fazer
%
entre
essas
duas
Portugal importa sua sociedade ao mesmo
civilização.
A
escravidão,
pelo
contrário,
heranças
uma
tempo que sua
destrói
a sociedade
africana, e o negro não pode trazer consigo, nos costados dos
navios negreiros, mais que seus valôres culturais. O português deve se adaptar a um nóvo meio e as modificações que sofrerão sua organização social, assim como sua civi-
lização serão, sobretudo, de ordem ecológica.
O africano deverá
se adaptar, pelo contrário, a uma sociedade bem diversa da sua
que lhe é imposta pelo branco, e é sua civilização que êle deverá
adaptar a fim de incorporá-la numa outra estrutura social. Na sua nova terra, os primeiros colonos brancos tentaram
inicialmente implantar o país que haviam deixado com suas hor-
tas e jardins, seus campos de trigo e seus vinhedos, seus galinheiros e seus currais,
suas igrejas barrôcas
e suas
casas
de pedra
um pouco sombrias e austeras. A nostalgia que guardavam em seus corações da terra natal, de suas montanhas e de suas praias não os abandonou sob o sol ardente dos trópicos e quiseram criar, no sentido exato da palavra, uma “Nova
Lusitânia”.
Seus
navios desembarcavam junto com os primeiros feudatários, artesãos, monges,
sementes, cavalos, blocos de granito para a cons-
trução de casas, blocos de mármore para levantar igrejas a Deus.
A nova sociedade
que se modela
portuguêsa até nos mínimos detalhes.
quer continuar a sociedade
Já dissemos que as capita-
nias hereditárias foram uma tentativa para calcar a organização feudal no solo da colônia americana. Poderíamos dizer o mesmo
das primeiras cidades. Fram elas administradas como as de Portugal por Câmaras municipais compostas de representantes eleitos entre os “homens bons”, isto é, entre os grandes proprietários fundiários; os primeiros artesãos se agruparam em “corpo-
rações”
com
seus
juízes,
seus
regulamentos,
seus
exames
para
ascender ao grau de mestre e em confrarias de ofício sob a proteção de um santo católico. A própria família, pelo menos a dos
nobres, não é diferente da família dos fidalgos da Côrte, muito
maior que a família plebéia, com seus “criados”, isto é, seus pro55
tegidos, educados, casados, dotados pelo senhor e que aqui tomam
o nome de “crias”.(22)
Esta sociedade foi obrigada a se transformar a fim de se
adaptar a outras condições de vida da mesma forma que o tipo de casa construída precisou abandonar a pedra pela taipa ou pela terra batida, tornando-se também maior, prolongando-se em terraço aberto, em varanda segundo a moda oriental para permitir ao português tomar a fresca nas doces horas do anoitecer. O trigo e a videira não frutificaram. Os colonos precisaram
aceitar os hábitos dos índios que estavam casados com a natureza ambiente, isto é, substituíram o pão de trigo pela farinha de mandioca, o leito muito quente pela rêde, os antigos instrumen-
tos de caça e de pesca pelos dos indígenas; adotaram seus barcos
feitos de casca de árvores ou cavados num tronco para subir os
rios; começaram
a gostar dos frutos do país e do tabaco que
mascavam, aprendendo a tragar a fumaça à moda dos índios. A horta ou a chácara portuguêsa, o pomar, foram abandonados
para serem substituídos por grandes plantações de cana-de-açúcar, o que ainda os forçou a modificar seus antigos métodos de
produção, sua agricultura tradicional para aceitar a dos indígenas, o desbravamento da floresta e a cultura itinerante entre as queimadas.(?º)
Tudo
isso não ultrapassa certamente
o cam-
po da ergologia; os empréstimos são mais materiais que sociais
e são impostos menos pelo índio enquanto índio que pelas necessidades do meio, do clima, necessidades às quais o índio soube dar soluções que na prática provaram ser eficazes, melhores que as técnicas ou os objetos transportados do outro lado do Atlântico.
Mas, essas novas condições de vida também vão em breve
fazer romper
a organização
social herdada,
quebrá-la em
multidão de famílias sem ligação orgânica umas
às outras.
uma
O
Brasil agiu sôbre a sociedade portuguêsa que se lhe queria im-
plantar à maneira de uma carga de dinamite que fêz esta socieda-
de explodir em pedaços; e, certamente tôdas essas partes, isto é, as famílias permanecem partes “portuguêsas” por seu gênero de vida, suas regras de parentesco ou de casamento, suas tradições e seus rituais; não impede que seu isolamento, sua dispersão
numa terra imensa, sua distância da metrópole pouco a pouco (22) Costa LOBO, História Lisboa, 1903, pp. 427-28.
da
Sociedade
em
Portugal
no
Século
XV,
(23) Sôbre essas fnfluências indígenas, ver Sérgio BUARQUE DE HOLLANDA, “índios e Mamelucos na Expansão Paulista”, Anais do Museu Paulista, XIII, 1949, pp. 177-290, Raízes do Brasii, p. 42. G. FREYRE, Casa«grande e Senzala, trad. fr., pp. 81-156.
56
atuem ' para remodelá-las e fazê-las evoluir numa direção diferente daquela das famílias que ficaram em Portugal. A povoação tão. tipicamente portuguêsa com seu rico folclore, seus grupos de vizinhança, seus bens comunitários, seus hábitos de ajuda” Tecíproca e de cooperação vicinal, sua solidariedade em
tôrno.da igreja paroquial, deixa de existir no Brasil; em vão, o
govêrno metropolitano tenta fundar aldeias, burgos, concedendo ordens ou elogios aos construtores e criadores de “lugares de po-
voamento”;(2*)
e, em
conseqiiência,
êsses
povoados
factícios,
cenários exóticos plantados no campo, conservam suas casas vazias a maior parte do ano e não ganham vida senão nos dias
de festas religiosas, de procissões, de convocações
das câmaras
municipais, quando os proprietários deixam seus domínios rurais para discutir seus negócios e render homenagens à divindade. A agricultura comercial na forma de plantações exige o latifúndio e êste, por sua vez, com sua cultura itinerante, suas reservas
florestais, suas terras exauridas deixadas
em
alqueive,
separa os
homens mais que os reúne. Cada família vai viver concentrada
em si mesma, no interior de sua Casa-grande e de seu domínio
numa espécie de autarquia econômica, bastando-se a si própria,
separada das mais próximas por léguas e léguas sem outras estra-
das a não ser as vias fluviais ou caminhos muito inóspitos, recebendo visitas nos dias raros de casamentos, de aniversários. Há, portanto, do ponto de vista morfológico) entre a sociedade rural
portuguêsa de tipo comunitário e a sociedade rural brasileira, de habitat disperso ao máximo, uma diferença essencial, e esta diferença não podia deixar de repercutir nos outros níveis: da
uma
organização
sociedade
social.
E,
estruturada;
de
início,
as fôrças
esta
sociedade
centrífugas
não
é
predominam
sôbre as fôrças de coesão; os únicos laços que podem reunir essas.
células autônomas
são os laços de parentesco ou de casamento,
e ainda o casamento
entre tios e sobrinhas,
é freqiientemente amiúde
endogâmico,
às vêzes.
entre primos-irmãos,(**)
o que
faz com que ao clã feudal, para empregar as expressões de Oli-
veira Vianna, isto é, do clã formado no interior do domínio pelo
senhor,
sua família, seus escravos, seus homens livres, servos ou
administrados, seus “índios de flecha”, se ajunte o clã familiar composto de famílias unidas tôdas pelo parentesco e pelo casamento. Mas êsses clãs permanecem independentes uns dos ou(24) Oliveira VIANNA, Instituições Políticas Brasileiras, t. I, pp. (25) Alfredo ELLIS Júnior, Capítulos da História Social de S. p. 121, calcula com a ajuda dos lívros genealógicos, tão reputados no o índice de consangiiinidade em 23,3% e em 42,1% na província de 8. contra 2% Dê França e 7% na Noruega, o país europeu onde êste o mais
119-20. Paulo, Brasil, Paulo,. índice
57
tros; a solidariedade também não ultrapassa suas fronteiras flutuantes e indecisas.(2º) Por questões de terras disputadas, por amôres não aceitos pelo patriarca, batalhas sangrentas semelhantes às vendetas, desenvolvendo-se às vêzes em encontros de ban-
dos armados, lançam essas famílias umas contra outras, os Montes contra os Feitosas, os Pires contra os Camargos. ..(2”)
É o que faz que a História do Brasil Colonial seja mais a história de um caos de disputas que a história da administração metropolitana unificadora e orgânica. O govêrno empregará todos os seus esforços para reunir numa solidariedade política êsses membra disjecta frequentemente antagônicos, nomeando, por exemplo, um “juiz de fora” encarregado de representar o poder teal frente às Câmaras dos “homens bons” que defendem os interêsses dos plantadores e dos grandes proprietários fundiários; e mesmo na Bahia, substituindo a eleição dos conselheiros municipais por sua nomeação, multiplicando também a partir do século XVII o número de seus funcionários; em vão, esta unida-
de política fica como uma espécie de superestrutura, útil sem dúvida ao govêrno real para a coleta de impostos ou para a
defesa da colônia, mas sem raízes autênticas nas realidades bra-
sileiras. O dito do Padre Vieira, que como bom português e católico espantou-se diante da situação, permanece válido:
família chega a ser uma República”.
“E cada
Contudo, se como dissemos, a sociedade portuguêsa explo-
diu, cada fragmento continua sendo parte da sociedade portuguêsa transplantada. A estrutura da família nobre, a única que nos
interessa no momento porque foi ela que se tornou o nôvo núcleo
de solidariedade
fidalgo índios e brancos. de gado
no
Brasil,
continua
a estrutura
da família
do
português adaptando-se a um meio onde primeiro os depois os escravos negros substituíram a plebe rural de De fato, é ao redor do senhor de engenho ou do senhor que se agrupam todos aquêles que vivem à sombra de
sua Casa-grande: primeiro sua família sôbre a qual exerce um poder absoluto, casando os filhos à sua vontade, traindo sem
escrúpulos sua mulher, sem se ocultar, com suas amantes de côr;
os escravos, que êle pode punir, matar impunemente; seus negros
livres, condutores
de carros-de-bois,
marceneiros,
ferreiros, tro-
peiros que conduzem o gado do sertão ao litoral, feitôres vigiando os cortadores de cana, os limpadores de açúcar, etc. Também
os “brancos pobres”, pequenos proprietários que são obrigados
(26) O. VIANNA, op. cit., caps. IX e X. Populações Meridionais, cap. IX. (27) Costa PINTO, Lutas de Familias no Brasil, 8. Paulo. A. de E. TAUNAY, Sob El Rey Nosso Senhor, cap. 19.
+68
a levar as suas colheitas ao engenho do senhor; camponeses
a
quem êle dá permissão de, em troca de alguns dias de trabalho,
construir na sua propriedade uma casa, fazer um jardim, mas
que êle pode
despachar
mestiços; em
suma,
impunemente
quando
bem
lhe aprou-
ver, e que se misturam com os índios, perpetuam-se em filhos
“administrados”,
diz
Gabriel
todo um
bando
de “agregados”,
em
linguagem
de índios
de protegidos, “o que é muita gente”, como
Soares
sua
arcaica.
Portanto,
foi
o engenho ou a grande propriedade de cultura ou de criação que substitui no Brasil a povoação portuguêsa. Mas quem não vê que
no Brasil a solidariedade se manifestou de forma tão diferente? Ela não repousa mais sôbre o trabalho comunitário, sôbre a cooperação democrática e sim sôbre o trabalho escravo, a servidão
dissimulada dos mestiços, a hierarquia familiar. Solidariedade tão
frágil quando se passa do centro (Casa-grande do senhor e sen-
zala dos negros) à periferia, às casas de argamassa dos pequenos
proprietários sem escravos ou dos trabalhadores sem terra que
formam simplesmente uma clientela no gênero daquela do patriciado romano. Entretanto, era preciso que esta solidariedade para se consolidar
madas
revestisse formas
orgânicas;
elas foram
to-
de empréstimo dos costumes católicos do “compadrio”
e do “comadrio”; o laço espiritual ou religioso juntou-se ao laço da dependência econômica ou social para corrigilo, para dar-lJhe uma coloração afetiva e sentimental que não tinha em sua origem. O compadrio que podia tomar formas diversas, com-
padrio de batismo com o nascimento de uma criança, compadrio de casamento
e mesmo
compadrio
das fogueiras de São João,
criava entre o padrinho, a madrinha e seus afilhados ou afilhadas tôda uma série de obrigações recíprocas e de tabus sexuais, fazendo desta forma de parentesco, um parentesco tão forte como
se fôra de sangue, ciais: deveres de de seus filhos, de deveres de ajuda,
salvaguardando a hierarquia dos estratos soproteção para com o compadre, de educação dote para a afilhada da parte dos padrinhos, de respeito, e obediência da parte das “coma-
dres” ou dos afilhados... (2º) A luxúria do brasileiro sôbre a qual Paulo Prado tanto insistiu em seu Retrato do Brasil não deve, pois, nos iludir; esta família conserva seus valôres católicos portuguêses; a capela
(28) Ver sôbre o compadrio O. VIANNA, op. ctt., p, 263 e Segs. Vianna cita essas palavras típicas de um viajante, Richard Burton: “Nos pequenos lugares todos os habitantes estão ligados pelo batismo se não o estão pelo sangue”; e o bom artigo sintético de CAMARA CASCUDO, Dicionário do Folclore
Brasileiro,
p.
189.
59
apóia-se nos muros da Casa-grande. Mas o catolicismo implantado é o catolicismo da Contra-Reforma que, em oposição ao protestantismo, desperta o velho culto dos santos e, por isso mesmo, ressuscita em parte as superstições da Idade Média. Na Europa, o culto dos santos é controlado, fiscalizado, parte de um
todo dogmático e litúrgico que o ultrapassa.
lada
culto.
de Roma
Sem
mais
dúvida,
ainda
que
nas grandes
de
Lisboa,
Aqui a família, iso-
plantações
vai incorporar
há um
êsse
capelão,
e
êste poderia ser o representante da Igreja, o mantenedor da herança religiosa européia. De fato, êle é o oficiante da missa dominical, o mestre-escola que ensina o português aos filhos do senhor, mas, como mostrou Gilberto Freyre, êle também é tomado
por êsse isolamento, pelo clima voluptuoso da senzala, pelo odor
embriagante das canas cortadas; sobretudo êle depende mais do
patriarca que o remunera, nutre e aloja, que de seus superiores
hierárquicos. Os bispos demandarão frequentemente e com insistência a supressão dêsses capelães que fazem retroceder o catolicismo de religião comunitária em religião de clãs familiares, mas nunca chegarão a destruir o costume.(?º) Ademais, o patriarcado brasileiro tenderá a influir pouco a pouco até sôbre a
igreja de Roma,
penetrando-a com
seus interêsses, suas preo-
cupações, seu nativismo rural, o filho mais nôvo de cada grande
família estando destinado ao sacerdócio e as filhas que não se
casam enclausuravam-se no convento (se se pode dizer enclausuramento já que elas nêle entravam com uma ou duas escravas para servi-las e desempenhavam aí a comédia). O que faz que em
definitivo as transformações morfológicas da sociedade na sua
transplantação de Portugal ao Brasil tivessem repercussões até no domínio dos símbolos, dos valôres e dos ideais religiosos, criando o que se poderia chamar de um “familismo” católico,
centralizado no culto dos santos protetores do patriarca e dos mortos domésticos enterrados na mesma capela e envolvidos na mesma piedade. (3º)
Mas todos êsses fatôres de dissolução ou de transformação cultural eram compensados ou negados por outros fatóres, opostos aos primeiros, que tendiam a manter ou a restabelecer a
civilização dos portuguêses.
De início, o que os sociólogos norte-
-americanos chamam às vêzes de “o sentimento da fronteira”, isto é, a altivez racial do aventureiro, do colonizador face a outros
grupos étnicos que lhe parecem inferiores. (29) (30)
60
G. G.
FRETRE, FREYRE,
O branco verá sobre-
Sobrados e Mucambos, pp, 149-5l. Casa-grandee Senzala, trad. fr., pp.
394-95.
tudo no indígena e depois no negro u “a máquina de trabalho ou
de. prazer; anexará um e outro à como se incorpora um rebanho de seduções de um clima amolecedor não desaparecer se reveste de seus
sua sociedade familiar, mas gado ao seu capital. Face às e voluptuoso, o senhor para valôres europeus, prende-se
a-éles, ;e .separa-se orgulhosamente dos “homens de côr”. Esse sentimento::variará. segundo .as regiões, será menor em São Paulo
== onde o português e o espanhol viverão na biose com os indígenas, ao ponto da língua língua da-metrópole(*!) — que nos engenhos por ser a população de S. Paulo mais plebéia,
mais estreita simtupi aí dominar a do Nordeste, isto menos rica e mais
móvel que a dos nobres, proprietários dos vastos latifúndios da Bahia e de Pernambuco. A civilização paulista isolada do ocea-
no pela Serra do Mar e, por conseguinte, mais independente daquela da metrópole, mestiçar-se-á em maior grau; a do Nordeste será mais orgulhosamente lusitana. " “Todavia, uma herança que não se renova por um contato direto com suas fontes de inspiração corre a longo prazo o risco de se empobrecer. Foi o que aconteceu aos valôres materiais
da cultura portuguêsa: o vestuário perdeu suas características regionais(*2) e o mobiliário se reduziu ao mínimo.(*) Foram
as ordens religiosas e, mais particularmente, a ordem dos jesuítas que constituíram o canal de ligação entre a Europa
ea Amé-
rica. Se o homem era por vêzes reticente, tentando livrar-se das
despesas e dos trabalhos com as procissões, (**) pelo menos o jesuíta tinha a mulher quando ela ia à cidade confessar, e o filho
no colégio.(*º)
Pode-se dizer que a criança nascia duas vêzes
no Brasil, primeiro como brasileiro, como filho da plantação sujeito às influências do meio físico, criado pelos escravos, brin-
cando com os negrinhos e correndo a cavalo através de vastas regiões, e, segundo, como português entre os muros tristes do
colégio onde aprendia o latim, o português “do Reino”, a filosofia tomista, a arte de obedecer. Essas ordens religiosas cujo pes-
soal se renovava sem cessar pela vinda de frades italianos e espanhóis, mas sobretudo portuguêses, faziam vir as plantas de
suas igrejas, as cerâmicas, as imagens de santos, os objetos litúr(31)
(32) (33) Arquivos . (34)
S. BUARQUE
DE
HOLLANDA,
Raizes
do
Brasil,
pp.
179-93.
A. RAMOS, Introdução à Antropologia Brasileira, t. II, p. 123. Como mostram os Testamentos, publicados sob os cuidados de S. Paulo, de Recife e de Salvador.
A.
de
E.
TAUNAY,
vol. 1, pp. 182-88, etc. (35) G. FREYRE,
História
Sobrados
da
Cidade
e Mucambos,
de
pp.
S. Paulo
no
Século
dos
XVIII,
92-3,
61
gicos da Europa, e, assim, faziam de suas igrejas, de suas sacristias, de seus colégios, de suas bibliotecas, fortalezas do espírito
lusitano. Foi
Como
por
disse, com justa razão, Fernando de Azevedo:
esta
ação
conjugada
jesuítas e de capelães vindos
e
pela
chegada
sucessiva
de
do Reino ou educados na colônia, em
grande parte pelos padres da Companhia, que a maré enchente das influências africanas diminuiu (...) A ação dos jesuítas e dos capelães que haviam dêles recebido o mesmo espírito e os mesmos ideais de cultura para transmiti-los à mocidade da colônia não se reduziu certamente à defesa do português contra as influências negras ou indígenas que ameaçavam ao mesmo tempo a língua paterna, a autoridade da Igreja, a moral e os costumes: êles ergueram uma barreira à desintegração da herança cultural da qual eram depositários,
e acrescenta ainda o referido autor que êsses colégios não cons-
tituíram Qúnicamente os alicerces da manutenção dos valôres portuguêses, mas foram
também
os canais da circulação das elites,
remodelando a juventude branca e mestiça para transformá-la em frades, em funcionários, em letrados, ao mesmo
tempo
bons ca-
tólicos e bons portuguêses, o que na época significava mais ou menos a mesma coisa. (3º) Havia, enfim, a ação das cidades ou mais exatamente dos portos, portos êsses abertos ao grande além e onde ancoravam
não apenas navios negreiros, mas ainda navios vindos de Portugal e que traziam consigo as idéias, os valôres, as últimas modas da Europa, a franco-maçonaria e as teoria dos filósofos do século
XVIII, a Arcádia e a poesia bucólica. Dissemos que a organização dessas cidades seguia a de Portugal, mas também aqui foi
preciso adaptar-se a condições novas. Os artesãos não eram muito numerosos para poderem constituir corporações, e aos aprendizes davam-se o título de “mestres” sem passar por exames, por
simples “licença” concedida pelos conselheiros municipais, e os “mestres”, por sua vez, abandonavam aos mulatos ou aos negros
livres seus ofícios a fim de poder entrar na categoria dos “ho-
mens bons”,(*') enfim, as confrarias de ofício tenderam a se transformar em confrarias raciais, enquanto o artesanato caía (38)
(37)
244-45. mesmo
Fernando Neison
BUARQUE um texto
de
AZEVEDO,
WERNECE
A
SODRÉ,
DE HOLLANDA, particularmente
Brasil em 1767 que se lastima do pescadores, marinheiros, mulatos,
Cultura
Brasileira,
Formação
da
pp. 298-309.
Sociedade
Brasileira,
pp.
op. cit., pp. 62-5; êsse último autor cita significativo, uma carta do vice-rei do
Rio ser só habitado de prêtos boçais e nus, e
oficiais mecânicos, alguns homens de
negócios dos quais muito poucos podem ter êsse nome sem haver quem pudesse servir de vereador, nem servir cargo autorizado, pois as pessoas de
p.
62
asas
a
nobres
e
distintas
viviam
retiradas
em
suas
fazendas
e
engenhos,
nas mãos dos negros: confrarias “aristocráticas” abertas sômente aos brancos, confrarias de mestiços, confrarias de negros.(*8) Mas, malgrado essas mudanças, a cidade permanece mais portuguêsa que brasileira, porque o desenvolvimento do comércio
marítimo para aí atrai os portuguêses — caixeiros de lojas, guarda-livros, gerentes ou diretores — e é êsse o primeiro núcleo da
burguesia urbana que vai entrar em choque com a sociedade rural dos senhores de engenho ou dos proprietários fundiários. Tivemos a Guerra dos Mascates, que opõe a brasileira Olinda ao Recife comercializado, e a Guerra dos “Emboabas”, que termina
pela expulsão dos “bandeirantes” paulistas das minas que desco-
briram e onde são substituídos pelos portuguêses vindos para tentar a aventura da riqueza fácil.(*º) Demais, a descoberta
dessas minas transformará a estrutura social do Brasil no século
XVIII, dando nascimento, no planalto central, a uma civilização
urbana, de povoamento denso, ávida de luxo, estreitamente con-
trolada pela metrópole.
O que fêz que o cordão
umbilical de
ligação da colônia à mãe-pátria nunca fôsse cortado, que, século
após século, novas migrações recimentassem os laços, dando vida nova aos valóres ancestrais e permitindo restabelecer, visto as civilizações mudarem no curso do tempo, o equilíbrio entre
as duas correntes de evolução, a da metrópole e a da colônia.
Certamente,
parece
estar
provado
que
o recrutamento
étnico
variou, que os primeiros colonos pertenciam mais às províncias do Sul de Portugal, fortemente moçarabes, e que se estendeu, no século XVII, aos açorianos e, no século XVIII,
às províncias do
Norte,(*º) mas as diferenças regionais dos migrantes não tolheram sua participação numa mesma
cultura.
A descoberta das minas não só atraiu portuguêses, como também ocasionou deslocamentos populacionais do Norte do Brasil para o Sul, e a criação do gado, com o transporte conse-
cutivo do mesmo das zonas de pastagem aos centros de consumo,
não só teceu entre as células dispersas dos clãs familiares uma vasta rêde, prelúdio econômico
a uma
unidade política,(*!)
mas
(38) G. FREYRE, Sobrados e Mucambos, t. I, p. 675 e t. II, p. 864. (39) Fernando de AZEVEDO, op. cit. pp, 65-72, 86-9. SODRÉ, p. 173 e segs. 224-34, (40) A. RAMOS, op. ctt., pp. 91-6, & colonização no comêço foi aberta tanto aos estrangeiros como aos portuguêses; exigla-se-lhes apenas para possuírem as terras que fôssem bons católicos. Mas, a partir do século XVII, restrições foram feitas, o que impediu o desenvolvimento de uma cultura brasileira mais cosmopolita que portuguêsa. A. RAMOS, op. cit. p. 98.
Nelson W. SODRÉ, op. cft., p. 113; Caio PRADO (41) R. SIMONSEN, op. cft., cap. VIII.
Júnior,
op.
cit.,
pp.
60-1.
63
fêz também todos se reaproximarem e sentirem a homogeneidade de suas crenças, sentimentos e hábitos. % x
Ed
Mas se o português pôde conservar sua sociedade e sua civilização sob os trópicos americanos, adaptando-as a êsse meio, o mesmo não aconteceu com o africano. Com efeito, o negro, ao contrário do branco, era arrancado
a fórça de sua terra, transportado para um nôvo habitat, integra-
do numa sociedade que não era a sua e onde se encontrava numa posição de subordinação econômica e social. A escravidão ia destruir-lhe a comunidade africana aldeã ou tribal, sua organiza-
ção política, as formas da vida familiar, impedindo a subsistência
das estruturas sociais nativas. O negro entrava numa nova estratificação onde o branco ocupava o ápice, o mestiço livre ou
o caboclo a camada intermediária e êle a camada mais baixa de
tôdas, ou seja, a da escravidão. Era recebido nessas grandes famílias proprietárias de plantações ou de minas, células vivas da nova sociedade brasileira, sendo que essas famílias vão substituir-Jhe daí por diante o clã, a linhagem, a aldeia. A sociedade africana não podia renascer no Brasil. Sôbre êsse ponto é geral a
concordância e não pode aqui haver realmente nenhuma discussão possível. Mas a civilização do negro estava ligada a essa sociedade; ela constituía a expressão
reflexo como o querem
autêntica dessa sociedade, seja o seu
os marxistas, ou a sua fonte viva.
E eis
que esta civilização era arrancanda de sua base morfológica e
institucional para flutuar de algum modo no vácuo.
Portanto,
não corria o risco de desaparecer simultâneamente com a sociedade, nessa transformação radical das antigas condições de vida? De desaparecer também ao mesmo tempo que os quadros sociais
que até então a condicionavam? Isso porém não é o que se passa; sem dúvida esta civilização precisou adaptar-se aos novos
quadros
econômicos
e sociais,
à monocultura,
à escravidão,
à
família do senhor de engenho, mas subsistiu. Tudo se fêz como se uma fenda se abrisse entre os diversos níveis da Sociologia em profundidade, no estágio dos símbolos, alargando-se para
deixar intactas em grande parte as representações coletivas, os valóôres e mesmo as palpitações da consciência coletiva, enquanto desmoronavam as estruturas e as normas que as sustentavam.
64
Precisamos, pois, examinar as condições em que operaram, primeiro o tráfico negreiro, e, depois, a escravidão, para com-
preender como a cultura africana pôde resistir a uma tal revolução.
Os primeiros escravos deviam pertencer às tribos do litoral,
mas à medida que o tráfico se intensificava, que as plantações ou as minas reclamavam mais mão-de-obra servil, o tráfico ga-
nhava as profundezas do Continente Africano e tornava-se mais
sistemático; roubavam-se crianças e mulheres nos caminhos, dava-se de beber aos homens que eram presos quando a embriaguez os mergulhava num sono profundo; os sobas entraram em
guerra uns contra outros para fazer prisioneiros e revendê-los aos mercadores europeus (a luta dos fons contra os ioruba não teve outra causa), e os comerciantes árabes se fizeram grandes com-
pradores de carne humana,
não tivesse penetrado como
afirmam
certos
Nessas condições, ainda que o tráfico.
tão longe
no interior do continente(“2)
historiadores,
devia-se
mesmo
assim
en-
contrar nos portos de embarque, São João de Ajuda, São Tomé,
São Paulo de Luanda, etc., pessoas pertencentes às mais diversas
tribos e mesmo
a etnias diferentes.
É em razão disso que os
têrmos pelos quais se designavam no Brasil os africanos importados não podem nos servir para reconstituirmos sua origem étnica, porque, em geral, são têrmos que designam os portos de embar-
que e não as tribos nativas. Em todo caso, uma primeira mistura fazia-se antes mesmo da subida aos navios, mistura que só podia deixar subsistir o que as civilizações originais tinham de comum
e não o que tinham de diferente, de um lado os minas, de outro os bantos ocidentais e do outro enfim os bantos orientais (ou da
“Contra-Costa”).
Os negreiros
operavam
uma
primeira
seleção nesse
gado
humano que vivia nos casebres de tábua, os pés carregados de
pesados
ferros, os ombros marcados
cusavam-se
por ferro em
a comprar indivíduos por lotes.
brasa.
Olhavam
Re-
detida-
mente os dentes, os olhos, os braços e as pernas, os órgãos sexuais para averiguar a fórça dos escravos, sua saúde, seu poder de reprodução, e esta seleção fazia que no navio a heterogeneidade
étnica fôsse ainda mais incitada, uma vez que os lotes se achavam fragmentados em indivíduos. E já, ao menos para os que não morriam durante o caminho, a miséria comum fazia nascer (42)
HERSKOVITS,
The
Myth
of Negro
Past,
cap.
da
Africa,
II, insurge-se
contra
a idéia da importância do centro da Africa no tráfico negreiro. De outro lado, Francis de CASTELNAU na Bahia interrogou os escravos para dar uma
descrição IJ Afrique
geográfica e etnográfica do interior Centrale, Paris, Bertaud, 1851.
Rensetgnements
sur
65
uma outra forma de solidariedade que não a antiga solidariedade tribal ou aldeã, e essa solidariedade, na medida em que as
circunstâncias permitiam, continuou no Brasil. Os negros chama-
vam malungo aquêles que tinham viajado no mesmo navio infernal, no mesmo cubículo imundo, cheio de excrementos, sujo de
urina ou que tinham precisado dançar na coberta sob o látego
de seus guardas.(*º) Tudo isso culturas nativas. Chegados enfim ao Brasil barracos (o de Vallongo no Rio à boa vontade dos compradores. dores, movidos apenas por seus
os maridos das mulheres,
deveria
também
desagregar
as
os negros deviam esperar nos tornou-se tristemente célebre) Naturalmente, êsses comprainterêsses egoístas, separavam
os filhos de suas mães.
Tomavam
as
“peças” de que necessitavam sem se preocupar com suas solidariedades étnicas, levando apenas em conta o estado de saúde ou de fôrça física de seus futuros escravos. Uma vez que vários navios, vindos de diferentes pontos da África, chegavam mais
ou menos na mesma época com suas cargas já misturadas, podiam
êles comprar e levar para suas fazendas negros minas juntamente com congos, “negros de Guiné” juntamente com angolas. Mas se essa oportunidade não se apresentasse, o plantador ou o proprietário de minas comprava apenas as “peças” necessárias para substituir os mortos ou para aumentar a produção, e, nesse caso, os escravos de uma só etnia iam encontrar, na propriedade para onde eram levados, escravos de outra origem.
Temos testamentos, pa-
péis de família, livros de conta de “fazendeiros” e vemos sempre
estarem, lado a lado, escravos pertencentes a territórios distantes,
a civilizações bem diferentes, o que nos é fácil constatar, pelo me-
nos em geral, pois cada africano leva como nome de família o nome de seu país, João Congo, Joaquim Benguela, Francisco Ibo, Maria Nagô... O fato de tôdas as etnias serem assim niveladas pela escravidão constituía ainda uma outra condição desfavorável à perpetuação das civilizações africanas, em suas originalidades e em suas diferenças. Para melhor compreender esta ação desfavorável precisamos
nos deter mais longamente sôbre êsse ponto para ver até onde se
estendeu esta imensa mistura de povos e de culturas e se ela podia ou não deixar subsistir traços comuns a todos.
Sílvio Romero
colocou a questão da origem dos escravos
importados pelo Brasil e afirmou que quase todos eram bantos;
foi seguido nesse ponto por João Ribeiro e por outros historiado-
(43) KOBTER, Pitoresca, p. 176.
66
Voyages
Pittoresques,
II,
p.
357.
RUGENDAS,
Viagem.
res.(*!)
Depois
dêle, Braz
do Amaral
e Calógeras(*)
amplia-
ram a posição bastante estreita de Sílvio Romero e distinguiram quatro grandes centros de exportação, o de Cacheu e Cabo Verde, o de São Tomé
(Guiné e Camerum),
o de São Paulo de Luanda
(Congo e Angola) e o da Contra-Costa (Moçambique). Mas se
êsses dois autores fizeram obra útil como historiadores, conheciam
mal a Etnografia; suas listas de tribos estão cheias de erros e de confusões. Foi Nina Rodrigues quem, interrogando ao mesmo tempo os últimos africanos importados da Bahia e utilizando o método comparativo lingiiístico bem como o etnográfico, renovou inteiramente o problema,(“º) ao qual Arthur Ramos teria o mé-
rito de dar solução definitiva.(*')
Esse último, em conseqiiência
de pesquisas feitas nas diversas regiões do Brasil, chega ao se-
guinte
América
quadro
de civilizações
Portuguêsa:
que
tiveram
representantes
na
1.
as civilizações sudanesas representadas especialmente pelos ioruba (nagô, ijexá, egbá, ketu, etc.), pelos daomeanos do grupo gêge (ewe, fon...) e pelo grupo fanti-axanti chamado na época colonial mina, enfim pelos grupos menores dos krumans, agni, zema, timini;
2.
as civilizações islamizadas representadas sobretudo pe-
los peuhls,
pelos mandingas,
pelos tapa, bornu, gurunsi; 3.
pelos
haussa
e em
menor
número
as civilizações bantos do grupo angola-congolês repre-
sentadas pelos ambundas de Angola
bangalas, dembos),
(cassangues, bangalas, in-
os congos ou cabindas do estuário do Zaira,
os benguela dos quais Martius cita numerosas tribos escravizadas no Brasil; 4.
por fim as civilizações bantos da Contra-Costa repre-
sentadas pelos moçambiques
(macuas
e angicos).
Como se vê por esta simples enumeração, a África enviou
ao Brasil negros criadores p. e
e agricultores, homens
da floresta e
(44) Sílvio ROMERO, História da Literatura Brasileira, 74, cf. SPIX e MARTIUS, Reise in Brasilien, vol. II,
J.
Ribeiro
são
tanto
mais
indesculpáveis
pois
Os
no
sabiam
que
2.º ed. vol. 1, Sílvio Romero já
na
IV
e
guerra
contra os holandeses, Henrique Dias tinha quatro regimentos de negros, distinguidos segundo suas nações: minas, ardas (daomeanos), angolas e crioulos. a37 (45) Braz do AMARAL, Os Grandes Mercados de Escravos Africanos, pp. «96.
“tes (ã8)
(47)
Nina
RODRIGUES,
Arthur RAMOS,
à Antropologia
Brasileira,
Africanos
Brasil,
caps.
V,
Pp.
Las Poblaciones del Brasil, cap. XII, Introdução
t. I, sobretudo
caps. XI, XII, XIV,
XV,
XVI,
XVII.
67
da savana, portadores de civilizações de casas redondas e de outras de casas retanguláres, de civilizações totêmicas, matrilineares e outras patrilineares, prêtos conhecendo vastos reinados, outros não tendo mais que uma organização tribal, negros islamizados e outros “animistas”, africanos possuidores de sistemas religiosos politeístas e outros sobretudo adoradores de ancestrais
de linhagens.(tº)
Como
essas diversas
civilizações
vindas
de
áreas tão diversas não se destruíram mutuamente pelo simples contato? Não são elas enfraquecidas por seu choque umas contra outras?
Êsses fatôres negativos eram contrabalançados aqui também por outros, positivos. Primeiramente de ordem histórica, (*º)
No comêço todos os escravos vindos da Africa eram chamados “negros de Guiné”, mas não seria preciso tomar esta expressão
ao pé da letra porque no século XVI a Guiné estendia-se do Senegal a Orange. Esses guinés chegados ao Brasil deviam ser autênticos bantos. Não falam as denúncias da Inquisição na
Bahia do “negro de Guiné... filho da raça Angola”?(*º) Entretanto, é provável que nos primeiros anos da colonização a maioria dos escravos procedesse de países situados acima
do equador onde o domínio europeu desde há muito tinha se
implantado e onde o comércio entre brancos e negros já era mais tradicional. Por outro lado, os negros bantos certamente dominaram durante o século XVII, primeiro porque as distâncias
entre o Brasil e Angola eram menores que entre êsse país e as
regiões ao Norte do Congo; em segundo lugar porque mostravam-se excelentes agricultores numa época em dominava a atividade agrícola. Ao negro de Guiné cabeçudo, preguiçoso, acostumando-se dificilmente à cia e ao trabalho”, opunha-se o negro de Angola, que
os bantos que pre“brigão, obediên“revelava
pelos
minas
mais disposição para o trabalho e podia ser facilmente ensinado escravos
sudaneses
antigos”,
substituíram
como
diz
Wãtjen.('!)
progressivamente
Os
os bantos
no
ou
século
X. VIII porque a descoberta de areias auríferas necessitava de no(48) É preciso comparar o quadro das tribos importadas com o das “áreas culturais” da Africa; quer seja o de FROBENIUS, Der Ursprung der Afrikanischken Kulturen, Berlim, 1898. Der Westajrikanische Kulturkreis,
Petermann's
Mitteilungen,
ts. 43-4,
1897-899;
ou
o de Melville
J. HERSKOVITS,
“Soclal History of the Negro”, Handbook of Social Psychology, Clark Univeraity, 1935, p. 214 e segs. ou 0 de H, BAUMANN e D. WESTERMANN, Les
Peuples et para ver &
rasil.
Luiz
de VAfrique, trad. cultural dos povos
fr. que
Payot, 1948, pp. 89-424, forneceram escravos ao
(49) Seguimos nesse parágrafo as ldéias expressas VIANNA Filho, op. cit. mas que são válidas também (50) Denunciações da Bahia, pp. 406, 407, 408,
(51)
66
les Clivilisations heterogeneidade
H, WATJEN,
para & Bahia por para todo o Brasil,
O Domínio Holandês no Brasil, trad. port., pp. 487-B8.
vas levas de trabalhadores justamente quando uma epidemia de
varíola varreu Angola dizimando a população, afastando os traficantes de carne humana. Aliás, se os bantos eram preferidos para a agricultura, os minas o eram para os trabalhos pesados da mineração, “sendo mais fortes e vigorosos”, segundo a ex-
pressão dos brancos da época.
Essa também é a época das guer-
ras entre os ioruba e os fon que fornecem numerosos prisionei-
ros de guerra. No fim do século XVIII e início do século XIX, os daomeanos enviam uma série de embaixadas a Bahia e Lisboa para reclamar o monopólio do comércio negreiro para seu país. Todavia, o tratado de 1815 assinado entre a Inglaterra e Portugal, primeiro passo no caminho da supressão total do tráfico, interditava a exportação ao Brasil de escravos vindos de países situados acima do equador, o que fêz que a partir desta data até 1830, pelo menos teóricamente, os negros importados viessem de Angola, ou ainda, já que faltava mão-de-obra nas novas plantações de café, de Moçambique,
se bem que seus habitan-
tes “rudes” e “bárbaros” fôssem pouco apreciados pelos compradores. (“2) Bem
entendido, êsse esquema
é válido apenas em geral, a
África tôda sempre participou do tráfico.
Mesmo
quando foi
assinado o tratado de 1815 os navios desembarcavam, enganando os barcos de guerra inglêses, lotes de clandestinos vindos do
Daomé
e da Guiné.
Mas como cada século teve ainda assim
sua característica"étnica própria, cada grande grupo, banto, de-
pois mina e de nôvo banto, pôde estabelecer, ao menos em parte, sua civilização no Brasil, antes que a mistura de etnias
tivesse
um efeito por demais desagregador. É óbvio que o tempo podia — no nôvo habitat — corroer as tradições mais enraizadas.
Contudo, o tráfico renovava a cada
instante as fontes de vida, estabelecendo um contato permanente
entre os antigos escravos ou seus filhos e os recém-chegados em
cujas fileiras vinham, com freqiiência, sacerdotes, adivinhos, mé-
dicos-feiticeiros, o que fêz que houvesse durante todo o período escravista um rejuvenescimento dos valôres religiosos exatamente quando êsses valôres tendiam a enfraquecer-se. Estamos mal-informados sôbre as religiões afro-brasileiras dessas épocas longínquas, mas é preciso sem dúvida substituir a idéia de centros de culto (que persistiram ao longo dos séculos até nossos dias, (52) Ver AFFONSO AMARAL, “Os Grandes cial do 1.º Congresso de op. cit. II, pp. 358-65. RETO Filho e H. LIMA,
CLAUDIO, “As Tribos Negras Importadas”, e Braz do Mercados de Escravos”, R. I.. H. G. B., número espeHistória Nacional, pp. 597-655 e pp. 437-96; KOBTER, Rev. R. WALSH, Notices of Brazil, II, p. 331; BARHistória da Polícia, II, pp. 178-79.
69
o que a escravidão não poderia permitir)
pela idéia de uma
proliferação caótica de cultos, ou de fragmentos
nasciam apenas para se extinguirem, os por outros à medida de novas chegadas domblés, os xangôs, os batuques de hoje seitas antigas que mergulham no passado
de culto, que
quais eram substituídos de africanos. Os cannão são os resíduos de do Brasil, mas organi-
zações de data relativamente recente, remontando mais ou menos ou ao fim do século XVIII ou ao comêço do século XIX.
Verger pôde mostrar que a Casa das Minas de São Luís do Maranhão tinha sido provavelmente fundada em 1796 por membros perseguidos da família real do Daomé;(*8) e Nunes Pereira soube por Mãe Andréa que sua “casa” havia sido fundada por “contrabandos”, isto é, por negros trazidos clandestinamente depois de 1815 e que tinham sido libertados quando de sua chegada ao Brasil.('!) Sabemos, de outro lado, que o candomblé de Engenho Velho em Salvador foi fundado por duas sacerdotisas
da família de Xangô, trazidas como escravas para essa cidade no
comêço
do
século
XIX.(º%)
Desta
maneira,
devemo-nos
representar a vida religiosa dos africanos no Brasil como uma série de acontecimentos sem laços orgânicos, de tradições interrompidas e retomadas, mas que mantinham de século em século,
sob formas provavelmente as mais diversas, a mesma fidelidade à mística, ou às místicas africanas. Ao lado dessas causas históricas (a existência de ciclos no
tráfico e a perpétua renovação da mão-de-obra servil) é preciso também fazer intervir, para compreender as sobrevivências religlosas, ou seu desaparecimento, causas mais sociológicas consi-
derando as formas mesmas de escravidão.
Unidos, até o momento
No Sul dos Estados
da expansão da cultura algodoeira, o re-
gime da propriedade era o da pequena ou média propriedade; o senhor não tinha à sua disposição mais que 3 a 4 escravos; por
conseguinte, o processo de “aculturação” pôde ser aí mais intenso.(ºº) No Brasil, havia igualmente um grande número de pequenas propriedades, cada uma com poucos escravos, na cultura
do tabaco por exemplo.
Mas o regime dominante, pelo menos
social e politicamente, foi o da grande plantação que exigia no
mínimo de 60 a 80 escravos para plantar, cortar, moer as canas; (53) à S. Luis PD. “DU. (54) (55) (56) Cf. HOPE FRAZIER,
70
P. VERGER, “Le Culte des Vodouns d'Abomey do Maranhão par ia Mére du Roi Ghézo?”,
Aurait-il été Apporté Les Afro-américains,
Nunes PEREIRA, 4 Casa das Minas, p. 22. *, CARNEIRO, Candomblés da Bahia, p. 31. M. J. HERSKEOVITS, The Myth of the Negro Past, p. 112 e segs. FRANELIN, From Slavery to Freedom, cap. XII, e E. FRANELIN The Negro in the United States, caps. II e III.
mesmo quando a tração animal ou as quedas dágua substituíram a tração humana para virar a mó, o número de escravos dos engenhos
não diminuiu.
Ao
contrário,(*”)
irá, sem cessar, au-
mentando e no século XIX não será raro ver proprietários pos-
suir até mil escravos. É evidente que, nessas condições, as etnias
africanas podiam reagrupar-se, formar de nóvo no seio da casta dos negros e em tórno de seus líderes religiosos uma solidariedade mais restrita. Ninguém contou ainda a história dessas pequenas comunidades. Os brancos não se interessavam senão pela fórça de trabalho de seus negros.
Sabemos, contudo, por certos via-
jantes, que quando numa plantação existia, o que às vêzes acontecia, escravos de sangue real, êsses eram cercados de grande consideração por seus compatriotas e pelas pessoas de côr em
geral; eram
respeitados
apareceram
nesta
e obedecidos.(*!)
Podemos,
pois,
ima-
brancos;
êsses
ginar que pequenos grupos se formavam, que laços de amizade como também de rivalidade se criaram, que figuras de chefes massa
informe
aos
olhos
dos
grupos puderam manter parte de sua herança cultural, enquanto
os chefes, pelo prestígio que usufruíam, puderam impor as formas
culturais de seus países de origem a escravos pertencentes a ou-
tros grupos étnicos. Desta forma se explicaria a preeminéência da civilização daomeana em certas regiões, enquanto em outras é a civilização ioruba que domina e, ainda em outras, é a dos bantos. Às vêzes, entretanto, a solidariedade étnica ia contra o prestígio dos chefes; sabemos que quando escravos preparavam uma revolta ou uma fuga, eram freqiientemente denunciados aos senhores por outros escravos pertencentes a “nações” rivais.
A grande plantação, onde o número de escravos era bastante considerável, para que inter-relações se estabelecessem com
o senhor,
possibilitou,
por
conseguinte,
perpetuação dos valôres africanos.
numa
certa
medida,
a
Mas para que êsses se per-
petuassem era necessário revigorá-los, em na grande corrente da consciência coletiva.
datas determinadas, Marcel Mauss mos-
trou, tratando dos esquimós, a importância do ritmo de dispersão
e de concentração humana na vida religiosa, e Durkheim, focali-
zando os nativos australianos, destacou a importância que reúne os homens numa mesma exaltação mística.
negros das plantações comungaram também
da festa Ora, os
em festas, renova-
ram a fôrça de seus símbolos, de seus valóres, de seus ideais na B Si Fernando de AZEVEDO, Canaviais e Engenhos na Brasil, p. 57. (58) R. WALSH, Notices Of Brazil, II, p. 339. TOLLENARE, nicaes, p. 110.
Política Notas
do
Domi-
71
reunião regular e em datas determinadas ao redor do fogo e ao
som de atabaques.
A primeira razão que levou os senhores a
permitir .aos escravos, ou na tarde de domingo, ou nas dias feria-
dos e “santificados por Nossa Muito Santa Madre Igreja”, diver-
tirem-se “à moda de sua nação” era de ordem puramente econômica; tinham notado que os escravos trabalhavam melhor quando podiam divertir-se livremente de tempos em tempos, e não quando exigiam dêles um trabalho contínuo, um esfôrço sem interrupção, dia após dia. Antonil, que escreveu o que se poderia chamar a Bíblia dos senhores de engenho, recomenda
autorizar os escravos a cantarem e a dançarem em certos dias do
ano, única consolação que têm no seu triste estado, e sem o que se tornam “melancólicos, com pouca vida e saúde”.(*?) Como religioso Antonil exige que estas festas caiam nos dias dos santos patronos da família do senhor ou dos santos patronos
da casta dos escravos
(São Benedito,
ligião e que impedia
os senhores
outra razão menos
Sta. Ifigênia). Mas
fácil de recobrir com
o véu pudico
a acumular
havia
da re-
as festas e os
atabaques: essa era o alto preço dos escravos. A dança parecia-lhes uma técnica de excitação sexual, um incentivo à procriação, e por conseguinte um meio mais econômico de renovar seu investimento humano sem perda de capital. Houve como que uma seleção ou uma orientação do folclore africano pelo branco das danças de origem banto, do tipo samba, côco, batuque, jongo, lundu; o nome varia segundo as regiões, mas é sempre a mes-
ma dança erótica, cujo centro é construído pela escolha do par-
ceiro sexual, escolha que se marca simbólicamente pela umbigada, isto é, o contato dos dois ventres, umbigo contra umbigo.(8º) Por outro lado, diante do modesto altar católico erigido contra o muro da senzala, à luz trêmula das velas os negros podiam dançar impunemente suas danças religiosas tribais. O bran-
co imaginava que êles dançavam em homenagem à Virgem ou aos santos; na realidade, a Virgem e os santos não passavam de disfarces e os passos dos bailados rituais cujo significado escapava aos senhores, traçavam sôbre o chão de terra batida os mitos
dos orixás ou dos voduns...
distâncias, (59) (60)
enchia
ANTONIL, Ver sôbre
a superfície
A música dos tambores abolia as dos
oceanos,
fazia reviver
Cultura e Opulência do Brasil, p. 96. essas danças: A. RAMOS, O Folclore Negro
do
um
Brasil,
pp. 129-58. Luciano GALLET, Estudos de Folclore, p. 61 e segs. É. CARNEIRO, Negros Bantos, pp. 131-45 e 161-65. Manuel DIEGUES Júnior, “Danças Negras no Nordeste”, O Negro no Brasil, pp. 293-302. Oneyda ALVARENGA, Música Popular Brasileira, pp. 130-58. Mário de ANDRADE, “O Samba Rural Paulista”, R.4.M.S.P., XLI. Maynard ARAÚJO, Documentário Folclórico Paulista, pp. 11-3 e 31-3. Câmara CASCUDO, Dicionário do Folclore Brasileiro, etc. Brasileiro, etc.
72
momento a África e permitia, numa exaltação ao mesmo tempo
frenética
e regulada,
consciência coletiva.
a comunhão
dos
homens
numa
mesma
Temos disso a prova no fato das religiões africanas se con-
servarem
principalmente
do Nordeste.
nas
zonas
de plantações
açucareiras
Nas zonas de mineração, com algumas exceções,
essas religiões não sobreviveram; isso porque as condições de escravidão aí eram bem diferentes. O trabalho de mineração era infinitamente mais penoso porque não estava submetido como
o trabalho agrícola ao ritmo das estações: impunha sua tirania
todo ano em remover a areia ou o cascalho, em parar os rios,
em cavar canais de estrangulamento ou de derivação, em lutar contra a montanha provocando o desmoronamento das rochas
sob a forma de cascatas artificiais, em cavar galerias à procura de filões. O roubo de escravos escondiam-nas estarem sujeitos a uma e também nas horas de
pepitas era relativamente fácil, ou os em seus cabelos ou as engoliam, e daí constante vigilância durante o trabalho folga. O negro enfim, em presença de
uma civilização de tipo capitalista, onde aventureiros diante dêle
enriqueciam-se e onde o lucro dominava ostensivamente, mudou sua mentalidade
medidas
—
para aceitar a do branco; tôda uma
outorga
a liberdade
áquele
que
série de
encontrava
um
diamante grande, dádiva de roupas ou de presentes âqueles cuja produtividade era maior — ajudou essa mudança de mentalidade.(º!) Não sômente alguns negros conseguiram libertar-se, mas ainda tornaram-se proprietários de minas graças a um regime cooperativo de ajuda mútua. É claro que esta ajuda estava confinada aos limites de uma “nação” ou de uma tribo, e mesmo de uma família, o que mostra que a civilização africana não
estava de todo morta, que conservava alguns de seus quadros.(º) Mas êsse desejo de enriquecimento ia de encontro à
(61) Ver sôbre as condições ds escravidão nas minas: W. L. ESCHWEGE, Pluto Brasiliensis. J. LÚCIO DE AZEVEDO, Épocas de Portugal Econômico, pp. 364-65. ANTONIL, op. cit. tôda a 3.º parte. A. de SAINT-HILAIRE, Vovage dans les Provinces de Rio de Janeiro et de Minas Geraes, como também:
von
livro
Voyage
Brasilien. II,
caps.
dans
le
District
6 e 7. M.
M.
de
J. P. OLIVEIRA
des
Dtamants.
E.
LATIF,
45
Minas
os
dois
MARTINS,
BARROS
POHL,
Reise
O Brazil e as Colonias Gerais,
in
Innern
165
e segs.
a
seguir.
Porituguêzas,
p.
R. F. BURTON, Explorations of the Highlands of the Brazil, I, Pp. 270-78. VON SPIX-E. MARTIUS, Viagem gelo Brasil, II, p. 101 e segs. (62) A história de Chico-Rel que chegou a ser proprietário da mina de Palácio Velho e que aí organizou o que se chamou a primeira tentativa de “socialismo cristão”; G. FREYRE, Sobrados e Mucambos, p. 176, é célebre. Chico-Rel, um rei africano que tinha sido feito prisioneiro e reduzido à situação de escravo, conseguiu, com suas economias, libertar seu filho
e
depois
a
si
próprio,
graças
ao
que
ganharam
Libertaram depois tôda sua família, “até a tribo tôda” e acabaram por comprar a liberdade de escravos de outras tribos (provávelmente da mesma etnia) até formar “um verdadeiro Estado no Estado”, com um rei (Chico),
78
manutenção dos valóres religiosos. Podemos dizer o mesmo das zonas de criação, tanto as do pampa no Sul quanto as do sertão do Nordeste. A criação exige a grande propriedade mas não reclama mão-de-obra abundante; os senhores de gado em geral não possuíam mais que alguns negros para vigiar suas grandes
manadas ou para tratar de seus pequenos jardins. Esses prêtos perdidos nas regiões onde dominavam os mestiços de índios não puderam resistir à influência do meio e deixaram-se facilmente contaminar
pela
civilização
ambiente.(º%)
Por
fim,
quando
o
café atingiu o Estado de São Paulo, vindo do Rio pelo Vale do Paraíba, os dias de escravidão já estavam contados; a propaganda abolicionista agitava o país e a resistência do negro, nessa atmos-
fera, devia mudar de caráter, devia passar do plano da resistência
cultural
ao da resistência política,
da fidelidade
à religião da
África à colaboração com os abolicionistas brancos que iam às fazendas para aí preparar a fuga de escravos.(*!) Luiz Gama é o próprio símbolo dessa mudança; sua mãe era uma filha-de-
-santo, talvez mesmo uma ialorixá; êle foi advogado, fundador de
uma loja maçônica e o grande agente negro da supressão do tra-
balho servil.(%) Teremos no curso dêsse trabalho de voltar a esta idéia; existe como que uma espécie de antagonismo entre essas duas soluções ao problema do negro brasileiro, a solução cul-
tural e a solução política; onde triunfou a primeira, a política não teve presença, e onde a segunda prevaleceu, a resistência cultural anterior logo se anulou.
Contudo, nosso quadro da escravidão não está completo porque deixamos de lado um tipo de escravidão particularmente importante para nosso assunto: a escravidão urbana. Tem-se dito frequentemente que o anonimato da cidade, diferente daquele da região rural, enfraquece o contrôle social e, no caso do
contrôle do branco sôbre o negro, possibilita àquele que não
se pertence uma liberdade que êle não usufruiria em outro lugar. Por outro lado, a cidade permite maior concentração de uma
rainha
(sua
segunda
mulher),
um
príncipe
“confraria de Santa Ifigênia” (aquela mesma que belas igrejas de Ouro Prêto, a Igreja do Rosário).
CELOS, História Antiga das Minas Vila Rica, p. 25 e segs.
e
uma
princesa,
construiu uma Ver: Diogo de
e
uma
das mais VASCON-
Gerais, p, 324 e segs. Alciblades DELAMARE,
(63) Ver sôbre as condições da escravidão no sertão: Câmara CASCUDO, “A Escravidão na Evolução Econômica do Rio Grande do Norte”,
Revista
Júnior,
Grande as
PD.
Zonas “
(64) Brancos (65)
74
Nova,
07.
do
cit.
de
R. em
Sul,
Sud
I,
1931.
pp.
L.
VIANNA
52-4;
Louis
criação
BASTIDE S. Paulo,
no
Filho,
pampa:
COUTY,
de
MENUCCI,
e
A.
L'Esclavage
Minas,
Caio
e PF, FERNANDES, pp. 16-105. Precursor
ctt.,
do
pp.
126-32.
SAINT-HILAIRE,
au
PRADO
e
O
0p.
Brésil,
Júnior,
Relações
p.
24,
Por
no
PRADO
do
entre
Brasil,
ao
fim,
Formação
Racials
Abolicionismo
Calo
Viagem
Rio
para
Brasil,
Negros
Lulz
Gama.
e
indivíduos num espaço menor: mesmo se cada família tem pou-
cos escravos, o conjunto dá para tôda a cidade um número considerável de negros. Certos viajantes desembarcando, ao acaso das escalas, em portos brasileiros, falaram de uma “nova Guiné”. E o têrmo não é falso. Essa união de negros urbanos iria permi-
tir o que a escravidão rural sem impedi-la de todo entravou considerâvelmente:
a solidariedade “por nação”, isto é, a recria-
ção das etnias em agrupamento mais ou menos organizados. Primeiro, a cidade conheceu os “negros de ganho”, ou seja escravos que trabalhavam fora da casa do senhor e que aí se encontra-
vam de noite, trazendo seus salários; eram arrendados como empregados domésticos, ou, outras vêzes, fornecia-se-lhes um tabu-
leiro de mercadorias que eram encarregados de vender nas ruas.
Mas, vagabundeando assim todo o dia, êsses negros encontravam
compatriotas, falavam do país de origem, e nos feriados ou nos dias de festa populares reuniam-se em associações de originários
de um mesmo país.(*!)
De outra parte, muitos dêsses “negros de
ganho” eram carregadores que trabalhavam na descarga de mer-
cadorias dos navios, levavam-nas às lojas ou transportavam, da casa do comerciante até às casas dos seus fregueses, caixas diversas, pianos, barricas de vinho, etc. Ésses negros, sobretudo depois
de sua libertação, mas mesmo antes, formavam grupos chamados cantos, comandados por um “capitão”; e com êsses grupos, geralmente de quatro indivíduos, cantavam canções em africano, en-
quanto transportavam suas pesadas cargas. Podemos concluir, visto a diversidade das línguas africanas, que êsses cantos agrupavam o indivíduos segundo suas origens étnicas. Manuel Que-
rino deixou-nos uma boa descrição de alguns de seus rituais. Quando
falecia
o
capitão
tratavam
de
eleger
ou
aclamar
o
Cidade
de
sucessor, que assumia logo a investidura do cargo. Nos cantos do bairro comercial (Bahia), êsse ato revestia-se de certa solenidade à moda africana. Os membros do canto tomavam de empréstimo uma pipa vazia (...), enchiam-na de água do mar, amarravam-na de cordas e por estas enfiavam grosso e comprido caibro. Oito ou doze etíopes, comumente os de musculatura mais possante, suspendiam a pipa e sôbre ela montava o nôvo capitão do canto, tendo em uma das mãos um ramo de arbusto e na outra uma garrafa de aguardente. Todo o canto desfilava em direção ao bairro das Pedreiras, entoando os carregadores monótoma cantilena, em S.
na
(66)
Paulo
Ver
Bahia,
Pítoresco. est, e J.
quadros
no
p.
sôbre
Século
92.
J.
os
“negros
XVIII,
vol.
de
WETHEREL,
ganho”:
II,
p.
Brazil,
87.
TAUNAY, p.
D.
53.
História
PIERSON,
Cf.
RIBEYROLLES,
II, pp. 60-5, e principalmente EXPILLY, B. DEBRET, Viagem Pitoresca, que contém
comentados
sôbre
o negro
artesão.
EWBANE,
da
Brancos
Le Brésil tôda uma
Life in
e
Préêtos
Brasil
tel qu'il série de
Brazil,
p. 946.
75
dialeto ou patuá africano. Na mesma ordem, tornavam ao ponto de partida. O capitão recém-eleito recebia as saudações dos membros
de
com
outros
a
cantos,
e, nessa
garrafa
de
líquido. (87)
ocasião,
aguardente
fazia
deixando
uma
cair
espécie
de
algumas
exorcismo
gôtas
do
Sabe-se que êsse rito que continua até hoje no mundo dos
candomblés
tem um
significado religioso bem
preciso:
nada
se
deve comer ou beber, sem primeiro oferecer às divindades, e os
membros das
seitas afro-brasileiras não esquecem de antes de
beber, por exemplo, lançar à terra algumas gôtas do conteúdo de seus copos. O testemunho de Manuel Querino deixa, pois, entrever, além da solidariedade étnica, uma outra solidariedade mais profunda, a da comunhão na religião ancestral. Os negros de ganho levavam, portanto, ao anoitecer, uma certa quantia aos seus patrões, mas o excedente dessa soma estipulada lhes pertencia; os mais afortunados ou os mais desembaraçados conseguiam assim constituir um pequeno pecúlio com
o qual podiam comprar sua liberdade.
São êsses negros livres
que, mais ainda que os outros, fazem-se os mantenedores das religiões africanas, reunindo os fiéis nas casas humildes, segundo suas respectivas “nações” e ao mesmo tempo ocupando-se com o recrutamento e com a direção da seita. Ora, à medida que nos aproximamos da segunda metade do século XIX, o número de
negros libertados vai aumentando, permitindo ua mais fácil soli-
dificação das crenças africanas no nôvo habitat: 1798: 406 000 mulatos e negros livres; 1 582 000 negros e mulatos escravos (Perdigão Malheiro); 1817: 585 000 mulatos e negros livres; 1 930 000 negros e mulatos
1847:
escravos
1 280 000 mulatos
Ésses
são
(Perdigão
mulatos
escravos
Malheiro);
e negros
(Ewbank).
livres; 3 120 000
os principais fatôres positivos
aos negros, malgrado
o desaparecimento
negros
e
que permitiram
das estruturas
sociais
africanas destruídas pela escravidão, manter ao menos seus valôres religiosos no nôvo habitat.
ae
x
xe
Tôóda metrópole tem determinada política em relação a suas
colônias; essa política pode se chocar com resistências que deve
levar em (67)
6
consideração
Manuel
QUERINO,
e a que Costumes
tenta
adaptar-se,
Africanos
no
Brasil,
quando
pp.
94-6.
não
pode destruí-las; mas esta política constitui um fator operante que em parte determina a orientação da colonização como tam-
bém seus processos estruturais. No Brasil houve não uma, porém
duas políticas,
anulavam,
às vêzes unidas, ora divergentes, cujos efeitos se
se compensavam
ou,
ao
contrário,
se uniam
acumulavam: a política do rei e a política da Igreja.
e se
A Igreja, que defendera com tanta energia a causa dos ame-
ríndios contra os colonos e mesmo contra o próprio govêrno da metrópole, aceitou a escravidão do negro. Ela mesma lucrou com
isso: a propriedade de Santa Cruz que pertencia aos jesuítas compreendia, em 1768, 1 205 escravos; o Convento do Destêrro
na Bahia tinha 400 escravas para 74 freiras; e poder-se-iam multiplicar os exemplos.(8*) Mas, se a Igreja aceitava a escravidão do negro, aceitava-a sômente sob certas condições: se lhe tomava o corpo, dava-lhe em troca uma alma. O senhor branco podia lucrar com a mão-de-obra servil, mas êsse direito estava contrabalançado por deveres correlatos, figurando, em primeiro
lugar, o de cristianização.
O negro, que não tinha sido batizado
na África, antes de sua partida, devia ser obrigatôóriamente evan-
gelizado em sua chegada, aprender as rezas latinas e receber o batismo; devia assistir à missa e tomar os santos sacramentos.
Se esta política tivesse sido seguida, tenderia a fazer desaparecer as religiões africanas; ou, pelo menos, a sincretizá-las
profundamente com o catolicismo. Alguns viajantes estrangeiros afirmam que os brasileiros agiram dessa maneira com seus escravos. Os escravos do Brasil são tratados quase como filhos da família; e há o maior cuidado em batizá-los e instruí-los nos elementos da fé cristã ao menos. Poder-se-ia propor a questão: os escravos ganham ou não infinitamente mais com a troca da sua bárbara liberdade por estas vantagens de instrução e proteção segura. (99)
Entretanto, não podemos nos fiar nesta imagem idílica da escravidão brasileira; ela é desmentida por muitos documentos
oficiais que protestam contra a recusa da extrema-unção aos moribundos, contra o batismo dado pelos senhores sem catequização preparatória, só para obedecerem os regulamentos. De fato, os brancos não se interessavam senão pela fórça física dos negros: era-lhes indiferente a salvação de suas almas. A Igreja não podia, contudo, abandonar totalmente o escra-
vo à sua triste sina e, já que o senhor se mostrava indiferente a por
(68) (69)
J. DORNAS Filho, 4 Escravidão no Brasil, p. 243. John THRUNBELL, 4 Voyage Round World in the Year 1860, citado
J. DORNAS
Filho,
op.
cit.,
p.
244.
77
seus deveres religiosos, é a Igreja constituída que vai substituí-lo. As confrarias dos negros ou dos mulatos, fundadas nos moldes
das confrarias dos brancos, às quais tornaremos mais longamente quando
estudarmos
o catolicismo
do
negro,
correspondem
a
esta política da Igreja em reunir no seu seio e à sombra da Cruz,
os africanos ou seus descendentes que ela procura incorporar, embora mantendo-os distintos, na vasta comunidade religiosa
brasileira.
É no interior dessas confrarias, a de São Benedito
e a do Rosário dos Negros, que se farão a assimilação e o sin-
cretismo religioso. Sômente, êsse sincretismo será um sincretismo
planejado,
se se permite a expressão.
As ordens religiosas, so-
bretudo a dos jesuítas, haviam estabelecido um sistema de evangelização dos índios baseado em dois critérios: a aceitação de
certos valôres nativos, aquêles que não inquietavam a Igreja, que podiam, por conseguinte, ser por ela preservados, com a condição de serem reinterpretados em têrmos cristãos (por exemplo,
as danças
dos
Curumiri,
substituídos por cânticos à Virgem
onde
os cantos
índios
eram
e que serviam de fundo
às
representações teatrais, no gênero dos Mistérios, a fim de fazer penetrar pelos olhos e pelo ouvido, nas almas dos indígenas, os dogmas do catolicismo), e por outro lado, a luta resoluta e tenaz, pela astúcia ou pela fórça, contra os valôres mais radicalmente opostos aos valôres ocidentais (como os pajés).. Uma substituição era feita nos rituais e na mitologia dos tupi: Tupã tornava-se Deus e Jurupari o Diabo.(7º) Ainda que de maneira menos sistematizada, é esta política que vai ser aplicada no seio das confrarias de negros.
Aceitam-se os costumes africanos que podem adaptar-se ao catolicismo, bem entendido os que são reinterpretados e recebem nôvo significado. É o caso, por exemplo, das realezas
nacionais ou das chefias tribais. A tradição africana da sucessão hereditária dos reis é substituída nas confrarias pelo sistema
eletivo. Os reis das confrarias passam a ser eleitos pelos seus membros; isso possibilita mâãior obediência de seus súditos e permite-lhes servir como intermediários entre os senhores brancos e seus escravos, constituindo dêsse modo canais de contrôle
do branco sóbre a dos reis do Congo costumes africanos, interétnicas que se (70)
78
G. FREYRE,
massa das pessoas de côr. Com a coroação de Angola, podiam passar também outros como o das embaixadas, ou o das guerras transformaram nessas confrarias em lutas de
Casa-grande
e Senzala, trad.
fr., pp.
137-52.
pagãos e cristãos, acabando naturalmente com a vitória dos últimos. A questão permanece ainda aberta para se saber em que medida esta política surtiu efeito. Ela certamente adulterou as
religiões africanas, iniciou a obra do sincretismo católico-africa-
no, mas
ajudou também
a conservação
de valóres puramente
africanos. Devemos de início notar que essas confrarias foram sobretudo confrarias de bantos e que os ioruba ou os daomeanos foram menos atingidos. Em segundo lugar, os africanos continuaram a falar suas línguas primitivas e, não obstante o desejo
da Igreja de fazer vir missionários africanas para a evangelização
dos
conhecedores
escravos
das línguas
do Brasil,(7!)
êste
esfôrço não pôde ser tentado mais de uma vez; as confrarias, assim protegidas pela ignorância lingiistica, contra o contrôle
de seus sacerdotes, puderam amiúde servir de refúgio a crenças
muito menos ortodoxas. Não sabemos de onde Diogo de Vasconcellos deduz sua afirmação de que uma das confrarias do
Rosário
era composta
de filhas de Iemanjá,('2)
mas
o que
sa-
bemos é que em tôda parte onde existiram confrarias de negros, a religião africana subsistiu, no Uruguai, na Argentina, no Peru e na Venezuela, e que essas religiões africanas desapareceram nesses países quando a Igreja proibiu as confrarias de se reunir fora da Igreja depois da missa para dançar.(7º)
Quantas vêzes
notamos no Nordeste que essas confrarias de negros são compostas das mesmíssimas pessoas que frequentam o candomblé e aí ocupam importantes cargos hierárquicos. Por conseguinte, a Igreja sem o querer, ajudou a sobrevivência dos cultos africanos. A confraria não era evidentemente o candomblé, mas constituía uma forma de solidariedade racial que podia servir-lhe de núcleo e continuar em candomblé com o cair da noite. O Estado às vêzes investiu contra a Igreja, o que ocorreu quando ela defendia o escravo, e colocou-se ao lado dos proprietários de negros:
(71) Serafim LEITE, História da Companhia de Jesus no Brasil, II, pp. 354-54 (ler todo o capítulo 3 sôbre a assistência religlosa aos escravos negros). (72) Diogo de VASCONCELLOS, Mariana e seus Templos, pp. 89-94, 107. (73) Ver, por exemplo, Vicente ROSSI, Casas de Negros, Rio de la
Plata, 1926. I. PEREDA VALDES, Negros Esclavos y Negros Libres, Montevidéu, 1941. Los Morenos, Ed. Enece, Buenos Aires, 1942; os artigos de Fernando
ROMERO sôbre os negros do Peru. J. PABLO SOJO, “Cofradias Etnoafricanas en Venezuela”, Cultura Universitaria, Caracas, I, 1947. M. ACOSTA SAIGNES, “Las Confradias Coloniales y el Folklore”, ibid., 47, 1955, etc.
79
Se o escravo (ainda que seja cristão) fugir a seu senhor para a Igreja, acoutando-se nela, por se livrar do cativeiro em que está, não será por ela defendido, mas será por fôrça tirado dela. (7t)
Também lutou frequentemente contra os efeitos da miscigenação que, a seu ver, faziam flutuar perigosamente as linhas entre-as-classes sociais, e o fêz, seja proibindo âqueles que viviam em concubinato com negras(7º) de ocupar cargos honoríficos ou funções públicas, seja negando às mulatas o uso de sêdas, de rendas e de jóias.("º) Opondo-se às uniões que arriscavam modificar a estrutura social do país, a metrópole ou seus representantes tomaram medidas a fim de manter ou aumentar as distâncias entre as castas. A política portuguêsa foi, portanto, uma
política essencialmente conservadora da ordem social existente; se ela tomou medidas contra a arbitrariedade de certos senhores
e assim mesmo bastante tardiamente, defendeu bem mais seus privilégios, às vêzes até mesmo em oposição a éles, como nessas
leis suntuárias
sóbre
o trajar das mulatas,
amantes
ricos e mesmo de bispos. Além dessa defesa da dos interêsses dos possuidores de escravos, esta das distâncias sociais entre as “castas”, mais ainda: dados, não sendo ordens, para que não se libertem
de colonos
ordem social, intensificação os conselhos muitos escra-
vos, para que não se aumente abusivamente o número de negros
livres(””) apresentavam também um perigo: o de criar uma consciência de classe na massa de côr e uma consciência de classe revolucionária. Nivelando negros e mulatos, escravos ou livres, num país onde os brancos estavam em minoria, o Estado
arriscava sublevações plantações,
que podiam
terminar
pelo assassinato dos senhores
pelo incêndio das
e talvez mesmo
perda da colônia.
pela
Ora, seu primeiro dever era garantir a segurança da colônia
defendendo a segurança desta minoria de privilegiados. Daí, um outro caráter da política portuguêsa que poderia se resumir na célebre
comêço
fórmula:
do
século
dividir
para
XIX,
reinar.
O
admirávelmente
Conde
definiu
dos
Árcos,
no
esta política:
Batuques olhados pelo Govêrno são uma cousa, e olhados pelos Particulares da Bahia são outra diferentíssima. fstes olham para (74)
Ordenações
Felipinas,
L,
II,
tit,
V.,
n.º
6,
citado
por
F.
MENDES
DE ALMEIDA, “O Folclore nas Ordenações do Reino”, R.AM.S.P., LVI, 1939, p. 31. TAUNAY, História da Cidade de S. Paulo, I, p. 107. (15) P. CALÓGERAS, Formação Histórica do Brasil, p. 36, BUARQUE
DE
HOLLAN DA, » Pp. 934, (16)
VEIGA,
(77)
80
J.
Raizes
ALVARES
Enhemerides Braz
do
do
DE
Brasil,
AMARAL,
Mineiras,
AMARAL,
p. 60, G.
Op.
I, p. cit.,
Resumo
208,
p.
II,
467.
FREYRE,
Sobrados
Chronologico,
p. 293.
p.
e Mucambos,
403.
Ravler
da
os batuques
como para um ato ofensivo
porque querem
empregar
dos direitos dominicais, uns
seus escravos em serviço útil ao domingo
também, e outros porque os querem ter naqueles dias ociosos à sua porta, para assim fazer parada de sua riqueza. O Govêrno, porém, olha para os batuques como para um ato que obriga os negros, insensível e maquinalmente de oito em oito dias, a renovar as idéias de
aversão
recíproca
que
lhes
eram
naturais
desde
que
nasceram,
e que todavia se vão apagando pouco a pouco com a desgraça comum; idéias que podem considerar-se como o Garante mais poderoso da segurança das grandes cidades do Brasil, pois que se uma vez as diferentes Nações da África se esquecerem totalmente da raiva com que a natureza as desuniu, e então os de Agomés vierem a ser irmãos com os Nagôs, os Gêges com os Haussas, os Tapas com os Sentys, e assim os demais; grandíssimo e inevitável perigo desde então assombrará e desolará o Brasil. E quem duvidará que a
desgraça tem poder de fraternizar os desgraçados?
bir
o
único
ato
de
desunião
entre
os
negros
vem
que promover o Govêrno indiretamnete à união não posso ver senão terríveis consequências. (73) "
Ora, pois, proi-
a
entre
ser
o
mesmo
êles, do que
O Conde dos Arcos não se enganara. Houve revoltas de negros, nós o veremos, mas essas revoltas eram sempre revoltas de certas “nações”, não do conjunto de escravos. E elas malograram porque foram conhecidas de antemão graças à traição de outras “nações” rivais. Mas se passarmos da Política à Sociologia, veremos que esta política possibilitou a constituição, a orga-
nização de negros em “nações”, e, por conseguinte, permitiu a perpetuação de suas tradições religiosas ou culturais.
O fator de
desintegração, pela reunião das diversas etnias nas mesmas plantações, ou na cidade nas mesmas casas dos senhores, pelo choque
das civilizações umas contra outras, foi impedido de uma vez por
esta política de registro dos negros em “nações” autônomas, Todavia, o Conde dos Arcos era muito bom cristão para aceitar que esta classificação se fizesse sob o signo das religiões africanas. Quem sabe se êle não acreditava também que os sacerdotes “fetichistas” fôssem os líderes das revoltas contra os brancos cristãos, o que realmente sucedeu? Em todo caso, êle distinguia entre as danças religiosas africanas condenadas e o batuque profano, aceito. Assim fazendo, seguia a tradição que continuou (7B)
é verdade para que
Citado
por Nina
RODRIGUES,
que, quando o rei esta cidade lhe
op. cit., pp. 294-35.
Da
mesma
do Daomé enviou uma embaixada para assegurasse o monopólio da compra
forma
Salvador de seus
escravos, O governador de então escreveu ao rel de Portugal um relatório concluindo pela negativa “porque não convém que um grande número de escravos de uma só nação se reúna nesta caplitanta, poderia resultar perniciosas consequências” (carta do capitão geral da Bahia de 1795, citada por TAUNAY, op. cit., p. 215). Essas duas políticas não eram, aliás, contraditórias; ao contrário, multiplicando as “nações” num mesmo lugar e organizando-as para lutarem entre sí, tinha-se em vista o mesmo resultado: impedir a formação de uma consciência de classe.
81
durante todo o período escravista e que consistiu em proibir a perpetuação dos cultos africanos no Brasil.(”º)
Já numa época em que os “negros de Guiné” eram raros, a
Inquisição, em visita a Pernambuco e à Bahia, preocupou-se com
a questão.
Mais tarde, as Câmaras municipais eram encarrega-
das de fazer inquirições para saber se existiam na região “pessoas
utilizando a feitiçaria, ou que são feiticeiras — curando os ani-
mais, benzendo-os — servindo-se de relíquias diabólicas ou tendo feito um pacto com o Diabo”.(8º) Em todo lugar os arqui-
vos, à medida que revelam suas riquezas, nos pôem em presença de regulamentos contra as reuniões de negros de caráter religioso, ou de perseguições intentadas contra “casas de sorte”, calundus
e associações de jurema, seguidas da prisão de fiéis e de seus sacerdotes.(º!) Mas tudo em vão como reconheceu o conde da Ponte em 1807. A Igreja, permitindo aos negros reunirem-se em confrarias,
está na origem do sincretismo do catolicismo com a região africana mais que na origem da catolização do negro.
O govêrno
por sua vez, estimulando a divisão dos negros em “nações” independentes, está na origem das diferenças culturais entre os africanos
que encontraremos
na nossa pesquisa.
Certo número de conclusões pode pois ser deduzido da análise das condições históricas da implantação da Africa no Brasil. Em primeiro lugar, a escravidão operou uma separação entre as super e as infra-estruturas, sem darmos a êsses têrmos um sentido marxista. As estruturas sociais africanas foram destruídas, os valôres conservados; mas êsses valôres não poderiam
subsistir se não se formassem novos quadros sociais, se não se criassem instituições originais que os encarnassem e os permitissem sobreviver, perpetuar-se e passar de uma geração a outra. Isto significa que as superestruturas tiveram que produzir uma sociedade.
O movimento
não é mais um
movimento
de baixo
para cima, que sobe progressivamente da base morfológica para o mundo
dos símbolos
e das representações coletivas, mas um
movimento inverso, de cima para baixo, dêsses valôres e dessas que
que
(79) Por exemplo, essas danças das as
dos
brancos;
no fim do século XVIII, o “nações” sejam conservadas;
mas
condenava
ao
mesmo
Conde de Pevoli pede não são mais imorais
tempo
as
danças
“feitas
às escondidas nas casas ou nos campos com uma amante negra, um eltar cheio de ídolos, onde ae adora bodes vivos e outros feitos de barro, untados com diversos óleos ou com sangue de galo”. (80) Segunda Ordenações Felipinas, LIV, tit. LXXX, VIII, n.os 7 e 8;e MENDES DE ALMEIDA, 07. cit, p. 58. (81)
82
Ver
mais
adiante
o
nosso
Capítulo
VI.
representações
modelos
também
coletivas para
africanos puderam
exerceram
as instituições e os grupos.
Os
influenciar esta reestruturação, mas
influência os modelos
europeus
impostos,
como as confrarias ou as associações de danças dos negros em “nações”.
Em segundo lugar, quer-nos parecer que os fatóres negati-
vos da escravidão agiram sobretudo em certos setores da socie-
dade, nas zonas rurais e mais ainda nas zonas de pastoreio ou de mineração —
enquanto os fatóres positivos, de ordem demo-
gráfica ou institucional, atuaram principalmente nas zonas urbanas.
Daí, a consegiência, que constataremos várias vêzes, que
as religiões africanas são mais fiéis, mais puras e mais ricas nas
grandes cidades que nas regiões rurais. Ao contrário do que em geral ocorre(*2) com as resistências religiosas ou folclóricas, no Brasil é a grande cidade o museu das tradições arcaicas.
(82)
PARK
e
BURGESS,
The
City,
pp.
130-41.
63
CAPÍTULO
II
Os Novos Quadros Sociais das Religiões Afro-brasileiras Apesar das condições adversas da escravidão, misturando as
etnias, fragmentando
as estruturas sociais nativas, impondo
aos
negros nôvo ritmo de trabalho e novas condições de vida, as reli-
giões transportadas do outro lado do Atlântico não estão mortas, Vieira exprimia bem esta oposição entre a sociedade, dominada e regulada pelas normas portuguêsas, e as civilizações, vindas da África, escrevendo que o Brasil “tem o corpo (europeu) na Amé-
rica e a alma na Africa”.
Mas
as crenças que permanecem
confinadas no segrêdo dos corações, que não se exprimem em ritos e cerimônias, nem tomam formas coletivas de organização,
estão fatalmente condenadas à morte.
A religião, ou as religiões
afro-brasileiras foram obrigadas a procurar nas estruturas sociais
que lhes eram impostas “nichos” por assim dizer, onde pudessem se integrar e se desenvolver. Deviam se adaptar a nôvo meio humano, e esta adaptação não iria se processar sem profundas
transformações da própria vida religiosa. Tornava-se necessário encontrar entre as superestruturas — outrora em conexão com a família, com a aldeia, com a tribo — e as novas infra-estruturas — a grande plantação ou o centro urbano, a escravidão e a sociedade de castas hierarquizadas dominada pelos senhores brancos — laços ignorados, formas de passagem inéditas,
encarnando-se no corpo social e a êste, por sua vez, deixar-se penetrar por êsses valôres diferentes, como modelos ou normas. As religiões africanas que podiam teôricamente implantar-se no Brasil eram transportadas.
de ordem
tão numerosas
Entretanto,
geral,
a de que
pode-se
tôdas
quanto as etnias para aqui aqui
fazer
uma
essas religiões,
observação
sem
exceção,
estavam estreitamente ligadas às famílias, às linhagens ou aos
clãs. Os bantos de Moçambique cultuam .os ancestrais familiares e é o pai de família que exerce o sacerdócio; isoladamente, os ancestrais do chefe são objeto de culto por parte de todos os 85
membros da tribo e servem e o Deus supremo, deus do passados domina também a dos negros de Angola, onde
de intermediários entre os homens céu ou da chuva. O culto dos antereligião, mais rica e mais complexa, as mulheres são possuídas, durante
as cerimônias, pelos mortos de suas famílias.
No Congo, o ani-
mismo é certamente mais desenvolvido; há tôda uma mitologia
com um deus celeste, uma deusa terra, mas esta mitologia está ligada “domêsticamente” às grandes famílias reais, os deuses sendo considerados os fundadores das dinastias reinantes; e, para-
lelamente, entre as outras famílias, o lugar preponderante cabe Quanto
ao culto dos ancestrais.(1)
e daomeanos,
iorubas
aos
apresentam uma dupla religião, rural e urbana, que Frobenius definiu muito bem em sua Mitologia da Atlântida: A idéia fundamental
segundo
a qual todo homem
do sistema religioso ioruba é a concepção descende de uma
divindade
(...)
Todos
os membros de uma família descendem da mesma divindade (...) É inteiramente indiferente que esta divindade seja ao mesmo tempo o deus das tempestades ou da forja, de um rio, da terra, do céu, ou o deus de uma fôrça ou de uma atividade. Cada deus tem descendência e face a esta, tem o poder de nela ge perpetuar através de filhos. Mas, numa segunda perspectiva (...) cada Deus tem uma função determinada que lhe é própria. Temos, por exemplo, o deus das tempestades que se preocupa em assegurar chuvas fecundas à terra. Temos o deus do ferro que fornece o metal para a forja (...) Se a chuva faltar em algum lugar, tôda a população interessada
invoca
em
comum
o
deus
das
chuvas,
qualquer
que
seja o orixá que cada família descende. Se uma guerra sobrevir, tôda a comunidade invoca o deus do ferro (que é também o deus do destino das guerras) qualquer que seja o deus de que descende cada pai de família (...) Conseqiientemente, é preciso que cada propriedade possua um altar do deus familiar onde o serviço seja assegurado por um intermediário ou um preposto, um sacerdote familiar. E, em segundo lugar, cada comunidade urbana tem necessidade, para que cada grande deus possa agir bem ou mal sôbre ela própria, de um templo, de um santuário onde as grandes festas, as cerimônias sejam celebradas por um grão-sacerdote ligado O membro celebrante da família chama-se (...) a cada deus Aboxá, o sacerdote da comunidade, Ajê.(2)
No momento não nos interessa saber como essas duas religiões, que se dirigem às mesmas divindades, se coordenam, nem como puderam passar de uma para a outra; não reteremos a não (1) A bibliografia das religiões africanas é demasiado ampla para que possamos citá-la. Indicamos simplesmente para os bantos H, BAUMANN e D. WESTERDANN, Les Peuples et les Civilisations de V'Ajrique, pp. 123-250, e
en
para
86
os
Afrique (2) L.
negros
da
antiga
Occidentale. FROBENIUS,
Costa
dos
Mythologie
Escravos,
de
G,
VAtlantide,
PARRINDER,
pp.
122-23.
La
Religion
ser esta idéia: os deuses do ioruba e os voduns daomeanos dirigem departamentos da natureza, com sacerdotes especiais e confrarias de iniciados que os servem, em benefício de tôda a comunidade e, ao mesmo
tempo,
cada deus dirige uma
família, da
qual é o ancestral e que lhe rende culto, transmitido em linha
masculina.
Ora, como dissemos no capítulo anterior, a escravidão se-
parava a mãe dos filhos, o marido da mulher,(º) dispersava nas regiões mais afastadas do Brasil os membros de uma mesma
linha ou de um mesmo clã, que poderiam ser escravizados em
conjunto.(t)
mente unida
Como,
nessas condições,
à vida doméstica,
uma
aos manes
religião tão estreita-
dos ancestrais, reais
ou lendários, totêmicos ou não, onde o sacerdócio era o privilégio do patriarca, podia resistir a tal transformação? Todavia, devemos distinguir os negros da Africa ocidental dos bantos, em relação aos efeitos dessa mudança
de estrutura.
Os bantos
não podiam achar solução para o desaparecimento de um culto
quase que únicamente centrado na adoração dos mortos, a não ser por vias indiretas que, na realidade, parece terem sido tomadas
simultâneamente, segundo o testemunho dos viajantes ou dos cronistas da época da escravidão. A primeira solução estava em que podiam se prender à idéia de que a alma depois da morte retorna ao país dos antepassados, ou para as reencarnar nos sêres livres, ou para aumentar o grupo de ancestrais deificados,
dessa forma recebendo um culto que era impossível no Brasil. Esta era a solução de membros de famílias arrancados de seus grupos e não de grupos escravizados por inteiro. Ela impeliu
frequentemente os escravos à morte para assim encontrarem mais
depressa o Paraíso dos ancestrais.(º) A segunda solução era reinterpretar as outras religiões do Brasil, a religião indígena, a
religião católica, e mesmo a religião de outras etnias africanas em têrmos do culto dos mortos. Esta segunda solução era relativamente fácil no que diz respeito às religiões ameríndias, porque
na
(3)
KOSTER,
História
Notas
(4)
Mulheres
Exemplo:
32 mulatos, angolas, 1 daomeanos, 1 calabar, designação. PP.
163-64,
pp.
Pittoresques,
Estudos
79,
139.
e Costumes,
no
engenho
citado
por
Ajro-brasileiros,
pp,
Numerosos
385-96.
Freguezia,
A.
BRANDÃO,
pp.
exemplos
contam-se
55-91;
em
“Os
Negros
TOLLENARE,
citados
1811:
por
13
Ch.
criculos,
16 africanos sem outra designação, 7 deomeanos, 3 nagôs, 2 mina. Em 1832: 15 crioulos, 13 mulatos, 9 cabras, 4 haussa, 4 1 mina, 1 mendobl. Em 1853: 102 nagôs, 15 crioulos, 14 heussa, 1 moçambique, 3 cabindas, 1 mulato, 27 africanos sem outra VANDERLEY PINHO, História de um Engenho do Recôncavo,
Sóbre
2
Voyages
Alagoas”,
Dominicaes,
EXPILLY,
Pp.
de
esta
primeira
solução,
ver d'ASSIER,
Le Brésil
Contemporain,
-B.
87
os pajés faziam falar os mortos com seus maracás e as índias entravam
em
imediatamente
transe,(º)
o que
explica
a acei-
tação imediata da pajelança ou do catimbó pelos bantos.(”) Essa solução era já mais difícil no que diz respeito às religiões ioruba ou daomeana que se dirigiam menos aos ancestrais prôpriamente falando que às divindades, mas ainda assim êsses cultos
transformavam em deuses reis ou heróis que viveram na terra, divinizando-os após sua morte, dando ao transe papel central em seus rituais, coisas essas que podiam ajudar os bantos da costa do Atlântico a redefinir suas religiões em têrmos ioruba. As “nações” congo ou angola, de fato copiaram amiúde, mudando
apenas os nomes das divindades (substituindo Oxalá por Zumbi,
Exu por Bonbongira, etc.), os candomblés dos negros ocidentais. O catolicismo, ao contrário, proibia ou, em todo caso,
desconfiava das crises extáticas; as confrarias religiosas da Virgem do Rosário ou de São Benedito ofereciam aos bantos, apesar de tudo, uma concepção de “intermediários” que podia se adaptar à sua própria; de um lado, a idéia de que os santos e Deus, identificava-se em
eram os intercessores entre o homem
seu pensamento com a própria idéia de que eram os ancestrais estavam
que
encarregados
de levar seus pedidos
a Zumbi
ou
divindade do céu, isso tanto mais fácilmente pois que
Zambi,
a Virgem e os santos viveram na terra antes de alcançarem a glória de Deus. Em segundo lugar, a existência de Virgens ne-
gras, de santos prêtos podia fazê-los pensar que êsses “negros”
católicos verdade,
nais.
outras
tivessem
ancestrais
sido
ancestrais
familiares, mas,
de
suas
raças,
ao menos,
não
mais,
é
ancestrais nacio-
Dessa maneira, os bantos foram mais permeáveis que as etnias
africanas
à aceitação
de confrarias.
Mais
tarde,
porém, no fim do século XIX, quando o espiritismo se desen-
volverá no Brasil, com os fenômenos de mediunidade e de incorporação dos mortos, é êle que fornecerá a melhor solução aos
últimos bantos importados, ou aos seus descendentes, para reinterpretar em têrmos europeus a religião de seus pais. Quanto aos ioruba e daomeanos, a questão se colocava de forma diferente, já que a religião aí se apresentava sob um aspecto dualista, religião ao mesmo tempo de linhagem e de comunidade. A primeira veio a desaparecer. O número de mulheres escravas era bastante inferior ao número de homens escravos (6) (7)
88
P. NÓBREGA, Cartas do Ver a 2.º parte, cap. I.
Brasil,
1549-1560,
pp.
99-100.
que
para
uniões
se produzir;(?*)
pudessem
estáveis
a mesma
mulher dormia ao acaso de seus caprichos ora com um macho,
ora com outro, e mesmo que êsses homens fôssem da mesma a mulher
etnia, ioruba ou daomeana,
quando
tinha filhos não
podia saber quem era o pai. Este fato não. teria nenhuma importância se os orixás ou voduns fôssem herdados em linha feminina, mas
sendo
transmitidos,
como
o dissemos,
em linha
masculina, a ignorância da paternidade impedia o culto domés-
Consegiientemente, sob a influência do catolicismo, o casa-
tico.
mento religioso abençoado pelo capelão, aceito ou patrocinado
pelo senhor branco, substituiu esta espécie de vasta prostituição
primitiva.(?) Mas, segundo Couty, a tentativa malogrou; os senhores encerravam as móças para protegê-las da lascívia dos
machos; mas,
essas, uma vez casadas, envenenavam
fregiiente-
mente seus maridos, preparando-lhes guloseimas com ervas fornecidas por seus feiticeiros, para poderem casar com outros companheiros; as mortes de escravos casados tornavam-se mesmo tão usuais que se precisou proibir às viúvas em quase tôódas as grandes propriedades, casarem-se de nóvo; finalmente, acrescenta Couty, cessaram as preocupações com a moral, “ficando os dois sexos à vontade para se misturarem durante duas ou três horas cada noite”.(1º)
O mesmo
ocorria nas cidades, enquanto
os senhores dormiam, os escravos saíam das casas para encon-
trarem-se na escuridão da rua ou nas praias desertas.(!!) Nessas
condições,
mesmo
depois
da
obrigatoriedade
do
casamento,
a
ligação orixá-linhagem masculina estava definitivamente rompi-
da. Em compensação, o segundo aspecto da religião ioruba-daomeana, o culto dos deuses da natureza em benefício da co-
munidade, por sarcedotes urbanos rodeados por uma confraria de iniciados era agora possível no quadro das “nações”, recons-
tituídas pelo govêrno português, depois pelo brasileiro, a fim de evitar, exaltando as rivalidades interétnicas, a formação de uma consciência de classe e a revolta geral dos negros contra os bran-
cos. As condições de vida impostas às etnias africanas ocidentais levaram, por conseguinte, a uma cisão em sua religião, segun-
do divergência já verificada na Africa, entre os seus dois aspec(8)
G.
FREYRE,
op.
cit.
p.
6ll.
Alexander
CALDELEUCH,
Travels
in
South America, I, p. 25% KOSTER, op. cit. I, p. 202; DEBRET, em sus Voyages Pittoresques, dá uma
mentos,
vol.
III,
gravura
15.
excelente gravura representando
um
dêsses casa-
(9) H. KOSTER, Voyages Pittoresques, II, p. 347, e sôbre a tendência em casar mulatos escravos com pessoas mais escuras para impedir a passagem da inha de côr, p. 372; TAUNAY, História do Café, IV, cap. 63, e VII, p. 174. (10) L. COUTY, L'Esclavage au Brésil, pp. 74-5. (11) Ch. EXPILLY, Le Brésil tel qu'il est, cap. VI; KOSTER, Op. cit., I, p. 23; V. COARACY, O Rio de Janeiro no Século XVIII, p. 201.
89
tos, o doméstico
e o nacional, preservando apenas
o último,
que achou nas organizações dos cantos, das nações, das reuniões
de dança, dos batuques, os “nichos” apropriados, como os cha-
mamos,
onde pôde se ocultar e sobreviver.(12)
Mas como se operou a relação entre essas infra-estruturas brasileiras — confrarias e nações, criadas pelo branco e em seu
proveito —
e as superestruturas, valóres e representações coleti-
vas de origem africana? Não dispomos infelizmente de documentos históricos que possam nos fornecer a solução dêsse problema:
não poderemos resolvê-lo a não ser indiretamente, mais tarde, ao estudarmos a organização social dos candomblés. Contentar-nos-emos, no momento, com duas observações fundamentais.
Na Africa, cada divindade, seja Xangô, Omolu ou Oxum, tem seus sarcedotes especializados, suas confrarias, seus conventos, seus locais de culto. No Brasil, mesmo nas cidades “negras” do litoral, era impossível para cada “nação”, bem menos nume-
rosa, reencontrar e reviver esta especialização. As seitas vão, pois, tornar-se reduzida imagem da totalidade do país perdido; quer dizer, cada candomblé terá, sob a autoridade de um único sacerdote, o dever de render homenagens
a tôódas as divindades
ao mesmo tempo e sem exceção. Em lugar de confrarias especializadas, uma para Oxum, outra para Xangô e outra para Omolu,
teremos
tâneamente
apenas uma
as filhas de Oxum,
conseguinte, temos
primeira observação. Por
confraria,
outro
compreendendo
as filhas de Xangô,
a concentração da África na seita.
lado,
quando
as seitas
africanas
foram
etc.
simul-
Por
Esta, a criadas
pelos negros livres, os ancestrais familiares aí puderam se introduzir, ao lado das divindades da natureza. Isto foi o que se passou,
com
por exemplo,
na Casa
das Minas.
efeito, três “famílias” de deuses:
Nela são adoradas,
a família de Dã, ou Dan-
birá, isto é, da varíola; a família de Keviosó, isto é, do raio; por fim, a família de Davisé ou Dahomé, isto é, os ancestrais da
família real do Daomé, da qual os fundadores da “casa” eram
membros.
Temos,
a familiar
e a nacional,
ligação numa
antepassados do
(12) ponto
“The
portanto, um
“nação”
tornaram-se
Soclal
Organization p.
521,
e,
of
do
chamam de “enculturação”, Bahia, Brazil”, Amer. Sociol.
90
sobreviveram
ocasionou uma
iguais
O fenômeno da cisão entre de vista da organização dos
Americanistas,
caso em
the
aos
por E. Review,
conjunto.
evolução
voduns
Mas
das crenças,
tomando
sua
os
teológi-
as duas religiões foi bem observado, candomblés, por M. J. HERSKOVITS,
Candomblé”,
ponto
em
que as duas religiões,
de
vista
Anais do
Fr. FRAZIER, VII, 4, p. 471.
do
que
XXXI
os
“The
Congresso
de
norte-americanos
Negro
Family
in
camente
suas
formas,
lugar aos mesmos novas
obedecendo
aos
transes extáticos.(!S)
infra-estruturas
sobrepuseram-se
mesmos
rituais,
dando
Isto significa que as
às superestruturas
e só
se deixaram contaminar por elas na medida que puderam mo-
delá-las segundo seus padrões.
Mas, para compreender essas “nações”, essas confrarias, é preciso recolocá-los na época, caracterizada pela monocultura, pela grande propriedade. Tem-se dito e repetido frequentemente
êsses batuques ou sociedade total da escravidão e pela que a escravidão
brasileira era infinitamente mais amena que a escravidão anglo-saxônica ou francesa. Os viajantes inglêses ou americanos, que
tinham conhecido a sorte trágica dos trabalhadores de seus países no início da industrialização, não deixaram de observar que a situação dos escravos, que ao menos tinham o futuro assegu-
rado,
que
eram
tratados
quando
estavam
doentes,
ajudados
quando velhos ou fracos, era bem superior à situação dos operários europeus ou norte-americanos;(1!) Saint-Hilaire, por sua vez, comparando a vida dos escravos rurais com a dos campone-
ses franceses, declara que os primeiros são mais felizes que os segundos. (15) Não contestaremos êsses testemunhos que são to-
dos concordantes.
Exceto talvez os depoimentos
dos viajantes
alemães que gostavam, em geral, de acentuar os casos de tortu-
ras infligidas aos negros pelos brancos, ou casos de assassinatos
de brancos por seus escravos; mas, percebe-se que suas narrativas
obedecem a uma política de desencorajar compatriotas para o Brasil. (1º)
(13) Sôbre essas três famílias Nunes PEREIRA, 4 Casa das Minas,
The
Negro
in
Northern
Brazil,
op.
cit., p.
14. H.
p.
H.
pp.
a imigração
de seus
e sua semelhança teológica atual, ver pp. 31-2. Octavio da COSTA EDUARDO,
76-80.
P.
VERGER,
op.
cit.
pp.
159-60.
(14) A. MAJORIBANES, North and South America, Londres, 1854, p. 73. A. R. WALLACE, 4 Narrative of Travels on the Amazon and Rio Negro, p. 120. Hamlet CLARK, Letters Home from Spain, Algeria and Brazil, p. 160. 8. W. H. WEBOTER, Narrative of a Voyage of the South Atlantic Ocean, p. 45.
GARDNER,
Charles
DENT,
4
Year
in
Brazil,
p, 28. Franck
BENNET, Forty Years in Brazil, p. 111. J. W. WELLS, Three Thousand Miles through Brazil, II, p. 187. (15) SAINT-HILAIRE, Voyage dans les Proviíinces de Rio de Janeiro et de Minas Geraes, cap. IV. Os testemunhos de outros viajantes franceses concordam com o seu: COUTY, L'Esclavage au Brésil, pp. 3-9. Ferdinand
DENIS,
que no que os obstante
sôbre
Brésil,
142.
KOSTER,
Voyages
Pittoresques,
acentua
mesmo
Brasil os escravos dos estrangeiros são tratados mais rudemente dos senhores brasileiros, p. 3ll. RIBEYROLLES, op. cit. não seu antiescravismo, Teconhecia a superioridade da sorte do escravo
a do operário europeu. Ida PFEIFFER, Voyage Autour du Monde, p. 18. (16) Por exemplo, Avé-LALLEMANT ou o autor anônimo de Brasilia-
nische Zustande. Mas é preciso notar também que outros viajantes acentuaram a rTelativa brandura da escravidão brasileira, como MARTIUS, J. EMANNUEL POHL ou RUGENDAS.
alemães SPIX e
91
Entretanto, se não contestamos êsses testemunhos, devemos fazer um certo número de observações que limitam sua importância. A sorte dos escravos variava segundo as regiões; era melhor,
por exemplo, no Rio ou na Bahia que no Maranhão ou no Pará.(!') Variava também conforme as categorias de escravos:
era menos severa para o vaqueiro que para o trabalhador das charqueadas, (18) para o empregado
balhador rural,(1º)
Todos
doméstico
êsses testemunhos
mente do início do século XIX,
que para o tra-
datam
principal-
época em que o tráfico negreiro
começa a ser limitado, prenunciando o seu desaparecimento total. Isto fêz com que o preço dos escravos aumentasse bastante. (2º)
Os senhores, percebendo que se tornaria no futuro cada vez mais difícil renovar seu investimento humano, compreenderam que cada trabalhador constituía precioso capital; apressaram-se a tomar medidas adequadas à conservação da saúde e da vida de seus escravos, a melhorar sua alimentação, a construir hospitais em suas fazendas, fazendo vir “cirurgiões”, a conceder dias de repouso às mulheres parturientes ou às jovens mães durante o
período de lactação, enfim, a regular o trabalho nos campos de
maneira a não demandar em excesso esforços físicos de seus negros.(*!) Pensamos que é preciso investigar a moderação da escravidão muito mais nessas razões econômicas que em motivos raciais, como a indolência dos brasileiros,(22) ou em motivos religiosos,
como
a influência
do catolicismo.(?º)
Há na obra de Gilberto Freyre contradição evidente entre
sua afirmação da brandura da escravidão e sua idéia de que a escravidão desenvolveu nos brancos brasileiros o gôsto do sadis-
mo.(?*) De fato, êsse sadismo não se teria desenvolvido se não houvesse prazer em ver açoitar os negros, em pôr-lhes máscaras de ferro,
em
colocá-los
nos
troncos,
em
cortar
as orelhas
dos
fugitivos capturados. Arthur Ramos consagrou todo um capítulo
de um de seus livros à descrição minuciosa dos instrumentos de (17)
SAINT-HILAIRE,
(18) (19) (20)
SAINT-HILAIRE, Viagem ao Rio Grande COUTY, op. cit., pp. 83-4. O lucro sôbre a venda de escravos que
KOSTER, op. cit., II, p. 399. então
para
200
e
300%.
J.
Voyage
DORNAS
aur
Sources
Filho,
4
du
Rio San do era
Escravidão
Sul, de
no
Francisco, p.
87...
20
a
Brasil,
30% p.
p. 110.
subiu
63,
em
Dr ,1) TAUNAY, História do Café no Brasil, vol. II, caps. 62-69, vol. VI, caps. 9, 10, vol. VIII, cap. 17. (22) Essa é a opinião, por exemplo, de M. GARDNER em sua Viagem no Brasil, p. 12. (23) Essa é também a opinião de CASTELNAU, citado por TAUNAY, No Brasil de 1840, p. 311. D'ASSIJER viu bem a causa econômica da mudança de política dos senhores brancos (Le Brésil Contemporain, p. 160). (24) G. FREYRE, op. cit., entre a p. 301 (cf. Interpretação do Brasil, PP. 108-18) e as pp. 76-68.
92
tortura utilizados
no Brasil.(2º)
Quando
as idéias abolicionis-
tas começaram a se desenvolver na classe dos “bacharéis” e dos
“doutôres”, os ricos proprietários precisaram naturalmente tomar precauções para não proporcionar contra si mesmos armas
aos seus piores adversários; fizeram inclusive passar de suas mãos às dos agentes do Estado, policiais ou soldados, a execução de castigos,
privando-se
assim
de alguns
de
seus
direitos.(2º)
A
Igreja Católica, por seu lado, que permanecera muito tempo indiferente à sorte dos africanos, tomou
certo número
de medidas
a favor dessa classe, tais como a libertação de escravos pelas confrarias do Rosário, o direito do branço de comprar o escravo que lhe pedisse asilo de seu antigo senhor, que não podia opor-se a essa transferência de propriedade, etc.(2”) Todavia, tôdas essas medidas que melhoraram certamente
ou mitigaram a sorte dos escravos não devem nos iludir, A es-
cravidão moderna não é como a escravidão antiga,(2º) ela não se fundamenta, como a última, na integração do homem em uma família, mas na exploração econômica de uma raça por outra, €
no lucro; em outras palavras, poderíamos dizer que o indivíduo
na escravidão moderna é como um assalariado de uma nova lei
de fome. A escravidão pela sua própria natureza impunha insensibilidade ao senhor. Os mesmos viajantes que acentuam a relativa brandura da escravidão no Brasil, observam paradoxalmente êsse fato; que o suicídio de negros, os assassinatos e as rivalidades raciais encontram-se em maior número nas propriedades
dos senhores “bons” que nas dos outros.(2º?)
Na verdade, não
se podia dirigir um grupo de às vêzes várias centenas de escravos
sem
uma
vontade
de ferro.
Observa-o
Fernando
de Azevedo,
com muita precisão, baseando-se ao mesmo tempo na opinião de Max Weber e nos dados da história do Brasil.
(25) Arthur RAMOS, 4 Aáculturação Negra no Brasil, pp, 103-14. Sôbre os castigos infligidos aos escravos no Brasil, ver também d'ASSIER, op. cit.,
p.
96.
N.
Curtas
do
Deuzr
SANT'ANA,
Solitário,
Années
au
São
p.
Brésil,
154.
Paulo
p.
Histórico,
Ferdinand 180.
II,
DENIS,
Vivaldo
pp.
op.
CORACY,
185-92.
cit. O
p.
Tavares
Rio
146. de
F,
BASTOS,
BIARD,
Janeiro
no
Século XVIII, p. 204, nos diz que em 1688 o rei de Portugal tomou medidas contra a barbárie dos senhores, mas depois que os escravos tomaram conhecimento das ordens do rei, houve uma série de rebeliões e, a pedido do governador,
ag
recomendações
reais
precisaram
ser
revogadas.
Encontrar-se-á
a coleção de leis sôbre a pena a ser infligida aos negros na Collecção das Leis do Imperio do Brasil de 1835, Rio, 1864, I, p. 5 e segs. Os anúncios de negros fugitivos dos jornais indicam frequentemente, como meio de reconhecê-los, cicatrizes deixadas por êsses diversos castigos. P.
(26) (27)
(28) o,
PP.
GARDNER, op. Cit, P: 14. SPIX 6 MARTIUS, Traveis tn Brazil, 1, EKOSTER, op. cit. pp. 337-40. A. RAMOS, op. cit. p. 121.
A. COMTE, ours 'de Philosophie Positive, t. V, 53,4 “Lição, pp. 99-103. COUTY, op. cit., p. 78. TSCHUDI, Retse Duroh Sud-Amerika, II,
-
98
Certamente,
(...)
pudesse
para
que
sustentar-se
a
e
economia
patriarcal
desenvolver-se,
tinha
da
Casa-grande
de
manter
na
submissão servil, por uma disciplina de ferro, bugres e africanos que constituíam dois terços e, mais tarde, a metade da população. Era uma luta de sobrevivência e de domínio. A “Casagrande” não teria sido, no caos da sociedade colonial, êsse instrumento disciplinador da ordem, êsse poderoso elemento que foi, de aglutinação, essa
fôrça
centrípeta
que
reagrupa
e retém,
sem
êsse
esfôrço
tre-
mendo que ia até a crueldade, para solidificar a armadura do sistema, constantemente ameaçado pelas tropelias dos silvícolas e pelos tumultos nas senzalas. (80)
Os sofrimentos que os meninos brancos infligiam aos preti-
nhos sujeitos a seus caprichos, os ciúmes das mulheres brancas
contra as amantes negras de seus maridos das quais rasgavam os olhos, ou arrebentavam os dentes a golpes de martelo, não têm para nossa matéria senão um interêsse anedótico.(*!) O
importante é que o escravo se ressentiu da exploração sistemá-
tica, brutal, interessada, contínua da qual era o objeto e a vítima. E não é sem razão, de fato, que um célebre provérbio faz do
Brasil “o inferno do negro, o purgatório do branco e o paraíso do mulato”. O mulato livre e sobretudo a mulata voluptuosa bem podiam encontrar aqui um paraíso, o escravo negro apenas encontrando um inferno.
Antonil, no fim do século XVII, lem-
bra que para o escravo três “p” são necessários: pão, pau e pano,
mas
que o brasileiro começa mal, porque começa
com
tratando melhor seus cavalos que seus escravos.(82)
o pau,
O senhor
achara, é verdade, uma solução para dirigir o ressentimento do negro sôbre outra pessoa que não êle, desdobrando a figura do pai-senhor em duas, o pai bom que era o proprietário, e o pai
mau que era O feitor.(%3) A êsse último principalmente é que se deviam as piores selvagerias, e como
os feitores eram
esco-
lhidos na classe dos mulatos e dos negros livres, conseguia a classe exploradora dissociar no espírito da classe explorada a luta econômica, contra o regime servil, da luta racial, africanos contra portuguêses.
Todavia, quando essa exploração diminuiu, depois da de-
cadência das minas e durante todo o século XIX até a extinção
(30) Fernando de AZEVEDO, Canaviais e Engenhos, pp. 59-60. A opinião de Max WEBER a que alude Fernando de Azevedo encontra-se em Wirtschajt und Geselischajt, t. I da tradução espanhola, p. 128 e segs. (31)
Para
o
negrinho,
objeto
de
tortura
da
criança
branca,
ver
G.
FREYRE, Casa-grande e Senzala, trad. fr. pp. 285-86, e sôbre o caso do ciúme das mulheres, idem, p. 286. (32) ANTONIL, op. cit., cap. 5. (33) R. BASTIDE, “Introduction à l'Estude de Quelques Complexes Afro-brésiliens”, Bul. Bureau d' Ethnologie, Haiti, II, 5, pp. 26-7, e Sociologie et Psychanalyse, pp. 242-43.
94
da escravidão, a estrutura social do Brasil estava justamente em fase de transição sob o efeito da urbanização. E esta nova
estrutura iria ainda intensificar a separação das duas classes, a exploradora e a explorada, tornando dessa maneira caduco o efeito integrador do abrandamento dos costumes.
A cidade brasileira no comêço não foi mais que o prolongamento dos campos. O dono das plantações que vinha morar na capital ou nos portos trazia consigo seus gostos rurais. O sobrado urbano copiava a Casa-grande do engenho, isolava-se das
outras casas por jardins, voltava a sua parte traseira à rua (concentrando sua vida nos aposentos que davam para o pátio), defendia a mulher branca da vista de estranhos pelas gelosias de suas janelas, pelas grades. A senzala para aí foi também levada ocupando as dependências mais úmidas ao rés-do-chão, enquanto a capela do engenho aí se transformava em altar familiar, num armário embutido no salão, as portas entreabertas sôbre um fundo de ouro e de chamas de velas. Entretanto, contra êsse isolamento das casas, a rua que mesmo assim era um meio de comunicação entre elas e que constituía um centro de encontros, de confraternizações
ou de reuniões,
acabaria por triunfar.
Ela
vai arrancar a mulher branca de sua solidão para fazê-la ouvir à sua janela as alvoradas dos estudantes, para levá-la a frequen-
tar os bailes e as recepções mundanas, para ir ornada como as santas, aos camarotes dos teatros. Vai também arrancar o patriarca de seus interêsses puramente econômicos para conduzi-lo à frequência de clubes políticos, de lojas maçônicas, das vastas sacristias das igrejas coloniais, onde se discutiam terras, cavalos
e negócios do Estado. Através da rua como pelos salões, o antigo
antagonismo do senhor de engenho e do português comerciante vai diminuir, acabar às vêzes em casamento da filha do senhor já meio arruinado com o filho do português, caixa ou gerente da
loja de seu pai.(**) Mas se a rua permitiu assim aos brancos desenvolver o sentido de sua solidariedade racial, não parece ter tido o mesmo
efeito no sentido da confraternização “das raças
e das culturas”. De fato, a urbanização, longe de ter ajudado a integração do negro e do branco em uma mesma sociedade, parece ter agido no sentido contrário, salvo talvez nas grandes festas populares, onde tôdas as côres se encontravam, misturando-se na alegria comum, e ainda nas procissões em que desfilavam juntas as cone PP.
(34) Gilberto FREYRE consagrou um livro a êsse problema, Mucambos, bem como um dos mais importantes capítulos de ici
-D&.
66.
Aspectos
de
um
século
de
transição
no
Nordeste
Sobrados Região e
do
Brasil,
95
frarias de negros e de brancos. Mas, mesmo aqui as raças permaneciam separadas; as confrarias do Rosário ou de São Benedito eram as primeiras, à frente do cortejo, e as irmandades dos
brancos rodeavam o pálio do bispo ou do pároco; a festa, por seu lado, fazia coexistir as danças dos negros com os divertimentos dos brancos, mas não ocasionando sua interpenetração. A rua agiu em relação aos escravos no mesmo sentido de solidariedade étnica que vimo-la fazer aos brancos. Dizemos solidariedade étnica e não solidariedade de casta, visto que as “nações” disputavam-se por tôda parte onde se encontravam,
as mulheres na
fonte, os homens nas praças públicas. Dessa forma, os elementos do antigo engenho que estavam integrados num sistema uni-
tário de produção e pela autoridade absoluta do patriarca contra
as fôrças de dissolução, separam-se: a Casa-grande torna-se o sobrado, a senzala, o mucambo; o antigo equilíbrio que existia entre a civilização rural luso-brasileira e as civilizações populares africanas é substituído pelo antagonismo entre a cultura européia do branco, adquirida nas faculdades de Direito, nas escolas de Medicina, nos seminários, e a cultura africana, que se desenvolve no interior das associações de “nações” sob a forma de retôrno às tradições religiosas ancestrais.(%º) Por certo, como há pouco dissemos, o escravo ao mesmo tempo que viu sua sorte melhorar, não mais se arrastou seminu pelos canaviais. Vestiu, para honrar seu senhor e para simbolizar sua posição social face aos vizinhos, sobrecasaca e luvas brancas, mas compreendendo, por isso mesmo, o sentimento de sua dignidade humana que a antiga servidão rural nêle tendera a abolir. A escravidão da plantação desafricanizava o negro, a escravidão urbana o reafricanizou, pondo-o em contato incessante com seus
próprios centros de resistência cultural, confrarias ou nações. É por isso que a manutenção das religiões africanas deve ser vista definitivamente nesse dualismo de classes opostas. A luta das civilizações é sômente um aspecto da luta das raças ou das classes econômicas
no seio de uma
sociedade de estrutura
escravista. O negro não podia se defender materialmente contra um Tegime onde todos os direitos pertenciam aos brancos; refugiou-se, pois, nos valôres místicos, os únicos que não lhe podiam arrebatar.(3º)
Foi
ao combate
com
as únicas
armas
que
lhe
restavam, a magia de seus feiticeiros e o mana de suas divindades si
(35)
(36) etra.
96
G.
A.
FREYRE,
ARINOS
Sobrados
DE
MELLO
e
Mucambos,
FRANCO,
cap.
V.
Conceito
de
Civilização
Bra-
guerreiras.
Mas,
naturalmente,
esta
nova
orientação
dada
às
representações coletivas trazidas da Africa alteraria o seu signi-
Na África as divindades eram cultuadas em benefício de
ficado.
tôda a comunidade, comunidade de criadores ou de camponeses;
pedia-se-lhes a fecundidade dos rebanhos, das mulheres e das colheitas. As grandes festas da Nigéria e do Daomé são ainda festas agrárias. (97) No Brasil, como pedir aos deuses a fertilidade
das mulheres
escravos? nhas.
se elas põem
no mundo
apenas
pequenos
Melhor seria, rogar-lhes a esterilidade de suas entra-
Como
pedir aos deuses boas colheitas numa
agricultura
que é comercial e não mais de pura subsistência e em benefício
dos brancos, isto é, da raça dos exploradores?
Valeria bem mais
pedir-lhes a sêca, as pragas destruidoras das plantações, já que
para o escravo as colheitas abundantes se traduziriam finalmente
num acréscimo de trabalho, de fadiga e de miséria. É assim que ocorre uma primeira seleção dos deuses; as divindades proteto-
ras da agricultura são postas à parte, acabando por serem completamente esquecidas no século XX. Em compensação, a figura
de Ogum, o deus da guerra, de Xangô, o deus da justiça, ou de Exu, o deus da vingança, tomam lugar cada vez mais considerá-
vel
na
cogitação
dos
escravos,
mas
transformando-se:
Ogum
deixará de ser o patrono dos ferreiros ou o protetor dos instrumentos agrícolas de ferro, Exu não manterá, senão dificilmente, seu caráter de divindade
da ordem
cósmica para ocupar
antes
de tudo a regência da ordem social, mais exatamente, para lutar
contra a desordem
de uma
sociedade de exploração racial.
O
tô-tã que se elevará nas noites sufocantes não será destinado a
pedir a chuva,
a prosperidade
da aldeia,
a grandeza
da tribo,
mas chamará outros mistérios para o preparo de filtros de amor que permitirão às belas mulheres negras desforrarem-se do des-
prêzo das patroas brancas, tomando o coração de seus maridos
(segundo peças de processos sabe-se de casos em que o marido se livrou de sua espôsa para dar a direção de sua propriedade a u'a amante preta que o tornara louco de amor),(*%!) ou o preparo de venenos poderosos que enfraqueciam o cérebro dos senhores, fazendo-os cair em inanição e morrer lentamente (cha-
mavam-se (37) (38) extraídos
essas plantas venenosas
de “ervas para amansar os
Ver, por exemplo, PARRINDER, op. cit., p. 140. Revista do Arquivo Público, Recife, 2.º semestre de 1946, Documentos dos Arquivos, p. 231 e segs.
97
senhores”), (8?) ou ainda para fazer abortar as mulheres grávidas para não aumentar o número de escravos. (*º)
Em suma, a cultura africana deixou de ser a cultura comunitária de uma sociedade global, para se tornar a cultura exclu-
siva de uma classe social, de um único grupo da sociedade brasileira, a de um grupo explorado econômicamente e subordinado socialmente. (“1) sk
%
%
À escravidão não sômente separa como une o que separa. Ela uniu as civilizações africanas que vimos arrancadas de suas infra-estruturas, mutiladas por essa separação, transformadas de civilizações comunitárias em “subculturas” de classe, com as civilizações européias da classe dirigente, o que levou ao apa-
recimento de novos fenômenos, o sincretismo religioso ou a mes-
tiçagem cultural, que agora precisamos estudar. Mas, ainda aqui, para compreender como opera a interpenetração das civilizações, por que canal, de que maneira, com quais efeitos, precisamos
recolocá-la na situação social que a condiciona e explica.
Da altura em que domina a plantação, a Casa-grande dos senhores brancos aparta-se da senzala onde os escravos vivem
com
suas nostalgias, suas músicas e seus deuses, o que não im-
pede que as duas constituam os elementos de uma mesma realidade, a grande família escravocrata. Essa família forma um todo orgânico, de partes solidárias, isolada no mato, exatamente como um sucedâneo da vila portuguêsa. Certamente as relações que unem os membros dessa comunidade doméstica não são
iguais
às relações
vicinais
de
aldeia,
porquanto
êsses
mem-
bros são hierarquizados, o que aliás aproxima-a mais do clã feu-
dal que da vila. As distâncias sociais serão maiores ou menores segundo o lugar que êsses membros
ocuparão nesta hierarquia.
Em seu ápice temos exclusivamente a família branca do senhor,
proprietário dos homens e dos escravos; abaixo, logo em seguida,
os homens livres que desempenham as funções relativamente “nobres” da produção, aquêle que dirige o trabalho do engenho, o que fiscaliza a refinação do açúcar, o que faz as contas, o pequeno exército de feitores que comanda os grupos de escravos (39)
(40)
A.
O
RAMOS,
branco
O
Negro
estimulava
Brasileiro,
a
pp.
procriação
que tinha pôsto no mundo 10 crianças foi diminuído para 7. Mas sabemos
192-96.
de
seus
escravos:
a
mulher
era libertada, posterlormente o número que, não obstante esses vantagens, a
natalidade foi bastante baixa; era em parte devida às práticas anticoncepcionais e mesmo aos abortos voluntários, como forma de resistência. (41) T. SEPELLI, Il Sincretismo Religioso Afro-cattolico in Brasile, p. 53.
96
com gritos roucos e estalidos de chicotes. Em baixo, os escravos mas êsses escravos por sua vez não formam u'a massa indife-
renciada: êles se dividem em dois grupos, o grupo dos escravos domésticos que moram
cozinheira,
a costureira,
na Casa-grande ao lado dos senhores, a a fiandeira,
as criadas
e os criados
de
quarto, as amas das crianças brancas, os negros de recado (espécie de estafetas que levavam mensagens e que uniam a propriedade às outras propriedades vizinhas), e o grupo dos escravos
dos campos, penando sob o sol ardente, do amanhecer ao pôr do sol, às vêzes até mais, grupo mais numeroso como também o
mais
afastado
do
núcleo
central,
a Casa-grande.
Esta hierarquia de posições ou de status é também uma hierarquia étnica. A família do senhor é endógama, não deixa o sangue negro correr em suas veias,.a mulher aí é escolhida
segundo sua pureza racial, encarregada de dar a seu marido filhos que continuarão a linhagem, o primogênito que substituirá o chefe da família à sua morte, o caçula que será bacharel ou
sacerdote. A classe intermediária compunha-se de “brancos pobres” que só podiam viver com a condição de se integrar numa posição de dependência aos únicos núcleos estáveis da colônia, as grandes famílias senhoriais, e de mulato ou negros livres,
quase completamente
assimilados à civilização portuguêsa.
Os
escravos domésticos eram escolhidos segundo sua beleza, sua inteligência, seus hábitos de asseio ou de higiene entre os negros crioulos ou entre os mina, os nagôs, em suma, quase únicamente entre os africanos ocidentais. Os escravos dos campos eram recrutados principalmente entre os bantos e os semibantos. As distâncias sociais eram tanto maiores à medida que se afastava dos modelos de valóres europeus, representados pelo senhor e
sua mulher. Isso fêz que a desafricanização fôsse o único meio de subir na escala social, de chegar aos postos cobiçados, aquêles que davam mais liberdade, segurança e prestígio. (*2)
Nesta perspectiva a aculturação aparece sob seu verdadeiro prisma que é o de ser uma luta pelo status social. Não é
preciso pensar, sob o pretexto de que falamos de uma raça domi-
nante e de uma raça explorada, que a civilização dos brancos foi imposta pela fórça e que o escravo teve assim o sentimento doloroso de sua alienação. A civilização dos brancos foi desejada como técnica da mobilidade social, como
a única solução deixa-
(42) “Todo O livro de G. FREYRE, Casa-grande e Senzala, é consagrado à análise dessa estrutura familiar. Indicamo-lo ao leitor que desejar amplos esclarecimentos.
99
da, após o fracasso da insurreição,
para sair de uma
situação
insuportável; ela foi desejada deliberadamente, sistemãticamente,
Tomou duas formas, uma puramente cultural que foi a adesão ao catolicismo, a apropriação de hábitos e de formas de com-
portamento dos brancos, e uma forma biológica: “limpar o sangue”, purificá-lo dormindo com os brancos, dando nascimento
a crianças mais claras, cujos pais se ocupariam, e que seriam assim libertadas do jugo da escravidão, tendo posteriormente
posição melhor na concorrência econômica. Não havia outros meios de subir socialmente numa sociedade moldada e dirigida pelo branco, a não ser purificar o sangue do estigma infa-
me da negrura; purificar a civilização africana de sua marca de barbárie; reconhecer como sômente válido o ideal estético do
senhor, o da superioridade da côr branca sôbre a côr negra, e seu ideal moral, o da superioridade da ética dos brancos sôbre
os costumes dos “pagãos”.
A importância do transe nas religiões da Africa negra enga-
nou os primeiros etnógrafos quanto à psicologia dos prêtos. negros
não
são
místicos;
sua filosofia está, como
por vêzes
Os
se
diz, mais próxima da filosofia dos anglo-saxões que daquela dos
asiáticos; é uma filosofia essencialmente utilitária e pragmática,
onde o que conta é o sucesso apenas.(“º)
de
ser
burocrata,
intelectual,
funcionário,
O desejo do africano de
usar
pince-nez,
e de ter uma Pasta Ministerial, não corresponde de modo nenhum a uma aspiração idealista, à aversão pela máquina e pelo trabalho manual, mas ao reconhecimento do status social superior dado
pelos brancos
a certas profissões em detrimento
de outras.(*!)
É êste utilitarismo que explica no Brasil colonial ou imperial a acomodação
do negro
à sua nova
tirar dela o máximo proveito.
mente
excluído
ou
situação e seu esfôrço para
O recurso à fôrça não estava total-
desaparecido,
como
veremos
nos
capítulos
subsegiientes, mas empregado sômente quando circunstâncias favoráveis podiam apresentar-se. O escravo agiu ordinariamente como a aranha, a tartaruga, o coelho ou o lagarto de suas fábu-
las, pela astúcia que é a arma dos fracos, uma arma que fregien-
(43) Essa é a opinião, por exemplo, de Mary H. KINGSLEY, West African Studies, p. 318. (44) E a prova está em que, na nossa sociedade industrial, o negro não teme abandonar essas profissões, quando elas lhes parecem pouco lucrativas, por ofícios “sujos” e “duros”, como os serviços de mecânicos, porém mais rentáveis. Ver R. BASTIDE e F, FERNANDES, Relações Raciaís, pp. “80,
100
224-26.
temente
vence
os mais
fortes.(4º)
Existe
todo
um
folclore do
negro escravo do Brasil que é conhecido com o nome de “ciclo do Pai João”.
Esse ciclo é extremamente ambíguo porque for-
mou-se com a colaboração do branco e do negro estando, dessa maneira, voltado para duas direções opostas. Do lado branco é
a apologia do negro “bom” oposto ao “negro mau”, ao negro quilombola ao negro assassino, ao negro revoltado, o bom ne-
gro que às vêzes canta sua tristeza ao som áspero do urucongo
mas que se submete à sua sorte, que é devotado aos seus senhores, que sem dúvida se considera como o parente pobre, mas parente assim mesmo da família senhorial. Do lado negro é a apologia do negro manhoso, que chega a reqiiestar a mulher branca,
a dormir na rêde de seu senhor, a tomar uma posição de comando na casa dando-se aparentemente “uma alma branca”, mas que
conserva num recanto secreto de seu coração o melhor de sua civilização africana, o conhecimento das plantas medicinais,
dos ritos mágicos, e o nome africano dos santos católicos, isto
é, o seu verdadeiro nome.(“*%)
A aculturação não é, pois, intei-
ramente a assimilação cultural, o desaparecimento total das civi-
lizações nativas na grande noite destruidora da escravidão. A prova disso está em que, se de um lado o africano, €
mais ainda o crioulo, aceitam os valôres brancos, tingindo-os prêto, por outro lado,
e simultâneamente,
a aproximação
de
das
raças na organização da escravidão ocasionou uma transferência de traços culturais africanos para a civilização luso-brasileira. A
criança branca era deixada, nos seus primeiros anos de vida, no
meio dos negrinhos, com êles se recreando, nadando no charco do
engenho, brincando de esconde-esconde nos canaviais, aprendendo a armar arapucas para passarinhos na floresta vizinha. O
menino branco tinha sido alimentado por uma ama negra, que o embalara
com cantigas africanas, que lhe dera seu leite com
tôda a sua ternura.
Continuava a depender da uma criada de
(45) Sílvio ROMERO recolheu alguns dêsses contos africanos de animais ne Bahia, Contos Populares do Brasil, que Nina Rodrigues pôde comparar com os correspondentes africanos recolhidos por A. ELLIS, The Yoruba Speating Peoples of Slave Coast, p. 258 e segs. Ver Nina RODRIGUES, Os Africanos no Brasil, p. 277 e segs. Por sua vez A. RAMOS consagrou a êsses contos populares de animais um capítulo de seu livro O Folclore Negro do Brasil, cap. VI. Ver sôbre a mesma questão a tradução em português e principalmente os comentários de L. da CAMARA CASOUDO &o livro de C. HARTT, Os Mitos Amazônicos da Tartaruga, e Octavio de COSTA EDUARDO, “Aspectos do Folclore de uma Comunidade Rural”, separata do
n.º
CXLIV
da
R.AM.S.P,
(46) Sôbre o ciclo do DIVERSOS AUTORES, Novos Folclore
no
Baixo
de
Alagoas,
Sko
pp.
Francisco”,
Pai João, ver A. RAMOS, op. cit., cap. IX. Estudos Afro-brasileiros, p. 60. Théo BRANDÃO,
121-33.
Osmar
IBECC,
GOMES,
1.º Congresso,
“Tradições
Anais
Populares
II, 1551,
p.
Colhidas
175
e segs.
101
quarto negra que, para adormecê-lo, contava histórias de Quibun-
go, O bicho grande que come as crianças, da môça que canta no saco ou do marinheiro casado com Calunga, rainha do mar. (*”)
Isso fazia com que êle se impregnasse de valôres puramente africanos na idade em que a alma é mais plástica, mais maleável às impressões de fora e às influências estranhas. Quando estava doente, sua mamãe negra tratava-o com ervas colhidas pelo feiticeiro e ajuntava
em sua corrente,
às suas medalhas bentas,
às
suas imagens de santos dadas pela mamãe branca, outros sortilé-
gios mais poderosos, banhados no sangue de animais sacrificados,
contra o “mau-olhado” ou contra as enfermidades da primeira in-
fância.
Mais tarde, quando seu interêsse sexual começava a des-
pertar, olhava as negras nuas banharem-se no rio, esgotava-se em
jogos excitantes e mais ou menos eróticos com as pretinhas, “tornava-se homem”, enfim, com a primeira negra que encontrava nos
campos.
Não cessará de ter amantes negras, de colocar no mun-
do mulatinhos, de reanimar seus sentidos amortecidos pela idade
ou pelo abuso, pedindo ao feiticeiro africano, se êste se encontrasse em sua plantação, os filtros necessários. A influência da África não cessava com a passagem da infância à adolescência; continuava insidiosa, sutil, por tôda a vida, sobretudo através dêsse erotismo, essa propensão ao culto da Vênus negra. Da
mesma forma, ainda que por outras razões, a espôsa branca que vivia reclusa no meio de seus escravos, a fazer confeitos ou
marmeladas, a fiscalizar a costura ou a lavagem, a mandar fazer cafuné pelos hábeis dedos de suas criadas de quarto, (4º) sem
quase nunca sair, recebendo raramente visitas, desaparecendo mesmo na sua cozinha se algum estranho aparecesse à porta da casa, acabava por pensar, por sentir como seus escravos, a aceitar suas crenças supersticiosas, ou suas histórias mágicas, a crer em
Exu quase do mesmo modo que no Diabo. Somente quando a família branca sair do engenho para ir morar na cidade, quando se puser em contato com as idéias européias trazidas pelos navios, com as mercadorias de Lisboa ou de Manchester, é que as fôrças de separação levarão vantagem sôbre as fôrças de fusão; mas no Brasil rural a desafricanização do negro marchou
a par com a
(47) Sôbre as histórias de Quibungo, ver A. RAMOS, op. cit., cap. VII, e L. da CAMARA CASCUDO, Geografia dos Mitos Brasileiros, pp. 272-77, A história da mõôça no saco encontra-se em Nina RODRIGUES, op. cit., pp. 285-87, com a correspondente africana, pp. 288-90. A. de CALUNGA, em J. de SILVA CAMPOS, “Contos e Fábulas Populares da Bahia”, in Basílio de MAGALHAÃES, O Folk-lore no Brasil, pp. 244-46. (48) Sôbre o cafuné, ver R. BASTIDE, Psicologia do Cajfuné, Curitiba.
102
africanização do branço, dando origem simultâneamente a crian-
ças mulatas e a uma cultura mestiça. (*º) Gilberto Freyre estudou bem em Casa-grande
e Senzala
êsses diversos fenômenos, mas estudou-os do ponto de vista da
civilização brasileira, e não do ponto de vista, que aqui nos preocupa, das civilizações africanas, Precisamos, pois, retomar à questão, examinando-a, se se nos permite a expressão, pela outra extremidade da luneta. O engenho de açúcar ou a grande propriedade cafeeira substituíram no Brasil a comunidade aldeã africana. Foi êsse engenho,
essa grande propriedade, que viria substituir as funções da aldeia
ou da linhagem, ou sejam, as funções de integração e de segurança, que iriam regular, organizar em seu seio, as relações interindividuais, formar, em uma palavra, o bloco sólido em que todos os
papéis e todos os status sociais encontrariam seu equilíbrio, seu
centro de coordenação. Não obstante as oposições de interêsses entre a classe exploradora e a classe explorada, e tôdas as tensões que essas oposições ocasionavam, o negro foi tomado, numa certa
medida, pela solidariedade que o ligava ao senhor. Éle se bateu por êle nas lutas entre os clãs familiares, assassinou mais tarde os adversários políticos de seu senhor, formou sua guarda pessoal
nas disputas eleitorais. Viveu assim em duas sociedades simultâneamente, uma sociedade de classe racial, com suas confrarias,
suas “nações”, seus grupos de jogos, seus batuques, e uma socie-
dade familiar da qual dependia para não morrer de fome, para não se sentir abandonado numa terra estrangeira.
Foi homem
de
subordinação
ao menos
sua
dupla fidelidade que determinou, da civilização
como
africana
consequência,
à européia,
coexistência pacífica, penhor de sua futura união.
senão a
Essa união mais se verifica à medida que passamos da gera-
ção dos negros
“selvagens”,
como
eram
chamados
os recente-
mente chegados da Africa, à geração dos negros crioulos, nascidos ou educados na plantação. A própria civilização, se se assenta na natureza e mesmo
se responde aos instintos ou às necessi-
dades naturais, o que nem sempre acontece, porque ela mais cria
do que satisfaz necessidades, não é nunca inata e sim adquirida.
O grande órgão de socialização da criança é sempre a família;
mesmo quando nos ritos de iniciação há uma aprendizagem tri-
bal, essa aprendizagem é do tipo escolar; não vai, pois, contra o “Na
(49)
Bahia
A.
RAMOS,
tôdas
as
depois
classes,
de
ter
mesmo
citado a
a palavra
superior,
estão
de
Nina
prontas
RODRIGUES:
a
tornarem-se
negras”, diz que “a desafricanização gradual do negro foi acompanhada gm contrapartida por uma deseuropeização do branco no Brasil”, Aculturação egra, pp. 1 -2,
108
grupo familiar, completa-o apenas.
Ora, o negrinho, ou o mula-
to, nascido na plantação, recebia os cuidados de sua mãe sômente
durante o período de aleitamento; era cuidado às vêzes por uma
mulher velha, que não mais podia trabalhar nos campos com todos os outros garotos coletivamente; bem cedo sofria a influência do senhor, do capelão, e mesmo do professor se se mostrava
um pouco inteligente, principalmente se fôsse um dos bastardos do senhor ou um filho do capelão. Foi dessa forma que os criou-
los sofreram uma dupla socialização, a do grupo africano pela mãe, pela velha guardiã das criancinhas, pela senzala, e a da
família branca com tôda sua autoridade e prestígio. Dêsse modo,
duas civilizações iam confundir-se em seu espírito. Eis aqui o fenômeno mais curioso da escravidão, a dualidade racial dos pais. Ela vale tanto para o pequeno branco quanto
para o menino negro. O filho do senhor tinha pai branco e mãe negra. Às vêzes a mãe negra educava-o ao mesmo tempo que a
mãe branca; esta podia, nesse caso, lutar contra as influências africanas. Mas, amiúde também, a mulher branca casada muito jovem (15 ou 16 anos), mãe pouco depois, mal nutrida, não fazendo nunca exercícios, morria môça e a autoridade da mamãe negra cobrava então mais fórça.(*º) Por seu lado, o filho do escravo, se conhecia sua mãe, não sabia frequentemente quem
era seu verdadeiro pai. Ésse era no fundo, mesmo se não o fôsse biológicamente, o patriarca branco, o senhor de engenho.
Joaquim Nabuco e Luiz Gama poderiam servir de exemplo a êsse tema da dualidade paterna. Nabuco, órfão de nascimento, era tão ligado a sua ama de côr, tão ternamente unido a ela, mesmo
quando
subiu
à glória, grande
embaixador de seu país.
escritor, homem
político,
Homem, sem dúvida, da mais refinada
civilização européia, ao ponto dos críticos literários lhe censurarem o fato de ser às vêzes mais estrangeiro que brasileiro. Seria necessário estudar psicanaliticamente sua formação, orientada pela doce mãe negra, se quisermos compreender sua sensibilidade e sua forma de inteligência. Luiz Gama teve, indubitavelmente,
um pai português que poderia tê-lo educado, mas êste não só o deixou na escravidão como ainda o vendeu a comerciantes que, em seguida, mandaram-no da Bahia para a província de São
Paulo.
durante
Foi arrancado de sua mãe a quem procurou tenazmente tôda
sua
vida,
sem
jamais
encontrá-la,
mas
da
qual
guardou o culto. Entretanto, seu verdadeiro pai será o filho de seu senhor paulista, educando-o, formando-o, fazendo-o seguir (50)
104
G.
FREYRE,
op.
ctt.,
pp.
295-300.
seus
estudos,
moldando
sua
inteligência
e suas
sensibilidades.
segundo normas européias.
Ésses dois grandes líderes do aboli-
lidade à sua mãe
representam
cionismo, um por fidelidade à sua nutriz negra, o outro por fideescrava,
admirâvelmente,
ainda
que sob uma forma inversa, êsse drama da dupla paternidade, que ainda não encontrou seu analista. Cremos, de fato, que é por meio dos conceitos psicanalíticos.
de “superego”,
de identificação, de narcisismo,
muito mais do
que através dos processos de imitação, de aprendizagem, de adap-
tação, de sugestão, que se pode definir os mecanismos psíquicos.
da aculturação. heterogêneos
O que colaborou
da sociedade
das as camadas
brasileira,
para unificar os elementos a propagar
da sociedade os mesmos
através
de tô-
valôres, foi o fato do
branco, vivendo numa família de tipo patriarcal, e o negro, num tipo de família matriarcal, interiorizarem o mesmo pai. E inte-
riorizando o mesmo pai, interiorizaram sua cultura, sua concepção do mundo e da vida, seus quadros de referência e suas nor-
mas. A separação que Freud propõe entre o “ego” e o “superego” traduz-se assim principalmente para o negro, mas também para. o branco criado pela mãe negra, entre a estratificação das duas civilizações, a maternal, africana, repelida no inconsciente,
onde
toma o caráter “estranho” do “recalcado”, sem por isso deixar
de atuar
no
“ego”,
e a dirigente,
constrangedora,
mesmo
com
uma ponta de sadismo, a civilização paterna do luso. Isso fêz com que o branco ouvisse sempre do fundo dos turbilhões, dos redemoinhos, dos abismos líquidos do inconsciente, o canto fas-
cinador das sereias negras,
e que o negro,
como
nôvo Narciso,
inclinando-se sôbre as águas da vida para melhor se conhecer,
via-se branco. Na verdade, êsses fenômenos tornavam-se muito mais profundos e sólidos na medida em que passavam da periferia ao
centro da vasta família senhorial, dos negros do campo agrupados nos quartos da senzala pouco ligados a êsse núcleo, aos negros crioulos, vivendo na Casa-grande, no mesmo ritmo que os brancos. Entretanto, todos os escravos deviam, antes de dor-
mir, reunir-se para receber a bênção do senhor, louvá-lo por
um
“Bendito
seja
Jesus
Cristo,
nosso
Senhor”,
de
maneira
perpetuar, a manter em seu interior a imagem do pai branco. (*!)
a
A identificação foi, pois, mais ou menos bem sucedida segundo
as classes de escravos; em umas “recalcou” as civilizações nativas; em outras, onde êsse recalcamento não foi bem realizado, deu-lhe
La
(51) D. P. KIDDER, Reminiscências Esclavitud y su Abolición, p. 1213.
de
Viagens,
p. 203.
Alvim
PERCY,
105
sômente um caráter de estranheza; enfim, no grupo dos africanos puros, chegados ao Brasil quando já eram adultos, o pai não
pôde ser interiorizado, foi apenas acrescentado, afixado de fora, sem alterar suas civilizações nativas, impondo-lhes só um contrôle, que era preciso lograr, pondo-se u'a máscara branca nas
cerimônias negras. Em segundo lugar, devemos notar que êsse processo de interiorização sômente vale para o dualismo senhores-escravos. Mas,
entre êsses dois pólos da sociedade, existiu uma camada intersticial, a dos “colonos”, dos “agregados”, dos “protegidos”, dos pequenos proprietários livres. Antônio Cândido observou com
justa razão que os sociólogos negligenciaram o estudo dessa classe intermediária. (*2) Originâriamente, essa classe era pouco
numerosa de
e estava muito ligada à família senhorial por laços
dependência,
de
compadrio,
de
proteção
e de
subordina-
ção.(º%º) Pouco a pouco ela se desenvolveu pela dupla mestiçagem do branco com o índio e com o africano, para constituir entre.as células ganglionares do país, isto é, as grandes famílias latifundiárias, tôda uma rêde, ainda que frouxa e descontínua, de camponeses miseráveis, analfabetos, isolados, frequentemente móveis.
Econômicamente
a
uma
bordinada, formando uma clientela dos clãs senhoriais,('')
essa
agricultura
de pura
autônoma,
subsistência
abandonando-se
familiar,(**)
politicamente
su-
classe que não tomou importância a não ser no fim do século XVIII,
escapou
dêsses
processos
de
aculturação;
sua
cultura,
feita com os restos de tôdas as civilizações propõe-nos, conse-
quentemente, outros problemas.
Nós os examinaremos posterior-
mente quando estudarmos as religiões afro-brasileiras rurais. e ae
ak
A urbanização, como dissemos mais acima, fragmentou esta
integração da família patriarcal do século XVII e comêço do século XVIII. A rua, vencendo o sobrado, ocasionou uma dupla solidariedade: de um lado, a solidariedade dos senhores, cuja (52) Antônio CANDIDO, “O Estado Atual e os Problemas mais Importantes dos Estudos sôbre as Sociedades Rurais do Brasil”, XXI Congr. Int. de Americanistas, p, 322. TOLLENARE sentiu a importância dessa classe média e deplorou o fato de ela ter sido deixada no abandono, porque formaria a base de um Brasil melhor equilibrado, parte inédita do manuscrito de Notas Dominicales, Biblioteca Baint-Geneviêve. (53) Oliveira VIANNA, Populações Meridionais do Brastl, cap. IV. (54) Sôbre a ligação entre essa classe intersticial e o desenvolvimento das culturas de subsistência, ver Calo PRADO Júnior, História Econômica do Brasil, pp. 49-52, (55) O. VIANNA, Op. cit., caps. VII e VIII.
106
primeira civilização arcaica refinou-se ao contato com as modas, as idéias e os valóres importados da Europa, e do outro, a solida-
riedade dos escravos, dos negros de ganho, dos membros de “nações”, cujas perdas culturais eram sem cessar compensadas
por novos apontamentos da África.
Mas, aqui, também, contra-
riando êsse dualismo, freando o processo de constituição de cul-
turas antagônicas,
para restabelecer uma
certa unidade,
houve
um fenômeno de compensação que Gilberto Freyre estudou no livro que seguiu Casa-grande e Senzala, ou seja, Sobrados e Mucambos. De fato, a sociedade brasileira sempre conheceu os dois movimentos
antitéticos,
um
centrífugo,
o da formação
de culturas separadas, o outro, centrípeto, de integração dessas
civilizações numa civilização mestiça, mais branca do que índia ou negra, visto que era a classe branca que tinha os meios de comando, o status mais elevado, e que de alguma forma mane-
java os mecanismos de sincretização. A miscigenação ganhou crescente importância no curso do século XIX.
As
estatísticas mostram-nos,
mento do tráfico negreiro que conheceu
não
obstante
o au-
o esplendor antes de
desaparecer, a preponderância crescente do mulato, senão sôbre o branco, ao menos sóbre o negro puro: BRANCOS
MESTIÇOS
NEGROS
ÍNDIOS
1835
845 000
(24,4%)
648 000
(18,2%)
1 987 000
(51,4%)
1872
3 818 403
(38,1%)
3 833 015
(38,4%)
2 970 509
(16,5%)
(7%)
1890
6 302 198
(44,0%)
4 638 495
(32,0%)
2 097 426
(12,0%)
(12%)
mais
?
Mas essa miscigenação faz-se agora num clima diferente, sentimental, mais colorido de cristianismo; a vontade de
desenvolver o capital humano não obnubilou o senso das responsabilidades paternas, a afeição do pai por seus filhos ilegítimos, o cuidado
de sua educação
e de
sua colocação
na sociedade
principalmente quando eram filhos de sacerdotes (como José do
Patrocínio, um dos mais brilhantes jornalistas do Brasil imperial)
que gozavam de situação privilegiada. (*8) Em 1774, uma lei dava
aos mestiços acesso a todos os postos, “honrarias e dignidades”,
dos quais só os negros estariam excluídos.(*7) No século XIX, vemos certas confrarias abrirem-se democrâticamente a tôdas as (58) (57)
Osvaldo ORICO, Patrocínio, 2º ed. de O Anais da Biblioteca Nacional, XXXVIII,
Tigre 1913,
da p.
Abolição. 85.
107
côres.(58)
A classe artesanal das grandes cidades constitui-se de
negros livres e, sobretudo, de mulatos, alfaiates, sapateiros, cabe-
leireiros, pedreiros e vendedores ambulantes. O exército, mais particularmente, é o grande canal de ascensão dos mestiços. De imediato, essa classe intermediária distingue-se da classe de escravos por certos símbolos, dos quais o mais insignificante não é certamente o uso de calçado, os sapatos pequenos ressaltando a diferença do pé do mulato face ao pé do mestiço, pesado, grosseiro do homem que trabalha nas plantações.(**) A abertura de colégios, de academias, vai permitir a constituição, para os bastardos dos senhores, protegidos e ajudados por seus pais, de uma
pequena burguesia de côr, formada de médicos, de engenheiros, de advogados, de jornalistas, de romancistas ou de poetas, todos
admirâvelmente
trajados, os cabelos alisados e untados de óleo
de côco, bons oradores,
galantes e bajuladores.
O romantismo,
preconizando o direito ao amor da mulher, a santidade da paixão
contra os preconceitos dos casamentos impostos, arranjados pelas famílias, auxilia a aproximação sexual das côres; ao concubinato entre o branco e a negra, vai suceder, ao menos para essa classe de intelectuais, de “bacharéis” e de “doutôres”, a possibilidade de casamento legal entre a mulher branca e o mulato claro.
A família real brasileira ajudou com todo o seu poder esta polí-
tica de integração dos mulatos bem sucedidos e dos negros inteligentes, recebendo “doutôres” e “bacharéis” de côr, frequentemente funcionários da Côrte, eleitos às vêzes deputados, em seus salões, em seus bailes, nas cerimônias do “beija-mão” do imperador, outorgando-lhes, como aos brancos, títulos de nobreza por
serviços prestados e criando o que na época se chamou de ““barões chocolate”.(ºº) Mas era evidente que essa ascensão só se podia fazer pela adesão dêsses elementos aos valóres e aos ideais europeus, pela
rejeição das civilizações africanas e total assimilação à cultura branca.(*!)
A mobilidade vertical do mulato, ou do negro livre,
golpeou, portanto, as sobrevivências religiosas africanas e contra(58) (59)
ver
G.
G. FREYRE, 0p. cit., p. 98. Sôbre êsse simbolismo dos sapatos,
FREYRE,
op.
cit.
pp.
e
Prêtos
329-30.
como
GAFFER,
marca
do
Visions
du
status
Brésil,
social,
p.
203.
C. SEIDLER, Dez Anos no Brasil, p. 237. DEBRET, op. cit., p. 205. EKIDDERFLECHTER, op. cit., p. 148. (60) Sôbre a ascensão do mulato, ver G. FREYRE, op. cit., II, cap. XI.
D.
PIERSON,
t.
1,
do
Povo p. (61)
negros
Poesia
108
Brancos
Brasileiro,
p.
157
e segs.
187, e t. II, p. 116 Daí a importância
livres,
como
Ajro-brasilsira).
na
Bahia,
Pedro
e segs. da Arte
expressão
de
e
sua :
cap.
CALMON,
da
VII.
Literatura
total
O.
VIANNA,
História
para
assimilação
Social os
(R.
Evolução
do
mulatos
Brasil, e
BASTIDE,
os
A
balançou o outro efeito da urbanização:
a separação da civiliza-
ção dos sobrados da civilização dos mucambos, a dos bailes dos salões da dos batuques de rua, a da classe burguesa daquela das “nações”.
Mas o que nos interessa nesse livro, não é tanto êsse movimento de ascensão social, e sim os seus efeitos na perpetuação
ou nas metamorfoses das religiões africanas.
Portanto, precisa-
mos aqui fazer duas observações importantes. Esta ascensão foi de indivíduos enquanto indivíduos e não
de um grupo social enquanto grupo.(%) O paternalismo brasileiro certamente não responde a uma política refletida, desejada,
sistemática; êle é espontâneo, é a resposta afetiva do “homem cordial” a uma dada situação social. Isso dito, para reabilitá-lo de tôda acusação de hipocrisia, não deixa de permanecer o fato de que a ascensão do mulato ou do negro crioulo se fazia segundo
critérios escolhidos pelos senhores, e que continuou sempre sob o contrôle dos brancos. Sem dúvida, conforme a inteligência dos
protegidos, ou suas qualidades pessoais, suas aptidões profíssionais, sua habilitação, como também segundo qualidades morais,
o respeito aos valôres estabelecidos, o sentimento de gratidão ao pai, ao padrinho, ou ao protetor, a arte de “pôr-se em seu lugar”. Não só a ascensão era individual mas também pro-
gressiva, processava-se em geral segundo a distância em geração
da classe de escravos africanos, ou segundo a côr da pele, favo-
recendo os mais claros, os que tinham cabelos lisos e nariz aqui-
lino, em detrimento dos mais escuros, de cabelos crespos e nariz chato.(*º) Por conseguinte, ela não podia senão comparação, ou por contraste, o abandono em que escura, a massa de negros importados. Em suma, lismo certamente ajudou a assimilação ou o triunfo dos brancos, mas também fragmentou a sociedade ras,
retalhando-a
em
uma
série
de
segmentos
ressaltar, por estava a plebe êsse paternada civilização em subcultu-
hierarquizados,
porém não juntos. A ascensão do mulato não foi senão a contra-
partida da indiferença para com as medidas propostas, de início,
por José Bonifácio,(**)
depois, pelos positivistas brasileiros, a
favor de uma política educacional de todo o grupo negro a fim
de elevá-lo coletivamente na sociedade, e não mais privá-lo de (62) (63)
R. A
BASTIDE e importância
F. FERNANDES, Relações dos cabelos bem “lisos”
Raciais, ou do
pp. 124, 141, etc. nariz afilado no
Brasil é muitas vêzes maior que a da côr da pele. PIERSON, Op. cit., p. 201. WAGLET (org.), Races et Classes dans le Brésil Rural, p. 100. (64) Pode-se ler o projeto de José BONIFÁCIO em Antologia do Negro Brasileiro de É. CARNEIRO, pp. 13-7, em particular os arts. 10-27-28. Sôóbre a ação dos ooo ver o nosso artigo na Revista Mexicana de Sociologia, VIII, 3, pp. 371-88. .
109
seus melhores elementos —
a brilhante contrapartida do aban-
dono da massa escravizada, dividida em “nações” rivais para não inquietar os senhores, e relegada aos batuques para que aí encontrasse uma distração de sua triste sina. Isso fêz que em 1888,
quando
o trabalho servil seria definitivamente
abolido,
a
sociedade brasileira, não obstante sua aristocracia de côr, não formasse uma sociedade homogênea, mas uma sociedade desfeita em partes separadas, isoladas, cada qual portadora de uma civili-
zação diferente.(%) Isso explica por que as religiões africanas puderam manter-se em certos segmentos dessa sociedade com
relativa fidelidade, já que êsses setores não eram atingidos pelo
movimento de capilaridade. A segunda observação é que o paternalismo, ao contrário do que alguns pensam, não é a marca de uma ausência de precon-
ceito, pois que a seleção se faz segundo a côr da pele. Ao contrá-
rio, êle desenvolveu-o, a princípio no grupo dos “pequenos bran-
cos”, criando entre êles um estado de insegurança, de desconfiança, de insatisfação, à medida em que viam homens de outra raça
subirem mais alto que êles, e finalmente vencê-los na luta pelo status econômico e social. Os psicólogos mostraram bem a-re-
lação que existe entre os sentimentos de agressividade e os de
frustração, como também a origem do complexo do “bode expiatório” para que seja preciso insistirmos nesse ponto.(8%) O
preconceito foi, nessa primeira classe, uma arma de defesa, ou
uma desforra compensatória contra a política dos senhores. Mas
êle devia também, obrigatóriamente, irromper nesta segunda clas-
se, como a técnica de contrôle da mobilidade vertical.
Essa mo-
bilidade fôra desejada, mas comportava perigos; não se podia deixar essa ascensão transformar-se numa tempestade que levaria consigo os privilégios do grupo branco; era preciso também lembrar no momento oportuno ao mulato “bacharel”, ou ao negro “doutor”, que êle devia tudo à boa vontade de seu senhore que êle não tinha o direito de esquecer êsse fato. Para isso foi preciso a alternância de uma política de comportas abertas e outra de comportas
fechadas.
Daí, as medidas
discriminatórias,
que
não estão de nenhum modo em contradição com o paternalismo, mas que constituem, pelo contrário, a contrapartida obrigatória. Um
viajante tão observador como
Saint-Hilaire notou tal coisa
no comêço do século XIX, pelo menos no que diz respeito ao (65)
V. SODRÉ,
op.
ctt., p. 222.
of
(68) Contentar-nos-emos Prejudice, A. Welsey Co.
208
pp.,
International
t10
Understanding,
e, sobretudo,
em citar Gordon W. ALLPORT, The Nature 1954, Otto KLINEBERG, Tensions Ajfecting
Social
J. DOLLARD,
Science
op. cit.
Research
Council,
Bol.
62,
1950,
negro livre; êle chama a atenção para o número de negros ou de mulatos que se enriquecia, ser muito restrito e acrescenta: se
êles sobem um pouco alto demais, a astúcia dos brancos bem depressa os remete ao ponto de origem.(º”)
Podemos seguir no livro de Gilberto Freyre, que pinta ent
córes idílicas esta ascensão do mulato ou do bacharel de côr, as
etapas da política antitética de que é o corolário a proibição aos
negros, no século XVIII, de coroar seus reis do Congo,
de pos-
suir escravos, de escolher padrinhos em sua própria raça, sepa-
ração dos doentes nos hospitais segundo a côr, espirros ou zombarias em voz alta no teatro, quando aí surgia um negro de
cartola
e sobrecasaca
maçônicas dessas
de cerimônia,
interdição
de certas
ou de certos clubes políticos aos mulatos.
medidas
certamente
atingiram
mais
os negros
lojas
Muitas
livres ou
os mulatos escuros que os mulatos claros, mas ainda assim faziam
com que êsses últimos sentissem a insegurança de sua posição, desenvolvendo nêles um preconceito contra o negro ainda mais forte que aquêle que o branco podia ter, originando, enfim, mui-
to mais entre os mulatos que entre os negros puros, um complexo de inferioridade ou de “marginalismo”. mulato,
ferido
em
sua suscetibilidade
Isso explica por que o
desconfiada,
ou
não
che-
gando a satisfazer inteiramente suas ambições, podia voltar para
a classe dos negros, tomando aí a liderança, ou para encontrar
a posição de superioridade que lhe era negada noutro lugar. De fato, observando bem, não se trata tanto do mulato que
ascende, quanto do mulato “bacharel”, protegido pelo senhor. Porém, terá abaixo de si a multidão sempre crescente dos mulatos que não têm nenhuma possibilidade de realizar suas ambições imiscuindo-se nos interstícios do grupo branco. A religião africana
se abrirá
a êsses mulatos,
permitindo-lhes,
sobretudo
nas seitas bantos ou nos terreiros de caboclos, aí ocupar importantes posições sacerdotais.
Não devemos esquecer a resistência dos cabras dos engenhos, quase todos mulatos ou cafusos, nem a dos carregadores de nossas cidades, mulatos em sua maioria... Os próprios líderes das tradições religiosas
que
o negro
conserva
como
algo
de intimamente
seu, hoje
são mulatos. Alguns dêles já bem desafricanizados em seu estilo de vida, mas que se reafricanizam indo estudar na África, como o Pai Adão de Recife que se iniciou como pai-de-santo em Lagos e que falava o africano com a mesma facilidade que o português. (88) (67) SAINT-HILAIRE, Voyages dans les Provinces t. II, cap. 11. Sôbre os negros ricos, Wanderley PINHO, (68) G. FREYRE, op. cit., III, p. 1069.
de Rio de Janetro, op. ctt., p. 166.
111
Mas se excetuamos o Pai Adão que fôra à África para aí
beber na própria fonte das religiões africanas, são êsses mulatos,
em
parte já desafricanizados no seu estilo de vida, como
diz
Gilberto Freyre, que adulteraram mais profundamente os cultos, nêles introduzindo suas próprias concepções estéticas, como Joãozinho da Goméa, ou sua meia etnia européia, como os fundadores
do espiritismo de Umbanda.
112
CAPÍTULO
III
O Protesto do Escravo e a Religião A conclusão que se depreende do capítulo anterior é que a civilização africana (e a religião é dela parte integrante) tornou-se no Brasil, para empregar uma expressão norte-americana, uma “subcultura” de grupo.
Ela vai, pois, encontrar-se presente na
luta das classes, no dramático esfôrço do escravo para escapar
a um estado de subordinação ao mesmo tempo econômico e social. Somos assim levados a estudar a resistência do negro ao trabalho servil e seu protesto racial. Este protesto tomou formas individuais e formas coletivas,
desde o assassínio do senhor branco
até a insurreição à mão
armada, desde a fuga de um escravo assustado pelo pensamento
do castigo até a formação de quilombos. Veremos posteriormente
essas formas coletivas e como frequentemente se condensaram em tôrno de um centro religioso. Em compensação, o elemento místico estava quase sempre ausente na resistência ou na fuga individual. Damos alguns exemplos: em Vila Rica, os efcravos
de José Thomas de Mattos, para vingar-se das chicotadas, no momento de receber a bênção da tarde, precipitam-se sôbre o
fazendeiro,
lheres,
matam-no
furam
assim
os olhos,
como
esquartejam
a seu
filho,
os corpos
violam
as mu-
e acabam
por
lançar os cadáveres aos formigueiros para serem devorados pelas formigas.(!) No Rio Grande do Sul, Gomes tendo orde-
nado a seu escravo Jesuíno matar seu rival em amor, e êste tendo se recusado, aplica-lhe seu chicote. Jesuíno volta-se e crava sua faca no coração de Gomes.(2) Esses são os tipos de
assassinatos de brancos, o produto da raiva guardada no cora-
ção,
ou
a reação
imprevista
a uma
ofensa
inopinada.(*)
O
(1) E. Th. BOSCHE, Quadros Alternados, p. 116. (2) Cf. EXPILLY, Le Brésil tel qu'il est. (3) Encontrar-se-ão outros exemplos em TSCHUDI, Reisen durch Sud Amerika, II, p. 76. COUTY, L'Esclavage au Brésil, .p. 78, R. I. H. G. 5. Paulo, XXXV, p. 145. SANTOS VILHENA, Recopilação, I, p. 138. TAUNAY, Em Santa Catarina, p. 380. D'ASSIER, Le Brésil Contemporain, pp, 97-85, Estudos Ajro-brasileiros, p. 125. Novos Estudos, pp. 73-4. J. DORNAS Filho,
113
elemento
religioso
não
parece
intervir
senão
entre
os
negros
muçulmanos que não podem suportar o fato de serem dominados
pelos cristãos. (*) Em todo caso, o branco sente mêdo.
E êsse mêdo
ta à medida que o número de escravos cresce. derivar
a violência
do
escravo
para um
outro
aumen-
É preciso, pois, objeto,
e tôda
uma estratégia vai aparecer, a qual poderíamos chamar de estratégia da frustração; para descrevê-la, é necessário ater-se às
categorias dos psicanalistas, porque o problema é derivar o ódio contra o senhor branco fornecendo-lhe um substituto menos
perigoso para a sociedade.
O primeiro substituto é o próprio
negro. Dollard mostrou que no sul dos Estados Unidos os conflitos entre negros são bastante numerosos e que são precisamente derivativos da agressão impossível contra o branco.(º*)
Do mesmo modo, da época colonial que surgiam entre se voltava o ódio
no Brasil, todos os viajantes e historiadores são unânimes em falar de querelas incessantes as diversas nações africanas.(*) Ou, então, do negro contra o índio opondo as duas raças
uma contra a outra.
Entretanto,
êste ódio não era natural.
Nos
quilombos, nós o veremos, negros e indígenas se mesclarão fra-
ternalmente; Saint-Hilaire fala mesmo várias vêzes da predileção das índias pelos negros.(”) Mas os brancos formavam
ameríndios, negros 4
como
também
fugitivos.(*)
Escravidão
no
encarregavam
Em
Brasil,
pp.
batalhões de negros para caçar
caso
148,
êstes de capturar os
de guerra contra o estrangeiro,
224-26.
WALSH,
Notices,
II,
p.
360.
SAINT-
estavam
filiados
-“HILAIRE, Voyage dans les Provinces de Rio de Janeiro et Minas Geraes, I, p. 567, II, p. 454. Mello BARRETO Filho e Hermito LIMA, História da Polícia do Rio de Janeiro, 3 vols., 1939-1944, etc, (4) Jesuíno era muçulmano. LANGSDORFF, citado por TAUNAY, Em Santa
Catarina,
p.
380,
afirma
que
no
Rio
todos
os
escravos
a sociedades secretas cujos presidentes eram negros livres e que os homicídios misteriosos explicam-se por esta maçonaria negra, o que foi demonstrado ES falso. Phi também J. WETHEREL, Brazil, p. 138. Avé-LAILLEMANT, €,
(5)
PD.
.
DOLLARD,
Caste and Classe in a Southern Town, Yale Unlyv. Press, 1937.
(6) FLETCHER e KIDDER, Brazil, p. 124. O. P. EIDDER, Reminiscências, II, p. 45. H. ROSTER, Voyages Pittoresques, I, p. 58, II, p. 28 (aqui luta entre escravos de fazendas diferentes e entre escravos e negros livres). Luís
EDMUNDO,
O
Rio
de
Janeiro
no
DENIS, Brésil, p. 113. D'ASSIER, Le Recopilação, p. 136 (disputas entre
Tempo
dos
Vice-reis,
p.
24.
Ferdinand
Brésil contemporain, p. 199. VILHENA, nações e entre crioulos e africanos).
Rocha POMBO, História do Brasil, II, p. 542. (7) SAINT-HILAIRE, Viagem ao Rio Grande do Sul, p. 387; Voyage auz Sources du Rio S. Francisco, IX, pp. 354-59. O caso oposto. também existe, o do cruzamento entre o índio e a negra, mas é pouco espontâneo (cf. RUGENDAS, Viagem Pitoresca, p. 127); êle é obra da vontade do branco que
quer
assegurar-se
assim
um
aumento
de seu
braço
servil, o filho seguindo
a condição da mãe, R. I. H. G. S. Paulo, XXXVI, 1939, p. 112. Mello MORAES Filho, Quadros, p. 382. (8) Sôbre a captura dos negros pelos índios, ver F. de ALMEIDA PRADO, Pernambuco, p. 286. Fr. VICENTE DO BALVADOR, História do Brasil, p. 369. J. DORNAS Filho, 4 Escravidão, p. 208.
114
todo o furor do escravo era usado igualmente contra o inimigo da pátria, e assim é que vemos formarem-se regimentos de afri-
canos e de mulatos com seus oficiais próprios
(chamava-se-lhes
os “Henriques Dias” por causa do grande chefe negro da guerra
holandesa); êsses regimentos tomaram parte ativa em tôdas as batalhas brasileiras contra os batavos por exemplo, contra os franceses de Duguay-Trouin, ou na Guerra dos Farrapos. (º) Mas não se tem sempre um inimigo branco contra o qual derivar o ódio racial do escravo. Nesse caso, usa-se o Ódio contra os inimigos interiores, e é dessa maneira que o negro surge em tôdas as revoltas civis, nas guerras dos Paulistas contra os Emboabas, (1º) nas guerras da independência nacional, (!!) na luta dos partidos no Império, entre monarquistas e republicanos,(!2) ou nas rivalidades dos homens políticos entre si.(!3)
Mas usou-se igualmente de um outro processo, nós o dissemos, que tem seu paralelo na Psicanálise, ou seja, o desdobra-
mento
do senhor
inventa um
branco.
Da
mesma
forma
que o paranóico
romance familiar, onde desdobra seu pai em dois, O
pai bom, nobre ou rico, que é imaginário, e o pai verdadeiro que é para o doente um pai artificial e mau, o que lhe possibilita sair da ambivalência do sentimento: filial, ao mesmo tempo de
ódio e de respeito,('!) do mesmo modo o negro se encontrava
em presença de dois homens, o senhor que lhe dava a bênção no
crepúsculo, permitindo-lhe por vêzes dançar à noite, e o feitor, sempre armado de um chicote, mais cruel quando era um mulato desejoso de acentuar que êle pertencia a uma outra raça, ou um negro às vêzes escravo, cioso de sua autoridade. Assim, a ambivalência dos sentimentos do escravo podia se esclarecer, O
respeito sendo dirigido ao senhor branco, o ódio, ao feitor; mui-
tos dos crimes de negros voltavam-se Unicamente contra os feito(9)
Sôbre
o papel
POMBO, História 244-45, 322, 389-97.
do
do Brasil, Dante de
negro
na
II, p. 55, LAYTANO,
defesa
militar
do
Brasil,
ver
ROCHA
Brito FREYRE, Nova Lusitania, “O Negro e o Espírito Guerreiro
pp. nas
Origens do Rio Grande do Sul”, B. 1. H. G. do Rio Grande do Sul, XVII, 1937, pp. 95 e 117. “Como Saint-Hilaire Viu o Negro no Rio Grande do Sul”, Anais, III Congresso Sul-rio-grandense de História, p. 22. Novos Estudos,
(10) (11)
p.
15-11-1942,
da
37.
Nelson
de
SENNA,
Africanos
no
Brasil,
pp.
45-6.
Diogo de VASCONCELOS, História Antiga das Minas, p. 325. Nestor ERICESEN, “O Negro na Revolução dos Farrapos”, Planalto, p. 12, Aydana
do
COUTO
FERRAZ,
“O
Escravo
Negro
Independência da Bahia”, R.A.M.S.P., LVI, pp. 195-202. (12) G. PEREIRA DA SILVA, Prudente de Moraes, o
216-18. (13)
Braz do AMARAL, História COUTY, L'Esclavage au
Geral, 11, p. 178, (14) BR. BASTIDE, “Introduction -brésiliens”, op. cit., pp. 22-31.
da Bahia, Brésil, p.
à l'ftude
p. 331. 84. Mello
de
na
Pacificador,
MORAES,
Quelques
Revolução
pp.
Crônica
Complexes
Afro-
115
res.(15) No Império, existiu uma outra instituição que levou ao mesmo resultado, a do apadrinhamento. O padrinho do es-
cravo defendia-o contra a brutalidade de seu senhor, ou impedia-o de ser castigado se fugisse. A dualidade agora funcionava entre o padrinho amado e o senhor detestado.(!º) Nos conventos,
o regime servil era geralmente mais brando, mas não necessáriamente; houve escravos mortos pelos abades e os sacerdotes casa-
vam mulatos claros com pessoas muito mais escuras, para que os
filhos fôssem
bem
negros,
e não pudessem
pretender passar a
linha de côr. Daí a necessidade, aqui também, de uma dualidade
do senhor, e esta era a do abade e do santo:
Os negros dizem que não são escravos dos monges, mas de São Benedito, do qual os frades são apenas os representantes. (17)
No
fim
do
período
escravista,
o Ódio
sempre
ameaçador
devia encontrar um nôvo derivativo. Para substituir a mão-de-obra servil que estava a ponto de desaparecer, apelou-se para a imigração européia. O exército do Brasil compreendia também mercenários estrangeiros, principalmente alemães.
Os negros não
acharam coisa melhor do que chamar os recém-chegados de ““escravos brancos”, alegraram-se em ver pessoas da mesma côr que
seus senhores trabalharem ao seu lado, viver em casas que pare-
ciam senzalas, encontrando nesse fato uma espécie de desforra contra sua sorte. E quando alguns dêsses brancos se revoltavam e os negros foram chamados a esmagar a revolta, êles o fizeram
com uma crueldade tão selvagem, que não há aqui outra explica-
ção possível que a do alemão, no caso, aparecer como substituto do senhor branco. (1º) (15)
COUTY,
L'Esclavage
feitor pode ser, em uma outra Voyages Pittoresques, II, p.
Barros LATIF, pp. 181-82. (16)
4s
Minas
KOSTER,
au
Brésil,
Gerais,
Voyages
p. 84.
...
um
negro
que
matou
um
fazenda, um excelente escravo, D. 79. ROSTER, 380, Documentos Interessantes, LVII, p. 147.
p.
169.
Pittoresques,
I,
RUGENDAS,
p.
340.
Viagem
Ferdinand
Pitoresca,
DENIS,
Brésil,
pp. 142, 146. RIBEYROLLES, Brésil Pittoresque, p. 45. Cf. EXPILLY, Le Brésil tel qu'il est, cap. VI. ' (17) Sôbre a escravidão nos conventos e esta dualidade do senhor, ver
KOSTER,
Voyages
do
p.
Pittoresques,
IX,
pp.
45,
369-72.
Brasilianische
Zustânde,
p. 50. B. P. KIDDER, Reminiscências, II, p. 142. HANDELMANN, História do Brasil, p. 375. J. DORNAS Filho, 4 Escravidão, p. 243. A. GRANT, História Brasil,
104.
G.
FREYRE,
Casa-grande,
no
II,
pp.
315-16
(diferenças
da
sorte
dos escravos segundo os conventos, a multiplicação dos jejuns mais por motivo econômico que religioso), e Sobrados, p. 340 (as experiências genéticas dos jesuítas). F. CONTREIRAS RODRIGUES, Traços da Economia, pp. 63-4. Do ponto de vista católico: P. SERAFIM LEITE, História da
Companhia
de
Jesus
Brasil,
Pp.
357-59.
(18) As Memórias de um Colono de DAVATZ são sintomáticas desta primeira mentalidade do fazendeiro, ainda habituado à escravidão e que vê no imigrante um substituto do escravo, pp. 84, 114, 123, 215, 262. ESóbre o apêlo aos negros contra os colonos, tbid., p. 269. Sôbre os massacres dos soldados alemães pelos negros, ver E. Th. BOSCHE, Quadros Alternados, D. 102. Ferdinand DENIS, Brésil, p. 154.
116
Por fim, ao lado da derivação, há a sublimação da agressividade frustrada. Sublimação da luta violenta que se torna um
jôgo, a capoeira.
Sublimação do ódio racial que se torna um
Teremos de voltar a essas manifesta-
motivo literário, o desafio.
ções que envolvem às vêzes protestos religiosos. No momento só estudaremos a mais curiosa dessas formas sublimadas: o Tes-
tamento de Judas.
“Trata-se de um velho costume português que passou à colônia.(1º) Consistia de, no sábado de aleluia, passear pelas ruas da vila ou da cidade um homem de palha, representando Judas, e finalmente queimá-lo, afogá-lo ou enforcá-lo. O Judas devia se tornar o substituto das autoridades, e um meio para a grande massa se livrar, simbôlicamente,
de seus complexos
de inferiori-
dade. Mas, no Brasil, onde a estratificação das idades, dos sexos, dos clãs e das raças era particularmente pronunciada, êle produziu também curiosa estratificação do costume. Assim, no Rio,
havia o Judas da córte com fogos de artifício oferecidos pelo imperador; havia o Judas da classe média dos brancos, em particular
dos
empregados
em
casas
de
comércio
e que
consistia
também de fogos de artifício, representando Judas enforcado pelo Diabo, e o Judas dos moleques de rua, onde os negrinhos
pareciam
ser mais
numerosos
que os meninos
brancos;
havia,
a uma
árvore
enfim, o Judas dos negros e dos mulatos escuros, cheio de bombas, que era preparado
à noite, que se prendia
e que finalmente se fazia explodir.(2º) Se os brancos com isso se livravam de seus protestos frustrados, ou dando aos bonecos a aparência de pessoas importantes do govêrno (por exemplo no
Rio
em
1831),(*!)
ou distribuindo nas casas Testamentos
Judas, ridicularizando os grandes
senhores do lugar,(22)
de
com
mais razão o negro aí devia livrar-se de sua agressividade racial,
e disso temos uma prova no fato de que êle representava Judas
em
(19) R.AM.S.P., (VI, p. 70. efígie (queima de estátua)
judeus
ao
catolicismo
A do
origem judeu.
(cristão-novos),
ou
dêste costume é o auto-de-fé Depois, com a conversão dos
da
fuga
de
Portugal,
a
do judeu foi substituída pela de Judas. Marianne BAILLIE deixou descrição desta cerimônia em Lisboa na sua obra Lisbon in the Years 1822
e 1823, 1, p. 67. (20) DEBRET, Viagem,
II,
p.
198,
para
a
oposição
entre
o
efígie
uma 1821,
Judas
da
côórte da classe média e da classe pobre. KIDDER, Brasil, para o Judas dos negros, p. 120. A gravura 21 das Voyages de DEBRET mostra bem & separação dos negros e dos brancos na festa de Judas. Cf. SAINTCHILAIRE, Voyages dans les Provinces de Saint-Paul, II, pp. 195-96. (21) DEBRET, op. cit., cita uma proibição de 1863: “Todos aquéêles que no
sábado
de
Aleluia
fizerem
um
G. BARROSO,
Através
dos
Judas
semelhante
a
qualquer
pessoa
serão punidos com uma multa de 30 84”. Cf. R.A.M.S.P., LVI, p. 70. F. DENIS escreve em 1837: “Ora a alusão é geral e se dirige a tôda uma classe, ora torna-se pessoal e é frequentemente uma observação política que se faz a grandes personalidades”, F. DENIS, Brésil, p. 135.
(22)
Folklores,
pp. 40-2.
117
como um homem torturado por um Diabo negro.(**) Dupla vingança para êle. É um branco, Judas, quem traiu Cristo, e são êles, os negros, que são chamados de diabos, por causa de sua côr, que servem de instrumentos à justiça divina. Todo êsse jôgo subterrâneo de sentimentos não impedia,
entretanto, que surgissem de vez em quando insurreições gerais
dos homens de côr. Mas, para poder passar do ódio individual à resistência coletiva, era preciso evidentemente uma espécie de catalisador comum. Logo veremos que a religião foi precisamente êsse catalisador. O negro tinha um outro meio de protestar contra a escravidão: escapando. Essas fugas no comêço e mesmo depois, no
Império, foram individuais. está ausente.
ganhava
do
Nesses casos, o elemento religioso
O escravo culpado, que queria escapar ao castigo,
à noite a floresta e aí se perdia.(?!)
Mas, principalmente no período colonial e mesmo no início século XIX, êsses fugitivos, para evitar serem presos no-
vamente,
para escapar também
uma existência vêzes de índios Dessa maneira, pouco a pouco,
aos perigos de enfrentar a sós
difícil na floresta cheia de animais selvagens, às desconhecidos, tomaram o hábito de se reunir. formava-se um pequeno grupo que aumentava a ponto de formar verdadeiras cidades: são os
quilombos ou mocambos. Nessas repúblicas negras, sobretudo quando o fugitivo era um recém-chegado da Africa, os antigos costumes
tribais ressuscitavam,
e, por
conseguinte,
aqui
ainda,
como para o caso da agressão, a passagem do individual ao coletivo se faz, ao menos em parte, sob a égide da religião.
Todavia, antes de abordar êsses dois grandes fenômenos de
resistências
coletivas,
os quilombos
e as insurreições,
devemos
dizer ainda uma palavra sôbre uma terceira escapatória possível à escravidão: o suicídio.
A permeabilidade ao suicídio era como a tendência à agres-
são, variável
moçambique
segundo as etnias; o mina mata,
suicidam-se.(25)
o gabonês ou o
Mas é um fato constante que o
(23) DEBRET, op, cit., gravura 21 e p. 197. (24) WALSCH, op. cit. p. 343. KOSTER, Voyages Pittoresques, II, p. 397. Rocha POMBO, História do Brasil, 1, p. 562. TAUNAY, História da
Vila
de
S.
Paulo,
Anais
do
Museu
Paulista,
VII,
p.
121.
Diogo
de
VASCON-
CELOS, História Média de Minas Gerais, p. 164. D'ASSIER, Le Brésil Contemporain, p. 99. TOLLENARE, Notas Dominicaes, p. 55. SAINT-HILAIRE, Voyage dans le District des Diamants, p. 242, diz que os portuguêses chamavam êsses negros isolados de “ribeirinhos”. WALSCH, Notices, p, 342. R.I.H.G.B., LVI, 1893, pp. 164-65. (25) Suicídios dos galinhas, Braz do AMARAL, op. cit., p. 479; dos gaboneses, KOSTER, Voyages Pittoresques, I, p. 362, TAUNAY, História do Café, III, p. 232; os moçambiques, KOSTER, op. cit. p. 363, SPIX e MARTIUS, Através da Bahia, p. 99, em nota; dos minas, TAUNAY, História do Café, III, p. 240,
118
suicídio, enquanto
em
sua forma
egoísta, para empregar
a ex-
pressão durkheimiana, é raro ou inexistente nos povos ditos não
civilizados, (2º) o suicídio de escravos é, em compensação, muito
freqiiente.(27) do branco,
O suicídio é uma forma de resistência à cultura
e é a forma
mais
apreciada
ao contato opressor refugiando-se na morte.
pelos
fracos; foge-se
O negro do Brasil
sabia perfeitamente que seu suicídio era um ato de guerra, porque o escravo custava caro, e quando todo um grupo jurava deixar-se morrer, ou envenenar-se em conjunto, seguramente
dessa maneira o patrão ficaria arruinado. Essa foi uma forma de vingança que os escravos souberam utilizar. (28) Ora, O que nos interessa mais particularmente é que o sui-
cídio foi também um protesto religioso. Tschudi, surpreendendo-se com o fato dos suicídios de escravos serem mais numerosos entre fazendeiros bons que entre os outros, pesquisou para descobrir o motivo; disseram-lhe, então, que o fato devia se explicar
provavelmente
pela influência de seu sacerdotes,
os quiombos,
que nêles desenvolvem não um ódio particular contra essa ou aquela pessoa, mas um ódio racial. A explicação lhe pareceu plausível; pode ser também
que muitos dos escravos, acrescenta
êle, sendo descendentes de príncipes ou de pequenos reis afri-
canos, não pudessem suportar o regime servil e matavam-se para encontrar seus ancestrais, para juntar-se a êles no outro mundo.(2º) Seja como fôr, influência do clero, ou influência das
crenças
míticas,
O suicídio tem
sua origem
na mística.
Temos
também um outro testemunho em uma narrativa de d'Assier que relata uma conversa que manteve com um negro. Prêso por negreiros e trazido ao Brasil, seu interlocutor decidira enforcar-se com seus companheiros “a fim de voltar o mais breve possível ao nosso país”. Entretanto, a coragem faltou-lhes no derradeiro
instante e um só se matou.
O feitor fêz soltar o corpo, cortou-
-jhe a cabeça e pregou-a num poste: “Agora, que êle volte, se o desejar, para seu país, isto é indiferente, sua cabeça aqui per-
manecerá e todo filho da puta que fizer como êle, terá a mesma
sorte, reaparecerá
sem cabeça”.
“Compreendeis,
acrescentou
o
pobre homem, que não se pode encontrar o caminho de seu país
(26) DURKHEIM, Le Suicide, pp. 233-34, (27) Duraram até o fim da escravidão; o relatório do chefe de polícia do Rio em 1866 registra que de 23 suicídios, 16 foram de escravos. Sôbre a frequência do suicídio entre escravos, ver CORRE, Ethnographie Criminelle, Ralnuald, Paris, 1894, LX-521, p. 26. Segundo KIDDER e FLETCHER, embora melhor tratados no Brasil que nos Estados Unidos, os escravos aqui se sSuicidavam
(28) (29)
mais.
KIDDER
KOSTER, Voyages 'TSCHUDI, Reisen
e
FLETCHER,
O
Brasil
e os
Pittoresques, I, p. 363. durch Sud-Amerika, II,
Brasileiros,
pp.
76-9.
|
p.
146.
119
quando não se tem cabeça”. Dessa maneira, preferiu fugir para a floresta onde vivia de raízes, de frutos e de algumas aves domésticas roubadas à noite, mais foi prêso e agora, velho resignado, esperava o fim próximo: “Sou velho, não tardarei a voltar ao
país”.(*º)
Contudo, o elemento religioso não nos deve fazer esquecer
que êle só se revelou sob a ação do sofrimento e como resistên-
cia à escravidão.
A importância de um elemento social ao lado
de um elemento místico manifesta-se no fato de que os suicídios
de escravos são quase sempre suicídios de homens. A mulher, mais habituada ao trabalho agrícola que o homem, por causa da divisão sexual das ocupações na Africa, e cujo destino era
já uma espécie de servidão doméstica, em geral adaptou-se me-
lhor à escravidão; ela geralmente não se mata.(º*!) Ao suicídio pode-se aproximar o banzo, a nostalgia do país
natal.
Muitos
negros não podiam suportar
seu nôvo habitat.
Pouco a pouco estiolavam, definhavam, depois morriam de nostalgia.(*º) Entretanto, não se pode falar de um patriotismo negro, nem de um sentimento afetivo para com um lugar geográfico qualquer. O banzo se explica, pois, por um outro patriotismo que não o nosso, e onde a religião, mais uma vez, tem sua parte. O lugar onde se nasce não é um mero sistema de acidentes geográficos, montanhas, lagos ou rios, é um todo social-geográfico onde os mitos locais, cais determinados de
a divisão das tribos no solo, os loreunião das sociedades secretas, etc.,
constituem um único e mesmo todo. O africano não separa o mundo material, como nós o fazemos, do conjunto dos valôres que ocupam cada qual posição ecológica nesse mundo; êle não
vê
a colina
como
uma
colina,
mas
como
a morada
dêste
ou
daquele espírito, ou como o centro tradicional desta ou daquela
cerimônia.
Marcel Mauss mostrou que o espaço entre os “pri-
mitivos” é essencialmente heterogêneo, onde cada ponto tem suas características próprias, sua natureza distinta. Podemos então dizer que o banzo não é a nostalgia própriamente falando, é uma certa disposição ecológica da cultura, é a saudade da con-
figuração
tribal, e também
religiosa,
no espaço,
obstante,
tentativas
de
e se o escravo
morre, é porque esta configuração não pôde recriar-se no Brasil. Não
houve
recriá-la,
para
refazer
uma nova África, tentativas aliás espontâneas, nascidas, como o (30)
(31)
A.
d'ASSIER,
FREYRESS,
Le
Brésil
Halserthum
(32) Rocha POMBO, Ilistória Através da Bahia, p. 99, em nota.
120
Contemporain, Brasilien,
p.
do Brasil, p. Paulo PRADO,
pp.
160.
26-8.
561. SPIX e MARTIUS, Retrato do Brastl, cap. 3.
dissemos, da reunião em massa, num mesmo lugar, de escravos fugitivos. Chegou o momento, pois, de estudar os quilombos um pouco mais detalhadamente. ak
x
ak
Palmares
Não se sabe exatamente em que lugar preciso do Estado de Alagoas localizavam-se os quilombos de Palmares, nem em que data foram estabelecidos.(%8) Em todo caso, existiam desde a época da ocupação holandesa, no norte do Brasil, e uma pri-
meira expedição foi enviada contra êles em 1645, segundo o
diário de viagem do capitão Jean Blaer. Palmares era então dividido em dois quilombos, um grande e um pequeno, com
respectivamente
6 e 5 000 habitantes.(**)
A expedição encon-
trou inicialmente um velho quilombo abandonado por ser muito insalubre.
Depois chegou ao “grande Palmares” do qual o diário
nos dá a seguinte descrição:
As casas eram em número de 220 e no meio delas erguia-se uma igreja, quatro forjas e uma grande casa de conselho: havia entre os habitantes tôda espécie de artífices e o rei os governava com severa justiça, não permitindo feiticeiro entre a sua gente, e quando alguns negros fugiam mandava-lhes crioulos ao encalço e uma vez apanhados eram mortos, de sorte que entre êles reinava o terror, principalmente nos negros da Angola. O rei também tinha uma casa de campo a duas milhas daí, com terras abundantes. (35)
Quando
a expedição holandesa chegou a êsses lugares, os
quilombolas tinham fugido e encontrou-se apenas alguns anciãos,
mulheres e crianças. O quilombo pouco a pouco se reconstituiu e tomou o nome de Macaco. Um manuscrito anônimo nos dá também uma descrição: (33) Sôbre êsses problemas de localização geográfica e temporal de Palmares, ver Nina RODRIGUES, Os Africanos no Brastl, pp. 115, 126, 150. Alfredo BRANDÃO, “Os Negros na História de Alagoas”, Estudos Atro-brasileiros,
pp.
(34)
devem
em
61,
ser
Às
63,
64,
cifras
66,
68,
73,
que são
exageradas.
Jean
75.
de
BARLEUS,
LAERT
avalia
Res
Gestae
a população
Mauritit...,
do
Grande
Dp.
270,
Palmares:
1500 habitantes. Fr, de BRITO FREYRE em 30 000, Nova Lusitânia, p. 281. (35) Brleven en Pepieren tn Brasilian, trad. port. de Alfredo de CARVALHO, R. 1. 4. G. de Pernambuco, E, março, 1902, p. 37.
J21
O rei habita sua cidade real chamada Macaco porque aí morreu êsse animal, é a metrópole entre tôdas as cidades e lugares habitados, é fortificada por um muro de barro (...) Aí habitam os ministros da Justiça para as execuções necessárias e tôdas as instituições de qualquer república aqui são imitadas (...) Reconhecem-se todos obedientes a um que se chama o Ganga Zumba, que quer dizer Senhor Grande; a êste tem por seu rei todos os mais, tanto os naturais dos Palmares, como os vindos de fora; tem palácios, casas da sua família, é assistido de guardas e oficiais, que costumam ter as Casas Reais; é tratado com todos os respeitos de Rei e com tôdas as cerimônias de Senhor; os que chegam à sua presença põem logo o joelho no chão e batem as palmas das mãos, sinal do seu reconhecimento e protestação da sua excelência, chamam-lhe Majestade, obedecem-lhe por admiração. (38)
A cidade tinha 1 500 casas e nela havia uma capela onde se encontrou uma imagem do Menino Jesus, outra de São Brás e outra de Nossa Senhora da Conceição. Mas Macaco não era a única cidade. Os quilombolas estavam distribuídos ao longo da Serra da Barriga, formando um conjunto de vilas e de povoações fortificadas, aliás federadas entre si por laços dinásticos.
Houve mais de 18 expedições enviadas para destruir esta
“Tróia Negra” como se lhe chamou. Mas sempre renascia de suas cinzas. A mais célebre dessas expedições foi a de Fernão Carrilho que amedrontou tão terrivelmente os africanos fugitivos, que
granjeou
entre
êles
“a
fama
de
feiticeiro”.(3')
Seguiu-se
depois uma tentativa de paz entre os portuguêses e os quilombolas. (*8)
sória.
|
Mas essa paz foi apenas momentânea e completamente iluZumbi, sobrinho do rei, retomou armas. Foi preciso ape-
lar a um
antigo mestre de campo,
Domingos
Jorge Velho,
que
com seus paulistas, seus índios, os soldados do lugar e, diz-se mesmo, seis peças de artilharia, iniciou uma longa e renhida luta, que deveria terminar pela destruição mais ou menos completa de todos êsses quilombos e com a morte de Zumbi. (3º) As terras foram distribuídas aos vencedores; os negros que não tinham sido massacrados voltaram à escravidão. Palmares, (36) quilombo
de
que
achar,
senta
R.I.H.G.B., t. 47; mais recentemente, Benjamim PERET (que fol o de Palmares, Anhembi, 66, maio, 1956, pp. 469-86) opõe-se à idéia
o reino
anos
(37) (38)
de
Palmares
hipotéticamente,
de
existência
uma
de
teve
sempre
evolução
Palmares.
da
êsse
mesmo
forma
caráter,
política
E. ENNES, As Guerras nos Palmares, pp. 44, 161. É. CARNEIRO, O Quilombo de Palmares, p. 102
no e
e
teima
curso
segs.
de
em
ses-
(39) 8. da ROCHA PITTA, História da América Portuguêsa, 2,* ed., pp. 45-6. Oliveira MARTINS, O Brasil e as Colônias Portuguêsas, 5.» ed., pp. 65-6. Rocha POMBO, História do Brasil, V, pp. 359-63. Nina RODRIGUES, Os Africanos no Brasil, p. 132.
12%
não obstante, não estava de todo morto.
Ainda em 1703 o negro
Camuango, que escapara aos massacres, reconstituiu um pequeno quilombo que precisou ser destruído.(*º) Os outros fugitivos de Palmares reuniram-se aos quilombolas da Paraíba, em Cumbé, sendo finalmente exterminados
em
1735.(41)
(42)
Palmares suscita tôda uma série de problemas que devemos
examinar.
Para começar,
era êle formado
de diversas etnias ou
tinha unidade racial? Ayres do Casal afirma que Palmares foi fundado por 40 negros de Guiné.(“º) Isso é possível para o primeiro Palmares na época da ocupação holandesa; mas, mesmo assim, não se pode afirmar que os primeiros quilombolas fôssem todos negros da África Ocidental, porque o têrmo Guiné
designava na época, como o dissemos, tôda a costa atlântica da
Africa; de resto, o que significava êsse pequeno núcleo para u'a massa de 11 000 habitantes? Parece que os ousados defensores da Tróia Negra foram principalmente bantos: a velha Madalena que foi enviada como embaixatriz a Palmares era angola, o prisioneiro Gaspar era chefe de campo dos angolas; sem dúvida, o nome de Bengola dado a um irmão do rei é a expressão de sua origem étnica e deve ser lido Bengala; o nome de Zumbi, o último rei do quilombo, é originário da língua bunda, e designa o
deus da luz; as expressões de Gana, Iomba, Gana Zona dadas (40) (41)
Gestae
Mário Sôbre
BEHRING, as Guerras
Maurttit...,
pp.
“A de
270-71,.
Morte de Palmares,
R.I.H.G.B.,
Zumbi”, Don Casmurro, 2-B-1941. ver: Documentos: BARLEUS, Res
II,
p,
153,
tomo
XIV,
p.
491.
Revista do Instituto do Ceará, “Dezenove Documentos sôbre os Palmares”, XVI, pp. 161-91. Francisco de BRITO FREYRE, Nova Lusitânia, Lisboa, 1675. J. NIEUHOFF, Remarkables Voyages and Travels to Brazil, p. 8. Sebastião da ROCHA PITTA, História da América Portuguêsa, 1.º ed. 1730. Jean BLAER, “Diário de Viagem aos Palmares", R.I.H. de Pernambuco, março, 1902. Ernesto ENNES, 4s Guerras nos Palmares. Coleção de documentos inéditos publicados em São Paulo, Cia. Ed. Nacional, Brasiliana, vol. 127, 1938, 502 pp. Relação das guerras feitas aos Palmares de Pernambuco no tempo do governador D. Pedro de Almeida de 1675 a 1677, R.I.H.G.B., XXII, p. 303. A. BRANDÃO, “Documentos Antigos Sôbre a Guerra dos Negros Palmarinos”,
O
Negro
no
Brasil,
pp.
275-89.
Estudos
Históricos
ou
Soctológicos:
HAN-
DELMANN, História do Brasil, fim do cap. VIII. Mário MELO, Dentro da História, pp. 101-16. VARNHAGEN, História Geral do Brasil, 3.» ed. UI, p. 319, Pedro PAULINO DA FONSECA, “Memórias dos Feitos que se Deram Durante os Primeiros Anos de Guerra com os Negros Quilombolas dos Palmares, seu Destrôço em Junho de 1178”, R.I.H.G.B., XXXIX, pp 193-322. Dias CABRAL, “Narração de Alguns Sucessos Relativos à Guerra com os Negros Quilombolas dos Palmares de 1668 a 1680”, R.I.H. de Alagoas, 1875, Nina RO-
DRIGUES, Os Ajricanos no Brastl, pp. 115-45. Diversos: Estudos Afro«brasileiros, pp. 60-77. É. CARNEIRO, O Quilombo dos Palmares, SP, 1947, 246 pp. pp.
de
Benjamin 230-49, e
Jayme
consultar chegando
de
PERET, 66, pp.
“Que foi o Quilombo 467-86. A essa lista
ALTAVILLA,
O Quilombo
dos
dos Palmares”, Anhembi, n.º 65, pode-se acrescentar o romance
Palmares,
com precaução porque o Autor mistura dados inclusive a fazer dos sacerdotes do quilombo,
mas
que
é
preciso
de épocas diferentes, alufás muçulmanos!
(422) A. VIDAL, “Três Séculos de Escravidão na Paraíba”, Estudos Afroebrasiletros, pp. 109-10. (43) Ayres do CASAL, Cronographia Brasileira, citado por Nina RO-
DRIGUES,
op.
cit.
p.
133.
123
aos irmãos do rei pertencem à mesma língua e são corrupções
de ngana que significa Senhor; Zona e Iomba devem estar ligados à palavra mona que significa irmão na língua bunda e filho na kimbunda; Ganga é também uma corrupção de nganga, Senhor Grande; Nina Rodrigues relaciona o têrmo de Zumba à expressão cazumba onde o prefixo ca denuncia a origem banto.(**) O fato dos guinés terem uma mitologia bem constituída, e por isso mais resistente ao cristianismo que o vago animismo dos bantos, é mais um fator a apoiar esta argumentação. A existência de uma igreja com imagens de santos tende, pois, a confirmar que Palmares foi um quilombo banto. Um documento recente, enfim, encontrado nos Arquivos de Lisboa diz que os quilombolas chamavam suas cidades de “Angola Janga, Angola pequena”. (4)
Mas, é evidente que êsses bantos eram recrutados entre as mais
diferentes nações e disso temos
dos
habitantes
de
Palmares
um
testemunho
chamarem-se
direto no fato
malungo;
ora,
o
P.
Vieira nos diz em um de seus sermões: “O espírito de associação é tão próprio e natural aos negros, que êles consideram como
parentes todos os indivíduos da mesma côr e companheiros ou malungo, todos os que embarcaram no mesmo navio”.(tº) Vimos que o navio negreiro tinha quase sempre uma carga de cativos das mais variadas tribos. Portanto, o fato de se darem o nome de malungo significava que Palmares não era uma tribo, mas um cadinho de povos, reunidos nesse navio imóvel, feito de montanhas e de rochedos, batido pelo mar verde das florestas, qual um outro oceano. (*7) O segundo problema que se apresenta é o da organização
social de Palmares e seu significado.
Espacialmente o quilombo
se apresenta, como o vimos, como uma série de aldeias fortifica-
das, separadas umas das outras por grandes distâncias. Mas, sabemos também que havia, espalhadas entre êsses lugares, cercados de paliçadas e onde os negócios públicos eram tratados, pequenas cabanas cercadas de plantações, situadas principalmen-
te nas orlas das florestas. Essas casas campestres eram feitas de ramos e seu teto de sapé.(*º) Porém, isso é tudo o que sabemos e várias explicações possíveis restam para se entender desta organização ecológica. Pode-se imaginar que havia dois tipos de casa para uma mesma família, uma urbana, se se deseja, local de resi-
dência habitual, e uma casa rural que era habitada sômente na (44)
(45)
(46)
(47) (48)
124
Nina
RODRIGUES,
E. ENNES, A.
op.
BRANDÃO,
cit.,
op.
op.
cit.
Pp. 295.
cit.,
p.
pp.
157-60.
67.
ALTAVILLA, Op. cit., p. 35. BARLEUS, Op. cit. pp. 270-71. Nina RODRIGUES,
op. cit., p. 135.
época das colheitas ou das plantações.
palácio e sua casa de campo.
O rei, diz-se, tinha seu
O fato, citado por Barleus, de que
se dançava nessas casas rústicas com: grande barulho até à meia-
-noite não significava que elas fôssem habitadas regularmente, já que as danças talvez pudessem ser festas agrárias, realizadas no início e no fim das colheitas. Do mesmo modo pode-se pensar
que as cidades tinham sobretudo uma função política e militar e que havia tôda uma
organização
cuja estratificação social se
firmara: havia a capital real, com seus sacerdotes e magistrados, sua sala do conselho que era, talvez, mui simplesmente a casa dos homens; havia Sucupira, habitada pelo irmão do rei e praça forte, onde se preparavam os soldados para a defesa da confederação; havia as administrações dos diversos quilombolas, sedes
dos potentados; e, finalmente, a massa trabalhadora rural que
vivia constantemente em seus pequenos pomares, afastados uns dos outros, não indo à cidade senão em casos de ataque dos brancos. Ao lado das informações que temos sôbre o habitat, possui-
mos outras relativas ao trajar dêsses negros fugitivos.
Quando
do envio de embaixadores dos Palmares ao governador, o aspecto dos negros de tal maneira surpreendeu aos portuguêses que êstes nos deixaram uma descrição detalhada. Eram bárbaros nus, o sexo coberto, uns trazendo a barba trançada, outros com barba e bigodes postiços, outros, enfim, inteiramente barbeados.
Todavia, não sabemos se essas distinções correspondiam a sobrevivências tribais ou a diferenças de classe, de posição social, ou,
o que é também
possível, a sobrevivências
étnicas que teriam
mudado de função, tornando-se critérios de estratificação social. Em todo caso, um fato é certo, esta estratificação social evidenciava-se no vestir; sabemos que os chefes que eram os únicos
vestidos usavam trajes feitos de tecidos roubados ou comprados aos portuguêses.
Parece também que eram os únicos a ter fuzis.
Os outros negros eram armados de arcos e flechas, punhais ou cimitarras.(*º) Sua
economia
era complexa.
Os
homens
se dedicavam
à
caça e à pesca. Laert encontrou em sua expedição armadilhas abandonadas na floresta, e Rocha Pitta nos fala de um lago
abundante de peixes perto do qual foi construído um quilombo.
Praticavam a agricultura, e, ao que parece, uma agricultura meio
individualista, meio coletiva. A propriedade das terras era familiar, mas tem-se a impressão de que tôda a aldeia se entregava (49)
Sôbre
o
traje,
ver
Rocha
PITTA,
op.
cit.,
p.
237.
125
às lides agrícolas.
Em verdade, Barleus nos diz que o trabalho
era feito duas vêzes por ano, primeiro para a plantação e a cul-
tura, depois para a colheita do milho.
O que indica o caráter
coletivo desta economia é o fato dêsses dois tipos de trabalho agrícola se processarem cerimonialmente, seguindo-se um perío-
do de repouso de 14 dias em que os habitantes se entregavam ao prazer de festas religiosas, diríamos nós, talvez mesmo
de sacri-
fícios agrários, como hoje ainda existe entre os bantos africanos.
Dessa forma, a economia dos Palmares se opõe radicalmente
à
economia dos colonos brancos da época. De um lado, a pequena propriedade familiar, a terra trabalhada pela família e seus escra-
vos (porque, como veremos, os quilombolas não suprimiram a escravidão), de outro, o latifúndio. De um lado, uma economia baseada em larga escala na do país de origem, isto é, conservando seu ritmo religioso; de outro, uma economia assentada na monocultura,
com vista na venda e no lucro, inteiramente leiga,
se bem que o capelão inaugurasse o trabalho do engenho com missa solene e a bênção dos trabalhadores. Acrescentemos a
tudo isso o fato dos habitantes dos Palmares ignorarem a domesticação dos animais. (5º)
Entretanto, a economia não estava essencialmente baseada na atividade agrícola. Havia nas cidades numerosos artesãos, dos quais não sabemos o número, nem a natureza das ocupações. Os brancos só se interessavam, evidentemente, por aquelas que lhes pareciam as mais perigosas, isto é, a fabricação de
armas,
Enfim,
não ignoravam
o comércio.
O grande
número
de
governador,
não nos devem
fazer esquecer que houve também
expedições punitivas dirigidas contra êles, as queixas de assaltos, de roubos e de raptos enviadas pelos brancos das cercanias ao
longos períodos de paz, quando os negros comerciavam pacificamente com os colonos. Trocavam os produtos de suas terras ou
os frutos da floresta por armas, por pólvora, por balas, por ves-
tidos ou tecidos da Europa para seu chefe, e mesmo, segundo Rocha Pitta que conheceu sobreviventes desta época, por prata. Não sabemos se a última informação procede, e nem para que
lhes servia esta prata, se era transformada em bijuteria, se era
considerada como tendo valor mágico, ou se servia posterior-
(50) Sôbre a economia agrícola, ver BARLEUS, op. cit. p. PITTA, Op. cit., p. 240. Brito FREYRE, op. cit., p. 280. Segundo
op.
cit.
trabalho
pp.
469-86,
coletivo
dos
teria
negros
havido
uma
fugitivos
evolução
nos
economia baseada na escravidão, os escravos e as da agricultura e os homens da caça ou da guerra.
126
na
primórdios
economia,
do
270. Rocha B. PERET, desde
quilomba
mulheres
até
o
a
ocupando-se
mente a outras compras. Em todo caso, a economia dos Palmares é, antes de mais nada, como tôdas as economias primitivas, uma economia de escambo. Parece que êsse comércio se fazia principalmente do branco para o negro e não do negro quilombola com o branco. Barleus nos conta que uma das expedições holandesas tinha sido preparada por um certo Bartholomeu Lintz que vivera vários dias no quilombo para trazer informações úteis; é evidente que, apesar de Barleus não dizer, êsse Lintz não teria
podido demorar em Palmares a não ser por viagem de comércio. Rocha Pitta nos dá ainda mais detalhes. Tipos de comunicações secretas eram estabelecidas entre os quilombolas e os fazendeiros;
êstes recebiam dos primeiros salvo-condutos, consistindo de determinados sinais ou figuras, e seus escravos que subiam até Palmares, graças a êsses papéis, não eram nem molestados, nem
aprisionados. (º!)
Mas o que mais impressionou aos colonizadores foi a organização política. Já dissemos que os diversos quilombos formavam uma espécie de federação sob a autoridade de um rei, que dirigia todo o seu domínio com o auxílio de potentados, frequentemente escolhidos entre seus próprios parentes, cada qual
à frente de uma das aldeias.
O rei era eleito.
Elegiam para seu príncipe, ou rei, a quem davam o nome de Zumbi (nome que em língua africana significa Diabo) um dos seus mais inteligentes e corajosos, e embora a sua autoridade fôsse eletiva, era todavia vitalícia e a ela tinham direito todos os negros, mulatos ou mamelucos de mais reto procedimento, coragem e experiência; e não se conta nem se sabe que entre êles hou-
vesse
partido
(...)
nem
que
no
espaço
de
quase
60
anos
que
viveram independentes, e se governaram, matassem para entronizar outro, (52) prestando todos pronta obediência e respeito ao eleito logo que se concluía a eleição, que era direta; isto é, os que votassem em um punham-se em um lado, os que queriam outro separavam-se dos precedentes, pertencendo o poder ao que era escolhido pelo maior número sem que nesta eleição houvesse a menor desavença.
Magistrados cercavam o rei para a administração da comunidade e também havia uma casa do Conselho na metrópole onde se discutiam negócios gerais. Muito se escreveu sôbre o signifi-
cado dêsse regime político e por causa da eleição do chefe, da possibilidade de todos concorrerem aos mais altos cargos, falou-
(51) fSôbre o comércio, ver BARLEUS, op. cit., p. 270. Rocha op.
cit., (52) ftôsse a brancos
p.
ALTAVILLA, Op. cit. p. 32, em nota. PITTA, op. cit. p. 238. N. RODRIGUES,
133. É. CARNEIRO, Op. cit., pp. 59-60. O fenômeno, portanto, verificou-se no fim do Palmares; talvez consequência da desorganização que as lutas contínuas contra os não podiam deixar de ocasionar internamente.
127
-se de uma república negra, comparou-se Palmares ao Haiti, como
também se quis ver nesse quilombo o primeiro grito da indepen-
dência brasileira contra o regime colonial. Outros, ao contrário, como os holandeses, pensaram que êsses negros não faziam mais que copiar a organização dos portuguêses, confundindo sem dúvida a casa dos homens, que chamam de Grande Conselho,
com as câmaras municipais da colônia que se ocupavam dos negócios locais. Nenhuma dessas opiniões é exata. Nina Rodri-
gues está muito mais próximo da verdade quando compara essa
realeza às africanas, mas prejudicou sua argumentação porque citou apenas as realezas dos negros fugitivos. Na realidade, não é somente a realezas de revoltados que é preciso se ater para compreender Palmares, mas ao estado social dos negros africanos, que conheciam o regime dinástico, à eleição e discussão dos
assuntos tribais pelos adultos ou pelos velhos. Palmares é, antes
de tudo, um retôrno
à tradição africana.
O que também muito surpreendeu os historiadores brancos foi que o quilombo não formava um amontoado de fugitivos, um caos indistinto de indivíduos unidos por um protesto comum contra a escravidão, mas um verdadeiro Estado civilizado:
Entre êste povo eram castigados com pena de morte o homicídio, o adultério e o roubo, porque mesmo o que era lícito fazer aos brancos, com os quais, diziam, estavam em guerra, era-lhes vedado, sob pena de morte, praticar com os seus. Aos escravos que voluntáriamente se lhes iam oferecer e juntar, con-
cediam liberdade; os que, porém, tomavam por fôrça ficavam cativos e podiam ser vendidos. Também impunham pena capital aos que,
tendo
ido
voluntáriamente,
feitas
nas
memórias
resolviam
voltar
ao
domínio
branco.
Aquêles porém que eram escravos e que tinham sido aprisionados pela fôrça não eram punidos com a morte quando intentavam desertar. Estas leis não eram escritas mas conservavam-se pertal
maneira
que,
e tradições,
quando
impressas nas memórias primeiros fugitivos. (53)
os
dos
transmitidas
atacaram
segundos
e os
de pais
venceram,
e terceiros
a filhos,
as
de
acharam
descendentes
dos
Vê-se aqui ainda que Palmares não fazia mais que manter, em pleno sertão brasileiro, as regras tribais da Africa longínqua.
Todos êsses fatos, punição do homicídio, do roubo, do adultério, são características da organização moral ou dos costumes das
antigas comunidades das quais êsses negros foram
arrancados.
À conservação da escravidão entre os prêtos que fugiam justa(53)
Texto
de
Fernandes
GAMA
citado
por
ALTAVILLA,
op.
cit.,
p.
114. Cf. N. RODRIGUES, op. cit. p. 133, e Brito FREYRE, op. cit. p. 282.
128
mente dêsse sistema tem todo um significado face a êsse aspecto:
o de “retôrno à Africa”. Em compensação, conhecemos
trimonial.
bem menos o regime ma-
O certo é que aqui o antigo sistema tribal devia ser
forçosamente desorganizado, não tanto pelo fato do encontro das tribos, quanto pela falta de mulheres. Menos aptas a fugir que
os homens, eram em menor número e os quilombolas viram-se forçados assim a roubar mulheres das cercanias. Não se olhava a côr da pele: roubavam mulatas e mesmo brancas. (º**) Contu-
do, sabemos que a poligamia existia ao menos para os chefes:
Gangamusa, chefe da nação angola, era casado com duas filhas do rei, e êste tinha três espõsas. (55)
Agora podemos definir Palmares. Não foi uma criação original e de alguma forma racional dos negros fugitivos, findan-
do-se uma constituição republicana ou uma monarquiá eletiva, estabelecendo leis e instituindo magistraturas inéditas, mas um fenômeno de resistência cultural, de “regressão tribal”, um esfór-
ço dos africanos para reconstituir as antigas organizações bantos, (5º) contra a desagregação de seus costumes em contato com os brancos. Foi algo semelhante à recriação da Africa em plena
Guiana Holandesa que ainda hoje subsiste, estudada, entre outros,
por M. Herskovits e espõsa, em Rebel Destiny.(*”) Todavia, tôda reação, pelo simples fato de ser uma reação, não pode che-
gar a uma reconstituição fiel do passado; é sempre atingido pelo objeto ou coisa contra o qual se luta, principalmente quando já houve contato com uma cultura estrangeira dominante. Se se acrescenta a influência do meio exterior, diferente do habitat pri-
mitivo, e ainda impregnado de valôres indígenas, compreender-se-á que Palmares devia integrar em si elementos externos, apresentar um certo sincretismo. Por exemplo, a agricultura lembra bem a África, mas os produtos cultivados são o milho e a cana-
-de-açúcar. (54) (55)
Os nomes dos lugares são na maioria têrmos bantos,
Sôbre o rapto das mulheres, ver N. RODRIGUES, op. Documento de 4 de fevereiro de 1678 citado por A.
“Documentos
Antigos
Sôbre
a Guerra
dos
Negros
Palmarinos”,
O
cíit., p. 132. BRANDÃO,
Negro
no
Brastl, p. 283. BLAER em 1645 escreve a propósito dos casamentos dos quilombolas: “Éles escolhem um dos mais instruídos entre si, que veneram como um cura que os batiza e os casa. Todavia, o batismo sem a forma exigida pela Igreja e os casamentos sem as peculiaridades reclamedas pela
lei da op.
netureza
cit., (56)
(...)
Seu
pp. 43 e 189. Êste ponto foi
apetite
| bem
é a regra de suas
observado
escolhas”, &. CARNEIRO,
principalmente
por
J.
H.
RODRI-
GUES e J. RIBEIRO, Civilização Holandesa no Brasil, p. 375. A. ARINOS DE MELO FRANCO, Conceito de Civilização Brasileira, pp. 121-29, e A. RAMOS, Culturas (57)
la
Negras, p. 363. Fr. e J. M. HERSKOVITS,
Vie. Spirituelle
Negroes
of
Dutch
et
Soctale
Guyana.
des
Rebel
Djuka.
Destiny.
Norton
VAN
KAHN,
LIER,
Djuka,
Notes
the
sur
Bush
129
como se aí houvesse uma vontade de africanizar o país, de trans-
formar a geografia, mas, mesmo assim, certas palavras indígenas subsistem para designar acidentes geográficos. É no seio dêsse
fenômeno de resistência e sincretismo culturais que devemos estudar a religião de Palmares, na medida infelizmente bastante limitada em que a conhecemos. Segundo o testemunho dos holandeses, esta religião seria uma cópia mal feita do catolicismo dos portuguêses. Éles falam
de capela, de imagens de santos, de padres, calcados no modêlo dos brancos.(*8) Francisco de Brito diz que os negros conservaram o catolicismo de seus antigos senhores, “se bem que de modo
ridículo, falta mais de ignorância que de maldade”.('º)
Vimos
também que o rei de Palmares proibira o fetichismo no quilombo. Na realidade, há aí um certo número de graves confusões desculpáveis,
aliás, para a época.
Os bantos, que tinham uma
mitologia relativamente pobre, identificaram seus espíritos com os santos católicos, e as imagens descobertas pelos conquistado-
res eram, portanto, representações dêsses espíritos adorados por
éles.
A proibição do fetichismo, se a informação é precisa, pode
se aplicar seja pela reação dos bantos contra os orixás dos primeiros fugitivos guineanos, seja pela rivalidade entre sacerdotes e
feiticeiros. Rocha Pitta está, pois, mais próximo da verdade quando nos diz que os quilombolas conservaram do catolicismo o sinal da cruz e certas orações mal repetidas, que misturavam
a
palavras e cerimônias de suas religiões nativas, ou inventadas por êles.(ºº)
Nesse texto antigo, achamos já observadas
as desco-
bertas recentemente feitas pelos estudiosos dos contatos culturais,
ou sejam, a existência de um sincretismo, a conservação de elementos da cultura primitiva e, enfim, o fato dêsse sincretismo
não consistir em uma simples adição de elementos justapostos,
que apenas se misturam, mas de uma simbiose que ocasiona O aparecimento de novas instituições.(*!) Parece que foi isso o
que de fato aconteceu em Palmares. Quais eram os elementos africanos dessa simbiose? Nós os ignoramos e não podemos descobrilos senão indiretamente. Barleus conta que os colonos brancos que moravam nas imedia-
ções do quilombo
ficavam
acordados
durante a noite com
o
(58) BARLEUS, op. cit., p. 270, e Diária de Viagem do Capitão J. Blaer Palmares, citado em apêndice ao livro de É. CARNEIRO. (59) Brito FREYRE, op. cit. p. 281. (80) Rocha PITTA, op. cit., p. 237. (61) Prefácio de MALINOWSEKI ao livro de L. SHAPERA, The Contriduttons of Western Clivilizations to Modern Kratla Culture, apud Revista Bimestre Cubana, KLIX, maio-junho, 1942.
ao
130
barulho que vinha das casas dos negros fugitivos, pelo ruído dos
pés que batiam no chão e que repercutia até muito longe.
Essas
danças duravam até a meia-noite, depois do que os negros dormiam até às 9 ou 10 horas da manhã.(º*2) Sem dúvida há entre os bantos danças profanas ao lado de danças religiosas, mas era
provável que, mesmo cerimônias
assim,
litúrgicas.
algumas
Como
delas fizessem
Barleus
nos
dá
essa
parte de
informação
juntamente com outras relativas ao seu tipo de economia agríco-
la, sugerimos
que
talvez essas
cerimônias
fôóssem
que é mais evidente é o caráter religioso da realeza.
agrárias.
O
Os nomes
que foram conservados do rei e de seu irmão, comandante dos
exércitos, não são nomes de pessoas, mas nomes genéricos, titu-
los místicos — nhor
Ganga, o rei, é a palavra kimbunda nganga, Se-
Grande,
e Zumbi,
a suprema
divindade.
A resistência contra o branco foi, portanto, uma resistência
religiosa e social.
ak
*
x
Os Outros Quilombos
Se Palmares foi o mais célebre e indubitâvelmente o maior de todos os quilombos, não foi o único. A história e a geografia do Brasil (muitos lugares ainda se chamam Quilombo, em recor-
dação dos negros fugitivos que aí se fixaram) (*) nos revelam a importância da fuga coletiva e da resistência à escravidão e à assimilação da cultura dos brancos. Muitos dêsses quilombos foram construídos próximo a lugares povoados, mas outros, porém, formaram-se a grande distância, no coração das florestas. Surge assim, um outro fenômeno que estudaremos posteriormente, o contato entre as culturas africana e indígena. Esse contato, (62)
(63)
Estados
BARLEUS,
Perdigão
do
Sul,
op.
cit.
p.
MALHEIROS,
onde
a
271.
4
Escravidão
população
africana
era
no
Brasil,
menos
p.
37.
numerosa,
Mesmo
como
nos em
Banta Catarina, encontramos nomes iguais de lugares, ao todo seis nos municípios de Florianópolis, Tijucas Imaruí e Chepecó, BOITEAUX, Dicionário Histórico e Geográfico do Estado de Santa Catarina. Com mais razão ainda os encontramos nos Estados do centro e do Norte. No Guia Postal do Brasil de 1930, encontram-se nada menos que 101 agências postais com êste nome, 35 em Minas, 22 em São Paulo, 19 no Rio. Na forma
mocambo:
preciso
28 na
ainda
Bahia,
acrescentar
10 no Piauí, 50
nomes
de
8 em
Sergipe,
montanhas
5 em
e rios,
Pernambuco,
Apontamentos
feria para
o Dicionário Geográfico do Brasil de Moreira PINTO; cf. A. de E. TAUNAY, História do Tráfico no Brasil, pp. 51-2. Histôricamente, os documentos mais antigos datam do comêço do século XVII; são encontrados nos Dos cumentos Históricos do Arquivo Municipal do Salvador, t. I.
181
é óbvio, não deixou de repercurtir na religião dos africanos e dos índios.
O primeiro quilombo remonta quase à época do início do tráfico negreiro, em 1575, e localizava-se na Bahia. Foi destruído Luís
por
Brito
de
Uma
Almeida.(º**)
carta do
Pe.
Rodrigues
de 1597 mostra que “os primeiros inimigos dos colonos são os negros de Guiné revoltados, que vivem nas montanhas, daí saindo para cometer assaltos”.(%) Em 1607, uma carta do governador, conde de Ponde, comunica ao rei uma revolta dos negros haussa,
sempre na Bahia, enquanto em 1601 um quilombo em Itapicum
cortava
o caminho
entre
a Bahia
e Alagoas.(%)
Em
1650,
o
capitão Manoel Jordão da Silva destrói com dificuldades quilom-
bos próximos ao Rio de Janeiro.(8') Em 1671, um outro quilombo apareceu em Alagoas.(%) Em 1704, Dias da Costa é chamado a “destruir os mocambos (da Bahia), aprisionar os ne-
gros e subjugar os índios maracaz, cucuriús e os caboclos que
êles tinham domesticado”. Em 1707, Domingos Netto Pinheiro é encarregado de subjugar os mocambos que se localizavam nos distritos de tôda a serra de Jacobina e Carinhanha até o rio S. Francisco.(*) Nas imediações de São Paulo, no “rio da traição”, havia também um quilombo que durou de 1737 a 1787.(7º) Mas é a região de Minas que constituirá o centro privilegiado dêsse tipo de resistência. Esta localização se compreende facil-
mente.
A descoberta de ouro e de pedras preciosas ocasiona um
deslocamento populacional, os escravos são arrancados do trabalho agrícola para se sujeitarem ao trabalho duro da mineração;
a descoberta de novos filões e de novos rios ricos em pepitas
aumenta o fluxo de africanos, lançados, logo em seguida à sua
chegada, em novas terras; o mêdo de roubos origina uma vigilância brutal. O viajante que excursiona pelas antigas cidades de Minas Gerais fica impressionado ao deparar em tóda parte, cons-
tituindo como que o centro arquitetural da cidade, a prisão de muros espessos como se fôsse uma fortaleza. Essas prisões são o sinal de uma repressão feroz aos negros fugitivos.("!) (64) HANDELMANN, História do (65) Citada por Serafim LEITE, Brasil, II, p. 358. *
Brasil, fim do cap. VII. História da Companhia de
Jesus
(66) Felte BEZERRA, Etnias Sergipanas, p. 154. (67) Sóbre os acontecimentos de 1617 e de 1650, ver o artigo RAMOS no Boletim da Sociedade Luso-americana, n.º 24, dez., 1938, p,
(68)
(69) (70)
F. BEZERRA,
Op.
cit.,
p. 178.
U. VIANNA, Bandeiras e Sertanistas Batanos, p. 65. Nuto SANTANA cita em “O Ribeirão da Traição”, artigo
certo número de documentos sôbre êésse quilombo: pp. 17-484, XVIII, p. 116, XVIII, p. 455. Cf, TAUNAY, S. Paulo no Século XVIII, I, p. 125. (71) Barros LATIF, As Minas Gerais, p. 169.
1382
de
de 15.
no A.
jornal,
Actas XI, p. 79, XI, História da Cidade de
Mas esta repressão exasperou os ódios.
A população bran-
ca começou a viver no temor contínuo de possíveis revoltas das pessoas de côr. Pensava-se que essas sublevações eram organizadas de fora, exatamente pelos negros fugitivos dos quilombos,
Em 1719, corre o boato de que os negros conspiram para massacrar os brancos, aproveitando-se da circunstância de estarem todos reunidos na igreja, sexta-feira santa. Os quilombolas do
Rio das Mortes já teriam eleito um rei, os príncipes e os chefes
oficiais do nôvo Estado. O governador, de início cético, acabou por tomar precauções. No Rio das Mortes, o tenente-general João Ferreira Tavares deteve os reis das nações mina e angola e todos aquêles que se supunha terem sido designados como futuros magistrados da república dos negros. Em 1756, novos temores por parte dos brancos e o rumor de uma conspiração
circula, ainda, nos mesmos têrmos da precedente. Os negros deviam se aproveitar da quinta-feira santa quando os brancos visi-
tam as igrejas, e sôbre êles se precipitarem, massacrando os homens brancos e os mulatos; entretanto, as mulheres seriam
poupadas.
Um oficial teria descoberto êsse projeto e os africanos
vendo-se perdidos, refugiaram-se nas florestas.(72) Nada nos permite afirmar que conspirações tenham realmente acontecido.('3) Mas êsses boatos exprimem bem a atmosfera de terror que reinava em todo o país. Tôda a região de Campo Grande e do São Francisco estava infestada de negros fugitivos, dos quais não se podia fâcilmente
desembaraçar.
Em 1741, João Ferreira organizou uma expedição
contra êles, mas lograram escapar, reconstituíram-se e massacra-
vam os viajantes que seguiam pelo caminho de Goiás à procura de ouro.
Em
1746, nova expedição, desta vez mais feliz, onde
120 negros são aprisionados e suas terras dadas aos pioneiros brancos. Mas, em 1752, o assalto à expedição do Pe. Marcos
onde 42 homens foram massacrados, dos quais 19 escravos, mos-
trou que o perigo ainda não passara.("*) Os quilombos de Minas são certamente os mais importantes depois dos Palmares. Eram bem organizados e compreenderam uma população de 20 000 negros que tinham afluído de todos os cantos do Brasil, de São Paulo, da Bahia, aos quais se
juntaram mulatos, criminosos e bandidos, distribuídos em dezenas de povoações, das quais quatro eram grandes e fortificadas,
(12) Diogo de VASCONCELOS, História Antiga de Minas Gerais, p. 326. (73) Diogo de VASCONCELOS, História Média de Minas Gerais, pp. 164-75, e Xavier da VEIGA, Efemérides Mineiras, p. 77. (74) N. RODRIGUES, op. cit., p. 148.
188
Ambrosio,
Sapucaí.
reinando
Gareca,
Zundu,
Calaboca,
tôdas
situadas
perto
de
Cada uma tinha seu rei, seus oficiais e seus ministros, com
manifestavam
um
despotismo
sangiiinário.
atitude ambivalente:
Face
aos
brancos
de um lado, dêles desconfia-
vam, tendo um serviço de espionagem, colocando guardas ao longo dos caminhos e até nas povoações brancas; de outro, viviam do comércio e seus agentes secretos trocavam armas ou alimentos por ouro, peles e por produtos de suas colheitas. Foi preciso
organizar uma grande expedição contra êles, comandada pelo ca-
pitão Bartholomeu
Bueno de Prado,
troféus 3 000 pares de orelhas! (7º)
que voltou trazendo como
Os quilombos nunca desapareceram.
Em 1769, sempre em
Minas, há a destruição de outros quilombos em Samambaia. (7º) Em 1770, a destruição de um outro quilombo, desta vez em Mato Grosso, o de Cartola. Em 1772, em São José do Maranhão, os negros fugitivos aliam-se aos índios para atacar a povoação.("”) Em 1778, dois quilombos são destruídos no Estado de São Paulo, às margens do Tietê, formados de negros de 30 a 60 anos, todos pagãos.(7*) O encontro entre negros e índios verifica-se ainda
em 1795 em Piolho, Mato Grosso. Ali vinham se refugiando, desde há 25 anos, numerosos
escravos tendo guerreado contra os
índios das vizinhanças, os cabixé, a fim de roubar-lhes as mulhe-
res; dessas uniões nasceram mestiços (de índios e de negros) que foram chamados caborés. A expedição de Francisco Pedro de Mello devia encontrar ainda seis descendentes dêsses antigos escravos que eram os chefes, sacerdotes e médicos de seus des-
cendentes; o quilombo era composto, à parte êsses velhos negros, de caborés e de índios. Viviam da pesca e da caça, cultivavam
o milho,
o feijão prêto, favas, mandioca,
batatas-doces,
ananás,
tabaco, algodão e bananas; criavam galinhas e faziam roupas de
algodão. Em São Vicente, no primeiro quilombo aprisionado (6 negros, 8 índios, 19 índias, 10 caborés homens e 11 mulheres) (75)
J.
RESENDE
SILVA,
“A
Formação
Territorial
de
Minas
Gerais”,
Anais do III Congresso Sul-rio-grandense de História e Geografia, vbl. III, p. 707. J. DORNAS FILHO, “Povoamento do Alto 8. Francisco”, Sociologia, XVII, I, pp. 70-109. Diogo de VASCONCELOS, op. cit.. p. 164. É. CARNEIRO, O Quilombo de Carlota, obra inédita. Cônego KR. TRINDADE, op. cit., p. 277. Alres da MATA MACHADO Filho, “O Negro e o Garimpo em Minas Gerais”, R.A.M.S.P., LXI, 1939, p. 277. J. EUGÊNIO DE ASSIS, “Levante de Escravos no Distrito de São José das Queimadas, Estado do Espírito Santo”, Rev. do Museu Paulista, 1948, e I. FALCONI, “Um Quilombo Esquecido”, Correto das Artes, João Pessoa, 25-9-1949, pp. 8-9. Os quilombos de Minas existiram até o século XIX como mostram os livros de REZENDE, Recordações, p. 43, e B. GUIMARÃES, “Uma História de Quilombola”, Lendas e Romances. (78) Diogo de VASCONCELOS, op. cit., p. 168. (77)
(18)
184
Resende
N.
SILVA,
RODRIGUES,
op.
op.
cit.,
cit.,
p.
p.
707.
149.
descobriu-se que os índios e os caborés já conheciam a doutrina cristã e a língua portuguêsa, aprendidas dos antigos escravos. Mais além, foi descoberto um grande quilombo, formado por dois blocos, um de 10 e outro de 11 casas, distantes um do outro
cêrca de 50 passos. Os quilombolas abandonaram-no para reconstruí-lo mais nas profundezas das matas, sempre dividido em dois campos, mas desta vez distantes um do outro cêrca de três
léguas; o primeiro comandado
pelo negro Antônio Brandão, com
14 negros e 5 escravos, o segundo pelo antigo escravo Joaquim Félix com 13 negros e 7 negras. Talvez esta distinção em dois
campos represente a aceitação da divisão dualista dos clãs exógamos dos índios.("º) O movimento de formação dos quilombos não desapareceu senão no século XIX. Em 1810, um quilombo
é descoberto em Linhares (Estado de São Paulo).(8º) Mais ou menos em 1820, J. E. Pohl devia encontrar um quilombo na região de Minas, formado de fugitivos do Estado de São
Paulo; diz êle: “Tinham também um sacerdote que devia cele-
brar os serviços religiosos”.(8!) Existia ainda em 1828 um quilombo às portas de Recife, em Cahuca, governado por um chefe, Malunguinho, cercado de fossos e paliçadas, de onde os quilombolas saíam para fazer incursões e onde viviam sob uma forma comunista, o que parece indicar, ainda aqui, um retôrno às tradições africanas.(*?) Em 1829, os índios são encarregados de destruir um outro quilombo em Corcovado, perto do Rio.(%)
Em 1855, um outro é destruído na Amazônia, o quilombo de Maravilha. (º*) Em 1866, os negros do Pará ainda fugiam para as povoações indígenas da Guiana Francesa. (*) Como se vê, a documentação de caráter sociológico de que
dispomos para o estudo dos quilombos não é muito rica.
As
pessoas da época não se interessavam pela organização interna
e pelos costumes dêsses negros fugitivos, e sim pelas medidas militares tomadas para destruí-los. Entretanto, como em Pal-
mares, temos a impressão, na maioria dos casos, de estarmos em presença de situações de regressão tribal, de fuga para a África. A religião desempenhou um papel nesta resistência cultural, e isso (79) (80)
(81)
J.
(83)
DEBRET,
(82) pp,
Roquette PINTO, Rondônia, pp. 31-45. Documentos Interessantes, LIX, p. 319.
512-13.
E.
e
da
Reise
ainda
de cauris). (84) Fr. Protasia
Kahyana",
(85)
Rev.
Perdigão
COSTA,
Voyage
DABADIE,
encontram-se
uso
POHL,
Pereira
do
in
Inners
“Folklore
Pittoresque,
Récits,
traços
de
FRIKEL. Museu
von
p.
p.
56.
sobrevivências
da
34.
I,
WALSCH,
“Tradições
Paulista,
MALHEIROS,
Brasilien,
4
II,
Pernambucano”,
pp.
307-8.
R.I.H.G.B.,
R.I.H.G.B.,
Notices,
p.
religião
série,
Escravidão
no
1955,
Brastl,
pp.
342
90,
t. 40. vol.
(neste
africana,
Histórico-lendárias
nova
t.
144,
texto
como
O
dos Kachuyana
227-29.
cap.
II.
135
é o que prova o quilombo do rio Tietê onde todos os habitantes
eram “pagãos”. Ainda no início do século XIX, o inglês Burton descobre, entre os quilombeiros das cercanias de Diamantina, so-
brevivências africanas, como o uso de certos encantamentos e a utilização de veneno (strazoninum).(**) A medida que a civilização dos brancos se estendia para dentro da faixa litorânea e penetrava no interior, os negros fugitivos iam cada vez mais entrando em contato com os índios que aí anteriormente tinham se refugiado. Falou-se muito que os africanos e os indígenas eram ini-
migos e lutas entre êles amiúde se verificavam.
Mas o ódio co-
mum aos senhores brancos impeliu-os a uma compreensão mútua e se irmanaram.
Ora, tôda vez que essa união se verificou, nota-
-se que é o negro quem lidera a nova comunidade, seja reduzindo o índio à escravidão, como na Bahia em 1704, seja tornando-se
o chefe, militar ou religioso, como em Mato Grosso, em 1795.
Muitas vêzes um mulato, diz d'Assier em 1867, fugindo à escravidão ou desertando do serviço militar, era proclamado chefe pela tribo índia em que se refugiava. (37)
Coisa mais curiosa ainda, observamo-la por duas vêzes, é essa escolha recair sôbre uma mulher negra, e a única razão válida para isso é de ordem religiosa; a mulher passava por ter virtudes mágicas especiais, estando mais sujeita que o homem às crises místicas. Formou-se então um sincretismo religioso em que o elemento dominante devia ser fornecido pela civilização africana; foi ela que forneceu a liturgia e a mitologia, no caso
do negro sacerdote e os processos de cura mágica, no caso do
negro médico.
Mas, mais curioso ainda, é que êsse sincretismo
foi acrescido de traços culturais brancos e que o negro foi um instrumento de difusão do catolicismo português entre os índios, um catolicismo provavelmente bastante modificado e corrompido. Bem entendido, o índio também trouxe sua parcela de contribuição a êste curioso povo nascido em pleno sertão brasileiro. A organização tribal dos negros tinha sido inteiramente destruída pelo regime de escravidão e apenas subsistiu nos espíritos como uma lembrança das antigas monarquias de caráter divino. Os indígenas, ao contrário, tinham conservado sua antiga estrutura
social.
Dessa maneira, criou-se um sistema social que unia a
organização dualista da tribo indígena (os dois blocos ou campos
dos quilombos de Mato Grosso) com a federação tribal africana p.
o 486) 97. (87)
136
R.
E.
BURTON,
D'ASSIER,
Le
Explorations Bréstl
of
the
Contemporain,
Highlands p.
80.
of
the
Brazil,
II,
sob a autoridade de um rei-sacerdote, pelo menos é o que inferi-
mos dos documentos que citamos. Tudo isso certamente pertence ao passado. Porém, êsse passado não morreu sem deixar vestígios que ainda hoje se en-
contram. Não podemos saber até que altura penetraram os escravos fugitivos, nem o grau de difusão de suas culturas. Martius
pensa que devem ser muito raras as tribos ameríndias que não
entraram em contato com os africanos.(º*)
Roquette Pinto re-
monta a origem da agricultura nambiquara nos quilombos dos
caborés.(*º) Descobriram-se sobrevivências dêsses mocambos de negros fugitivos até na Amazônia, por exemplo, nas margens do
uma
Trombetas,
em
Alcobaça,
negra, Felipa Maria
cujo
Aranha,
mocambo
era
tão poderosa
dirigido
por
que os portu-
guêses precisaram se aliar a ela em lugar de combatê-la e cujos
descendentes tornaram-se guias dos viajantes que queriam descer as cataratas do Tocantins.(ºº?) Quando os lusitanos chegaram
a Passanha (Estado de Minas Gerais) tôda a região era povoada por índios malali, entre os quais viviam negros fugitivos; êsses índios haviam aceito como chefe ainda aqui uma negra.(º!) Saint-Hilaire que os visitou em 1817 os achou com o aspecto físico mais de mulatos do que de índios; o chefe malali lhe disse que sua avó era negra.(º2)
Quando Saint-Hilaire visitou em 1819 os caribocas de Minas prestes a desaparecer (não havia mais que 18 aldeias), mulatos e negros crioulos para aí vinham casar-se com as índias, a fim
de poderem desfrutar da situação privilegiada que gozavam os índios no Brasil; éle aí devia encontrar um curioso sincretismo
de crenças, onde o catolicismo desempenhava uma função indireta, nenhum
sacerdote desejando
ir à povoação.
A língua era
a tupi; Deus era adorado com o nome de Nhandinhan.(º**) Em outros lugares é a religião indígena que parece dominar, como
na povoação de Mato Alto (Minas), onde as mulheres macunis
se casam com os negros, e onde Saint-Hilaire as viu, quando o vento soprava com violência, fumar diante de suas casas para
(88) Citado por Roquette PINTO, op. cit., p. 32. Cf. Anais do Museu Paulista, V, 1931, p. 703. (89) Idem, p. 38 n. . (90) R. MORAES, Anfiteatro Amazônico, pp. 135-49. Nunes PEREIRA, “Negros Escravos na Amazônia”, Anais do X Congresso Brasileiro de Geografia, HI, 1952, p. 178. | (91) SAINT-HILAIRE, Voyage dans les Provinces de Rio de Janeiro et de Minas Gerais, 1, p. 413, (92) Id., ibid., p. 424. (93) SAINT-HILAIRE, Voyages aux Sources du Rio S. Francisco, JI, PP. 253-71.
137
espantar o furacão. Evidentemente, tudo isso acontecia verniz do cristianismo oficial. (**) Ao lado dêsses quilombos afastados, existiram por da natureza do país, das montanhas virgens cheias de próximas às grandes capitais, pequenos quilombos de
sob o causa matas, negros
puros, sem interferência do índio. Foi êsse o caso, por exemplo, do quilombo de Manoel Congo, nas matas de Santa Catarina,
perto de Petrópolis, destruído em 1839 por Caxias.(º')
Temos poucas informações sôbre o papel que aí desempenhava a religião. Mas, pode-se fazer uma idéia, pela reunião
de tôdas as etnias que conhecemos, indiretamente, pelos nomes de
alguns de seus membros: Manoel Congo, Justino Benguela, Antônio Nagô, Canuto Moçambique, Afonso Angola, Miguel Criou-
lo e Maria Crioula. O denominador comum dessas raças diversas não podia ser senão o catolicismo mais ou menos mesclado
com o “fetichismo” nativo.
Demais, êsse quilombo situa-se numa conjuntura de assassi-
nios, de mortes, de fugas individuais ou coletivas e de revoltas,
onde a religião não cessa de intervir ao lado do sofrimento físico e moral. Talvez mesmo a maçonaria tenha dado aos homens de côr a idéia de uma revolta geral, posterior ao esmagamento do
quilombo de Santa Catarina por Caxias, visto que uma subleva-
ção foi preparada por uma sociedade secreta dividida em círculos de 5 membros, que não se conheciam, cada um sendo ligado somente por um presidente ao chefe supremo, um mulato livre, ferreiro, Estevão Pimentel (1847). Mas os negros não tinham ainda a tradição da sociedade maçônica; tinham um patrono
negro, Klbanda,
e tinham mais confiança em
sua intervenção
sobrenatural que na organização e nas ações políticas. Foi êsse catolicismo atrevido e semipagão que os perdeu e fêz malograr
a conspiração. Se bem que esta tentativa de revolta fôsse posterior ao quilombo, ela nos esclarece e justifica nossa hipótese precedente de que nessa época o elemento religioso que susten-
tava a fé dêsses indivíduos humildes ancestral que o cristianismo popular.
era menos
o “fetichismo”
Mas êsses são fenômenos posteriores que datam do Império. Para os tempos coloniais, nos cremos autorizados a dizer que os quilombos foram um fenômeno de resistência de uma civilização
que não quer morrer; por conseguinte, uma luta em que a religião (94)
SAINT-HILAIRE,
(95) Carlos LACERDA R.A., 1935, 50 pp. Temos
enviado trado
136
nos
por
P.
de
Arquivos
Voyages
CARVALHO de
auz
MARCOS, O igualmente
Mariana.
NETO,
Provinces
Quilombo em mãos
sôbre
um
de
Rito,
de um
II,
p. 49.
Manoel Congo, Rio, documento inédito
quilombo
no
Rio,
encon-
Africana tem lugar de destaque, do mesmo modo que um simples protesto contra o regime de escravidão. O que confirma êsse modo de ver as coisas é que os quilombos estão transformados, que a tradição negra os relembrou, e como outrora os me-
nestréis cantaram os feitos de Carlos Magno
e de seus bravos
em suas canções de gesta, da mesma forma Palmares tornou-se
um drama popular, mesclado de cantos e danças, subsistindo em
Alagoas
até o comêço
do século XIX,
no folclore dos negros.
Ora, êsses quilombos da massa de côr conservaram o caráter de um protesto racial: O
Diverte-te negro branco aqui não vem Se êle vier
O
diabo
o
levará.(98)
Os sociólogos que estudam os contatos de civilizações heterogêneas são obrigados a classificar os fenômenos nos quadros conceituais para melhor interpretá-los e para distinguir assim os fatos de* 'contra-aculturação” dos fatos de “sincretismo” que seriam o contrário dos primeiros, fatos de acomodação à civilização dominante. Na realidade, êsses conceitos atingem apenas
um certo grau de abstração.
O sincretismo é sempre mais ou
menos “contra-aculturativo”, “sincrética”.
e a aculturação
mais
ou
menos
O estado do escravo fugitivo é mais uma nostalgia da África
do que sua reconstituição exata
(no caso brasileiro, a reconsti-
tuição principalmente da África banto, com seus grandes reinos),
visto que as condições geográficas, demográficas, políticas são
outras, às quais é preciso se adaptar. Sobretudo, não se pode separar êsse estado da situação social total em que aparece e
que é de luta de um grupo explorado contra a classe dirigente.
O quilombo ou o mocambo está sempre em pé de guerra; ora, não se luta adaptando-se ao adversário; a guerra, do mesmo modo que a troca pacífica, é um dos processos pelos quais as
civilizações se interpenetram ao mesmo tempo que se combatem.
Os quilombos são certamente não conseguiram esquecer as negros crioulos; não impede regime de escravidão, pela
mais a obra de africanos puros que realidades de seus países, que dos que já tenham sido atingidos pelo catequização, mesmo superficial e
externa: o santuário dos Palmares abriga santos católicos; o ne-
do
(98)
A. BRANDÃO,
Alagoas”,
Estudos
Viçosa
de Alagoas,
Ajfro-brasileiros,
pp.
PP. 95-8, e “Os
89-90.
Negros
na História
139
gro fugitivo levará aos índios de Mato Grosso, em lugares jamais
tocados pelas missões cristãs, os rudimentos do catolicismo.
nial,
Todos os fenômenos religiosos africanos da época coloou quase todos, devem ser interpretados através dêsse
clima de resistência cultural; mas a resistência não é um fenômeno normal: produz distorções, cria estados patológicos, endurece tanto os espíritos quanto as instituições. Uma certa
interpretação marxista do estado de escravo fugitivo não nos pareceu possível; a resistência não foi apenas essencialmente uma resistência econômica contra um determinado regime de
trabalho,
mas
a resistência
de
tôda
a civilização
africana
da
qual a dureza do trabalho servil intensificava a nostalgia. E a prova está em que a religião aqui não aparece, como hoje, separada do resto da vida social, mas, sim, como no país dos ancestrais, em estreita interpenetração. É por meio da concepção marxista da luta de classes, porém, que se pode melhor
compreender a natureza do estado do escravo fugitivo com a condição de definir a classe em tôda a sua complexidade, não
só pelo regime de produção, mas pela sua cultura própria. Dêsse ponto de vista, constitui a primeira etapa desta luta a segregação da plebe no monte Aventino. Uma segunda etapa deve seguir: a da revolução armada; se os quilombos definem melhor
as formas de resistência dos séculos XVII
revoltas constituem, século XIX.
140
por
sua
vez,
a forma
e XVIII,
característica
as
do
CAPÍTULO
IV
O Elemento Religioso da Luta Racial Vimos
dos
escravos
o lugar contra
que
ocupava
o regime
a religião
servil.
Mas
nas insurreições
nem
todos
os ho-
mens de côr eram escravos. Nas cidades principalmente formou-se pouco a pouco uma plebe composta de negros libertos dos mulatos artesãos, milicianos, soldados dos regimentos dos Henriques... e, se bem que ela constituísse a camada mais baixa da população livre, formava, em relação aos escravos,
uma camada superior na escala social.
Esta população urbana era uma população marginal.
um lado, pelo trabalho livre, aproximava-se
dos brancos
outro, pela côr, era rejeitada da verdadeira sociedade.
portanto,
incidente,
sofrer por causa
todo
de sua condição
o ressentimento
racial,
recalcado,
tôdas
De
e, de
Devia,
e, ao menor
as injustiças
suportadas em silêncio, todos os ódios acumulados, deviam se mostrar bruscamente, explodir em insurreições caóticas. Nesse nôvo tipo de revolta que vamos agora estudar, pode parecer a priori que a religião não exerça grande função. A simples pas-
sagem do regime servil para a plebe urbana era, no fundo, uma ascensão, e numa sociedade onde os brancos dominavam, subir era forçosamente assimilar-se a êles, perder, sob a côr, tudo o que
os antepassados tinham trazido consigo da Africa “bárbara
Mas,
estava a religião totalmente
A primeira
“Conspiração
dos
ausente
delas eclodiu em Alfaiates”,
porque
1798
dessas
insurreições?
e é conhecida
alguns
de seus
e seu chefe eram alfaiates, ou ainda “Conspiração
como
membros
dos Búzios”,
porque seus membros se reconheciam por essa concha africana que traziam pendurada num colar.(/) Os conjurados eram
todos pessoas humildes,
alfaiates, carpinteiros, pedreiros, obrei-
ros, mulatos ou negros livres e mesmo escravos; destacam-se sômente dêsse fundo escuro um notário, um professor de latim, (1)
G.
BARROSO, História
Secreta
Galego. Álvares do AMARAL, Resumo A. RUY, 4 Primeira Revolução Social
do
Brasil,
Cronológico, Brastleira.
1937.
p. 234
V.
CORREA,
Mata
e, principalmente
141
um tenente de artilharia, talvez sacerdote; êstes foram soltos por falta de provas. Os conspiradores de côr não eram ignorantes: dos 9 escravos detidos, um só era analfabeto; os mulatos e os negros livres sabiam todos ler; conheciam as idéias
da Revolução através dos oficiais franceses que estavam na prisão, mas com direito de sair, e com os quais se encontravam em
ágapes
fraternais;
o escravo
mestiço
Luiz
Pires
tinha
um
livro manuscrito para “desiludir as pessoas da religião”, sem dúvida tradução de algum filósofo do século XVIII. Não
obstante
a posição
do homem
de côr, a insurreição
não é uma revolta de raça, mas de classe. É uma revolta social dos deserdados da vida contra a ordem existente. Os atos de penhora mostram que tinham apenas móveis velhos, roupas usadas
e seus
instrumentos
de trabalho;
a liquidação
não
ul-
trapassou a quantia irrisória de 36$000; o único que possuía
um pouco de dinheiro líquido não tinha mais de 8$000; alguns viviam mesmo
da caridade
pública.
O que desejavam era um
regime de liberdade e de igualdade para todos:
Tomai coragem, povo da Bahia, dizia a proclamação que tinham afixado nas praças e nas igrejas, o dia feliz de nossa liberdade chega, o momento em que seremos todos irmãos, em que seremos todos iguais (...)
Mas, na medida em que a classe dos artesãos pobres era recrutada entre as pessoas de côr, a reivindicação racial se fazia juntamente com a reivindicação social. É por isso que podemos perguntar se algum elemento religioso não se introduziu em
seu
protesto.
A impressão que se tem, quando se lê os documentos do processo que pôs fim à trama, é a extrema confusão dos pensamentos
entre
os
próprios
conjurados,
alguns
ateus,
mínimo, anticlericais, alimentados nas fontes da filosofia minismo, mais ou menos bem digeridas, outros como Faustino dos Santos Lyra, com quem se encontrou, ao escritos liberais, uma considerável coleção de orações,
damente num
Roma,
religiosa.
a todos,
142
de uma
de “Amerina”.
de estar aberta Por certo, os do Rosário, de no catolicismo
parece
ter sido uma
no
do IluManuel lado de profun-
idéia co-
a da separação da igreja brasileira da igreja de
a fundação
chamavam
Entretanto,
ou,
igreja nacional independente,
que
O que a caracterizaria seria o fato
ao homem de côr e não unicamente aos brancos. brasileiros escuros podiam ter suas confrarias: São Benedito, porém, essa separação de côres revoltava a consciência de igualdade dos cons-
protestam,
que
piradores,
documento
num
com
encontrado
Luiz Gonzaga das Virgens, contra o fato de mulatos ou negros
“não serem admitidos nas corporações da igreja pública”, a êles sômente sendo permitida a formação de suas próprias “capelas particulares feitas com seu próprio dinheiro e à custa de muito trabalho” e que não são reconhecidas “da mesma essência” que as confrarias do Santo Sacramento, as ordens segundas e terceiras dos Franciscanos, Dominicanos, Beneditinos,
o protesto religioso não foi um
Dessa maneira,
Carmelitas.(?)
protesto religioso prôópriamente dito:
se reveste o protesto racial. tinha base mística, mas,
é uma das formas de que
A revolução que se preparava não mesmo
Nem
sim, social e econômica.
pretendia dar às pessoas de côr “o sentimento de espécie”, a consciência de raça. A Conspiração dos Alfaiates malogrou.
Porém, o protesto
racial passou do campo dos quilombolas ao da insurreição política, e continua daí por diante nessa linha. Encontramo-lo vinte anos depois,
na agitação
começada
em
Pernambuco
em
1817 e que devia continuar até 1824, originar a proclamação da “Confederação do Equador”, o primeiro grande movimento de independência dos brasileiros contra o regime absolutista do Império. A revolução de 1817 foi uma revolução política e não social. Proclamou a inviolabilidade da propriedade privada,
logo, garantiu proprietários de escravos e brancos nativos contra
“os portuguêses”. Todavia, alguns homens de côr, de tendências liberais, aí apareceram como chefes.(?) Entre êles, o mestiço Pedro da Silva Pedroso que foi exilado para Portugal. Quando voltou, suas idéias não tinham
mudado, organizou com os brancos o partido dos “liberais puros” que assumiu a liderança da revolta de 1823.(*) Como era muito popular entre as pessoas humildes e os soldados de
côr, arrastou
para
batalhões
o movimento
de mulatos
e de
negros. Uma junta popular foi designada, mas bem depressa se percebeu que os liberais recusavam-se a transformar a luta
política em luta racial; a linha de côr continuou a existir entre os brancos e os negros, se bem que unidos na mesma insur-
(2) Manuscrito do Arquivo da Bahia, Inconfidência de 1789, M. 2, n.º citado por Afonso RUY, 4 Primeira Revolução Social Brasileira, p. 122. (3) F. DENIS, Brésil, p. 258. Muniz TAVARES, História da Revolução Pernambucana. Cf. também Pedro CALMON, História do Brasil na Poesia
20,
do
Povo, (4)
Dentro
pp.
A.
da
de
96-100,
CARVALHO,
História,
p.
117
Estudos
e segs.
F.
Pernambucanos,
P.
do
AMARAL,
p.
259.
Mário
Escavações,
MELO,
p, 230.
143
reição; assim, os revolucionários brancos tentaram se livrar de Pedroso, tirando-lhe o título de comandante de tôdas as Fórças
Armadas.
Sua popularidade, contudo, era tal que saiu vencedor
e foi a Junta que finalmente teve de resignar, não êle.
O pro-
testo racial podia, agora, se manifestar livremente. Conta-se que Pedroso gostava de comer cercado de negros e de mulatos, tendo estreitada contra si uma negra, a quem
dizia: “Sempre amei esta côr, é a minha raça”.(*) Na cidade, abandonada pelos brancos, que tinham fugido ou que se encontravam entocados em suas casas, a populaça de côr, bêbada e seminua, vagueava cantando: É preciso
acabar
com
Os marinheiros e os brancos! Só os mestiços e os negros Devem habitar esta terra!(8)
Pouco
durou
êste breve período
de exaltação, chamado
o
govêrno dos “Matutos”. O exército regular destruiu a rebelião; os batalhões de negros e mulatos livres abandonaram-na quase no fim e Pedroso foi feito prisioneiro. No fundo, não obstante a presença de negros livres, quando bem
se
mulatos
examinam
suas
estruturas,
que própriamente
essas
de negros
revoltas
são
mais
e explicam-se mais
de
pela
posição marginal do mestiço, prêso entre duas culturas, ao mesmo tempo repelido pelo branco e pelo escravo, que por um
sentimento racial bastante pronunciado.
A prova disso temos
no fato de que o exército regular foi ajudado em sua luta contra os revolucionários pelos senhores de engenho assustados, sendo que as tropas dêsses senhores eram formadas por seus colonos, seus vaqueiros e também por seus escravos.(") Temos ainda uma outra prova no movimento de insubordinação que devia surgir no ano seguinte, ou seja, em 1824, também no Recife. Os
espíritos
pudesse
estavam
resultar
bastante
em
superexcitados
seguida.
A
notícia
para
da
due
a calma
insurreição
dos
negros no Haiti, assim que foi conhecida no Brasil, fêz com que o regimento dos mulatos (sempre êles), comandados por Emi-
liano
(5)
Mandurucci, Frei
CANECA,
se
Obras
sublevasse Políticas,
ao
p.
159.
canto
do
seguinte
(6) “Marinheiros” era o têrmo pejorativo que designava e “Calados”, aquêles que se embranquecem com cal, têrmo designava os brancos. (7) G. FREYRE, Regido e Tradição, pp. 189-90.
144
hino:
os portuguêses pejorativo que
Que
eu
imite
Cristóvão,
Êste haitiano
imortal
Imitai, pois, seu povo, Ó meu povo soberano! (8)
Mas
degenerou
desta vez a revolta não se espalhou. em
banditismo,
sendo
Recife
A insurreição
saqueada,
restabele-
cendo a ordem na cidade os negros do regimento dos Henriques. A medida que avançamos no século XIX, as revoltas tomam um caráter social mais acentuado. É que o regime imperial, permitindo à luta dos partidos a tomada de uma forma legal, não restava outra forma através da qual os infelizes pudessem fazer ouvir sua Voz. Ora, como a plebe na sua maioria era composta de pessoas de côr, veremos o protesto racial se introduzir no protesto social. Isto já é bem evidente na revolta dos “Cabanos”, das “pessoas sem terra” do Ceará lutando contra os proprietários brancos. Porém, esta revolta não nos interessa porque aí o elemento dominante é o índio. Em com-
pensação, a dos “Balaios” deve nos interessar.(?)
(1838), em que domina
Havia então no Maranhão
o africano,
dois partidos, o dos conserva-
dores e o dos liberais, conhecidos
como
os Bem-te-vis.
Ésses
apelaram para um grupo de bandidos, composto de homens de côr, que assolavam o sertão, a fim de ajudar na luta contra seus adversários. Este bando fôra organizado por um negro, Raimundo
Gomes, alcunhado de “Figura Negra”, que, tendo contas a ajustar com a justiça, fugira para o mato e levara junto outros
fugitivos de seu tipo. Entretanto, fóra bem sucedido, principalmente em aumentá-lo, apelando para as reivindicações raciais. Conclamava
os escravos
a deixarem
seu jugo,
a revoltarem-se
contra seus senhores; assim, transformou pouco a pouco seu bando de pilhagens numa hoste desejosa de redenção social. Entre os que se uniram a Gomes, encontrava-se um negro cha-
mado “Balaio”, porque fazia cêstos e que, dizia-se, ofertara a sua cabana para hospedar o oficial encarregado de perseguir os
bandidos, e fôra recompensado por êsse seu gesto aquela noite com a violação de suas duas filhas pelo dito oficial. Bem depressa,
nhas,
"(B)
o
“Balaio”
se tornou,
verdadeiro
chefe
por
sua
dêsse
crueldade,
exército
que
por
suas
faça-
compreendia
F. P. do AMARAL, Op. cit, p. 427.
(D) “Viriato CORREA, 4 Balaiada, se bem que em forma romanceada, e José GONÇALVES DE MAGALHAES, “Memória Histórica e Documentada da Revolução da Província de Maranhão”, R.I.H.G.B., X, 1848, pp. 236-362.
145
negros, também mulatos, como o “Ruivo”, caboclos como “Co-
qui” e brancos, e que chegou a reunir até 6 000 homens. Os Bem-te-vis chamaram à Caxias o “Balaio” para que aí os desembaraçasse
de seus adversários.
Mas, se êste aceitou
não foi para tomar partido numa disputa de brancos e sim para ganhar duplamente, como bandido, pilhando uma cidade que
se lhe oferecia e como homem
de côr, vingando-se dos brancos.
O prefeito de Caxias defendeu sua cidade, mas esta foi facil-
mente tomada e entregue à pilhagem. O que nos interessa, todavia, não é êste elemento de banditismo, se bem que seja essencial, mas o protesto racial que aí se fêz presente. O Balaio tomava em cada cidade que ocupava uma mulher branca e,
quando ela não mais lhe agradava, mandava chamar um padre
para casá-la com um de seus negros. Houve geria que não se podem entender senão por há muito nutridos no silêncio, como a de abrir homem e cosêlo novamente com um leitão
delmann
nos
dá a verdadeira
razão
desta
cenas de selvaódios raciais de o ventre de um dentro (e Han-
explosão
de ódio
racial quando nos diz que o ponto de partida da “Balaiada” foi uma lei que modificava as atribuições de certas autoridades
judiciárias, brancos
tornadas
correndo
queriam
livres).
o boato
em
todo
o sertão
de
que
os
“escravizar” de nôvo tôdas as pessoas de côr Mas,
o banditismo
leva
finalmente
vantagem
sôbre êste ódio do negro outrora maltratado: os brancos têm a vida poupada quando oferecem um grande resgaste. Se o
elemento racial fôra preponderante, cido que existia na mesma época,
rios
Tutuoi
e
Priá,
na
fazenda
o Balaio não teria esqueperto do litoral, entre os
Tocangura,
um
quilombo
de
3 000 negros, cujo chefe Gomes se intitulava “o imperador do Brasil”. Ora, êle não pensou sequer um momento em juntar
essas fôrças às suas. O conjunto de escravos na província permaneceu tranquilo, continuou seu trabalho na fidelidade aos senhores.(1º)
Se olharmos para trás, seremos levados a notar, todavia, que, através das lutas políticas e econômicas, uma grande trans-
formação
se
processando
operou.
sempre
nas
O
recrutamento
camadas
cada
revolucionário
vez mais
vai
baixas;
se
dos
melhores brancos, passou sucessivamente aos mulatos, depois aos
artesãos livres, depois aos soldados e finalmente à massa analfabeta. As últimas sublevações em que aparece o homem de côr são dêsse tipo, como a revolta dos Praieiros em 1848, em
que quiseram expulsar os portuguêses, chegando mesmo (10)
146
Caio
PRADO,
Evolução
Politica,
cap.
12.
a mas-
sacrar alguns
e que foi preparada por uma
campanha
na im-
prensa feita por um mulato, Figueiredo, socialista e adepto de
Fourier, a favor do desmembramento dos latifúndios e da redistribuição de terras; (!!) a dos guabirus, em 1848, da mesma
forma dirigida contra a imigração européia. Na realidade, é um fato comprovado que em todo lugar em que o imigrante
branco se introduz acaba por ultrapassar o artesão de côr, mulato ou negro livre, que vive plâcidamente de seu pequeno ofício. A luta dos guabirus é a luta dos mestiços ou dos negros possuídos pela fome contra os “ratos” brancos que vêm tomar"lhes seu ganha-pão.(!2) Houve também em Minas uma insurreição, em 1820, menos conhecida, mas que apresenta um caráter assaz especial: foi uma insurreição legal. Quando Portugal adotou uma Constituição democrática,
os prêtos das lavagens de ouro de Guaracaba (Cuaraciaba), Santa Rita, Cantagalo e de Saraguá (Sabará?), auxiliados por um fazendeiro muito rico, também prêto, nas margens do rio das Mortes, reunidos em o Fanado, fizeram proclamar a Constituição em tôdas as margens do Abaeté em Tapuias, e Araguaia, unindo-se a êstes parte das hordas selvagens de guerreiros, que habitam nas suas ribeiras. Não obstante houve forte combate entre os prêtos do Arraial de S. Bárbara e os habitantes de Paraibuna, onde os prêtos são civilizados. O fazendeiro negro Argoins reuniu um exército de 21 000 negros, a que se agregaram dois regimentos de Cavalaria. Matavam
sem piedade os que, sendo prêtos, não os seguiam;
bandeiras
e ostentavam
distintivos.
possuíam
Uma proclamação foi dirigida ao povo: “Em Portugal proclamou-se a Constituição, que nos iguala aos Brancos: esta mesma (Cons-
tituição jurou-se aqui no Brasil (...) Morte aos que nos oprimirão. Prêtos miseráveis! Vêde a vossa escravidão: já sois livres. No Campo da honra derramai a última gôta de Sangue pela Constituição
que
fizeram
os
nossos
irmãos
de
Portugal!”
Encontramos aqui a mesma aspiração de igualdade com que deparamos no Recife e na Bahia. Contudo, a repressão não tardou a chegar: proprietários de escravos, e mesmo freis e bispos, tomaram armas e destruiram o movimento, afogando-o num mar de sangue.(!*)
O elemento religioso ou cultural, que desempenhou papel tão importante na formação dos quilombos, parece ter desapa(11)
Amaro
O Sentido Social 204 (12) B. José
-5.
(13)
publicados
J.
QUINTAL, da de
DORNAS
na
4
Revolução
Revolução Praieira, SOUZA, Dicionário
Revista
Filho,
do
4
Escravidão,
Arquivo
Praieira,
p. 34. da Terra pp.
Mineiro,
V,
p. 39 e
da
120-22,
p.
e, do Gente
segundo
158.
mesmo do
autor,
Brasil,
pp,
os documentos
147
recido dêste conjunto nôvo de revoltas, onde o econômico é mais essencial que a mística, onde a reivindicação racial está essencialmente
unida
à reivindicação social.
Todavia, houve ao lado dessas insurreições, outras revoltas,
mais de escravos que de mulatos ou de negros livres, aos quais se uniram escravos fugitivos e quilombolas apenas por acaso. Passaremos a examiná-las e veremos que o elemento religioso vai retomar, ao contrário, tôda sua importância. Essas sublevações foram obra principalmente dos negros
muçulmanos. estourasse,
A primeira, que foi impedida antes mesmo
ocorreu
em
28
de
maio
de
1807.
Os
haussas
que
ti-
nham designado em cada um dos bairros da cidade de Salvador um capitão para comandá-los e um embaixador encarregado
de efetuar
a ligação
entre os
escravos.
O
mínimo
que
ambicionavam era massacrar tôda a população branca, segundo alguns; conforme outros, pôr fogo na capela de Nazaré e aproveitarem-se da amotinação que se seguiria, para apoderar-se
de
algumas
embarcações
e voltar
para
a Africa.
Contudo,
foram traídos, provavelmente por um negro de outra nação; dez dos principais capitães foram presos antes de terem executado seu plano, e — o que principalmente nos interessa aqui — descobriu-se na casa de um dêles, além de armas, “certas composições supersticiosas e de seu uso a que chama-
vam mandingas, com que se supõem invulneráveis e ao abrigo de qualquer dor ou ofensa”. Em 1809, uma segunda sublevação. Desta vez os haussas
aliam-se
refúgio
aos
nagôs;
na mata,
os
escravos
de onde
saíam
urbanos
e rurais procuraram
para roubar,
incendiar,
assas-
sinar. Não puderam resistir às Fórças Militares contra êles enviadas. Mas a sindicância que se seguiu devia revelar a exis-
tência
de uma
sociedade
secreta dêsses
escravos,
Obgoni
ou
Ahogbo. Ora, as Ogboni e as Oro, cujos chefes são os Ologbo, enquanto Ahogbo é uma de suas divindades, são precisamente
sociedades secretas africanas que, como
munho,
africanos.
foram
Por
reconstituídas certo,
os
se vê por êsse teste-
no Brasil pelos
africanistas
descendentes
insistiram
sobretudo
dos
no
caráter político dessas sociedades, que estariam encarregadas de perseguir e punir os criminosos; contudo, Bascom nota com
justa razão que esta atividade política é secundária (e a prova está em que as Ogboni não têm voz nos assuntos da cidade), que essas sociedades, que têm a mesma natureza das confrarias dos deuses, continuam com o culto da Terra-Mãe (culto mais
antigo que o dos orixás e por êste encoberto).
148
Assim,
ainda
aqui, é em tôrno da religião que se articula a revolta dos negros contra os brancos.(!!) Em 28 de fevereiro de 1813, 600 haussas das fazendas de
Manuel Ignacio de Cunha Menezes, J. Vaz de Carvalho e de outras vizinhas queimaram suas senzalas, marcharam sôbre a povoação de Itapoã onde se reuniram aos negros do lugar, massacraram os brancos que lhes resistiam, sendo porém finalmente dizimados pela tropa. O elemento místico não faltou aqui também, senão na revolta, pelo menos no movimento dos espíritos que a preparou. Os negros tinham o direito tradicional de associação para celebrar suas festas religiosas. Reuniam-se, pois, todos os domingos, sob a presidência de um
chefe escolhido, para queimar na praça de Salvador efígies de brancos. Não se dava atenção a essas reuniões. Todavia, poder-se-ia aí discernir um processo banal de magia imitativa, uma espécie de feitiço preparatório, o ritual e antes da entrada em
campo
para
destruir,
abortada,
mas
nhores inimigos. Em 1826, ainda tentativa
por
mais
onde
antecipação,
duas
era
o
tentativas.
poder
Em
fácil discernir
dos
abril,
se-
uma
a existência,
na base, do fator religioso. Foi feito prisioneiro, incapaz de fugir por causa de seus ferimentos, um rei negro, coroado de um
capuz
adornado
de
fitas,
o corpo
envôlto
por
um
manto
verde com galões de ouro e tendo nas mãos uma bandeira ver-
melha.
A rainha que o acompanhava foi morta imediatamente.
Em dezembro, alguns indivíduos decidem partir à procura de negros fugitivos que tinham formado um quilombo entre a estrada de Cabula e o baixo Urubu. O encontro foi
sangrento, e aprisionou-se uma negra que afirmou que os escravos tinham projetado uma insurreição geral na Bahia para
as vésperas do Natal e parece que o que dizia era verdade.
Em
todo caso, o que devemos
aqui
ainda considerar
é que
o
centro do quilombo e o lugar de inspiração da revolta projetada era uma
casa de candomblé,
isto é, um
gião fetichista afro-brasileira. Duas pequenas revoltas locais irrompem e em
1828.
Assim,
chegamos
templo
ainda
da reli-
em
1827
à mais grave das insurreições
de tôdas a mais conhecida, a de 1835.
e
(14) fSôbre essas sociedades secretas na África e sua verdadeira natureza, ver R. P, BAUDIN, Fétichisme et Féticheurs, p. 67. FROBENIUS, Mythologie de VAtiantide, p. 91 e segs. PARRINDER, La Religion en Ajrique Ocidental, p. 155 e segs., e, principalmente, W. R. BASCOM, The Sociological Role of the Yoruba Cult Group, p. 65 e segs., e F. M. HERSKEOVITS, Dahomey, II, pp. 178-79. Sóbre
Peoples
o têrmo
Ahogbo,
of Southern
ver DENETT,
Nigeria,
II, p.
91.
Nígerian
Studies,
cap. III, e TALBOT,
149
O número de revoltosos não ultrapassou certamente a cifra de 1.500, aí compreendidos negros fetichistas que se uniram depois aos muçulmanos. A insurreição tinha sido bem
preparada e devia irromper na noite de 24 a 25 de janeiro, em
que tôda a população de Salvador vai à Igreja do Bomfim, dei-
xando
a cidade quase deserta.
A cidade seria dividida em
5
grupos, que deviam atacar em ordem sucessiva, lançando, dessa
forma, a confusão entre os soldados, até que estando a caserna
da cavalaria tomada,
os negros subiriam até a Igreja do Bom-
fim para aí massacrar seus senhores brancos e, diz-se, elegerem não se sabe que rainha misteriosa.
Mas, ao anoitecer do dia 24, O projeto é denunciado por
uma
nagô liberta.
Precauções
são tomadas,
a sede dos revol-
tosos, uma casa próxima da subida da praça, é cercada, porém os africanos que aí se haviam refugiado, escapam repentinamente,
matando
alguns
policiais e, assim,
a rebelião começa.
Não cabe a nós aqui contar todos os detalhes desta noite san-
grenta. De manhãzinha, estava acabada, os conjurados mortos, prisioneiros ou refugiados na floresta. As “nações” de negros presos revelam a parte preponderante de muçulmanos no movimento, como dissemos, estando, todavia, os “fetichistas” junto a êles.
De fato, contavam-se
6 gêges, 21 haussas, 5 bornos,
entre êles:
165
nagôs,
3 grumas,
6 tapas, 3 cabindas, 4 congoleses,
1 camerunês, 1 barba, 3 minas, 2 calabares, 1 jabu, 1 benin, 1 mundula e também uma mulata e 1 cabra, ao todo, 220 homens
e 14 mulheres. Esta insurreição de 1835 devia ser a última. Os objetos que foram apreendidos entre os conjurados, o processo que se seguiu, os interrogatórios de prisioneiros, permitem-nos melhor
entender esta revolta em comparação com as anteriores e poder
resolver o problema de saber se essas revoltas de negros têm o caráter de insurreição econômica e social, como
a Cabanada
e a Sabinada, ou se, pelo contrário, tomam o aspecto de verdadeiras guerras religiosas.(1º) Que a religião desempenhou papel preponderante nesta revolta, desde o início, foi tão evidente que o relatório do chefe de polícia o pressentiu desde 1835: (15)
Sô0bre
essas
revoltas,
ver
Alvares
do
AMARAL,
Resumo
Cronológico,
p. 147, Braz do AMARAL, História da Bahia, pp. 119-21. E. I. BRASIL, “Os Malês”, R.I.H.G.B., LXXII, pp. 67-126. HANDELMANN, História do Brasil, p. 1813. Nina RODRIGUES, Os Ajricanos no Brasil, pp. 75-98. Aderbal
JUREMA,
Insurreições
Negras
no
Brasil,
pp.
17-32,
e
a
resposta
de A. RAMOS à A. JUREMA, “Levantes de Negros Escravos no Brasil”, Boletim da Sociedade Luso-africana do Rio de Janeiro, n.º 24, dez., 1938, pp. 15-17. Manoel QUERINO, Costumes Africanos, pp. 121-24, L. VIANNA Filho, O Negro da Bahia, p. 108 e segs.
150
Posso desde já asseverar a V. Exa,, escrevia êle ao presidente da província, que a insurreição estava tramada de muito tempo, com um segrêdo inviolável e segundo um plano superior ao que devíamos esperar de sua brutalidade e ignorância. Em geral vão quase todos sabendo ler e escrever em caracteres desconhecidos que se assemelham ao Árabe, usado entre os ussás, que figuram ter hoje combinado com os nagô (...) Existiam mestres que davam lições e tratavam de organizar a insurreição na qual entravam muitos forros africanos e até negros ricos. Têm sido encontrados muitos livros, alguns dos quais dizem serem preceitos religiosos tirados de mistura de seitas, principalmente do Alcorão (...) O certo é que a Religião tinha sua parte na sublevação, e os chefes persuadiram os miseráveis que certos papéis os livrariam da morte; isto porque encontrou-se nos corpos mortos grande porção dos ditos bem como nas vestimentas ricas e esquisitas que provavelmente perteciam aos chefes e foram achadas em algumas buscas.
O estudo de autos do processo levou primeiro Nina Rodrigues, depois Étienne Brasil e Arthur Ramos a defenderem
a
tese
1835.
No
cerdotes
çulmano
do
caráter
comêço, ou
tem
essencialmente
místico
os chefes do movimento
mestres-escola,
caráter
porém
religioso.
sabe-se
Pedro
da
sublevação
são, na maioria, que
Luna
o
ensino
era
Alumá
de
sa-
mu-
ou
Alufá, isto é, marabu, e assim era também Luís “Sanim na sua nação Tapa”. O nagô Pacífico, Licutan entre os seus, era pelos
conjurados chamado de o Sultão.
Recebia, na prisão, segundo
o depoimento do carcereiro, dias e noites, numerosas visitas de
negros e negras “que se ajoelhavam com muito respeito para lhe tomar a bênção”. O lugar que ocupava no coração de todos os muçulmanos da Bahia pode ser avaliado pela tentativa, que malogrou, de um assalto à prisão para libertá-lo e pelo esfôrço feito para conseguir a soma necessária para lhe conceder a liberdade. O carcereiro conta também que um nagô, que com êle falava através das grades de sua cela, dizia-lhe que não se afligisse, pois, “quando acabasse o jejum, êles ha-
viam de ir lá para que êle saísse liberto de uma vez”. Rodrigues,
que
analisa êsse documento,
acrescenta:
Nina
A alusão à insurreição e à sua dependência da medida propiciatória dos jejuns maometanos ou malês revela-se aqui em plena evidência.
O alufá Dandara os
Era
mestre
rapazes,
mas
em
não
sua
tinha uma terra,
é para
mal.
escola na cidade
declarou
êle,
e aqui
baixa: tem
ensinado
151
Na
sua tenda, encontraram-se
uma
túnica guerreira e um
rosário prêto sem cruz, tábuas e papéis escritos em caracteres árabes. Havia, também, a escola de Manuel Calafate, Aprígio e Conrado. A polícia aí apreendeu entre outras coisas 6 sa-
quinhos de couro que serviam de amuletos. Na casa dêsses chefes reuniam-se os
pretexto de festas ou de danças, para esta preparação se fazia sob o signo mana. As testemunhas chamadas a juízo a êsse ponto. Gaspar da Silva Cunha critos que
se lhe mostram
conjurados,
sob
o
preparar a revolta. E da propaganda muçulestão de acôrdo quanto afirma que os manus-
são de reza, pois andavam a persegui-lo para que os aprenda e deixe de ouvir missa como costumava.
Marcelina
diz
que os papéis achados são de reza dos malês, escritos e feitos pelos mestres que andam ensinando. Éstes mestres são de nação haussa, porque os nagôs não sabem e são convocados para aprender por aquêles e também por alguns de nação Tapa (...) Éles a aborreciam, dizendo que ela ia à missa adorar um pedaço de pau, que está
no
altar,
porque
as
imagens
não
têm
valor
religioso.
Os conjurados só se falavam em língua ioruba ou nagô,
chamando-se por seus verdadeiros nomes e não pelos nomes cristãos que lhes tinham sido atribuídos: Ojô, Ová, Namosin, Sanim, Sule, Dadá, Aliará, Edum, etc. Os manuscritos foram conservados. Alguns são planos de rebeliões, escritos em língua árabe. Porém, muitos são documentos religiosos. O escravo Albino, que os decifrou para a justiça, afirmou: que o segundo lhe consta já ter sido escrito, há mais de ano e meio, para o fim também de guardar o corpo das ofensas de qualquer arma, e contém orações que, depois de passadas nas tábuas, são lavadas para se beber a água que livra das armas; que o quinto, que foi achado em um breve com terra embrulhada, são como que caminhos riscados e cêrco feito, dizendo que por todo o caminho que passassem, ou ainda sendo cercados, não lhes há de acontecer coisa alguma, e por isso tinha a dita terra simbolizado o terreno do dito caminho; que o sexto é uma espécie de proclamação para ajuntar gente, com sinais ou assinaturas de vários e assinado por um nome Mala-Abubakar, afirmando que não há de acontecer coisa alguma no caminho, por que hão de passar livremente;
152
Que o nono é uma espécie de folhinha, em que os Malês sabem
o tempo dos jejuns para matarem depois carneiros. Apresentando-se-lhes duas tábuas, uma escrita e tras, êle disse que a branca já tinha sido lavada, como cara, para a água ser bebida como mandinga depois vinte vêzes, e que a outra, a escrita era a segunda aprende a escrever.(18)
Um
outra sem leêle antes indide ser escrita lição de quem
outro fato significativo é que a roupa da revolta não
é senão a mesma vestimenta litúrgica, gabão branco com cinto
vermelho,
camisa
também
vermelha,
barrete
azul
e turbante
branco, calçados brancos e também as proteções mágicas, orna-
mentos de coral, anéis brancos, amuletos em volta do pescoço, em uma palavra, todo o simbolismo das côres, das letras e dos
números
vitória.
pôsto a serviço da luta e em vista da obtenção
da
Há aí, vê-se, tôda uma série de dados que. permitem
afirmar que a revolta dos nagôs e dos haussas foi, na Bahia do início do século XIX, uma verdadeira guerra santa dos muçulmanos contra os cristãos. Contudo, êsse ponto de vista foi criticado, recentemente,
por
um
historiador
das
rebeliões
de
escravos
na
América,
Aderbal Jurema. A distinção que fizemos entre os movimentos populares e nativistas de um lado, e as insurreições negras de
outro, não lhe parece justa e êle vê, tanto numas como noutras, a expressão, antes de tudo, da luta de classes sob sua forma
colonial.
Não nega a existência de um elemento religioso, mas,
retomando em sua causa, a célebre distinção marxista, a mística não é para êle senão mera superestrutura ideológica, sendo que o único fator causal é a infra-estrutura econômica. Tudo o que a religião faz é colorir de um certo matiz a reivindicação social de uma classe oprimida; é também agregar práticas colaterais, sem nenhuma influência sôbre o movimento de revolta em si, como o uso de amuletos; dessa maneira, ainda hoje o
bandido do Nordeste, o cangaceiro, usa “fechar o corpo”, para estar ao abrigo das balas da polícia. Ninguém pensa, no entanto, religião
em
pode
dar
a seu
servir de
ser usada como
banditismo
meio,
em
raízes
místicas.
vista de um
tática revolucionária,
fim
Enfim,
econômico,
sendo o misticismo
a
sem-
pre um potencial de fôrça explosiva que pode agir como instrumento de propaganda ou de revolta. Porém, o objetivo final é a expropriação (16)
O
costume
das
de
terras
coplar
dos
versículos
brancos do
Alcorão
e sua em
posse
tábuas,
pelos
que
são
lavadas com água que é bebida ou com a qual um indivíduo se lava, para atrair sorte, continua ainda na África muçulmana. Ver, por exemplo, D. W. AMES,“The Selection of Mates, Courtship and Marriage among the Wolof”, Bul. IFAN, XVIII, 1-2, 1956, p. 160.
153
nagôs: a negra Edum, a quem Sabina pediu para ver seu amante numa
quando
reunião
de
conjurados,
variados
Assim,
evidente
“Éle
só
sairá
as superestru-
e católicas não fazem senão refletir o anta-
subjacente dos interêsses materiais
senhores.(!?)
É
respondeu:
fôr a hora de tomar a terra”.
turas muçulmanas
gonismo
lhe
que
e complexos.
essas
insurreições
Há
um
de escravos
exprimem
elemento racial:
e de
sentimentos
os haussas
e
os nagôs, que na África eram senhores de escravos e de terras,
não podiam aceitar para si próprios o estigma da escravidão. Ésses povos corajosos e aguerridos não podiam se submeter, O
elemento étnico sendo ao mesmo tempo um elemento religioso, isso porque a herança social de poderio e de militarismo que
receberam era uma herança muçulmana acumulada pelas guer-
ras
seculares
contra
os
negros
fetichistas,
sequentemente, cruzadas religiosas.(!*)
constituindo,
con-
É claro que há também
um elemento econômico. Mas não é a escravidão em si mesma que essas revoltas queriam destruir e sim, únicamente, a escra-
vidão por êsses cães cristãos dos filhos de Alá, e se queriam
apoderar-se das terras não era para as trabalhar mas para nelas fazerem trabalhar os negros crioulos e os mulatos. É o ódio do muçulmano que faz surgir a revolta e não um sentimento de consciência de classe por parte dos deserdados. O êrro de Aderbal Jurema está em ter dissociado a cultura em seus elementos para procurar o fator causal entre essas partes culturais
ou sociais dessa maneira desagregadas.
É bem verdade que o
próprio regime de escravidão tendeu, pelo contato entre as di-
versas tribos africanas obrigadas a trabalharem juntas e pela ruptura com o habitat original, a dissociar o cultural, e pelo
sincretismo, a fazê-lo perder sua unidade primitiva. Contudo, vimos, os muçulmanos continuavam a ter suas escolas e seus lugares de oração, a tradição mantendo-se viva entre êles. De
mais a mais, de acórdo com o testemunho dos que estudaram seus últimos descendentes, pouco freqiientavam os outros escravos, os negros “fetichistas” ou cristãos viviam isolados e arrogantes.(1º) Daí, não devermos considerar uma infra e uma super(17) Aderbal JUREMA, Insurreições Negras no Brasil, Recife, 8. d. Um
ponto de vista análogo defendido por Djacir MENEZES, O Outro Nordeste, Rio, 1937, e por João RIBEIRO, O Elemento Negro, pp. 33-8. (18) A. RAMOS, Levantes de Escravos, op. cit., pp. 15-17. (19) James WETHEREL, Biwstl, p. 138, nota o caráter intratável e o
espírito
constante
que, quando êste Avé6-LALLEMANT,
de
mate Reise
revolta
do
negro
maometano
seu senhor, é sempre Durch Nord-brasillen,
no
Brasil
e
acentua
possuído por fé religiosa. R. p. 47, nota da mesma forma
que não se pode separar entre os minas muçulmanos, que formam como que uma ''maçonaria” poderosa, a resistência política e gocial da resistência teligiosa, ao cristianismo que se lhes quer impor.
154
estrutura
e sim
o conjunto
de sua
vida
no
Brasil
como
um
todo, onde o protesto econômico e a reivindicação cultural formam uma unidade indissolúvel. Se a isto acrescentarmos
que tôda civilização em geral tem seu centro de interêsse e que êste centro de interêsse na civilização muçulmana é, como todos sabem, o fanatismo religioso, então a revolta de 1835 nos aparecerá como uma verdadeira guerra, dirigida contra os
cristãos
em
todos
porque a economia
Não
devemos
os planos,
quer
econômico
dos brancos era uma
esquecer
que
havia
negros livres e alguns negros ricos.
quer
religioso,
economia de cristãos.
entre
os
conspiradores
A ascensão social era pois
possível para muitos dêles. Mas, como diz Alain, se é possível transigir com os interêsses porque têm sempre alguma coisa de racional, é impossível transigir com as paixões. E o fanatismo não deixou
de arder no fundo
veis. A religião não colore essência dessa revolta.
dêsses
a revolta social,
corações indomá-
está mesmo
na
155
CAPÍTULO
V
Os Dois Catolicismos A resistência da civilização e da religião africanas não pôde todavia impedir a ação do meio católico ambiente e essa civilização ou essa religião não puderam subsistir senão se sincretizando mais ou menos profundamente com o cristianismo. Somente o catolicismo do escravo da época colonial apresenta particularidades interessantes que nos reconduzem uma
outra vez ao nosso problema central, o das relações entre as estruturas sociais e o universo dos valôres místicos, Por conseguinte, é preciso nos determos nesse ponto por um momento antes de voltar às religiões africanas.
cismo
Definimos
brasileiro
num em
capítulo anterior os caracteres do catoli-
oposição
aos do catolicismo
português;
a
transição da catedral ou da igreja provincial à capela do engenho, da religião do burgo à religião doméstica com seus santos protetores, patronos do senhor, ou dos diversos atos de sua vida familiar
(São José balançando o berço do nenê, Sta. Ana
fazendo-o dormir no seio da nutriz, São Bento protegendo-o contra as picadas de grandes formigas venenosas... ).(!)
Que lugar ocupa o escravo nesta religião patriarcal? Sem dúvida, há uma grande diferença entre a escravidão antiga, onde o indivíduo é integrado por meio de uma cerimônia religiosa na família de seu senhor, e a escravidão colo-
nial,
tanto,
onde
o escravo
a similaridade
representa
um
valor
do tipo familiar,
econômico.
o patriarcalismo,
Entre-
traz
algumas nuanças a esta oposição fundamental, aproxima o escra-
vo brasileiro do escravo grego ou romano; porque êle também, numa certa medida, está integrado à família e, por conseguinte, a
seu culto. Mas a solidariedade doméstica não impede a diferen-
ciação racial e social, donde a separação do catolicismo do branco
e do negro. (1)
Gilberto FREYRE,
Casa-grande
e Senzala,
trad,
fr.
pp. 394-95.
157
Encontramos fenômenos análogos em todo lugar onde se encontrem raças diferentes. Nos Estados Unidos, o puritano protestante, sempre ávido de propagar sua fé, catequizou O
negro, porém, o culto dêste era separado do culto dos brancos: havia
duas
cerimônias
diferentes
e,
em
geral,
com
sermões
também diferentes; a segregação se estendeu a ponto de determinar o aparecimento de pregadores de côr, encarregados da edificação de seus irmãos de raça. Daí, a existência de dois protestantismos onde se exprimem as diversidades do temperamento étnico, o protestantismo mais afetivo do negro e o
protestantismo mais racional do branco.(?) No México, a igreja toma aspecto típico, a capela real sendo construída ao lado da igreja
ou,
mais
comumente
ainda,
a capela
principal
sendo
privada de uma
de suas paredes laterais, de modo
que dava
onde
permaneciam
da
simultâneamente para a nave da igreja e para um pátio fechado
os
índios
durante
o sacrifício
missa.
Dessa maneira, conciliavam-se a catolicidade da Igreja e a separação dos brancos, aos quais a nave estava reservada, dos indígenas conquistados, encerrados no pátio.(*) No Brasil, a
capela se dividia comumente também em duas partes separadas, o pórtico ea nave. À família do branco se reservavam os bancos
da
nave,
enquanto
os
escravos
permaneciam
fora,
assistindo à missa do pórtico através das portas abertas.
Por
conseguinte, o africano estava ao mesmo tempo unido e separado, participava da religião de seu amo, embora dela parti-
cipando como
um
empregava-se
uma
ser inferior; a arquitetura se modelava
hierarquia das côres.(*)
Quando
na
essa solução não era adotada,
solução análoga
à dos Estados
Unidos:
o
capelão rezava duas missas em horas diferentes, logo de manhã
para os negros e, mais tarde, para a família do senhor branco: Nas
fazendas
missa, escreve
e engenhos
o Visitador
há muitos
Cristóvão
escravos que nunca
de Gouveia
ouvem
ao prior dos Je-
suítas, ainda que tenham nelas sacerdotes que as digam, por serem as igrejas pequenas, e os escravos andam nus; e, pelo mau cheiro, não os deixam os seus senhores e portuguêses estarem nem dentro nem fora das igrejas. Além disso, logo em amanhecendo, nos dias (2) H. POWDEMAKER, After Freedom. A Cultural Study in the Deep South, principalmente pp. 221-96. Bertam WILBUR DOYLE, The Etiquette of Race Relations in the South, principalmente o cap. IV. Publicações da The Atlante University, VIII. The Negro Church, 1893. Caster GODWIN WOODBON, The History Of the Negro Church, Washington, 1921. Jerome DOWD, The Negro in American Life, cap. 25, etc. (3) Louis GILLET, “L'Art dans 1'Amérique Latine”, in A. MICHEL, Histoire de WV Art, t. VIII. (4) Luiz SAIA, “O Alpendre nas Capelas Brasileiras”, Revista do Serviço do Patrimônio Histórico, III, 1939, pp, 235-40.
158
santos, vão buscar de comer nos matos, por seus senhores não lhos dar. Pelo que nos parece que seria de muito serviço de Nosso Senhor alcançar do Papa que estendesse o privilégio que temos,
de dizer duas missas
ao dia em
diversos lugares,
a dizerem-se
no
mesmo lugar, em diversos tempos. Uma, logo pela manhã, aos escravos; e outra aos portuguêses, como se costuma. E se êste privilégio se estendesse aos clérigos seculares, para o mesmo efeito, seria grande bem, porque tôdas estas 15 ou 20 mil almas parece que não têm mais que o nome de cristãos (1584).(8)
Se,
dêsse
Estados
Unidos
ponto
de
e tendia
vista,
o Brasil
à separação
dos
se
aproximava
dois
dos
catolicismos,
não chegava, contudo, a realizá-la completamente, porque impedia à consciência de raça exprimir-se através da experiência mística, já que o catolicismo do negro era controlado por um líder branco. É o aparecimento do pregador de côr que possibilitou nos Estados Unidos a segregação de dois tipos
bem diferentes de religião, e a prova está em que após a guerra civil, são os próprios negros que reclamam a separação das Igrejas, que pedem a constituição de seitas de negros. Sen-
tiam
que
assim
poderiam
vindicações raciais.
mais
facilmente
exprimir
suas
rei-
No Brasil, pelo contrário, o negro, mesmo
o livre, não podia Quando se via um
pretender entrar nas ordens eclesiásticas. padre de côr, êste provinha ou de Cabo
Verde ou de Angola.(º”)
Se o mulato, em geral claro, pôde isso
conseguir posteriormente,(”) foi porque a mentalidade a seu res-
peito
era
diferente
no
Brasil,
em
relação
âquela
dos
Estados
Unidos, em que uma só gôta de sangue negro basta para classificar um
homem
como
negro;
o mulato
brasileiro,
como
já
vimos, podia se inserir fácilmente numa sociedade mais amestiçada, e se considerava, êle mesmo, mais como um membro
do grupo branco que do grupo africano. (5)
Serafim
(7)
G.
(6)
LEITE,
TOLLENARE,
F.
História
Notas
MATHISON,
da Companhia
Dominicaes,
Narrative
of
a
p.
Nos Estados
de Jesus
159.
Visit
to
Unidos,
no Brasil, II, p, 355.
Brazil,
p.
159.
Mas
êsse
gacerdote mulato não oficiava senão para a sua classe; ver: R. WALSH: “Os negros oficiam nas igrejas tal como os brancos (...) No Brasil pode-se ver um negro como ministro oficiante, os brancos recebendo O sacramento
de suas mãos”, Notices of Brazil, p. 365. Entretanto, Victor JACQUEMONT, que visitou o Prasil em 1828, nota que os negros preferem os sacerdotes mulatos aos curas brancos (A. de TAUNAY, Rio de Janeiro de Anianho, p. 513). Na época colonial, era preciso autorização da Igreja, aliás, para que
pelo
o
mulato
Papa
(Caio
pudesse
PRADO,
entrar
nas
Formação
ordens;
do
esta
Brasil
autorização
Contemporâneo,
era
p.
outorgada
278).
Sob
regime monárquico, pelo contrário, o mulato claro, quase branco, pôde alcançar os mais altos graus da hierarquia eclesiástica, tornar-se arcebispo
como D. Silveira Pimenta, Vieira (Nelson de SENNA,
bispo como D. Prudêncio Gomes Africanos no Brasil, pp. 45-6),
e
D.
Modesto
159
o mulato
é frequentemente
o líder de homens
de
cór;(º)
êste
fato não se verifica, senão raramente, no Brasil. O que resultou foi que a liderança religiosa aqui pertencia ao branco e que o catolicismo negro se justapunha ao dos seus senhores, numa esfera mais baixa da hierarquia, um pouco desdenhado e julgado inferior, mas ainda assim de natureza similar.
Esta identidade de natureza
ao lado da desigualdade
de
grau se manifestou muito bem em tôda a vida da família patriarcal. O catolicismo com seus ritos ritmava o dia como seguia também o ritmo das estações, a ronda do ano. O
escravo
entrava
nesse
ritmo
cristão
ao
lado
do
branco,
mas
sempre numa posição subordinada, estando também bem indicado que fazia parte da comunidade doméstica enquanto comu-
nidade religiosa, mas como um ser inferior e enquanto proprie-.
dade do senhor. Em suma, a estrutura da família patriarcal escravista inibia o igualitarismo cristão e se opunha ao desenvolvimento de uma das tendências características da Igreja. Um observador anglo-saxão, James Wetherel, fala da cortesia natural dos escravos, sempre solícitos a vos saudar quando
vos
como
encontram.(?)
nos
Estados
E,
de fato,
Unidos,
se
para
desenvolveu
regular
tanto
as relações
no
Brasil
raciais
e
para marcar as distâncias sociais, tôda uma etiquêta que con-
sistia de saudações estereotipadas.(!º) Mas, enquanto a etiquêta norte-americana era mais laica, a brasileira se processava num clima católico:
A saudação comum de um negro batizado do interior é “Jesus Cristo” e a resposta é “para sempre” (...) Uma outra resposta é “Em Deus”, contração da frase, “Louvado seja Deus que Taz todos os santos”. Quando no comêço eu encontrava nas estradas grupos de negros que a mim estendiam as mãos, pensava que eram mendigos. (11)
Ora, esta troca de polidez que exprimia, de um lado, a submissão do escravo, e de outro, o caráter paternal do senhor,
que de um lado os unia na mesma fé, embora ao mesmo tempo marcando bem a hierarquia de suas respectivas posições no
universo da vida religiosa, se verificava nas fazendas nas diversas partes do dia, mais especificamente na parte da manhã (8) W. LLOYD WARNER, Buford H. Color and Human Nature, Washington, 1941, (9) WETHEREL, Brazil, p. 7.
JUNKER, cap. IV.
the South, Chicago, 1937, John DOLLARD, Town, Yale University, 19937. (11) WALSCH, Op. cit., p. 341.
Caste
(10)
160
Bertram
WILBUR
DOYLE,
The
Etiquette
Walter of
and
Race
Class
A.
in
ADAMS,
Relations
a
in
Southern
antes do trabalho e na tarde depois dêle, momentos em que o negro se achava em contato direto com seus senhores. Na
parte da manhã antes da distribuição das tarefas e antes de partir, os negros cumprimentavam a autoridade com a mão, dizendo: “Louvado seja Jesus Cristo”. O senhor respondia “Para sempre”.
À tarde, cada um beijava a mão do senhor, di-
zendo: “Pai, dai-me tua bênção” ou, ainda: “Os nomes de Jesus e Maria sejam louvados”.(!?) Alguns cumprimentavam ajoelhando-se, êsse
outros
ritual tomava
uma
não.(!*) forma
Nas
famílias
ainda
mais
mais
católicas,
desenvolvida,
como
na fazenda do Jaraguá, de D. Gertrudes, visitada por Kidder.(!*) Contudo, o catolicismo não ritmava somente com essas cerimônias domésticas, o dia do escravo; ritmava também a vida da fazenda durante o ano inteiro, e, consegiientemente, o escravo
estando integrado na fazenda, participava de seu culto mas sempre na mesma posição subalterna. As grandes festas que
interrompiam
o trabalho
da família senhorial.
eram,
de início, festas de aniversário
Uma missa era então celebrada em lou-
vor ao senhor; os negros não eram admitidos na capela, deviam
permanecer fora, mas celebravam o fim da um hino, às vêzes em sua própria língua.(15)
nham
as festas agrárias,
missa cantando Em seguida vi-
a da colheita nas plantações
de café,
a do comêço da moenda nas plantações de cana-de-açúcar.
Moraes nos deixou, datando
Melo
da época imperial, uma descrição
desta última festa. Em abril, os escravos punham tudo em ordem, limpavam tudo: a casa, O pátio, o engenho. Na véspera da chegada do senhor, enfeitavam tudo com flôres, ramos verdes, troféus e arcadas, guirlandas entrelaçadas de bandeiras, enquanto os cozinheiros de côr preparavam o banquete, para o qual se havia sacrificado um boi, carneiros e inúmeras galinhas. No dia seguinte
chegava
colheitas
futuras
o senhor
cercado
de
seus parentes,
de
seus
amigos, seguido do vigário, ao som da música local. Dizia-se que não se podia começar a moenda antes de o engenho ser bento. Senão iria tudo mal, as máquinas se quebrariam, as se
estragariam,
os
escravos
morreriam,
ou
mesmo, uma desgraça atingiria a família do fazendeiro. Na capela cheia de gente, o padre dizia a missa, indo depois benzer (12) (13)
Pitoresco,
M. GRAHAM, TOLLENARE, pp.
38-43.
Voyage to Brazil, p. 146. Notas Dominicaes, p. 81,
e
RIBEYROLLES,
(14) D. P. KIDDER, Reminiscências, pp. 203-4. Cf. A. BRANDÃO, Negros na História de Alagoas”, Estudos Afro-brasileiros, p. 80. (15) D'ASSIER, Le Brésil Contemporain, p. 150.
Brasil “Os
161
o engenho. Quando êle jogava a água benta, os negros se precipitavam a fim de receber a maior quantidade possível pois criam que essa água tinha para êles podêres miraculosos de proteção.(1º) As primeiras canas eram colocadas cerimoniosamente sob a mó, bebia-se o primeiro suco do moinho e a festa terminava num grande baile. Bem entendido, êsse “baile do açúcar” estava subordinado à estratificação social, os brancos
dançando entre si, enquanto os escravos, divertiam à sua própria maneira.(17) O
escravo
não
trabalhava
nos
por outro lado,
dias
santos;
se
participava
ainda dêsse grande ciclo de festas que vai desde o Natal até a semana santa. Mas sua festa, coincidindo no tempo sempre com a de seu senhor, permanecia apenas contígua àquela, co-
memorando-se
segundo
manifestava melhor se alegrar quando
branco negro,
permanecia
outros
ritos.(!8)
Esta
“distância”
se
em
compensação,
ainda pelo fato de que se o negro devia
o branco se regozijava,
dessa maneira
à parte
das
próprias
festas
religiosas
significando que êle, o negro,
o
do
devia ten-
tar elevar-se respeitosamente à religião de seu senhor; êste, por sua vez, não
tinha de descer
até o catolicismo
de seu
escravo.
Por exemplo, o convento de Olinda, que tinha uma propriedade
de uma centena de escravos, consentia em deixá-los celebrar sua
padroeira Nossa Senhora do Rosário. para nomear um comitê, encarregado
Os negros se entendiam de fornecer as velas, de
preparar os fogos de artifício; designavam
controlar
fundos
as
despesas
necessários.
e
Se um
cotizavam-se
a
um
fim
ecônomo
de
recolher
para
os
branco aparecia era sômente para
vigiar, de mêdo que tudo terminasse em disputas e contendas.(!º)
Em outras fazendas, o proprietário até mesmo contribuía para as despesas e à noite dava uma breve volta entre as rodas de seus servidores que dançavam desenfreadamente. Esta
separação
sua raça, como
religiosa forçou
o negro
à consciência
de
à procura de protetores específicos, mas sem-
pre sôbre um modêlo que lhe era oferecido pelo culto doméstico que, como dissemos, era essencialmente um culto de santos.
Dessa forma o catolicismo do negro foi, como as religiões africanas, em certa medida, uma subcultura de classe. É pre-
ciso, pois, forma que
estudá-lo se quisermos compreendê-lo, da mesma estudamos as religiões africanas, isto é, sob uma
dupla perspectiva. (16) (17) (18) (19)
162
Uma perspectiva sociológica: a das relações
KOBSTER, Voyages Pittoresques, II, p. 70. Melo MORAES Filho, Festas e Tradições, pp. TOLLENARE, op. cit., p. 134. KOBSTER, op. cit., II, p. 28.
277-90.
entre os brancos e os negros, na estrutura dualista da sociedade,
relações de exploração e de domínio de um lado, de resistência
e de luta, de outro. Uma perspectiva cultural: a das relações entre esta “subcultura” de classe e a civilização do branco ou, se se prefere, definir os valôres, as normas, as representações
coletivas próprias
dêsse
catolicismo
negro.
Estudemo-lo
pri-
meiro sob a perspectiva sociológica. Não sabemos exatamente quando se formou. Antonil, em 1711, já se refere às festas de São Benedito e de Nossa Senhora do Rosário, nas capelas dos engenhos.(2º) São Benedito, morto
em 1589, imediatamente depois de sua morte passa por taumaturgo e, por causa de sua côr, torna-se logo o protetor
dos negros
(embora
seu
culto permaneça
à margem
do cato-
licismo ortodoxo; não foi senão autorizado pela Igreja posteriormente, em 1743; sua canonização data de 1807).(21) O culto de Nossa Senhora do Rosário fôra criado por São Domingos de Gusmão,
mas
estava fora de moda,
sendo restabelecido jus-
tamente nas época em que os dominicanos enviaram seus pri-
meiros missionários para a Africa; daí, sua introdução e sua generalização progressiva no grupo de negros escravizados.(2?) ÊEsses fatos bem indicam que o culto de santos negros ou de Virgens negras foi, de início, impôsto de fora ao africano, como
uma etapa da cristianização, e que foi considerado pelo senhor
branco
como
um
meio
de
submissão para o escravo.
contrôle
social,
um
instrumento
de
Ribeyrolles o acentua ainda, na pri-
meira metade do século XIX: a disciplina da fazenda, diz, se fundamenta em duas bases: a existência do feitor e a do capelão ou do cura; o primeiro fiscalizando o trabalho com um chicote, o segundo enfraquecendo o espíritó de revolta com sua Cruz; acrescenta o autor que é por êste motivo que a evan-
gelização do africano permanece tão superficial; o sacerdote não cumpre sua missão por amor, mas como uma obrigação enfa-
donha, imposta pelo grande proprietário e em seu benefício único.(**) Não é de se admirar que nessas condições o homem de côr reagisse no Brasil exatamente como nos Estados Unidos
e que transformasse êsse catolicismo, do qual se queria fazer um meio de contrôle e de integração numa sociedade que o (20)
ANTONIL,
op.
cit., p. 96.
(21) Câmara CASCUDO, Dicionário do Folclore Brasileiro, p. 97, J. da SILVA -CAMPOS, Procissões Tradicionais da Bahia, p. 205. O movimento que tendeu a dar aos negros um santo de côr era, ademais, bem anterior à época
can”,
da
escravidão;
data
da
Idade
Média.
SEIFERTH,
Philon, 194], 4, pp. 370-76. (22) Dante de LAYTANO, Festa de Nossa Pp. 39-51. Charles de LA RONCIBRE, Neégres et (23) RIBEYROLLES, op. ctt., pp. 43-5.
“St.
Senhora Négriers,
Mauritius,
Afri-
dos Navegantes, p. 118.
163
maltratava, num instrumento, pelo contrário, de solidariedade étnica e de reivindicação social.(2*) O dualismo do catolicismo e esta metamorfose de uma religião de contrôle social: em uma religião de protesto racial se intensificarão ainda com
o êxodo
dos campos à cidade, pois que, como vimos, a cidade afrouxou os laços que ligavam,
no Brasil rural, numa
mesma
solidarie-
século XVII
e comêço
dade, a família patriarcal, as côres e as posições sociais. Por certo, existiram nas cidades do
do século XVIII, corporações de ofícios que nido brancos inferiores e negros livres. Mas assegurou no Brasil, entre os trabalhadores de a estreita solidariedade que encontramos na
poderiam ter reua corporação não um mesmo ramo, Europa. Ela de-
sempenha um papel nas festas; as profissões se dividem em grupos, cada qual desempenhando função diferente. Por exem-
plo, no século XVIII,
em São Paulo, em honra ao nascimento
da princesa, os carpinteiros fazem a contradança, os sapateiros
a dança
dos
Espíritos,
barco de madeira
os
marceneiros
do qual formarão
constroem também
um
chega
giosa.
a dança
a aproximar
Mais
urbana.
grande
carro, os ferreiros e os seleiros se mas-
do Congo.(**)
as côres numa
importante
Ocupou
um
a tripulação, os alfaiates
caram... Mas, parece que, mesmo separa do ofício; os mestiços seguem brancos, mas à parte. Por exemplo, os bém um carro e êste era seguido pelos
dançando
constroem
ainda
que
nessas festas, a raça se sem dúvida os patrões taberneiros fizeram tamCaianos e pelos crioulos,
Dessa maneira,
o ofício não
verdadeira comunhão
a corporação
reli-
é a confraria
ela lugar preponderante sobretudo na religião
das Minas Gerais. Enquanto no Nordeste dos engenhos do século XVII a religião é uma religião doméstica, nas minas do
século
frarias
XVIII
a religião
extremamente
é uma
numerosas,
religião de confraria.
ciumentas
umas
das
Con-
outras,
em concorrência mútua, para ver qual ornaria melhor sua capela, qual teria mais poder, qual seria a mais rica. Os homens, de côr se contagiaram por êsse movimento; organizaram também confrarias calcadas no modêlo das dos brancos e, assim, O con-
flito racial vai se dissimular sob o manto
da religião e a opo-
sição étnica vai tomar aspecto de uma luta de sociedades religlosas. As confrarias de brancos estabeleciam estatutos que proi-
biam o acesso, em suas associações, aos negros, aos mulatos € (24) (25)
164
G. FREYRE, Sobrados e Mucambos, p. 719, n.º 41. A. de E. TAUNAY, Sob El Rey Nosso Senhor, p. 361.
mesmo
às pessoas casadas com indivíduos de côr.
Sem dúvida,
numa sociedade em que a população feminina era pouco nu-
merosa, o número de pessoas brancas que vivia em concubinato com mulatas era grande. Isto era de conhecimento geral e tolerado pela opinião pública. O que era proibido não era a união ilegal e sim o casamento desigual.(2º) As pessoas de côr
eram, portanto, obrigadas a pertencer a confrarias próprias à
sua côr. A separação era tão radical que se êsses grupos os nomes de “igreja branca” e Êssas, se insurgiam uma contra a outra, em pelos direitos de precedência nas procissões e itinerários dos cortejos, apelando
civis e a Roma.(?').
acabou por dar a de “igreja negra”. perpétua discussão nos enterros, pelos
aos tribunais eclesiásticos ou
A “igreja branca” se defendendo de re-
gulamentos, de investigações a todo pedido de nova admissão,
contra os “cristãos-novos” ou mesmo contra os de sangue manchado”, como um recinto fechado encimado por cacos de vidro:
e a “igreja negra” tentando penetrar nos santuários mais proi-
bidos, nas confrarias mais aristocráticas, mais fechadas, como a dos Franciscanos, pela astúcia e pelo humor. Citamos, a
título de exemplo,
do Cordão
o caso da célebre disputa entre a confraria
de São Francisco e a Ordem
Terceira dos Francis-
canos; o Papa permitira em 1585 a fundação de confrarias do famoso
Cordão
de São
mulatos de São João
Francisco,
branco
com
del Rey, Sabará, Mariana,
três nós,
e os
Vila Rica disso
se aproveitaram para organizar esta confraria em Minas, já que a Ordem Terceira lhes proibia o acesso; a Ordem Terceira pro-
testou, não querendo ver pessoas escuras assim se insinuarem, mesmo por uma porta disfarçada, em suas igrejas de brancos, com seus “violões e tamborins”, como disse na queixa enviada a Lisboa para nelas realizarem suas festas ou com “mestiças prostitutas” se misturando nas procissões “sem diferença com as brancas bem honestas”.(28) |. Essas duas igrejas estavam, aliás, divididas contra si mesmas. A igreja dos brancos porque se ligava às lutas de família ou de clãs feudais, por exemplo, os Camargos em São Paulo, que se reuniam na confraria dos Franciscanos,
do Carmo,(?º)
e os Taques,
na
e, posteriormente, quando a sociedade começou
(26) Caio PRADO, Formação do Brasil Contemporâneo, p. 352. (27) Por exemplo, a disputa por um itinerário de procissão entre q confraria do Rosário de negros e a confraria (branca) da Paixão de Cristo Instituições de Igrejas no Bispado de Mariana, p. 156 e segs. G. RAYMUNDO TRINDADE, S. Francisco'de Assts de Ouro Prêto, (28) PP
.
90-101.
(29)
Fr.
da Penitência
A.
.
de
ORTMANN,
História
S. Francisco,
p. 27,
da
Antiga
Capela
da
Ordem
Terceira
165
a se hierarquizar e uma classe média se formou em Minas ao lado da classe dos “homens bons”,(*º) apareceram confrarias de ricos e confrarias de pobres.
A igreja negra estava da mesma
forma dividida porque o mulato não queria se deixar confundir com o negro. A rivalidade atiçou assim a luta, em Diamantina,
entre as confrarias do Rosário dos negros e da Mise-
ricórdia dos mulatos.(*!)
Em Tijuco, no distrito dos diamantes
em que as sete igrejas e a metade das capelas tinham sido construídas e eram mantidas pelas confrarias, havia em 1877 o templo dos africanos, o dos negros crioulos e o dos mulatos.(22) Essas confrarias serviram, não obstante sua probreza, de
ponto de concentração de reivindicações sociais.
Elas se reu-
niam, na realidade, em tôrno de um santo de côr, e na dedicação dos fiéis a êsse santo havia mais que uma ligação mís-
tica, o sentimento de uma espécie de afinidade étnica. Foi o que um negro exprimiu admirâvelmente um dia a Kidder e a Flechter vendo passar uma procissão: “Lá vem meu parente.
..”.(*)
O parentesco leva vantagem sôbre o caráter re-
lígioso, desespiritualizando o santo, humanizando-o, tornando-o parecido sob todos os pontos com seus irmãos da terra: Meu S. Benedito É santo de prêto; Éle bebe garapa, ÉÊle ronca no peito! (34)
Frei Correal, quando de sua passagem na Bahia em 1689 surpreende-se ao ver numa procissão um carro onde a Virgem
Santa
rivaliza
(30)
Sôbre
com
as
São
principais
Benedito
confrerias
que
de
toma,
Minas
e
diante
dela,
os
seu
recrutamento,
ver
do
Tijuco,
Luiz JARDIN, “A Pintura Decorativa em (...) Minas” Revista do Sphan, 3, pp. 67-71. Este distinção de classe se liga também às distinções sociais, não aceitando os Franciscanos pessoas casadas com mulatas, enquanto os Carmos
(31)
as
aceitam.
Alres
Diamantina,
inicialmente
pp.
da
51,
MATA 162
a confraria
e
MACHADO
do
segs.
Rosário
Os
Filho, Arratal
crioulos
dos
negros,
e os
mas
mulatos
Cidade
de
frequentavam
se separaram
em
1771,
sob o pretexto de que era uma confraria de negros; conseguiram uma capela especial numa Igreja de brancos, mas parece que esta tentativa não teve muito sucesso e que tiveram de suportar algumas afrontas, porque tentaram
voltar ao Rosário dos negros, o que lhes foi recusado, porque “entre negros e crioulos haveria discórdias contínuas”. AO lado dêsse movimento de cissiparidade, é preciso observar, aliás, que certas confrarlas tentaram unir
todos
de
08 homens
pele
e a
de
côr,
elaboração
sem
de
distinção
uma
do
maior ou
consciência
de
menor
raça,
grau
contra
de
as
coloração
diferenças
de '“nações”. Por exemplo, a confraria dos mulatos da Misericórdia em Minas admitia “tôdas as pessoas, mesmo negros cativos e naturais da costa de Guiné”, td., tbid., p.. 162. Para fenômenos análogos no Nordeste ver G. FREYRE, Sobrados e Mucambos, p. 719, n.º 41. (32) BAINT-HILAIRE, Voyage dans le District des Diamants, I, p. 48. (33) KIDDER e FLECHTER, O Brasil e os Brasileiros, p, 167. (34) S. ROMERO, Cantos Populares, p. 205.
166
modos
mais
indecentes.(*')
frarias vai passar
A
paralelamente
finalidade
suprema
do céu
dessas
à terra.
os escravos a ganhar sua liberdade.
Irão
con-
ajudar
Já citamos a história de Chico Rei que libertou tôda sua
tribo sob a égide de Sta. Ifigênia. Mas, em tôdas as cidades de Minas e em todo o Brasil, as confrarias seguiram êsse exem-
plo. De início, eram a obra dos negros, que rendiam graças a Deus por terem alcançado a liberdade. Dessa forma, a Igreja de N. S. do Bomfim de Copacabana foi fundada por um fei-
ticeiro negro que ganhara Cr$ 1.000.000,00 com suas feitiçarias.(38) Depois todo negro que se libertava não deixava de dar um pouco de dinheiro para a caixa da confraria destinada aos negros menos afortunados; e, dessa maneira, conseguiam libertar, cada ano, um
brancos
acabaram
o costume
anualmente alforria.
número
por ajudá-los; em
de escravos.(*7)
quando
da festa do santo
encontra-se
acontecia
entre
que
Os
diversos lugares criou-se
de dar ao rei eleito da congada,
Contudo,
contrária;
determinado
certos
que
se celebrava
patrono,
sua carta de
viajantes
a observação
os escravos que
guardavam
dinheiro
dificilmente, à custa de trabalho, para poder comprar sua liber-
dade, preferiam dar a maior quantia dêsse dinheiro à confraria
de que faziam parte, na esperança de obter mais facilmente, na qualidade de doadores, cargos honoríficos e de tornarem-se
personalidades
importantes
e respeitadas.
Por
conseguinte,
a
confraria desempenhou outro papel, teve outra finalidade; era, para a massa de pessoas de côr, um instrumento de seleção, permitia a formação de um certo tipo de liderança. (8) De fato,
havia cargos aos quais era permitido o acesso: em particular, os de rei e rainha. Todavia, O cargo de secretário, freqiiente-
mente,
cos.(*?)
e o de
tesoureiro,
sempre,
eram
reservados
aos
bran-
Finalmente, a última finalidade da confraria, se bem que não fôsse a mais insignificante de tôdas para os africanos ha-
bituados ao culto dos mortos, era assegurar a cada membro uma sepultura e um entêrro adequados. O regulamento de 1750 da confraria de Nossa Senhora do Rosário dos negros de
Vila
Rica permitia mesmo
(35) (38)
J, F.
TAUNAY, MENDES
(38)
KOSTER,
R.AM.S.P, p. 75. (37) Td. tbid., de
(39)
Arquivos
Meias Arino,
p. 75.
1861,
sepultura
às mulheres
Na Bahia Colontal, cap. 2 (Frei Correal). DE ALMEIDA, “O Folclore nas Ordenações do
Voyvages
do
dar uma
Pittoresques,
Estado
de
manuscrito
S.
II,
Paulo,
inédito,
p.
345,
Livro
90,
confraria
do
e
Reino”,
Rosário
167
aos filhos dos membros da confraria, embora dela não participassem pessoalmente, não contribuíssem e não tivessem o direito de voto.(*º) Dêsse modo, uma profunda tendência da etnia negra podia, cristianizando-se, desenvolver-se livremente. Acontecia que, às vêzes, se bem que erigissem em quase todos os lugares igrejas a N. S. do Rosário, a S. Benedito, a Sta. Ifigênia,
frarias não
a Sto. Elesbão
tinham
e a outros
sede própria,
não
santos
podiam
de côr,
as con-
dispor de uma
igreja, seja por falta de recursos, seja porque a construção do templo não estava acabada.. Nesse caso era-lhe reservada uma capela na igreja paroquial. Porém, a seleção sempre atuava,
sendo a separação das capelas o símbolo da divisão dos dois catolicismos. No Rio de Janeiro o mesmo local de culto era
partilhado pelos cônegos do cabido e pelos negros.(*!) E râpidamente, em lugar da cooperação esperada, surgiu a disputa entre as raças. Ou, com os africanos rejeitando os brancos,
mesmo os negros crioulos a fim de ficarem sózinhos, como na
Bahia,(“*2) ou, pelo contrário, os brancos fazendo saírem os negros sob o pretexto de que suas festas eram muito barulhentas
acompanhadas de danças e tambores e indignas da Casa de Deus, como
em Pórto Alegre.(**) Parece, contudo, que o catolicismo devia marcar limites a esta tendência segregativa, já que todos os homens são filhos do
mesmo
Deus
e chamados
à mesma
mesa
de comunhão.
Há
várias capelas laterais, cada qual podendo escolher a sua; porém, há uma só capela-mor onde oficia o sacerdote. Há as igrejas de confrarias que se localizam nos diversos bairros da cidade, mas há no centro a igreja paroquial, às vêzes a catedral, que representa a comunidade urbana total, abole as diferenças sociais ou raciais. Entretanto, aqui ainda, a separa-
ção leva vantagem sóbre a união.
Saint-Hilaire admirou-se ao
ver que as igrejas eram bastante freqientadas mas estas não se confundiam com as brancas; a do trajar permitia separar as duas categorias de meiras tendo a cabeça e o corpo enrolados num as segundas trazendo na cabeça uma mantilha de gra.(**) Nas procissões, quando a cidade inteira (40) (41)
Paulo,
(42) (43)
A. DELAMARE, Vila Rica, p. Nuto SANT'ANA, “O Templo
1940.
71. dos
Silva CAMPOS, op. cit., p. 168. DANTE de LAYTANO, op. cit., pp.
(44) BAINT-HILAIRE, Segunda Gerais, p. 186, Cf. GOBINEAU: “Na
39-51.
Viagem do Rio quinta-feira santa
chia as igrejas. Um branco ou semibranco RAEDERS, Gobineau au Brésil, p. 38.
168
Homens
entre
pelas negras, diferenciação fiéis, as pripano prêto, caxemira nedesfila pelas
Prêtos”,
Estado
de
5.
de Janeiro a Minas (...) a multidão en-
vinte mulatos
ou negros”,
G.
ruas, a marcha dos fiéis obedece a uma ordem hierárquica que assegura a diferenciação das côres. Desta maneira, na procissão de Corpus Christi em São Paulo, depois do Santo Sacramento,
vem
São
Jorge
em
seu
cavalo
curveteando;
atrás,
as confrarias de negros, depois a dos mestiços de Santo Eles-
bão, da Misericórdia e do Carmo; em seguida, frades e sacerdotes; as corporações de ofícios desfilavam depois, numa ordem
determinada, que começava pelas escravas padeiras terminando por outras escravas vendedoras de legumes.(*) Em Minas, na procissão de São Francisco, os penitentes vinham primeiro, principalmente negros e mulatos livres, o clero em segundo lugar e, por fim, o povo.(*º) A procissão de Cinzas era aberta por três mulatos em dominó cinza, um trazendo a cruz e os dois outros um grande bastão encimado por uma lanterna; atrás, um mascarado, disfarçado de esqueleto, surpreendendo os espectadores com uma foice de papelão; depois um grupo de brancos
representando
Adão
e Eva,
Caim
e Abel;
os membros
da con-
fraria de São Francisco traziam nos ombros os andores dos santos, vindo, depois de tudo, a música e o Santo Sacramen-
to.(*7)
A procissão do triunfo eucarístico de 1753
começava
por dois grupos de dançarinos, os mouros e os cristãos, seguidos de músicos e de carros alegóricos, tendo logo após o desfile das confrarias que se apresentavam na seguinte ordem: músicos e negros a cavalo, confraria do Santo Sacramento, con-
fraria dos mestiços da capela de São José, confraria do Rosário
dos ou ria do
negros, confraria de Santo Antônio, o grupo dos nobres “homens bons”, confraria do Rosário dos brancos, confrade Nossa Senhora da Conceição, confraria de Nossa Senhora Pilar, confraria do Divino Sacramento, e depois o clero,
os anjos,
o Santo
Sacramento,
o governador
geral
das
minas,
a nobreza militar, o Senado, o dragão atacado por São Jorge, e, por fim, os soldados.(*) Na procissão de São Jorge a ordem era diferente: os soldados vinham primeiro, depois a confraria de São Jorge e, no fim, uma turma de escravos com seus músicos
e uma estranha personagem montada num cavalo prêto, o homem a
sa e
(46)
(47) (48)
Nuto e
SANT'ANA,
SAINT-HILAIRE,
'“Folce Voyages
e Pá”, Estado dans
les
de S. Paulo,
Provinces
SAINT-HILAIRE, Voyages aux Sources du Simão FERREIRA MACHADO, “Triunfo
de
17 de novembro
Rio,
I, pp.
347-48.
Rio S. Francisco, I, p. 100. Eucarístico, exemplar da
Cristandade Lusitana em pública exaltação de fé na solene transladação do Diviníssimo Bacramento da Igreja de N. S. do Rosário para um nôvo templo da Senhora de Pilar em Vila Rica, côrte da Capitenia das Minas, aos 24 de maio de 1733”, Lisboa, 1734 (0 texto foi transcrito totalmente por G. PENALVA, O Aleijadinho, pp. 120-51).
169
de ferro; atrás dêles, os carregadores traziam, elevando-a ao céu, a estátua de São Jorge.(*º)
A
hierarquia
de
côres
não
segue,
portanto,
uma
ordem
fixa; tudo depende das cerimônias; se se trata de um santo militar, são os soldados brancos que vêm à frente; noutros casos, são éles que terminam o cortejo. Mas, de um modo geral, parece que são os mulatos
e os negros que desfilam
primeiro lugar e a aristocracia dos brancos em último. do desfile é uma
coloca diana,
turada.
no meio
ordem
a coerência
De
de mérito
como
todos
para
crescente,
assegurar,
e a estabilidade
os modos,
onde
por sua
de uma
interessa, as côres não se confundem;
tificação social.
A ordem
o clero se
situação
sociedade
e êste é o ponto
em
que
me-
tão mis-
mais
nos
a Igreja aceita a estra-
O que é mais grave é que a aceitação pelas pessoas de côr do catolicismo dos brancos acarreta imediatamente a depreciação dêsse traço.
Quando
o senhor de engenho
ou o fazen-
deiro vêm residir na cidade, trazem consigo o altar doméstico, o culto de sua família; há em sua casa urbana sempre um nicho de
santos
onde
queima
uma
vela.(*º)
Entretanto,
com
êsse fato;(*!)
a religião
familiar não exerce mais a função que tinha no campo. A rua reúne as casas, estabelece uma corrente de comunicação entre as famílias, e a capela do engenho é substituída pela igreja paroquial ou a da confraria. Mas esta rua toma também aspecto sagrado; de quando em quando, na esquina de duas travessas, no centro de cada quarteirão, há um nicho de santo e todo passante deve aí demonstrar sua devoção. Os viajantes estrangeiros
impressionaram-se
contudo,
a rua
é
o domínio principalmente do “povinho”; os brancos não fazem mais do que aí passar, os escravos aí se demoram, se encontram, sendo ela o lugar de suas conversas fiadas, o instrumento
de sua solidariedade. Na rua, como vimos, êles escapam ao domínio do pater familias, à integração da família patriarcal, para recriar uma agregação étnica e de classe social.(º2)
Desde
então, serão levados, mais do que os brancos, a fazer da rua
o centro também
de seu catolicismo e, em vez de render culto
aos santos da propriedade senhorial, rendem
dos
bairros.
Ewbank,
em
1580,
verifica
culto aos santos
isso muito bem,
di-
(49) Melo MORAES Filho, Festas e Tradições, pp. 229-36; para a Bahia, Silva CAMPOS, op. cit. dá, em geral, a ordem tradicional das grandes procissões antigas.
(50) G. FREYRE, Sobrados e Mucambos, 1.º edição, pp. 250-51. GRAHAM, op. cit., p. 127. TOLLENARE, op. cit. p. 51. (51) (52)
170
A. E. TAUNAY, “Na Bahia Colonial”, R.I.H.J.B., t. 90, vol. 144, p. 484. KIDDER e FLECHTER, O Brasil e os Brasileiros, pp. 192-95.
zendo que são os negros os mais escrupulosos em suas devoções e acrescenta que imediatamente, por desforra, gião se viu depreciada aos olhos dos brancos.(º*)
esta reli-
A questão tôda é saber se a esta separação das duas Igrejas, a negra e a branca, corresponde também uma diferença de catolicismo.
É claro que a unidade do dogma tendeu à assimilação e houve, principalmente entre os crioulos, verdadeiros santos de
cór.
'Tollenare
cita
uma
mulata
de
18
anos,
de
rara
be-
leza, Gertrudes, que desejava ser freira e que fóra avisada mi-
lagrosamente da morte de sua mãe, o que lhe deu uma auréola
de
santidade
em
seu
meio.(º!)
Os
jesuítas
outorgavam
aos
negros mais piedosos insignes mercês, como a entrada na companhia após sua morte:
a casa há trinta e tantos
edificação
e boa
“João Francisco, homem anos, por
satisfação,
dias e faz vida exemplar;
não
amor
confessa-se tem
raça
de Deus,
mulato, serve
e comunga
de mouro
sempre
cada
nem
com
oito
judeu;
pede ser admitido na Companhia na hora da morte; é digno e
merece esta consolação”. a liberdade civil. (55)
Para outros, dava-se como recompensa
ções”
enquanto
Unicamente a manutenção das pessoas de côr em grupos separados perturbou esta assimilação, tendeu a uma divisão paralela das representações coletivas. Porque não só as “nacada
Bahia,
eram preservadas
qual
por
podia
originar uma
exemplo,
a confraria
grupos
de festas, mas
confraria religiosa étnica. do
Senhor
da
Redenção
ainda
Na
não
agrupava senão Daomeanos; a Ordem Terceira do Rosário era composta de negros Angolas; a do Senhor da Cruz, de mula-
tos.(**) Esta política da Igreja reflete a do govêrno; lembra a carta do Conde dos Arcos que citamos mais acima. Todavia ela tendeu a criar um catolicismo diferencial. Desta maneira,
somos levados a passar de nossa primeira perspectiva, a perspectiva sociológica, à segunda: a perspectiva cultural que estuda os valóres, as normas, as representações coletivas próprias a esta “igreja negra”.
A
catequização jesuíta partia da idéia de
que era preciso adaptar o dogma à mentalidade e que a men-
talidade dos negros é a mesma das crianças.
É preciso atraí-los
(53) EWBANK, Life in Brasil, pp. 182-83. Reciprocamente, as ordens mendicantes se viram desconsideradas, porque “é impossível que um negro vela um ser superior num branco que se humilha para pedir alguma cari-
dade”, 390,
(54) (55) G,
(56)
DENIS,
Brésil,
p.
257.
TOLLENARE, Notas Dominicaes, p, 110, Serafim LEITE, História da Companhia
de
Silva
243.
FREYRE,
Casa-grande,
CAMPOS,
op.
p.
cit.
262.
pp.
168,
7, 206,
Jesus
no
Brasil,
II,
p.
171
pela música que adoram,
pela
vaidade,
Não
o
amor
é preciso romper
pela dança, que é sua única distração,
aos
títulos,
aos
absolutamente
cargos
com
decorativos.(8?)
seus costumes
tra-
dicionais, mas fazer uma seleção dêles, e dos que são considerados como aceitáveis, servir-se dêles como de um trampolim para levá-lo até a verdadeira fé. Dessa maneira, criou-se um catolicismo negro que se con-
serva dentro das confrarias e que, não obstante a unidade dos dogmas e da fé, apresenta características particulares.
A procissão de São Benedito compreendia apenas negros mulatos: o porta-estandarte, os anjinhos de côr presos à
ou
mão de suas mamães, a confraria de São Benedito, as rainhas dos africanos, em número de três, com Perpétua no meio, cer-
cada por dois grupos de negros que disputam a coroa de Per-
pétua, a confraria do Rosário e as Taieras, cujos vestidos de sêda deixavam, diz-se, adivinhar os seios lascivos, e que marchavam cantando: Virgem
Senhora
Dê-me
Senão
Virgem
do
do
um
vou
do
Rosário
mundo...
côco ao
d'água
fundo!...
Rosário
Senhora do norte... Dê-me um côco d'água
Senão
vou
ao pote!... (38)
A essas ladainhas ingênuas que não pedem à Virgem mais que um fruto para acalmar a sêde, correspondem as ladainhas de
São
Benedito:
Meu
São
Pelo
amor
Venho
Brincar
Benedito
te
pedir
de
de
Deus
cucumbi. (5º)
O que caracteriza esta festa não é esta familiaridade com
os santos
que
encontramos
também,
na
realidade,
na mesma
época entre os brancos(*) e, sim, esta luta incorporada na pro-
cissão,
entre os negros,
pela coroa da rainha
Perpétua.
E se
se acrescenta que esta era protegida por um grupo de Congos,
então a cerimônia alcança todo seu significado: é uma sobrevivência das lutas étnicas e de reinados africanos que se con-
DO G.
(57) Serafim LEITE, op. cit., p. 358. (58) G. Th. PEREIRA DO MELO, 4 Música no Brasil, p. 49. (59) SANTA ANA NERY, Folklore Brésilien, p. 48. G. Th. PEREIRA MELO, 4 Música no Brasil, p. 49. (60) Sôbre as relações entre os brasileiros brancos com os santos, ver
FREYRE,
172
Casa-grande
e
Senzala,
trad.
fr.
pp.
215-16,
296,
394-95.
servaram na terra de exílio.
Se o cristianismo a aceitou é por-
que êsse combate podia aqui tomar um significado simbólico, a coroa terrestre tornando-se uma imagem da coroa celeste a
qual, falou o apóstolo, Jesus dará àqueles que lhe forem fiéis.
Mas as recordações sempre vivas dos reinados africanos são ainda
mais pronunciadas nas congadas. As congadas aceitavam a perpetuação do regime real para os negros brasileiros, mas ráter
dêsse
reinado
e,
corrompendo,
sobretudo,
Nossa Senhora do Rosário.
bem
entendido,
incorporando-o
A mais
antiga menção
ao
o ca-
culto
de
que temos
sôbre essas congadas data de 1700 e da cidade de Iguarassu
(Pernambuco)(º!) mas já existiam, pelo menos fragmentáriamente, em pleno século XVII(*) e tinham mesmo sua origem
remota em Portugal.(º) Pereira da Costa nos diz que cada paróquia tinha seu rei, sua rainha, um secretário de Estado,
um mestre honra, etc. Senhora. A do Rosário,
de campo, um que se faziam eleição se fazia dando origem a
arauto de armas, suas damas de chamar Majestade, Excelência ou no dia da festa de Nossa Senhora danças, variáveis segundo a etnia à
qual pertencia o rei. A dispersão do costume foi considerável e pouco a pouco
se estendia a todo o Brasil. Determinou, da mesma forma que as confrarias de que saiu, as mesmas lutas étnicas, as mesmas
rivalidades
entre
nações.
De
início,
era uma
festa
de bantos,
em que os nagôs e os daomeanos se aborreciam. Posteriormente, colocou em disputa os congos contra os angolas, êstes contra os moçambiques. Em Osório (Rio Grande do Sul) êsses últimos iam atrás dos cucumbis angolanos, nem cantando e nem dançando, sômente fazendo ouvir seus instrumentos musicais; em Minas, os moçambiques eram considerados igualmente como “a plebe dos congos”.(**) Em compensação, os de São Paulo crêem que sua dança foi inventada pelo próprio
São Benedito e por éle dada à sua nação; acabaram por triunfar em numerosas localidades desta província sôbre seus adversários congos, e em Monsanto são êles que vêm em primeiro lugar porque foram os primeiros, dizem, a encontrar
Nossa Senhora do Rosário.(*')
Bem
entendido,
a solidariedade
(61) Pereira da COSTA, “Rei do Congo”, Jornal do Brasil, 21/4/1901. (62) A embaixada, por exemplo, que é uma das partes fundamentais da congada. Cf. Gaspar BARLEUS, O Brasil Holandês, trad., p. 272. (63) Câmara CASCUDO, Dicionário do Folclore Brasileiro, pp. 191-94. (64) Dante de LAYTANO, As Congadas do Município de Osório, pp. 41, 55, 65, e DORNAS Filho, “A Influência Social do Negro”, R.A.M.S.P., LI, 1938. (65) Câmara CASCUDO, Dicionário, p. 402, e Folclore Nacional, Centro de Pesquisas Folclóricas, 1946, p. 4.
178
de
classe
dos
escravos
triunfou
sôbre
as
inimizades
tribais,
como na confraria de Baltazar, composta de africanos e de crioulos em sua maioria escravos e datando de 1742. Os
arquivos da confraria, dando nomes aos dignitários tipicamente africanos
(o rei se chamava
a rainha
Nembanda,
mente uma serpente enrolada no pescoço, Endoque,
os escravos
os príncipes
Manafundos,
Newangue,
o feiticeiro,
que
trazia
freqiiente-
reais Uantuafunos), nos mostram que os reis eram escolhidos livremente, sem distinção de origem étnica, visto que O primeiro, em 1742, é um rebôlo e o último, um cabunda. (**) A festa era preparada com antecedência. Nos domingos e dias santos, os membros da confraria pediam esmolas tanto aos negros
como
aos brancos para as despesas da cerimônia.
Demais, era um
costume bastante comum e tôda confraria, de brancos ou de prêtos, fazia o mesmo.(%7) A coroação do soberano tinha lugar na igreja. Um longo cortejo acompanhava o rei e a rainha com seus secretários e sua côrte até a capela em meio a cantos e danças; depois, o vigário sagrava aquêle que a confraria escolhera, colocando sôbre sua cabeça uma coroa de papelão dourado.(98) A duração dêsses reinados não era fixa; a princípio, é provável que os príncipes escolhidos fôssem antigos reis negros trazidos em escravidão e que continuavam a receber
homenagens
de seus súditos.
Numa
certa medida,
os bran-
cos podiam aproveitar esta submissão do negro a um rei para impor mais facilmente suas leis às pessoas de côr: “É só o nosso rei que
nos dá ordem de trabalhar.” finalidade
dessa
coroações,
E esta seria, para Mário de Andrade, a
um
negro a seu duro trabalho.(9º)
meio
de sujeitar
mais
facilmente
o
Entretanto, êste costume era perigo-
so, porque o rei gozava de grande autoridade sôbre os fiéis e podia voltá-los contra seus senhores brancos. Um dêles, Miguel, dirigiu uma insurreição negra em Natal que, aliás, fracassou desde o comêço (Miguel foi prêso, deposto e substituído por outro escravo, Luís). (70) De outro lado, a tradição católica, querendo fazer coincidir a eleição e a coroação dêsses soberanos com as festas cristãs que são festas anuais, tendeu a mudar a duração do reinado para um ano, o
que finalmente
prevaleceu.
Assim
fazendo,
a Igreja
desvirtuou
o
conceito de realeza, fêz-lhe perder seu caráter solene e sério, para transformá-la num simples divertimento. Spix e Martius comparam
êsses reis negros aos “reis da fava” da Europa e dizem que quando o nôvo soberano vai fazer sua visita ao governador do distrito dos
Diamantes, é por êste recebido em “robe de chambre”.(71) No entanto Koster, por seu lado, reconheceu a autoridade que êsses reis (66) Melo MORAES Filho, Festas e Tradições, pp. 343-49. (87) J. B. DEBRET, op. cit. p. 225. (68) KOSTER, Voyages Pittoresques, II , p. 112. J. E. POHL, Retse in Inner von Brasilten, 1, p. 157. IX, pp. 81-6. Ademar VIDAL, “Congos”", Revista do Brasil, fev. 1939, pp. 53-62, etc. (69) Mário de ANDRADE, “Os Congos”, Lanterna Verde, 1935. 0/2/1068 L. da Câmara CASCUDO, “Festas de Negros”, À República, Natal, (71)
174
SPIX
e MARTIUS,
Viagem
pelo Brasil,
TI, p. 127.
têm sôbre seu povo de côr, e diz que o rei coroado é alvo de zombarias. (72) Não admira, pois, que perdesse, pouco a pouco, sua autoridade para não ser mais que um rei de carnaval! Quanto à dança, que acompanhava a coroação e que traz, segundo: as regiões, o nome de congadas, de cucumbis, de congos, de ticumbi
ou de turundu,(73) constitui uma espécie de representação teatral, compreendendo diversas partes: primeiro, a entrada do bailado, a chegada do rei cantante, que pede à assembléia permissão para celebrar a congada; depois, o cortejo real vagueia através das ruas,
dança
mais
na
livre
frente da
da
festa,
igreja
a mais
e das
casas
variável,
Há cantos semi-africanos, como
dos
mudando
notáveis.
segundo
o da rainha:
Quenguerê, oia congo Gira Calunga, Manu quem vem lá,
do
É
os
a parte
lugares.
má;
Há contradanças à moda portuguêsa, cantos folclóricos que se introduzem, cantos de trabalho na plantação ou de preparativos culinários. Há danças animais onde o negro reproduz os gestos do animal
de
que
fala
em
seus
cantos.
Assim,
Melo
Moraes
cita
a
dança da serpente interpretada pelo filho do rei, a do jaguar, e Gustavo Barroso, a dos crustáceos. A segunda parte da brincadeira é a embaixada. A rainha Ginga envia um embaixador ao rei (rainha Ginga Ngambi, em Parnaíba); é às vêzes uma embaixada de guerra, às vêzes de paz, mas, mesmo nesse caso, a inabilidade dos dignitários do rei, o ardor do príncipe Suena ocasionam a guerra entre os Congos e o exército da rainha Ginga. O príncipe é aprisionado e condenado à morte. A terceira parte, é a morte e a ressurreição do príncipe. A rainha infeliz com a morte de seu filho chama o feiticeiro que vai buscar o cadáver: FEITICEIRO E...
Mamaó!
Ganga rumbá, E... Mamaô!
E...
Mamaó!
sinderê iacô E ... Mamaó!
ToDos
Zumbi, matêquerê, Congo, cucumbi-oiá. FEITICEIRO
Zumbi, Zumbi, oia Zumbi! Oia Mamêto muchicongo. Oia papêto. da
“Durante tôdas essas evocações, o Feiticeiro rodeia o corpo criança, ausculta-o, palpa-o, faz passes mágicos, emprega mis(72) (73)
KOSTER, op. ctt., p. 112. Câmara CASCUDO, Dicionário,
pp.
191-94,
243,
611,
623.
teriosos sortilégios, fá-la aspirar plantas e resinas, estendendo-lhe aos lados pequenas cobras e talismãs de virtudes sobrenaturais.” Pouco a pouco o corpo do príncipe toma vida em meio à alegria da
multidão:
FEITICEIRO
Quem
pode
mais?
Côro E o Sole
a Lua.
FEITICEIRO Santo
maior? CôRro
E
S. Benedito.
À última parte da peça é o reinício da luta. Se se trata de um caboclo que matou o negro, o feiticeiro o fulmina com seu olhar e êle cai por terra. Se se trata da rainha Ginga, desta feita seu exército é batido, O rei oferece sua filha ao mágico em recompensa de seus serviços. E a festa termina com novas danças onde a muito pura Virgem
do Rosário naturalmente
Como
não é esquecida. (74)
se viu, trata-se de uma
peça de inspiração
estrita-
mente africana e onde um dos principais papéis é dado a um feiticeiro pagão. Mário de Andrade, que no Brasil foi o que
analisou com mais cuidado essas peças de Congo, assinalou traços da África negra nos versos portuguêses, indo desde os
mínimos detalhes, aos temas poéticos mais singelos, como êsses versos cantados, num dado momento, pelo rei: Não procuro mais canário Dentro de meu reino Destrutram-me as sementes,
que é um tema frequente dos contos africanos, que se encon-
tra nas histórias recolhidas por Chatelain, Equilbecq, Jacottet, e até as partes essenciais do drama. Limitemo-nos a êstes.
Logo, na primeira parte, as danças imitativas dos animais, tal-
mais
(74)
Para
antigas
esta
que
descrição
possuímos,
da
à de
congada,
Melo
servimo-nos
MORAES
Filho,
de
op.
duas
versões,
cit., pp.
as
159-65,
que data de aproximadamente 1850, e a de Luiz EDMUNDO, Novos Estudos, pp. 227-30, que data de 1811. Ai misturamos a embaixada da rainha Ginga, por causa de seu caráter essencialmente arcaico; Mário de ANDRADE,
op.
pp.
cit.
pp.
213-55,
vência
176:
36-53.
porque
bastante
a
Aludimos dança
antiga,
de
também
dos
caráter
a
G.
crustáceos
talvez
é
BARROSO,
4o
provâvelmente
totêmico.
Som
uma
da
Viola,
sobrevi-
vez de origem totêmica, já que os bantos que criaram a congada fregiientemente são povos totêmicos. Em segundo lugar,
a importância das embaixadas, que é um traço bem africano; não somente os reis congoleses ou guineanos enviam-se prazerosamente embaixadas uns aos outros, mas chegaram mesmo ser enviadas
ao Brasil em
1750
e 1795
meanas e em 1824 uma do rei de Benin.
duas
embaixadas
a
dao-
Em terceiro lugar, os
próprios nomes dos personagens são nomes históricos: a rainha Ginga ou Ginga Ngambi não é outra senão a rainha Ginga Bandi
que reinou em 1621 e, que após sua embaixada ao governador português João Correia de Souza, converteu-se ao cristianismo.("*) O rei dos congos que, em certas versões, se chama Dom Henrique, é também uma recordação exata das
coisas africanas, porque houve numerosos Henriques na dinastia dos soberanos cristianizados do Congo português.("*) O
nome do príncipe, Suana, não é nome de gente mas um têrmo honorífico que Dias de Carvalho encontrou no século XVII entre os luandas e que significa “herdeiro imediato”.(77) Quanto à cerimônia da coroação, onde o nôvo rei toma a
coroa daquele do ano precedente, Mário de Andrade compa-
ra-a a uma versão de congada em que, antes do combate, o pai faz passar a coroa a seu filho, tomando êle próprio, ao revés, os atributos do príncipe:
esta mudança
de coroa foi observada
justamente por Frazer na Africa em seu estudo sôbre a morte
do rei da vegetação. Não há até a lembrança da circuncisão que não esteja manifesta na descrição de Melo Moraes e que
se situa entre as danças da primeira parte e a morte do filho do rei.('*) |
Certamente elementos da cultura branca se misturam fraternalmente a êsses traços da cultura africana, Mas êsses elementos da civilização ocidental não nos devem ocultar o ca-
ráter tipicamente
perguntar
rar à vida
africano
como
da congada.
a Igreja pôde
das
confrarias
aceitar
Isto pósto,
tão facilmente
de côr esta apologia
ressuscitador de mortos...
podemos
incorpo-
do feiticeiro
É que o catolicismo brasileiro é a
continuação do catolicismo português e já em Portugal existia o costume de juntar danças mascaradas e cantos profanos às festas religiosas. Um certo número de altos dignitários eclesiásticos lutaram contra esta tradição, em 1534; por exemplo, (715)
Mário
(76) (77)
A. R.
(18)
Melo
Povos
de
de
ANDRADE,
RAMOS, A. DIAS
Lunda,
op.
cit.
pp.
50-3.
O Folclore Negro, p. 60. DE CARVALHO, Etnografia
Lisboa,
MORAES
1890,
Filho,
citado
op.
por
cit.,
p.
Mário
127.
de
e História
Tradicional
ANDRADE,
dos
177
o bispo de Évora. O rei, entretanto, as permitia, o que fêz com que continuassem, e ainda em 1855 era possível assisti-las.(7º) O hábito passou à colônia. Os viajantes estrangeiros estão repletos dessas descrições de festas profanas à sombra das igrejas e dos conventos,
admirando-se
ao ver peças
amo-
rosas representadas por freiras ou por essas multidões processionais que jogam bola com estátuas de santos.(8º)
Nada extraordinário, portanto, que a Igreja tenha introduzido a congada na estrutura das confrarias de côr. Mas por isso mesmo, e é o que nos interessa, deu ao catolicismo dos
negros um aspecto diferente do dos brancos pela inserção de elementos
africanos.
religiosos,
mas
Entretanto, a congada formou, por si mesma, uma realidade autônoma que, certamente, pôde se associar com os ritos que
podia
também
viver
independentemente.
Isso porque as associações que ensaiavam, que repetiam a peça
entre duas festas, foram levadas pouco a pouco a desenvolver suas atividades fora da cerimônia de coroação e da procissão
de Nossa Senhora do Rosário. As autoridades leigas delas se apropriaram para dar mais brilho aos grandes festejos populares celebrados por ocasião de qualquer acontecimento impor-
tante, como o casamento de uma um herdeiro em Portugal. De
outro lado,
a Igreja começou
a coroação
real desvirtuada,
essas cerimônias
Aceitava
africanas misturadas
a congada que se lhe seguia.
reis
princesa, o nascimento
foi proibida
na
festa
do
a ver com
maus
às cerimônias
mas
de
olhos
católicas.
não tão facilmente
No Rio, a própria coroação dos Rosário.(*!)
E,
dessa
forma,
a
congada perdeu pouco a pouco o domínio da religião para entrar no campo do folclore. Tivemos, pois, dois catolicismos distintos, em virtude da distinção de côres, que impedem uma assimiliação total do negro à religião do branco. Daí as críticas dos viajantes estrangeiros,
principalmente anglo-saxões
e protestantes,
que
decla-
ram que os brasileiros de côr estão desfigurando o cristianismo, dêle fazendo uma mistura de cerimônias burlescas e imoralidades.(*2) O que é preciso dizer, e que é mais justo, é que
(79) “Textos citados por F. MENDES DE ALMEIDA, “O Folclore nas Ordenações do Reino”, R.A.M.S.P., LVI, pp. 64-9. (80) De GENTIL DE LA BARBINAIS, Nouveau Voyage Autour du Monde, citado por G. FREYRE,. Casa-grande e Senzala, trad. fr., p. 217, e resumido em A. de TAUNAY, as Bahta Colonial, cap. 1. (81) J. B, DEBRET, cit., IJ, p. 225. (82) G. F, MATHISON. Narrative of a Visit to Brazil, pp. 157, 158 e 159.
178
traços das civilizações africanas — particularmente de civilizações bantos — passaram, sem que o sacerdote percebesse, ao culto
dos
santos
negros
ou
nas
congadas.
bastante distantes das religiões africanas o catolicismo.
Assim, não era tanto quanto
Parecíamos
quando
estar
estudávamos
imaginávamos, por-
que essas congadas foram justamente um dos “nichos” de que falamos, no interior do qual o negro pôde guardar preciosamente seus
deuses
reira
Na
da
ou
descrição Costa,
seus
espíritos,
para melhor
feita pelo eminente
do
auto
africano
adorá-los.
folclorista pernambucano
dos
Congos
no
Brasil,
Pe-
encon-
tramos o têrmo Zambiapungo, nome do deus supremo dos Bantos, na frase em que o rei lança a bênção ao seu secretário: Bênção de Deus,
de
Zambiapungo
qui
tirindudêé,
etc.,
e
na
seguinte
quadra:
Gustavo
Barroso
Nosso rei vem com vontade Nosso rei vem com vontade De festejá neste dia O glorioso São Lourenço; E por isto nos trás aqui O nosso rei Dom Caro. O Zambiapungo, Zambiapungo, Tirindundê, ô lê lê Já
no
mesmo
auto
dos
Congos,
colhido
por
em época mais recente, encontro a forma Zamuripunga, na quadra: Abençam Que
no
de Zamuripunga
céu
te ponho
Amulá, amulequê Amulequê, amulá.
já
Com o nome Zabiapunga existe uma dança de prêtos no sul do Estado da Bahia, corruptela e significado extensivo de Zambiampungu. Na referida descrição do auto dos Congos pelo Dr. Pereira da Silva, encontramos a palavra calunga com significação desconhecida: Calunga é meia é Zambuê Calunga ê meia é Zambuê. (83)
O catolicismo negro foi um relicário precioso que a Igreja ofertou, não obstante ela própria, aos negros, para aí conservar,
não
como
relíquias,
mas
como
Brasileiro,
pp.
realidades
valôres mais altos de suas religiões nativas. (83)
A. RAMOS,
O
Negro
106-7,
vivas,
certos
110.
179
CAPÍTULO
VI
As Sobrevivências Religiosas Africanas Em que medida o catolicismo do negro adulterou as reli-
giões africanas?
Parece que o escravo não opôs uma
resistên-
cia aberta a esta cristianização, imposta pelo branco,
ou à sua
ao Brasil,
contrasta
arregimentação em confrarias do Rosário e de São Benedito. D'Assier assinala a negligência com que se submetia, chegando ao
sacramento
do batismo
e, nesse
ponto,
o escravo com o índio que gostava “de fazer-se rogado” para assim ganhar um presentinho, uma garrafa de tafiá, um pedaço
de pano, chegando mesmo a batizar o mesmo filho por vários padres sucessivamente só para receber presentes.(!) O meio
em que o negro era introduzido o induzia, aliás, a aceitar, até a desejar, o batismo, que melhorava seu status social, sem sem o que os negros crioulos caçoavam dos africanos “pagãos”,
chegando mesmo a injuriá-los, enquanto os brancos os tratavam como animais “sem alma”. Dessa maneira, apressam-se em aprender de cor algumas orações de que não compreendem o sentido.(2) Se excluímos as tentativas feitas pelos Jesuítas para fazer vir padres que conheciam a língua de Angola ou os escravos dos conventos que seguiam o catecismo regularmente e se confessavam, pelo menos duas vêzes por ano, no Natal e na Páscoa,(*)
a catequização,
como
dissemos num
ca-
pítulo anterior, permaneceu superficial: o catolicismo se sobrepôs à religião africana, durante o período colonial, mas não a substituiu. A sombra da Cruz, da capela do engenho e da igreja urbana, o culto ancestral continuou, o que levou Nina Rodrigues
a afirmar,
no
da catequese”.(*) p.
(1) (2) 140.
“"(3)
A. d'ASSIER, KOSTER, op.
S.
catequização conventos.
(4)
LEITE,
Nina
na
do
período
escravista,
Le Brésil Contemporain, pp. 77-9. cit. pp. 343-44, Cf. TOLLENARE, Notas
História
Bahia
fim
em
RODRIGUES,
da
Companhia
língua
O
angola,
Animismo
de
e
Jesus, sôbre
Fetichista,
p.
pp.
a
“a
ilusão
Dominicaes,
353-54,
sôbre
catequização
a
nos
199.
161
IWusão
porque
os senhores
ou
proprietários
de escravos
não estavam interessados em suas almas e sim em seus corpos. Não viam nêles sêres a salvar e sim máquinas de trabalhar. Ainda no século XVIII, o arcebispo D. Sebastião Monteiro de
Vide se queixa amargamente que:
o de que tratam principalmente os compradores é de porem os escravos ao trabalho, e descuidam-se tanto de lhes ensinar a dou-
trina
zados
Cristã,
dentro
que
poucos
de um
são
ano. (5)
os
que
têm
a fortuna
de
serem
bati-
Os capelães, quando não eram tomados pelo clima voluptuoso dos trópicos, abandonavam-se aos deveres de seus cargos como a uma atividade puramente profissional, sem nutrirem o amor
cristão; ainda no século XIX,
quando
os costumes
ti-
nham mudado assaz profundamente e os brancos se interessavam mais pela moralidade de seus trabalhadores,
êles não os evangelizam, observa Ribeyrolles, trabalho. Batizam os negros e os casam, mas
Couty,
na mesma
época, faz uma
e sim levam-nos ao não os instruem. (º)
observação análoga.(”)
Os brancos viam também freqiientemente na ascensão do negro ao cristianismo um verdadeiro perigo, uma primeira igualação entre o senhor e o escravo, que podia ocasionar consequentemente outras igualações — uma primeira brecha, por
conseguinte, em seus privilégios. prete quando declara que
Lindley
torna-se
seu
intér-
esta participação na religião do país e a familiaridade inconseqiiente que se permite aos escravos, os tornam impudentes. (8)
A negligência dos senhores não era, contudo, o único fator atuante. Onde não havia capelães fixos nos engenhos ou nas
plantações, as distâncias entre as propriedades eram enormes, tornando as visitas dos sacerdotes raras e caras. Frésier atribui assim ao isolamento a falta de vida religiosa tanto entre brancos como entre os negros na 1713.(º) Em Pernambuco,
província de Santa Catarina, em os padres eram obrigados a per-
correr distâncias a cavalo de 20 a 30 léguas, que separavam as propriedades
QUERINO,
o que,
(7) (8) (9)
L. COUTY, L'Esclavage au Brésil, p. 76. “Th. LINDLEY, Voyage au Brésil, pp. 188-89. Citado por A. de E. TAUNAY, Sta. Catarina
RIBEYROLLES,
Brasil
Costumes
como
Citado Cf.
M.
as povoações,
(5)
(6)
por
ou
Pitoresco,
Africanos, pp.
43-5
p.
nos
consegiiência,
35.
Anos
Primeiros.
os impedia de visitar tôdas, cada ano.(1º)
Tollenare também
pensava que o ensino religioso só era possível nas cidades.(!!)
Nesse ponto, outras dificuldades surgiam. O escravo escapava, pela rua, ao estreito contróle de seus senhores; encontrava-se
com
os membros
de
sua
“nação”
nos
batuques
noturnos
em
que se alimentava de lembranças de sua civilização nativa, o branco da cidade, mais ocupado que o dos campos pelos negó-
cios políticos
se era homem,
e se mulher,
pela
vida
mundana
principalmente, não se interessava nem mesmo por ensinar aos seus empregados
de côr
o sinal da cruz ou o Padre-nosso.(!2)
O clero, que podia e devia substituir nesse caso o senhor, ex-
ceto o clero regular, pouco se preocupou com sua missão. O de Minas, por exemplo, nota Saint-Hilaire, não tem outro dever
senão o de rezar uma missa não cantada todos os domingos e confessar os fiéis na Páscoa; o resto do tempo se dedica ao comércio, tários de
à profissão de advogado; os sacerdotes são proprieminas ou de engenhos, mesmo contrabandistas de
ouro e de pedras preciosas. Os curatos são obtidos em concursos ou comprados. O sacerdócio tornou-se uma profissão,
não uma vocação; assim os vícios triunfam e os sacerdotes vão à igreja publicamente com suas concubinas e seus bastardos.(!*) E compreensível, nessas condições, que o catolicismo
negro gião
em
geral sobrepôs-se,
africana,
candomblé. coração
dos
mais
e a confraria
Vilhena
africanos
do que a penetrou,
frequentemente
reconhece
prolongou-se
que é impossível
os costumes
à reli-
arrancar
e as cerimônias
em
do
que
“be-
encontrado
nos
beram com o leite de sua mãe” e que seus pais lhes ensinaram; êle afirma que entre mil negros, há talvez um que siga voluntariamente o cristianismo; entre todos os outros, êste é impóôsto de fora, um simples verniz superficial.(1') Em 1738, o prior
dos da
Beneditinos
(10) H. KOSTER, cristianização das
tâncias,
p. S. Pp. p. op.
foi
também
da
Bahia,
num
documento
Voyages Pittoresques, pp. 150, 155. massas africanas rurais, por causa
observada
por
P,
CALÓGERAS,
Esta dificuldade das grandes dis-
Formação
Histórica,
78. J. ABREU Filho, “A Influência Negra”, Problemas, I, 5, 1938, pp. 32-3. LEITE, op. cit., II, p. 355. MANSFIELD, Paraguay Brazil and the Plate, 93. RUGENDAS, Viagem Pitoresca, pp. 43 e 46. DEBRET, op. cit. II, 100. KIDDER, op. cit. p, 136. AGASSIZ, Viagem ao Brastl, p. 85. TSCHUDI, cit., HI, p. 134. (11) TOLLENARE, op. cit., p. 79 n. (12) Perdigão MALHEIRO nota justamente que a educação religiosa, possível ng zona rural, permanece nula na cidade, 4 Escravidão no Brasil, Título II, cap, 3. (13) SAINT-HILAIRE, Voyages dans les Provinces de Rio et de Minas,
cap. VLI. Voyage aux Sources, p. 338 e o cap. XVI. Cf. D. de VASCONCELOS, História Antiga, p. 300, sôbre o clero de Minas (todevia houve tentativa de Teforma sob D. Pedro de Almeida), e GRANT, História do Brasil, p. 308. (14) VILHENA, Recopilação, p. 137.
168
arquivos por Luiz Vianna Filho, lamenta-se de que os Angolas,
os negros de São Tomé e de outros lugares, se bem que catequizados, batizados e vivendo no meio dos brancos não
abandonam
terras,
reúnem-se
por
calundus. (15)
em
isto
as
superstições
sociedades
(às
que
aprenderam
escondidas)
para
em
suas
fazer
seus
No início do século XIX, Luccok nota que o catolicismo negros e mulatos de Minas é um catolicismo puramente
dos
nominal, que se reduz a simples gestos, sem significado para a alma.(1º)
Em
1838
ainda
Flechter
e Kidder
apenas
de poucas
mostram
que
O
escravo maometano não renega sua fé, mesmo batizado, e que o negro fetichista continua seu culto, mesmo considerando-se cristão.(17)
Infelizmente
que
são,
vências
ademais,
dispomos
bastante
do animismo
fragmentárias
no período
—
informações —
sôbre
colonial e mesmo
as sobrevi-
no impe-
rial. O interêsse por pesquisas etnográficas ainda não existia; as informações que nos restam estão dispersas em meio aos livros mais diversos, crônicas históricas, narrativas de viajantes.
O branco não se interessava pela religião de seu escravo a não ser na medida em que esta podia ter alguma influência, seja em perturbando seu sono pelos sons roucos de suas vozes
quando cantavam, o tantã ensurdecedor de seus tambores,(!'8) seja no caso em que um sacerdote negro se torna o chefe ou o líder de uma revolta, de uma fuga de escravos, de um episódio de suicídios coletivos.(1º) Fechava os olhos enquanto
os cultos não
tocavam
seus interêsses
imediatos.
Tudo
o que sabemos é, pois, através de uma tomada de consciência egoísta, parcial e desigual, que deixa desaparecer os mais importantes elementos para uma análise científica das religiões africanas no Brasil, e não retém senão o aspecto mais externo, (15)
L. VIANNA
(16)
Citado
por
1921,
p.
e
Filho,
M.
Prêto”, número especial (17) FLECHTER e
144,
153,
G.
F.
O
Negro
BANDEIRA,
na
“De
Bahia, Vila
p. 108.
Rica
de
Albuquerque
de O Jornal no centenário de Ouro Prêto. KIDDER, Brasil, p. 132. Cf. R.LH.G.B., t. MATHISON,
Narrative,
p.
197.
a
90,
Ouro
vol.
(18) Nuno MARQUES PEREIRA, por exemplo, citado por Câmara CASCUDO, Meleagro, p. 180. (19) L. VIANNA Filho, op. cit., p. 107. Em 1637, um mocambo de negros fugitivos é destruído; imediatamente são feitos prisioneiros o “governador” (isto é, O chefe militar) e o “bispo” (Isto é, o chefe religioso) dêsse mocambo.
164
sua repercussão no regime
de trabalho servil.
Mesmo
assim,
é útil agrupar todos os documentos de ordem histórica que pos-
suímos; um determinado número de conclusões podem assim ser inferidas, que não são de se desprezar.
ainda
x
*
Observamos
que
x
a escravidão,
destruindo
o regime fa-
miliar, não permitiu mais a subsistência do culto dos ancestrais no Brasil. Ésse culto estava, entretanto, tão enraizado nos
costumes e na civilização de tôdas as etnias da Africa negra que deixou, no mínimo, um certo número de atitudes mentais, de
formas
de
comportamento
e
de
tendências
sentimentais
entre os escravos, como entre os negros crioulos, educados por êsses escravos: a importância do entêrro, dos rituais de separação entre Os vivos e os mortos, a idéia de que as almas dos falecidos reuniam-se à grande família espiritual dos ancestrais no outro lado do oceano. Esse cuidado de render aos mortos o culto que se lhes devia, a fim de que não se vingassem, para
que não viessem perturbar seus filhos com
delos, mento
explica a conservou
doenças ou pesa-
importância que o cerimonial de enterraentre todos os afro-ameríndios,(?º) mesmo
entre os que se assimilaram mais profundamente à civilização ocidental, como os dos Estados Unidos.(2!) No Brasil, êsse cerimonial se preservou tanto mais fâcilmente, pelo menos durante os dois primeiros séculos de escra-
vidão, devido aos brancos considerarem o negro como um ani-
mal sem alma. Em vão, as ordens religiosas protestaram contra o abandono dos negros no momento de sua morte por seus senhores.(22)
Todavia,
essas ordens
nunca
foram
inteiramente
obedecidas em seus protestos, porque iam de encontro a essas
representações coletivas do negro como “coisa” e não como “pessoa”; representações essas que nunca estão explícitas nos livros, manifestas ou escritas por indivíduos, mas que existiam
tão profundamente que ainda as encontramos hoje no folclore
popular, em quadrinhas do tipo que se segue:
(20) IT. PEREDA VALDES, El Negro Rioplatense, pp. 37-42. M, J. HERSKOVITS, Life in a Haittan Valley, cap, X. Martha WARREN BECKVITH, Black Roadways, a Study of Jamaican Folk Life, caps. VI e VII, etc. 1693,
(21) (22)
M. J. Carta
citada
por
HERSKOVYVITS, The Myth of the Negro Past, cap. VI. do rei ao governador de Pernambuco de 17 de março
ALTAVILA,
O
Quilombo
dos
Palmares,
p. 110.
de
185
O branco, Deus o fêz O mulato, Deus o pintou O caboclo é um peido de porco E o negro, o diabo o cagou(23) O negro não Não morre, O branco dá O negro dá
nasce, aparece desaparece sua alma qa Deus a sua ao Diabo(%A)
Se o padre que A de um negro O negro nasceu Quando morre, Ou
ainda
impossibilidade
em
tôda
do negro
diz « missa é branco não seria mais que mentira... para ser um cão morre latindo (25)
uma
série
de
tornar-se
provérbios
cristão:
“O
que
negro
ressaltam
a
se confessa
mas não toma a comunhão”, “O negro não entra na igreja, espia por fora”, “O negro não acompanha a procissão, corre atrás dela” e, por fim, o que toca o nosso objeto mais de perto: “O negro não morre, acaba”.(28)
Compreende-se,
incomodavam
morte.(27)
em
D'Assier,
nessas
assistir no
condições,
um
comêço
escravo do
que
no
século
os brancos
momento
XIX,
não
de
mostra
se
sua
que
seus companheiros velam sózinhos seus derradeiros instantes e se ocupam de seu entêrro.(28) Éste isolamento permitia a perpetuação de costumes tradicionais, de cerimônias arcaicas e
tudo nos leva a crer que, para melhor celebrar os enterramentos dos cadáveres nos cemitérios, os negros aceitaram as confrarias católicas, o rito cristão não fêz mais que se sobrepor ao rito
“pagão” já arraigado “brasileiros.
profundamente
nos
costumes
dos
afro-
Os documentos mais antigos que possuímos sôbre êsse assunto datam do século XVII. Em 1618, quando da visita da Inquisição na Bahia, Sebastião Barreto denuncia junto aos padres o costume que têm os negros de matar animais em seus enterros para lavar os corpos em seu sangue, dizendo que nesse caso a alma deixa o corpo para subir ao céu.(2º) (23)
José LIN8S DO
(24) (25) (26)
Câmara CASCUDO, Vaqueiros e Cantadores, p. 113. Novos Estudos, p. 56. Florestan FERNANDES, “O Negro na Tradição Oral”,
p. 258.
S.
Paulo,
1, 7,
1943.
(27) M. GRAHAM, encontrado uma negra que
os
acompanhavam
RÊGO,
Bangilê
(romance),
Journal, p. 144, morrendo numa
que
a
186
s. d. (310 pp.),
O
Estado
de
conta que alguns inglêses, tendo estrada, pediram aos portuguêses
socorressem;
“Inútil pararmos, é apenas uma negra”. (28) D'ASSIER, op. cit. p. 157. (29) JL. VIANNA Filho, op. cit., p. 108.
J. Olympio,
porém,
êles
lhes
responderam:
Durante
a ocupação
holandesa,
o pastor
Soler
escreveu
a um
de seus amigos que quando um negro morria, homens, mulheres e crianças rodeavam o cadáver, e, ao som dos tambores, o interro-
gavam cantando: “Ai, ai, ai, por que morreste? — Ai, ai, ai, faltava-te pão? Ai, ai, ai, faltava-te peixe?” e assim, passavam em revista todos os tipos de alimentos e de bebidas.(30) As descrições que Debret nos dá no início do século XIX dos enterros de negros os mostram impregnados de cristianismo. Entretanto, nota que êsse cristianismo é mais ou menos aparente segundo as nações, os Moçambiques, segundo êle, o denotam ao máximo, Os enterros de negras são acompanhados sômente por mulheres, com exceção de dois carregadores, um mestre de cerimônia e um de tambor. Durante todo o cortejo as carpideiras lançam gemidos e gritos. Chegadas à Igreja dos negros, o cadáver é transportado numa rêde acompanhado de 8 parentes ou amigas íntimas, devendo cada uma pousar sua mão sôbre o corpo.(9l) Para um rei negro, a cerimônia é ainda mais impressionante. Uma moeda é posta na bôca do defunto e uma fita ao redor da cabeça para manter os maxilares presos. E estendido sôbre uma esteira, envolvido em suas roupas de gala (se isto é impossível, êle é representado na parede por um desenhista com suas roupas) e os dignitários de tôdas as diversas nações negras o vêm visitar, o embaixador, o porta-bandeira, o capitão da guarda. Tôda a noite, seus súditos o velam, ressoando no ar o som das batidas abafadas de suas mãos ou de seus instrumentos musicais. O entêrro é acompanhado por uma
mesmo
multidão
saltos
que
solta bombas,
perigosos. (32)
chora,
canta;
alguns
executam
Kidder pôde ver de sua janela, onde se lançara atraído pelo barulho, “um negro trazendo sôbre a cabeça uma tábua, na qual estava colocado o cadáver de um negrinho, coberto por um pano branco, ornado de flôres, tendo à mão um ramo. Atrás seguia a multidão entre a qual umas vinte negras e numerosas crianças, quase tôdas enfeitadas de fitinhas vermelhas, brancas, amarelas, que entoavam alguma cantiga etíope da qual marcavam o ritmo com um passo lento e cadenciado; o que levava o corpo parava frequentemente e voltava-se sôbre seus passos como se dançasse”. (38) Melo Moraes Filho nos deixou uma descrição de um entêrro moçambique em 1830 que lembra a descrição de Debret, as mulheres seguindo o cadáver de uma mulher, os homens o de um homem,
os dois sexos assistindo o de um rei ou o de uma criança, todos com um grande acompanhamento de palmas, de tambor, de cantos
e lamentações fúnebres.(34) E evidente que essas narrativas não vão além da superfície das coisas, mas provam ainda assim que o manismo africano subsistia, era vivo. Os dados de S. Vampré são ção
(30) Carta impressa em 1639 e citada por G. de MELLO Neto, do Negro sob o Domínio Holandês”, Novos Estudos, p. 220, (31) DEBRET, Viagem, pp. 184-85. (32) Id., ibid. pp. 185-86. (33) D. P. KIDDER, Reminiscências, pp. 142-43. (34) Melo MORAES Filho, Festas e Tradições, pp. 379-84.
“A
Situa-
187
mais
interessantes,
porque
nos mostram
os negros
de São Paulo
reu-
nidos em suas confrarias do Rosário no fim do período escravista,
dirigindo-se ao morto negros do Pernambuco “Tu que amavas tanto bôca, que tanto comeu Vós, pernas, que tanto Esta
mortuárias
duração
da mesma forma que, no século XVII, os holandês, lhe diziam em seu falar crioulo: a vida. Tu, bôca, que tanto falou. Tu, e bebeu. Teu corpo que tanto trabalhou, andastes”.(35)
do costume
africanas.
Rocha
mostra
Pombo
a resistência
assinala
das
também
cerimônias
que
é nesse
domínio dos ritos fúnebres que as sobrevivências são mais numerosas. O cadáver é lavado, como no Camerum, antes de ser sepultado e, às vêzes, faz-seldhe a barba. Antes do sepultamento, é velado por seus amigos; é a cerimônia do velório e os que velam são designados pelo nome de carpideiras. Bebe-se, come-se, entoa-se cantigas e se os parentes do defunto não podem arcar com as despesas do velório, cotizam-se à maneira da África; depois o cadáver é levado ao cemitério, enquanto o cortejo dança em redor, jongos e congadas.(38) É evidente que os têrmos “jongos” ou “congadas” significam para Rocha Pombo apenas “danças de negros” indistintamente; de fato, as danças mortuárias que seguem o féretro nada têm a ver com as danças eróticas, como o jongo, ou danças de divertimento, como a congada; constituem aqui ritos fúnebres especializados.
O segundo campo em que temos igualmente informações históricas bastante detalhadas é o da magia africana. Na realidade, ela impressionou os brancos. Por várias razões e primeiro de tudo porque o colonizador português era supersticioso também, como seu escravo, negro ou índio. O pequeno número de “cirurgiões”, de médicos e de boticários durante todo
o
período
colonial,
portos comerciantes
mesmo
nas
grandes
do litoral,(87) forçava
cidades
os doentes
e nos
a infu-
sões de ervas ou aos emplastros que não chegavam a curar, a consultarem “curandeiros” e “algebristas”; e como os africanos
eram versados na arte da magia curativa, impuseram-se a seus
senhores brancos e mantiveram, dessa maneira, alguns de seus processos nativos, misturando-os, aliás, aos processos dos feiticeiros brancos. Um poema de Gregório de Mattos evoca,
alguns casos desta magia médica.(*º)
para o século XVII,
Enfim, é óbvio que o português, longe de seu país natal, numa terra estrangeira, cheia de ciladas e de perigos imprevistos, num clima frequentemente enervante, não se sentia em (35)
Paulo,
Spencer
Saraiva,
S.
VAMPRÉ, Paulo,
Memórias
1924,
I,
p.
75.
Para
Cf.
à
História
da
Academia
Avé-LALLEMANT,
Reise
de
S.
Durch.
Brasilien, p. 36, para fatos análogos ne mesma época no norte do Brasil. Rocha POMBO, História do Brasil, IL, p. 943. (36) A. MACHADO, Vida e Morte do Bandeirante, p. 97. (37) Gregório de MATTOS, Obras, Oficina Industrial Gráfica, Rio, 1930, (38) t. IV: Satírica, vol. I, p. 345.
Nord
188
segurança.
Sabe-se que a magia está ligada justamente à angús-
tia ante o estranho e o desconhecido;
cional para tranqiilizar.
é ela uma
técnica irra-
Dessa forma, tudo concorria: o cará-
ter supersticioso dos primeiros imigrantes, a ausência de uma medicina científica, a insegurança dos trópicos para um homem vindo da Europa, mediterrânea e temperada, para manter entre
os brasileiros o interêsse pela magia.
E da mesma forma, o negro, tendo uma dupla qualifica-
ção, a de estrangeiro,
ou seja, a de estranho
—
e a de côr,
que é a côr do Diabo — lhes parecia feiticeiro, por excelência. Mas também a atitude do branco vai ser ambivalente em relação ao prêto. De um lado, aceitará sua magia medicinal, seus
filtros amorosos que darão aos senhores esgotados sexualmente o vigor desaparecido,(*”) e de outro, terá receio do feiticeiro escravo que conhece as plantas venenosas, e prepara Os venenos, para se desembaraçar de senhores odiosos. Antonil
alude a esta guerra mística, aos “feitiços” preparados pelos negros e lançados contra os proprietários de terras ou de
minas;(*)
a êsse respeito,
É por isso que vemos,
aludimos
mais
acima.
lado a lado:
1.º — Tantas condenações durante todo o imperial, como a de Luiza Pinto, negra livre, de Angola, condenada a quatro anos de prisão tiçaria e presunção de ter feito um pacto com o ou
a
do
revolução”
negro
em
de
seu
Santo
bairro
Antônio
de
(1888).(12)
período colonial ou de Sabará, nativa “por crime de feiDiabo” (1744),(41)
Cachoeira
que
“ordenou
a
2º — Ao mesmo tempo o reconhecimento oficial do curandeirismo negro pela metrópole, como o prova o caso do Rei D. João VI dando uma pensão de 40 $ ao soldado Antônio Rodrigues, que curava com o auxílio de certas palavras poderosas;(43) os viajantes da época imperial se admiraram por esta aceitação da parte do branco, dos processos africanos de medicina mágica.(**)
Esta dualidade de atitudes do branco em relação à magia
associa-se
às vêzes
Nas
cidade-campo.
da estrutura: social,
à dualidade
zonas
rurais,
sobretudo
nas
à oposição
regiões
afas-
tadas, isoladas, o negro tinha mais prestígio, pois que substi(39)
(40)
G.
FREYRE,
Sôbre
a
magia
Casa-grande, como
arma
p.
de
238.
guerra
contra
o
branco:
ANTONIL,
Cultura e Opuléncia, pp. 95-6, e sôbre a magia como auxílio válido gos escravos: KOSTER, Voyages Pittoresques, II, p. 188. X. de VEIGA, Efemérides Mineiras, p. 511. (41) “O Guaripocaba”, Jornal de Campinas, Estado de 8. Paulo, 2-12-1886. (42) O Rio de Janeiro..., D. 472, L. EDMUNDO, 43) 44) WALSH, Notices, p. 4ls.
189
tuía o papel do médico ausente. Saint-Hilaire e Koster, no curso de suas viagens pelo Brasil rural, observam o fenô-
meno.(*) somente
Em
se
compensação,
chocou
com
na cidade, a magia africana não
o clero
urbano,
mais
esclarecido
ou
mais “romano”,(“º) mas ainda se depreciou em contato com os
brancos, que lhe pediam receitas voluptuosas, o meio de se livrarem dos rivais em amor ou de inimigos políticos. Permanecia
assim,
sem
dúvida,
ticularmente banto),
mais
própriamente
africana
servindo-se de ossadas roubadas
(e par-
nos cemi-
térios, dotadas de “virtudes” especialmente fortes. Desta maneira quando se exumou em 1881 o cadáver de Maria Moreira, africana morta três anos antes, no cemitério dos leprosos, faltava o crânio do esqueleto.(“?)
Essa necessidade reconhecida de uma magia, tanto para o mal como para o bem, e, ao mesmo tempo, êste temor do
branco pela feitiçaria de seus escravos, explicam por que os documentos sôbre magia africana no Brasil são relativamente
numerosos. A questão apresentava um interêsse prático, mais que a descrição de cerimônias mortuárias ou de danças místicas.
E
entre
êsses
documentos,
os que
são mais
explícitos,
que contêm mais detalhes, são os que tratam de serpentes.
O
que é compreensível numa época em que a vacinação antiofídica não existia e onde os humildes trabalhadores dos campos,
em sua lidas cotidianas, eram fregiientemente picados por êsses répteis.
Tollenare diz que os negros curandeiros se cercavam de serpentes que obedeciam a suas ordens, resultado de determinadas preparações. Ensinavam seus segredos a seus sucessores e êste ensino toma a forma de uma iniciação religiosa, sôbre a qual o autor, infelizmente, não nos dá informações. Uma amiga de Tollenare, mordida tão profundamente por uma serpente, que o sangue lhe safa por todos os orifícios da cabeça, fêz vir um dêsses curandeiros que, estando ocupado, contentou-se em lhe enviar (...) seu chapéu. (48) fisse chapéu foi colocado sôbre a cabeça da moribunda que se sentiu melhor no mesmo instante. À tarde veio o curandeiro, chamou a serpente culpada que, de fato, apareceu, andou em tôrno do leito, para grande terror dos assistentes, depois enrolou-se no corpo do negro, que a matou. Tollenare igualmente viu em Recife (45)
(46)
SAINT-HILAIRE,
nambuco,
A.
de
vol.
CARVALHO,
XXI,
p.
406.
Voyage “A
dans
Magia
les Provinces
Sexual
no
de Rio
Brasil”,
et Minas,
R.I.A.H.G.
p. 305.
de
Per-
(47) Alvares do AMARAL, Resumo Cronológico, p. 277. Se indicamos uma provável influência banto, é porque, em Cuba, a reglão da América onde as sobrevivências religiosas africanas são mais semelhantes às do Brasil, a magia com a ajuda de ossadas, principalmente do crânio, roubadas aos cemitérios,
ainda hoje existe entre os Congos. Ver Lydia CABRERA, El Monte, p. 147. (48) Este costume do chapéu sobrevive ainda, como um de meus estu-
dantes
190:
brasileiros
observou
em
1938
em
O
Estado
de
S. Pqulo.
um feiticeiro fazendo dançar duas serpentes numa praça da cidade.(4º) Alguns anos depois, Saint-Hilaire encontra práticas análogas em Minas e em São Paulo. O cura de São João Del Rei (Minas) serpentes
apossar
se
de
fôra
que
escravo
um
tinha
as
venenosas. de
seu
de
Um
segrêdo
seu
pai,
e
êste
dia
agarrava
que
amarrou
êle
confessou
o
impunemente
tornara
se
que
fim
a
escravo
invulnerável às picadas, esfregando o corpo com a “erva de urubu”. Porém, acrescenta Saint-Hilaire, qual é essa erva?(50) A serpente, aliás, é objeto de muitas superstições desta época e é opinião difundida nas mesmas regiões que a mordida da cascavel cura da lepra.(51) Koster chama êsses negros feiticeiros não de “curandeiros” mas
manejar
êstes podem
de mandingueiros;
as serpentes
mais
venenosas sem perigo, encanté-las com seus cantos ou seus gritos, curar de suas picadas. Nesse último caso, o paciente deve rodear sua cabeça, seu rosto e seus ombros com uma serpente domesticada Se um e o mandingueiro pronuncia algumas palavras mágicas. homem mordido por uma serpente não pode apelar para um dêsses feiticeiros, deve se isolar, porque a mordida tornar-se-ia mortal, se lançasse os olhos, mesmo involuntâriamente, para um animal fêmea O ponto de vista de D'Assier e particularmente uma mulher.(52) difere essencialmente dos viajantes precedentes: falando da jararaca trigonocéfala, singularmente venenosa, que, contudo, parece não fazer mal aos negros, acrescenta: “Contudo, tal é a aversão instintiva dos negros por êsse réptil, que muitos dêles preferiam levar bastonada
uma
morta”. (53) Pode
ela
a
tocar
Entretanto,
provir
ou
de
e
principalmente
uma
sobrevivência
esta
contradição
profanar
não
é mais
totêmica,
uma
que
da
ou
serperite
aparente. ambiva-
Em todo caso, o fato é certamente lência da noção de sagrado. verídico, porque Herskovits o encontrou igualmente entre os descendentes dos negros fugitivos da Guiana Holandesa. (54) Donde resulta êsse complexo da serpente no Brasil? Certos autores pensam que é de origem daomeana e é certo que o culto do Vodun existiu na época colonial; o Códice Felipino a êle faz menção, atribuindo-o, aliás, aos “negros da Guiné” em geral.(55) Charles Expilly, por seu lado, afirma ter encontrado o culto da serpente Panga no Brasil, mas originário do Congo; teria êle até mesmo lhe consagrado um livro, Os Negros Feiticeiros (58) que não foi publicado e o manuscrito certamente se perdeu porque não o encontramos.
Entretanto,
parece
que,
em
consequência
das
crições que citamos, não há razão para se falar de um culto priamente dito, ainda menos de um velho totemismo africano (49)
(50)
'TOLLENARE,
op.
SAINT-HILAIRE,
cit.,
pp.
Voyage
107-8.
auz
Sources
du
(51) Id. ibid. p. 152. (52) KOSTER, op. cit., II, p. TT. (53) D'ASSIER, op. cit. pp. 45 e 285. (54) M. J. e F. HERSKOVITS, Rebel Destiny, 5) Coder Felepino, Rio, 1870, p. 931, citado op. » Pp. 85. (56) Ch. EXPILLY alude a êsse livro, não e
Costumes.
O
culto
da
serpente
existe,
na
Rio
S.
Francisco,
p. 12. por Mendes
de
encontrado,
em
realidade,
entre
des-
prôconp.
98.
ALMEIDA, os
Mulheres
bantos.
R. E. DENETT, At the Back of the Black Man's Mind, p. 140. Sôbre o culto de serpente na Africa, em geral, ver: W. D. HAMBLY, “The Serpent in African Bellef and Custom”, American Anthrop., vol 31, 4, 1929.
191
servado no Brasil. De fato, há dois grupos de “magia” ligados, mas que não podemos distinguir por falta de conhecimentos: de um lado, o negro encantador de serpentes, e podemos pensar que seja talvez de origem muçulmana ou árabe (o têrmo “mandingueiros” dado por Koster a êsses “encantadores” deixa supor uma influência
maometana)
particular falamos.
de
de
serpentes;
Enfim,
e de outro,
e, nesse
um
caso,
todo
mais
a terceira
o negro
o fenômeno
vasto,
série
o da
de
curandeiro
não
é mais
magia
de mordidas
que
curativa
documentos
de que
de
um
caso
que
já
podemos
dispor trata dos cultos religiosos própriamente ditos. São infelizmente os menos numerosos, o que se compreende, porque a
magia
interessava
jantes
estrangeiros,
os enterros
eram
tanto o branco
públicos
brasileiro quanto
e despertavam
ávidos
de
exotismo
ou
a atenção de
o escravo;
dos via-
pitoresco.
O
culto, ao contrário, era secreto. O primeiro documento iconográfico que temos é a gravura 105 do Zoobiblion de Zacharias Wagner, que estéve no Brasil holandês entre 1634 e 1641; 0 texto que a acompanha está assim redigido: Quando os escravos têm executado, durante a semana inteira, a sua penosíssima tarefa, lhes é concedido o Domingo como melhor lhes apraz; de ordinário se reúnem em certos lugares e, ao som de pífanos e tambores, levam todo o dia a dançar desordenadamente entre si, homens e mulheres, crianças e velhos, em meio de frequentes libações (...) a ponto de muitas vêzes não se reconhecerem, tão surdos e ébrios ficam.(57)
Mas, como observa mais precisamente o Dr. René Ribeiro: A simples inspeção (desta gravura) qualquer pessoa familiarizada com os cultos afro-brasileiros do Recife reconhecerá ali uma roda de Xangô: o mesmo círculo de dançarinos a se movimentar para
a
esquerda
com
as
atitudes
coreográficas
características;
idêntica posição dos ogan-ilu a tocarem dois atabaques do tipo comum em tôda a África Ocidental e um agogô; a jarra de garapa ao lado dos tocadores; a mesma posição e atitude do sacerdote. Chegavam a não “se reconhecer” não porque estivessem “tão surdos e ébrios” e sim por estarem possuídos por seus deuses (ficarem no santo), condição psicológica que naturalmente o artista ignorava.(98)
Esta perpetuidade de gestos que continuam ao longo dos
séculos, (57)
como
Alfredo
assinalamos de
CARVALHO,
anteriormente, “O
Zoobiblion
R.I.A.H.G. de Pernambuco, XI, pp. 181-95. (58) René RIBEIRO, Cultos Ajro-brasileiros dêle, G. de MELLO Neto fizera uma observação
Estudos,
192
p.
221.
não nos deve iludir: de
Zacharias
do Recife, p. 27. análoga, op. cit.,
Wagner”,
Já, antes in Novos
os Xangôs
de hoje não são sucessores dos Xangôs do século
XVII, a evolução se processou numa linha descontínua, porém, pontilhada de criações, desaparecimentos e novas aparições de seitas. XVII;
O
primeiro
é uma Quantos
documento
sátira de
quilombos
literário data
Gregório
também
de Mattos:
do
século
existem
(a palavra quilombo é tomada aqui no sentido de reunião e não mais de negros fugitivos)
de negros
Com senhores: superlativos Onde a noite se ensinam Calundus e fetichismo!
Mil mulheres Os frequentam com devoção Do mesmo modo que homens barbados Que se consideram novos Narcisos
(portuguêses)
(...) O que digo é que nessas danças Satã tem parte ligada, Que sômente êsse senhor cúmplice Pode ensinar tais delírios. (5º)
Êsse texto é interessante porque nos mostra que os “candomblés para turistas” têm uma origem bastante remota. O
elemento
branco
não permaneceu
ticipou, provavelmente fico
ou
uma
não
inquietação
fora do culto africano; par-
atraído por um
religiosa,
mas
por
interêsse etnográapetites
baixos,
ÊEsse contato tendeu a desagregar o culto tradicional, a mudar
a função, a fazê-lo desaparecer na magia ou no erotismo. Mas, é preciso notar que o culto não é, segundo a descrição do
poeta, um culto ioruba ou daomeano, e sim um culto banto.
próprio têrmo
O
“calundu”, que o designa, evoca certos espíritos
de Angola, que têm o mesmo
nome e que se introduzem nas
mulheres na hora do parto;(*º) os dois têrmos, “senhor” e “ca-
chimbo” incitam a ver nessas cerimônias frequentadas pelos brancos, cerimônias análogas às do catimbó, do candomblé de caboclo, ou da macumba, isto é, fortemente sincretizadas com elementos indígenas e católicos. As verdadeiras seitas africanas
conservavam, pelo contrário, seus mistérios e seus segredos; não
aceitavam branco.
Em
dos negros exerceu uma
todo caso, desde o comêço, estranha sedução
não negras e, dessa maneira, êsse fenômeno (59) (60)
Gregório de A. RAMOS,
MATTOS, O Negro
a religião
sôbre as populações
se perpetuou.
A
op. cit., pp. 186-88. Brasileiro, p. 113,
193
sátira de Gregório de Mattos
corresponde,
de fato, para a se-
gunda metade do século XIX, ao poema de Melo Moraes: Mas que vejo? Tudo em redor serpentes penduradas Galinhas por terra, corujas no muro Cabras sem cabeça, grelhas sôbre brasa E um fetiche abrindo asas enormes! De um aposento, um bando sujo e chistoso sai Agitando os corpos ao som de sinêtas: À luz de uma mecha que queima num azeite côr de terra Os
negros
vão
orar
ao
seu
estranho
ídolo!
Mulheres, de diversas côres, dançando juntas Estão nuas, com exceção de uma tanga... (81)
Ao lado dêsses documentos, iconográficos ou líricos, temos
outras duas fontes que nos falam da religião africana: os documentos da polícia e da administração e as narrativas dos viajantes. Na época colonial, o culto dos negros foi simples e
puramente confundido
bida em Portugal,
com a feitiçaria e como
esta era proi-
as ordenações reais que contra ela eram di-
rigidas foram aplicadas no Brasil contra as reuniões de negros
que tinham, aos olhos dos cristãos, por suas músicas, suas danças extenuantes, e principalmente suas crises de possessão, algo de demoníaco.(*2) O Conde de Pavolide, em 1780, entra em
guerra contra os bailes
“que os prêtos da Costa da Mina fazem às escondidas, ou em casa, ou roças com uma preta mestra, com altar de ídolos adorando bodes.
vivos, e outros
feitos
de barro, untando
seus corpos com
diversos
óleos, sangue de galo, dando a comer bolos de milho depois de diversas bênçãos supersticiosas, fazendo crer aos rústicos que aquelas unções de pão dão fortuna, fazem querer mulheres a homens e homens a mulheres” e acrescenta que “a credulidade de certas pessoas chega a tal ponto, mesmo aquelas que não são tão simples como padres e curas, que ameaçadas de prisão em minha presença em conseqiiência das apreensões que mandara fazer nessas casas, foi-me necessário, para livrar sua imaginação, fazer os negros dessas casas confessarem ante elas sua mistificação e em seguida submetê-los a seus prelados para que fôssem punidos como mereciam”. (88)
Sob o Império, o problema devia se apresentar um
diferente.
pouco
As idéias de liberdade haviam penetrado, da França
e da América
do Norte, no Brasil.
O projeto de Constituição
de 1823 proclamava a liberdade de culto para tôdas as comu(61) Melo MORAES Filho, “O Candomblé”, Cantos de Equador. (62) F. MENDES DE ALMEIDA, Op. cit., pp. 85-6. (63) Informação do Conde de Pavolide a Martinho de Mello e citada por R. RIBEIRO, op. cit., pp. 27-8.
194
Castro,
nidades cristãs; “as outras são somente toleradas”.
O projeto
não devia passar, a Assembléia Constituinte havia sido dissolvida, e o texto que foi promulgado já era menos favorável: A religião católica, apostólica e romana continuará a ser a religião do Império. Tôdas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular, em casas especiais, sem aspecto exterior de templo.
É evidente que êste artigo não aludia de modo nenhum
religião dos escravos;
pensava-se
na hipótese
sômente
à
da reli-
gião dos estrangeiros, comerciantes vindos a se estabelecer no
Brasil,
israelitas
ou
protestantes.
O
código
criminal
de
1831
penetra mais além nas realidades sociológicas do Brasil e parece tolerar o “fetichismo”
sob a condição
de permanecer
entre os
razão
uma
muros da senzala e não num templo público. Entretanto, êsse mesmo código comportava um artigo, o artigo 179, que per-
mitia tôdas que
Ninguém
respeite
as intervenções
o
pode
Estado
ser
policiais:
perseguido
e não
ofenda
por
a moral
religiosa,
pública.(84)
vez
Era sempre fácil, num meio regularmente perturbado por revoltas de escravos, ver nas reuniões de negros um atentado contra o Estado e nos sacrifícios de animais, nas danças acompanhadas de transes místicos, uma ofensa aos bons costumes. E, pois, por intermédio dêste artigo 179 que se deixava a defi-
nição da “moral pública” ao critério subjetivo dos administra-
dores ou da simples polícia, que a luta contra os calundus e os candomblés vai continuar no Império, não obstante o belo
ornato da Constituição sôbre a tolerância religiosa.
Em
1870,
no sul do Brasil, “as casas da sorte” (como se chamavam então
os templos fetichistas; a palavra portuguêsa tendia a substituir o antigo têrmo banto de calundu) eram objeto de visitas po-
liciais, destruídas
e seus fiéis, aprisionados.(8)
Em 1876, novas perseguições; o Conselho municipal de Campinas (São Paulo) decreta: “As casas conhecidas vulgarmente sob o nome de Zangus ou batuques estão proibidas. 30 $ de multa”.(86) No Norte, ao princípio do século XIX, o africano Domingos foi prêso numa sessão de candomblé na Bahia, mas foi sôlto porque pôde exibir seu título de tenente da “milícia dos Henriques”. (97) Em (64) Sôbre esta questão da autenticidade das religiões africanas, ver Diário de BITTENCOURT, “A Liberdade Religiosa no Brasil: A Macumba e o Batuque em Face da Lei”, O Negro no Brasil, pp. 173-86.
(65) (66)
(67)
MENDES DE ALMEIDA, op. ctt., pp. Cf. também “O Guaripocaba”, Jornal
Manuel
QUERINO,
Costumes
85-6. de Campinas,
Africanos,
p.
45.
2-12-1886.
195
1872, na mesma
cidade, o chefe de polícia fêz cercar à meia-noite
um candomblé de Cruz das Almas e aí prendeu oito pessoas entre as quais um “louco”, Raimundo Nonato, de cujo corpo os feiticeiros tiraram animais, espíritos e 30 diabos vermelhos, o que fêz com que o infeliz fôsse encontrado todo coberto de queimaduras e de feridas
(os feiticeiros
afirmaram
que
faziam
sair por êsses buracos
os espíritos que o atormentavam).(88) Inútil multiplicarem-se os exemplos, porque não nos ensinam infelizmente nada sôbre a organização dessas seitas, seu cerimonial e sua importância Se citamos esta fonte documentária, é somente porque
numérica. mostra a
atividade de uma religião, sem cessar perseguida, encurralada, mas que jamais morre, resistindo assim, até hoje, a tôdas as violências.
As descrições dos viajantes são bem mais ricas. A mais antiga é provavelmente a do peregrino da América, Nuno Marques Pereira, que data de 1728, que não pôde fechar os olhos à noite, por causa do barulho de tambores e de uma gritaria “do inferno”; seu hospedeiro o informa que se celebrava um
calundu e explica:
São divertimentos, ou divinações, que êsses negros dizem ter o costume de fazer em suas terras, e quando se encontram reunidos, as praticam também aqui, para saber diversas coisas, como a origem de suas doenças, ou para encontrar coisas perdidas, e também para ter sucesso em suas casas, em seus jardins e para muitas
outras
coisas.(89)
Porém, é com a época imperial que essas descrições se multiplicam. Maria Graham encontrou em 1821 “negros dançando e cantando para a lua” e acrescenta: Esta veneração supersticiosa é, diz-se, corrente na Africa e provavelmente os negros, mesmo batizados, dançam para a lua em memória de sua pátria.(70) Opinião à primeira vista surpreendente, porque o culto da lua não é difundido particularmente na África; deve existir entre os Krumans, que forneceram escravos ao Brasil, mas em pequeno número. ('1) E as superstições ligadas à lua são bem mais numerosas ainda entre os portuguêses que entre os prêtos: era uso apresentar a criança que nascia à lua crescente para que crescesse ao mesmo tempo que ela: (68)
MORAES (69) p. 147. (70) (71) Mercados
196
Encontram-se
Filho, Citado
numerosos
exemplos
nos
cronistas,
Pereira da COSTA, e nos jornais da época. por Câmara CASCUDO, Dicionário do Folclore
Maria GRAHAM, Viagem ao Brasil, p. 198. Não obstante a opinião contrária de Braz do AMARAL, de Escravos Africanos”, op. cit., p. 478.
como
Melo
Brasileiro,
“Os
Grandes
Ó minha
lua, luar
Minha madrinha Aceitai vosso filho, Ajudai-o a crescer.(72) Mesmo se a interpretação de Maria Graham fôsse exata e se a dança dos negros fôsse dedicada à lua, é preciso não esquecer,
como
assinalamos,
que
a cultura
e a raça
estão
que muitos traços da civilização portuguêsa crioulos escravos, enquanto reciprocamente africanas foram adotados pelos brancos, o se possa generalizar a côr dos adeptos na seus costumes. A lua desempenha em nossa um grande papel, em relação com a água,
ritmo
das
crises
de
loucura
e com
separadas
no Brasil,
passaram aos negros traços de civilizações que faz com que não origem geográfica de cultura mediterrânea com a mulher, com o
o crescimento
da
vegetação;
êste traço não é nem um pouco africano, mesmo se êste o aceita em seu nôvo habitat. Mas pensamos que Maria Graham compreendeu mal as respostas dos brasileiros às questões que lhes apresentou e que seria preciso modificar sua frase da seguinte maneira: “Negros cantam e dançam ao luar”; é a dança noturna, que é costume ancestral, não a dança dedicada ao culto da lua. Um pouco
mais tarde, em 18839, Flechter e Kidder
aludem aos “fetiches”, que
definem como “sociedades secretas” onde os negros celebram seus costumes nativos.(73) Em 1846, em Olinda, Koster nota que quando os escravos estão na senzala e pensam que os senhores estão dormindo, às vêzes se libertam e vão com outros negros que convidaram, “a alguma festa noturna que se celebrava no maior mistério como as festas da Deusa Boa”.(74)
O segrêdo impedia que os viajantes se entregassem a uma
observação mais completa das seitas africanas.
Além disso, êles
se interessavam mais com a categoria de erotismo que de mística. É assim que Tollenare, em 1817, nos diz que os negros dan-
çam aos pares, cercados por espectadores: êles assim
representavam
ou
a
concupiscência
do
macaco,
ou
do
urso
ou de qualquer outro animal. O macho levava grosseiramente sua pata sôbre a fêmea, esta se defendia um pouco, fugia e acabava por se render; então, os dois dançarinos se precipitavam um gôbre
o outro.
Ou então, ao par se juntava um terceiro dançarino, sim-
bolizando
com
o
caçador,
armado
de
um
pau;
comumente,
batia
êle numa jovem negra que se sentia feliz por êste sinal
de escolha.('*) O francês, galante, dade nas danças animais que têm
não viu mais que um outro caráter,
sexualise bem
que não se possa dissociar o sexual do místico numa civiliza(72) G. PENALVA, O Aleijadinho, p. 373. (73) FLECHTER e KIDDER, Brasil, p. 136. (74) (715)
KOSTER, Op. cít., p. 28. TOLLENARE, op. cit. p. 234.
197
ção total onde tudo está contido. É provável que tenhamos aqui o caso de uma dança que existe ainda na África e em que certos etnólogos quiseram ver uma das origens do teatro africano
negro;
ela
é conhecida
sob
o nome
de
Nanzéké
e
coloca em luta o grupo de homens fantasiados de caçadores e o grupo de homens mascarados, fantasiados de animais; porém,
Nanzéké mata um antílope tabu que chora por se ver colhido nas malhas da morte, o que traz a intervenção da mulher do
caçador
“guardião
dos
fetiches”.('º)
Esta
dança
se encontra
com, na realidade, um
só caçador;
sob uma forma ainda mais próxima da brasileira entre os ca-
raíbas negros de Honduras
o animal morto contemporâneo, tinuam a existir, da Bahia,('*) a ressurreição pelo
é ressuscitado pelo feiticeiro.('7) E no Brasil êsses dois fragmentos da dança africana cono grupo de animais e o caçador nos Ranchos morte do animal “sagrado” ou “tabu” e sua feiticeiro no Bumba-meu-boi, de que êsse diver-
timento africano é, certamente, uma origem ao lado de outras, européias
e índias,('”)
conhecimento,
não
se bem
tenha
que
até agora,
sido assinalada.
que
Dessa
seja de meu
maneira,
so-
brevivências mais ou menos totêmicas manifestam-se na infra-estrutura das danças públicas, as únicas que os viajantes estrangeiros nos puderam descrever um porque a elas assistiram.
pouco mais
detalhadamente,
x
*
A estrutura social do Brasil escravista, separando as côres em classes superpostas, cada qual com sua civilização própria,
levou naturalmente valôres.
a uma
falsificação
de
seus
respectivos
O branco não podendo compreender uma religião tão di-
ferente
da sua,
julgava-a
“demoníaca”
já que
não
O dualismo social se prolongou por conseguinte — do-se também
—
pela oposição
era cristã.
justifican-
entre as fôórças do Bem,
que
iam de Deus ao senhor de engenho, e as fôrças do Mal, que iam de Satã até os seus sequazes das senzalas e dos mocambos.
(718) PROUTEAUX, “Premiers Essals de Théâtre chez les Indigênes de la Haute-Côrte-d'Ivoire”, Bullet. du Comitê d'Études Historiques de VA. O. F., 2, 1929,
pp.
448-75.
(77) Ruy COELHO, “As Festas dos Caribes Negros”, Anhembi, 25, 1953, Ano III, vol. LX, pp. 54-72. (718) Nine RODRIGUES, Africanos no Brastl, pp. 262-69, e A. RAMOS, Folclore Negro, pp. 80-5. (79) Sôbre o Bumba-meu-bol, ver o estudo sintético que é dado por Cêmeara CASCUDO, em seu Dicionário do Folclore Brasileiro, pp. 124-27. A.
RAMOS,
as origens
198
Folclore
Negro,
africanas
dêsse
procurou,
talvez
teatro-bailado,
pp.
de
maneira
103-28.
um
pouco
abusiva,
Assim, êle recuperou
a “boa consciência”
e as danças místicas
dos negros, ao redor de suas pedras lavadas de sangue de ani-
mais
sacrificados, tornavam
válida, aos seus olhos, a distância
social que mantinha entre si e êles.
A definição de civilizações
africanas como diabólicas foi uma racionalização dade e da falta de humanidade da escravidão.
da
brutali-
O folclore, que mantém as crenças dos séculos anteriores,
conserva sempre traços desta falsificação, mais ou menos consciente, das religiões do negro, desta ligação entre o paganismo do escravo e a dualidade da estrutura social. As crenças e os ritos religiosos dos negros são considerados como constituindo o lado demoníaco,
a margem
obscura, dêsse dualismo essencial:
O Negro não adora Deus; É Calunga que êle ama. Todo branco quer se tornar rico; Todo mulato é um pretensioso, Todo cigano é um ladrão E todo negro um feiticeiro. O mulato jamais deixa sua faca Nem o branco sua sabedoria, O “cabra” não deixa nunca sua aguardente, Nem o negro seu fetichismo.(30) Quando
negro
velho
morre
Exala um odor tão forte Que Nossa Senhora não
E
o negro
não
entra
no
o
aceita
céu.(81)
O negro tem pé de animal, unhas de caça e calcanhar dedinho é como o pepino de São Paulo,(82)
seu
rachado,
o que é, mais ou menos, a representação tradicional que O cristão da Idade Média fazia do Diabo. O branco podia, é certo, sentir-se misteriosamente atraído por êsse caminho obscuro da mística, da mesma forma que era atraído sexualmente pela mulher de côr; podia, como dissemos, freqiientar os calundus, até mesmo organizar para si cultos africanos (Saint-Hilaire registra um cerimônia de brancos na povoação
que
se fazia
na
casa,
chamada
mandinga,
feitiçaria africana, e que consistia em
católicas homens,
p.
(80) (81) (82) ABS) 59.
e de batuques,
depois
dançados
por homens
uma
isto
é, na
casa
da
mistura de orações
inicialmente
e mulheres
de Lage
apenas
juntos);(*º)
Leonardo MOTTA, Cantadores, p. 90 e segs. Estudos Afro-brasileiros, p. 87. SANTA ANNA NERY, Folclore Brasileiro, p. 40. SAINT-HILAIRE, Voyage auz Sources du hRio
S.
nem
pelos
Francisco,
por
II,
199
isso deixava a África de ser sempre vista através de uma concepção cristã, de um cristianismo mais ou menos matizado de maniqueísmo. Sua participação era como uma descida num
abismo. O branco até o comêço do século XX não se esforçou para compreender as religiões de seus escravos fora de seus
conceitos e de sua cultura própria. Pelo contrário, esta deformação a que submetia os valôres africanos o justificava. Foi preciso que o Brasil abolisse o trabalho servil, proclamasse a igualdade sua pele
de todos
ou
interessasse,
sua
com
os cidadãos,
origem
um
étnica,
mínimo
qualquer
que
fósse a côr de
para que o cientista,
de
etnocentrismo,
enfim,
pela
se
cultura
afro-brasileira. A passagem da valorização negativa à ciência está ligada às condições sociais que aboliram, pelo menos ju-
ridicamente, o dualismo da sociedade, senhores e escravos, negros e brancos. JFoi a consegiiência de uma mudança de estrutura, demandando a integração do homem de côr, como igual, numa comunidade, unificada e harmoniosa. Mas houve, antes, durante todo o período escravista, uma dupla falsificação de valôres. Vimos aquela a que o branco submeteu os valóres africanos. Resta, contudo, ver a adulteração a que os negros submeteram os valôres portuguêses.
A igreja nos negros —
com
suas confrarias e seus jogos
— está superposta sôbre os calundus e os cachimbos. A polícia que revistava as “casas de sorte”, às vêzes detinha dançando ou fazendo sacrifícios, um dos reis ou chefes dessas confrarias católicas.(**) Isto significa que o cristianismo vai ser considerado pelos negros através de suas próprias concepções
do sagrado,
exatamente
como
os senhores julgavam
os cultos
africanos através do dualismo maniqueu de Deus e do Diabo. É inegável (voltamos a alguns dos textos que citamos no capítulo sôbre os dois catolicismos) que êsses senhores queriam fazer da igreja dos negros um instrumento, talvez mais eficaz ainda que os “capitães de mato” ou os “feitôres” das plantações, de contrôle social e mesmo de domínio racial. Ao mesmo tempo que diziam que São Pedro se recusava a abrir as portas
do céu aos negros ou que a Virgem Santa lhes proibia a entrada por causa de seu mau cheiro, queriam desviar o ressentimento do escravo para uma vingança post mortem. O sofri-
mento
passado
na terra, o trabalho
forçado,
os castigos
rece-
e Mucambos,
p. 725.
bidos, tudo isto lhes valeria no além, e o “vale de lágrimas” que (84)
200
G.
FREYRE
nos
dá
um
exemplo
em
Sobrados
para êles havia sido a terra lhes valeria, uma vez mortos, à
glória no céu. Para a classe dos senhores, a religião, sem que ela o confesse a si mesma, foi bem concebida, segundo a expressão de Marx, como um “ópio”, capaz de enfraquecer a resistência terrestre, de mutilar a vontade de revolta dos oprimidos, de dissolver a oposição em meros sonhos messiânicos, Mas — e nossa observação poderia ser, aliás, o ponto de partida também de uma crítica do marxismo — isso era esquecer que o negro ia reconsiderar (reinterpretar, diria Herskovits) o cristianismo através de sua própria religião, utilitária e coletiva. “A religião, ópio do povo” é menos uma definição da
religião em geral que de uma determinada tática, a de utilizar
a religião, que crê na imortalidade da alma, num dado momento da luta de classes. O método pôde ser experimentado no Brasil colonial e imperial. Trouxe frutos mais para os mulatos e mestiços que para os negros puros; entre êstes mais para os que tinham perdido sua civilização nativa, que estavam totalmente alienados, que para os outros. Os anjinhos negros que às vêzes se vêem pintados nas igrejas barrôcas do Nordeste ou de Minas, voando
em meio
às nuvens
no fôrro, pró-
ximos a anjinhos loiros de olhos azuis, é a prova. Isto quer dizer que a definição de Marx não se aplica a não ser em
situações sociais onde
em particular,
outras categorias marxistas
a categoria da alienação.
aparecem,
O negro das irman-
dades, membro de “nações”, dançador de batuques, encarava os santos e a Virgem de sua igreja negra, exatamente como
seus deuses ou seus ancestrais, não como concessores de graças celestiais, mas sim como protetores de sua vida terrestre. Pe-
dia-se-lhes, como a seus Orixás ou a seus Voduns, um bom marido, a volta da amante, a morte de seus inimigos, a libertação de sua sorte desde aqui na Terra. Sem dúvida, o culto
dos santos também tem êsse caráter para o povo; os portuguêses oravam
a Santo Antônio para mandar
João Batista para lhes dar um
São
Gonçalves.
Pediam,
contudo,
chuva, as môças
marido,
também
a São
as velhas solteiras a a seus
santos
abre-
viar-lhes o tempo de Purgatório, fazê-los entrar, por suas intercessões, no céu do Bom Deus e da Virgem Maria. É êste aspecto que escapou aos negros. Sua economia teoantrópica, observa Fernando Ortiz, não é uma economia de crédito a prazos longos, nem de enriquecimento, de capitalização de juros para investi-los no Céu que, no dia da morte,
201
lhes dá juros eternos — mas uma religião de consumo imediato, de ritos de trocas, sem crédito nem juros acumulados. (85)
Os ancestrais protegiam, mediante sacrifícios, suas linhagens: as divindades ioruba ou daomeanas protegiam, igualmente e em contrapartida, dependendo das festas que se lhes
dava, as colheitas dos lavradores, as expedições de caça ou de
guerra, as pescarias no mar ou nos lagos; os santos milagrosos,
da mesma maneira, somente ajudariam os membros de suas irmandades na vida de todos os dias, a única que lhes interessa,
contra pagamentos imediatos ou contra “promessas”, o acendimento de uma vela ou o ex-voto substituindo simplesmente, à moda
Trata-se
dos brancos, sempre
do
o sacrifício de um
mesmo
do
ut des,
galo ou de um
mas
para
receber
de trocas
sem
bode.
ime-
diatamente, e não em uma problemática do além. Se bem que o catolicismo, ligando-se à religião africana, desnaturou-a, é preciso dizer que, pelo menos no início, foi a religião africana que desvirtuou o catolicismo. Aceitando o culto dos santos, mas tirando-lhes parte de seu significado, para déle não considerar senão o que poderia interessar a uma economia
de troca, de dotes e contradotes,
timentos celestes.
Isto fêz com
inves-
que o cristianismo não tenha
sido para os escravos uma compensação à sua sorte, uma subli-
mação de seus sofrimentos, o que não era compreensível senão para a mentalidade dos brancos e possível apenas para a dos negros alienados. A igreja negra não foi suficientemente êste “ópio para o povo”, êste instrumento de contrôle social, de derivação do ressentimento, com o qual os senhores sonharam — e, por conseguinte, traço de união entre as camadas sociais. O dualismo
de civilizações, unindo-se ao -de classes, cada uma
transformando os valôres específicos da outra, reinterpretando em têrmos cristãos as representações coletivas dos africanos e em têrmos africanos as representações coletivas dos portuguêses, acentua o caráter paradoxal, desde suas origens, dêsse “sincretismo católico-fetichista”, como se lhe chamou, que en-
contraremos
como
(85)
202
posteriormente,
e que
consiste,
tanto
de um
lado
de outro, em dar sentidos diferentes às mesmas palavras.
F,
ORTIZ,
op.
cit.,
p.
34.
CAPÍTULO
VII
O Islã Negro no Brasil Deixamos
de lado, em nossa descrição das
sobrevivências
religiosas africanas no Brasil colonial ou imperial, os cultos das
“nações” maometanas. Vimos, contudo, ao enumerar versas etnias que forneceram escravos ao Brasil, que
negro também contribuiu para o povoamento brasileiro. Islã conservou
carinhosamente
documentação
começa
terra.
suas
crenças
místicas
as dio Islã
E êste
na
nova
No fim do Império e no início da República, quando a a ser mais
objetiva
e a descrição
das
religiões negras mais minuciosa, vemos os cronistas distinguirem nitidamente dois grandes cultos que designam como muçulmano
e fetichista.(!)
Entretanto,
o primeiro
está
hoje
quase
inteiramente desaparecido; constitui apenas, segundo a expressão de Arthur Ramos, “uma página de história”.(?) Este é o motivo pelo qual o estudaremos nesta primeira parte de nosso trabalho, que trata da evolução histórica das civilizações
importadas em suas relações com as novas estruturas A religião muçulmana no Brasil era praticada por escravos de côr conhecidos pelo nome de Musulmis ou O têrmo Musulmis é claro. O têrmo Malês suscitou muitas
discussões.(*)
É
(1)
João
Religiões
(2) (3)
A. RAMOS, 4s Culturas Negras, p. 349. Foi Nina RODRIGUES quem teve a idéia,
Brasileiro, chista, p. Refere-se
109-12.
Negras,
Foi
pp.
do
RIO,
As
90-2.
evidente no
que
Rio,
êste
p,
16.
30, de relacionar pela primeira vez o novamente a esta etimologia em Os
seguido
Pp.
por
333-35.
Este
A. RAMOS, último
O
Negro
lembra
que
o
têrmo
Arthur em
sociais. certos Malês. porém
é uma
RAMOS,
cor-
O
Negro
seu
Animismo
Feti-
pp.
77-9,
têrmo malé de malenké. Africanos no Brasil, pp.
Brasileiro, radical
malê
e Culturas
significa
'“hipo-
pótamo” e que se trata, por conseguinte, de um povo primitivamente totêmico. TAUXIER, La Religion Bambara, p. XVII. Ét. BRAZIL dá à palavra malê o significado de “pedagogo”, A seita muçulmana dos Anthropos, IV, 1909, p. 95. Trata-se evidentemente de um porque os muçulmanos do Brasil possufam escolas e uma
Malês do Brasil, sentido derivado cultura erudita.
canos,
ioruba
Os negros Solimas responde a “nação p.
112.
gado, aquêle do AMARAL,
palavras
J.
disseram a Nina RODRIGUES que o têrmo malê corsábia”, ''pessoas que frequentam as escolas”, Os AJrt-
RAIMUNDO
deriva
a
palavra
do
imalé
“o
que adotou O islamismo”, O Negro no Brasil, p. 361. 4s Tribos Negras, p. 671, acha que é uma contração de
portuguêsas,
má
lei;
os
Malês
seriam
os
que
não
seguem
a
rene-
boa
Braz duas
lei,
208
rupção de Mali, nome de um dos reinos muçulmanos do vale do Niger, habitado pelos Malinkê, no século XIII de nossa era. Ésse povo é também conhecido pelo nome de Mandingues e veremos
que a palavra mandinga
pelos
Se
no Brasil estendeu-se
à magia negra. Contudo, não foi tanto pelos Malês que o maometanismo foi introduzido no Brasil, como principalmente haussas.
tante dos negros
da
gião,
escravidão,
rushis,
como
êstes
constituíram
islamizados,
juntamente
certos
ou
encontravam-se,
com
Nagôs,
Guruncus
o elemento
os
Gruncis,
outras
todavia,
impor-
na terra
tribos da mesma
Bornus
os
mais
ou
Adamanás,
Mandingues,
os
os
Fulahs
reliGu-
ou
Peuhis.(*) Os viajantes ou historiadores antigos falavam também dos Minas como sendo muçulmanos. Porém, essa palavra que não
designa
uma
etnia, mas
sim uma
localidade,
o
grande mercado português de escravos de Mina na costa ocidental africana, compreendia, na realidade, como assinalamos, todos Os que não pertenciam aos grupos bantos, e por conseguinte, havia Minas muçulmanos e não muçulmanos.
Ora, à parte algumas raras exceções, tratava-se de tribos de negros puros ou de negros mestiçados com hamitas; por conseguinte, antigos animistas islamizados e não muçulmanos
de origem. Suas antigas crenças não tinham desaparecido completamente(?) e foi êsse sincretismo muçulmano-fetichista que
foi introduzido no Brasil e não o puro islamismo de Maomé.
Mais ainda que os outros grupos de escravos, resistiram vitoriosamente à cristianização e conservaram com uma espécie de altivez ciosa sua fé orgulhosa e intratável. Todos os viajantes estão de acórdo nesse ponto. Mas talvez o que melhor indicou
esta resistência foi o Conde
estada como e
de Gobineau,
durante
embaixador no Rio de Janeiro:
sua
A. maioria dêsses Minas, senão todos, são cristãos externamente
muçulmanos
de
fato;
porém,
como
esta
religião
não
seria
tole-
rada no Brasil, êles a ocultam e a sua maioria é batizada e trazem nomes tirados do calendário. Entretanto, malgrado esta aparência,
a lel verdadeira de Deus. Trata-se aqui de duas etimologias inexatas que vêm de um sentido derivado adquirido pelo têrmo no Brasil. Os haussas, por causa do sincretismo muçulmano-fetichista dos malenkê e de sua origem
pagá, consideravam malê uma palavra de desdém e a um tal ponto que um viajante francês, Francis de CASTELNAU, escreveu em 1851: “Designa-se sob o nome de Malês (sic) todos os infiéis, isto é, todos aquêles que não
são
maometanos”.
(4)
Negras, Les
(5)
Nina
pp.
335-41.
V. J. de CROZALS,
Bambara,
Paris,
Renseignements
RODRIGUES,
Institut
Múnster,
1910.
Os
VAfrique,
pp.
p.
12.
167-75.
A.
Les Peuhis, Paris, Maisoneuvre,
d'Ethnographie,
H.
LABOURET,
1931,
Noire Ocidentale, Paris, Larousse, VExcision chez les Malenke”, J. S.
204
sur
Africanos,
VII,
510
Les
pp.
E.
Tribus
F.
RAMOS, 1883.
du
Culturas P. HENRY,
Rameau
GAUTIER,
Lobi,
L'Ajrique
1935. G. CHERON, “La Circoncision et des Afr., II, fasc. 2, 1933, pp. 287-303 etc.
pude constatar que, devem guardar bem fielmente e transmitir com grande zêlo as opiniões trazidas da África, pois que estudam o árabe de modo bastante completo para compreender o Alcorão ao
menos
grosseiramente.
Ésse
livro
se vende
no
Rio
nos
livreiros
franceses Fauchon, Dupont, que mandam vir exemplares da Europa ao preço de 15 a 25 cruzeiros, 36 a 40 francos. Os escravos, evidentemente muito pobres, mostram-se dispostos aos maiores sacrifícios para possuir êsse volume. Contraem dívidas para êsse fim e levam, algumas vêzes, um ano para pagar o comerciante. O número de Alcorões vendidos anualmente eleva-se a mais ou menos uma centena de exemplares (...) A existência de uma colônia muçulmana na América, creio, nunca foi observada até aqui, e (...) 0) (O atitude particularmente enérgica dos negros Minas 1869).
É verdade que essas afirmações são contraditadas por outras da mesma época e do mesmo lugar, isto é, do Rio. Dizia-se que existia em 1840 uma mesquita fundada por negros mao-
metanos, na rua Barão de São Félix; investigações empreendidas
a fim de descobrilla não levaram senão ao conhecimento de um negro, João Alabah, que pedia de vez em quando permissões à polícia para realizar festas em sua casa; se bem que considerasse os muçulmanos como “irmãos”, sua religião, contudo, não .ia além do “fetichismo”. O único islamita de quem Alabah pôde dar o enderêço afirmou que não havia mesquita no Rio e que não podia citar mais que seis negros muçulmanos que se dedicavam ao culto em suas próprias residências.
Podemos talvez conciliar essas afirmações contraditórias, formulando a hipótese de que os “Minas” muçulmanos do Rio, se bem qué numerosos, eram mais ou menos fetichistas e que se ocultavam para evitar perseguições, celebrando seus ritos nas suas próprias casas. Os muçulmanos
ritório brasileiro.
Paulo,
onde
estavam
Sabemos,
teria
existido,
dispersos
em
quase
todo
o ter-
em particular, que os houve em São
segundo
o
testemunho
de
escravo, uma mesquita para a celebração de seu culto, (7)
como nos Estados de Alagoas, Pernambuco
o maior número
e Paraíba.(?)
se encontrava na Bahia onde foram
um
assim
Mas
a alma
dessas insurreições de escravos às quais dedicamos um capítulo
p.
(6) (7)
117,
G. READERS, Le Comte de Sud MENUCCI, O Precursor
em
nota.
As
pesquisas
Gobineau au Brésil, pp. 75-6. do Abolicionismo no Brasil, Luts Gama,
que
empreendi
no Rio, que não existiu em São Paulo uma muçulmanos celebravam seus cultos numa casa cisamente
M.
RICARDO
a propósito
dos
textos
mostram,
aqui
ainda,
mesquita e que particular. Como
brasileiros,
“a
como
os negros disse pre-
palavra
macha-
chali não designa mais que simples oratórios” e não mesquitas, “L'Islam Noir au Brésil”, Hesperis, 1.º e 2.º trimestres, 1948, p. 3. (8) Melo MORAES Filho, Festas e Tradições, p. 333. A. RAMOS, O Negro
Brasileiro,
pp.
90-1.
Mendes
de
ALMEIDA,
op.
cit.,
p.
53.
205
e onde, no fim do século XIX, ainda formavam, segundo o testemunho de Nina Rodrigues, um têrço da população africana, conservando um culto perfeitamente organizado: Há uma autoridade central, o Iman ou Almány, e numerosos sacerdotes que dêle dependem. O Iman é chamado entre nós Limano, que é evidentemente uma corrupção ou simples modificação de pronúncia de Álmány ou El Imány. Os sacerdotes, verdadeiros marabus, chamam-se na Bahia alufás. Conheço diversos (º)
(...)O atual Limano é o nagô Luiz, e a sede da igreja maometana, a sua residência no Barris, à rua Alegria n.º 3. O Limano é um homem alto e robusto, mas já bastante curvado pela idade (...) Sua atual mulher é uma negra crioula de mais de 30 anos, que estêve por algum tempo no Rio de Janeiro, onde se converteu ao Islamismo. É uma negra bem disposta, inteligente, sabendo ler e escrever um pouco e muito versada na leitura do Alcorão. Como ela não conhece o árabe e o Limano não sabe ler nem escrever o português, existem na casa um Alcorão em árabe para o Limano, e uma versão
portuguêsa
para
sua
mulher. (10)
O Rio era, depois da Bahia, o segundo grande centro do
maometanismo;
mais ou menos
na mesma
época em que Nina
Rodrigues descreveu seus últimos sobreviventes na Bahia, João do Rio, escrevendo uma reportagem sôbre as religiões da capital, do Brasil, aí distinguia dois tipos de sobrevivências religiosas africanas, o culto dos orixás e dos alufás, quer dizer, o das
seitas ioruba
é verdade,
que
e o das
seitas muçulmanas.(!!)
os muçulmanos
aderem
Acrescenta,
às festas
de
outros
negros, o que prova, aliás, não tanto a formação de uma consciência racial na oposição ao regime de escravidão, mas a extensão do sincretismo religioso e a perpetuação, entre os
negros A
islamizados,
O
autor
cita
do paganismo
7
marabus
na
primitivo.(!?)
Bahia,
entre
os
Encontramos
quais
5
haussas
e
2
nagóôs. 10) Nina RODRIGUES, Os Africanos, pp. 99-101. A essas indicações, pode-se acrescentar a de Manuel Querino que fala da existência na Bahia de um Xerife, espécie de profeta, cargo êsse só desempenhado por pessoa idosa; de um Lemano ou bispo, de um Ladane, o secretário e do alufá, simples sacerdote, Costumes Africanos, p, 113, e a do Padre Ét. BRAZIL que cita
o
lemano
(o
qual,
quando
celebrava
o
culto
tomava
o
nome
de
soga-
bamu), o ladano, ao mesmo tempo secretário, muezin e diácono, o achuaju, mestre de cerimônia, o alikaeya ou juiz. Mas tem a pretensão de exagerar a unidade e a sistematização desta Igreja muçulmana quando afirma que há um lemano supremo na Bahia (chamado depois de sua morte de iman untversal), que dirigia os fléis da Bahia, Rio, Ceará e Pernambuco e determinava a data das festas, La Secte Musulmane, p. 103. (11) João do RIO, 4s Religiões no Rio, p. 16. (12) João da RIO, “O Natal dos Africanos”, Kosmos, dez., 1904. Ponto de
vista
oposto
em
Nina
RODRIGUES,
Africanos,
p.
108:
“Afirma-me
o iman
(...): que também no Rio de Janeiro existe uma igreja musulmt regularmente organizada e sôbre a qual não pesa, como sôbre a da Bahia, a interdição das festas solenes que lá são executadas com grandes pompas. Mas, tanto quanto pude inferir destas informações, trata-se antes de uma igreja de muçulmanos árabes em que os negros malês são admitidos”.
206
a prova
dêsse
sincretismo
no culto
pernambucano.
O
alufá,
isto é, o sacerdote muçulmano, decifrava o futuro fazendo unções de óleo de palma e de sangue sôbre três pedras roxas,
das quais uma era chamada de Santa Bárbara e as outras duas eram pedras de raio.(!º) Ora, Santa Bárbara é a equivalente católica de Xangô,
o deus
a religião
ioruba.
O
vermelho
e envolto
mente a pedra de raio.
do trovão,
cujo
símbolo
é precisa-
A religião islâmica confundia-se
mesmo
acontecia
de colares
de ofás
em
Alagoas,
com
onde
a
seita “Malê” de Tia Marcelina ainda existia em 1912. Dizia-se que as fiéis recém-iniciadas deviam se prostituir ao deus da seita, Ali-Babá, “deus em forma de criança coberto de pano e de oôs”.
Um
alufá
ioruba,
como
aí dirigia a casa de Orixá-alum, cujos muros estavam pintados com arabescos e onde cantavam-se determinados cânticos religiosos que testemunham uma influência muçulmana mais ou menos remota: Edurê, edurê, alilala...
mas
cujas cerimônias
Oxalá,
Ogum,
Xangô,
micos desagregaram-se
dirigiam-se etc.(!!)
às divindades
Dessa
maneira,
os cultos islâ-
em tôda parte, fundiram-se com os de
outras “nações”, adotando as suas divindades e o seu cerimonial, esquecendo Alá e seu profeta Maomé. Ora, se a fé islámica era tão orgulhosa, tão resistente aos esforços de cristiani-
zação, donde vem êsse paradoxo do seu desaparecimento tão brusco ou de sua profunda transformação? Há, para isto, várias razões. De início, o número de haussas era consideravelmente reduzido após a revolução de 1813 em que os mais
turbulentos ou foram massacrados, ou deportados para a Africa.(1!)
Aquêles
que
ficaram
conseguiam
poucos
prosélitos,
principalmente por causa do seu desprêzo racial ou religioso que os fazia viver isolados dos outros africanos, pouco convi-
vendo
com
seus
companheiros
de infortúnio, (!8)
indo
dormir
e do maometanismo
a reli-
cedo enquanto os outros preferiam viver a noite para aí celebrarem suas festas pagãs. (!") No início, a escravidão, fazendo do catolicismo a religião dos senhores
gião dos líderes da revolta, podia favorecer a propagação da seita principalmente entre os africanos que conservavam suas línguas originárias. Porém, a supressão do trabalho servil, a (13) Mendes de ALMEIDA, op. cit. p. 53, e o artigo anônimo “Reminiscências dos Cultos Africanos”, R.1I.H.G.4, de Pernambuco, XXX, 1930, pp. 49-50.
(14)
A. RAMOS,
(16) (17)
Id. ibid. p. 345. Manuel QUERINO,
(15)
A.
RAMOS,
O
Negro
Culturas
Brasileiro,
op.
Negras,
cit., pp.
p.
pp.
337.
90-2.
111-12.
207
igualdade teórica de todos os brasileiros perante a lei, faziam desaparecer um dos mais importantes motivos da conversão. O limano Luiz queixava-se a Nina Rodrigues ao ver os próprios
filhos dos Malês preferirem as seitas fetichistas ou a conversão católica a perserverarem na fé de seus maiores.(!'8) É dessa
maneira que, do mesmo modo que uma espécie animal desaparece por extinção de seus indivíduos, o maometanismo desapareceu
no Brasil em virtude da morte de seus antigos fiéis, tendo perdi-
do tôda possibilidade de rejuvenescimento Mas
antes dêsse culto
desaparecer,
ou de propagação.
quando
principiava
a
entrar em agonia, pôde ainda assim ser observado e estudado por um Melo Moraes, um Manuel Querino, um Étienne Brazil, um Nina Rodrigues ou um João do Rio. É por meio de suas descrições que tentamos reconstituir a vida da antiga comunidade islâmica negra do Brasil.
Era essencialmente uma comunidade puritana.
moral externa, sideravelmente
Não só pela
pela sobriedade, a temperança que freava cona exuberância, a gritaria, o gósto pela bebida,
os cantos e gritos dos outros africanos e que se notava até na aparência
externa,
a calma
gestos e o uso de barba
nas
conversas,
a moderação
“à la Cavaignac”,
como
dos
símbolo de
diferenciação étnica e religiosa, (19) mas também porque a fé marcava tôda a vida dos muçulmanos, os diversos momentos de sua existência, desde o nascimento até a morte, e as diversas etapas
do
Parece
nascia.(2!)
instruído. ção.(23)
preciso
dia,
desde
o alvorecer
que o pequeno
Aos
ao
pôr
do
muçulmano
sol.(2º)
era batizado
10 anos sofria a circuncisão.(?2)
quando
Depois, era
Os maometanos davam grande importância à educa-
(Como
saber
a leitura
ler
e
do
escrever
Alcorão
os
era
necessária
caracteres
árabes.
à fé,
Daí,
era
a
fundação de escolas junto aos seus santuários, na casa de africanos livres. Nas buscas judiciárias que se seguiram às revolPP.
( 18, Nina RODRIGUES,