Religiões africanas no Brasil [1 & 2]


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Portuguese Pages [572] Year 1971

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Table of contents :
PRIMEIRO VOLUME
ÍNDICE
Introdução
PRIMEIRA PARTE: A DUPLA HERANÇA
1. A Influência de Portugal e da África na América
2. Os Novos Quadros Sociais das Religiões Afro-brasileiras
3. O Protesto do Escravo e a Religião
4. O Elemento Religioso da Luta Racial
5. Os Dois Catolicismos
6. As Sobrevivências Religiosas Africanas
7. O Islã Negro no Brasil
CONCLUSÕES DA PRIMEIRA PARTE: Religiões, Grupos Étnicos e Classes Sociais
SEGUNDO VOLUME
ÍNDICE
SEGUNDA PARTE: ESTUDO SOCIOLÓGICO DAS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS
1. Geografia das Religiões Africanas no Brasil
2. O Funcionamento das Seitas Religiosas Africanas
3. Os Problemas da Memória Coletiva
4. Os Problemas do Sincretismo Religioso
5. As Duas Desagregações (O Candomblé Rural e a Macumba Urbana)
6. Nascimento de uma Religião
7. O Negro Católico ou Protestante
CONCLUSÕES
1. Contribuição para uma Sociologia do Misticismo
2. As Duas “Aculturações”
3. Estruturas e Valóôres
4. Religião e Ideologia
Léxico
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Religiões africanas no Brasil [1 & 2]

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ROGER

BASTIDE

Professor

da Sorbonne

As Religiões Atricanas no Brasil Contribuição a Uma Sociologia das Interpenetrações de Civilizações PRIMEIRO

VOLUME

Tradução

de

MARIA

ELOISA CAPELLATO e OLÍVIA KRAHENBUHL

LIVRARIA

Ns

PIONEIRA

EDITORA DA UNIVERSIDADE SAO PAULO

EDITÓRA

DE SÃO PAULO

BIBLIOTECA

PIONEIRA

DE

CIÊNCIAS

SOCIAIS

SOCIOLOGIA

Conselho

Diretor: Prof. Prof. Prof.

Conselho

Ruy COELHO OCTAVIO IANNI LUIZ PEREIRA

Orientador:

Profs.: Nestor de Alencar — Vicente Unzer de Almeida — F. Bastos de Ávila — Júlio Barbosa — Tocary Assis Bastos — Paula Beiguelman — Cândido Procópio Ferreira de Camargo — Wilson Cantoni —- Fernando Henrique Cardoso — Orlando M. Carvalho — Helena Maria Pereira de Carvalho — Orlando Teixeira da Costa — Levi Cruz — Mário Wagner Vieira da Cunha — A. Delorenzo Neto — Florestan Fernandes — Pinto Ferreira — Marialice Mencarini Foracchi — Frank Goldman — Augusto Guelli Netto — Juarez Brandão Lopes — Sílvio Loreto — J. V. Freitas Marcondes — Maria Olga Mattar —- Laudelino T. Medeiros — Djacir Menezes — Douglas Teixeira Monteiro — Evaristo de Moraes Filho — Aldemar Moreira — Edmundo Acácio Moreira — Renato Jardim Moreira — Oracy Nogueira — L. A. Costa Pinto — Maria Isaura Pereira de Queiroz — João Dias Ramalho -—— Alberto Guerreiro Ramos — José Arthur Rios — Aziz Simão — Nelson Werneck Sodré — Henrique Stodieck — Oswaldo E. Xidieh.

Título

do original francés:

LES RELIGIONS “Vers

une

sociologie

AFRICAINES

AU BRÉSIL

des interpénétrations

de civilisations

Covyright

PRESSES

UNIVERSITAIRES 1960

Capa MÁRIO

DE

FRANCE

de

TABARIM

1971 Todos ENIO Rua

os

direitos

MATHEUS

reservados

GUAZZELLI

15 de Novembro, 228 — Telefone: 33-5421 — Impresso

Printed

no

&

por CIA.

4.0 andar, São Paulo

Brasil

in Brazil

LTDA. sala

412

ÍNDICE Introdução,

9

PRIMEIRA

PARTE

4

AusnNm

A DUPLA HERANÇA A Influência de Portugal e da Africa na América, 47 Os Novos Quadros Sociais das Religiões Afro-brasileiras, 85 O Protesto do Escravo e a Religião,

113

O Elemento Religioso da Luta Racial,

141

Os Dois Catolicismos, 157 As Sobrevivências Religiosas Africanas,

181

O Islã Negro no Brasil, 203

CONCLUSÕES l.

Religiões, Grupos Étnicos e Classes Sociais, 219

Introdução A miséria religiosa, escreveu Marx, é, de um lado, a expressão da miséria real e, de outro, o protesto contra essa mesma miséria.

A religião é o suspiro

da criatura

acabrunhada

pela

desgraça.(1)

Assim, os valóres religiosos, na Sociologia nascente, eram ligados às estruturas sociais ou, mais exatamente, à condição dos homens em sociedade. Mas, esta ligação que constitui o objeto essencial

dêste

trabalho,

era

concebida

em

têrmos

bem

mais

particulares. Uma vez que a vida social é encarada, antes de tudo como atividade prática, ela se confunde com as fórças da produção. É certo que o jovem Marx nos seus primeiros escritos considerava a produção em seu sentido mais amplo — produção de idéias do mesmo

modo

que produção material —

aparecendo-lhe já a religião sob a forma de uma ideologia. À medida que restringe seu conceito de produção Uúnicamente ao setor da produção

material,

êsse caráter de ideologia se acen-

tua.(2) Os marxistas têm insistido em considerar a religião o ópio do povo, a função das igrejas, debilitar a revolta operária e ligar as classes exploradas à opressão das classes dominantes.

Não é êste, porém, o aspecto do marxismo que nos interessa aqui. É impossível, nos quadros da teoria marxista, fazer da religião

uma simples ideologia inventada pelos senhores para melhor dominar seus escravos. A religião não é falsa por ser uma visão unilateral da realidade, da

classe

dominante.

a expressão

Este

aspecto

dos interêsses económicos

é secundário,

uma

reação

ideológica sóbre a infra-estrutura social, sôbre a perpetuação do

regime de classes. É um aspecto importante, sem dúvida, pois Marx em seus Escritos Políticos se preocupa menos,com a ação

causal das técnicas de produção do que com a relação dialética oposta e, nos Escritos, são idéias “falsas” aquelas que não exprimem as realidades econômicas do momento. Mostram-se as.

mais

(1)

eficazes

no

Karl MARX,

curso

dos

acontecimentos

“Contribution

históricos, uma

vez

à la Critique de la Philosophie du Droit.

de Hegel”, Oeuvres Philosophiques, t. 1, ed. Costes, ?p. 94, (2) Karl MARX, Le Canital, t. HI, p. 9n.

9

que é por meio delas que a classe dirigente pode manter um

poder condenado pelos fatos. Ainda assim, não é senão um aspecto secundário. Se a religião pode ser utilizada por uma classe para melhor assegurar

seu domínio, por que irá ela abandoná-la? da “miséria do homem”.

cial.

Sem

dúvida,

Mas como?

encontramos

nos

A religião nasceu

Para nós, aí está o essen-

marxistas

tentativas

mais

ou menos frutíferas de relacionar a religião às técnicas de produção ou, de modo

mais geral, às conjunturas econômicas, espe-

cialmente tratando-se do cristianismo primitivo ou do totemismo. Mas, tanto um como outro não são mais que soluções para

abrandar um sentimento poderoso, o mêdo.

No fundo, quando

se analisam os principais textos marxistas sóbre a religião, percebe-se que, sob uma roupagem econômica nova, volta-se à velha idéia dos antigos: Primus in orbe Deos fecit temor. O que

a religião exprime não são as relações de produção

entre os

homens mas, sim, o fato de que essas relações são contraditórias, o que não é geralmente reconhecido. Foi Engels quem cuidou

dêste aspecto, mostrando que a religião primitiva traduz a angústia do homem em face das fórças misteriosas de uma nature-

za que êle não pode domesticar; tomam elas, por isto, o aspecto de fôrças supraterrenas, enquanto a religião contemporânea ex-

prime a angústia do homem em face de fórças sociais, como as leis do mercado,

semprêgo,

as crises econômicas,

as bancarrotas

ou o de-

fôrças sociais que o proletário não pode prever o

que sôbre êle se abatem de maneira inesperada e brutal, com

um caráter simultâneo de estranheza e de necessidade, tornando-

-se, também, fórças sobrenaturais e supra-sociais. Deus, assim, não é mais que a imagem do capitalismo irracional. Daí, ser

psicológica

e sociológica

a explicação

definitiva

da religião:

sociológica no sentido de que nasce do esfôrço fracassado do trabalho humano em face da natureza ou das contradições de um regime; e psicológica no sentido de que êsse revés ou essas

contradições agem excitando o eterno mêdo pânico ante o irracional, o incontrolável e o selvagem. dade

cado

Piaget louva Marx por haver, ao ter descoberto a relatividas superestruturas em relação às infra-estruturas, apli-

conceitos

ideológicos

às explicações

concretas

nas

coisas executadas em comum para assegurar a vida do grupo social em função de um determinado meio material que se prolonga em

representações (3)

10

Jean

coletivas. (3)

PIAGET,

L'Epistémologie

Génétique,

t. II,

cap.

XII.

Não deveremos, nas páginas subseqiientes, negligenciar esta

ação comum.

Mas,

o marxismo,

passando

do sociológico

ao

psicológico, voltando à explicação da religião pelo mêdo, não faz mais que insistir numa solução ultrapassada. Chega à conclusão de que não há sentimentos religiosos, mas sentimentos

normais, facilmente identificáveis, que dizem

respeito à cons-

ciência comum e da qual a religião é sômente um efeito ou objeto.(*) Mesmo onde a religião surge como algo aterrador,

onde se exprime pela angústia, ela parece surgir de um domínio particular e fazer-se absoluta não apenas em face do fracasso do trabalho humano mas, em tôda parte

onde a vida atinge seus pontos culminantes, no nascimento, na morte, no coito, onde o homem se debruça à margem da existência

e é tomado

uma

de

vertigem. (5)

Entretanto, presença

a presença de fôrças religiosas não é sempre

de mêdo,

mas

também

de fôrça, de paz

ou de

alegria. E dizendo isso, não aludimos únicamente ao cristianismo atual mas também às formas primitivas da religião. Durkheim, posteriormente, insistirá sôbre êste aspecto da questão. Recusamo-nos neste trabalho a pesquisar as origens da religião, o que nos faria passar da Sociologia à Filosofia (mesmo que seja Filosofia Sociológica, não deixa de ser Filosofia). Propomo-nos, sim, a estudar, num caso específico, os diversos tipos de relações que podem se estabelecer entre as estruturas sociais (inclusive

suas condições econômicas)

no

que

seio

do

fenômeno

essas relações

social

podem

e o mundo total.

tomar

Em

dos valôres religiosos,

certos

o sentido

de

casos,

veremos

ideologias

ou,

ainda, se misturarem e se tingirem de ideologias, não na acepção lata do têrmo, de produção intelectual, de “obras” da consciên-

cia coletiva, mas no sentido mais tradicional de “deformação inconsciente” ou de fantasmagorias atuando sôbre as infra-estruturas econômicas.(*) Queremos analisar como e por que, em que circunstâncias opera esta distorção do “sagrado”, nunca coloca-

do como um problema a ser resolvido em têrmos de “ideologia”, mas considerado como uma parcela da realidade social global. Durkheim retoma o problema pôsto por Karl Marx dando-lhe, porém, base mais ampla, suscetível, por isso, de conse(4)

Lucien

HENRY,

Les

Oríigines

de

la

Religion,

p.

21.

(5) Van der LEEUW, L'Homme Primitif et la Religion, p. 189. (6) Georges GURVITCH, La Vocation Actuelle de la Sociologie, pp, 587-88 e 601 (sôbre a distinção entre obras e ideologias); Déterminismes Sociaur et Liberté Humaine, nota da p. 136 (sôbre os diversos sentidos da palavra ideologia para Marx).

11

guir mais fâcilmente nossa adesão. definição

de religião

e depois

em

Recusa-se, primeiro em sua

sua crítica ao marxismo,

identificar o sentimento religioso com o de mêdo.

mitivo, longe de se sentir esmagado

O homem pri-

por fôrças contra as quais

nada pode,

“atribui-se sôbre as coisas um poder que não possul”, e é ilusão que “o impede de se sentir por elas dominado”.(7)

Em

a

esta

segundo lugar, recusa-se a fazer da religião um sim-

ples epifenômeno, uma pura fantasmagoria: É

inadmissível

que

os

sistemas

de

idéias,

como

as religiões,

que tiveram lugar tão considerável na História, e nos quais os povos de tôdas as épocas buscam a energia que lhes é necessária para viver, sejam tão-sômente tecidos de ilusões. (8)

Em suma, em Formes Elémentaires de la Vie Religieuse, não

é a uma

infra-estrutura

econômica

que

a religião

está ligada,

mas à totalidade da estrutura social e sua organização morfológica. Mas, da mesma forma que em Marx, embora sob forma mais requintada e complexa, o mesmo problema causal preocupa Durkheim:

Às concepções religiosas, longe de produzirem o meio social, são produtos dêle, e se, uma vez formadas, reagem sôbre as causas

que

as

engendraram,

esta

reação

nunca

será

muito

radical.(º)

Sendo essa citação tomada ao Suicide, é o caso de pergun-

tarmos se do Suicide a Formes Elémentaires,

o pensamento

de

dos

está inteiramente

Durkheim não se modificou mais ou menos profundamente. Ao distinguir os símbolos religiosos das imagens, êste pensamento não só se afasta da religião definida como ideologia, mas ainda da religião como simples representação, que era a idéia de Suicide. A religião torna-se, pois, a expressão da sociedade, de sua estrutura e de suas tendências, da reunião ou da dispersão homens.(!º)

resolvido.

Por

certo,

o equívoco

não

Durkheim parece hesitar sempre entre a religião como

“produto” e como “expressão”. Os dois temas acham-se intima-

mente ligados e torna-se difícil separá-los.

Se essa separação é difícil é porque todo homem é um animal social e a religião se reduz à consciência da vida coletiva.

(7) É. DURKHEIM, Formes Élémentaires de la Vie Religteuse, pp. 121-22. (8) Id. Ibid., p. 98. (9) É. DURKHEIM, Le Suicide, p. 245. (10) '“Talcott PARSONS, Éléments pour une Sociologie de VáÁction, pp. 28-31, introdução de F, BOURRICAUD.

12

Ela é, ao mesmo tempo, o produto da comunhão e a expressão

própria em que se manifesta êsse sentimento de comunhão,

a

saber, a distinção entre dois mundos: o “profano” da consciência individual e o “sagrado” da consciência coletiva, exterior e

superior às consciências individuais.

É inútil retomar aqui mais

uma vez a crítica da tese durkheimiana já várias vêzes elaborada, O que nos impressiona é a descontinuidade

e bem elaborada. ('!)

entre os fatos citados por Durkheim e as conclusões a que chega.

O que ressalta dos fatos é o contrôle do grupo sóbre as mani-

festações da mística,(1º) é a ligação efetiva das normas de paren-

tesco com as da vida cerimonial,(!º) é, em uma palavra, a impossibilidade de separar a religião do fenômeno social total, não

que esta religião seja o produto da reunião dos homens formação,

no

seio

do

de

povo,

consciência

uma

e da

coletiva.

A

conclusão ultrapassa os múltiplos exemplos coligidos por DurKheim em favor de sua tese, porquanto êsses exemplos mostram que a religião está sempre presente no social e não que o social cria a religião. Se Formes Elémentaires teve o mérito, ao des-

tacar o símbolo da imagem,

marxismo,

de eliminar certas insuficiências

do

explicando, por outro lado, em última análise, êsses

símbolos pelo estado da sociedade em conjunto, ela não nos deixou sair de uma investigação causal que já recusáramos aceitar por filosófica. (!*) Por sua vez, a Sociologia Religiosa alemã, como a francesa, pode

xismo,

ser considerada em

sua

forma

uma

tentativa de superar o que

clássica,

tinha

de

demasiado

o mar-

estreito.

E

começa com Cassirer, opondo à dialética histórica o que se poderia chamar de eternidade psicológica do espírito humano.

De fato, para êle, não é da sociedade que é preciso partir, mas

de categorias religiosas consideradas no sentido do a priori kantiano e ver como essas categorias servem para unificar tanto a

sociedade quanto o mundo. Sem dúvida, não se pode mais falar de uma causalidade temporal, a religião não sendo a causa

da sociedade uma vez que esta é cronolôgicamente anterior aquela, porque constitui sua condição lógica, A sociedade não

pode se constituir senão através das categorias do pensamento místico, do mesmo modo que a natureza em Kant se constitui

(11) De Gaston RICHARD, L'Athéisme Dogmatique en Sociologie Religteuse, Cahiers de la “Revue d'Histolre et de la Philosophie Religieuse”, Istra, Estrasburgo, 1923, 48 pp. a G. GURVITCH, “Le Problême de la Conscience Collective dans la Sociologle”, de Durkheim, Vocation Actuelle, pp. 351-408, e PARSONS, The Structure of Social Actim, por exemplo, p. 425. (12) Por exemplo, Formes Elémentaires, pp. 565-67. (13) Por exemplo, Formes Élémentaires, p. 359. (14) Claude LÉVI-STRAUSS, Sociologie au XXe sSiêécle, II, p. 527.

18

pelas formas da sensibilidade ou das categorias do entendimen-

to.(18) Pode-se

adversário

ver também

de Marx,

em Max

apresentando,

Weber,

contra

antes de tudo, um

êle, em

seu célebre

ensaio sôbre as origens do capitalismo industrial, a ação dos

fatôres ideológicos sôbre os econômicos. Contudo, a Sociologia Religiosa de Max Weber não se reduz a essa obra e seria uma caricatura considerá-lo um puro idealista.

Inicialmente,

no ensaio

a que

aludimos,

o protestari-

tismo não aparece como a causa absoluta do capitalismo total,

mas como uma entre muitas causas e sômente de certos aspec-

tos do capitalismo.

Weber procura, sobretudo entre o religioso

e,o econômico, um elemento de união que possa nos fazer com-

preender a ação eficaz desta causalidade, e êsse elemento é a ética social do calvinismo. A religião não atua diretamente sôbre a economia, mas orienta sempre o comportamento moral dos indivíduos em relação uns aos outros e são, única e exclusivamente, êsses comportamentos morais que podem modificar as relações econômicas.(1º) Enfim, se Max Weber em Gesammelte Aujsitze zur Religionsoziologie insiste sôbre a ação causal da religião, em Wirtschaft und Gesellschaft é a ação contrária que,

se não domina a ação causal da Economia, pelo menos domina a das classes ou dos grupos de interêsse.

De fato, cada classe

ou grupo social, seja o campesinato, a aristocracia, a burguesia comercial, os artesãos ou os proletários, tem sua religião própria, que é a expressão de sua situação no interior da sociedade,

de sua posição de domínio ou de dependência e o mais comumente de sua mudança sua decadência.(17)

de situação —

de sua ascensão ou de

O que opõe Max Weber ao marxismo não é ter invertido

o encadeamento materialista de causas e efeitos. Weber está bastante ciente das diferenças, da complexidade do real e da

variação das seqiências causais, para não reconhecer a existência de um fator econômico na Sociologia Religiosa, da mesma

forma que Marx estava interessado na reação das superestruturas sôbre as infra-estruturas. A verdadeira oposição, a meu

ver, reside na substituição de uma Sociologia Positiva por uma Sociologia Compreensiva.

Marx, como Durkheim,

estuda os fa-

tos sociais de fora, ou se se deseja, como “coisas”, ao menos como “ações”, suscetíveis de uma explicação objetiva. Weber

(15) CASSIRER, Philosophie der Symbolischen Formen, II Teil: Das Mvythiscne Denken, Berlim, 1924. (18) Raymond ARON, La Sociologte Alemande Contemporaine, pp. 137-38. Ás o WEBER, Wirtschaft und Geselischaft, t. III (categorias, classes er es

14

não

se contenta

em

estabelecer

correlações

variáveis

entre

os

fatos econômicos e os místicos; êle quer compreender o significado profundo dessas correlações, o sentido do comportamentq

humano. Mas aí há um perigo e Weber não o soube evitar: o do subjetivismo. Desde que esta compreensão é feita pelo observador, quer dizer, pelo sociólogo que interpreta as correlações,

não se deve esquecer que êle participa de uma sociedade, que é moldado

sequência,

forma,

os

dependem tamentos

por uma

dada cultura, que sua psicologia, em con-

está condicionada

“significados”

de fenômenos

vêm

à luz.

dos

por fatôres

sociais.

comportamentos

sociais totais em

Tornaremos

que

Da

mesma

êle analisa

que êsses compor-

a encontrar

êsse problema

da compreensão quando passarmos da Sociologia à Etnologia.

A esta altura apenas diremos, para terminar nossa crítica, que não podemos aceitar que o subjetivismo weberiano penetre em nosso trabalho.

Se Max Weber está mais próximo da posição marxista do problema — relações entre os fatos econômicos e os religiosos —

Max

Scheler

parece

mais

próximo

da

posição

durkheimiana

— relações da religião com a estrutura social e não unicamente

com a econômica. Este último, de fato, distingue uma Sociologia cultural e uma Sociologia real, o estudo da religião per-

tencendo à primeira e o de grupos e instituições à segunda; ora, se os fatôres econômicos aparecem na Sociologia real, é em terceiro lugar, depois

dos raciais e políticos,

cronolôgicamente

anteriores do ponto de vista da sua preponderância — o que faz com que a questão colocada pelo marxismo tenha mais significação para as religiões atuais que para as primitivas. Isto dito, quais são as relações causais entre essas duas sociologias?

Há, de pronto, duas ordens de causalidades independentes:

o

espírito determina os conteúdos ou, como disse Scheler, “o modo de ser dos conteúdos da cultura”; paralelamente, as necessidades

humanas determinam a formação e a organização dos grupos ou das instituições. Entretanto, ao lado desta dupla causalidade,

há ligações entre o mundo

mas

essas, por

vez,

da cultura e o da realidade

complicam-se

de outra forma.

social,

O conteúdo

cultural exerce uma influência manifesta sôbre as formas de organização; por exemplo, o conteúdo da fé, protestante ou católica, influi na organização adotada pelas respectivas igrejas. Contudo, o espírito não tem “eficiência causal”, seja êle individual ou coletivo, nem ação dinâmica sôbre o real; não se pode deduzir

“do conteúdo

ou dos

valôres

religiosos

as relações

reais dos

15

homens em sociedade. Na recíproca, as religiões são condicionadas sociológicamente pelas formas de relações existentes entre os homens e pelas de seus grupos, mas essas condições sociológicas não são mais que uma atividade de seleção. Os interêsses sociais dominantes, primeiro os biológicos, depois os políticos e, por fim, os econômicos, podem excluir certas realizações possíveis da lógica do espírito, ou favorecê-las, ou selecioná-las, mas a história real, a das instituições ou das situações sociais, é “indiferente” em relação à história da vida espiritual. O determinismo sangúíneo, por exemplo, favorecerá a religião familiar ou tribal que o determinismo político eliminará em seguida,

mas o conteúdo das religiões tribais ou políticas depende da pura lógica causal do espírito individual ou coletivo. (18): Max Scheler, é verdade, estabelece um outro tipo de ligação

entre a Sociologia da cultura e a da realidade. As necessidades humanas, os impulsos vitais que estão na origem dos grupos ou das instituições podem superar a barreira que separa os dois mundos a fim de penetrar no nível das idéias e dos valôres. Mas, nesse caso, elas ou êles sofrem logo uma metamorfose, pois que são prontamente “sublimados” pelo espírito.

da Sociologia do Saber compreendeu

Em

suma, o autor

a dificuldade do proble-

ma das relações entre o que Marx chamou de “infra-estruturas”

e de “superestruturas” quando são postas em têrmos de seqiiên-

cias causais. Como êle queria a todo custo manter essas seguências, não encontrou outro recurso que o dualismo mais

intransigente, separando a lógica do espírito e a do real.

vão

tentou

investigar

ainda

assim

ligações,

Em

condicionamentos

recíprocos, deparando com a mesma dificuldade que Descartes, o qual, separando tão radicalmente a alma do corpo, não conse-

guia depois explicar sua união.

Nem tudo deve ser rejeitado, cremos, nesta Sociologia Religiosa que acabamos de resumir; mas, não se torna válida

sômente quando tenta escapar ainda que desajeitadamente de uma explicação puramente causal? As dificuldades que encontra não provêm sempre do predomínio que dá à causalidade sôbre outras formas de explicação? Somos assim levados a examinar uma outra Sociologia Religiosa, radicalmente diversa da precedente.

x %

EA PD.

16

-

Max .

SCHELER,

Sociologia

%*

del

Saber,

trad.

esp.

particularmente

Parece que a Sociologia contemporânea tende a substituir as antigas ordens de segiiências, isoladas, desligadas da realida-

de total, por justificativas em têrmos de situações, de configurações ou de integrações. E é assim que o velho problema das relações entre os fatos econômicos e os religiosos, do qual partimos,

aspectos de

é substituído pelo das relações entre os diversos

uma mesma civilização. O causal desaparece ante o situacional. Em certa medida, êsse movimento segue as transformações

da Lógica clássica que abandona a concepção aristotélica de classes ou de substâncias para substituí-la por uma Lógica das Relações ou pela Matemática dos conjuntos.

Vemos,

de fato, o

mesmo movimento operar primeiro na Física, depois na Psico-

logia (com a teoria do campo de Kurt Lewin) e, por fim, na So-

ciologia. Mas, se a nova lógica, que explica as partes pelo todo e não o aparecimento de um fenômeno pela ação eficiente de um

outro,

social,

criou um

parece-nos

que

clima favorável

a uma

o fator determinante

teoria

do

das novas

campo

concep-

ções sociológicas deve ser procurado na própria evolução da Etnologia, no comêço do século XX. A grande dificuldade da Etnologia está na compreensão

do

“outro”.

O

evolucionismo

mascarou-a

por

um

momento,

mas, com Lévy-Bruhl, o reconhecimento da riqueza e da relati-

vidade das civilizações fê-la reaparecer. As relações entre os homens não são da mesma natureza que as relações entre as coisas; elas têm um significado, colocam o problema da com-

preensão; mas, temos o direito de interpretá-las através dos moldes de nosso próprio pensamento, talhado pela nossa sociedade ou nosso sistema de valôres sem cair no etnocentrismo? Podemos nos comunicar com o “outro” além das barreiras que as diferenças culturais erguem? Lévy-Bruhl compreendeu a dificuldade desta questão e procurou durante tôda a sua vida um método que permitisse enquadrar-nos nas atitudes mentais dos primitivos, ao invés de lhes atribuirmos as nossas.('º) Mas esta

longa busca resultou na proclamação da “opacidade” do pensa-

mento dos “primitivos” em relação ao do etnógrato que procura

compreendê-lo.

No

fim

de

sua

vida,

êste método

reduzia-se

ao conselho dado ao pesquisador para não se abandonar à ilusão

de esclarecer o que, por natureza, nos é obscuro.(2º)

Não era isso

uma espécie de reconhecimento da impossibilidade da transfe(19)

O

caráter

compreensiva”,

foi

Espíritoà pjentifico”,

pp.

121 (20)

Lucien

da

teoria

evidenciado Revista

de de

LEVY-BRUHL,

LÉVY-BRUHL,

por

Florestan

Antropologia,

Les

Carnets,

vista

coma

FERNANDES, S.

p.

Paulo,

uma

“sociologia

“Lévy-Bruhl

Brasil,

IJ,

2,

e o

1954,

214.

17.

rência da Sociologia compreensiva a um mundo de homens pertencentes a outras civilizações que não a ocidental? Em todo

caso, é assim que a Etnologia contemporânea em geral concebeu a tentativa

de Lévy-Bruhl,

e ela retomará,

abandonando

tôda

interpretação compreensiva, um método essencialmente positivo. O

estudo

das

estruturas

daqui

por diante leva vantagem

sôbre o das representações coletivas. E a religião será interpretada como parte desta estrutura social, muito mais do que um

conjunto

de representações

“místicas”.

Desta

maneira,

o

comportamento dos indivíduos e dos grupos não é mais interpre-

tado de dentro, mediante um esfôrço de “expatriação” do etnólogo, mas de fora, como “coisas”, ou melhor, como “ações” conju-

gadas, complementares, recíprocas, suscetíveis de um tratamento

científico objetivo. Desta maneira, a Etnologia procura escapar ao risco do etnocentrismo e da valorização, por uma evasão da

vida vivida na imobilidade quase inorgânica das estruturas, das

ordens ou das organizações.

Há, fora disto, fases nesta imobili-

zação, conforme se dê ao têrmo estrutura social um sentido concreto, visível, considerando o dinamismo das sociedades, (2!) ou

ainda, os fenômenos de “desvios” ou de “alternativas de comportamento” que permitem aos modelos mais rígidos se adaptarem

aos acasos da vida,(22) ou, ao contrário, o sentido de regras abstratas, de modelos normativos, variáveis, sem dúvida, conforme as civilizações, mas se concentrando em um determinado núme-

ro de tipos formais, em ligação com a estrutura mental incons-

ciente, que se atinge por uma espécie de psicanálise institucio-

nal. (28) O problema

da compreensão

não

está, porém,

completa-

mente afastado, porque a ligação dos homens ou dos grupos, dos sexos ou dos grupos de idade é definida por um sistema de

símbolos inclusive precisamente os símbolos religiosos, que lhe dá um sentido. Como disse Radcliffe-Brown, a ordem social depende, em última análise, da existência, nos espíritos de seus

membros, de sentimentos que controlem os comportamentos individuais ou grupais, uns em relação aos outros. A estrutura funciona segundo modelos, valóres, idéias ou ideais que têm um

significádo para os seus elementos constituintes.

in

(21)

Com

Primitive

RADCLIFFE-BROWN,

Society,

por

exemplo,

Structure

O problema and

Function

(22) Com Raymond FIRTH, por exemplo, “Social Organization and Social Change”, J. Of R. J. Of G. B. and 1., 84-1954. (23) Com Claude LÉVI-STRAUSS, por exemplo, Les Structures Elémentaires de la Parenté, cf. também do mesmo autor: Trístes Tropiques, cap. XXVIII, onde o problema da pesquisa de modelos está voluntáriamente ligado com o ultrapassar do etnocentrismo.

18

da compreensão

não está, portanto, eliminado,

parece-nos, rejeitado.

está unicamente,

Pode-se-lhe dar diversas soluções.

A

primeira, que é a de Kardiner, nos reconduz uma vez mais ao psicológico: é a “personalidade básica” que dá significação às insti-

tuições sociais; nesta perspectiva, o problema das relações entre à: Economia

e a Religião,

ou entre

as estruturas

sociais e as

representações coletivas não se coloca mais no nível do socioló-

gico, nas ações e reações das instituições entre si, mas na cons-

ciência dos indivíduos que as unem, as integram, nas suas har-

monias ou com suas tensões internas e externas. (2*) Mas a difi-

culdade que Lévy-Bruhl encontrada nesse caso: trar êsse significado? verificar suas hipóteses,

tão bem trouxera à luz será novamente como o etnólogo terá certeza de penePara não interpretar sômente, ou para êle poderá muito bem valer-se de testes

como o de Rorschach(2º) mas, para quê? O significado das respostas não é válido universalmente, visto que tem tantos sentidos quanto há civilizações. A segunda solução consistirá em não ver os mitos, as representações coletivas, as crenças religio-

sas que como justificações ou racionalizações, nos sentidos mar-

“xista e freudiano dos têrmos, de realidades ocultas e mais essenciais.

Quando

Lévi-Strauss,

por exemplo,

critica Marcel

Mauss

por haver desejado estabelecer as regras da troca, dos presentes e contrapresentes, das prestações e contraprestações na noção explicativa do hAau, quando declara contra êle que o hau não é mais que o juízo que os indígenas fazem de seus próprios modelos culturais e que esta teoria não tem mais valor que aquêle

que nós mesmos podemos fazer. Por conseguinte, faz dêle um simples epifenômeno, dissimulando estruturas inconscientes do

espírito, ainda por descobrir, dando-nos um bom exemplo desta

segunda

solução.(28)

A atitude de Lévi-Strauss parece-nos ser a

contentar com isso?

Os estudos de M. Granet sôbre a China

única verdadeiramente positiva em Etnologia, mas podemos nos mostram-nos, ao contrário, que as crenças religiosas excedem as leis da troca e da solidariedade, as regras fundamentais da

complementariedade, a lógica das relações, para explicar a complexidade tem menos ções entre atenuar os

240

do funcionamento de modelos estruturais. A religião por função explicar essas regras da troca, essas relagrupos, entre os sexos ou entre grupos de idade, que efeitos perigosos das aproximações, e é menos uma

(24)

Cf. Mikel DUFRENNE,

(26)

Claude LÉVI-STRAUSS, Prefácio do livro de M. MAUSS, Soctologte

dE)

Abram

et Anthropologie,

KARDINER,

pp.

La Personnalité

The

Psychological

de Base.

Frontters

of

Society,

Pp.

XAXVIII-XL,.

19

ideologia do equilíbrio que uma solução para suas rupturas.(2?)

Ademais, a estrutura social inclui os mortos, os ancestrais deificados, os totens e os deuses da mesma forma que os vivos, com

seus status e papéis.

relações

de

troca,

mas

Os indivíduos com “participam”

dêles,

êles não só mantêm identificam-se

com

êles, como bem mostra M. Leenhardt em seus estudos sôbre os Canaques, a tal ponto que o etnólogo não pode fazer separadamente o estudo econômico da religião e da categoria do sagrado, se desejar compreender a sociedade que analisa. Uma civilização não toma seu verdadeiro sentido se não a apreendermos através de sua visão mística do mundo, que mais que sua ex-

pressão ou justificação, constitui verdadeiramente seu suporte.(2*)

Não tem, por conseguinte, a Etnologia recursos para compreender, para apreender o “diferente”? É certo que não, já que êsse diferente é de ordem cultural, não impedindo a uni-

dade mental da espécie humana. Se é verdade que os símbolos revelam ocultando e ocultam revelando, isto que é uma defini-

ção(*º) pode se transformar em regra metodológica. De fato, essa mistura de oculto e revelado nos possibilita um meio de atingir o sentido oculto pelo que é ao mesmo tempo revelado. Compreende-se então a razão da evolução da Etnologia com a escola de M. Griaule, interessada no estudo, em profundidade, das diversas categorias do pensamento simbólico.(3º) As estruturas sociais não são esquecidas mas colocadas em íntima correlação com o universo dos valóres míticos ou rituais. Pode-se censurar o exagêro desta escola, mas essa censura não provém de um método demasiado positivo que se atenha apenas ao que é visível ou ligue de um só golpe as estruturas sociais normativas às estruturas inconscientes do espírito, para não ver no símbolo mais que a expressão da ligação e não seu significado?

Seja o que fôr êsse problema, a Etnologia forneceu à So-

ciologia o meio de passar de uma Sociologia causal a uma Sociologia integrativa. Permitiu eliminar as teorias que valorizavam certos fatos, considerados privilegiados, como os da produção econômica para os marxistas ou os da ética social-religiosa para Max Weber. Mostrou-lhe que, numa sociedade, tudo

se realiza, tudo age e reage sôbre tudo, e que a causa dos fenômenos sociais deve ser pesquisada nas suas inter-relações com

186,

(27)

Marcel

(28)

Maurice

etc.

GRANET,

Études

LEENHARDT,

Sociologiques Do

sur

la Chine,

84,

166,

184,

Kamo.

(29) G. GURVITCH, op. cit., p. 77. (30) Marcel GRIAULE, “Réflexions sur les Symboles Internattonauz de Sociologie, XIII, 1952, pp. 9, 29-30.

20

pp.

Soudanais”,

Cahiers

a estrutura do conjunto. Esse processo se fêz em duas etapas. A primeira foi a aplicação de métodos descritivos da Antropologia Cultural ao estudo da sociedade contemporânea dita “civilizada” (estudo de comunidade) e a segunda foi a aceitação do estruturalismo e do funcionalismo pela Sociologia norte-ame-

Ticana.

“A Sociologia norte-americana em seus primórdios sofreu grande influência do formalismo alemão, limitando-se a reduzir o social a. uma nebulosa de relações interindividuais ou inter-

grupais. estudo

O que a Sociologia francesa unira tão estreitamente, o

das

instituições

ou

das

organizações

sociais,

o estudo

das representações coletivas e dos valôres, o estudo da ação da sociedade sôbre o psiquismo individual foi dividido em três ciências diferentes, a Sociologia prôópriamente dita, a Antropo-

logia Cultural e a Psicologia Social. Entretanto, sentia-se igualmente a necessidade de sair do nominalismo e de refazer o que estava

dissociado;

ora,

a Etnologia

mostrava

que

as relações

interindividuais se faziam no interior de uma dada estrutura glo-

bal que as orientava, permitindo

assim

à Sociologia desembara-

çar-se do nominalismo; por outro lado, essa orientação se fazia

segundo normas ou ideais, o que possibilitava a ligação dessa

nova Sociologia com a Antropologia Cultural. Os norte-americanos, por certo, estavam presos a uma tradição universitária diferente da francesa; não chegaram a confundir sociedade com civilização, tanto mais que a civilização podia emigrar e passar de uma sociedade a outra; mas, com Sorokin, por exemplo, ou com

Parsons, as partes separadas — sociedade, civilização e persona-

lidade — tentam unir-se. Mas, se o pensamento norte-americano tinha o mérito de despertar a atenção dos pesquisadores para a importância das configurações totais, por outro lado, tendia a confundir os diversos níveis da realidade que a Sociologia marxista e durkheimiana haviam distinguido. Gurvitch mostrou a origem do que chamou

de “Sociologia em profundidade” tanto numa como noutra. (8!) É, pois, inútil voltar aqui ao assunto. Ora, a estratificação de

níveis da realidade social permitia uma dialética mais rica, que não temia fazer intervir até mesmo a causalidade única, quando

a necessidade se fazia sentir.

Ela percebia ao mesmo tempo as

implicações mútuas sôbre as quais a nova Sociologia americana insistia, como também pelas divisões, tensões e polaridades. Por (31)

G.

GURVITCEH,

op.

cit.

pp,

376-77,

590.

21

isso mesmo, permitia passar da estática à dinâmica, do situacional ao causal, numa palavra, moldar mais eficazmente a explicação

sôbre o concreto, em perpétua transformação. podemos

obter as normas

Sem dúvida, só

culturais a partir do comportamento

humano e êsse comportamento situa-se sempre num todo orga-

nizado, estruturado ou em reorganização; indubitávelmente também, os símbolos são compreendidos nas instituições, amiúde delas inseparáveis. Mas não resta dúvidas de que não se podem colocar normas, símbolos, grupos, etc., num mesmo plano sob

o pretexto de que êles funcionam simultâneamente.

A Sociologia Religiosa deve considerar, como a Sociologia

Geral, essas duas exigências que são a da configuração e a dos níveis superpostos. O mérito de Gurvitch está em ter justamente

proposto uma Sociologia profunda, respeitando o fenômeno

cial total e as formas diversas de que êle se reveste.

so-

É, pois, a partir da obra de Gurvitch, o qual encerra tôóda

uma longa história de debates, de lutas de escolas, de hesitações

teóricas, que devemos empreender nossa pesquisa. Mas parece-nos útil antes de tudo fazer um certo número de observações

sôbre esta obra:

|

Em primeiro lugar não se pode esquecer que os conceitos

propostos por Gurvitch são conceitos operacionais e que, por conseguinte, o número de níveis a considerar ou sua ordem de

importância varia de um caso concreto a outro.

Isso se nota

bem quando se compara a Vocation Actuelle, por exemplo, com Déterminismes Sociaux onde a simples passagem do descritivo ao explicativo ocasiona uma revisão do número de níveis e mesmo

o deslocamento do oitavo. Em segundo lugar, a Sociologia em profundidade não faz

com que desapareçam os velhos problemas mas, ao contrário, ela os complica para melhor resolvê-los de acôrdo com a riqueza e a complexidade do real. Isto é, as relações do religioso e do não-

religioso no fenômeno social total se efetuam ao mesmo tempo

no plano vertical e no relações dialéticas entre fológico à consciência Por exemplo, entre os

horizontal; inscrevem-se no estudo das os diversos estágios da realidade, do morcoletiva e em cada um dêsses estágios. grupos econômicos, as classes sociais, de

um lado, e as organizações religiosas, de outro; ou, ainda, entre

os símbolos místicos e os valôres políticos ao nível das obras culturais. É preciso acrescentar que êsses dois movimentos não

podem separar-se, que êles se entrecruzam a cada instante, não se devendo

28

tratá-los isoladamente,

mas,

ao contrário, relacionar

simultâneamente coordenadas.

cada fenômeno

social a êsses dois eixos de

Em terceiro lugar, Gurvitch deixou de lado o problema das

interpenetrações entre os diversos tipos de sociedades globais. Certamente, sente-se o interêsse que êle atribui a essa questão quando, por exemplo, escreve:

Talvez poder-se-ia supor que o equilíbrio das formas de sociabilidade tenderia a predominar sôbre a hierarquia específica dos níveis na estruturação e na desestruturação dos grupos, enquanto a tendência seria inversa no caso da sociedade global. (32)

Isto parece ser uma alusão a certos trabalhos norte-americanos em que se vê o contato de duas civilizações ocasionar o

desaparecimento de uma sociedade global que pode se dissolver sob a forma de sociabilidades. Mas, num mundo onde domina o amálgama das raças, das etnias e das civilizações, a questão que se coloca é a de mais completa teorização de tais fenômenos.

Portanto, não podemos saber a priori se é preciso con-

siderá-los como relacionados a um único fenômeno social total (por exemplo, o da cultura nativa em contato com elementos

estrangeiros)

ou em relação a dois fenômenos totais (como

sugere Durkheim quando define a colonização, o nascer de “tipos sociais” inteiramente novos).(88) Somos assim levados por enquanto a deixar de lado o primeiro problema que nos preocupou — o das conexões entre as estruturas e as atividades religiosas — para ver a que conclusões chega o estudo das interpenetrações de civilizações e se podemos com elas nos satisfazer.

e %

x

As interpenetrações de civilizações não constituem fenômeno nôvo, ligado à expansão européia do século XIX. Ao contrário, pode-se dizer que a História da humanidade tôda é a História do contato, das lutas, das migrações e das fusões culturais. São, pois, os historiadores os primeiros a se ocupa-

rem

dêsse

fenômeno,

mais

particularmente

do

encontro

entre

o mundo grego e o asiático, da assimilação dos povos mediterrâneos ao Império Romano, dos sincretismos religiosos que marcam o fim dêsse Império, da invasão dos bárbaros, das Cruzadas

(32)

188) P.

e da

difusão

Id. tbid., p. 101.

DURKEHEIM,

Les

progressiva

Rêgles

de

la

dos

Méthode

valôres

ocidentais

Sociologique,

Alcan,

8."

no

ed,,

e

28

resto do mundo. Mas êles estudam êsse fenômeno como historiadores, quer dizer, destacando a individualidade de cada caso; não tentaram, com auxílio do método comparativo, construir uma tipologia, ou, no mínimo, um esquema conceitual permitindo passar da descrição à explicação.

A

Sociologia

nascente

herdou

da História

esta primeira

posição do problema, mas procurou um modêlo teórico, com Karl Marx, que pudesse explicá-lo. O qual será, naturalmente, o materialismo histórico. O sincretismo religioso é o efeito do desenvolvimento do comércio e da formação de cidades, locais de encontro de marinheiros e viajantes; êle não faz mais que traduzir no plano das superestruturas os laços econômicos que se tecem entre os países, tornando-os interdependentes. Mas cada “sincretismo” tem sua própria originalidade e luta com os outros; o triunfo do cristianismo será a consequência do desaparecimento, ou, ao menos, da decadência das cidades comer-

ciais e da ruralização que marcou

Infelizmente,

o organicismo,

a invasão dos bárbaros. (**)

desfazendo

os laços entre a Socio-

logia e a História para buscar modelos dos antigos modelos marxistas, ressaltou

da fixidez dos tipos sociais, análogos

vegetais,

impedindo

à Sociologia,

biológicos em lugar o fenômeno oposto,

às espécies animais

desta maneira,

ou

incorporar

em

fenômeno

da

seu campo de estudo as interpenetrações de civilizações. Durkheim, que ultrapassou o organicismo, mas que dêle partiu com Espinas, reconhece, entretanto, o problema quando estuda nas Regras as relações entre os tipos sociais; êle distingue dois casos: aquêle — que é o mais geral — onde a causalidade externa atinge apenas a periferia da sociedade, o que lhe permite, com a primazia da causalidade interna na explicação dos fenômenos sociais,

descobrir,

remnterpretação;(*º)

bem

antes

de

Herskovits,

e aquêle do nascimento

o

de espécies . dife-

rentes, do qual a colonização seria um exemplo; a formação moderna pela interpenetração da família paternalista franca e da família patriarcal romana continua a ser o único caso dêsse segundo fenômeno estudado por Durkheim. O que impediu, todavia, a criação nessa época de uma verdadeira Sociologia das interpenetrações de civilizações foi o que se chamou a superstição do primitivo, a pesquisa das “origens”, origem da religião, origem do poder político, etc., que considerava os fatos da “aculturação” como indignos do interêsse do pesquisador. (34) HENRY, op. cit., 190. (35) R. BASTIDE, Initiation auz Civilisations, pp. 28-9,

24

Recherches

sur

lVInterpénétration

des

O fracasso de certas formas

de colonização na Oceania

ou

na África, o malôgro da incorporação das massas ameríndias à civilização ocidental, a dupla crise do capitalismo europeu e norte-americano, que os forçam a sair de seus mercados limita-

dos para se preocuparem com os países subdesenvolvidos, colocaram

hoje, ao contrário, em primeiro plano,

o problema

que

a Sociologia do fim do século XIX e início do XX tendia a ne-

gligenciar. Aqui não serão mais os historiadores ou os sociólogos que terão um papel a desempenhar e, sim, os etnólogos e os antropólogos. Daí, a passagem de uma concepção histórica a uma concepção naturalista. Tentemos vislumbrar o que distingue a segunda da primei-

ra.

Ela de início se verifica, pelo

menos

nos

Estados

Unidos,

na oposição tradicional entre a Sociologia e a Antropologia Cul-

tural, uma estudando as relações grupais, a outra as relações entre as culturas, o que faz com que tenhamos dois sistemas de conceitos sem nenhuma relação: o da Sociologia — competição,

conflito, acomodação — e o da Antropologia Cultural — aceitação seletiva, adaptação

e sincretismo, resistência e contra-acul-

turação.(*º) Em segundo lugar, o estudo da aculturação seguirá o progresso da Etnologia e não o da Sociologia. Inicialmente, na época em que a cultura é definida analiticamente por um complexo

de traços,

tirar-se-á do

encontro

de civilizações

uma

imagem mecânica e procurar-se-á nas culturas sincréticas os traços pertencentes à civilização nativa e os traços emprestados

à civilização alienígena.

Quando

a Etnologia trouxer à luz o

caráter “pgestaltista” da cultura, estudar-se-á, ao contrário, o contato entre os povos em têrmos de culturas totais, o que, constituindo um progresso inegável, colocaria do ponto de vista me-

todológico uma grande dificuldade ao pesquisador, porque êsse

contato é ainda assim seletivo, isto é, isola do todo os traços culturais específicos, aceitando uns e recusando outros. O que conduz a Antropologia Cultural, em uma terceira etapa de seu desenvolvimento, à noção de “foco cultural”.(*?) Esta concepção naturalista deve ser ultrapassada, nós o veremos;

mas,

devemos,

todavia,

integrar os resultados

em

nosso

próprio trabalho. Quais são, pois, as conclusões a que ela chega?

De início, ela permite uma tipologia que nos ajuda a superar a (36)

R.

(37)

Ver

the Study 140-52.

of

REDFIELD,

HERSKOVITS,

R. LINTON

e M.

Acculturation”,

American

esta

e

Man

evolução

and

o

hits Works,

J. HERSKOVITS,

Anthropologist,

estado

caps.

27

atual

à 32.

da

“Memorandum

XXXVIII,

questão

1936,

em

M.

for

Pp.

J.

2s>

individualização histórica da qual partimos.

Bateson, por exem-

plo, distingue o caso da completa fusão entre os grupos originais — o caso da eliminação de um ou dos dois grupos em contato e o caso da persistência dos dois grupos em equilíbrio dinãmico

no

interior

de

uma

comunidade

maior.(º%)

Sobretudo,

ela descobriu, em íntima ligação com a heterogeneidade das ci-

vilizações em inter-relação, os dois grandes processos de destruição e de reinterpretação. No primeiro caso, os modelos cul-

turais que estruturavam a sociedade desaparecem, e esta mesma sociedade se reduz a uma poeira de relações interindividuais — a causalidade externa domina a causalidade interna.

os

elementos

estranhos

são

modificados,

No segundo,

metamorfoseados

em

função dos modelos predominantes e reinterpretados em têrmos

da cultura original — a causalidade interna domina, nesse caso,

a externa.

No primeiro caso, faz-se Patologia e, no outro, Gené-

tica. (*?) Entretanto,

êsse

naturalismo

percebe

bem

suas

próprias

insuficiências e tenta superá-las introduzindo sucessivamente em sua descrição Psicologia.

dos

fenômenos

de

aculturação,

a História

e a

O naturalismo, com efeito, interpretou e explicou os fenô-

menos de interpenetração das civilizações em têrmos “quantitativos”. Os resultados do contato dependiam do número relativo de grupos em contato, grupos restritos ou grupos amplos, da

duração

cronológica

dêsse

etc., enquanto a aculturação históricas determinadas e em

contato,

da

extensão

territorial,

sempre se verifica em condições evolução constante. Era preciso,

portanto, reagindo contra a condenação feita por Malinowski

contra “os estudos de antiquário” em nome de sua doutrina funcionalista, voltar ao continuum histórico, que explica como e por que se opera o sincretismo entre as diversas civilizações. (*º)

Herskovits exige do etnólogo a análise da documentação dos Arquivos e lembra oportunamente ao americanista que o que é preciso pôr em contato não é a civilização africana de hoje com a indo-européia, mas as civilizações africanas dos séculos AVII e XVIII, tais como podemos conhecê-las pelos viajantes de outrora. Infelizmente, esta História a que aspiramos, (38)

GG. BATESON,

“Culture

Contact

and

Schisnogenesis”,

Man,

XKXKV,

Too, (35) LEVI-STRAUSS, bibliografia sôbre aculturação em L'Année Sociologique, 3.º série, 1940-48, t. I, pp. 335-36. (40) J. M. HERSKOVITS, “The Significance of the Study of Acculturation for Anthropology", Amer. Anthrop., 39, 2, 1937, pp. 260-63. “Some Comments on the Study of Cultural Contact”, ibid. 43, 1, 1941, pp. 3-5, e o livro The Myth of the Negro Past.

20

ou permanece restrita aos documentos ao ponto de se limitar a uma simples descrição cronológica dos fatos, ou é concebida como

uma

“dinâmica

cultural”,

quer

dizer,

como

uma

História

parcial: a dos fenômenos culturais desligados dos fenômenos sociais totais.(*!) E é justamente por ser esta História parcial que ela não chega a perceber os fenômenos de aculturação e que

o etnólogo que não quer se limitar à simples descrição é obrigado, em última instância, a recorrer à Psicologia. mens.

Não

são as civilizações que estão em

contato,

mas

os ho-

Por conseguinte, os mecanismos psíquicos é que são res-

ponsáveis pelo que se produz quando duas civilizações se encon-

tram. Assim, o causal deve ser, em última análise, procurado nos desejos dos indivíduos, desejo de ser diferente dos outros,

desejo de prestígio, desejo de melhorar, desejo de ser imitado,

reivindicação do eu, afirmação da defesa do eu...

e a reinter-

pretação está menos ligada, como em Boas, à existência de nor-

mas culturais, de modelos estruturais, do que à constatação de

que as inovações ou os empréstimos são mentais, que não podem, pois, se manifestar além dos limites impostos pelas próprias experiências dos indivíduos.(*2) Esta Psicologia sômente

não pode, cremos, ser separada dos condicionamentos sociológicos em que opera; não é uma Psicologia de indivíduos isolados, mas de indivíduos pertencentes a grupos, a castas, a clãs, tendo status

diferentes

de sexo,

de idade

ou

de classes.(4)

Isso

faz

com que o psíquico nos reenvie, queira-se ou não, ao sociológico. Aceitemos, entretanto, que o macroscópico se reduza em definitivo a uma multiplicidade de microprocessos psicológicos, do mesmo modo como se quis reduzir os fenômenos visíveis de evo-

lução (o aparecimento de novas espécies) a uma infinidade de fenômenos bioquímicos, atuando no nível dos genes. É evidente, nesse caso, que a nossa explicação nunca se concluirá, porque ela precisaria incluir o exame completo de todos os indivíduos em contato, o que é impossível mesmo no caso de grupos

pequenos.

revela

Felizmente, cada vez que a análise microscópica se

impossível,



um

outro nível

de

explicação,

o plano

macroscópico, onde o caos dos fenômenos individuais se neutraliza para deixar aparecer novas formas de regularidade tão DERA

PP.

15

(422)

o estudo

Tullio .

SEPELLI,

La

Já o Memorandum

dos

mecanismos

Acculturazione

de REDFIELD,

psicológicos,

come

LINTON

Problema

Metodologico,

e HERSKOVITS

Cf. HERSKOVITS,

“Some

reclama

Psychological

Implications of Afro-american Studies,” XXIXth Congress Of Americ., t. III, pp. 152-60 e Man and his Work. (43) R. BASTIDE, “Sociologle et Littérature Comparée', Cahiers Internationauz de Soctologie, KVII, pp. 94-5, e Tullio SEPELLI, op. cit., pp. 15-8

objetivas

e visíveis

quanto

as

primeiras,

como

Durkheim

Halbwachs verificaram em suas pesquisas (embora divergentes)

e

sôbre o suicídio. (**)

A Rússia Soviética, elevando o nível de vida pela introdução

de novas técnicas de produção nos países ditos “periféricos” (em relação à Rússia

Central), muitos dos quais ainda pertenciam a

civilizações “arcaicas”, é hoje levada a se interessar pelos fenômenos de aculturação, porém os estuda através do materialismo histórico, na base das relações dialéticas entre as infra e as superestruturas. Ela ultrapassa, assim, o psicologismo que supõe uma psique eternamente idêntica a si mesma, ligada a seus

próprios conflitos internos, independente da História, capaz, pelo

contrário, de dirigir causalmente o curso dos acontecimentos históricos. A consciência dos indivíduos é sempre determinada pelas condições do momento; ela está em estreita relação dialética com as transformações socioeconômicas. (4%) É êsse nôvo ponto de vista que foi aplicado, por exemplo, no Haiti por Gué-

rn para compreender a sobrevivência do vodu, que outrora teve uma função útil numa escravista,

como

sociedade com um

expressão

sistema de produção

da resistência do povo frente a seus

senhores, mas que hoje não é mais que um epifenômeno condenado, manejado pela burguesia mulata para melhor assegurar seu domínio político.(*') E, por certo, numa sociedade de classes, não podemos negligenciar a ação desta espécie de agrupamento

nos fatos ditos de aculturação, porém, com

a condição

de repor êsses grupos na sociedade total. Não se pode aqui valorizar a História Econômica mais que a Cultural; é preciso recolocar a interpenetração das civilizações, como diz Sepelli,

numa concepção unitária e orgânica da dialética da sociedade total no processo de desenvolvimento.

Desde já esta História está bastante afastada da História historicizante. Para vir a ser uma História Social e Sociológica, não é preciso ir mais longe ainda? Esses processos históricos se de-

senvolvem

no

a colonização

interior

de certas “situações”

como

a escravidão,

ou os auxílios aos países subdesenvolvidos.(*”)

Como Balandier mostrou, não se pode estudar os contatos entre as civilizações, assim como os fenômenos ou processos de evo(44)

R.

BASTIDE,

“La

Causalité

Externe

et

la

Causalité

WVExplication en Sociologie”, C. 1. S., XXI, 1951. (45) T. SEPELLI, op. cit., p. 17. (46) RB. GUÉRIN, “Un Futur pour les Antilles?”, Présence série, fev.-março, 1956, pp. 20-7. da

Cahiers

Internationauz

de Soctologte, XI,

dans

Africaine, nova

(47) Para as relações entre a História e a Sociologia no caso colonização, ver Georges BALANDIER, “La Situation Coloniale:

Théorique,”

28

Interne

1951, pp. 47-61.

específico Approche

lução, separando-os

dessas “situações”.(*º)

Bem

entendido,

o

que é verdadeiro para a colonização permanece válido para todos os outros tipos de “situação”. O estudo das interpenetrações

de civilizações ultrapassa um de seus capítulos mais que sociológico, se quiser As conclusões a que pretações sucessivas dos

a “Sociologia Colonial”, que constitui importantes, mas não poderá ser mais ser explicativo. chegamos no exame das diversas inter» fenômenos de aculturação encontram,

como se vê, aquelas resultantes do exame do nosso primeiro problema, ou seja, a necessidade de encarar os encontros de civili-

zações através de uma Sociologia em profundidade e a de utili-

zar as dialéticas de níveis respeitando o fenômeno

social total;

no caso presente, os diversos tipos de situações ou de configurações.

ax

*o

Esses dois temas que brevemente historiamos vão misturar-se, interferir-se ou, às vêzes, se opor, em nossa pesquisa sôbre as religiões afro-brasileiras — mas sem jamais se contra-

dizerem, antes, completando-se mútuamente, enriquecendo-se um ao outro, já que, como vimos, surgem igualmente da mesma interpretação sociológica. '*

Nosso ponto de partida é o tema das relações entre as infra

e as superestruturas, ou se se prefere, o do condicionamento

so-

cial da religião; mas, para poder julgar o papel respectivo das diversas camadas da realidade social, das ações e das reações de cada uma sôbre aquelas que as precedem ou que as suce-

dem,

como

o fenômeno

total sôbre

as partes,

não

é o melhor

método, o comparativo? Entretanto, êste método apresenta perigos, se se comparam religiões diversas em várias sociedades,

mesmo se tomarmos o caso de civilizações do mesmo tipo, em que os elementos de diferenciação seriam mínimos, de maneira

a melhor aplicar a regra durkheimiana das variações concomitantes; porque se êle permite mostrar como a variações de estruturas correspondem variações de símbolos ou de valôres, não

nos permite compreender in statu nascendi a dialética do fenômeno

se formando e, se possibilita a formação de hipóteses de

trabalho, não nos permite verificá-las. Numa aplicação semelhante do método comparativo, passa-se de uma sociedade global para outra, mas é difícil encontrar duas sociedades globais análogas exceto num ponto, pois tudo está em relação com tudo. (48)

G.

BALANDIER,

Soctologte

Actuelle

de

VAfrique

Noire,

pp.

3-36.

29

Parece que a melhor maneira de se proceder é permanecer no

seio

de

uma

mesma

sociedade,

desestruturando-se

e reestrutu-

rando-se, evoluindo mais lenta ou mais rápidamente, nas formas de produção ao longo do tempo, criando novas obras culturais

e comparando êsses diversos momentos da sociedade em desen-

volvimento.

Trata-se, em suma, de substituir à comparação geo-

gráfica, a histórica. Trata-se, contudo, de comparação e não de História, porque o que desejamos é examinar estruturas e reli-

giões em “idades” diferentes — a documentação não sendo, infe-

lizmente, jamais assaz rica para se poder acompanhar o curso das ações e das reações. A dialética histórica poderá completar a comparação pelo menos em certos pontos, e isto com maiores possibilidades à medida que nos aproximarmos do período

contemporâneo com a massa da documentação aumentando, per-

mitindo assim seguir mais de perto as temporalidades dos diver-

sos níveis do real. Escolhemos,

como

exemplo,

para aplicar êste método,

as

religiões afro-brasileiras que se constituíram e continuaram em meio a profundas alterações da estrutura social, modificando-se em relação a elas.

Os negros introduzidos no Brasil pertenciam a civilizações diferentes e provinham das mais variadas regiões da Africa. Porém, suas religiões, quaisquer que fóssem, estavam ligadas a certas formas de família ou de organização clânica, a meios biogeográficos especiais, floresta tropical ou savana, a estruturas aldeãs

e comunitárias. O tráfico negreiro violou tudo isso. E o escravo foi obrigado a se incorporar, quisesse ou não, a um nôvo tipo de sociedade baseada na família patriarcal, no latifúndio, no regime de castas étnicas. Que se passou então? Esta é a pri-

meira questão que teremos de resolver. Mas o período de escravidão durou três séculos e no curso dêsse tempo a sociedade brasileira não permaneceu imóvel. O século XVIII, por exemplo, viu a produção mineira dominar o regime das grandes plantações; o século XIX,

o desenvolvimento da urbanização; enfim,

a miscigenação e a ascensão do mulato modificaram, pouco a

pouco,

Como

ções?

a

antiga

estratificação

de

castas,

no

fim

do

Império.

reagiram as religiões africanas a tôdas essas transformaEsta

é a segunda

questão

que

precisaremos

examinar.

A diminuição do tráfico negreiro, inicialmente sob a imposição da Inglaterra, mais a abolição da escravatura, conduziram o Brasil a uma crise que, sem dúvida, repercutiu na Economia e na Política — passagem do Império à República $0

—,

porém,

mais

gravemente

ainda,

nas antigas estruturas.

É o

regime de produção que muda, o trabalho forçado sendo substi-

tuído pelo trabalho livre; mas a estrutura demográfica transfor-

ma-se também primeiro com o êxodo do campesinato de côr para

a cidade, depois com a chegada em massa, no Sul, de imigrantes

europeus, em seguida japonêses, para substituir o negro nas plantações, modificando com sua vinda a distribuição racial no solo; da mesma forma, o regime familiar, o grupo da Casa-grande destituído de seus escravos, lavradores ou empregados domésti-

cos; é, por fim, a sociedade brasileira que passa, com a indus-

trialização, tornada possível graças aos capitais outrora utilizados na compra da mão-de-obra servil e depois disponíveis, de uma sociedade de castas para uma sociedade de classes. Tudo isso não deixou de repercutir nas religiões afro-brasileiras. Contudo, êsse movimento se opera com velocidade variável

nas diversas regiões do Brasil. Ás vêzes se diz que o Brasil se compõe mais de estratos históricos que de camadas sociais e que

uma viagem do litoral ao interior nos faria passar sucessivamente da civilização contemporânea à civilização imperial, depois à

colonial, para chegar finalmente à neolítica dos índios do campo

ou da grande floresta amazônica.(*º) Sem chegarem até essas nuanças, os geógrafos ou os sociólogos franceses que se ocuparam do Brasil(*º) opõem o Brasil arcaico ao moderno. A tenta-

tiva de Redfield feita no México para seguir no espaço o conti-

nuum folk-urbano é possível também no Brasil, e hoje aí vemos

multiplicarem-se os estudos de comunidades, distinguindo “comunidades de folk” e “comunidades em transição”.

As estruturas e

as civilizações, rurais e urbanas, não são idênticas; as estruturas

das cidades do Nordeste, onde a industrialização é menos acentuada,

diferem

daquelas

do

Sul

e, mesmo

nêle,

o capitalismo

ainda se apresenta em suas diversas etapas, de uma região a outra. Uma vez que o negro seja camponês, artesão, proletário, ou constitua uma espécie de subproletariado, sua religião se

apresentará diversamente ou exprimirá posições diversas, condi-

ções de vida e quadros

sociais não identificáveis.

O que complica a questão é que essa religião sofreu não só a influência dessas variações da estrutura social mas, também, (49)

mente,

Cf.

não

em camadas Fernando de

Pedro

é uma

CALMON,

estratificação

História

Social

de classes,

mas

do

Brasil:

de épocas.

“O

Brasil,

Éle não

social-

se divide

humanas, mas numa justaposição de séculos”; e a discussão de AZEVEDO, “Para a Análise e Interpretação do Brasil”, Kev. Bras.

de Estudos Pedagógicos, XXIV, 60, 1955, pp. 12-4, (50) J. LAMBERT, Le Brésil, Structures Sociales tiques, A. Colin, 1953, p. 64 e segs.

et

Institutions

Poli-

81

da

pressão

cultural

do

europeu

branco,

política seguida pelo Estado português,

católico,

e da

dupla

representado por seus

governadores, e da Igreja Católica Romana, representada por seus monges mais que por seus capelães de engenho ou curas das paróquias. Isto faz com que as superestruturas, as representações religiosas como os símbolos da mística, os valôres culturais dos africanos ou de seus descendentes se achem subordinados a uma dupla influência: uma no mesmo nível, a das repre-

sentações coletivas dos cristãos, dos símbolos culturais europeus, dos valôres portuguêses e, a outra, em nível diferente, a das

modificações

morfológicas

das

estruturas,

organizadas

ou não.

De outro lado, esta cultura religiosa lusa foi importada também

e não deixou, como a outra, de sofrer as influências de uma mudança ecológica e de desestruturações e restruturações da sociedade brasileira em formação. Não evocamos ainda senão um dos aspectos dos processos

dialéticos que deveremos seguir.

Porque se a Religião Católica

sofreu a influência das modificações da estrutura social, ela, de outro lado, moldou a nova sociedade; encarnou-se nela como

uma alma que, de dentro, modelaria o corpo onde passaria a

viver. Roma, aliás, não estava tão longe que não pudesse lutar contra os desvios, contra as influências dissolventes e, com um sucesso maior ou menor. tentar unir em tôrno de sua Igreja os núcleos

dispersos,

as células

vivas

do

organismo

brasileiro

em

gestação. Da mesma forma, a religião africana tendeu a reconstituir no nôvo habitat a comunidade aldeã à qual estava ligada e, como não o conseguiu, lançou mão de outros meios; secretou, de algum modo, como um animal vivo, sua própria concha; suscitou grupos originais, ao mesmo tempo semelhantes e todavia diversos dos agrupamentos africanos. O espírito não

pode viver fora da matéria e, se essa lhe falta, êle faz uma nova. O marxismo teve razão em nos alertar contra o idealismo, lem-

brando que não há vida social e cultural possível fora da matéria que a condiciona; seu êrro foi crer que ela nasce sempre da matéria. Não devemos, ao contrário, esquecer êste poder de criação das correntes profundas da alma coletiva. Por conseguinte, o problema das interpenetrações de civilizações complica, mas

ainda assim não nos liberta do problema mais profundo, o das relações entre os níveis superpostos da Sociologia em profundi-

dade.

A tarefa que nos atribuímos é, pois, uma tarefa sociológica. Trata-se de, num exemplo que nos parece privilegiado sob diver32

sos aspectos, melhor compreender essas relações dialéticas. Parece assim necessário, para terminar esta introdução, ver o que nos separa das interpretações já dadas às religiões afro-brasileiras como também a contribuição que cada qual pode trazer à nossa

tentativa. | Não foi senão no fim do século XIX que essas religiões despertaram a atenção dos investigadores. O término da escra-

vidão colocou, de fato, um enorme problema ao Brasil, o da assimilação dos negros como cidadãos e como produtores assa-

lariados.

O aumento da criminalidade,

da vagabundagem,

da

prostituição, o retôrno dos negros libertos da agricultura comercial à mera agricultura de subsistência, tudo isso levava o bran-

co a inquirir se esta assimilação seria possível. Não tinha o africano uma mentalidade diferente da do brasileiro branco? Seu cristianismo não éra um simples verniz que mal dissimulava a

manutenção de “superstições” ancestrais?

Sua evangelização não

havia sido uma “pura ilusão”? É para demonstrar esta tese, da heterogeneidade dos espíritos, que Nina Rodrigues, pela primeira vez no Brasil, estuda a religião dos negros, em

1900.(º!)

Precisamos insistir na obra de Nina Rodrigues porque é a partir dêle que tôdas as pesquisas se desenvolveram. Ele foi, segundo a expressão de seu discípulo, Arthur Ramos, “um chefe de escola”, quer dizer, fixou os dois pontos de referência do estudo das religiões afro-brasileiras para tôda a primeira metade do século XX, o psicologismo e a Etnografia. Poder-se-á corrigi-lo, recusar seus preconceitos raciais ou seus estereótipos sôbre

o negro, mas sempre colocar-nos-emos nas mesmas perspectivas que êle, as da Psicologia e da Etnografia.

Nina Rodrigues era médico-legista e naturalmente o que mais o impressionou nas seitas africanas foi o que interessava ao médico, isto é, as crises de possessão. Isto o levou a: 1.º — Centralizar todo o culto no transe estático e negligenciar, por conseguinte, outras manifestações religiosas menos éspetaculares mas, talvez, tão importantes como o ritual da divi-

nação, as cerimônias privadas, a mitologia, etc.;

2.º —

Propor

uma

interpretação

dessas

religiões

através

dos quadros da Psicologia Clínica. A iniciação dos fiéis no culto aparece, nesta perspectiva, menos como uma incorporação a uma sociedade e a uma cultura, do que um processo de perturbação

(51) Com O Animismo Fetichista dos Negros meiro em francês e depois em português.

da

Bahia,

publicado

pri-

33

do sistema nervoso, uma educação do êxtase.

É com a ajuda das

idéias que o Dr. Janet estava elaborando na mesma época sôbre o sonambulismo e o desdobramento da personalidade que Nina Rodrigues explica os fenômenos do transe místico nos negros do candomblé; é verdade que o sonambulismo era então aproximado

da histeria e que certos psiquiatras negavam a existência da his-

teria entre os negros.

Nina Rodrigues é, pois, obrigado a de-

monstrar que os negros conhecem a histeria tão bem como os brancos e que as festas religiosas africanas constituem, do mesmo

modo,

exercícios

de

sonambulismo

provocado;

em

se-

gundo lugar, e à guisa de subterfúgio, que o desdobramento da personalidade pode aparecer em outras moléstias que não a his-

teria, por exemplo, na neurastenia ou na imbecilidade.

Daí, sua

conclusão final de que o baixo desenvolvimento intelectual do negro primitivo, auxiliado pelo esgotamento nervoso das ceri-

mônias de iniciação, provoca estados de neurastenia nos africanos

e que, portanto, a histeria existiria nos negros crioulos ou nos mulatos. A religião africana seria, em ambos os casos, um fe-

nômeno patológico.

:

Mas a prática intensiva dêsses fenômenos patológicos supunha a existência anterior de seitas africanas, não assimiladas

pela civilização brasileira. Portanto, era preciso centralizar o êxtase no complexo teológico-litárgico no qual se manifestava.

Daí a passagem da Psicologia (ou Psiquiatria) à Etnologia. Nina Rodrigues não era um etnólogo profissional, já o dissemos, mas esforçou-se muito para descrever objetivamente o mundo

dos candomblés e para pesquisar nos livros dos africanistas as raízes africanas das religiões da Bahia. Por certo, êle exagerou ou insistiu muito sôbre o que essas religiões podiam apresentar

de exótico, de estranho, à nossa mentalidade; não quis nelas ver

mais que um emaranhado de superstições, o que fêz com que confundisse magia e religião própriamente dita e negligenciasse, infelizmente,

os aspectos

comuns,

cotidianos,

da vida

religiosa.

Mas isto dito, se se pode reprovar-lhe as lacunas ou certo excesso de pitoresco, não resta dúvida de que o esfôrço de objetividade

do autor foi tão arrojado que sua descrição mais de meio século depois permanece válida e mesmo, na opinião dos sacerdotes afro-brasileiros que conhecem bem as obras de seus discípulos, a mais justa de tódas. Nesse campo da Etnologia, a grande descoberta de Nina Rodrigues foi a do sincretismo religioso entre os deuses africanos

34

e os santos católicos.

e quem

despertou

Portanto, foi êle quem descobriu primeiro

a atenção

dos pesquisadores,

como

acentua

Arthur Ramos, para as formas modernas de aculturação. Nesse ponto, êle se encontrava numa situação privilegiada, pois que no seu tempo existiam, lado a lado, africanos puros e negros crioulos.

Era êle assim levado a distinguir dois tipos de candomblés — os africanos e os nacionais — e dois sincretismos —

o dos africanos

puros que simplesmente “justapõem” o culto católico a suas cren-

-ças e práticas “fetichistas” e que concebem os orixás e os santos

“como de categoria igual ainda que perfeitamente distintos”, e o

dos crioulos, em que êle nota “uma tendência manifesta e incoer-

cível para identificar os (dois) ensinamentos”. A aculturação é então por êle concebida como uma europeização progressiva do negro, moderada pela “incapacidade ou morosidade de progredir

por parte dos negros”.(*2)

Em 1902, ainda, um médico da Bahia, desta vez Oscar Freire, escreve sua tese sôbre a Etiologia das Formas Concretas

da Religiosidade no Norte do Brasil, que marca um progresso em relação à tese de Nina Rodrigues na medida em que atribui a fatôres sociais o que êste atribuía à raça. Mas o mais célebre discípulo de Nina Rodrigues seria Arthur Ramos, igualmente médico-legista e que consagraria quase tôda sua existência ao estudo cuidadoso das civilizações africanas no Brasil. O grande mérito de Arthur Ramos

é seu anti-racismo,

seu antietnocentris-

mo, o de ter substituído o velho princípio de civilizações superiores ou inferiores pelo da “relatividade das culturas”. Ninguém fêz mais que êle para dar ao brasileiro de côr o orgulho pelas suas origens étnicas. Os critérios por êle utilizados na pesquisa são os mesmos Etnologia.

de Nina Rodrigues,

isto é, o psicologismo

e a

Nota-se em seus livros, do ponto de vista psicológico, uma ampliação do pensamento de seu predecessor. Sem dúvida, êle

se interessa sempre pela crise de possessão e a relaciona sempre a “estados mórbidos”, mas, antes de tudo, utilizou a psicanálise para explicar fenômenos de sobrevivência africana; os mitos e os

ritos subsistitam na medida em que se inscreviam no inconsciente

coletivo ou racial, onde eram as expressões de complexos gerais (52)

Mais

ou

menos

na

mesma

época

de

Nina

Rodrigues,

um

homem

de côr da Bahia, Manuel QUERINO, em seu desejo de glorificar “sua raça” e a contribuição que ela trouxe ao Brasil, escreve uma série de estudos sôbre a religião e o folclore do negro. Ésses estudos permanecem isolados, fora da corrente geral, mas trazem uma documentação, a nosso ver, particularmente interessante e cuja importância tem sido subestimada.

85

como o edipiano e o narcisista; e O sincretismo só foi possível onde

o santo católico correspondia exatamente aos mesmos complexos

fundamentais

que os orixás, São Jorges fálicos ou Virgens ma-

ternais.

O sincretismo não é mais simplesmente o resultado do

recursos

da

encontro de duas civilizações; resulta em definitivo da analogia entre o inconsciente do negro e do branco. O que se pode censurar nesta Psicologia não é seu princípio, a aplicação dos Psicanálise

ao

fenômeno

uma Psicologia sem Sociologia. (3)

de

aculturação,

mas

ser

Uma vez que o inconsciente

é modelado da mesma forma que o consciente pelas estruturas

sociais, êle está condicionado pelo fenômeno social total no qual

se inscreve e, aqui, êsse fenômeno é o da dominação econômica

e política de uma

classe sôbre outra.

A Etnologia de Arthur Ramos também

amplia considerá-

velmente a de Nina Rodrigues. Para começar, há um conhecimento melhor de pesquisas feitas no Continente Africano, o que lhe permite esclarecer sobrevivências que até então permaneciam

no esquecimento.

Estendeu principalmente o estudo que Nina

Rodrigues fizera na Bahia a outras áreas culturais do Brasil, em

particular à macumba

do Rio de Janeiro, sôbre a qual não se

possuía mais que uma reportagem jornalística, aliás sugestiva, de João do Rio (Paulo Barreto). Mas esta Etnologia prende-se

ainda aos quadros da Antropologia Cultural norte-americana modificada pelos estudos de Lévy-Bruhl sôbre a mentalidade pri-

mitiva. Os fenômenos de aculturação são descritos mas não explicados pelas conjunturas econômicas e sociais, embora a mis-

tura de civilizações não se faça no vácuo: repousa em bases ma-

teriais que condicionam os processos e os efeitos. Ao lado de Arthur Ramos, considerando-o como o iniciador, seria preciso

citar tôda uma série de pesquisadores que, por sua vez, amplia-

ram a pesquisa começada, seja em outros pontos do território brasileiro (o Dr. Gonçalves Fernandes com Xangôs de Recife,

Nunes Pereira com a Casa das Minas do Maranhão), seja em

outras formas de culto (Edison Carneiro com o Candomblé de

Caboclo).

É a época do tema negro invadindo a poesia, o ro-

mance, o jornalismo, afastando o índio e o caboclo da Literatura e das preocupações dos intelectuais. Três grandes congressos afro-brasileiros reunindo etnógrafos, psiquiatras, antropólo-

gos, lingiiistas, historiadores, folcloristas e mesmo sociólogos marcam êste período: o de Recife em 1934, organizado por Gilberto Freyre, o da Bahia em 1937, organizado por Aydano do Couto em

36

(53) Tentamos uma crítica dêste aspecto da obra nosso livro Sociologie et Psychanalyse, pp. 248-50.

de

Arthur

RAMOS

Ferraz e Edison Carneiro, e o de Belo Horizonte, nas vésperas da II Grande Guerra, organizado por Ayres da Mata Machado e João Dornas Filho.

Herskovits vem, durante a guerra, ao Brasil, aí continuando

a grande investigação sôbre os fenômenos de aculturação afro-americana que já o levara ao Daomé, ao Haiti e à Guiana Holandesa. Envia aos Estados Unidos jovens pesquisadores brasileiros para formá-los nas disciplinas da Antropologia Cultural e dessa maneira abre-se um segundo período na história das pesquisas sôbre os negros brasileiros: a influência de Herskovits substituindo a de Arthur Ramos.

Os dois representantes

nova corrente são Octavio da Costa Eduardo,

desta

que estudou os

Vodun do Maranhão, e o Dr. René Ribeiro, que exaustivamente

estuda as seitas religiosas em Recife. Mas se esta escola aperfeiçoa os processos da primeira, utiliza novas técnicas e uma

nova conceituação, não muda a perspectiva da antiga, isto é, a

religião afro-brasileira continua sendo interpretada pelo psicologismo e pela Etnologia. Entretanto,

e é talvez o maior

mérito

da contribuição de

Herskovits, o transe místico é destacado do estudo clínico para

relacionar-se,

com

o auxílio

da teoria

dos

reflexos

condiciona-

dos, a um complexo cultural normal. As perspectivas psicológica

e etnográfica, em lugar de serem separadas, acham-se assim integradas e constituem

civilização.

as duas faces de um mesmo

fenômeno

de

Esse nôvo ponto de vista tem não só a utilidade de

nos libertar, de maneira que esperamos seja definitiva, das interpretações do êxtase pelos dados da Psicopatologia — concebendo-o como um momento do ritual — mas também, e principalmente, a de começar o trabalho de unificação entre o psicológico e o cultural. Infelizmente, de apenas começar, porque o cul-

tural é interpretado ainda isolado de seu condicionamento social. É preciso reconhecer dêsse ponto de vista que Herskovits e seus discípulos

estão,

fato, torna-se

ainda,

necessário,

empenhados

nesta

última

êles nos recomendam,

direção;

estudar

de

o can-

domblé em seu conjunto e não só como religião; as seitas africanas do Brasil têm um aspecto econômico, uma estrutura sociológica que se impõe e modela as relações interindividuais. Tôda descrição que negligencia êsses aspectos não pode ser válida. A investigação, nesse sentido, certamente não faz mais que começar,

mas já revela a preocupação com o fenômeno social total. O êrro está em negligenciar o fenômeno

a sociedade

brasileira,

ou

em

social mais geral ainda, que é

só considerar

a influência

desta

87

sociedade pela sua transformação em sincretismo, isto é, na única

expressão que ela toma no seio dessas seitas. Em certa medida, êste ponto de vista é válido porque a civilização africana está “enquistada”, mas a dialética dêste enquistamento escapa-nos to-

talmente a esta altura. Em suma, o que censuraríamos na posição de Herskovits é permanecer no domínio único da Antropologia Cultural, ao invés de ultrapassá-lo para fazer uma Sociologia da interpenetração das religiões. Melhor dito, visto que sob a forma que damos a esta crítica, a objeção toma um aspecto demasiado radical, o que lhe censuramos é não ver as relações entre o social e o cultural senão através do funcionalismo e da Ecologia. De início, pela Ecologia. O método preconizado por Herskovits é o do estudo de pequenas co-

munidades por meio da observação participante. Ora, na comunidade, a religião parece bem unida aos outros elementos da vida social e como o etnólogo de que falamos tem a preocupação da História, ela está compreendida no seu continuum

espaço-tempo. Este estudo de comunidades de negros permitiu ultrapassar o pitoresco e a preocupação com o exotismo que

estragaram frequentemente os primeiros trabalhos dos etnógrafos;

permite-nos descobrir a vida cotidiana dos habitantes, os gestos

de todos os dias, o que é essencial para uma melhor compreensão do conjunto. Mas esta ligação entre o cultural e o social conti-

nua a ser feita do ponto de vista da Antropologia Cultural, isto é, ela se opõe às duas críticas seguintes: 1.º —

O estudo de comunidades não pode ter um sentido

enquanto essas comunidades não forem ligadas a um conjunto, regional ou nacional; as civilizações locais não passando de re-

flexos particulares de uma 2.º —

civilização geral que as abrange e

O funcionalismo tende a ser a única perspectiva pela

qual o social é compreendido. |

de

Normas

e

ajustamento

sanções do

culturais

indivíduo

(...)

representam No

caso

modos

dos

tradicionais

grupos

de

culto

afro-brasileiro, constituem-se êstes não somente em unidades de convivências particulares, dentro de nossa sociedade geral, como em vetores de um sistema de valôres e de patterns frequentemente diversos daqueles adotados nos outros grupos dessa sociedade. Éles fornecem ainda aos indivíduos que dêles participam, sem que lhes seja necessário repudiar os demais valôres e estilos da cultura luso-brasileira, um sistema de crenças e um tipo nôvo de relações interpessoais amplamente favorável à redução de tensões. Pessoas cujos status e papéis na sociedade global não lhes oferecem chance

38

para

colimarem

crenças,

de

seus

objetivos

relações

(...)

interpessoais,

de

encontram

aí um

hierarquia,

bem

sistema como

de

um

tipo de relações com o sobrenatural e de aparente contrôle do acidental, que lhes permitem a satisfação das necessidades psicológicas indispensáveis a seu ajustamento ao mundo em que vivem. (54)

Precisamos notar, desde o início, o que êsse texto tem de significativo na mudança completa por que passou a pesquisa afro-brasileira. Partimos do patológico e chegamos agora à

conclusão oposta, de que a religião africana é o fator de ajustamento do indivíduo à sociedade. Longe de ser uma experiência mórbida, o transe é uma técnica de solução de tensões. Estamos inteiramente de acôrdo e amiúde insistimos nesse ponto. Mas onde vemos um efeito, quer-se ver uma função. O funcionalismo tem seus méritos, êle nos lembra que todo organismo funciona,

o que alguns às vêzes esquecem. Uma pura sobrevivência que não desempenhasse nenhum papel teria de desaparecer; muitas

descrições de cultos afro-brasileiros transformam, infelizmentc, êsses cultos em peças de museu recendendo naftalina, em obje-

tos preciosos de vitrina devidamente catalogados e fichados. Mas a religião negra do Brasil é uma religião viva. Devemos porém observar que:

1.º —

Com

Durkheim,

a pesquisa das funções vem

em

segundo lugar, após a pesquisa causal e histórica, pois se ela nos mostra por que um determinado fenômeno subsiste, não nos

explica por que êsse fenômeno existe, e isto fica particularmente

claro nos candomblés

tempo;

que mudaram

de funções

no

correr

do

2.º — Quando se pesquisa de um ponto de vista funcionalista a razão última de um fenômeno, chega-se sempre à mesma conclusão: assegurar a satisfação das necessidades humanas (se

se parte de Malinowski), assegurar a existência do grupo (se de

Radcliffe-Brown). Tanto num caso como no outro a explicação é muito geral para ter um valor explicativo. Uma vez que as mais

diversas instituições políticas, religiosas, familiares permitem

a

satisfação dos mesmos desejos de prestígio, de segurança, de novas experiências, do mesmo modo os grupos, quaisquer que

sejam, organizam a solidariedade entre seus membros. O que é importante não é a banalidade do comum, mas as diferenciações: por que o indivíduo procura satisfações aí e não em outro lugar? Por que a integração se faz nesse grupo e não em outro? (54)

René

RIBEIRO,

Cultos

Ajro-brasileiros

de

Recife,

pp.

142-49.

39

Só uma análise sociológica da sociedade brasileira total pode-nos

permitir responder a essas questões.

Gilberto Freyre, ao contrário dos autores precedentes, estuda a situação racial brasileira como sociólogo, mais que como

etnólogo

ou antropólogo,

se bem que seja discípulo de Boas.

Sem dúvida, êle não estudou particularmente o domínio da Re-

ligião, contentando-se nesse campo com observações feitas de passagem, como sôbre o culto de São Jorge ou sôbre a seita

panteista de Pernambuco; mas traçou, pelo menos para as épocas

colonial e imperial, o quadro sociológico no qual ocorreram os fenômenos de aculturação.

Fazendo isso, êle ultrapassa os dois

pontos de vista, opostos mas igualmente valorizadores, do branco

e do negro, A aculturação, na verdade, tem sido estudada no grupo negro; mas contrâriamente ao que pensa Guerreiro Ramos,

nem Herskovits, nem seus continuadores brasileiros, têm a inten-

ção de fazer a apologia da “brancura”; ao contrário, e justamente

porque sempre se parte do negro, é descobrir, por meio de rein-

terpretações, a conservação das civilizações africanas. A Africa ocultou-se sob roupagens ocidentais, mas sua forma de família

habitual sobrevive no concubinato, suas formas de trabalho coletivo no mutirão, a independência econômica da mulher na divi-

são sexual do trabalho e pelo comércio do grupo feminino... As duas censuras que Guerreiro Ramos faz à Antropologia Brasileira, a apologia do “branqueamento” e o excessivo interêsse no exotismo (o negro como tema em lugar de ser problema), valem talvez para a primeira escola de que falamos mas não para a segunda, que insiste na pesquisa do cotidiano e na importância do “não-branqueamento” cultural, Guerreiro Ramos não faz tampouco distinção entre a obra sociológica de Gilberto Freyre

e a dos etnólogos.

Sem embargo, há entre essas suas concep-

ções uma diferença capital, além do fato de se relacionarem a

ciências diversas.

O que os antropólogos ressaltam sob a ilusão

do sincretismoé o perpetuamento da civilização africana; o que ressalta Gilberto Freyreé o estabelecimento de uma civilização brasileira pela fusão das contribuições culturais do índio, do português e do africano, os traços da civilização frequentemente se encontrando mais entre os brancos que entre os negros e os da civilização luso-ameríndia entre os negros mais que entre os brancos.

Podia-se esperar de Pierson, sociólogo da escola de Chicago que consagrou um livro importante à Bahia e que estuda o can-

LO

domblé, esta integração da religião afro-brasileira nos quadros do conceito sociológico. Ele realmente tentou, por exemplo, examinar as relações ou reações das diversas classes sociais da Bahia, ou de diversas épocas, em relação ao candomblé.

Mas

seu livro é mais a justaposição de dois “sistemas de referência”,

o. dos sociólogos (conflito, acomodação, etc.) e o dos antropólogos (assimilação, sincretismo, aculturação, etc.), que uma integra-

ção num todo bem coordenado. Éle permanece prêso à tradição norte-americana que separa as ciências da sociedade e das relações interpessoais, das ciências da civilização e das relações entre

valóres, ideais e representações coletivas.

leiras não

são, portanto,

recolocadas

no

As seitas afro-brasi-

quadro

do

fenômeno:

social total que por si só lhe pode dar uma interpretação. Isso bem compreendeu Tullio Sepelli, que nos propõe uma definição da aculturação afro-brasileira através do quadro das transformações do regime social.

Sepelli censura o caráter unilateral das interpretações ante-

riores. Á Antropologia negligencia as relações sociais entre senhores e escravos e se preocupa apenas pela dinâmica dos fenômenos

culturais.

Gilberto

Freyre

descreve essas relações

mas

põe em segundo plano o fato de que a civilização do escravo não se originou dos quadros da sociedade brasileira, que foi trazida da Africa e que era ali o fundamento da existência. Restaria, pois, a fazer, e é o que tenta nosso autor, uma interpre-

tação

unitária

do

sincretismo,

considerando

a relatividade

dos

diversos fatóres causais estabelecendo uma hierarquia das integrações psíquicas e históricas. O quadro em que tenta esta integração lhe é fornecido pela situação social da escravidão, mais tarde a proletarização do negro, ligada a sistemas de produção (a

monocultura e as minas, a industrialização do Brasil). É nesta direção que, de fato, é preciso empenhar-se. E os pequenos ensaios de Sepelli constituem certamente um grande progresso em

relação às tentativas precedentes.

Infelizmente o autor, proclamando seu repúdio ao unilateralismo e recusando aceitar unicamente a explicação econômica, acha-se ainda bastante ligado ao marxismo.

a religião sempre

como

uma

ideologia,

De início, êle define

o que impede de ver

que a Teologia Afro-brasileira pode, em certos casos, se conver-

ter em ideologia. A confusão entre obra cultural e ideologia torna-o cego para certas variações importantes da religião, que examinaremos. Em segundo lugar, sua explicação repousa, em última análise, mais sôbre as formas de produção que sôbre as

estruturas sociais, o que lhe permite perceber certos aspectos im-

41

portantes da questão, o papel da escravidão, por exemplo; mas a religião afro-brasileira nos parece menos ligada à escravidão que ao trabalho artesanal dos negros “livres” e é preciso recolocar a escravidão no conjunto dos quadros sociais da sociedade brasileira: sua estrutura familiar, sua organização política, corporativa, religiosa. Deveremos considerar todos os fatôres que entram em jôgo — demográficos, econômicos, sociais — em todos os níveis e em tôdas as suas inter-relações. A dialética social é mais rica que a marxista.

Se esta Sociologia não pode substituir a Etnologia, deve integrá-la e dar-lhe sentido. O que faltou a Sepelli foi justamente esta base etnológica. Ela é indispensável, como poderemos ver apenas por um exemplo. Na falta de uma pesquisa pessoal no campo, constatando nos livros que consultou sômente a pobreza dos mitos africanos, o autor considera como inexistência o que, em realidade, é falta de informação, uma lacuna da pesquisa. Ora, êle acha para isso uma explicação na dialética histórica. É

sempre mais fácil encontrar explicações a posteriori... sobretudo quando se tem um sistema! Quanto a nós, devemos desconfiar de nossos modelos de interpretação, de nossos esquemas conceituais, porque poderíamos justificar tudo o que quiséssemos,

tanto o falso quanto o verdadeiro. O papel da Etnologia é de nos fornecer a base sólida sôbre a qual construiremos depois. É

por êsse motivo que nós, após traçarmos num artigo os quadros conceituais da pesquisa que iríamos empreender, (5) nos entregamos, sem idéia a priori e sem pensar em qualquer teoria, a

uma

investigação

direta no ambiente

das

seitas

afro-brasileiras,

com o fim de verificar primeiro a validade pelas descrições anteriores e, em segundo lugar, para completar as partes que haviam sido negligenciadas (culto dos mortos, mitologia, divinação, cerimônias privadas. ..). Por certo nossa investigação é insuficiente em face da riqueza dêsses cultos.(**) Pelo menos, estamos conscientes de suas falhas e não tentaremos explicar o que ainda está por descobrir. Nossa tese é uma tese de Sociologia, mas que se fundamenta numa longa observação etnográfica de vários

anos.

Todavia uma

dúvida nos assalta ao fim desta introdução.

Pode um branco tentar esta pesquisa etnográfica? interpretação sociológica?

Vamos

Propor esta

aqui de encontro à recusa de

(55) Aludimos ao nosso artigo de Renaissance, “Structures Sociales et Religlons Afro-brésiliennes”, publicado em 1945, mas escrito anteriormente. (58) Esperamos que Pierre VERGER, que conduziu mais longe a invêstigação etnográfica, nos dê, um dia, resultados mais completos.

42

Guerreiro Ramos, brasileiro:

que escreve na sua problemática

do negro

As teorias sôbre o negro brasileiro são o fruto de uma visão alienada, de uma visão exterior ao país. Mesmo quando são redigidas por brasileiros, se inscrevem na tradição das antigas relações para com a metrópole (...) Os epígonos da nossa socioantropologia do negro desde Nina Rodrigues não fazem mais que compilar comentários (...) às categorias de peritos europeus e norte-americanos sôbre o assunto... Entretanto, a compreensão efetiva da situação do negro no Brasil exigirá um esfôrço de criação metodológica e conceitual. Ela tem particularidades históricas e sociais que não podem ser captadas por processos puramente simétricos (aquêles da ciência de exportação) (...) A tarefa que se impõe como necessária para conjugar esta mistificação do tema -—— o negro no Brasil — é a de promover a purgação dêsses clichês conceituais e tentar examiná-lo pondo entre parênteses as conotações de nossa ciência oficial e tentar compreender o objeto a partir de uma situação vital... Qual será esta situação vital? Ao autor parece que esta é a do homem com a pele escura, quando o indivíduo se afirma de um modo autêntico como negro. Quero dizer que se começa a compreender melhor o fenômeno quando se parte da afirmação — niger sum. Esta experiência do niger sum é, inicialmente, por seu significado dialético, na conjuntura brasileira onde todo mundo quer ser branco, um processo de alta rentabilidade científica (...) A partir desta situação vital o problema efetivo do negro no Brasil é principalmente psicológico e secundáriamente econômico. Desde que se defina o negro como ingrediente normal da população do país, falar de um problema econômico do negro desligado daquele das classes não favorecidas ou do pauperismo é um absurdo. (57)

No fundo, dois temas se confundem nesta crítica: a necessidade do niger sum e o repúdio da Sociologia “Consular” ou de Exportação. Não vamos aqui discutir a questão de saber se se

deve partir da experiência da negritude para poder compreender as relações raciais ou se esta experiência não é deformante (e se é melhor,

no caso, como

pensam

os norte-americanos,

escolher

um observador “neutro”, o que fêz recair a escolha para estudar as relações raciais nos Estados Unidos sôbre Myrdal, estrangeiro em seu país). Mas, quando se passa do nível de grupos e das organizações ao nível dos símbolos e dos valóres, então a compreensão supõe a participação ou, como diz Guerreiro Ramos, “uma situação vital”. Sômente no Brasil, por motivos que exa-

minaremos, há uma dissociação entre a cultura e a raça. Encontram-se, no candomblé, espanholas “filhas-de-santo”, membros

franceses e suíços, com títulos diversos da hierarquia sacerdotal

(57) Cadernos

Guerreiro RAMOS, “O Problema do Negro do Nosso Tempo, 2, 1954, pp. 207-15.

na Sociologia Brasileira”,

43

(não falo, naturalmente, de estrangeiros que têm títulos honoríficos sem iniciação prévia); basta aceitar de coração a lei africana; e a partir dêsse momento, não obstante ser-se branco, a pessoa é tomada pelas participações místicas, pelos tabus, pela permeabilidade à vingança mágica. É o que faz com que se possa ser negro no Brasil sem ser africano e, reciprocamente, ao mesmo

tempo, branco e africano.

Posso, por conseguinte, dizer no prin-

cípio desta tese, africanus sum, na medida em que fui aceito por

uma dessas na fé, com outros do experiência

seitas religiosas, considerado por ela como um irmão os mesmos deveres e os mesmos privilégios que os mesmo grau. A experiência que daremos será uma vivida.

Quanto

à crítica da Sociologia Consular,

ela constitui, cre-

mos, uma tomada de posição útil contra aquêles que querem aplicar métodos ou conceitos extraídos da Sociologia Européia ou Norte-americana às realidades brasileiras sem uma crítica prévia. Por si só, esta objeção de G. Ramos é válida apenas para uma conceituação de tipo substancialista e não para uma de tipo operacional, isto é, subordinada ao contrôle dos fatos,

moldando-se nêles, mudando com êles. Nossa tarefa é compreender a realidade rá-la no geral, ela trouxer algo dialéticas entre heterogêneas.

dd

brasileira em tôda sua originalidade e não encermas chegar até a generalização apenas quando de nôvo a uma Sociologia Teórica das relações estruturas sociais e religiões e entre civilizações

Primeira

A DUPLA

Parte

HERANÇA

CAPÍTULO

I

A Influência de Portugal e da África na América

A colonização da América, a princípio, não foi uma colonização de povoamento: o português, como o francês e o inglês, criou feitorias no litoral para comerciar com os indígenas, com

paus-de-tinta,

particularmente,

e os primeiros

brancos

chega-

dos ao Nôvo Mundo, longe de impor ou propagar sua própria civilização, deixaram-se influenciar pela dos índios. Essas feitorias, que eram simultâneamente mercados e pequenas fortalezas,

não eram numerosas porque o Oriente, com suas riquezas em

especiarias, em pedras preciosas e em tecidos resplandecentes, dominava ainda o comércio luso. Só depois que o português foi banido das Índias Orientais é que seu interêsse se voltou para a

América.

Mas, a América só lhe podia fornecer poucas mercado-

nente

comércio

rias, algumas plantas medicinais, o pau-brasil, papagaios multicores e macaquinhos divertidos. Para poder abrir o nôvo contiao

culturas como

era

preciso,

de

início,

a do açúcar, cujo consumo

introduzir

aí novas

começava

a crescer

na Europa, e a criação de uma agricultura comercial não podia ser bem sucedida sem o povoamento dos novos territórios descobertos

pelo branco.(!)

Por

outro

lado,

os espanhóis

en-

contraram nos caminhos de seus conquistadores minas de prata e pedras preciosas; não conteria o Brasil também em seu vasto interior jazidas de minérios? A sêde de ouro vai impelir a me-

trópole a organizar expedições, entradas ou bandeiras, à procura de metais preciosos,(?) o que supunha, antes de tudo,

o povoamento relativo do país. (1)

8Sô0bre

MARCHANT, cional, 1943,

De 205

esta

primeira

forma

Por conseguinte, a colonização

de

colonização

Escambo a Escravidão, trad. port. pp.; e sôbre a fusão dos primeiros

do

Brasil,

ver

Alexander

S. Paulo, Cla. Ed. Naexploradores na clvili-

zação indígena, G. FREYRE, Casa-grande e Senzala, trad. fr., p. 86. (2) As bandeiras partidas de 8. Paulo, ao contrário das entradas que safam das cidades do Nordeste, parscem à primeira vista mais espontâneas.

Mas Jaime 1948,

CORTESÃO,

mostrou

que

numa

o govêérno

série!tde artigos do O Estado

contrclava

também

de S. Paulo,

o movimento

em

bandeirante.

47

no século XVI

vai mudar de caráter e, permanecendo unida ao

capitalismo comercial, característico da época, efetuar-se-á com o povoamento. Portugal,

mesmo

entretanto,

se ressentia da falta de mão-de-obra,

para sua agricultura local; grande parte dêsse país em-

bora pequeno, continuava no século XVI carente de homens, quase sem cultura, pois as guerras de conquista, as pestes, as epidemias fizeram grandes claros na população. É por isso que a

colonização americana vai tomar uma forma especial, vai se fazer sob o signo da escravidão. Aliás, Portugal a isto já estava habi-

tuado pois que fizera trabalhar em seus campos os descendentes

dos árabes conquistados e depois os prisioneiros de guerra feitos

na Africa do Norte. Tinha mesmo adotado, em seguida à sua exploração das costas africanas, a escravidão dos negros; sabe-se que, em 1550, perto de 10% da população de Lisboa era composta de escravos negros. Bastava, pois, transportar êste costume da

metrópole ao Brasil e fazer trabalhar nas plantações que aí se iam

instalar a massa de indígenas escravizados sob o contrôle e em benefício de uma minoria branca.(*) Deixar-se-ia, ademais, êsses brancos, excitados por um clima mais sensual e pelo contato com belas jovens nuas, misturarem-se com a gente da terra,

dando origem a uma multidão de bastardos e de mestiços que

formariam, entre o colonizador branco e o índio selvagem, uma “classe intermediária de maneira a amortecer os choques de civilizações, a propagar os valôres portuguêses no sertão e a ajudar o povoamento do país graças a uma população mais assimilável «que a população indígena às formas modernas do trabalho.(*) Mas, para atrair os colonos brancos para uma terra estranha e inóspita, coberta de vastas florestas, povoada por índios antropófagos, era preciso, naturalmente, dar a êsses ousa-

«dos conquistadores privilégios consideráveis. A costa do Brasil foi dividida em doze setores por linhas paralelas e tôda a exten-

são do país, a partir do litoral até q mistério de seu interior, foi

dada a título hereditário a capitães que, em troca das despesas

de transporte e de instalação, recebiam direitos de soberania sóbre o território outorgado: direito de nomear as autoridades administrativas, direito de justiça, direito de distribuir terras, direi-

to, enfim, de receber em seu proveito taxas e impostos sóbre seus futuros súditos. Discutiu-se muito o caráter dessa primeira (3)

não

48

(4)

Caio

G.

apenas

PRADO

FREYRE,

“sexual”

Júnlor,

op.

desta

cit.

História pp.

primeira

46-7,

Econômica nsistiu

forma

do

sôbre

Brasil, o

pp.

caráter

de miscigenação,

21-31.

“politico”

e

cf. p. 214 e segs.

colonização; certos historiadores quiseram aí ver a implantação

do regime feudal na América, exatamente quando êle se desmo-

ronava na Europa; outros, pelo contrário, insistiram sôbre seu caráter capitalista.(º) É preciso, cremos, distinguir entre a organização jurídica e as finalidades do sistema; juridicamente, constituía uma feudalidade, mas êste nôvo regime feudal não

era mais que um meio de atrair os brancos ao Brasil, sem ônus

para a Coroa portuguêsa e o fim último da emprêsa, finalmente,

tem conexão com a mentalidade mercantilista do século XVI. O

problema,

aliás, não nos deve reter longamente,

visto que essas

capitanias hereditárias deviam malograr, e a metrópole foi obrigada a substituir êsse primeiro sistema de povoamento por um outro, o contrôle feudal pelo contrôle governamental. Em 1548

a Coroa nomeia um governador geral para representá-la na Colônia e, a partir desta data até o fim do período colonial, a centralização e o refôrço do poder real irão aumentar sem cessar. Todavia, essa mudança política não devia ter influência no

desenvolvimento da economia porque a cana-de-açúcar não se prestava a pequena cultura; reclamava, para prosperar, a grande

plantação.

|



desbravar

para

e

preparar

convenientemente

o

terreno

(tarefa custosa nesse meio tropical e virgem tão hostil ao homem)

tornava-se necessário o esfôrço reunido de muitos trabalhadores; não era emprêsa para pequenos proprietários isolados, Isto feito, a plantação, a colheita e o transporte do produto até os engenhos onde se preparava o açúcar, só se tornavam rendosos quando realizados em grandes volumes. Nestas condições, o pequeno produtor não podia subsistir. (8)

A monocultura forçava ao latifúndio e êste, por sua vez, reclamava a escravidão. Recorreu-se naturalmente, de início, à

mão-de-obra que se encontrava no país, isto é, à mão-de-obra indígena. Esta devia se manter por muito tempo ainda, sob formas mais ou menos hipócritas, nos extremos Norte e Sul do Brasil; porém, nas grandes plantações de cana, o africano, desde o fim do século XVI e sobretudo no século XVII, devia substituir

gradualmente o índio. Os historiadores pesquisaram as causas dessa mudança da mão-de-obra. A primeira e a mais importante delas foi o estado de civilização do aborígine, habituado ao (5)

Fernando

de

AZEVEDO,

4

Cultura

Brasileira,

p, 89.

Oliveira

VIANA,

Pequenos Estudos de Psicologia Social e Instituições Políticas Brasiletras, t. 1, cap. IX, Caio PRADO Júnior, Evolução Política do Brasil, cap. I, A. RAMOS,.

Introdução à Antropologia Brasileira, t. II, p. 120. R. SIMONSEN, História

Econômica

(6)

do

Brastl,

Caio PRADO

t

I,

pp.

Júnior,

124-27.

História

Econômica

do Brasil,

p. 41.

49

nomadismo e a uma agricultura itinerante que não podia se sub-

meter ao trabalho sedentário, do mesmo modo que “à disciplina,

ao método e ao rigor de uma atividade organizada”. A segunda foi a reação da Igreja Católica contra a escravidão do índio que

impedia a sua cristianização.

Sem querer subestimar êsse segun-

do fator, êle nos parece ainda assim menos

importante

que o

primeiro porque, no Maranhão e em São Paulo, onde os brancos não eram tão ricos para importar “peças de ébano” da África,

os senhores se levantaram contra as ordens religiosas que os im-

pediam de escravizar os indígenas e chegaram mesmo até a expulsar os jesuítas. Se o elemento índio tivesse se mostrado apto ao trabalho agrícola, não há dúvida de que se teria encon-

trado um modus vivendi como na América Espanhola; foi seu fracasso nas plantações mais que a proteção da Igreja que causou sua substituição pelo negro.(”)

Quantos negros foram trazidos ao Brasil? É evidente que se pudéssemos dar uma resposta exata a esta pergunta, ela seria para nós da maior utilidade porque a solidez da implantação de uma civilização num país depende do número de seus migrantes.

Infelizmente, os documentos oficiais sôbre o tráfico negreiro foram queimados depois da supressão do trabalho servil, a fim de apagar a mancha escravocrata do brasão do país apesar dêsse gesto sentimental não facilitar a tarefa dos historiadores. Por certo, sempre existe nos Arquivos Municipais dos portos uma

documentação

dos

escravos,

sôbre os direitos alfandegários pagos à chegada

mas

esta

documentação



que,

aliás,

não

está

ainda totalmente publicada — não é suficiente, e os historiadores são obrigados a confiar em generalizações a partir de dados frag-

mentários ou a sugerir hipóteses.

Não é surprêsa, nessas condi-

ções, que os números variem de um autor a outro. Se ao menos essas variações fôssem pequenas teríamos uma certeza aproximada; mas, elas variam de 12 a 14 milhões para Calógeras(*) para apenas 2 500 000 para Pedro Calmon! E evidente que êste últi-

mo número é bastante baixo porque equivale a uma média de 8 333 negros por ano, número êsse que é desmentido pelos documentos já publicados. Calmon percebeu isso e modificou êsse número em seguida, elevando-o para a ordem de 6 milhões.(?) De outro lado, a cifra de Calógeras é muito alta porque, para

(7)

G. FREYRE, op. cit. pp. 152-54.

(8) Pandiá CALÓGERAS, 4 Política Exterior do Império, e segs. e 302. (9) Pedro CALMON, História Soctal do Brasil, citado Subsídios para a História do Tráfico Africano no Brasil, p.

50

cap.

IX,

p. 289

por 239.

TAUNAY,

transportar 54 500 africanos todos os anos, era preciso uma flo-

tilha de 185 barcos com capacidade para 300 pessoas cada um,

exclusivamente

XVIII

mais

que

empregada

50 barcos

no tráfico, não havendo

no século

entre os portos do Nordeste

e da

Africa fazendo uma viagem cada 2 anos; e o número de veleiros que chegavam ao Rio não devia ser muito maior.(!º) Para encontrar cifras mais exatas, restam dois possíveis métodos, um mais econômico e o outro mais histórico. Roberto

Simonsen parte da duração média da vida dos escravos, segundo

os testemunhos de seus contemporâneos (que seria de sete anos de vida efetiva) e da produção do país: A produção total do açúcar, no século XVII, é calculada segundo

nossos

gráficos,

perto

de

180

milhões

de arrôbas. (Il!)

Admitindo-se

que a produção média por escravo seja de 50 arrôbas, que não é grande para terras virgens, e uma perda ocasionada pela duração de vida de 7 anos do escravo, concluiremos que a produção açucareira do século XVII absorveu 520000 escravos. Dêsse número, deve-se ter importado do Continente Africano no máximo 350 000 (...) O total do volume de açúcar exportado de 1700 a 1850 deve chegar ao máximo de 450 milhões de arrôbas. Segundo nosso critério, esta produção necessitaria, na pior das hipóteses, de 1 300 000 escravos. Não parece exagerado calcular que um quarto dêste montante seria constituído do braço indígena e de escravos nascidos no Brasil. Chegaríamos assim à cifra de 1000000 de escravos importados neste período. O século XVIII foi o século do ouro (...) Estabelecemos mais acima a produção de 200 gramas de ouro por homem. Teremos, pois (...) supondo uma produção geral de (10) A. de E TAUNAY, op. cit., p. 247 e Maurício GOULART, víidão Africana no Brasil, p. 275. É preciso acrescentar ainda: 1) Que

4 EscraCalógeras

superestima o tráfico clandestino que certamente existiu, mas que seguramente não duplicou o tráfico regular e, 2) Que êle elimina a reprodução do negro no Brasil, baseando-se no depoimento de Eschwege, que atribui ao negro uma taxa negativa de crescimento, Oo que está em contradição com as estatísticas conhecidas, e o próprio cálculo de Eschwege está errado. De fato, êle atribuía uma taxa de -2,19% para os mulatos e -3,95% para os negros.

Calógeras concluí que todos os negros gãriamente ao fim de 20 a 25 anos, constante,

deveria

haver

para

de

4

Minas

a

no

5

importados deviam desaparecer necese que “logo, para manter um nível

renovações

século

por

XVIII.

século”.

taxas

as taxas XIX (de

negativas do século XVIII tornam-se positivas a partir do século +7,6 a +18%). Mesmo para o século XVIII o cálculo de Calógeras

mostra-se falso, seria realmente

de de

95,5 não 25 anos

porque se se deduz uma diminuição de

Goulart

essas

só valem

outras regiões e para outras épocas coeficientes As pesquisas que eu mesmo realizei nos arquivos

Maurício

Mas

negativas

os

Minas,

mesmos,

para

positivos de 0,05% a 0,2%. de São Paulo mostram qua

de 100 escravos aos primeiros -4,5, isso 4,5; mas os segundos -4,5 tirados agora

farão mais que 4,03, e assim sucessivamente, até que no fim restaritam ainda 32 negros dos 100 primeiros importados. A

êsses erros capitais, Calógeras acrescenta outros; por exemplo, aos 92 128 escravos contados nos impostos por cabeça do primeiro

em

cita

os

o

92740

do

pagamento

segundo do

semestre,

impôsto

se

sendo

fazendo

que

em

êsses

duas

adiciona semestre

indivíduos

vêzes;

ou

são

ainda,

como entre 1575 e 1591, 52053 negros saíram da Colônia Portuguêsa de Angola, conclui que todos êles entraram no Brasil, quando Portugal nesta época estava prêso ao tratado com as Índias de Castela, M. GOULART, op. cit., p. 155. (11) Arrôba: pêso português de 32 libras de 16 onças cada uma,

51

1 200 000

quilos

e uma

duração

média

de

vida

de

7 anos,

um

total

de 860 000 escravos dos quais 600 000 ou 2/3 teriam sido importados. O café começou a aparecer como valor nacional apreciável a partir de 1820 (...) Sua exportação total durante o período do tráfico africano não atinge 150 milhões de arrôbas. A produção média anual por escravo deveria ser superior a 100 arrôbas. O café não é, pois, responsável senão pela importação de 250 000 escravos aproximadamente,

o

que

produções agrícolas de 3 300 000.(12)

nos

dá,

e para

com

1 100 000

os serviços

negros

domésticos,

para

uma

as

outras

cifra total

Taunay com a ajuda da documentação histórica chega a uma cifra aproximada de 3 600 000. O tráfico foi bastante re-

duzido de 1540 a 1560; elevou-se progressivamente a partir desta

data, mas não atingia no fim do século uma cifra superior a 3 ou 4 000 cabeças por ano.

No século XVII, quando a navegação

marítima foi fortemente perturbada pela pirataria francesa e inglê-

sa e pela guerra com os holandeses para a conquista do Brasil, não se pode ultrapassar a média de 6 000 escravos entrados anualmente. No século XVIII a mineração criou uma necessidade maior de mão-de-obra e provocou um afluxo mais elevado das entradas de africanos, mas a segunda metade do século vê a decadência da indústria açucareira como também a da mineração, o que faz com que Taunay proponha uma média anual de

13 000 escravos.

ticas, Taunay,

por

Se essas primeiras cifras permanecem hipotéoutro lado,

conseguiu

reunir para o século

XIX uma documentação assaz rica sôbre o tráfico, permitindo-

“lhe calcular entre 1800 e 1856 uma entrada de 1 562 000 afri-

canos no país. Isso nos dá em definitivo o seguinte quadro: século século século século

XVI XVII XVIII XIX

.......... o... .......... e...

100 600 1 300 1 600

000 000 000 000

3 600 000(1º) Maurício Goulart, o último historiador que se preocupou com a questão, recusa-se a fazer hipóteses como Simonsen, cujos

dados

lhe parecem

análise dos

por

documentos

demais

arbitrários.(!*)

e estatísticas com

Éle prefere

a condição

a

de sub-

metê-los a uma reflexão crítica, já que muitos dos documentos q 12) PD.

2

01-5.

(13). (14)

Roberto

C. SIMONSEN,

História Econômica

A. de E. TAUNAY, op. cit., pp. 304-5. M. GOULART, op. cit., p. 149.

do Brasil, 1500-1880, t. 1,

são inúteis como, por exemplo, as narrativas de certos viajantes

onde o gôsto pelo exotismo leva a ver no Brasil “um país negro”.(15) Entretanto, êle também chega a uma cifra total que

não está tão longe daquela de Simonsen: para

o período

colonial,

daria uma importação

nos.(1º)

Certamente

1 350 000

2 200 000 a 2 250 000

para

o século

XIX,

o que

africanos foram

arran-

total de 3 500 000 a 3 600 000 afriça-

que muitos

outros

cados de seu país para serem transportados ao Brasil, mas acorrentados nos navios, comprimidos uns contra os outros, foram

dizimados por moléstias contagiosas, pela fome ou sêde, e seus corpos lançados ao oceano. Ás vêzes, sômente a metade da carga chegava ao seu destino.(1!") Por conseguinte, podemos concluir que hoje há um acôrdo em relação a uma quantia aproximada de 3 milhões e meio de

negros chegados ao Brasil desde os primórdios da colonização até ao fim do tráfico legal ou clandestino. (1º)

Se os navios negreiros desembarcavam cargas cada vez mais numerosas de africanos, a emigração portuguêsa ao Brasil,

por sua vez, acelerou-se sobretudo com a descoberta de minas de ouro no século XVIII e com o progresso dos empreendimentos comerciais no século XIX. Malgrado nosso, não dispomos de estatísticas bastante seguras sôbre a composição racial da população no curso dos diferentes séculos. Segundo o Padre Anchieta havia em 1585: 24 750 brancos, 18 500 índios civili-

zados e 14 000 africanos.

Rocha Pombo

calcula a população

brasileira de 1600 em 30 000 brancos, 30 000 negros e 70 000

indígenas civilizados ou mestiços. Em contra os holandeses, haveria 74 000

1660, no fim da guerra brancos e índios livres,

110 000 escravos, em geral africanos ou crioulos.

gundo Perdigão Malheiro,

Em

1798, se-

1 010 000 brancos, 250 000 índios,

406 000 mulatos ou negros livres, 1 582 000 negros ou mulatos (15)

que

na Bahia

211, 275, 279. (16) Id, ibid. p. 272. (17) Ver sôbre o tráfico negreiro e seus horrores, TAUNAY, 123-31. J. F. de ALMEIDA PRADO, Pernambuco e as Capitanias

Op. cit,, do Norte

havia

pp.

pp. do

20

Brasil,

JId., ibid. negros

p.

246

pp.

para

e segs.

1

114-15, FREZIER, branco,

J.

Relation

DORNAS

por exemplo,

Filho,

de

4

Voyage

calculou dans

Escravidão

no

Charles de LA RONCIBRE, Neégres et Négriers, cap. III. (18) Ao lado das obras gerais sôbre o tráfico, existem

la

Mer

Brasil,

du

Sud,

pp.

57-61,

algumas

sôbre

o tráfico particular para uma região, como a de Luiz VIANNA FILHO, O Negro na Bahia, Rio, J. Olympio, 1946, p. 167 ou a de Ciro T. de PADUA, O Negro no Planalto, 8. Paulo, Imprensa Oficial, 1943, pp. 127-228. Deixamos

de lado propositadamente 0 estudo do tráfico negreiro e da escravidão negra no Brasil holandês, que não deixou traços suficientes para, serem registrados na história ulterior do Brasil. Ver sôbre a questão: WATJEN, O Dominio Colontal Hollandez, p. 378 e segs., 487. Gonçalves de MELLO NETO, Tempo dos Fiamengos, pp. 208, 222, 229.

58

escravos. A estatística oficial de 1817-1818 dá para todo o Brasil uma população total de 3 817 000 habitantes dos quais 585 000 mulatos e negros livres e 1930 000 escravos.(!º) Desta maneira, no início do século XIX os negros dominam demográficamente os brancos, o que permite compreender porque êles pude-

ram manter parte de sua herança cultural e mesmo, por motivos

que posteriormente veremos, influenciar a civilização dos portuguêses. Entretanto, é preciso não esquecer que os brancos

comandam e dirigem, que o escravo é rejeitado da comunidade

nacional e que esta estratificação das côres prejudicou em maior ou menor grau a ação do fator demográfico.

A partir do século XIX as proporções se invertem, não em benefício do grupo branco e sim do grupo dos mestiços; todavia, aqui ainda os dados que temos são pouco seguros. Rugendas,

por exemplo, estima para 1827 a população total do Brasil em 3 758 000 habitantes ao passo que Malte-Brun a eleva em 1830

para 5 340 000; Rugendas pensa que não havia mais que 845 000 brancos e 628 000 mestiços, enquanto as cifras dadas por Malte-

-Brun para êsses dois grupos étnicos são respectivamente 1 347 000 e 1 748 000. Os dois autores estão mais ou menos de acôórdo em relação ao número de negros: 1 987 000 para o primeiro e 2017000 para o segundo. Mesmo as estatísticas de escravos que aqui nos poderiam ser de grande utilidade apresentam grandes divergências: o conselheiro Velloso de Oliveira estimava

seu número

em

1819, em

1 107 000; em 1850, o senador

Cândido Baptista de Oliveira o elevou para 2 500 000 e em 1869, o senador Thomaz Pompeu de Souza Brasil o reduziu para

1 690 000.(2º) Tomando-se por base o recenseamento de 1872,

não obstante a maioria das pessoas de côr serem analfabetas e sua qualificação racial depender ou de seus senhores quando

escravas,

ou

dos

recenseadores

quando

livres,

ainda

assim

êle

constitui o dado mais seguro que podemos utilizar: permite-nos verificar a inversão a que aludimos. Naquela data, havia no Brasil 3 854 000 brancos, 4 862 000 mulatos ou mestiços (dado

no qual é preciso computar

um certo número

de mestiços de

índios) e apenas 1 996 000 negros.(2!) Começara o branqueamento do país ou sua “arianização” como às vêzes se diz.

(19) Perdigão MALHEIRO, A Escravidão no Brasil, 3 vols., Rio, 1867. F. CONTREIRAS RODRIGUES, Traços da Economia Social e Politica do Brasil

Colonial, pp. 93-4. (20) Giorgio MORTARA, O Desenvolvimento no Brasil, IBGE, Estudos demográficos, n.º 18,

(221) Recenseamento da cedeu no Dia 1.º de Agôsto

54

População de 1872.

do

da População p. 2.

Império

do

Brasil

Preta a

que

e Parda se

Pro-

Mas, a herança africana já então se manifestara largamente

no curso dos três séculos precedentes,

tempo

suficiente para se

implantar e subsistir ao lado da herança portuguêsa. x

%

Todavia, é preciso distinção capital.

fazer

%

entre

essas

duas

Portugal importa sua sociedade ao mesmo

civilização.

A

escravidão,

pelo

contrário,

heranças

uma

tempo que sua

destrói

a sociedade

africana, e o negro não pode trazer consigo, nos costados dos

navios negreiros, mais que seus valôres culturais. O português deve se adaptar a um nóvo meio e as modificações que sofrerão sua organização social, assim como sua civi-

lização serão, sobretudo, de ordem ecológica.

O africano deverá

se adaptar, pelo contrário, a uma sociedade bem diversa da sua

que lhe é imposta pelo branco, e é sua civilização que êle deverá

adaptar a fim de incorporá-la numa outra estrutura social. Na sua nova terra, os primeiros colonos brancos tentaram

inicialmente implantar o país que haviam deixado com suas hor-

tas e jardins, seus campos de trigo e seus vinhedos, seus galinheiros e seus currais,

suas igrejas barrôcas

e suas

casas

de pedra

um pouco sombrias e austeras. A nostalgia que guardavam em seus corações da terra natal, de suas montanhas e de suas praias não os abandonou sob o sol ardente dos trópicos e quiseram criar, no sentido exato da palavra, uma “Nova

Lusitânia”.

Seus

navios desembarcavam junto com os primeiros feudatários, artesãos, monges,

sementes, cavalos, blocos de granito para a cons-

trução de casas, blocos de mármore para levantar igrejas a Deus.

A nova sociedade

que se modela

portuguêsa até nos mínimos detalhes.

quer continuar a sociedade

Já dissemos que as capita-

nias hereditárias foram uma tentativa para calcar a organização feudal no solo da colônia americana. Poderíamos dizer o mesmo

das primeiras cidades. Fram elas administradas como as de Portugal por Câmaras municipais compostas de representantes eleitos entre os “homens bons”, isto é, entre os grandes proprietários fundiários; os primeiros artesãos se agruparam em “corpo-

rações”

com

seus

juízes,

seus

regulamentos,

seus

exames

para

ascender ao grau de mestre e em confrarias de ofício sob a proteção de um santo católico. A própria família, pelo menos a dos

nobres, não é diferente da família dos fidalgos da Côrte, muito

maior que a família plebéia, com seus “criados”, isto é, seus pro55

tegidos, educados, casados, dotados pelo senhor e que aqui tomam

o nome de “crias”.(22)

Esta sociedade foi obrigada a se transformar a fim de se

adaptar a outras condições de vida da mesma forma que o tipo de casa construída precisou abandonar a pedra pela taipa ou pela terra batida, tornando-se também maior, prolongando-se em terraço aberto, em varanda segundo a moda oriental para permitir ao português tomar a fresca nas doces horas do anoitecer. O trigo e a videira não frutificaram. Os colonos precisaram

aceitar os hábitos dos índios que estavam casados com a natureza ambiente, isto é, substituíram o pão de trigo pela farinha de mandioca, o leito muito quente pela rêde, os antigos instrumen-

tos de caça e de pesca pelos dos indígenas; adotaram seus barcos

feitos de casca de árvores ou cavados num tronco para subir os

rios; começaram

a gostar dos frutos do país e do tabaco que

mascavam, aprendendo a tragar a fumaça à moda dos índios. A horta ou a chácara portuguêsa, o pomar, foram abandonados

para serem substituídos por grandes plantações de cana-de-açúcar, o que ainda os forçou a modificar seus antigos métodos de

produção, sua agricultura tradicional para aceitar a dos indígenas, o desbravamento da floresta e a cultura itinerante entre as queimadas.(?º)

Tudo

isso não ultrapassa certamente

o cam-

po da ergologia; os empréstimos são mais materiais que sociais

e são impostos menos pelo índio enquanto índio que pelas necessidades do meio, do clima, necessidades às quais o índio soube dar soluções que na prática provaram ser eficazes, melhores que as técnicas ou os objetos transportados do outro lado do Atlântico.

Mas, essas novas condições de vida também vão em breve

fazer romper

a organização

social herdada,

quebrá-la em

multidão de famílias sem ligação orgânica umas

às outras.

uma

O

Brasil agiu sôbre a sociedade portuguêsa que se lhe queria im-

plantar à maneira de uma carga de dinamite que fêz esta socieda-

de explodir em pedaços; e, certamente tôdas essas partes, isto é, as famílias permanecem partes “portuguêsas” por seu gênero de vida, suas regras de parentesco ou de casamento, suas tradições e seus rituais; não impede que seu isolamento, sua dispersão

numa terra imensa, sua distância da metrópole pouco a pouco (22) Costa LOBO, História Lisboa, 1903, pp. 427-28.

da

Sociedade

em

Portugal

no

Século

XV,

(23) Sôbre essas fnfluências indígenas, ver Sérgio BUARQUE DE HOLLANDA, “índios e Mamelucos na Expansão Paulista”, Anais do Museu Paulista, XIII, 1949, pp. 177-290, Raízes do Brasii, p. 42. G. FREYRE, Casa«grande e Senzala, trad. fr., pp. 81-156.

56

atuem ' para remodelá-las e fazê-las evoluir numa direção diferente daquela das famílias que ficaram em Portugal. A povoação tão. tipicamente portuguêsa com seu rico folclore, seus grupos de vizinhança, seus bens comunitários, seus hábitos de ajuda” Tecíproca e de cooperação vicinal, sua solidariedade em

tôrno.da igreja paroquial, deixa de existir no Brasil; em vão, o

govêrno metropolitano tenta fundar aldeias, burgos, concedendo ordens ou elogios aos construtores e criadores de “lugares de po-

voamento”;(2*)

e, em

conseqiiência,

êsses

povoados

factícios,

cenários exóticos plantados no campo, conservam suas casas vazias a maior parte do ano e não ganham vida senão nos dias

de festas religiosas, de procissões, de convocações

das câmaras

municipais, quando os proprietários deixam seus domínios rurais para discutir seus negócios e render homenagens à divindade. A agricultura comercial na forma de plantações exige o latifúndio e êste, por sua vez, com sua cultura itinerante, suas reservas

florestais, suas terras exauridas deixadas

em

alqueive,

separa os

homens mais que os reúne. Cada família vai viver concentrada

em si mesma, no interior de sua Casa-grande e de seu domínio

numa espécie de autarquia econômica, bastando-se a si própria,

separada das mais próximas por léguas e léguas sem outras estra-

das a não ser as vias fluviais ou caminhos muito inóspitos, recebendo visitas nos dias raros de casamentos, de aniversários. Há, portanto, do ponto de vista morfológico) entre a sociedade rural

portuguêsa de tipo comunitário e a sociedade rural brasileira, de habitat disperso ao máximo, uma diferença essencial, e esta diferença não podia deixar de repercutir nos outros níveis: da

uma

organização

sociedade

social.

E,

estruturada;

de

início,

as fôrças

esta

sociedade

centrífugas

não

é

predominam

sôbre as fôrças de coesão; os únicos laços que podem reunir essas.

células autônomas

são os laços de parentesco ou de casamento,

e ainda o casamento

entre tios e sobrinhas,

é freqiientemente amiúde

endogâmico,

às vêzes.

entre primos-irmãos,(**)

o que

faz com que ao clã feudal, para empregar as expressões de Oli-

veira Vianna, isto é, do clã formado no interior do domínio pelo

senhor,

sua família, seus escravos, seus homens livres, servos ou

administrados, seus “índios de flecha”, se ajunte o clã familiar composto de famílias unidas tôdas pelo parentesco e pelo casamento. Mas êsses clãs permanecem independentes uns dos ou(24) Oliveira VIANNA, Instituições Políticas Brasileiras, t. I, pp. (25) Alfredo ELLIS Júnior, Capítulos da História Social de S. p. 121, calcula com a ajuda dos lívros genealógicos, tão reputados no o índice de consangiiinidade em 23,3% e em 42,1% na província de 8. contra 2% Dê França e 7% na Noruega, o país europeu onde êste o mais

119-20. Paulo, Brasil, Paulo,. índice

57

tros; a solidariedade também não ultrapassa suas fronteiras flutuantes e indecisas.(2º) Por questões de terras disputadas, por amôres não aceitos pelo patriarca, batalhas sangrentas semelhantes às vendetas, desenvolvendo-se às vêzes em encontros de ban-

dos armados, lançam essas famílias umas contra outras, os Montes contra os Feitosas, os Pires contra os Camargos. ..(2”)

É o que faz que a História do Brasil Colonial seja mais a história de um caos de disputas que a história da administração metropolitana unificadora e orgânica. O govêrno empregará todos os seus esforços para reunir numa solidariedade política êsses membra disjecta frequentemente antagônicos, nomeando, por exemplo, um “juiz de fora” encarregado de representar o poder teal frente às Câmaras dos “homens bons” que defendem os interêsses dos plantadores e dos grandes proprietários fundiários; e mesmo na Bahia, substituindo a eleição dos conselheiros municipais por sua nomeação, multiplicando também a partir do século XVII o número de seus funcionários; em vão, esta unida-

de política fica como uma espécie de superestrutura, útil sem dúvida ao govêrno real para a coleta de impostos ou para a

defesa da colônia, mas sem raízes autênticas nas realidades bra-

sileiras. O dito do Padre Vieira, que como bom português e católico espantou-se diante da situação, permanece válido:

família chega a ser uma República”.

“E cada

Contudo, se como dissemos, a sociedade portuguêsa explo-

diu, cada fragmento continua sendo parte da sociedade portuguêsa transplantada. A estrutura da família nobre, a única que nos

interessa no momento porque foi ela que se tornou o nôvo núcleo

de solidariedade

fidalgo índios e brancos. de gado

no

Brasil,

continua

a estrutura

da família

do

português adaptando-se a um meio onde primeiro os depois os escravos negros substituíram a plebe rural de De fato, é ao redor do senhor de engenho ou do senhor que se agrupam todos aquêles que vivem à sombra de

sua Casa-grande: primeiro sua família sôbre a qual exerce um poder absoluto, casando os filhos à sua vontade, traindo sem

escrúpulos sua mulher, sem se ocultar, com suas amantes de côr;

os escravos, que êle pode punir, matar impunemente; seus negros

livres, condutores

de carros-de-bois,

marceneiros,

ferreiros, tro-

peiros que conduzem o gado do sertão ao litoral, feitôres vigiando os cortadores de cana, os limpadores de açúcar, etc. Também

os “brancos pobres”, pequenos proprietários que são obrigados

(26) O. VIANNA, op. cit., caps. IX e X. Populações Meridionais, cap. IX. (27) Costa PINTO, Lutas de Familias no Brasil, 8. Paulo. A. de E. TAUNAY, Sob El Rey Nosso Senhor, cap. 19.

+68

a levar as suas colheitas ao engenho do senhor; camponeses

a

quem êle dá permissão de, em troca de alguns dias de trabalho,

construir na sua propriedade uma casa, fazer um jardim, mas

que êle pode

despachar

mestiços; em

suma,

impunemente

quando

bem

lhe aprou-

ver, e que se misturam com os índios, perpetuam-se em filhos

“administrados”,

diz

Gabriel

todo um

bando

de “agregados”,

em

linguagem

de índios

de protegidos, “o que é muita gente”, como

Soares

sua

arcaica.

Portanto,

foi

o engenho ou a grande propriedade de cultura ou de criação que substitui no Brasil a povoação portuguêsa. Mas quem não vê que

no Brasil a solidariedade se manifestou de forma tão diferente? Ela não repousa mais sôbre o trabalho comunitário, sôbre a cooperação democrática e sim sôbre o trabalho escravo, a servidão

dissimulada dos mestiços, a hierarquia familiar. Solidariedade tão

frágil quando se passa do centro (Casa-grande do senhor e sen-

zala dos negros) à periferia, às casas de argamassa dos pequenos

proprietários sem escravos ou dos trabalhadores sem terra que

formam simplesmente uma clientela no gênero daquela do patriciado romano. Entretanto, era preciso que esta solidariedade para se consolidar

madas

revestisse formas

orgânicas;

elas foram

to-

de empréstimo dos costumes católicos do “compadrio”

e do “comadrio”; o laço espiritual ou religioso juntou-se ao laço da dependência econômica ou social para corrigilo, para dar-lJhe uma coloração afetiva e sentimental que não tinha em sua origem. O compadrio que podia tomar formas diversas, com-

padrio de batismo com o nascimento de uma criança, compadrio de casamento

e mesmo

compadrio

das fogueiras de São João,

criava entre o padrinho, a madrinha e seus afilhados ou afilhadas tôda uma série de obrigações recíprocas e de tabus sexuais, fazendo desta forma de parentesco, um parentesco tão forte como

se fôra de sangue, ciais: deveres de de seus filhos, de deveres de ajuda,

salvaguardando a hierarquia dos estratos soproteção para com o compadre, de educação dote para a afilhada da parte dos padrinhos, de respeito, e obediência da parte das “coma-

dres” ou dos afilhados... (2º) A luxúria do brasileiro sôbre a qual Paulo Prado tanto insistiu em seu Retrato do Brasil não deve, pois, nos iludir; esta família conserva seus valôres católicos portuguêses; a capela

(28) Ver sôbre o compadrio O. VIANNA, op. ctt., p, 263 e Segs. Vianna cita essas palavras típicas de um viajante, Richard Burton: “Nos pequenos lugares todos os habitantes estão ligados pelo batismo se não o estão pelo sangue”; e o bom artigo sintético de CAMARA CASCUDO, Dicionário do Folclore

Brasileiro,

p.

189.

59

apóia-se nos muros da Casa-grande. Mas o catolicismo implantado é o catolicismo da Contra-Reforma que, em oposição ao protestantismo, desperta o velho culto dos santos e, por isso mesmo, ressuscita em parte as superstições da Idade Média. Na Europa, o culto dos santos é controlado, fiscalizado, parte de um

todo dogmático e litúrgico que o ultrapassa.

lada

culto.

de Roma

Sem

mais

dúvida,

ainda

que

nas grandes

de

Lisboa,

Aqui a família, iso-

plantações

vai incorporar

há um

êsse

capelão,

e

êste poderia ser o representante da Igreja, o mantenedor da herança religiosa européia. De fato, êle é o oficiante da missa dominical, o mestre-escola que ensina o português aos filhos do senhor, mas, como mostrou Gilberto Freyre, êle também é tomado

por êsse isolamento, pelo clima voluptuoso da senzala, pelo odor

embriagante das canas cortadas; sobretudo êle depende mais do

patriarca que o remunera, nutre e aloja, que de seus superiores

hierárquicos. Os bispos demandarão frequentemente e com insistência a supressão dêsses capelães que fazem retroceder o catolicismo de religião comunitária em religião de clãs familiares, mas nunca chegarão a destruir o costume.(?º) Ademais, o patriarcado brasileiro tenderá a influir pouco a pouco até sôbre a

igreja de Roma,

penetrando-a com

seus interêsses, suas preo-

cupações, seu nativismo rural, o filho mais nôvo de cada grande

família estando destinado ao sacerdócio e as filhas que não se

casam enclausuravam-se no convento (se se pode dizer enclausuramento já que elas nêle entravam com uma ou duas escravas para servi-las e desempenhavam aí a comédia). O que faz que em

definitivo as transformações morfológicas da sociedade na sua

transplantação de Portugal ao Brasil tivessem repercussões até no domínio dos símbolos, dos valôres e dos ideais religiosos, criando o que se poderia chamar de um “familismo” católico,

centralizado no culto dos santos protetores do patriarca e dos mortos domésticos enterrados na mesma capela e envolvidos na mesma piedade. (3º)

Mas todos êsses fatôres de dissolução ou de transformação cultural eram compensados ou negados por outros fatóres, opostos aos primeiros, que tendiam a manter ou a restabelecer a

civilização dos portuguêses.

De início, o que os sociólogos norte-

-americanos chamam às vêzes de “o sentimento da fronteira”, isto é, a altivez racial do aventureiro, do colonizador face a outros

grupos étnicos que lhe parecem inferiores. (29) (30)

60

G. G.

FRETRE, FREYRE,

O branco verá sobre-

Sobrados e Mucambos, pp, 149-5l. Casa-grandee Senzala, trad. fr., pp.

394-95.

tudo no indígena e depois no negro u “a máquina de trabalho ou

de. prazer; anexará um e outro à como se incorpora um rebanho de seduções de um clima amolecedor não desaparecer se reveste de seus

sua sociedade familiar, mas gado ao seu capital. Face às e voluptuoso, o senhor para valôres europeus, prende-se

a-éles, ;e .separa-se orgulhosamente dos “homens de côr”. Esse sentimento::variará. segundo .as regiões, será menor em São Paulo

== onde o português e o espanhol viverão na biose com os indígenas, ao ponto da língua língua da-metrópole(*!) — que nos engenhos por ser a população de S. Paulo mais plebéia,

mais estreita simtupi aí dominar a do Nordeste, isto menos rica e mais

móvel que a dos nobres, proprietários dos vastos latifúndios da Bahia e de Pernambuco. A civilização paulista isolada do ocea-

no pela Serra do Mar e, por conseguinte, mais independente daquela da metrópole, mestiçar-se-á em maior grau; a do Nordeste será mais orgulhosamente lusitana. " “Todavia, uma herança que não se renova por um contato direto com suas fontes de inspiração corre a longo prazo o risco de se empobrecer. Foi o que aconteceu aos valôres materiais

da cultura portuguêsa: o vestuário perdeu suas características regionais(*2) e o mobiliário se reduziu ao mínimo.(*) Foram

as ordens religiosas e, mais particularmente, a ordem dos jesuítas que constituíram o canal de ligação entre a Europa

ea Amé-

rica. Se o homem era por vêzes reticente, tentando livrar-se das

despesas e dos trabalhos com as procissões, (**) pelo menos o jesuíta tinha a mulher quando ela ia à cidade confessar, e o filho

no colégio.(*º)

Pode-se dizer que a criança nascia duas vêzes

no Brasil, primeiro como brasileiro, como filho da plantação sujeito às influências do meio físico, criado pelos escravos, brin-

cando com os negrinhos e correndo a cavalo através de vastas regiões, e, segundo, como português entre os muros tristes do

colégio onde aprendia o latim, o português “do Reino”, a filosofia tomista, a arte de obedecer. Essas ordens religiosas cujo pes-

soal se renovava sem cessar pela vinda de frades italianos e espanhóis, mas sobretudo portuguêses, faziam vir as plantas de

suas igrejas, as cerâmicas, as imagens de santos, os objetos litúr(31)

(32) (33) Arquivos . (34)

S. BUARQUE

DE

HOLLANDA,

Raizes

do

Brasil,

pp.

179-93.

A. RAMOS, Introdução à Antropologia Brasileira, t. II, p. 123. Como mostram os Testamentos, publicados sob os cuidados de S. Paulo, de Recife e de Salvador.

A.

de

E.

TAUNAY,

vol. 1, pp. 182-88, etc. (35) G. FREYRE,

História

Sobrados

da

Cidade

e Mucambos,

de

pp.

S. Paulo

no

Século

dos

XVIII,

92-3,

61

gicos da Europa, e, assim, faziam de suas igrejas, de suas sacristias, de seus colégios, de suas bibliotecas, fortalezas do espírito

lusitano. Foi

Como

por

disse, com justa razão, Fernando de Azevedo:

esta

ação

conjugada

jesuítas e de capelães vindos

e

pela

chegada

sucessiva

de

do Reino ou educados na colônia, em

grande parte pelos padres da Companhia, que a maré enchente das influências africanas diminuiu (...) A ação dos jesuítas e dos capelães que haviam dêles recebido o mesmo espírito e os mesmos ideais de cultura para transmiti-los à mocidade da colônia não se reduziu certamente à defesa do português contra as influências negras ou indígenas que ameaçavam ao mesmo tempo a língua paterna, a autoridade da Igreja, a moral e os costumes: êles ergueram uma barreira à desintegração da herança cultural da qual eram depositários,

e acrescenta ainda o referido autor que êsses colégios não cons-

tituíram Qúnicamente os alicerces da manutenção dos valôres portuguêses, mas foram

também

os canais da circulação das elites,

remodelando a juventude branca e mestiça para transformá-la em frades, em funcionários, em letrados, ao mesmo

tempo

bons ca-

tólicos e bons portuguêses, o que na época significava mais ou menos a mesma coisa. (3º) Havia, enfim, a ação das cidades ou mais exatamente dos portos, portos êsses abertos ao grande além e onde ancoravam

não apenas navios negreiros, mas ainda navios vindos de Portugal e que traziam consigo as idéias, os valôres, as últimas modas da Europa, a franco-maçonaria e as teoria dos filósofos do século

XVIII, a Arcádia e a poesia bucólica. Dissemos que a organização dessas cidades seguia a de Portugal, mas também aqui foi

preciso adaptar-se a condições novas. Os artesãos não eram muito numerosos para poderem constituir corporações, e aos aprendizes davam-se o título de “mestres” sem passar por exames, por

simples “licença” concedida pelos conselheiros municipais, e os “mestres”, por sua vez, abandonavam aos mulatos ou aos negros

livres seus ofícios a fim de poder entrar na categoria dos “ho-

mens bons”,(*') enfim, as confrarias de ofício tenderam a se transformar em confrarias raciais, enquanto o artesanato caía (38)

(37)

244-45. mesmo

Fernando Neison

BUARQUE um texto

de

AZEVEDO,

WERNECE

A

SODRÉ,

DE HOLLANDA, particularmente

Brasil em 1767 que se lastima do pescadores, marinheiros, mulatos,

Cultura

Brasileira,

Formação

da

pp. 298-309.

Sociedade

Brasileira,

pp.

op. cit., pp. 62-5; êsse último autor cita significativo, uma carta do vice-rei do

Rio ser só habitado de prêtos boçais e nus, e

oficiais mecânicos, alguns homens de

negócios dos quais muito poucos podem ter êsse nome sem haver quem pudesse servir de vereador, nem servir cargo autorizado, pois as pessoas de

p.

62

asas

a

nobres

e

distintas

viviam

retiradas

em

suas

fazendas

e

engenhos,

nas mãos dos negros: confrarias “aristocráticas” abertas sômente aos brancos, confrarias de mestiços, confrarias de negros.(*8) Mas, malgrado essas mudanças, a cidade permanece mais portuguêsa que brasileira, porque o desenvolvimento do comércio

marítimo para aí atrai os portuguêses — caixeiros de lojas, guarda-livros, gerentes ou diretores — e é êsse o primeiro núcleo da

burguesia urbana que vai entrar em choque com a sociedade rural dos senhores de engenho ou dos proprietários fundiários. Tivemos a Guerra dos Mascates, que opõe a brasileira Olinda ao Recife comercializado, e a Guerra dos “Emboabas”, que termina

pela expulsão dos “bandeirantes” paulistas das minas que desco-

briram e onde são substituídos pelos portuguêses vindos para tentar a aventura da riqueza fácil.(*º) Demais, a descoberta

dessas minas transformará a estrutura social do Brasil no século

XVIII, dando nascimento, no planalto central, a uma civilização

urbana, de povoamento denso, ávida de luxo, estreitamente con-

trolada pela metrópole.

O que fêz que o cordão

umbilical de

ligação da colônia à mãe-pátria nunca fôsse cortado, que, século

após século, novas migrações recimentassem os laços, dando vida nova aos valóres ancestrais e permitindo restabelecer, visto as civilizações mudarem no curso do tempo, o equilíbrio entre

as duas correntes de evolução, a da metrópole e a da colônia.

Certamente,

parece

estar

provado

que

o recrutamento

étnico

variou, que os primeiros colonos pertenciam mais às províncias do Sul de Portugal, fortemente moçarabes, e que se estendeu, no século XVII, aos açorianos e, no século XVIII,

às províncias do

Norte,(*º) mas as diferenças regionais dos migrantes não tolheram sua participação numa mesma

cultura.

A descoberta das minas não só atraiu portuguêses, como também ocasionou deslocamentos populacionais do Norte do Brasil para o Sul, e a criação do gado, com o transporte conse-

cutivo do mesmo das zonas de pastagem aos centros de consumo,

não só teceu entre as células dispersas dos clãs familiares uma vasta rêde, prelúdio econômico

a uma

unidade política,(*!)

mas

(38) G. FREYRE, Sobrados e Mucambos, t. I, p. 675 e t. II, p. 864. (39) Fernando de AZEVEDO, op. cit. pp, 65-72, 86-9. SODRÉ, p. 173 e segs. 224-34, (40) A. RAMOS, op. ctt., pp. 91-6, & colonização no comêço foi aberta tanto aos estrangeiros como aos portuguêses; exigla-se-lhes apenas para possuírem as terras que fôssem bons católicos. Mas, a partir do século XVII, restrições foram feitas, o que impediu o desenvolvimento de uma cultura brasileira mais cosmopolita que portuguêsa. A. RAMOS, op. cit. p. 98.

Nelson W. SODRÉ, op. cft., p. 113; Caio PRADO (41) R. SIMONSEN, op. cft., cap. VIII.

Júnior,

op.

cit.,

pp.

60-1.

63

fêz também todos se reaproximarem e sentirem a homogeneidade de suas crenças, sentimentos e hábitos. % x

Ed

Mas se o português pôde conservar sua sociedade e sua civilização sob os trópicos americanos, adaptando-as a êsse meio, o mesmo não aconteceu com o africano. Com efeito, o negro, ao contrário do branco, era arrancado

a fórça de sua terra, transportado para um nôvo habitat, integra-

do numa sociedade que não era a sua e onde se encontrava numa posição de subordinação econômica e social. A escravidão ia destruir-lhe a comunidade africana aldeã ou tribal, sua organiza-

ção política, as formas da vida familiar, impedindo a subsistência

das estruturas sociais nativas. O negro entrava numa nova estratificação onde o branco ocupava o ápice, o mestiço livre ou

o caboclo a camada intermediária e êle a camada mais baixa de

tôdas, ou seja, a da escravidão. Era recebido nessas grandes famílias proprietárias de plantações ou de minas, células vivas da nova sociedade brasileira, sendo que essas famílias vão substituir-Jhe daí por diante o clã, a linhagem, a aldeia. A sociedade africana não podia renascer no Brasil. Sôbre êsse ponto é geral a

concordância e não pode aqui haver realmente nenhuma discussão possível. Mas a civilização do negro estava ligada a essa sociedade; ela constituía a expressão

reflexo como o querem

autêntica dessa sociedade, seja o seu

os marxistas, ou a sua fonte viva.

E eis

que esta civilização era arrancanda de sua base morfológica e

institucional para flutuar de algum modo no vácuo.

Portanto,

não corria o risco de desaparecer simultâneamente com a sociedade, nessa transformação radical das antigas condições de vida? De desaparecer também ao mesmo tempo que os quadros sociais

que até então a condicionavam? Isso porém não é o que se passa; sem dúvida esta civilização precisou adaptar-se aos novos

quadros

econômicos

e sociais,

à monocultura,

à escravidão,

à

família do senhor de engenho, mas subsistiu. Tudo se fêz como se uma fenda se abrisse entre os diversos níveis da Sociologia em profundidade, no estágio dos símbolos, alargando-se para

deixar intactas em grande parte as representações coletivas, os valóôres e mesmo as palpitações da consciência coletiva, enquanto desmoronavam as estruturas e as normas que as sustentavam.

64

Precisamos, pois, examinar as condições em que operaram, primeiro o tráfico negreiro, e, depois, a escravidão, para com-

preender como a cultura africana pôde resistir a uma tal revolução.

Os primeiros escravos deviam pertencer às tribos do litoral,

mas à medida que o tráfico se intensificava, que as plantações ou as minas reclamavam mais mão-de-obra servil, o tráfico ga-

nhava as profundezas do Continente Africano e tornava-se mais

sistemático; roubavam-se crianças e mulheres nos caminhos, dava-se de beber aos homens que eram presos quando a embriaguez os mergulhava num sono profundo; os sobas entraram em

guerra uns contra outros para fazer prisioneiros e revendê-los aos mercadores europeus (a luta dos fons contra os ioruba não teve outra causa), e os comerciantes árabes se fizeram grandes com-

pradores de carne humana,

não tivesse penetrado como

afirmam

certos

Nessas condições, ainda que o tráfico.

tão longe

no interior do continente(“2)

historiadores,

devia-se

mesmo

assim

en-

contrar nos portos de embarque, São João de Ajuda, São Tomé,

São Paulo de Luanda, etc., pessoas pertencentes às mais diversas

tribos e mesmo

a etnias diferentes.

É em razão disso que os

têrmos pelos quais se designavam no Brasil os africanos importados não podem nos servir para reconstituirmos sua origem étnica, porque, em geral, são têrmos que designam os portos de embar-

que e não as tribos nativas. Em todo caso, uma primeira mistura fazia-se antes mesmo da subida aos navios, mistura que só podia deixar subsistir o que as civilizações originais tinham de comum

e não o que tinham de diferente, de um lado os minas, de outro os bantos ocidentais e do outro enfim os bantos orientais (ou da

“Contra-Costa”).

Os negreiros

operavam

uma

primeira

seleção nesse

gado

humano que vivia nos casebres de tábua, os pés carregados de

pesados

ferros, os ombros marcados

cusavam-se

por ferro em

a comprar indivíduos por lotes.

brasa.

Olhavam

Re-

detida-

mente os dentes, os olhos, os braços e as pernas, os órgãos sexuais para averiguar a fórça dos escravos, sua saúde, seu poder de reprodução, e esta seleção fazia que no navio a heterogeneidade

étnica fôsse ainda mais incitada, uma vez que os lotes se achavam fragmentados em indivíduos. E já, ao menos para os que não morriam durante o caminho, a miséria comum fazia nascer (42)

HERSKOVITS,

The

Myth

of Negro

Past,

cap.

da

Africa,

II, insurge-se

contra

a idéia da importância do centro da Africa no tráfico negreiro. De outro lado, Francis de CASTELNAU na Bahia interrogou os escravos para dar uma

descrição IJ Afrique

geográfica e etnográfica do interior Centrale, Paris, Bertaud, 1851.

Rensetgnements

sur

65

uma outra forma de solidariedade que não a antiga solidariedade tribal ou aldeã, e essa solidariedade, na medida em que as

circunstâncias permitiam, continuou no Brasil. Os negros chama-

vam malungo aquêles que tinham viajado no mesmo navio infernal, no mesmo cubículo imundo, cheio de excrementos, sujo de

urina ou que tinham precisado dançar na coberta sob o látego

de seus guardas.(*º) Tudo isso culturas nativas. Chegados enfim ao Brasil barracos (o de Vallongo no Rio à boa vontade dos compradores. dores, movidos apenas por seus

os maridos das mulheres,

deveria

também

desagregar

as

os negros deviam esperar nos tornou-se tristemente célebre) Naturalmente, êsses comprainterêsses egoístas, separavam

os filhos de suas mães.

Tomavam

as

“peças” de que necessitavam sem se preocupar com suas solidariedades étnicas, levando apenas em conta o estado de saúde ou de fôrça física de seus futuros escravos. Uma vez que vários navios, vindos de diferentes pontos da África, chegavam mais

ou menos na mesma época com suas cargas já misturadas, podiam

êles comprar e levar para suas fazendas negros minas juntamente com congos, “negros de Guiné” juntamente com angolas. Mas se essa oportunidade não se apresentasse, o plantador ou o proprietário de minas comprava apenas as “peças” necessárias para substituir os mortos ou para aumentar a produção, e, nesse caso, os escravos de uma só etnia iam encontrar, na propriedade para onde eram levados, escravos de outra origem.

Temos testamentos, pa-

péis de família, livros de conta de “fazendeiros” e vemos sempre

estarem, lado a lado, escravos pertencentes a territórios distantes,

a civilizações bem diferentes, o que nos é fácil constatar, pelo me-

nos em geral, pois cada africano leva como nome de família o nome de seu país, João Congo, Joaquim Benguela, Francisco Ibo, Maria Nagô... O fato de tôdas as etnias serem assim niveladas pela escravidão constituía ainda uma outra condição desfavorável à perpetuação das civilizações africanas, em suas originalidades e em suas diferenças. Para melhor compreender esta ação desfavorável precisamos

nos deter mais longamente sôbre êsse ponto para ver até onde se

estendeu esta imensa mistura de povos e de culturas e se ela podia ou não deixar subsistir traços comuns a todos.

Sílvio Romero

colocou a questão da origem dos escravos

importados pelo Brasil e afirmou que quase todos eram bantos;

foi seguido nesse ponto por João Ribeiro e por outros historiado-

(43) KOBTER, Pitoresca, p. 176.

66

Voyages

Pittoresques,

II,

p.

357.

RUGENDAS,

Viagem.

res.(*!)

Depois

dêle, Braz

do Amaral

e Calógeras(*)

amplia-

ram a posição bastante estreita de Sílvio Romero e distinguiram quatro grandes centros de exportação, o de Cacheu e Cabo Verde, o de São Tomé

(Guiné e Camerum),

o de São Paulo de Luanda

(Congo e Angola) e o da Contra-Costa (Moçambique). Mas se

êsses dois autores fizeram obra útil como historiadores, conheciam

mal a Etnografia; suas listas de tribos estão cheias de erros e de confusões. Foi Nina Rodrigues quem, interrogando ao mesmo tempo os últimos africanos importados da Bahia e utilizando o método comparativo lingiiístico bem como o etnográfico, renovou inteiramente o problema,(“º) ao qual Arthur Ramos teria o mé-

rito de dar solução definitiva.(*')

Esse último, em conseqiiência

de pesquisas feitas nas diversas regiões do Brasil, chega ao se-

guinte

América

quadro

de civilizações

Portuguêsa:

que

tiveram

representantes

na

1.

as civilizações sudanesas representadas especialmente pelos ioruba (nagô, ijexá, egbá, ketu, etc.), pelos daomeanos do grupo gêge (ewe, fon...) e pelo grupo fanti-axanti chamado na época colonial mina, enfim pelos grupos menores dos krumans, agni, zema, timini;

2.

as civilizações islamizadas representadas sobretudo pe-

los peuhls,

pelos mandingas,

pelos tapa, bornu, gurunsi; 3.

pelos

haussa

e em

menor

número

as civilizações bantos do grupo angola-congolês repre-

sentadas pelos ambundas de Angola

bangalas, dembos),

(cassangues, bangalas, in-

os congos ou cabindas do estuário do Zaira,

os benguela dos quais Martius cita numerosas tribos escravizadas no Brasil; 4.

por fim as civilizações bantos da Contra-Costa repre-

sentadas pelos moçambiques

(macuas

e angicos).

Como se vê por esta simples enumeração, a África enviou

ao Brasil negros criadores p. e

e agricultores, homens

da floresta e

(44) Sílvio ROMERO, História da Literatura Brasileira, 74, cf. SPIX e MARTIUS, Reise in Brasilien, vol. II,

J.

Ribeiro

são

tanto

mais

indesculpáveis

pois

Os

no

sabiam

que

2.º ed. vol. 1, Sílvio Romero já

na

IV

e

guerra

contra os holandeses, Henrique Dias tinha quatro regimentos de negros, distinguidos segundo suas nações: minas, ardas (daomeanos), angolas e crioulos. a37 (45) Braz do AMARAL, Os Grandes Mercados de Escravos Africanos, pp. «96.

“tes (ã8)

(47)

Nina

RODRIGUES,

Arthur RAMOS,

à Antropologia

Brasileira,

Africanos

Brasil,

caps.

V,

Pp.

Las Poblaciones del Brasil, cap. XII, Introdução

t. I, sobretudo

caps. XI, XII, XIV,

XV,

XVI,

XVII.

67

da savana, portadores de civilizações de casas redondas e de outras de casas retanguláres, de civilizações totêmicas, matrilineares e outras patrilineares, prêtos conhecendo vastos reinados, outros não tendo mais que uma organização tribal, negros islamizados e outros “animistas”, africanos possuidores de sistemas religiosos politeístas e outros sobretudo adoradores de ancestrais

de linhagens.(tº)

Como

essas diversas

civilizações

vindas

de

áreas tão diversas não se destruíram mutuamente pelo simples contato? Não são elas enfraquecidas por seu choque umas contra outras?

Êsses fatôres negativos eram contrabalançados aqui também por outros, positivos. Primeiramente de ordem histórica, (*º)

No comêço todos os escravos vindos da Africa eram chamados “negros de Guiné”, mas não seria preciso tomar esta expressão

ao pé da letra porque no século XVI a Guiné estendia-se do Senegal a Orange. Esses guinés chegados ao Brasil deviam ser autênticos bantos. Não falam as denúncias da Inquisição na

Bahia do “negro de Guiné... filho da raça Angola”?(*º) Entretanto, é provável que nos primeiros anos da colonização a maioria dos escravos procedesse de países situados acima

do equador onde o domínio europeu desde há muito tinha se

implantado e onde o comércio entre brancos e negros já era mais tradicional. Por outro lado, os negros bantos certamente dominaram durante o século XVII, primeiro porque as distâncias

entre o Brasil e Angola eram menores que entre êsse país e as

regiões ao Norte do Congo; em segundo lugar porque mostravam-se excelentes agricultores numa época em dominava a atividade agrícola. Ao negro de Guiné cabeçudo, preguiçoso, acostumando-se dificilmente à cia e ao trabalho”, opunha-se o negro de Angola, que

os bantos que pre“brigão, obediên“revelava

pelos

minas

mais disposição para o trabalho e podia ser facilmente ensinado escravos

sudaneses

antigos”,

substituíram

como

diz

Wãtjen.('!)

progressivamente

Os

os bantos

no

ou

século

X. VIII porque a descoberta de areias auríferas necessitava de no(48) É preciso comparar o quadro das tribos importadas com o das “áreas culturais” da Africa; quer seja o de FROBENIUS, Der Ursprung der Afrikanischken Kulturen, Berlim, 1898. Der Westajrikanische Kulturkreis,

Petermann's

Mitteilungen,

ts. 43-4,

1897-899;

ou

o de Melville

J. HERSKOVITS,

“Soclal History of the Negro”, Handbook of Social Psychology, Clark Univeraity, 1935, p. 214 e segs. ou 0 de H, BAUMANN e D. WESTERMANN, Les

Peuples et para ver &

rasil.

Luiz

de VAfrique, trad. cultural dos povos

fr. que

Payot, 1948, pp. 89-424, forneceram escravos ao

(49) Seguimos nesse parágrafo as ldéias expressas VIANNA Filho, op. cit. mas que são válidas também (50) Denunciações da Bahia, pp. 406, 407, 408,

(51)

66

les Clivilisations heterogeneidade

H, WATJEN,

para & Bahia por para todo o Brasil,

O Domínio Holandês no Brasil, trad. port., pp. 487-B8.

vas levas de trabalhadores justamente quando uma epidemia de

varíola varreu Angola dizimando a população, afastando os traficantes de carne humana. Aliás, se os bantos eram preferidos para a agricultura, os minas o eram para os trabalhos pesados da mineração, “sendo mais fortes e vigorosos”, segundo a ex-

pressão dos brancos da época.

Essa também é a época das guer-

ras entre os ioruba e os fon que fornecem numerosos prisionei-

ros de guerra. No fim do século XVIII e início do século XIX, os daomeanos enviam uma série de embaixadas a Bahia e Lisboa para reclamar o monopólio do comércio negreiro para seu país. Todavia, o tratado de 1815 assinado entre a Inglaterra e Portugal, primeiro passo no caminho da supressão total do tráfico, interditava a exportação ao Brasil de escravos vindos de países situados acima do equador, o que fêz que a partir desta data até 1830, pelo menos teóricamente, os negros importados viessem de Angola, ou ainda, já que faltava mão-de-obra nas novas plantações de café, de Moçambique,

se bem que seus habitan-

tes “rudes” e “bárbaros” fôssem pouco apreciados pelos compradores. (“2) Bem

entendido, êsse esquema

é válido apenas em geral, a

África tôda sempre participou do tráfico.

Mesmo

quando foi

assinado o tratado de 1815 os navios desembarcavam, enganando os barcos de guerra inglêses, lotes de clandestinos vindos do

Daomé

e da Guiné.

Mas como cada século teve ainda assim

sua característica"étnica própria, cada grande grupo, banto, de-

pois mina e de nôvo banto, pôde estabelecer, ao menos em parte, sua civilização no Brasil, antes que a mistura de etnias

tivesse

um efeito por demais desagregador. É óbvio que o tempo podia — no nôvo habitat — corroer as tradições mais enraizadas.

Contudo, o tráfico renovava a cada

instante as fontes de vida, estabelecendo um contato permanente

entre os antigos escravos ou seus filhos e os recém-chegados em

cujas fileiras vinham, com freqiiência, sacerdotes, adivinhos, mé-

dicos-feiticeiros, o que fêz que houvesse durante todo o período escravista um rejuvenescimento dos valôres religiosos exatamente quando êsses valôres tendiam a enfraquecer-se. Estamos mal-informados sôbre as religiões afro-brasileiras dessas épocas longínquas, mas é preciso sem dúvida substituir a idéia de centros de culto (que persistiram ao longo dos séculos até nossos dias, (52) Ver AFFONSO AMARAL, “Os Grandes cial do 1.º Congresso de op. cit. II, pp. 358-65. RETO Filho e H. LIMA,

CLAUDIO, “As Tribos Negras Importadas”, e Braz do Mercados de Escravos”, R. I.. H. G. B., número espeHistória Nacional, pp. 597-655 e pp. 437-96; KOBTER, Rev. R. WALSH, Notices of Brazil, II, p. 331; BARHistória da Polícia, II, pp. 178-79.

69

o que a escravidão não poderia permitir)

pela idéia de uma

proliferação caótica de cultos, ou de fragmentos

nasciam apenas para se extinguirem, os por outros à medida de novas chegadas domblés, os xangôs, os batuques de hoje seitas antigas que mergulham no passado

de culto, que

quais eram substituídos de africanos. Os cannão são os resíduos de do Brasil, mas organi-

zações de data relativamente recente, remontando mais ou menos ou ao fim do século XVIII ou ao comêço do século XIX.

Verger pôde mostrar que a Casa das Minas de São Luís do Maranhão tinha sido provavelmente fundada em 1796 por membros perseguidos da família real do Daomé;(*8) e Nunes Pereira soube por Mãe Andréa que sua “casa” havia sido fundada por “contrabandos”, isto é, por negros trazidos clandestinamente depois de 1815 e que tinham sido libertados quando de sua chegada ao Brasil.('!) Sabemos, de outro lado, que o candomblé de Engenho Velho em Salvador foi fundado por duas sacerdotisas

da família de Xangô, trazidas como escravas para essa cidade no

comêço

do

século

XIX.(º%)

Desta

maneira,

devemo-nos

representar a vida religiosa dos africanos no Brasil como uma série de acontecimentos sem laços orgânicos, de tradições interrompidas e retomadas, mas que mantinham de século em século,

sob formas provavelmente as mais diversas, a mesma fidelidade à mística, ou às místicas africanas. Ao lado dessas causas históricas (a existência de ciclos no

tráfico e a perpétua renovação da mão-de-obra servil) é preciso também fazer intervir, para compreender as sobrevivências religlosas, ou seu desaparecimento, causas mais sociológicas consi-

derando as formas mesmas de escravidão.

Unidos, até o momento

No Sul dos Estados

da expansão da cultura algodoeira, o re-

gime da propriedade era o da pequena ou média propriedade; o senhor não tinha à sua disposição mais que 3 a 4 escravos; por

conseguinte, o processo de “aculturação” pôde ser aí mais intenso.(ºº) No Brasil, havia igualmente um grande número de pequenas propriedades, cada uma com poucos escravos, na cultura

do tabaco por exemplo.

Mas o regime dominante, pelo menos

social e politicamente, foi o da grande plantação que exigia no

mínimo de 60 a 80 escravos para plantar, cortar, moer as canas; (53) à S. Luis PD. “DU. (54) (55) (56) Cf. HOPE FRAZIER,

70

P. VERGER, “Le Culte des Vodouns d'Abomey do Maranhão par ia Mére du Roi Ghézo?”,

Aurait-il été Apporté Les Afro-américains,

Nunes PEREIRA, 4 Casa das Minas, p. 22. *, CARNEIRO, Candomblés da Bahia, p. 31. M. J. HERSKEOVITS, The Myth of the Negro Past, p. 112 e segs. FRANELIN, From Slavery to Freedom, cap. XII, e E. FRANELIN The Negro in the United States, caps. II e III.

mesmo quando a tração animal ou as quedas dágua substituíram a tração humana para virar a mó, o número de escravos dos engenhos

não diminuiu.

Ao

contrário,(*”)

irá, sem cessar, au-

mentando e no século XIX não será raro ver proprietários pos-

suir até mil escravos. É evidente que, nessas condições, as etnias

africanas podiam reagrupar-se, formar de nóvo no seio da casta dos negros e em tórno de seus líderes religiosos uma solidariedade mais restrita. Ninguém contou ainda a história dessas pequenas comunidades. Os brancos não se interessavam senão pela fórça de trabalho de seus negros.

Sabemos, contudo, por certos via-

jantes, que quando numa plantação existia, o que às vêzes acontecia, escravos de sangue real, êsses eram cercados de grande consideração por seus compatriotas e pelas pessoas de côr em

geral; eram

respeitados

apareceram

nesta

e obedecidos.(*!)

Podemos,

pois,

ima-

brancos;

êsses

ginar que pequenos grupos se formavam, que laços de amizade como também de rivalidade se criaram, que figuras de chefes massa

informe

aos

olhos

dos

grupos puderam manter parte de sua herança cultural, enquanto

os chefes, pelo prestígio que usufruíam, puderam impor as formas

culturais de seus países de origem a escravos pertencentes a ou-

tros grupos étnicos. Desta forma se explicaria a preeminéência da civilização daomeana em certas regiões, enquanto em outras é a civilização ioruba que domina e, ainda em outras, é a dos bantos. Às vêzes, entretanto, a solidariedade étnica ia contra o prestígio dos chefes; sabemos que quando escravos preparavam uma revolta ou uma fuga, eram freqiientemente denunciados aos senhores por outros escravos pertencentes a “nações” rivais.

A grande plantação, onde o número de escravos era bastante considerável, para que inter-relações se estabelecessem com

o senhor,

possibilitou,

por

conseguinte,

perpetuação dos valôres africanos.

numa

certa

medida,

a

Mas para que êsses se per-

petuassem era necessário revigorá-los, em na grande corrente da consciência coletiva.

datas determinadas, Marcel Mauss mos-

trou, tratando dos esquimós, a importância do ritmo de dispersão

e de concentração humana na vida religiosa, e Durkheim, focali-

zando os nativos australianos, destacou a importância que reúne os homens numa mesma exaltação mística.

negros das plantações comungaram também

da festa Ora, os

em festas, renova-

ram a fôrça de seus símbolos, de seus valóres, de seus ideais na B Si Fernando de AZEVEDO, Canaviais e Engenhos na Brasil, p. 57. (58) R. WALSH, Notices Of Brazil, II, p. 339. TOLLENARE, nicaes, p. 110.

Política Notas

do

Domi-

71

reunião regular e em datas determinadas ao redor do fogo e ao

som de atabaques.

A primeira razão que levou os senhores a

permitir .aos escravos, ou na tarde de domingo, ou nas dias feria-

dos e “santificados por Nossa Muito Santa Madre Igreja”, diver-

tirem-se “à moda de sua nação” era de ordem puramente econômica; tinham notado que os escravos trabalhavam melhor quando podiam divertir-se livremente de tempos em tempos, e não quando exigiam dêles um trabalho contínuo, um esfôrço sem interrupção, dia após dia. Antonil, que escreveu o que se poderia chamar a Bíblia dos senhores de engenho, recomenda

autorizar os escravos a cantarem e a dançarem em certos dias do

ano, única consolação que têm no seu triste estado, e sem o que se tornam “melancólicos, com pouca vida e saúde”.(*?) Como religioso Antonil exige que estas festas caiam nos dias dos santos patronos da família do senhor ou dos santos patronos

da casta dos escravos

(São Benedito,

ligião e que impedia

os senhores

outra razão menos

Sta. Ifigênia). Mas

fácil de recobrir com

o véu pudico

a acumular

havia

da re-

as festas e os

atabaques: essa era o alto preço dos escravos. A dança parecia-lhes uma técnica de excitação sexual, um incentivo à procriação, e por conseguinte um meio mais econômico de renovar seu investimento humano sem perda de capital. Houve como que uma seleção ou uma orientação do folclore africano pelo branco das danças de origem banto, do tipo samba, côco, batuque, jongo, lundu; o nome varia segundo as regiões, mas é sempre a mes-

ma dança erótica, cujo centro é construído pela escolha do par-

ceiro sexual, escolha que se marca simbólicamente pela umbigada, isto é, o contato dos dois ventres, umbigo contra umbigo.(8º) Por outro lado, diante do modesto altar católico erigido contra o muro da senzala, à luz trêmula das velas os negros podiam dançar impunemente suas danças religiosas tribais. O bran-

co imaginava que êles dançavam em homenagem à Virgem ou aos santos; na realidade, a Virgem e os santos não passavam de disfarces e os passos dos bailados rituais cujo significado escapava aos senhores, traçavam sôbre o chão de terra batida os mitos

dos orixás ou dos voduns...

distâncias, (59) (60)

enchia

ANTONIL, Ver sôbre

a superfície

A música dos tambores abolia as dos

oceanos,

fazia reviver

Cultura e Opulência do Brasil, p. 96. essas danças: A. RAMOS, O Folclore Negro

do

um

Brasil,

pp. 129-58. Luciano GALLET, Estudos de Folclore, p. 61 e segs. É. CARNEIRO, Negros Bantos, pp. 131-45 e 161-65. Manuel DIEGUES Júnior, “Danças Negras no Nordeste”, O Negro no Brasil, pp. 293-302. Oneyda ALVARENGA, Música Popular Brasileira, pp. 130-58. Mário de ANDRADE, “O Samba Rural Paulista”, R.4.M.S.P., XLI. Maynard ARAÚJO, Documentário Folclórico Paulista, pp. 11-3 e 31-3. Câmara CASCUDO, Dicionário do Folclore Brasileiro, etc. Brasileiro, etc.

72

momento a África e permitia, numa exaltação ao mesmo tempo

frenética

e regulada,

consciência coletiva.

a comunhão

dos

homens

numa

mesma

Temos disso a prova no fato das religiões africanas se con-

servarem

principalmente

do Nordeste.

nas

zonas

de plantações

açucareiras

Nas zonas de mineração, com algumas exceções,

essas religiões não sobreviveram; isso porque as condições de escravidão aí eram bem diferentes. O trabalho de mineração era infinitamente mais penoso porque não estava submetido como

o trabalho agrícola ao ritmo das estações: impunha sua tirania

todo ano em remover a areia ou o cascalho, em parar os rios,

em cavar canais de estrangulamento ou de derivação, em lutar contra a montanha provocando o desmoronamento das rochas

sob a forma de cascatas artificiais, em cavar galerias à procura de filões. O roubo de escravos escondiam-nas estarem sujeitos a uma e também nas horas de

pepitas era relativamente fácil, ou os em seus cabelos ou as engoliam, e daí constante vigilância durante o trabalho folga. O negro enfim, em presença de

uma civilização de tipo capitalista, onde aventureiros diante dêle

enriqueciam-se e onde o lucro dominava ostensivamente, mudou sua mentalidade

medidas



para aceitar a do branco; tôda uma

outorga

a liberdade

áquele

que

série de

encontrava

um

diamante grande, dádiva de roupas ou de presentes âqueles cuja produtividade era maior — ajudou essa mudança de mentalidade.(º!) Não sômente alguns negros conseguiram libertar-se, mas ainda tornaram-se proprietários de minas graças a um regime cooperativo de ajuda mútua. É claro que esta ajuda estava confinada aos limites de uma “nação” ou de uma tribo, e mesmo de uma família, o que mostra que a civilização africana não

estava de todo morta, que conservava alguns de seus quadros.(º) Mas êsse desejo de enriquecimento ia de encontro à

(61) Ver sôbre as condições ds escravidão nas minas: W. L. ESCHWEGE, Pluto Brasiliensis. J. LÚCIO DE AZEVEDO, Épocas de Portugal Econômico, pp. 364-65. ANTONIL, op. cit. tôda a 3.º parte. A. de SAINT-HILAIRE, Vovage dans les Provinces de Rio de Janeiro et de Minas Geraes, como também:

von

livro

Voyage

Brasilien. II,

caps.

dans

le

District

6 e 7. M.

M.

de

J. P. OLIVEIRA

des

Dtamants.

E.

LATIF,

45

Minas

os

dois

MARTINS,

BARROS

POHL,

Reise

O Brazil e as Colonias Gerais,

in

Innern

165

e segs.

a

seguir.

Porituguêzas,

p.

R. F. BURTON, Explorations of the Highlands of the Brazil, I, Pp. 270-78. VON SPIX-E. MARTIUS, Viagem gelo Brasil, II, p. 101 e segs. (62) A história de Chico-Rel que chegou a ser proprietário da mina de Palácio Velho e que aí organizou o que se chamou a primeira tentativa de “socialismo cristão”; G. FREYRE, Sobrados e Mucambos, p. 176, é célebre. Chico-Rel, um rei africano que tinha sido feito prisioneiro e reduzido à situação de escravo, conseguiu, com suas economias, libertar seu filho

e

depois

a

si

próprio,

graças

ao

que

ganharam

Libertaram depois tôda sua família, “até a tribo tôda” e acabaram por comprar a liberdade de escravos de outras tribos (provávelmente da mesma etnia) até formar “um verdadeiro Estado no Estado”, com um rei (Chico),

78

manutenção dos valóres religiosos. Podemos dizer o mesmo das zonas de criação, tanto as do pampa no Sul quanto as do sertão do Nordeste. A criação exige a grande propriedade mas não reclama mão-de-obra abundante; os senhores de gado em geral não possuíam mais que alguns negros para vigiar suas grandes

manadas ou para tratar de seus pequenos jardins. Esses prêtos perdidos nas regiões onde dominavam os mestiços de índios não puderam resistir à influência do meio e deixaram-se facilmente contaminar

pela

civilização

ambiente.(º%)

Por

fim,

quando

o

café atingiu o Estado de São Paulo, vindo do Rio pelo Vale do Paraíba, os dias de escravidão já estavam contados; a propaganda abolicionista agitava o país e a resistência do negro, nessa atmos-

fera, devia mudar de caráter, devia passar do plano da resistência

cultural

ao da resistência política,

da fidelidade

à religião da

África à colaboração com os abolicionistas brancos que iam às fazendas para aí preparar a fuga de escravos.(*!) Luiz Gama é o próprio símbolo dessa mudança; sua mãe era uma filha-de-

-santo, talvez mesmo uma ialorixá; êle foi advogado, fundador de

uma loja maçônica e o grande agente negro da supressão do tra-

balho servil.(%) Teremos no curso dêsse trabalho de voltar a esta idéia; existe como que uma espécie de antagonismo entre essas duas soluções ao problema do negro brasileiro, a solução cul-

tural e a solução política; onde triunfou a primeira, a política não teve presença, e onde a segunda prevaleceu, a resistência cultural anterior logo se anulou.

Contudo, nosso quadro da escravidão não está completo porque deixamos de lado um tipo de escravidão particularmente importante para nosso assunto: a escravidão urbana. Tem-se dito frequentemente que o anonimato da cidade, diferente daquele da região rural, enfraquece o contrôle social e, no caso do

contrôle do branco sôbre o negro, possibilita àquele que não

se pertence uma liberdade que êle não usufruiria em outro lugar. Por outro lado, a cidade permite maior concentração de uma

rainha

(sua

segunda

mulher),

um

príncipe

“confraria de Santa Ifigênia” (aquela mesma que belas igrejas de Ouro Prêto, a Igreja do Rosário).

CELOS, História Antiga das Minas Vila Rica, p. 25 e segs.

e

uma

princesa,

construiu uma Ver: Diogo de

e

uma

das mais VASCON-

Gerais, p, 324 e segs. Alciblades DELAMARE,

(63) Ver sôbre as condições da escravidão no sertão: Câmara CASCUDO, “A Escravidão na Evolução Econômica do Rio Grande do Norte”,

Revista

Júnior,

Grande as

PD.

Zonas “

(64) Brancos (65)

74

Nova,

07.

do

cit.

de

R. em

Sul,

Sud

I,

1931.

pp.

L.

VIANNA

52-4;

Louis

criação

BASTIDE S. Paulo,

no

Filho,

pampa:

COUTY,

de

MENUCCI,

e

A.

L'Esclavage

Minas,

Caio

e PF, FERNANDES, pp. 16-105. Precursor

ctt.,

do

pp.

126-32.

SAINT-HILAIRE,

au

PRADO

e

O

0p.

Brésil,

Júnior,

Relações

p.

24,

Por

no

PRADO

do

entre

Brasil,

ao

fim,

Formação

Racials

Abolicionismo

Calo

Viagem

Rio

para

Brasil,

Negros

Lulz

Gama.

e

indivíduos num espaço menor: mesmo se cada família tem pou-

cos escravos, o conjunto dá para tôda a cidade um número considerável de negros. Certos viajantes desembarcando, ao acaso das escalas, em portos brasileiros, falaram de uma “nova Guiné”. E o têrmo não é falso. Essa união de negros urbanos iria permi-

tir o que a escravidão rural sem impedi-la de todo entravou considerâvelmente:

a solidariedade “por nação”, isto é, a recria-

ção das etnias em agrupamento mais ou menos organizados. Primeiro, a cidade conheceu os “negros de ganho”, ou seja escravos que trabalhavam fora da casa do senhor e que aí se encontra-

vam de noite, trazendo seus salários; eram arrendados como empregados domésticos, ou, outras vêzes, fornecia-se-lhes um tabu-

leiro de mercadorias que eram encarregados de vender nas ruas.

Mas, vagabundeando assim todo o dia, êsses negros encontravam

compatriotas, falavam do país de origem, e nos feriados ou nos dias de festa populares reuniam-se em associações de originários

de um mesmo país.(*!)

De outra parte, muitos dêsses “negros de

ganho” eram carregadores que trabalhavam na descarga de mer-

cadorias dos navios, levavam-nas às lojas ou transportavam, da casa do comerciante até às casas dos seus fregueses, caixas diversas, pianos, barricas de vinho, etc. Ésses negros, sobretudo depois

de sua libertação, mas mesmo antes, formavam grupos chamados cantos, comandados por um “capitão”; e com êsses grupos, geralmente de quatro indivíduos, cantavam canções em africano, en-

quanto transportavam suas pesadas cargas. Podemos concluir, visto a diversidade das línguas africanas, que êsses cantos agrupavam o indivíduos segundo suas origens étnicas. Manuel Que-

rino deixou-nos uma boa descrição de alguns de seus rituais. Quando

falecia

o

capitão

tratavam

de

eleger

ou

aclamar

o

Cidade

de

sucessor, que assumia logo a investidura do cargo. Nos cantos do bairro comercial (Bahia), êsse ato revestia-se de certa solenidade à moda africana. Os membros do canto tomavam de empréstimo uma pipa vazia (...), enchiam-na de água do mar, amarravam-na de cordas e por estas enfiavam grosso e comprido caibro. Oito ou doze etíopes, comumente os de musculatura mais possante, suspendiam a pipa e sôbre ela montava o nôvo capitão do canto, tendo em uma das mãos um ramo de arbusto e na outra uma garrafa de aguardente. Todo o canto desfilava em direção ao bairro das Pedreiras, entoando os carregadores monótoma cantilena, em S.

na

(66)

Paulo

Ver

Bahia,

Pítoresco. est, e J.

quadros

no

p.

sôbre

Século

92.

J.

os

“negros

XVIII,

vol.

de

WETHEREL,

ganho”:

II,

p.

Brazil,

87.

TAUNAY, p.

D.

53.

História

PIERSON,

Cf.

RIBEYROLLES,

II, pp. 60-5, e principalmente EXPILLY, B. DEBRET, Viagem Pitoresca, que contém

comentados

sôbre

o negro

artesão.

EWBANE,

da

Brancos

Le Brésil tôda uma

Life in

e

Préêtos

Brasil

tel qu'il série de

Brazil,

p. 946.

75

dialeto ou patuá africano. Na mesma ordem, tornavam ao ponto de partida. O capitão recém-eleito recebia as saudações dos membros

de

com

outros

a

cantos,

e, nessa

garrafa

de

líquido. (87)

ocasião,

aguardente

fazia

deixando

uma

cair

espécie

de

algumas

exorcismo

gôtas

do

Sabe-se que êsse rito que continua até hoje no mundo dos

candomblés

tem um

significado religioso bem

preciso:

nada

se

deve comer ou beber, sem primeiro oferecer às divindades, e os

membros das

seitas afro-brasileiras não esquecem de antes de

beber, por exemplo, lançar à terra algumas gôtas do conteúdo de seus copos. O testemunho de Manuel Querino deixa, pois, entrever, além da solidariedade étnica, uma outra solidariedade mais profunda, a da comunhão na religião ancestral. Os negros de ganho levavam, portanto, ao anoitecer, uma certa quantia aos seus patrões, mas o excedente dessa soma estipulada lhes pertencia; os mais afortunados ou os mais desembaraçados conseguiam assim constituir um pequeno pecúlio com

o qual podiam comprar sua liberdade.

São êsses negros livres

que, mais ainda que os outros, fazem-se os mantenedores das religiões africanas, reunindo os fiéis nas casas humildes, segundo suas respectivas “nações” e ao mesmo tempo ocupando-se com o recrutamento e com a direção da seita. Ora, à medida que nos aproximamos da segunda metade do século XIX, o número de

negros libertados vai aumentando, permitindo ua mais fácil soli-

dificação das crenças africanas no nôvo habitat: 1798: 406 000 mulatos e negros livres; 1 582 000 negros e mulatos escravos (Perdigão Malheiro); 1817: 585 000 mulatos e negros livres; 1 930 000 negros e mulatos

1847:

escravos

1 280 000 mulatos

Ésses

são

(Perdigão

mulatos

escravos

Malheiro);

e negros

(Ewbank).

livres; 3 120 000

os principais fatôres positivos

aos negros, malgrado

o desaparecimento

negros

e

que permitiram

das estruturas

sociais

africanas destruídas pela escravidão, manter ao menos seus valôres religiosos no nôvo habitat.

ae

x

xe

Tôóda metrópole tem determinada política em relação a suas

colônias; essa política pode se chocar com resistências que deve

levar em (67)

6

consideração

Manuel

QUERINO,

e a que Costumes

tenta

adaptar-se,

Africanos

no

Brasil,

quando

pp.

94-6.

não

pode destruí-las; mas esta política constitui um fator operante que em parte determina a orientação da colonização como tam-

bém seus processos estruturais. No Brasil houve não uma, porém

duas políticas,

anulavam,

às vêzes unidas, ora divergentes, cujos efeitos se

se compensavam

ou,

ao

contrário,

se uniam

acumulavam: a política do rei e a política da Igreja.

e se

A Igreja, que defendera com tanta energia a causa dos ame-

ríndios contra os colonos e mesmo contra o próprio govêrno da metrópole, aceitou a escravidão do negro. Ela mesma lucrou com

isso: a propriedade de Santa Cruz que pertencia aos jesuítas compreendia, em 1768, 1 205 escravos; o Convento do Destêrro

na Bahia tinha 400 escravas para 74 freiras; e poder-se-iam multiplicar os exemplos.(8*) Mas, se a Igreja aceitava a escravidão do negro, aceitava-a sômente sob certas condições: se lhe tomava o corpo, dava-lhe em troca uma alma. O senhor branco podia lucrar com a mão-de-obra servil, mas êsse direito estava contrabalançado por deveres correlatos, figurando, em primeiro

lugar, o de cristianização.

O negro, que não tinha sido batizado

na África, antes de sua partida, devia ser obrigatôóriamente evan-

gelizado em sua chegada, aprender as rezas latinas e receber o batismo; devia assistir à missa e tomar os santos sacramentos.

Se esta política tivesse sido seguida, tenderia a fazer desaparecer as religiões africanas; ou, pelo menos, a sincretizá-las

profundamente com o catolicismo. Alguns viajantes estrangeiros afirmam que os brasileiros agiram dessa maneira com seus escravos. Os escravos do Brasil são tratados quase como filhos da família; e há o maior cuidado em batizá-los e instruí-los nos elementos da fé cristã ao menos. Poder-se-ia propor a questão: os escravos ganham ou não infinitamente mais com a troca da sua bárbara liberdade por estas vantagens de instrução e proteção segura. (99)

Entretanto, não podemos nos fiar nesta imagem idílica da escravidão brasileira; ela é desmentida por muitos documentos

oficiais que protestam contra a recusa da extrema-unção aos moribundos, contra o batismo dado pelos senhores sem catequização preparatória, só para obedecerem os regulamentos. De fato, os brancos não se interessavam senão pela fórça física dos negros: era-lhes indiferente a salvação de suas almas. A Igreja não podia, contudo, abandonar totalmente o escra-

vo à sua triste sina e, já que o senhor se mostrava indiferente a por

(68) (69)

J. DORNAS Filho, 4 Escravidão no Brasil, p. 243. John THRUNBELL, 4 Voyage Round World in the Year 1860, citado

J. DORNAS

Filho,

op.

cit.,

p.

244.

77

seus deveres religiosos, é a Igreja constituída que vai substituí-lo. As confrarias dos negros ou dos mulatos, fundadas nos moldes

das confrarias dos brancos, às quais tornaremos mais longamente quando

estudarmos

o catolicismo

do

negro,

correspondem

a

esta política da Igreja em reunir no seu seio e à sombra da Cruz,

os africanos ou seus descendentes que ela procura incorporar, embora mantendo-os distintos, na vasta comunidade religiosa

brasileira.

É no interior dessas confrarias, a de São Benedito

e a do Rosário dos Negros, que se farão a assimilação e o sin-

cretismo religioso. Sômente, êsse sincretismo será um sincretismo

planejado,

se se permite a expressão.

As ordens religiosas, so-

bretudo a dos jesuítas, haviam estabelecido um sistema de evangelização dos índios baseado em dois critérios: a aceitação de

certos valôres nativos, aquêles que não inquietavam a Igreja, que podiam, por conseguinte, ser por ela preservados, com a condição de serem reinterpretados em têrmos cristãos (por exemplo,

as danças

dos

Curumiri,

substituídos por cânticos à Virgem

onde

os cantos

índios

eram

e que serviam de fundo

às

representações teatrais, no gênero dos Mistérios, a fim de fazer penetrar pelos olhos e pelo ouvido, nas almas dos indígenas, os dogmas do catolicismo), e por outro lado, a luta resoluta e tenaz, pela astúcia ou pela fórça, contra os valôres mais radicalmente opostos aos valôres ocidentais (como os pajés).. Uma substituição era feita nos rituais e na mitologia dos tupi: Tupã tornava-se Deus e Jurupari o Diabo.(7º) Ainda que de maneira menos sistematizada, é esta política que vai ser aplicada no seio das confrarias de negros.

Aceitam-se os costumes africanos que podem adaptar-se ao catolicismo, bem entendido os que são reinterpretados e recebem nôvo significado. É o caso, por exemplo, das realezas

nacionais ou das chefias tribais. A tradição africana da sucessão hereditária dos reis é substituída nas confrarias pelo sistema

eletivo. Os reis das confrarias passam a ser eleitos pelos seus membros; isso possibilita mâãior obediência de seus súditos e permite-lhes servir como intermediários entre os senhores brancos e seus escravos, constituindo dêsse modo canais de contrôle

do branco sóbre a dos reis do Congo costumes africanos, interétnicas que se (70)

78

G. FREYRE,

massa das pessoas de côr. Com a coroação de Angola, podiam passar também outros como o das embaixadas, ou o das guerras transformaram nessas confrarias em lutas de

Casa-grande

e Senzala, trad.

fr., pp.

137-52.

pagãos e cristãos, acabando naturalmente com a vitória dos últimos. A questão permanece ainda aberta para se saber em que medida esta política surtiu efeito. Ela certamente adulterou as

religiões africanas, iniciou a obra do sincretismo católico-africa-

no, mas

ajudou também

a conservação

de valóres puramente

africanos. Devemos de início notar que essas confrarias foram sobretudo confrarias de bantos e que os ioruba ou os daomeanos foram menos atingidos. Em segundo lugar, os africanos continuaram a falar suas línguas primitivas e, não obstante o desejo

da Igreja de fazer vir missionários africanas para a evangelização

dos

conhecedores

escravos

das línguas

do Brasil,(7!)

êste

esfôrço não pôde ser tentado mais de uma vez; as confrarias, assim protegidas pela ignorância lingiistica, contra o contrôle

de seus sacerdotes, puderam amiúde servir de refúgio a crenças

muito menos ortodoxas. Não sabemos de onde Diogo de Vasconcellos deduz sua afirmação de que uma das confrarias do

Rosário

era composta

de filhas de Iemanjá,('2)

mas

o que

sa-

bemos é que em tôda parte onde existiram confrarias de negros, a religião africana subsistiu, no Uruguai, na Argentina, no Peru e na Venezuela, e que essas religiões africanas desapareceram nesses países quando a Igreja proibiu as confrarias de se reunir fora da Igreja depois da missa para dançar.(7º)

Quantas vêzes

notamos no Nordeste que essas confrarias de negros são compostas das mesmíssimas pessoas que frequentam o candomblé e aí ocupam importantes cargos hierárquicos. Por conseguinte, a Igreja sem o querer, ajudou a sobrevivência dos cultos africanos. A confraria não era evidentemente o candomblé, mas constituía uma forma de solidariedade racial que podia servir-lhe de núcleo e continuar em candomblé com o cair da noite. O Estado às vêzes investiu contra a Igreja, o que ocorreu quando ela defendia o escravo, e colocou-se ao lado dos proprietários de negros:

(71) Serafim LEITE, História da Companhia de Jesus no Brasil, II, pp. 354-54 (ler todo o capítulo 3 sôbre a assistência religlosa aos escravos negros). (72) Diogo de VASCONCELLOS, Mariana e seus Templos, pp. 89-94, 107. (73) Ver, por exemplo, Vicente ROSSI, Casas de Negros, Rio de la

Plata, 1926. I. PEREDA VALDES, Negros Esclavos y Negros Libres, Montevidéu, 1941. Los Morenos, Ed. Enece, Buenos Aires, 1942; os artigos de Fernando

ROMERO sôbre os negros do Peru. J. PABLO SOJO, “Cofradias Etnoafricanas en Venezuela”, Cultura Universitaria, Caracas, I, 1947. M. ACOSTA SAIGNES, “Las Confradias Coloniales y el Folklore”, ibid., 47, 1955, etc.

79

Se o escravo (ainda que seja cristão) fugir a seu senhor para a Igreja, acoutando-se nela, por se livrar do cativeiro em que está, não será por ela defendido, mas será por fôrça tirado dela. (7t)

Também lutou frequentemente contra os efeitos da miscigenação que, a seu ver, faziam flutuar perigosamente as linhas entre-as-classes sociais, e o fêz, seja proibindo âqueles que viviam em concubinato com negras(7º) de ocupar cargos honoríficos ou funções públicas, seja negando às mulatas o uso de sêdas, de rendas e de jóias.("º) Opondo-se às uniões que arriscavam modificar a estrutura social do país, a metrópole ou seus representantes tomaram medidas a fim de manter ou aumentar as distâncias entre as castas. A política portuguêsa foi, portanto, uma

política essencialmente conservadora da ordem social existente; se ela tomou medidas contra a arbitrariedade de certos senhores

e assim mesmo bastante tardiamente, defendeu bem mais seus privilégios, às vêzes até mesmo em oposição a éles, como nessas

leis suntuárias

sóbre

o trajar das mulatas,

amantes

ricos e mesmo de bispos. Além dessa defesa da dos interêsses dos possuidores de escravos, esta das distâncias sociais entre as “castas”, mais ainda: dados, não sendo ordens, para que não se libertem

de colonos

ordem social, intensificação os conselhos muitos escra-

vos, para que não se aumente abusivamente o número de negros

livres(””) apresentavam também um perigo: o de criar uma consciência de classe na massa de côr e uma consciência de classe revolucionária. Nivelando negros e mulatos, escravos ou livres, num país onde os brancos estavam em minoria, o Estado

arriscava sublevações plantações,

que podiam

terminar

pelo assassinato dos senhores

pelo incêndio das

e talvez mesmo

perda da colônia.

pela

Ora, seu primeiro dever era garantir a segurança da colônia

defendendo a segurança desta minoria de privilegiados. Daí, um outro caráter da política portuguêsa que poderia se resumir na célebre

comêço

fórmula:

do

século

dividir

para

XIX,

reinar.

O

admirávelmente

Conde

definiu

dos

Árcos,

no

esta política:

Batuques olhados pelo Govêrno são uma cousa, e olhados pelos Particulares da Bahia são outra diferentíssima. fstes olham para (74)

Ordenações

Felipinas,

L,

II,

tit,

V.,

n.º

6,

citado

por

F.

MENDES

DE ALMEIDA, “O Folclore nas Ordenações do Reino”, R.AM.S.P., LVI, 1939, p. 31. TAUNAY, História da Cidade de S. Paulo, I, p. 107. (15) P. CALÓGERAS, Formação Histórica do Brasil, p. 36, BUARQUE

DE

HOLLAN DA, » Pp. 934, (16)

VEIGA,

(77)

80

J.

Raizes

ALVARES

Enhemerides Braz

do

do

DE

Brasil,

AMARAL,

Mineiras,

AMARAL,

p. 60, G.

Op.

I, p. cit.,

Resumo

208,

p.

II,

467.

FREYRE,

Sobrados

Chronologico,

p. 293.

p.

e Mucambos,

403.

Ravler

da

os batuques

como para um ato ofensivo

porque querem

empregar

dos direitos dominicais, uns

seus escravos em serviço útil ao domingo

também, e outros porque os querem ter naqueles dias ociosos à sua porta, para assim fazer parada de sua riqueza. O Govêrno, porém, olha para os batuques como para um ato que obriga os negros, insensível e maquinalmente de oito em oito dias, a renovar as idéias de

aversão

recíproca

que

lhes

eram

naturais

desde

que

nasceram,

e que todavia se vão apagando pouco a pouco com a desgraça comum; idéias que podem considerar-se como o Garante mais poderoso da segurança das grandes cidades do Brasil, pois que se uma vez as diferentes Nações da África se esquecerem totalmente da raiva com que a natureza as desuniu, e então os de Agomés vierem a ser irmãos com os Nagôs, os Gêges com os Haussas, os Tapas com os Sentys, e assim os demais; grandíssimo e inevitável perigo desde então assombrará e desolará o Brasil. E quem duvidará que a

desgraça tem poder de fraternizar os desgraçados?

bir

o

único

ato

de

desunião

entre

os

negros

vem

que promover o Govêrno indiretamnete à união não posso ver senão terríveis consequências. (73) "

Ora, pois, proi-

a

entre

ser

o

mesmo

êles, do que

O Conde dos Arcos não se enganara. Houve revoltas de negros, nós o veremos, mas essas revoltas eram sempre revoltas de certas “nações”, não do conjunto de escravos. E elas malograram porque foram conhecidas de antemão graças à traição de outras “nações” rivais. Mas se passarmos da Política à Sociologia, veremos que esta política possibilitou a constituição, a orga-

nização de negros em “nações”, e, por conseguinte, permitiu a perpetuação de suas tradições religiosas ou culturais.

O fator de

desintegração, pela reunião das diversas etnias nas mesmas plantações, ou na cidade nas mesmas casas dos senhores, pelo choque

das civilizações umas contra outras, foi impedido de uma vez por

esta política de registro dos negros em “nações” autônomas, Todavia, o Conde dos Arcos era muito bom cristão para aceitar que esta classificação se fizesse sob o signo das religiões africanas. Quem sabe se êle não acreditava também que os sacerdotes “fetichistas” fôssem os líderes das revoltas contra os brancos cristãos, o que realmente sucedeu? Em todo caso, êle distinguia entre as danças religiosas africanas condenadas e o batuque profano, aceito. Assim fazendo, seguia a tradição que continuou (7B)

é verdade para que

Citado

por Nina

RODRIGUES,

que, quando o rei esta cidade lhe

op. cit., pp. 294-35.

Da

mesma

do Daomé enviou uma embaixada para assegurasse o monopólio da compra

forma

Salvador de seus

escravos, O governador de então escreveu ao rel de Portugal um relatório concluindo pela negativa “porque não convém que um grande número de escravos de uma só nação se reúna nesta caplitanta, poderia resultar perniciosas consequências” (carta do capitão geral da Bahia de 1795, citada por TAUNAY, op. cit., p. 215). Essas duas políticas não eram, aliás, contraditórias; ao contrário, multiplicando as “nações” num mesmo lugar e organizando-as para lutarem entre sí, tinha-se em vista o mesmo resultado: impedir a formação de uma consciência de classe.

81

durante todo o período escravista e que consistiu em proibir a perpetuação dos cultos africanos no Brasil.(”º)

Já numa época em que os “negros de Guiné” eram raros, a

Inquisição, em visita a Pernambuco e à Bahia, preocupou-se com

a questão.

Mais tarde, as Câmaras municipais eram encarrega-

das de fazer inquirições para saber se existiam na região “pessoas

utilizando a feitiçaria, ou que são feiticeiras — curando os ani-

mais, benzendo-os — servindo-se de relíquias diabólicas ou tendo feito um pacto com o Diabo”.(8º) Em todo lugar os arqui-

vos, à medida que revelam suas riquezas, nos pôem em presença de regulamentos contra as reuniões de negros de caráter religioso, ou de perseguições intentadas contra “casas de sorte”, calundus

e associações de jurema, seguidas da prisão de fiéis e de seus sacerdotes.(º!) Mas tudo em vão como reconheceu o conde da Ponte em 1807. A Igreja, permitindo aos negros reunirem-se em confrarias,

está na origem do sincretismo do catolicismo com a região africana mais que na origem da catolização do negro.

O govêrno

por sua vez, estimulando a divisão dos negros em “nações” independentes, está na origem das diferenças culturais entre os africanos

que encontraremos

na nossa pesquisa.

Certo número de conclusões pode pois ser deduzido da análise das condições históricas da implantação da Africa no Brasil. Em primeiro lugar, a escravidão operou uma separação entre as super e as infra-estruturas, sem darmos a êsses têrmos um sentido marxista. As estruturas sociais africanas foram destruídas, os valôres conservados; mas êsses valôres não poderiam

subsistir se não se formassem novos quadros sociais, se não se criassem instituições originais que os encarnassem e os permitissem sobreviver, perpetuar-se e passar de uma geração a outra. Isto significa que as superestruturas tiveram que produzir uma sociedade.

O movimento

não é mais um

movimento

de baixo

para cima, que sobe progressivamente da base morfológica para o mundo

dos símbolos

e das representações coletivas, mas um

movimento inverso, de cima para baixo, dêsses valôres e dessas que

que

(79) Por exemplo, essas danças das as

dos

brancos;

no fim do século XVIII, o “nações” sejam conservadas;

mas

condenava

ao

mesmo

Conde de Pevoli pede não são mais imorais

tempo

as

danças

“feitas

às escondidas nas casas ou nos campos com uma amante negra, um eltar cheio de ídolos, onde ae adora bodes vivos e outros feitos de barro, untados com diversos óleos ou com sangue de galo”. (80) Segunda Ordenações Felipinas, LIV, tit. LXXX, VIII, n.os 7 e 8;e MENDES DE ALMEIDA, 07. cit, p. 58. (81)

82

Ver

mais

adiante

o

nosso

Capítulo

VI.

representações

modelos

também

coletivas para

africanos puderam

exerceram

as instituições e os grupos.

Os

influenciar esta reestruturação, mas

influência os modelos

europeus

impostos,

como as confrarias ou as associações de danças dos negros em “nações”.

Em segundo lugar, quer-nos parecer que os fatóres negati-

vos da escravidão agiram sobretudo em certos setores da socie-

dade, nas zonas rurais e mais ainda nas zonas de pastoreio ou de mineração —

enquanto os fatóres positivos, de ordem demo-

gráfica ou institucional, atuaram principalmente nas zonas urbanas.

Daí, a consegiência, que constataremos várias vêzes, que

as religiões africanas são mais fiéis, mais puras e mais ricas nas

grandes cidades que nas regiões rurais. Ao contrário do que em geral ocorre(*2) com as resistências religiosas ou folclóricas, no Brasil é a grande cidade o museu das tradições arcaicas.

(82)

PARK

e

BURGESS,

The

City,

pp.

130-41.

63

CAPÍTULO

II

Os Novos Quadros Sociais das Religiões Afro-brasileiras Apesar das condições adversas da escravidão, misturando as

etnias, fragmentando

as estruturas sociais nativas, impondo

aos

negros nôvo ritmo de trabalho e novas condições de vida, as reli-

giões transportadas do outro lado do Atlântico não estão mortas, Vieira exprimia bem esta oposição entre a sociedade, dominada e regulada pelas normas portuguêsas, e as civilizações, vindas da África, escrevendo que o Brasil “tem o corpo (europeu) na Amé-

rica e a alma na Africa”.

Mas

as crenças que permanecem

confinadas no segrêdo dos corações, que não se exprimem em ritos e cerimônias, nem tomam formas coletivas de organização,

estão fatalmente condenadas à morte.

A religião, ou as religiões

afro-brasileiras foram obrigadas a procurar nas estruturas sociais

que lhes eram impostas “nichos” por assim dizer, onde pudessem se integrar e se desenvolver. Deviam se adaptar a nôvo meio humano, e esta adaptação não iria se processar sem profundas

transformações da própria vida religiosa. Tornava-se necessário encontrar entre as superestruturas — outrora em conexão com a família, com a aldeia, com a tribo — e as novas infra-estruturas — a grande plantação ou o centro urbano, a escravidão e a sociedade de castas hierarquizadas dominada pelos senhores brancos — laços ignorados, formas de passagem inéditas,

encarnando-se no corpo social e a êste, por sua vez, deixar-se penetrar por êsses valôres diferentes, como modelos ou normas. As religiões africanas que podiam teôricamente implantar-se no Brasil eram transportadas.

de ordem

tão numerosas

Entretanto,

geral,

a de que

pode-se

tôdas

quanto as etnias para aqui aqui

fazer

uma

essas religiões,

observação

sem

exceção,

estavam estreitamente ligadas às famílias, às linhagens ou aos

clãs. Os bantos de Moçambique cultuam .os ancestrais familiares e é o pai de família que exerce o sacerdócio; isoladamente, os ancestrais do chefe são objeto de culto por parte de todos os 85

membros da tribo e servem e o Deus supremo, deus do passados domina também a dos negros de Angola, onde

de intermediários entre os homens céu ou da chuva. O culto dos antereligião, mais rica e mais complexa, as mulheres são possuídas, durante

as cerimônias, pelos mortos de suas famílias.

No Congo, o ani-

mismo é certamente mais desenvolvido; há tôda uma mitologia

com um deus celeste, uma deusa terra, mas esta mitologia está ligada “domêsticamente” às grandes famílias reais, os deuses sendo considerados os fundadores das dinastias reinantes; e, para-

lelamente, entre as outras famílias, o lugar preponderante cabe Quanto

ao culto dos ancestrais.(1)

e daomeanos,

iorubas

aos

apresentam uma dupla religião, rural e urbana, que Frobenius definiu muito bem em sua Mitologia da Atlântida: A idéia fundamental

segundo

a qual todo homem

do sistema religioso ioruba é a concepção descende de uma

divindade

(...)

Todos

os membros de uma família descendem da mesma divindade (...) É inteiramente indiferente que esta divindade seja ao mesmo tempo o deus das tempestades ou da forja, de um rio, da terra, do céu, ou o deus de uma fôrça ou de uma atividade. Cada deus tem descendência e face a esta, tem o poder de nela ge perpetuar através de filhos. Mas, numa segunda perspectiva (...) cada Deus tem uma função determinada que lhe é própria. Temos, por exemplo, o deus das tempestades que se preocupa em assegurar chuvas fecundas à terra. Temos o deus do ferro que fornece o metal para a forja (...) Se a chuva faltar em algum lugar, tôda a população interessada

invoca

em

comum

o

deus

das

chuvas,

qualquer

que

seja o orixá que cada família descende. Se uma guerra sobrevir, tôda a comunidade invoca o deus do ferro (que é também o deus do destino das guerras) qualquer que seja o deus de que descende cada pai de família (...) Conseqiientemente, é preciso que cada propriedade possua um altar do deus familiar onde o serviço seja assegurado por um intermediário ou um preposto, um sacerdote familiar. E, em segundo lugar, cada comunidade urbana tem necessidade, para que cada grande deus possa agir bem ou mal sôbre ela própria, de um templo, de um santuário onde as grandes festas, as cerimônias sejam celebradas por um grão-sacerdote ligado O membro celebrante da família chama-se (...) a cada deus Aboxá, o sacerdote da comunidade, Ajê.(2)

No momento não nos interessa saber como essas duas religiões, que se dirigem às mesmas divindades, se coordenam, nem como puderam passar de uma para a outra; não reteremos a não (1) A bibliografia das religiões africanas é demasiado ampla para que possamos citá-la. Indicamos simplesmente para os bantos H, BAUMANN e D. WESTERDANN, Les Peuples et les Civilisations de V'Ajrique, pp. 123-250, e

en

para

86

os

Afrique (2) L.

negros

da

antiga

Occidentale. FROBENIUS,

Costa

dos

Mythologie

Escravos,

de

G,

VAtlantide,

PARRINDER,

pp.

122-23.

La

Religion

ser esta idéia: os deuses do ioruba e os voduns daomeanos dirigem departamentos da natureza, com sacerdotes especiais e confrarias de iniciados que os servem, em benefício de tôda a comunidade e, ao mesmo

tempo,

cada deus dirige uma

família, da

qual é o ancestral e que lhe rende culto, transmitido em linha

masculina.

Ora, como dissemos no capítulo anterior, a escravidão se-

parava a mãe dos filhos, o marido da mulher,(º) dispersava nas regiões mais afastadas do Brasil os membros de uma mesma

linha ou de um mesmo clã, que poderiam ser escravizados em

conjunto.(t)

mente unida

Como,

nessas condições,

à vida doméstica,

uma

aos manes

religião tão estreita-

dos ancestrais, reais

ou lendários, totêmicos ou não, onde o sacerdócio era o privilégio do patriarca, podia resistir a tal transformação? Todavia, devemos distinguir os negros da Africa ocidental dos bantos, em relação aos efeitos dessa mudança

de estrutura.

Os bantos

não podiam achar solução para o desaparecimento de um culto

quase que únicamente centrado na adoração dos mortos, a não ser por vias indiretas que, na realidade, parece terem sido tomadas

simultâneamente, segundo o testemunho dos viajantes ou dos cronistas da época da escravidão. A primeira solução estava em que podiam se prender à idéia de que a alma depois da morte retorna ao país dos antepassados, ou para as reencarnar nos sêres livres, ou para aumentar o grupo de ancestrais deificados,

dessa forma recebendo um culto que era impossível no Brasil. Esta era a solução de membros de famílias arrancados de seus grupos e não de grupos escravizados por inteiro. Ela impeliu

frequentemente os escravos à morte para assim encontrarem mais

depressa o Paraíso dos ancestrais.(º) A segunda solução era reinterpretar as outras religiões do Brasil, a religião indígena, a

religião católica, e mesmo a religião de outras etnias africanas em têrmos do culto dos mortos. Esta segunda solução era relativamente fácil no que diz respeito às religiões ameríndias, porque

na

(3)

KOSTER,

História

Notas

(4)

Mulheres

Exemplo:

32 mulatos, angolas, 1 daomeanos, 1 calabar, designação. PP.

163-64,

pp.

Pittoresques,

Estudos

79,

139.

e Costumes,

no

engenho

citado

por

Ajro-brasileiros,

pp,

Numerosos

385-96.

Freguezia,

A.

BRANDÃO,

pp.

exemplos

contam-se

55-91;

em

“Os

Negros

TOLLENARE,

citados

1811:

por

13

Ch.

criculos,

16 africanos sem outra designação, 7 deomeanos, 3 nagôs, 2 mina. Em 1832: 15 crioulos, 13 mulatos, 9 cabras, 4 haussa, 4 1 mina, 1 mendobl. Em 1853: 102 nagôs, 15 crioulos, 14 heussa, 1 moçambique, 3 cabindas, 1 mulato, 27 africanos sem outra VANDERLEY PINHO, História de um Engenho do Recôncavo,

Sóbre

2

Voyages

Alagoas”,

Dominicaes,

EXPILLY,

Pp.

de

esta

primeira

solução,

ver d'ASSIER,

Le Brésil

Contemporain,

-B.

87

os pajés faziam falar os mortos com seus maracás e as índias entravam

em

imediatamente

transe,(º)

o que

explica

a acei-

tação imediata da pajelança ou do catimbó pelos bantos.(”) Essa solução era já mais difícil no que diz respeito às religiões ioruba ou daomeana que se dirigiam menos aos ancestrais prôpriamente falando que às divindades, mas ainda assim êsses cultos

transformavam em deuses reis ou heróis que viveram na terra, divinizando-os após sua morte, dando ao transe papel central em seus rituais, coisas essas que podiam ajudar os bantos da costa do Atlântico a redefinir suas religiões em têrmos ioruba. As “nações” congo ou angola, de fato copiaram amiúde, mudando

apenas os nomes das divindades (substituindo Oxalá por Zumbi,

Exu por Bonbongira, etc.), os candomblés dos negros ocidentais. O catolicismo, ao contrário, proibia ou, em todo caso,

desconfiava das crises extáticas; as confrarias religiosas da Virgem do Rosário ou de São Benedito ofereciam aos bantos, apesar de tudo, uma concepção de “intermediários” que podia se adaptar à sua própria; de um lado, a idéia de que os santos e Deus, identificava-se em

eram os intercessores entre o homem

seu pensamento com a própria idéia de que eram os ancestrais estavam

que

encarregados

de levar seus pedidos

a Zumbi

ou

divindade do céu, isso tanto mais fácilmente pois que

Zambi,

a Virgem e os santos viveram na terra antes de alcançarem a glória de Deus. Em segundo lugar, a existência de Virgens ne-

gras, de santos prêtos podia fazê-los pensar que êsses “negros”

católicos verdade,

nais.

outras

tivessem

ancestrais

sido

ancestrais

familiares, mas,

de

suas

raças,

ao menos,

não

mais,

é

ancestrais nacio-

Dessa maneira, os bantos foram mais permeáveis que as etnias

africanas

à aceitação

de confrarias.

Mais

tarde,

porém, no fim do século XIX, quando o espiritismo se desen-

volverá no Brasil, com os fenômenos de mediunidade e de incorporação dos mortos, é êle que fornecerá a melhor solução aos

últimos bantos importados, ou aos seus descendentes, para reinterpretar em têrmos europeus a religião de seus pais. Quanto aos ioruba e daomeanos, a questão se colocava de forma diferente, já que a religião aí se apresentava sob um aspecto dualista, religião ao mesmo tempo de linhagem e de comunidade. A primeira veio a desaparecer. O número de mulheres escravas era bastante inferior ao número de homens escravos (6) (7)

88

P. NÓBREGA, Cartas do Ver a 2.º parte, cap. I.

Brasil,

1549-1560,

pp.

99-100.

que

para

uniões

se produzir;(?*)

pudessem

estáveis

a mesma

mulher dormia ao acaso de seus caprichos ora com um macho,

ora com outro, e mesmo que êsses homens fôssem da mesma a mulher

etnia, ioruba ou daomeana,

quando

tinha filhos não

podia saber quem era o pai. Este fato não. teria nenhuma importância se os orixás ou voduns fôssem herdados em linha feminina, mas

sendo

transmitidos,

como

o dissemos,

em linha

masculina, a ignorância da paternidade impedia o culto domés-

Consegiientemente, sob a influência do catolicismo, o casa-

tico.

mento religioso abençoado pelo capelão, aceito ou patrocinado

pelo senhor branco, substituiu esta espécie de vasta prostituição

primitiva.(?) Mas, segundo Couty, a tentativa malogrou; os senhores encerravam as móças para protegê-las da lascívia dos

machos; mas,

essas, uma vez casadas, envenenavam

fregiiente-

mente seus maridos, preparando-lhes guloseimas com ervas fornecidas por seus feiticeiros, para poderem casar com outros companheiros; as mortes de escravos casados tornavam-se mesmo tão usuais que se precisou proibir às viúvas em quase tôódas as grandes propriedades, casarem-se de nóvo; finalmente, acrescenta Couty, cessaram as preocupações com a moral, “ficando os dois sexos à vontade para se misturarem durante duas ou três horas cada noite”.(1º)

O mesmo

ocorria nas cidades, enquanto

os senhores dormiam, os escravos saíam das casas para encon-

trarem-se na escuridão da rua ou nas praias desertas.(!!) Nessas

condições,

mesmo

depois

da

obrigatoriedade

do

casamento,

a

ligação orixá-linhagem masculina estava definitivamente rompi-

da. Em compensação, o segundo aspecto da religião ioruba-daomeana, o culto dos deuses da natureza em benefício da co-

munidade, por sarcedotes urbanos rodeados por uma confraria de iniciados era agora possível no quadro das “nações”, recons-

tituídas pelo govêrno português, depois pelo brasileiro, a fim de evitar, exaltando as rivalidades interétnicas, a formação de uma consciência de classe e a revolta geral dos negros contra os bran-

cos. As condições de vida impostas às etnias africanas ocidentais levaram, por conseguinte, a uma cisão em sua religião, segun-

do divergência já verificada na Africa, entre os seus dois aspec(8)

G.

FREYRE,

op.

cit.

p.

6ll.

Alexander

CALDELEUCH,

Travels

in

South America, I, p. 25% KOSTER, op. cit. I, p. 202; DEBRET, em sus Voyages Pittoresques, dá uma

mentos,

vol.

III,

gravura

15.

excelente gravura representando

um

dêsses casa-

(9) H. KOSTER, Voyages Pittoresques, II, p. 347, e sôbre a tendência em casar mulatos escravos com pessoas mais escuras para impedir a passagem da inha de côr, p. 372; TAUNAY, História do Café, IV, cap. 63, e VII, p. 174. (10) L. COUTY, L'Esclavage au Brésil, pp. 74-5. (11) Ch. EXPILLY, Le Brésil tel qu'il est, cap. VI; KOSTER, Op. cit., I, p. 23; V. COARACY, O Rio de Janeiro no Século XVIII, p. 201.

89

tos, o doméstico

e o nacional, preservando apenas

o último,

que achou nas organizações dos cantos, das nações, das reuniões

de dança, dos batuques, os “nichos” apropriados, como os cha-

mamos,

onde pôde se ocultar e sobreviver.(12)

Mas como se operou a relação entre essas infra-estruturas brasileiras — confrarias e nações, criadas pelo branco e em seu

proveito —

e as superestruturas, valóres e representações coleti-

vas de origem africana? Não dispomos infelizmente de documentos históricos que possam nos fornecer a solução dêsse problema:

não poderemos resolvê-lo a não ser indiretamente, mais tarde, ao estudarmos a organização social dos candomblés. Contentar-nos-emos, no momento, com duas observações fundamentais.

Na Africa, cada divindade, seja Xangô, Omolu ou Oxum, tem seus sarcedotes especializados, suas confrarias, seus conventos, seus locais de culto. No Brasil, mesmo nas cidades “negras” do litoral, era impossível para cada “nação”, bem menos nume-

rosa, reencontrar e reviver esta especialização. As seitas vão, pois, tornar-se reduzida imagem da totalidade do país perdido; quer dizer, cada candomblé terá, sob a autoridade de um único sacerdote, o dever de render homenagens

a tôódas as divindades

ao mesmo tempo e sem exceção. Em lugar de confrarias especializadas, uma para Oxum, outra para Xangô e outra para Omolu,

teremos

tâneamente

apenas uma

as filhas de Oxum,

conseguinte, temos

primeira observação. Por

confraria,

outro

compreendendo

as filhas de Xangô,

a concentração da África na seita.

lado,

quando

as seitas

africanas

foram

etc.

simul-

Por

Esta, a criadas

pelos negros livres, os ancestrais familiares aí puderam se introduzir, ao lado das divindades da natureza. Isto foi o que se passou,

com

por exemplo,

na Casa

das Minas.

efeito, três “famílias” de deuses:

Nela são adoradas,

a família de Dã, ou Dan-

birá, isto é, da varíola; a família de Keviosó, isto é, do raio; por fim, a família de Davisé ou Dahomé, isto é, os ancestrais da

família real do Daomé, da qual os fundadores da “casa” eram

membros.

Temos,

a familiar

e a nacional,

ligação numa

antepassados do

(12) ponto

“The

portanto, um

“nação”

tornaram-se

Soclal

Organization p.

521,

e,

of

do

chamam de “enculturação”, Bahia, Brazil”, Amer. Sociol.

90

sobreviveram

ocasionou uma

iguais

O fenômeno da cisão entre de vista da organização dos

Americanistas,

caso em

the

aos

por E. Review,

conjunto.

evolução

voduns

Mas

das crenças,

tomando

sua

os

teológi-

as duas religiões foi bem observado, candomblés, por M. J. HERSKOVITS,

Candomblé”,

ponto

em

que as duas religiões,

de

vista

Anais do

Fr. FRAZIER, VII, 4, p. 471.

do

que

XXXI

os

“The

Congresso

de

norte-americanos

Negro

Family

in

camente

suas

formas,

lugar aos mesmos novas

obedecendo

aos

transes extáticos.(!S)

infra-estruturas

sobrepuseram-se

mesmos

rituais,

dando

Isto significa que as

às superestruturas

e só

se deixaram contaminar por elas na medida que puderam mo-

delá-las segundo seus padrões.

Mas, para compreender essas “nações”, essas confrarias, é preciso recolocá-los na época, caracterizada pela monocultura, pela grande propriedade. Tem-se dito e repetido frequentemente

êsses batuques ou sociedade total da escravidão e pela que a escravidão

brasileira era infinitamente mais amena que a escravidão anglo-saxônica ou francesa. Os viajantes inglêses ou americanos, que

tinham conhecido a sorte trágica dos trabalhadores de seus países no início da industrialização, não deixaram de observar que a situação dos escravos, que ao menos tinham o futuro assegu-

rado,

que

eram

tratados

quando

estavam

doentes,

ajudados

quando velhos ou fracos, era bem superior à situação dos operários europeus ou norte-americanos;(1!) Saint-Hilaire, por sua vez, comparando a vida dos escravos rurais com a dos campone-

ses franceses, declara que os primeiros são mais felizes que os segundos. (15) Não contestaremos êsses testemunhos que são to-

dos concordantes.

Exceto talvez os depoimentos

dos viajantes

alemães que gostavam, em geral, de acentuar os casos de tortu-

ras infligidas aos negros pelos brancos, ou casos de assassinatos

de brancos por seus escravos; mas, percebe-se que suas narrativas

obedecem a uma política de desencorajar compatriotas para o Brasil. (1º)

(13) Sôbre essas três famílias Nunes PEREIRA, 4 Casa das Minas,

The

Negro

in

Northern

Brazil,

op.

cit., p.

14. H.

p.

H.

pp.

a imigração

de seus

e sua semelhança teológica atual, ver pp. 31-2. Octavio da COSTA EDUARDO,

76-80.

P.

VERGER,

op.

cit.

pp.

159-60.

(14) A. MAJORIBANES, North and South America, Londres, 1854, p. 73. A. R. WALLACE, 4 Narrative of Travels on the Amazon and Rio Negro, p. 120. Hamlet CLARK, Letters Home from Spain, Algeria and Brazil, p. 160. 8. W. H. WEBOTER, Narrative of a Voyage of the South Atlantic Ocean, p. 45.

GARDNER,

Charles

DENT,

4

Year

in

Brazil,

p, 28. Franck

BENNET, Forty Years in Brazil, p. 111. J. W. WELLS, Three Thousand Miles through Brazil, II, p. 187. (15) SAINT-HILAIRE, Voyage dans les Proviíinces de Rio de Janeiro et de Minas Geraes, cap. IV. Os testemunhos de outros viajantes franceses concordam com o seu: COUTY, L'Esclavage au Brésil, pp. 3-9. Ferdinand

DENIS,

que no que os obstante

sôbre

Brésil,

142.

KOSTER,

Voyages

Pittoresques,

acentua

mesmo

Brasil os escravos dos estrangeiros são tratados mais rudemente dos senhores brasileiros, p. 3ll. RIBEYROLLES, op. cit. não seu antiescravismo, Teconhecia a superioridade da sorte do escravo

a do operário europeu. Ida PFEIFFER, Voyage Autour du Monde, p. 18. (16) Por exemplo, Avé-LALLEMANT ou o autor anônimo de Brasilia-

nische Zustande. Mas é preciso notar também que outros viajantes acentuaram a rTelativa brandura da escravidão brasileira, como MARTIUS, J. EMANNUEL POHL ou RUGENDAS.

alemães SPIX e

91

Entretanto, se não contestamos êsses testemunhos, devemos fazer um certo número de observações que limitam sua importância. A sorte dos escravos variava segundo as regiões; era melhor,

por exemplo, no Rio ou na Bahia que no Maranhão ou no Pará.(!') Variava também conforme as categorias de escravos:

era menos severa para o vaqueiro que para o trabalhador das charqueadas, (18) para o empregado

balhador rural,(1º)

Todos

doméstico

êsses testemunhos

mente do início do século XIX,

que para o tra-

datam

principal-

época em que o tráfico negreiro

começa a ser limitado, prenunciando o seu desaparecimento total. Isto fêz com que o preço dos escravos aumentasse bastante. (2º)

Os senhores, percebendo que se tornaria no futuro cada vez mais difícil renovar seu investimento humano, compreenderam que cada trabalhador constituía precioso capital; apressaram-se a tomar medidas adequadas à conservação da saúde e da vida de seus escravos, a melhorar sua alimentação, a construir hospitais em suas fazendas, fazendo vir “cirurgiões”, a conceder dias de repouso às mulheres parturientes ou às jovens mães durante o

período de lactação, enfim, a regular o trabalho nos campos de

maneira a não demandar em excesso esforços físicos de seus negros.(*!) Pensamos que é preciso investigar a moderação da escravidão muito mais nessas razões econômicas que em motivos raciais, como a indolência dos brasileiros,(22) ou em motivos religiosos,

como

a influência

do catolicismo.(?º)

Há na obra de Gilberto Freyre contradição evidente entre

sua afirmação da brandura da escravidão e sua idéia de que a escravidão desenvolveu nos brancos brasileiros o gôsto do sadis-

mo.(?*) De fato, êsse sadismo não se teria desenvolvido se não houvesse prazer em ver açoitar os negros, em pôr-lhes máscaras de ferro,

em

colocá-los

nos

troncos,

em

cortar

as orelhas

dos

fugitivos capturados. Arthur Ramos consagrou todo um capítulo

de um de seus livros à descrição minuciosa dos instrumentos de (17)

SAINT-HILAIRE,

(18) (19) (20)

SAINT-HILAIRE, Viagem ao Rio Grande COUTY, op. cit., pp. 83-4. O lucro sôbre a venda de escravos que

KOSTER, op. cit., II, p. 399. então

para

200

e

300%.

J.

Voyage

DORNAS

aur

Sources

Filho,

4

du

Rio San do era

Escravidão

Sul, de

no

Francisco, p.

87...

20

a

Brasil,

30% p.

p. 110.

subiu

63,

em

Dr ,1) TAUNAY, História do Café no Brasil, vol. II, caps. 62-69, vol. VI, caps. 9, 10, vol. VIII, cap. 17. (22) Essa é a opinião, por exemplo, de M. GARDNER em sua Viagem no Brasil, p. 12. (23) Essa é também a opinião de CASTELNAU, citado por TAUNAY, No Brasil de 1840, p. 311. D'ASSIJER viu bem a causa econômica da mudança de política dos senhores brancos (Le Brésil Contemporain, p. 160). (24) G. FREYRE, op. cit., entre a p. 301 (cf. Interpretação do Brasil, PP. 108-18) e as pp. 76-68.

92

tortura utilizados

no Brasil.(2º)

Quando

as idéias abolicionis-

tas começaram a se desenvolver na classe dos “bacharéis” e dos

“doutôres”, os ricos proprietários precisaram naturalmente tomar precauções para não proporcionar contra si mesmos armas

aos seus piores adversários; fizeram inclusive passar de suas mãos às dos agentes do Estado, policiais ou soldados, a execução de castigos,

privando-se

assim

de alguns

de

seus

direitos.(2º)

A

Igreja Católica, por seu lado, que permanecera muito tempo indiferente à sorte dos africanos, tomou

certo número

de medidas

a favor dessa classe, tais como a libertação de escravos pelas confrarias do Rosário, o direito do branço de comprar o escravo que lhe pedisse asilo de seu antigo senhor, que não podia opor-se a essa transferência de propriedade, etc.(2”) Todavia, tôdas essas medidas que melhoraram certamente

ou mitigaram a sorte dos escravos não devem nos iludir, A es-

cravidão moderna não é como a escravidão antiga,(2º) ela não se fundamenta, como a última, na integração do homem em uma família, mas na exploração econômica de uma raça por outra, €

no lucro; em outras palavras, poderíamos dizer que o indivíduo

na escravidão moderna é como um assalariado de uma nova lei

de fome. A escravidão pela sua própria natureza impunha insensibilidade ao senhor. Os mesmos viajantes que acentuam a relativa brandura da escravidão no Brasil, observam paradoxalmente êsse fato; que o suicídio de negros, os assassinatos e as rivalidades raciais encontram-se em maior número nas propriedades

dos senhores “bons” que nas dos outros.(2º?)

Na verdade, não

se podia dirigir um grupo de às vêzes várias centenas de escravos

sem

uma

vontade

de ferro.

Observa-o

Fernando

de Azevedo,

com muita precisão, baseando-se ao mesmo tempo na opinião de Max Weber e nos dados da história do Brasil.

(25) Arthur RAMOS, 4 Aáculturação Negra no Brasil, pp, 103-14. Sôbre os castigos infligidos aos escravos no Brasil, ver também d'ASSIER, op. cit.,

p.

96.

N.

Curtas

do

Deuzr

SANT'ANA,

Solitário,

Années

au

São

p.

Brésil,

154.

Paulo

p.

Histórico,

Ferdinand 180.

II,

DENIS,

Vivaldo

pp.

op.

CORACY,

185-92.

cit. O

p.

Tavares

Rio

146. de

F,

BASTOS,

BIARD,

Janeiro

no

Século XVIII, p. 204, nos diz que em 1688 o rei de Portugal tomou medidas contra a barbárie dos senhores, mas depois que os escravos tomaram conhecimento das ordens do rei, houve uma série de rebeliões e, a pedido do governador,

ag

recomendações

reais

precisaram

ser

revogadas.

Encontrar-se-á

a coleção de leis sôbre a pena a ser infligida aos negros na Collecção das Leis do Imperio do Brasil de 1835, Rio, 1864, I, p. 5 e segs. Os anúncios de negros fugitivos dos jornais indicam frequentemente, como meio de reconhecê-los, cicatrizes deixadas por êsses diversos castigos. P.

(26) (27)

(28) o,

PP.

GARDNER, op. Cit, P: 14. SPIX 6 MARTIUS, Traveis tn Brazil, 1, EKOSTER, op. cit. pp. 337-40. A. RAMOS, op. cit. p. 121.

A. COMTE, ours 'de Philosophie Positive, t. V, 53,4 “Lição, pp. 99-103. COUTY, op. cit., p. 78. TSCHUDI, Retse Duroh Sud-Amerika, II,

-

98

Certamente,

(...)

pudesse

para

que

sustentar-se

a

e

economia

patriarcal

desenvolver-se,

tinha

da

Casa-grande

de

manter

na

submissão servil, por uma disciplina de ferro, bugres e africanos que constituíam dois terços e, mais tarde, a metade da população. Era uma luta de sobrevivência e de domínio. A “Casagrande” não teria sido, no caos da sociedade colonial, êsse instrumento disciplinador da ordem, êsse poderoso elemento que foi, de aglutinação, essa

fôrça

centrípeta

que

reagrupa

e retém,

sem

êsse

esfôrço

tre-

mendo que ia até a crueldade, para solidificar a armadura do sistema, constantemente ameaçado pelas tropelias dos silvícolas e pelos tumultos nas senzalas. (80)

Os sofrimentos que os meninos brancos infligiam aos preti-

nhos sujeitos a seus caprichos, os ciúmes das mulheres brancas

contra as amantes negras de seus maridos das quais rasgavam os olhos, ou arrebentavam os dentes a golpes de martelo, não têm para nossa matéria senão um interêsse anedótico.(*!) O

importante é que o escravo se ressentiu da exploração sistemá-

tica, brutal, interessada, contínua da qual era o objeto e a vítima. E não é sem razão, de fato, que um célebre provérbio faz do

Brasil “o inferno do negro, o purgatório do branco e o paraíso do mulato”. O mulato livre e sobretudo a mulata voluptuosa bem podiam encontrar aqui um paraíso, o escravo negro apenas encontrando um inferno.

Antonil, no fim do século XVII, lem-

bra que para o escravo três “p” são necessários: pão, pau e pano,

mas

que o brasileiro começa mal, porque começa

com

tratando melhor seus cavalos que seus escravos.(82)

o pau,

O senhor

achara, é verdade, uma solução para dirigir o ressentimento do negro sôbre outra pessoa que não êle, desdobrando a figura do pai-senhor em duas, o pai bom que era o proprietário, e o pai

mau que era O feitor.(%3) A êsse último principalmente é que se deviam as piores selvagerias, e como

os feitores eram

esco-

lhidos na classe dos mulatos e dos negros livres, conseguia a classe exploradora dissociar no espírito da classe explorada a luta econômica, contra o regime servil, da luta racial, africanos contra portuguêses.

Todavia, quando essa exploração diminuiu, depois da de-

cadência das minas e durante todo o século XIX até a extinção

(30) Fernando de AZEVEDO, Canaviais e Engenhos, pp. 59-60. A opinião de Max WEBER a que alude Fernando de Azevedo encontra-se em Wirtschajt und Geselischajt, t. I da tradução espanhola, p. 128 e segs. (31)

Para

o

negrinho,

objeto

de

tortura

da

criança

branca,

ver

G.

FREYRE, Casa-grande e Senzala, trad. fr. pp. 285-86, e sôbre o caso do ciúme das mulheres, idem, p. 286. (32) ANTONIL, op. cit., cap. 5. (33) R. BASTIDE, “Introduction à l'Estude de Quelques Complexes Afro-brésiliens”, Bul. Bureau d' Ethnologie, Haiti, II, 5, pp. 26-7, e Sociologie et Psychanalyse, pp. 242-43.

94

da escravidão, a estrutura social do Brasil estava justamente em fase de transição sob o efeito da urbanização. E esta nova

estrutura iria ainda intensificar a separação das duas classes, a exploradora e a explorada, tornando dessa maneira caduco o efeito integrador do abrandamento dos costumes.

A cidade brasileira no comêço não foi mais que o prolongamento dos campos. O dono das plantações que vinha morar na capital ou nos portos trazia consigo seus gostos rurais. O sobrado urbano copiava a Casa-grande do engenho, isolava-se das

outras casas por jardins, voltava a sua parte traseira à rua (concentrando sua vida nos aposentos que davam para o pátio), defendia a mulher branca da vista de estranhos pelas gelosias de suas janelas, pelas grades. A senzala para aí foi também levada ocupando as dependências mais úmidas ao rés-do-chão, enquanto a capela do engenho aí se transformava em altar familiar, num armário embutido no salão, as portas entreabertas sôbre um fundo de ouro e de chamas de velas. Entretanto, contra êsse isolamento das casas, a rua que mesmo assim era um meio de comunicação entre elas e que constituía um centro de encontros, de confraternizações

ou de reuniões,

acabaria por triunfar.

Ela

vai arrancar a mulher branca de sua solidão para fazê-la ouvir à sua janela as alvoradas dos estudantes, para levá-la a frequen-

tar os bailes e as recepções mundanas, para ir ornada como as santas, aos camarotes dos teatros. Vai também arrancar o patriarca de seus interêsses puramente econômicos para conduzi-lo à frequência de clubes políticos, de lojas maçônicas, das vastas sacristias das igrejas coloniais, onde se discutiam terras, cavalos

e negócios do Estado. Através da rua como pelos salões, o antigo

antagonismo do senhor de engenho e do português comerciante vai diminuir, acabar às vêzes em casamento da filha do senhor já meio arruinado com o filho do português, caixa ou gerente da

loja de seu pai.(**) Mas se a rua permitiu assim aos brancos desenvolver o sentido de sua solidariedade racial, não parece ter tido o mesmo

efeito no sentido da confraternização “das raças

e das culturas”. De fato, a urbanização, longe de ter ajudado a integração do negro e do branco em uma mesma sociedade, parece ter agido no sentido contrário, salvo talvez nas grandes festas populares, onde tôdas as côres se encontravam, misturando-se na alegria comum, e ainda nas procissões em que desfilavam juntas as cone PP.

(34) Gilberto FREYRE consagrou um livro a êsse problema, Mucambos, bem como um dos mais importantes capítulos de ici

-D&.

66.

Aspectos

de

um

século

de

transição

no

Nordeste

Sobrados Região e

do

Brasil,

95

frarias de negros e de brancos. Mas, mesmo aqui as raças permaneciam separadas; as confrarias do Rosário ou de São Benedito eram as primeiras, à frente do cortejo, e as irmandades dos

brancos rodeavam o pálio do bispo ou do pároco; a festa, por seu lado, fazia coexistir as danças dos negros com os divertimentos dos brancos, mas não ocasionando sua interpenetração. A rua agiu em relação aos escravos no mesmo sentido de solidariedade étnica que vimo-la fazer aos brancos. Dizemos solidariedade étnica e não solidariedade de casta, visto que as “nações” disputavam-se por tôda parte onde se encontravam,

as mulheres na

fonte, os homens nas praças públicas. Dessa forma, os elementos do antigo engenho que estavam integrados num sistema uni-

tário de produção e pela autoridade absoluta do patriarca contra

as fôrças de dissolução, separam-se: a Casa-grande torna-se o sobrado, a senzala, o mucambo; o antigo equilíbrio que existia entre a civilização rural luso-brasileira e as civilizações populares africanas é substituído pelo antagonismo entre a cultura européia do branco, adquirida nas faculdades de Direito, nas escolas de Medicina, nos seminários, e a cultura africana, que se desenvolve no interior das associações de “nações” sob a forma de retôrno às tradições religiosas ancestrais.(%º) Por certo, como há pouco dissemos, o escravo ao mesmo tempo que viu sua sorte melhorar, não mais se arrastou seminu pelos canaviais. Vestiu, para honrar seu senhor e para simbolizar sua posição social face aos vizinhos, sobrecasaca e luvas brancas, mas compreendendo, por isso mesmo, o sentimento de sua dignidade humana que a antiga servidão rural nêle tendera a abolir. A escravidão da plantação desafricanizava o negro, a escravidão urbana o reafricanizou, pondo-o em contato incessante com seus

próprios centros de resistência cultural, confrarias ou nações. É por isso que a manutenção das religiões africanas deve ser vista definitivamente nesse dualismo de classes opostas. A luta das civilizações é sômente um aspecto da luta das raças ou das classes econômicas

no seio de uma

sociedade de estrutura

escravista. O negro não podia se defender materialmente contra um Tegime onde todos os direitos pertenciam aos brancos; refugiou-se, pois, nos valôres místicos, os únicos que não lhe podiam arrebatar.(3º)

Foi

ao combate

com

as únicas

armas

que

lhe

restavam, a magia de seus feiticeiros e o mana de suas divindades si

(35)

(36) etra.

96

G.

A.

FREYRE,

ARINOS

Sobrados

DE

MELLO

e

Mucambos,

FRANCO,

cap.

V.

Conceito

de

Civilização

Bra-

guerreiras.

Mas,

naturalmente,

esta

nova

orientação

dada

às

representações coletivas trazidas da Africa alteraria o seu signi-

Na África as divindades eram cultuadas em benefício de

ficado.

tôda a comunidade, comunidade de criadores ou de camponeses;

pedia-se-lhes a fecundidade dos rebanhos, das mulheres e das colheitas. As grandes festas da Nigéria e do Daomé são ainda festas agrárias. (97) No Brasil, como pedir aos deuses a fertilidade

das mulheres

escravos? nhas.

se elas põem

no mundo

apenas

pequenos

Melhor seria, rogar-lhes a esterilidade de suas entra-

Como

pedir aos deuses boas colheitas numa

agricultura

que é comercial e não mais de pura subsistência e em benefício

dos brancos, isto é, da raça dos exploradores?

Valeria bem mais

pedir-lhes a sêca, as pragas destruidoras das plantações, já que

para o escravo as colheitas abundantes se traduziriam finalmente

num acréscimo de trabalho, de fadiga e de miséria. É assim que ocorre uma primeira seleção dos deuses; as divindades proteto-

ras da agricultura são postas à parte, acabando por serem completamente esquecidas no século XX. Em compensação, a figura

de Ogum, o deus da guerra, de Xangô, o deus da justiça, ou de Exu, o deus da vingança, tomam lugar cada vez mais considerá-

vel

na

cogitação

dos

escravos,

mas

transformando-se:

Ogum

deixará de ser o patrono dos ferreiros ou o protetor dos instrumentos agrícolas de ferro, Exu não manterá, senão dificilmente, seu caráter de divindade

da ordem

cósmica para ocupar

antes

de tudo a regência da ordem social, mais exatamente, para lutar

contra a desordem

de uma

sociedade de exploração racial.

O

tô-tã que se elevará nas noites sufocantes não será destinado a

pedir a chuva,

a prosperidade

da aldeia,

a grandeza

da tribo,

mas chamará outros mistérios para o preparo de filtros de amor que permitirão às belas mulheres negras desforrarem-se do des-

prêzo das patroas brancas, tomando o coração de seus maridos

(segundo peças de processos sabe-se de casos em que o marido se livrou de sua espôsa para dar a direção de sua propriedade a u'a amante preta que o tornara louco de amor),(*%!) ou o preparo de venenos poderosos que enfraqueciam o cérebro dos senhores, fazendo-os cair em inanição e morrer lentamente (cha-

mavam-se (37) (38) extraídos

essas plantas venenosas

de “ervas para amansar os

Ver, por exemplo, PARRINDER, op. cit., p. 140. Revista do Arquivo Público, Recife, 2.º semestre de 1946, Documentos dos Arquivos, p. 231 e segs.

97

senhores”), (8?) ou ainda para fazer abortar as mulheres grávidas para não aumentar o número de escravos. (*º)

Em suma, a cultura africana deixou de ser a cultura comunitária de uma sociedade global, para se tornar a cultura exclu-

siva de uma classe social, de um único grupo da sociedade brasileira, a de um grupo explorado econômicamente e subordinado socialmente. (“1) sk

%

%

À escravidão não sômente separa como une o que separa. Ela uniu as civilizações africanas que vimos arrancadas de suas infra-estruturas, mutiladas por essa separação, transformadas de civilizações comunitárias em “subculturas” de classe, com as civilizações européias da classe dirigente, o que levou ao apa-

recimento de novos fenômenos, o sincretismo religioso ou a mes-

tiçagem cultural, que agora precisamos estudar. Mas, ainda aqui, para compreender como opera a interpenetração das civilizações, por que canal, de que maneira, com quais efeitos, precisamos

recolocá-la na situação social que a condiciona e explica.

Da altura em que domina a plantação, a Casa-grande dos senhores brancos aparta-se da senzala onde os escravos vivem

com

suas nostalgias, suas músicas e seus deuses, o que não im-

pede que as duas constituam os elementos de uma mesma realidade, a grande família escravocrata. Essa família forma um todo orgânico, de partes solidárias, isolada no mato, exatamente como um sucedâneo da vila portuguêsa. Certamente as relações que unem os membros dessa comunidade doméstica não são

iguais

às relações

vicinais

de

aldeia,

porquanto

êsses

mem-

bros são hierarquizados, o que aliás aproxima-a mais do clã feu-

dal que da vila. As distâncias sociais serão maiores ou menores segundo o lugar que êsses membros

ocuparão nesta hierarquia.

Em seu ápice temos exclusivamente a família branca do senhor,

proprietário dos homens e dos escravos; abaixo, logo em seguida,

os homens livres que desempenham as funções relativamente “nobres” da produção, aquêle que dirige o trabalho do engenho, o que fiscaliza a refinação do açúcar, o que faz as contas, o pequeno exército de feitores que comanda os grupos de escravos (39)

(40)

A.

O

RAMOS,

branco

O

Negro

estimulava

Brasileiro,

a

pp.

procriação

que tinha pôsto no mundo 10 crianças foi diminuído para 7. Mas sabemos

192-96.

de

seus

escravos:

a

mulher

era libertada, posterlormente o número que, não obstante esses vantagens, a

natalidade foi bastante baixa; era em parte devida às práticas anticoncepcionais e mesmo aos abortos voluntários, como forma de resistência. (41) T. SEPELLI, Il Sincretismo Religioso Afro-cattolico in Brasile, p. 53.

96

com gritos roucos e estalidos de chicotes. Em baixo, os escravos mas êsses escravos por sua vez não formam u'a massa indife-

renciada: êles se dividem em dois grupos, o grupo dos escravos domésticos que moram

cozinheira,

a costureira,

na Casa-grande ao lado dos senhores, a a fiandeira,

as criadas

e os criados

de

quarto, as amas das crianças brancas, os negros de recado (espécie de estafetas que levavam mensagens e que uniam a propriedade às outras propriedades vizinhas), e o grupo dos escravos

dos campos, penando sob o sol ardente, do amanhecer ao pôr do sol, às vêzes até mais, grupo mais numeroso como também o

mais

afastado

do

núcleo

central,

a Casa-grande.

Esta hierarquia de posições ou de status é também uma hierarquia étnica. A família do senhor é endógama, não deixa o sangue negro correr em suas veias,.a mulher aí é escolhida

segundo sua pureza racial, encarregada de dar a seu marido filhos que continuarão a linhagem, o primogênito que substituirá o chefe da família à sua morte, o caçula que será bacharel ou

sacerdote. A classe intermediária compunha-se de “brancos pobres” que só podiam viver com a condição de se integrar numa posição de dependência aos únicos núcleos estáveis da colônia, as grandes famílias senhoriais, e de mulato ou negros livres,

quase completamente

assimilados à civilização portuguêsa.

Os

escravos domésticos eram escolhidos segundo sua beleza, sua inteligência, seus hábitos de asseio ou de higiene entre os negros crioulos ou entre os mina, os nagôs, em suma, quase únicamente entre os africanos ocidentais. Os escravos dos campos eram recrutados principalmente entre os bantos e os semibantos. As distâncias sociais eram tanto maiores à medida que se afastava dos modelos de valóres europeus, representados pelo senhor e

sua mulher. Isso fêz que a desafricanização fôsse o único meio de subir na escala social, de chegar aos postos cobiçados, aquêles que davam mais liberdade, segurança e prestígio. (*2)

Nesta perspectiva a aculturação aparece sob seu verdadeiro prisma que é o de ser uma luta pelo status social. Não é

preciso pensar, sob o pretexto de que falamos de uma raça domi-

nante e de uma raça explorada, que a civilização dos brancos foi imposta pela fórça e que o escravo teve assim o sentimento doloroso de sua alienação. A civilização dos brancos foi desejada como técnica da mobilidade social, como

a única solução deixa-

(42) “Todo O livro de G. FREYRE, Casa-grande e Senzala, é consagrado à análise dessa estrutura familiar. Indicamo-lo ao leitor que desejar amplos esclarecimentos.

99

da, após o fracasso da insurreição,

para sair de uma

situação

insuportável; ela foi desejada deliberadamente, sistemãticamente,

Tomou duas formas, uma puramente cultural que foi a adesão ao catolicismo, a apropriação de hábitos e de formas de com-

portamento dos brancos, e uma forma biológica: “limpar o sangue”, purificá-lo dormindo com os brancos, dando nascimento

a crianças mais claras, cujos pais se ocupariam, e que seriam assim libertadas do jugo da escravidão, tendo posteriormente

posição melhor na concorrência econômica. Não havia outros meios de subir socialmente numa sociedade moldada e dirigida pelo branco, a não ser purificar o sangue do estigma infa-

me da negrura; purificar a civilização africana de sua marca de barbárie; reconhecer como sômente válido o ideal estético do

senhor, o da superioridade da côr branca sôbre a côr negra, e seu ideal moral, o da superioridade da ética dos brancos sôbre

os costumes dos “pagãos”.

A importância do transe nas religiões da Africa negra enga-

nou os primeiros etnógrafos quanto à psicologia dos prêtos. negros

não

são

místicos;

sua filosofia está, como

por vêzes

Os

se

diz, mais próxima da filosofia dos anglo-saxões que daquela dos

asiáticos; é uma filosofia essencialmente utilitária e pragmática,

onde o que conta é o sucesso apenas.(“º)

de

ser

burocrata,

intelectual,

funcionário,

O desejo do africano de

usar

pince-nez,

e de ter uma Pasta Ministerial, não corresponde de modo nenhum a uma aspiração idealista, à aversão pela máquina e pelo trabalho manual, mas ao reconhecimento do status social superior dado

pelos brancos

a certas profissões em detrimento

de outras.(*!)

É êste utilitarismo que explica no Brasil colonial ou imperial a acomodação

do negro

à sua nova

tirar dela o máximo proveito.

mente

excluído

ou

situação e seu esfôrço para

O recurso à fôrça não estava total-

desaparecido,

como

veremos

nos

capítulos

subsegiientes, mas empregado sômente quando circunstâncias favoráveis podiam apresentar-se. O escravo agiu ordinariamente como a aranha, a tartaruga, o coelho ou o lagarto de suas fábu-

las, pela astúcia que é a arma dos fracos, uma arma que fregien-

(43) Essa é a opinião, por exemplo, de Mary H. KINGSLEY, West African Studies, p. 318. (44) E a prova está em que, na nossa sociedade industrial, o negro não teme abandonar essas profissões, quando elas lhes parecem pouco lucrativas, por ofícios “sujos” e “duros”, como os serviços de mecânicos, porém mais rentáveis. Ver R. BASTIDE e F, FERNANDES, Relações Raciaís, pp. “80,

100

224-26.

temente

vence

os mais

fortes.(4º)

Existe

todo

um

folclore do

negro escravo do Brasil que é conhecido com o nome de “ciclo do Pai João”.

Esse ciclo é extremamente ambíguo porque for-

mou-se com a colaboração do branco e do negro estando, dessa maneira, voltado para duas direções opostas. Do lado branco é

a apologia do negro “bom” oposto ao “negro mau”, ao negro quilombola ao negro assassino, ao negro revoltado, o bom ne-

gro que às vêzes canta sua tristeza ao som áspero do urucongo

mas que se submete à sua sorte, que é devotado aos seus senhores, que sem dúvida se considera como o parente pobre, mas parente assim mesmo da família senhorial. Do lado negro é a apologia do negro manhoso, que chega a reqiiestar a mulher branca,

a dormir na rêde de seu senhor, a tomar uma posição de comando na casa dando-se aparentemente “uma alma branca”, mas que

conserva num recanto secreto de seu coração o melhor de sua civilização africana, o conhecimento das plantas medicinais,

dos ritos mágicos, e o nome africano dos santos católicos, isto

é, o seu verdadeiro nome.(“*%)

A aculturação não é, pois, intei-

ramente a assimilação cultural, o desaparecimento total das civi-

lizações nativas na grande noite destruidora da escravidão. A prova disso está em que, se de um lado o africano, €

mais ainda o crioulo, aceitam os valôres brancos, tingindo-os prêto, por outro lado,

e simultâneamente,

a aproximação

de

das

raças na organização da escravidão ocasionou uma transferência de traços culturais africanos para a civilização luso-brasileira. A

criança branca era deixada, nos seus primeiros anos de vida, no

meio dos negrinhos, com êles se recreando, nadando no charco do

engenho, brincando de esconde-esconde nos canaviais, aprendendo a armar arapucas para passarinhos na floresta vizinha. O

menino branco tinha sido alimentado por uma ama negra, que o embalara

com cantigas africanas, que lhe dera seu leite com

tôda a sua ternura.

Continuava a depender da uma criada de

(45) Sílvio ROMERO recolheu alguns dêsses contos africanos de animais ne Bahia, Contos Populares do Brasil, que Nina Rodrigues pôde comparar com os correspondentes africanos recolhidos por A. ELLIS, The Yoruba Speating Peoples of Slave Coast, p. 258 e segs. Ver Nina RODRIGUES, Os Africanos no Brasil, p. 277 e segs. Por sua vez A. RAMOS consagrou a êsses contos populares de animais um capítulo de seu livro O Folclore Negro do Brasil, cap. VI. Ver sôbre a mesma questão a tradução em português e principalmente os comentários de L. da CAMARA CASOUDO &o livro de C. HARTT, Os Mitos Amazônicos da Tartaruga, e Octavio de COSTA EDUARDO, “Aspectos do Folclore de uma Comunidade Rural”, separata do

n.º

CXLIV

da

R.AM.S.P,

(46) Sôbre o ciclo do DIVERSOS AUTORES, Novos Folclore

no

Baixo

de

Alagoas,

Sko

pp.

Francisco”,

Pai João, ver A. RAMOS, op. cit., cap. IX. Estudos Afro-brasileiros, p. 60. Théo BRANDÃO,

121-33.

Osmar

IBECC,

GOMES,

1.º Congresso,

“Tradições

Anais

Populares

II, 1551,

p.

Colhidas

175

e segs.

101

quarto negra que, para adormecê-lo, contava histórias de Quibun-

go, O bicho grande que come as crianças, da môça que canta no saco ou do marinheiro casado com Calunga, rainha do mar. (*”)

Isso fazia com que êle se impregnasse de valôres puramente africanos na idade em que a alma é mais plástica, mais maleável às impressões de fora e às influências estranhas. Quando estava doente, sua mamãe negra tratava-o com ervas colhidas pelo feiticeiro e ajuntava

em sua corrente,

às suas medalhas bentas,

às

suas imagens de santos dadas pela mamãe branca, outros sortilé-

gios mais poderosos, banhados no sangue de animais sacrificados,

contra o “mau-olhado” ou contra as enfermidades da primeira in-

fância.

Mais tarde, quando seu interêsse sexual começava a des-

pertar, olhava as negras nuas banharem-se no rio, esgotava-se em

jogos excitantes e mais ou menos eróticos com as pretinhas, “tornava-se homem”, enfim, com a primeira negra que encontrava nos

campos.

Não cessará de ter amantes negras, de colocar no mun-

do mulatinhos, de reanimar seus sentidos amortecidos pela idade

ou pelo abuso, pedindo ao feiticeiro africano, se êste se encontrasse em sua plantação, os filtros necessários. A influência da África não cessava com a passagem da infância à adolescência; continuava insidiosa, sutil, por tôda a vida, sobretudo através dêsse erotismo, essa propensão ao culto da Vênus negra. Da

mesma forma, ainda que por outras razões, a espôsa branca que vivia reclusa no meio de seus escravos, a fazer confeitos ou

marmeladas, a fiscalizar a costura ou a lavagem, a mandar fazer cafuné pelos hábeis dedos de suas criadas de quarto, (4º) sem

quase nunca sair, recebendo raramente visitas, desaparecendo mesmo na sua cozinha se algum estranho aparecesse à porta da casa, acabava por pensar, por sentir como seus escravos, a aceitar suas crenças supersticiosas, ou suas histórias mágicas, a crer em

Exu quase do mesmo modo que no Diabo. Somente quando a família branca sair do engenho para ir morar na cidade, quando se puser em contato com as idéias européias trazidas pelos navios, com as mercadorias de Lisboa ou de Manchester, é que as fôrças de separação levarão vantagem sôbre as fôrças de fusão; mas no Brasil rural a desafricanização do negro marchou

a par com a

(47) Sôbre as histórias de Quibungo, ver A. RAMOS, op. cit., cap. VII, e L. da CAMARA CASCUDO, Geografia dos Mitos Brasileiros, pp. 272-77, A história da mõôça no saco encontra-se em Nina RODRIGUES, op. cit., pp. 285-87, com a correspondente africana, pp. 288-90. A. de CALUNGA, em J. de SILVA CAMPOS, “Contos e Fábulas Populares da Bahia”, in Basílio de MAGALHAÃES, O Folk-lore no Brasil, pp. 244-46. (48) Sôbre o cafuné, ver R. BASTIDE, Psicologia do Cajfuné, Curitiba.

102

africanização do branço, dando origem simultâneamente a crian-

ças mulatas e a uma cultura mestiça. (*º) Gilberto Freyre estudou bem em Casa-grande

e Senzala

êsses diversos fenômenos, mas estudou-os do ponto de vista da

civilização brasileira, e não do ponto de vista, que aqui nos preocupa, das civilizações africanas, Precisamos, pois, retomar à questão, examinando-a, se se nos permite a expressão, pela outra extremidade da luneta. O engenho de açúcar ou a grande propriedade cafeeira substituíram no Brasil a comunidade aldeã africana. Foi êsse engenho,

essa grande propriedade, que viria substituir as funções da aldeia

ou da linhagem, ou sejam, as funções de integração e de segurança, que iriam regular, organizar em seu seio, as relações interindividuais, formar, em uma palavra, o bloco sólido em que todos os

papéis e todos os status sociais encontrariam seu equilíbrio, seu

centro de coordenação. Não obstante as oposições de interêsses entre a classe exploradora e a classe explorada, e tôdas as tensões que essas oposições ocasionavam, o negro foi tomado, numa certa

medida, pela solidariedade que o ligava ao senhor. Éle se bateu por êle nas lutas entre os clãs familiares, assassinou mais tarde os adversários políticos de seu senhor, formou sua guarda pessoal

nas disputas eleitorais. Viveu assim em duas sociedades simultâneamente, uma sociedade de classe racial, com suas confrarias,

suas “nações”, seus grupos de jogos, seus batuques, e uma socie-

dade familiar da qual dependia para não morrer de fome, para não se sentir abandonado numa terra estrangeira.

Foi homem

de

subordinação

ao menos

sua

dupla fidelidade que determinou, da civilização

como

africana

consequência,

à européia,

coexistência pacífica, penhor de sua futura união.

senão a

Essa união mais se verifica à medida que passamos da gera-

ção dos negros

“selvagens”,

como

eram

chamados

os recente-

mente chegados da Africa, à geração dos negros crioulos, nascidos ou educados na plantação. A própria civilização, se se assenta na natureza e mesmo

se responde aos instintos ou às necessi-

dades naturais, o que nem sempre acontece, porque ela mais cria

do que satisfaz necessidades, não é nunca inata e sim adquirida.

O grande órgão de socialização da criança é sempre a família;

mesmo quando nos ritos de iniciação há uma aprendizagem tri-

bal, essa aprendizagem é do tipo escolar; não vai, pois, contra o “Na

(49)

Bahia

A.

RAMOS,

tôdas

as

depois

classes,

de

ter

mesmo

citado a

a palavra

superior,

estão

de

Nina

prontas

RODRIGUES:

a

tornarem-se

negras”, diz que “a desafricanização gradual do negro foi acompanhada gm contrapartida por uma deseuropeização do branco no Brasil”, Aculturação egra, pp. 1 -2,

108

grupo familiar, completa-o apenas.

Ora, o negrinho, ou o mula-

to, nascido na plantação, recebia os cuidados de sua mãe sômente

durante o período de aleitamento; era cuidado às vêzes por uma

mulher velha, que não mais podia trabalhar nos campos com todos os outros garotos coletivamente; bem cedo sofria a influência do senhor, do capelão, e mesmo do professor se se mostrava

um pouco inteligente, principalmente se fôsse um dos bastardos do senhor ou um filho do capelão. Foi dessa forma que os criou-

los sofreram uma dupla socialização, a do grupo africano pela mãe, pela velha guardiã das criancinhas, pela senzala, e a da

família branca com tôda sua autoridade e prestígio. Dêsse modo,

duas civilizações iam confundir-se em seu espírito. Eis aqui o fenômeno mais curioso da escravidão, a dualidade racial dos pais. Ela vale tanto para o pequeno branco quanto

para o menino negro. O filho do senhor tinha pai branco e mãe negra. Às vêzes a mãe negra educava-o ao mesmo tempo que a

mãe branca; esta podia, nesse caso, lutar contra as influências africanas. Mas, amiúde também, a mulher branca casada muito jovem (15 ou 16 anos), mãe pouco depois, mal nutrida, não fazendo nunca exercícios, morria môça e a autoridade da mamãe negra cobrava então mais fórça.(*º) Por seu lado, o filho do escravo, se conhecia sua mãe, não sabia frequentemente quem

era seu verdadeiro pai. Ésse era no fundo, mesmo se não o fôsse biológicamente, o patriarca branco, o senhor de engenho.

Joaquim Nabuco e Luiz Gama poderiam servir de exemplo a êsse tema da dualidade paterna. Nabuco, órfão de nascimento, era tão ligado a sua ama de côr, tão ternamente unido a ela, mesmo

quando

subiu

à glória, grande

embaixador de seu país.

escritor, homem

político,

Homem, sem dúvida, da mais refinada

civilização européia, ao ponto dos críticos literários lhe censurarem o fato de ser às vêzes mais estrangeiro que brasileiro. Seria necessário estudar psicanaliticamente sua formação, orientada pela doce mãe negra, se quisermos compreender sua sensibilidade e sua forma de inteligência. Luiz Gama teve, indubitavelmente,

um pai português que poderia tê-lo educado, mas êste não só o deixou na escravidão como ainda o vendeu a comerciantes que, em seguida, mandaram-no da Bahia para a província de São

Paulo.

durante

Foi arrancado de sua mãe a quem procurou tenazmente tôda

sua

vida,

sem

jamais

encontrá-la,

mas

da

qual

guardou o culto. Entretanto, seu verdadeiro pai será o filho de seu senhor paulista, educando-o, formando-o, fazendo-o seguir (50)

104

G.

FREYRE,

op.

ctt.,

pp.

295-300.

seus

estudos,

moldando

sua

inteligência

e suas

sensibilidades.

segundo normas européias.

Ésses dois grandes líderes do aboli-

lidade à sua mãe

representam

cionismo, um por fidelidade à sua nutriz negra, o outro por fideescrava,

admirâvelmente,

ainda

que sob uma forma inversa, êsse drama da dupla paternidade, que ainda não encontrou seu analista. Cremos, de fato, que é por meio dos conceitos psicanalíticos.

de “superego”,

de identificação, de narcisismo,

muito mais do

que através dos processos de imitação, de aprendizagem, de adap-

tação, de sugestão, que se pode definir os mecanismos psíquicos.

da aculturação. heterogêneos

O que colaborou

da sociedade

das as camadas

brasileira,

para unificar os elementos a propagar

da sociedade os mesmos

através

de tô-

valôres, foi o fato do

branco, vivendo numa família de tipo patriarcal, e o negro, num tipo de família matriarcal, interiorizarem o mesmo pai. E inte-

riorizando o mesmo pai, interiorizaram sua cultura, sua concepção do mundo e da vida, seus quadros de referência e suas nor-

mas. A separação que Freud propõe entre o “ego” e o “superego” traduz-se assim principalmente para o negro, mas também para. o branco criado pela mãe negra, entre a estratificação das duas civilizações, a maternal, africana, repelida no inconsciente,

onde

toma o caráter “estranho” do “recalcado”, sem por isso deixar

de atuar

no

“ego”,

e a dirigente,

constrangedora,

mesmo

com

uma ponta de sadismo, a civilização paterna do luso. Isso fêz com que o branco ouvisse sempre do fundo dos turbilhões, dos redemoinhos, dos abismos líquidos do inconsciente, o canto fas-

cinador das sereias negras,

e que o negro,

como

nôvo Narciso,

inclinando-se sôbre as águas da vida para melhor se conhecer,

via-se branco. Na verdade, êsses fenômenos tornavam-se muito mais profundos e sólidos na medida em que passavam da periferia ao

centro da vasta família senhorial, dos negros do campo agrupados nos quartos da senzala pouco ligados a êsse núcleo, aos negros crioulos, vivendo na Casa-grande, no mesmo ritmo que os brancos. Entretanto, todos os escravos deviam, antes de dor-

mir, reunir-se para receber a bênção do senhor, louvá-lo por

um

“Bendito

seja

Jesus

Cristo,

nosso

Senhor”,

de

maneira

perpetuar, a manter em seu interior a imagem do pai branco. (*!)

a

A identificação foi, pois, mais ou menos bem sucedida segundo

as classes de escravos; em umas “recalcou” as civilizações nativas; em outras, onde êsse recalcamento não foi bem realizado, deu-lhe

La

(51) D. P. KIDDER, Reminiscências Esclavitud y su Abolición, p. 1213.

de

Viagens,

p. 203.

Alvim

PERCY,

105

sômente um caráter de estranheza; enfim, no grupo dos africanos puros, chegados ao Brasil quando já eram adultos, o pai não

pôde ser interiorizado, foi apenas acrescentado, afixado de fora, sem alterar suas civilizações nativas, impondo-lhes só um contrôle, que era preciso lograr, pondo-se u'a máscara branca nas

cerimônias negras. Em segundo lugar, devemos notar que êsse processo de interiorização sômente vale para o dualismo senhores-escravos. Mas,

entre êsses dois pólos da sociedade, existiu uma camada intersticial, a dos “colonos”, dos “agregados”, dos “protegidos”, dos pequenos proprietários livres. Antônio Cândido observou com

justa razão que os sociólogos negligenciaram o estudo dessa classe intermediária. (*2) Originâriamente, essa classe era pouco

numerosa de

e estava muito ligada à família senhorial por laços

dependência,

de

compadrio,

de

proteção

e de

subordina-

ção.(º%º) Pouco a pouco ela se desenvolveu pela dupla mestiçagem do branco com o índio e com o africano, para constituir entre.as células ganglionares do país, isto é, as grandes famílias latifundiárias, tôda uma rêde, ainda que frouxa e descontínua, de camponeses miseráveis, analfabetos, isolados, frequentemente móveis.

Econômicamente

a

uma

bordinada, formando uma clientela dos clãs senhoriais,('')

essa

agricultura

de pura

autônoma,

subsistência

abandonando-se

familiar,(**)

politicamente

su-

classe que não tomou importância a não ser no fim do século XVIII,

escapou

dêsses

processos

de

aculturação;

sua

cultura,

feita com os restos de tôdas as civilizações propõe-nos, conse-

quentemente, outros problemas.

Nós os examinaremos posterior-

mente quando estudarmos as religiões afro-brasileiras rurais. e ae

ak

A urbanização, como dissemos mais acima, fragmentou esta

integração da família patriarcal do século XVII e comêço do século XVIII. A rua, vencendo o sobrado, ocasionou uma dupla solidariedade: de um lado, a solidariedade dos senhores, cuja (52) Antônio CANDIDO, “O Estado Atual e os Problemas mais Importantes dos Estudos sôbre as Sociedades Rurais do Brasil”, XXI Congr. Int. de Americanistas, p, 322. TOLLENARE sentiu a importância dessa classe média e deplorou o fato de ela ter sido deixada no abandono, porque formaria a base de um Brasil melhor equilibrado, parte inédita do manuscrito de Notas Dominicales, Biblioteca Baint-Geneviêve. (53) Oliveira VIANNA, Populações Meridionais do Brastl, cap. IV. (54) Sôbre a ligação entre essa classe intersticial e o desenvolvimento das culturas de subsistência, ver Calo PRADO Júnior, História Econômica do Brasil, pp. 49-52, (55) O. VIANNA, Op. cit., caps. VII e VIII.

106

primeira civilização arcaica refinou-se ao contato com as modas, as idéias e os valóres importados da Europa, e do outro, a solida-

riedade dos escravos, dos negros de ganho, dos membros de “nações”, cujas perdas culturais eram sem cessar compensadas

por novos apontamentos da África.

Mas, aqui, também, contra-

riando êsse dualismo, freando o processo de constituição de cul-

turas antagônicas,

para restabelecer uma

certa unidade,

houve

um fenômeno de compensação que Gilberto Freyre estudou no livro que seguiu Casa-grande e Senzala, ou seja, Sobrados e Mucambos. De fato, a sociedade brasileira sempre conheceu os dois movimentos

antitéticos,

um

centrífugo,

o da formação

de culturas separadas, o outro, centrípeto, de integração dessas

civilizações numa civilização mestiça, mais branca do que índia ou negra, visto que era a classe branca que tinha os meios de comando, o status mais elevado, e que de alguma forma mane-

java os mecanismos de sincretização. A miscigenação ganhou crescente importância no curso do século XIX.

As

estatísticas mostram-nos,

mento do tráfico negreiro que conheceu

não

obstante

o au-

o esplendor antes de

desaparecer, a preponderância crescente do mulato, senão sôbre o branco, ao menos sóbre o negro puro: BRANCOS

MESTIÇOS

NEGROS

ÍNDIOS

1835

845 000

(24,4%)

648 000

(18,2%)

1 987 000

(51,4%)

1872

3 818 403

(38,1%)

3 833 015

(38,4%)

2 970 509

(16,5%)

(7%)

1890

6 302 198

(44,0%)

4 638 495

(32,0%)

2 097 426

(12,0%)

(12%)

mais

?

Mas essa miscigenação faz-se agora num clima diferente, sentimental, mais colorido de cristianismo; a vontade de

desenvolver o capital humano não obnubilou o senso das responsabilidades paternas, a afeição do pai por seus filhos ilegítimos, o cuidado

de sua educação

e de

sua colocação

na sociedade

principalmente quando eram filhos de sacerdotes (como José do

Patrocínio, um dos mais brilhantes jornalistas do Brasil imperial)

que gozavam de situação privilegiada. (*8) Em 1774, uma lei dava

aos mestiços acesso a todos os postos, “honrarias e dignidades”,

dos quais só os negros estariam excluídos.(*7) No século XIX, vemos certas confrarias abrirem-se democrâticamente a tôdas as (58) (57)

Osvaldo ORICO, Patrocínio, 2º ed. de O Anais da Biblioteca Nacional, XXXVIII,

Tigre 1913,

da p.

Abolição. 85.

107

côres.(58)

A classe artesanal das grandes cidades constitui-se de

negros livres e, sobretudo, de mulatos, alfaiates, sapateiros, cabe-

leireiros, pedreiros e vendedores ambulantes. O exército, mais particularmente, é o grande canal de ascensão dos mestiços. De imediato, essa classe intermediária distingue-se da classe de escravos por certos símbolos, dos quais o mais insignificante não é certamente o uso de calçado, os sapatos pequenos ressaltando a diferença do pé do mulato face ao pé do mestiço, pesado, grosseiro do homem que trabalha nas plantações.(**) A abertura de colégios, de academias, vai permitir a constituição, para os bastardos dos senhores, protegidos e ajudados por seus pais, de uma

pequena burguesia de côr, formada de médicos, de engenheiros, de advogados, de jornalistas, de romancistas ou de poetas, todos

admirâvelmente

trajados, os cabelos alisados e untados de óleo

de côco, bons oradores,

galantes e bajuladores.

O romantismo,

preconizando o direito ao amor da mulher, a santidade da paixão

contra os preconceitos dos casamentos impostos, arranjados pelas famílias, auxilia a aproximação sexual das côres; ao concubinato entre o branco e a negra, vai suceder, ao menos para essa classe de intelectuais, de “bacharéis” e de “doutôres”, a possibilidade de casamento legal entre a mulher branca e o mulato claro.

A família real brasileira ajudou com todo o seu poder esta polí-

tica de integração dos mulatos bem sucedidos e dos negros inteligentes, recebendo “doutôres” e “bacharéis” de côr, frequentemente funcionários da Côrte, eleitos às vêzes deputados, em seus salões, em seus bailes, nas cerimônias do “beija-mão” do imperador, outorgando-lhes, como aos brancos, títulos de nobreza por

serviços prestados e criando o que na época se chamou de ““barões chocolate”.(ºº) Mas era evidente que essa ascensão só se podia fazer pela adesão dêsses elementos aos valóres e aos ideais europeus, pela

rejeição das civilizações africanas e total assimilação à cultura branca.(*!)

A mobilidade vertical do mulato, ou do negro livre,

golpeou, portanto, as sobrevivências religiosas africanas e contra(58) (59)

ver

G.

G. FREYRE, 0p. cit., p. 98. Sôbre êsse simbolismo dos sapatos,

FREYRE,

op.

cit.

pp.

e

Prêtos

329-30.

como

GAFFER,

marca

do

Visions

du

status

Brésil,

social,

p.

203.

C. SEIDLER, Dez Anos no Brasil, p. 237. DEBRET, op. cit., p. 205. EKIDDERFLECHTER, op. cit., p. 148. (60) Sôbre a ascensão do mulato, ver G. FREYRE, op. cit., II, cap. XI.

D.

PIERSON,

t.

1,

do

Povo p. (61)

negros

Poesia

108

Brancos

Brasileiro,

p.

157

e segs.

187, e t. II, p. 116 Daí a importância

livres,

como

Ajro-brasilsira).

na

Bahia,

Pedro

e segs. da Arte

expressão

de

e

sua :

cap.

CALMON,

da

VII.

Literatura

total

O.

VIANNA,

História

para

assimilação

Social os

(R.

Evolução

do

mulatos

Brasil, e

BASTIDE,

os

A

balançou o outro efeito da urbanização:

a separação da civiliza-

ção dos sobrados da civilização dos mucambos, a dos bailes dos salões da dos batuques de rua, a da classe burguesa daquela das “nações”.

Mas o que nos interessa nesse livro, não é tanto êsse movimento de ascensão social, e sim os seus efeitos na perpetuação

ou nas metamorfoses das religiões africanas.

Portanto, precisa-

mos aqui fazer duas observações importantes. Esta ascensão foi de indivíduos enquanto indivíduos e não

de um grupo social enquanto grupo.(%) O paternalismo brasileiro certamente não responde a uma política refletida, desejada,

sistemática; êle é espontâneo, é a resposta afetiva do “homem cordial” a uma dada situação social. Isso dito, para reabilitá-lo de tôda acusação de hipocrisia, não deixa de permanecer o fato de que a ascensão do mulato ou do negro crioulo se fazia segundo

critérios escolhidos pelos senhores, e que continuou sempre sob o contrôle dos brancos. Sem dúvida, conforme a inteligência dos

protegidos, ou suas qualidades pessoais, suas aptidões profíssionais, sua habilitação, como também segundo qualidades morais,

o respeito aos valôres estabelecidos, o sentimento de gratidão ao pai, ao padrinho, ou ao protetor, a arte de “pôr-se em seu lugar”. Não só a ascensão era individual mas também pro-

gressiva, processava-se em geral segundo a distância em geração

da classe de escravos africanos, ou segundo a côr da pele, favo-

recendo os mais claros, os que tinham cabelos lisos e nariz aqui-

lino, em detrimento dos mais escuros, de cabelos crespos e nariz chato.(*º) Por conseguinte, ela não podia senão comparação, ou por contraste, o abandono em que escura, a massa de negros importados. Em suma, lismo certamente ajudou a assimilação ou o triunfo dos brancos, mas também fragmentou a sociedade ras,

retalhando-a

em

uma

série

de

segmentos

ressaltar, por estava a plebe êsse paternada civilização em subcultu-

hierarquizados,

porém não juntos. A ascensão do mulato não foi senão a contra-

partida da indiferença para com as medidas propostas, de início,

por José Bonifácio,(**)

depois, pelos positivistas brasileiros, a

favor de uma política educacional de todo o grupo negro a fim

de elevá-lo coletivamente na sociedade, e não mais privá-lo de (62) (63)

R. A

BASTIDE e importância

F. FERNANDES, Relações dos cabelos bem “lisos”

Raciais, ou do

pp. 124, 141, etc. nariz afilado no

Brasil é muitas vêzes maior que a da côr da pele. PIERSON, Op. cit., p. 201. WAGLET (org.), Races et Classes dans le Brésil Rural, p. 100. (64) Pode-se ler o projeto de José BONIFÁCIO em Antologia do Negro Brasileiro de É. CARNEIRO, pp. 13-7, em particular os arts. 10-27-28. Sôóbre a ação dos ooo ver o nosso artigo na Revista Mexicana de Sociologia, VIII, 3, pp. 371-88. .

109

seus melhores elementos —

a brilhante contrapartida do aban-

dono da massa escravizada, dividida em “nações” rivais para não inquietar os senhores, e relegada aos batuques para que aí encontrasse uma distração de sua triste sina. Isso fêz que em 1888,

quando

o trabalho servil seria definitivamente

abolido,

a

sociedade brasileira, não obstante sua aristocracia de côr, não formasse uma sociedade homogênea, mas uma sociedade desfeita em partes separadas, isoladas, cada qual portadora de uma civili-

zação diferente.(%) Isso explica por que as religiões africanas puderam manter-se em certos segmentos dessa sociedade com

relativa fidelidade, já que êsses setores não eram atingidos pelo

movimento de capilaridade. A segunda observação é que o paternalismo, ao contrário do que alguns pensam, não é a marca de uma ausência de precon-

ceito, pois que a seleção se faz segundo a côr da pele. Ao contrá-

rio, êle desenvolveu-o, a princípio no grupo dos “pequenos bran-

cos”, criando entre êles um estado de insegurança, de desconfiança, de insatisfação, à medida em que viam homens de outra raça

subirem mais alto que êles, e finalmente vencê-los na luta pelo status econômico e social. Os psicólogos mostraram bem a-re-

lação que existe entre os sentimentos de agressividade e os de

frustração, como também a origem do complexo do “bode expiatório” para que seja preciso insistirmos nesse ponto.(8%) O

preconceito foi, nessa primeira classe, uma arma de defesa, ou

uma desforra compensatória contra a política dos senhores. Mas

êle devia também, obrigatóriamente, irromper nesta segunda clas-

se, como a técnica de contrôle da mobilidade vertical.

Essa mo-

bilidade fôra desejada, mas comportava perigos; não se podia deixar essa ascensão transformar-se numa tempestade que levaria consigo os privilégios do grupo branco; era preciso também lembrar no momento oportuno ao mulato “bacharel”, ou ao negro “doutor”, que êle devia tudo à boa vontade de seu senhore que êle não tinha o direito de esquecer êsse fato. Para isso foi preciso a alternância de uma política de comportas abertas e outra de comportas

fechadas.

Daí, as medidas

discriminatórias,

que

não estão de nenhum modo em contradição com o paternalismo, mas que constituem, pelo contrário, a contrapartida obrigatória. Um

viajante tão observador como

Saint-Hilaire notou tal coisa

no comêço do século XIX, pelo menos no que diz respeito ao (65)

V. SODRÉ,

op.

ctt., p. 222.

of

(68) Contentar-nos-emos Prejudice, A. Welsey Co.

208

pp.,

International

t10

Understanding,

e, sobretudo,

em citar Gordon W. ALLPORT, The Nature 1954, Otto KLINEBERG, Tensions Ajfecting

Social

J. DOLLARD,

Science

op. cit.

Research

Council,

Bol.

62,

1950,

negro livre; êle chama a atenção para o número de negros ou de mulatos que se enriquecia, ser muito restrito e acrescenta: se

êles sobem um pouco alto demais, a astúcia dos brancos bem depressa os remete ao ponto de origem.(º”)

Podemos seguir no livro de Gilberto Freyre, que pinta ent

córes idílicas esta ascensão do mulato ou do bacharel de côr, as

etapas da política antitética de que é o corolário a proibição aos

negros, no século XVIII, de coroar seus reis do Congo,

de pos-

suir escravos, de escolher padrinhos em sua própria raça, sepa-

ração dos doentes nos hospitais segundo a côr, espirros ou zombarias em voz alta no teatro, quando aí surgia um negro de

cartola

e sobrecasaca

maçônicas dessas

de cerimônia,

interdição

de certas

ou de certos clubes políticos aos mulatos.

medidas

certamente

atingiram

mais

os negros

lojas

Muitas

livres ou

os mulatos escuros que os mulatos claros, mas ainda assim faziam

com que êsses últimos sentissem a insegurança de sua posição, desenvolvendo nêles um preconceito contra o negro ainda mais forte que aquêle que o branco podia ter, originando, enfim, mui-

to mais entre os mulatos que entre os negros puros, um complexo de inferioridade ou de “marginalismo”. mulato,

ferido

em

sua suscetibilidade

Isso explica por que o

desconfiada,

ou

não

che-

gando a satisfazer inteiramente suas ambições, podia voltar para

a classe dos negros, tomando aí a liderança, ou para encontrar

a posição de superioridade que lhe era negada noutro lugar. De fato, observando bem, não se trata tanto do mulato que

ascende, quanto do mulato “bacharel”, protegido pelo senhor. Porém, terá abaixo de si a multidão sempre crescente dos mulatos que não têm nenhuma possibilidade de realizar suas ambições imiscuindo-se nos interstícios do grupo branco. A religião africana

se abrirá

a êsses mulatos,

permitindo-lhes,

sobretudo

nas seitas bantos ou nos terreiros de caboclos, aí ocupar importantes posições sacerdotais.

Não devemos esquecer a resistência dos cabras dos engenhos, quase todos mulatos ou cafusos, nem a dos carregadores de nossas cidades, mulatos em sua maioria... Os próprios líderes das tradições religiosas

que

o negro

conserva

como

algo

de intimamente

seu, hoje

são mulatos. Alguns dêles já bem desafricanizados em seu estilo de vida, mas que se reafricanizam indo estudar na África, como o Pai Adão de Recife que se iniciou como pai-de-santo em Lagos e que falava o africano com a mesma facilidade que o português. (88) (67) SAINT-HILAIRE, Voyages dans les Provinces t. II, cap. 11. Sôbre os negros ricos, Wanderley PINHO, (68) G. FREYRE, op. cit., III, p. 1069.

de Rio de Janetro, op. ctt., p. 166.

111

Mas se excetuamos o Pai Adão que fôra à África para aí

beber na própria fonte das religiões africanas, são êsses mulatos,

em

parte já desafricanizados no seu estilo de vida, como

diz

Gilberto Freyre, que adulteraram mais profundamente os cultos, nêles introduzindo suas próprias concepções estéticas, como Joãozinho da Goméa, ou sua meia etnia européia, como os fundadores

do espiritismo de Umbanda.

112

CAPÍTULO

III

O Protesto do Escravo e a Religião A conclusão que se depreende do capítulo anterior é que a civilização africana (e a religião é dela parte integrante) tornou-se no Brasil, para empregar uma expressão norte-americana, uma “subcultura” de grupo.

Ela vai, pois, encontrar-se presente na

luta das classes, no dramático esfôrço do escravo para escapar

a um estado de subordinação ao mesmo tempo econômico e social. Somos assim levados a estudar a resistência do negro ao trabalho servil e seu protesto racial. Este protesto tomou formas individuais e formas coletivas,

desde o assassínio do senhor branco

até a insurreição à mão

armada, desde a fuga de um escravo assustado pelo pensamento

do castigo até a formação de quilombos. Veremos posteriormente

essas formas coletivas e como frequentemente se condensaram em tôrno de um centro religioso. Em compensação, o elemento místico estava quase sempre ausente na resistência ou na fuga individual. Damos alguns exemplos: em Vila Rica, os efcravos

de José Thomas de Mattos, para vingar-se das chicotadas, no momento de receber a bênção da tarde, precipitam-se sôbre o

fazendeiro,

lheres,

matam-no

furam

assim

os olhos,

como

esquartejam

a seu

filho,

os corpos

violam

as mu-

e acabam

por

lançar os cadáveres aos formigueiros para serem devorados pelas formigas.(!) No Rio Grande do Sul, Gomes tendo orde-

nado a seu escravo Jesuíno matar seu rival em amor, e êste tendo se recusado, aplica-lhe seu chicote. Jesuíno volta-se e crava sua faca no coração de Gomes.(2) Esses são os tipos de

assassinatos de brancos, o produto da raiva guardada no cora-

ção,

ou

a reação

imprevista

a uma

ofensa

inopinada.(*)

O

(1) E. Th. BOSCHE, Quadros Alternados, p. 116. (2) Cf. EXPILLY, Le Brésil tel qu'il est. (3) Encontrar-se-ão outros exemplos em TSCHUDI, Reisen durch Sud Amerika, II, p. 76. COUTY, L'Esclavage au Brésil, .p. 78, R. I. H. G. 5. Paulo, XXXV, p. 145. SANTOS VILHENA, Recopilação, I, p. 138. TAUNAY, Em Santa Catarina, p. 380. D'ASSIER, Le Brésil Contemporain, pp, 97-85, Estudos Ajro-brasileiros, p. 125. Novos Estudos, pp. 73-4. J. DORNAS Filho,

113

elemento

religioso

não

parece

intervir

senão

entre

os

negros

muçulmanos que não podem suportar o fato de serem dominados

pelos cristãos. (*) Em todo caso, o branco sente mêdo.

E êsse mêdo

ta à medida que o número de escravos cresce. derivar

a violência

do

escravo

para um

outro

aumen-

É preciso, pois, objeto,

e tôda

uma estratégia vai aparecer, a qual poderíamos chamar de estratégia da frustração; para descrevê-la, é necessário ater-se às

categorias dos psicanalistas, porque o problema é derivar o ódio contra o senhor branco fornecendo-lhe um substituto menos

perigoso para a sociedade.

O primeiro substituto é o próprio

negro. Dollard mostrou que no sul dos Estados Unidos os conflitos entre negros são bastante numerosos e que são precisamente derivativos da agressão impossível contra o branco.(º*)

Do mesmo modo, da época colonial que surgiam entre se voltava o ódio

no Brasil, todos os viajantes e historiadores são unânimes em falar de querelas incessantes as diversas nações africanas.(*) Ou, então, do negro contra o índio opondo as duas raças

uma contra a outra.

Entretanto,

êste ódio não era natural.

Nos

quilombos, nós o veremos, negros e indígenas se mesclarão fra-

ternalmente; Saint-Hilaire fala mesmo várias vêzes da predileção das índias pelos negros.(”) Mas os brancos formavam

ameríndios, negros 4

como

também

fugitivos.(*)

Escravidão

no

encarregavam

Em

Brasil,

pp.

batalhões de negros para caçar

caso

148,

êstes de capturar os

de guerra contra o estrangeiro,

224-26.

WALSH,

Notices,

II,

p.

360.

SAINT-

estavam

filiados

-“HILAIRE, Voyage dans les Provinces de Rio de Janeiro et Minas Geraes, I, p. 567, II, p. 454. Mello BARRETO Filho e Hermito LIMA, História da Polícia do Rio de Janeiro, 3 vols., 1939-1944, etc, (4) Jesuíno era muçulmano. LANGSDORFF, citado por TAUNAY, Em Santa

Catarina,

p.

380,

afirma

que

no

Rio

todos

os

escravos

a sociedades secretas cujos presidentes eram negros livres e que os homicídios misteriosos explicam-se por esta maçonaria negra, o que foi demonstrado ES falso. Phi também J. WETHEREL, Brazil, p. 138. Avé-LAILLEMANT, €,

(5)

PD.

.

DOLLARD,

Caste and Classe in a Southern Town, Yale Unlyv. Press, 1937.

(6) FLETCHER e KIDDER, Brazil, p. 124. O. P. EIDDER, Reminiscências, II, p. 45. H. ROSTER, Voyages Pittoresques, I, p. 58, II, p. 28 (aqui luta entre escravos de fazendas diferentes e entre escravos e negros livres). Luís

EDMUNDO,

O

Rio

de

Janeiro

no

DENIS, Brésil, p. 113. D'ASSIER, Le Recopilação, p. 136 (disputas entre

Tempo

dos

Vice-reis,

p.

24.

Ferdinand

Brésil contemporain, p. 199. VILHENA, nações e entre crioulos e africanos).

Rocha POMBO, História do Brasil, II, p. 542. (7) SAINT-HILAIRE, Viagem ao Rio Grande do Sul, p. 387; Voyage auz Sources du Rio S. Francisco, IX, pp. 354-59. O caso oposto. também existe, o do cruzamento entre o índio e a negra, mas é pouco espontâneo (cf. RUGENDAS, Viagem Pitoresca, p. 127); êle é obra da vontade do branco que

quer

assegurar-se

assim

um

aumento

de seu

braço

servil, o filho seguindo

a condição da mãe, R. I. H. G. S. Paulo, XXXVI, 1939, p. 112. Mello MORAES Filho, Quadros, p. 382. (8) Sôbre a captura dos negros pelos índios, ver F. de ALMEIDA PRADO, Pernambuco, p. 286. Fr. VICENTE DO BALVADOR, História do Brasil, p. 369. J. DORNAS Filho, 4 Escravidão, p. 208.

114

todo o furor do escravo era usado igualmente contra o inimigo da pátria, e assim é que vemos formarem-se regimentos de afri-

canos e de mulatos com seus oficiais próprios

(chamava-se-lhes

os “Henriques Dias” por causa do grande chefe negro da guerra

holandesa); êsses regimentos tomaram parte ativa em tôdas as batalhas brasileiras contra os batavos por exemplo, contra os franceses de Duguay-Trouin, ou na Guerra dos Farrapos. (º) Mas não se tem sempre um inimigo branco contra o qual derivar o ódio racial do escravo. Nesse caso, usa-se o Ódio contra os inimigos interiores, e é dessa maneira que o negro surge em tôdas as revoltas civis, nas guerras dos Paulistas contra os Emboabas, (1º) nas guerras da independência nacional, (!!) na luta dos partidos no Império, entre monarquistas e republicanos,(!2) ou nas rivalidades dos homens políticos entre si.(!3)

Mas usou-se igualmente de um outro processo, nós o dissemos, que tem seu paralelo na Psicanálise, ou seja, o desdobra-

mento

do senhor

inventa um

branco.

Da

mesma

forma

que o paranóico

romance familiar, onde desdobra seu pai em dois, O

pai bom, nobre ou rico, que é imaginário, e o pai verdadeiro que é para o doente um pai artificial e mau, o que lhe possibilita sair da ambivalência do sentimento: filial, ao mesmo tempo de

ódio e de respeito,('!) do mesmo modo o negro se encontrava

em presença de dois homens, o senhor que lhe dava a bênção no

crepúsculo, permitindo-lhe por vêzes dançar à noite, e o feitor, sempre armado de um chicote, mais cruel quando era um mulato desejoso de acentuar que êle pertencia a uma outra raça, ou um negro às vêzes escravo, cioso de sua autoridade. Assim, a ambivalência dos sentimentos do escravo podia se esclarecer, O

respeito sendo dirigido ao senhor branco, o ódio, ao feitor; mui-

tos dos crimes de negros voltavam-se Unicamente contra os feito(9)

Sôbre

o papel

POMBO, História 244-45, 322, 389-97.

do

do Brasil, Dante de

negro

na

II, p. 55, LAYTANO,

defesa

militar

do

Brasil,

ver

ROCHA

Brito FREYRE, Nova Lusitania, “O Negro e o Espírito Guerreiro

pp. nas

Origens do Rio Grande do Sul”, B. 1. H. G. do Rio Grande do Sul, XVII, 1937, pp. 95 e 117. “Como Saint-Hilaire Viu o Negro no Rio Grande do Sul”, Anais, III Congresso Sul-rio-grandense de História, p. 22. Novos Estudos,

(10) (11)

p.

15-11-1942,

da

37.

Nelson

de

SENNA,

Africanos

no

Brasil,

pp.

45-6.

Diogo de VASCONCELOS, História Antiga das Minas, p. 325. Nestor ERICESEN, “O Negro na Revolução dos Farrapos”, Planalto, p. 12, Aydana

do

COUTO

FERRAZ,

“O

Escravo

Negro

Independência da Bahia”, R.A.M.S.P., LVI, pp. 195-202. (12) G. PEREIRA DA SILVA, Prudente de Moraes, o

216-18. (13)

Braz do AMARAL, História COUTY, L'Esclavage au

Geral, 11, p. 178, (14) BR. BASTIDE, “Introduction -brésiliens”, op. cit., pp. 22-31.

da Bahia, Brésil, p.

à l'ftude

p. 331. 84. Mello

de

na

Pacificador,

MORAES,

Quelques

Revolução

pp.

Crônica

Complexes

Afro-

115

res.(15) No Império, existiu uma outra instituição que levou ao mesmo resultado, a do apadrinhamento. O padrinho do es-

cravo defendia-o contra a brutalidade de seu senhor, ou impedia-o de ser castigado se fugisse. A dualidade agora funcionava entre o padrinho amado e o senhor detestado.(!º) Nos conventos,

o regime servil era geralmente mais brando, mas não necessáriamente; houve escravos mortos pelos abades e os sacerdotes casa-

vam mulatos claros com pessoas muito mais escuras, para que os

filhos fôssem

bem

negros,

e não pudessem

pretender passar a

linha de côr. Daí a necessidade, aqui também, de uma dualidade

do senhor, e esta era a do abade e do santo:

Os negros dizem que não são escravos dos monges, mas de São Benedito, do qual os frades são apenas os representantes. (17)

No

fim

do

período

escravista,

o Ódio

sempre

ameaçador

devia encontrar um nôvo derivativo. Para substituir a mão-de-obra servil que estava a ponto de desaparecer, apelou-se para a imigração européia. O exército do Brasil compreendia também mercenários estrangeiros, principalmente alemães.

Os negros não

acharam coisa melhor do que chamar os recém-chegados de ““escravos brancos”, alegraram-se em ver pessoas da mesma côr que

seus senhores trabalharem ao seu lado, viver em casas que pare-

ciam senzalas, encontrando nesse fato uma espécie de desforra contra sua sorte. E quando alguns dêsses brancos se revoltavam e os negros foram chamados a esmagar a revolta, êles o fizeram

com uma crueldade tão selvagem, que não há aqui outra explica-

ção possível que a do alemão, no caso, aparecer como substituto do senhor branco. (1º) (15)

COUTY,

L'Esclavage

feitor pode ser, em uma outra Voyages Pittoresques, II, p.

Barros LATIF, pp. 181-82. (16)

4s

Minas

KOSTER,

au

Brésil,

Gerais,

Voyages

p. 84.

...

um

negro

que

matou

um

fazenda, um excelente escravo, D. 79. ROSTER, 380, Documentos Interessantes, LVII, p. 147.

p.

169.

Pittoresques,

I,

RUGENDAS,

p.

340.

Viagem

Ferdinand

Pitoresca,

DENIS,

Brésil,

pp. 142, 146. RIBEYROLLES, Brésil Pittoresque, p. 45. Cf. EXPILLY, Le Brésil tel qu'il est, cap. VI. ' (17) Sôbre a escravidão nos conventos e esta dualidade do senhor, ver

KOSTER,

Voyages

do

p.

Pittoresques,

IX,

pp.

45,

369-72.

Brasilianische

Zustânde,

p. 50. B. P. KIDDER, Reminiscências, II, p. 142. HANDELMANN, História do Brasil, p. 375. J. DORNAS Filho, 4 Escravidão, p. 243. A. GRANT, História Brasil,

104.

G.

FREYRE,

Casa-grande,

no

II,

pp.

315-16

(diferenças

da

sorte

dos escravos segundo os conventos, a multiplicação dos jejuns mais por motivo econômico que religioso), e Sobrados, p. 340 (as experiências genéticas dos jesuítas). F. CONTREIRAS RODRIGUES, Traços da Economia, pp. 63-4. Do ponto de vista católico: P. SERAFIM LEITE, História da

Companhia

de

Jesus

Brasil,

Pp.

357-59.

(18) As Memórias de um Colono de DAVATZ são sintomáticas desta primeira mentalidade do fazendeiro, ainda habituado à escravidão e que vê no imigrante um substituto do escravo, pp. 84, 114, 123, 215, 262. ESóbre o apêlo aos negros contra os colonos, tbid., p. 269. Sôbre os massacres dos soldados alemães pelos negros, ver E. Th. BOSCHE, Quadros Alternados, D. 102. Ferdinand DENIS, Brésil, p. 154.

116

Por fim, ao lado da derivação, há a sublimação da agressividade frustrada. Sublimação da luta violenta que se torna um

jôgo, a capoeira.

Sublimação do ódio racial que se torna um

Teremos de voltar a essas manifesta-

motivo literário, o desafio.

ções que envolvem às vêzes protestos religiosos. No momento só estudaremos a mais curiosa dessas formas sublimadas: o Tes-

tamento de Judas.

“Trata-se de um velho costume português que passou à colônia.(1º) Consistia de, no sábado de aleluia, passear pelas ruas da vila ou da cidade um homem de palha, representando Judas, e finalmente queimá-lo, afogá-lo ou enforcá-lo. O Judas devia se tornar o substituto das autoridades, e um meio para a grande massa se livrar, simbôlicamente,

de seus complexos

de inferiori-

dade. Mas, no Brasil, onde a estratificação das idades, dos sexos, dos clãs e das raças era particularmente pronunciada, êle produziu também curiosa estratificação do costume. Assim, no Rio,

havia o Judas da córte com fogos de artifício oferecidos pelo imperador; havia o Judas da classe média dos brancos, em particular

dos

empregados

em

casas

de

comércio

e que

consistia

também de fogos de artifício, representando Judas enforcado pelo Diabo, e o Judas dos moleques de rua, onde os negrinhos

pareciam

ser mais

numerosos

que os meninos

brancos;

havia,

a uma

árvore

enfim, o Judas dos negros e dos mulatos escuros, cheio de bombas, que era preparado

à noite, que se prendia

e que finalmente se fazia explodir.(2º) Se os brancos com isso se livravam de seus protestos frustrados, ou dando aos bonecos a aparência de pessoas importantes do govêrno (por exemplo no

Rio

em

1831),(*!)

ou distribuindo nas casas Testamentos

Judas, ridicularizando os grandes

senhores do lugar,(22)

de

com

mais razão o negro aí devia livrar-se de sua agressividade racial,

e disso temos uma prova no fato de que êle representava Judas

em

(19) R.AM.S.P., (VI, p. 70. efígie (queima de estátua)

judeus

ao

catolicismo

A do

origem judeu.

(cristão-novos),

ou

dêste costume é o auto-de-fé Depois, com a conversão dos

da

fuga

de

Portugal,

a

do judeu foi substituída pela de Judas. Marianne BAILLIE deixou descrição desta cerimônia em Lisboa na sua obra Lisbon in the Years 1822

e 1823, 1, p. 67. (20) DEBRET, Viagem,

II,

p.

198,

para

a

oposição

entre

o

efígie

uma 1821,

Judas

da

côórte da classe média e da classe pobre. KIDDER, Brasil, para o Judas dos negros, p. 120. A gravura 21 das Voyages de DEBRET mostra bem & separação dos negros e dos brancos na festa de Judas. Cf. SAINTCHILAIRE, Voyages dans les Provinces de Saint-Paul, II, pp. 195-96. (21) DEBRET, op. cit., cita uma proibição de 1863: “Todos aquéêles que no

sábado

de

Aleluia

fizerem

um

G. BARROSO,

Através

dos

Judas

semelhante

a

qualquer

pessoa

serão punidos com uma multa de 30 84”. Cf. R.A.M.S.P., LVI, p. 70. F. DENIS escreve em 1837: “Ora a alusão é geral e se dirige a tôda uma classe, ora torna-se pessoal e é frequentemente uma observação política que se faz a grandes personalidades”, F. DENIS, Brésil, p. 135.

(22)

Folklores,

pp. 40-2.

117

como um homem torturado por um Diabo negro.(**) Dupla vingança para êle. É um branco, Judas, quem traiu Cristo, e são êles, os negros, que são chamados de diabos, por causa de sua côr, que servem de instrumentos à justiça divina. Todo êsse jôgo subterrâneo de sentimentos não impedia,

entretanto, que surgissem de vez em quando insurreições gerais

dos homens de côr. Mas, para poder passar do ódio individual à resistência coletiva, era preciso evidentemente uma espécie de catalisador comum. Logo veremos que a religião foi precisamente êsse catalisador. O negro tinha um outro meio de protestar contra a escravidão: escapando. Essas fugas no comêço e mesmo depois, no

Império, foram individuais. está ausente.

ganhava

do

Nesses casos, o elemento religioso

O escravo culpado, que queria escapar ao castigo,

à noite a floresta e aí se perdia.(?!)

Mas, principalmente no período colonial e mesmo no início século XIX, êsses fugitivos, para evitar serem presos no-

vamente,

para escapar também

uma existência vêzes de índios Dessa maneira, pouco a pouco,

aos perigos de enfrentar a sós

difícil na floresta cheia de animais selvagens, às desconhecidos, tomaram o hábito de se reunir. formava-se um pequeno grupo que aumentava a ponto de formar verdadeiras cidades: são os

quilombos ou mocambos. Nessas repúblicas negras, sobretudo quando o fugitivo era um recém-chegado da Africa, os antigos costumes

tribais ressuscitavam,

e, por

conseguinte,

aqui

ainda,

como para o caso da agressão, a passagem do individual ao coletivo se faz, ao menos em parte, sob a égide da religião.

Todavia, antes de abordar êsses dois grandes fenômenos de

resistências

coletivas,

os quilombos

e as insurreições,

devemos

dizer ainda uma palavra sôbre uma terceira escapatória possível à escravidão: o suicídio.

A permeabilidade ao suicídio era como a tendência à agres-

são, variável

moçambique

segundo as etnias; o mina mata,

suicidam-se.(25)

o gabonês ou o

Mas é um fato constante que o

(23) DEBRET, op, cit., gravura 21 e p. 197. (24) WALSCH, op. cit. p. 343. KOSTER, Voyages Pittoresques, II, p. 397. Rocha POMBO, História do Brasil, 1, p. 562. TAUNAY, História da

Vila

de

S.

Paulo,

Anais

do

Museu

Paulista,

VII,

p.

121.

Diogo

de

VASCON-

CELOS, História Média de Minas Gerais, p. 164. D'ASSIER, Le Brésil Contemporain, p. 99. TOLLENARE, Notas Dominicaes, p. 55. SAINT-HILAIRE, Voyage dans le District des Diamants, p. 242, diz que os portuguêses chamavam êsses negros isolados de “ribeirinhos”. WALSCH, Notices, p, 342. R.I.H.G.B., LVI, 1893, pp. 164-65. (25) Suicídios dos galinhas, Braz do AMARAL, op. cit., p. 479; dos gaboneses, KOSTER, Voyages Pittoresques, I, p. 362, TAUNAY, História do Café, III, p. 232; os moçambiques, KOSTER, op. cit. p. 363, SPIX e MARTIUS, Através da Bahia, p. 99, em nota; dos minas, TAUNAY, História do Café, III, p. 240,

118

suicídio, enquanto

em

sua forma

egoísta, para empregar

a ex-

pressão durkheimiana, é raro ou inexistente nos povos ditos não

civilizados, (2º) o suicídio de escravos é, em compensação, muito

freqiiente.(27) do branco,

O suicídio é uma forma de resistência à cultura

e é a forma

mais

apreciada

ao contato opressor refugiando-se na morte.

pelos

fracos; foge-se

O negro do Brasil

sabia perfeitamente que seu suicídio era um ato de guerra, porque o escravo custava caro, e quando todo um grupo jurava deixar-se morrer, ou envenenar-se em conjunto, seguramente

dessa maneira o patrão ficaria arruinado. Essa foi uma forma de vingança que os escravos souberam utilizar. (28) Ora, O que nos interessa mais particularmente é que o sui-

cídio foi também um protesto religioso. Tschudi, surpreendendo-se com o fato dos suicídios de escravos serem mais numerosos entre fazendeiros bons que entre os outros, pesquisou para descobrir o motivo; disseram-lhe, então, que o fato devia se explicar

provavelmente

pela influência de seu sacerdotes,

os quiombos,

que nêles desenvolvem não um ódio particular contra essa ou aquela pessoa, mas um ódio racial. A explicação lhe pareceu plausível; pode ser também

que muitos dos escravos, acrescenta

êle, sendo descendentes de príncipes ou de pequenos reis afri-

canos, não pudessem suportar o regime servil e matavam-se para encontrar seus ancestrais, para juntar-se a êles no outro mundo.(2º) Seja como fôr, influência do clero, ou influência das

crenças

míticas,

O suicídio tem

sua origem

na mística.

Temos

também um outro testemunho em uma narrativa de d'Assier que relata uma conversa que manteve com um negro. Prêso por negreiros e trazido ao Brasil, seu interlocutor decidira enforcar-se com seus companheiros “a fim de voltar o mais breve possível ao nosso país”. Entretanto, a coragem faltou-lhes no derradeiro

instante e um só se matou.

O feitor fêz soltar o corpo, cortou-

-jhe a cabeça e pregou-a num poste: “Agora, que êle volte, se o desejar, para seu país, isto é indiferente, sua cabeça aqui per-

manecerá e todo filho da puta que fizer como êle, terá a mesma

sorte, reaparecerá

sem cabeça”.

“Compreendeis,

acrescentou

o

pobre homem, que não se pode encontrar o caminho de seu país

(26) DURKHEIM, Le Suicide, pp. 233-34, (27) Duraram até o fim da escravidão; o relatório do chefe de polícia do Rio em 1866 registra que de 23 suicídios, 16 foram de escravos. Sôbre a frequência do suicídio entre escravos, ver CORRE, Ethnographie Criminelle, Ralnuald, Paris, 1894, LX-521, p. 26. Segundo KIDDER e FLETCHER, embora melhor tratados no Brasil que nos Estados Unidos, os escravos aqui se sSuicidavam

(28) (29)

mais.

KIDDER

KOSTER, Voyages 'TSCHUDI, Reisen

e

FLETCHER,

O

Brasil

e os

Pittoresques, I, p. 363. durch Sud-Amerika, II,

Brasileiros,

pp.

76-9.

|

p.

146.

119

quando não se tem cabeça”. Dessa maneira, preferiu fugir para a floresta onde vivia de raízes, de frutos e de algumas aves domésticas roubadas à noite, mais foi prêso e agora, velho resignado, esperava o fim próximo: “Sou velho, não tardarei a voltar ao

país”.(*º)

Contudo, o elemento religioso não nos deve fazer esquecer

que êle só se revelou sob a ação do sofrimento e como resistên-

cia à escravidão.

A importância de um elemento social ao lado

de um elemento místico manifesta-se no fato de que os suicídios

de escravos são quase sempre suicídios de homens. A mulher, mais habituada ao trabalho agrícola que o homem, por causa da divisão sexual das ocupações na Africa, e cujo destino era

já uma espécie de servidão doméstica, em geral adaptou-se me-

lhor à escravidão; ela geralmente não se mata.(º*!) Ao suicídio pode-se aproximar o banzo, a nostalgia do país

natal.

Muitos

negros não podiam suportar

seu nôvo habitat.

Pouco a pouco estiolavam, definhavam, depois morriam de nostalgia.(*º) Entretanto, não se pode falar de um patriotismo negro, nem de um sentimento afetivo para com um lugar geográfico qualquer. O banzo se explica, pois, por um outro patriotismo que não o nosso, e onde a religião, mais uma vez, tem sua parte. O lugar onde se nasce não é um mero sistema de acidentes geográficos, montanhas, lagos ou rios, é um todo social-geográfico onde os mitos locais, cais determinados de

a divisão das tribos no solo, os loreunião das sociedades secretas, etc.,

constituem um único e mesmo todo. O africano não separa o mundo material, como nós o fazemos, do conjunto dos valôres que ocupam cada qual posição ecológica nesse mundo; êle não



a colina

como

uma

colina,

mas

como

a morada

dêste

ou

daquele espírito, ou como o centro tradicional desta ou daquela

cerimônia.

Marcel Mauss mostrou que o espaço entre os “pri-

mitivos” é essencialmente heterogêneo, onde cada ponto tem suas características próprias, sua natureza distinta. Podemos então dizer que o banzo não é a nostalgia própriamente falando, é uma certa disposição ecológica da cultura, é a saudade da con-

figuração

tribal, e também

religiosa,

no espaço,

obstante,

tentativas

de

e se o escravo

morre, é porque esta configuração não pôde recriar-se no Brasil. Não

houve

recriá-la,

para

refazer

uma nova África, tentativas aliás espontâneas, nascidas, como o (30)

(31)

A.

d'ASSIER,

FREYRESS,

Le

Brésil

Halserthum

(32) Rocha POMBO, Ilistória Através da Bahia, p. 99, em nota.

120

Contemporain, Brasilien,

p.

do Brasil, p. Paulo PRADO,

pp.

160.

26-8.

561. SPIX e MARTIUS, Retrato do Brastl, cap. 3.

dissemos, da reunião em massa, num mesmo lugar, de escravos fugitivos. Chegou o momento, pois, de estudar os quilombos um pouco mais detalhadamente. ak

x

ak

Palmares

Não se sabe exatamente em que lugar preciso do Estado de Alagoas localizavam-se os quilombos de Palmares, nem em que data foram estabelecidos.(%8) Em todo caso, existiam desde a época da ocupação holandesa, no norte do Brasil, e uma pri-

meira expedição foi enviada contra êles em 1645, segundo o

diário de viagem do capitão Jean Blaer. Palmares era então dividido em dois quilombos, um grande e um pequeno, com

respectivamente

6 e 5 000 habitantes.(**)

A expedição encon-

trou inicialmente um velho quilombo abandonado por ser muito insalubre.

Depois chegou ao “grande Palmares” do qual o diário

nos dá a seguinte descrição:

As casas eram em número de 220 e no meio delas erguia-se uma igreja, quatro forjas e uma grande casa de conselho: havia entre os habitantes tôda espécie de artífices e o rei os governava com severa justiça, não permitindo feiticeiro entre a sua gente, e quando alguns negros fugiam mandava-lhes crioulos ao encalço e uma vez apanhados eram mortos, de sorte que entre êles reinava o terror, principalmente nos negros da Angola. O rei também tinha uma casa de campo a duas milhas daí, com terras abundantes. (35)

Quando

a expedição holandesa chegou a êsses lugares, os

quilombolas tinham fugido e encontrou-se apenas alguns anciãos,

mulheres e crianças. O quilombo pouco a pouco se reconstituiu e tomou o nome de Macaco. Um manuscrito anônimo nos dá também uma descrição: (33) Sôbre êsses problemas de localização geográfica e temporal de Palmares, ver Nina RODRIGUES, Os Africanos no Brastl, pp. 115, 126, 150. Alfredo BRANDÃO, “Os Negros na História de Alagoas”, Estudos Atro-brasileiros,

pp.

(34)

devem

em

61,

ser

Às

63,

64,

cifras

66,

68,

73,

que são

exageradas.

Jean

75.

de

BARLEUS,

LAERT

avalia

Res

Gestae

a população

Mauritit...,

do

Grande

Dp.

270,

Palmares:

1500 habitantes. Fr, de BRITO FREYRE em 30 000, Nova Lusitânia, p. 281. (35) Brleven en Pepieren tn Brasilian, trad. port. de Alfredo de CARVALHO, R. 1. 4. G. de Pernambuco, E, março, 1902, p. 37.

J21

O rei habita sua cidade real chamada Macaco porque aí morreu êsse animal, é a metrópole entre tôdas as cidades e lugares habitados, é fortificada por um muro de barro (...) Aí habitam os ministros da Justiça para as execuções necessárias e tôdas as instituições de qualquer república aqui são imitadas (...) Reconhecem-se todos obedientes a um que se chama o Ganga Zumba, que quer dizer Senhor Grande; a êste tem por seu rei todos os mais, tanto os naturais dos Palmares, como os vindos de fora; tem palácios, casas da sua família, é assistido de guardas e oficiais, que costumam ter as Casas Reais; é tratado com todos os respeitos de Rei e com tôdas as cerimônias de Senhor; os que chegam à sua presença põem logo o joelho no chão e batem as palmas das mãos, sinal do seu reconhecimento e protestação da sua excelência, chamam-lhe Majestade, obedecem-lhe por admiração. (38)

A cidade tinha 1 500 casas e nela havia uma capela onde se encontrou uma imagem do Menino Jesus, outra de São Brás e outra de Nossa Senhora da Conceição. Mas Macaco não era a única cidade. Os quilombolas estavam distribuídos ao longo da Serra da Barriga, formando um conjunto de vilas e de povoações fortificadas, aliás federadas entre si por laços dinásticos.

Houve mais de 18 expedições enviadas para destruir esta

“Tróia Negra” como se lhe chamou. Mas sempre renascia de suas cinzas. A mais célebre dessas expedições foi a de Fernão Carrilho que amedrontou tão terrivelmente os africanos fugitivos, que

granjeou

entre

êles

“a

fama

de

feiticeiro”.(3')

Seguiu-se

depois uma tentativa de paz entre os portuguêses e os quilombolas. (*8)

sória.

|

Mas essa paz foi apenas momentânea e completamente iluZumbi, sobrinho do rei, retomou armas. Foi preciso ape-

lar a um

antigo mestre de campo,

Domingos

Jorge Velho,

que

com seus paulistas, seus índios, os soldados do lugar e, diz-se mesmo, seis peças de artilharia, iniciou uma longa e renhida luta, que deveria terminar pela destruição mais ou menos completa de todos êsses quilombos e com a morte de Zumbi. (3º) As terras foram distribuídas aos vencedores; os negros que não tinham sido massacrados voltaram à escravidão. Palmares, (36) quilombo

de

que

achar,

senta

R.I.H.G.B., t. 47; mais recentemente, Benjamim PERET (que fol o de Palmares, Anhembi, 66, maio, 1956, pp. 469-86) opõe-se à idéia

o reino

anos

(37) (38)

de

Palmares

hipotéticamente,

de

existência

uma

de

teve

sempre

evolução

Palmares.

da

êsse

mesmo

forma

caráter,

política

E. ENNES, As Guerras nos Palmares, pp. 44, 161. É. CARNEIRO, O Quilombo de Palmares, p. 102

no e

e

teima

curso

segs.

de

em

ses-

(39) 8. da ROCHA PITTA, História da América Portuguêsa, 2,* ed., pp. 45-6. Oliveira MARTINS, O Brasil e as Colônias Portuguêsas, 5.» ed., pp. 65-6. Rocha POMBO, História do Brasil, V, pp. 359-63. Nina RODRIGUES, Os Africanos no Brasil, p. 132.

12%

não obstante, não estava de todo morto.

Ainda em 1703 o negro

Camuango, que escapara aos massacres, reconstituiu um pequeno quilombo que precisou ser destruído.(*º) Os outros fugitivos de Palmares reuniram-se aos quilombolas da Paraíba, em Cumbé, sendo finalmente exterminados

em

1735.(41)

(42)

Palmares suscita tôda uma série de problemas que devemos

examinar.

Para começar,

era êle formado

de diversas etnias ou

tinha unidade racial? Ayres do Casal afirma que Palmares foi fundado por 40 negros de Guiné.(“º) Isso é possível para o primeiro Palmares na época da ocupação holandesa; mas, mesmo assim, não se pode afirmar que os primeiros quilombolas fôssem todos negros da África Ocidental, porque o têrmo Guiné

designava na época, como o dissemos, tôda a costa atlântica da

Africa; de resto, o que significava êsse pequeno núcleo para u'a massa de 11 000 habitantes? Parece que os ousados defensores da Tróia Negra foram principalmente bantos: a velha Madalena que foi enviada como embaixatriz a Palmares era angola, o prisioneiro Gaspar era chefe de campo dos angolas; sem dúvida, o nome de Bengola dado a um irmão do rei é a expressão de sua origem étnica e deve ser lido Bengala; o nome de Zumbi, o último rei do quilombo, é originário da língua bunda, e designa o

deus da luz; as expressões de Gana, Iomba, Gana Zona dadas (40) (41)

Gestae

Mário Sôbre

BEHRING, as Guerras

Maurttit...,

pp.

“A de

270-71,.

Morte de Palmares,

R.I.H.G.B.,

Zumbi”, Don Casmurro, 2-B-1941. ver: Documentos: BARLEUS, Res

II,

p,

153,

tomo

XIV,

p.

491.

Revista do Instituto do Ceará, “Dezenove Documentos sôbre os Palmares”, XVI, pp. 161-91. Francisco de BRITO FREYRE, Nova Lusitânia, Lisboa, 1675. J. NIEUHOFF, Remarkables Voyages and Travels to Brazil, p. 8. Sebastião da ROCHA PITTA, História da América Portuguêsa, 1.º ed. 1730. Jean BLAER, “Diário de Viagem aos Palmares", R.I.H. de Pernambuco, março, 1902. Ernesto ENNES, 4s Guerras nos Palmares. Coleção de documentos inéditos publicados em São Paulo, Cia. Ed. Nacional, Brasiliana, vol. 127, 1938, 502 pp. Relação das guerras feitas aos Palmares de Pernambuco no tempo do governador D. Pedro de Almeida de 1675 a 1677, R.I.H.G.B., XXII, p. 303. A. BRANDÃO, “Documentos Antigos Sôbre a Guerra dos Negros Palmarinos”,

O

Negro

no

Brasil,

pp.

275-89.

Estudos

Históricos

ou

Soctológicos:

HAN-

DELMANN, História do Brasil, fim do cap. VIII. Mário MELO, Dentro da História, pp. 101-16. VARNHAGEN, História Geral do Brasil, 3.» ed. UI, p. 319, Pedro PAULINO DA FONSECA, “Memórias dos Feitos que se Deram Durante os Primeiros Anos de Guerra com os Negros Quilombolas dos Palmares, seu Destrôço em Junho de 1178”, R.I.H.G.B., XXXIX, pp 193-322. Dias CABRAL, “Narração de Alguns Sucessos Relativos à Guerra com os Negros Quilombolas dos Palmares de 1668 a 1680”, R.I.H. de Alagoas, 1875, Nina RO-

DRIGUES, Os Ajricanos no Brastl, pp. 115-45. Diversos: Estudos Afro«brasileiros, pp. 60-77. É. CARNEIRO, O Quilombo dos Palmares, SP, 1947, 246 pp. pp.

de

Benjamin 230-49, e

Jayme

consultar chegando

de

PERET, 66, pp.

“Que foi o Quilombo 467-86. A essa lista

ALTAVILLA,

O Quilombo

dos

dos Palmares”, Anhembi, n.º 65, pode-se acrescentar o romance

Palmares,

com precaução porque o Autor mistura dados inclusive a fazer dos sacerdotes do quilombo,

mas

que

é

preciso

de épocas diferentes, alufás muçulmanos!

(422) A. VIDAL, “Três Séculos de Escravidão na Paraíba”, Estudos Afroebrasiletros, pp. 109-10. (43) Ayres do CASAL, Cronographia Brasileira, citado por Nina RO-

DRIGUES,

op.

cit.

p.

133.

123

aos irmãos do rei pertencem à mesma língua e são corrupções

de ngana que significa Senhor; Zona e Iomba devem estar ligados à palavra mona que significa irmão na língua bunda e filho na kimbunda; Ganga é também uma corrupção de nganga, Senhor Grande; Nina Rodrigues relaciona o têrmo de Zumba à expressão cazumba onde o prefixo ca denuncia a origem banto.(**) O fato dos guinés terem uma mitologia bem constituída, e por isso mais resistente ao cristianismo que o vago animismo dos bantos, é mais um fator a apoiar esta argumentação. A existência de uma igreja com imagens de santos tende, pois, a confirmar que Palmares foi um quilombo banto. Um documento recente, enfim, encontrado nos Arquivos de Lisboa diz que os quilombolas chamavam suas cidades de “Angola Janga, Angola pequena”. (4)

Mas, é evidente que êsses bantos eram recrutados entre as mais

diferentes nações e disso temos

dos

habitantes

de

Palmares

um

testemunho

chamarem-se

direto no fato

malungo;

ora,

o

P.

Vieira nos diz em um de seus sermões: “O espírito de associação é tão próprio e natural aos negros, que êles consideram como

parentes todos os indivíduos da mesma côr e companheiros ou malungo, todos os que embarcaram no mesmo navio”.(tº) Vimos que o navio negreiro tinha quase sempre uma carga de cativos das mais variadas tribos. Portanto, o fato de se darem o nome de malungo significava que Palmares não era uma tribo, mas um cadinho de povos, reunidos nesse navio imóvel, feito de montanhas e de rochedos, batido pelo mar verde das florestas, qual um outro oceano. (*7) O segundo problema que se apresenta é o da organização

social de Palmares e seu significado.

Espacialmente o quilombo

se apresenta, como o vimos, como uma série de aldeias fortifica-

das, separadas umas das outras por grandes distâncias. Mas, sabemos também que havia, espalhadas entre êsses lugares, cercados de paliçadas e onde os negócios públicos eram tratados, pequenas cabanas cercadas de plantações, situadas principalmen-

te nas orlas das florestas. Essas casas campestres eram feitas de ramos e seu teto de sapé.(*º) Porém, isso é tudo o que sabemos e várias explicações possíveis restam para se entender desta organização ecológica. Pode-se imaginar que havia dois tipos de casa para uma mesma família, uma urbana, se se deseja, local de resi-

dência habitual, e uma casa rural que era habitada sômente na (44)

(45)

(46)

(47) (48)

124

Nina

RODRIGUES,

E. ENNES, A.

op.

BRANDÃO,

cit.,

op.

op.

cit.

Pp. 295.

cit.,

p.

pp.

157-60.

67.

ALTAVILLA, Op. cit., p. 35. BARLEUS, Op. cit. pp. 270-71. Nina RODRIGUES,

op. cit., p. 135.

época das colheitas ou das plantações.

palácio e sua casa de campo.

O rei, diz-se, tinha seu

O fato, citado por Barleus, de que

se dançava nessas casas rústicas com: grande barulho até à meia-

-noite não significava que elas fôssem habitadas regularmente, já que as danças talvez pudessem ser festas agrárias, realizadas no início e no fim das colheitas. Do mesmo modo pode-se pensar

que as cidades tinham sobretudo uma função política e militar e que havia tôda uma

organização

cuja estratificação social se

firmara: havia a capital real, com seus sacerdotes e magistrados, sua sala do conselho que era, talvez, mui simplesmente a casa dos homens; havia Sucupira, habitada pelo irmão do rei e praça forte, onde se preparavam os soldados para a defesa da confederação; havia as administrações dos diversos quilombolas, sedes

dos potentados; e, finalmente, a massa trabalhadora rural que

vivia constantemente em seus pequenos pomares, afastados uns dos outros, não indo à cidade senão em casos de ataque dos brancos. Ao lado das informações que temos sôbre o habitat, possui-

mos outras relativas ao trajar dêsses negros fugitivos.

Quando

do envio de embaixadores dos Palmares ao governador, o aspecto dos negros de tal maneira surpreendeu aos portuguêses que êstes nos deixaram uma descrição detalhada. Eram bárbaros nus, o sexo coberto, uns trazendo a barba trançada, outros com barba e bigodes postiços, outros, enfim, inteiramente barbeados.

Todavia, não sabemos se essas distinções correspondiam a sobrevivências tribais ou a diferenças de classe, de posição social, ou,

o que é também

possível, a sobrevivências

étnicas que teriam

mudado de função, tornando-se critérios de estratificação social. Em todo caso, um fato é certo, esta estratificação social evidenciava-se no vestir; sabemos que os chefes que eram os únicos

vestidos usavam trajes feitos de tecidos roubados ou comprados aos portuguêses.

Parece também que eram os únicos a ter fuzis.

Os outros negros eram armados de arcos e flechas, punhais ou cimitarras.(*º) Sua

economia

era complexa.

Os

homens

se dedicavam

à

caça e à pesca. Laert encontrou em sua expedição armadilhas abandonadas na floresta, e Rocha Pitta nos fala de um lago

abundante de peixes perto do qual foi construído um quilombo.

Praticavam a agricultura, e, ao que parece, uma agricultura meio

individualista, meio coletiva. A propriedade das terras era familiar, mas tem-se a impressão de que tôda a aldeia se entregava (49)

Sôbre

o

traje,

ver

Rocha

PITTA,

op.

cit.,

p.

237.

125

às lides agrícolas.

Em verdade, Barleus nos diz que o trabalho

era feito duas vêzes por ano, primeiro para a plantação e a cul-

tura, depois para a colheita do milho.

O que indica o caráter

coletivo desta economia é o fato dêsses dois tipos de trabalho agrícola se processarem cerimonialmente, seguindo-se um perío-

do de repouso de 14 dias em que os habitantes se entregavam ao prazer de festas religiosas, diríamos nós, talvez mesmo

de sacri-

fícios agrários, como hoje ainda existe entre os bantos africanos.

Dessa forma, a economia dos Palmares se opõe radicalmente

à

economia dos colonos brancos da época. De um lado, a pequena propriedade familiar, a terra trabalhada pela família e seus escra-

vos (porque, como veremos, os quilombolas não suprimiram a escravidão), de outro, o latifúndio. De um lado, uma economia baseada em larga escala na do país de origem, isto é, conservando seu ritmo religioso; de outro, uma economia assentada na monocultura,

com vista na venda e no lucro, inteiramente leiga,

se bem que o capelão inaugurasse o trabalho do engenho com missa solene e a bênção dos trabalhadores. Acrescentemos a

tudo isso o fato dos habitantes dos Palmares ignorarem a domesticação dos animais. (5º)

Entretanto, a economia não estava essencialmente baseada na atividade agrícola. Havia nas cidades numerosos artesãos, dos quais não sabemos o número, nem a natureza das ocupações. Os brancos só se interessavam, evidentemente, por aquelas que lhes pareciam as mais perigosas, isto é, a fabricação de

armas,

Enfim,

não ignoravam

o comércio.

O grande

número

de

governador,

não nos devem

fazer esquecer que houve também

expedições punitivas dirigidas contra êles, as queixas de assaltos, de roubos e de raptos enviadas pelos brancos das cercanias ao

longos períodos de paz, quando os negros comerciavam pacificamente com os colonos. Trocavam os produtos de suas terras ou

os frutos da floresta por armas, por pólvora, por balas, por ves-

tidos ou tecidos da Europa para seu chefe, e mesmo, segundo Rocha Pitta que conheceu sobreviventes desta época, por prata. Não sabemos se a última informação procede, e nem para que

lhes servia esta prata, se era transformada em bijuteria, se era

considerada como tendo valor mágico, ou se servia posterior-

(50) Sôbre a economia agrícola, ver BARLEUS, op. cit. p. PITTA, Op. cit., p. 240. Brito FREYRE, op. cit., p. 280. Segundo

op.

cit.

trabalho

pp.

469-86,

coletivo

dos

teria

negros

havido

uma

fugitivos

evolução

nos

economia baseada na escravidão, os escravos e as da agricultura e os homens da caça ou da guerra.

126

na

primórdios

economia,

do

270. Rocha B. PERET, desde

quilomba

mulheres

até

o

a

ocupando-se

mente a outras compras. Em todo caso, a economia dos Palmares é, antes de mais nada, como tôdas as economias primitivas, uma economia de escambo. Parece que êsse comércio se fazia principalmente do branco para o negro e não do negro quilombola com o branco. Barleus nos conta que uma das expedições holandesas tinha sido preparada por um certo Bartholomeu Lintz que vivera vários dias no quilombo para trazer informações úteis; é evidente que, apesar de Barleus não dizer, êsse Lintz não teria

podido demorar em Palmares a não ser por viagem de comércio. Rocha Pitta nos dá ainda mais detalhes. Tipos de comunicações secretas eram estabelecidas entre os quilombolas e os fazendeiros;

êstes recebiam dos primeiros salvo-condutos, consistindo de determinados sinais ou figuras, e seus escravos que subiam até Palmares, graças a êsses papéis, não eram nem molestados, nem

aprisionados. (º!)

Mas o que mais impressionou aos colonizadores foi a organização política. Já dissemos que os diversos quilombos formavam uma espécie de federação sob a autoridade de um rei, que dirigia todo o seu domínio com o auxílio de potentados, frequentemente escolhidos entre seus próprios parentes, cada qual

à frente de uma das aldeias.

O rei era eleito.

Elegiam para seu príncipe, ou rei, a quem davam o nome de Zumbi (nome que em língua africana significa Diabo) um dos seus mais inteligentes e corajosos, e embora a sua autoridade fôsse eletiva, era todavia vitalícia e a ela tinham direito todos os negros, mulatos ou mamelucos de mais reto procedimento, coragem e experiência; e não se conta nem se sabe que entre êles hou-

vesse

partido

(...)

nem

que

no

espaço

de

quase

60

anos

que

viveram independentes, e se governaram, matassem para entronizar outro, (52) prestando todos pronta obediência e respeito ao eleito logo que se concluía a eleição, que era direta; isto é, os que votassem em um punham-se em um lado, os que queriam outro separavam-se dos precedentes, pertencendo o poder ao que era escolhido pelo maior número sem que nesta eleição houvesse a menor desavença.

Magistrados cercavam o rei para a administração da comunidade e também havia uma casa do Conselho na metrópole onde se discutiam negócios gerais. Muito se escreveu sôbre o signifi-

cado dêsse regime político e por causa da eleição do chefe, da possibilidade de todos concorrerem aos mais altos cargos, falou-

(51) fSôbre o comércio, ver BARLEUS, op. cit., p. 270. Rocha op.

cit., (52) ftôsse a brancos

p.

ALTAVILLA, Op. cit. p. 32, em nota. PITTA, op. cit. p. 238. N. RODRIGUES,

133. É. CARNEIRO, Op. cit., pp. 59-60. O fenômeno, portanto, verificou-se no fim do Palmares; talvez consequência da desorganização que as lutas contínuas contra os não podiam deixar de ocasionar internamente.

127

-se de uma república negra, comparou-se Palmares ao Haiti, como

também se quis ver nesse quilombo o primeiro grito da indepen-

dência brasileira contra o regime colonial. Outros, ao contrário, como os holandeses, pensaram que êsses negros não faziam mais que copiar a organização dos portuguêses, confundindo sem dúvida a casa dos homens, que chamam de Grande Conselho,

com as câmaras municipais da colônia que se ocupavam dos negócios locais. Nenhuma dessas opiniões é exata. Nina Rodri-

gues está muito mais próximo da verdade quando compara essa

realeza às africanas, mas prejudicou sua argumentação porque citou apenas as realezas dos negros fugitivos. Na realidade, não é somente a realezas de revoltados que é preciso se ater para compreender Palmares, mas ao estado social dos negros africanos, que conheciam o regime dinástico, à eleição e discussão dos

assuntos tribais pelos adultos ou pelos velhos. Palmares é, antes

de tudo, um retôrno

à tradição africana.

O que também muito surpreendeu os historiadores brancos foi que o quilombo não formava um amontoado de fugitivos, um caos indistinto de indivíduos unidos por um protesto comum contra a escravidão, mas um verdadeiro Estado civilizado:

Entre êste povo eram castigados com pena de morte o homicídio, o adultério e o roubo, porque mesmo o que era lícito fazer aos brancos, com os quais, diziam, estavam em guerra, era-lhes vedado, sob pena de morte, praticar com os seus. Aos escravos que voluntáriamente se lhes iam oferecer e juntar, con-

cediam liberdade; os que, porém, tomavam por fôrça ficavam cativos e podiam ser vendidos. Também impunham pena capital aos que,

tendo

ido

voluntáriamente,

feitas

nas

memórias

resolviam

voltar

ao

domínio

branco.

Aquêles porém que eram escravos e que tinham sido aprisionados pela fôrça não eram punidos com a morte quando intentavam desertar. Estas leis não eram escritas mas conservavam-se pertal

maneira

que,

e tradições,

quando

impressas nas memórias primeiros fugitivos. (53)

os

dos

transmitidas

atacaram

segundos

e os

de pais

venceram,

e terceiros

a filhos,

as

de

acharam

descendentes

dos

Vê-se aqui ainda que Palmares não fazia mais que manter, em pleno sertão brasileiro, as regras tribais da Africa longínqua.

Todos êsses fatos, punição do homicídio, do roubo, do adultério, são características da organização moral ou dos costumes das

antigas comunidades das quais êsses negros foram

arrancados.

À conservação da escravidão entre os prêtos que fugiam justa(53)

Texto

de

Fernandes

GAMA

citado

por

ALTAVILLA,

op.

cit.,

p.

114. Cf. N. RODRIGUES, op. cit. p. 133, e Brito FREYRE, op. cit. p. 282.

128

mente dêsse sistema tem todo um significado face a êsse aspecto:

o de “retôrno à Africa”. Em compensação, conhecemos

trimonial.

bem menos o regime ma-

O certo é que aqui o antigo sistema tribal devia ser

forçosamente desorganizado, não tanto pelo fato do encontro das tribos, quanto pela falta de mulheres. Menos aptas a fugir que

os homens, eram em menor número e os quilombolas viram-se forçados assim a roubar mulheres das cercanias. Não se olhava a côr da pele: roubavam mulatas e mesmo brancas. (º**) Contu-

do, sabemos que a poligamia existia ao menos para os chefes:

Gangamusa, chefe da nação angola, era casado com duas filhas do rei, e êste tinha três espõsas. (55)

Agora podemos definir Palmares. Não foi uma criação original e de alguma forma racional dos negros fugitivos, findan-

do-se uma constituição republicana ou uma monarquiá eletiva, estabelecendo leis e instituindo magistraturas inéditas, mas um fenômeno de resistência cultural, de “regressão tribal”, um esfór-

ço dos africanos para reconstituir as antigas organizações bantos, (5º) contra a desagregação de seus costumes em contato com os brancos. Foi algo semelhante à recriação da Africa em plena

Guiana Holandesa que ainda hoje subsiste, estudada, entre outros,

por M. Herskovits e espõsa, em Rebel Destiny.(*”) Todavia, tôda reação, pelo simples fato de ser uma reação, não pode che-

gar a uma reconstituição fiel do passado; é sempre atingido pelo objeto ou coisa contra o qual se luta, principalmente quando já houve contato com uma cultura estrangeira dominante. Se se acrescenta a influência do meio exterior, diferente do habitat pri-

mitivo, e ainda impregnado de valôres indígenas, compreender-se-á que Palmares devia integrar em si elementos externos, apresentar um certo sincretismo. Por exemplo, a agricultura lembra bem a África, mas os produtos cultivados são o milho e a cana-

-de-açúcar. (54) (55)

Os nomes dos lugares são na maioria têrmos bantos,

Sôbre o rapto das mulheres, ver N. RODRIGUES, op. Documento de 4 de fevereiro de 1678 citado por A.

“Documentos

Antigos

Sôbre

a Guerra

dos

Negros

Palmarinos”,

O

cíit., p. 132. BRANDÃO,

Negro

no

Brastl, p. 283. BLAER em 1645 escreve a propósito dos casamentos dos quilombolas: “Éles escolhem um dos mais instruídos entre si, que veneram como um cura que os batiza e os casa. Todavia, o batismo sem a forma exigida pela Igreja e os casamentos sem as peculiaridades reclamedas pela

lei da op.

netureza

cit., (56)

(...)

Seu

pp. 43 e 189. Êste ponto foi

apetite

| bem

é a regra de suas

observado

escolhas”, &. CARNEIRO,

principalmente

por

J.

H.

RODRI-

GUES e J. RIBEIRO, Civilização Holandesa no Brasil, p. 375. A. ARINOS DE MELO FRANCO, Conceito de Civilização Brasileira, pp. 121-29, e A. RAMOS, Culturas (57)

la

Negras, p. 363. Fr. e J. M. HERSKOVITS,

Vie. Spirituelle

Negroes

of

Dutch

et

Soctale

Guyana.

des

Rebel

Djuka.

Destiny.

Norton

VAN

KAHN,

LIER,

Djuka,

Notes

the

sur

Bush

129

como se aí houvesse uma vontade de africanizar o país, de trans-

formar a geografia, mas, mesmo assim, certas palavras indígenas subsistem para designar acidentes geográficos. É no seio dêsse

fenômeno de resistência e sincretismo culturais que devemos estudar a religião de Palmares, na medida infelizmente bastante limitada em que a conhecemos. Segundo o testemunho dos holandeses, esta religião seria uma cópia mal feita do catolicismo dos portuguêses. Éles falam

de capela, de imagens de santos, de padres, calcados no modêlo dos brancos.(*8) Francisco de Brito diz que os negros conservaram o catolicismo de seus antigos senhores, “se bem que de modo

ridículo, falta mais de ignorância que de maldade”.('º)

Vimos

também que o rei de Palmares proibira o fetichismo no quilombo. Na realidade, há aí um certo número de graves confusões desculpáveis,

aliás, para a época.

Os bantos, que tinham uma

mitologia relativamente pobre, identificaram seus espíritos com os santos católicos, e as imagens descobertas pelos conquistado-

res eram, portanto, representações dêsses espíritos adorados por

éles.

A proibição do fetichismo, se a informação é precisa, pode

se aplicar seja pela reação dos bantos contra os orixás dos primeiros fugitivos guineanos, seja pela rivalidade entre sacerdotes e

feiticeiros. Rocha Pitta está, pois, mais próximo da verdade quando nos diz que os quilombolas conservaram do catolicismo o sinal da cruz e certas orações mal repetidas, que misturavam

a

palavras e cerimônias de suas religiões nativas, ou inventadas por êles.(ºº)

Nesse texto antigo, achamos já observadas

as desco-

bertas recentemente feitas pelos estudiosos dos contatos culturais,

ou sejam, a existência de um sincretismo, a conservação de elementos da cultura primitiva e, enfim, o fato dêsse sincretismo

não consistir em uma simples adição de elementos justapostos,

que apenas se misturam, mas de uma simbiose que ocasiona O aparecimento de novas instituições.(*!) Parece que foi isso o

que de fato aconteceu em Palmares. Quais eram os elementos africanos dessa simbiose? Nós os ignoramos e não podemos descobrilos senão indiretamente. Barleus conta que os colonos brancos que moravam nas imedia-

ções do quilombo

ficavam

acordados

durante a noite com

o

(58) BARLEUS, op. cit., p. 270, e Diária de Viagem do Capitão J. Blaer Palmares, citado em apêndice ao livro de É. CARNEIRO. (59) Brito FREYRE, op. cit. p. 281. (80) Rocha PITTA, op. cit., p. 237. (61) Prefácio de MALINOWSEKI ao livro de L. SHAPERA, The Contriduttons of Western Clivilizations to Modern Kratla Culture, apud Revista Bimestre Cubana, KLIX, maio-junho, 1942.

ao

130

barulho que vinha das casas dos negros fugitivos, pelo ruído dos

pés que batiam no chão e que repercutia até muito longe.

Essas

danças duravam até a meia-noite, depois do que os negros dormiam até às 9 ou 10 horas da manhã.(º*2) Sem dúvida há entre os bantos danças profanas ao lado de danças religiosas, mas era

provável que, mesmo cerimônias

assim,

litúrgicas.

algumas

Como

delas fizessem

Barleus

nos



essa

parte de

informação

juntamente com outras relativas ao seu tipo de economia agríco-

la, sugerimos

que

talvez essas

cerimônias

fôóssem

que é mais evidente é o caráter religioso da realeza.

agrárias.

O

Os nomes

que foram conservados do rei e de seu irmão, comandante dos

exércitos, não são nomes de pessoas, mas nomes genéricos, titu-

los místicos — nhor

Ganga, o rei, é a palavra kimbunda nganga, Se-

Grande,

e Zumbi,

a suprema

divindade.

A resistência contra o branco foi, portanto, uma resistência

religiosa e social.

ak

*

x

Os Outros Quilombos

Se Palmares foi o mais célebre e indubitâvelmente o maior de todos os quilombos, não foi o único. A história e a geografia do Brasil (muitos lugares ainda se chamam Quilombo, em recor-

dação dos negros fugitivos que aí se fixaram) (*) nos revelam a importância da fuga coletiva e da resistência à escravidão e à assimilação da cultura dos brancos. Muitos dêsses quilombos foram construídos próximo a lugares povoados, mas outros, porém, formaram-se a grande distância, no coração das florestas. Surge assim, um outro fenômeno que estudaremos posteriormente, o contato entre as culturas africana e indígena. Esse contato, (62)

(63)

Estados

BARLEUS,

Perdigão

do

Sul,

op.

cit.

p.

MALHEIROS,

onde

a

271.

4

Escravidão

população

africana

era

no

Brasil,

menos

p.

37.

numerosa,

Mesmo

como

nos em

Banta Catarina, encontramos nomes iguais de lugares, ao todo seis nos municípios de Florianópolis, Tijucas Imaruí e Chepecó, BOITEAUX, Dicionário Histórico e Geográfico do Estado de Santa Catarina. Com mais razão ainda os encontramos nos Estados do centro e do Norte. No Guia Postal do Brasil de 1930, encontram-se nada menos que 101 agências postais com êste nome, 35 em Minas, 22 em São Paulo, 19 no Rio. Na forma

mocambo:

preciso

28 na

ainda

Bahia,

acrescentar

10 no Piauí, 50

nomes

de

8 em

Sergipe,

montanhas

5 em

e rios,

Pernambuco,

Apontamentos

feria para

o Dicionário Geográfico do Brasil de Moreira PINTO; cf. A. de E. TAUNAY, História do Tráfico no Brasil, pp. 51-2. Histôricamente, os documentos mais antigos datam do comêço do século XVII; são encontrados nos Dos cumentos Históricos do Arquivo Municipal do Salvador, t. I.

181

é óbvio, não deixou de repercurtir na religião dos africanos e dos índios.

O primeiro quilombo remonta quase à época do início do tráfico negreiro, em 1575, e localizava-se na Bahia. Foi destruído Luís

por

Brito

de

Uma

Almeida.(º**)

carta do

Pe.

Rodrigues

de 1597 mostra que “os primeiros inimigos dos colonos são os negros de Guiné revoltados, que vivem nas montanhas, daí saindo para cometer assaltos”.(%) Em 1607, uma carta do governador, conde de Ponde, comunica ao rei uma revolta dos negros haussa,

sempre na Bahia, enquanto em 1601 um quilombo em Itapicum

cortava

o caminho

entre

a Bahia

e Alagoas.(%)

Em

1650,

o

capitão Manoel Jordão da Silva destrói com dificuldades quilom-

bos próximos ao Rio de Janeiro.(8') Em 1671, um outro quilombo apareceu em Alagoas.(%) Em 1704, Dias da Costa é chamado a “destruir os mocambos (da Bahia), aprisionar os ne-

gros e subjugar os índios maracaz, cucuriús e os caboclos que

êles tinham domesticado”. Em 1707, Domingos Netto Pinheiro é encarregado de subjugar os mocambos que se localizavam nos distritos de tôda a serra de Jacobina e Carinhanha até o rio S. Francisco.(*) Nas imediações de São Paulo, no “rio da traição”, havia também um quilombo que durou de 1737 a 1787.(7º) Mas é a região de Minas que constituirá o centro privilegiado dêsse tipo de resistência. Esta localização se compreende facil-

mente.

A descoberta de ouro e de pedras preciosas ocasiona um

deslocamento populacional, os escravos são arrancados do trabalho agrícola para se sujeitarem ao trabalho duro da mineração;

a descoberta de novos filões e de novos rios ricos em pepitas

aumenta o fluxo de africanos, lançados, logo em seguida à sua

chegada, em novas terras; o mêdo de roubos origina uma vigilância brutal. O viajante que excursiona pelas antigas cidades de Minas Gerais fica impressionado ao deparar em tóda parte, cons-

tituindo como que o centro arquitetural da cidade, a prisão de muros espessos como se fôsse uma fortaleza. Essas prisões são o sinal de uma repressão feroz aos negros fugitivos.("!) (64) HANDELMANN, História do (65) Citada por Serafim LEITE, Brasil, II, p. 358. *

Brasil, fim do cap. VII. História da Companhia de

Jesus

(66) Felte BEZERRA, Etnias Sergipanas, p. 154. (67) Sóbre os acontecimentos de 1617 e de 1650, ver o artigo RAMOS no Boletim da Sociedade Luso-americana, n.º 24, dez., 1938, p,

(68)

(69) (70)

F. BEZERRA,

Op.

cit.,

p. 178.

U. VIANNA, Bandeiras e Sertanistas Batanos, p. 65. Nuto SANTANA cita em “O Ribeirão da Traição”, artigo

certo número de documentos sôbre êésse quilombo: pp. 17-484, XVIII, p. 116, XVIII, p. 455. Cf, TAUNAY, S. Paulo no Século XVIII, I, p. 125. (71) Barros LATIF, As Minas Gerais, p. 169.

1382

de

de 15.

no A.

jornal,

Actas XI, p. 79, XI, História da Cidade de

Mas esta repressão exasperou os ódios.

A população bran-

ca começou a viver no temor contínuo de possíveis revoltas das pessoas de côr. Pensava-se que essas sublevações eram organizadas de fora, exatamente pelos negros fugitivos dos quilombos,

Em 1719, corre o boato de que os negros conspiram para massacrar os brancos, aproveitando-se da circunstância de estarem todos reunidos na igreja, sexta-feira santa. Os quilombolas do

Rio das Mortes já teriam eleito um rei, os príncipes e os chefes

oficiais do nôvo Estado. O governador, de início cético, acabou por tomar precauções. No Rio das Mortes, o tenente-general João Ferreira Tavares deteve os reis das nações mina e angola e todos aquêles que se supunha terem sido designados como futuros magistrados da república dos negros. Em 1756, novos temores por parte dos brancos e o rumor de uma conspiração

circula, ainda, nos mesmos têrmos da precedente. Os negros deviam se aproveitar da quinta-feira santa quando os brancos visi-

tam as igrejas, e sôbre êles se precipitarem, massacrando os homens brancos e os mulatos; entretanto, as mulheres seriam

poupadas.

Um oficial teria descoberto êsse projeto e os africanos

vendo-se perdidos, refugiaram-se nas florestas.(72) Nada nos permite afirmar que conspirações tenham realmente acontecido.('3) Mas êsses boatos exprimem bem a atmosfera de terror que reinava em todo o país. Tôda a região de Campo Grande e do São Francisco estava infestada de negros fugitivos, dos quais não se podia fâcilmente

desembaraçar.

Em 1741, João Ferreira organizou uma expedição

contra êles, mas lograram escapar, reconstituíram-se e massacra-

vam os viajantes que seguiam pelo caminho de Goiás à procura de ouro.

Em

1746, nova expedição, desta vez mais feliz, onde

120 negros são aprisionados e suas terras dadas aos pioneiros brancos. Mas, em 1752, o assalto à expedição do Pe. Marcos

onde 42 homens foram massacrados, dos quais 19 escravos, mos-

trou que o perigo ainda não passara.("*) Os quilombos de Minas são certamente os mais importantes depois dos Palmares. Eram bem organizados e compreenderam uma população de 20 000 negros que tinham afluído de todos os cantos do Brasil, de São Paulo, da Bahia, aos quais se

juntaram mulatos, criminosos e bandidos, distribuídos em dezenas de povoações, das quais quatro eram grandes e fortificadas,

(12) Diogo de VASCONCELOS, História Antiga de Minas Gerais, p. 326. (73) Diogo de VASCONCELOS, História Média de Minas Gerais, pp. 164-75, e Xavier da VEIGA, Efemérides Mineiras, p. 77. (74) N. RODRIGUES, op. cit., p. 148.

188

Ambrosio,

Sapucaí.

reinando

Gareca,

Zundu,

Calaboca,

tôdas

situadas

perto

de

Cada uma tinha seu rei, seus oficiais e seus ministros, com

manifestavam

um

despotismo

sangiiinário.

atitude ambivalente:

Face

aos

brancos

de um lado, dêles desconfia-

vam, tendo um serviço de espionagem, colocando guardas ao longo dos caminhos e até nas povoações brancas; de outro, viviam do comércio e seus agentes secretos trocavam armas ou alimentos por ouro, peles e por produtos de suas colheitas. Foi preciso

organizar uma grande expedição contra êles, comandada pelo ca-

pitão Bartholomeu

Bueno de Prado,

troféus 3 000 pares de orelhas! (7º)

que voltou trazendo como

Os quilombos nunca desapareceram.

Em 1769, sempre em

Minas, há a destruição de outros quilombos em Samambaia. (7º) Em 1770, a destruição de um outro quilombo, desta vez em Mato Grosso, o de Cartola. Em 1772, em São José do Maranhão, os negros fugitivos aliam-se aos índios para atacar a povoação.("”) Em 1778, dois quilombos são destruídos no Estado de São Paulo, às margens do Tietê, formados de negros de 30 a 60 anos, todos pagãos.(7*) O encontro entre negros e índios verifica-se ainda

em 1795 em Piolho, Mato Grosso. Ali vinham se refugiando, desde há 25 anos, numerosos

escravos tendo guerreado contra os

índios das vizinhanças, os cabixé, a fim de roubar-lhes as mulhe-

res; dessas uniões nasceram mestiços (de índios e de negros) que foram chamados caborés. A expedição de Francisco Pedro de Mello devia encontrar ainda seis descendentes dêsses antigos escravos que eram os chefes, sacerdotes e médicos de seus des-

cendentes; o quilombo era composto, à parte êsses velhos negros, de caborés e de índios. Viviam da pesca e da caça, cultivavam

o milho,

o feijão prêto, favas, mandioca,

batatas-doces,

ananás,

tabaco, algodão e bananas; criavam galinhas e faziam roupas de

algodão. Em São Vicente, no primeiro quilombo aprisionado (6 negros, 8 índios, 19 índias, 10 caborés homens e 11 mulheres) (75)

J.

RESENDE

SILVA,

“A

Formação

Territorial

de

Minas

Gerais”,

Anais do III Congresso Sul-rio-grandense de História e Geografia, vbl. III, p. 707. J. DORNAS FILHO, “Povoamento do Alto 8. Francisco”, Sociologia, XVII, I, pp. 70-109. Diogo de VASCONCELOS, op. cit.. p. 164. É. CARNEIRO, O Quilombo de Carlota, obra inédita. Cônego KR. TRINDADE, op. cit., p. 277. Alres da MATA MACHADO Filho, “O Negro e o Garimpo em Minas Gerais”, R.A.M.S.P., LXI, 1939, p. 277. J. EUGÊNIO DE ASSIS, “Levante de Escravos no Distrito de São José das Queimadas, Estado do Espírito Santo”, Rev. do Museu Paulista, 1948, e I. FALCONI, “Um Quilombo Esquecido”, Correto das Artes, João Pessoa, 25-9-1949, pp. 8-9. Os quilombos de Minas existiram até o século XIX como mostram os livros de REZENDE, Recordações, p. 43, e B. GUIMARÃES, “Uma História de Quilombola”, Lendas e Romances. (78) Diogo de VASCONCELOS, op. cit., p. 168. (77)

(18)

184

Resende

N.

SILVA,

RODRIGUES,

op.

op.

cit.,

cit.,

p.

p.

707.

149.

descobriu-se que os índios e os caborés já conheciam a doutrina cristã e a língua portuguêsa, aprendidas dos antigos escravos. Mais além, foi descoberto um grande quilombo, formado por dois blocos, um de 10 e outro de 11 casas, distantes um do outro

cêrca de 50 passos. Os quilombolas abandonaram-no para reconstruí-lo mais nas profundezas das matas, sempre dividido em dois campos, mas desta vez distantes um do outro cêrca de três

léguas; o primeiro comandado

pelo negro Antônio Brandão, com

14 negros e 5 escravos, o segundo pelo antigo escravo Joaquim Félix com 13 negros e 7 negras. Talvez esta distinção em dois

campos represente a aceitação da divisão dualista dos clãs exógamos dos índios.("º) O movimento de formação dos quilombos não desapareceu senão no século XIX. Em 1810, um quilombo

é descoberto em Linhares (Estado de São Paulo).(8º) Mais ou menos em 1820, J. E. Pohl devia encontrar um quilombo na região de Minas, formado de fugitivos do Estado de São

Paulo; diz êle: “Tinham também um sacerdote que devia cele-

brar os serviços religiosos”.(8!) Existia ainda em 1828 um quilombo às portas de Recife, em Cahuca, governado por um chefe, Malunguinho, cercado de fossos e paliçadas, de onde os quilombolas saíam para fazer incursões e onde viviam sob uma forma comunista, o que parece indicar, ainda aqui, um retôrno às tradições africanas.(*?) Em 1829, os índios são encarregados de destruir um outro quilombo em Corcovado, perto do Rio.(%)

Em 1855, um outro é destruído na Amazônia, o quilombo de Maravilha. (º*) Em 1866, os negros do Pará ainda fugiam para as povoações indígenas da Guiana Francesa. (*) Como se vê, a documentação de caráter sociológico de que

dispomos para o estudo dos quilombos não é muito rica.

As

pessoas da época não se interessavam pela organização interna

e pelos costumes dêsses negros fugitivos, e sim pelas medidas militares tomadas para destruí-los. Entretanto, como em Pal-

mares, temos a impressão, na maioria dos casos, de estarmos em presença de situações de regressão tribal, de fuga para a África. A religião desempenhou um papel nesta resistência cultural, e isso (79) (80)

(81)

J.

(83)

DEBRET,

(82) pp,

Roquette PINTO, Rondônia, pp. 31-45. Documentos Interessantes, LIX, p. 319.

512-13.

E.

e

da

Reise

ainda

de cauris). (84) Fr. Protasia

Kahyana",

(85)

Rev.

Perdigão

COSTA,

Voyage

DABADIE,

encontram-se

uso

POHL,

Pereira

do

in

Inners

“Folklore

Pittoresque,

Récits,

traços

de

FRIKEL. Museu

von

p.

p.

56.

sobrevivências

da

34.

I,

WALSCH,

“Tradições

Paulista,

MALHEIROS,

Brasilien,

4

II,

Pernambucano”,

pp.

307-8.

R.I.H.G.B.,

R.I.H.G.B.,

Notices,

p.

religião

série,

Escravidão

no

1955,

Brastl,

pp.

342

90,

t. 40. vol.

(neste

africana,

Histórico-lendárias

nova

t.

144,

texto

como

O

dos Kachuyana

227-29.

cap.

II.

135

é o que prova o quilombo do rio Tietê onde todos os habitantes

eram “pagãos”. Ainda no início do século XIX, o inglês Burton descobre, entre os quilombeiros das cercanias de Diamantina, so-

brevivências africanas, como o uso de certos encantamentos e a utilização de veneno (strazoninum).(**) A medida que a civilização dos brancos se estendia para dentro da faixa litorânea e penetrava no interior, os negros fugitivos iam cada vez mais entrando em contato com os índios que aí anteriormente tinham se refugiado. Falou-se muito que os africanos e os indígenas eram ini-

migos e lutas entre êles amiúde se verificavam.

Mas o ódio co-

mum aos senhores brancos impeliu-os a uma compreensão mútua e se irmanaram.

Ora, tôda vez que essa união se verificou, nota-

-se que é o negro quem lidera a nova comunidade, seja reduzindo o índio à escravidão, como na Bahia em 1704, seja tornando-se

o chefe, militar ou religioso, como em Mato Grosso, em 1795.

Muitas vêzes um mulato, diz d'Assier em 1867, fugindo à escravidão ou desertando do serviço militar, era proclamado chefe pela tribo índia em que se refugiava. (37)

Coisa mais curiosa ainda, observamo-la por duas vêzes, é essa escolha recair sôbre uma mulher negra, e a única razão válida para isso é de ordem religiosa; a mulher passava por ter virtudes mágicas especiais, estando mais sujeita que o homem às crises místicas. Formou-se então um sincretismo religioso em que o elemento dominante devia ser fornecido pela civilização africana; foi ela que forneceu a liturgia e a mitologia, no caso

do negro sacerdote e os processos de cura mágica, no caso do

negro médico.

Mas, mais curioso ainda, é que êsse sincretismo

foi acrescido de traços culturais brancos e que o negro foi um instrumento de difusão do catolicismo português entre os índios, um catolicismo provavelmente bastante modificado e corrompido. Bem entendido, o índio também trouxe sua parcela de contribuição a êste curioso povo nascido em pleno sertão brasileiro. A organização tribal dos negros tinha sido inteiramente destruída pelo regime de escravidão e apenas subsistiu nos espíritos como uma lembrança das antigas monarquias de caráter divino. Os indígenas, ao contrário, tinham conservado sua antiga estrutura

social.

Dessa maneira, criou-se um sistema social que unia a

organização dualista da tribo indígena (os dois blocos ou campos

dos quilombos de Mato Grosso) com a federação tribal africana p.

o 486) 97. (87)

136

R.

E.

BURTON,

D'ASSIER,

Le

Explorations Bréstl

of

the

Contemporain,

Highlands p.

80.

of

the

Brazil,

II,

sob a autoridade de um rei-sacerdote, pelo menos é o que inferi-

mos dos documentos que citamos. Tudo isso certamente pertence ao passado. Porém, êsse passado não morreu sem deixar vestígios que ainda hoje se en-

contram. Não podemos saber até que altura penetraram os escravos fugitivos, nem o grau de difusão de suas culturas. Martius

pensa que devem ser muito raras as tribos ameríndias que não

entraram em contato com os africanos.(º*)

Roquette Pinto re-

monta a origem da agricultura nambiquara nos quilombos dos

caborés.(*º) Descobriram-se sobrevivências dêsses mocambos de negros fugitivos até na Amazônia, por exemplo, nas margens do

uma

Trombetas,

em

Alcobaça,

negra, Felipa Maria

cujo

Aranha,

mocambo

era

tão poderosa

dirigido

por

que os portu-

guêses precisaram se aliar a ela em lugar de combatê-la e cujos

descendentes tornaram-se guias dos viajantes que queriam descer as cataratas do Tocantins.(ºº?) Quando os lusitanos chegaram

a Passanha (Estado de Minas Gerais) tôda a região era povoada por índios malali, entre os quais viviam negros fugitivos; êsses índios haviam aceito como chefe ainda aqui uma negra.(º!) Saint-Hilaire que os visitou em 1817 os achou com o aspecto físico mais de mulatos do que de índios; o chefe malali lhe disse que sua avó era negra.(º2)

Quando Saint-Hilaire visitou em 1819 os caribocas de Minas prestes a desaparecer (não havia mais que 18 aldeias), mulatos e negros crioulos para aí vinham casar-se com as índias, a fim

de poderem desfrutar da situação privilegiada que gozavam os índios no Brasil; éle aí devia encontrar um curioso sincretismo

de crenças, onde o catolicismo desempenhava uma função indireta, nenhum

sacerdote desejando

ir à povoação.

A língua era

a tupi; Deus era adorado com o nome de Nhandinhan.(º**) Em outros lugares é a religião indígena que parece dominar, como

na povoação de Mato Alto (Minas), onde as mulheres macunis

se casam com os negros, e onde Saint-Hilaire as viu, quando o vento soprava com violência, fumar diante de suas casas para

(88) Citado por Roquette PINTO, op. cit., p. 32. Cf. Anais do Museu Paulista, V, 1931, p. 703. (89) Idem, p. 38 n. . (90) R. MORAES, Anfiteatro Amazônico, pp. 135-49. Nunes PEREIRA, “Negros Escravos na Amazônia”, Anais do X Congresso Brasileiro de Geografia, HI, 1952, p. 178. | (91) SAINT-HILAIRE, Voyage dans les Provinces de Rio de Janeiro et de Minas Gerais, 1, p. 413, (92) Id., ibid., p. 424. (93) SAINT-HILAIRE, Voyages aux Sources du Rio S. Francisco, JI, PP. 253-71.

137

espantar o furacão. Evidentemente, tudo isso acontecia verniz do cristianismo oficial. (**) Ao lado dêsses quilombos afastados, existiram por da natureza do país, das montanhas virgens cheias de próximas às grandes capitais, pequenos quilombos de

sob o causa matas, negros

puros, sem interferência do índio. Foi êsse o caso, por exemplo, do quilombo de Manoel Congo, nas matas de Santa Catarina,

perto de Petrópolis, destruído em 1839 por Caxias.(º')

Temos poucas informações sôbre o papel que aí desempenhava a religião. Mas, pode-se fazer uma idéia, pela reunião

de tôdas as etnias que conhecemos, indiretamente, pelos nomes de

alguns de seus membros: Manoel Congo, Justino Benguela, Antônio Nagô, Canuto Moçambique, Afonso Angola, Miguel Criou-

lo e Maria Crioula. O denominador comum dessas raças diversas não podia ser senão o catolicismo mais ou menos mesclado

com o “fetichismo” nativo.

Demais, êsse quilombo situa-se numa conjuntura de assassi-

nios, de mortes, de fugas individuais ou coletivas e de revoltas,

onde a religião não cessa de intervir ao lado do sofrimento físico e moral. Talvez mesmo a maçonaria tenha dado aos homens de côr a idéia de uma revolta geral, posterior ao esmagamento do

quilombo de Santa Catarina por Caxias, visto que uma subleva-

ção foi preparada por uma sociedade secreta dividida em círculos de 5 membros, que não se conheciam, cada um sendo ligado somente por um presidente ao chefe supremo, um mulato livre, ferreiro, Estevão Pimentel (1847). Mas os negros não tinham ainda a tradição da sociedade maçônica; tinham um patrono

negro, Klbanda,

e tinham mais confiança em

sua intervenção

sobrenatural que na organização e nas ações políticas. Foi êsse catolicismo atrevido e semipagão que os perdeu e fêz malograr

a conspiração. Se bem que esta tentativa de revolta fôsse posterior ao quilombo, ela nos esclarece e justifica nossa hipótese precedente de que nessa época o elemento religioso que susten-

tava a fé dêsses indivíduos humildes ancestral que o cristianismo popular.

era menos

o “fetichismo”

Mas êsses são fenômenos posteriores que datam do Império. Para os tempos coloniais, nos cremos autorizados a dizer que os quilombos foram um fenômeno de resistência de uma civilização

que não quer morrer; por conseguinte, uma luta em que a religião (94)

SAINT-HILAIRE,

(95) Carlos LACERDA R.A., 1935, 50 pp. Temos

enviado trado

136

nos

por

P.

de

Arquivos

Voyages

CARVALHO de

auz

MARCOS, O igualmente

Mariana.

NETO,

Provinces

Quilombo em mãos

sôbre

um

de

Rito,

de um

II,

p. 49.

Manoel Congo, Rio, documento inédito

quilombo

no

Rio,

encon-

Africana tem lugar de destaque, do mesmo modo que um simples protesto contra o regime de escravidão. O que confirma êsse modo de ver as coisas é que os quilombos estão transformados, que a tradição negra os relembrou, e como outrora os me-

nestréis cantaram os feitos de Carlos Magno

e de seus bravos

em suas canções de gesta, da mesma forma Palmares tornou-se

um drama popular, mesclado de cantos e danças, subsistindo em

Alagoas

até o comêço

do século XIX,

no folclore dos negros.

Ora, êsses quilombos da massa de côr conservaram o caráter de um protesto racial: O

Diverte-te negro branco aqui não vem Se êle vier

O

diabo

o

levará.(98)

Os sociólogos que estudam os contatos de civilizações heterogêneas são obrigados a classificar os fenômenos nos quadros conceituais para melhor interpretá-los e para distinguir assim os fatos de* 'contra-aculturação” dos fatos de “sincretismo” que seriam o contrário dos primeiros, fatos de acomodação à civilização dominante. Na realidade, êsses conceitos atingem apenas

um certo grau de abstração.

O sincretismo é sempre mais ou

menos “contra-aculturativo”, “sincrética”.

e a aculturação

mais

ou

menos

O estado do escravo fugitivo é mais uma nostalgia da África

do que sua reconstituição exata

(no caso brasileiro, a reconsti-

tuição principalmente da África banto, com seus grandes reinos),

visto que as condições geográficas, demográficas, políticas são

outras, às quais é preciso se adaptar. Sobretudo, não se pode separar êsse estado da situação social total em que aparece e

que é de luta de um grupo explorado contra a classe dirigente.

O quilombo ou o mocambo está sempre em pé de guerra; ora, não se luta adaptando-se ao adversário; a guerra, do mesmo modo que a troca pacífica, é um dos processos pelos quais as

civilizações se interpenetram ao mesmo tempo que se combatem.

Os quilombos são certamente não conseguiram esquecer as negros crioulos; não impede regime de escravidão, pela

mais a obra de africanos puros que realidades de seus países, que dos que já tenham sido atingidos pelo catequização, mesmo superficial e

externa: o santuário dos Palmares abriga santos católicos; o ne-

do

(98)

A. BRANDÃO,

Alagoas”,

Estudos

Viçosa

de Alagoas,

Ajfro-brasileiros,

pp.

PP. 95-8, e “Os

89-90.

Negros

na História

139

gro fugitivo levará aos índios de Mato Grosso, em lugares jamais

tocados pelas missões cristãs, os rudimentos do catolicismo.

nial,

Todos os fenômenos religiosos africanos da época coloou quase todos, devem ser interpretados através dêsse

clima de resistência cultural; mas a resistência não é um fenômeno normal: produz distorções, cria estados patológicos, endurece tanto os espíritos quanto as instituições. Uma certa

interpretação marxista do estado de escravo fugitivo não nos pareceu possível; a resistência não foi apenas essencialmente uma resistência econômica contra um determinado regime de

trabalho,

mas

a resistência

de

tôda

a civilização

africana

da

qual a dureza do trabalho servil intensificava a nostalgia. E a prova está em que a religião aqui não aparece, como hoje, separada do resto da vida social, mas, sim, como no país dos ancestrais, em estreita interpenetração. É por meio da concepção marxista da luta de classes, porém, que se pode melhor

compreender a natureza do estado do escravo fugitivo com a condição de definir a classe em tôda a sua complexidade, não

só pelo regime de produção, mas pela sua cultura própria. Dêsse ponto de vista, constitui a primeira etapa desta luta a segregação da plebe no monte Aventino. Uma segunda etapa deve seguir: a da revolução armada; se os quilombos definem melhor

as formas de resistência dos séculos XVII

revoltas constituem, século XIX.

140

por

sua

vez,

a forma

e XVIII,

característica

as

do

CAPÍTULO

IV

O Elemento Religioso da Luta Racial Vimos

dos

escravos

o lugar contra

que

ocupava

o regime

a religião

servil.

Mas

nas insurreições

nem

todos

os ho-

mens de côr eram escravos. Nas cidades principalmente formou-se pouco a pouco uma plebe composta de negros libertos dos mulatos artesãos, milicianos, soldados dos regimentos dos Henriques... e, se bem que ela constituísse a camada mais baixa da população livre, formava, em relação aos escravos,

uma camada superior na escala social.

Esta população urbana era uma população marginal.

um lado, pelo trabalho livre, aproximava-se

dos brancos

outro, pela côr, era rejeitada da verdadeira sociedade.

portanto,

incidente,

sofrer por causa

todo

de sua condição

o ressentimento

racial,

recalcado,

tôdas

De

e, de

Devia,

e, ao menor

as injustiças

suportadas em silêncio, todos os ódios acumulados, deviam se mostrar bruscamente, explodir em insurreições caóticas. Nesse nôvo tipo de revolta que vamos agora estudar, pode parecer a priori que a religião não exerça grande função. A simples pas-

sagem do regime servil para a plebe urbana era, no fundo, uma ascensão, e numa sociedade onde os brancos dominavam, subir era forçosamente assimilar-se a êles, perder, sob a côr, tudo o que

os antepassados tinham trazido consigo da Africa “bárbara

Mas,

estava a religião totalmente

A primeira

“Conspiração

dos

ausente

delas eclodiu em Alfaiates”,

porque

1798

dessas

insurreições?

e é conhecida

alguns

de seus

e seu chefe eram alfaiates, ou ainda “Conspiração

como

membros

dos Búzios”,

porque seus membros se reconheciam por essa concha africana que traziam pendurada num colar.(/) Os conjurados eram

todos pessoas humildes,

alfaiates, carpinteiros, pedreiros, obrei-

ros, mulatos ou negros livres e mesmo escravos; destacam-se sômente dêsse fundo escuro um notário, um professor de latim, (1)

G.

BARROSO, História

Secreta

Galego. Álvares do AMARAL, Resumo A. RUY, 4 Primeira Revolução Social

do

Brasil,

Cronológico, Brastleira.

1937.

p. 234

V.

CORREA,

Mata

e, principalmente

141

um tenente de artilharia, talvez sacerdote; êstes foram soltos por falta de provas. Os conspiradores de côr não eram ignorantes: dos 9 escravos detidos, um só era analfabeto; os mulatos e os negros livres sabiam todos ler; conheciam as idéias

da Revolução através dos oficiais franceses que estavam na prisão, mas com direito de sair, e com os quais se encontravam em

ágapes

fraternais;

o escravo

mestiço

Luiz

Pires

tinha

um

livro manuscrito para “desiludir as pessoas da religião”, sem dúvida tradução de algum filósofo do século XVIII. Não

obstante

a posição

do homem

de côr, a insurreição

não é uma revolta de raça, mas de classe. É uma revolta social dos deserdados da vida contra a ordem existente. Os atos de penhora mostram que tinham apenas móveis velhos, roupas usadas

e seus

instrumentos

de trabalho;

a liquidação

não

ul-

trapassou a quantia irrisória de 36$000; o único que possuía

um pouco de dinheiro líquido não tinha mais de 8$000; alguns viviam mesmo

da caridade

pública.

O que desejavam era um

regime de liberdade e de igualdade para todos:

Tomai coragem, povo da Bahia, dizia a proclamação que tinham afixado nas praças e nas igrejas, o dia feliz de nossa liberdade chega, o momento em que seremos todos irmãos, em que seremos todos iguais (...)

Mas, na medida em que a classe dos artesãos pobres era recrutada entre as pessoas de côr, a reivindicação racial se fazia juntamente com a reivindicação social. É por isso que podemos perguntar se algum elemento religioso não se introduziu em

seu

protesto.

A impressão que se tem, quando se lê os documentos do processo que pôs fim à trama, é a extrema confusão dos pensamentos

entre

os

próprios

conjurados,

alguns

ateus,

mínimo, anticlericais, alimentados nas fontes da filosofia minismo, mais ou menos bem digeridas, outros como Faustino dos Santos Lyra, com quem se encontrou, ao escritos liberais, uma considerável coleção de orações,

damente num

Roma,

religiosa.

a todos,

142

de uma

de “Amerina”.

de estar aberta Por certo, os do Rosário, de no catolicismo

parece

ter sido uma

no

do IluManuel lado de profun-

idéia co-

a da separação da igreja brasileira da igreja de

a fundação

chamavam

Entretanto,

ou,

igreja nacional independente,

que

O que a caracterizaria seria o fato

ao homem de côr e não unicamente aos brancos. brasileiros escuros podiam ter suas confrarias: São Benedito, porém, essa separação de côres revoltava a consciência de igualdade dos cons-

protestam,

que

piradores,

documento

num

com

encontrado

Luiz Gonzaga das Virgens, contra o fato de mulatos ou negros

“não serem admitidos nas corporações da igreja pública”, a êles sômente sendo permitida a formação de suas próprias “capelas particulares feitas com seu próprio dinheiro e à custa de muito trabalho” e que não são reconhecidas “da mesma essência” que as confrarias do Santo Sacramento, as ordens segundas e terceiras dos Franciscanos, Dominicanos, Beneditinos,

o protesto religioso não foi um

Dessa maneira,

Carmelitas.(?)

protesto religioso prôópriamente dito:

se reveste o protesto racial. tinha base mística, mas,

é uma das formas de que

A revolução que se preparava não mesmo

Nem

sim, social e econômica.

pretendia dar às pessoas de côr “o sentimento de espécie”, a consciência de raça. A Conspiração dos Alfaiates malogrou.

Porém, o protesto

racial passou do campo dos quilombolas ao da insurreição política, e continua daí por diante nessa linha. Encontramo-lo vinte anos depois,

na agitação

começada

em

Pernambuco

em

1817 e que devia continuar até 1824, originar a proclamação da “Confederação do Equador”, o primeiro grande movimento de independência dos brasileiros contra o regime absolutista do Império. A revolução de 1817 foi uma revolução política e não social. Proclamou a inviolabilidade da propriedade privada,

logo, garantiu proprietários de escravos e brancos nativos contra

“os portuguêses”. Todavia, alguns homens de côr, de tendências liberais, aí apareceram como chefes.(?) Entre êles, o mestiço Pedro da Silva Pedroso que foi exilado para Portugal. Quando voltou, suas idéias não tinham

mudado, organizou com os brancos o partido dos “liberais puros” que assumiu a liderança da revolta de 1823.(*) Como era muito popular entre as pessoas humildes e os soldados de

côr, arrastou

para

batalhões

o movimento

de mulatos

e de

negros. Uma junta popular foi designada, mas bem depressa se percebeu que os liberais recusavam-se a transformar a luta

política em luta racial; a linha de côr continuou a existir entre os brancos e os negros, se bem que unidos na mesma insur-

(2) Manuscrito do Arquivo da Bahia, Inconfidência de 1789, M. 2, n.º citado por Afonso RUY, 4 Primeira Revolução Social Brasileira, p. 122. (3) F. DENIS, Brésil, p. 258. Muniz TAVARES, História da Revolução Pernambucana. Cf. também Pedro CALMON, História do Brasil na Poesia

20,

do

Povo, (4)

Dentro

pp.

A.

da

de

96-100,

CARVALHO,

História,

p.

117

Estudos

e segs.

F.

Pernambucanos,

P.

do

AMARAL,

p.

259.

Mário

Escavações,

MELO,

p, 230.

143

reição; assim, os revolucionários brancos tentaram se livrar de Pedroso, tirando-lhe o título de comandante de tôdas as Fórças

Armadas.

Sua popularidade, contudo, era tal que saiu vencedor

e foi a Junta que finalmente teve de resignar, não êle.

O pro-

testo racial podia, agora, se manifestar livremente. Conta-se que Pedroso gostava de comer cercado de negros e de mulatos, tendo estreitada contra si uma negra, a quem

dizia: “Sempre amei esta côr, é a minha raça”.(*) Na cidade, abandonada pelos brancos, que tinham fugido ou que se encontravam entocados em suas casas, a populaça de côr, bêbada e seminua, vagueava cantando: É preciso

acabar

com

Os marinheiros e os brancos! Só os mestiços e os negros Devem habitar esta terra!(8)

Pouco

durou

êste breve período

de exaltação, chamado

o

govêrno dos “Matutos”. O exército regular destruiu a rebelião; os batalhões de negros e mulatos livres abandonaram-na quase no fim e Pedroso foi feito prisioneiro. No fundo, não obstante a presença de negros livres, quando bem

se

mulatos

examinam

suas

estruturas,

que própriamente

essas

de negros

revoltas

são

mais

e explicam-se mais

de

pela

posição marginal do mestiço, prêso entre duas culturas, ao mesmo tempo repelido pelo branco e pelo escravo, que por um

sentimento racial bastante pronunciado.

A prova disso temos

no fato de que o exército regular foi ajudado em sua luta contra os revolucionários pelos senhores de engenho assustados, sendo que as tropas dêsses senhores eram formadas por seus colonos, seus vaqueiros e também por seus escravos.(") Temos ainda uma outra prova no movimento de insubordinação que devia surgir no ano seguinte, ou seja, em 1824, também no Recife. Os

espíritos

pudesse

estavam

resultar

bastante

em

superexcitados

seguida.

A

notícia

para

da

due

a calma

insurreição

dos

negros no Haiti, assim que foi conhecida no Brasil, fêz com que o regimento dos mulatos (sempre êles), comandados por Emi-

liano

(5)

Mandurucci, Frei

CANECA,

se

Obras

sublevasse Políticas,

ao

p.

159.

canto

do

seguinte

(6) “Marinheiros” era o têrmo pejorativo que designava e “Calados”, aquêles que se embranquecem com cal, têrmo designava os brancos. (7) G. FREYRE, Regido e Tradição, pp. 189-90.

144

hino:

os portuguêses pejorativo que

Que

eu

imite

Cristóvão,

Êste haitiano

imortal

Imitai, pois, seu povo, Ó meu povo soberano! (8)

Mas

degenerou

desta vez a revolta não se espalhou. em

banditismo,

sendo

Recife

A insurreição

saqueada,

restabele-

cendo a ordem na cidade os negros do regimento dos Henriques. A medida que avançamos no século XIX, as revoltas tomam um caráter social mais acentuado. É que o regime imperial, permitindo à luta dos partidos a tomada de uma forma legal, não restava outra forma através da qual os infelizes pudessem fazer ouvir sua Voz. Ora, como a plebe na sua maioria era composta de pessoas de côr, veremos o protesto racial se introduzir no protesto social. Isto já é bem evidente na revolta dos “Cabanos”, das “pessoas sem terra” do Ceará lutando contra os proprietários brancos. Porém, esta revolta não nos interessa porque aí o elemento dominante é o índio. Em com-

pensação, a dos “Balaios” deve nos interessar.(?)

(1838), em que domina

Havia então no Maranhão

o africano,

dois partidos, o dos conserva-

dores e o dos liberais, conhecidos

como

os Bem-te-vis.

Ésses

apelaram para um grupo de bandidos, composto de homens de côr, que assolavam o sertão, a fim de ajudar na luta contra seus adversários. Este bando fôra organizado por um negro, Raimundo

Gomes, alcunhado de “Figura Negra”, que, tendo contas a ajustar com a justiça, fugira para o mato e levara junto outros

fugitivos de seu tipo. Entretanto, fóra bem sucedido, principalmente em aumentá-lo, apelando para as reivindicações raciais. Conclamava

os escravos

a deixarem

seu jugo,

a revoltarem-se

contra seus senhores; assim, transformou pouco a pouco seu bando de pilhagens numa hoste desejosa de redenção social. Entre os que se uniram a Gomes, encontrava-se um negro cha-

mado “Balaio”, porque fazia cêstos e que, dizia-se, ofertara a sua cabana para hospedar o oficial encarregado de perseguir os

bandidos, e fôra recompensado por êsse seu gesto aquela noite com a violação de suas duas filhas pelo dito oficial. Bem depressa,

nhas,

"(B)

o

“Balaio”

se tornou,

verdadeiro

chefe

por

sua

dêsse

crueldade,

exército

que

por

suas

faça-

compreendia

F. P. do AMARAL, Op. cit, p. 427.

(D) “Viriato CORREA, 4 Balaiada, se bem que em forma romanceada, e José GONÇALVES DE MAGALHAES, “Memória Histórica e Documentada da Revolução da Província de Maranhão”, R.I.H.G.B., X, 1848, pp. 236-362.

145

negros, também mulatos, como o “Ruivo”, caboclos como “Co-

qui” e brancos, e que chegou a reunir até 6 000 homens. Os Bem-te-vis chamaram à Caxias o “Balaio” para que aí os desembaraçasse

de seus adversários.

Mas, se êste aceitou

não foi para tomar partido numa disputa de brancos e sim para ganhar duplamente, como bandido, pilhando uma cidade que

se lhe oferecia e como homem

de côr, vingando-se dos brancos.

O prefeito de Caxias defendeu sua cidade, mas esta foi facil-

mente tomada e entregue à pilhagem. O que nos interessa, todavia, não é êste elemento de banditismo, se bem que seja essencial, mas o protesto racial que aí se fêz presente. O Balaio tomava em cada cidade que ocupava uma mulher branca e,

quando ela não mais lhe agradava, mandava chamar um padre

para casá-la com um de seus negros. Houve geria que não se podem entender senão por há muito nutridos no silêncio, como a de abrir homem e cosêlo novamente com um leitão

delmann

nos

dá a verdadeira

razão

desta

cenas de selvaódios raciais de o ventre de um dentro (e Han-

explosão

de ódio

racial quando nos diz que o ponto de partida da “Balaiada” foi uma lei que modificava as atribuições de certas autoridades

judiciárias, brancos

tornadas

correndo

queriam

livres).

o boato

em

todo

o sertão

de

que

os

“escravizar” de nôvo tôdas as pessoas de côr Mas,

o banditismo

leva

finalmente

vantagem

sôbre êste ódio do negro outrora maltratado: os brancos têm a vida poupada quando oferecem um grande resgaste. Se o

elemento racial fôra preponderante, cido que existia na mesma época,

rios

Tutuoi

e

Priá,

na

fazenda

o Balaio não teria esqueperto do litoral, entre os

Tocangura,

um

quilombo

de

3 000 negros, cujo chefe Gomes se intitulava “o imperador do Brasil”. Ora, êle não pensou sequer um momento em juntar

essas fôrças às suas. O conjunto de escravos na província permaneceu tranquilo, continuou seu trabalho na fidelidade aos senhores.(1º)

Se olharmos para trás, seremos levados a notar, todavia, que, através das lutas políticas e econômicas, uma grande trans-

formação

se

processando

operou.

sempre

nas

O

recrutamento

camadas

cada

revolucionário

vez mais

vai

baixas;

se

dos

melhores brancos, passou sucessivamente aos mulatos, depois aos

artesãos livres, depois aos soldados e finalmente à massa analfabeta. As últimas sublevações em que aparece o homem de côr são dêsse tipo, como a revolta dos Praieiros em 1848, em

que quiseram expulsar os portuguêses, chegando mesmo (10)

146

Caio

PRADO,

Evolução

Politica,

cap.

12.

a mas-

sacrar alguns

e que foi preparada por uma

campanha

na im-

prensa feita por um mulato, Figueiredo, socialista e adepto de

Fourier, a favor do desmembramento dos latifúndios e da redistribuição de terras; (!!) a dos guabirus, em 1848, da mesma

forma dirigida contra a imigração européia. Na realidade, é um fato comprovado que em todo lugar em que o imigrante

branco se introduz acaba por ultrapassar o artesão de côr, mulato ou negro livre, que vive plâcidamente de seu pequeno ofício. A luta dos guabirus é a luta dos mestiços ou dos negros possuídos pela fome contra os “ratos” brancos que vêm tomar"lhes seu ganha-pão.(!2) Houve também em Minas uma insurreição, em 1820, menos conhecida, mas que apresenta um caráter assaz especial: foi uma insurreição legal. Quando Portugal adotou uma Constituição democrática,

os prêtos das lavagens de ouro de Guaracaba (Cuaraciaba), Santa Rita, Cantagalo e de Saraguá (Sabará?), auxiliados por um fazendeiro muito rico, também prêto, nas margens do rio das Mortes, reunidos em o Fanado, fizeram proclamar a Constituição em tôdas as margens do Abaeté em Tapuias, e Araguaia, unindo-se a êstes parte das hordas selvagens de guerreiros, que habitam nas suas ribeiras. Não obstante houve forte combate entre os prêtos do Arraial de S. Bárbara e os habitantes de Paraibuna, onde os prêtos são civilizados. O fazendeiro negro Argoins reuniu um exército de 21 000 negros, a que se agregaram dois regimentos de Cavalaria. Matavam

sem piedade os que, sendo prêtos, não os seguiam;

bandeiras

e ostentavam

distintivos.

possuíam

Uma proclamação foi dirigida ao povo: “Em Portugal proclamou-se a Constituição, que nos iguala aos Brancos: esta mesma (Cons-

tituição jurou-se aqui no Brasil (...) Morte aos que nos oprimirão. Prêtos miseráveis! Vêde a vossa escravidão: já sois livres. No Campo da honra derramai a última gôta de Sangue pela Constituição

que

fizeram

os

nossos

irmãos

de

Portugal!”

Encontramos aqui a mesma aspiração de igualdade com que deparamos no Recife e na Bahia. Contudo, a repressão não tardou a chegar: proprietários de escravos, e mesmo freis e bispos, tomaram armas e destruiram o movimento, afogando-o num mar de sangue.(!*)

O elemento religioso ou cultural, que desempenhou papel tão importante na formação dos quilombos, parece ter desapa(11)

Amaro

O Sentido Social 204 (12) B. José

-5.

(13)

publicados

J.

QUINTAL, da de

DORNAS

na

4

Revolução

Revolução Praieira, SOUZA, Dicionário

Revista

Filho,

do

4

Escravidão,

Arquivo

Praieira,

p. 34. da Terra pp.

Mineiro,

V,

p. 39 e

da

120-22,

p.

e, do Gente

segundo

158.

mesmo do

autor,

Brasil,

pp,

os documentos

147

recido dêste conjunto nôvo de revoltas, onde o econômico é mais essencial que a mística, onde a reivindicação racial está essencialmente

unida

à reivindicação social.

Todavia, houve ao lado dessas insurreições, outras revoltas,

mais de escravos que de mulatos ou de negros livres, aos quais se uniram escravos fugitivos e quilombolas apenas por acaso. Passaremos a examiná-las e veremos que o elemento religioso vai retomar, ao contrário, tôda sua importância. Essas sublevações foram obra principalmente dos negros

muçulmanos. estourasse,

A primeira, que foi impedida antes mesmo

ocorreu

em

28

de

maio

de

1807.

Os

haussas

que

ti-

nham designado em cada um dos bairros da cidade de Salvador um capitão para comandá-los e um embaixador encarregado

de efetuar

a ligação

entre os

escravos.

O

mínimo

que

ambicionavam era massacrar tôda a população branca, segundo alguns; conforme outros, pôr fogo na capela de Nazaré e aproveitarem-se da amotinação que se seguiria, para apoderar-se

de

algumas

embarcações

e voltar

para

a Africa.

Contudo,

foram traídos, provavelmente por um negro de outra nação; dez dos principais capitães foram presos antes de terem executado seu plano, e — o que principalmente nos interessa aqui — descobriu-se na casa de um dêles, além de armas, “certas composições supersticiosas e de seu uso a que chama-

vam mandingas, com que se supõem invulneráveis e ao abrigo de qualquer dor ou ofensa”. Em 1809, uma segunda sublevação. Desta vez os haussas

aliam-se

refúgio

aos

nagôs;

na mata,

os

escravos

de onde

saíam

urbanos

e rurais procuraram

para roubar,

incendiar,

assas-

sinar. Não puderam resistir às Fórças Militares contra êles enviadas. Mas a sindicância que se seguiu devia revelar a exis-

tência

de uma

sociedade

secreta dêsses

escravos,

Obgoni

ou

Ahogbo. Ora, as Ogboni e as Oro, cujos chefes são os Ologbo, enquanto Ahogbo é uma de suas divindades, são precisamente

sociedades secretas africanas que, como

munho,

africanos.

foram

Por

reconstituídas certo,

os

se vê por êsse teste-

no Brasil pelos

africanistas

descendentes

insistiram

sobretudo

dos

no

caráter político dessas sociedades, que estariam encarregadas de perseguir e punir os criminosos; contudo, Bascom nota com

justa razão que esta atividade política é secundária (e a prova está em que as Ogboni não têm voz nos assuntos da cidade), que essas sociedades, que têm a mesma natureza das confrarias dos deuses, continuam com o culto da Terra-Mãe (culto mais

antigo que o dos orixás e por êste encoberto).

148

Assim,

ainda

aqui, é em tôrno da religião que se articula a revolta dos negros contra os brancos.(!!) Em 28 de fevereiro de 1813, 600 haussas das fazendas de

Manuel Ignacio de Cunha Menezes, J. Vaz de Carvalho e de outras vizinhas queimaram suas senzalas, marcharam sôbre a povoação de Itapoã onde se reuniram aos negros do lugar, massacraram os brancos que lhes resistiam, sendo porém finalmente dizimados pela tropa. O elemento místico não faltou aqui também, senão na revolta, pelo menos no movimento dos espíritos que a preparou. Os negros tinham o direito tradicional de associação para celebrar suas festas religiosas. Reuniam-se, pois, todos os domingos, sob a presidência de um

chefe escolhido, para queimar na praça de Salvador efígies de brancos. Não se dava atenção a essas reuniões. Todavia, poder-se-ia aí discernir um processo banal de magia imitativa, uma espécie de feitiço preparatório, o ritual e antes da entrada em

campo

para

destruir,

abortada,

mas

nhores inimigos. Em 1826, ainda tentativa

por

mais

onde

antecipação,

duas

era

o

tentativas.

poder

Em

fácil discernir

dos

abril,

se-

uma

a existência,

na base, do fator religioso. Foi feito prisioneiro, incapaz de fugir por causa de seus ferimentos, um rei negro, coroado de um

capuz

adornado

de

fitas,

o corpo

envôlto

por

um

manto

verde com galões de ouro e tendo nas mãos uma bandeira ver-

melha.

A rainha que o acompanhava foi morta imediatamente.

Em dezembro, alguns indivíduos decidem partir à procura de negros fugitivos que tinham formado um quilombo entre a estrada de Cabula e o baixo Urubu. O encontro foi

sangrento, e aprisionou-se uma negra que afirmou que os escravos tinham projetado uma insurreição geral na Bahia para

as vésperas do Natal e parece que o que dizia era verdade.

Em

todo caso, o que devemos

aqui

ainda considerar

é que

o

centro do quilombo e o lugar de inspiração da revolta projetada era uma

casa de candomblé,

isto é, um

gião fetichista afro-brasileira. Duas pequenas revoltas locais irrompem e em

1828.

Assim,

chegamos

templo

ainda

da reli-

em

1827

à mais grave das insurreições

de tôdas a mais conhecida, a de 1835.

e

(14) fSôbre essas sociedades secretas na África e sua verdadeira natureza, ver R. P, BAUDIN, Fétichisme et Féticheurs, p. 67. FROBENIUS, Mythologie de VAtiantide, p. 91 e segs. PARRINDER, La Religion en Ajrique Ocidental, p. 155 e segs., e, principalmente, W. R. BASCOM, The Sociological Role of the Yoruba Cult Group, p. 65 e segs., e F. M. HERSKEOVITS, Dahomey, II, pp. 178-79. Sóbre

Peoples

o têrmo

Ahogbo,

of Southern

ver DENETT,

Nigeria,

II, p.

91.

Nígerian

Studies,

cap. III, e TALBOT,

149

O número de revoltosos não ultrapassou certamente a cifra de 1.500, aí compreendidos negros fetichistas que se uniram depois aos muçulmanos. A insurreição tinha sido bem

preparada e devia irromper na noite de 24 a 25 de janeiro, em

que tôda a população de Salvador vai à Igreja do Bomfim, dei-

xando

a cidade quase deserta.

A cidade seria dividida em

5

grupos, que deviam atacar em ordem sucessiva, lançando, dessa

forma, a confusão entre os soldados, até que estando a caserna

da cavalaria tomada,

os negros subiriam até a Igreja do Bom-

fim para aí massacrar seus senhores brancos e, diz-se, elegerem não se sabe que rainha misteriosa.

Mas, ao anoitecer do dia 24, O projeto é denunciado por

uma

nagô liberta.

Precauções

são tomadas,

a sede dos revol-

tosos, uma casa próxima da subida da praça, é cercada, porém os africanos que aí se haviam refugiado, escapam repentinamente,

matando

alguns

policiais e, assim,

a rebelião começa.

Não cabe a nós aqui contar todos os detalhes desta noite san-

grenta. De manhãzinha, estava acabada, os conjurados mortos, prisioneiros ou refugiados na floresta. As “nações” de negros presos revelam a parte preponderante de muçulmanos no movimento, como dissemos, estando, todavia, os “fetichistas” junto a êles.

De fato, contavam-se

6 gêges, 21 haussas, 5 bornos,

entre êles:

165

nagôs,

3 grumas,

6 tapas, 3 cabindas, 4 congoleses,

1 camerunês, 1 barba, 3 minas, 2 calabares, 1 jabu, 1 benin, 1 mundula e também uma mulata e 1 cabra, ao todo, 220 homens

e 14 mulheres. Esta insurreição de 1835 devia ser a última. Os objetos que foram apreendidos entre os conjurados, o processo que se seguiu, os interrogatórios de prisioneiros, permitem-nos melhor

entender esta revolta em comparação com as anteriores e poder

resolver o problema de saber se essas revoltas de negros têm o caráter de insurreição econômica e social, como

a Cabanada

e a Sabinada, ou se, pelo contrário, tomam o aspecto de verdadeiras guerras religiosas.(1º) Que a religião desempenhou papel preponderante nesta revolta, desde o início, foi tão evidente que o relatório do chefe de polícia o pressentiu desde 1835: (15)

Sô0bre

essas

revoltas,

ver

Alvares

do

AMARAL,

Resumo

Cronológico,

p. 147, Braz do AMARAL, História da Bahia, pp. 119-21. E. I. BRASIL, “Os Malês”, R.I.H.G.B., LXXII, pp. 67-126. HANDELMANN, História do Brasil, p. 1813. Nina RODRIGUES, Os Ajricanos no Brasil, pp. 75-98. Aderbal

JUREMA,

Insurreições

Negras

no

Brasil,

pp.

17-32,

e

a

resposta

de A. RAMOS à A. JUREMA, “Levantes de Negros Escravos no Brasil”, Boletim da Sociedade Luso-africana do Rio de Janeiro, n.º 24, dez., 1938, pp. 15-17. Manoel QUERINO, Costumes Africanos, pp. 121-24, L. VIANNA Filho, O Negro da Bahia, p. 108 e segs.

150

Posso desde já asseverar a V. Exa,, escrevia êle ao presidente da província, que a insurreição estava tramada de muito tempo, com um segrêdo inviolável e segundo um plano superior ao que devíamos esperar de sua brutalidade e ignorância. Em geral vão quase todos sabendo ler e escrever em caracteres desconhecidos que se assemelham ao Árabe, usado entre os ussás, que figuram ter hoje combinado com os nagô (...) Existiam mestres que davam lições e tratavam de organizar a insurreição na qual entravam muitos forros africanos e até negros ricos. Têm sido encontrados muitos livros, alguns dos quais dizem serem preceitos religiosos tirados de mistura de seitas, principalmente do Alcorão (...) O certo é que a Religião tinha sua parte na sublevação, e os chefes persuadiram os miseráveis que certos papéis os livrariam da morte; isto porque encontrou-se nos corpos mortos grande porção dos ditos bem como nas vestimentas ricas e esquisitas que provavelmente perteciam aos chefes e foram achadas em algumas buscas.

O estudo de autos do processo levou primeiro Nina Rodrigues, depois Étienne Brasil e Arthur Ramos a defenderem

a

tese

1835.

No

cerdotes

çulmano

do

caráter

comêço, ou

tem

essencialmente

místico

os chefes do movimento

mestres-escola,

caráter

porém

religioso.

sabe-se

Pedro

da

sublevação

são, na maioria, que

Luna

o

ensino

era

Alumá

de

sa-

mu-

ou

Alufá, isto é, marabu, e assim era também Luís “Sanim na sua nação Tapa”. O nagô Pacífico, Licutan entre os seus, era pelos

conjurados chamado de o Sultão.

Recebia, na prisão, segundo

o depoimento do carcereiro, dias e noites, numerosas visitas de

negros e negras “que se ajoelhavam com muito respeito para lhe tomar a bênção”. O lugar que ocupava no coração de todos os muçulmanos da Bahia pode ser avaliado pela tentativa, que malogrou, de um assalto à prisão para libertá-lo e pelo esfôrço feito para conseguir a soma necessária para lhe conceder a liberdade. O carcereiro conta também que um nagô, que com êle falava através das grades de sua cela, dizia-lhe que não se afligisse, pois, “quando acabasse o jejum, êles ha-

viam de ir lá para que êle saísse liberto de uma vez”. Rodrigues,

que

analisa êsse documento,

acrescenta:

Nina

A alusão à insurreição e à sua dependência da medida propiciatória dos jejuns maometanos ou malês revela-se aqui em plena evidência.

O alufá Dandara os

Era

mestre

rapazes,

mas

em

não

sua

tinha uma terra,

é para

mal.

escola na cidade

declarou

êle,

e aqui

baixa: tem

ensinado

151

Na

sua tenda, encontraram-se

uma

túnica guerreira e um

rosário prêto sem cruz, tábuas e papéis escritos em caracteres árabes. Havia, também, a escola de Manuel Calafate, Aprígio e Conrado. A polícia aí apreendeu entre outras coisas 6 sa-

quinhos de couro que serviam de amuletos. Na casa dêsses chefes reuniam-se os

pretexto de festas ou de danças, para esta preparação se fazia sob o signo mana. As testemunhas chamadas a juízo a êsse ponto. Gaspar da Silva Cunha critos que

se lhe mostram

conjurados,

sob

o

preparar a revolta. E da propaganda muçulestão de acôrdo quanto afirma que os manus-

são de reza, pois andavam a persegui-lo para que os aprenda e deixe de ouvir missa como costumava.

Marcelina

diz

que os papéis achados são de reza dos malês, escritos e feitos pelos mestres que andam ensinando. Éstes mestres são de nação haussa, porque os nagôs não sabem e são convocados para aprender por aquêles e também por alguns de nação Tapa (...) Éles a aborreciam, dizendo que ela ia à missa adorar um pedaço de pau, que está

no

altar,

porque

as

imagens

não

têm

valor

religioso.

Os conjurados só se falavam em língua ioruba ou nagô,

chamando-se por seus verdadeiros nomes e não pelos nomes cristãos que lhes tinham sido atribuídos: Ojô, Ová, Namosin, Sanim, Sule, Dadá, Aliará, Edum, etc. Os manuscritos foram conservados. Alguns são planos de rebeliões, escritos em língua árabe. Porém, muitos são documentos religiosos. O escravo Albino, que os decifrou para a justiça, afirmou: que o segundo lhe consta já ter sido escrito, há mais de ano e meio, para o fim também de guardar o corpo das ofensas de qualquer arma, e contém orações que, depois de passadas nas tábuas, são lavadas para se beber a água que livra das armas; que o quinto, que foi achado em um breve com terra embrulhada, são como que caminhos riscados e cêrco feito, dizendo que por todo o caminho que passassem, ou ainda sendo cercados, não lhes há de acontecer coisa alguma, e por isso tinha a dita terra simbolizado o terreno do dito caminho; que o sexto é uma espécie de proclamação para ajuntar gente, com sinais ou assinaturas de vários e assinado por um nome Mala-Abubakar, afirmando que não há de acontecer coisa alguma no caminho, por que hão de passar livremente;

152

Que o nono é uma espécie de folhinha, em que os Malês sabem

o tempo dos jejuns para matarem depois carneiros. Apresentando-se-lhes duas tábuas, uma escrita e tras, êle disse que a branca já tinha sido lavada, como cara, para a água ser bebida como mandinga depois vinte vêzes, e que a outra, a escrita era a segunda aprende a escrever.(18)

Um

outra sem leêle antes indide ser escrita lição de quem

outro fato significativo é que a roupa da revolta não

é senão a mesma vestimenta litúrgica, gabão branco com cinto

vermelho,

camisa

também

vermelha,

barrete

azul

e turbante

branco, calçados brancos e também as proteções mágicas, orna-

mentos de coral, anéis brancos, amuletos em volta do pescoço, em uma palavra, todo o simbolismo das côres, das letras e dos

números

vitória.

pôsto a serviço da luta e em vista da obtenção

da

Há aí, vê-se, tôda uma série de dados que. permitem

afirmar que a revolta dos nagôs e dos haussas foi, na Bahia do início do século XIX, uma verdadeira guerra santa dos muçulmanos contra os cristãos. Contudo, êsse ponto de vista foi criticado, recentemente,

por

um

historiador

das

rebeliões

de

escravos

na

América,

Aderbal Jurema. A distinção que fizemos entre os movimentos populares e nativistas de um lado, e as insurreições negras de

outro, não lhe parece justa e êle vê, tanto numas como noutras, a expressão, antes de tudo, da luta de classes sob sua forma

colonial.

Não nega a existência de um elemento religioso, mas,

retomando em sua causa, a célebre distinção marxista, a mística não é para êle senão mera superestrutura ideológica, sendo que o único fator causal é a infra-estrutura econômica. Tudo o que a religião faz é colorir de um certo matiz a reivindicação social de uma classe oprimida; é também agregar práticas colaterais, sem nenhuma influência sôbre o movimento de revolta em si, como o uso de amuletos; dessa maneira, ainda hoje o

bandido do Nordeste, o cangaceiro, usa “fechar o corpo”, para estar ao abrigo das balas da polícia. Ninguém pensa, no entanto, religião

em

pode

dar

a seu

servir de

ser usada como

banditismo

meio,

em

raízes

místicas.

vista de um

tática revolucionária,

fim

Enfim,

econômico,

sendo o misticismo

a

sem-

pre um potencial de fôrça explosiva que pode agir como instrumento de propaganda ou de revolta. Porém, o objetivo final é a expropriação (16)

O

costume

das

de

terras

coplar

dos

versículos

brancos do

Alcorão

e sua em

posse

tábuas,

pelos

que

são

lavadas com água que é bebida ou com a qual um indivíduo se lava, para atrair sorte, continua ainda na África muçulmana. Ver, por exemplo, D. W. AMES,“The Selection of Mates, Courtship and Marriage among the Wolof”, Bul. IFAN, XVIII, 1-2, 1956, p. 160.

153

nagôs: a negra Edum, a quem Sabina pediu para ver seu amante numa

quando

reunião

de

conjurados,

variados

Assim,

evidente

“Éle



sairá

as superestru-

e católicas não fazem senão refletir o anta-

subjacente dos interêsses materiais

senhores.(!?)

É

respondeu:

fôr a hora de tomar a terra”.

turas muçulmanas

gonismo

lhe

que

e complexos.

essas

insurreições



um

de escravos

exprimem

elemento racial:

e de

sentimentos

os haussas

e

os nagôs, que na África eram senhores de escravos e de terras,

não podiam aceitar para si próprios o estigma da escravidão. Ésses povos corajosos e aguerridos não podiam se submeter, O

elemento étnico sendo ao mesmo tempo um elemento religioso, isso porque a herança social de poderio e de militarismo que

receberam era uma herança muçulmana acumulada pelas guer-

ras

seculares

contra

os

negros

fetichistas,

sequentemente, cruzadas religiosas.(!*)

constituindo,

con-

É claro que há também

um elemento econômico. Mas não é a escravidão em si mesma que essas revoltas queriam destruir e sim, únicamente, a escra-

vidão por êsses cães cristãos dos filhos de Alá, e se queriam

apoderar-se das terras não era para as trabalhar mas para nelas fazerem trabalhar os negros crioulos e os mulatos. É o ódio do muçulmano que faz surgir a revolta e não um sentimento de consciência de classe por parte dos deserdados. O êrro de Aderbal Jurema está em ter dissociado a cultura em seus elementos para procurar o fator causal entre essas partes culturais

ou sociais dessa maneira desagregadas.

É bem verdade que o

próprio regime de escravidão tendeu, pelo contato entre as di-

versas tribos africanas obrigadas a trabalharem juntas e pela ruptura com o habitat original, a dissociar o cultural, e pelo

sincretismo, a fazê-lo perder sua unidade primitiva. Contudo, vimos, os muçulmanos continuavam a ter suas escolas e seus lugares de oração, a tradição mantendo-se viva entre êles. De

mais a mais, de acórdo com o testemunho dos que estudaram seus últimos descendentes, pouco freqiientavam os outros escravos, os negros “fetichistas” ou cristãos viviam isolados e arrogantes.(1º) Daí, não devermos considerar uma infra e uma super(17) Aderbal JUREMA, Insurreições Negras no Brasil, Recife, 8. d. Um

ponto de vista análogo defendido por Djacir MENEZES, O Outro Nordeste, Rio, 1937, e por João RIBEIRO, O Elemento Negro, pp. 33-8. (18) A. RAMOS, Levantes de Escravos, op. cit., pp. 15-17. (19) James WETHEREL, Biwstl, p. 138, nota o caráter intratável e o

espírito

constante

que, quando êste Avé6-LALLEMANT,

de

mate Reise

revolta

do

negro

maometano

seu senhor, é sempre Durch Nord-brasillen,

no

Brasil

e

acentua

possuído por fé religiosa. R. p. 47, nota da mesma forma

que não se pode separar entre os minas muçulmanos, que formam como que uma ''maçonaria” poderosa, a resistência política e gocial da resistência teligiosa, ao cristianismo que se lhes quer impor.

154

estrutura

e sim

o conjunto

de sua

vida

no

Brasil

como

um

todo, onde o protesto econômico e a reivindicação cultural formam uma unidade indissolúvel. Se a isto acrescentarmos

que tôda civilização em geral tem seu centro de interêsse e que êste centro de interêsse na civilização muçulmana é, como todos sabem, o fanatismo religioso, então a revolta de 1835 nos aparecerá como uma verdadeira guerra, dirigida contra os

cristãos

em

todos

porque a economia

Não

devemos

os planos,

quer

econômico

dos brancos era uma

esquecer

que

havia

negros livres e alguns negros ricos.

quer

religioso,

economia de cristãos.

entre

os

conspiradores

A ascensão social era pois

possível para muitos dêles. Mas, como diz Alain, se é possível transigir com os interêsses porque têm sempre alguma coisa de racional, é impossível transigir com as paixões. E o fanatismo não deixou

de arder no fundo

veis. A religião não colore essência dessa revolta.

dêsses

a revolta social,

corações indomá-

está mesmo

na

155

CAPÍTULO

V

Os Dois Catolicismos A resistência da civilização e da religião africanas não pôde todavia impedir a ação do meio católico ambiente e essa civilização ou essa religião não puderam subsistir senão se sincretizando mais ou menos profundamente com o cristianismo. Somente o catolicismo do escravo da época colonial apresenta particularidades interessantes que nos reconduzem uma

outra vez ao nosso problema central, o das relações entre as estruturas sociais e o universo dos valôres místicos, Por conseguinte, é preciso nos determos nesse ponto por um momento antes de voltar às religiões africanas.

cismo

Definimos

brasileiro

num em

capítulo anterior os caracteres do catoli-

oposição

aos do catolicismo

português;

a

transição da catedral ou da igreja provincial à capela do engenho, da religião do burgo à religião doméstica com seus santos protetores, patronos do senhor, ou dos diversos atos de sua vida familiar

(São José balançando o berço do nenê, Sta. Ana

fazendo-o dormir no seio da nutriz, São Bento protegendo-o contra as picadas de grandes formigas venenosas... ).(!)

Que lugar ocupa o escravo nesta religião patriarcal? Sem dúvida, há uma grande diferença entre a escravidão antiga, onde o indivíduo é integrado por meio de uma cerimônia religiosa na família de seu senhor, e a escravidão colo-

nial,

tanto,

onde

o escravo

a similaridade

representa

um

valor

do tipo familiar,

econômico.

o patriarcalismo,

Entre-

traz

algumas nuanças a esta oposição fundamental, aproxima o escra-

vo brasileiro do escravo grego ou romano; porque êle também, numa certa medida, está integrado à família e, por conseguinte, a

seu culto. Mas a solidariedade doméstica não impede a diferen-

ciação racial e social, donde a separação do catolicismo do branco

e do negro. (1)

Gilberto FREYRE,

Casa-grande

e Senzala,

trad,

fr.

pp. 394-95.

157

Encontramos fenômenos análogos em todo lugar onde se encontrem raças diferentes. Nos Estados Unidos, o puritano protestante, sempre ávido de propagar sua fé, catequizou O

negro, porém, o culto dêste era separado do culto dos brancos: havia

duas

cerimônias

diferentes

e,

em

geral,

com

sermões

também diferentes; a segregação se estendeu a ponto de determinar o aparecimento de pregadores de côr, encarregados da edificação de seus irmãos de raça. Daí, a existência de dois protestantismos onde se exprimem as diversidades do temperamento étnico, o protestantismo mais afetivo do negro e o

protestantismo mais racional do branco.(?) No México, a igreja toma aspecto típico, a capela real sendo construída ao lado da igreja

ou,

mais

comumente

ainda,

a capela

principal

sendo

privada de uma

de suas paredes laterais, de modo

que dava

onde

permaneciam

da

simultâneamente para a nave da igreja e para um pátio fechado

os

índios

durante

o sacrifício

missa.

Dessa maneira, conciliavam-se a catolicidade da Igreja e a separação dos brancos, aos quais a nave estava reservada, dos indígenas conquistados, encerrados no pátio.(*) No Brasil, a

capela se dividia comumente também em duas partes separadas, o pórtico ea nave. À família do branco se reservavam os bancos

da

nave,

enquanto

os

escravos

permaneciam

fora,

assistindo à missa do pórtico através das portas abertas.

Por

conseguinte, o africano estava ao mesmo tempo unido e separado, participava da religião de seu amo, embora dela parti-

cipando como

um

empregava-se

uma

ser inferior; a arquitetura se modelava

hierarquia das côres.(*)

Quando

na

essa solução não era adotada,

solução análoga

à dos Estados

Unidos:

o

capelão rezava duas missas em horas diferentes, logo de manhã

para os negros e, mais tarde, para a família do senhor branco: Nas

fazendas

missa, escreve

e engenhos

o Visitador

há muitos

Cristóvão

escravos que nunca

de Gouveia

ouvem

ao prior dos Je-

suítas, ainda que tenham nelas sacerdotes que as digam, por serem as igrejas pequenas, e os escravos andam nus; e, pelo mau cheiro, não os deixam os seus senhores e portuguêses estarem nem dentro nem fora das igrejas. Além disso, logo em amanhecendo, nos dias (2) H. POWDEMAKER, After Freedom. A Cultural Study in the Deep South, principalmente pp. 221-96. Bertam WILBUR DOYLE, The Etiquette of Race Relations in the South, principalmente o cap. IV. Publicações da The Atlante University, VIII. The Negro Church, 1893. Caster GODWIN WOODBON, The History Of the Negro Church, Washington, 1921. Jerome DOWD, The Negro in American Life, cap. 25, etc. (3) Louis GILLET, “L'Art dans 1'Amérique Latine”, in A. MICHEL, Histoire de WV Art, t. VIII. (4) Luiz SAIA, “O Alpendre nas Capelas Brasileiras”, Revista do Serviço do Patrimônio Histórico, III, 1939, pp, 235-40.

158

santos, vão buscar de comer nos matos, por seus senhores não lhos dar. Pelo que nos parece que seria de muito serviço de Nosso Senhor alcançar do Papa que estendesse o privilégio que temos,

de dizer duas missas

ao dia em

diversos lugares,

a dizerem-se

no

mesmo lugar, em diversos tempos. Uma, logo pela manhã, aos escravos; e outra aos portuguêses, como se costuma. E se êste privilégio se estendesse aos clérigos seculares, para o mesmo efeito, seria grande bem, porque tôdas estas 15 ou 20 mil almas parece que não têm mais que o nome de cristãos (1584).(8)

Se,

dêsse

Estados

Unidos

ponto

de

e tendia

vista,

o Brasil

à separação

dos

se

aproximava

dois

dos

catolicismos,

não chegava, contudo, a realizá-la completamente, porque impedia à consciência de raça exprimir-se através da experiência mística, já que o catolicismo do negro era controlado por um líder branco. É o aparecimento do pregador de côr que possibilitou nos Estados Unidos a segregação de dois tipos

bem diferentes de religião, e a prova está em que após a guerra civil, são os próprios negros que reclamam a separação das Igrejas, que pedem a constituição de seitas de negros. Sen-

tiam

que

assim

poderiam

vindicações raciais.

mais

facilmente

exprimir

suas

rei-

No Brasil, pelo contrário, o negro, mesmo

o livre, não podia Quando se via um

pretender entrar nas ordens eclesiásticas. padre de côr, êste provinha ou de Cabo

Verde ou de Angola.(º”)

Se o mulato, em geral claro, pôde isso

conseguir posteriormente,(”) foi porque a mentalidade a seu res-

peito

era

diferente

no

Brasil,

em

relação

âquela

dos

Estados

Unidos, em que uma só gôta de sangue negro basta para classificar um

homem

como

negro;

o mulato

brasileiro,

como



vimos, podia se inserir fácilmente numa sociedade mais amestiçada, e se considerava, êle mesmo, mais como um membro

do grupo branco que do grupo africano. (5)

Serafim

(7)

G.

(6)

LEITE,

TOLLENARE,

F.

História

Notas

MATHISON,

da Companhia

Dominicaes,

Narrative

of

a

p.

Nos Estados

de Jesus

159.

Visit

to

Unidos,

no Brasil, II, p, 355.

Brazil,

p.

159.

Mas

êsse

gacerdote mulato não oficiava senão para a sua classe; ver: R. WALSH: “Os negros oficiam nas igrejas tal como os brancos (...) No Brasil pode-se ver um negro como ministro oficiante, os brancos recebendo O sacramento

de suas mãos”, Notices of Brazil, p. 365. Entretanto, Victor JACQUEMONT, que visitou o Prasil em 1828, nota que os negros preferem os sacerdotes mulatos aos curas brancos (A. de TAUNAY, Rio de Janeiro de Anianho, p. 513). Na época colonial, era preciso autorização da Igreja, aliás, para que

pelo

o

mulato

Papa

(Caio

pudesse

PRADO,

entrar

nas

Formação

ordens;

do

esta

Brasil

autorização

Contemporâneo,

era

p.

outorgada

278).

Sob

regime monárquico, pelo contrário, o mulato claro, quase branco, pôde alcançar os mais altos graus da hierarquia eclesiástica, tornar-se arcebispo

como D. Silveira Pimenta, Vieira (Nelson de SENNA,

bispo como D. Prudêncio Gomes Africanos no Brasil, pp. 45-6),

e

D.

Modesto

159

o mulato

é frequentemente

o líder de homens

de

cór;(º)

êste

fato não se verifica, senão raramente, no Brasil. O que resultou foi que a liderança religiosa aqui pertencia ao branco e que o catolicismo negro se justapunha ao dos seus senhores, numa esfera mais baixa da hierarquia, um pouco desdenhado e julgado inferior, mas ainda assim de natureza similar.

Esta identidade de natureza

ao lado da desigualdade

de

grau se manifestou muito bem em tôda a vida da família patriarcal. O catolicismo com seus ritos ritmava o dia como seguia também o ritmo das estações, a ronda do ano. O

escravo

entrava

nesse

ritmo

cristão

ao

lado

do

branco,

mas

sempre numa posição subordinada, estando também bem indicado que fazia parte da comunidade doméstica enquanto comu-

nidade religiosa, mas como um ser inferior e enquanto proprie-.

dade do senhor. Em suma, a estrutura da família patriarcal escravista inibia o igualitarismo cristão e se opunha ao desenvolvimento de uma das tendências características da Igreja. Um observador anglo-saxão, James Wetherel, fala da cortesia natural dos escravos, sempre solícitos a vos saudar quando

vos

como

encontram.(?)

nos

Estados

E,

de fato,

Unidos,

se

para

desenvolveu

regular

tanto

as relações

no

Brasil

raciais

e

para marcar as distâncias sociais, tôda uma etiquêta que con-

sistia de saudações estereotipadas.(!º) Mas, enquanto a etiquêta norte-americana era mais laica, a brasileira se processava num clima católico:

A saudação comum de um negro batizado do interior é “Jesus Cristo” e a resposta é “para sempre” (...) Uma outra resposta é “Em Deus”, contração da frase, “Louvado seja Deus que Taz todos os santos”. Quando no comêço eu encontrava nas estradas grupos de negros que a mim estendiam as mãos, pensava que eram mendigos. (11)

Ora, esta troca de polidez que exprimia, de um lado, a submissão do escravo, e de outro, o caráter paternal do senhor,

que de um lado os unia na mesma fé, embora ao mesmo tempo marcando bem a hierarquia de suas respectivas posições no

universo da vida religiosa, se verificava nas fazendas nas diversas partes do dia, mais especificamente na parte da manhã (8) W. LLOYD WARNER, Buford H. Color and Human Nature, Washington, 1941, (9) WETHEREL, Brazil, p. 7.

JUNKER, cap. IV.

the South, Chicago, 1937, John DOLLARD, Town, Yale University, 19937. (11) WALSCH, Op. cit., p. 341.

Caste

(10)

160

Bertram

WILBUR

DOYLE,

The

Etiquette

Walter of

and

Race

Class

A.

in

ADAMS,

Relations

a

in

Southern

antes do trabalho e na tarde depois dêle, momentos em que o negro se achava em contato direto com seus senhores. Na

parte da manhã antes da distribuição das tarefas e antes de partir, os negros cumprimentavam a autoridade com a mão, dizendo: “Louvado seja Jesus Cristo”. O senhor respondia “Para sempre”.

À tarde, cada um beijava a mão do senhor, di-

zendo: “Pai, dai-me tua bênção” ou, ainda: “Os nomes de Jesus e Maria sejam louvados”.(!?) Alguns cumprimentavam ajoelhando-se, êsse

outros

ritual tomava

uma

não.(!*) forma

Nas

famílias

ainda

mais

mais

católicas,

desenvolvida,

como

na fazenda do Jaraguá, de D. Gertrudes, visitada por Kidder.(!*) Contudo, o catolicismo não ritmava somente com essas cerimônias domésticas, o dia do escravo; ritmava também a vida da fazenda durante o ano inteiro, e, consegiientemente, o escravo

estando integrado na fazenda, participava de seu culto mas sempre na mesma posição subalterna. As grandes festas que

interrompiam

o trabalho

da família senhorial.

eram,

de início, festas de aniversário

Uma missa era então celebrada em lou-

vor ao senhor; os negros não eram admitidos na capela, deviam

permanecer fora, mas celebravam o fim da um hino, às vêzes em sua própria língua.(15)

nham

as festas agrárias,

missa cantando Em seguida vi-

a da colheita nas plantações

de café,

a do comêço da moenda nas plantações de cana-de-açúcar.

Moraes nos deixou, datando

Melo

da época imperial, uma descrição

desta última festa. Em abril, os escravos punham tudo em ordem, limpavam tudo: a casa, O pátio, o engenho. Na véspera da chegada do senhor, enfeitavam tudo com flôres, ramos verdes, troféus e arcadas, guirlandas entrelaçadas de bandeiras, enquanto os cozinheiros de côr preparavam o banquete, para o qual se havia sacrificado um boi, carneiros e inúmeras galinhas. No dia seguinte

chegava

colheitas

futuras

o senhor

cercado

de

seus parentes,

de

seus

amigos, seguido do vigário, ao som da música local. Dizia-se que não se podia começar a moenda antes de o engenho ser bento. Senão iria tudo mal, as máquinas se quebrariam, as se

estragariam,

os

escravos

morreriam,

ou

mesmo, uma desgraça atingiria a família do fazendeiro. Na capela cheia de gente, o padre dizia a missa, indo depois benzer (12) (13)

Pitoresco,

M. GRAHAM, TOLLENARE, pp.

38-43.

Voyage to Brazil, p. 146. Notas Dominicaes, p. 81,

e

RIBEYROLLES,

(14) D. P. KIDDER, Reminiscências, pp. 203-4. Cf. A. BRANDÃO, Negros na História de Alagoas”, Estudos Afro-brasileiros, p. 80. (15) D'ASSIER, Le Brésil Contemporain, p. 150.

Brasil “Os

161

o engenho. Quando êle jogava a água benta, os negros se precipitavam a fim de receber a maior quantidade possível pois criam que essa água tinha para êles podêres miraculosos de proteção.(1º) As primeiras canas eram colocadas cerimoniosamente sob a mó, bebia-se o primeiro suco do moinho e a festa terminava num grande baile. Bem entendido, êsse “baile do açúcar” estava subordinado à estratificação social, os brancos

dançando entre si, enquanto os escravos, divertiam à sua própria maneira.(17) O

escravo

não

trabalhava

nos

por outro lado,

dias

santos;

se

participava

ainda dêsse grande ciclo de festas que vai desde o Natal até a semana santa. Mas sua festa, coincidindo no tempo sempre com a de seu senhor, permanecia apenas contígua àquela, co-

memorando-se

segundo

manifestava melhor se alegrar quando

branco negro,

permanecia

outros

ritos.(!8)

Esta

“distância”

se

em

compensação,

ainda pelo fato de que se o negro devia

o branco se regozijava,

dessa maneira

à parte

das

próprias

festas

religiosas

significando que êle, o negro,

o

do

devia ten-

tar elevar-se respeitosamente à religião de seu senhor; êste, por sua vez, não

tinha de descer

até o catolicismo

de seu

escravo.

Por exemplo, o convento de Olinda, que tinha uma propriedade

de uma centena de escravos, consentia em deixá-los celebrar sua

padroeira Nossa Senhora do Rosário. para nomear um comitê, encarregado

Os negros se entendiam de fornecer as velas, de

preparar os fogos de artifício; designavam

controlar

fundos

as

despesas

necessários.

e

Se um

cotizavam-se

a

um

fim

ecônomo

de

recolher

para

os

branco aparecia era sômente para

vigiar, de mêdo que tudo terminasse em disputas e contendas.(!º)

Em outras fazendas, o proprietário até mesmo contribuía para as despesas e à noite dava uma breve volta entre as rodas de seus servidores que dançavam desenfreadamente. Esta

separação

sua raça, como

religiosa forçou

o negro

à consciência

de

à procura de protetores específicos, mas sem-

pre sôbre um modêlo que lhe era oferecido pelo culto doméstico que, como dissemos, era essencialmente um culto de santos.

Dessa forma o catolicismo do negro foi, como as religiões africanas, em certa medida, uma subcultura de classe. É pre-

ciso, pois, forma que

estudá-lo se quisermos compreendê-lo, da mesma estudamos as religiões africanas, isto é, sob uma

dupla perspectiva. (16) (17) (18) (19)

162

Uma perspectiva sociológica: a das relações

KOBSTER, Voyages Pittoresques, II, p. 70. Melo MORAES Filho, Festas e Tradições, pp. TOLLENARE, op. cit., p. 134. KOBSTER, op. cit., II, p. 28.

277-90.

entre os brancos e os negros, na estrutura dualista da sociedade,

relações de exploração e de domínio de um lado, de resistência

e de luta, de outro. Uma perspectiva cultural: a das relações entre esta “subcultura” de classe e a civilização do branco ou, se se prefere, definir os valôres, as normas, as representações

coletivas próprias

dêsse

catolicismo

negro.

Estudemo-lo

pri-

meiro sob a perspectiva sociológica. Não sabemos exatamente quando se formou. Antonil, em 1711, já se refere às festas de São Benedito e de Nossa Senhora do Rosário, nas capelas dos engenhos.(2º) São Benedito, morto

em 1589, imediatamente depois de sua morte passa por taumaturgo e, por causa de sua côr, torna-se logo o protetor

dos negros

(embora

seu

culto permaneça

à margem

do cato-

licismo ortodoxo; não foi senão autorizado pela Igreja posteriormente, em 1743; sua canonização data de 1807).(21) O culto de Nossa Senhora do Rosário fôra criado por São Domingos de Gusmão,

mas

estava fora de moda,

sendo restabelecido jus-

tamente nas época em que os dominicanos enviaram seus pri-

meiros missionários para a Africa; daí, sua introdução e sua generalização progressiva no grupo de negros escravizados.(2?) ÊEsses fatos bem indicam que o culto de santos negros ou de Virgens negras foi, de início, impôsto de fora ao africano, como

uma etapa da cristianização, e que foi considerado pelo senhor

branco

como

um

meio

de

submissão para o escravo.

contrôle

social,

um

instrumento

de

Ribeyrolles o acentua ainda, na pri-

meira metade do século XIX: a disciplina da fazenda, diz, se fundamenta em duas bases: a existência do feitor e a do capelão ou do cura; o primeiro fiscalizando o trabalho com um chicote, o segundo enfraquecendo o espíritó de revolta com sua Cruz; acrescenta o autor que é por êste motivo que a evan-

gelização do africano permanece tão superficial; o sacerdote não cumpre sua missão por amor, mas como uma obrigação enfa-

donha, imposta pelo grande proprietário e em seu benefício único.(**) Não é de se admirar que nessas condições o homem de côr reagisse no Brasil exatamente como nos Estados Unidos

e que transformasse êsse catolicismo, do qual se queria fazer um meio de contrôle e de integração numa sociedade que o (20)

ANTONIL,

op.

cit., p. 96.

(21) Câmara CASCUDO, Dicionário do Folclore Brasileiro, p. 97, J. da SILVA -CAMPOS, Procissões Tradicionais da Bahia, p. 205. O movimento que tendeu a dar aos negros um santo de côr era, ademais, bem anterior à época

can”,

da

escravidão;

data

da

Idade

Média.

SEIFERTH,

Philon, 194], 4, pp. 370-76. (22) Dante de LAYTANO, Festa de Nossa Pp. 39-51. Charles de LA RONCIBRE, Neégres et (23) RIBEYROLLES, op. ctt., pp. 43-5.

“St.

Senhora Négriers,

Mauritius,

Afri-

dos Navegantes, p. 118.

163

maltratava, num instrumento, pelo contrário, de solidariedade étnica e de reivindicação social.(2*) O dualismo do catolicismo e esta metamorfose de uma religião de contrôle social: em uma religião de protesto racial se intensificarão ainda com

o êxodo

dos campos à cidade, pois que, como vimos, a cidade afrouxou os laços que ligavam,

no Brasil rural, numa

mesma

solidarie-

século XVII

e comêço

dade, a família patriarcal, as côres e as posições sociais. Por certo, existiram nas cidades do

do século XVIII, corporações de ofícios que nido brancos inferiores e negros livres. Mas assegurou no Brasil, entre os trabalhadores de a estreita solidariedade que encontramos na

poderiam ter reua corporação não um mesmo ramo, Europa. Ela de-

sempenha um papel nas festas; as profissões se dividem em grupos, cada qual desempenhando função diferente. Por exem-

plo, no século XVIII,

em São Paulo, em honra ao nascimento

da princesa, os carpinteiros fazem a contradança, os sapateiros

a dança

dos

Espíritos,

barco de madeira

os

marceneiros

do qual formarão

constroem também

um

chega

giosa.

a dança

a aproximar

Mais

urbana.

grande

carro, os ferreiros e os seleiros se mas-

do Congo.(**)

as côres numa

importante

Ocupou

um

a tripulação, os alfaiates

caram... Mas, parece que, mesmo separa do ofício; os mestiços seguem brancos, mas à parte. Por exemplo, os bém um carro e êste era seguido pelos

dançando

constroem

ainda

que

nessas festas, a raça se sem dúvida os patrões taberneiros fizeram tamCaianos e pelos crioulos,

Dessa maneira,

o ofício não

verdadeira comunhão

a corporação

reli-

é a confraria

ela lugar preponderante sobretudo na religião

das Minas Gerais. Enquanto no Nordeste dos engenhos do século XVII a religião é uma religião doméstica, nas minas do

século

frarias

XVIII

a religião

extremamente

é uma

numerosas,

religião de confraria.

ciumentas

umas

das

Con-

outras,

em concorrência mútua, para ver qual ornaria melhor sua capela, qual teria mais poder, qual seria a mais rica. Os homens, de côr se contagiaram por êsse movimento; organizaram também confrarias calcadas no modêlo das dos brancos e, assim, O con-

flito racial vai se dissimular sob o manto

da religião e a opo-

sição étnica vai tomar aspecto de uma luta de sociedades religlosas. As confrarias de brancos estabeleciam estatutos que proi-

biam o acesso, em suas associações, aos negros, aos mulatos € (24) (25)

164

G. FREYRE, Sobrados e Mucambos, p. 719, n.º 41. A. de E. TAUNAY, Sob El Rey Nosso Senhor, p. 361.

mesmo

às pessoas casadas com indivíduos de côr.

Sem dúvida,

numa sociedade em que a população feminina era pouco nu-

merosa, o número de pessoas brancas que vivia em concubinato com mulatas era grande. Isto era de conhecimento geral e tolerado pela opinião pública. O que era proibido não era a união ilegal e sim o casamento desigual.(2º) As pessoas de côr

eram, portanto, obrigadas a pertencer a confrarias próprias à

sua côr. A separação era tão radical que se êsses grupos os nomes de “igreja branca” e Êssas, se insurgiam uma contra a outra, em pelos direitos de precedência nas procissões e itinerários dos cortejos, apelando

civis e a Roma.(?').

acabou por dar a de “igreja negra”. perpétua discussão nos enterros, pelos

aos tribunais eclesiásticos ou

A “igreja branca” se defendendo de re-

gulamentos, de investigações a todo pedido de nova admissão,

contra os “cristãos-novos” ou mesmo contra os de sangue manchado”, como um recinto fechado encimado por cacos de vidro:

e a “igreja negra” tentando penetrar nos santuários mais proi-

bidos, nas confrarias mais aristocráticas, mais fechadas, como a dos Franciscanos, pela astúcia e pelo humor. Citamos, a

título de exemplo,

do Cordão

o caso da célebre disputa entre a confraria

de São Francisco e a Ordem

Terceira dos Francis-

canos; o Papa permitira em 1585 a fundação de confrarias do famoso

Cordão

de São

mulatos de São João

Francisco,

branco

com

del Rey, Sabará, Mariana,

três nós,

e os

Vila Rica disso

se aproveitaram para organizar esta confraria em Minas, já que a Ordem Terceira lhes proibia o acesso; a Ordem Terceira pro-

testou, não querendo ver pessoas escuras assim se insinuarem, mesmo por uma porta disfarçada, em suas igrejas de brancos, com seus “violões e tamborins”, como disse na queixa enviada a Lisboa para nelas realizarem suas festas ou com “mestiças prostitutas” se misturando nas procissões “sem diferença com as brancas bem honestas”.(28) |. Essas duas igrejas estavam, aliás, divididas contra si mesmas. A igreja dos brancos porque se ligava às lutas de família ou de clãs feudais, por exemplo, os Camargos em São Paulo, que se reuniam na confraria dos Franciscanos,

do Carmo,(?º)

e os Taques,

na

e, posteriormente, quando a sociedade começou

(26) Caio PRADO, Formação do Brasil Contemporâneo, p. 352. (27) Por exemplo, a disputa por um itinerário de procissão entre q confraria do Rosário de negros e a confraria (branca) da Paixão de Cristo Instituições de Igrejas no Bispado de Mariana, p. 156 e segs. G. RAYMUNDO TRINDADE, S. Francisco'de Assts de Ouro Prêto, (28) PP

.

90-101.

(29)

Fr.

da Penitência

A.

.

de

ORTMANN,

História

S. Francisco,

p. 27,

da

Antiga

Capela

da

Ordem

Terceira

165

a se hierarquizar e uma classe média se formou em Minas ao lado da classe dos “homens bons”,(*º) apareceram confrarias de ricos e confrarias de pobres.

A igreja negra estava da mesma

forma dividida porque o mulato não queria se deixar confundir com o negro. A rivalidade atiçou assim a luta, em Diamantina,

entre as confrarias do Rosário dos negros e da Mise-

ricórdia dos mulatos.(*!)

Em Tijuco, no distrito dos diamantes

em que as sete igrejas e a metade das capelas tinham sido construídas e eram mantidas pelas confrarias, havia em 1877 o templo dos africanos, o dos negros crioulos e o dos mulatos.(22) Essas confrarias serviram, não obstante sua probreza, de

ponto de concentração de reivindicações sociais.

Elas se reu-

niam, na realidade, em tôrno de um santo de côr, e na dedicação dos fiéis a êsse santo havia mais que uma ligação mís-

tica, o sentimento de uma espécie de afinidade étnica. Foi o que um negro exprimiu admirâvelmente um dia a Kidder e a Flechter vendo passar uma procissão: “Lá vem meu parente.

..”.(*)

O parentesco leva vantagem sôbre o caráter re-

lígioso, desespiritualizando o santo, humanizando-o, tornando-o parecido sob todos os pontos com seus irmãos da terra: Meu S. Benedito É santo de prêto; Éle bebe garapa, ÉÊle ronca no peito! (34)

Frei Correal, quando de sua passagem na Bahia em 1689 surpreende-se ao ver numa procissão um carro onde a Virgem

Santa

rivaliza

(30)

Sôbre

com

as

São

principais

Benedito

confrerias

que

de

toma,

Minas

e

diante

dela,

os

seu

recrutamento,

ver

do

Tijuco,

Luiz JARDIN, “A Pintura Decorativa em (...) Minas” Revista do Sphan, 3, pp. 67-71. Este distinção de classe se liga também às distinções sociais, não aceitando os Franciscanos pessoas casadas com mulatas, enquanto os Carmos

(31)

as

aceitam.

Alres

Diamantina,

inicialmente

pp.

da

51,

MATA 162

a confraria

e

MACHADO

do

segs.

Rosário

Os

Filho, Arratal

crioulos

dos

negros,

e os

mas

mulatos

Cidade

de

frequentavam

se separaram

em

1771,

sob o pretexto de que era uma confraria de negros; conseguiram uma capela especial numa Igreja de brancos, mas parece que esta tentativa não teve muito sucesso e que tiveram de suportar algumas afrontas, porque tentaram

voltar ao Rosário dos negros, o que lhes foi recusado, porque “entre negros e crioulos haveria discórdias contínuas”. AO lado dêsse movimento de cissiparidade, é preciso observar, aliás, que certas confrarlas tentaram unir

todos

de

08 homens

pele

e a

de

côr,

elaboração

sem

de

distinção

uma

do

maior ou

consciência

de

menor

raça,

grau

contra

de

as

coloração

diferenças

de '“nações”. Por exemplo, a confraria dos mulatos da Misericórdia em Minas admitia “tôdas as pessoas, mesmo negros cativos e naturais da costa de Guiné”, td., tbid., p.. 162. Para fenômenos análogos no Nordeste ver G. FREYRE, Sobrados e Mucambos, p. 719, n.º 41. (32) BAINT-HILAIRE, Voyage dans le District des Diamants, I, p. 48. (33) KIDDER e FLECHTER, O Brasil e os Brasileiros, p, 167. (34) S. ROMERO, Cantos Populares, p. 205.

166

modos

mais

indecentes.(*')

frarias vai passar

A

paralelamente

finalidade

suprema

do céu

dessas

à terra.

os escravos a ganhar sua liberdade.

Irão

con-

ajudar

Já citamos a história de Chico Rei que libertou tôda sua

tribo sob a égide de Sta. Ifigênia. Mas, em tôdas as cidades de Minas e em todo o Brasil, as confrarias seguiram êsse exem-

plo. De início, eram a obra dos negros, que rendiam graças a Deus por terem alcançado a liberdade. Dessa forma, a Igreja de N. S. do Bomfim de Copacabana foi fundada por um fei-

ticeiro negro que ganhara Cr$ 1.000.000,00 com suas feitiçarias.(38) Depois todo negro que se libertava não deixava de dar um pouco de dinheiro para a caixa da confraria destinada aos negros menos afortunados; e, dessa maneira, conseguiam libertar, cada ano, um

brancos

acabaram

o costume

anualmente alforria.

número

por ajudá-los; em

de escravos.(*7)

quando

da festa do santo

encontra-se

acontecia

entre

que

Os

diversos lugares criou-se

de dar ao rei eleito da congada,

Contudo,

contrária;

determinado

certos

que

se celebrava

patrono,

sua carta de

viajantes

a observação

os escravos que

guardavam

dinheiro

dificilmente, à custa de trabalho, para poder comprar sua liber-

dade, preferiam dar a maior quantia dêsse dinheiro à confraria

de que faziam parte, na esperança de obter mais facilmente, na qualidade de doadores, cargos honoríficos e de tornarem-se

personalidades

importantes

e respeitadas.

Por

conseguinte,

a

confraria desempenhou outro papel, teve outra finalidade; era, para a massa de pessoas de côr, um instrumento de seleção, permitia a formação de um certo tipo de liderança. (8) De fato,

havia cargos aos quais era permitido o acesso: em particular, os de rei e rainha. Todavia, O cargo de secretário, freqiiente-

mente,

cos.(*?)

e o de

tesoureiro,

sempre,

eram

reservados

aos

bran-

Finalmente, a última finalidade da confraria, se bem que não fôsse a mais insignificante de tôdas para os africanos ha-

bituados ao culto dos mortos, era assegurar a cada membro uma sepultura e um entêrro adequados. O regulamento de 1750 da confraria de Nossa Senhora do Rosário dos negros de

Vila

Rica permitia mesmo

(35) (38)

J, F.

TAUNAY, MENDES

(38)

KOSTER,

R.AM.S.P, p. 75. (37) Td. tbid., de

(39)

Arquivos

Meias Arino,

p. 75.

1861,

sepultura

às mulheres

Na Bahia Colontal, cap. 2 (Frei Correal). DE ALMEIDA, “O Folclore nas Ordenações do

Voyvages

do

dar uma

Pittoresques,

Estado

de

manuscrito

S.

II,

Paulo,

inédito,

p.

345,

Livro

90,

confraria

do

e

Reino”,

Rosário

167

aos filhos dos membros da confraria, embora dela não participassem pessoalmente, não contribuíssem e não tivessem o direito de voto.(*º) Dêsse modo, uma profunda tendência da etnia negra podia, cristianizando-se, desenvolver-se livremente. Acontecia que, às vêzes, se bem que erigissem em quase todos os lugares igrejas a N. S. do Rosário, a S. Benedito, a Sta. Ifigênia,

frarias não

a Sto. Elesbão

tinham

e a outros

sede própria,

não

santos

podiam

de côr,

as con-

dispor de uma

igreja, seja por falta de recursos, seja porque a construção do templo não estava acabada.. Nesse caso era-lhe reservada uma capela na igreja paroquial. Porém, a seleção sempre atuava,

sendo a separação das capelas o símbolo da divisão dos dois catolicismos. No Rio de Janeiro o mesmo local de culto era

partilhado pelos cônegos do cabido e pelos negros.(*!) E râpidamente, em lugar da cooperação esperada, surgiu a disputa entre as raças. Ou, com os africanos rejeitando os brancos,

mesmo os negros crioulos a fim de ficarem sózinhos, como na

Bahia,(“*2) ou, pelo contrário, os brancos fazendo saírem os negros sob o pretexto de que suas festas eram muito barulhentas

acompanhadas de danças e tambores e indignas da Casa de Deus, como

em Pórto Alegre.(**) Parece, contudo, que o catolicismo devia marcar limites a esta tendência segregativa, já que todos os homens são filhos do

mesmo

Deus

e chamados

à mesma

mesa

de comunhão.



várias capelas laterais, cada qual podendo escolher a sua; porém, há uma só capela-mor onde oficia o sacerdote. Há as igrejas de confrarias que se localizam nos diversos bairros da cidade, mas há no centro a igreja paroquial, às vêzes a catedral, que representa a comunidade urbana total, abole as diferenças sociais ou raciais. Entretanto, aqui ainda, a separa-

ção leva vantagem sóbre a união.

Saint-Hilaire admirou-se ao

ver que as igrejas eram bastante freqientadas mas estas não se confundiam com as brancas; a do trajar permitia separar as duas categorias de meiras tendo a cabeça e o corpo enrolados num as segundas trazendo na cabeça uma mantilha de gra.(**) Nas procissões, quando a cidade inteira (40) (41)

Paulo,

(42) (43)

A. DELAMARE, Vila Rica, p. Nuto SANT'ANA, “O Templo

1940.

71. dos

Silva CAMPOS, op. cit., p. 168. DANTE de LAYTANO, op. cit., pp.

(44) BAINT-HILAIRE, Segunda Gerais, p. 186, Cf. GOBINEAU: “Na

39-51.

Viagem do Rio quinta-feira santa

chia as igrejas. Um branco ou semibranco RAEDERS, Gobineau au Brésil, p. 38.

168

Homens

entre

pelas negras, diferenciação fiéis, as pripano prêto, caxemira nedesfila pelas

Prêtos”,

Estado

de

5.

de Janeiro a Minas (...) a multidão en-

vinte mulatos

ou negros”,

G.

ruas, a marcha dos fiéis obedece a uma ordem hierárquica que assegura a diferenciação das côres. Desta maneira, na procissão de Corpus Christi em São Paulo, depois do Santo Sacramento,

vem

São

Jorge

em

seu

cavalo

curveteando;

atrás,

as confrarias de negros, depois a dos mestiços de Santo Eles-

bão, da Misericórdia e do Carmo; em seguida, frades e sacerdotes; as corporações de ofícios desfilavam depois, numa ordem

determinada, que começava pelas escravas padeiras terminando por outras escravas vendedoras de legumes.(*) Em Minas, na procissão de São Francisco, os penitentes vinham primeiro, principalmente negros e mulatos livres, o clero em segundo lugar e, por fim, o povo.(*º) A procissão de Cinzas era aberta por três mulatos em dominó cinza, um trazendo a cruz e os dois outros um grande bastão encimado por uma lanterna; atrás, um mascarado, disfarçado de esqueleto, surpreendendo os espectadores com uma foice de papelão; depois um grupo de brancos

representando

Adão

e Eva,

Caim

e Abel;

os membros

da con-

fraria de São Francisco traziam nos ombros os andores dos santos, vindo, depois de tudo, a música e o Santo Sacramen-

to.(*7)

A procissão do triunfo eucarístico de 1753

começava

por dois grupos de dançarinos, os mouros e os cristãos, seguidos de músicos e de carros alegóricos, tendo logo após o desfile das confrarias que se apresentavam na seguinte ordem: músicos e negros a cavalo, confraria do Santo Sacramento, con-

fraria dos mestiços da capela de São José, confraria do Rosário

dos ou ria do

negros, confraria de Santo Antônio, o grupo dos nobres “homens bons”, confraria do Rosário dos brancos, confrade Nossa Senhora da Conceição, confraria de Nossa Senhora Pilar, confraria do Divino Sacramento, e depois o clero,

os anjos,

o Santo

Sacramento,

o governador

geral

das

minas,

a nobreza militar, o Senado, o dragão atacado por São Jorge, e, por fim, os soldados.(*) Na procissão de São Jorge a ordem era diferente: os soldados vinham primeiro, depois a confraria de São Jorge e, no fim, uma turma de escravos com seus músicos

e uma estranha personagem montada num cavalo prêto, o homem a

sa e

(46)

(47) (48)

Nuto e

SANT'ANA,

SAINT-HILAIRE,

'“Folce Voyages

e Pá”, Estado dans

les

de S. Paulo,

Provinces

SAINT-HILAIRE, Voyages aux Sources du Simão FERREIRA MACHADO, “Triunfo

de

17 de novembro

Rio,

I, pp.

347-48.

Rio S. Francisco, I, p. 100. Eucarístico, exemplar da

Cristandade Lusitana em pública exaltação de fé na solene transladação do Diviníssimo Bacramento da Igreja de N. S. do Rosário para um nôvo templo da Senhora de Pilar em Vila Rica, côrte da Capitenia das Minas, aos 24 de maio de 1733”, Lisboa, 1734 (0 texto foi transcrito totalmente por G. PENALVA, O Aleijadinho, pp. 120-51).

169

de ferro; atrás dêles, os carregadores traziam, elevando-a ao céu, a estátua de São Jorge.(*º)

A

hierarquia

de

côres

não

segue,

portanto,

uma

ordem

fixa; tudo depende das cerimônias; se se trata de um santo militar, são os soldados brancos que vêm à frente; noutros casos, são éles que terminam o cortejo. Mas, de um modo geral, parece que são os mulatos

e os negros que desfilam

primeiro lugar e a aristocracia dos brancos em último. do desfile é uma

coloca diana,

turada.

no meio

ordem

a coerência

De

de mérito

como

todos

para

crescente,

assegurar,

e a estabilidade

os modos,

onde

por sua

de uma

interessa, as côres não se confundem;

tificação social.

A ordem

o clero se

situação

sociedade

e êste é o ponto

em

que

me-

tão mis-

mais

nos

a Igreja aceita a estra-

O que é mais grave é que a aceitação pelas pessoas de côr do catolicismo dos brancos acarreta imediatamente a depreciação dêsse traço.

Quando

o senhor de engenho

ou o fazen-

deiro vêm residir na cidade, trazem consigo o altar doméstico, o culto de sua família; há em sua casa urbana sempre um nicho de

santos

onde

queima

uma

vela.(*º)

Entretanto,

com

êsse fato;(*!)

a religião

familiar não exerce mais a função que tinha no campo. A rua reúne as casas, estabelece uma corrente de comunicação entre as famílias, e a capela do engenho é substituída pela igreja paroquial ou a da confraria. Mas esta rua toma também aspecto sagrado; de quando em quando, na esquina de duas travessas, no centro de cada quarteirão, há um nicho de santo e todo passante deve aí demonstrar sua devoção. Os viajantes estrangeiros

impressionaram-se

contudo,

a rua

é

o domínio principalmente do “povinho”; os brancos não fazem mais do que aí passar, os escravos aí se demoram, se encontram, sendo ela o lugar de suas conversas fiadas, o instrumento

de sua solidariedade. Na rua, como vimos, êles escapam ao domínio do pater familias, à integração da família patriarcal, para recriar uma agregação étnica e de classe social.(º2)

Desde

então, serão levados, mais do que os brancos, a fazer da rua

o centro também

de seu catolicismo e, em vez de render culto

aos santos da propriedade senhorial, rendem

dos

bairros.

Ewbank,

em

1580,

verifica

culto aos santos

isso muito bem,

di-

(49) Melo MORAES Filho, Festas e Tradições, pp. 229-36; para a Bahia, Silva CAMPOS, op. cit. dá, em geral, a ordem tradicional das grandes procissões antigas.

(50) G. FREYRE, Sobrados e Mucambos, 1.º edição, pp. 250-51. GRAHAM, op. cit., p. 127. TOLLENARE, op. cit. p. 51. (51) (52)

170

A. E. TAUNAY, “Na Bahia Colonial”, R.I.H.J.B., t. 90, vol. 144, p. 484. KIDDER e FLECHTER, O Brasil e os Brasileiros, pp. 192-95.

zendo que são os negros os mais escrupulosos em suas devoções e acrescenta que imediatamente, por desforra, gião se viu depreciada aos olhos dos brancos.(º*)

esta reli-

A questão tôda é saber se a esta separação das duas Igrejas, a negra e a branca, corresponde também uma diferença de catolicismo.

É claro que a unidade do dogma tendeu à assimilação e houve, principalmente entre os crioulos, verdadeiros santos de

cór.

'Tollenare

cita

uma

mulata

de

18

anos,

de

rara

be-

leza, Gertrudes, que desejava ser freira e que fóra avisada mi-

lagrosamente da morte de sua mãe, o que lhe deu uma auréola

de

santidade

em

seu

meio.(º!)

Os

jesuítas

outorgavam

aos

negros mais piedosos insignes mercês, como a entrada na companhia após sua morte:

a casa há trinta e tantos

edificação

e boa

“João Francisco, homem anos, por

satisfação,

dias e faz vida exemplar;

não

amor

confessa-se tem

raça

de Deus,

mulato, serve

e comunga

de mouro

sempre

cada

nem

com

oito

judeu;

pede ser admitido na Companhia na hora da morte; é digno e

merece esta consolação”. a liberdade civil. (55)

Para outros, dava-se como recompensa

ções”

enquanto

Unicamente a manutenção das pessoas de côr em grupos separados perturbou esta assimilação, tendeu a uma divisão paralela das representações coletivas. Porque não só as “nacada

Bahia,

eram preservadas

qual

por

podia

originar uma

exemplo,

a confraria

grupos

de festas, mas

confraria religiosa étnica. do

Senhor

da

Redenção

ainda

Na

não

agrupava senão Daomeanos; a Ordem Terceira do Rosário era composta de negros Angolas; a do Senhor da Cruz, de mula-

tos.(**) Esta política da Igreja reflete a do govêrno; lembra a carta do Conde dos Arcos que citamos mais acima. Todavia ela tendeu a criar um catolicismo diferencial. Desta maneira,

somos levados a passar de nossa primeira perspectiva, a perspectiva sociológica, à segunda: a perspectiva cultural que estuda os valóres, as normas, as representações coletivas próprias a esta “igreja negra”.

A

catequização jesuíta partia da idéia de

que era preciso adaptar o dogma à mentalidade e que a men-

talidade dos negros é a mesma das crianças.

É preciso atraí-los

(53) EWBANK, Life in Brasil, pp. 182-83. Reciprocamente, as ordens mendicantes se viram desconsideradas, porque “é impossível que um negro vela um ser superior num branco que se humilha para pedir alguma cari-

dade”, 390,

(54) (55) G,

(56)

DENIS,

Brésil,

p.

257.

TOLLENARE, Notas Dominicaes, p, 110, Serafim LEITE, História da Companhia

de

Silva

243.

FREYRE,

Casa-grande,

CAMPOS,

op.

p.

cit.

262.

pp.

168,

7, 206,

Jesus

no

Brasil,

II,

p.

171

pela música que adoram,

pela

vaidade,

Não

o

amor

é preciso romper

pela dança, que é sua única distração,

aos

títulos,

aos

absolutamente

cargos

com

decorativos.(8?)

seus costumes

tra-

dicionais, mas fazer uma seleção dêles, e dos que são considerados como aceitáveis, servir-se dêles como de um trampolim para levá-lo até a verdadeira fé. Dessa maneira, criou-se um catolicismo negro que se con-

serva dentro das confrarias e que, não obstante a unidade dos dogmas e da fé, apresenta características particulares.

A procissão de São Benedito compreendia apenas negros mulatos: o porta-estandarte, os anjinhos de côr presos à

ou

mão de suas mamães, a confraria de São Benedito, as rainhas dos africanos, em número de três, com Perpétua no meio, cer-

cada por dois grupos de negros que disputam a coroa de Per-

pétua, a confraria do Rosário e as Taieras, cujos vestidos de sêda deixavam, diz-se, adivinhar os seios lascivos, e que marchavam cantando: Virgem

Senhora

Dê-me

Senão

Virgem

do

do

um

vou

do

Rosário

mundo...

côco ao

d'água

fundo!...

Rosário

Senhora do norte... Dê-me um côco d'água

Senão

vou

ao pote!... (38)

A essas ladainhas ingênuas que não pedem à Virgem mais que um fruto para acalmar a sêde, correspondem as ladainhas de

São

Benedito:

Meu

São

Pelo

amor

Venho

Brincar

Benedito

te

pedir

de

de

Deus

cucumbi. (5º)

O que caracteriza esta festa não é esta familiaridade com

os santos

que

encontramos

também,

na

realidade,

na mesma

época entre os brancos(*) e, sim, esta luta incorporada na pro-

cissão,

entre os negros,

pela coroa da rainha

Perpétua.

E se

se acrescenta que esta era protegida por um grupo de Congos,

então a cerimônia alcança todo seu significado: é uma sobrevivência das lutas étnicas e de reinados africanos que se con-

DO G.

(57) Serafim LEITE, op. cit., p. 358. (58) G. Th. PEREIRA DO MELO, 4 Música no Brasil, p. 49. (59) SANTA ANA NERY, Folklore Brésilien, p. 48. G. Th. PEREIRA MELO, 4 Música no Brasil, p. 49. (60) Sôbre as relações entre os brasileiros brancos com os santos, ver

FREYRE,

172

Casa-grande

e

Senzala,

trad.

fr.

pp.

215-16,

296,

394-95.

servaram na terra de exílio.

Se o cristianismo a aceitou é por-

que êsse combate podia aqui tomar um significado simbólico, a coroa terrestre tornando-se uma imagem da coroa celeste a

qual, falou o apóstolo, Jesus dará àqueles que lhe forem fiéis.

Mas as recordações sempre vivas dos reinados africanos são ainda

mais pronunciadas nas congadas. As congadas aceitavam a perpetuação do regime real para os negros brasileiros, mas ráter

dêsse

reinado

e,

corrompendo,

sobretudo,

Nossa Senhora do Rosário.

bem

entendido,

incorporando-o

A mais

antiga menção

ao

o ca-

culto

de

que temos

sôbre essas congadas data de 1700 e da cidade de Iguarassu

(Pernambuco)(º!) mas já existiam, pelo menos fragmentáriamente, em pleno século XVII(*) e tinham mesmo sua origem

remota em Portugal.(º) Pereira da Costa nos diz que cada paróquia tinha seu rei, sua rainha, um secretário de Estado,

um mestre honra, etc. Senhora. A do Rosário,

de campo, um que se faziam eleição se fazia dando origem a

arauto de armas, suas damas de chamar Majestade, Excelência ou no dia da festa de Nossa Senhora danças, variáveis segundo a etnia à

qual pertencia o rei. A dispersão do costume foi considerável e pouco a pouco

se estendia a todo o Brasil. Determinou, da mesma forma que as confrarias de que saiu, as mesmas lutas étnicas, as mesmas

rivalidades

entre

nações.

De

início,

era uma

festa

de bantos,

em que os nagôs e os daomeanos se aborreciam. Posteriormente, colocou em disputa os congos contra os angolas, êstes contra os moçambiques. Em Osório (Rio Grande do Sul) êsses últimos iam atrás dos cucumbis angolanos, nem cantando e nem dançando, sômente fazendo ouvir seus instrumentos musicais; em Minas, os moçambiques eram considerados igualmente como “a plebe dos congos”.(**) Em compensação, os de São Paulo crêem que sua dança foi inventada pelo próprio

São Benedito e por éle dada à sua nação; acabaram por triunfar em numerosas localidades desta província sôbre seus adversários congos, e em Monsanto são êles que vêm em primeiro lugar porque foram os primeiros, dizem, a encontrar

Nossa Senhora do Rosário.(*')

Bem

entendido,

a solidariedade

(61) Pereira da COSTA, “Rei do Congo”, Jornal do Brasil, 21/4/1901. (62) A embaixada, por exemplo, que é uma das partes fundamentais da congada. Cf. Gaspar BARLEUS, O Brasil Holandês, trad., p. 272. (63) Câmara CASCUDO, Dicionário do Folclore Brasileiro, pp. 191-94. (64) Dante de LAYTANO, As Congadas do Município de Osório, pp. 41, 55, 65, e DORNAS Filho, “A Influência Social do Negro”, R.A.M.S.P., LI, 1938. (65) Câmara CASCUDO, Dicionário, p. 402, e Folclore Nacional, Centro de Pesquisas Folclóricas, 1946, p. 4.

178

de

classe

dos

escravos

triunfou

sôbre

as

inimizades

tribais,

como na confraria de Baltazar, composta de africanos e de crioulos em sua maioria escravos e datando de 1742. Os

arquivos da confraria, dando nomes aos dignitários tipicamente africanos

(o rei se chamava

a rainha

Nembanda,

mente uma serpente enrolada no pescoço, Endoque,

os escravos

os príncipes

Manafundos,

Newangue,

o feiticeiro,

que

trazia

freqiiente-

reais Uantuafunos), nos mostram que os reis eram escolhidos livremente, sem distinção de origem étnica, visto que O primeiro, em 1742, é um rebôlo e o último, um cabunda. (**) A festa era preparada com antecedência. Nos domingos e dias santos, os membros da confraria pediam esmolas tanto aos negros

como

aos brancos para as despesas da cerimônia.

Demais, era um

costume bastante comum e tôda confraria, de brancos ou de prêtos, fazia o mesmo.(%7) A coroação do soberano tinha lugar na igreja. Um longo cortejo acompanhava o rei e a rainha com seus secretários e sua côrte até a capela em meio a cantos e danças; depois, o vigário sagrava aquêle que a confraria escolhera, colocando sôbre sua cabeça uma coroa de papelão dourado.(98) A duração dêsses reinados não era fixa; a princípio, é provável que os príncipes escolhidos fôssem antigos reis negros trazidos em escravidão e que continuavam a receber

homenagens

de seus súditos.

Numa

certa medida,

os bran-

cos podiam aproveitar esta submissão do negro a um rei para impor mais facilmente suas leis às pessoas de côr: “É só o nosso rei que

nos dá ordem de trabalhar.” finalidade

dessa

coroações,

E esta seria, para Mário de Andrade, a

um

negro a seu duro trabalho.(9º)

meio

de sujeitar

mais

facilmente

o

Entretanto, êste costume era perigo-

so, porque o rei gozava de grande autoridade sôbre os fiéis e podia voltá-los contra seus senhores brancos. Um dêles, Miguel, dirigiu uma insurreição negra em Natal que, aliás, fracassou desde o comêço (Miguel foi prêso, deposto e substituído por outro escravo, Luís). (70) De outro lado, a tradição católica, querendo fazer coincidir a eleição e a coroação dêsses soberanos com as festas cristãs que são festas anuais, tendeu a mudar a duração do reinado para um ano, o

que finalmente

prevaleceu.

Assim

fazendo,

a Igreja

desvirtuou

o

conceito de realeza, fêz-lhe perder seu caráter solene e sério, para transformá-la num simples divertimento. Spix e Martius comparam

êsses reis negros aos “reis da fava” da Europa e dizem que quando o nôvo soberano vai fazer sua visita ao governador do distrito dos

Diamantes, é por êste recebido em “robe de chambre”.(71) No entanto Koster, por seu lado, reconheceu a autoridade que êsses reis (66) Melo MORAES Filho, Festas e Tradições, pp. 343-49. (87) J. B. DEBRET, op. cit. p. 225. (68) KOSTER, Voyages Pittoresques, II , p. 112. J. E. POHL, Retse in Inner von Brasilten, 1, p. 157. IX, pp. 81-6. Ademar VIDAL, “Congos”", Revista do Brasil, fev. 1939, pp. 53-62, etc. (69) Mário de ANDRADE, “Os Congos”, Lanterna Verde, 1935. 0/2/1068 L. da Câmara CASCUDO, “Festas de Negros”, À República, Natal, (71)

174

SPIX

e MARTIUS,

Viagem

pelo Brasil,

TI, p. 127.

têm sôbre seu povo de côr, e diz que o rei coroado é alvo de zombarias. (72) Não admira, pois, que perdesse, pouco a pouco, sua autoridade para não ser mais que um rei de carnaval! Quanto à dança, que acompanhava a coroação e que traz, segundo: as regiões, o nome de congadas, de cucumbis, de congos, de ticumbi

ou de turundu,(73) constitui uma espécie de representação teatral, compreendendo diversas partes: primeiro, a entrada do bailado, a chegada do rei cantante, que pede à assembléia permissão para celebrar a congada; depois, o cortejo real vagueia através das ruas,

dança

mais

na

livre

frente da

da

festa,

igreja

a mais

e das

casas

variável,

Há cantos semi-africanos, como

dos

mudando

notáveis.

segundo

o da rainha:

Quenguerê, oia congo Gira Calunga, Manu quem vem lá,

do

É

os

a parte

lugares.

má;

Há contradanças à moda portuguêsa, cantos folclóricos que se introduzem, cantos de trabalho na plantação ou de preparativos culinários. Há danças animais onde o negro reproduz os gestos do animal

de

que

fala

em

seus

cantos.

Assim,

Melo

Moraes

cita

a

dança da serpente interpretada pelo filho do rei, a do jaguar, e Gustavo Barroso, a dos crustáceos. A segunda parte da brincadeira é a embaixada. A rainha Ginga envia um embaixador ao rei (rainha Ginga Ngambi, em Parnaíba); é às vêzes uma embaixada de guerra, às vêzes de paz, mas, mesmo nesse caso, a inabilidade dos dignitários do rei, o ardor do príncipe Suena ocasionam a guerra entre os Congos e o exército da rainha Ginga. O príncipe é aprisionado e condenado à morte. A terceira parte, é a morte e a ressurreição do príncipe. A rainha infeliz com a morte de seu filho chama o feiticeiro que vai buscar o cadáver: FEITICEIRO E...

Mamaó!

Ganga rumbá, E... Mamaô!

E...

Mamaó!

sinderê iacô E ... Mamaó!

ToDos

Zumbi, matêquerê, Congo, cucumbi-oiá. FEITICEIRO

Zumbi, Zumbi, oia Zumbi! Oia Mamêto muchicongo. Oia papêto. da

“Durante tôdas essas evocações, o Feiticeiro rodeia o corpo criança, ausculta-o, palpa-o, faz passes mágicos, emprega mis(72) (73)

KOSTER, op. ctt., p. 112. Câmara CASCUDO, Dicionário,

pp.

191-94,

243,

611,

623.

teriosos sortilégios, fá-la aspirar plantas e resinas, estendendo-lhe aos lados pequenas cobras e talismãs de virtudes sobrenaturais.” Pouco a pouco o corpo do príncipe toma vida em meio à alegria da

multidão:

FEITICEIRO

Quem

pode

mais?

Côro E o Sole

a Lua.

FEITICEIRO Santo

maior? CôRro

E

S. Benedito.

À última parte da peça é o reinício da luta. Se se trata de um caboclo que matou o negro, o feiticeiro o fulmina com seu olhar e êle cai por terra. Se se trata da rainha Ginga, desta feita seu exército é batido, O rei oferece sua filha ao mágico em recompensa de seus serviços. E a festa termina com novas danças onde a muito pura Virgem

do Rosário naturalmente

Como

não é esquecida. (74)

se viu, trata-se de uma

peça de inspiração

estrita-

mente africana e onde um dos principais papéis é dado a um feiticeiro pagão. Mário de Andrade, que no Brasil foi o que

analisou com mais cuidado essas peças de Congo, assinalou traços da África negra nos versos portuguêses, indo desde os

mínimos detalhes, aos temas poéticos mais singelos, como êsses versos cantados, num dado momento, pelo rei: Não procuro mais canário Dentro de meu reino Destrutram-me as sementes,

que é um tema frequente dos contos africanos, que se encon-

tra nas histórias recolhidas por Chatelain, Equilbecq, Jacottet, e até as partes essenciais do drama. Limitemo-nos a êstes.

Logo, na primeira parte, as danças imitativas dos animais, tal-

mais

(74)

Para

antigas

esta

que

descrição

possuímos,

da

à de

congada,

Melo

servimo-nos

MORAES

Filho,

de

op.

duas

versões,

cit., pp.

as

159-65,

que data de aproximadamente 1850, e a de Luiz EDMUNDO, Novos Estudos, pp. 227-30, que data de 1811. Ai misturamos a embaixada da rainha Ginga, por causa de seu caráter essencialmente arcaico; Mário de ANDRADE,

op.

pp.

cit.

pp.

213-55,

vência

176:

36-53.

porque

bastante

a

Aludimos dança

antiga,

de

também

dos

caráter

a

G.

crustáceos

talvez

é

BARROSO,

4o

provâvelmente

totêmico.

Som

uma

da

Viola,

sobrevi-

vez de origem totêmica, já que os bantos que criaram a congada fregiientemente são povos totêmicos. Em segundo lugar,

a importância das embaixadas, que é um traço bem africano; não somente os reis congoleses ou guineanos enviam-se prazerosamente embaixadas uns aos outros, mas chegaram mesmo ser enviadas

ao Brasil em

1750

e 1795

meanas e em 1824 uma do rei de Benin.

duas

embaixadas

a

dao-

Em terceiro lugar, os

próprios nomes dos personagens são nomes históricos: a rainha Ginga ou Ginga Ngambi não é outra senão a rainha Ginga Bandi

que reinou em 1621 e, que após sua embaixada ao governador português João Correia de Souza, converteu-se ao cristianismo.("*) O rei dos congos que, em certas versões, se chama Dom Henrique, é também uma recordação exata das

coisas africanas, porque houve numerosos Henriques na dinastia dos soberanos cristianizados do Congo português.("*) O

nome do príncipe, Suana, não é nome de gente mas um têrmo honorífico que Dias de Carvalho encontrou no século XVII entre os luandas e que significa “herdeiro imediato”.(77) Quanto à cerimônia da coroação, onde o nôvo rei toma a

coroa daquele do ano precedente, Mário de Andrade compa-

ra-a a uma versão de congada em que, antes do combate, o pai faz passar a coroa a seu filho, tomando êle próprio, ao revés, os atributos do príncipe:

esta mudança

de coroa foi observada

justamente por Frazer na Africa em seu estudo sôbre a morte

do rei da vegetação. Não há até a lembrança da circuncisão que não esteja manifesta na descrição de Melo Moraes e que

se situa entre as danças da primeira parte e a morte do filho do rei.('*) |

Certamente elementos da cultura branca se misturam fraternalmente a êsses traços da cultura africana, Mas êsses elementos da civilização ocidental não nos devem ocultar o ca-

ráter tipicamente

perguntar

rar à vida

africano

como

da congada.

a Igreja pôde

das

confrarias

aceitar

Isto pósto,

tão facilmente

de côr esta apologia

ressuscitador de mortos...

podemos

incorpo-

do feiticeiro

É que o catolicismo brasileiro é a

continuação do catolicismo português e já em Portugal existia o costume de juntar danças mascaradas e cantos profanos às festas religiosas. Um certo número de altos dignitários eclesiásticos lutaram contra esta tradição, em 1534; por exemplo, (715)

Mário

(76) (77)

A. R.

(18)

Melo

Povos

de

de

ANDRADE,

RAMOS, A. DIAS

Lunda,

op.

cit.

pp.

50-3.

O Folclore Negro, p. 60. DE CARVALHO, Etnografia

Lisboa,

MORAES

1890,

Filho,

citado

op.

por

cit.,

p.

Mário

127.

de

e História

Tradicional

ANDRADE,

dos

177

o bispo de Évora. O rei, entretanto, as permitia, o que fêz com que continuassem, e ainda em 1855 era possível assisti-las.(7º) O hábito passou à colônia. Os viajantes estrangeiros estão repletos dessas descrições de festas profanas à sombra das igrejas e dos conventos,

admirando-se

ao ver peças

amo-

rosas representadas por freiras ou por essas multidões processionais que jogam bola com estátuas de santos.(8º)

Nada extraordinário, portanto, que a Igreja tenha introduzido a congada na estrutura das confrarias de côr. Mas por isso mesmo, e é o que nos interessa, deu ao catolicismo dos

negros um aspecto diferente do dos brancos pela inserção de elementos

africanos.

religiosos,

mas

Entretanto, a congada formou, por si mesma, uma realidade autônoma que, certamente, pôde se associar com os ritos que

podia

também

viver

independentemente.

Isso porque as associações que ensaiavam, que repetiam a peça

entre duas festas, foram levadas pouco a pouco a desenvolver suas atividades fora da cerimônia de coroação e da procissão

de Nossa Senhora do Rosário. As autoridades leigas delas se apropriaram para dar mais brilho aos grandes festejos populares celebrados por ocasião de qualquer acontecimento impor-

tante, como o casamento de uma um herdeiro em Portugal. De

outro lado,

a Igreja começou

a coroação

real desvirtuada,

essas cerimônias

Aceitava

africanas misturadas

a congada que se lhe seguia.

reis

princesa, o nascimento

foi proibida

na

festa

do

a ver com

maus

às cerimônias

mas

de

olhos

católicas.

não tão facilmente

No Rio, a própria coroação dos Rosário.(*!)

E,

dessa

forma,

a

congada perdeu pouco a pouco o domínio da religião para entrar no campo do folclore. Tivemos, pois, dois catolicismos distintos, em virtude da distinção de côres, que impedem uma assimiliação total do negro à religião do branco. Daí as críticas dos viajantes estrangeiros,

principalmente anglo-saxões

e protestantes,

que

decla-

ram que os brasileiros de côr estão desfigurando o cristianismo, dêle fazendo uma mistura de cerimônias burlescas e imoralidades.(*2) O que é preciso dizer, e que é mais justo, é que

(79) “Textos citados por F. MENDES DE ALMEIDA, “O Folclore nas Ordenações do Reino”, R.A.M.S.P., LVI, pp. 64-9. (80) De GENTIL DE LA BARBINAIS, Nouveau Voyage Autour du Monde, citado por G. FREYRE,. Casa-grande e Senzala, trad. fr., p. 217, e resumido em A. de TAUNAY, as Bahta Colonial, cap. 1. (81) J. B, DEBRET, cit., IJ, p. 225. (82) G. F, MATHISON. Narrative of a Visit to Brazil, pp. 157, 158 e 159.

178

traços das civilizações africanas — particularmente de civilizações bantos — passaram, sem que o sacerdote percebesse, ao culto

dos

santos

negros

ou

nas

congadas.

bastante distantes das religiões africanas o catolicismo.

Assim, não era tanto quanto

Parecíamos

quando

estar

estudávamos

imaginávamos, por-

que essas congadas foram justamente um dos “nichos” de que falamos, no interior do qual o negro pôde guardar preciosamente seus

deuses

reira

Na

da

ou

descrição Costa,

seus

espíritos,

para melhor

feita pelo eminente

do

auto

africano

adorá-los.

folclorista pernambucano

dos

Congos

no

Brasil,

Pe-

encon-

tramos o têrmo Zambiapungo, nome do deus supremo dos Bantos, na frase em que o rei lança a bênção ao seu secretário: Bênção de Deus,

de

Zambiapungo

qui

tirindudêé,

etc.,

e

na

seguinte

quadra:

Gustavo

Barroso

Nosso rei vem com vontade Nosso rei vem com vontade De festejá neste dia O glorioso São Lourenço; E por isto nos trás aqui O nosso rei Dom Caro. O Zambiapungo, Zambiapungo, Tirindundê, ô lê lê Já

no

mesmo

auto

dos

Congos,

colhido

por

em época mais recente, encontro a forma Zamuripunga, na quadra: Abençam Que

no

de Zamuripunga

céu

te ponho

Amulá, amulequê Amulequê, amulá.



Com o nome Zabiapunga existe uma dança de prêtos no sul do Estado da Bahia, corruptela e significado extensivo de Zambiampungu. Na referida descrição do auto dos Congos pelo Dr. Pereira da Silva, encontramos a palavra calunga com significação desconhecida: Calunga é meia é Zambuê Calunga ê meia é Zambuê. (83)

O catolicismo negro foi um relicário precioso que a Igreja ofertou, não obstante ela própria, aos negros, para aí conservar,

não

como

relíquias,

mas

como

Brasileiro,

pp.

realidades

valôres mais altos de suas religiões nativas. (83)

A. RAMOS,

O

Negro

106-7,

vivas,

certos

110.

179

CAPÍTULO

VI

As Sobrevivências Religiosas Africanas Em que medida o catolicismo do negro adulterou as reli-

giões africanas?

Parece que o escravo não opôs uma

resistên-

cia aberta a esta cristianização, imposta pelo branco,

ou à sua

ao Brasil,

contrasta

arregimentação em confrarias do Rosário e de São Benedito. D'Assier assinala a negligência com que se submetia, chegando ao

sacramento

do batismo

e, nesse

ponto,

o escravo com o índio que gostava “de fazer-se rogado” para assim ganhar um presentinho, uma garrafa de tafiá, um pedaço

de pano, chegando mesmo a batizar o mesmo filho por vários padres sucessivamente só para receber presentes.(!) O meio

em que o negro era introduzido o induzia, aliás, a aceitar, até a desejar, o batismo, que melhorava seu status social, sem sem o que os negros crioulos caçoavam dos africanos “pagãos”,

chegando mesmo a injuriá-los, enquanto os brancos os tratavam como animais “sem alma”. Dessa maneira, apressam-se em aprender de cor algumas orações de que não compreendem o sentido.(2) Se excluímos as tentativas feitas pelos Jesuítas para fazer vir padres que conheciam a língua de Angola ou os escravos dos conventos que seguiam o catecismo regularmente e se confessavam, pelo menos duas vêzes por ano, no Natal e na Páscoa,(*)

a catequização,

como

dissemos num

ca-

pítulo anterior, permaneceu superficial: o catolicismo se sobrepôs à religião africana, durante o período colonial, mas não a substituiu. A sombra da Cruz, da capela do engenho e da igreja urbana, o culto ancestral continuou, o que levou Nina Rodrigues

a afirmar,

no

da catequese”.(*) p.

(1) (2) 140.

“"(3)

A. d'ASSIER, KOSTER, op.

S.

catequização conventos.

(4)

LEITE,

Nina

na

do

período

escravista,

Le Brésil Contemporain, pp. 77-9. cit. pp. 343-44, Cf. TOLLENARE, Notas

História

Bahia

fim

em

RODRIGUES,

da

Companhia

língua

O

angola,

Animismo

de

e

Jesus, sôbre

Fetichista,

p.

pp.

a

“a

ilusão

Dominicaes,

353-54,

sôbre

catequização

a

nos

199.

161

IWusão

porque

os senhores

ou

proprietários

de escravos

não estavam interessados em suas almas e sim em seus corpos. Não viam nêles sêres a salvar e sim máquinas de trabalhar. Ainda no século XVIII, o arcebispo D. Sebastião Monteiro de

Vide se queixa amargamente que:

o de que tratam principalmente os compradores é de porem os escravos ao trabalho, e descuidam-se tanto de lhes ensinar a dou-

trina

zados

Cristã,

dentro

que

poucos

de um

são

ano. (5)

os

que

têm

a fortuna

de

serem

bati-

Os capelães, quando não eram tomados pelo clima voluptuoso dos trópicos, abandonavam-se aos deveres de seus cargos como a uma atividade puramente profissional, sem nutrirem o amor

cristão; ainda no século XIX,

quando

os costumes

ti-

nham mudado assaz profundamente e os brancos se interessavam mais pela moralidade de seus trabalhadores,

êles não os evangelizam, observa Ribeyrolles, trabalho. Batizam os negros e os casam, mas

Couty,

na mesma

época, faz uma

e sim levam-nos ao não os instruem. (º)

observação análoga.(”)

Os brancos viam também freqiientemente na ascensão do negro ao cristianismo um verdadeiro perigo, uma primeira igualação entre o senhor e o escravo, que podia ocasionar consequentemente outras igualações — uma primeira brecha, por

conseguinte, em seus privilégios. prete quando declara que

Lindley

torna-se

seu

intér-

esta participação na religião do país e a familiaridade inconseqiiente que se permite aos escravos, os tornam impudentes. (8)

A negligência dos senhores não era, contudo, o único fator atuante. Onde não havia capelães fixos nos engenhos ou nas

plantações, as distâncias entre as propriedades eram enormes, tornando as visitas dos sacerdotes raras e caras. Frésier atribui assim ao isolamento a falta de vida religiosa tanto entre brancos como entre os negros na 1713.(º) Em Pernambuco,

província de Santa Catarina, em os padres eram obrigados a per-

correr distâncias a cavalo de 20 a 30 léguas, que separavam as propriedades

QUERINO,

o que,

(7) (8) (9)

L. COUTY, L'Esclavage au Brésil, p. 76. “Th. LINDLEY, Voyage au Brésil, pp. 188-89. Citado por A. de E. TAUNAY, Sta. Catarina

RIBEYROLLES,

Brasil

Costumes

como

Citado Cf.

M.

as povoações,

(5)

(6)

por

ou

Pitoresco,

Africanos, pp.

43-5

p.

nos

consegiiência,

35.

Anos

Primeiros.

os impedia de visitar tôdas, cada ano.(1º)

Tollenare também

pensava que o ensino religioso só era possível nas cidades.(!!)

Nesse ponto, outras dificuldades surgiam. O escravo escapava, pela rua, ao estreito contróle de seus senhores; encontrava-se

com

os membros

de

sua

“nação”

nos

batuques

noturnos

em

que se alimentava de lembranças de sua civilização nativa, o branco da cidade, mais ocupado que o dos campos pelos negó-

cios políticos

se era homem,

e se mulher,

pela

vida

mundana

principalmente, não se interessava nem mesmo por ensinar aos seus empregados

de côr

o sinal da cruz ou o Padre-nosso.(!2)

O clero, que podia e devia substituir nesse caso o senhor, ex-

ceto o clero regular, pouco se preocupou com sua missão. O de Minas, por exemplo, nota Saint-Hilaire, não tem outro dever

senão o de rezar uma missa não cantada todos os domingos e confessar os fiéis na Páscoa; o resto do tempo se dedica ao comércio, tários de

à profissão de advogado; os sacerdotes são proprieminas ou de engenhos, mesmo contrabandistas de

ouro e de pedras preciosas. Os curatos são obtidos em concursos ou comprados. O sacerdócio tornou-se uma profissão,

não uma vocação; assim os vícios triunfam e os sacerdotes vão à igreja publicamente com suas concubinas e seus bastardos.(!*) E compreensível, nessas condições, que o catolicismo

negro gião

em

geral sobrepôs-se,

africana,

candomblé. coração

dos

mais

e a confraria

Vilhena

africanos

do que a penetrou,

frequentemente

reconhece

prolongou-se

que é impossível

os costumes

à reli-

arrancar

e as cerimônias

em

do

que

“be-

encontrado

nos

beram com o leite de sua mãe” e que seus pais lhes ensinaram; êle afirma que entre mil negros, há talvez um que siga voluntariamente o cristianismo; entre todos os outros, êste é impóôsto de fora, um simples verniz superficial.(1') Em 1738, o prior

dos da

Beneditinos

(10) H. KOSTER, cristianização das

tâncias,

p. S. Pp. p. op.

foi

também

da

Bahia,

num

documento

Voyages Pittoresques, pp. 150, 155. massas africanas rurais, por causa

observada

por

P,

CALÓGERAS,

Esta dificuldade das grandes dis-

Formação

Histórica,

78. J. ABREU Filho, “A Influência Negra”, Problemas, I, 5, 1938, pp. 32-3. LEITE, op. cit., II, p. 355. MANSFIELD, Paraguay Brazil and the Plate, 93. RUGENDAS, Viagem Pitoresca, pp. 43 e 46. DEBRET, op. cit. II, 100. KIDDER, op. cit. p, 136. AGASSIZ, Viagem ao Brastl, p. 85. TSCHUDI, cit., HI, p. 134. (11) TOLLENARE, op. cit., p. 79 n. (12) Perdigão MALHEIRO nota justamente que a educação religiosa, possível ng zona rural, permanece nula na cidade, 4 Escravidão no Brasil, Título II, cap, 3. (13) SAINT-HILAIRE, Voyages dans les Provinces de Rio et de Minas,

cap. VLI. Voyage aux Sources, p. 338 e o cap. XVI. Cf. D. de VASCONCELOS, História Antiga, p. 300, sôbre o clero de Minas (todevia houve tentativa de Teforma sob D. Pedro de Almeida), e GRANT, História do Brasil, p. 308. (14) VILHENA, Recopilação, p. 137.

168

arquivos por Luiz Vianna Filho, lamenta-se de que os Angolas,

os negros de São Tomé e de outros lugares, se bem que catequizados, batizados e vivendo no meio dos brancos não

abandonam

terras,

reúnem-se

por

calundus. (15)

em

isto

as

superstições

sociedades

(às

que

aprenderam

escondidas)

para

em

suas

fazer

seus

No início do século XIX, Luccok nota que o catolicismo negros e mulatos de Minas é um catolicismo puramente

dos

nominal, que se reduz a simples gestos, sem significado para a alma.(1º)

Em

1838

ainda

Flechter

e Kidder

apenas

de poucas

mostram

que

O

escravo maometano não renega sua fé, mesmo batizado, e que o negro fetichista continua seu culto, mesmo considerando-se cristão.(17)

Infelizmente

que

são,

vências

ademais,

dispomos

bastante

do animismo

fragmentárias

no período



informações —

sôbre

colonial e mesmo

as sobrevi-

no impe-

rial. O interêsse por pesquisas etnográficas ainda não existia; as informações que nos restam estão dispersas em meio aos livros mais diversos, crônicas históricas, narrativas de viajantes.

O branco não se interessava pela religião de seu escravo a não ser na medida em que esta podia ter alguma influência, seja em perturbando seu sono pelos sons roucos de suas vozes

quando cantavam, o tantã ensurdecedor de seus tambores,(!'8) seja no caso em que um sacerdote negro se torna o chefe ou o líder de uma revolta, de uma fuga de escravos, de um episódio de suicídios coletivos.(1º) Fechava os olhos enquanto

os cultos não

tocavam

seus interêsses

imediatos.

Tudo

o que sabemos é, pois, através de uma tomada de consciência egoísta, parcial e desigual, que deixa desaparecer os mais importantes elementos para uma análise científica das religiões africanas no Brasil, e não retém senão o aspecto mais externo, (15)

L. VIANNA

(16)

Citado

por

1921,

p.

e

Filho,

M.

Prêto”, número especial (17) FLECHTER e

144,

153,

G.

F.

O

Negro

BANDEIRA,

na

“De

Bahia, Vila

p. 108.

Rica

de

Albuquerque

de O Jornal no centenário de Ouro Prêto. KIDDER, Brasil, p. 132. Cf. R.LH.G.B., t. MATHISON,

Narrative,

p.

197.

a

90,

Ouro

vol.

(18) Nuno MARQUES PEREIRA, por exemplo, citado por Câmara CASCUDO, Meleagro, p. 180. (19) L. VIANNA Filho, op. cit., p. 107. Em 1637, um mocambo de negros fugitivos é destruído; imediatamente são feitos prisioneiros o “governador” (isto é, O chefe militar) e o “bispo” (Isto é, o chefe religioso) dêsse mocambo.

164

sua repercussão no regime

de trabalho servil.

Mesmo

assim,

é útil agrupar todos os documentos de ordem histórica que pos-

suímos; um determinado número de conclusões podem assim ser inferidas, que não são de se desprezar.

ainda

x

*

Observamos

que

x

a escravidão,

destruindo

o regime fa-

miliar, não permitiu mais a subsistência do culto dos ancestrais no Brasil. Ésse culto estava, entretanto, tão enraizado nos

costumes e na civilização de tôdas as etnias da Africa negra que deixou, no mínimo, um certo número de atitudes mentais, de

formas

de

comportamento

e

de

tendências

sentimentais

entre os escravos, como entre os negros crioulos, educados por êsses escravos: a importância do entêrro, dos rituais de separação entre Os vivos e os mortos, a idéia de que as almas dos falecidos reuniam-se à grande família espiritual dos ancestrais no outro lado do oceano. Esse cuidado de render aos mortos o culto que se lhes devia, a fim de que não se vingassem, para

que não viessem perturbar seus filhos com

delos, mento

explica a conservou

doenças ou pesa-

importância que o cerimonial de enterraentre todos os afro-ameríndios,(?º) mesmo

entre os que se assimilaram mais profundamente à civilização ocidental, como os dos Estados Unidos.(2!) No Brasil, êsse cerimonial se preservou tanto mais fâcilmente, pelo menos durante os dois primeiros séculos de escra-

vidão, devido aos brancos considerarem o negro como um ani-

mal sem alma. Em vão, as ordens religiosas protestaram contra o abandono dos negros no momento de sua morte por seus senhores.(22)

Todavia,

essas ordens

nunca

foram

inteiramente

obedecidas em seus protestos, porque iam de encontro a essas

representações coletivas do negro como “coisa” e não como “pessoa”; representações essas que nunca estão explícitas nos livros, manifestas ou escritas por indivíduos, mas que existiam

tão profundamente que ainda as encontramos hoje no folclore

popular, em quadrinhas do tipo que se segue:

(20) IT. PEREDA VALDES, El Negro Rioplatense, pp. 37-42. M, J. HERSKOVITS, Life in a Haittan Valley, cap, X. Martha WARREN BECKVITH, Black Roadways, a Study of Jamaican Folk Life, caps. VI e VII, etc. 1693,

(21) (22)

M. J. Carta

citada

por

HERSKOVYVITS, The Myth of the Negro Past, cap. VI. do rei ao governador de Pernambuco de 17 de março

ALTAVILA,

O

Quilombo

dos

Palmares,

p. 110.

de

185

O branco, Deus o fêz O mulato, Deus o pintou O caboclo é um peido de porco E o negro, o diabo o cagou(23) O negro não Não morre, O branco dá O negro dá

nasce, aparece desaparece sua alma qa Deus a sua ao Diabo(%A)

Se o padre que A de um negro O negro nasceu Quando morre, Ou

ainda

impossibilidade

em

tôda

do negro

diz « missa é branco não seria mais que mentira... para ser um cão morre latindo (25)

uma

série

de

tornar-se

provérbios

cristão:

“O

que

negro

ressaltam

a

se confessa

mas não toma a comunhão”, “O negro não entra na igreja, espia por fora”, “O negro não acompanha a procissão, corre atrás dela” e, por fim, o que toca o nosso objeto mais de perto: “O negro não morre, acaba”.(28)

Compreende-se,

incomodavam

morte.(27)

em

D'Assier,

nessas

assistir no

condições,

um

comêço

escravo do

que

no

século

os brancos

momento

XIX,

não

de

mostra

se

sua

que

seus companheiros velam sózinhos seus derradeiros instantes e se ocupam de seu entêrro.(28) Éste isolamento permitia a perpetuação de costumes tradicionais, de cerimônias arcaicas e

tudo nos leva a crer que, para melhor celebrar os enterramentos dos cadáveres nos cemitérios, os negros aceitaram as confrarias católicas, o rito cristão não fêz mais que se sobrepor ao rito

“pagão” já arraigado “brasileiros.

profundamente

nos

costumes

dos

afro-

Os documentos mais antigos que possuímos sôbre êsse assunto datam do século XVII. Em 1618, quando da visita da Inquisição na Bahia, Sebastião Barreto denuncia junto aos padres o costume que têm os negros de matar animais em seus enterros para lavar os corpos em seu sangue, dizendo que nesse caso a alma deixa o corpo para subir ao céu.(2º) (23)

José LIN8S DO

(24) (25) (26)

Câmara CASCUDO, Vaqueiros e Cantadores, p. 113. Novos Estudos, p. 56. Florestan FERNANDES, “O Negro na Tradição Oral”,

p. 258.

S.

Paulo,

1, 7,

1943.

(27) M. GRAHAM, encontrado uma negra que

os

acompanhavam

RÊGO,

Bangilê

(romance),

Journal, p. 144, morrendo numa

que

a

186

s. d. (310 pp.),

O

Estado

de

conta que alguns inglêses, tendo estrada, pediram aos portuguêses

socorressem;

“Inútil pararmos, é apenas uma negra”. (28) D'ASSIER, op. cit. p. 157. (29) JL. VIANNA Filho, op. cit., p. 108.

J. Olympio,

porém,

êles

lhes

responderam:

Durante

a ocupação

holandesa,

o pastor

Soler

escreveu

a um

de seus amigos que quando um negro morria, homens, mulheres e crianças rodeavam o cadáver, e, ao som dos tambores, o interro-

gavam cantando: “Ai, ai, ai, por que morreste? — Ai, ai, ai, faltava-te pão? Ai, ai, ai, faltava-te peixe?” e assim, passavam em revista todos os tipos de alimentos e de bebidas.(30) As descrições que Debret nos dá no início do século XIX dos enterros de negros os mostram impregnados de cristianismo. Entretanto, nota que êsse cristianismo é mais ou menos aparente segundo as nações, os Moçambiques, segundo êle, o denotam ao máximo, Os enterros de negras são acompanhados sômente por mulheres, com exceção de dois carregadores, um mestre de cerimônia e um de tambor. Durante todo o cortejo as carpideiras lançam gemidos e gritos. Chegadas à Igreja dos negros, o cadáver é transportado numa rêde acompanhado de 8 parentes ou amigas íntimas, devendo cada uma pousar sua mão sôbre o corpo.(9l) Para um rei negro, a cerimônia é ainda mais impressionante. Uma moeda é posta na bôca do defunto e uma fita ao redor da cabeça para manter os maxilares presos. E estendido sôbre uma esteira, envolvido em suas roupas de gala (se isto é impossível, êle é representado na parede por um desenhista com suas roupas) e os dignitários de tôdas as diversas nações negras o vêm visitar, o embaixador, o porta-bandeira, o capitão da guarda. Tôda a noite, seus súditos o velam, ressoando no ar o som das batidas abafadas de suas mãos ou de seus instrumentos musicais. O entêrro é acompanhado por uma

mesmo

multidão

saltos

que

solta bombas,

perigosos. (32)

chora,

canta;

alguns

executam

Kidder pôde ver de sua janela, onde se lançara atraído pelo barulho, “um negro trazendo sôbre a cabeça uma tábua, na qual estava colocado o cadáver de um negrinho, coberto por um pano branco, ornado de flôres, tendo à mão um ramo. Atrás seguia a multidão entre a qual umas vinte negras e numerosas crianças, quase tôdas enfeitadas de fitinhas vermelhas, brancas, amarelas, que entoavam alguma cantiga etíope da qual marcavam o ritmo com um passo lento e cadenciado; o que levava o corpo parava frequentemente e voltava-se sôbre seus passos como se dançasse”. (38) Melo Moraes Filho nos deixou uma descrição de um entêrro moçambique em 1830 que lembra a descrição de Debret, as mulheres seguindo o cadáver de uma mulher, os homens o de um homem,

os dois sexos assistindo o de um rei ou o de uma criança, todos com um grande acompanhamento de palmas, de tambor, de cantos

e lamentações fúnebres.(34) E evidente que essas narrativas não vão além da superfície das coisas, mas provam ainda assim que o manismo africano subsistia, era vivo. Os dados de S. Vampré são ção

(30) Carta impressa em 1639 e citada por G. de MELLO Neto, do Negro sob o Domínio Holandês”, Novos Estudos, p. 220, (31) DEBRET, Viagem, pp. 184-85. (32) Id., ibid. pp. 185-86. (33) D. P. KIDDER, Reminiscências, pp. 142-43. (34) Melo MORAES Filho, Festas e Tradições, pp. 379-84.

“A

Situa-

187

mais

interessantes,

porque

nos mostram

os negros

de São Paulo

reu-

nidos em suas confrarias do Rosário no fim do período escravista,

dirigindo-se ao morto negros do Pernambuco “Tu que amavas tanto bôca, que tanto comeu Vós, pernas, que tanto Esta

mortuárias

duração

da mesma forma que, no século XVII, os holandês, lhe diziam em seu falar crioulo: a vida. Tu, bôca, que tanto falou. Tu, e bebeu. Teu corpo que tanto trabalhou, andastes”.(35)

do costume

africanas.

Rocha

mostra

Pombo

a resistência

assinala

das

também

cerimônias

que

é nesse

domínio dos ritos fúnebres que as sobrevivências são mais numerosas. O cadáver é lavado, como no Camerum, antes de ser sepultado e, às vêzes, faz-seldhe a barba. Antes do sepultamento, é velado por seus amigos; é a cerimônia do velório e os que velam são designados pelo nome de carpideiras. Bebe-se, come-se, entoa-se cantigas e se os parentes do defunto não podem arcar com as despesas do velório, cotizam-se à maneira da África; depois o cadáver é levado ao cemitério, enquanto o cortejo dança em redor, jongos e congadas.(38) É evidente que os têrmos “jongos” ou “congadas” significam para Rocha Pombo apenas “danças de negros” indistintamente; de fato, as danças mortuárias que seguem o féretro nada têm a ver com as danças eróticas, como o jongo, ou danças de divertimento, como a congada; constituem aqui ritos fúnebres especializados.

O segundo campo em que temos igualmente informações históricas bastante detalhadas é o da magia africana. Na realidade, ela impressionou os brancos. Por várias razões e primeiro de tudo porque o colonizador português era supersticioso também, como seu escravo, negro ou índio. O pequeno número de “cirurgiões”, de médicos e de boticários durante todo

o

período

colonial,

portos comerciantes

mesmo

nas

grandes

do litoral,(87) forçava

cidades

os doentes

e nos

a infu-

sões de ervas ou aos emplastros que não chegavam a curar, a consultarem “curandeiros” e “algebristas”; e como os africanos

eram versados na arte da magia curativa, impuseram-se a seus

senhores brancos e mantiveram, dessa maneira, alguns de seus processos nativos, misturando-os, aliás, aos processos dos feiticeiros brancos. Um poema de Gregório de Mattos evoca,

alguns casos desta magia médica.(*º)

para o século XVII,

Enfim, é óbvio que o português, longe de seu país natal, numa terra estrangeira, cheia de ciladas e de perigos imprevistos, num clima frequentemente enervante, não se sentia em (35)

Paulo,

Spencer

Saraiva,

S.

VAMPRÉ, Paulo,

Memórias

1924,

I,

p.

75.

Para

Cf.

à

História

da

Academia

Avé-LALLEMANT,

Reise

de

S.

Durch.

Brasilien, p. 36, para fatos análogos ne mesma época no norte do Brasil. Rocha POMBO, História do Brasil, IL, p. 943. (36) A. MACHADO, Vida e Morte do Bandeirante, p. 97. (37) Gregório de MATTOS, Obras, Oficina Industrial Gráfica, Rio, 1930, (38) t. IV: Satírica, vol. I, p. 345.

Nord

188

segurança.

Sabe-se que a magia está ligada justamente à angús-

tia ante o estranho e o desconhecido;

cional para tranqiilizar.

é ela uma

técnica irra-

Dessa forma, tudo concorria: o cará-

ter supersticioso dos primeiros imigrantes, a ausência de uma medicina científica, a insegurança dos trópicos para um homem vindo da Europa, mediterrânea e temperada, para manter entre

os brasileiros o interêsse pela magia.

E da mesma forma, o negro, tendo uma dupla qualifica-

ção, a de estrangeiro,

ou seja, a de estranho



e a de côr,

que é a côr do Diabo — lhes parecia feiticeiro, por excelência. Mas também a atitude do branco vai ser ambivalente em relação ao prêto. De um lado, aceitará sua magia medicinal, seus

filtros amorosos que darão aos senhores esgotados sexualmente o vigor desaparecido,(*”) e de outro, terá receio do feiticeiro escravo que conhece as plantas venenosas, e prepara Os venenos, para se desembaraçar de senhores odiosos. Antonil

alude a esta guerra mística, aos “feitiços” preparados pelos negros e lançados contra os proprietários de terras ou de

minas;(*)

a êsse respeito,

É por isso que vemos,

aludimos

mais

acima.

lado a lado:

1.º — Tantas condenações durante todo o imperial, como a de Luiza Pinto, negra livre, de Angola, condenada a quatro anos de prisão tiçaria e presunção de ter feito um pacto com o ou

a

do

revolução”

negro

em

de

seu

Santo

bairro

Antônio

de

(1888).(12)

período colonial ou de Sabará, nativa “por crime de feiDiabo” (1744),(41)

Cachoeira

que

“ordenou

a

2º — Ao mesmo tempo o reconhecimento oficial do curandeirismo negro pela metrópole, como o prova o caso do Rei D. João VI dando uma pensão de 40 $ ao soldado Antônio Rodrigues, que curava com o auxílio de certas palavras poderosas;(43) os viajantes da época imperial se admiraram por esta aceitação da parte do branco, dos processos africanos de medicina mágica.(**)

Esta dualidade de atitudes do branco em relação à magia

associa-se

às vêzes

Nas

cidade-campo.

da estrutura: social,

à dualidade

zonas

rurais,

sobretudo

nas

à oposição

regiões

afas-

tadas, isoladas, o negro tinha mais prestígio, pois que substi(39)

(40)

G.

FREYRE,

Sôbre

a

magia

Casa-grande, como

arma

p.

de

238.

guerra

contra

o

branco:

ANTONIL,

Cultura e Opuléncia, pp. 95-6, e sôbre a magia como auxílio válido gos escravos: KOSTER, Voyages Pittoresques, II, p. 188. X. de VEIGA, Efemérides Mineiras, p. 511. (41) “O Guaripocaba”, Jornal de Campinas, Estado de 8. Paulo, 2-12-1886. (42) O Rio de Janeiro..., D. 472, L. EDMUNDO, 43) 44) WALSH, Notices, p. 4ls.

189

tuía o papel do médico ausente. Saint-Hilaire e Koster, no curso de suas viagens pelo Brasil rural, observam o fenô-

meno.(*) somente

Em

se

compensação,

chocou

com

na cidade, a magia africana não

o clero

urbano,

mais

esclarecido

ou

mais “romano”,(“º) mas ainda se depreciou em contato com os

brancos, que lhe pediam receitas voluptuosas, o meio de se livrarem dos rivais em amor ou de inimigos políticos. Permanecia

assim,

sem

dúvida,

ticularmente banto),

mais

própriamente

africana

servindo-se de ossadas roubadas

(e par-

nos cemi-

térios, dotadas de “virtudes” especialmente fortes. Desta maneira quando se exumou em 1881 o cadáver de Maria Moreira, africana morta três anos antes, no cemitério dos leprosos, faltava o crânio do esqueleto.(“?)

Essa necessidade reconhecida de uma magia, tanto para o mal como para o bem, e, ao mesmo tempo, êste temor do

branco pela feitiçaria de seus escravos, explicam por que os documentos sôbre magia africana no Brasil são relativamente

numerosos. A questão apresentava um interêsse prático, mais que a descrição de cerimônias mortuárias ou de danças místicas.

E

entre

êsses

documentos,

os que

são mais

explícitos,

que contêm mais detalhes, são os que tratam de serpentes.

O

que é compreensível numa época em que a vacinação antiofídica não existia e onde os humildes trabalhadores dos campos,

em sua lidas cotidianas, eram fregiientemente picados por êsses répteis.

Tollenare diz que os negros curandeiros se cercavam de serpentes que obedeciam a suas ordens, resultado de determinadas preparações. Ensinavam seus segredos a seus sucessores e êste ensino toma a forma de uma iniciação religiosa, sôbre a qual o autor, infelizmente, não nos dá informações. Uma amiga de Tollenare, mordida tão profundamente por uma serpente, que o sangue lhe safa por todos os orifícios da cabeça, fêz vir um dêsses curandeiros que, estando ocupado, contentou-se em lhe enviar (...) seu chapéu. (48) fisse chapéu foi colocado sôbre a cabeça da moribunda que se sentiu melhor no mesmo instante. À tarde veio o curandeiro, chamou a serpente culpada que, de fato, apareceu, andou em tôrno do leito, para grande terror dos assistentes, depois enrolou-se no corpo do negro, que a matou. Tollenare igualmente viu em Recife (45)

(46)

SAINT-HILAIRE,

nambuco,

A.

de

vol.

CARVALHO,

XXI,

p.

406.

Voyage “A

dans

Magia

les Provinces

Sexual

no

de Rio

Brasil”,

et Minas,

R.I.A.H.G.

p. 305.

de

Per-

(47) Alvares do AMARAL, Resumo Cronológico, p. 277. Se indicamos uma provável influência banto, é porque, em Cuba, a reglão da América onde as sobrevivências religiosas africanas são mais semelhantes às do Brasil, a magia com a ajuda de ossadas, principalmente do crânio, roubadas aos cemitérios,

ainda hoje existe entre os Congos. Ver Lydia CABRERA, El Monte, p. 147. (48) Este costume do chapéu sobrevive ainda, como um de meus estu-

dantes

190:

brasileiros

observou

em

1938

em

O

Estado

de

S. Pqulo.

um feiticeiro fazendo dançar duas serpentes numa praça da cidade.(4º) Alguns anos depois, Saint-Hilaire encontra práticas análogas em Minas e em São Paulo. O cura de São João Del Rei (Minas) serpentes

apossar

se

de

fôra

que

escravo

um

tinha

as

venenosas. de

seu

de

Um

segrêdo

seu

pai,

e

êste

dia

agarrava

que

amarrou

êle

confessou

o

impunemente

tornara

se

que

fim

a

escravo

invulnerável às picadas, esfregando o corpo com a “erva de urubu”. Porém, acrescenta Saint-Hilaire, qual é essa erva?(50) A serpente, aliás, é objeto de muitas superstições desta época e é opinião difundida nas mesmas regiões que a mordida da cascavel cura da lepra.(51) Koster chama êsses negros feiticeiros não de “curandeiros” mas

manejar

êstes podem

de mandingueiros;

as serpentes

mais

venenosas sem perigo, encanté-las com seus cantos ou seus gritos, curar de suas picadas. Nesse último caso, o paciente deve rodear sua cabeça, seu rosto e seus ombros com uma serpente domesticada Se um e o mandingueiro pronuncia algumas palavras mágicas. homem mordido por uma serpente não pode apelar para um dêsses feiticeiros, deve se isolar, porque a mordida tornar-se-ia mortal, se lançasse os olhos, mesmo involuntâriamente, para um animal fêmea O ponto de vista de D'Assier e particularmente uma mulher.(52) difere essencialmente dos viajantes precedentes: falando da jararaca trigonocéfala, singularmente venenosa, que, contudo, parece não fazer mal aos negros, acrescenta: “Contudo, tal é a aversão instintiva dos negros por êsse réptil, que muitos dêles preferiam levar bastonada

uma

morta”. (53) Pode

ela

a

tocar

Entretanto,

provir

ou

de

e

principalmente

uma

sobrevivência

esta

contradição

profanar

não

é mais

totêmica,

uma

que

da

ou

serperite

aparente. ambiva-

Em todo caso, o fato é certamente lência da noção de sagrado. verídico, porque Herskovits o encontrou igualmente entre os descendentes dos negros fugitivos da Guiana Holandesa. (54) Donde resulta êsse complexo da serpente no Brasil? Certos autores pensam que é de origem daomeana e é certo que o culto do Vodun existiu na época colonial; o Códice Felipino a êle faz menção, atribuindo-o, aliás, aos “negros da Guiné” em geral.(55) Charles Expilly, por seu lado, afirma ter encontrado o culto da serpente Panga no Brasil, mas originário do Congo; teria êle até mesmo lhe consagrado um livro, Os Negros Feiticeiros (58) que não foi publicado e o manuscrito certamente se perdeu porque não o encontramos.

Entretanto,

parece

que,

em

consequência

das

crições que citamos, não há razão para se falar de um culto priamente dito, ainda menos de um velho totemismo africano (49)

(50)

'TOLLENARE,

op.

SAINT-HILAIRE,

cit.,

pp.

Voyage

107-8.

auz

Sources

du

(51) Id. ibid. p. 152. (52) KOSTER, op. cit., II, p. TT. (53) D'ASSIER, op. cit. pp. 45 e 285. (54) M. J. e F. HERSKOVITS, Rebel Destiny, 5) Coder Felepino, Rio, 1870, p. 931, citado op. » Pp. 85. (56) Ch. EXPILLY alude a êsse livro, não e

Costumes.

O

culto

da

serpente

existe,

na

Rio

S.

Francisco,

p. 12. por Mendes

de

encontrado,

em

realidade,

entre

des-

prôconp.

98.

ALMEIDA, os

Mulheres

bantos.

R. E. DENETT, At the Back of the Black Man's Mind, p. 140. Sôbre o culto de serpente na Africa, em geral, ver: W. D. HAMBLY, “The Serpent in African Bellef and Custom”, American Anthrop., vol 31, 4, 1929.

191

servado no Brasil. De fato, há dois grupos de “magia” ligados, mas que não podemos distinguir por falta de conhecimentos: de um lado, o negro encantador de serpentes, e podemos pensar que seja talvez de origem muçulmana ou árabe (o têrmo “mandingueiros” dado por Koster a êsses “encantadores” deixa supor uma influência

maometana)

particular falamos.

de

de

serpentes;

Enfim,

e de outro,

e, nesse

um

caso,

todo

mais

a terceira

o negro

o fenômeno

vasto,

série

o da

de

curandeiro

não

é mais

magia

de mordidas

que

curativa

documentos

de que

de

um

caso

que



podemos

dispor trata dos cultos religiosos própriamente ditos. São infelizmente os menos numerosos, o que se compreende, porque a

magia

interessava

jantes

estrangeiros,

os enterros

eram

tanto o branco

públicos

brasileiro quanto

e despertavam

ávidos

de

exotismo

ou

a atenção de

o escravo;

dos via-

pitoresco.

O

culto, ao contrário, era secreto. O primeiro documento iconográfico que temos é a gravura 105 do Zoobiblion de Zacharias Wagner, que estéve no Brasil holandês entre 1634 e 1641; 0 texto que a acompanha está assim redigido: Quando os escravos têm executado, durante a semana inteira, a sua penosíssima tarefa, lhes é concedido o Domingo como melhor lhes apraz; de ordinário se reúnem em certos lugares e, ao som de pífanos e tambores, levam todo o dia a dançar desordenadamente entre si, homens e mulheres, crianças e velhos, em meio de frequentes libações (...) a ponto de muitas vêzes não se reconhecerem, tão surdos e ébrios ficam.(57)

Mas, como observa mais precisamente o Dr. René Ribeiro: A simples inspeção (desta gravura) qualquer pessoa familiarizada com os cultos afro-brasileiros do Recife reconhecerá ali uma roda de Xangô: o mesmo círculo de dançarinos a se movimentar para

a

esquerda

com

as

atitudes

coreográficas

características;

idêntica posição dos ogan-ilu a tocarem dois atabaques do tipo comum em tôda a África Ocidental e um agogô; a jarra de garapa ao lado dos tocadores; a mesma posição e atitude do sacerdote. Chegavam a não “se reconhecer” não porque estivessem “tão surdos e ébrios” e sim por estarem possuídos por seus deuses (ficarem no santo), condição psicológica que naturalmente o artista ignorava.(98)

Esta perpetuidade de gestos que continuam ao longo dos

séculos, (57)

como

Alfredo

assinalamos de

CARVALHO,

anteriormente, “O

Zoobiblion

R.I.A.H.G. de Pernambuco, XI, pp. 181-95. (58) René RIBEIRO, Cultos Ajro-brasileiros dêle, G. de MELLO Neto fizera uma observação

Estudos,

192

p.

221.

não nos deve iludir: de

Zacharias

do Recife, p. 27. análoga, op. cit.,

Wagner”,

Já, antes in Novos

os Xangôs

de hoje não são sucessores dos Xangôs do século

XVII, a evolução se processou numa linha descontínua, porém, pontilhada de criações, desaparecimentos e novas aparições de seitas. XVII;

O

primeiro

é uma Quantos

documento

sátira de

quilombos

literário data

Gregório

também

de Mattos:

do

século

existem

(a palavra quilombo é tomada aqui no sentido de reunião e não mais de negros fugitivos)

de negros

Com senhores: superlativos Onde a noite se ensinam Calundus e fetichismo!

Mil mulheres Os frequentam com devoção Do mesmo modo que homens barbados Que se consideram novos Narcisos

(portuguêses)

(...) O que digo é que nessas danças Satã tem parte ligada, Que sômente êsse senhor cúmplice Pode ensinar tais delírios. (5º)

Êsse texto é interessante porque nos mostra que os “candomblés para turistas” têm uma origem bastante remota. O

elemento

branco

não permaneceu

ticipou, provavelmente fico

ou

uma

não

inquietação

fora do culto africano; par-

atraído por um

religiosa,

mas

por

interêsse etnográapetites

baixos,

ÊEsse contato tendeu a desagregar o culto tradicional, a mudar

a função, a fazê-lo desaparecer na magia ou no erotismo. Mas, é preciso notar que o culto não é, segundo a descrição do

poeta, um culto ioruba ou daomeano, e sim um culto banto.

próprio têrmo

O

“calundu”, que o designa, evoca certos espíritos

de Angola, que têm o mesmo

nome e que se introduzem nas

mulheres na hora do parto;(*º) os dois têrmos, “senhor” e “ca-

chimbo” incitam a ver nessas cerimônias frequentadas pelos brancos, cerimônias análogas às do catimbó, do candomblé de caboclo, ou da macumba, isto é, fortemente sincretizadas com elementos indígenas e católicos. As verdadeiras seitas africanas

conservavam, pelo contrário, seus mistérios e seus segredos; não

aceitavam branco.

Em

dos negros exerceu uma

todo caso, desde o comêço, estranha sedução

não negras e, dessa maneira, êsse fenômeno (59) (60)

Gregório de A. RAMOS,

MATTOS, O Negro

a religião

sôbre as populações

se perpetuou.

A

op. cit., pp. 186-88. Brasileiro, p. 113,

193

sátira de Gregório de Mattos

corresponde,

de fato, para a se-

gunda metade do século XIX, ao poema de Melo Moraes: Mas que vejo? Tudo em redor serpentes penduradas Galinhas por terra, corujas no muro Cabras sem cabeça, grelhas sôbre brasa E um fetiche abrindo asas enormes! De um aposento, um bando sujo e chistoso sai Agitando os corpos ao som de sinêtas: À luz de uma mecha que queima num azeite côr de terra Os

negros

vão

orar

ao

seu

estranho

ídolo!

Mulheres, de diversas côres, dançando juntas Estão nuas, com exceção de uma tanga... (81)

Ao lado dêsses documentos, iconográficos ou líricos, temos

outras duas fontes que nos falam da religião africana: os documentos da polícia e da administração e as narrativas dos viajantes. Na época colonial, o culto dos negros foi simples e

puramente confundido

bida em Portugal,

com a feitiçaria e como

esta era proi-

as ordenações reais que contra ela eram di-

rigidas foram aplicadas no Brasil contra as reuniões de negros

que tinham, aos olhos dos cristãos, por suas músicas, suas danças extenuantes, e principalmente suas crises de possessão, algo de demoníaco.(*2) O Conde de Pavolide, em 1780, entra em

guerra contra os bailes

“que os prêtos da Costa da Mina fazem às escondidas, ou em casa, ou roças com uma preta mestra, com altar de ídolos adorando bodes.

vivos, e outros

feitos

de barro, untando

seus corpos com

diversos

óleos, sangue de galo, dando a comer bolos de milho depois de diversas bênçãos supersticiosas, fazendo crer aos rústicos que aquelas unções de pão dão fortuna, fazem querer mulheres a homens e homens a mulheres” e acrescenta que “a credulidade de certas pessoas chega a tal ponto, mesmo aquelas que não são tão simples como padres e curas, que ameaçadas de prisão em minha presença em conseqiiência das apreensões que mandara fazer nessas casas, foi-me necessário, para livrar sua imaginação, fazer os negros dessas casas confessarem ante elas sua mistificação e em seguida submetê-los a seus prelados para que fôssem punidos como mereciam”. (88)

Sob o Império, o problema devia se apresentar um

diferente.

pouco

As idéias de liberdade haviam penetrado, da França

e da América

do Norte, no Brasil.

O projeto de Constituição

de 1823 proclamava a liberdade de culto para tôdas as comu(61) Melo MORAES Filho, “O Candomblé”, Cantos de Equador. (62) F. MENDES DE ALMEIDA, Op. cit., pp. 85-6. (63) Informação do Conde de Pavolide a Martinho de Mello e citada por R. RIBEIRO, op. cit., pp. 27-8.

194

Castro,

nidades cristãs; “as outras são somente toleradas”.

O projeto

não devia passar, a Assembléia Constituinte havia sido dissolvida, e o texto que foi promulgado já era menos favorável: A religião católica, apostólica e romana continuará a ser a religião do Império. Tôdas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular, em casas especiais, sem aspecto exterior de templo.

É evidente que êste artigo não aludia de modo nenhum

religião dos escravos;

pensava-se

na hipótese

sômente

à

da reli-

gião dos estrangeiros, comerciantes vindos a se estabelecer no

Brasil,

israelitas

ou

protestantes.

O

código

criminal

de

1831

penetra mais além nas realidades sociológicas do Brasil e parece tolerar o “fetichismo”

sob a condição

de permanecer

entre os

razão

uma

muros da senzala e não num templo público. Entretanto, êsse mesmo código comportava um artigo, o artigo 179, que per-

mitia tôdas que

Ninguém

respeite

as intervenções

o

pode

Estado

ser

policiais:

perseguido

e não

ofenda

por

a moral

religiosa,

pública.(84)

vez

Era sempre fácil, num meio regularmente perturbado por revoltas de escravos, ver nas reuniões de negros um atentado contra o Estado e nos sacrifícios de animais, nas danças acompanhadas de transes místicos, uma ofensa aos bons costumes. E, pois, por intermédio dêste artigo 179 que se deixava a defi-

nição da “moral pública” ao critério subjetivo dos administra-

dores ou da simples polícia, que a luta contra os calundus e os candomblés vai continuar no Império, não obstante o belo

ornato da Constituição sôbre a tolerância religiosa.

Em

1870,

no sul do Brasil, “as casas da sorte” (como se chamavam então

os templos fetichistas; a palavra portuguêsa tendia a substituir o antigo têrmo banto de calundu) eram objeto de visitas po-

liciais, destruídas

e seus fiéis, aprisionados.(8)

Em 1876, novas perseguições; o Conselho municipal de Campinas (São Paulo) decreta: “As casas conhecidas vulgarmente sob o nome de Zangus ou batuques estão proibidas. 30 $ de multa”.(86) No Norte, ao princípio do século XIX, o africano Domingos foi prêso numa sessão de candomblé na Bahia, mas foi sôlto porque pôde exibir seu título de tenente da “milícia dos Henriques”. (97) Em (64) Sôbre esta questão da autenticidade das religiões africanas, ver Diário de BITTENCOURT, “A Liberdade Religiosa no Brasil: A Macumba e o Batuque em Face da Lei”, O Negro no Brasil, pp. 173-86.

(65) (66)

(67)

MENDES DE ALMEIDA, op. ctt., pp. Cf. também “O Guaripocaba”, Jornal

Manuel

QUERINO,

Costumes

85-6. de Campinas,

Africanos,

p.

45.

2-12-1886.

195

1872, na mesma

cidade, o chefe de polícia fêz cercar à meia-noite

um candomblé de Cruz das Almas e aí prendeu oito pessoas entre as quais um “louco”, Raimundo Nonato, de cujo corpo os feiticeiros tiraram animais, espíritos e 30 diabos vermelhos, o que fêz com que o infeliz fôsse encontrado todo coberto de queimaduras e de feridas

(os feiticeiros

afirmaram

que

faziam

sair por êsses buracos

os espíritos que o atormentavam).(88) Inútil multiplicarem-se os exemplos, porque não nos ensinam infelizmente nada sôbre a organização dessas seitas, seu cerimonial e sua importância Se citamos esta fonte documentária, é somente porque

numérica. mostra a

atividade de uma religião, sem cessar perseguida, encurralada, mas que jamais morre, resistindo assim, até hoje, a tôdas as violências.

As descrições dos viajantes são bem mais ricas. A mais antiga é provavelmente a do peregrino da América, Nuno Marques Pereira, que data de 1728, que não pôde fechar os olhos à noite, por causa do barulho de tambores e de uma gritaria “do inferno”; seu hospedeiro o informa que se celebrava um

calundu e explica:

São divertimentos, ou divinações, que êsses negros dizem ter o costume de fazer em suas terras, e quando se encontram reunidos, as praticam também aqui, para saber diversas coisas, como a origem de suas doenças, ou para encontrar coisas perdidas, e também para ter sucesso em suas casas, em seus jardins e para muitas

outras

coisas.(89)

Porém, é com a época imperial que essas descrições se multiplicam. Maria Graham encontrou em 1821 “negros dançando e cantando para a lua” e acrescenta: Esta veneração supersticiosa é, diz-se, corrente na Africa e provavelmente os negros, mesmo batizados, dançam para a lua em memória de sua pátria.(70) Opinião à primeira vista surpreendente, porque o culto da lua não é difundido particularmente na África; deve existir entre os Krumans, que forneceram escravos ao Brasil, mas em pequeno número. ('1) E as superstições ligadas à lua são bem mais numerosas ainda entre os portuguêses que entre os prêtos: era uso apresentar a criança que nascia à lua crescente para que crescesse ao mesmo tempo que ela: (68)

MORAES (69) p. 147. (70) (71) Mercados

196

Encontram-se

Filho, Citado

numerosos

exemplos

nos

cronistas,

Pereira da COSTA, e nos jornais da época. por Câmara CASCUDO, Dicionário do Folclore

Maria GRAHAM, Viagem ao Brasil, p. 198. Não obstante a opinião contrária de Braz do AMARAL, de Escravos Africanos”, op. cit., p. 478.

como

Melo

Brasileiro,

“Os

Grandes

Ó minha

lua, luar

Minha madrinha Aceitai vosso filho, Ajudai-o a crescer.(72) Mesmo se a interpretação de Maria Graham fôsse exata e se a dança dos negros fôsse dedicada à lua, é preciso não esquecer,

como

assinalamos,

que

a cultura

e a raça

estão

que muitos traços da civilização portuguêsa crioulos escravos, enquanto reciprocamente africanas foram adotados pelos brancos, o se possa generalizar a côr dos adeptos na seus costumes. A lua desempenha em nossa um grande papel, em relação com a água,

ritmo

das

crises

de

loucura

e com

separadas

no Brasil,

passaram aos negros traços de civilizações que faz com que não origem geográfica de cultura mediterrânea com a mulher, com o

o crescimento

da

vegetação;

êste traço não é nem um pouco africano, mesmo se êste o aceita em seu nôvo habitat. Mas pensamos que Maria Graham compreendeu mal as respostas dos brasileiros às questões que lhes apresentou e que seria preciso modificar sua frase da seguinte maneira: “Negros cantam e dançam ao luar”; é a dança noturna, que é costume ancestral, não a dança dedicada ao culto da lua. Um pouco

mais tarde, em 18839, Flechter e Kidder

aludem aos “fetiches”, que

definem como “sociedades secretas” onde os negros celebram seus costumes nativos.(73) Em 1846, em Olinda, Koster nota que quando os escravos estão na senzala e pensam que os senhores estão dormindo, às vêzes se libertam e vão com outros negros que convidaram, “a alguma festa noturna que se celebrava no maior mistério como as festas da Deusa Boa”.(74)

O segrêdo impedia que os viajantes se entregassem a uma

observação mais completa das seitas africanas.

Além disso, êles

se interessavam mais com a categoria de erotismo que de mística. É assim que Tollenare, em 1817, nos diz que os negros dan-

çam aos pares, cercados por espectadores: êles assim

representavam

ou

a

concupiscência

do

macaco,

ou

do

urso

ou de qualquer outro animal. O macho levava grosseiramente sua pata sôbre a fêmea, esta se defendia um pouco, fugia e acabava por se render; então, os dois dançarinos se precipitavam um gôbre

o outro.

Ou então, ao par se juntava um terceiro dançarino, sim-

bolizando

com

o

caçador,

armado

de

um

pau;

comumente,

batia

êle numa jovem negra que se sentia feliz por êste sinal

de escolha.('*) O francês, galante, dade nas danças animais que têm

não viu mais que um outro caráter,

sexualise bem

que não se possa dissociar o sexual do místico numa civiliza(72) G. PENALVA, O Aleijadinho, p. 373. (73) FLECHTER e KIDDER, Brasil, p. 136. (74) (715)

KOSTER, Op. cít., p. 28. TOLLENARE, op. cit. p. 234.

197

ção total onde tudo está contido. É provável que tenhamos aqui o caso de uma dança que existe ainda na África e em que certos etnólogos quiseram ver uma das origens do teatro africano

negro;

ela

é conhecida

sob

o nome

de

Nanzéké

e

coloca em luta o grupo de homens fantasiados de caçadores e o grupo de homens mascarados, fantasiados de animais; porém,

Nanzéké mata um antílope tabu que chora por se ver colhido nas malhas da morte, o que traz a intervenção da mulher do

caçador

“guardião

dos

fetiches”.('º)

Esta

dança

se encontra

com, na realidade, um

só caçador;

sob uma forma ainda mais próxima da brasileira entre os ca-

raíbas negros de Honduras

o animal morto contemporâneo, tinuam a existir, da Bahia,('*) a ressurreição pelo

é ressuscitado pelo feiticeiro.('7) E no Brasil êsses dois fragmentos da dança africana cono grupo de animais e o caçador nos Ranchos morte do animal “sagrado” ou “tabu” e sua feiticeiro no Bumba-meu-boi, de que êsse diver-

timento africano é, certamente, uma origem ao lado de outras, européias

e índias,('”)

conhecimento,

não

se bem

tenha

que

até agora,

sido assinalada.

que

Dessa

seja de meu

maneira,

so-

brevivências mais ou menos totêmicas manifestam-se na infra-estrutura das danças públicas, as únicas que os viajantes estrangeiros nos puderam descrever um porque a elas assistiram.

pouco mais

detalhadamente,

x

*

A estrutura social do Brasil escravista, separando as côres em classes superpostas, cada qual com sua civilização própria,

levou naturalmente valôres.

a uma

falsificação

de

seus

respectivos

O branco não podendo compreender uma religião tão di-

ferente

da sua,

julgava-a

“demoníaca”

já que

não

O dualismo social se prolongou por conseguinte — do-se também



pela oposição

era cristã.

justifican-

entre as fôórças do Bem,

que

iam de Deus ao senhor de engenho, e as fôrças do Mal, que iam de Satã até os seus sequazes das senzalas e dos mocambos.

(718) PROUTEAUX, “Premiers Essals de Théâtre chez les Indigênes de la Haute-Côrte-d'Ivoire”, Bullet. du Comitê d'Études Historiques de VA. O. F., 2, 1929,

pp.

448-75.

(77) Ruy COELHO, “As Festas dos Caribes Negros”, Anhembi, 25, 1953, Ano III, vol. LX, pp. 54-72. (718) Nine RODRIGUES, Africanos no Brastl, pp. 262-69, e A. RAMOS, Folclore Negro, pp. 80-5. (79) Sôbre o Bumba-meu-bol, ver o estudo sintético que é dado por Cêmeara CASCUDO, em seu Dicionário do Folclore Brasileiro, pp. 124-27. A.

RAMOS,

as origens

198

Folclore

Negro,

africanas

dêsse

procurou,

talvez

teatro-bailado,

pp.

de

maneira

103-28.

um

pouco

abusiva,

Assim, êle recuperou

a “boa consciência”

e as danças místicas

dos negros, ao redor de suas pedras lavadas de sangue de ani-

mais

sacrificados, tornavam

válida, aos seus olhos, a distância

social que mantinha entre si e êles.

A definição de civilizações

africanas como diabólicas foi uma racionalização dade e da falta de humanidade da escravidão.

da

brutali-

O folclore, que mantém as crenças dos séculos anteriores,

conserva sempre traços desta falsificação, mais ou menos consciente, das religiões do negro, desta ligação entre o paganismo do escravo e a dualidade da estrutura social. As crenças e os ritos religiosos dos negros são considerados como constituindo o lado demoníaco,

a margem

obscura, dêsse dualismo essencial:

O Negro não adora Deus; É Calunga que êle ama. Todo branco quer se tornar rico; Todo mulato é um pretensioso, Todo cigano é um ladrão E todo negro um feiticeiro. O mulato jamais deixa sua faca Nem o branco sua sabedoria, O “cabra” não deixa nunca sua aguardente, Nem o negro seu fetichismo.(30) Quando

negro

velho

morre

Exala um odor tão forte Que Nossa Senhora não

E

o negro

não

entra

no

o

aceita

céu.(81)

O negro tem pé de animal, unhas de caça e calcanhar dedinho é como o pepino de São Paulo,(82)

seu

rachado,

o que é, mais ou menos, a representação tradicional que O cristão da Idade Média fazia do Diabo. O branco podia, é certo, sentir-se misteriosamente atraído por êsse caminho obscuro da mística, da mesma forma que era atraído sexualmente pela mulher de côr; podia, como dissemos, freqiientar os calundus, até mesmo organizar para si cultos africanos (Saint-Hilaire registra um cerimônia de brancos na povoação

que

se fazia

na

casa,

chamada

mandinga,

feitiçaria africana, e que consistia em

católicas homens,

p.

(80) (81) (82) ABS) 59.

e de batuques,

depois

dançados

por homens

uma

isto

é, na

casa

da

mistura de orações

inicialmente

e mulheres

de Lage

apenas

juntos);(*º)

Leonardo MOTTA, Cantadores, p. 90 e segs. Estudos Afro-brasileiros, p. 87. SANTA ANNA NERY, Folclore Brasileiro, p. 40. SAINT-HILAIRE, Voyage auz Sources du hRio

S.

nem

pelos

Francisco,

por

II,

199

isso deixava a África de ser sempre vista através de uma concepção cristã, de um cristianismo mais ou menos matizado de maniqueísmo. Sua participação era como uma descida num

abismo. O branco até o comêço do século XX não se esforçou para compreender as religiões de seus escravos fora de seus

conceitos e de sua cultura própria. Pelo contrário, esta deformação a que submetia os valôres africanos o justificava. Foi preciso que o Brasil abolisse o trabalho servil, proclamasse a igualdade sua pele

de todos

ou

interessasse,

sua

com

os cidadãos,

origem

um

étnica,

mínimo

qualquer

que

fósse a côr de

para que o cientista,

de

etnocentrismo,

enfim,

pela

se

cultura

afro-brasileira. A passagem da valorização negativa à ciência está ligada às condições sociais que aboliram, pelo menos ju-

ridicamente, o dualismo da sociedade, senhores e escravos, negros e brancos. JFoi a consegiiência de uma mudança de estrutura, demandando a integração do homem de côr, como igual, numa comunidade, unificada e harmoniosa. Mas houve, antes, durante todo o período escravista, uma dupla falsificação de valôres. Vimos aquela a que o branco submeteu os valóres africanos. Resta, contudo, ver a adulteração a que os negros submeteram os valôres portuguêses.

A igreja nos negros —

com

suas confrarias e seus jogos

— está superposta sôbre os calundus e os cachimbos. A polícia que revistava as “casas de sorte”, às vêzes detinha dançando ou fazendo sacrifícios, um dos reis ou chefes dessas confrarias católicas.(**) Isto significa que o cristianismo vai ser considerado pelos negros através de suas próprias concepções

do sagrado,

exatamente

como

os senhores julgavam

os cultos

africanos através do dualismo maniqueu de Deus e do Diabo. É inegável (voltamos a alguns dos textos que citamos no capítulo sôbre os dois catolicismos) que êsses senhores queriam fazer da igreja dos negros um instrumento, talvez mais eficaz ainda que os “capitães de mato” ou os “feitôres” das plantações, de contrôle social e mesmo de domínio racial. Ao mesmo tempo que diziam que São Pedro se recusava a abrir as portas

do céu aos negros ou que a Virgem Santa lhes proibia a entrada por causa de seu mau cheiro, queriam desviar o ressentimento do escravo para uma vingança post mortem. O sofri-

mento

passado

na terra, o trabalho

forçado,

os castigos

rece-

e Mucambos,

p. 725.

bidos, tudo isto lhes valeria no além, e o “vale de lágrimas” que (84)

200

G.

FREYRE

nos



um

exemplo

em

Sobrados

para êles havia sido a terra lhes valeria, uma vez mortos, à

glória no céu. Para a classe dos senhores, a religião, sem que ela o confesse a si mesma, foi bem concebida, segundo a expressão de Marx, como um “ópio”, capaz de enfraquecer a resistência terrestre, de mutilar a vontade de revolta dos oprimidos, de dissolver a oposição em meros sonhos messiânicos, Mas — e nossa observação poderia ser, aliás, o ponto de partida também de uma crítica do marxismo — isso era esquecer que o negro ia reconsiderar (reinterpretar, diria Herskovits) o cristianismo através de sua própria religião, utilitária e coletiva. “A religião, ópio do povo” é menos uma definição da

religião em geral que de uma determinada tática, a de utilizar

a religião, que crê na imortalidade da alma, num dado momento da luta de classes. O método pôde ser experimentado no Brasil colonial e imperial. Trouxe frutos mais para os mulatos e mestiços que para os negros puros; entre êstes mais para os que tinham perdido sua civilização nativa, que estavam totalmente alienados, que para os outros. Os anjinhos negros que às vêzes se vêem pintados nas igrejas barrôcas do Nordeste ou de Minas, voando

em meio

às nuvens

no fôrro, pró-

ximos a anjinhos loiros de olhos azuis, é a prova. Isto quer dizer que a definição de Marx não se aplica a não ser em

situações sociais onde

em particular,

outras categorias marxistas

a categoria da alienação.

aparecem,

O negro das irman-

dades, membro de “nações”, dançador de batuques, encarava os santos e a Virgem de sua igreja negra, exatamente como

seus deuses ou seus ancestrais, não como concessores de graças celestiais, mas sim como protetores de sua vida terrestre. Pe-

dia-se-lhes, como a seus Orixás ou a seus Voduns, um bom marido, a volta da amante, a morte de seus inimigos, a libertação de sua sorte desde aqui na Terra. Sem dúvida, o culto

dos santos também tem êsse caráter para o povo; os portuguêses oravam

a Santo Antônio para mandar

João Batista para lhes dar um

São

Gonçalves.

Pediam,

contudo,

chuva, as môças

marido,

também

a São

as velhas solteiras a a seus

santos

abre-

viar-lhes o tempo de Purgatório, fazê-los entrar, por suas intercessões, no céu do Bom Deus e da Virgem Maria. É êste aspecto que escapou aos negros. Sua economia teoantrópica, observa Fernando Ortiz, não é uma economia de crédito a prazos longos, nem de enriquecimento, de capitalização de juros para investi-los no Céu que, no dia da morte,

201

lhes dá juros eternos — mas uma religião de consumo imediato, de ritos de trocas, sem crédito nem juros acumulados. (85)

Os ancestrais protegiam, mediante sacrifícios, suas linhagens: as divindades ioruba ou daomeanas protegiam, igualmente e em contrapartida, dependendo das festas que se lhes

dava, as colheitas dos lavradores, as expedições de caça ou de

guerra, as pescarias no mar ou nos lagos; os santos milagrosos,

da mesma maneira, somente ajudariam os membros de suas irmandades na vida de todos os dias, a única que lhes interessa,

contra pagamentos imediatos ou contra “promessas”, o acendimento de uma vela ou o ex-voto substituindo simplesmente, à moda

Trata-se

dos brancos, sempre

do

o sacrifício de um

mesmo

do

ut des,

galo ou de um

mas

para

receber

de trocas

sem

bode.

ime-

diatamente, e não em uma problemática do além. Se bem que o catolicismo, ligando-se à religião africana, desnaturou-a, é preciso dizer que, pelo menos no início, foi a religião africana que desvirtuou o catolicismo. Aceitando o culto dos santos, mas tirando-lhes parte de seu significado, para déle não considerar senão o que poderia interessar a uma economia

de troca, de dotes e contradotes,

timentos celestes.

Isto fêz com

inves-

que o cristianismo não tenha

sido para os escravos uma compensação à sua sorte, uma subli-

mação de seus sofrimentos, o que não era compreensível senão para a mentalidade dos brancos e possível apenas para a dos negros alienados. A igreja negra não foi suficientemente êste “ópio para o povo”, êste instrumento de contrôle social, de derivação do ressentimento, com o qual os senhores sonharam — e, por conseguinte, traço de união entre as camadas sociais. O dualismo

de civilizações, unindo-se ao -de classes, cada uma

transformando os valôres específicos da outra, reinterpretando em têrmos cristãos as representações coletivas dos africanos e em têrmos africanos as representações coletivas dos portuguêses, acentua o caráter paradoxal, desde suas origens, dêsse “sincretismo católico-fetichista”, como se lhe chamou, que en-

contraremos

como

(85)

202

posteriormente,

e que

consiste,

tanto

de um

lado

de outro, em dar sentidos diferentes às mesmas palavras.

F,

ORTIZ,

op.

cit.,

p.

34.

CAPÍTULO

VII

O Islã Negro no Brasil Deixamos

de lado, em nossa descrição das

sobrevivências

religiosas africanas no Brasil colonial ou imperial, os cultos das

“nações” maometanas. Vimos, contudo, ao enumerar versas etnias que forneceram escravos ao Brasil, que

negro também contribuiu para o povoamento brasileiro. Islã conservou

carinhosamente

documentação

começa

terra.

suas

crenças

místicas

as dio Islã

E êste

na

nova

No fim do Império e no início da República, quando a a ser mais

objetiva

e a descrição

das

religiões negras mais minuciosa, vemos os cronistas distinguirem nitidamente dois grandes cultos que designam como muçulmano

e fetichista.(!)

Entretanto,

o primeiro

está

hoje

quase

inteiramente desaparecido; constitui apenas, segundo a expressão de Arthur Ramos, “uma página de história”.(?) Este é o motivo pelo qual o estudaremos nesta primeira parte de nosso trabalho, que trata da evolução histórica das civilizações

importadas em suas relações com as novas estruturas A religião muçulmana no Brasil era praticada por escravos de côr conhecidos pelo nome de Musulmis ou O têrmo Musulmis é claro. O têrmo Malês suscitou muitas

discussões.(*)

É

(1)

João

Religiões

(2) (3)

A. RAMOS, 4s Culturas Negras, p. 349. Foi Nina RODRIGUES quem teve a idéia,

Brasileiro, chista, p. Refere-se

109-12.

Negras,

Foi

pp.

do

RIO,

As

90-2.

evidente no

que

Rio,

êste

p,

16.

30, de relacionar pela primeira vez o novamente a esta etimologia em Os

seguido

Pp.

por

333-35.

Este

A. RAMOS, último

O

Negro

lembra

que

o

têrmo

Arthur em

sociais. certos Malês. porém

é uma

RAMOS,

cor-

O

Negro

seu

Animismo

Feti-

pp.

77-9,

têrmo malé de malenké. Africanos no Brasil, pp.

Brasileiro, radical

malê

e Culturas

significa

'“hipo-

pótamo” e que se trata, por conseguinte, de um povo primitivamente totêmico. TAUXIER, La Religion Bambara, p. XVII. Ét. BRAZIL dá à palavra malê o significado de “pedagogo”, A seita muçulmana dos Anthropos, IV, 1909, p. 95. Trata-se evidentemente de um porque os muçulmanos do Brasil possufam escolas e uma

Malês do Brasil, sentido derivado cultura erudita.

canos,

ioruba

Os negros Solimas responde a “nação p.

112.

gado, aquêle do AMARAL,

palavras

J.

disseram a Nina RODRIGUES que o têrmo malê corsábia”, ''pessoas que frequentam as escolas”, Os AJrt-

RAIMUNDO

deriva

a

palavra

do

imalé

“o

que adotou O islamismo”, O Negro no Brasil, p. 361. 4s Tribos Negras, p. 671, acha que é uma contração de

portuguêsas,



lei;

os

Malês

seriam

os

que

não

seguem

a

rene-

boa

Braz duas

lei,

208

rupção de Mali, nome de um dos reinos muçulmanos do vale do Niger, habitado pelos Malinkê, no século XIII de nossa era. Ésse povo é também conhecido pelo nome de Mandingues e veremos

que a palavra mandinga

pelos

Se

no Brasil estendeu-se

à magia negra. Contudo, não foi tanto pelos Malês que o maometanismo foi introduzido no Brasil, como principalmente haussas.

tante dos negros

da

gião,

escravidão,

rushis,

como

êstes

constituíram

islamizados,

juntamente

certos

ou

encontravam-se,

com

Nagôs,

Guruncus

o elemento

os

Gruncis,

outras

todavia,

impor-

na terra

tribos da mesma

Bornus

os

mais

ou

Adamanás,

Mandingues,

os

os

Fulahs

reliGu-

ou

Peuhis.(*) Os viajantes ou historiadores antigos falavam também dos Minas como sendo muçulmanos. Porém, essa palavra que não

designa

uma

etnia, mas

sim uma

localidade,

o

grande mercado português de escravos de Mina na costa ocidental africana, compreendia, na realidade, como assinalamos, todos Os que não pertenciam aos grupos bantos, e por conseguinte, havia Minas muçulmanos e não muçulmanos.

Ora, à parte algumas raras exceções, tratava-se de tribos de negros puros ou de negros mestiçados com hamitas; por conseguinte, antigos animistas islamizados e não muçulmanos

de origem. Suas antigas crenças não tinham desaparecido completamente(?) e foi êsse sincretismo muçulmano-fetichista que

foi introduzido no Brasil e não o puro islamismo de Maomé.

Mais ainda que os outros grupos de escravos, resistiram vitoriosamente à cristianização e conservaram com uma espécie de altivez ciosa sua fé orgulhosa e intratável. Todos os viajantes estão de acórdo nesse ponto. Mas talvez o que melhor indicou

esta resistência foi o Conde

estada como e

de Gobineau,

durante

embaixador no Rio de Janeiro:

sua

A. maioria dêsses Minas, senão todos, são cristãos externamente

muçulmanos

de

fato;

porém,

como

esta

religião

não

seria

tole-

rada no Brasil, êles a ocultam e a sua maioria é batizada e trazem nomes tirados do calendário. Entretanto, malgrado esta aparência,

a lel verdadeira de Deus. Trata-se aqui de duas etimologias inexatas que vêm de um sentido derivado adquirido pelo têrmo no Brasil. Os haussas, por causa do sincretismo muçulmano-fetichista dos malenkê e de sua origem

pagá, consideravam malê uma palavra de desdém e a um tal ponto que um viajante francês, Francis de CASTELNAU, escreveu em 1851: “Designa-se sob o nome de Malês (sic) todos os infiéis, isto é, todos aquêles que não

são

maometanos”.

(4)

Negras, Les

(5)

Nina

pp.

335-41.

V. J. de CROZALS,

Bambara,

Paris,

Renseignements

RODRIGUES,

Institut

Múnster,

1910.

Os

VAfrique,

pp.

p.

12.

167-75.

A.

Les Peuhis, Paris, Maisoneuvre,

d'Ethnographie,

H.

LABOURET,

1931,

Noire Ocidentale, Paris, Larousse, VExcision chez les Malenke”, J. S.

204

sur

Africanos,

VII,

510

Les

pp.

E.

Tribus

F.

RAMOS, 1883.

du

Culturas P. HENRY,

Rameau

GAUTIER,

Lobi,

L'Ajrique

1935. G. CHERON, “La Circoncision et des Afr., II, fasc. 2, 1933, pp. 287-303 etc.

pude constatar que, devem guardar bem fielmente e transmitir com grande zêlo as opiniões trazidas da África, pois que estudam o árabe de modo bastante completo para compreender o Alcorão ao

menos

grosseiramente.

Ésse

livro

se vende

no

Rio

nos

livreiros

franceses Fauchon, Dupont, que mandam vir exemplares da Europa ao preço de 15 a 25 cruzeiros, 36 a 40 francos. Os escravos, evidentemente muito pobres, mostram-se dispostos aos maiores sacrifícios para possuir êsse volume. Contraem dívidas para êsse fim e levam, algumas vêzes, um ano para pagar o comerciante. O número de Alcorões vendidos anualmente eleva-se a mais ou menos uma centena de exemplares (...) A existência de uma colônia muçulmana na América, creio, nunca foi observada até aqui, e (...) 0) (O atitude particularmente enérgica dos negros Minas 1869).

É verdade que essas afirmações são contraditadas por outras da mesma época e do mesmo lugar, isto é, do Rio. Dizia-se que existia em 1840 uma mesquita fundada por negros mao-

metanos, na rua Barão de São Félix; investigações empreendidas

a fim de descobrilla não levaram senão ao conhecimento de um negro, João Alabah, que pedia de vez em quando permissões à polícia para realizar festas em sua casa; se bem que considerasse os muçulmanos como “irmãos”, sua religião, contudo, não .ia além do “fetichismo”. O único islamita de quem Alabah pôde dar o enderêço afirmou que não havia mesquita no Rio e que não podia citar mais que seis negros muçulmanos que se dedicavam ao culto em suas próprias residências.

Podemos talvez conciliar essas afirmações contraditórias, formulando a hipótese de que os “Minas” muçulmanos do Rio, se bem qué numerosos, eram mais ou menos fetichistas e que se ocultavam para evitar perseguições, celebrando seus ritos nas suas próprias casas. Os muçulmanos

ritório brasileiro.

Paulo,

onde

estavam

Sabemos,

teria

existido,

dispersos

em

quase

todo

o ter-

em particular, que os houve em São

segundo

o

testemunho

de

escravo, uma mesquita para a celebração de seu culto, (7)

como nos Estados de Alagoas, Pernambuco

o maior número

e Paraíba.(?)

se encontrava na Bahia onde foram

um

assim

Mas

a alma

dessas insurreições de escravos às quais dedicamos um capítulo

p.

(6) (7)

117,

G. READERS, Le Comte de Sud MENUCCI, O Precursor

em

nota.

As

pesquisas

Gobineau au Brésil, pp. 75-6. do Abolicionismo no Brasil, Luts Gama,

que

empreendi

no Rio, que não existiu em São Paulo uma muçulmanos celebravam seus cultos numa casa cisamente

M.

RICARDO

a propósito

dos

textos

mostram,

aqui

ainda,

mesquita e que particular. Como

brasileiros,

“a

como

os negros disse pre-

palavra

macha-

chali não designa mais que simples oratórios” e não mesquitas, “L'Islam Noir au Brésil”, Hesperis, 1.º e 2.º trimestres, 1948, p. 3. (8) Melo MORAES Filho, Festas e Tradições, p. 333. A. RAMOS, O Negro

Brasileiro,

pp.

90-1.

Mendes

de

ALMEIDA,

op.

cit.,

p.

53.

205

e onde, no fim do século XIX, ainda formavam, segundo o testemunho de Nina Rodrigues, um têrço da população africana, conservando um culto perfeitamente organizado: Há uma autoridade central, o Iman ou Almány, e numerosos sacerdotes que dêle dependem. O Iman é chamado entre nós Limano, que é evidentemente uma corrupção ou simples modificação de pronúncia de Álmány ou El Imány. Os sacerdotes, verdadeiros marabus, chamam-se na Bahia alufás. Conheço diversos (º)

(...)O atual Limano é o nagô Luiz, e a sede da igreja maometana, a sua residência no Barris, à rua Alegria n.º 3. O Limano é um homem alto e robusto, mas já bastante curvado pela idade (...) Sua atual mulher é uma negra crioula de mais de 30 anos, que estêve por algum tempo no Rio de Janeiro, onde se converteu ao Islamismo. É uma negra bem disposta, inteligente, sabendo ler e escrever um pouco e muito versada na leitura do Alcorão. Como ela não conhece o árabe e o Limano não sabe ler nem escrever o português, existem na casa um Alcorão em árabe para o Limano, e uma versão

portuguêsa

para

sua

mulher. (10)

O Rio era, depois da Bahia, o segundo grande centro do

maometanismo;

mais ou menos

na mesma

época em que Nina

Rodrigues descreveu seus últimos sobreviventes na Bahia, João do Rio, escrevendo uma reportagem sôbre as religiões da capital, do Brasil, aí distinguia dois tipos de sobrevivências religiosas africanas, o culto dos orixás e dos alufás, quer dizer, o das

seitas ioruba

é verdade,

que

e o das

seitas muçulmanas.(!!)

os muçulmanos

aderem

Acrescenta,

às festas

de

outros

negros, o que prova, aliás, não tanto a formação de uma consciência racial na oposição ao regime de escravidão, mas a extensão do sincretismo religioso e a perpetuação, entre os

negros A

islamizados,

O

autor

cita

do paganismo

7

marabus

na

primitivo.(!?)

Bahia,

entre

os

Encontramos

quais

5

haussas

e

2

nagóôs. 10) Nina RODRIGUES, Os Africanos, pp. 99-101. A essas indicações, pode-se acrescentar a de Manuel Querino que fala da existência na Bahia de um Xerife, espécie de profeta, cargo êsse só desempenhado por pessoa idosa; de um Lemano ou bispo, de um Ladane, o secretário e do alufá, simples sacerdote, Costumes Africanos, p, 113, e a do Padre Ét. BRAZIL que cita

o

lemano

(o

qual,

quando

celebrava

o

culto

tomava

o

nome

de

soga-

bamu), o ladano, ao mesmo tempo secretário, muezin e diácono, o achuaju, mestre de cerimônia, o alikaeya ou juiz. Mas tem a pretensão de exagerar a unidade e a sistematização desta Igreja muçulmana quando afirma que há um lemano supremo na Bahia (chamado depois de sua morte de iman untversal), que dirigia os fléis da Bahia, Rio, Ceará e Pernambuco e determinava a data das festas, La Secte Musulmane, p. 103. (11) João do RIO, 4s Religiões no Rio, p. 16. (12) João da RIO, “O Natal dos Africanos”, Kosmos, dez., 1904. Ponto de

vista

oposto

em

Nina

RODRIGUES,

Africanos,

p.

108:

“Afirma-me

o iman

(...): que também no Rio de Janeiro existe uma igreja musulmt regularmente organizada e sôbre a qual não pesa, como sôbre a da Bahia, a interdição das festas solenes que lá são executadas com grandes pompas. Mas, tanto quanto pude inferir destas informações, trata-se antes de uma igreja de muçulmanos árabes em que os negros malês são admitidos”.

206

a prova

dêsse

sincretismo

no culto

pernambucano.

O

alufá,

isto é, o sacerdote muçulmano, decifrava o futuro fazendo unções de óleo de palma e de sangue sôbre três pedras roxas,

das quais uma era chamada de Santa Bárbara e as outras duas eram pedras de raio.(!º) Ora, Santa Bárbara é a equivalente católica de Xangô,

o deus

a religião

ioruba.

O

vermelho

e envolto

mente a pedra de raio.

do trovão,

cujo

símbolo

é precisa-

A religião islâmica confundia-se

mesmo

acontecia

de colares

de ofás

em

Alagoas,

com

onde

a

seita “Malê” de Tia Marcelina ainda existia em 1912. Dizia-se que as fiéis recém-iniciadas deviam se prostituir ao deus da seita, Ali-Babá, “deus em forma de criança coberto de pano e de oôs”.

Um

alufá

ioruba,

como

aí dirigia a casa de Orixá-alum, cujos muros estavam pintados com arabescos e onde cantavam-se determinados cânticos religiosos que testemunham uma influência muçulmana mais ou menos remota: Edurê, edurê, alilala...

mas

cujas cerimônias

Oxalá,

Ogum,

Xangô,

micos desagregaram-se

dirigiam-se etc.(!!)

às divindades

Dessa

maneira,

os cultos islâ-

em tôda parte, fundiram-se com os de

outras “nações”, adotando as suas divindades e o seu cerimonial, esquecendo Alá e seu profeta Maomé. Ora, se a fé islámica era tão orgulhosa, tão resistente aos esforços de cristiani-

zação, donde vem êsse paradoxo do seu desaparecimento tão brusco ou de sua profunda transformação? Há, para isto, várias razões. De início, o número de haussas era consideravelmente reduzido após a revolução de 1813 em que os mais

turbulentos ou foram massacrados, ou deportados para a Africa.(1!)

Aquêles

que

ficaram

conseguiam

poucos

prosélitos,

principalmente por causa do seu desprêzo racial ou religioso que os fazia viver isolados dos outros africanos, pouco convi-

vendo

com

seus

companheiros

de infortúnio, (!8)

indo

dormir

e do maometanismo

a reli-

cedo enquanto os outros preferiam viver a noite para aí celebrarem suas festas pagãs. (!") No início, a escravidão, fazendo do catolicismo a religião dos senhores

gião dos líderes da revolta, podia favorecer a propagação da seita principalmente entre os africanos que conservavam suas línguas originárias. Porém, a supressão do trabalho servil, a (13) Mendes de ALMEIDA, op. cit. p. 53, e o artigo anônimo “Reminiscências dos Cultos Africanos”, R.1I.H.G.4, de Pernambuco, XXX, 1930, pp. 49-50.

(14)

A. RAMOS,

(16) (17)

Id. ibid. p. 345. Manuel QUERINO,

(15)

A.

RAMOS,

O

Negro

Culturas

Brasileiro,

op.

Negras,

cit., pp.

p.

pp.

337.

90-2.

111-12.

207

igualdade teórica de todos os brasileiros perante a lei, faziam desaparecer um dos mais importantes motivos da conversão. O limano Luiz queixava-se a Nina Rodrigues ao ver os próprios

filhos dos Malês preferirem as seitas fetichistas ou a conversão católica a perserverarem na fé de seus maiores.(!'8) É dessa

maneira que, do mesmo modo que uma espécie animal desaparece por extinção de seus indivíduos, o maometanismo desapareceu

no Brasil em virtude da morte de seus antigos fiéis, tendo perdi-

do tôda possibilidade de rejuvenescimento Mas

antes dêsse culto

desaparecer,

ou de propagação.

quando

principiava

a

entrar em agonia, pôde ainda assim ser observado e estudado por um Melo Moraes, um Manuel Querino, um Étienne Brazil, um Nina Rodrigues ou um João do Rio. É por meio de suas descrições que tentamos reconstituir a vida da antiga comunidade islâmica negra do Brasil.

Era essencialmente uma comunidade puritana.

moral externa, sideravelmente

Não só pela

pela sobriedade, a temperança que freava cona exuberância, a gritaria, o gósto pela bebida,

os cantos e gritos dos outros africanos e que se notava até na aparência

externa,

a calma

gestos e o uso de barba

nas

conversas,

a moderação

“à la Cavaignac”,

como

dos

símbolo de

diferenciação étnica e religiosa, (19) mas também porque a fé marcava tôda a vida dos muçulmanos, os diversos momentos de sua existência, desde o nascimento até a morte, e as diversas etapas

do

Parece

nascia.(2!)

instruído. ção.(23)

preciso

dia,

desde

o alvorecer

que o pequeno

Aos

ao

pôr

do

muçulmano

sol.(2º)

era batizado

10 anos sofria a circuncisão.(?2)

quando

Depois, era

Os maometanos davam grande importância à educa-

(Como

saber

a leitura

ler

e

do

escrever

Alcorão

os

era

necessária

caracteres

árabes.

à fé,

Daí,

era

a

fundação de escolas junto aos seus santuários, na casa de africanos livres. Nas buscas judiciárias que se seguiram às revolPP.

( 18, Nina RODRIGUES,