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Michel Onfray
. A RAZAO GULOSA Filosofia do gosto
A obra de Michel Onfray pretende elaborar uma filosofia hedonista para o nosso tempo. A razão gulosa não foge a essa linha. Neste livro, Onfray compara a leveza do champanhe ao borbulhar do desejo e - citando Kierkegaard - diz que a vida hedonista é "crepitante"como o champanhe. Res suscita a figura genial de Grimod de la Reyniere, dândi gastronômico da época da Revolução Fran cesa. E no quarto capítulo, ápice do livro a meu ver, procura resgatar a grandeza filosófica de Brillat-Savarin, autor da célebre Fisiologia do gos to. Representante da corrente pouco estudada dos idéologues (à qual pertence também Cabanis e Volney), Savarin explica o sensua[ismo de Condillac à arte da mesa e se torna a referência maior para um saber "gourmand". Segundo o autor, A razão gulosa se coloca sob os auspícios de uma figura nova: o anjo hedonista, aquele que vela quando um prazer é degustado em sua dimensão de ampliador da existência. Sente-se, ao fim da leitura, que este é um ensaísta original, que se preocupa com :a elabora ção de um hedonismo filosófico, não vulgar, pois "gozo sem consciência é apenas ruína da alma". JOSÉ THOMAZ BRUM
, lllUl l l �l�J ISBN 85-325-0905-3
Tírulo origrnal LA RAISON GOURMANDE Philosophie du goü1 e Édil,ons Grassei & Fasqucllc. 1995 Dire,10s para a lingua ponuçuesa reservados com cxclus,vidadc para o Brasil a EDITORA ROCCO lTOA. Rua Rodrigo Silva, 26 - ;• andar 20011-040 - Rio de Janeiro - RJ Tcl.: 507-2000 - Fax: 507-2244 l'rmtcd i11 /Jrazi//lmpresso no Brasil
preparação de originais CARLOS NOUGUÉ
CIP-Brasil Caralogação-na-fonre Sindicaro Nacional dos Edi101es de Livros. RJ 06 7r
Onfrai. Michel A r-Jk-lo gulosa filosofia do gosro I M1chel Onfray: 1rad11çào de Ana Maria Schere,. Rio de Janeiro · Rocco, 1999 Tradução de: La rnison gounnande plnlosophie du goüt Inclui b1bliogrnfia ISBN 85-325-0905-3 1 Gas11011omia - Filosofia
98-0997
firulo CDD 641.013 CDU - 641.000.141
Conheceríamos os efeitos morais dos alimentos? Existiria uma filosofia da nutrição? Nietzsche. A gaia ciência. Livro 1. 7
SUMÁRIO
Prólogo: Autobiografia alimentar, continuação e ainda ......
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Capítulo I: Pequena teoria das bolhas..................................
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Capítulo li: Polidez gulosa e cena gastronômica.................
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Capítulo Ili: Vias de acesso aos testículos...........................
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Do padre e do sc:u comra-cmprcgo. O século do champanhe. Dom Pérignon e Newton. O champanhe, prova do mundo. Conter energias. O estilo do champanhe. Teoria da bolha. /lomo hufla. A pedra de Spino1.a e a mônade de Leibniz. Inventário de bolhas. Ponta de civili Lação: operações vitícolas e percurso barroco. O estilo. ainda. Leveza e musicalidade. Dança e fantasia. Correspondência e alegoria mozartiana. O ar do champanhe e a tragédia.
Os colos de Grimod. A intersubjetividade pela mesa. Prótese. artifício e dandismo. As extravagâncias capilares e indumentárias. uma visão de mundo. Teatro e gastronomia. Um corpo em siwação de jogo. A polidcz gulosa. uma política. As atrizes, o espectador e a critica teatral. Nascimento da escrita gastronômica. Tcatrali7açào e cena gastronômica: a ilustre e voraz sociedade. Os almoços scminutritivos. Os almoços das terças-l'ciras. Legitimação e taxinomia. O jantar escandaloso. O jantar de enterro. A sociedade molecular eletiva. Ser autor de sua própria existência. Uma política hedonista. Reacionários e progressistas. As revoluções tecnológicas. Do serviço à russa. Nascimento da gastro nomia. O contrato gastronômico. O anfitrião. cidadão desse contrato. Suas qualidades. sua ciência. suas virtudes. seus deveres, seus direitos. Relações com o maitre d 'hôtel A civilidade pela ordem manducatória.
O gesto de Noé. O dilúvio. a videira e a festa. A embriaguez do patriarca. Os testículos .::-.postos. O vinho.: o excesso de água Pcque�eoria da embriague;:. Da ebriedade. Os limites da razão. Da gr1sene O .:n-
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SUMÁRIO
A RAZÃO GULOSA
nomia. A quantidade. Metafisica do buraco a preencher. Os discípulos de Carême. Curnonsky. príncipe das aparências. As operações de dis farces. A matéria transfigurada O comedor burguês. Nascimento do oosto moderno A Nova Cozinha. Do estilo minimalista e conceituai. O assassrnato do pai Escofficr. Teonas mmímalistas. estetização e hedonismo.
tusiasmo e os sentidos penurbados. As pequenas percepçõcs segundo Leibnit.. Entendimento e sinestesias. Solicitar as partes malditas. Dese jo de ilinx e sentimento trágico. A associai idade da ebriedade. Flacidez do homo erect11s. Sensualismo olfativo e gustativo. O atentado contra os sentidos nobres. Transmutação dos valores. Os impedidores de ebriedade. O útero cm fúria. Lição trágica e trabalho do negativo.
Capítulo IV: O útero, a trufa e o filósofo.............................
Uma história de trufa. A alimentação. o corpo e o espírito. Natureza filosófica da Fisiologia do gosto. A obra de um ideólogo. O materialismo sensual isla. A gastronomia transcendente como ciência experimental. Significado da fisiologia. Pai:i!.uma tilosofia do corpo: sensualismo. �rialismo. hedonismo. Genealogia da gastronomia. Por que trans cendente? Do vitalismo. O sentido genésico. A morte. a entropia, o . deseJo. Cosmologia e forças vitais. O materialismo mecanicista. O monismo. A metáfora termodinâmica. �saçi\o. consciência e prazer. O hedonismo e o trágico. Gastérca. uma décima Musa. O fourierismo de Brillat. Por um paganismo voluptuoso. O aníficio para o hedonismo. Proveias gastronômicas e afinidades eletivas. Fisiognomonía e frenologia. O método experimental. Nascimento do corpo moderno.
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Capítulo V: Breve mitologia das religiões excitantes.......... 105 Força dionisíaca das plantas. A bebida da imortalidade. Chen Nung e a genealogia mítica chinesa. Colheitas sagradas. Dharma e o mito na Índia. Taoísmo. budismo e cerimônia do chá. A purificação e o mínimo. A intersubjetividade pelo chá. Volúpia contemplativa. Virtudes do teísmo: harmonia respeito. puret.a. serenidade. Okakura Kabuzo e 0 teísmo. Elogio aristocrático do requinte. Qrtgcm do café e islã. O ímã de C'hehodct. Os efeitos do cale. As emoções superlativas. Hypnos e Tana1os. Contra os tormentos soporosos. O chocolate barroco e pagão. Quetzalcôatl. a serpente emplumada. Rituais sagrados de cultura e de colheita. Forças seminais e genitais. Bebidas rituais e simbolismo. Energia. força. erotismo. O dest:io de ser mais. Dionísio menos o álcool.
Capítulo VI: O império dos signos culinários...................... 122 Os cozinheiros-artistas. Cozinha e estética clássica. Arte do efêmero e do evanescente. do tempo e do karros. Artes sem museu, sem escola. Do jul�mento do gosto gastronômico. O estilo do cozinheiro. Antonin C'ar�me e o monumental. História pessoal e destino. Psicanálise exis tencial e oralidade. A referência arquitetural. Os projetos realizados. Submissão aos fetiches capitalistas: comércio. prosperidade. indústria. Invenção da cozinha burguesa. O confeiteiro arquiteto. A revolução culinária burguesa: prioridade para o olho. contra o nariz medieval Especiarias. associações. consistências. A forma do serviço. A taxi-
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Capítulo VII: Celebração da parte dos anjos ··················:···· 147 Os fogos da planta. Metafisica vitalista vegetal. Da filognomoma. O princípio da aguardente: a água e o fogo. Destilação e captação de energias, de forças. Genealogia do álcool. São Patrick e o alambique oci dental. Contra a sobriedade. Do cornarismo. As combustões espontâ neas. Médicos e teólogos associados. Fenomenologia da parte dos anjos. Dialética dos quatro elementos. Os suaves odores e a angelolog_i a. A ascensão dos aromas. Parte dos anjos e decadências angélicas. Al cool, de�e.iQ..e liberdade_. Genealogia da vontade I ivre e el?!jedade. Prin cípio do prazer e anjo hedonista.
Capítulo VIII: Estética do efêmero ...................................... 165 Urinol e porta-garrafas. A revolução Duchamp. Os artistas-cozinheiros. O corpo pós-cristão. Estetizar a e,-istência. A arte culinária. uma arte contemporânea do efêmero. Os imateriais precários. Formas. tex turas. cores. Os estados da matéria. Arte conceituai. A prática futurista. Comer obras de arte. Simbolismo alimentar e a transmutação dos valores. Os banquetes e a obra de arte lotai. Desejo de um homem múltiplo. Reconciliar a arte e a vida. Elogio dos cinco sentidos. Fórmulas culinárias e manifestos gastronômicos. O fantasma substancialista. A alimen tação filosófica. Bergson e a energia vital. Por uma matéria poderosa. Tecnologia e estetização culinária Daniel Spocrri e os Novos Realistas. Quadros-armadilha maténas sublimadas. Os restos e o sistema dos objetos. O indivíduo criador de objeto e não o inverso. O ready-made alimentar. Agir sobre as durações. As percepções perturbadas. Demiurgia. nominalismo e sensualismo. A corrente Eat-Art. Digerir a arte do século. O banquete dos homônimos. O almoço sob a relva. Efêmero. entropia e morte. Pcter Kubelka. worJ.. in progress. Ódio à reproduti bilidade. Por um individuo singular. escultor de si próprio. Elogio dos sentidos do gosto. Cozinha e cosmo. O homem reconciliado. A arte heraclitiana.
Epílogo: Por uma filosofia estendida ao corpo .................... 191 Bibliografia alimentar .......................................................... 197 Agradecimentos.................................................................... 203
PRÓLOGO
AUTOBIOGRAFIA ALIMENTAR, CONTINUAÇÃO E AINDA
Recordo-me de um domingo frio e chuvoso, talvez no outono ou durante os rigores do início do inverno com um nunca mais acabar de umidade e garoa. Meu pai trabalhava num lote de terra cedido por seu patrão para que ele o usasse como horta. A anterior fora tragada por algum remembramento proporcional à superfície alocada: tudo desaparecera, arrancado, saqueado, devastado. enterrado na mixórdia de uma terra inculta. Raízes e folhas cozidas, folhagens secas e ramagens queimadas pela podridão outonal, tudo retornava à terra, que digeria os restos das frutas e dos legumes. Escancaramentos de húmus, buracos de gleba, vegetais escorados. o lote me parecia revirado como para um imenso cemitério. E a chuva, ainda e sempre a chuva nor manda, que penetra até a medula. O dia inteiro meu pai trabalhou sob o chuvisco denso, à força de teimosia. Suas roupas de moleskine azu I estavam encharcadas e pesadas. Um cheiro um pouco enjoativo evaporava-se das saliências da jaqueta, dos ombros e das costas. Ao meio-dia ele voltou para almoçar, silencioso como de costume, entregando se ao mais desesperador dos mutismos aos meus ollw, de menino tagarela e atento aos menores sinais. Após um café fumegante, ele retomou o caminho do campo escavado para nele ainda revolver a terra durante a tarde inteira. Entre as grades que cercavam o espaço dos futuros jardins operários, ele trabalhou por várias horas. Escondi-me atrás de velhas casas de madeira que bordejavam o terreno para olhá-lo, curvado sobre sua enxada. revolvendo regularmente. com força e constância, um
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A RAZÃO GULOSA
húmus cuja consistência eu já sabia, apesar de ser criança, ser a daquele em que seu corpo, um dia. repousaria. Teria ele sabido que,atocaiado no canto dos abarracamentos da reconstrução, seu filho sofria de vê-lo molhado, encharcado, de observá-lo inclinado sobre suas ferramentas, celebrando a terra a seu modo, solitário, laborioso e corajoso? Por mais de uma vez, nos anos seguintes, adolescente, já mesmo rapaz, fui surpreendê-lo, sem nunca incomodá-lo, nos campos onde ele trabalhava a terra para o seu patrão, semeando, colhendo, arando, sempre submetido a tarefas que nada têm de nobre e que sempre se repetem, de uma estação à outra. Faina de morte sacrifício às forças da entropia, proximidade de cada dia com; matéria do seu enterro, que eu queria o mais tarde possível. Seu trabalho fez surgir uma forma do caos: da terra pulve . nzada, po� ou �ros revolvida grosseiramente pela relha espessa, ele fez um Jardim. E,dentre todos os da vizinhança,sempre achei que ele fezº mais belo: traçado a cordel, regular, reto, limpo, . claro. Ele esticava sobre todos os seus canteiros um barbante ao longo do qual fazia correr a palma da mão para desenhar um traço� depois pl�ntava d e maneira regular as sementes que _ germmanam mais tarde, mscrevendo sua horta no registro das obr�s bem-feitas, como um céu estrelado ou uma paisagem marmha. Na noite desse dia sombrio de chuva e de nuvens baixas ele mostrou à minha mãe uma pequena moeda amarela que en�on trara revolvendo os sulcos. Entre seus grossos dedos sujos de terra,ele segurava essa moeda,também ela misturada à terra,já como sua alma, como seu corpo. Passada n 'água, revelou o seu segredo - ela não era um vulgar tostão, e sim um luís de ouro. Meu pai sorriu,era a única concessão que ele fazia aos sinais na época. Em seguida nos contou, a mim e ao meu irmão, �ue quando criança, na escola comunal, ele aprendera com seu professor, por quem tinha a mais alta estima, uma fábula de La Fontaine que dizia algo parecido, O lavrador e seus filhos. Pensou um pouco, recordou-se e recitou os versos, sem se enganar, como às vezes, na noite do quarto glacial onde nós quatro dormíamos,ele recitava Hugo e o início de um poema das
PRÓLOGO
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Contemplações. Eu não me cansava de ouvi-lo. Ainda hoje creio que o ouviria com emoção. O jardim,portanto. Dele surgiu mais tarde do que sobreviver no dia-a-dia, em que o salário do meu pai era urna miséria. Batatas de cascas ásperas, cenouras de gosto açucarado,saladas de cores vivas que choravam leite nas raízes,vagens de arabescos barrocos, pepinos eriçados de espinhos como um monstro pré histórico de carantonha patibular, aipos por extrair de sua ganga terrosa pelos aromas poderosos, repolhos verdes de zebruras labirínticas, meus primeiros objetos fractais, alhos-poró de fortes perfumes, radículas frisadas como marotas intimidades, cebolinhas gráceis e indolentes na brisa, salsa espumante em seus verdes profundos, tomilho fresco de fragrâncias oleosas e provençais, cebolas frescas que seriam penduradas na garagem e secadas como o alho trançado e pendurado nas vigas, azedinha roída pelas lesmas e pelos caracóis, destinadas a irritar os dentes e acidificar a boca, tomates bochechudos e bundudos, encarna dos e de sabor de fruta. Flores também, dentro de um pequeno quadrado que não transbordava demasiado sobre a parte ai imen tar do jardim, para minha mãe: cravos de poeta, que ainda têm o poder de me comover, ou dálias-pompom. E morangos. Meu pai era o silênc� e .li terr� minha mãe, o vert,o e a cozinha. Ela descascava, lavava, enxaguava, limpava, mexia, escolhia. Assava, grelhava, cozinhava. Com o pequeno orça mento de que dispunha, preparava com freqüência omeletes; às vezes,no início do mês, carne e peixe: assados que estalavam no forno; aos domingos, frangos de peles crocantes, fatias de vitela com toicinho e queijo, cozidos,bacalhau com creme, 1 íngua com molho picante, presunto ao molho madeira, diplomatas de frutas,charlotes de chocolate. E sopa, quantidades astronômicas de sopa para meu pai, que as tomava no café da manhã, bem cedo, antes de partir para o trabalho. Alho-porá com batata, sopas de cebola, cremes de tomate, caldos diversos. Às vezes pão, outras fidelinho, sagu também. Lembro-me do vapor sobre as vidraças da cozinha, do frio lá fora,da neve e dos aromas da refeição em preparo. Do purê no qual eu fazia um pequeno poço para que nele minha mãe
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A RAZÃO GULOSA
PRÓLOGO
derramasse uma ou duas colheradas de molho e para que meu pai o salpicasse com um pouco de cebola crua, que ele picava em seu próprio prato. A carne era vermelha, o alho do cozimento perfumava a casa, o fogo do fogão era um braseiro na pequena peça - lá fora era o inverno; dentro, algo que se assemelhava, talvez, à felicidade. Porém tudo isso desapareceu numa manhã de setembm, quando fiz dez anos e sinistros apocalipses de família me ins talaram - por sete anos - numa pensão, �nde, nos primeiros meses, creio ter jogado fora o essencial do que, mais tarde, pode fazer a felicidade de um homem. A hora do meu pai desapareceu, antiga lembrança; a cozinha de minha mãe também. Durante longos anos precisei contentar-me com caldos medíocres, pre parações duvidosas, molhos que coagulavam no prato, alimen tos repugnantes. Mas isso é outra história.
rápido possível. Denis Mollat convidou-me para jantar. Aceitei. E nos encontramos em volta de música e literatura, de vinhos e de viagens. Ele prometia ser o melhor dos anfitriões no sentido que lhe dá Grimod de La Reyniere. A conversa girou em torno do Yquem, que na época eu ainda não provara: eu estava na pele de um adolescente que cobiça o primeiro beijo e o primeiro abraço da primeira mulher de sua vida. Um rapagão desajeitado que deseja os favores da mais bela dama, que fala disso com muito mais ciência e ardor por serei: n grandes sua incompetência e timidez. Procurei saber de Denis
Vinte anos mais tarde, perto do cais de Chartrons, estava uma noite em Bordeaux, uma cidade à qual devo dores infindas, experiências que calamos, mágoas que marcam para sempre, histórias inglórias. Uma noite de insônia me conduzira ao balcão de onde eu via a praça de Quiconces, o rio, as luzes amarelas e trêmulas da cidade. fustigado pelo vento glacial, nu na soleira da porta-janela, foi nessas horas abissais que mais avaliei minha existência e medi sua vacuidade. Náusea, repugnância, imensa melancolia. Bordeaux me conduzira à beira de abismos; eu me prometera nunca mais ali pôr os pés, mas conferências relativas à publicação de A escultura de si me fizeram atravessar a Garonne ainda uma vez. Revi o rio sujo e forte, o barulho do trem sobre a ponte da ferrovia, a chegada à estação. Desembarquei num Tártaro já conhecido. A noitada seria na livraria Mollat, da qual já conhecia a riqueza e as prateleiras por ter nelas fuçado com alegria. Lambris dourados, lustres, tetos altos, volumes imensos, a sala onde aconteceu o encontro com o público era um pouco mágica por sua intempestividade. Lá fora passavam os carros e alguns dos fantasmas que eu iria ter de encontrar. Desejava partir o mais
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Mollat, como de um irmão mais velho, sobre as emoções e
sensações, os prazeres e as alegrias. Ele me falou do conde de Lur Saluces, do castelo, da adega, dos vários milésimos que ele conhecia; indagou-me o que eu pensava das páginas de Michel Serres sobre esse assunto, confiou-me suas impressões. Depois, no decorrer da conversa, falamos das correspondências entre música barroca e vinhos de Saint-Emilion, estilo romanesco e arquitetura russa. Fieuzal L 988 e salada de lagosta, coquilles Saint-Jacques com salsinha e Château Canon 1985. O casamen to do vinho tinto e dos frutos do mar nos levou às associações, às aproximações, às afinidades eletivas aplicadas ao ramo dos vinhos. Nossos olhos faiscavam. Bordeaux me domava. Afinidades eletivas, portanto - quando apareceu o sorvete de mel com chocolate, Denis Mollat perguntou-me o que eu desejava: que garrafa? Sou tão louco por chocolate quanto por vinhos e não aspiro a estragar nem um nem outro com um champanhe ou um Porto. Pedi água. Por sua vez, Denis Mollat convidou-me a confiar nele, a segui-lo em seu desejo de afinida de singular e indicou ao garçom, sobre o cardápio, uma garrafa, preocupando-se com sua temperatura e com a possibilidade de ser bebida nesse momento. Alguns instantes depois, no outro lado da sala, nas mãos da mulher do patrão, tetanizado, reconhe ci o rótulo da garrafa que traziam. Tive ímpetos de fugir, de abandonar a mesa, de falar, de protestar, de recusar. Era o Yquem, claro, de 1979. Seria o momento? Seria oportuno? Sentia-me no estado de inquietação de alguém que se preparou longamente para uma
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PRÓLOGO
A RAZÃO GULOSA
ocasião que, subitamente, parece prematura. Falando do Yquem, não teria eu solicitado despesas suntuosas e uma magnificência fora de propósito? De que modo recuar, esquivar-me, voltar atrás no tempo para não ter de sentir esse estado desestabiI izador? Eu imaginara mil ocasiões para esse dia único, todas diferentes umas das outras, todas associadas a fatos singulares, sonhados' construídos como catedrais. Pensara festejar o acontecimento nas devidas proporções. E era o próprio acontecimento que se tornava uma festa. A garrafa foi aberta, colocada diante de nós. Seguiram-se longos minutos de um silêncio que somente os fiéis de um culto são capazes de fazer. Denis Mollat me iniciava, e eu lhe seria devedor dessa unção por toda a minha existência. O mistagogo que eu pensava ser um dia, iniciador e ao mesmo tempo iniciado, encon trava ali um mestre, como Lucien Jerphagnon o foi para mim no terreno da sabedoria. Era realmente necessário esse silêncio e a densidade de uma duração consagrada à meditação para acolher o acontecimento: ouço ainda o imenso alarido que ele fez, e seus ecos, até hoje. Tudo ficara em suspenso, parado. Os ruídos do restaurante agitavam-se em minha cabeça, eu não ousava cruzar o olhar do meu comensal. A emoção invadira meu ventre e meus músculos minha carne e minha pele. Tudo estava tenso, como instalad� nessas zonas brancas em que não sabemos se o que sairá de nossa boca será um grito ou um soluço, ou uma palavra gaguejada. O olhar que troquei, enfim, com Denis Mollat instalou-se numa cumplicidade que eu sei infalível. É claro, a experiência ultrapassa tanto as palavras quanto a escrita. Ela se instala além do verbo, pois a emoção, qualquer que + sela, está sempre além do que procura circunscrevê-la. Pois, afinal, o Yquem é como a primeira força que emergiu do caos, o primeiro som, a primeira música depois do estrondo dos ruídos consubstanciais à formação do planeta. E descobrimos seu corpo como um voyeur, decidido a observar as nuanças com a paixão de um astrônomo desvendando o céu. As cores irisadas dançam ainda na minha alma: amarelo-palha, ouro e âmbar, abricó, mel e marrom, caramelo e ouro dourado, fogos acobreados, doçuras
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fulvas, vibrações outonais castanhas e folha morta. Sob o refle xo, eu via os tremores pastosos e, no entanto, fluidos do néctar, seus movimentos pesados apesar de gráceis, as lágrimas rolando sobre o reverso de cristal. O mundo me aparecia em anamorfose por trás dessa lente misteriosa, imagens deformadas, saídas de Holbein e estruturadas pelo ouro do vinho. O tempo corria, longo e denso, raro e forte. Bebemos... Outros Yquem se seguiram, nenhum que fosse, porém, igualmente inaugural. E mais tarde outros grandes vinhos e grandes refeições, belas recordações e emoções plenas, iguarias ricas e garrafas raras, preciosas, gestos elegantes e magníficos. Para ir e vir nessa memória de gostos e sabores, eu precjsava contar com a improvisação, a flanância intempestiva. E um dia me foi feita a pergunta que me permitiu uma sapiência verdadei ra: qual é a sua melhor lembrança gastronômica? Interrogação eletiva e seletiva, pergunta arquitetônica, se é que isso existe. O que e_scolher? E dentre que relevâncias? Casuística singular e preciosa. Eu deveria encontrar aquilo que, em minha alma, deixara o mais íntimo vestígio. Yquem, ainda? Romanée-Conti, Pétrus ou Cheval-Blanc? Ausone, Latour ou Lafite? Roellinger, Senderens ou Robuchon? Moluscos do Cotentin, cotovias do Morvan ou crustáceos lisboetas? A idéia me veio como um raio, fulgurante, do lugar onde ela esta�nos limbos, na memória da criança g_ue fui. Minha �lhor lembranç-ª._gastronômica era um morango no jardim do meu pai. O dia fora quente, num verão. Os morangos estavam saturados desse calor que queima os frutos até o centro, onde são mornos. As folhas não bastam para fazer uma sombra que os proteja suficientemente. Arranquei um deles. Meu pai convi dou-me a passá-lo n'água, segundo sua expressão, para limpá-lo e refrescá-lo. O filete que descia da torneira estava gelado vinha das fontes que dormiam sob os jardins. Quando pus o morango na boca, ele estava fresco na superfície e quente na alma, pele doce quase fria, polpa temperada. Esmagado sob meu palato, ele se fez líquido que inundou minha língua, minhas
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faces, e depois desceu para o fundo da minha garganta. Fechei os olhos. Meu pai estava ali, ao meu lado, trabalhando a terra, curvado sobre os canteiros da horta. Pelo espaç9 de um momento - uma eternidade -, eu fui esse morango, um puro e simQ)es sabor espalhado no universo e contido na minha carne de crian-= _ça. A felicidade me roçara com sua asa antes de ir embora. Desde então espero a volta desse anjo hedonista cujo sopro e rêmiges tanto amei. Sem dúvida eu o busco com fervor, e ele se esquiva, aparecendo quando menos espero, surgindo quando já não o espero. Minha Razão gulosa é um monumento funerário a ele.
CAPÍTULO I
PEQUENA TEORIA DAS BOLHAS Monumento funerário a Dom Pérignon A Claudine Lemaire
Normalmente os padres não têm minha simpatia, ou é preciso que se ilustrem de maneira indubitável num contra-emprego. Por exemplo, que sejam encontrados nas analogias do ateísmo, como o abade Meslier, ou que contribuam para as prosperidades do vício, como o abade Chabert em Sade. A menos que eles se ilustrem na Sereníssima como compositores de talento e músi cos eméritos, como Vivaldi, o padre ruivo. Nesse caso, tomo-me devoto. Do mesmo modo. rezo alguns terços. às vezes, para os beneditinos que trabalharam para a salvação de nossos corpos, abrindo-me, entre prima e completas, a álcoois que desbancam o vinho da missa. Entre aqueles. os enclausurados de Fécamp, em razão da Beneditina; o padre Jérôme Maubec. em razão do triunfo na Chartreuse; o cônego Kir, pelas razões que conhece mos. E, primeiro no clericato, dom Pérignon, porque ele é, corno quiserem, o hipotético ou o mítico inventor do champanhe. Com ele , como rodeado de coroinhas, dom Ruinart e dom Oudard. Que Deus os tenha: quanto a mim, proponho um monumento funerário à moda antiga. O século de Luís XIV foi o do champanhe. ainda mais porque o monarca e o beneditino eram exatamente contemporâ-
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PEQU EN/\ TEORIA 0/\S BOLHAS
neos: 1638 no berço, 1715 no túmulo. O tonsurado oficiava ao ritmo das gigas, correntes e sarabandas de Lully e em prolegômenos ao Watteau de L 'embarquement pour Cythere, tela emblemática do hedonismo do século, antes que a gui I hotina o pegasse. Seria interessante procurar saber de quem e de qu� dom Pérignon foi contemporâneo, pois no cham_panhe que inventou há, em matéria de vasos comunican�sl �m pouco da alegria, do júbi�. dq contentamento e do ar leve que eQcontra mos nas melhores músicas e pinturas da época. O espírito, o gênio do momento era também o estilo, o que passava pelas artes e pelas obras; ao mesmo tempo expressava suas raízes comuns. Na taça da nova bebida, encontrava-se o prazer que preenchia o século antes da contrição feita história em Saint-Just e compa nhia. Mas a época ainda não chegara aí; ela ainda se alimentava dos faustos do que desde então se chamou o Grande Século. Dom Pérignon também foi contemporâneo de Newton: enquanto um se preocupava com maçãs, o outro cuidava da uva. O primeiro fabricava beberagens com bolhas que sobem,* 1 o segundo deduzia fórmulas a partir de frutas que caíam. A gravitação universal era a grande preocupação do momento: o cientista elaborou uma teoria que permitiu uma revolução,já que sua filosofia crepuscular afirmava, por um lado, a identidade da matéria e da luz e, por outro, a composição do universo em partículas duras, indivisíveis, submetidas em permanência a um sistema de forças de atração e rejeição. Newton tornou possível a existência de espaços celestes cheios de um éter extremamente fino e de estrutura granular. Depois, interrogou-se sobre a origem dos cometas, o movimento dos astros, as forças atrativas, o estatismo das estrelas no cosmo, todas indagações poéticas que induzem uma metafísica. E, para dizê-lo de maneira irônica, creio que a prova do mundo seja o champanhe cujas bolhas são os cometas que atravessam o espaço, estrelas que tlambam no cosmo, forças que estriam de maneira luminosa os céus contidos nas taças de vidro. As cosmografias míticas não recusaram essas
hipóteses das correspondências que ao mesmo tempo expressa vam a época e a perenidade das estruturas mentais. Tornando possível um álcool cujos componen �es gasosos e�am a pr� va da existência do céu, no alto, sempre ac11na, em perpetuo movimen to para o éter, dom Pérignon mostrava a resistência do eclesiás tico à ciência, que afirmava então não mais as dinâmicas para o inteligível, mas as forças sensíveis que mostram a gr�vidade,_a massa, a relação da matéria com uma phusis. O físico quena compreender a queda dos corpos, o beneditino, como conter a apetência das bolhas. Na mesma época, sempre preocupado com a contenção de energia, Denis Papin refletia sobre as condições de um domínio mecânico das forças. Por seu lado, trabalhava no mesmo proble ma de dom Pérignon, que tentava inventar uma máquina para conter o champanhe, esse vigor báquico ao qual devemos, regularmente, a explosão das garrafas após a colheita. O sant_o homem praticaria a observação com talento e paciência; depois decidiria sobre o momento favorável para o engarrafamento num vidro que desejava mais resistente, mais espesso- a atual garrafa de champanhe. Finalmente ele assinaria a pena de morte da estopa de cânhamo untada, que servia então para arrolhar o magnum, em proveito da rolha de cortiça, mais c�pa� de se_dar _ a veleidades de transbordamento. O negócio foi feito rapida mente, e o método ainda é o mesmo: celebramos ainda de acordo com o ritual beneditino.
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' As palavras em negrito seguidas de asterisco remetem à ·•Bibliografia alimentar·. no final do volume.
Em que ponto o champanhe é uma exceção entre os vinhos? Por gue é esse vinho..s!o_ s vinhos, essa �inta-essência do que faz as qualidades das beberagens de Noé? Certa!Ilen� porqu� t�m todas as _9!1rometer-se com bebei:__! 7 xícaras de café� nem mais nem menos. O número era fetiche para Grimod. Na peça em que se fazia a recepção, à direita e à esquerda da lareira, brônzeos focinhos de sátiros saíam da parede: deles o café escorria como de uma fonte. Vestido com uma batina preta e usando peruca, um secretário distribuía o açúcar. Apenaso primo deGrimod tinha odireitode não recorrer ao factótum, mas apenas quando seu parente lhe dava autoriza ção de forma imperativa: "Açucare-se, primo" era o abre-te-
sésamo que marcava a abertura do almoço seminutritivo. Em seguida começavam as dissertações líterárias, as discussões sobre a atualidade dos editores parisienses ou as leituras do libelo de um deles. A associação acolhia às vezes belos homens, pois aí eram vistos Beaumarchais, Fontanes, Andrieux ou os irmãos Chénier. Porém o verbo era prioritário,já que o alimento não era substancial: fatias de pão com manteiga, acrescidas de uma anchova às quartas-feiras-sem esquecer o café. No sábado, a assembléia fazia farra com um lombo de boi de seis ou sete quilos, que se acrescia às magras fatias de pão e à bebida quente. Porém a expressão seminutritiva tem um sentido, e talvez seja preciso pensar no porquê de o vinho e o álcool serem banidos dessas reuniões. Grimod estava ainda no ascetismo quando triunfavam os pretextos para encontros I iterários em torno de um lanche. O código, o jogo, o cerimonial, o protocolo apareciam de forma despojada. A alimentação era um vetor harmonioso, mas não era ainda o centro, a causa dessas reuniões. A gastronomia ficava em segundo plano, o teatro sempre em primeiro, mesmo que os ingredientes estivessem reunidos para fazer a mistura que desabrocharia na prática do júri provador. Os almoços das quartas-feiras eram ocasião para praticar a degustação e fundar a crítica gastronômica moderna. Com efeito, o conteúdo dos pratos era o objeto principal da reunião. Apreciavam, provavam e julgavam os pratos sugeridos por impetrantes que solicitavam o relatório do júri e sua inscrição num jornal especializado. A pena não era lacônica, não se fazia o relatório de maneira lapidar, e a escrita gastronômica surge bem-dizente: ela é técnica, lírica, porém precisa; é entusiasta e polêmica, mas rigorosa, pois o julgamento do gosto está presente na redação do texto. Boas ou ruins, médias ou notáveis, as iguarias eram objeto de uma crítica em que entrava o desejo de designar as melhores mesas do momento. O princípio era exce lente, porém a prática se arriscava, claro, à perversão. As sessões começavam às 19 horas e duravam pelo menos cinco horas. Não era admissível que um crítico deixasse a mesa antes desse limite, não importava a razão. Era mais a seriedade que o prazer o que governava a operação taxonômica. Grimod
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inventou a acepção do termo Legitimar na ocorrência gastronômica. E o trabalho ainda é mais precioso por permitir a regulamentação de um ato de batismo: com efeito, o júri decidia o nome a ser dado a um prato, mostrando com isso que nomear era criar, dar direito à existência plena e inteira. Daí o nascimen to dos supremos defrango à Chingara, do arroz à la Condé, dos filés de linguado à Orly, das costeletas Soubise, das sopas à la Crécy, que homenageiam os grandes personagens, e dos coelhos à veneziana, das trutas à hussardo ou à genovesa, do petit-pois àfrancesa, das alcachofras à italiana, dos galos empanados à inglesa, que distinguiriam os métodos, as maneiras de preparo, as técnicas, as proveniências. Todos os gourmets de hoje sabem que uma pa1te dos mistérios do cardápio reside em sua poética e que seus títulos velam, desvendam, ocultam, escondem, mos tram, deixam adivinhar ou supor as operações e os artifícios que permitiram a passagem do produto natural à sua apresentação cultural. Pensemos na utilização que a nova cozinha faria dessa poética se ela propusesse Lagostas com puré de cebolas perfuma do com cravos ou caçarola de caranguejos e cogumelos ao Meursault. tiras de pato, figos e uvas com duas especiarias... O trabalho do júri degustador consistia em "raciocinar os pedaços··, segundo a bela expressão de Grimod. lsto é, para dizer como Kant, praticar '·o julgamento do gosto considerado segun do a modalidade da satisfação resultante do objeto''. Os pratos eram servidos por cozinheiros, depois julgados por Grimod e seus pares. O comentário era enviado ao candidato em troca de pagamento, e as conclusões apareciam no Almanaque dos gulo sos. Quase toda Paris passaria por ali, pois os júris fariam 465 almoços pagos pelos próprios restauradores. Alguns viam nisso uma prática de penetras, mas de que modo pedir a Grimod que pagasse para ver? A crítica gastronômica moderna nasceu aí, nos últimos anos do Antigo Regime, contemporânea das pin turas de Fragonard, dos sucessos de Laclos, das peças de B�aumarchais e, na forma de uma piscadela, do nascimento de Antonin Carême ( 1783).
Nele a excentricidade beirava a seriedade, e nem sempre era possível distinguir uma da outra nestes como naqueles atos. Corno produtora de modernidade e formas que ainda usamos, é mais fácil para nós aceitar as proezas de Grimod. Ele pode usar da fantasia, do estranho, contanto que nos invente a crítica gastronômica, a escritura aferente, o júri de mesmo nome, ou que codifique a polidez gulosa e ao mesmo tempo elogie os méritos do serviço à russa e a tecnologia moderna a serviço da mesa. Mas que diabo poderia ter significado aquele célebre jantar a que mais tarde chamaram o jantar escandaloso? O acontecimento se passou no dia primeiro de fevereiro de 1783, no domicílio de seus pais, no hotel pa11icular na rua Champs-Elysées, antes que ela se tornasse avenida. Os convites foram feitos em um cartão de formato extraordinário - 52 centímetros por 40 - em nome de Mestre Alexandre Balthasar Laurent Grimod de La Reyniere. Seguiam-se os títulos do personagem - escudeiro, advogado, jornalista, redator, sócio -. fórmulas de polidez, conselhos e indicações de horário. O cartão indicava também que no rega-bofe haveria óleo e porco em profusão, tudo coroado por um catafalco e uma cruz sobre fundo negro estrelado de lágrimas de prata. O convite era para uma mesa de 16 pessoas. Com o anfilrião o número subia para 17. O público podia comparecer, mas tinha de ficar atrás das balaustradas que cercavam a mesa. Grimod anunciava a irrisão, o casamento da morte e do ai imento. da despesa e do espetáculo, do cerimonial e do cinismo. O banquete era urna amostra de sua ética, um resumo de sua visão de mundo: uma abstração metafísica. A encenação dessa cerimônia foi confiada a Dazincourt, o ator que dava lições de declamação a Maria Antonieta. No ano seguinte ele seria o criador de As bodas de Fígaro, de Beaumarchais. Deveríamos ver nessa teatralização excepcional uma astúcia de Grimod, que pensava em assim conseguir publi cidade barata para suas Reflexões sobre o prazer. que seriam publicadas alguns dias depois? Desse modo ele teria também inventado a publicidade gastronômica, o almoço para a impren sa e o banquete de apresentação I iterária. três fórmulas que se
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popularizaram. Podemos acreditar nessa hipótese. pois o subtí tulo do seu opúsculo esclarece Quanto o teatro influencia os costumes e o gosto. Assim ele teria ilustrado sua tese, unindo o útil ao agradável, expressando, como sabia fazer, a teoria pela prática. E teria contribuído para dar o que falar a Paris, para a qual essa era a ocupação mais importante. E sobre o jantar escandaloso? Os detalhes dessa noitada foram relatados por várias pessoas, entre as quais Restif de La Bretonne, que foi seu amigo antes que as relações entre ambos se deteriorassem. É evidente que também sobre isso enfeitaram e transformaram. O rastilho de pólvora que essa história deixou na capital era vago, impreciso. Alguns falavam de orgias, bacanais, mulheres nuas, moças de cabelos compridos que serviam vestidas de toalhas de mão, álcool em profusão. Seria ignorar Grimod, cuja maior preocupação sempre foi submeter Dionísio a Apolo. Inclusive no domínio alimentar, onde triunfa vam a ordem, a medida, o cerimonial, o cálculo, a harmonia. Mesmo que Dionísio aparecesse, seria contido, pois nada era mais conforme o mestre-de-cerimônias do que a forma, a manei ra. Nada havia nele que se assemelhasse ao elogio da devassidão, da embriaguez, da histeria alimentar, do esgotamento orgíaco. Grimod não era Trimalcion. O jantar só foi escandaloso pela reputação que lhe deram. Em compensação, foi extravagante. Em lugar do centro de mesa, no meio da peça, erguia-se um catafalco. A sala inteira estava forrada de negro. A e,1trada estava reservada aos convidados, e dois homens armados a vigiavam. A cada convidado se perguntava ··vem ver o senhor de La Reynicre, sanguessuga do povo. ou vem ver o seu filho. defensor da viúva e do órfão?" Claro, deviam dar a boa resposta: viemos ver o anfitrião, não o fiscal de impostos, mesmo que a casa seja a mesma... No vestiário deviam desfazer-se de qual quer sinal distintivo: espada, chapéu. condecorações. Um ho mem fantasiado de Bayard, o que, aliás, lhe devia cair muito bem, empunhando uma lança, avançava em companhia dos hóspedes, que ele dirigia para uma espécie de juiz de capelo e peruca. Este anotava num papel timbrado o nome e a profissão dos comensais. Grimod entrou no salão vestido com sua toga de
advogado, uma heresia para os membros de sua corporação. Ele convidou a assembléia a segui-lo por uma peça inteiramente escura, na qual propôs alguns minutos de concentração. Alguns pensaram que isso fosse uma zombaria ao ritual maçônico, no qual esse tipo de exercício existe como preliminar à iniciação. Talvez. Após as trevas, a luz: uma porta se abriu para uma sala iluminada por 365 luminárias à antiga. Tantas, claro, quanto os dias do ano. Quatro efebos de túnica à romana estavam postados perto de cada convidado, com um incensório. Grimod lhes cochichou: ·'Quando meus pais oferecem uma refeição, há sempre duas ou três pessoas à mesa encarregadas de incensá-los. Vejam, meus amigos, quis poupar-lhes esse trabalho: eis aqui pessoas que farão isso maravilhosamente bem." Os pratos estavam à disposição dos convidados sobre mesinhas, e isso para evitar o recorrer a criados, uma instituição que não era do agrado de Grimod, para quem eram ouvidos indiscretos, animados por um espírito de revanche que lhes fazia negligenciar o conteúdo das taças e dos pratos dos convidados, ou então enchê-los em demasia, o que também era um erro funesto. Ele sempre tentaria substituir os serviçais por máqui nas, tecnologias e mecanismos novos. Ignora-se em detalhe o que comeram, além dos dois primei ros serviços de um total de doze. Pois o primeiro era todo de porco, o segundo todo de óleo. No final desses dois fornecimen tos, Grimod comunicou aos seus hóspedes que todos os produtos utilizados para essa série da refeição tinham vindo das lojas de seus primos, salsicheiros e merceeiros,o que erade bom-tom nas famílias nobres, como a de Grimod. Sabe-se, para aumentar a ironia, que entre seus parentes não havia nenhum especialista em porco ou em gorduras ... O boato de que estavam jantando de maneira extravagante na rua Champs-Elysées correu por Paris, já pequena. e bem informada. O público chegou em massa e se amontoou atrás das balaustradas para ver o desenrolar do cerimonial. Para distrair a galeria, distribuíram bolinhos - pão e circo - e refrescos. As pessoas iam e vinham, curiosas. Entre elas apareceu Madame Grimod de La Reyniere, falsamente aparentada por seu filho à
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salsicharia e ao comércio de mercearia. Estava ladeada pelo juiz de Breteuil, seu amante. Ambos eram magros de dar medo e, para piorar, imensamente altos. Letrado, o filho citou o abade Delille, que escrevera em algum lugar: "E esses dois cacos se consolam entre si." Alguns acharam que a noitada começava a se degenerar e se prepararam para deixar a sala. Em vão. Dois poltrões puderam escapar antes que o conjunto das salas fosse trancado. Os guardas estavam vigilantes, e todos ficaram no banquete até as sete horas da manhã. O café foi tomado num salão que devia sua luz a l l 3 velas, pois Grimod se informara: era o número de notários da capital. Para terminar com chave de ouro, houve sessões de lanterna mágica e experiências de eletri cidade feitas por um físico italiano. Por pouco Grimod não inventou o cinema... A noitada custou dez mil libras, uma pequena fortuna. Ninguém quis dizer que participara dela, de tal modo sua reputação se tornou rapidamente sulfurosa. Mas desse modo Grimod demonstrara quanto o funcionamento do Antigo Regi me em conjunto lhe repugnava. Todos os poderes foram fustiga dos: o político, com os personagens de toga, os advogados, os juízes, os notários e os fiscais de impostos: o familiar, claro; o espiritual, com o incensório dos católicos e a sala negra dos franco-maçons. Do mesmo modo, o poder doméstico foi maculado. Hedonista que era, Grimod não deixou de convidar a morte, de provocá-la, de escarnecê-la. Pelo menos de tratá-la com ironia, como pano de fundo, para nos lembrar que ela está sempre aí_! que triunfará, e que devemos elaborar uma filosofia do prazer sobre um cenário trágico. Enquanto isso, contra a sociedade iníqua do Antigo Regime, que esfomeava, bem como contra a criada pela Revolução Francesa, que também esvaziara os pratos, Grimod propunha uma microssociedade hedonista, eletiva, aristocrática, no sentido etimológico-elogiava, portan to, a alimentação, o teatro, a polidez gulosa, a modernidade tecnológica. Porém a comunicação da sua morte foi feita no dia 7 de julho de 1812. Tanatos contra Eros, no dia da "feiosa". Um mês antes, Grimod decidira aposentar-se na província, longe da sociedade
parisiense. Ele p_rojetava ali pôr em dia suas leituras e devorar os livros acumulados durante sua vida mundana, viver cercado de seus cinco gatos e esperar o fim. Os convidados ao enterro teriam de estar no domicílio parisiense às 16 horas para a partida do féretro. Era hora de refeição, e assim o gastrósofo pedia, post mortem, que escolhessem entre a mesa e o caixão. Dessa maneira, somente aqueles que o amavam estariam no encontro. Na hora marcada, os fiéis chegaram à rua Champs-Elysées, onde já esperavam o carro fúnebre e várias viaturas de enterro. Na entrada, um catafalco estava arrumado entre duas fileiras de círios. No salão, como se deve fazer nesses momentos, os convidados falavam em voz baixa, quando a porta se abriu, deixando aparecer, triunfante e mais vivo que nunca, Grimod de La Reyniere, feliz de poder contar finalmente, com certeza, os seus amigos. Ele decidira enterrar apenas sua vida parisiense. Mas, se podemos rir da morte,_provocá-la, escarnecê-la1 sabe mos,_ e Ôrimod em primeiro lugar. que e�tem a últim,!1_pajavra. E ela a pronunciou no Natal de 1837, 25 anos depois. A força de ensaio, era de esperar uma estréia.
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O que restou dos ensinamentos do guloso gentil-homem? Anedotas, reputações, histórias, opúsculos, páginas e páginas de críticas sobre teatro e sobre gastronomia. Uma prática hedonista testemunhando uma teoria que a sustentava, um desejo político, a aspiração a uma sociedade harmoniosa que teria a mesa como modelo. Os feitos de Grimod foram acontecimentos, uma perpétua sucessão de happenings, quadros vivos que mostravam que o real é um espetáculo a que somos requisitados tanto como atores quanto como espectadores. A ética e a estética se mesclam em proveito de uma política. A metafísica e a ontologia, os ai icerces desse empreendimento, são singulares: pensamento trágico, sensibilidade barroca, prática irônica, tudo numa vontade de fazer emergir uma cena gastronômica de que nossa modernidade ainda participa. A gastronomia moderna estava em trabalho de parto com Grimod. Ela se desenvolveria como um animal a exigir seu território, a partir das bases que ele colocou.
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O teatro que ele propôs é parente do ditirambo da Antigüi dade grega e da concepção aristotélica da prática espetacular: a persuasão é ainda mais verdadeira quando uma paixão é vivida. Não há nenhuma distância entre o ator e o papel, nenhuma separação entre o indivíduo que representa e aquele que vive. Não existe desempenho sem entusiasmo, sem implicar a totali dade do corpo, da pessoa, não existe cena sem prática lúdica como catarse. Certamente, Diderot aqui se mostra caduco com seu Para doxo sobre o comediante, que convida à esquizofrenia, à sepa ração entre o homem em cena e o homem da vida diária. Materialista radical, Oiderot desejava fazer do ator uma máqui na, uma mecânica fria capaz de interpretar sem participar. O comediante seria acéfalo; marionete, simularia. Fabricante de ilusões, o pai de Jacques, o Fatalista, queria separar a cena da vida, o ator do cidadão, o registro da existência. Grimod queria o contrário e praticava o teatro da crueldade no sentido dado por Artaud a essa expressão: renovar a vida pelo desempenho, permitir ao homem ser demiurgo, contribuir para o surgimento de novas possibilidades de vida, criar outra maneira de ser. "Mudar a vida", para falar como Rimbaud. O mestre-de-cerimônias era o próprio Grimod. Ele pratica va a ironia e a dissimulação, distribuía os papéis e agia como organizador, regulamentava com perfeição, com a precisão de um especialista de sistemas complexos. Humor negro e festa, alimento e cenários, subversão e legislação. No espaço que ele escolhia e no tempo que ele decidia, encenava uma intersub jetividade de um gênero particular. Déspota lúcido, utilizava o teatro para expressar o seu fantasma de cidade ideal e principal mente para praticá-la como em laboratório. Seu objetivo não era uma nova Atlântida, algo como uma lcária, um falanstério do amanhã. Ele punha-o em prática, aqui e agora, inaugurando o princípio das sociedades moleculares, eletivas. A ostensão, para falar como diretor de cena, era inteiramente da alçada de Grimod. A antinomia entre teatro e vida não pode durar se seguirmos os conselhos do gastrônomo. A reconciliação dos dois deve poder acontecer nos moldes da harmonia contratual,
realizada à mesa, no tempo de um festim, de um banquete ou de um feito espetacular. A cena gastronômica, como substituição da cena política, é o universo inteiro do performático. Dizer é fazer. As refeições não são de papelão, o vinho não é água avermelhada por um artifício, a carne não é papel machê pintado, os pratos não são fictícios, os cenários não são apenas fachadas que tremem ao menor sopro no palco; tudo é verdadeiro. Aí se come, se bebe, se fala, se troca, se vive de maneira autêntica, plena. Cada qual se reconcilia consigo mesmo. A alienação já não existe entre a parte de si que aspira a um real e a que o vive. O corpo inteiro é convidado à existência. Tanto a boca, o ventre, quanto a cabeça, o espírito. Em partes iguais o sistema digestivo e o sistema nervoso. A pele, a carne, os músculos, as vísceras, assim como a alma. O trabalho de Grimod consistia em organizar uma filosofia do corpo preocupada unicamente com a imanência das máquinas desejantes. Na economia do teatro, devemos ao deus ex machina os efeitos mais úteis à progressão da peça. O mecanismo de roldanas, de trações, dos cenários disfarçados que apareciam subitamente, dos poços que se abriam e faziam surgir dos infernos um personagem aureolado de soberba e de um pouco de fumaça antes de, com a ajuda de novas mecânicas, ir ao encontro da abóbada celeste- tudo isso fazia a cena. Assim, Júpiter podia tronitroar, Mercúrio voar, Orfeu descer ao Hades. Tudo aconte cia da melhor maneira possível. Grimod gostava dos mecanis mos: sua pinça, seu traje, seu penteado, sua vida cotidiana, seu projeto de chapéu semi-ejetável, tudo denotava nele um gosto pelo antinatural. I íabitualrnente, a obra do gastrônomo é apresentada como a de um reacionário, saudoso do Antigo Regime, isso simples mente porque ele não preza particularmente a Revolução Fran cesa. Pois o lugar-comumquer quese seja fanático da monarquia dos Bourbons ou turiferário de Robespierre. A posição de La Reyniêre estava além do maniqueísmo, pois seu critério para julgar a pertinência de uma época histórica era a questão
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alimentar. Certamente ele não se inscreveu na seção dos piques. não escreveu num jornal revolucionário, não se entusiasmou pelo culto do Ser supremo, não quis escolher entre girondinos e montanheses. Ele via que a Revolução Francesa era sangrenta, que trazia fome, que não era um progresso no plano da polidez e da etiqueta, que era radicalmente política e bastante ontológica. Pior ainda, que abria caminho para o burguês, que não passava de uma goela aberta. Tampouco seria encontrado em flagrante delito de adoração à época pré-revolucionária. Ele fustigou suficientemente a arrogância de seus partidários e substitutos. Bradar em toda a parte que os fiscais de impostos eram os esfaimadores do povo, insultar um duque que jantava com seus pais, dizendo-lhe que ele pertencia à classe dos "celerados opressores da nação, cuja escandalosa posição expressava a arrecadação do Estado", continuar emitindo opiniões subversi vas contra as pessoas com títulos, os pares e os marechais da Franca, em cada ocasião que lhe surgia, em suas presenças, e antes de 1789, era mostrar que ele não prezava Versalhes nem a tomada da Bastilha. Pois Grimod era um hedonista, um libertino e um revoltado 9-!!e não sesatisfazia com nenhumârevolução senão a culinária, quando ela ia no sentido de um aumento dos prazer�. Sua faculdade para julgar a época era inteiramente determinada pelas novidades que ela permitia na cozinha. Portanto, Grimod de La Reyniere era um progressista; ele escolhia o partido do progresso tecnológico e se punha ao lado de tudo quanto permi tisse o deus ex machina tanto no porão, onde se preparava, quanto na sala de jantar, onde se com ia. E podemos constatar que os grandes nomes que contribuíram para o nascimento da gastronomia moderna - Berchoux, Brillat-Savarin - tanto negli genciaram a Revolução Francesa quanto se entusiasmaram pelas revoluções da mesa. Amando apenas Citera, eles não podiam realmente apaixonar-se por Esparta. Em matéria de gastronomia, existiam também aqui os reacionários e os progressistas, os antigos e os modernos. Os primeiros eram saudosistas do passado, choravam e anunciavam a decadência: já não se estava nos bons e velhos tempos que
permitiam os produtos frescos, as preparações saudáveis, as receitas ancestrais e os pratos familiares da região. Eles confun diam a saudade da infância com a da cozinha de então. Tudo o que se aparentava à modernidade na cozinha provocava neles uma autêntica histeria: o novo material atacava e destruía lentamente o corpo, punha em perigo a saúde, fazia surgir das profundezas da carne tumores e excrescências malignas; as novas preparações eram repugnantes, absurdas, intragáveis, ridículas; as novas combinações de alimentos singulares arran cavam-lhes gritos. Esqueciam que fazia muito já se saboreavam ostras com Sauternes,já se começava a refeição com frutas,já se misturavam carnes e peixes no mesmo cozimento,já se elabora vam pratos em que se misturavam o doce e o salgado, que fazia uma eternidade já se preparava frango ao chocolate. Para eles, o passado era adorável, o presente detestável e o futuro só poderia ser apocalíptico. Cada época teve esse tipo de carrideiras. Depois vinham os progressistas, amadores de sensações diversas, fortes e novas que confiavam na imaginação, na audácia, na novidade. Devemos a eles as invenções culinárias ou tecnológicas destinadas a fins culinários. Gostavam da cozinha do passado, das tradições alimentares, sem dúvida, mas também das novas propostas, dos riscos. O presente era seu modo de existência com alguma preocupação quanto ao futuro. Às vezes não conheciam nenhum limite para seus desejos de novidades. Por exemplo,os futuristas italianos, que não recuavam diante de casamentos extravagantes, como o salsichão com café e água de colônia (receita do Porexcité) ou um picadinho de atum, maçãs, azeitonas, nozesjaponesas, apresentado sobre uma omelete fria guarnecida de geléia (receita do Promontório siciliano). Assim como em alguns países se comiam empadinhas de bicho-de conta, e na China, tortas feitas com ovos de percevejos d'água, ou no México, fricassê de sapos, macarrão de larvas de besouro, grilos marinados e formigas brancas defumadas, na casa do sr. Pouchet, professor de zoologia de Rouen, pois a aliment�ão � antes de tudo uma questão de cultura e nadaTagradável ou repugnante em termos absolutos, e sim em relação à civilização na qual se faz o julgamento. Os progressistas, em matéria
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alimentar, eram cosmopolitas, optavam pela circulação dos bens, das riquezas, dos homens e, portanto, dos pratos e das receitas. Contra o território e o regionalismo, os hábitos do solo e o enraizamento alimentar dos reacionários, Grimod fazia a promoção dos fluxos, das circulações,�ª:' idas e vi�das. Por exemplo, Grimod louvava os mentos da tapioca, de que Alexandre Dumas daria uma receita errada, ou da batata, a ponto de comparar seu turiferário a Homero, Virgílio e Cícero. Os dois alimentos eram novidade na época, e ele se entusiasmou por suas qualidades e pela ampliação da paleta gustativa que permitiam. Do mesmo modo se apaixonou pelas novas técnicas, no caso a "apertização" ou corte dos animais pela el�trici? ade. �or outro _ _ dos lado, porque o método das conservas perm1t1a ev1tar a tirania ritmos da natureza e possibilitava cerejas no inverno ou casta nhas no verão: por outro lado, porque a carne menos maltratada era bem melhor e porque os animais morriam com menos sofrimento. Finalmente, depois dos alimentos e das técnicas, eram os novos utensílios o que ele prezava particularmente. Por exemplo, a frigideira,contemporânea do Gênio do cristianismo, 0 que certamente não era obra do acaso, um fazendo sombra ao outro. Pois essa panelinha rasa, como uma fôrma de torta, permitia maiores revoluções e maiores pr� er:s do que a �bra de . Chateaubriand. Mais tarde, Brillat-Savann dma que mais vale encontrar uma nova receita que uma nova estrela da Via Láctea. Grimod também se entusiasmou pela cafeteira com filtro; ela desclassificaria e ultrapassaria o velho coador, que obrigava quase sempre a tomar café grego, o beber e o comer ao mesmo tempo. O inventor dessa nova máquina foi festej�d? por ter _ imaginado um instrumento engenhoso, simples, pratico e efi ciente, que permitia pôr a física a serviço das alegrias de uma bebida de novo paladar. Do mesmo modo, ele prezava quaisquer modificações no serviço. Tudo o que evitava os intermediários entre o P?rão, _ era bem-vmdo. onde se preparava, e o andar,onde se consumia, Tratava-se de cuidar do conforto e do bem-estar do hóspede. Menos operações entre o produtor e o consumidor-gan (10 para quem comia. Pois o que se interpõe estraga. por modificar a
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estrutura, o sabor e a temperatura dos alimentos. A cozinha era uma a1te do tempo e de seu domínio: Hefaistos. o dono do fogo, era parente de Cronos, o pai do tempo. Cozinhar um assado só tem sentido na perspectiva de um bom cozimento ou de uma boa assadura, ou seja, do tempo necessário, nem mais nem menos. Aquém ou além,já não se trata de cozinha,e sim de omofagia ou incineração. Portanto, havia que dispensar os criados que, arras tando-se, chegam como mestres e possuidores do prazer dos convidados, o que é inaceitável. Para substituí-los, Grimod incensava o elevador, diretamente comandado da cozinha, e mesas portáteis, já utilizadas no jantar escandaloso e pelo júri provador. Do mesmo modo, ele inaugurou as fontes de café. Recordemos os almoços filosóficos. A comunicação entre a cidade celeste, onde se comia, e a cidade terrestre, onde se cozinhava,era feita com o auxílio de um tubo acústico. O desejo do anfitrião chegava aos ouvidos do alquimista diante do seu atanor; as informações do cozinheiro viajavam em direção ao dono da casa. A palavra eirculava,e com ela as modalidades da recepção eram organizadas, em tempo real, evitando ao máximo a disjunção entre desejo e realidade. As vontades do hóspede eram transmitidas à velocidade do som e não à do criado. Benefício considerável. A máquina e o mecanismo triunfavam-era o início de uma nova era� antes do confisco pelo modo de produção liberal e capitalista: imaginava-se ainda que as inovações técnicas eram feitas para tornar a vida mais agradável, mai? JáciLpara a maioria, que elas visavam ao prazer de todos, à econorni-ª- da tarefa,e �e era__possível_pedir-lhes gue servissem a um o!?jetivo hedonista. A mesa de Grimod ainda não era contemporânea dos plenos poderes dados à mercadoria. Qualquer modificação era desejável se aumentasse o bem estar dos comedores. Por isso Grimod empreendeu igualmente uma mudança na ordem dos seus serviços e anunciou a morte do serviço à francesa. para inaugurar, a partir do Diretório, a era do serviço à russa. na qual vivemos ainda hoje. Como era o serviço à francesa, que durou pelos menos até 1870, data em que Urbain Dubois, que esteve no serviço do príncipe Orlof, tornou
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seu uso caduco? Ele era pesado, longo e frustrante. Com efeito, instituía três serviços, como três atos de uma peça: cada um durava cerca de trinta minutos. Não se mudavam os pratos, e era preciso, no primeiro momento, escolher ao acaso entre carnes frias, patê de fígado, queijos e bolinhos glacês, pois tudo era servido ao mesmo tempo e posto na mesa de uma só vez. A profusão reinava, e com ela a desordem, o risco de desejos insatisfeitos aqui ou de indigestão ali. Uns se entupiam enquanto outros jejuavam. Era o Antigo Regime, discriminatório e frus trante, em que a felicidade de uns era a desgraça dos outros. A riqueza e a profusão dos primeiros eram pagas pela fome e pela miséria dos demais. O enriquecimento aqui significava pauperização ali. Triunfo da lei da selva, cuja lógica e perigos são mostrados pelos bufês de hoje ... O serviço à russa queria o abandono da prioridade do espaço, dos volumes, características do serviço à francesa, pois se tratava dali por diante de praticar a sucessão dos pratos. Uns depois dos outros, nunca simultâneos, antes ou após esse ou aquele, o todo num movimento circular em volta da mesa. O tempo triunfava sobre o espaço. A cronologia permitia uma revolução no gosto, pois ensejava efeitos especiais em relação à sucessão: a boca não permanecia no mesmo estado quando provava o salgado, o doce, o amargo ou o ácido. Ela se modi fi cava à medida que saboreava um Sauternes, o frescor de um Sancerre, a força de um Pommard ou a delicadeza de um Margaux. Ela era uma após as ostras, outra após o chocolate. O serviço à russa permitia organizar o conjunto de uma refeição em tomo da progressão dos sabores. Ele autorizava a gastronomia, enquanto o outro se achava limitado à alimentação, em eco longínquo das práticas medievais chamadas serviço em confu são. Poderíamos dizerque o serviço à russa foi para a gastronomia o que 1789 foi para a vida política: o final do Antigo Regime, o início do período contemporâneo. As duas instâncias evoluíam, aliás, em virtude de movimen tos similares: traziam o desejo de um novo contrato social, de uma nova definição de cidadania e de uma nova maneira de querer a vida com o próximo: Grimod ofereceria os elementos da
polidez gulosa para um contrato gastronômico, daria uma defi nição de anfitrião, o cidadão à mesa, e faria votos para uma nova intersubjetividade, no caso, hedonista. A etimologia nos lembr�g_astronomia é uma disciplina dos nomos,_.sl__a legislação� os homens �trabalhavam na promoção dessa nova ciência estavam curiosamente associados ao universo da lei. Berchoux. o primeiro, era magistrado, filho de advogad�. Foi autor de um longo poema, de cerca de um milhar de alexandrinos, que reabilitou a palavra com que Archestrate formara o título de uma obra hoje perdida. Certa mente A gastronomia ou o homem do campo à mesa vale principalmente por permitir uma data de nascimento irrecusável à aceitação contemporânea do termo: 1801. "Gastrolatria", propusera Rabelais; Montaig___ne falava de "ciência da goela". Por sua vez_, mais tarde, Fourier diria "gastrosofia". Mas seria gastronomia a definitiva. Ô-homem da lei faria dela tanto uma ciência quanto uma arte. Sem rodeios e com razão, ele propunha colocar a cozinha no plano das belas-artes. Era o ano em que Brillat-Savarin, ainda longe das preocupações da boca, publica va suas Visões e projetos de economia política. Ele era advogado desde 1778, data em que praticou pela primeira vez, prosseguin do o trabalho das cinco gerações de toga que o tinham precedido. Estudante de direito, Brillat ao mesmo tempo cursava química e freqüentava o grupo de Auteu il, no qual encontrava os ideólogos, muito em moda na época. Berchoux, Grimod e Brillat, a seu modo todos legislaram: o primeiro como poeta, fabricando versos por quilômetro; o segundo como professor de balé excêntrico, amante da escrita lúdica, teatro e da cenografia; o terceiro como filósofo. discípulo dos sensualistas, dos médicos e dos cientistas. Seus trabalhos foram contemporâneos da organização legislativa napoleônica, e não poracaso: o código civil-código Napoleão-foi elaborado entre 1800 e 1804. o código de instrução criminal data de 1809, e o código penal de 181 O. Durante os dez p�imeiros �nos do século XIX, guando da elaboração das codificaçõesjurídicas. podemos assistir ao nascimento da palavra gastronomia em sua (_
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acepção contemporânea, ao da crítica gastronômica, ao da genealogia da reflexão gastrosófica, ao das práticas da mesa fnoderna, em suma, ao qu� Grimod chamava o e-mergir da "cozinha transcendente". As relações entre os três homens eram estranhas: devemos à Berchoux mais do que a exumação da palavra de Archestrate, pois ele formulou pela primeira vez os direitos e deveres do anfitrião, que seriam encontrados mais tarde pela pena de Grimod de La Reyniere sem que as referências e as reverên cias* fossem feitas. O silêncio do autor do Almanaque dos gulosos teria correlato no de Brillat-Savarin, que nunca citaria Grimod em sua Fisiologia do gosto. A história conta que, retira do em sua propriedade campestre, o velho excêntrico reconhecia as grandes qualidades do trabalho e constatava sem acrimônia não ter sido comprimentado uma só vez por Bri I lat, cujo I ivro em dois volumes conhecia então um sucesso magistral. Uma carta permite constatar que mais de uma vez Grimod foi plagiado por Brillat. Porém a época não tinha as leis oficiais de hoje sobre direitos autorais... Devemos lembrar que Berchoux freqüentava o alexandrino, mais, foi o primeiro a formular especificamente o que eu chamaria contrato gastronômico, de que nasceu o anfitrião, forma culinária do cidadão à moda rousseauniana. Primeiro, os deveres de quem recebe, a César o que é de César. O anfitrião deve zelar pelo prazer daqueles a quem acolhe. Ele sabe satisfa zer seus desejos, adivinhar seus pedidos, evitar que lhes falte algo. Todos devem ser tratados como iguais: entre os convidados não existe superior nem inferior. O prazer de um equivale ao prazer do outro. Portanto, não se levará em conta a classe social -o igualitarismo deve reinar à mesa. Cabe ao dono da casa fazer 1 cada qual brilhar segundo suas possibilidades: a erudição, as competências, os centros de interesse dos convidados serão solicitados da melhor maneira possível. Deve-se falar de ali mentação e não de frivolidades. Em todo o caso, devem-se evitar os temas políticos, cujo resultado imediato é perturbar, confun dir e provocar as piores animosidades. Na mesa, oferecer-se-ão 1 os melhores produtos e os pratos mais requintados, claro. A
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cozinha deve ser irrepreensível, e o dono da casa mandará servir os vinhos mais finos, mais raros, as especiarias mais preciosas. Tudo o que puder interferi ma refeição será evitado, nada deverá perturbar a harmonia estabelecida na sala de jantar. O prazer de todos, apenas o prazer. Grimod melhorava o poema gastronômico, mas não profes---- sava nada que fosse contrário aos ensinamentos de Berchoux. Aos deveres do anfitrião ele acrescentou as qualidades necessá rias à prática hedonista. Claro, à mesa o gastrônomo come com profundidade, escolha, reflexãõ'esensuaTídade. Se o burguês é apenas uma g_oela, o esteta na matéria acrescenta uma cere bralidade de que não abre mão: domínio, razão e inteligência em eterna vigilância. Comer é alimentar o espírito, o pensamento, a faculdade de julgamento. Não existe excelência na arte de receber sem um poder absoluto sobre o espaço e o tempo. No palco gastronômico, o anfitrião é demiurgo. Além da jovial idade, do franco apetite e da arte da réplica, ele tem o olhar à espreita, tratando de não deixar passar o kai'ros, o momento propício. Zela para que os copos e os pratos estejam cheios como convém, nem transbordantes nem parcimoniosamente servidos, com os alimentos e os vinhos apropriados. Para dizê-lo no vocabulário da época, ele serve no momento exato o "gole de antes", o "gole do meio" e o "gole de depois", o que seria um desastre, se não ridículo, no caso de qualquer equívoco de tempo ou dosagem. Se se tem de cortaruma ave, o anfitrião exibe seu virtuosismo. O escudeiro trinchador, que fazia esse trabalho nos velhos tempos, podia desincumbir-se dessa tarefa sem sequer pousar o animal, segurando o objeto com a ponta do garfo. Certamente, ele conhecia a anatomia, asjuntas, as pa1tes da ave por destrinchar. Era um anatomista, um cirurgião que também sabia repartir os pedaços obtidos no prato. Sem_prea ordem. a medida. o código. O Tratado da dissecção das carnes. que podemos ler no Manual dos anfitriões, é quase �m tratªdo ri1oral em que se encontram elogios à ciência, à a1te, ! técnica. à agilidade, à ha_bjl_jdads!J engenhosidade. Não saber destrim:har equivalia a ignorar a es crita. a possuir uma biblioteca sem saber ler. Fiquem sabendo...
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Outro talento seu consistia na arte da colocação em perspec tiva: os vinhos e sua temperatura adequada, por exemplo, mas também as bebidas e os alimentos. Alexandre Dumas escreveria do vinho que ele era� parte intelectual dJ uma refei_ção_, sendo �ames apenas a parte material: o bom anfitrião sabe a exata colocação em perspectiva desses dois momentos igualmente necessários. Do mesmo modo, sabe os lugares dos convidados, pois evitará as animosidades de proximidade, fomentadoras de desavenças. Seja como for, os temperamentos, os caracteres não se aliam ao acaso. O domínio do tempo na sala de jantar supõe a mesma habilidade do lado de fora, assim que se trata de convidar, agradecer ou marcar datas em função do código e das agendas. Sua arte se exerce no que Grimod chamava "visita nutritiva", cujas modalidades são diversas, porém precisas: a "visita prepa ratória" permite mostrar que se é um convidado possível, imaginável; a "visita de digestão" se faz para agradecer um convite já honrado e é feita no máximo cinco dias após o jantar, nunca além de dez; a "visita de apetite", finalmente, visa a conseguir, num intervalo razoável, um novo encontro. O conjunto desses códigos contribuía para formar uma polidez gulosa, cuja quinta-essência era o contrato gastronômico sinalagmático. Aliás, a intenção de Grimod era visível no subtítulo do seu Manual do anfitrião, a saber: obra indispensá vel a todos quantos se preocupam com Ler uma boa mesa e com oferecê-la aos outros. O hedonismo é uma obrigação entre duas partes. Ele é a filo�ofia do_prazer que deve guiarÕs atos.as palavras, as práticas. Toda a satisfação pessoal só tem sentido pela e para a do outro. Não seria possível promover um júbilo solitário:-Min.ha satisf�upõe �do outrº-1 como cond1çãÕde possibilid_?de. Nessa retórica das alegrias compartilhadas, dese nham-se os elementos de uma política. A microssociedade "ju bilatória" desejada pelo anfitrião mostra as grandes linhas do que poderia ser um projeto ampliado para a sociedade inteira. O organismo ético e estético que é a mesa era aristocrático, eletivo. Nele eram praticadas a despesa e a magnificência. A fortuna a serviço do gosto, do bom gosto. Mescladas, encontra-
vam-se em ação a elegância nas maneiras., a amenidade no coração, a aceitação no espírito e a delicadeza nas intenções. O anfitrião era um artista do infinitesimal, praticava o requinte como uma das belas-artes. A tensão de sua vontade ia na direção do eudemonismo. O tato era necessário, o virtuosismo também. No projeto de polidez, tão prezado por Grimod, havia a esperan ça de que, ao sair da mesa, cada qual guardaria a impressão de ter sido o único. Ao abandonar sua singularidade ao dono da casa, o hóspede recuperava um sentimento de plenitude, sentin do-se como completitude. Certamente, a civilidade gulosa obrigava o cidadão alimen tar a algumas obrigações, pois não há direitos sem deveres, e vice-versa. Porém os deveres do hóspede só o obrigavam razoá vel e quase alegremente. Vejamos: responder com exatidão e rapidez aos convites feitos; chegar imperativamente na hora, no dia devido. Esvaziar o prato, o copo, e animar a conversa; não falar mal da pessoa a quem se deve a refeição pelo menos durante os seis meses seguintes. Talvez esta exigência fosse a mais temida, pois quantos seriam capazes de suportar mais que os dois minutos necessários para fechar a porta? Bastariam então duas refeições por ano para impedir toda a veleidade de maledicên cia? Seria barato... Se o código dizia respeito à pessoa que jantava, nem por isso esquecia a que trabalhava. E Grimod legislava também sobre as relações entre o anfitrião e seu maítre. Assim como as socieda des indo-européias funcionam de modo triplo, as comunidades hedonistas oriundas da gastronomia se articulavam sobre o bom entendimento entre a classe dos comedores e a dos fabricantes. Uma deontologia regulava suas relações, pois nada é mais precioso para o homem que convida no salão do que o homem que cozinha no porão: um deve seus sucessos e a harmonia do seu mundo à competência, à experiência e à inteligência do outro. A qualidade de vida de um maítre é menos uma questão de amor ao próximo, de fraternidade ou de simpatia do que um problema de interesse bem-compreendido. A cozinha que se gripa é a sala de jantar que espirra. E isso promove a desordem. Para paliar qualquer aborrecimento, para prevenir qualquer inconveniente maior, o anfitrião escolheria seu homem fiel em
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virtude de critérios precisos: sem dúvida, ele deveria praticar sua arte com brio e rapidez, mas também deveria ser fino degustador, fornecedor esclarecido, servidor hábil, calculador exato, con versador agradável, agente oficioso e polido. Como artista, seria tão teórico quanto prático das coisas da cozinha. Assim poderia mostrar ao chefe cozinheiro, diretamente sob suas ordens, que dispunha de autoridade sem nunca ser autoritário, apenas por competência reconhecida, estabelecida. Em cada posto, ele provaria seu domínio. Entre o anfitrião e o maitre existiam as mesmas relações que entre este e o chefe de cozinha: confiança, estima, simpatia. Grimod, que conhecia o ambiente das cozinhas da época, queria que o responsável pela copa cuidasse da saúde do mestre-cuca: a presença nos fogões era perigosa, a pessoa ficava exposta ao fogo, a queimaduras, aos vapores e fumaças, extremamente nocivas, do carvão que se consumia. Dietético, médico e pai de família, Grimod receitava purgante. Com efeito, pedia ao ma'itre que o chefe de cozinha se submetesse regularmente a sessões purgativas, para que fosse permanentemente eficaz e performático nos fogões, onde de outra forma se arriscaria a deteriorar a saúde à força de exposições maléficas e de saturações gustativas por provar em excesso molhos e preparações. Aliás, no contrato de trabalho, Grimod previa uma cláusula em que o cozinheiro prometia aceitar esse princípio, para o bom funcionamento da sociedade gastronômica. Estranho ambiente ... Se todos esses pedidos fossem respeitados, se cada qual em seu posto quisesse contribuir para a felicidade de todos, se cada qual aceitasse o jogo do contrato, seria possível pensar que a civilidade reinaria e que a mesa obteria seu título de nobreza tomando-se o lugar, o tempo e o espaço de uma polidez gulosa propedêutica, uma polidez simples, a própria essência da intersubjetividade e, portanto, de toda moral digna desse nome. A ordem manducatória desejada por Grimod, codificada, legis lada, era a ordem social quinta-essenciada. O conjunto de seus escritos mostra na prática uma sociedade hedonista com proble mas próprios: � e§tá à mesa recapitul-ª o que está na sociedade. A civilidade, a delicadeza, a atenção, a polidez, o
cuidad9 com o .9 u_ tro e consigo mesmo, a inters_ ubjetivig_ade pensada e desejada de modo "jubilatório" e feliz,a magnificência� a despesa, tudo isso tem na sala de j;mtar o mesmo sentido, a mesma repercussão que na vida. Os pequenos atos informam sobre os grandes, infinitesimal mostra a totalidade antes que esta se desdobre. Teatro, sempre teatro ...
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VI A S D E ACESSO AOS TESTÍCULOS
CAPÍTULO III
VIAS DE ACESSO AOS TESTÍCULOS Monumento funerário a Noé A Miche/ Guil/ard
Na mixórdia das histórias contadas pelo Antigo Testamento. entre chuva de rãs e sarças que ardem sem se consumir. tenho particular afeição por Noé, esse amigo dos animais de toda a espécie. No fundo, devemos-lhe a maioria do nosso gado de hoje e de ontem. Pois sem Noé nada de dinossauros, arqueopterígeos e outras criaturas do estábulo jurássico, nada de plesiossauros ou semelhantes. Portanto, nada de açougues de carne de cavalo. também. Nada de homens, igualmente, pois em sua arca de madeira de cipreste, que devia ter um forte cheiro de betume e calafeto, antes que menos suportáveis odores, o velho embarcou alguns espécimes do homo erectus, tirando do planeta os de sua família. Sempre somos mais bem servidos por nós mesmos. Portanto. zebus. galinhas e roedores, martas e raposas prateadas. focas e genros, noras e filhos. E voga a galera, pois deus decidira vingar-se dos homens. o que se tornaria um hábito. E para tanto ele se decidira por um dilúvio, nada menos. Fez o melhor possível; basta dizer que caiu água durante quarenta dias e quarenta noites. O que, no dizer dos especialistas em números, significa menos duas vezes vintes dias do que um longo tempo. Deus é vindicativo e rancoroso. A Terra foi coberta, claro. Quando se deseja erradicar o mal. é melhor fazer tudo em ponto grande. Tudo pereceu. exceto Noé, sua família e seu zôo portátil.
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Deus sabe limitar suas cóleras e pôs um termo à sua ira. O dilúvio cessou. Mas a abundância de água era tanta, que foi preciso esperar cento e cinqüenta dias para que se percebesse um início de baixa de nível. A arca encalhou no monte Ararat. Deixemos de lado as peripécias. as histórias de corvos negros que pa1tiam, de pombas brancas que voltavam, de ramos de oliveira que, se fosse preciso, provariam a ausência de rancor de uma árvore capaz de dar folhas imediatamente após ter passado tanto tempo debaixo d'água, pois o tronco estava em terra firme. Fim das peripécias aquáticas, início de outra história, dessa vez sob o signo telúrico. Querendo celebrar seu reencontro com a terra, depois de uma indigestão de água, e como para melhor caracterizar sua legítima hidrofobia,,t.lQ.é inventou Q_vinho, no qual Deus, em sua infinita seriedade e em sua eterna incapacidade de se alegrar, não pensara ainda. Portanto, que nunca o esqueçamos: a água é uma criação divina; o vinho, uma dádiva do homem. Cada um tem as idéias que pode. Foi perto dos destroços do iate testamentário. sobre o monte Loubar- isso não se inventa-, que Noé plantou suas videiras. Quais foram os bacelas? Chasselas, cabernet, merlot, chardonnay? Certamente o petit verdot é que não, por razões semânticas. De qualquer maneira. não o saberemos. Nem da proveniência das mudas. Deveríamos imaginar que no porão, entre as parelhas de animais. haveria também famílias botânicas e bacelas em binômios? Mistérios. O fato é que Noé plantou, pelo menos, enxertou, talvez. cuidou, certamente, pois colheu após quatro anos de paciência o primeiro de seus cachos de uva. Atenção, pois, para o míldio e o oídio da época, e para as aranhas amarelas: o primeiro viticultor não tinha direito a erro nem a aproximações. As vindimas foram feitas no sétimo mês. Noé amassou, encheu os recipientes. odres e jarras, depois deixou o tempo agir cinco anos, o que foi sábio - os fabricantes de vinho amarelo no Jura constatarão que perpetuam o gesto antigo. No primeiro dia do ano. pois é preciso conservar o sentido do símbolo- tudo o que é inaugural é excepcional, e vice-versa -, Noé decidiu dar uma festa. Para isso, ofereceu um holocausto: um bezerro, um carneiro. sete ovelhas de um ano cada, um bode
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novo destinado à expiação-a etimologia de tragédia se lembra ria disso. Isso quanto aos sólidos. Quanto aos líquidos, Noé recorreu à sua produção e provou do vinho. Provar não é bem a palavra, a julgar pelo estado de Noé após a farra. Os textos o mostram caído debaixo de sua tenda,perdidas todas as faculdades: imagino-o voltando, arrastando-se de bar riga para cima sob o tabernáculo,o hálito carregado, os membros entorpecidos. Vencido pelo etanol, o capitão de longo curso estava a tal ponto arrasado, que perdeu o senso de orientação. As pernas no tapete, os braços no albornoz, ou algo aproximado, estava tão relaxado que, durante o sono, involuntariamente, exibia os testículos sob o toldo. Foi então que começaram as desgraças,pois qualquer falo assim exibido está sujeito ao olhar de um curioso que passe por acaso-no caso, Cam, um dos filhos do bem-aventurado ébrio. Freud ainda não existia, mas ele teria predito o futuro da progenitura traumatizada. Imaginem, ver o sexo do pai! Pior que o dilúvio e o apocalipse juntos. Como reagiu o menino? Nada de terror nem de impressão de ter assistido a um· horror. Nada de anorexia nervosa nem de repentina bulimia. Nada que se parecesse a um sintoma; apenas o riso e o infeliz movimento que o levou a seus dois irmãos para compartilhar os benefícios do acontecimento. Coitado! Sem não tinha senso de humor, e sim de família. Idem Jaffé. Ambos entraram de costas na tenda - um olho nômade conduziria perigosamente ao falo adormecido - e se apressaram em cobrir a nudez do pai. No dia seguinte, Noé soube das proezas do caçula. Como o· pai tinha tanto espírito quanto os dois filhos, não levou a coisa na brincadeira e amaldiçoou _Cam, atraindo sobre sua cabeça todas as desgraças possíveis. E nisso que dá não respeitar o pai, mesmo bêbado de cair! O velho marinheiro, agora viticultor, prosseguiu sua carreira de jurista, publicando certo número de leis,entre as quais as que proibiam a fornicação. Eram necessá rios todos esses centros de interesse para ocupar os seus 950 anos de existência, a idade com que faleceu. Foi enterrado no monte Loubar.
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Gosto de Noé porque ele foi um transportador eficaz, sem dúvida, mas também e sobretudo porque inventou aquilo em que Deus nem ousara pensar: o meio de se tornar leve,de dançar,de conjurar um pouco do peso que nos aflige. Um se preocupa com o fruto proibido; o outro com sua fermentação e sua destilação. O primeiro reparte as trevas, forma o caos, cria a luz e outros trabalhinhos do gênero; o segundo acrescenta o etanol ao qua dro, que sem isso teria ficado incompleto. Noé mostra,como em outra�mitolo_gias o fizeram, quanto foJ em reação ao excesso d� água que o álcool foi inv�n�do. Bem antes de Noé,a epopéia de Gilgamesh também conta,por intermédio de Uptnapishtim, que a água é realmente um líquido incolor,inodoro e sem sabor, uma decocção mineral,um símbolo da tristeza, da natureza insípida do nosso destino sem a loucura. Erª-preciso o vinho, pelo menos, para m9strar a multi.glicidade dos buq�ês possíveis, os matizes "pensáveis" e os aromas imagináveis. Pensem: pétalas de rosa e pêssegos em compota,baunilha e bergamota,trufa e pimentões verdes, couro da Rússia e pederneira, ventre de lebre e cereja... o dilúvio foi o triunfo da água lustral,purificadora. Noé confiou a regeneração que deveria vir à terra e às substâncias que dela se alimentavam. Toda a metafísica do álcool nã_QJ>ode ignorar�ssa transmutação da água em �nho, e�sa passagem do diJúvio à vinha, da razão à uva. Pois a em_br�g_uezé mágica e leva a lugaresque esclare��i:!l, iluminam e informam sobre o funcionamento da razão, sobre seus limites. Não quero fazer o elogio do familiar das bebedeiras que fazem do ébrio um vassalo, um pedaço de carne embebido )1:. em álcool. Essas práticas, que fazem do usuário um objeto que se sujeita e não um sujeito que deseja, não me agradam. Menos por razões moralistas do que por .e_reocu.e_ação_com a escultura de si próprio, com a vontade estétic�pela qual,já o disse em outros livros, deve estruturar-se o temperamento, o caráter. O estado que elogio �b!:._iagu�z que supõe� espírito perturbado pelos Vl!J)Ores do álcool e não abatido por doses excessivas. A prática do vinho, e de outras bebidas mágicas,
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compreende o gosto pela margem, o limite, a franja além da qual sabemos não haver retorno. Ela exige que dominemos nosso corpo com muita precisão e habilidade, que possamos pedir-lhe apenas roçar os universos em que poderíamos perecer corpo e alma confundidos, se o tato, o senso de delicadeza faltassem. Para falar desse estado em que experimentamos a leveza, antes que aconteça uma queda pesada, gostaria de recorrer a um termo que Littré assinala numa discreta nótula do seu dicionário: l 'ivreté*, uma mistura de ivresse [embriaguez, êxtase] e ébriété [ ebriedade, exaltação], baseando-me na composição do concei to, um misto de fascinação pelos abismos e de práticas de abordagens. A nova palavra descontaminaria a embriaguez das ocorrências registradas, após a revolução industrial, no lado do alcoolismo. A embriaguez permitiria a experimentação de urna linha divisória, o melhor convite para não tombar de maneira habitual além dos limites descobertos. A embriaguez do alcoó latra supõe um homem tornado ob�toiinc�a�artir de então, de se abster de bebid�perturbadoras. Muitas vezes sua depen dência está relacionada a uma incapacidade de encontrar em� próprio oque permitiria um domíniQ. uma resistência�dores do .n11mdo. A necessidade de consolo, impossível de satisfazer EOr forças mentais, conduz com freqüência a pedir ajuda a substân cias psicotrópicas, carregadoras de alma, se me permitem uma distorção etimológica. Esse álcool é menos um sinal metafísico de uma riqueza do que testemunha de uma grande miséria, de uma pobreza de temperamento. O alcoolismo é uma noção que apareceu pouco tempo após as circunstâncias que ele caracterizou, contemporâneo dos anos seguintes à industrialização maciça da Europa. Ele patenteava o mal-estar da civilização, um desejo desesperado de responder a condições de vida deploráveis. Já o nepentes dos gregos, essa bebida mítica, tinha por função fazer esquecer as preocupações. Desejada como tal, era a confissão da impotência de urna vontade, o sinal de que ela já naufragara em seu século. A embriaguez do alcoólatra não é...2_ll1eu tema. Noé é testemunha:jLeb.rje.dade me serve_p_gr� exibe li!!\-ª. experimen�yão2 um ex�o metafisico e umaprática dionisíaca
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reatualizada. Nela, na �ira.9ão que conduz a ela, a vontade se col9cu serv� de uma �s_pensão da razão - e não de uma destruição, de um aniquilamento-, seja para descansar de sua tirania, seja para conhecer suas formas, limites, conteúdos e modos de funcionamento. Minha crítica da razão pura encontra aí suas raízes... - O estado que mais me agrada é La griserie* (borracheira]. Gosto de _poder estar gris [cinzento] sem por isso suportar todo o negativo habitualmente associado a essa coi:..=_gue não o é, no dizer dos e�ecialistas. Pois o cinzento é cinza, e dejetos de restos consumidos, ausência de cor, qualidade vivida no vazio. Ele caracteriza a poeira ou os cabelos de quem envelhece, a marca de céus sinistros, o filho da obscuridade para Hegel ou o epíteto usado para os tons gastos. A noite é o momento cinzento, a duração dos gatos, da soldadesca que patrulha sem uniforme, dos homens especializados em tarefas baixas e cuja discrição é a principal virtude. Por que então ficar cinzento? Na Idade Média os artistas representavam Cristo vestido com um manto dessa cor a presidir ao Juízo Final, pois o cinzento é a cor do intermediário entre o negro das trevas e da morte e o branco luminoso da ressurreição. Écomposto-de partes iguais de branco e de preto. o que o caracteriza é sua posição central em relação a todas as cores opostas: entre o amarelo e o azul, o vermelho e o verde, o branco e o preto. No epicentro do campo das forças cromáticas, o cinzento mostra a mistura de luz e sombra que o instala num ponto de equilíbrio: mais claro que o preto, mais escuro 4!Je o branco. Do mesmo modo, nos pontos de interseção real1 a griserie �ue devemos à eb�iedade está a meio caminho das duas cores fundamentais: a razão e a loucura, a sabedoria e o delírio. A sobriedade é branca, a embriaguez absoluta é neg_ra. Agziserie t:;:- vai na dj_re_ção da insensatez2 da paixã_2. Ela mostra quão grande é o parentesco entre as bebidas mágicas e o espírito, a ponto de falarmos em espirituosas para qualificar as primeiras. �efeito, a ebriedade é libertação do espírito, ultrapass� gem dos marcos ou limiteL9ue o contêm e dominam pelas /... operações do entendimento, pelo trabalho de julgamento, pelos
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rigores da lógica e do raciocínio, pelos tormentos da análise. O vinho é catártico. É por isso que entre os vinhos quepart� mente me agradam se encontra o Château-Chasse-Spleen - ele anuncia de maneira sintética o projeto de qualquer vontade dionisíaca, a finalidade de qualquer bebedor que vise à ebriedade. Dionísio é necessári.2.._g!,lando AEolo triunfa em toda a lin__M, �e se dá em nossa civilização. Com Mal-estar na civilização, Freud demonstrou de maneira magistral que o preço a pagar pela instalação de uma forma cultural durável é a renúncia às paixões, aos impulsos e aos instintos. Esse abandono é causa de mal-estar, sofrimentos, dores, melancolias, neuroses. Ele cria pressões, pesos, e transfigura a existência em caminho da cruz. O desejo é considerado uma maldição, o prazer uma falta, o gozo um pecado. Restam a compunção, as ações de graça e os terços. Ou o vinho, entre outras maneiras de desatar tanto o corpo quanto a alma pela dança do espírito que ele permite. A carne relaxa por intermédio dos cinco sentidos. Somente eles expressam a partipris hedonista, a vontade sensual, que faz do corpo algo mais que um receptáculo da alma, que um puro e simples envelope do espírito. Ora, o álcool intervém nessas vias de acesso à intimidade que são ossentTdos�contribui para o entusiasmo, para o senso etimológico, esse estado em que é visível, para dizer com Rimbaud, "o longo, imenso e sensato desregramento de todos os sentidos". Nesse êxtase devido à ebriedade, as sens�õe§_são modificadas. Quando Leibniz trata da incapacidade de aceder, em tempo normal, às pequenas percepções,* sempre imagino o prejuízo sensual que se segue: essa infinidade de percepções que permanecem letra morta porque se dão sem a percepção nem reflexão, sem suficiente grandeza ou em número insuficiente, por demais perdidas na alma ou por demais confusas em seu registro. Elas, porém, tornam-se sensações evidentes quando em condições de ebriedade. O filósofo das mônades as compara ao movimento de um moinho, a uma queda d' água, ao mugido ou ao rumor do mar e a todas as modificações infinitesimais que continuamente afetam o real - a relação que cada um tem consigo próprio, com o próximo e com o mundo em sua totalidade.
O âmago do homem está permanentemente animado por pequenas percepções que o atormentam e o instalam na inquietude. Vertigens são geradas pela multiplicidade de solici tações sofridas pela alma monádica. O corpo é requisitado pela obscuridade que mora em cada um, vestido de si mesmo como de um drapeado que contivesse as pregas do conjunto nas quais se instalam as energias, as forças, os eternos rumores dessas estranhas micropercepções alucinatórias. "Marulhas, brumas, rumores" e "danças de poeira", escreve Deleuze. No fundo da mônade, desentocamos uma infinidade de pequenas pregas que se fazem e se desfazem em todas as direções e se parecem com os objetos fractais de urna identidade em movimentos dionisíacos. As pequenas percepções que fervilham, cegas antes da cons ciência e da reflexão que as constituem, que as estruturam como tais, são no início obscuras, confusas, sombrias. Depois irão compor-se em macropercepções, apercepções conscientes, cla ras e distintas. Não distinguiremos nada das vozes singulares, das palavras particulares, dos verbos precisos que rumorejam juntos num caos vibrátil, magma espermático; em compensa ção, dessa mixórdia surgem formas precisas, sintéticas, estados de consciência nítidos e fulgurantes. Sob a evidência luminosa sempre se ocultª a �&.ré!_confusã� A alma monádica está sujeita a ínfimas variações de inten sidade, a graus quase imperceptíveis, ao quase-nada. Ela sofre o ultraje do aleatório e do difuso, do confuso. Segundo a hipótese leibniziana, somente Deus seria capaz de ter um conhecimento claro e distinto dos múltiplos fragmentos, dos estilhaços e de tudo quanto dela emergisse. Pois somente ele é suscetível de pensamento perpétuo e de auto-reflexão permanente, as condi ções da possibilidade de apercepção. Por sua vez, apesar de nunca estarem sem pensamentos e sensações, os homens nem sempre estão num estado de consciência que os permita realizar a passagem demiúrgica entre as pequenas percepções confusas e a apercepção. Donde o número calculável dos estados precisos e pontuais em que alguns estão conscientemente. A apercepção é forma esculpida pela consciência nas m icropercepções alucinatórias. E é precisamente nesse processo que o álcool vem
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A RAZÃO GULOSA
perturbar os espíritos, modificar os estados de consciência e lançar a feliz confusão que suspende o te!!}Po racional. A ebriedade é geradora das vertigens que duram, ali onde a sobriedade permite o mais rápido acesso às percepções calman tes. Ela é acréscimo de perturbação à perturbação, de ebriedade, de dança ao já vertiginoso balé das pequenas percepções. À inquietude, no sentido etimológico, ela acrescenta ainda movi mento, incapacidade de novas quietudes. Síncopes e ofusca mentos contra claridade e distinção; Dionísio em fúria, mênades e bacantes contra Apolo desejoso de medida, de forma, de calma e de ordem. A ebriedade é o assentimento dado às coreografias das pequenas percepções, antes de qualquer resolução em estado de consciência clara. Ela desamarra, 1 iberta e autoriza a duração das confusões. A fantasia é confortada, assegurada em suas prerrogativas e manda para as calendas gregas os plenos poderes de uma apercepção que significaria rigor. Com eficiência, a griserie afeta as pequenas molas da dinâmica espiritual, na tensão ou no relaxamento; induz uma tirania de sua espécie, multiplicando o afluxo dos fluxos, solicitando as vertigens que já preexistiam à percepção consciente, clara e distinta. As energias, as vitalidades, as forças são volúveis e selvagens no estado natural. Já a ebriedade aumenta a gimnopedia caótica e dionisíaca; perturba, duplica a magia e a fúria; retarda os efeitos harmônicos e conduz diretamente aos caminhos das sinestesias. Uma compreensão normal entenderá a claridade no com posto, quando só confessaria percepções confusas nas partes; uma razão perturbada pela embriaguez duplicará suas capacida des. Os sons se difundem, se difratam, repercutem e soam cõiii novos timbres; adquirem maior amplitude e profundidade, mais �eza ou enca;to. As iml:!gens sofrem o mesmo destino-1. subme-' tidas às mesmas lei�DQ mesmo modo os demais sentidos, todos postos sobo registro das sinestesias: novas corresE_ondênciai rimbaudianas onde, certamente.., a� vo_gais são colori.9.as2 mas também as músicas são luminosas, os tateamentos são sonoros, asfragrâncias são volumosa� F�1tos, especiarias, flores para representar um corpo; cadências, ritmos e harmonias para ex-
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pressar uma pintura; planos, pregas, blocos para contar uma música. Os registros são confundidos, misturados e mesclados em proveito de novas sapiências. O entusiasmo é esse feliz pânico que lev_a, por caminbos inesperados, ao próprio coração das coisas, à sua essência. A euforia consubstancial a esse estado denuncia seu paren tesc�timológíc�q_fll o eudemonismo; o bom demônio, a boa forma, no sentido guas�escolástico...:. A ebriedade supõe entusia�mo �ortanto, posses�ão, submissã.9 e desvar_io. Nas tipologias antigas, e mais especialmente nas que Platão mostra em Fedra, não estamos longe da mântica, do poético, do erótico e do teléstico, todos estados de transporte de si fora de si, de uma parte de si ali onde ela não tem o hábito de atuar. Donde a adivinhação, a inspiração, a criação e a apetência de geração. Apolo, as Musas, Eros e Afrodite, depois Dionísio, ainda e sempre. Todos esses estágios hedonistas supõem a informação de uma parte de si, aquela limitada pela pele, por outra parte de si, sombria, ignorada, habitualmente em ação sob a pele. As partes q� chamfilnQ_s !Jlalditas são solicitadas_ill!la ebriedade, excitadas e postas em açãQ_de desdobramento, de saída do longo sono em qu�fermentam e se enfrag_uecem. Os gregos diziam que uma pessoa nesse estado está entheos, o que alguns traduzem como endeusado. Eu prefiro enthée, por utilizar uma raiz que permite a volta de deus ... Semelhante aos deuses antigos, o bebedor enthée acede à despreocupação, à leveza, ao frescor de quem sente em seu âmago a ação da reconciliação consigo mesmo, o fim da alienação - definida como resultante da hipóstase das partes mais ricas de si mesmo. Ora, o esquecimento de si e a amputação de uma das mais ricas partes de si não acontecem sem dores, conscientes ou inconscientes, sem perturbações e inquietudes. O desejo de ser outro, mesmo por alguns momentos, breves, está enraizado numa insatisfação metafísica anterior. O trágico não está lon�. O desejo psicotrópico �tá enxertado numa frustração exist� cial. O tempo contado, os desejos, mais numerosos que os Q!_a zeres,"a submissão generalizad--ª ao princípio de realidade desde os primeiros momentos da vida, a monotonia de uma existênci�