Razão de um percurso [1a. Edição] 9786588357026


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Razão de um percurso [1a. Edição]
 9786588357026

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MD Magno

N e l m a M e deir os

Razão de um Percurso

Nelma Medeiros

“O que vim fazer aqui? Vim conversar com vocêsserviu sobrede meu A psicanálise no Brasil percurso no mapa da psicanálise. Isto rsenal heurístico e metafórico para porque este percurso, que já dura ntervenções de forte vocação analítica décadas, memodernismo, levando a a cultura. Foi oacabou caso do reconstruir do meu modo obretudo no círculo de Oswald tudo de que sabia e não sabia sobre psicanálise”. ndrade. Em outras ocasiões, novo, MD Magno expõe a Nova rasileirosDesolertes como Monteiro para umoperaram público maior. Ele obatoPsicanálise e Anísio Teixeira à já fizera isto em 1990 (Arte & Fato) e maneira de Freud, mostrando que 1999 (A culturais Psicanálise, Novamente). ertas em formações sintomáticas Destaparalisando vez, sete conferências ontinuam nossos modos “simplórias” proferidas em 2013 na e agir e pensar. Ou ainda, a força Universidade Candido Mendes isruptiva da literatura de João descrevem de modoferramenta acessível o uimarães Rosa, tornada contexto e a emergência e deglutição do entendimentodos conceitos que da montaram a reformatação caniano psicanálise, de modo da psicanálise que ele desenvolvendo naudito no Brasil, a partirvem da década desde os anos 1980. e 1970. A psicanálise se disseminou e A captura dessas conexões se passou a funcionar como aparelho ecantou no pensamento do brasileiro críticocujo de recusa de certas repressões. MD Magno, encontro precoce com Mas, nas três últimas décadas, obra de Freud o empurrou numa também se disseminaram ilha de entendimento no dosregime cacos social do planetário comportamentos cujos aís tropicalista, autoritário, efeitos são parecidos com os da ositivista, concreto e neoconcreto, análise individual. resultado rcaiconoe regime moderno, próprio eComo copiado, desse descompasso, temos a “Zorra” ragmático, rude, ignorante, em que estamos imersos atualmente. atrimonialista e mazombo, mas Neste livro, o leitor acompanha a ambém antropofágico e macunaímico. do autor por denominadores Ao busca combinar o ambiente cultural do comuns para tornar a psicanálise rasil a partir dos anos 1920 com dados mais simples, mais compacta, mais iográficos de MD Magno, suas manejável e “compatível com os nfluências intelectuais e formação movimentos deste século”. rtística, seu encontro com Lacan, o texto os mostra como a psicanálise no Brasil e transformou na psicanálise do Brasil.

Percurso e Recursos MAG MD ZIG/JAC: Magno Nel maMD Medei r os de MD Magno Magno Nelma Medeiros

“O que vim fazer aqui? Vim conversar com vocêsserviu sobrede meu A psicanálise no Brasil percurso no mapa da psicanálise. Isto arsenal heurístico e metafórico para porque este percurso, que já dura intervenções de forte vocação analítica décadas, memodernismo, levando a na cultura. Foi oacabou caso do reconstruir do meu modo sobretudo no círculo de Oswald tudo de que sabia e não sabia sobre psicanálise”. Andrade. Em outras ocasiões, novo, MD Magno expõe a Nova brasileirosDesolertes como Monteiro para umoperaram público maior. Ele LobatoPsicanálise e Anísio Teixeira à já fizera isto em 1990 (Arte & Fato) e maneira de Freud, mostrando que 1999 (A culturais Psicanálise, Novamente). certasem formações sintomáticas Destaparalisando vez, sete conferências continuam nossos modos “simplórias” proferidas em 2013 na de agir e pensar. Ou ainda, a força Universidade Candido Mendes disruptiva da literatura de João descrevem de modoferramenta acessível o Guimarães Rosa, tornada contexto e a emergência de deglutição do entendimentodos conceito que da montaram a reformatação lacaniano psicanálise, de modo da psicanálise que ele desenvolvend inaudito no Brasil, a partirvem da década desde os anos 1980. de 1970. A psicanálise se disseminou e A captura dessas conexões se passou a funcionar como aparelho decantou no pensamento do brasileiro críticocujo de recusa de certas repressões. MD Magno, encontro precoce com Mas, nas três últimas décadas, a obra de Freud o empurrou numa também se disseminaram trilha de entendimentono dosregime cacos social do planetário comportamentos cujos país tropicalista, autoritário, efeitos são parecidos com os da positivista, concreto e neoconcreto, análise individual. resultado arcaiconoe regime moderno, próprio eComo copiado, desse descompasso, temos a “Zorra” pragmático, rude, ignorante, em que estamos imersos atualmente. patrimonialista e mazombo, mas Neste livro, o leitor acompanha a também antropofágico e macunaímico. do autor por denominadores Ao busca combinar o ambiente cultural do comuns para tornar a psicanálise Brasil a partir dos anos 1920 com dados mais simples, mais compacta, mais biográficos de MD Magno, suas manejável e “compatível com os influências intelectuais e formação www.novamente.org.br movimentos deste século”. artística, seu encontro com Lacan, o texto [email protected] nos mostra como391 a psicanálise Rua Sericita, - Jacarepaguáno Brasil CEP: 22763-260do Brasil. se transformou na psicanálise

Razão de um Percurso

Percurso ZIG/JAC: e Recursos MAG de MDMD Magno Magno

Rio de Janeiro - RJ - Brasil (55 21) 24453177

CAPA: Vermeer: O Astrônomo/1668

Alguns especialistas garantem que este personagem de Vermeer é um retrato de Espinosa. Assim também como em outro quadro, da mesma época, O Geógrafo. Vermeer e Espinosa eram sim contemporâneos e se conheciam. Nasceram no mesmo ano de 1632 e morreram jovens: Vermeer primeiro, em 1675 e Espinosa em 1677, ambos na Holanda em sua época dita de ouro. O que aqui importa é o afastamento místico do Mundo (representado pelo globo celeste), embora podendo ser aproximado e mesmo tocado, de modo a poder com-siderá-lo o mais indiferentemente possível, em neutralidade, como dizia Freud. O que bem nos serve como alegoria para o Estatuto da Psicanálise, como preconizamos

. MD

Edição comemorativa dos 40 anos do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro 1975-2015

MD Magno

Nelma Medeiros

Razão de um Percurso

é uma editora da

Presidente Rosane Araujo Diretor Aristides Alonso Copyright 2015 MD Magno Texto preparado por Nelma Medeiros Patrícia Netto Alves Coelho Potiguara Mendes da Silveira Jr. Capa O Astrônomo, quadro de Johannes Vermeer (c. 1668) Foto © RMN-Grand Palais (musée du Louvre) / René Gabriel Ojéda Quarta capa Freud: Foto de Max Halberstadt, 1932, Hamburgo, Alemanha © Freud Museum London Jacques Lacan: Foto de François Leclaire, 1979 © François Leclaire/Sygma/CORBIS MD Magno: Foto de Dilmar Cavalher, 1990 © Jornal do Brasil-cpdoc Editado por Rosane Araujo Aristides Alonso

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Dias, Magno Machado Razão de um percurso [livro eletrônico] / Magno Machado Dias, Nelma Medeiros. -- 1. ed. -- Rio de Janeiro : Novamente Editora, 2020. PDF ISBN 978-65-88357-02-6 1. Psicanálise 2. Psicologia I. Medeiros, Nelma. II. Título. 20-45467

CDD-150.195 Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129 Direitos de edição reservados à: Rua Sericita, 391 – Jacarepaguá 22763-260 Rio de Janeiro – RJ Tel.: (021) 2445-3177 www.novamente.org.br



Exergo “Tupi or not tupi that is the question.” OSWALD “É tarefa da Ciência reduzir as verdades profundas a trivialidades.” Niels BOHR “Mas, com um movimento íntimo, suprirei Doce, doce, doce veneno aos lábios da época Que, embora não hei de fazer para enganar, Para evitar ser enganado pretendo aprender.” SHAKESPEARE Dedicatória Para você! Agradecimento Aos gigantes sobre cujos ombros me portei. MD

SUMÁRIO Prefácio 13

Percurso e Recursos de MD Magno Nelma Medeiros

1 a 2. Os primeiros anos de formação, de Campos dos Goytacazes à Escola Preparatória de Cadetes em Fortaleza – Efeitos da conexão entre a literatura infanto-juvenil de Monteiro Lobato e a descoberta de Sigmund Freud. 3. A referência a Villa-Lobos, articulada à leitura de Alfred N. Whitehead – A razão de Bertrand Russell e o entendimento psicanalítico do surracionalismo de Gaston Bachelard. 4 a 11. O encontro com Anísio Teixeira – Diálogos com o pragmatismo e a comunicação: John Dewey, Richard Rorty, Ralph Waldo Emerson e Marshall McLuhan. A polivalência e a politecnia das atividades praticadas em teatro, música, artes plásticas, literatura, artes gráficas e editoração. 12 a 16. O experimentalismo pós-moderno de Aboque/Abaque – Primeiros efeitos da leitura de Lacan: o inconsciente como espelho (via João Guimarães Rosa) e a obra de arte como função analítica (via Marcel Duchamp) – Análise, trabalho, ensino e estudo em Paris (1977-1978). 17 a 20. Consensos e dissensos na transmissão lacaniana no Brasil e seus efeitos internacionais. 21 a 24. A concepção da heterofagia (via Oswald de Andrade) como possibilidade de uma Psicanálise do Brasil. 25. A fundação da Causa Freudiana do Brasil: de Brasília (1984) a São Paulo (1988), uma aventura (de)lenda. 26 a 28. Da heterofagia à proposição do Maneiro como terceiro lugar em relação ao Barroco e ao Clássico: a sexualidade concebida como estilística. 29. Da heterofagia ao mazombismo (via Anísio Teixeira): neurobrás ou a análise do “sintoma Brasil” – “Lacan é um pensador terminal”. 30. Do Colégio Freudiano à UniverCidadeDeDeus. 31 a 32. Breves indicações conceituais da Nova Psicanálise à luz da virada gnoseológica do século XXI. 17

ZIG/JAC: MAG MD Magno 1. A Psicanálise não é mais Aquela? Considerações iniciais do percurso do autor no mapa da psicanálise – Elementos do mapa freudiano: complexo de Édipo, a sexualidade como princípio lógico e funcional do psiquismo e a pulsão de morte – Elementos do mapa lacaniano: a aproximação com o estruturalismo, a vontade matêmica e a apropriação de raciocínios topológicos – A desconfiguração sintomática contemporânea pela tecnologia como efeito de ana-lysis – O momento contemporâneo: “passar a limpo a psicanálise e procurar denominadores comuns para torná-la mais simples”. 159 2. Conceituação “Toda produção mental é ficção” ou “fixão” – Concepção da pulsão de morte como “Haver desejo de não-Haver” no sentido de desejo de impossível – Haver e Ser e sua distinção via Bruit Secret (“Ruído Secreto”) de Marcel Duchamp – Os “conceitos fundamentais” da psicanálise (Lacan) e a pulsão como “único conceito fundamental” (Magno) – “Nossa mente é estruturada como um espelho” – A razão do recalque: a quebra de simetria originária e outras modalidades de recalque (Primário e Secundário) – A Artificialidade do Haver: artifícios espontâneos e artifícios industriais – Por que “retorno de Freud” – Três vias possíveis de entendimento da sintomática do mundo, desde o século XX: morfose estacionária, morfose regressiva ou morfose progressiva. 175 3. Mais conceituação Paradigma da psicanálise é sexual e seu estatuto é místico – Ética da psicanálise é a da Identidade e da Indiferença – Da ética da psicanálise decorre uma Diferocracia como governo da Diferença – O campo de operação da psicanálise: proposição de uma Gnômica – “A psicanálise é o Pensamento Perplexo” – Conhecimento absoluto de Haver. 193

4. 1AR / 2AR / OR: Etologia e Neo-Etologia Quebra de simetria e formações do Haver – Primário: formações do vivo como autossoma e etossoma – Princípio de Catoptria explica o funcionamento das Idioformações – Emergência de Secundário por competência de Revirão – Secundário é competência de articulação linguageira e de produção cultural – Funções recalcantes do Secundário articuladas às do Primário produzem neo-etologia – Pressão recalcante produz racismo e xenofobia. 209 5. O Creodo Antrópico Apresentação do Creodo Antrópico como fundamentação sintomal da sequência histórica da nossa espécie e da Pessoa – Tópica Primário / Secundário / Originário é a ordenação sintomática do Creodo – Primeiro Império ou Império d’Amãe é momento inaugural da espécie como produtora de próteses – Segundo Império ou Império d’Opai é passagem da referência do Primário ao Secundário – Terceiro Império ou Império d’Ofilho: Secundário é hegemônico como ordem cultural – Vicissitudes históricas da fundação e desenvolvimento do Terceiro Império no Ocidente – Quarto Império ou Império d’Oespírito: surgimento de referência ao Originário a partir das produções secundárias e protéticas – Pensamento de Freud foi situado no Segundo Império e o de Lacan no Terceiro Império – Projeto progressivo da Nova Psicanálise – Quinto Império ou Império do Amém e a referência hegemônica ao Originário. 227 6. Subsequências do Creodo Antrópico Movimento do Originário é exercício perene de libertação – Análise é substituição permanente de recalque por juízo foraclusivo – Paradigma de pensamento da psicanálise é sexual – Polimorfia da sexualidade na criança – Édipo e castração como modelos de entendimento da sexualidade em Freud – Formulações lógicas de Lacan sobre a sexualidade – Na nova psicanálise o conceito de Revirão formula a sexualidade e suas expressões – Sexo da morte, sexo resistente, sexo consistente e sexo resistente – Correlação entre sexualidade e creodo antrópico – “O sexo de cada um é singular”. 249

7. Homo Zapiens Surgimento do homo zapiens no Quarto Império – Protética possibilitou esfacelamento e reagrupamento das funções informativas – A NovaMente é a teoria que descreve a nova posição de Quarto Império – Pessoa é polo aglutinador de formações primárias, secundárias e originária – Pessoas são polares, com focos e franjas (estas infinitamente longas) em regime permanente de transa de formações – Três formulações NovaMente para o século: 1) morfologia ou teoria das formações; 2) estatuto místico da psicanálise e a ética do anti-narciso; 3) teoria do conhecimento (gnômica) e teoria política (diferocracia). 269 Ensino de MD Magno 290 

Prefácio SÉ S/A Je moebiens la canne. Para me a-segurar dos dois lados? Mais quand même ainda vale perguntar: ondé quefica maintenant a Sé da Psicanálise Sociedade Anônima? A séde não necessariamente eclesiástica, tal como com as duas Igrejas fundamentais listas y realistas com todo o seu sucesso n’Americalatina: a de Ipona e a de Lecona? Mas por onde? Mas é comme? Caracas!? A questão não sendo geográfica. Se não for n’A Cidade de Deus, também não é lá na Cidade dos ‘Home’. Ou viceversa...mente? Sem nem zinha esperança de ter sucesso onde A Psicanálise fracassou. Pelo menos enquanto estiver vivo – como é de praxe na mazombolândia que parece mesmo universal. Como disse e se vê, não ando sem bem-gala: que La canne à moi sempre serviu de apoio, contra a fraude freudida, para poder melhor claudicar: para a frente, de preferência, sem ter que necessariamente recaranguejar – como tem sido mais ocaso. Mas o Mestre me mandou sozinho repensar. E quis obedecer. E aí me comecei, à minha revelia, a me-ditar modificados lemas que a-prendi (depois soltei). Não sei por que – talvez somente por asar (de bater asas, quer dizer). FOI ASSIM QUE NASCERAM CERTAS CORREÇÕES: L’Inconscient est structuré comme on l’engage. Saporquê? Porquele é Bífido em qualquer lugar – na hainamoration pelo que Há. E pode assim ser engajado aquieali, no hicetnunc de uma cada transação, para o mais ou para o menos do seu sentido ocasião. (O que não quer dizer que seja HermAfrodita ou AndróGino, como se supõe cusanamente – o que, 13

bem ao contrário, é deiscência rachada, e não ascensão suturante.) Se houver vontade de “significante”, aquele tal, então que seja um Halo de verdade: à espera sempre de facão – sem o qual não se recorta bem, conforme com Omundão. Daí que ça depend de como a gente o engaja: se de onda ou de partícula – a se ver (neinung?) na di-físsil apreensão. L’Inconscient est le discours de l’Outre. Quer saber? Aquilo que ultrapassa sem deter. Paralém de malebem, paralém do... que quer que queira alguém. O que não tem boceta nem nunca terá, o que não tem caralho... Comele sediz: “eu Falo no Terceiro, aliás dever-dade Oprim’eiro”. Mas cuzinho ele tem. E boquinha também. E com Poderes de HiperDeterminação. No Revirão do Umbivisto (Unbewusste do A-lemão). Graças, adeus! O Estalo do Espelho garantindo as quepossíveis transações. Para mais do que a mera reflexão. Le Non Du Maire? É só mudando a referência de situação para o Segundo Império, do agora Prefeito titular, a tutelar o poronde toda gente vai-ter-mesmo-que passar (lembrar da estorieta da edipose em calúnia). Mas pas de forclusion fazendo amalucar. Pelo contrário: abuso de Poder, abuso de função (HiperRecalque de pesada mão). La métaphore du PèreNoel (o velhinho pedófilo que bota-e-tira toda esperança de felizcidade a cada novo cidadão), no assédio cultural. Afora a carga inexorável do Creodo Antrópico amarrando com recalques espontâneos e industriais nosso Desejo Maior de Impossível... libertação. E também, nem Sub-jeto nem Ob-jeto: Teoria das Formações, ou melhor, Teoria das Transas entre Formações, quer dizer, Trans-jeto (com Foco e Franja e tudo mais...). Quem inventou foi O Pato Lógico, muito lá atrás: Ex-citação, In-citação, Re-citação (se alguém se lembre deste então). Sem esquecer que toda transa é sexual, conforme o indefectível e inarredável paradigma desde Freud.  14

{Interlúdio explicativo e sanatório: não é proibido dizer Toda. Mesmo o que não comparece enquanto tal, como “OEspaço”, como “O Tempo”, e mesmo “O TempEspaço” conjetural do louvado Einstein, nem porisso deixam de aparecer no que é local, no regional das transas entre as formações, como efeito ideal. Dizer Todo não indica nenhum Universal: o dito paratodo é só isso, limitação. Patota da pastoute é todagente, afinal.} E o Estatuto dessa Psy é Místico: em conformidade com qualquer postura mística = afastamento do Mundo para vê-lo afinal: indiferentemente, paralém de mal e bem (neutralidade de Freud). Outracoisa é o estatuto da Ética que nos conduz ao Cais Absoluto: infinito e perene processo de indiferenciação. E ninguém precisa mais do que ver (drängung) a obviedade do Recalque para entender as possíveis Morfoses: Progressiva, Estacionária, Regressiva – em sua funcionalidade sinto-mal (inarredável malestar no seio deste Haver). E tudo isso porcausa do t-e-r-r-í-v-e-l REVIRÃO. E para terminar, depois de quasetodo aquele pensamento terminal, ver o Sim,toma! do incroyable James Joyce. Aliás bem compatível com tudo mais que foi DuChamp, como exemplo foi também aqueloutro regirante carRoussel, bem como dantes L’autreAmont, assim como aquela surrealistada que aliás foi frequentada por Lacan. Vontade de dizer direto o Umbivisto no seu Bífido existir: seu ex-sistir a qualquer lalangue - necessariamente re-partida, spaltungada na clivage, pela inarredável hemiplegia do clinamado regime macro desse nosso Haver. É claro que sem conseguir, a apenasmente simular. Mas já é mais e mais e muito mais do que um sinthome singular. Riverrun: Maisquandmême, conforme disse de começo, j’aime bien Lacan (aille aussi?). Para dançar no Carnaval 2015

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Nelma Medeiros

Percurso e Recursos de MD Magno

1. Em 28 de julho de 1975, Jacques Lacan enviou uma carta a Magno Machado Dias, então professor universitário e do magistério público estadual. Nela, agradecia o convite que recebera para ir ao Rio de Janeiro, sugerindo que poderia fazê-lo após a segunda quinzena de outubro daquele ano, pois por essa data já tinha agendada uma viagem à Universidade de Yale, nos Estados Unidos. Não obstante, continuava Lacan, se seu correspondente quisesse ir a Paris no início de setembro, um encontro podia ser arranjado. Para tanto, fornecia-lhe um contato telefônico1. O convite foi aceito e, na data proposta, MD Magno desembarcou em Paris. A história da psicanálise no Brasil daria uma guinada a partir daí. Inevitavelmente também o Brasil – sua história, cultura e assentamento sintomático – não passaria incólume, pois da obra desse brasileiro adviria uma série de intervenções e reflexões sobre o país que era o seu. O professor Magno Machado Dias ingressara no magistério estadual através de dois concursos públicos, realizados pela administração Carlos Lacerda, respectivamente em 1965 e 1966, tendo sido aprovado em ambos, em primeiro lugar, na habilitação para Desenho. Já no início do exercício da primeira matrícula, fora transferido para o Instituto de Belas Artes, que se transformaria, em 1975, pelas mãos de Rubens Gerschman, na Escola de Artes Visuais, onde Magno realizaria seu primeiro Seminário, Senso contra Censo: da Obra de Arte, em 1976, após seu retorno de Paris no ano anterior. A segunda matrícula lhe viabilizou a transferência, em 1974, por intermédio de Eduardo Portella2 , para a Secretaria de Cultura, Desportos e Turismo do 1

O leitor verá que algumas informações sobre o percurso intelectual de MD Magno foram retiradas do Acervo do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro – atualmente sob responsabilidade da UniverCidadeDeDeus –, que reúne cartas, fotos e outros documentos (ofícios de órgãos públicos, jornais e outros veículos de divulgação universitários, revistas literárias regionais, etc.), ainda inéditos, aos quais faremos referência sempre que o texto se basear em informações lá obtidas, como a carta de Jacques Lacan citada. O acervo está sendo organizado, razão pela qual forneceremos o número de classificação provisório, com numeração sequencial e sem critério classificatório imediato, que obedece exclusivamente ao processo inicial de identificação e digitalização. A carta mencionada está identificada com o nº 472a-472b. 2 Em 1974, o baiano Eduardo Mattos Portella (1932-) estava à frente da Secretaria de Cultura

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Percurso e Recursos de MD Magno

Estado da Guanabara. Como representante da Secretaria junto à Maison de France, articulou a vinda de Lacan ao Rio, que não aconteceu, o que levou o brasileiro a Paris. Em meados da década de 1970, Magno já era professor universitário conhecido no Rio de Janeiro: atuava na PUC-Rio, como professor de semiologia; na Faculdade Hélio Alonso, lecionando teoria da comunicação; nas Faculdades Integradas Estácio de Sá, onde, como diretor de ensino, implantou um departamento de cultura, um jornal, uma rádio universitária e uma editora; na Escola de Artes Visuais do Parque Lage de onde seria transferido para a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, no departamento de educação artística; e na Escola de Comunicação da UFRJ, que ajudara a criar e onde buscaria espaço para produzir parte de sua obra teórica e de transmissão da psicanálise3. O Seminário de MD Magno, iniciado no Parque Lage passaria ainda pelo Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, então sediado no bairro do Leblon4, e pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), antes de permanecer por 16 anos no campus da Praia Vermelha da UFRJ, onde foi encerrado em 1998, quando da aposentadoria do professor naquela instituição. Essa produção continuou ininterrupta, em Falatórios, Conferências e SóPapos, como o leitor pode testemunhar com o livro que tem em mãos. Nascido em Campos dos Goytacazes em 17 de janeiro de 1938, MD Magno adquiriu e desenvolveu muitas habilidades ao longo de sua vida estudantil e profissional, nada fazendo crer que se dedicaria à psicanálise como do Estado da Guanabara, como diretor do órgão. Figura pública atuante nos meios políticos, intelectuais, acadêmicos e literários, àquela altura já acumulava experiência no exercício de funções técnicas e administrativas, na Secretaria de Educação do Estado da Guanabara e no Ministério da Educação e Cultura, no qual viria a ocupar o cargo máximo, entre 1979 e 1980, no governo do general João Batista Figueiredo. Doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com ampla atuação docente e administrativa nessa universidade, foi professor de Magno no Doutorado em Letras (1975-1980). 3 Memorial do Prof. Magno Machado Dias apresentado à Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1980, por ocasião de concurso público prestado para Professor Adjunto da Escola de Comunicação no departamento de técnicas da comunicação daquela universidade. Acervo do CFRJ, doc. 359a-359j. Salvo indicação em contrário, as informações biográficas que se seguem foram retiradas desse documento. 4 Avenida Ataulfo de Paiva, 1079, subsolo.

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Razão de um Percurso

espaço de produção teórica e atuação clínica. Enquanto seguia o curso primário e o ginásio, no Liceu de Humanidades de Campos, estudou piano e teoria musical no Conservatório de Música de sua cidade5, interessando-se também pelo teatro e pela pintura, tendo participado de apresentações públicas nessas áreas. A partir dos 16 anos, prosseguiu seus estudos na Escola Preparatória de Cadetes do Exército, em Fortaleza, e chegou a fazer o primeiro semestre na Academia Militar de Agulhas Negras (AMAN), em Resende (RJ), que abandonou em 1957, desistindo definitivamente da carreira militar.

2. “Aquele homem sozinho, / Que não fala com ninguém. / Cético não acredita em amor, / E menos em filantropia. / Vive lendo, sonhando... / Sonhando com alguém, / Com todos, / Com ninguém (...) / Alma fria, / Fria e só... / Segue o caminho, / Traga o cigarro, / Mesmo olhar, / Mesma expressão... / Mas ele é LIVRE, / NÃO TEM ILUSÃO”. Assim o jovem cadete se expressou no poema intitulado “Aquele Homem”, publicado na Revista da Escola Preparatória, em 19566. Dentre tantas conjeturas a se fazer acerca desse testemunho juvenil de liberdade associada a decepção, ocorre-nos que uma delas foi a conjugação corrosiva de Monteiro Lobato com Sigmund Freud, que, da infância à adolescência, marcou sua formação. Através de Lobato, Magno entrou em contato com um arsenal de argumentos demolidores da religião, do conformismo e da co-naturalização, que continuaram a ser alvo de reflexão e crítica em sua produção em psicanálise. O que temos na literatura infanto-juvenil de Lobato? Um exercício de disponibilidade, na mão contrária da norma, do “é assim” como já estabelecido e que não se pode mais alterar. Através dos personagens e de suas aventuras no Sítio do Picapau Amarelo7, o escritor paulista transmitia uma 5

Acervo do CFRJ, doc. 392a-392f, 399a-399h e 400a-400d.

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Revista da Escola Preparatória de Fortaleza, ano XII, dez. 1956, n. 13, p. 27. Acervo do CFRJ. Monteiro Lobato começou a publicar estórias voltadas para o público infanto-juvenil no início da década de 1920, atuando nessa frente literária até 1944. Essa parte de sua obra literária está organizada em 17 volumes: Reinações de Narizinho (1931), Viagem ao céu e O Saci (1932); Caçadas de Pedrinho e Hans Staden (1933); História do mundo para as crianças (1933);

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Percurso e Recursos de MD Magno

atitude artificialista de indagação, questionamento e eficácia, aliado a uma vontade de transformação, cultivada por uma vocação científica de buscar a lógica de articulação das coisas, para poder desmontá-las, remontá-las e, se possível, simplificá-las. Em nome do quê? Da curiosidade, do buscar saber como as coisas se articulam, e não o que elas são, questão estéril do eruditismo e da falação vazia. Além disso, Lobato não hesitava em lançar mão de estratégias explicativas – sempre por meio das “asneiras” da boneca Emília – que não mostravam nenhuma reverência ou respeito a autoridades de saber. Funis serviam para facilitar o entendimento de operações aritméticas; uma cidade inteira era concebida para mostrar os procedimentos da gramática; a natureza devia ser reformada – afinal, os humanos precisavam de quatro olhos na cabeça, as vacas passariam melhor com rabo nas costas para espantar as moscas, além de outras necessárias mutações, como passarinhos ninhos, percevejos cheirosos, moscas e pernilongos sem asas, borboletas “pegáveis”, livros comíveis, leite que assobiasse ao ferver. De preferência, que as coisas se miniaturizassem, pois, quanto mais se aperfeiçoam, menores ficam. Por fim, que se dessem razões e argumentos, ao invés de decretos, conjugando mudança com planejamento. Eram todas ideias com alguma lógica ou razão, de modo que Lobato mostrava que havia conhecimento disperso nas coisas, fossem elas estapafúrdias à luz do senso comum, fossem úteis, ponderáveis ou simplesmente plausíveis, se lhes fosse dada alguma atenção, desde que longe do regime do “já sabemos”, formatado pelas amarras inconscientes do recalque bem sucedido. Aliás, esse é um dos processos agonísticos da chamada “infância”, quando as aptidões e talentos de investigação das crianças podem (costumam) ser podados pelo entorno, fazendo delas marionetes insabidas de seus processos mentais de exclusão e codificando-lhes uma moral da qual, ao longo da vida, se desvencilharão ou não. Em carta a Lobato, datada de 1937, provavelmente Memórias da Emília e Peter Pan (1936); Emília no país da gramática e Aritmética da Emília (1934); Geografia da Dona Benta (1935); Serões de Dona Benta e História das invenções (1937); D. Quixote das crianças (1936); O poço do Visconde (1937); Histórias de Tia Nastácia (1937); O Picapau Amarelo e A reforma da natureza (1939); O minotauro (1937); A chave do tamanho (1942); Fábulas (1922); Os doze trabalhos de Hércules, em dois volumes (1944).

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escrita de Caetité (BA), onde se auto-exilara, em razão da escalada autoritária do governo Vargas e da perseguição da Igreja Católica, Anísio Teixeira declarava: “vivemos entre fantasmas, e os fantasmas são cousas realíssimas para os que neles acreditam. E os que neles acreditam é que estão mandando (...)”. Mas fazia a ressalva, quanto aos livros do amigo, saudando “o mundo sem fantasmas que você está a criar para as crianças”8. Quanto a Freud, sua existência é “descoberta” na biblioteca da Escola Preparatória. Sim, Freud, antes ainda que Marx ou Nietzsche, além do fato de Platão ter sido lido como literatura. A lógica do inconsciente atingiu em cheio o jovem cadete, transformando-se em chave de leitura dos acontecimentos e escantilhão de análise, a funcionar doravante como atrator das diferentes possibilidades de inteligir e produzir mundo, em suas inumeráveis expressões e níveis de abordagem. Foram lidos, primeiro, os textos que Lacan viria a considerar “canônicos”: A interpretação dos sonhos (1900); A psicopatologia da vida cotidiana (1901) e O chiste e sua relação com o inconsciente (1905). Depois dessa descoberta, o estudante conseguiu que lhe presenteassem com a obra completa na tradução então disponível em português9. Logo depois de deixar a AMAN, aos 19 anos, começou a fazer análise com um psicanalista de língua alemã, que falava meio mal o português, e com um nome quase freudiano, Dr. Freund, que, traduzido, significa “amigo”10. Nos anos seguintes, continuou a ler Freud, em espanhol e inglês, bem como a biblioteca psicanalítica que pôde alcançar, como Alfred Adler, Carl G. Jung, Sándor Ferenczi, Otto Rank, Anna Freud, Melanie Klein, Otto Fenichel e D. W. Winnicott. Interessou-se igualmente pela hipnose, que, no Brasil, a partir da década de 1950, tinha no psicanalista austríaco Karl Weissmann, residente no país, um de seus mais conhecidos pesquisadores e divulgadores. Quase três décadas mais tarde, 8

Conversa entre amigos: correspondência escolhida entre Anísio Teixeira e Monteiro Lobato. Org. Aurélio Vianna e Priscila Fraiz. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas/CPDOC, 1986, p. 83. 9 Em evento comemorativo dos cinquenta anos da morte de Freud, em 1989, Magno relatou seu primeiro contato com a obra freudiana e as cercanias teóricas da psicanálise. Cf. Boletim Maisum, nº. 81+1, 20 abril 1990, p. 4751-4754. 10 Informação fornecida por MD Magno.

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uma ressonância desse interesse ecoaria, no quadro da pesquisa sobre “Os primórdios da psicanálise no Brasil”, levada a cabo por membros do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, que tiveram oportunidade de entrevistar Weissmann, então octagenário. O resultado saiu publicado no Boletim Maisum11.

3. De volta de Resende, em 1957, Magno prestou exame para a Escola Nacional de Belas Artes, ali ingressando nos cursos de professorado de Desenho e Pintura, concluindo o bacharelado e a licenciatura na antiga Faculdade Nacional de Filosofia da então Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sua multifuncionalidade, por talento e necessidade, o lançou em iniciativas que, heterodoxas à época, podem hoje ser colocadas na conta de um estilo, em gestação, que dispensou o raciocínio de fronteiras, lutou contra o sintoma das hierarquias prévias e atuou na bifrontalidade das coisas. Um pouco como, aqui e ali, se fazia sentir no que os críticos literários e de arte vinham denominando de “pós-moderno”, desde meados do século XX, a saber, uma radicalização da modernidade que extravasava os limites das artes visuais e da produção artística e literária em geral e invadia o cotidiano, reclamando a participação das pessoas12. A “tecnologia elétrica”, como denominava Marshall McLuhan, evidenciava os processos de intermediação (intermedia), ao deslocar a experiência do conteúdo para o processo; do sintoma representacionista de um sujeito que aborda o objeto (a realidade) para a interdependência dos registros (que as mídias digitais banalizariam três décadas depois); da hierarquia e autoridade dos detentores do saber para a comunicação generalizada da informação (mesmo que ainda concentrada nos 11

Um alentado estudo, publicado originalmente em inglês, em 1970, por Henri F. Ellenberger, apresenta um amplo mapeamento dos diversos fenômenos indiciadores da presença do inconsciente e seus efeitos na espécie humana, ressituando uma longa tradição de práticas terapêuticas, do xamanismo ao espiritismo, passando pela hipnose, pelas quais Freud não apenas se interessou como também forneceu-lhes um lugar na unificação que propôs e que chamou de psicanálise. Ver ELLENBERGER, Henri F. L’histoire de la découverte de l’inconscient. Paris: Fayard, 1994. Sobre o interesse pela hipnose no Brasil, ver WEISSMANN, Karl. Hipnotismo: psicologia, técnica e aplicação. Rio de Janeiro: Livraria Prado, 1958. A entrevista com Weissmann foi publicada em Boletim Maisum, nº 74, 1988. 12 ANDERSON, Perry. The origins of postmodernity. London: Verso, 1999.

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meios de comunicação de massa, como rádio, televisão, cinema e jornais, com sua velocidade dependente de satélites). Sem respaldo de fortuna ou berço, Magno ganhava a vida de recém-casado vendendo apartamentos e dando aula particular de matemática13. Como secretário de artes do Diretório Acadêmico da ENBA, o jovem universitário participou da criação da Galeria Macunaíma, incorporada à FUNARTE, a partir de 1975, além da realização da primeira exposição de artes plásticas em via pública. Criou a secretaria de música Heitor Villa-Lobos, em convênio com a Escola Nacional de Música, colocando no austero espaço da ENBA, em 1963, Hermínio Bello de Carvalho, que Arminda Villa-Lobos lhe apresentara, proferindo uma conferência sobre sambas e sambistas cariocas, acompanhado de Ismael Silva, Cartola, ZéKeti e Nelson Cavaquinho14. Compositor, produtor musical e escritor, Hermínio Bello de Carvalho, nascido no Rio de Janeiro, em 1935, vinha se destacando como repórter e colunista de discos da revista Rádio-entrevista, além de produzir programas para a Rádio MEC, na linha de pesquisa em defesa da musicalidade brasileira, como antes o fizeram Mario de Andrade e Heitor Villa-Lobos. Pouco tempo depois, em 1965, apresentou Clementina de Jesus ao Rio de Janeiro, no espetáculo Rosa de Ouro, do qual foi diretor-roteirista, que contou com a participação de Turíbio Santos e onde também estreou o jovem Paulinho da Viola15. A presença do samba carioca na ENBA era um exemplo de repúdio ao raciocínio de fronteira, acompanhado de uma denúncia, vigorosa no Brasil desde, pelo menos, Oswald de Andrade, sobre o academicismo esterilizante que insistia em se sobrepor ao que havia de criativo no país. Naquele mesmo ano, por ocasião da inauguração da Secretaria de Música, na presença de Arminda Villa-Lobos, convidada de honra da solenidade, o estudante secretário tomou 13

Magno Machado Dias se casou com Annita Iedda Cardoso no dia 23 de abril de 1960. Annita era sua amiga de infância, estudante na Escola Nacional de Música, onde se formou em piano, vindo a lecionar em diversas escolas do Rio de Janeiro, incluindo a Escola de Música Villa-Lobos e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). 14 Acervo do CFRJ, doc. 395a – 395c. 15 ALBIN, Ricardo Cravo. Dicionário Houaiss Ilustrado: Música Popular Brasileira. Editora Paracatu, 2006. Uma versão online do dicionário está disponível em: http://dicionariompb.com.br/.

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a palavra para criticar a “exagerada departamentalização” da universidade, de efeito “esterilizante para a cultura do país”16. A fonte do discurso era o filósofo e educador britânico Alfred North Whitehead, cujas ideias Magno conhecera ainda nos anos de educação militar e que viria a reencontrar sob a orientação de Anísio Teixeira17. O texto base era Os fins da educação e outros ensaios, coletânea de conferências proferidas entre 1912 e 1928, onde o autor travava sua batalha contra a educação “nociva”, que se fazia com ideias “inertes”, apenas recebidas, e que não eram testadas em novas combinações, o que resultava em rotina e pedantismo. Whitehead defendia a educação como “desenvolvimento próprio” da pessoa, uma “aquisição da arte de utilizar os conhecimentos”, de difícil transmissão, e cujo acabamento seria a conquista de um estilo, em sentido estético. O discurso do estudante secretário prosseguia, lembrando que praticamente não havia relação entre a escola de Artes Plásticas e o acervo cultural do país em outros domínios artísticos. Ora, argumentava, um processo estético abrange, por definição, todos os meios de criação, sejam eles plásticos, literários, musicais ou dramáticos, pois não se aprende arte nem por intermédio de “meia dúzia de técnicas”, nem pelo eruditismo vazio da cronologia histórica. Antes, seria necessário que uma escola de arte – na impossibilidade de emprestar talento ou gênio às pessoas – transmitisse e ampliasse o acervo cultural, na medida da demanda do país e, num sentido mais lato, do mundo. No que dizia respeito à função de uma secretaria de música, sua proposta era colocar os alunos em contato com a excelência do que se fazia “com o que de mais perto nos circunda”, a saber, a música brasileira. Não apenas por uma questão de “nacionalidade”, mas, sobretudo, pela estatura da excelência em música, encarnada em Heitor Villa-Lobos, que o academicismo insistia em desqualificar e enxotar. Mas, ironizava o jovem Magno, eram tão 16 Citamos textualmente o Uirapuru, nº 1, Ano I, maio 1963, órgão de divulgação da Secretaria de Música da ENBA, que publicou o discurso do então secretário, Magno Machado Dias, intitulado “Palavras para a inauguração da Secretaria de Música do Diretório Acadêmico da ‘Escola Nacional de Belas Artes’, em 09 de maio de 1963”. Acervo do CFRJ, doc. 394a-394f. 17 Em 1969, o livro Os fins da educação e outros ensaios foi editado por indicação de MD Magno pela Companhia Editora Nacional, como v. 7 da coleção Cultura, Sociedade, Educação, sob direção de Anísio Teixeira.

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somente as hienas, que, espreitando a ausência do mestre, se refestelavam com o rebotalho. Quanto a Villa, ele era “a música”. E concluía, considerando que, “talvez, necessitemos ser mais nós mesmos”, o que implicava “incentivar e conhecer nossas próprias realizações”18. Não imaginava o estudante quão premonitórias seriam suas palavras. Artificialismo, não-conformismo, transposição de fronteiras: hábitos mentais e arquivos sintomáticos que foram se instalando, na medida da frequentação de temas, textos, autores, presenças, que iam acrescentando à formação do impensável psicanalista, à qual se juntou Bertrand Russell e seu Por que não sou cristão19. Lendo hoje esse libelo do filósofo inglês, ainda se sente o impacto de suas palavras, seja quando as remontamos ao momento histórico em que foram proferidas, seja quando as consideramos no contexto contemporâneo. Nessa conferência, realizada em 1927 na Prefeitura Municipal de Battersea, ao sul de Londres, Russell discorre de maneira irônica sobre as incongruências e falácias da crença, dos dogmas e dos argumentos pseudointelectuais a favor do cristianismo, incluindo a pseudoexemplaridade da figura de Cristo. Há um freudismo larvar em seu texto, pois supor a decadência da vida humana e da vida em geral no Planeta, inseridas na dinâmica entrópica do universo, é sustentar um argumento mais lógico e deceptivo do que acreditar em um plano divino teleologicamente orientado. Incluem-se ainda o ceticismo sobre a existência histórica de Cristo, as incoerências de seus ensinamentos e a inferioridade de sua moral, quando comparada à de Sócrates e a de Sidarta Gautama20. Por fim, Russell aponta o dano psíquico causado pela religião e pelas igrejas, na razão direta da crença dogmática, e a crueldade que lhes é intrínseca. Quando se lê esse livro de Russell, vê-se que não é só uma mera questão de argumento lógico, e sim de atitude despretensiosa, mas muito eficaz, que solicita engajamento do interlocutor, acompanhado de uma espécie 18

Acervo do CFRJ, doc. 394a-394f e 359a-359j. A palestra Por que não sou cristão acabou dando título ao livro, que reúne outros ensaios sobre religião e assuntos afins, publicado na Inglaterra em 1957. 20 Esses argumentos, ampliados e mais fartamente documentados, se tornaram banalidades no início do século XXI. Cf. FO, Jacopo, TOMAR, Sergio e MALUCELLI, Laura. O livro negro do cristianismo. São Paulo: Ediouro, 2007. 19

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de “espírito científico”, à maneira de Gaston Bachelard, aplicado ao teste e, se for o caso, à refutação e reconstrução de um argumento. É um exercício de anticrença, com base no cultivo perene da possibilidade de juízo de escolha, ele mesmo dependente de investigação, disponibilidade e expectativa “deceptiva”, no sentido de que se trabalha pelo advento de resultados, mas sem crença no valor moral dos mesmos, apostando, ao contrário, na dissolução dos entraves e na viabilização de saídas. Um artigo de Bachelard ajuda a acompanhar a série que vai de Lobato, Whitehead e Russell a Magno, passando por Freud. Intitula-se “O Surracionalismo”, que Magno traduziu e publicou na revista LUGAR em Comunicação em 197221, uma das primeiras no campo, que criara nas Faculdades Integradas Estácio de Sá, com oito números publicados pela Editora Rio, de 1972 a 1976. Nesse artigo, Bachelard invoca para a razão sua função de turbulência e agressividade contra as certezas adquiridas, o que já sabemos bem, o que experimentamos frequentemente e repetimos fielmente. Propõe esse exercício no campo da prática científica, que julgaríamos crítica, racional e, por isso mesmo, livre das crenças típicas da religião e dos mitos. Mas o risco da paralisia do pensamento está em toda parte. “A Razão” não só não existe como é ela mesma um impedimento grave à ousadia da criação e costuma-se brandi-la contra o risco da irracionalidade, que ameaça invadir seu caminho ortopédico na busca de correição e normalidade. Ora, continua Bachelard, a prova ao contrário adveio do próprio seio da matemática, com a geometria não-euclidiana. No século XIX, os trabalhos de Gauss, Bolyai, Lobatchewsky e Riemann demonstraram nada mais nada menos que se podia fornecer prova de que é impossível provar certas proposições dentro de um dado sistema. Complicado? Não, apenas surracional. Em que sentido? Vamos recapitular brevemente a aventura desses matemáticos. Eles se debruçaram sobre um antigo problema da geometria euclidiana, o do axioma das paralelas, que não era considerado autoevidente. Esse axioma equivale logicamente (embora não seja idêntico) à hipótese de que, por um ponto fora 21

A publicação original trazia como título “Inquisitions”. Paris, Éditions Sociales Internationales, juin 1936. Reproduzido in L’Engagement rationaliste. Paris: PUF, 1972. Edição póstuma organizada por George Canguilhem.

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de uma reta dada, somente pode ser traçada uma reta paralela à reta dada. Vamos lembrar também o arcabouço sintomático desse modo de raciocinar: no modelo axiomático, axiomas ou postulados são propostos e, depois, derivam-se deles todas as proposições do sistema como teoremas. Quando esquecemos que axiomas são escolhas para testar até onde vai uma ideia, consideramo-los como certeza, co-naturalizando sua concepção e efeitos enquanto verdade correspondente à realidade (no sentido metafísico de um sistema acabado e inequívoco). No pensamento matemático, por exemplo, até o século XIX, supunha-se que todos os seus setores podiam funcionar a partir de um conjunto de axiomas suficiente para desenvolver sistematicamente a totalidade infinita de proposições verdadeiras sobre dada área de investigação22. Ora, ao procurar deduzir esse axioma de outros que lhes pareciam autoevidentes, esses matemáticos demonstraram a impossibilidade disso, de dentro mesmo do sistema, obrigando que o problema se deslocasse de um campo de investigação para outro, a ser forjado com outros princípios, adequados à nova investigação. Mostraram, por isso, que Euclides não era a última palavra em geometria, pois novos sistemas podiam ser construídos com axiomas diferentes e incompatíveis com os euclidianos, mantendo-se todos úteis e válidos ad hoc, embora uns mais abrangentes que outros. A crença, desde os gregos, na autoevidência dos axiomas foi solapada, tornando-se claro que se trata de derivar teoremas de hipóteses postuladas, assumindo radicalmente a natureza arbitrária e artificial da estratégia axiomática, na qual a verdade torna-se tão contingente quanto a escolha de um dado axioma. Eis o surracionalismo: abrandar o princípio de não-contradição; desaprender para melhor compreender – a soma dos ângulos de um triângulo nem sempre é igual a dois ângulos retos, pois depende da escolha do axioma; abandonar o engessamento dos raciocínios a priori em favor das formulações a posteriori, que acolhem o inaudito trazido pela experiência. Em suma, “passar para o lado em que se pensa a mais, em que se experimenta o mais artificialmente, em que as ideias são o menos viscosas, em que a razão gosta de estar em perigo”23. 22

Para entender o alcance do advento da geometria não-euclidiana e, na sequência, outro advento desconcertante na aritmética, como o foi a obra de Kurt Gödel, ver NAGEL, Ernest e NEWMAN, James R. A prova de Gödel. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. 23 BACHELARD, Gaston. “O surracionalismo”. Em: LUGAR em Comunicação, 4º trimestre 1972, p. 6-9.

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Ao longo do desenvolvimento da Nova Psicanálise, Magno retomou algumas vezes o surracionalismo de Bachelard, afinando a sintonia desse conceito com sua própria concepção de pensamento e reiterando a exigência de uma racionalidade cada vez mais abrangente, para além das formações lógicas precárias de que dispomos. Não contra a racionalidade, mas a favor de seu pleno desenvolvimento, pois a razão constituinte das diversas racionalidades é bífida e opera em regime de pré-opositividade. Dito de outro modo, o inconsciente articula em regime superior, em processo de oscilação e indiferenciação de opostos24. Quando se enuncia e aplica conhecimento, em qualquer nível, já se operou uma quebra de simetria, que traz a decantação de uma das oposições, o recalcamento da alternativa, mas, principalmente, o recalcamento do deslizamento e ambiguidade constitutivos do inconsciente. Maneira de elaborar novamente a intuição freudiana: nos pensamentos oníricos, “cada encadeamento é quase invariavelmente acompanhado por sua contraparte contraditória, ligada a ele por associação antitética”25. Vale dizer, os sonhos não respeitam as antíteses e contradições, pois combinam contrários e os representam como uma mesma coisa ou mostram um elemento pelo desejo oposto a ele. No que lhes diz respeito, o ‘não’ parece não existir26. Não surpreende que o surracionalismo bachelardiano tenha sido pensado historicamente de modo análogo e contemporâneo ao surrealismo estético, diretamente inspirado no pensamento freudiano. Afinal, perguntava André Breton, “para quando os lógicos, os filósofos adormecidos?”27

4. Finda a graduação, Magno recebeu dois convites de trabalho, ambos aceitos. O primeiro foi para lecionar história da arte e geometria descritiva no Colégio de Aplicação da Faculdade Nacional de Filosofia, trabalhando como assistente 24 MAGNO, MD. Ad Rem: primeira introdução à gnômica ou metapsicologia do conhecimento [Falatório 2008]. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2014. O leitor pode consultar também o artigo do autor “O halo bífido do inconsciente” em TranZ: Revista de Estudos Transitivos do Contemporâneo, disponível em: www.tranz.org.br. 25 Ver A interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 1972, v. IV, p. 332. 26 Idem, p. 339. 27 André Breton. Manifesto do surrealismo [1924]. Em TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia & modernismo brasileiro. 20ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 2012, p. 228.

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de cátedra de Didática Geral, cujo titular era o Prof. Luis Alves de Matos. Lá permaneceu até 1965. O segundo convite veio de Anísio Teixeira, que havia sido seu professor na universidade, para ser seu assessor na implantação da Universidade de Brasília, função da qual declinou por não querer deixar o Rio de Janeiro. O convite, então, foi trocado pelo de trabalhar no Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, um dos órgãos do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, ambos criados pelo educador baiano28. Lá estaria envolvido com a criação e direção de um setor de publicação de livros técnicos e científicos voltados para o público discente universitário. Com o golpe militar e a destituição de Anísio Teixeira de suas funções no Ministério da Educação, o trabalho de Magno no CPBE não durou muito (ele deixou a instituição em 1965), mas o vínculo com o mestre permaneceu e se estreitou, com o hábito de longas conversas, nas quartas-feiras à tarde, na sede da Companhia Editora Nacional29, até a morte abrupta do educador, em 11 de março de 1971. Na relação com a obra teórica e institucional e com a pessoa de Anísio Teixeira se desenha um aspecto fundamental da formação de Magno, no sentido mais pleno que esta ideia possa ter. A marca de Anísio está presente em várias iniciativas institucionais do autor à frente do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro30, além de ter influenciado definitivamente sua produção teórico-clínica. Quando Magno chegou em Paris, em 1975, levava consigo a densa experiência cultural do Brasil e, na bagagem, a contribuição de Anísio deixaria sua marca na posterior reelaboração da psicanálise no país. 28

Na abertura do seminário Pedagogia freudiana, Magno recapitula esse momento de sua formação, prestando uma das várias homenagens que fez, ao longo de sua vida intelectual, profissional e institucional, ao professor, mestre e amigo, a respeito de quem declara ter tido a “honra, o prazer e a sorte de conviver bastante intensamente nos seus últimos oito anos de vida e que exerceu grande influência sobre o meu percurso”. Ver MAGNO, MD. Pedagogia freudiana [Seminário 1992]. Rio de Janeiro, Imago, 1993, p. 1. 29 MAGNO, MD. “Anísio Teixeira: fala proferida por ocasião da inauguração da ‘Biblioteca Anísio Teixeira’, do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, em dezembro de 1988”. Em: Boletim Maisum, nº 81+1, 20 abril 1990, p. 4745-4750. 30 A criação da Biblioteca Anísio Teixeira, em 08 de dezembro de 1988, e a constituição de um grupo de pesquisa em torno do tema da psicanálise com crianças, denominado Joãozinho – Departamento de Estudo da Criança no Discurso Analítico, iniciado em 1986 e encerrado em 1988. O nome “Joãozinho” é a tradução proposta de “kleinen Hans”, do texto de Freud “Análise de uma fobia em um menino de 5 anos” (1905), que circula no Brasil como “o pequeno Hans”.

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Não nos deteremos em apresentar Anísio Teixeira e sua obra, pois essa tarefa está prolificamente executada por teses universitárias em pedagogia, história política e da educação no Brasil, bem como por artigos, entrevistas e documentários disponíveis na internet sobre o intelectual baiano31, além de seu acervo organizado pela Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro. Vamos direto ao ponto que nos interessa: a estirpe do pensamento anisiano carrega a marca da mutação, acolhe e faz suas a impermanência e a imprevisibilidade, aposta no valor “real”, e não “proclamado”, dos processos – voltaremos a essa ideia em breve –, exige o teste de realidade das ideias e reivindica nada menos que a autonomia de cada um. O timbre dessa linhagem, além de ser desconcertantemente brasileiro et pour cause, é John Dewey e, através dele, Ralph Waldo Emerson. Mas também Whitehead e Russell, além da tradição utilitarista, sobretudo John Stuart Mill, e da tradição pedagógica inspirada em Jean-Jacques Rousseau; por fim, William Heard Kilpatrick, pedagogo norte-americano da educação progressista, discípulo e continuador da obra de Dewey. Veremos como esse legado foi assimilado na obra de Magno, que dele se apropriou seletivamente, incorporando, ressituando ou recusando alguns de seus pressupostos, a partir da teoria freudiana. 5. O pensamento de Anísio era extremamente refinado e o contraste com as resistências sintomáticas características da cultura brasileira era enorme, contra as quais lutou e as quais precisou entender e elaborar, uma vez que sentia seus efeitos deletérios no cotidiano de educador, intelectual, gestor e administrador da educação 31

O leitor interessado pode ir direto ao site http://www.bvanisioteixeira.ufba.br/, onde está disponível um farto material bibliográfico do próprio Anísio Teixeira, como artigos, capítulos de livros, livros completos, prefácios, posfácios, folhetos, discursos e cartas, além de produção bibliográfica sobre sua obra. A Editora UFRJ organizou recentemente a Coleção Anísio Teixeira, concebendo-a em 12 volumes, incluindo a reedição de alguns títulos que já haviam sido publicados na década de 1990 e textos inéditos. São eles: 1. Aspectos americanos da educação (1928) & Anotações de viagem aos Estados Unidos em 1927 (1927); 2. Pequena introdução à filosofia da educação: a escola progressiva ou a transformação da escola (1934); 3. Em marcha para a democracia: à margem dos Estados Unidos (1934); 4. Educação para a democracia: introdução à administração educacional (1936); 5. A educação e a crise brasileira (1956); 6. Educação não é privilégio (1957); 7. Educação é um direito (1968); 8. Educação no Brasil (1969); 9. Educação e o mundo moderno (1969); 10. Ensino superior no Brasil: análise e interpretação de sua evolução até 1969 (1989); 11. Diálogo sobre a lógica do conhecimento (s.d.); 12. Educação e universidade (1998).

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pública no Brasil32. É bastante conhecida a influência do pragmatismo deweyano na formação de Anísio Teixeira, que conheceu essa linhagem da filosofia norte-americana nas duas viagens que fez aos Estados Unidos, primeiro em 1927, quando tomou contato com a organização escolar daquele país, e no ano seguinte, quando foi estudar no Teachers College da Universidade de Columbia, em Nova Iorque, lá obtendo a titulação de Master of Arts em educação. Era então Diretor-Geral de Instrução do Estado da Bahia33. Rapidamente fez uma primeira divulgação dessa experiência, com o livro Aspectos americanos da educação, datado de 1928, mas é em Educação progressiva: uma introdução à filosofia da educação (1934) que sistematizou pela primeira vez sua visão da educação, apropriando-se refletidamente das lições de Dewey. Ao mesmo tempo, à sua maneira, esse livro dava voz à movimentação de ideias que reunira educadores e intelectuais, no Brasil, em torno da proposta da Escola Nova34, por sua vez um exemplo da discussão acirrada pelos modernistas sobre as chances de o país reconsiderar seu legado histórico e cultural – “um misto de ‘dorme nenê que o bicho vem pegá’ e de equações”, na estilização de Oswald de Andrade – e afirmar os aspectos positivos da cultura brasileira, fazendo “o melhor de nossa demonstração moderna”35. 32

Um exemplo desse efeito destruidor foi a campanha encabeçada pelos bispos da Igreja Católica contra a administração de Anísio Teixeira à frente do INEP e da CAPES, apoiada por representantes católicos no Poder Legislativo. Em março de 1958, é enviado um “Memorial dos bispos gaúchos ao Presidente da República sobre a Escola Pública Única”, contra a administração anisiana, acusada de conceber a escola pública, visando à obtenção dos “mesmos resultados pré-revolucionários, previstos, com ansiosa expectativa, pela doutrina socialista” (sic!). Apesar da perseguição eclesiástica, que pedia inclusive ao governo federal o afastamento do educador dos postos que ocupava, o então presidente da República, Juscelino Kubitschek, garantiu-lhe a permanência no cargo. O leitor pode consultar esse e outros documentos sobre a campanha católica, leiga e eclesiástica, contra Anísio Teixeira, que remonta à década de 1930 e se acirra na década de 1950, em http://www.bvanisioteixeira.ufba.br/. 33 “Anísio Teixeira: dados biográficos” em Conversa entre amigos: correspondência escolhida entre Anísio Teixeira e Monteiro Lobato, op. cit., p. 19. 34 A discussão sobre o atraso e a precariedade da educação no Brasil, que se intensifica na virada da década de 1920, culminou no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, em 1932, intitulado A reconstrução educacional no Brasil, de que Anísio Teixeira foi signatário. Para o contexto histórico dessa discussão, ver, por exemplo, BOMENY, Helena. “Novos talentos, vícios antigos: os renovadores e a política educacional”. Em: Estudos Históricos - Os anos 20, Rio de Janeiro, v. 6, nº 11, p. 24-39, 1993; CAVALIERE, Ana Maria. “Anísio Teixeira e a educação integral”. Em: Paideia, v. 20, nº 46, p. 249-259, 2010; NUNES, Clarice. Anísio Teixeira. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010, também disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br. 35 ANDRADE, Oswald de. Manifesto da Poesia Pau-brasil. Em: ANDRADE, Oswald de.

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No caso de Anísio, “progressiva” era a palavra-chave. Concentrava o princípio da mudança e reconstrução permanentes, característico do moderno voltado para o futuro, mas que não se furtava, ao contrário, exigia, passar a limpo os assentamentos sintomáticos que constituíam simultaneamente sua força interna de crescimento e seu atraso. Para isso, eram necessários juízo e experiência, noções interdependentes que expressavam o exercício de analisar a situação, enfrentando a crueza de seus dados, para agir no sentido de suas possíveis transformações. Tinha o sabor do “prático”, “experimental”, “sem ontologia”, “engenheiro em vez de jurisconsulto”, de Oswald, mas temperado com a impostação darwiniano-científica, social e democrata, de Dewey. Como assim? O pragmatismo costuma ser identificado como a contribuição norte-americana à filosofia mundial e, nesse sentido, trata-se de um pensamento que cresceu das forças e tensões da cultura de onde emergiu. O próprio Dewey avaliou que havia uma relação inegável entre “o caráter progressivo e instável da vida americana” e “o nascimento de uma filosofia que considera o mundo como algo em formação contínua, onde ainda há espaço para o indeterminismo, para o novo e para um futuro real”36. Em termos conceituais mais técnicos, essa filosofia se apoiou na ciência darwinista para estender seus efeitos lógicos e práticos à vida social, reivindicando para a democracia o papel de “uma nova metafísica das relações do homem com a natureza”37. O modelo darwinista de ciência forneceu duas chaves de interpretação para o pragmatismo deweyano: de um lado, a ideia de que a vida como contingência é capaz de saídas criativas diante do imprevisível; de outro, a possibilidade de generalizar o próprio método científico, não apenas para todas as áreas Pau-Brasil. São Paulo: Ed. Globo, Secretaria de Estado da Cultura, 1990. 36 Segundo Dewey, um sistema filosófico, considerado em suas relações com fatores nacionais, inclui aspectos dessa vida no sistema, mas também os aspectos contra os quais o sistema protesta. Com o pragmatismo não foi diferente: defendeu a função mais prática que epistemológica do pensamento, ao mesmo tempo que foi crítico dos aspectos da vida americana que fazem da ação um fim em si mesmo, concebendo os fins de maneira estreita e muito “praticamente”. Ver DEWEY, John. “O desenvolvimento do pragmatismo americano”. Em Scientiae Studiae, São Paulo, v. 5, nº 2, 2007, p. 227-43. 37 Apud RORTY, Richard. “Norteamericanismo y pragmatismo”. Em: Isegoria, nº 8, 1993, p. 7.

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do conhecimento como também para o comportamento usual e costumeiro do homem 38. Na mão contrária do positivismo, essa generalização almejada tinha o intuito de suavizar a oposição entre ciência e não-ciência, fato e norma, teoria e prática, pensamento e ação, instilando a atitude científica no cotidiano. O pragmatismo desejava fazer saber que o universo era um tecido inconsútil em transformação, operada por agentes biológicos, cosmológicos e físicos, em regime de provisoriedade e de contingência. Segundo o entendimento anisiano de Dewey, essa perspectiva, fugindo da obsessão comum dos filósofos por uma realidade superior, fazia do mundo um lugar de oportunidades, em permanente reconstrução, acabado e inacabado, completo e incompleto, uniforme e variável, no qual vivemos sacudidos entre garantia e precariedade, fugacidade e estabilidade, na “junção entre um ‘teimoso passado’ e um ‘insistente futuro’”. Ora, graças exatamente a tais características, eram possíveis, “de um lado, a predição e o controle, e, de outro, a oportunidade e a aventura” . Ecoando o entendimento de Anísio para a cultura em geral e para a norte-americana em particular, Richard Rorty, importante filósofo responsável pela renovação do pragmatismo de base deweyana, entende que a principal função social e cultural desse movimento “tem sido quebrar a crosta da convenção, favorecer antes a receptividade ao novo do que a fixação do velho”, na medida em que “tentou jogar por terra a influência dos antigos códigos morais e substituí-los por uma atitude ‘experimental’, sem medo de uma legislação social convenientemente revolucionária, nem de formas novas de liberdade artística e social” 40. 39

Não à toa, Dewey acabou por denominar “instrumentalismo” sua inserção no pragmatismo, inclusive por diferenças para com as contribuições de Charles S. Peirce e William James (mais em relação ao primeiro que ao

38 TEIXEIRA, Anísio. “As bases da teoria lógica de Dewey”. Em: Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, v. 23, nº 57, jan/mar 1955, p. 3-27. Disponível em: http://www. bvanisioteixeira.ufba.br/ 39 Idem. 40 RORTY, Richard. Objetivismo, relativismo e verdade. 2ª ed. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002, p. 92.

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segundo) 41. Com o instrumentalismo, podemos retornar à outra chave de interpretação que a ciência darwinista forneceu ao pragmatismo, acima citada, e esclarecer como juízo e experiência são, ao mesmo tempo, uma lógica, um método e um princípio de ação social e política, que Dewey preconizou e Anísio Teixeira assimilou, elaborando, a partir daí, um entendimento arguto sobre o Brasil “proclamado” e “real”. Por instrumental entenda-se a ideia de que a ação ou a prática desempenham um papel fundamental nos processos de conhecimento, uma vez que conhecer é um atributo do ser vivo em geral, e não um estado ou condição transcendente do sujeito humano. As operações de conhecimento são as respostas dos organismos vivos que, em um universo inacabado, investigam e reconstroem a realidade, ao transformar eventos imprevisíveis em situações que perduram como respostas eficazes ao dado emergente, em um sucessivo procedimento de autocorreção por experimentação. Segundo Anísio Teixeira, explicando o instrumentalismo deweyano, pensar é indagar e buscar a solução de um problema ou dificuldade, de modo que, partindo da inquirição, a ação de conhecer estabeleça uma resposta que resolva a dúvida, dando lugar à asserção garantida (warranted assertion). Indica-se, com isso, que “todo conhecimento é um produto provisório de investigações competentes e não algo que exista por si e seja, por uma vez, definitivamente estabelecido”42. Por caminhos diferentes, também aqui nos deparamos com a ideia de que “A Razão” não é uma faculdade mediante a qual se conquistam as verdades ou axiomas primeiros, evidentes em si mesmos. Trabalhamos apenas com definições e postulados, nem falsos, nem verdadeiros, a serem usados em face das consequências que a eles se seguem, sempre submetidos ao crivo da experimentação. As operações e atividades com as quais se chegou a asserções (“garantidas” porque funcionais) são, por definição, instrumentais, e fazem parte do arcabouço cognitivo do ser vivo. Em outras palavras, a vida é uma 41

DEWEY, J. “O desenvolvimento do pragmatismo americano”, op. cit. Ver também SHOOK, John R. Os pioneiros do pragmatismo americano. Rio de Janeiro: DP&A, 2002; WAAL, Cornelius de. Sobre pragmatismo. São Paulo: Loyola, 2007; POGREBINSCHI, Thamy. Pragmatismo: teoria social e política. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2005. 42 TEIXEIRA, A. “As bases da teoria lógica de Dewey”, op. cit.

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transação contínua entre organismos e meio ambiente, na qual os obstáculos a seu desenvolvimento são oportunidades para a ação instrumental. No homem, esse processo se expande indefinidamente, pois se acrescenta ao aparato biológico a representação simbólica, que inflaciona a imprevisibilidade no sentido da equiprobabilidade e equipotencialidade dos processos cognitivos e produtivos, graças à oportunidade em aberto para o juízo e a reelaboração da experiência. Em termos sociais e políticos, o pragmatismo desejou que sua aposta nas diversas possibilidades de inteligir a experiência não fosse limitada a um grupo social restrito, fechado e técnico, devendo-se perguntar “como seria possível fazer todos os homens participantes desse inestimável bem”43. A generalização social e política da lógica instrumental foi a democracia e seu laboratório, a escola44.

6. Na obra de Anísio Teixeira, a generalização social e política da lógica instrumental orientou e organizou sua reflexão teórica e atuação pública, que ganharam ainda mais relevância, quando consideramos certos aspectos da cultura brasileira que emergiam com muita resistência, se não mesmo recusa, ao que era proposto pelo educador, nas diversas circunstâncias de confronto que experienciou. O ambiente cultural brasileiro era pesadamente marcado pelo patriarcalismo, pela mentalidade nepotista, pelo patrimonialismo, positivismo e catolicismo, traduzidos, por exemplo, na concepção da educação como privilégio de uma quase casta social e a exclusão correspondente da maioria da população; na visão de uma educação formal em oposição à educação voltada para o saber “manual” ou “artesanal”, reproduzida na distinção entre ensino teórico e profissional; no legalismo como único meio de se implantar mudanças institucionais, apelando à força da lei como instru43

DEWEY, J. “O desenvolvimento do pragmatismo americano”, op. cit., p. 242. Para maiores informações do envolvimento de Dewey com o projeto e a tentativa de realização da escola inspirada nos pressupostos instrumentalistas, ver WESTBROOK, Robert B. e TEIXEIRA, Anísio. John Dewey. Tradução e organização José Eustáquio Teixeira e Verone Lane Rodrigues. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2010. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br

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mento de repressão e correção; no eruditismo humanístico de vocação jurisdicista, considerado superior à formação técnica. Em contraste, a visão pragmatista de Anísio – que colocara em questão sua própria educação de base católica jesuítica, no seio de um modelo familiar patriarcal, territorial fundiário e clientelista – considerava que a ordem moral e social também deveria assimilar os efeitos da mutabilidade evidenciados pela ciência moderna, destronando verdades eternas e carregando a família, a comunidade, os hábitos e costumes no roldão da mudança. Ora, se na ciência a experimentação controlada é procedimento intrínseco à transformação, por que não seria possível a experiência em educação? Daí, o desafio lançado em um texto tão longínquo e ainda ressonante: “Nessa nova ordem de mudança constante e de permanente revisão, duas coisas ressaltam, que alteram profundamente o conceito da velha escola tradicional: a) precisamos preparar o homem para indagar e resolver por si os seus problemas; b) temos que construir a nossa escola, não como preparação para um futuro conhecido, mas para um futuro rigorosamente imprevisível” 45. Seguindo Dewey, a orientação anisiana entendia que a democracia era um modo de vida social, mais do que uma forma de governo. Assim, a escola deveria se conduzir na via aberta pelo pensamento científico moderno, formando para uma vida em sociedade onde as pessoas partilhassem como iguais, em meio às diferentes experiências cognitivas, sociais e individuais que a escola potencializava como laboratório social. O postulado político que ligava, assim, democracia à educação era o de que “os homens são suficientemente educáveis” e, por isso, era concebível e esperável uma sociedade democrática46. Ora, a democracia moderna fora elaborada em um contexto histórico de fortes reivindicações contra a presença pervasiva das formas estatais na vida social e política. Daí, não surpreendia que tivesse se apoiado no ideário 45

TEIXEIRA, A. Pequena introdução à filosofia da educação: a escola progressiva ou a transformação da escola. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007, p. 40. Observe-se que a edição original de 1934 trazia o título invertido: Educação progressiva: uma introdução à filosofia da educação, que foi modificado pelo autor na reedição de 1967. 46 TEIXEIRA, A. “Democracia e educação” em Educação e o mundo moderno. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007, p. 253. Também disponível em: http://www.bvanisioteixeira.ufba.br/

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individualista, com efeitos de liberdade, mas também de tirania. Por isso, era necessário reconceber esse difícil equilíbrio, “reconhecendo que a vida social precisa institucionalizar-se de forma a permitir que não somente alguns, mas todos os indivíduos encontrem, ao lado de condições favoráveis para desenvolver as qualidades comuns e particulares, condições também favoráveis para aplicar estas qualidades comuns e favoráveis, isto é, que o que foi dado somente a alguns e no excesso que decorria de serem só eles os beneficiários, contando com os demais para servi-los, seja a todos estendido, com as limitações inevitáveis da participação geral”47. Eis um pensamento em rota de colisão com o que havia de mais arcaico e recrudescente no Brasil. O artigo “Valores proclamados e valores reais nas instituições escolares brasileiras”, publicado em 1962 na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos e reeditado em livro em 1969, com o título “Duplicidade da aventura colonizadora na América Latina e sua repercussão nas instituições escolares”, constitui uma das intervenções mais percucientes de análise dos assentamentos sintomáticos da cultura brasileira apresentadas por Anísio Teixeira, ainda atual no Brasil do século XXI48. Nele, estão aplicados os princípios do pragmatismo deweyano a serviço da reflexão sobre o que o autor concebeu como uma “duplicidade fundamental” do Brasil, organizada pela polaridade entre o “valor real”, isto é, a chance da experimentação e realização, a partir dos recursos culturais reais e locais da vida brasileira, e o “valor proclamado”, isto é, a idealidade chancelada por atos legais. Em termos psicanalíticos, nos é oferecido o diagnóstico de que há um duplo regime sintomático brasileiro: de um lado, o oficial, imitativo, positivista e doutoral; de outro, o não-oficial, da funcionalidade transitiva e pragmática ad hoc, em luta para se desviar da força recalcante do lado oficial, ou até mesmo em luta direta com ela, para dar voz a um estilo próprio brasileiro. Desde a colonização o Brasil foi se desenhando com base em uma duplicidade fundamental – jesuítas e bandeirantes, fé e império, religião 47

Idem, p. 256. Grifo no original. Disponível em http://www.bvanisioteixeira.ufba.br/ e em Educação no Brasil. 4ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011, p. 297-320. 48

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e ouro –, que se iniciou com a exploração predatória como valor real, que nunca se confessava como tal, e a cristianização como valor proclamado, a acolher a denegação da predação, revestida oficialmente com o falso espírito de cruzada cristã. Espanhóis e portugueses não vieram com expectativas de criar um mundo novo, como o fez a empreitada colonizadora dos peregrinos do Mayflower na América do Norte, e sim encontraram um novo mundo, que planejaram explorar, saquear e, assim enriquecidos, voltar à Europa. Apoiando-se em Vianna Moog49, Anísio recuperava o mazombismo como expressão cultural dominante desses “brasileiros” que acabaram por ficar mais tempo do que a expectativa de rápida exploração do novo continente fazia crer. O livro Bandeirantes e pioneiros, paralelo entre duas culturas (1954), que serve de base para a análise proposta por Anísio Teixeira, é um ensaio que parte das heranças religiosas e culturais distintas das colonizações anglo-saxã e portuguesa, para apresentar uma série de polaridades constitutivas da formação cultural norte-americana e brasileira. Se a vida baseada na ética do trabalho, no aperfeiçoamento moral e no pragmatismo econômico lastreou o mundo do pioneiro norte-americano, no Brasil, a figura correspondente, em termos de realidade histórica, é o “mazombo”, ou seja, o filho do português nascido na colônia, com características muito semelhantes ao perfil do homem cordial traçado por Sérgio Buarque de Holanda: individualismo personalista, busca de prazeres imediatos, descaso por ideais comunitários e de longo prazo. 49 Clodomir Vianna Moog (São Leopoldo/RS-1906 – Rio de Janeiro/1988) foi escritor e ensaísta gaúcho, com formação em Direito. Lutou na revolução constitucionalista de 1932, o que lhe rendeu prisão e deportação para o Amazonas. Foi anistiado em 1934, quando retornou a Porto Alegre. Ainda no exílio iniciou sua produção literária: publicou o ensaio O ciclo do ouro negro (1936) e uma sátira política, Novas cartas persas (1937), e foi premiado pela Fundação Graça Aranha com o romance Um rio imita o Reno (1939), para o qual transpôs a experiência vivida no Amazonas. Depois da Segunda Guerra, em 1946, serviu na Delegacia do Tesouro em Nova Iorque e representou o Brasil na Comissão de Questões Sociais da Organização das Nações Unidas, como também na Comissão de Ação Social da Organização dos Estados Americanos, no México, a qual presidiu por mais de dez anos. Publicou ainda as biografias Heróis da decadência (1934), Eça de Queirós e o século XIX (1938) e Em busca de Lincoln (1968); o ensaio Uma interpretação da literatura brasileira (1942) e a novela Uma jangada para Ulisses (1959), além de Obras completas de Vianna Moog (1966). Sua principal contribuição ao ensaísmo brasileiro foi o livro Bandeirantes e pioneiros: paralelo entre duas culturas (1954), base da análise proposta por Anísio Teixeira.

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O mazombo era uma “categoria social à parte, a que ninguém queria pertencer”50. Para fugir da realidade de ser filho de reinol nascido na colônia, valeu-se inclusive da reivindicação de nascimento em Portugal, inventando linhagens e ancestralidades, por preferir o valor proclamado ao real. O mazombismo, portanto, consistia na denegação de ser brasileiro, acompanhado da carência de iniciativa e inventividade, “com descaso por tudo quanto não fosse fortuna rápida, e, sobretudo, na falta de um ideal coletivo, na quase total ausência de sentimento de pertencer o indivíduo ao lugar e à comunidade em que vivia”51. A insistência em negar a realidade alimentou no mazombo o ressentimento: a reiterada atribuição de seu próprio valor a outrem foi minando paulatinamente o poder da iniciativa e a assunção produtiva do risco. Era-lhe mais fácil alimentar a inadimplência, fechando os olhos às próprias possibilidades, do que socorrer a situação com recursos e alternativas, positivando o percurso e seus achados. O cultivo do ressentimento trouxe inércia, descaso e inoperância e, quando seus efeitos negativos eram sentidos, as razões eram buscadas alhures. À luz da psicanálise, poderíamos dizer: dada a duplicidade fundamental da predação e da religião, para qual lado seguir? Na vertente da “bandeira”, a cobiça sem projeto, a força e a brutalidade, e eis que aparece o “psicopata”; na vertente jesuíta, nada além de moral e teologia reificantes, e eis que aparece o “psicótico”. No entendimento de Anísio Teixeira, esses brasileiros eram “europeus nostálgicos”, que acabaram por criar uma cultura congenitamente caduca e inautêntica. Assim, “o mazombo, dividido entre o desejo de regressar, o propósito de reproduzir a cultura da metrópole e as novas condições, o novo meio, a nova dinâmica da conquista, ignorava o próprio fato da transplantação cultural e a necessidade inevitável de adaptação e se perdia em impulsos ridículos de imitação e contrafação. Incapaz, pela sua irremediável duplicidade, de aceitar as modificações que o meio impunha, suprimia delas a possível força criadora, desnaturando o que havia de melhor no nascente esforço

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MOOG, Vianna. Bandeirantes e pioneiros, paralelo entre duas culturas. 2ª ed. Porto Alegre, 1961, p. 144. 51 Idem, p. 150-151.

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nacional”52. Ao ressentimento, juntou-se a vergonha da condição de brasileiro e das soluções autóctones, que o mazombo procurava elidir ou esconder. Porém, mais do que se envergonhar ou até mesmo esconder as condições inovadoras da vida local, o mazombismo teve a desfaçatez de pretender suprir as deficiências de nossa realidade humana e social por meio de revalidações legais. Em que sentido? Através de diktats legislativos, num esforço de compensar a inconsecutível, mas desejada imitação dos valores europeus. Assim, por ato oficial ou legal, declarava-se a situação de fato como idêntica à ambicionada, de modo que nos acostumamos a viver em dois planos, o ‘real’, com as suas particularidades e originalidades, e o ‘oficial’ (proclamado), com os seus reconhecimentos convencionais de padrões inexistentes. O dualismo de colônia e metrópole, que alimentou o mazombismo e foi por ele alimentado, prolongou-se nos séculos XIX e XX, e se reconfigurou no dualismo elite e povo, a primeira “diminuta e aristocrática”, o segundo “analfabeto e mudo”53. O artigo prossegue, aplicando esse esquema à análise da implantação das instituições escolares no Brasil, país onde se exaltam valores que se procura copiar, apesar e por causa de serem anacrônicos e atrasados, não prevalecendo uma atitude de experimentação e ensaio. A distância entre valores proclamados e reais se mantém.

7. A polaridade de um Brasil oficial e não-oficial, assim como o mazombismo, terão importância estratégica na reflexão de MD Magno, inclusive porque a psicanálise no Brasil também sofreu do mazombismo de não se assumir como psicanálise do Brasil. Consideraremos essas questões mais adiante, quando à análise de Anísio Teixeira se acrescentar as intervenções de outros brasileiros da mesma estirpe com os quais a Nova Psicanálise dialogou. Por ora, gostaríamos de costurar os pontos mapeados, mas até aqui pouco conectados, sobre o legado anisiano apropriado por Magno.

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TEIXEIRA, A. “Duplicidade da aventura colonizadora na América Latina e sua repercussão nas instituições escolares”, op. cit., p. 300. Grifo nosso. 53 Idem, p. 302.

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Retornemos às bases conceituais do instrumentalismo e a expansão de seus efeitos para a vida social, onde democracia e educação se articulam pelo postulado político de que os homens são suficientemente educáveis. À primeira vista, nada mais distante do pensamento freudiano. Basta lembrar o alerta já conhecido segundo o qual governar, educar e psicanalisar são atividades impossíveis, retomado por Lacan no contexto significativo da comoção cultural e política do ano de 196854. Ao mesmo tempo, o horizonte do impossível não implica renúncia ao problema. Pode indicar, ao contrário, o fato de ser incontornável enfrentá-lo e, para tal, precisamos de outro ponto de partida. Antes ainda que haja vida, há desejo de extinção, e a vida resiste por impossibilidade de desaparecer. Quebras de simetria sucessivas respondem pela configuração de realidades que, em escalas temporais variadas, se expandem em complexidade. Daí, a impressão de um sentido teleológico que situa um futuro desconhecido, mas conquistável e moldável pela experiência. Essa é a expectativa do pragmatismo, sua força e fragilidade. Como operação instrumental, organizar previsibilidades no seio do caos e prover meios para tanto são tarefas imprescindíveis, que não dependem da inteligência humana, pois são funções cognitivas que encontramos nas coisas. Psicanálise e pragmatismo concordam. Como postulado de base, contudo, é preciso avançar um pouco mais, na direção de uma lógica operatória que se encontre fora das especificações da lógica do vivo, em regime de radical neutralização. Em outras palavras, é preciso reverter o vetor e partir do neutro como limite extremado da caotização. Então, sim, aparecerá lugar para o jogo dos possíveis, já decantados como pedaços de realidade ou simetrias quebradas no seio das quais a crescente complexidade parecerá finalidade organizada. E como o sentido é não-Haver, o epifenômeno vida, com toda a sua exuberância, fica submetido ao arrastão pulsional. À luz dessa reversão de perspectiva, o pragmatismo ganha outro sentido. Parafraseando Dewey, ele passa a fazer parte da caixa de ferra54

FREUD, Sigmund. Análise terminável e interminável [1937]. Em: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. 23; LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992, p. 175-204.

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mentas da técnica psicanalítica. Quando Freud afirma que esta técnica rejeita o emprego de qualquer expediente especial – pois consiste em manter a “atenção uniformemente suspensa” em face de tudo o que se escuta55 –, ele confere mais latitude ao pragmatismo, por, pelo menos, duas razões. Em primeiro lugar, a técnica psicanalítica trata os sintomas – quaisquer sintomas – como conhecimentos úteis, e não como algo a ser extirpado ou corrigido, e faz a pergunta: para que serve? Isso suspende suposições ou critérios a priori de compreensão, que reduziriam a sintomática em questão àquilo que “já se sabe”. Em segundo lugar, o uso da mesma técnica (atenção suspensa) amplia o que sejam as “consequências práticas” de um saber (um sintoma), pois, diante da neutralidade da postura analítica, a força das significações tende a se diluir, os sintomas são reduzidos a contingências e se facilitam alternativas instrumentais à situação dada. É possível, então, abandonar a ideologia, juntamente com os princípios e compromissos metodológicos de um discurso ou saber, considerando, a partir da resultante, essa ou aquela prática como “interessante e não-contraditória com, pelo menos, o manejo de nossos processos”56. A psicanálise propõe, assim, uma recepção plerômica dos saberes, cujos valores podem ser indiferenciados para, com isso, fazer surgir novas funcionalidades. Em brasileiro, a psicanálise é bacia amazônica, “cuja orografia, cujo relevo permite acolher todos os discursos que lhe interessarem ad hoc”57. A própria natureza dessa pleromicidade precisou ser repensada no campo da psicanálise. Desde Freud, já temos a noção de formações do inconsciente, flagradas em atos falhos, chistes, sintomas. Na sequência, ainda que a perspectiva freudiana não tenha sido estritamente linguística, a reformulação lacaniana deu prevalência aos fenômenos de linguagem como via de abordagem do Inconsciente. Na Nova Psicanálise, o inconsciente deixa de ser descritível por sistema linguístico e passa a ser operação de Revirão, 55

FREUD, Sigmund. “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise” [1912]. Em: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. 12. 56 MAGNO, MD. AmaZonas: a psicanálise de A a Z [Falatório 2006]. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008, p. 25. 57 Idem, ibidem.

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isto é, competência de reversão de contrários por indiferenciação. Como não é linguístico, cibernético ou homeostático58, seu escopo também não é o da mente “humana”, e sim do que há. Por isso, a noção de formação (do inconsciente) também foi modificada, sendo compreendida como Formações do Haver, dependentes, em sua estrutura e organização, de quebras de simetria que vão configurando possíveis, excluindo seus contrários também possíveis e recalcando o neutro. Na série das formações do vivo, aí incluída a espécie humana, essas formações são denominadas de Primário. A formação do Primário afetada de Revirão – que conhecemos pela denominação de humano – é irremediavelmente aberta e sujeita à equiprobabilidade, ou seja, não aceita o regime de oposição e é indiferente à escolha. Por oscilar, não cabe no protocolo estrito da lógica do vivo e acaba por invadir proteticamente o entorno, transformando-o como extensão dessa mente equiprobabilística. Essa produção protética é denominada de Secundário. Temos, então, uma teoria das formações do Haver de lógica ternária: computa a base biológica da espécie – o Primário; remaneja a proveniência, função e lugar do que a tradição chamou de “cultura” ou simbólico” – o Secundário; e inclui o terceiro elemento, o neutro, como geratriz da complexidade – o Originário. A resultante é um modelo que conjetura o registro cerebral da máquina de Revirão como embutida no Primário, com um funcionamento tal que rompe a lateralidade biológica espontânea, excretando a reversibilidade em forma de subversões progressivas do mundo e da ordem binária com que este se apresenta. As formações do Secundário, indistintamente internas e externas, guardam e evocam a marca bífida da máquina geratriz (Revirão), mas ganham locks ou fechamentos que seguem a força atrativa do Primário. Sem plasticidade, funcionam como verdadeira neo-etologia. Por estar desvencilhada do humano (biológico, cultural e simbólico), a Nova Psicanálise denomina Idioformação uma formação do Primário afetada de Revirão. 58 MAGNO, MD. Senso contra Censo: da obra-de-arte, etc. (Introdução a uma semasionomia). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, 1977, p. 168.

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8. A apresentação desse quadro teórico, a serviço da proposição de uma nova Tópica do Recalque (Primário, Secundário e Originário), foi feita por Magno, pela primeira vez, em um Seminário intitulado Pedagogia Freudiana (1992), que, como vimos, foi dedicado a Anísio Teixeira59. Cabe, então, a pergunta: qual a relação entre o quadro teórico formulado em psicanálise e a indicação de uma pedagogia freudiana? Em outras palavras, qual a relação entre as bases sintomais do dito “humano” e o postulado político anisiano de que os homens são suficientemente educáveis, dado o vínculo entre educação e democracia? Como a Nova Psicanálise se desvencilhou das noções filosóficas e científicas de sujeito, indivíduo, objeto, e dos dualismos recorrentes das epistemologias (natureza x cultura; natural x artificial; mente x mundo; ser vivo x ambiente, etc.), propondo, em seu lugar, uma teoria do conhecimento e, com ela, uma teoria plerômica das formações e da pessoa, foi dado um salto no registro do problema da educação e da democracia. Quanto à educação, é o caso de perguntar: diante da multifariedade das formações que entram na composição de uma pessoa, que processo pedagógico pode levar isso em consideração? Diante da explosão informacional, de base tecnológica digital, que processo pedagógico pode tornar instrumental a equivalência dos saberes a aplicativos e dispositivos móveis, sem sede de produção e transmissão e sem lugar hierárquico prévio? São questões novas colocadas pelo salto de registro para o qual a comoção tecnológica e suas desconfigurações empurraram, mas já ponderáveis no final da década de 1960. O próprio Anísio Teixeira reconheceu a pertinência da nova ordem comunicacional que começava a se instalar como “início da era eletrônica em substituição à mecânica e tipográfica de nossa extinta era moderna”60, quando, apresentado ao pensamento de Marshall McLuhan por Magno61, traduziu e 59

Nos dez anos anteriores, pelo menos desde o Seminário A Música (1982), foi sendo construída uma nova abordagem teórica para a psicanálise, que culmina, no Seminário Pedagogia Freudiana, com a apresentação de uma nova Tópica do Recalque. 60 McLUHAN, Marshall. A Galáxia de Gutemberg: a formação do homem tipográfico. Tradução de Leônidas Gontijo de Carvalho e Anísio Teixeira; apresentação da edição brasileira por Anísio Teixeira. 2ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977, p. 13. O trecho citado é da apresentação de Anísio Teixeira. 61 Informação fornecida por MD Magno.

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prefaciou A Galáxia de Gutenberg em 1969, publicando-o pela Companhia Editora Nacional. Em sua apresentação de McLuhan aos brasileiros, aponta a originalidade do ângulo pelo qual o autor canadense abordou as origens e o modo de formação do espírito moderno, a saber a tecnologia como extensões do homem, do alfabeto e da escrita à era eletrônica, passando pela tipografia. E saúda essa percepção, de efeito desconcertante e vertiginoso, sobretudo para os que “se fizeram integral e plenamente gutenberguianos da cultura da palavra impressa, a cultura que nos fez ‘indivíduos’, que criou o ‘público’, o ‘Estado’, as ‘nações’, o ‘pensamento científico’, desinteressado e objetivo, a ‘secularização’ global da vida humana”62. É como se Anísio ponderasse o necessário caminho que ele percorreu, ao se manter contemporâneo de sua própria época e tentar, através dos meios que a máquina estatal lhe forneceu, prover o país com os plenos recursos da literacia gutenberguiana. A quem pôde colher esse legado, o caminho estava facilitado. No que concerne ao percurso de Magno, o escopo da virada sintomática do Planeta, prenunciada no trabalho de McLuhan, prontamente informado ao mestre e amigo, entrou no repertório conceitual levado a Paris ao encontro de Lacan. Antes ainda, em 1972, participara do I Encontro de Atualização de Professores de Ensino Normal Oficial da Guanabara, apresentando a conferência intitulada “As Mutações de McLuhan”63. Esse evento ganhou cobertura da mídia, com reportagens nos jornais O Estado de São Paulo, Jornal dos Sports e Diário de Notícias64. Dois anos antes, havia participado de um seminário na costa leste dos Estados Unidos (Nova Iorque, Boston e Washington), patrocinado pelo acordo MEC-USAID, onde tivera a oportunidade de ver a pujança da área de comunicação naquele país, em visitas acompanhadas a redes de tv e rádio, editoras, escolas de comunicação e agências de publicidade. Provavelmente, testemunhou uma prova contundente das ideias de McLuhan65. Mas, sobretudo, o teórico canadense entrou no repertório da Nova Psicanálise como 62

Apresentação de Anísio Teixeira em McLUHAN, Marshall, op. cit., p. 13. Acervo do CFRJ, sob a identificação Apostila As Mutações 00-58. 64 Respectivamente nas edições de 03 de agosto de 1972, 05 e 06 de agosto de 1972 e 03 de agosto de 1972. 65 Acervo do CFRJ, sob a identificação USAID 00-USAID 95; USAID A – USAID Z1. 63

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antena parabólica que captava e retransmitia a mutação sintomática da época – a abertura psíquica, cognitiva e social promovida pela tecnologia “eletrônica” –, sendo-lhe reconhecida a função clínica de desfiguração sintomática e disponibilidade para a transformação. Na obra de Magno, a comunicação se transformou em psicanálise, à medida que se postulou a equivalência entre o “comunicacional” e o “transferencial”, aí incluído o horizonte mcluhiano da tecnologia (ou os “meios de comunicação”) “como extensões do homem”. A ideia anisiana de educação, assim como seu corolário, a mestria, teve mais ressonâncias. Do ponto de vista institucional psicanalítico, por exemplo, isso se refletiu na via que liga a concepção de “colégio” para nomear a instituição que fundou ainda em Paris em 1975, à reformulação proposta no início da década de 1990, com a criação da UniverCidadeDeDeus (UD)66, passando por todas as mudanças estratégicas que Magno implementou à frente da condução dessas duas formas institucionais67. Em 2005, refletindo sobre sua concepção de formação em psicanálise, reconsiderou, junto aos membros da instituição – mas tornado público como anexo de seu Falatório –, seu percurso à frente do CFRJ e da UD: “assim é que de Presidente para cá (arre!) tenho procurado lugar e nomeada que acaso justificasse o meu empenho e a minha pedagógica (se não pedante) patacoada, chamada, tendo chegado por fim a Orientador da coisa institucional que jamais se dá por assentada”68. E continua, em tom que verte a piada na seriedade do problema e vice-versa: “finalmente declaro e para mim mesmo decreto que quem quiser que se oriente como puder pelo produto que se suponha de minha lavra: ele que seja Oriente (sem que nenhum Orientador daí se depreenda)”69. 66

Instituição cultural sem fins lucrativos fundada juntamente com Rosane Araujo, sua atual Presidente. Cf. mais adiante, no item 29, a concepção de instituição psicanalítica que orientou a atuação de Magno à frente do CFRJ e a passagem do CFRJ à UD, no início da década de 1990. 67 Magno assim explicou a escolha pela denominação Colégio dada à instituição criada em 1975: “Colégio: no que o termo significa de aproximação de colegas, no interesse do estudo, do debate e da produção teórica; Freudiano: no que o pensamento de Freud é a via, e o veio, que se nos abre à voz de Lacan; do Rio de Janeiro: no que, nos limitando nosso espaço, de presença constante a algum trabalho, marcamos uma sede – a qual se abre em relação a qualquer outra praça”. Em: Revista LUGAR, nº 7: Lacan, Textos da Revista L’Arc nº 58. Editora Rio, 1975. Grifo do autor. 68 MAGNO, MD. Clavis Universalis: da cura em psicanálise ou revisão da clínica. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2007, p. 211. 69 Idem, p. 212.

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9. No tocante à democracia, o legado anisiano teve duplo destino. De um lado, o escantilhão freudiano nunca permitiu, e não foi diferente com Magno, o logro da ideia de democracia. O inconsciente não é democrático, pois não funciona com uma régua de distribuição igualitária de funções ou com a expectativa de que é possível equalizar através da distribuição equitativa de condições. Ao contrário, é fora da curva, logo, é da ordem do excepcional. É aristocrático, no sentido de se encaminhar para a excelência (ou abjeção máxima) do desejo – não-Haver – e por indiferenciar os valores, pela função do Impossível Absoluto. Não há igualdade possível e idealizá-la é denegar o fato e o exercício de poder das formações recalcantes, uma vez que há quebra de simetria originária e as formações se fractalizam. Na escola ou em qualquer arranjo social ou estatal, as pessoas não são iguais, já que a miríade de formações que as desenham – na dinâmica da resultante hegemônica focalizável e no espraiamento franjal indiscernível aqui e agora – acaba por torná-las únicas e, por isso mesmo, irreconhecíveis como unidade, com valores adscritos pelo que as formações podem ad hoc. Ora, exatamente nesse ponto, o legado anisiano faz a curva e toma um atalho, na vizinhança de Dewey, fazendo Magno chegar a Ralph Waldo Emerson e sua ideia de “homem privado”. Dificilmente se poderia afirmar que Emerson foi um filósofo da democracia, apesar de Dewey tê-lo lido assim70. Como seu discípulo Nietzsche, prezava a ideia da autocriação, que denominava “‘a infinitude do homem privado’”71, mais próxima e oriunda de um poder divino que habita o homem e mais distante da visão secular comunitária da vida cidadã, cara a Dewey. Aliás, para Harold Bloom, nisso consiste a originalidade da marca emersoniana na cultura e na política norte-americanas: a valorização do conhecimento como (re)encontro com o divino ou “a parte melhor e mais antiga de cada um”72. Tal era, para Emerson, a condição da criação em que cada um poderia se engajar, como transformação da própria existência. Em um de seus textos mais conhe70

Segundo Richard Rorty, Dewey achava que Emerson, assim como Walt Whitman, tinham sido os únicos a ter a consciência instintiva de que “‘a democracia não é nem uma forma de governo nem uma conveniência social, mas uma metafísica da relação entre o homem e sua experiência na natureza’”. Apud “Norteamericanismo y pragmatismo”, op. cit., p. 6. 71 Idem, p. 7. 72 BLOOM, Harold. “The sage of concord” em The Guardian, 24 de maio de 2003. Disponível em: http://www.rwe.org/articles/199-the-sage-of-concord-by-harold-bloom.

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cidos, Self-reliance, que se pode traduzir precariamente como Autoconfiança, o pensador norte-americano descreve seu atingimento como o momento, na educação de cada um, em que é preciso entender que “imitação é suicídio” e que é preciso cada um “considerar seu melhor e seu pior como parte de si”, pois “ninguém senão ele sabe o que é que pode fazer, mas não o sabe até que o tenha tentado”73. Essas são “as vozes que escutamos em solidão” e entrar no mundo as enfraquece e as torna inaudíveis, pois a vida social conspira contra: “a sociedade é uma empresa de sociedade anônima, na qual os membros concordam, em nome de bem assegurar o pão de cada acionista, em ceder a liberdade e a cultura do comedor”. A única coisa a fazer é cuidar do que concerne a cada um, uma regra que pode servir para distinguir grandeza de mesquinhez. Essa é uma tarefa difícil, pois sempre se encontra alguém que crê saber melhor o que o outro deve fazer do que ele próprio. Assim, “é fácil no mundo viver a partir da opinião do mundo; é fácil na solidão viver a partir de suas próprias [opiniões]; mas grande é o homem que, em meio à multidão, mantém com perfeita docilidade, a independência da solidão”. Na mesma linha de raciocínio, Emerson explora outro empecilho à self-reliance: a “consistência”. Por não querer desapontar o outro, reverenciamos nossas ações e palavras passadas. Mas essa é a tolice das mentes estreitas: “fale o que você pensa agora em palavras duras, e amanhã fale o que amanhã pensar em palavras duras, embora isso contradiga tudo o que disse hoje – ‘Ah, então fique certo de que você será malcompreendido’ – É tão ruim assim ser malcompreendido? (...). Ser grande é ser malcompreendido”. Em Anísio Teixeira, conviviam contraditoriamente a leitura deweyana da democracia, que fez de Emerson a ponte entre o “domínio de si” como autonomia e o processo social da educação74, e a mensagem emersoniana do homem privado, em solidão e não comunitário. Encontramos um testemunho disso no discurso que escreveu, em 1928, e que encarregou um amigo de ler, em seu nome, em uma formatura de alunos em Salvador, à qual havia sido 73 EMERSON, Ralph Waldo. Essays: first series (1841). Em: http://www.emersoncentral.com/ essays1.htm. Todas as citações de Self-reliance são retiradas dessa fonte em tradução nossa. 74 DEWEY, John. Experiência e educação. Trad. Anísio Teixeira. 2a ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976, p. 14-5.

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convidado como paraninfo e não pôde comparecer. Lá afirma que “nós somos o nosso fim” e “fala alto, dentro de nós, esse sentimento fundamental de que nós preexistimos a tudo que existe”. Quando somos infiéis a nós mesmos e à nossa natureza e vocação, quebramos “o quadro de nosso destino” e o tornamos “banal e triste”. E deixa a pergunta no ar: “que me importa que a vida semeie de insídias o meu caminho ou que os homens espalhem surpresas venenosas na minha marcha, se eu levo e ouço em mim o sonho, a minha revelação, as minhas ‘vozes’, como dizia Santa Joana D’Arc, e se a elas só obedeço e sigo, como a regra permanente de minha vida?”75. A afinidade com Emerson é inequívoca e, por isso, à ideia anisiana de democracia, com todos os seus limites e contradições, não pode faltar a do “homem privado”, pois ela faz parte do Anísio lapidado pela América, como dizia Monteiro Lobato76, brasileiro antropofágico que foi “da equação eu parte do Kosmos ao axioma Kosmos parte do eu”77.

10. Não há igualdade em psicanálise, como não há em Emerson ou Nietzsche, do mesmo modo que sua univocidade não se sustenta em Anísio Teixeira. Há ipseidade, no sentido do caráter único de uma formação que a distingue de todas as outras, modo de enunciar o Princípio da Diferença, que, ecoando o “homem privado” emersoniano, salta fora da democracia, para propor uma Diferocracia. Eis o postulado político da Nova Psicanálise, que faz decorrer da Teoria das Formações e da Pessoa, uma política das formações da pessoa, que conduz ao Direito das Formações, quaisquer que sejam as formações que 75 Todos os trechos citados foram retirados de MENEZES NETO, Paulo Elpídio. “Resenha do livro Ensino superior no Brasil: análise e interpretação de sua evolução até 1969” em Educação Brasileira. Brasília, v. 11, nº 23, 1989. Também disponível em: http://www.bvanisioteixeira.ufba.br/livros/chama_introducao.htm. Por uma dessas aleatoriedades da vida, Paulo Elpídio Menezes Neto foi colega de estudo de MD Magno na Escola Preparatória de Cadetes, em Fortaleza, tendo sido o orador da turma por ocasião da formatura. Ver Revista da Escola Preparatória de Fortaleza, op. cit., p. 79-99. Acervo do CFRJ. 76 Conversa entre amigos: correspondência escolhida entre Anísio Teixeira e Monteiro Lobato, op. cit, p. 8. 77 ANDRADE, Oswald de. Manifesto antropófago. Em ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica. Obras completas de Oswald de Andrade. São Paulo: Editora Globo, Secretaria de Estado da Cultura, 1990, p. 49.

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a compõem, tendo que se buscar, por isso mesmo, outros meios e instrumentos para gerenciar os conflitos e consensos entre essas formações78. Por essa razão, a “pedagogia” passa a ser freudiana, diferocrática e ipseísta, se quiser continuar, como postura e não conteúdo, a aposta de Anísio Teixeira na singularidade, advinda do sentir fundamental que “preexistimos a nós mesmos”. Daí, também, a tarefa de pensar novamente a psicanálise, ressituá-la em relação a seu único conceito fundamental, a Pulsão, e partir dessa ficção teórica para entender o lugar da criação, da arte, da tecnologia, do conhecimento que têm sido produzidos pela espécie dita humana, saídas contingentes de nossa condição de transeuntes, o que positiva a fragmentação, a proliferação informacional, o estado de mutação, aspectos particularmente característicos de nosso momento contemporâneo e já encarecidos por Anísio Teixeira. Explica-se igualmente que a homenagem de Magno ao mestre e amigo tenha sido feita mediante um Seminário, no curso do qual apresentou uma nova Tópica do Recalque, que situa o lugar topológico de correlação das resistências sintomáticas, apontando para o trabalho infinito de prover arquivos informacionais de disponibilidade funcional, para o que a análise trabalha contra o espontaneísmo do sintoma, tentando reconciliá-lo com sua emergência factícia e fictícia. Uma pedagogia seria, então, o exercício ou askésis dos processos de sintomatização, providenciando a eventual emergência de singularidade, experienciável para cada um em regime de solidão, que, na Nova Psicanálise, é experiência de Haver. É o real dessa experiência que nos torna absolutamente idênticos na situação de condenação à imanência, em regime de solidária solidão, que denota um vínculo absoluto em vazio, aquém do qual estamos na radical diferença das manifestações de cada um, premidos pelo impossível. Como o Bartleby de Herman Melville, a obra de Magno exalta e incita ao Não, à rebelião e à renúncia e não-resistência. Uma obra que enseja a redução 78 MAGNO, MD. Delineamentos da Nova Mente (an outline of New Psychoanalysis). Parcialmente inédito. O leitor encontra uma parte dessas observações em MAGNO, MD. A Rebelião dos anjos: eleutéria e exousía [Falatório 2007]. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2009, p. 120-48. Para uma aplicação do conceito de Pessoa ao campo do urbanismo, cf. ARAUJO, Rosane. A cidade sou eu. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2011.

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do sentido a simples desejo de não(-haver). Signos, significantes, sons, imagens, símbolos, ícones, traços, letras, algoritmos, partículas, cordas, poeira, tudo caminha na obediência ao único sentido, que empurra para a dissolução impossível e desejada, alucinação de extinção acalentada pela matéria, pelo Chi, pela substância (em sentido espinosista), pela physis ou qualquer outro nome que a loucura humana tenha forjado. Nisso, somos uma repetição do Haver. Esse “Não” psicanalítico, bartlebyano, emersoniano, bachelardiano, dos Fernandos Pessoa e de tantos outros que por ele se guiaram, destroça inclemente – sem fazer esforço – as ilusões de além, sendo ao mesmo tempo o mais genuíno exercício de afirmação de que nada se deseja senão o Impossível da Desistência consumada, limite absoluto (esse Impossível), espécie de sensor ou medida de comensurabilidade de todos os demais limites, aqui e agora afirmados possíveis e impossíveis. Medida que, quando a ela se recorre, serve de orientação para avaliar as lutas internas e intestinas contra ou a favor deste ou daquele limite; medida que ajuda a desistir do valor definitivo de qualquer medida intrínseca a tais lutas; medida que deita por terra e dissolve o poder dos limites que brandimos ou que diante de nós são brandidos, que defendemos ou rechaçamos mais ou menos vigorosamente. Outra estória é o que fazer com tais limites que se impõem, queiramos ou não, pois a guerra, como a análise, é infinita.

11. Na década de 1960, Magno andava às voltas com música, teatro, arte e literatura, além de suas incumbências contratuais como professor de escolas públicas e privadas. Em 1963, participou do II Festival de Novíssimos, promovido pelo Centro de Estudos de Música Brasileira do Diretório Acadêmico da Escola Nacional de Música. Inscreveu a peça musical Série Brasileira, composição sua em três partes – “Lamento”, “Reza” e “Macumba” –, que foi executada ao piano, no Festival, por Annita Iedda Cardoso Dias, com quem já estava casado79. 79 A partitura foi publicada, juntamente com o convite da época, em Revirão: Revista da Prática Freudiana, dez 1985, nº 3, p. 280-303.

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Por sua vez, a formação em artes plásticas no bacharelado e licenciatura da antiga Escola Nacional de Belas Artes contribuíra para que se aproximasse da experiência da Escolinha de Arte do Brasil, fundada por Augusto Rodrigues, em 1948, no âmbito do movimento internacional da educação pela arte. Nos Estados Unidos, por exemplo, a presença da arte no currículo escolar e extra-escolar já era forte, graças ao pensamento de John Dewey, que a defendia como parte do processo de integração da experiência na educação infantil. No Brasil, a partir da década de 1920, o modernismo e, em seu bojo, o movimento escolanovista, intensificaram as discussões sobre o ensino da arte nas escolas fundamentais, concebendo-o como instrumento mobilizador da capacidade de integrar imaginação e inteligência. Mais uma vez, a influência de Dewey é significativa, graças, como vimos, à atuação de Anísio Teixeira. As Reformas Educacionais de Fernando Azevedo no Distrito Federal (19271930), de Atílio Vivacqua no Espírito Santo (1928-1930), de Carneiro Leão em Pernambuco (1928) e de Francisco Campos em Minas Gerais (1926-1930) buscaram incorporar os princípios deweyanos voltados para o ensino da arte nas escolas. Além das iniciativas institucionais, artistas e escritores, como Anita Malfatti e Mario de Andrade, muito contribuíram para o movimento, a primeira, com cursos que oferecia para crianças e adolescentes em seu atelier na Escola Mackenzie, o segundo, com o curso para crianças na Biblioteca Municipal Infantil, criado pelo Departamento de Cultura de São Paulo, onde foi Diretor, entre 1936 e 1938. Outra contribuição do escritor foi na Universidade do Distrito Federal (UDF), criada por Anísio Teixeira, quando à frente da Secretaria de Educação e Cultura do Distrito Federal, entre 1931 e 1935. Lá, como professor do Instituto de Artes, Mario de Andrade colaborou para considerar a produção pictórica da criança com critérios investigativos, propondo o estudo comparado do espontaneísmo e da normatividade do desenho infantil e da arte primitiva80. Muitas dessas iniciativas foram abortadas pelo golpe de estado de Getúlio Vargas e a subsequente implantação do Estado Novo. A UDF, que também tinha entre seus quadros Cecília Meirelles, Afrânio 80

Rede São Paulo de Formação Docente. Ensino de arte no Brasil: aspectos históricos e metodológicos. 2011. Disponível em: http://www.acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/40427/3/2ed_art_m1d2.pdf

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Coutinho, Gilberto Freyre e Roquete Pinto, foi desmontada, com uma parte incorporada à Universidade do Brasil, sendo colocada nas mãos de setores católicos, tendo à frente Alceu Amoroso Lima e Francisco San Tiago Dantas, e a outra simplesmente extinta. A partir de 1947, renova-se o interesse pelo movimento da educação pela arte, com a valorização da arte da criança, agora sob o influxo de trabalhos como os de Viktor Lowenfeld e, mais tarde, de Herbert Read81. O foco passou a ser a concepção de que a criança é provida de meios de expressão próprios, que podem ser cultivados, incentivados e conduzidos mediante atividades que liberem sua intuição. Afastava-se a visão estética formal do gosto e da beleza em prol de um produto final que estivesse subordinado ao método criador, solidário do processo cognitivo e afetivo da criança, seu pensamento, seu sentimento e suas percepções82. Na onda dessa orientação, vários ateliers de arte para crianças foram criados no Brasil, em Curitiba, São Paulo, Recife e Rio de Janeiro, incluindo a Escolinha de Arte do Brasil de Augusto Rodrigues, que passou a funcionar como polo formador de operadores, que replicaram a iniciativa em outras cidades brasileiras83. Novamente Anísio Teixeira esteve presente: conheceu e apoiou o trabalho de Augusto Rodrigues na Escolinha de Arte84, quando retornou ao Rio de Janeiro, em 1951, para assumir a Campanha de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Magno frequentou a Escolinha de Arte do Rio de Janeiro nos anos de sua formação universitária no curso de Desenho, aplicando seus princípios em provas-aula de concursos e, depois, nas escolas onde atuou, como o Colégio Estadual André Maurois e Colégio Andrews. Orientou-se pelos objetivos que 81

LOWENFELD, Viktor e BRITTAIN, W. Lambert. Desenvolvimento da capacidade criadora [1947]. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1977 e READ, Herbert. Educação pela arte [1963]. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 82 LOWENFELD, V., op. cit., p. 19. 83 Importante lembrar que a Escolinha de Arte do Rio de Janeiro não se sustentaria sem o trabalho adjunto de Noêmia Varela. Ver Rede São Paulo de Formação Docente. Ensino de arte no Brasil: aspectos históricos e metodológicos, op. cit. 84 TEIXEIRA, Anísio. “As escolinhas de arte de Augusto Rodrigues” em Arte e Educação. Rio de Janeiro, v.1, nº 1, set. 1970, p. 3. Disponível em: http://www.bvanisioteixeira.ufba.br/.

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eram os de Dewey, Lowenfeld e Read: a defesa da efetividade das artes plásticas no currículo escolar, através da facilitação dos meios e condições para o exercício da atividade criadora, conduzindo o aluno à familiaridade com os materiais e a sua pesquisa e utilização adequada85. No Colégio Estadual André Maurois, teve a oportunidade de aplicar outra habilidade cultivada de infância: o teatro. Sua primeira experiência na direção de teatro havia acontecido em 1966, quando dirigiu o grupo amador da Paróquia do Preciosíssimo Sangue na Tijuca, com a encenação do espetáculo O Sal da Terra, de sua criação, com material de poetas e músicos brasileiros, além de material de sua própria autoria, como textos e músicas. No ano seguinte, já no André Maurois, a experiência cresceu, ao assumir a classe de teatro, sob condição – apresentada a Henriette Amado, então diretora da escola – de tratar a atividade profissionalmente, o que implicava ensaios exaustivos com os alunos nos finais de semana e apresentação ao público, com bilheteria86. Encenou o espetáculo O Sal da Terra II. O sucesso foi tanto, que acertou conceber e realizar a encenação do poema Por você por mim no Vietnã, de Ferreira Gullar, que teve apresentações sucessivas no Teatro Opinião e no Teatro Casa Grande, como parte de um espetáculo maior de Oduvaldo Viana Filho. Em meio a essas atividades, Magno ainda arrumou tempo para ir ao então Território Federal do Amapá, em 1965, para ministrar curso de formação para professores secundários, por designação do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, onde trabalhava, na qualidade de membro da equipe da CADES (Campanha de Aperfeiçoamento e difusão do Ensino Secundário)87. Por volta da mesma época, o encontramos professor da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor, onde cria o setor de Artes Plásticas, no IPQN – Instituto Profissionalizante Quinze de Novembro, no bairro de Quintino, zona norte do Rio de Janeiro, voltado para a “recuperação de pré-delinquentes”88. 85

Acervo do CFRJ, doc. 433a-433f e 452a-452j. Informação fornecida por MD Magno. 87 Acervo do CFRJ, doc. 648a-648b. 88 Acervo do CFRJ, doc. 359a-359j. 86

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12. Um encontro em 1958 catapultou sua obra, cujos efeitos só vieram à luz durante e depois dos anos 1960. Seu endereço: João Guimarães Rosa. A revista Senhor, veículo prestigiado naqueles anos, publicara pelo menos dois contos do escritor mineiro: Substância, na edição de abril de 1962, e A simples e exata estória do burrinho do comandante, na edição de abril de 1960. O primeiro conto virou de ponta cabeça o que o jovem universitário achava ser a língua portuguesa e suas possibilidades poéticas. Mas foi Primeiras Estórias que forneceu, ao estudioso de Lacan em que se tornara, as ferramentas para a concepção nuclear da estrutura do psiquismo. Antes, contudo, Guimarães Rosa ajudou o jovem escritor a pensar “a torto e a direito”. Nascia o livro Aboque/Abaque: crestomatia arcaica89. Ao longo dos 22 contos organizados em três partes – Primeiro Porte, Interlúdio e Segundo Porte –, redigidos entre 1964 e 1970, o leitor experimenta a sensação próxima ao que Freud denominou “estranhamento” (Unheimliche), ao detectar certa familiaridade de estilo com outros escritores, sem que, contudo, a proximidade se estabilize em reconhecimento, pois a irregularidade das diferenças é tal que a leitura ora salta, ora desliza, ora converge, ora dispersa, antes ainda da parada. O estranhamento do estilo se combina com o experimento modernista, ali repetido, de corporificar as palavras em léxicos quase irreconhecíveis, ao romper-lhes a composição e a semântica da língua cotidiana. Nos dois contos finais, esse procedimento se exacerba, chegando ao limiar da ilegibilidade. Logo na primeira página, a epígrafe, acompanhada de “perígrafe”, “antígrafe” e “grafígrafe”, adverte o leitor do inusitado da proposta que vai encontrar, com a mensagem subliminar de que não há autor ali, e sim multivocalidade, logro, automatismo, polifonia, cambalhota entre o verdadeiro e o falso. A produção literária coroava as veredas da arte e do artifício por entre as quais 89 Ab hoc et ab hac, em latim, se traduz por “a torto e a direito”. A primeira edição de Aboque/ Abaque foi da Editora Rio, em 1974, e está esgotada. No momento, a Editora NovaMente trabalha na composição de um volume onde espera reunir e publicar a obra literária de MD Magno, parte ainda inédita, parte coetânea de sua produção teórica em psicanálise, publicada de modo disperso. Para a relação entre psicanálise e poesia nesse autor, o leitor pode acessar “Revirão Guarany: Magno conversa com Jussara Salazar” em Suplemento Literário de Minas Gerais, nº 58, abril de 2000: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais. Também disponível em: http://www.novamente.org.br/arquivos/md00-reviraoguarany-pdf_1372864538.pdf.

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a criança e o jovem de Campos dos Goytacazes fora levado, e anunciava, sem sabê-lo, uma das marcas da produção teórica vindoura: o inconsciente fractal, a Pessoa como dissimetria ambulante, aspirando a haver ninguém90. Em Falatórios e SóPapos recentes, Magno retomou a experiência literária de Aboque/Abaque, no só-depois do acontecimento, para reinteligir o que lá se passara. Declara que foi seu “rito de passagem”, nas cercanias de autores como James Joyce, Samuel Beckett e Oswald de Andrade, entre outros, exemplares no experimento da explosão das noções de sujeito, autor, estilo e narrativa91. Sugere o título do livro como um sintagma de abertura para a questão analítica “quem é eu”, indagando sobre a língua, a pessoa, a múltipla personalidade92. Lembra o baldado intento que então tivera – compor um livro sem estilo e sem autor –, para refletir sobre o creodo (caminho obrigatório) incontornável que se impõe à língua, que imediatamente faz coalescência de significado e sentido, por sua dependência do Primário e da neo-etologia. Daí, sua reconsideração do arranjo lacaniano acerca do sujeito do inconsciente e do significante puro, mostrando sua inadequação e impossibilidade. Dá como exemplo o penúltimo conto de Aboque/ Abaque, “As Possíveis Palavras ou Os Vamarís Combalhares”, que, do ponto de vista semântico, quase nada contém de reconhecível da língua, mas que, pela manutenção de alguma estrutura sintática e de sonoridade da língua portuguesa, acaba produzindo narrativa93. É possível escrever e retirar todos os sintomas da língua e fazê-la funcionar como máquina pensante, sem sujeito e objeto?94 Por fim, situa historicamente aquele empreendimento, a partir da questão mais ampla 90

Desnecessário lembrar a presença intensiva da obra de Fernando Pessoa na concepção da Nova Psicanálise, pois salta aos olhos o exercício de indiferenciação que a obra literária do poeta português faz, a começar pela desconfiguração que as pessoas que lá encontramos (Caeiro, Reis, Campos, Soares, etc.) atestam e promovem. Mas, como quem repete o dito popular de que, em relação a Fernando Pessoa, “o buraco é mais embaixo”, deixamos ao leitor as eventuais relações que possa fazer e adiamos, para trabalho futuro, o risco de apresentar nosso entendimento. 91 MAGNO, MD. Clownagens [Falatório 2009]. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2012, p. 171. 92 MAGNO, MD. Economia fundamental: metamorfoses da pulsão [Falatório 2004]. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2010, p. 99-100. 93 MAGNO, MD. Ars gaudendi: a arte do gozo [Falatório 2003]. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2006, p. 186-88. 94 MAGNO, MD. Ad Rem: primeira introdução à gnômica ou metapsicologia do conhecimento [Falatório 2008], op. cit.

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da modernidade, do modernismo e da pós-modernidade, localizando o livro no contexto nascente desta última, por sua vez, compatível com o estilo que acabaria moldando a própria produção teórica da Nova Psicanálise. Não lhe passa desapercebido que o intuito explosivo do livro calhava com a situação política do país (a ditadura militar)95. E esclarece sobre a primeira iniciativa de publicação de alguns contos no II Concurso Nacional de Contos, da Fundação Educacional do Estado do Paraná, em 196896. A regra determinava que cada autor poderia inscrever até três contos, necessariamente usando pseudônimo. A comissão julgadora era composta por Raimundo Magalhães Jr., Odylo Costa, filho, Antônio Cândido, Fausto Cunha e Themístocles Linhares. Magno inscreveu seis contos, distribuindo-os entre dois pseudônimos diferentes. Não levou o prêmio, mas foi surpreendido pelo comentário de Raimundo Magalhães Jr., na revista Manchete¸ que, ao discorrer sobre o concurso de maneira geral, reconheceu que, entre os concorrentes, havia dois trios de contos que eram do mesmo autor, que merecia um prêmio de pastiche, sendo tão bom quanto o Proust do Pastiches et Mélanges. À experimentação em música, teatro e literatura, juntou-se ainda o trabalho em artes gráficas e editoração, realizado em várias frentes: foi capista de livros da Bloch Editores bem como responsável por todos os projetos de editoração da Editora Rio, além de assumir a criação e editoração de três projetos consecutivos de relatórios internacionais do hoje extinto Banco Nacional de Habitação. A polivalência e a politecnia, aos poucos adquiridas e exercitadas, resultaram em um conjunto de atividades que transitaram pela pintura, pelo desenho e pelas artes gráficas, articulando texto, fala, gesto e visual no teatro, fazendo o texto passar a ritmo e manejo de massa sonora na música, culminando na literatura97. Sem saber, Magno estava sendo preparado para encarar a barra lacaniana. 95

MAGNO, MD. SóPapos 1. 2011. Inédito. Acervo do CFRJ, doc. 654a-654d. 97 Nos anos seguintes, o autor não abandonou sua relação prática com a pintura, realizando duas exposições de seus quadros, a primeira, intitulada Adão e Eva no Para-Iso, na Galeria Matias Marcier, no São Conrado Fashion Mall, no Rio de Janeiro, em 1989, e a segunda, intitulada Neron/Noren, na sala Candido Portinari, na UERJ, em 1991. Acervo do CFRJ, Memorial ao Concurso de Professor Assistente no Departamento de Editoração da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, apresentado pelo professor Magno Machado Dias, em maio de 1977, doc. 353a-353d. O leitor encontra o catálogo da exposição Neron/Noren reproduzido como anexo a MAGNO, MD. Est’Ética da Psicanálise, parte 2, vol. 2 [Seminário 1991]. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2002, p. 165-6. 96

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13. Para acompanhar a repercussão de Primeiras Estórias na reformulação da psicanálise no Brasil, por via da apropriação de Magno, é preciso apresentar outro encontro decisivo no percurso do autor: Jacques Lacan. Vimos o convite feito ao psicanalista francês em 1975. Àquela altura, o livro Écrits havia sido minuciosamente estudado pelo já discípulo brasileiro, que o “descobrira”, em 1969, por intermédio de Giovanna Piraccini 98, conhecida por todos como dona Vanna, da Livraria Leonardo da Vinci, tradicional reduto de escritores, intelectuais e estudantes universitários, no centro do Rio de Janeiro. A articulação conceitual de alto grau abstrativo fisgou de imediato o praticante de literatura, arte, música e teatro, professor por ocasião e necessidade, que, na sequência, passou a articular suas aulas de comunicação e semiologia a partir da abordagem lacaniana, promovendo grupos de estudo dedicados a essa vertente da psicanálise, praticamente desconhecida no Brasil, em particular no Rio de Janeiro. O curso de mestrado em comunicação e o de doutorado em teoria literária, ambos realizados na UFRJ, sob orientação de Mário Camarinha da Silva e na convivência com professores como Emmanuel Carneiro Leão, na década de 1970, deram oportunidade para os primeiros registros teóricos do processamento da psicanálise vis-à-vis o caminho percorrido até então. Destacam-se dois temas-conceitos que, por vias específicas, estruturam a renovação que se entrevê nesse período: o espelho e a obra-de-arte. Ao Rosa-máquina-de-triturar-Lacan, juntou-se Marcel Duchamp, máquina-de-fazer-desfazer-não-importa-o-quê. O primeiro trabalho mais consolidado com resultados de pesquisa em chave de leitura lacaniana foi apresentado como Seminário em 1976 e publicado um ano depois com o título de Senso contra Censo: da obra-de-arte, etc. (introdução a uma semasionomia)99. Nele estão reunidos textos escritos entre 1972 e 1975, que circularam na revista LUGAR, à medida que produzidos ao longo da pós-graduação em comunicação na UFRJ. Já no título se 98

Informação fornecida por MD Magno. MAGNO, MD. Senso contra Censo: da obra-de-arte, etc. (introdução a uma semasionomia), op. cit. 99

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indica o horizonte da reflexão. De um lado, o sentido – senso –, que só há em avessamento, como em uma banda de Moebius, que, cortada, transforma-se em banda bilátera, onde habita o raciocínio binário de oposição e exclusão – censo, portanto. De outro lado, a proposta de contribuição ao campo de investigação aberto por Lacan e a partir de seus achados, com a concepção de uma semasionomia: o “acompanhamento do processo” da obra de arte, sua marca ou sinal (semasia), sabendo que essa regulagem ou governo (nomós) são impossíveis100. Em outras palavras, um projeto teórico que erigia a obra de arte como espaço privilegiado para detectar a emergência da criação, entendida como ato poético, e seu condicionante, o trabalho inconsciente. O argumento principal vinha acompanhado de seis artigos – o etc. do título –, que expunham aspectos diferentes e convergentes das teses lacanianas, com algumas proposições criativas, que, hoje, em consideração retrospectiva, apresentam discretas intervenções na orientação de Lacan compatíveis com a crítica que dela seria feita a partir da década de 1980101. A proposta de uma semasionomia não deixava de evocar a semanálise, de Julia Kristeva, que também se propunha como contribuição à psicanálise lacaniana no campo da semiótica e da análise do discurso102. Mas, enquanto a semanálise aspirava a mostrar o texto (poético, literário ou outro) como composição significante de múltiplas conexões linguísticas e sociais, donde o conceito de intertextualidade, partindo dos trabalhos de Mikhail Bakhtin, a semasionomia se apresentava como uma teoria da arte que pretendia com-siderar (no sentido de siderar junto com) a obra de arte, o poético, como sinal 100

MAGNO, MD. Senso contra censo, op. cit., p. 84. Os seis artigos que compõem Senso contra censo discutem aspectos da teoria lacaniana do sujeito e do significante, além de abordar a obra de Cézanne e dialogar com a ideia de Walter Benjamin sobre a reprodutibilidade técnica da arte. Destacam-se algumas intuições teóricas esboçadas, que ganhariam, mais tarde, contornos mais precisos, deslocados do contexto lacaniano: 1) um esboço de crítica ao conceito lacaniano de sujeito, apontando que, para além de enunciado e enunciação, há “denúncia” de sujeição; o não-humano do Revirão; o estatuto genérico da linguagem; a produtibilidade técnica da arte. De modo geral, esses artigos indiciavam o entendimento de que o “paradigma” do conhecimento e da cultura já não se apoiava mais na língua linguística, no viés subjetivo-objetivo do conhecimento e no biológico como padrão incontornável da espécie dita “humana”. 102 KRISTEVA, Julia. Uma introdução à semanálise [1968]. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2005. 101

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ou marca do Impossível constituinte do desejo inconsciente. A obra de arte, tal como o ato analítico, testemunhava a impossibilidade de haver relação, no sentido lacaniano de a relação sexual ser impossível. Testemunhava, portanto, a sexão (a secção do sexual), o corte, a separação radical a que um percurso de análise, se realizado, terá sido conduzido. Em outras palavras, “o trabalho da arte é senso contra censo, é subversão do cálculo e da censura – o que valeu as estéticas do desvio e da transgressão –, mas sobretudo subversão do cálculo que não se faz no trabalho inconsciente, que não pensa nem calcula, e subversão da censura à morte, ao corte, à castração que com o belo e com o bem se tapa. O trabalho do censo é o cálculo da ficção (fixão), ao passo que o do senso é respeito à secção (sexão)”103. Senso contra censo se apoiava explicitamente em, pelo menos, duas construções teóricas de Lacan: a topologia do sujeito como operação de corte, de que a banda de Moebius é a metáfora principal, com a algebrização da fantasia (sexual) que lhe é solidária, formulada como objeto a, e os quatro discursos como leitura abstrativa do processo de transferência, sob a égide do discurso analítico, como o próprio Lacan indicara104. Essas ferramentas, aplicadas ao campo da arte, destacavam a excelência do fazer artístico, ato poético ou ato de criação, a partir da proposta de uma “homotopia” entre a obra de arte e a função analítica, e o processo de criação como percurso de análise ou travessia da fantasia. Assim, “como o analista, enquanto quem ‘ocupa’ o lugar do (a)bjeto, lugar da causa, a obra-de-arte recolhe a transferência. (...) ela ocupa o lugar do analista enquanto ato analítico, onde se jogam transferência e interpretação (...). ‘Sua’ obra [a do poeta] é ato poético como ato analítico: a obra é análise”105. Ao situar a obra de arte do lado do ato analítico, reiterava-se a posição de Freud e de Lacan segundo a qual não 103

Op. cit., p. 37. “Lembrarei aqui a vocês os quatro discursos que distingui. Existem quatro, apenas sobre o fundamento desse discurso psicanalítico que articulo com quatro lugares, cada um deles lugar de apreensão de algum efeito de significante, e que eu situo por último nesse desenvolvimento (...). Muito bem, eu diria agora que desse discurso psicanalítico há sempre alguma emergência a cada passagem de um discurso a outro”. Em: LACAN, J. O Seminário, livro 20: mais ainda. Versão brasileira de M. D. Magno. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, p. 26. 105 Senso contra censo, op. cit., p. 68. 104

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se faz psicanálise da obra de arte, não se a interpreta, mas nela se reconhece a presença do mesmo não-saber, figura do Impossível Absoluto, que está na base da experiência analítica. Ao público, qual analisando, cabe escutá-la, na medida em que transferencialmente lá supõe o seu saber (do público) à obra. Daí que o Impossível fingido na obra causa as mais diversas manifestações, sejam de índole crítica, analítica, semiótica, historicista ou outra, que são falas de analisando, assim como o são os mitos e ilusões daquele(a) que os declina diante da neutralidade da função analista. A semasionomia proposta em Senso contra censo era um ensaio teórico sobre o processo de análise, concebido a partir da arte. A obra-de-arte era uma espécie de lugar atrator do Impossível, que Lacan formulara como não-relação – corte ou sexão, conforme a contribuição de seu discípulo brasileiro –, o que a lançava (a obra) na mesma função que a psicanálise concebera como sendo a do ato analítico – neutralidade, incalculabilidade, não-saber. Mas a proposição era mais precisa: o ato analítico replicava a função soberana do ato poético, radicalmente anônimo, sem dono, sede ou contorno epistêmico, de que a obra de arte dava testemunho. A psicanálise, como teoria, contribuía para discerni-lo e, como prática, eventualmente poderia provocar sua emergência. Se e quando o fizesse, emergiria analista, homotópico à obra de arte. Se a relação entre obra e público, analista e analisando, era transferencial, no sentido abstrativo que Lacan indicara, uma teoria que tomasse esse fenômeno como ponto de partida seria indiscernivelmente psicanálise e teoria da arte.

14. Junto com o aporte que a teoria lacaniana forneceu para a tese da homotopia entre a obra de arte e a função analista, sem o qual ela talvez não fosse conceptível, a frequentação da obra de Marcel Duchamp foi fundamental como apoio a duas vigas-mestras conceituais da Nova Psicanálise: em primeiro lugar, a composição e a demonstração do princípio freudiano segundo o qual o inconsciente não tem registro de morte, embutido no axioma da Pulsão, tal como Magno o propõe: Haver desejo de não-Haver. Daí se extrai a desconcertante afirmação de que a morte não há. A segunda consequência duchampiana desta psicanálise é a sustentação do valor da Arte como pura e simples articulação, 63

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generalizando e radicalizando o que possa indicar o radical latino ART106. Na primeira, encontraremos a ideia específica de Espelho, que foi se urdindo também com Guimarães Rosa. Na segunda, mostra-se o rastro da crítica e destituição da noção de sujeito (sobretudo na visada lacaniana) e os elementos de construção do conceito de Pessoa. A demonstração da relação entre as duas obras MD – Marcel Duchamp e MD Magno – extrapola em muito o escopo desta apresentação, mas vamos rapidamente fornecer elementos para o leitor situar o que está em jogo. Como artífice e pesquisador do campo da arte, Magno conhecia profundamente a obra de Duchamp. Além de dar aula sobre estética e história da arte na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, foi lá que realizou seu Seminário, no âmbito da transmissão da psicanálise lacaniana, sobre Marcel Duchamp, no segundo semestre de 1976. O Seminário foi intitulado Marchando ao Céu, Marcel Duchamp, Marchand Du Sel107(em um arranjo fonológico com um dos pseudônimos do artista), cuja gravação se perdeu, o que impossibilitou transcrevê-lo. O tema Duchamp retornou em vários Seminários nos anos subsequentes, com referências precisas, mas sintéticas, acompanhadas de reiterados convites do autor a que se estudassem os protocolos duchampianos para melhor acompanhar e sacar o que estava sendo proposto como renovação da psicanálise. Le Grand Verre ou La Mariée mise à nu par ses célibataires, même, Grande Vidro ou Vidrão, como Magno o traduz, serviu como metáfora para mostrar a impossibilidade absoluta de atingimento da morte e a experiência de condenação a Haver. Magno chegou a se referir à sua própria teoria como seu Vidrão108. Elaborada a partir de 1912 e concluída (ou deixada inacabada) em 1923, o Vidrão é ininteligível sem as notas da Caixa Verde, anotações de Duchamp sobre o processo de concepção desta obra, publicada em 1934. Sua descrição é conhecida: um vidro duplo, de 2,77 cm de altura por 1,77 cm de largura, na espessura de 0,86 cm, emoldurado em liga de metal, pintado a óleo 106

MAGNO, MD. Clavis universalis: da cura em psicanálise ou revisão da clínica [Falatório 2005]. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2007, p. 32-3. 107 Cartaz de divulgação. Acervo do CFRJ, sem numeração. 108 MAGNO, MD. Arte & Fato: a nova psicanálise, da arte total à clínica geral [Seminário 1990]. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2001, v. 1, p. 78.

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e dividido horizontalmente em duas partes109. A parte de cima corresponde ao domínio da Noiva (La Mariée) e um de seus elementos é o Enforcado Fêmea (Pendu Femelle). A Noiva também recebe a denominação de O Esqueleto, Motor-Desejo, Vespa, A Virgem. Na parte inferior, à esquerda, estão os moldes málicos ou máchicos (Moules Malics), domínio dos solteiros ou celibatários, também denominado Aparelho Solteiro, Máquina de Eros, Cemitérios de Librés e Uniformes (ou Fardas)110. Há outros elementos que as anotações da Caixa Verde ajudam a decifrar: na parte mais alta da metade superior flutua uma nuvem de cor acinzentada, a Via Láctea, que envolve três tabuletas ou os Letreiros de Cima, cuja função é transmitir aos celibatários as descargas da Noiva. Ainda na parte superior, na extrema direita, há uma zona de pontos, que são os disparos dos celibatários. A parte inferior é a “base arquitetônica da Noiva-Apoteose”, segundo Duchamp, onde nove moldes málicos estão “como que envoltos por um espelho que lhes envia sua própria complexidade até aluciná-los”111. À direita dos moldes, está a Carreta, um carrinho com patins, que aloja um Moinho ou Batedeira de Chocolate, seu propulsor. Um engenhoso mecanismo faz com que o Moinho anime a Carreta com um movimento de vaivém, acompanhado de litanias a serem recitadas: Vida lenta, Círculo vicioso, Onanismo, Horizontal, Pacotilha de vida. Formado por sete cones, um Tamis, espécie de peneira utilizada na indústria farmacêutica ou na preparação de alimentos, se encontra à direita da Carreta. Está unido aos moldes málicos por um sistema de tubos capilares. Entre a Batedeira de Chocolate e o Tamis, abrem-se e fecham-se Tesouras. A Batedeira, que ocupa a parte central da metade inferior, é definida pelo que Duchamp chama de “adágio da espontaneidade”: “o solteiro mói ele mesmo o seu chocolate”. Há ainda as Testemunhas Oculistas, que são figuras geométricas, espécie de porção voyeurista do erótico suscitado no e pelo quadro. 109

Segundo informações do site do Museu de Arte da Filadélfia, onde a obra se encontra. Cf. http://www.philamuseum.org/collections/permanent/54149.html 110 Seguimos a descrição de Octavio Paz em Marcel Duchamp ou o castelo da pureza. São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 30ss. Cf. também CLAIR, Jean. Sur Marcel Duchamp et la fin de l’art. Paris: Gallimard, 2000; TOMKINS, Calvin. Duchamp: uma biografia. São Paulo: Cosac Naify, 2004. 111 Duchamp apud PAZ, Octavio, op. cit., p. 34.

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Essa complicada maquinaria, que o Vidrão e a Caixa Verde compõem, se articula em três partes, uma plástica, uma literária e outra sonora, como se deduz da identificação sumária de seus elementos. Pode-se descrever seu funcionamento da seguinte maneira: a Noiva envia a seus celibatários um fluido elétrico ou magnético, através do Letreiro de Cima. Aqueles, como moldes málicos, se inflam e emitem, por seu turno, um gás que, após algumas peripécias, passa pelos sete cones do Tamis, enquanto litanias são recitadas pelo Carrinho ambulante. O fluido, filtrado pelos cones e convertido em um líquido, chega até as Tesouras que, em movimento de abre e fecha, o dispersam e uma parte, explosiva, dispara para cima, atingindo a zona dos tiros. Nesse momento, a Noiva se desprende imaginariamente de suas vestimentas. Nas indicações de Duchamp, a origem desse motu erótico-mecânico é o Motor-Desejo, um dos órgãos da Virgem, que dela está separado por um esfriador de água, expressando o fato de que “a Noiva, longe de ser um pedaço de gelo sem sensualidade, recusa calidamente (não castamente) o inopinado oferecimento de seus solteiros”112. Fecha-se, assim, o circuito ou o motu perpétuo que se iniciara com o Motor-Desejo da Noiva. Magno radicaliza um elemento comum presente em vários entendimentos propostos dessa obra ao longo do século XX: o Vidrão desbaratou as artes plásticas e, por tabela, as artes em geral, criando problemas para o pensamento em vários campos, pois é como se Duchamp declarasse: “A arte acabou! Encerrei o assunto”113. Seu trabalho de desertificação ou desraciocínio mostrou que sobra apenas o processo ARTiculatório e nada mais, ao dar o golpe que acaba com as fronteiras entre arte, ciência e filosofia, evidenciado na tecnologia contemporânea, que é a Grande Arte114. Além disso, o Vidrão exemplifica o que o próprio Duchamp destacou como um propósito seu: a indiferença do olhar, longe, portanto, da suposta supremacia da visão retiniana. Afirmou Duchamp: “tive a intenção de fazer 112

Idem, p. 36. MAGNO, MD. Revirão 2000/2001. I. “Arte da Fuga”; II. Clínica da Razão Prática. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2003, p. 226. 114 MAGNO, MD. Ars Gaudendi: a arte do gozo [Falatório 2003], op. cit., p. 246-7. 113

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não uma pintura para os olhos, mas uma pintura em que o tubo de cores fosse um meio e não um fim em si. (...) Há uma grande diferença entre uma pintura que só se dirige à retina e uma pintura que vai mais além da impressão retiniana (...). É isso que ocorre com os religiosos do Renascimento. O tubo de cores não os interessava. O que os interessava era expressar sua ideia de divindade desta ou daquela maneira. Sem pretender o mesmo e com outros fins, tive a mesma concepção: a pintura pura não me interessa em si nem como finalidade”115. Para Magno, essa via significava retomar para as artes visuais, e na contracorrente das artes retinianas, “a questão fundamental da organização do espaço e do tempo em função da pulsionalidade da libido, da sexualidade humana”116. Vê-se como, junto com Lacan, estavam disponíveis os elementos para a proposição segundo a qual a obra de arte só poderia ser analista (função indiferenciante), jamais analisando (tendência de configuração), uma vez que a própria ideia de obra e a de arte haviam entrado em periclitância com Duchamp, e junto com elas, suas coadjuvâncias estéticas e políticas de cena e significação: a crítica, a interpretação, a semiótica ou a história da arte. Restava-se concentrar na estrutura mínima da máquina desejante: o Vidrão e a impossibilidade de atingimento d’A Noiva / Morte ou o Revirão e a consequente neutralização do sentido. Por isso, o Vidrão serviu como apoio para se reconsiderar novamente a psicanálise, a partir e apesar de Lacan. Essa obra seria uma visão primitiva, bruta e direta da fórmula mínima da pulsão – Haver desejo de não-Haver –, uma ARTiculação por meio da qual se mostrava que não se deseja senão não-Haver, sendo sua consecução absolutamente impossível, tão desejada e inatingível quanto A Noiva, que, nesse sentido, pode ser o Absoluto Intocável (um dos nomes da Noiva é a Virgem), ou a experiência d’A Morte impossível. Nós outros somos moldes málicos, celibatários, condenados a haver desejando seu simétrico (não-Haver). Magno faz questão de traduzir moules malics por moldes málicos ou máchicos, e não machos, por entender que não se trata da oposição entre feminino e masculino, e sim da simetria impossível 115 116

Apud PAZ, Octavio, op. cit., p. 49. MAGNO, MD. Arte & Fato, op. cit., p. 58.

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entre Haver e não-Haver, que nos lança a todos, machos e fêmeas anatômicos, em suas diversas expressões sexuais, no processo masturbatório (a Batedeira de Chocolate) de atingimento de um impossível, o que inclui o sentido lacaniano de não haver relação sexual117. Em suma, trata-se da “grande Apoteose da Virgindade, inatingível, intocável”, sendo os Moldes Máchicos “formações possíveis do chamado Desejo, do chamado Tesão, na tentativa desse atingimento”118. Como o próprio autor resume, “nessa tentativa de apresentar-lhes como funciona o meu Vidrão, mostrei que o movimento pulsional do que quer que haja, essa energia neutra funcionando na impossibilidade de reduzir-se a si mesma a zero, vai resultar numa série de metamorfoses, avatares. Partindo, então, desse núcleo, radicalizando o conceito freudiano de Pulsão de Morte, tomando-o como base, como fundamento da estruturalidade, e tentando acompanhar por vias já estabelecidas, pelo menos em seu desenho grosseiro, seu esboço, por Freud e retomadas por Lacan, é que tento construir um aparelho que desenharia os avatares, as transformações, a metamorfose contínua desse movimento da libido”119. Por fim, de Duchamp também se recolhe a lição do ready made, que acirra o sentido e uso do ARTiculatório, ao mostrar que a arte é um ato de apropriação, como acontecimento, de algo corriqueiro no mundo. É um gesto de desumanização da arte, de radical artificialização por indiferença sexual120, ou, como afirmou Duchamp, por “indiferença visual”, acompanhada de “uma total ausência de bom ou mau gosto – de fato, uma total anestesia121. 117

MAGNO, MD. Revirão 2000/2001, op. cit., p. 227. Idem, p. 228. Em uma anotação distribuída para a equipe de editoração do Falatório 2002, Psicanálise: Arreligião, Magno afirma que “a Realidade é SUPOSTAMENTE racional, só faltando revelar as razões possíveis. Isto não identifica o real (no nosso caso o Haver) a nenhum racional conhecido. (...) A Realidade das Idioformações (Realidade do Haver) resulta em não haver Morte. É do confronto com isto que decorre toda possibilidade moral para a psicanálise: Condenação ao Haver // Eternidade da vida Humana // Não atingimento da Morte (Marcel Duchamp: La Mariée, Le Pendu Femmelle, é A Morte, Aimée Selamor – como eu a nomeei [em 1990] – a parte superior do Vidrão. Éros c’est La Vie, Rrose Sélavy é a parte inferior (...)”. 119 Idem, p. 103. 120 MAGNO, MD. Arte & Fato, op. cit., p. 55. 121 DUCHAMP, Marcel. Conferência no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque em 19 de outubro de 1961. Disponível em: http://radicalart.info/things/readymade/duchamp/text.html. 118

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Com isso, nos interessa indicar uma linha de composição teórico-clínica que, na Nova Psicanálise, vai da obra de arte como função analista à Pessoa como work in progress. Com efeito, a extensão e generalização do conceito de Arte como articulação somadas à experiência analítica como perda de sentido ou Revirão acabam resultando na concepção do próprio processo de análise como processo de artificialização. Quanto mais avança a ação dissoluta e dissolvente da análise, maior a disponibilidade para o não-importa-o-quê, maior a desconfiguração das formações da Pessoa e menor o efeito de co-naturalização do sintoma. Em um momento crucial de virada conceitual da psicanálise, ao longo do seminário Grande Ser Tão Veredas, em 1985, Magno retoma seu percurso em psicanálise através da arte e afirma que “a psicanálise, em sua prática, é a arte de transformar o sonhador em artista”122. Quase duas décadas depois, esse aforisma é reelaborado, à luz da Teoria das Formações e da Pessoa, para conceber a psicanálise como caminho de facilitação para que cada um tenha emergência como obra de arte, donde a análise como perene criação artística das Pessoas, ou seja, a análise como infinita123. Como singularidade, a Pessoa é uma “máquina de fazer infinitudes” ou “máquina eliminadora de fronteiras”124, na medida em que, co-movida pelo Real – lugar a que essa singularidade se reporta –, transforma o mundo, desfigurando-o como fixão encontrada, para constituir mundo como fixão libatória, aquela mesma masturbatória ficcionada por Duchamp125. Assim, “só existe Pessoa em processo, tentando levar-se ao infinito mediante a anulação progressiva do valor de sua individualidade. É isso que quer dizer work in progress, o qual é work of art”126.

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MAGNO, MD. Grande Ser tão veredas [Seminário 1985]. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2006, p. 131. 123 MAGNO, MD. Clavis universalis, op. cit., p. 185-9. 124 Idem, p. 185, p. 187. 125 A partir de um jogo fonológico, Magno propôs uma escrita da Mariée, de Duchamp: La mare y est mise à nue par sexe libatoire, même. E explica: a poça d’água ou de lama (la mare) ali está posta em nuvem (mise à nue) por sexo libatório, isto é, por sexo desperdiçado, pois todo sexo é desperdício, já que não há relação sexual. Ver Arte & Fato, op. cit., p. 58. 126 MAGNO, MD. Clavis universalis, op. cit., p. 191.

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15. Afirmamos que, ao Rosa-máquina-de-triturar-Lacan, juntou-se Marcel Duchamp, máquina-de-fazer-desfazer-não-importa-o-quê, a propósito dos dois temas-conceitos que estruturaram a renovação da psicanálise que se entrevê no trabalho de Magno na década de 1970: o espelho e a obra-de-arte. Da segunda, esperamos ter mostrado alguns circuitos de conexão. Passemos, então, ao Espelho e a Guimarães Rosa. Escrito concomitantemente a Senso contra censo, Rosa rosae: leitura das Primeiras Estórias de Guimarães Rosa acabou se transformando, do ponto de vista de carreira universitária, em tese de doutorado em letras, que Magno defendeu na UFRJ em 1980. Mas, àquela altura, já era texto acabado e conhecido, tendo sido apresentado como um dos cursos proferidos pelo autor no Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII, em Vincennes, no outono-inverno setentrional de 1977-78, o outro curso sendo Senso contra censo127. São nítidas, nesse texto, a apropriação mais extensa da obra de Lacan bem como uma acuidade maior, não desprovida de criatividade, quanto ao trato dos elementos conceituais (significante, letra, Outro, sujeito, falta, a “metaforonímia paterna”, a “folia trinária” entre real, simbólico e imaginário, borromeanamente recuperada como estrutura quaternária, entre outros), apresentados em suas relações lógicas. Ainda que voltado para a análise de Primeiras Estórias, o livro abre espaço, no capítulo inicial, para uma breve transversal de Grande sertão: veredas, tendo como horizonte a proposta da semasionomia, da qual se extrai a tese de que “Grande sertão, enquanto obra, é análise”128. São propostos três planos que se entrecruzam nesta obra-prima de Rosa: de um lado, a travessia dos acontecimentos, que se encontra no nível do narrado ou do “amarrado” do texto – as aventuras de Riobaldo e as marcas sintomáticas que, desde a infância, o carregam, o encontro com Diadorim e a paixão pelo jagunço, em meio à guerra do sertão. De outro lado e em outro 127

Acervo do CFRJ, doc. 480 a-480b. Rosa rosae foi publicado em 1985 pela aoutra editora, primeira editora do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro. 128 MAGNO, MD. Rosa rosae: leitura das Primeiras Estórias de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: aoutra editora, 1985, p. 46. Grifo do autor.

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nível, está a travessia da fantasia de Riobaldo que é Diadorim, morta, no que se equipara à alucinação do desejo (anotado como objeto a). Para usar a metáfora duchampiana, a travessia ou cura de Riobaldo se realiza entre Diadorim molde málico, decadentizado em uniforme macho de jagunço, e Diadorim a Virgem, Morta (trauma agudizado pelo fato de seu perecimento na guerra e pela “descoberta” de que Diadorim-Reinaldo é Maria Deodorina, “a Deus dada”129). Mas é a rememoração que refaz a travessia, o que, na obra, está no nível da narração ou “amarração” do texto. Essa rememoração equivale ao processo analítico, que reduz o sintoma a uma letra sem sentido, engendrando, na obra, o terceiro nível, mais invisível, da “desnarração” ou “desamarração” do nó sintomático terçado pelo texto, quando se realiza, só depois, a homotopia entre a obra de arte e a função analista, ou seja, a obra como análise, no percurso em três níveis do processo analítico. A desnarração depende da assunção, desde o lugar de Riobaldo analisando (e do leitor/público que está na mesma posição) da dissimetria entre os sexos e da impossibilidade da relação sexual. A excelência da obra de Rosa, nesse pormenor, é compor narrado, narração e desnarração de tal modo que emerge o Impossível incontornável: Riobaldo enamorado de Reinaldo/Diadorim não o toca em obediência à interdição moral do costume, e sofre por isso; conforme anatomia e registro em cartório, existe Maria Diadorina, mas disso Riobaldo não sabe e convive é com Diadorim, o que acrescenta em afetação à sua paixão; o sabê-lo é já da ordem do trágico, com a irreversibilidade da morte de Diadorim, “que revela o real em jogo na sexuação (de Diadorim e de Riobaldo, como de todo falesser130), deixando vislumbrar desesperadamente o que poderia ter sido”131. Contudo, o “poderia ter sido” também é encurralado pelo Impossível, desconsiderasse Riobaldo o proibido moral (a dita homossexualidade), efetivando a praticagem corporal; ou descobrisse Riobaldo a tempo que Reinaldo era Maria. Em ambos os casos, o tesão permutaria. Em todos os casos, o sexo permanece sempre outro e a relação sexual, impossível. 129

Expressão que, no nordeste brasileiro, significa “virgem”. ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 559. 130 Essa é a tradução proposta por Magno para o que Lacan denominou parlêtre ou “ser falante”. 131 Idem, p. 48.

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A rememoração da travessia se opera em relação transferencial, pois Riobaldo solicita a Zé Bebelo, chefe inteligente e valente dentre todos, que o salve. Por intermédio dessa suposição de saber que é adscrita ao antigo chefe, chega a recomendação de outro sujeito, o Compadre Quelemém de Góis. “Quem é Quelemém? É aquele que, no narrado, está na posição de analista: ‘diverso de todo mundo’”, a quem Riobaldo conta tudo132, para ter o sentido destrançado, e que a dor passasse e a história se desmanchasse. Quando se inicia Grande sertão, lê-se: “– Nonada. Tiros que o senhor ouviu...” O Riobaldo que aqui enuncia o faz em regime de terceiro tempo, o da desnarração, embora o leitor não o saiba. Desfeito o narrado em processo de narração, na travessia da fantasia, já é outra Pessoa a se dirigir a quem quer que possa ouvi-la. Em chave de leitura lacaniana, entenda-se esse “a quem quer que” como A barrado ou Grande Outro. Assim, “Riobaldo ganha (a guerra) e perde (Diadorim) no mesmo instante, no mesmo ato. E, depois do primeiro relato, depois da interpretação do seu relato, é no relato segundo, que, por escrito, ele passa: de analisando a analista: a séria travessia (...). Estar na posição do analista é estar na comemoração de uma sublimação – e a obra é escritura exarada dessa comemoração. Mas Riobaldo não existe – senão como sujeito dessa obra significante. É a obra que passa – passa a ser obra”133. 132

Idem, p. 52. Idem, p. 54. Chamamos a atenção para os lugares e funções dos conceitos e sua resultante como teoria: apoiado na leitura de Lacan, o escopo da análise proposta aponta para a emergência de obra homotópica ao ato analítico como significante, depois da passagem, pelo analisando, das possibilidades discursivas (que Lacan abstrai como quatro: histérica, mestre, universidade e analista). Em Senso contra censo e Rosa rosae, o significante que a obra é, como ato analítico, aponta para a in-significância, para o não-senso. A crítica posterior ao escopo lacaniano implicará, em Magno, a crítica ao aparelho de base linguística lá utilizado, que constituía uma verdadeira camisa de forças na abordagem do sintoma. Uma das intervenções teoricamente fundamentais foi conceber o Halo significante e deslocar para a operação de neutralização implicada na catoptria a instância, não da letra, como propôs Lacan, mas da pré-opositividade inconsciente, que, por quebra de simetria, se decanta em língua e em outros aparelhos linguageiros (onde se situariam a letra, o sujeito do enunciado e da enunciação, o significante metaforonímico, a metáfora paterna, de Lacan). Acompanhando detidamente a produção teórica de Magno em psicanálise, até o início dos anos 1980, vê-se a oscilação conceitual, pelo estado em curso da investigação, entre o uso arguto e rigoroso dos conceitos lacanianos e sua torção, pela entrada em cena de raciocínios que simplesmente não cabem no protocolo utilizado, como é o caso da lógica em espelho, que concebe o significante como “entre” enunciado e enunciação, como reviramento, como banda de Moebius, todas operações valoradas enquanto in-significância, perda de sentido, não-senso, neutralização, indiferença, real, fazendo do simbólico mais um caminho de abstração do que uma estrutura correlata do inconsciente. À medida que foram

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A conclusão da primeira parte de Rosa rosae desemboca na apresentação do conceito de Espelho, que tanto sustenta a análise apresentada quanto será o leme e a lâmina do estudo de Primeiras Estórias. O corte ou sexão que vige na impossibilidade da relação é espelho catóptrico, para usar um termo ausente do texto, mas presente como lógica (e que, nos Seminários seguintes, vai sendo alçado, aos poucos, à condição de princípio fundamental do Haver e do psiquismo: princípio catóptrico, função de simetria ou reversibilidade). Um espelho catóptrico é um espelho de avessamento pleno, muito além da reversão de imagem dos espelhos especulares. O Princípio do Espelho como catoptria, e não especularidade, significa conceber a mente como competência de avessamento, reversibilidade ou simetrização, na esteira da concepção da Pulsão como desejo de simetria absoluta, que não há (Haver desejo de não-Haver). Entre Haver e não-Haver, entre Riobaldo e Diadorim, há Espelho como superfície sem rosto, pura reflexão, onde tudo é simetrizável até à alucinação de não-Haver. Esse é o pathos fundamental: haver espelho como função mental de reversibilidade, que nos dá a chance de indiferenciar os opostos e reconhecer a equiprobabilidade do acontecimento e a equivalência moral134. Uma análise é Travessia do Espelho, em duplo genitivo: é anamnese do trauma da batida do Real, na impossibilidade de o desejo se extinguir, e indiferenciação das oposições tidas como contrárias, mutuamente excludentes, um lado (aparentemente) inalcançável para o outro e sem reparo possível. Mas, para isso, é preciso atravessar, romper a casca, virar ao avesso, para poder acolher o acontecimento e suas vicissitudes. Retornando a Grande sertão: veredas: “para além e para aquém de Riobaldo sofrer de Diadorim ou vice-versa, o de que se sofre, cada sujeito, é do espelho – espelho que Riobaldo não vê enquanto olha para Diadorim sem saber que olha mesmo é para o espelho”135.

detectados os limites do caminho simbólico de abstração, também se o abandonou, restando refazer novamente a teoria, partindo de outro construto teórico. 134 MAGNO, MD. Clavis universalis, op. cit., p. 191. 135 MAGNO, MD. Rosa rosae, op. cit., p. 55. Grifo do autor.

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16. Em Primeiras Estórias Rosa repete, de outro modo, o tema da travessia do espelho. Mas o faz como quem expõe “a carta da travessia operada”136 ou seu mapa de navegação. Ele repete a lógica catóptrica não apenas como função operante em níveis de narração, mas o faz sobretudo como a lógica que constrói a composição dos contos, em seus vários níveis de organização, mostrando, ao fazê-lo, a própria operação espelho. Na estrutura dos contos, se exibe o terceiro lugar como função neutra, de “abismo” ou “desorientação” que está na base de qualquer simetria, pareamento ou oposição. Magno avança na conceituação da catoptria, explicitando o entendimento da lógica reflexiva em regime topológico, ao tomar a superfície do espelho como superfície de Revirão, unilátera, com uma única margem e uma única borda. Assim, “o espelho, sua lógica, cujo efeito é a partição das imagens de um e outro lado, ele, em si, é puro corte, contrabanda uniface. Por isso ele pode operar a dialética das imagens, como faz o analista, o ato-analítico, que dissemos no espelho situar-se. Assim como é a operação que concebemos realizável pela obra – que, pela dialetização constante dos sentidos no entrelaço de sua perda, se faz de espelho, sem imagem”137. Assim, se Rosa fez uso, em Grande sertão: veredas, de uma grande narrativa para ali mostrar a rememoração da experiência de Real (espelho, desorientação, abismo, não-senso), no só-depois do acontecimento, em Primeiras Estórias, é preponderante a função artífice, construtora, na exibição da operação catóptrica. Utilizando uma metáfora musical, poderíamos dizer que, se em Grande sertão, nos são dados os elementos que estruturam a forma do concerto ou da 136

Idem, p. 69. Idem, p. 82. Entre a concepção do espelho proposta em Rosa rosae e a seção “A topologia do espelho”, proferida em 10 de agosto de 1978 – constante do Seminário Ad sorores quatuor: os quarto discursos de Lacan, o primeiro feito pelo autor no retorno de Paris –, um ajuste conceitual importante foi feito, ao se assimilar as propriedades topológicas da banda de Moebius à lógica da reflexão, com a afirmação de que “o espelho é uma banda de Moebius”. Uma das referências importantes dessa discussão são os raciocínios do estádio do espelho de Lacan, em relação ao qual Magno sugere um esquema alternativo, que ganharia contornos próprios nos Seminários seguintes: “Que garantia tem ela [a criança] para segurar aquela imagem? A garantia unilátera, indecidível, desorientada, não orientada absolutamente, a superfície do espelho. Ela só tem a garantia de que, radicalmente, ela é espelho”. Ver MAGNO, MD. Ad sorores quatuor: os quarto discursos de Lacan [Seminário 1978]. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2007, p. 123-150. 137

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sinfonia – os movimentos, o andamento, a exposição, o desenvolvimento, a recapitulação, a coda, seus temas, subtemas, diálogos, passagens tonais, etc. –, em Primeiras Estórias, nos é dado o princípio condutor da orquestração, que mostra o “como” da forma musical. Há uma batuta de maestro, antes não vislumbrável facilmente. Vamos ao livro: são vinte e um contos, sendo o conto central, mediano, o de número 11, intitulado O espelho, que parte a série de contos em duas metades de dez. Essa partição distributiva é um primeiro nível de simetrização, pareando as duas grandes metades de contos. Além disso, o primeiro e último contos, respectivamente As margens da alegria e Os cimos, embora legíveis como estória de modo autônomo, compõem, em avessamento, dois momentos encadeáveis em uma única narrativa, tendo em comum o personagem do menino. O conto O espelho é ele mesmo uma metáfora da travessia do espelho, narrada como “experiência, a que me induziram, alternadamente, séries de raciocínios e intuições”138. Nele é mostrada a angústia diante do espelho até o momento de visão do espelho por uma série de movimentos que o personagem faz, ao começar a procurar “o eu por detrás de mim” na fria lâmina refletora. Sua perquirição parte do fato de que o uso costumeiro, mundano, que as pessoas fazem do espelho costuma confirmar-lhes um modelo preexistente, ampliando o “ilusório, mediante sucessivas novas capas de ilusão”. Ao passo que aquela investigação era levada a cabo por um perquiridor imparcial e neutro, movido por curiosidade, desinteresse, urgência científica. O “segredo” foi sacar que era preciso abandonar o “visual” do “rosto externo”, anulá-lo perceptivamente, e “olhar não-vendo”. O conto descreve a ascese ou exercício de suspender progressivamente os rostos externos – o animal, a parecença com os pais, o semblante psicológico, as influências de gosto – para culminar no acontecimento de, “um dia (...) simplesmente lhe digo que me olhei num espelho e não me vi. Não vi nada. (...) despojara-me, ao termo, até à total desfigura”. Isto é, “viu” o espelho. 138 ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. 14ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 65. As citações do conto seguem essa edição.

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A excelência desse conto é insistir no apontamento do espelho, criar recursos para mostrar sua topologia, o antes e o depois da travessia, mesmo sabendo ser impossível dizê-lo. Em síntese, “o espelho cinde esse conto (O espelho) em dois semicontos – ou melhor, o espelho o duplica em seu enunciado, o opõe a ele mesmo de seu ‘outro’ lado, o vira pelo avesso, podendo re-virá-lo de retorno”139. Na continuidade do exame de Primeiras estórias, Magno propõe replicar o artifício do espelho, aplicado no conto nº 11, para mostrar que a operação de Revirão está presente na estruturação do livro como um todo, pois os vinte e um contos estão pareados (e não apenas o par As margens da alegria e Os cimos). Assim, a cada par – 1/21, 2/20, 3/19, 4/18, 5/17, 6/16, 7/15, 8/14, 9/13, 10/12 – uma lógica de avessamento se constitui, analisada com as ferramentas da teoria lacaniana, notadamente o jogo significante-significado, que é nomeação significante (S1) e arrolamento significante do saber nomeado (S2), vigendo, no entre-significantes, a barra, o corte, que, para Magno, é espelho, que anula, em posição terceira, a significância sustentada no entre-dois.

17. Gostaríamos de registrar que o terceiro estudo aplicado da Lógica do Espelho – se considerarmos que, junto com Rosa, o interesse de Magno por Duchamp se inscreveu na possibilidade de o artista estar às voltas com a construção do olhar como indiferenciação, a partir da topologia do Revirão – foi o entendimento da lógica de construção do quadro As Meninas, de Velázquez, apresentada no Seminário Psicanálise & Polética, em 1981140. O autor se afasta da interpretação corrente de que se trata, no quadro, da indicação do lugar vazio do sujeito do saber e do poder no século XVII. Segundo esta via, o lugar vazio seria representado pelo olhar que se coloca diante do quadro, para o qual convergem quase todos os olhares representados na tela, e que seria o mesmo lugar do rei e da rainha, por sua vez refletidos no espelho

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MAGNO, MD. Rosa rosae, op. cit., p. 93. MAGNO, MD. Psicanálise & Polética [Seminário 1981]. Rio de Janeiro: aoutra editora, 1986, p. 179-298. 140

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do fundo141. Por outro caminho, seguindo a hipótese do espelho uniface ou Revirão, para Magno, a pintura de Velázquez mostraria a estrutura do funcionamento mental: o espelho como superfície uniface que vira pelo avesso o que diante dele se coloca. Como? Propondo outras relações abstratas e de significação no quadro, mediante análises da ordem formal, perspéctica, das superfícies e profundidades, angulações deformadas, etc., parte-se da hipótese de que o artista pintou o quadro olhando-o como reflexo em um espelho. Se é assim, haveria uma dupla reflexão (espelho contra espelho) para tornar possível a presença do casal real refletido ao fundo, pois o rei e a rainha se encontrariam em outra posição que não a frontal à tela. O ponto principal e o ponto de vista do quadro seriam construídos abstratamente a partir do artista, e não do casal real. Além disso, há um jogo de luz que atravessa o quadro, subvertendo a lógica euclidiana de direita e esquerda, pois a luz incide de tal maneira que ilumina de todos os lados. Nesse sentido, também a luz é um elemento que funciona como banda de Moebius ou superfície uniface, de tal modo que Velázquez mostraria a construção de um espelho mental, tal como funciona o inconsciente em plenitude: consciência pura, Real ou puro corte.

18. Em sua breve estada em Paris, em 1975, Magno fez contatos que se revelaram importantes no desdobramento de sua formação e na disseminação do ensino lacaniano no Brasil. Foi apresentado a Jacques-Alain Miller, então diretor do Departamento de Psicanálise de Vincennes. Miller conhecera o texto de Lacan em 1963, por sugestão de Louis Althusser, de quem era aluno na Escola Normal Superior de Paris. Teve inserção fundamental na Escola Freudiana de Paris (EFP), fundada por Lacan depois que foi expulso, em 1963, da Associação Psicanalítica Internacional (IPA), e onde o psicanalista francês passou a desenvolver seu trabalho até dissolvê-la em 1980142. O ex-aluno de Althusser não apenas aderiu rapidamente à EFP como contribuiu de modo 141

O principal exemplo dessa leitura é o de Michel Foucault, em As palavras e as coisas, livro publicado em 1966. 142 Cf. ROUDINESCO, Elisabeth. História da psicanálise na França: a batalha dos cem anos, vol. 2: 1925-1985. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988, p. 407ss.

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decisivo para o próprio desenvolvimento teórico da psicanálise levado a cabo por Lacan, além de ter assumido a tarefa de reunir e publicar a obra do mestre francês. Através de Miller, Magno foi apresentado a Betty Milan, psiquiatra brasileira formada pela Escola de Medicina da USP, que estava em Paris fazendo formação psicanalítica com Lacan. Uma espécie de “fundação simbólica” do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro (CFRJ) se realizou na capital francesa, naquele mês de setembro, por iniciativa desses dois brasileiros. No ano seguinte, o Colégio seria criado no Rio de Janeiro, com sua fundação teórica explicada por Magno em artigo da revista LUGAR143 e oficialmente registrado em cartório em 1977. De retorno ao Brasil, entrou em contato com outros brasileiros que estavam conectados, de algum modo, ao ensino lacaniano, como, por exemplo, Durval Checchinato, de Campinas, e Jacques Laberge, de Recife, ambos do Centro de Estudos Freudianos (CEF)144. Desse contato resultou o convite para participar do IIIº Encontro Nacional do Centro de Estudos Freudianos, em Olinda (PE), realizado em setembro de 1976. O desconhecimento dos brasileiros em relação ao uso lacaniano da topologia, em especial do nó borromeano, fez da apresentação de Magno uma ocasião de desentendimento e rechaço de sua fala por parte dos presentes, com repercussões nos meses subsequentes, como o atesta a correspondência com Checchinato e Laberge. Em carta de 23 de março de 1977 ao primeiro, quando respondendo à possibilidade de o evento seguinte do CEF ser no Rio, como um encontro daquela instituição com o Colégio, Magno pede ao colega cuidado na sugestão da 143

Cf. n. 67 supra. No Rio de Janeiro a notícia da fundação parisiense do CFRJ e sua instalação na cidade carioca foi divulgada em matéria do Jornal do Brasil, na edição de 23 de outubro de 1975. 144 O Acervo do CFRJ possui cerca de 16 documentos, entre informes do CEF e cartas trocadas entre Magno e Laberge, no período que vai de 1976 a 1979. Além disso, constam aproximadamente 45 cartas trocadas entre Magno e Checchinato, no período de 1976 a 1982. O contato com este último havia sido indicado por Christian Simatos, então Secretário da Escola Freudiana de Paris, a quem Magno havia sido apresentado por Lacan. Para informações sobre a instituição de Recife, cf. http://www.cefrecife.org.br/o-cef/historia; SOBREIRA, Sílmia. “Entrevista: Antes e depois de meu encontro com Lacan. Paris – Julho 1977. Sílmia Sobreira entrevista Luiz Carlos Nogueira”. Em: Psicologia USP, 2004, 15(1/2), 109-123.

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ideia, “para não provocar suscetibilidades”, comentando ter ficado “espantado” com a animosidade que sua fala inadvertidamente provocou “entre lacanianos supostos” e sua “inabilidade para a escuta”. Conjetura, ainda, que o “mal-entendido” podia também estar ligado ao convite, então recusado, de inscrever o Colégio no CEF, “por tudo aquilo ter me parecido de uma inegável vocação totalitária”. Em sua avaliação, o Colégio não deveria “assentar sede (além da praça – que é o Rio), nem [correr] a nenhuma oficialização, salvo se necessário, de começo” 145. Por fim, alude à tentativa, que começava então a se esboçar no Brasil, de regulamentação da profissão de analista146, ventilada no encontro de que participara em Olinda, declarando com veemência sua posição contrária. Outra carta, dessa vez dirigida a Laberge, em 06 de março de 1978, é mais contundente na consideração das perspectivas de transmissão da psicanálise lacaniana no Brasil e da existência do Colégio. Na missiva, comenta sobre eventual iniciativa de lacanianos no Brasil no sentido de constituir uma “fusão” de interesses, que Magno recusa, explicando haver diferença entre iniciativas com feitio de “totalidade” e o apoio, mesmo institucional, que se 145

Acervo do CFRJ, doc. 106a-106d (carta manuscrita a lápis). Obtivemos de MD Magno o esclarecimento quanto ao motivo da animosidade em relação à sua apresentação em Olinda: os participantes, além de desconhecerem o uso lacaniano das propriedades topológicas do nó borromeano, acusaram o palestrante do Rio de Janeiro de estar “inventando coisas” sobre a teoria de Lacan. O contato entre o CEF e o CFRJ não progrediu e Magno não retornou mais a eventos de psicanálise no Nordeste. 146 A discussão sobre a regulamentação da “profissão” de analista frequentou os jornais cariocas desde, pelo menos, 1977, e ganhou espaço em 1980, coincidindo com a dissolução, anunciada por Lacan, de sua Escola. Mais uma vez, se repetia a presença do sintoma eclesiástico na psicanálise, que, desde os anos 1940, transformou a existência do pensamento freudiano no Planeta em luta de prestígio institucional, acompanhada de supostos poderes de prescrição – na mão contrária à indicação freudiana – sobre a legitimidade e legalidade de quem poderia praticar psicanálise. A pressão da IPA já resultara inócua sobre Lacan em 1963 e tentaria, no Brasil, desqualificar a existência de instituições, dentre elas o Colégio, voltadas para o estudo e transmissão da psicanálise. Mas o sintoma de viver de ecclesia também tinha atingido o legado de Lacan na França, reproduzindo-se no Brasil, em torno da “legítima” herança do mestre, haja vista a denúncia de Magno na carta citada. Cf. edição da revista Veja, com a matéria intitulada “Psicanálise em guerra”, de 30 de janeiro de 1980; revista Istoé, com a matéria “A baderna chega ao divã”, de 23 de março de 1980; Jornal O Globo, com matéria de capa do Caderno B, intitulada “Colégio Freudiano do Rio de Janeiro: a psicanálise, não pelos médicos, mas pelos psicanalistas”, de 04 de janeiro de 1980; e o Jornal do Brasil, com a matéria “Lacanianos brasileiros ‘bendizem’ a dissolução”, de 21 de fevereiro de 1980.

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fizesse necessário, sobretudo face a alguma “violência externa”. A carta ainda trazia esclarecimentos sobre o Colégio, motivada por correspondência anterior de Laberge, que enviara, de sua autoria, um texto intitulado “História de um projeto, o Centro de Estudos Freudianos”147. Era sugerido que, caso houvesse “outra eventual história”, poderiam ser incluídas informações relativas à existência oficial do Colégio, institucionalizada em 1977, mas que não-oficialmente “nasce, se o termo serve, em 1971, desde quando se começou a trabalhar e a produzir alguma coisa. Em 1972, aproveitamos a brecha em outra zona (comunicação) em que me concederam uma revista, e pariu-se Lugar”. Mas os esclarecimentos tinham, sobretudo, a função de passar a mensagem do lugar próprio de existência do Colégio, pois, mesmo que as datas não tivessem importância “em alguma estratégia de barrar eventual canalharia de poder”, declarava-se que “não somos (não quero sê-lo, pelo menos eu) nenhum herdeiro em luta com parente nenhum: o discurso psicanalítico em si mesmo não me parece designar as estruturas elementares do parentesco (se não pelo contrário). E mesmo os chamados herdeiros, de direito e meio de fato, nem por ‘portarem as relíquias’, como disse Lacan da Srta. Anna Freud, deixam necessariamente de desentender do essencial”148. Antes de retornar a Paris como professor assistente associado do Departamento de Psicanálise de Vincennes, Magno esteve em São Paulo a convite do Núcleo de Estudos em Psicologia e Psiquiatria (NEPP), para proferir um curso de “Introdução à Teoria de Lacan”, nos dias 16 e 17 de abril de 1977. Em carta endereçada ao diretor do Núcleo, Sócrates Nasser, datada de 06 de março, enviou seu projeto, dando orientações de como gostaria de vê-lo divulgado149. O curso intitulava-se “Já que lá canta aí...”, se apresentando como um “pequeno per-curso, introdutório à leitura de Jacques Lacan”, em uma primeira abordagem conceitual de elementos constituintes do Campo Freudiano, tal como apontados 147 Essa carta aparentemente se perdeu, pois não consta do acervo até agora identificado e numerado. O site do CEF indica, em seu “Histórico”, o seguinte artigo, a que não tivemos acesso: LABERGE, Jacques. “História de um projeto, o Centro de Estudos Freudianos”. Em: Revista Céfiso, nº 4, tomo 1, 1985. 148 Acervo do CFRJ, doc. 10a-10c (carta datilografada). Sublinhado no original. 149 Idem, doc. 331a-331c (carta manuscrita a lápis).

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por Lacan e sua Escola. Nas três aulas previstas, seriam abordadas questões da topologia e da linguística estrutural como leitura apta a abordar o inconsciente freudiano; e o questionamento das chamadas “ciências humanas”, para mostrar o não pertencimento da psicanálise a esse campo – que, ao contrário, pretendia aprisioná-lo –, bem como sua ruptura em relação ao discurso universitário e às ditas sociedades analíticas. Para tanto, os três temas – topologia, linguística e questionamento das ciências humanas – seriam desenvolvidos a partir dos conceitos de Sujeito, Outro e Significante. No Boletim do Núcleo, essa orientação foi seguida e o evento apresentado como “II Ciclo de Conferências – Problemas de Linguagem em Psicologia e Psiquiatria – Jornada introdutória à leitura de Jacques Lacan”150. Mas não sem um “mal-entendido”, que Magno, em carta datada de 12 de abril, solicitava ser desfeito publicamente. O Boletim do NEPP, cujo texto de apresentação do conferencista fora repetido pelos jornais de São Paulo, o situava como “diretor do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, associado ao de Paris”151. Na carta, Magno esclarecia que o Colégio só se autorizava “pelo interesse e dedicação de seus partícipes, não estando – de modo algum – filiado ou associado a qualquer instituição nacional ou estrangeira de cuja chancela fizesse alguma garantia”. Prosseguia, afirmando que “nosso encaminhamento nas pegadas de Jacques Lacan e sua Escola (o que não passa de suposição nossa) é declaração apenasmente nossa”, pois o contrário – se achar autorizado em nome de Lacan – seria se colocar “frontalmente em oposição” a seu pensamento bem como “às bases de sua Escola”152. Pedia-se, portanto, que a direção do Núcleo publicasse a carta em seu boletim seguinte, o que parece ter sido feito, como se deduz da missiva de Jorge Forbes a Magno, datada de 16 de agosto, onde informava o envio, novamente, de um exemplar do Boletim nº 4, com “a correção do engano cometido no nº 3”153. 150

Idem, doc. 136b. Idem, ibidem, grifo nosso. Quanto aos jornais, referimo-nos ao Diário Popular, edição de 06 de abril de 1977; A Gazeta, edição de 07 de abril de 1977; O Estado de São Paulo, edição de 13 de abril de 1977. No Jornal da Tarde e n’A Folha de São Paulo, as duas notas divulgadas, respectivamente em 06 e 12 de abril de 1977, não mencionavam ser o CFRJ “associado ao de Paris”. 152 Acervo do CFRJ, doc. 136a1-136a2 (datilografado). 153 Idem, doc. 334a (manuscrito a caneta). 151

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Ainda no primeiro semestre de 1977, Magno iria a Campinas, a convite de Durval Checchinato, que, em carta de 30 de maio, agradeceu efusivamente a presença do colega na Unicamp, transmitindo-lhe os comentários favoráveis e elogiosos dos demais participantes. O contato com o NEPP e com Checchinato não avançou, e Magno não retornou mais a Campinas. Esteve em São Paulo em 1984, por ocasião da 36ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), e, em 1988, por ocasião do quinto e último congresso d’A Causa Freudiana do Brasil, empreendimento de natureza singular, produzido em outro contexto, a que retornaremos adiante.

19. Não é de se ignorar os “mal-entendidos” que cercaram os primeiros contatos com outros brasileiros envolvidos com a psicanálise lacaniana. Se os acontecimentos subsequentes tivessem contrabalançado ou mesmo revertido essa tendência inicial, seria o caso de desconsiderar tais indícios. Contudo, o ulterior desenvolvimento do trabalho de Magno no Brasil testemunhou o crescimento exponencial do mal-entendido, transformado em confronto e ruptura institucionais com os próximos e os distantes, além de cerrado silêncio a respeito do autor e de sua existência em seu próprio país. Aos poucos, de modo análogo a Anísio Teixeira e se apoiando em algumas lições do mestre, o psicanalista brasileiro precisou prover as ferramentas de entendimento e análise da cultura do Brasil como sintoma, que viria a atingi-lo com forte pressão destrutiva, mas igualmente evidenciá-lo como típico representante do que esse assentamento sintomático tinha de melhor, quando seu lado criativo se impunha, em franca luta contra a vontade de destruição da vizinhança. A disseminação do ensino lacaniano no Brasil eviscerou o diagnóstico de Anísio Teixeira sobre o estado de coisas na educação do país, marcada por uma elite “diminuta e aristocrática” e um povo “analfabeto e mudo”. A primeira, com seu gosto pelo eruditismo de sabor jurisconsulto, mostrou-se analfabête154, quando foi necessário buscar, gerir e aplicar recursos de conhe154

Expressão utilizada por Magno, na carta a Durval Checchinato, onde faz referência, como vimos, ao “mal-entendido” da reunião do CEF em Recife, no segundo semestre de 1976. Ao se posicionar contra a regulamentação da prática da analista – questão debatida naquela reunião do

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cimento para acompanhar o cenário estruturalista em decadência, no qual se inseria o último ensino de Lacan. Não soube detectar os ventos da mudança, menos ainda aceitar que o fizessem. O segundo reiterou sua ignorância ressentida, fazendo coro com o sintoma nacional de macaquear o estrangeiro. Saltando fora de uma divisão ainda demasiado sociológica da partição elite / povo, pode-se dizer que o assentamento sintomático genérico da cultura brasileira, que nos afeta a todos, favorecia a paralisia e o retrocesso, pois, desde pelo menos o primeiro modernismo, uma verdadeira guerra era travada entre, de um lado, uma rara e insistente postura afirmativa do que o Brasil conseguia prover de melhor com recursos próprios, e, de outro, uma expressiva resistência e recusa ao deslanchamento propositivo dessa postura. A emergência da Nova Psicanálise e a existência institucional do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro estiveram no cerne dessa polaridade no último quarto do século XX.

20. Nos meses que se passaram entre o retorno da primeira viagem a Paris, em outubro de 1975, e a segunda estadia, para trabalhar e fazer análise com Lacan, no período de setembro de 1977 a fevereiro de 1978, as atividades ligadas à psicanálise começaram a assumir hegemonia no trabalho intelectual de Magno. O sábado era “o dia mais cheio: cartel com mais três membros do Colégio das 10 às 12 (Les Non-Dupes Errent) e, das 14 às 20, grupos sucessivos de trabalho”, com a terça-feira livre, “dedicada à leitura e escrita”. Assim o autor informou seu correspondente, Durval Checchinato, em carta de 04 de maio de 1976, quando sondado para viajar a Campinas155. Incluídas as rotineiras atribuições de professor universitário, o encontramos à frente da Editora Rio, que criara nas Faculdades Integradas Estácio de Sá, como diretor de, pelo menos, três coleções: a Semeion, que publicou, em 1976, os livros Para compreender Lacan, de Jean-Baptiste Fages, e CEF –, comenta: “Sobretudo quando se torna [tão?] fácil (confira-se nosso atual sistema universitário) ganhar um papelucho desses, ao mesmo tempo em que se comprova a ignorância crassa desses formandos todos, cada vez mais iletrados se não analfabêtes” [que, traduzido, é analfabestas]. Acervo do CFRJ, doc. 106a-106d (carta manuscrita a lápis). Sublinhado no original. 155 Idem, doc. 99a-99b (carta manuscrita a lápis).

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Nietzsche e a filosofia, de Gilles Deleuze, o primeiro traduzido pelo próprio Magno e o segundo por ele indicado para publicação; a coleção Estudos Freudianos, que publicou o livro Freud e a psicanálise, de Octave Mannoni, em 1976; e a coleção Contexto, que publicara, em 1975, o livro Psicanálise: ciência e prática, coletânea de textos de Jacques Lacan, Serge Leclaire, J. Nassif e André Green. No trabalho editorial ainda contava a direção da revista LUGAR, transformada, a partir de 1977, no periódico LUGARejus, com dez números publicados, mais um número especial, até 1980. Por fim, o autor estava presente em alguns espaços públicos na cidade, como o Museu de Arte Moderna (MAM), o Teatro da Maison de France e a Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV), que já vinham acolhendo sua produção em psicanálise desde o início da década de 1970. Duas conferências realizadas nesse período foram vertidas em artigos homônimos incluídos no livro Senso contra Censo: “Gerúndio”, um texto disruptivo e estranho sobre as bases não-humanas da pulsão freudiana, apresentado no MAM em 1973; e “O triunfo do olhar”, sobre Cézanne e a intuição da função escópica quiasmática de Lacan (apoiado em Merleau-Ponty), como função catóptrica de avessamento, apresentado no Teatro da Maison de France em 1974. Na EAV, como vimos, Magno iniciou seu Seminário, apresentando Senso contra Censo no primeiro semestre de 1976 e seu Marchando ao Céu, Marcel Duchamp, Marchand Du Sel, proferido em duas partes, respectivamente no segundo semestre de 1976 e primeiro semestre de 1977. A presença do Seminário do autor naquele espaço institucional – onde, por vínculo estatutário, já exercia atividade docente desde 1965, egresso do Colégio Estadual João Alfredo156 – se deveu à direta intervenção e acolhida por parte do artista plástico Rubens Gershman, que, em 1975, assumiu a direção do então Instituto de Belas Artes, logo transformado em Escola de Artes Visuais. Magno havia pedido exoneração de sua função de Diretor de

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Magno lecionou no Instituto de Belas Artes, que se transformaria em Escola de Artes Visuais do Parque Lage, disciplinas como “Cultura Contemporânea e Didática”, no curso de História da Arte; “Desenho a mão livre”, no curso de Arte Decorativa; “Arte e Comunicação”, no Curso Superior de História da Arte. Cf. Acervo do CFRJ, docs. 360b-c; 361a-361b; 371a.

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Ensino nas Faculdades Integradas Estácio de Sá em maio de 1974157, o que o deixava sem espaço para prosseguir com sua atividade de transmissão da psicanálise, incluindo o início de seu Seminário. Graças a Gershman, que lhe abriu as portas da EAV, esse trabalho seguiu adiante. Naquele ano ainda faria a conferência “A Transferência da Transferência”, na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, a convite do Decanato de Pesquisa e Pós-Graduação e Decanato de Graduação, e participaria da mesa-redonda sobre “O Lugar do Sujeito”, de iniciativa do Centro de Psicologia Social (CPS), com a presença de Carlos Henrique de Escobar, Luiz Alfredo Garcia-Roza, Chaim Samuel Katz e Eduardo Mascarenhas158. Magno dispunha de uma proposta alinhavada de voltar à França por um período mais prolongado. Mas, para isso, eram necessários recursos materiais de financiamento de sua estada em Paris, pois os salários de funcionário público, somados ao de sua esposa, também funcionária pública, não seriam suficientes para tanto. Em correspondência com Jacques-Alain Miller, começaram as tratativas para estreitar os laços com a orientação analítica, teórica e institucional com Jacques Lacan, a partir de novembro de 1975. Por exemplo, foram abertas frentes de trabalho de divulgação da obra do mestre francês e de sua Escola, mediante produção editorial. O foco era traduzir e publicar em LUGAR artigos da revista Ornicar?, incluindo os de Jacques-Alain Miller e sua contribuição teórica sobre o conceito lalangue, que Magno traduziu como alíngua159. Pretendia-se igualmente verter para o português dois seminários 157

Idem, doc. 231d. O leitor encontrará uma cronologia sumária das atividades do CFRJ e de MD Magno desde 1970, de onde retiramos essas informações, na página institucional da Novamente: www.novamente.org.br/historico. 159 Haroldo de Campos se opõe à tradução de lalangue por alíngua pelas razões com que Magno a defende: em português o a justaposto a uma palavra pode se confundir com o prefixo de negação (como em afasia, apatia), donde Campos propor a tradução lalíngua, por acreditá-la mais próxima da cunhagem lacaniana, segundo a qual o inconsciente é feito de lalíngua, como um saber e um saber-fazer, o que nos mostra que seus efeitos nos afetam, ultrapassando a linguagem. Ora, para Magno, o a de alíngua é ambíguo, podendo ser um artigo ou um prefixo de negação, justamente porque, em Lacan, se trata tanto de a língua quanto de não língua: contra Wittgenstein, Lacan sustenta que existe linguagem privada (a língua), mas no sentido de que fingimos que nos entendemos (não língua) – aliás, em análise, não se trata de entender o outro –, inclusive porque uma língua não pode ser metalinguagem de outra, já que 158

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de Lacan: Livro I: Os escritos técnicos de Freud, 1953-1954 e Livro XI: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, 1964, o primeiro a cargo de Betty Milan, e o segundo, de Magno160. Paralelamente, seria providenciado o curriculum vitae do professor e um projeto docente com vistas à futura proposição de um curso em Vincennes por parte de Magno (com todo o trâmite burocrático da tradução juramentada para o francês)161. Em sua “Proposição sobre um ensino” (Proposition sur un enseignement), concebeu “um per-curso em dois passos”: Sensus contre census: de l’oeuvredart, que reconhecemos como Senso contra censo, e La troisième rive de lalangue (sur les écrits de l’écrivain brésilien João Guimarães Rosa, em prenant pour garde ses Primeiras Estórias), que entrevemos como o Rosa Rosae, de 1980162. No programa de divulgação oficial dos cursos oferecidos pelo Departamento de Psicanálise, no semestre 1977-1978, aparecia tão somente “Poética e Psicanálise (da obra de arte – Senso contra Censo)”, às terças-feiras, de 10h às 12h, e “A terceira margem da língua (estudos analíticos de literatura brasileira)”, no mesmo dia, de 18h às 20h. Eram colegas de ensino naquele semestre em Vincennes Roland Chemama, Catherine Millot, Jacques-Alain Miller, Gérard Miller, Paul-Laurent Assoun, Alain Grorischard, François Regnault, Serge Cottet, Contardo Calligaris, entre outros163. Acertadas as contas, vendidos os móveis e pertences pessoais, de posse de uma licença prêmio por tempo de serviço, obtida junto ao Estado do Rio de Janeiro – pois a licença com vencimentos havia sido negada –, e com a não há metalinguagem (para Lacan). Cf. CAMPOS, Haroldo de. “O Afreudisíaco na Galáxia de Lalíngua (Freud, Lacan, a escritura)”. Em: http://revistas.ulusofona.pt/index.php/afreudite/ article/view/824; MILNER, Jean-Claude. “Da linguística à linguisteria”. Em: Lacan, o escrito, a imagem. Belo Horizonte: Autêntica, 2012, p. 33-52; MAGNO, MD. SóPapos, 2013, sessão de 23 de março. Inédito. 160 Acervo do CFRJ, doc. 82a-82c e 83a-83b (cartas manuscritas a lápis). A primeira edição em português desses seminários apareceu em 1979, pela Zahar Editores, em parceria com o Colégio Freudiano do Rio de Janeiro. 161 Acervo do CFRJ, doc. 15a-15c (carta datilografada). Na documentação oficial que seguiu para o tradutor juramentado, consta a declaração de Pierre Merlin, então presidente da Universidade de Paris VIII, que atesta a designação de Magno Machado Dias para o cargo de professor assistente associado do Departamento de Psicanálise. Cf. doc. 482a. 162 Acervo do CFRJ, doc. 510a-510l. 163 Idem, doc. 497a-497r.

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proposta aprovada de dois cursos a serem ministrados, com remuneração, no Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII, Magno desembarcou em Paris pela segunda vez. Carregava na mala um Brasil tropicalista, autoritário, de poesia marginal, positivista, concreto e neoconcreto, arcaico e moderno, próprio e copiado, real e proclamado, pragmático, rude, ignorante, patrimonialista e mazombo. Mas também antropofágico e macunaímico.

21. A historiografia sobre o desenvolvimento institucional da psicanálise no Brasil nos informa que Freud era lido por médicos e artistas modernistas no início do século XX, sobretudo em São Paulo, o que marcará uma apropriação diferente e divergente de seu legado164. De um lado, a subordinação dos raciocínios singularizantes da psicanálise a serviço da perspectiva psiquiátrica higienista e a posterior burocratização da prática psicanalítica nas sociedades analíticas. De outro, a assimilação da lógica do inconsciente para propor outro entendimento do Brasil, à maneira de uma análise das bases sintomáticas de nossa cultura, ao se investigar a chance das forças recalcantes e recalcadas na aposta de uma virada progressiva para o país. O polo catalisador desta segunda via foi Oswald de Andrade e a acuidade com que elaborou essa análise repousa na ideia de antropofagia. Dentre os manifestos que caracterizaram os diversos posicionamentos das vanguardas artísticas e literárias no início do século XX, o Manifesto Pau-Brasil (1924) e o Manifesto Antropófago (1928) são, sem dúvida, os dois mais percucientes e radicais feitos no e para o Brasil e os brasileiros, incluída a iniciativa editorial da Revista de Antropofagia (1928-9), verdadeiro documento “explosivo” de nossa história literária, na qual apareceu o

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SAGAWA, Roberto Yutaka. Os inconscientes no divã da história. Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – Programa de Pós-Graduação em História da UNICAMP. Orientação: Profª Drª Mariza Corrêa. 1989; PONTES, Carlos Fidelis da. Médicos, psicanalistas e loucos: uma contribuição à história da psicanálise no Brasil. Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado da Escola Nacional de Saúde Pública / Fundação Oswaldo Cruz. Orientação: Profª Drª Maria Helena Machado. FACCHINETTI, Cristiana. “Psicanálise modernista no Brasil: um recorte histórico”. Em: Physis. Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 1, nº 13, 2003, p. 115-137.

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manifesto quase homônimo165. Eles configuram um acirramento do espírito de inconformismo e crítica que caracterizou a Semana de Arte Moderna de 1922, resultante de um crescente mal-estar de segmentos ligados à expressão estética, literária e plástica, até então hegemônica no Brasil, em uma “luta para desafogar o ambiente dos canastrões, que ditavam regras de bom gosto”166. A polêmica se abriu em vários flancos, contra o passadismo, o romantismo, o indianismo ou a monotonia dos temas parnasianos, com sua rima e métrica tornadas obrigação burocrática, cada um desses elementos inflacionando a exasperação por terem já se tornado símbolos da medianidade da opinião, que unia as letras acadêmicas (a Academia Brasileira de Letras tinha forte influência), o público burguês e o mundo oficial167. Claro está que os influxos das vanguardas europeias no modernismo brasileiro, hauridos em viagens e consumo assíduo de sua produção plástica e literária, foram fundamentais para acirrar a atitude, ao mesmo tempo, destrutiva e construtiva, do movimento, fornecendo material que seria digerido e atualizado à luz do que o modernismo, sobretudo em Oswald de Andrade e no Macunaíma de Mário de Andrade, perscrutava como configurando a base da sintomática nacional. Sob esse aspecto, Raul Bopp, Antonio Candido, Augusto e Haroldo de Campos, Decio Pignatari e Benedito Nunes concordam quanto 165 CAMPOS, Augusto de. “Revistas re-vistas: os antropófagos”. Em Revista de Antropofagia. Reedição fac-similar da revista literária publicada em São Paulo – 1ª e 2ª dentições, 1928-1929. São Paulo: Editora Abril, 1975. 166 Esse desconforto era sensível em vários círculos e grupos literários e intelectuais espalhados por cidades brasileiras. Várias revistas, muitas vezes de existência efêmera, foram criadas na década de 1920, testemunhando a inquietação que agitava os meios literários brasileiros: em São Paulo, tivemos a Klaxon (1922), Revista do Brasil (1925), Terra Roxa e Outras Terras (1926), Revista Novíssima (1926) e Revista de Antropofagia (1928); em Minas Gerais, Leite Criolo (1919) e a Revista (1925), de Belo Horizonte, Verde (1928), de Cataguases e Elétrica (1928) de Itanhandu; no Rio de Janeiro, Estética (1924), Terra de Sol (1924), Festa (1927) e Movimento (1928); em Belém, Belém Nova; em Manaus, Redenção e Equador (1929); em Fortaleza, Maracujá (1929); em Recife Revista do Norte (1926); em João Pessoa, Era Nova; em Salvador, Arco e Flecha (1928); em Porto Alegre, Madrugada (1929), para citar alguns exemplos. A frase citada é de Raul Bopp. Cf. TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia & modernismo brasileiro, op. cit., p. 405-6; BOPP, Raul. Movimentos modernistas nos Brasil – 1922-1928. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012, p. 39, p. 66-76. 167 CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 9ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006, p. 125. Cf. também BRITO, Mário da Silva. Ângulo e horizonte: de Oswald de Andrade à ficção científica. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1969, p. 12.

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ao que havia de propriamente brasileiro na atitude modernista, ao colocar na ordem do dia a análise do que havia sido recalcado histórica, política, social e esteticamente no país, e dar voz a um Brasil ainda por se descobrir. “Os nossos modernistas se informaram, pois, rapidamente da arte europeia de vanguarda, aprenderam a psicanálise e plasmaram um tipo ao mesmo tempo local e universal de expressão, reencontrando a influência europeia por um mergulho no detalhe brasileiro”, afirmou Candido168. Para Nunes, Oswald trouxe para o modernismo brasileiro a experiência de que participou, ao frequentar a atmosfera de rebeldia e de renovação contemporânea dos manifestos futuristas, da teorização cubista e das expressões circunstanciais do humor dada, com uma contribuição irredutível às matrizes europeias, em especial no tocante ao tema da antropofagia169. “Oswald captara a informação certa, a compreendera, assimilara e transfundira, para nosso roteiro e uso”, sem ficar esperando “pelo beneplácito dos deuses da cultura mundial para produzir obras originais”, na avaliação de Pignatari170. Para Haroldo de Campos, a obra de Oswald de Andrade é o legado mais radical do Modernismo de 22 e “se mostra intrinsecamente identificada com os propósitos da revolução estética que sacudiu nosso país, no ano do Centenário de sua independência”, no sentido da “fundação em novas bases de uma literatura brasileira verdadeiramente afinada com a sensibilidade do tempo”171. Essas avaliações comungam no destaque à contribuição oswaldiana ao modernismo e não à toa. Passado o efeito explosivo da Semana propriamente dita, na azáfama de sua preparação e na polêmica provocada no ato de sua apresentação, o alcance do que ali estava em jogo foi apreendido e catapultado pelos manifestos oswaldianos, no bojo da Revista de Antropofagia e em meio à bipolaridade do próprio modernismo, dividido entre o vetor progressivo de crítica e construção e o regressivo do reacionarismo e da conservação. 168

Literatura e sociedade, op. cit., p. 127-8. NUNES, Benedito. Oswald Canibal. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 13. 170 PIGNATARI, Décio. “Marco Zero de Andrade” em Suplemento Literário de O Estado de São Paulo, 24 de outubro de 1964. 171 CAMPOS, Haroldo de. Oswald de Andrade: trechos escolhidos. Rio de Janeiro: Agir, 1977, p. 8. 169

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Assim, a onda renovadora serviu para dar um primeiro empuxo no sentido de reflexão sobre as possibilidades de expressão própria no país, a partir de suas particularidades culturais, ecoando intelectual e literariamente em revistas, manifestos e ensaios (é inegável como a antropofagia antecipou, em muitos pontos, Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre). Por outro lado, o refluxo da onda correspondeu ao surgimento de posições estéticas e políticas que assimilaram, em sinal trocado, a mesma pesquisa sobre o Brasil, seu estado de inércia e a necessidade de saídas alternativas, dando corpo, por exemplo, ao grupo Anta, em torno de Plínio Salgado, com presença de Candido Mota Filho, Cassiano Ricardo e Menotti del Picchia. A perspectiva verde-amarela do grupo, “escamoteado de uma costela de Oswald”172, foi reativa à postura rebelde, pragmática e propositiva das ideias oswaldianas, preferindo o passo atrás do sentimento patriótico, do indianismo ignorante e do apagamento das diferenças constitutivas da cultura brasileira em nome da nacionalidade. O resultado foi o Manifesto Nhengaçu Verde-Amarelo, publicado em 1929, um pastiche reacionário da antropofagia oswaldiana, ou a “contrafação tupi-nacionalista” de seus manifestos, como bem assinalou Pignatari173. Como sabemos, o verdeamarelismo desaguaria no integralismo, versão brasileira do fascismo, acabando nos braços do Estado Novo de Getúlio Vargas. Afinal, o que há nos manifestos oswaldianos, cuja lógica atravessou o século XX e foi alçada à condição de razão seminal (não cartesiana) de cruzamentos culturais, como os propostos, por exemplo, pela Tropicália – a cênica (Teatro Oficina e José Celso Martinez Corrêa), a musical (Caetano Veloso, Gilberto Gil. Tom Zé, Torquato Neto), a artística (Nova Objetividade e Helio Oiticica) ou a cinematográfica (Cinema Novo e Glauber Rocha)?174 Em ritmo sincopado, com frases curtas de alto valor performativo, os manifestos apresentavam uma visão audaciosa do Brasil, a partir da indagação 172 BRITO, Mário da Silva. Ângulo e horizonte: de Oswald de Andrade à ficção científica, op. cit., p. 24. 173 PIGNATARI, Décio. “Marco Zero de Andrade”, op. cit. 174 O tema é amplo e a bibliografia pertinente imensa. Cf. BASUALDO, Carlos (org.). Tropicália: uma revolução na cultura brasileira (1967-1972). São Paulo: Cosac Naify, 2007, que apresenta farta documentação, com destaque para a retomada antropofágica da Tropicália.

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sobre suas bases sintomáticas. No Manifesto Pau-Brasil, Oswald reivindicava, contra o “gabinetismo”, a língua sem arcaísmos e sem erudição, com a “contribuição milionária de todos os erros”. Apontava para uma “nova perspectiva” e uma “nova escala” que dessem efetiva magnitude às particularidades da cultura nacional, que, sem cacoete nacionalista e ufanista, era metaforizada como “poesia pau-brasil”. Extraía-se daí uma espécie de indicação vetorial no sentido de positivar a resultante da composição cultural heterogênea do país como o lugar desde onde estaríamos em condição, com a nossa condição, de nos desvencilhar da “cópia” e abraçar a “invenção” e a “surpresa”, e nos enxergar, como se fosse pela primeira vez, “com olhos livres”. A direção, o sentido e a força – o encaminhamento vetorial, portanto – eram impressos pelo “roteamento dinâmico dos fatores construtivos”: a modernidade e seus “tiques de fios e ondas e fulgurações”, suas “novas formas de indústria, da viação, da aviação”, os negativos fotográficos, os postes, os gasômetros e os rails. Pau-brasil era uma visão de futuro, com tudo o que os moinhos, os arranha-céus, as turbinas elétricas e as usinas produtoras pudessem trazer, justo porque a “contemporânea expressão do mundo” não cabia em fórmulas. O poeta audaz mostrava o que havia de próprio no país, a partir de uma atitude soberana e afirmativa dessa parciaridade. O final do manifesto de 1924 dava uma pista para o que viria quatro anos mais tarde: “Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de mecânica, de economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos. Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem comparação de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem ontologia”. Um sintoma cultural que não sofria de ser alguma coisa (“sem ontologia”) estava disponível para virar qualquer coisa. Eis a antropofagia ou “devoração universal” oswaldiana, a ideia mais radical e consequente do primeiro modernismo brasileiro, que inspirou diversas iniciativas, propostas e reflexões na produção literária, teórica, estética, artística e cultural, no Brasil, ao longo do século XX, como lembramos ter sido o caso da Tropicália, na década de 1960. Reentoamos, mais uma vez, a “frase musical” dominante desse manifesto, destacando alguns pontos fortes: antropofagia, única lei do mundo, expressão mascarada de todos os individualismos e coletivismos, de 91

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todas as religiões e tratados de paz. Antropofagia, só o que nos une socialmente, economicamente, filosoficamente, lei do homem – e só interessa o que não é meu. Antropofagia, transformação permanente ou transfiguração do tabu em totem. Antropofagia, a humana aventura, a terrena finalidade, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita os males catequistas identificados por Freud. Antropofagia, pois nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Antropofagia, pela existência palpável da vida, contra os importadores de consciência enlatada. Antropofagia, pela experiência pessoal renovada, contra a memória fonte de costume. Antropofagia, a favor dos roteiros e contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud. Antropofagia, pelo conhecimento, que leva da equação eu parte do Kosmos ao axioma Kosmos parte do eu. Antropofagia, pois o espírito recusa-se a conceber o espírito sem corpo175. Raul Bopp chamou a atenção para o fato de que a pesquisa antropofágica do grupo de Oswald e Tarsila do Amaral implicava “descer à nossa pré-história”, “trazer alguma coisa desse fundo imenso, atávico”, “com um sentido ferozmente brasileiro”, pois, debaixo da fisionomia externa, havia um outro Brasil, de enlaces profundos e de valores ainda indecifrados. Essa “descida às fontes genuínas” possibilitaria “captar os germes da renovação”, no sentido de mostrar uma “síntese cultural própria, com maior densidade de consciência nacional”. Para tanto, era preciso “remexer raízes da raça, com um pensamento de psicanálise”176. Ora, voltamos ao ponto inicial da questão: enquanto Freud era assimilado pela aliança entre o higienismo mental da psiquiatria e a burocracia institucional psicanalítica, os poetas e artistas o apreenderam como fonte de entendimento e intervenção com o que empreender uma verdadeira ana-lysis, investigando e invocando o retorno do recalcado no complexo desenho sintomático do país. Não apenas o vocabulário era freudiano – como, por exemplo, a metáfora da transformação do tabu em totem –, como também os recursos cogni175

Em ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica, op. cit., p. 47-52. BOPP, Raul. Vida e morte da antropofagia. 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008, p. 49-79; p. 99-101. 176

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tivos implicados nas analogias e metáforas habitavam a vizinhança da técnica freudiana, para deixar falar “a contribuição milionária de todos os erros”, na sacação da dinâmica psíquica entre forças recalcantes e recalcadas. A menção indireta a Freud na “transfiguração do tabu em totem” – os quatro ensaios que compõem Totem e Tabu haviam sido publicados entre 1912 e 1913 – era forte indício da sintonia de Oswald com a perspectiva psicanalítica: antropofagia é a deglutição da proibição, situada no que é externo (tabu) em forma de totem, desfazimento irônico das pretensões de sacralização dos objetos artificiosos produzidos. Daí seu efeito terapêutico contra os “males catequistas”: ao invés de viver subjugado a um tabu, o brasileiro o reverte em totem, devorando-o, em um duplo gesto de apropriação e dejeção. É importante lembrar que, na mão contrária, o manifesto verdeamarelista declarava que seu “totem” não era “carnívoro”, donde a anta; que seu nacionalismo não era “intelectual” e sim “sentimental”, aceitando “as formas da civilização”, mas impondo “a essência do sentimento”; que poderíamos “destruir as nossas bibliotecas, sem a menor consequência no metabolismo (...) da Nação” (sic!), pois “queremos ser o que somos: brasileiros”, “barbaramente, com arestas, sem autoexperiências científicas, sem psicanálise e nem teoremas”177. De algum modo, a bipolaridade modernista, partida entre forças progressivas e regressivas, encontrou, ao longo do século XX, meios de se metamorfosear, comparecendo em cada momento que o país se defrontou com suas possibilidades de avanço, freadas pelo estatismo burocrático, de vocação totalitária; pelo ignorantismo do culto à emoção e ao sentimento, que recusa a análise, exercício de abstração e disponibilidade; pela idealização legiferante cuja violência policial tenta, de todas as maneiras, recalcar o trabalho pela existência própria. Novamente, Vianna Moog e Anísio Teixeira. Não sofrendo da neura mazombista de cor verde-amarela, a antropofagia oswaldiana pode fazer análise e colocar o dedo na “ferida narcísica” do país: o fado e o fato de nossa formação mestiça, compósita, que, por alguma 177

Manifesto Nhenguaçu Verde-Amarelo (Manifesto do Verde-Amarelismo ou da Escola da Anta). Em: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia & modernismo brasileiro, op. cit., p. 507-514. Grifo nosso.

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razão, a se pesquisar mais a fundo, nos deixou sem ontologia e sem caráter – para resgatar o lado macunaímico da antropofagia –, em abertura para transitar entre as formações disponíveis, pois digerimos o que não é nosso – não levamos os tabus a sério. Uma contribuição nossa à caixa de ferramentas do arsenal Secundário do Planeta, tão parcial, parciária e peregrina como qualquer outra. Nos idos de 1920, pareceu a Oswald que o lastro inovador e criativo característico da cultura brasileira seria capaz de colocar o país nos trilhos da modernidade, ombreando com as demais contribuições internacionais. Quem sabe, quase um século depois, esse lastro nos coloque em condições mais adequadas de habitar a contemporaneidade, caracterizada justamente pela desconfiguração, dado o cruzamento hiperbólico das informações178. Mas para isso, é preciso análise.

22. Três anos depois de seu retorno de Paris, Magno dedicou o segundo semestre de seu Seminário Psicanálise & Polética (1981) à “Heterofagia”, não sem antes revisitar as teses antropológicas e psicanalíticas sobre a emergência de cultura. De maneira irreverente, propondo o “mito do macaco maluco” – como releitura da mitologia freudiana de Totem e tabu e em analogia com o Tarzan dos macacos, de Edgar Rice Burroughs –, o autor deslocava a cultura do patamar distintivo superior ao qual a antropologia a tinha alçado para dar-lhe um lugar lógico mais próximo do primata agri-cultor – Lacan já o apontara –, subdito à ordem familiar, subsidiária da aliança e do parentesco, por sua vez corolário neo-etológico da reprodução sexuada espontânea dos corpos. Se houvesse alguma referência a desnortear o primata, transformando-o em “macaco maluco”, ela deveria ser buscada no Impossível, que indiferenciava o sexual e condicionava a emergência do artifício e da tecnologia, para onde Magno empurrava o Simbólico lacaniano, abordando-o como vetor de abstração progressiva da pressão recalcante e conteudizante da cultura, ela própria um artifício declinado do Simbólico. 178 MAGNO, MD. Comunicação e cultura na era global [Seminário 1997]. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2005, p. 367.

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Com base nessa direção de análise, Magno assumiu formal e explicitamente para a psicanálise a tarefa – com a qual outros antes dele haviam se deparado – de refletir sobre a sintomática de base do que se costuma chamar de “cultura brasileira”. Partindo da obra de Oswald, esse questionamento resultou, em última instância, em uma teorização sobre a estética de base do país, afastando-se do tradicional enquadramento das expressões artísticas brasileiras no horizonte do Barroco em prol do Maneirismo. Porém, antes disso, foi preciso conceber a Heterofagia. Na seção intitulada “Por que me afano com meu país?”, parodiando o conhecido texto do conde Afonso Celso, não sem um quê de autogozação, Magno dá as diretrizes do que concebe ser uma intervenção clínica pertinente à psicanálise no tocante à questão “Brasil”. A situação era propícia: o país ainda se encontrava sob o regime ditatorial militar, mas a abertura política, anunciada no governo Geisel (1974-1979) e modestamente efetivada no governo Figueiredo (1979-1985), com a anistia e as reformas partidária e eleitoral, reativava possibilidades mais francas de enunciação e manifestação públicas. O Colégio Freudiano do Rio de Janeiro começava a se constituir como polo atrator de algumas dessas expressões, inclusive pelo modo criativo com que organizou a participação das pessoas na instituição, além de atrair o público em geral para suas atividades abertas, com mutirões, cirandas e saraus. Oswald é saudado como “homem de gênio, ou seja, aquele que dá a dica certa, mesmo desenhando o mapa errado”179, com o que o autor já indicava o remanejamento que sua chave de leitura psicanalítica faria da antropofagia. Em coadjuvância, eram indicadas as leituras fundamentais de Casa Grande & Senzala, Visões do Paraíso e Macunaíma, além dos irmãos Campos e sua pesquisa no sentido de mostrar a qualidade preeminente da produção poética e literária oswaldiana180. A análise não descuidava das teses formuladas por Oswald em A crise da filosofia messiânica (1950), 179

Psicanálise & Polética, op. cit., p. 309. Além das referências já fornecidas, cf. também CAMPOS, Haroldo de. “Uma poética da radicalidade” em ANDRADE, Oswald de. Pau-Brasil. São Paulo: Ed. Globo, Secretaria de Estado da Cultura, 1990 e CAMPOS, Augusto de. O balanço da bossa e outras bossas. 2ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Perspectiva, 1974. 180

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“Um aspecto antropofágico da cultura brasileira: o homem cordial” (1950) e A marcha das utopias (1953)181. Junto com considerações críticas sobre o par antropofagia / messianismo, que Oswald acopla respectivamente a matriarcado / patriarcado – que Magno não aceita tal qual, remanejando-o, naquele momento, a partir das fórmulas lacanianas da sexuação –, vemos que o foco da obra oswaldiana é, para a psicanálise, o entendimento da antropofagia. Oswald estaria em busca da originalidade do sintoma brasileiro, ou seja, “o que há não de infantilismo, mas de infância, de fundação sintomática nessa cultura”182: o “só me interessa o que não é meu” é um sintoma de “devoração das alteridades”, donde heterofagia, de tal modo que Oswald não estaria qualificando de brasileiro este ou aquele tipo de comportamento cultural, mas a própria disponibilidade à deglutição das diferenças. Seria uma espécie de vocação heterológica do brasileiro, já que “não se trata de saber qual é o ser do brasileiro, porque simplesmente isso não existe, mas de saber qual é a dica do seu sintoma”. O movimento do inconsciente é devoração das diferenças, justamente por ser indiferenciante, em consonância com a formulação de Freud de que o sistema inconsciente não tem registro originário de “morte”, de “não” e de “diferença”. O inconsciente heterofágico seria a própria geratriz das diferenças como instância indiferenciadora ou neutralizante, razão da disponibilidade do inconsciente, que, por quebra de simetria, declina na opositividade binária do sintoma. Esse entendimento positivava a posição cultural de se desobrigar de dar sentido (prévio) às coisas e indicava que a força de tal atitude consistia 181

A crise da filosofia messiânica foi apresentada como tese de concurso docente para a Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), de que Oswald não participou, por decisão do Conselho Nacional de Educação, que alegou faltar-lhe curso superior específico na matéria. “Um aspecto antropofágico da cultura brasileira: o homem cordial” consistiu em uma comunicação apresentada no Primeiro Congresso Brasileiro de Filosofia promovido pelo Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF), sob patrocínio da Reitoria da USP. A marcha das utopias consistiu em livro de 1966, que reuniu artigos originalmente publicados em O Estado de São Paulo. Cf. ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica, op. cit.; CANDIDO, Antonio. “Digressão sentimental sobre Oswald de Andrade”. Em: Vários escritos. Livraria Duas Cidades, 1970, p. 72. 182 Psicanálise & Polética, op. cit., p. 325. Salvo indicação contrária, a sequência da argumentação se baseará nesse Seminário, p. 301-386.

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em estar livre do sentido para justamente poder fazê-lo, caso a caso, a cada vez: “será que podemos falar em ‘cultura brasileira?’ quem sabe não temos o privilégio de não precisar ter uma cultura? Temos é o sintoma de comer as culturas”. Além disso, a heterofagia assimilava à deglutição oswaldiana do outro a atitude macunaímica de não ter caráter, segundo a ideia original de Mário de Andrade do “herói sem nenhum caráter” que, ultrapassando a caracteriologia personalógica, destacava a flexibilidade e criatividade do brasileiro. O caráter, que era “sem nenhum”, apontava para a devoração das diferenças. Ora, se o movimento do inconsciente é heterofágico, omnivorante e sem caráter, e se há a indicação de um comportamento sintomático que funciona analogamente a essa indiferenciação, era possível perscrutar sua emergência, onde quer que ela ocorresse, no tempo e no espaço, como parecia ser o caso do Brasil, que, por alguma razão de complexos cruzamentos sintomáticos, apresentava, em suas manifestações culturais mais disruptivas, a característica de ser terceiro, isto é, de operar a diferença em alternância, sem ter a obrigação de ser uma coisa ou outra. O Magno canibal, parafraseando Benedito Nunes, extraía de Lacan, deglutido e cuspido, a formulação de uma lógica de terceiro lugar para o inconsciente, entrevista como “perda de sentido” ou “travessia” em Senso contra censo e Rosa rosae. A partir daí, reclamava para a psicanálise a tarefa de, seguindo por essa terceira via, auscultar a possibilidade de haver alguma estilística que acometesse o “falante”, para além da consistência binária do Clássico e da inconsistência labiríntica do Barroco, este último situado por Lacan como expressão do gozo d’A/ Mulher (com A barrado), dentro de sua lógica da sexuação183. Era proposto, então, “como estudo, pensar o Clássico, o Barroco e o Heterófago, uma outra categoria” – quatro anos depois situado teoricamente como Maneiro, no diálogo com o que historicamente é conhecido como Maneirismo – para, nesse campo de abordagem estilística, “ver a nossa história heterofágica pela via de Oswald”. 183

LACAN, J. O Seminário, livro 20: mais ainda, op. cit., p. 97-104; p. 142-159.

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A anfi-orientação do terceiro lugar, intuída na antropofagia de Oswald e no Macunaíma de Mário de Andrade, estava presente na “terceira margem” e no “grande sertão” de João Guimarães Rosa; na mestiçagem de Gilberto Freyre; no pragmatismo ad hoc de Anísio Teixeira; no experimentalismo da Tropicália; na alternância místico-pornográfica de Hilda Hilst e em outros testemunhos literários, artísticos, poéticos, teóricos, que algumas vozes veementes, como a de Augusto de Campos, insistiam em indicar, defender e explicar, na mão contrária da mentalidade derrotista de denegar a produção própria184, ora se esquivando envergonhadamente dela, ora imitando subservientemente a configuração pronta oferecida por outras tradições e culturas. Decio Pignatari uma vez afirmou, a respeito de Oswald, que “quando o setor é o da literatura, e o país, Brasil; e quando o poeta-inventor se encoraja até à audaciosa e surpreendente veleidade de pensar, propondo projetos gerais de criação e cultura, é quase certo que venha a ser isolado como um corpo estranho ou um enclave exótico, que o organismo procura ignorar para poder suportar”185. A história do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro e, com ele, parte significativa da história da psicanálise no Brasil, mostrou que a denegação de nossas bases sintomáticas, incluída a reatividade violenta à produção própria, não atingiam somente a produção literária. A sintomática era “ampla, geral e irrestrita”, e mostrou sua capacidade destrutiva ao erguer toda sorte de empecilhos para que a psicanálise no Brasil viesse a se afirmar como a psicanálise do Brasil, levando, no percurso, à própria periclitância da instituição carioca e sua posterior reformatação.

23. No Seminário Acesso à lida de fi-menina (1980)186, sobre a sexualidade feminina, a sessão de 26 de junho de 1980 recebeu o título de “Améfrica Ladina: introdução a uma abertura”. A circunstância de seu proferimento era a realização, entre 11 e 14 de julho daquele ano, da “primeira reunião da 184

CAMPOS, Augusto de. O balanço da bossa e outras bossas, op. cit., p. 156. “Marco Zero de Andrade”, op. cit. 186 MAGNO, MD. Acesso à lida de fi-menina [Seminário 1980]. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 185

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Fundação do Campo Freudiano consagrada ao ensino de Jacques Lacan e à psicanálise latino-americana, sob os auspícios do Ateneo de Caracas”, como anunciava o convite enviado, em castelhano, a Magno, em 04 de novembro do ano anterior187, avisando que, em caso de apresentar trabalho, este deveria estar em francês ou castelhano. No Seminário, o autor comentou que havia sido convidado a participar da reunião, “até mesmo com certa deferência, pode-se dizer”188. Informa ainda que tivera a oportunidade, junto com Betty Milan, de fazer uma moção direta a Jacques-Alain Miller, ponderando aspectos da proposta de organização da reunião, dado que um de seus temas previstos era “A língua espanhola e a psicanálise”, acrescentando que os trabalhos dos brasileiros deveriam ser apresentados em língua nativa. O autor referia-se à carta de 23 de novembro de 1979, onde Miller também era sondado quanto à possibilidade de vir ao Rio com Lacan depois da reunião de Caracas189. Em resposta, Miller informou que o “terceiro tema sobre ‘a língua espanhola e a psicanálise’ é para vocês ‘a língua portuguesa e a psicanálise’”190 e, em carta de 14 de dezembro de 1979, reafirmou que a organização da reunião venezuelana seria em espanhol e em francês para não sobrecarregar o secretariado responsável, apesar de reconhecer “o lugar eminente da língua portuguesa na América Latina”. Sugeriu, então, aos brasileiros que quem quisesse apresentar seu trabalho em português poderia levar um profissional para tradução simultânea. A carta concluía com um agradecimento pelo convite de ir ao Brasil, avisando que Lacan voltaria para a França depois da reunião, mas que ele, Miller, ainda não tinha definida sua programação, por ter um convite para ir à Argentina191. Por fim, em carta datada de 1º de março de 1980, Magno e Betty 187

Acervo do CFRJ, doc. 162b. MAGNO, MD. Acesso à lida de fi-menina, op. cit., p. 146. O Acervo do CFRJ guarda uma carta de Jacques-Alain Miller a MD Magno, datada de 08 de março de 1979, na qual o remetente comenta que talvez visite a América do Sul em setembro, já que tem um convite “para ir à Venezuela, talvez na Argentina”, ocasião em que espera “poder conhecer o Brasil” (doc. 159). Não há registro no Acervo do convite a que Magno se refere no Seminário, não podendo ser a carta-convite oficial de novembro de 1979, que, como veremos, já é remetida em castelhano, com um texto padrão. 189 Acervo do CFRJ, doc. 157a-157c. 190 Idem, doc. 160a-160b, s/d. 191 Idem, doc. 163a-163b. 188

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Milan informaram que a correspondência do final do ano anterior chegara-lhes atrasada – referem-se à carta de 14 de dezembro – e já não era mais possível assegurar a participação deles em Caracas. Aproveitavam para enviar detalhes da organização da visita de Miller ao Brasil, depois de julho: uma conferência no Rio de Janeiro e outra em São Paulo, respectivamente na UERJ e na USP, além de um seminário em cada uma das duas cidades com analistas convidados. O CFRJ assumia o financiamento da passagem Caracas-Rio ou Buenos Aires-São Paulo, conforme fosse o caso, além da estadia do convidado192. Os brasileiros do CFRJ não foram a Caracas. No Seminário, Magno comentou: “a essa altura, para mim funcionou como interpretação, ou seja, valeu o levantamento da questão na medida em que a gente começou a se dar conta: não somos América Latina”193. A exclusão oficial da língua portuguesa da reunião venezuelana valeu o entendimento de que o Brasil era, não América Latina, e sim América Africana, segundo a expressão de Betty Milan. Era necessário analisar os assentamentos sintomáticos da cultura brasileira – que, como vimos, foi a tarefa iniciada no ano seguinte –, já que “talvez esteja instalada por aí uma certa sintomática que ainda não disse seu nome, talvez porque sempre tenha que pedir licença para se apresentar, e com uma certa roupa importada, de algum lugar. Todo mundo quer ser nacionalista, quer ser brasileiro, quer descobrir o que seja a cultura brasileira, mas talvez expor esse sintoma seja tudo o que esse neurótico não quer, mesmo quando se propõe uma análise, como acontece aliás em toda análise”. Ser Améfrica Ladina era assumir a mestiçagem como própria, acompanhada do recado implícito de que o tolo que com ela se metesse 192

Idem, doc 161a-161b. MAGNO, MD. Acesso à lida de fi-menina, op. cit., p. 146. No programa Roda Viva Especial, da TV Cultura, que foi ao ar no dia 30 de junho de 2014, comemorando os 45 anos de existência deste canal de TV, Hector Babenco, cineasta argentino naturalizado brasileiro, afirmou ser o Brasil, “pela sua mistura”, um país “atípico” na América Latina. Menciona a população indígena, junto com a presença da cultura africana e da cultura europeia, “o que deu ao Brasil uma tonalidade, do ponto de vista comportamental, única na América Latina. Não há nada mais diferente de um brasileiro do que um chileno”. E completa: “acho que aí está nossa força”, para logo corrigir, dizendo “nossa identidade”, que “reside em quem somos e que não estamos sabendo aproveitar [isso]”, sendo essa a nossa “originalidade”. Cf.: http://tvcultura.cmais.com. br/rodaviva/roda-viva-45-anos-de-tv-cultura-30-06-2014-bloco-1

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ficasse esperto com a astúcia do interlocutor, igualmente capaz de grosseria, se a situação o exigisse194. O chiste proposto jogava, assim, com diversos sentidos reversíveis, acumulados cultural, étnica, histórica, sócio e linguisticamente no Brasil. Além de positivar a visão popular que atribui ignorância ao negro no trato social, revertendo-a a seu favor, se explorava também a significação histórico-linguística segundo a qual ladino era o escravo que sabia falar a língua portuguesa, por oposição ao boçal, recém-chegado da África195. Desse modo, o significante Améfrica, que era ladina – um nome para a sintomática brasileira marcada pela experiência da escravidão negra – podia ser interpretado à luz da dialética lacaniana do senhor e do escravo (no sentido do Hegel de Alexandre Kojève assimilado por Lacan), com ganhos suplementares aos usos explorados. Nos processos de assentamento sintomático no Brasil, não teria o significante-mestre (maître, m’être, mètre) – dono, ser-eu, metro – articulado o discurso produtor de marcas como do lado do escravo, dando uma medida da situação de o brasileiro ser amefricano, ao se apropriar do gozo do suposto dono (o colonizador), além de ludibriá-lo? Como esclarece o autor: “Minha questão é saber se, nessa transação toda, onde entra de tudo, a marcação da situação não é por um significante que se situa como base dessa sintomática, por elementos de identificação provenientes dessa dialética de senhor e escravo, quando teria ganho, como produtor das marcas, o próprio escravo. Isso talvez não queira dizer rigorosamente coisa alguma, mas serve como metáfora”196. 194

Segundo o Dicionário Houaiss Eletrônico, diz-se ladino: 1. de indivíduo que revela inteligência, vivacidade de espírito; esperto; 2. de indivíduo cheio de manhas e astúcias; espertalhão, finório; 3. em sentido antigo, é sinônimo de castiço, puro, vernacular; 4. no regionalismo brasileiro, dizia-se do índio ou escravo negro que já apresentava certo grau de aculturação. 195 A pesquisa histórica recente nos informa que o escravo ladino sabia ser espertamente boçal, diante da fiscalização que batia à porta dos engenhos para fazer cumprir a lei Eusébio de Queiroz, que proibira o tráfico transatlântico de escravos, em 1850. Vestindo trapos, fazendo cara de quem nada entendia das palavras do intendente da polícia, podiam ser libertos, juntos com os recém-retirados do navio negreiro. Cf. ALMEIDA, Marcos Abreu Leitão de. Ladinos e boçais: o regime de línguas do contrabando de africanos 1831-c.1850). Dissertação de mestrado. Orientação: Jefferson Cano. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, 2012. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/ document/?code=000850403&fd=y. 196 MAGNO, MD. Acesso à lida de fi-menina, op. cit., p. 164.

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Ou ainda, fora do eixo lacaniano-kojèviano, as formações “dono” e as formações “escravo”, em sua agonística perene, não testemunham o jogo da pura e simples alienação e apropriação, onde se inscreve todo jogo transferencial? Como argumenta Magno, já crítico do princípio da dialética do senhor e do escravo, “quem pode apropriar-se do quê? É disso que decorrem: mandante e mandado, dono e escravo, senhor e servo, patrão e empregado, empresário e operário – que são acoplamentos nascidos da relação dos poderes, inicialmente fundamentados na força. Se quisermos, então, de nosso ponto de vista, reconhecer qualquer poder, basta procurar pelas forças que o garantem, sejam físicas, psíquicas, policiais, sociais, etc.”197. Améfrica Ladina era uma advertência ao inimigo nada sacro, no melhor estilo antropofágico.

24. Com a morte de Lacan em 1981, Magno enviou uma carta à Escola da Causa Freudiana de Paris, instituição criada um ano depois da dissolução da Escola Freudiana de Paris, afirmando que sua permanência na instituição era dependente da presença pessoal do mestre francês, apresentando, portanto, sua retirada daquela instituição. A carta foi publicada na sessão de 14 de outubro do Seminário Psicanálise & Polética. A oportunidade em que esse seminário se transformara para elaborar psicanaliticamente alguma reflexão sobre a cultura brasileira também era suscitada pelas circunstâncias em torno da reunião de Caracas ocorrida um ano antes. Não à toa uma questão cara à teoria lacaniana – a Diferença – emergia nos mal-entendidos e impasses decorrentes das tentativas de diálogo interinstitucional, dentro e fora do Brasil, criando situações que exigiam análise e tomadas de posição, com as implicações políticas decorrentes. O termo “polética”, no título do Seminário, forçava justamente uma reflexão sobre ética e política a partir do discurso psicanalítico, irredutível 197

MAGNO, MD. Economia fundamental: metamorfoses da pulsão [Falatório 2004], op. cit., p. 49. Para um recorte do que esse Falatório aborda em relação a questões de economia psíquica articulada à lógica do capitalismo, tendo como corolário a crítica ao conceito marxista de mais-valia, cf. MAGNO, MD. “Economia pulsional: trabalho, apropriação e alienação”. Em: Lumina, Facom/UFJF, v. 6, n.1/2, p. 73-91, jan./dez. 2003. Disponível em: http://www.ufjf.br/ facom/files/2013/03/R10-05-MDMagno.pdf.

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aos discursos ocidentais que se ocuparam das éticas e das políticas. Sendo a polis o espaço de exercício da possibilidade, e não sua ortologia, manipulação e controle, sua ética, como a do falante, estaria referida ao Real como corte, sexão, isto é, impossibilidade de relação. Ora, uma vez a ética referida ao Impossível Absoluto, a política deveria ser o espaço da Diferença e o buscar resguardá-la, no respeito à derrelição de cada um no exercício de sua diferença. Polética, portanto, cujo sentido foi ampliado com o conceito de Diferocracia, urdido nas malhas desse seminário. A heterofagia implicava necessariamente uma agonística e um jogo de forças, pois não apenas a postulação do inconsciente heterofágico indiferenciante trazia como corolário imediato a Diferença e suas modalizações, como também situava polética ou diferocraticamente o entendimento do sintoma heterofágico brasileiro e, no caso da psicanálise dele proveniente, a legitimidade da havência de suas enunciações, nem que fosse por referência ética e consideração política a que o discurso psicanalítico estava obrigado por seu próprio campo axiomático. Por isso, a obra oswaldiana parecia ser “um bom indicador para sacação da nossa posição numa polética. Posição que me parece ser tanto a posição a se dizer nacional quanto nossa situação no campo dessa zorra que é o movimento psicanalítico mundial”198. Em nível nacional, o mal-entendido, como vimos, decorria das tentativas de aproximação com instituições psicanalíticas em Recife e em São Paulo, em 1976-77, quando, a partir do CFRJ, Magno se recusara ser tomado como ponta de lança de um Movimento Lacaniano Brasileiro, como Escola única. Segundo sua observação, “todo tipo de efeito neste país já se fez, de Nordeste a Sul, tentativas de organização do lacanismo brasileiro e luta pela chefia, esse tipo de bobagem, no sentido, certamente, de alguém assumir a herança, ainda com o homem vivo, de ser o representante de Lacan. Já insisti certas vezes aqui que não me chamo Jacques Lacan e que não sou representante de ninguém com esse nome”199.

198 199

Psicanálise & Polética, op. cit., p. 309. Idem, p. 361, p. 417. Grifo do autor.

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Muito menos era o caso, em nível internacional, de alguma submissão “a qualquer imperialismo ou colonialismo ávido por implantar alguma Multinacional”200, em referência à reunião de Caracas. E continuava, de modo análogo ao Manifesto Antropófago, afirmando a necessidade da postura de dizer um não público às tentativas de catequese, as quais, em seu próprio tempo, Lacan também repudiou, esculhambando a vontade totalitária da IPA, ao referir-se a essa instituição pelo acrônimo SAMCDA – Sociedade de Auxílio Mútuo Contra o Discurso Analítico201. Por fim, o autor esclarecia que a “falta de respeito para com nossa posição enquanto sujeitos habitantes de determinado lugar sintomatizado por determinada língua”, levara à recusa em participar da reunião de Caracas, “com todo o respeito que tenhamos pela inteligência e valor do organizador”202. Afinal, não estava interessado em “nenhum Movimento Analítico Lacaniano Universal, MALU MILHER”203.

25. A despeito do entorno agonístico, a obra teórica, clínica e institucional de Magno prosseguiu, acelerando a sondagem do sintoma heterofágico. Em 1983, funda a Causa Freudiana do Brasil, em uma iniciativa do Colégio Freudiano de Psicanálise em Brasília, do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro e do Colégio Freudiano de Vitória, conforme vemos em seu estatuto, inicialmente publicados no Boletim Maisum, e reeditados em Revirão: Revista da Prática Freudiana204. 200

Idem, ibidem. LACAN, Jacques. Televisão. Em: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 518. A íntegra da conferência, originalmente encomendada para uma rede de televisão, com o título de Psicanálise, está disponível no youtube. 202 Psicanálise & Polética, op. cit., p. 418. 203 Idem, p. 419. O acrônimo proposto mostrou a presença de espírito do autor, ao explorar a semântica do “feminino” que andava pelo ar na carona do sucesso de mídia de um seriado exibido, à época, na TV Globo, intitulado “Malu Mulher”, pretensiosamente sério, mas inevitavelmente caricatural dos discursos e propagandas sobre a emancipação feminina então em voga no Brasil. 204 Essas instituições se formaram na disseminação do trabalho do CFRJ, seja por iniciativa de seus membros, como foi o caso do Colégio Freudiano de Vitória, que surgiu de grupos de estudo formados naquela cidade por José Nazar, seja por encontro fortuito tornado ocasião de trabalho conjunto, como foi o caso do Colégio Freudiano de Psicanálise em Brasília, que surgiu da iniciativa de Humberto Haydt de Melo, que Magno reencontrou no Colégio Brasileiro de 201

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A Causa Freudiana do Brasil (CFB) tinha como objetivo abrir espaço para o debate científico que acolhesse as reflexões produzidas no campo psicanalítico, considerada a pluralidade de instituições brasileiras que, àquela época, já se referenciavam ao ensino de Lacan. Seu ineditismo na história institucional da psicanálise consistia na natureza estritamente congressual que seu estatuto determinava, descentralizando o exercício do poder decisório. Isto, porque caberia a cada instituição-membro, por rodízio, sediar e dirigir um congresso, de modo soberano quanto à orientação do evento, o que incluía o convite a qualquer pessoa ou instituição, brasileira ou estrangeira. Não haveria hegemonia de nenhuma instituição participante sobre as demais, nem ingerência em suas decisões quanto aos objetivos e atividades que cada uma assumisse, quando o rodízio assim determinasse. Para fazer parte da associação, a instituição pleiteante deveria apresentar seu pedido, por escrito, dirigido ao Conselho da Causa, formado pelos titulares das associações membros. Não havia hierarquia entre estas últimas e as instituições recém-ingressas, sendo exigidos o pagamento da inscrição e o cumprimento de um prazo de carência (1 ano) para participar do rodízio, quando deveria ser reiterado, por escrito, o pleito inicialmente apresentado. A cada ano, por ordem de entrada na associação e em rodízio permanente, o Diretório da Causa seria exercido pelo órgão correspondente da instituição titular que estivesse à frente da realização do congresso anual – fim e meio da CFB –, podendo-se declinar desse exercício mediante exposição dos motivos. Assinavam o estatuto Humberto Haydt de Souza Melo pelo Colégio Freudiano de Psicanálise em Brasília; Sergio Augusto Passos pelo Colégio Freudiano de Vitória e MD Magno pelo Colégio Freudiano do Rio de Janeiro. Cirurgiões, quando de sua conferência nesta instituição, em 1984. Por coincidência, Melo havia sido seu colega na Escola Preparatória de Cadetes do Exército, em Fortaleza, na década de 1950. Da instituição brasiliense derivou, mais tarde, o Colégio Freudiano de Goiânia. À medida que foram se realizando os congressos da CFB, outras instituições foram se agregando, como foi o caso da Maiêutica, de Porto Alegre, e do CEDP – Centro de Estudos e Desenvolvimento Psicanalítico, de São Paulo. Cf. MAGNO, MD. “De lenda em lenda”. Conferência de abertura do V Congresso d’A Causa Freudiana do Brasil. Em Boletim Maisum, 1989, n. 80, p. 45914605. Para os estatutos da CFB, ver Boletim Maisum, 1983, nº 30+1, p. 1505-1510 e Revirão: Revista da Prática Freudiana, 1985, nº 2, p. 308-312.

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O experimentalismo da iniciativa testava um arranjo não muito afeito a certo funcionamento político-institucional recorrente na história brasileira, marcada, desde, pelo menos, o período imperial, pela imposição de um “poder moderador”; por relações políticas esteadas em estruturas oligárquicas e personalizadas de poder; pela agonística dos poderes atravessada pelo clientelismo e seu hábito arraigado de conceder benefícios com contrapartida de apoio político, em um cálculo não raro mesquinho e personalista; pela manutenção de castas privilegiadas, sustentadas pela burocracia, por sua vez, solidária do próprio poder estatal por elas administrado, sobrepondo público e privado205. Essas características, que supomos, por estudo de sociologia política e história, pertencer à macrofísica estatal e societária, estão, com efeito, disseminadas nas transas locais de poderes com os quais as pessoas, ilusoriamente, se sentem protagonistas e sujeitos, por se suporem substantivadas n’O Poder. Não veem que não passam de marionetes movimentadas por fios feitos da rede sintomática em que estão imersas206. Também nas transas institucionais da psicanálise no Brasil esses sintomas mostraram poder alguma coisa. Foram cinco congressos realizados pela Causa Freudiana do Brasil, entre 1984 e 1988, em Brasília, no Rio de Janeiro, em Vitória, em Porto Alegre e em São Paulo, respectivamente sob a direção do Colégio Freudiano de Psicanálise em Brasília, do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, do Colégio Freudiano de Vitória, da Maiêutica e do CEDP – Centro de Estudos e Desenvolvimento Psicanalítico. A associação congressual contou também com a participação do Colégio Freudiano de Goiânia, que não chegou a sediar nenhuma reunião, dada a dissolução da CFB em 1988. Inclui-se, ainda, o contato com a Fundação do Campo Freudiano, através de Jacques-Alain Miller, em 1984, 205

CARVALHO, José Murilo de. “Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão conceitual”. Em: Dados [online], 1997, v. 40, n. 2. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S0011-52581997000200003. 206 MAGNO, MD. “Psicanálise e poder”. Em: TranZ: Revista de Estudos Transitivos do Contemporâneo, Rio de Janeiro, v. 6, 2011. Disponível em: http://www.tranz.org.br; SILVEIRA JR., Potiguara Mendes da. “ O poder das formações: o artista, o rei, a rainha, o quadro, o filme...”. Em: Revista FAMECOS: mídia, cultura e tecnologia. Porto Alegre, v. 21, n. 1, p. 165-185, jan-abr 2014. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/ article/view/14077/11329

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que sugerira ao CFRJ a realização de um encontro com psicanalistas brasileiros, a convite da Fundação, a ser realizado no Brasil. Contudo, de retorno à França, Miller alterou as condições de realização do evento, comunicando-as a outra instituição, a Clínica Freudiana, da Bahia, através de seu representante, Jairo Gerbase, que as transmitiu ao CFRJ. As novas condições incluíam a organização de uma comissão brasileira nomeada pela Fundação (sic!), encarregada dos convites aos participantes, podendo ter suas escolhas vetadas pela Fundação (sic!); os não-brasileiros seriam convidados pela Fundação, sem direito de intervenção dos anfitriões brasileiros (sic!); os custos correriam por conta da comissão brasileira, estando seu programa subordinado à aprovação da Fundação (sic!). Em outras palavras, um evento franco-brasileiro, comandado por franceses, que decidiriam quem participaria, na casa dos brasileiros, a quem a conta seria enviada. A resposta foi um Manifesto, escrito a cinco mãos, publicado em 1985, que também circulou em um grande jornal do Rio de Janeiro207, onde se esclareciam essas circunstâncias, tornando público o entendimento do Colégio de que se tratava de “colonialismo”, a ser compreendido no contexto do esfacelamento da herança do lacanismo na França e a subsequente vontade de constituição de hegemonia por parte de determinados segmentos franceses, que se estendiam inclusive (ou principalmente?) além-mar. A essa pretensão não faltavam adesões locais subservientes, que não apenas davam prova de fraqueza intelectual, como intentavam obter vantagens pessoais, trocando seu apoio pelo suposto ganho em aculturação, mostrando, com isso, o esforço de parecerem civilizados. O Manifesto repudiava a pretensão de tutela da instituição estrangeira sobre o processo de aproximação entre instituições e analistas brasileiros, que a Causa Freudiana do Brasil iniciara por decisão autóctone, o que não impedia qualquer de suas instituições-membro de convidar a Fundação ou outra instituição estrangeira, quando de sua gerência congressual, estabelecida pela ordem do rodízio. Na conclusão, declarava-se que, 207

Revirão: Revista da Prática Freudiana, nº 2, op. cit., p. 308-312. Os signatários do manifesto foram: MD Magno, Marco Antonio Coutinho Jorge, Octavio de Souza, Antônio Sergio Mendonça e Aluízio Menezes. O Manifesto foi publicado no Jornal do Brasil, na edição de 15 de setembro de 1985, no caderno “Especial”, que circulava aos domingos.

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ao invés de “escamotear a sintomática constitutiva da singularidade cultural do Brasil”, desejava-se, ao contrário, “por em relevo essa implicação”, pela vontade de “constituir uma tradição representativa de enunciação brasileira na Psicanálise”. Não se tratava nem de “xenofobia militante”, menos ainda da “subserviência mansa do colonizado”, e sim de insistir na “assimilação, mas com boca própria, por antropofagia (ou heterofagia)”, nas pegadas de Oswald de Andrade, que apontara talvez “o coração da nossa sintomática”. O “só me interessa o que não é meu” era solidário de um vigor de postura “contra todas as catequeses”. Dezesseis anos depois, quando do convite para participar dos Estados Gerais da Psicanálise, iniciativa do psicanalista francês René Major, com adesão de várias instituições internacionais e brasileiras, Magno, mais uma vez, se manifestou, ponderando suas razões em não aceitar o convite que lhe chegou através do psicanalista Chaim Samuel Katz. Deu ao evento a alcunha de Estragos Gerais da Psicanálise, declarando não ver razão de os brasileiros “embarcarem num projeto que já tem de saída o sabor – e mesmo a denominação (Estados Gerais) – de um fenômeno exclusivamente francês e com raízes históricas” que considera “espúrias”, pela relação com a Revolução Francesa e os acontecimentos a ela vinculados, como o Terror e a Restauração. Questionou “a velha vontade de colonização” ali presente, acrescentando que “gostaria muito de ver acontecer – e ter a honra de participar de – algum movimento que fosse emergencial de nossas próprias situações e condições”. Por fim, seu diagnóstico, coerente com o percurso feito até então, foi no sentido de considerar o projeto como retardatário, se não mesmo retrógrado, “apesar dos semblantes de vanguarda e os esgares democrateiros com que se possam maquilar”208.

26. A obra teórica de Magno deu um salto, a partir de 1982. Fiel à sua digestão heterofágica, passo a passo, a cada Seminário, avançava a concepção de uma 208

MAGNO, MD. “Resposta a Chaim Samel Katz e a quem mais possa interessar sobre participação nos ditos Estados Gerais da Psicanálise, Rio, Agosto, 2001”. Em Ars Gaudendi: a arte do gozo [Falatório 2003], op. cit., p. 125-6.

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psicanálise simplificada em seus axiomas e postulados, transformando as primeiras intuições, transmitidas, lado a lado, com o ensino lacaniano, em proposições distintivas de uma nova psicanálise, que continuaria a dialogar com o corpus teórico lacaniano, por pelo menos, mais dez anos. Para situar a magnitude do salto teórico, podemos dar quatro exemplos, dispersos na produção desse período. Em primeiro lugar, a concepção do Revirão como modelo minimalista do psiquismo, a partir das propriedades da banda de Moebius. Ao invés de destacar a operação topológica do corte – que, em Lacan, é o correlato da noção de sujeito do inconsciente –, a proposta de Magno privilegia a lógica de reversão inscrita no percurso longitudinal da contrabanda, entendendo que o ponto não-orientável descrito pelos matemáticos é, com efeito, ponto bífido. A cada ponto conjeturável no percurso longitudinal dessa superfície unilátera inscreve-se uma lógica de orientação para um lado ou para outro, pois há, sim, orientação topológica na contrabanda, só que ela é bífida. Temos, então, uma potente metáfora para mostrar que o psiquismo funciona espontaneamente na disponibilidade para transitar entre opostos, cruzar informações, virar ao avesso qualquer dado de realidade, pois sua propriedade fundamental é a bifididade. Ora, tal capacidade do psiquismo de estar disponível para um lado ou outro é solicitada, marcada e recalcada pela realidade binária do mundo macrofísico, com a qual a mente opera. Para acompanhar os processos inconscientes é preciso, portanto, saltar fora da opositividade binária e se referir a uma lógica de terceiro lugar: a bifididade antecede logicamente a partição de opostos, que, por sua vez, se nos impõem por recalque. A lógica do Revirão é apresentada pela primeira vez no Seminário A Música para mostrar que a lógica significante de Lacan depende de condições estruturantes ou competências que não estão dadas na ordem da linguagem, em seu apoio linguageiro e linguístico. O significante não está isolado do significado, como se fosse uma palavra simbólica desprovida de significação, mas atuante na determinação inconsciente, como propôs Lacan, a partir de seus empréstimos à linguística estrutural. Esse significante-letra é sintoma habitante do mundo binário e opositivo, portanto, declinado em relação à instância bífida do inconsciente. Logo, o sujeito do inconsciente, represen109

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tado pelo significante, é espessura sintomática já irremediavelmente significativa, ou seja, em regime de oposição. Para manter o vigor abstrativo do esforço lacaniano, era preciso abandonar a preeminência simbólica do significante e considerar sua compleição bífida como halo significante ou Revirão. Nesse sentido, qualquer expressão simbólica é já uma possibilidade alélica do halo significante, em opositividade a outro alelo recalcado. Palavras, atos, discursos, significantes, significados, significações, abstrações simbólicas (do parentesco, da língua, do poder, dos processos sociais etc.) são ordenações já decantadas, binárias e opositivas, que expressam a operatividade do recalque, e não a bifididade do inconsciente, que as tornou possíveis209. O segundo exemplo de reordenação conceitual é o entendimento de que o processo primário freudiano, longe de ser apenas determinação significante do inconsciente do e no falante, inclui também o vivo que, apesar de espontaneamente não se comportar de modo reversível, é arrastado pela força excessiva da pulsão, cuja direção e sentido é a extinção impossível. Tomado isoladamente, o vivo é processo homeostático e constituído de autossoma e etossoma, isto é, comparece em uma estruturação codificada (genética, por exemplo) acoplada a uma programação etológica, dependente de relações ecossistêmicas, sofrendo a força entrópica do princípio do prazer freudiano. No novo escopo abrangente do processo primário, concebe-se um grande processo metaforonímico, de cruzamento sintático e semântico das coisas em geral, aí incluído o vivo. Ora, esse processo tem vicissitudes particulares, consoante a sua decantação em formações, como a língua, por exemplo, de tal modo que o simbólico corresponde ao processo primário ocupado por formações que conectam as moções pulsionais, configurando sintomaticamente o “sujeito” e assentando-lhe as bases no vivo, na língua e nos processos significantes, no sentido restritivo da teoria lacaniana. A falta, inscrita no simbólico, torna-se um efeito do processo hiperbólico do inconsciente pulsional, pois as formações sintomáticas são parciais, passíveis, inclusive, de pressão de estase, pois são máquinas de acoplamento simbólico que metaforizam os modos de acoplamento do vivo210. 209 MAGNO, MD. A Música [Seminário 1982]. 2ª ed. Rio de Janeiro: aoutra editora, 1986, p. 208-220. 210 Idem, p. 16-78. Importante registrar que essas questões, desenvolvidas no Seminário A Música, se coadunavam com dois desdobramentos em curso da teoria dos sistemas de

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O que conecta o avanço da tese do Revirão com o princípio do prazer no vivo e no falante é a intuição primeira do Espelho. O vivo que o falante é sofre de portar a competência reflexiva, que opera o mundo a partir da lógica de Revirão: tudo é questionável, passível de cruzamento e reversão: a mente é Espelho enantiomórfico. Mais um passo conceitual e a lógica do Revirão é concebida em perspectiva cosmológica, como estruturalidade do Haver. Aí está o terceiro exemplo de reordenação teórica. A mente (humana) como originariamente Espelho é uma repetição da estrutura em simetria e quebras de simetria sucessivas que constituem o Haver, em motu perpetuo de desejar o não-Haver impossível. O diálogo teórico foi buscar analogias e exemplos na cosmologia física e seus modelos de universo entrópico (buracos negros de condensação de matéria) e neguentrópico (conjeturas de explosão e expansão). Se, n’A Música, Magno sugere que “o descobrimento freudiano do processo primário daria frutos se levado ao campo da ciência-tecnologia com mais rigor”211, em Escólios¸ no diálogo com a cosmologia física, constata que “estamos cansados de linguística e de ciências humanas, e desejamos uma guinada”212. Ludwig von Bertalanffy: a teoria da autopoiesis de Humberto Maturana e a cibernética de segunda ordem de Heinz von Foerster, que, por sua vez, recuperou da álgebra monovalente de Georges Spencer Brown a noção de cálculo matemático como uma operação capaz de realizar distinções. Também para Magno a contribuição de Spencer Brown foi importante, pois lhe forneceu um apoio heurístico para mostrar abstrativamente uma noção de forma como anotação ou marca distintiva do que quer que haja. Em outras palavras, forma como forma da distinção que, como tal, possui dois lados: o que se distingue como “marcado” e o que se indica como “não-marcado” ou excluído, mas que permanece no fundo como possibilidade para a operação. A lógica do “marcar distinção sob fundo não-marcado” foi uma espécie de operador de passagem entre o regime binário da diferença simbólica e o regime enantiomórfico da mente, à medida que, da proposição do Espelho, emerge a própria possibilidade da binariedade ‘marcado/não marcado’. O Boletim Maisum, nº 12+1, 20 maio 1982, p. 497-516, publicou o artigo “As leis da forma (para introduzir uma semântica sem verdade)”, de Axelle e André Patsalides, com tradução de MD Magno. O artigo originalmente saiu em Cahiers Litura-Analytica, v. 27, Ornicar?, 1982. Pouco depois, no mesmo Boletim, foi publicado o cap. 12 do livro Laws of Form, de Georges Spencer Brown, também traduzido por Magno. Cf. Boletim Maisum, nº 30+1, 1983, p. 1511-1515. 211 Idem, p. 29. 212 MAGNO, MD. Escólios [Seminário 1984]. Em: Revirão: Revista da Prática Freudiana, Rio de Janeiro, nº 1, jul 1985, p. 21. As reações ao novo patamar de questionamento a que a psicanálise foi alçada na obra de Magno ressoaram particularmente nesse seminário, em cuja gravação estão registradas as interrupções intermitentes dos participantes, impedindo a apresentação dos

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O quarto e último exemplo da ruptura teórica da Nova Psicanálise em elaboração na primeira metade da década de 1980 é a consolidação conceitual da heterofagia em chave estilística, conforme a sondagem iniciada em Psicanálise & Polética. Foram propostos o estilo maneirista como terceiro em relação ao clássico e ao barroco, e a consequente leitura do Brasil como “maneiro”. Na verdade, é o coroamento das pesquisas que, desde Senso contra Censo, foram construindo a psicanálise como uma arte e sua teorização como uma estética, na medida em que: 1) é postulada a condição artificiosa do que há, abolindo-se a distinção entre natureza e cultura ou natureza e simbólico; 2) a estética artificialista daí decorrente se estende a toda e qualquer operação de produção, não sendo apenas a arte isolada como campo profissional e conceituada pela produção sapiente e/ou chancelada pelo mercado; 3) a produção artificiosa é um fazer que está na dependência da fantasia sexual (desde Freud e Lacan), a qual pode encontrar, em um processo de análise, meios de se elaborar discursivamente e se expressar estilisticamente; 4) a psicanálise, portanto, “é a arte de transformar o sonhador em artista”, no sentido de ser a arte que leva à travessia da fantasia, que é realizar o que a fantasia determina no sintoma, mas sem aí se aprisionar, sintomatizando, ao contrário, no mundo, ao transfigurá-lo como efeito de análise; 5) do entendimento abstrativo da sexualidade, já presente em Lacan, decorre uma concepção mínima de estilos disponíveis para o falante, que, longe de ser os dois indicados na teoria lacaniana, são, na verdade, quatro, em conformidade com a extremação da noção de Real – não haver relação sexual –, o que lança cada um no confronto com o Impossível absoluto, que não há213.

27. Desde, pelo menos, Heinrich Wölfflin, tornou-se consolidada a perspectiva segundo a qual Clássico e Barroco são as duas vertentes nítidas da arte ocidental214. Conectando a história da arte com a psicanálise e ressaltando a congruência entre argumentos do autor. Tal circunstância é aludida no início da publicação: “Era para ser o Seminário do primeiro semestre de oitenta e quatro. Duas sessões se realizaram pertinentes. Houve surdez demais e esforço para olvido em quanto matraqueio impertinente. (...) Do que sobrou, quer dizer, do que me foi laxado, ajunto agora – e deixo como está para ver como é que fica. Sabe-se que isso passa, mas retorna”. 213 MAGNO, MD. Grande Ser tão veredas [Seminário 1985], op. cit., p. 129-145; p. 211-227. 214 WÖLFFLIN, Heinrich. Renascença e Barroco [1888]. São Paulo: Perspectiva, 2000.

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essas duas vertentes com o Masculino e o Feminino lacanianos, Magno destaca a emergência de um terceiro estilo, que a história e a crítica de arte acabaram por reconhecer como não sendo nem Clássico, nem Barroco, e sim Maneirista. O estudo do Maneirismo mostrou que se trata de um estilo caracterizado pela postura antinaturalista, artificiosa e cerebralizante; pelo contraste crescente com o “natural”, donde o recurso exaustivo a figuras rotantes e a torções; o que culminou no princípio estilístico da hiper-acentuação da divergência das direções, evidenciando a lei da contrariedade dos opostos como razão da criação artística e poética. Nessa perspectiva, são maneiristas Pontormo, Rosso, Beccafumi, Parmigianino, Bronzino, El Greco e Michelangelo, mas também Rabelais, Tasso, Cervantes, a lírica de Camões e Shakespeare215. Para o psicanalista, essas contribuições somavam para mostrar a tese de que a sexualidade (humana) é de terceira ordem, isto é, maneirista, não se reduzindo nem às configurações anatômicas, mas também não se enquadrando apenas em suas expressões simbólicas, como Lacan quantificou na fórmula “Homem” e “Mulher”. A secção/sexão instaura o terceiro sexo, “lugar entre, interstício, [do] faz-de-conta, farsante, que se atravessa, que é Maneiro”216. Ora, a bifididade de que o Maneirismo é testemunha estilística depende, em última instância, da alucinação de não-Haver, o que inscreve uma quarta instância para a sexualidade, que é o sexo da morte, impossível, mas não menos desejado. Configuram-se, assim, os quatro estilos basais da mente afetada de Revirão – Tanático, Maneiro, Clássico e Barroco –, ou sua sexualidade, conforme as fórmulas da sexuação – Desistente, Resistente, Consistente e Inconsistente 217. 215

WEISE, Georg. Il manierismo: bilancio critico del problema stilistico e culturale. Firenze: Leo S. Olschki Editore, 1971; SHEARMAN, John. O maneirismo. São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1978; PINELLI, Antonio. La belle manière: anticlassicisme et maniérisme dans l’art du XVIè siècle. Paris: Livre de Poche, 1996; HAUSER, Henri. Maneirismo: a crise da renascença e o surgimento da arte moderna. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1993; FALGUIÈRES, Patricia. Le maniérisme: une avant-garde au XVIè siècle. Paris: Gallimard, 2004; CURTIUS, E. R. Literatura europeia e idade média latina. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1996. 216 MAGNO, MD. Grande Ser tão veredas [Seminário 1985], op. cit., p. 175. 217 Em razão da complexidade da questão da lógica da sexuação, primeiro formulada por Lacan e, depois, revista e ampliada por Magno, omitimos uma série de raciocínios que envolvem o que o psicanalista francês chamou de “fórmulas quânticas”. Tentaremos resumi-las. Em primeiro lugar, esses raciocínios utilizam a anotação da lógica simbólica, que formaliza o que a teoria clássica das proposições entendia como a quantidade das proposições: todos, nenhum, alguns.

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A heterofagia das produções encontrava no Maneiro sua deriva estilística, abrindo um campo de pesquisa sobre o Brasil como um país Maneiro, e não Barroco. Para exemplificá-lo, o autor usou como exemplo uma escultura de Aleijadinho, que faz parte da composição pictórica da igreja de Matosinhos, em Congonhas, Minas Gerais. Trata-se de um anjo, pendurado do teto da igreja, em postura afetada e teatral, portando na mão direita um cálice e na esquerda uma lança (uma foto da escultura foi capa da Revista Revirão, nº 3). Visto de frente, o anjo oferta esses objetos especularmente e, na hipótese de aceitá-los, quem o fizer os receberá de forma cruzada, a lança passando para a mão direita e o cálice para a esquerda. Ora, esses dois objetos são símbolos da castidade ou intocabilidade, na longa tradição da Questa do Graal, de modo que o Anjo está entre as duas marcas, masculino e feminino, que não copulam Os dois quantificadores que nos interessam são: (∃), que representa a ideia de que “existe ao menos algo (x), tal que...”, e (∀), um quantificador universal utilizado para representar a ideia de que “Todas as coisas (x) são tais que...” ou apenas “Para todo (x)...” Os quantificadores modularam a ideia de universal, seu contrário (Universal Afirmativa x Universal Negativa) e seu contraditório (Particular Afirmativa x Particular Negativa). Para Lacan, importava enunciar logicamente as características singulares da realidade sexual do inconsciente: sua ordem simbólica em falta estrutural, sua inscrição significante ordenada pela função fálica (o significante falo como função ou variável lógica) e a impossibilidade da relação sexual, não importando a posição subjetiva homem ou mulher. Assim, criticou a lógica aristotélica e sua concepção de universal com base na existência e, em seu lugar, propôs o universal a partir da exceção, que circunscreve o todo, além de conceber uma função inédita na qual a negação cai sobre o quantificador, a ser lido como não-todo. Disso resultam duas posições subjetivas da sexuação. De um lado, a função homem, que se escreve ∃x~ Φx / ∀x Φx e se lê: existe pelo menos um que diz não à função fálica, de modo que se fecha um universal com essa operação de exclusão (∃x~Φx) e se constitui um todo (∀xΦx) como exercício da mesma função fálica, fundada na operação de exclusão. De outro lado, temos a função mulher, que se escreve ~∃x~Φx / ~∀xΦx e se lê: não existe nenhum que não seja função fálica (~∃x~Φx), logo o universal não existe, é negado e não-todo torna-se função fálica (~∀xΦx). Para Magno, no entanto, há duas funções lógicas anteriores e hierarquicamente superiores às duas modalizações lacanianas, que, aliás, não são denominadas de homem e mulher, e sim de consistente e inconsistente. Dado o axioma da pulsão, Haver desejo de não-Haver, há desejo de Impossível como gozo absoluto de extinção, donde se segue o sexo da morte, desistente, suposto gozo obtido caso atingíssemos em presença a morte requerida, que se escreve ~∃x Φx / ∀x~Φx e se lê: se não existe nenhum que afirme o tesão (~∃x Φx ) – em crítica à ideia de função fálica –, então todos podem negá-lo (∀x~Φx). Mas a morte não há, portanto resta haver sexualidade como quebra de simetria originária, secção ou sexão resistente, que se escreve ∃x Φx / ~∀x~Φx e se lê: se existe pelo menos um que afirma o tesão (∃x Φx), ele pode ser negado, mas não de todo, nem por todos, nem por todo o tempo (~∀x~Φx). Cf. o desenvolvimento das fórmulas quânticas da sexuação em relação com as lógicas ocidentais, em diálogo com o lógico brasileiro Luiz Sergio Coelho de Sampaio, além da congruência entre a sexuação e os quatro estilos basais em MAGNO, MD. Revirão 2000/2001. I. “Arte da Fuga”; II. Clínica da Razão Prática, op. cit., p. 117-162.

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por ser a relação sexual impossível218. Curiosamente, para dizer o mínimo, o filósofo tchecoslovaco Vilém Flusser, que morou e trabalhou no Brasil entre 1940 e 1973, fazendo disso oportunidade para refletir sobre a “fenomenologia do brasileiro”, ficava perplexo ao ver a arte colonial brasileira ser chamada de barroca. Para ele, um imigrante nativo de cidade barroca europeia cai na risada ao visitar as pretensas cidades barrocas brasileiras, risada que, no entanto, vira admiração tão logo o imigrante se desvencilha do rótulo. “Porque então descobre um fenômeno sem paralelo no qual elementos portugueses, orientais (hindus e chineses) e negros conseguem formar uma síntese na qual é possível descobrirem-se os germes de um novo tipo humano, (...) inteiramente fora da corrente histórica, em canto perdido do mundo (...), em síntese espontânea e não pretendida”219. E conclui, como se citasse Oswald de Andrade: “o curioso é que o brasileiro atual, ao ver tal fenômeno, não se descobre a si próprio nele como sendo uma das suas raízes e potencialidades, mas, obcecado pela ideologia, pretende ver barroco e, se for chauvinista, até barroco excepcionalmente elaborado”220. O núcleo da nova teoria, em torno do qual o trabalho conceitual de Magno se expandiria, estava concebido: 1) em regime de dissimetria, Haver busca não-Haver; 2) o Real é bifidização de Haver, com suas consequentes dissimetrizações, o que, em termos cosmológicos, combina com as conjeturas físicas sobre as partículas simetrizáveis e com os modelos de universo eterno em motu perpetuo de condensação/neutralização e explosão/expansão; 3) repete-se, embutido no sistema biológico conhecido que é o nosso caso, o mesmo modo de operação em Espelho ou Revirão, do Haver; 4) a Mente é Espelho enantiomórfico; 5) Inconsciente é Haver e Linguagem é Revirão; 6) há uma estilística de base apreensível na estetização dos processos do falante, que pode ser organizada em quatro possibilidades, correlatas da sexuação; 7) a estilística de base da sintomática brasileira é o Maneiro.

218

MAGNO, MD. Grande Ser tão veredas [Seminário 1985], op. cit., p. 165-6. FLUSSER, Vilém. A fenomenologia do brasileiro: em busca de um novo homem. Rio de Janeiro: Eduerj, 1998, p. 81. 220 Idem, p. 81-2. 219

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No ano em que o Colégio Freudiano do Rio de Janeiro assumiu a direção d’A Causa Freudiana do Brasil e realizou o congresso que a função estatutária lhe incumbia, o II Congresso d’A Causa teve como tema-título “A Psicanálise do Brasil”.

28. 1985 foi o ano do (primeiro) Rock in Rio e da eleição presidencial que encerrava a ditadura militar. Também foi o ano da expectativa pela passagem do cometa Halley, em meio ao sucesso do teatro besteirol e do rock nacional. Em dezembro, o Jornal do Brasil publicou um cartoon de Liberati, em quase meia página, com o título “Promessas de verão: Está chegando a hora em que o Rio vira uma festa”221. No traço do artista, se desenhava uma série de microcenas do cotidiano carioca: o sanduíche natural do bairro do Leblon; a vitrolinha tocando Gil, Caê e Angela Ro-Rô; o humor esculhambado do teatro besteirol; a azaração do rapaz saradão; o cabelo new wave da banda de roquenroll; o intelectual lendo Marguerite Duras; a expectativa pela exibição do filme, até então proibido, Je vous salue, Marie, de Jean-Luc Godard... no centro, embaixo, dois bigodudos conversam, um deles carregando uma banana debaixo do braço: “– Onde você vai com essa merendona?” “– Pro Colégio ‘Fróidiano’”. Naquele ano, realizou-se no Hotel Copacabana Palace o IIº Congresso d’A Causa Freudiana do Brasil. Seu símbolo, uma banana, que ocupava a quase totalidade do cartaz de divulgação, rendeu-lhe a alcunha, até hoje lembrada, de ter sido o congresso “da banana”. Menos recepção reflexiva, talvez, teve sua efetiva intenção analítica e política: fazer o gesto, traduzido em bom brasileiro, de dar uma banana, mandar às favas, as moções que, estrangeiras ou nacionais, vinham criando dificuldades ao trabalho teórico, clínico e institucional desenvolvido no Colégio Freudiano do Rio de Janeiro. Apesar e por causa disso, o evento foi um sucesso. A movimentação em torno do CFRJ havia começado muito antes, quando, em 1982, inaugurou sua série de saraus, que eram eventos abertos ao 221

Em 18 de dezembro de 1985.

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público, nos quais um/a convidado/a de projeção pública, por sua atividade, opinião ou intervenção, traria seu depoimento sobre como via os acontecimentos do mundo, motivado por questões trazidas por um grupo de analistas da instituição222. Além dos saraus, o CFRJ passou a promover cirandas, pequenos congressos onde a palavra estava disponível para expressão em plenário, fosse tomada por analistas ou não, por integrantes da instituição ou não, desde que a pessoa tivesse se inscrito. Outra atividade, dessa vez mais restrita à participação dos membros da instituição, eram os mutirões, esforço concentrado de pesquisa e estudo voltado para o desenvolvimento de temas e questões importantes para a prática e a teoria psicanalíticas. Acrescida a frequente cobertura pela mídia impressa dos eventos patrocinados pelo Colégio, podemos dizer que essa instituição foi um caso de presença, no sentido de Gumbrecht223, na cidade do Rio de Janeiro, com efeitos colaterais no Brasil e no exterior. À parte a reviravolta teórica da psicanálise trazida pelo ensino de Magno, mas não deixando de com ela se relacionar, o fato é que centenas de pessoas, com maior ou menor conhecimento do percurso da psicanálise no Planeta, procuravam o Colégio, que chegou a ter, entre 1982 e 1988, mais de 400 inscritos que pagavam a mensalidade da instituição. A divulgação midiática, com a ignorância e distorções que costumam caracterizá-la, fazia circular a existência do CFRJ e de seu integrante mais polêmico (seu presidente, MD Magno). Aqui e ali, a presença do Colégio – reconhecido como primeiro grupo de formação estritamente lacaniana no Rio de Janeiro224, no momento em que teoricamente já não se tratava mais disso, pelo menos no ensino de Magno – invadia as conversas de bares, as rodas de amigos, as discussões acaloradas 222

O primeiro convidado da série de saraus foi o músico Caetano Veloso, que retornou pela segunda vez, dois anos depois, quando a conversa foi transcrita e publicada no Folhão d’aoutra, publicação da editora do Colégio, distribuída gratuitamente nas livrarias da zona sul da cidade. 223 GUMBRECHT, Hans Ulrich. Atmosfera, ambiência, Stimmung: sobre um potencial oculto da literatura. Rio de Janeiro: Contraponto, Editora PUC Rio, 2014. 224 FIGUEIREDO, Ana Cristina C. de. Estratégias de difusão do movimento psicanalítico no Rio de Janeiro – 1973/1983. Orientador: Anamaria Ribeiro Coutinho. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Psicologia. Dissertação (Mestrado em Psicologia), 1984. A dissertação serviu de base para “O movimento psicanalítico no Rio de Janeiro na década de 1970” em: BIRMAN, Joel (coord.). Percursos na história da psicanálise. Rio de Janeiro: Taurus, 1988.

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sobre sexo e política, ora associada a algo exótico, ora a algo diferente, ora reverberando certo incômodo denegatório. De um modo ou de outro, fazia parte do cotidiano da cidade, acolhendo, ainda que por um curto intervalo de tempo e sem que se dessem conta, a inquietação, a denegação e a loucura de seus habitantes, sendo, ao mesmo tempo, um laboratório experimental por onde passaram vários dos componentes sintomáticos das mazelas do país. Ao longo dos meses de agosto e setembro de 1985, os saraus se intensificaram, como preparação para a realização do Congresso. Em torno do tema “O que é o Brasil?”, foram recebidos Ferreira Gullar, Maria da Conceição Tavares, Heloisa Buarque de Holanda, Abelardo Barbosa (Chacrinha), Chico Anysio, Carlos Eduardo Novaes, José Celso Martinez Corrêa, Roberto da Matta, Artur Moreira Lima, participantes do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras e os integrantes do Planeta Diário / Casseta Popular. Nos três dias em que se realizou, de 04 a 06 de outubro, o Congresso teve oportunidade de acolher de novo Roberto da Matta e José Celso Martinez Correa, além de outros convidados, com destaque para a participação de Gilberto Freyre, recebido como conferencista de honra do evento, para proferir a conferência “Brasil & Psicanálise”225. A presença de Freyre era, ao mesmo tempo, uma homenagem e uma afirmação de postura, na medida em que o autor de Casa-grande & senzala tinha virado de cabeça para baixo a suposição, então em voga nos discursos higienistas do início do século XX, de que a miscigenação teria causado dano irreparável ao Brasil. Ao contrário, a mistura étnica, segundo Freyre, era uma vantagem imensa da cultura brasileira. Incorporando resultados de pesquisas de nutrição, antropologia, medicina, psicologia, sociologia e agronomia, o sociólogo pernambucano mostrara que as teorias raciais haviam se tornado obsoletas. E isso com extraordinária liberdade de estudar a sociedade brasileira, mostrando que a formação do país não podia ser interpretada pela raça, e sim pela cultura, com o que se tornaram visíveis os aspectos formadores da organização familiar 225

O leitor pode acessar a palestra em https://www.youtube.com/watch?v=9OgPnt9rtqc. Vários saraus e apresentações no Congresso foram transcritos e publicados em Revirão: Revista da Prática Freudiana, 1985, nº 2 e nº 3.

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e política, na maneira de vestir, comer, na vida sexual, na relação com o meio. “Como um bom freudiano, Freyre acreditava que, para entender o comportamento de um grupo, neste caso, os senhores de engenho, era necessário saber como seus membros haviam sido criados”226, incluindo a discussão de diferentes formas de sexualidade de modo aberto e sem juízo moral, em uma abordagem ousada para um historiador da época. Isso, sem falar na intuição freyreana do maneirismo ibérico – o sociólogo não usou essa expressão –, especialmente o português, na conta do qual Freyre debitava uma “singular predisposição para a colonização híbrida e escravocrata dos trópicos”227. Mas o IIº Congresso da CFB, com seus saraus preparatórios, não colocou na mesa de discussão apenas a miscigenação, o hibridismo, a heterofagia ou o maneiro. Por se tratar de psicanálise, o genitivo “do Brasil” exigia mostrar o outro lado da moeda, fazendo a ana-lysis das formações sintomáticas para entender como se deu o recalcamento que produziu e produz certa formação recalcante vitoriosa, cujo vigor hegemônico faz suspeitar haver por trás uma realidade igualmente expressiva. Era necessário colocar na roda, portanto, duas das forças francamente autoritárias da formação brasileira que Magno, identificava como o jesuitismo da restauração católica e o positivismo da politecnocracia militar, que sempre jogaram com uma população que parece viver na esculhambação de toda e qualquer regra. Não surpreendia que o país vivesse na bipolaridade entre demagogia e ditadura, a primeira explorando a alienação disponível de quem não pensa sobre o que está fazendo, a segunda, aproveitando-se do outro rosto da baderna, para invocar policialescamente a “necessidade” de ordem (e progresso). Como, então, discernir a sintomática 226 BURKE, Peter. Repensando os trópicos: um retrato intelectual de Gilberto Freyre. São Paulo: Editora da UNESP, 2009, p. 81. 227 FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala. 23ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1984, p. 5. Em entrevista publicada pelo Boletim do CFRJ, Roberto da Matta, partindo de seu entendimento teórico do carnaval brasileiro a partir da ideia de ambiguidade – convergente, segundo o antropólogo, com a interpretação de Mikhail Bakhtine –, afirmou: “No Brasil, o ruim são as pontas. O problema não é o ambíguo; é quando aparece o que é completamente definido ideologicamente, politicamente, profissionalmente. Esse é o cara que cria problemas, que vai causar confusão; porque eventualmente ele vai dividir coisas que não deveriam ser divididas. Vai tentar suprimir justamente essa tradição carnavalesca que vive, que se alimenta de vários códigos ao mesmo tempo”. Cf. Boletim Maisum, nº 50, 09 dez. 1985, p. 2269-2274. 

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de base do país, se ela não encontra lugar para dizer sua verdade? Onde o espaço que os próprios brasileiros se concedem para falar e ouvir sobre o que está tão na cara que não se vê, ao passo que os amigos estrangeiros, em pouco tempo, percebem e declaram? Ou o preço é alto demais e se prefere viver do investimento, não menos rentável, da mediocridade, ao invés de se produzir e afirmar estilo em voz e discurso próprios?228.

29. O entendimento do “sintoma Brasil” se ampliou, no compasso da produção teórica de Magno e da crise que lentamente foi se instalando no CFRJ. No IVº Congresso d’A Causa Freudiana do Brasil, realizado em Porto Alegre, sob a direção da instituição psicanalítica Maiêutica, em 1987, forjando novo chiste, desta vez a partir de um sintoma de grande peso no país – a Petrobrás –, Magno proferiu a conferência intitulada “‘Neurobrás’ S◊a”229. Mudara o tom da intervenção. Se desde 1981, Oswald fora presença inspiradora, em uma elocução que abria perspectivas de entendimento e, quiçá, de possível alavancagem de uma produção psicanalítica própria no Brasil, sem donos institucionais e em colaboração conceitual e clínica, agora o poeta compartilhava espaço com Anísio Teixeira. Ambos serviam de retaguarda ao diagnóstico explícito acerca do esgotamento das soluções teóricas com que Lacan provera a psicanálise e a concomitante necessidade de pensar tudo de novo, fora do escopo estruturalista e em consonância com a mutação tecnológica, política, cultural, que varria o Planeta. Lacan era “um pensador terminal”230 e fechara um ciclo. Urgia produzir futuro novamente. Mas a chance do Brasil nessa virada, no tocante à psicanálise, era ameaçada, senão mesmo, sabotada, pelo outro lado da inventividade heterofágica, configurado no que Anísio Teixeira, tomando emprestado de Vianna Moog, apontara como o mazombismo do brasileiro, que, naquelas circunstâncias, 228

MAGNO, MD. Conferência de abertura do IIº Congresso da CFB em Revirão: Revista da Prática Freudiana, nº 3, op. cit., p. 5-21, e republicada em Grande Ser tão veredas [Seminário 1985], op. cit., p. 253-268. 229 Cf. Boletim Maisum, nº 73/74, 1988, p. 3841-3868. 230 Idem.

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representava a atitude de veemente recusa em relação à existência de pensamento próprio em psicanálise no Brasil. Reeditava-se, no campo freudiano, a mesma experiência que a literatura conhecera, acompanhada de atitudes rivalitárias, cujo efeito era a destruição do crescimento à volta, fosse em nível pessoal, fosse em nível institucional. Na conferência, esmiuçava-se o problema, com sua chave de interpretação já indicada no título: o entendimento clínico de que todo processo estacionário (neurose) é impeditivo das possibilidades de existência própria (travessia da fantasia), aplicado à análise do sintoma Brasil, resultava em entender a estagnação dos processos criativos do país (neurobrás) pelo recalcamento de sua produção autóctone, em estilo próprio, conforme um processo de travessia de fantasia (na anotação lacaniana de S◊a). Neurobrás era, por isso mesmo, empresa S.A., e não S◊a, como “sociedade anônima da neurose nacional” ou sociedade de defesa do sintoma – sua sustentação e denegação. Uma sintomática que explicava o fato de o Brasil não ter conseguido se impor até então (até hoje) diante das demais nações “com um aparelho cultural de sua lavra”, já que o sintoma “não se revê, não se cura ou não se curou a tempo”231. Desde Freud sabemos que a chamada “neurose” não é senão uma expressão estacionária, compulsória e compulsiva de um aprisionamento entre o alelo dito “histérico” e o alelo dito “obsessivo”232. Já sabemos que a vigência do recalque sobre a disponibilidade de Revirão significa que a força recalcante está investida para manter excluídos o outro alelo e a própria bifididade. Também vimos que essa é a situação de disjunção do mundo macrofísico, parte integrante do que Freud chamou de princípio de realidade, à qual os neuróticos dão as costas “por considerá-la – no todo ou em parte – insuportável”233. Como isso se aplica ao aprisionamento na alternância entre histeria e obsessividade? A hemiplegia obsessiva consiste em não querer lidar com a disjunção, não querer assumi-la como incontornável e, assim, prover os meios 231

Idem. Cf. MAGNO, MD. “O halo bífido do inconsciente”, op. cit. 233 FREUD, Sigmund. “Formulações sobre os dois princípios de funcionamento psíquico”. Em Sigmund Freud, obras completas, v. 10. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 109. 232

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para, por via da disjunção, criar outros mundos igualmente disjuntivos, acrescidos, no entanto, de próteses e, por isso, mais ricos em saídas alternativas. Como recalca a realidade disjunta, a hemiplegia obsessiva sofre do retorno do recalcado na disjunção: ora é isso, ora é aquilo, nada se adianta, tudo se procrastina, pois se deseja que o mundo funcione sem se pagar o preço, algum preço, qualquer preço, por isso. Assim, como a prova de realidade não conta, “a realidade do pensamento é equiparada à realidade externa, os desejos à sua realização, ao acontecimento”234. Por outra contabilidade, a hemiplegia histérica obtém o mesmo saldo estacionário. Trata-se da mesma recusa da disjunção, só que, ao invés de alternar a oposição, a histeria opera na ilusão de produzir a concomitância de um lado e de outro da disjunção, sem que se produza, no nível da prova de realidade, alguma saída alternativa. Por recalcar a realidade disjunta, a hemiplegia histérica sofre do retorno do recalcado obliterando a disjunção: tudo se promete em soluções gloriosas, ao mesmo tempo, agora. Duas contabilidades diferentes, a mesma recusa em pagar o preço, o mesmo saldo estacionário, por não se aceitar a quebra de simetria, que declina a bifididade em disjunção. Aplicados o Revirão e sua hemiplegia neurobrás, o que temos? A heterofagia recalcada, que retorna, ora na vertente da imitação, essa “proverbial macaquice do brasileiro”, imitando o que é de fora, ora na vertente do mazombismo, recusando a realidade da condição de brasileiro, não sem tentar, no processo, destruir rivalitariamente o que outro brasileiro faz. É o caso de se perguntar: “O preço é alto demais? Eu lhes direi que é menos financeiro do que cultural. É uma neurose de mazombia (como quem diz neurose de transferência) que encarcera nossa sintomação e nossa fantasia fundamentais no círculo de giz onde rodopia, chiliquento ou compulsivo, esse peru histérico-obsessivo das mazelas nacionais” 235. Como transformar o S.A. da sociedade anônima da neurose nacional em S◊a da explicitação da fantasia heterofágica, advinda de o país ser “uma verdadeira fantasia de arlequim de pequenos caquinhos de tecidos mais diversos”, que faz do brasileiro o palhaço do Planeta e 234 235

Idem, p. 119. MAGNO, MD. “Conferência de abertura do IIº Congresso da CFB”d, op. cit., p. 17.

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de alguns brasileiros no Brasil os palhaços que sustentam a criação, sob os olhares de escárnio da nação?236 Dez anos depois, sob os auspícios da virada planetária da globalização, o tema heterofagia / mazombismo retornou na obra de Magno, com alguns esclarecimentos suplementares importantes. O autor propôs que se distinguisse “sintomática de base” de funcionamento “nosológico”237. A primeira diz respeito ao simples fato de haver disjunção e, com ela, processo de decantação sintomática, com sua possível dialetização e transitividade. A segunda remete a processos de estase e de limitação das movimentações do psiquismo, sem condições de dialetização por parte da pessoa ou do grupo que está submetido a suas pressões e imposições. Trata-se de uma distinção importante em função da proposição de uma sintomática de base da cultura brasileira, que comparece em nossa história, em nossos comportamentos, não como formações nosológicas, e sim como o que caracteriza um assentamento238. É preciso um longo trabalho de análise para destacar, mapear e entender quais são essas formações de base, que soçobraram no processo, como parece ser o caso da preferência brasileira pela heterofagia e a tendência ao que viria a formar o mazombismo, o segundo em perfeito acordo com a primeira em sua vocação de gosto pelo que é outro. Temos, então, assentamentos sintomáticos que podem ser utilizados positiva ou negativamente, no sentido de serem o mediador dos movimentos, espécie de “ponto de conexão de todas as rotas pulsionais, mas que pode ser dialetizado, compreendido, até afetivamente comentado e ridicularizado pelo próprio portador do sintoma, etc., no entanto, lá está como fundação”239. 236 Fiel a seu estilo irônico e de autogozação, pelo que logra deixar ambíguas seriedade e brincadeira, em abertura de Falatório recente, Magno, apontando para um bibelô de palhaço que pusera à sua frente, declarou: “este aqui é o meu retrato, feito por um artista desconhecido”. Cf. Clownagens [Falatório 2009]. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2012, p. 13. Hilda Hilst, em diversos textos desde O caderno rosa de Lori Lamby, recorre ao riso e à “bandalheira”, e convoca à invenção de “uma pornocracia, Brasil meu caro”. Cf. HILST, Hilda. Contos d’escárnio: textos grotescos. São Paulo: Editora Globo, 2002. 237 MAGNO, MD. Comunicação e cultura na era global [Seminário 1997]. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2005, p. 373ss. 238 Idem, p. 377. 239 Idem, p. 379.

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Contudo, quando tais assentamentos funcionam de modo compulsório, emerge o “síndrome do mazombo”240, em associação com a formação sintomática heterofágica. Um síndrome é uma combinação de fenômenos de base que, em concurso, se manifestam de tal modo que a presença de um desses sintomas aponta para a possibilidade da presença de outros. No caso do síndrome do mazombo, podemos resumi-lo na fórmula: “o outro mais distante é que é o mesmo e, quando se aproxima, passa a ser de uma alteridade que deve ser dejetada de algum modo”241. Vale dizer, a identificação tem valor positivo com o outro que está longe, pois, quando está perto, o sinal inverte, a identificação reverte, passa a ter valor desqualificante e se instala uma espécie de autoctofobia, em destituição veemente da produção em estilo próprio e dos brasileiros próximos que se lançam nessa aventura. De alguma forma, o país denega o made in Brazil – não paga seu preço – e prefere continuar no fake in Brazil. Do contrário, se lograsse se desvencilhar de sua pregnância destrutiva, veríamos um sintoma produtivo de ter a competência – pela via heterofágica – de assimilar o know-how disponível no mundo e constituir existência própria a partir daí. As consequências da vertente histérica do mazombismo são as mesmas, mas seu desenho é diferente, podendo ser capturado na metáfora do “serrar o galho onde está sentado”242. Os investimentos autóctones em algum projeto ou dispositivo, seja intelectual, político, religioso, etc., malogram em crescer, por contrainvestimento dos próprios associados, que, acometidos da macaquice que valoriza o que não é do lugar, passam a destruir por dentro o que mal começaram a construir, sem que haja oportunidade para teste e experimentação por inteiro até o esgotamento e o fracasso. A Causa Freudiana do Brasil foi dissolvida antes ainda que a soma deletéria de seu saldo sobrepujasse a aposta que lhe deu ensejo. Seu último congresso se realizou em São Paulo, no segundo semestre de 1988, sob a direção do CEDP 240

Idem, p. 359. Idem, p. 360. 242 Idem, p. 362. 241

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– Centro de Estudos e Desenvolvimento Psicanalítico. A proposta de dissolução foi apresentada por Magno em sua conferência de abertura intitulada “De lenda em lenda”. Mais uma vez, uma dica chistosa, que o autor se incumbia de destrinchar, não sem ironia: teria sido a CFB uma alenda – como quem diz lacanianamente alíngua –, como o foram alenda de Freud, alenda de Lacan, alenda da Escola Freudiana de Paris, alenda do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, todas “pequenas ocorrências sintomáticas que naturalmente portam a sua marca estilística, eventos transcritos, que ficam como páginas da história para além de mal e bem, acontecimentos puros e simples”?243 Mas “de lenda em lenda” não poderia ser entendido também como delenda, tanto pelo processo de estiolamento interno da própria CFB quanto no sentido de “que se faça uma destruição para outra lenda, que se crie a partir de uma instituição delenda, outra lenda”?244 De um modo ou de outro, era preciso mudar, pois o momento presente já não se mostrava compatível com a descrição teórica pregressa, sobretudo em função da rápida incorporação universitária, de feitio academizante, sofrida pela transmissão do ensino lacaniano, burocratizado nas malhas do didatismo estéril. Então, mais valia “Lacan ser um exemplo de mestria do que seu fechamento em teoria”245.

30. A delenda não atingiu apenas a instituição congressual. O CFRJ também passou por transformações institucionais, que o levaram, primeiro à dissolução, e depois à assimilação a um modelo reconfigurado de instituição psicanalítica, a UniverCidadeDeDeus, na década de 1990. Vimos que na criação de uma instituição ligada ao ensino de Jacques Lacan no Rio de Janeiro, em 1975, optou-se pela designação de “Colégio”, com suas razões apresentadas na revista LUGAR, que, por sua vez, se transformava em polo de publicação da instituição nascente246. Centrando seu 243 MAGNO, MD. “De lenda em lenda”. Conferência de abertura do V Congresso d’A Causa Freudiana do Brasil. Em Boletim Maisum, 1989, n. 80, p. 4592. 244 Idem, p. 4604. 245 Idem, p. 4602. 246 Cf. n. 67 supra.

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objetivo na psicanálise, orientando “aqueles que querem, no campo aberto por Sigmund Freud, prosseguir no caminho indicado por Jacques Lacan”, o Colégio se propunha “garantir a relação do psicanalista à formação que ela dispensa”247, ecoando a orientação lacaniana da Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola248. Nesse documento, Lacan questionava, mais uma vez, o cerne da existência institucional da psicanálise – a formação do analista – e, com isso, a própria possibilidade de haver sociedade psicanalítica. Relembrava, de um lado, o princípio segundo o qual “o psicanalista só se autoriza por si mesmo”, o que não excluía, por outro lado, “que a Escola garanta que um analista dependa de sua formação”. O fato de o analista buscar essa garantia o transformava em responsável pelo “progresso da Escola”, quanto mais pudesse testemunhar de sua própria experiência no percurso de formação, a que a Escola não estaria imune. Ao contrário, dela dependia como fator de transformação e avanço na sustentação da presença da psicanálise no mundo – que Lacan denominou de “psicanálise em extensão” – e na preparação de seus operadores – denominada “psicanálise em intensão”. Dada a formação do analista, o fim da análise e a função da Escola, propunham-se duas formas de inserção do operador psicanalista: o AME ou analista membro da Escola, e o AE ou analista da Escola. O primeiro era o reconhecimento, em que se constituía a garantia dada pela Escola, de se tratar de um praticante que comprovou alguma capacidade e demandou inserção no projeto de trabalho da instituição, mas cujas competências analíticas ainda estariam por ser acompanhadas e testemunhadas. Em outras palavras, “um analista praticante só é registrado nela, no começo, nas mesmas condições em que nela se inscrevem o médico, o etnólogo e tutti quanti”. O segundo se encontraria, em tese, em situação de “dar testemunho dos problemas cruciais, 247 Primeira modificação dos Estatutos do CFRJ, em 1981. Cf. Boletim Maisum, n. 3, 1981, p. 125. 248 O leitor encontra esse texto em LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 248-264, e, no original, em Scilicet, n. 1, Paris, 1969. O Boletim Maisum publicou uma tradução da Proposição duas vezes, no n. 3, que divulgou a primeira modificação dos Estatutos do CFRJ, em 1981, e no n. 46, quando da segunda modificação estatutária, em 1983. Nossa tradução é um cotejo do original com as duas citadas.

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nos pontos nodais em que se acham no tocante à análise”. Por essa razão, se tratava de um lugar cuja sustentação ultrapassava a garantia inicial da Escola e ficava na dependência da demanda de direito e de fato do operador em ocupá-lo. Para tanto, era necessário o “passe” de analisando a analista, ato que estaria confiado a “passadores”, analistas da Escola, que poderiam responder, por experiência analítica própria, pelo passe. O analista da Escola, ou seja, aquele que demandava se fazer autorizar como psicanalista da Escola, deveria se dirigir a um dos passadores para falar de sua análise, no confronto analítico do processo simbólico de destituição subjetiva a que uma análise conduz, se e quando levada a termo. O passe implicava considerar a relação transferencial a partir da teoria lacaniana dos quatro discursos, que concebia a transferência a partir do sujeito suposto saber. A porta de passagem, para repetir a metáfora lacaniana, bascularia em função da chance de o sujeito sacar o desejo de “des-ser” [désêtre], onde “se desvela o inessencial do sujeito suposto saber”, “porque ele [o analisando] rejeitou o ser que não sabia a causa de sua fantasia no momento mesmo em que, enfim, esse saber suposto, ele se o tornou [ce savoir supposé, il l’est devenu]”. Lacan lembrava ainda que a proposição implicava “uma acumulação da experiência, sua recolha e sua elaboração, uma seriação de sua variedade e uma notação de seus graus”, que impunha aos envolvidos, sobretudo ao “júri em funcionamento”, “um trabalho de doutrina, para além de seu funcionamento como seletor”249. A primeira modificação estatutária do CFRJ, em 1981, se orientou pela Proposição de 9 de outubro no tocante à formação do analista, à garantia do Colégio e ao dispositivo do passe. Daí, a distinção entre “formação em psicanálise” e “formação do psicanalista” como eixo norteador do processo de formação, sem prejuízo para as categorias nas quais os participantes da 249 O leitor pode acompanhar um detalhado relato dos eventos que promoveram a Proposição na Escola de Lacan, a situação de crise vivida àquela altura pela Escola Freudiana de Paris, as apreciações críticas desse texto e as rupturas que se seguiram em ROUDINESCO, Elisabeth. História da psicanálise na França: a batalha dos cem anos, vol. 2: 1925-1985, op. cit., pp. 474-495

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instituição se distribuíam (correspondentes e membros).250 Por formação em psicanálise, compreendia-se a “formação teórica e cultural que o Colégio propõe como fundamental a todos aqueles que desejam laborar no campo freudiano, quer como analistas, quer como participantes de qualquer outra operação discursiva”251. Já a formação do psicanalista se distinguia pela exigência da análise pessoal, da garantia e do passe, conforme os requisitos de suas respectivas comissões de estudo. Ambas as instâncias estariam a cargo do recém-criado Instituto Jacques Lacan (IJL), que disporia de um Instituto de Ensino bem como de Comissões, a de Garantia e a de Passe, encarregadas respectivamente do reconhecimento dos títulos de AMC ou Analista Membro do Colégio e de AC ou Analista do Colégio. O Estatuto remetia explicitamente o sentido e o valor desses títulos à Proposição de Lacan, dispondo também sobre as regras que orientariam a formação, renovação, atribuições e modo de funcionamento das duas comissões. Quatro anos depois, o CFRJ optou por diferençar os espaços e os procedimentos institucionais destinados à psicanálise extensiva e à intensiva252. Isso se refletiu na função do IJL, que passou a se encarregar da tarefa de ensino do Colégio, e na criação da Analítica, órgão doravante responsável pelas decisões institucionais ligadas à preparação do operador psicanalítico, o que implicava conceder aqueles títulos reconhecidos pelo Colégio, renovando-se a orientação apoiada na Proposição. As comissões foram reorganizadas em Permuta, Controle, Garantia, Passe e Transmissão, sendo seu modo de trabalho apoiado no dispositivo lacaniano do cartel253. A articulação ou “nodulação” entre os lugares institucionais, funcionando como mais um, era “suposta realizar-se em torno do LUGAR do Presidente-Reitor-Intercessor, o 250

Primeira modificação dos Estatutos do CFRJ, em 1981. Cf. Boletim Maisum, op. cit., p. 125-6. 251 Idem, p. 127. 252 Cf. Boletim Maisum, n. 46, pp. 2081-2091. 253 Esse é outro dispositivo de formação do psicanalista criado por Lacan, apresentado no Ato de Fundação da Escola Freudiana de Paris em 1964: o trabalho na Escola seguiria “o princípio de uma elaboração apoiada num pequeno grupo”, composto de três a cinco pessoas, “sendo quatro a justa medida, MAIS UM encarregado da seleção, da discussão e do destino a ser reservado ao trabalho de cada um”. Cf. LACAN, J. Outros escritos, op. cit., p. 235.

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qual se impõe como Zelador da causa, e como juntor e disjuntor do movimento desejante do Colégio. Para este LUGAR é nomeado o fundador do Colégio na pessoa do Prof. Dr. Magno Machado Dias (ou simplesmente MD Magno)”254. Esse arranjo durou pouco, dadas as dificuldades surgidas na manutenção de um mínimo rigor de postura na formação do analista proposta na instituição, e seus efeitos se fizeram sentir em nova modificação estatutária, em 1987255, com repercussões nas reflexões apresentadas no Seminário De Mysterio Magno realizado no ano seguinte. Na quarta modificação dos Estatutos do CFRJ, em 1987, desaparecem o passe e sua comissão, além do título de Analista do Colégio, e é criado o título de Analista Autônomo. As comissões são reformuladas, dando lugar à Comissão de Controle, de Garantia e de Alforria, a primeira responsável pela concessão do título provisório de Analista Praticante (AP), a segunda, pelo título permanente de Analista Membro do Colégio (AMC) e a terceira, pelo título de Analista Autônomo (AA). Esse arranjo guardava relações de exigência recíproca quanto à postura entre os níveis hierárquicos correspondentes, uma vez que todos estavam na dependência de análise pessoal, supervisão analítica com um segundo analista e exposição pública das razões de suas atividades e decisões. Procurava-se, com isso, instalar uma responsividade institucional referida à especificidade da prática clínica, a partir da qual a teoria psicanalítica deveria se articular e renovar, na medida do possível, o que rompia com o formalismo, senão mesmo ritualismo, do passe lacaniano, e evidenciava o atectonismo e a disponibilidade do lugar de analista. Ao mesmo tempo, certas decisões concretas foram necessárias ao funcionamento do processo, colocando à prova o arranjo provisório na hierarquia proposta. O Presidente-Reitor do Colégio assumiu o risco da nomeação arbitrária dos dez primeiros Analistas Membros do Colégio (AMC), declarando publicamente se tratar de seu “pecado original”256. O risco incluía 254

Boletim Maisum, n. 46, p. 2089. Cf. JORGE, Marco Antonio Coutinho. “Novos estatutos, outros rumos” em Boletim Maisum, n. 64, 1987, pp. 3147-3153. 256 Informação fornecida por MD Magno. Agradecemos a Gisêlda Santos o acesso a parte do relatório da comissão clínica, onde foi tratada a questão da “Formação Novamente”, com a 255

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também intervir diretamente em todas as nomeações para funções estratégicas do Colégio, como a Direção do IJL e os professores membros de sua recém-criada Congregação; o exercício da função de mais um (no sentido lacaniano) em todas as comissões da Analítica; a nomeação da primeira composição das Comissões de Controle, de Garantia e de Alforria; a supervisão analítica dos AMC que tivessem AP sob sua supervisão; a nomeação e ocupação do lugar (no sentido da hierarquia) de Analista Autônomo; a aprovação prévia de outras funções no IJL (a composição das diretorias de seus departamentos, por exemplo) e dos nomes designados para os cargos da estrutura administrativa do Colégio (direção, secretaria e tesouraria); por fim, à semelhança das modificações estatutárias anteriores, a ocupação do lugar de Presidente-Reitor do Colégio, que se impunha como “Zelador da Causa”. No Seminário Clínico realizado no segundo semestre de 1988257, o problema da formação do analista foi longamente tratado por Magno como implicado diretamente na clínica – questão candente “sobretudo no que diz respeito a analistas alistados por uma Instituição”258 –, além de ser explicitado o que estava em jogo nas modificações concebidas na Analítica, em torno das ideias de controle, garantia e alforria. Depois de lembrar a situação política, além de analítica, das circunstâncias da concepção e efetivação da Proposição de 1967 na Escola de Lacan, o autor passou em revista sua própria condução do Colégio. Assumiu a imitação do mestre na estruturação da instituição, incluindo “aquela democração exagerada onde vale tudo”, bastando “o sujeito comunicar para ser considerado Analista Praticante”, conforme a “base dissolvente de Lacan naquele período”259. Reiterou o estatuto mais recente como um “estatuto imperial”, pelo fato de a funcionalidade dos aparelhos institucionais passarem necessariamente por sua aprovação, detendo-se nas razões do modelo proposto. Lembrou da vertente paranoide, comum na existência das instituições, que leva seus participantes a proliferarem supostas críticas ao que nem apresentação de um histórico sobre o tema da formação do analista no CFRJ e na UD, entre 1979 e 2003. 257 Parte integrante do Seminário De Mysterio Magno. 258 MAGNO, MD. De Mysterio Magno, op. cit., p. 143. 259 Idem, p. 144.

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mesmo se dedicam a indagar para entender, esclarecendo que aquele estatuto fora feito com um raciocínio de organização, que a “imbecilidade militante” insistia, et pour cause, em ignorar, criando um processo de “impossibilidade” 260 . Comunicou que, na verdade, “de maneira absconsa”, concebera três etapas, cujo primeiro lance somente estava indicado, o prosseguimento dependendo de alguma confiabilidade em relação à sua condução do processo. “Eu não queria dizer o passo seguinte”, esclareceu o autor, “porque, a meu ver, isto prejudicaria o processo. Não prejudica necessariamente, mas se o processo fosse no desconhecimento de seu final, daria uma coerência interna à instituição de votar num determinado caminho e encontrar o seu apogeu, lá adiante, sem ter tido a promessa anterior de certas prebendas que podem parecer interessantes no percurso”, além de ocultar para as pessoas “um nível de disponibilidade que elas deveriam ter espontaneamente no percurso”. De todo modo, o processo, assim mesmo implementado, mostrou sua eficácia, “na medida em que, tendo escondido esses passos, eu tenha provocado certas explosões e certas separações no seio da instituição que, embora me pesem, ao contrário de me serem ingratas, até me são gratas”, pois “aqueles que não estão disponíveis a votar num determinado percurso fazem mais e melhor em estarem longe mesmo, porque inimigo íntimo é pior que inimigo distante”261. O que estava em jogo na concepção da formação do operador analítico, da função de uma escola de pensamento norteadora desse processo e em suas relações recíprocas, tal como a intervenção institucional – estatutária “imperial” – de Magno pretendera implementar? Em primeiro lugar, uma reelaboração das possibilidades de entendimento da dica lacaniana segundo a qual a psicanálise é a pergunta “o que é a psicanálise” e seu derivado analítico segundo o qual “o analista só se autoriza por si mesmo”. Se o ato analítico é da ordem da solidão radical, indiciando alguma passagem de analisando a analista – a ser eventualmente reconhecida por quem possa contar dessa experiência a quem possa ouvi-la –, nem por isso o analista “se autoriza por si mesmo”, ou, por outra, “o analista só se autoriza por sua Escola”, ou seja, 260 261

Idem, p. 145. Idem, ibidem.

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“é autorizado por ela” 262, na medida em que está carimbado por alguma instituição. E isto em dois sentidos: seja porque o espaço discursivo que arrisca uma resposta consequente e séria (no sentido de que faz série) à pergunta “o que é a psicanálise” constrói paradigma teórico e prático nesse campo, implicando que o analista que nele busque formação possa saber e poder fazer funcionar tal paradigma, seja porque qualquer resposta consequente e séria à pergunta “o que é a psicanálise” pode vir a reformatar uma escola de pensamento, constituindo novo paradigma. As duas razões se aplicaram à situação histórica de Lacan em sua experiência na Escola Freudiana de Paris. De modo similar, a trajetória do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, como alenda – naquele sentido aludido quando da dissolução da CFB, no mesmo momento em que essas considerações clínicas eram apresentadas –, com seu personagem (quase) conceitual, institucional e passional à proa e à prova, mostrava que se tentara a húbrys (em psicanálise não há outra coisa) da criação de um espaço singular, com risco próprio, de clínica e teoria psicanalíticas. Aqueles que estavam envolvidos na construção / destruição do CFRJ estavam também à prova, no mesmo risco e na mesma húbrys, ainda que não tivessem atinado para isso (o que não faz diferença específica em psicanálise, apenas chance de entendimento só-depois). Outra coisa muito diferente era confundir criação de Escola com ato de fundação de instituição, cuja chancela estatal burocrática pode permanecer como exclusivo aval de existência institucional, enquanto não houver (de)monstração de pensamento próprio, situação que, prolongada ou tornada hegemônica, nada mais tem a ver com psicanálise. Aliás, algo a se pensar na consideração da proliferação de instituições psicanalíticas, que se intensificou a partir da década de 1980, no Brasil, em geral, e no Rio de Janeiro, em particular263. Em qualquer caso, a instituição “serve para 262

Idem, p. 146. Esse costuma ser o mote dos trabalhos sobre a história institucional da psicanálise no Brasil: sua narrativa cronológica, contábil e genealógica, à maneira das árvores genealógicas, que tomam de empréstimo o creodo geracional e genético para mostrar linhagens, denegando, no processo, qualquer reflexão sobre a possibilidade de emergência ou não de ato poético, cujo advento é da ordem do acontecimento, que salta fora da lógica anterior. 263

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dar existência, presença, a essa Escola, e para formar o grupo que garante que determinado fulano está dentro dessa Escola”264. O que se concretizou como modificação estatutária dizia respeito ao entendimento do que pudesse ser um Analista Membro do Colégio (AMC) e um Analista Autônomo (AA): o primeiro é autorizado por sua escola, ao passo que o segundo refunde ou rediz (está em condições de fazê-lo e mostrá-lo) uma escola. Assim, “qualquer Escola no primeiro sentido serve para Formação de um Analista se, e somente se, há no seu horizonte a Escola no segundo sentido. Ou seja, a Escola sabe que pode até se dizer ser a psicanálise aqui e agora, mas não sempre. Assim, aquele tal AA, que ela produzirá, é aquele que sonha saber e poder defender a tese de sua Escola publicamente”, a ser mostrada “pela via teórica, como paradigma bem-sucedido; e pela via prática, como cura eficaz”265. O segundo aspecto do que estava em jogo na concepção da formação do operador analítico, da função de uma escola de pensamento norteadora desse processo e em suas relações recíprocas, repousava numa tomada de decisão teórica e clínica sobre o que se poderia entender como hierarquia, a proposta de sua institucionalização rígida e o intento “absconso” de equivocar sua linearidade ascendente. Assim, de Analista Praticante a Analista Autônomo, passando pelo Analista Membro do Colégio, um percurso seria feito, a ponto de dissolver a hierarquia internamente pela mesma via, em reversão, que a erigira, forçando a emergência de entendimento e postura segundo os quais o nível superior só vale se se demonstra que se é capaz de assujeitamento ao nível inferior. Dito de outro modo e concretamente, a proposta consistia, passo a passo, em construir uma Analítica borromeanamente concebida, onde os AA que existissem (modificando-se, inclusive, o estatuto, com a inclusão de seus nomes) dariam supervisão aos AMC, que dariam supervisão aos AP, que dariam supervisão aos AA, nodulando a hierarquia em uma subtroca, ainda que “perigosa e assustadora para o ego das pessoinhas que ‘lidam’ com 264 265

Idem, p. 147. Idem, ibidem.

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a psicanálise”266. Em suma, nodulação borromeana de um processo infinito de análise, em vez de passe, com a chance de se construir e praticar efetivo controle, entendido como “lugar adequado onde um analista em prática, seja ele neo-praticante, AMC ou o que for, fala da sua análise”, pois é na medida em que “põe em prática sua escuta de outrem que ele exprime o que acontece ou aconteceu em sua análise”267; rígida e explícita hierarquia, em vez de gradus, insistindo na primeira, na aposta de que, funcionando com rigor, ela se dissolvesse por si mesma. Por fim, é importante lembrar de um terceiro argumento teórico e clínico que, aparentemente coadjuvante em meio à complexa e difícil situação pela qual passava o Colégio, se mostraria decisivo nos anos subsequentes: a ideia de Clínica Geral. Cada vez mais crítico da suposição de que clínica era o que se passava entre analista e analisando, no formato isolado e “bolorento” do consultório – em que pese sua função necessária como aparelho clínico de cura, incluindo a formação do operador –, Magno também deu a indicação, em seu Seminário de 1988, de que a presença do analista deveria se efetivar em diversas situações no campo da cultura, lembrando que era essa a perspectiva que presidia todas as suas articulações sobre clínica e formação do analista268. Nesse sentido, o momento de generalização que a clínica geral implicava correspondia à efetivação dos modelos estratégicos e práticos elaborados por uma escola de pensamento e o artifício de formação de seus operadores. Se a prática individual era posta à prova pelos dispositivos institucionais de formação, em conjunto, escola e analista/analisando não produziriam eficácia senão como intervenção no mundo, o que exasperava os procedimentos do que Lacan concebera como psicanálise intensiva. Pois não se tratava de disseminar teoricamente a psicanálise na cultura, mantendo a distinção entre isso e o que se fazia efetivamente como análise, e sim procurar os meios de acossar a generalidade do mundo segundo a posição do analista, e não segundo as teorias psicanalíticas, inventando, em 266

Idem, p. 148. Idem, ibidem. 268 Idem, p. 123. 267

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cada um dos discursos, a presença daquele que terá passado pela experiência analítica de indiferenciação269. No momento em que uma tentativa forte de inflexão institucional, como a que acabamos de acompanhar, era explicitada, colhia-se seu fracasso. A estrutura do Colégio foi dissolvida em dezembro de 1990, com a proposta de sua “restrução”270, orientada tanto pela indicação de “encolhimento e o fechamento” da Instituição, no intento de mais rigor e da seriedade ou “concentração da Clínica Geral”, quanto por sua “expansão e abertura”, visando maior possibilidade de intervenção no mundo ou “expansão da Clínica Geral”271. Essa guinada fora de certa forma anunciada nos “Comentários prévios à votação dos novos estatutos do CFRJ”, que Magno proferiu em janeiro de 1989, publicados no Boletim Maisum no ano seguinte. Neles diagnosticava o “fracasso da peste” como a situação de degradação em que a psicanálise se encontrava. O próprio Colégio era disso exemplar e seu presidente não se eximia de assumi-lo, ao lembrar da separação de alguns membros da instituição, não em razão de diferenças teóricas ou doutrinárias, e sim de interesses e jogos de poder, que não poderiam ser tolerados, o que o transformava em “co-autor” do acontecimento, na medida em que forçara a situação até se mostrar seus limites. Mas não temia o cerco ou sítio que se criara a seu redor, pois estava “situado”. E prosseguia: “quando digo que estou cercado, é no sentido de que, tendo farejado o encaminhamento dos acontecimentos na cultura com bastante antecedência, chego a concluir que é momento de inserir esses eventos que são pós-lacanianos, do campo da cultura, do saber, nos diversos movimentos de pensamento, na ciência, na filosofia, aqui e ali, em novas posturas, com retorno de certas categorias que estavam meio esquecidas. É preciso com certa urgência inserir tudo isso dentro do campo, mas de maneira a não prejudicar o que é específico da teoria psicanalítica e da prática 269

Cf. MAGNO, MD. Velut Luna: a clínica geral da Nova Psicanálise [Seminário 1994]. 2ª ed. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 270 MAGNO, MD. “Restrução: texto de abertura da 14ª Assembleia Geral do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, realizada em 18 de dezembro de 1990” em Boletim Dois, n. 1, 1991, p. 3-4. 271 Idem, ibidem.

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clínica” 272. Por isso, era necessário, nos anos vindouros, atravessar o marasmo que se avizinhava, com centramento, fechamento e concentração em termos de produção para tentar fazer a nova doutrina falar, pois a década seguinte seria uma “guerra”. E foi efetivamente. Dissolvido o Colégio, se iniciou um longo processo de implantação e realização de um novo modelo institucional, a UniverCidadeDeDeus (UD), para o que Rosane Araujo, empresária e arquiteta de sucesso, foi peça fundamental. Com sua visão de negócio e recursos que generosamente colocou à disposição, foi possível não apenas fazer face às exigências financeiras e materiais de organizar um novo espaço para a instituição, incluindo nova sede física, como também prover o suporte moral e pessoal inestimável a Magno e a seu projeto institucional em renovação. O casarão que passou a abrigar a UD na Cidade de Deus, em Jacarepaguá, foi cedido em regime de comodato: uma propriedade, que havia sido uma antiga sede de fazenda na zona oeste da cidade, com três pisos, amplos salões, diversas salas, contabilizando 2000 m2 só de área interna, em uma arquitetura sóbria e elegante, com amplos jardins e estacionamento, em um sítio geográfico onde se cruzava o sintoma carioca do convívio entre a favela e a média e alta burguesia da cidade, ali situadas nas adjacências das demais regiões de Jacarepaguá e na fronteira que se abria para a Barra da Tijuca, e de onde partiam vias de alta rotatividade para a zona sul e a zona norte. Foi uma presença que se mostrou decisiva nos rumos da nova instituição, à frente da qual Rosane Araujo, como presidente e co-fundadora, foi incansável em seu trabalho, que tem contado, entre várias iniciativas, na edição e/ou reedição da obra teórica de MD Magno, através da NovaMente Editora, obra que, até o final da década de 1990, permanecia parcialmente inédita e gravada no frágil suporte de fitas magnéticas, em risco iminente de perda definitiva. Magno retirou-se da presidência da instituição, declarando não desejar mais ser mestre de ninguém, por não querer esse tipo de relação. Restava seu lugar de Zelador, inserido estatutária e regimentalmente, de onde emanariam suas opiniões a respeito do que fosse psicanálise e instituição psicanalítica273. Esta última 272 273

Boletim Maisum, n. 81+1, 1990, p. 4733. MAGNO, MD. “Uma ferramenta...” (transcrição de trechos da fala proferida por ocasião

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era concebida como uma “univercidade paralela”, que não daria diplomas, sob o risco de ficar “desmoralizada como toda universidade contemporânea”. Seria um lugar de acolhimento das possibilidades científicas, artísticas, políticas, eróticas, do mundo, e se entrevê aí a clínica geral como princípio de sua criação, no sentido de infletir o discurso psicanalítico de maneira a fazê-lo avançar na cultura. Quanto à teoria, o autor lembrava que tratava-se apenas de uma ferramenta, e não preceito religioso, a ser considerada rigorosamente, como condição para se verificar, a cada vez e a cada caso, “se é ela que está errada ou se meu trato com ela é que está mal-feito”. Do mesmo modo, uma instituição, em sua regragem, também é uma ferramenta, dependendo de aposta em sua mera operatividade. Em suma, “um jogo experimental” que deveria ser “bem seguido de maneira a testá-lo” 274.

31. Freud sugeriu que a filosofia pudesse se estimular na psicanálise, tornando-se ela própria tema de pesquisa psicanalítica275. Isto, porque, além de sua tecnicalidade conceitual, teorias e sistemas filosóficos são elaborados contando com as relações da disposição constitucional de uma pessoa e dos acontecimentos de sua vida, que estão computados, de alguma maneira, nas realizações abertas a ela, em virtude de seus dons peculiares. O trabalho lógico, por abstrato que seja, está sobredeterminado pelo temperamento ou predisposição oriundos de gostos, escolhas estéticas, influências, vicissitudes familiares, culturais, históricas, que empurram a pessoa para um estilo e modo de pensar e raciocinar em detrimento de outros. As variações desse temperamento são praticamente infinitas, mas é possível discernir algumas escolhas que configuraram mais a sintomática de base de uma teoria ou sistema do que outras.

da apresentação da nova estrutura do CFRJ em 28 de fevereiro de 1991) em Boletim Dois, n. 3, fev. 1991, p. 91-97. 274 Idem, p. 92. 275 O interesse científico da psicanálise [1913] em Obras completas. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2012, v. 11.

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Ora, essas considerações não se aplicam apenas à filosofia, mas também à psicanálise em sua construção teórica276. Assim, por exemplo, a reformulação do campo freudiano proposta por Jacques Lacan carregou a marca de sua descendência francesa cartesiana, além da herança da filosofia continental, notadamente Hegel e Heidegger, encontrando no centramento do sujeito, na heterogeneidade do registro corpo-alma e na transcendência divina os pontos em relação aos quais era necessário marcar a operação do inconsciente, que deslocava, equivocando, as suposições de certeza embutidas nesses postulados. Donde o sujeito como intervalo significante, a nodulação borromeana entre real, simbólico e imaginário e o Outro barrado, propostas teóricas que Lacan pôde formular, ao fazer seu “retorno a Freud” por via de problemas pertinentes aos repertórios filosóficos a que teve acesso e que mais explorou. Sucessivamente compareceram e foram, aos poucos, dispensados, a divisão dialética da consciência para formular o desejo alienante e alienado (Hegel); o Dasein e seu papel crítico das visões naturalizantes do homem (Heidegger); a consciência e suas provas de certeza rachadas pela equivocidade estrutural decorrente do pensamento inconsciente (Descartes), para citar os mais conhecidos277. Ao fim e ao cabo, a obra lacaniana acolheu, desconfigurou e esgotou o mainstream do pensamento ocidental, despojando-o de suas remanescências psicológicas, graças ao escantilhão freudiano de que nunca abriu mão. Lacan, portanto, “é um pensador terminal” e encerra um ciclo278. A Nova Psicanálise foi edificada a partir desse legado e não seria possível sem ele, mas com a visão voltada para a frente. Algumas “antenas parabólicas” captaram os ventos da mudança, ainda na década de 1960, a exemplo de Marshall McLuhan, mudança cujo vetor tecnológico, desconfi276

MAGNO, MD. SóPapos. Sessões de 12 e 26 de maio de 2012. Inédito. BORCH-JACOBSEN, Mikkel. Lacan: le maître absolu. Paris: Flammarion, 1990; JURANVILLE, Alain. Lacan e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987. 278 Vimos essa afirmação de Magno ser proferida na conferência de abertura do IV Congresso d’A Causa Freudiana do Brasil, em 1987. Pouco depois, um alentado estudo de Jean-Claude Milner mostrou quase axiomaticamente que a “obra clara” de Lacan culmina em sua “desconstrução” a partir da década de 1970, em função de impasses teóricos tributários do próprio questionamento levantado por Lacan, mas que não puderam ser abordados a tempo. Cf. MILNER, Jean-Claude. L’oeuvre claire: Lacan, la science, la philosophie. Paris: Seuil, 1995. 277

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gurante, pulverizador, não-humano, não-linguístico, foi apontado por outras antenas parabólicas da geração seguinte, como foi o caso de Magno. Talvez sua educação monteirolobatiana tenha contribuído para a disponibilidade de sondar a realidade e enxergar o que não se via, sem deixar de dizer seriamente as “asneiras” que lhe ocorriam, à maneira da boneca Emília. Talvez a mistura tão característica da cultura brasileira tenha fornecido a essa antena parabólica competências de captura não-oficiais e não-oficializantes, deixando-a fora do sintoma perimetral da auctoritas dos saberes. Talvez sua formação científica, ao escapar do positivismo tecnocrata com o qual conviveu na escola militar, tenha contribuído para a curiosidade de acompanhar os avanços nas pesquisas nos diversos campos de saber, sempre supondo que a disjunção da realidade incita a mais e mais conhecimentos, ao invés de limitá-los. Talvez a atitude herética da criança que mastigava a hóstia para saber se sangrava a tenha livrado a tempo da neurose larvar de acreditar no transcendente além-mundo como verdade da disjunção, mas nem por isso deixando de refletir sobre o pathos religioso que acomete a espécie (humana), acossada por uma “hipótese Deus”279. Talvez a sorte de gozar da presença de excelentes brasileiros tenha se somado à intuição do estudante universitário que, empolgado pela existência de um Villa-Lobos no país, conjeturava se “talvez necessitemos ser mais nós mesmos” e “incentivar e conhecer nossas próprias realizações”, o que o levou a tentar entender, no Seminário dedicado a Anísio Teixeira, por que, afinal, “há de ser sempre a cultura brasileira sustentada pelo espólio dos linchados?”280 Quaisquer que sejam as respostas – pois especular sobre as confluências de uma obra é um exercício que se aplica a qualquer caso de criação, considerados os elementos estilísticos lá presentes –, o fato é que os problemas a serem 279

Dado o movimento imanente da pulsão, a cada vez reiterado pela impossibilidade de transcender Haver, a experiência de exasperação aí colocada torna inarredável uma “hipótese Deus”. É em razão dessa posição gnômica de extremação de um conhecimento absoluto de Haver dado para cada um que a Nova Psicanálise pode acolher as manifestações do psiquismo no campo das religiões, com a decadentização de um transcendente nomeado, que as tradições monoteístas, por exemplo, chamaram de “deus”. Cf. MAGNO, MD. “Psychopathia sexualis” [Seminário 1996]. Santa Maria, RS: Editora da UFSM, 2000, p. 181-203. 280 MAGNO, MD. Pedagogia Freudiana [Seminário 1992], op. cit., p. 123.

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formulados nas agendas dos conhecimentos saltaram de nível e isso ficou evidente a partir da década de 1980. A começar pelo paulatino entendimento sobre a “quebra de fundamentos” das certezas epistemológicas, políticas, artísticas, formulado via querela do pós-moderno nas duas décadas anteriores. A falência anunciada era consentânea com os questionamentos emergentes, que optavam pela navegação entre Cila e Caribdes, mas sem considerar as novas formas do estranho e do disruptivo como monstros a serem evitados, e sim como partes de uma “escuta poética da natureza”, que é simultaneamente o “processo natural nela, processo aberto de produção e invenção, num mundo aberto, produtivo e inventivo”281. A Nova Psicanálise, como vimos, buscou diálogos com searas gnoseológicas que, por obrigação de protocolo, já não podiam mais se sustentar nos escaninhos epistemológicos e disciplinares característicos do século XX. Programas de pesquisa como os das ciências cognitivas e seu pool “interdisciplinar” (inteligência artificial, linguística, neurociências, psicologia cognitiva e epistemologia), que tiveram alavancagem nas últimas décadas, não poderiam tê-lo feito sem uma atitude de mínima convergência de saberes, que, diga-se de passagem, ainda precisa avançar muito em termos de constituição de um novo paradigma do conhecimento282. No caso da psicanálise, a intuição freudiana quanto às bases simultaneamente somáticas e psíquicas do inconsciente sempre deixaram a porta aberta para a inclusão de pressões sintomáticas filogenéticas da espécie humana na constituição de uma sintomática individual, mesmo que não houvesse condições laboratoriais de acompanhamento disso. O mesmo vale para a proximidade, que Freud nunca abandonou, com os estudos do cérebro, concebendo, inclusive, a ideia de trilhamento (Bahnung) cerebral para acolher as informações que obtinha em seu laboratório psicanalítico sobre o fenômeno da repetição sintomática, provavelmente ligada a alguma facilitação que se inscrevera, primeiro, como caminho sináptico (modo de elaborar 281

PRIGOGINE, Ilya e STENGERS, Isabelle. A nova aliança: metamorfoses da ciência. Brasília: Editora da UnB, 1991, p. 226. 282 SANTOS, Boaventura de Souza. Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989.

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em conformidade com a neurologia de sua época). O cruzamento dessas intuições ganhou forma conceitual na pulsão de morte, carreador simultâneo das moções do vivo e do não-vivo. Quanto a Lacan, a atualização do pensamento freudiano (como quem diz atualização de um programa ou aplicativo) procurou distinguir sua especificidade diante de outros campos de saber, como a biologia ou mesmo a física, por via de apropriações feitas ao campo da linguística e da antropologia estruturais. Ao conceber o simbólico como único capaz de recortar o que havia de pertinente ao falante na ideia de pulsão, avançou a compreensão de que o sujeito do inconsciente era marcado por uma falta, razão pela qual o eu (moi) não poderia ser reduzido jamais às suas imagens biológicas de adaptação. Algo no homem não se enquadrava no cenário natural, pois estaria marcado por uma perturbação essencial, que era o desejo, de modo que o simbólico mostrava o fracasso do princípio do prazer em sua função eminente de ser princípio de constância, de alguma maneira ligado à homeostase do vivo. Como o sujeito do inconsciente não se confunde com o indivíduo, sendo algo diferente de um organismo que se adapta, tal como o behaviorismo, por exemplo, se encarregara de descrever, não havia uma marca que, de partida, situasse o ser humano no seio de suas relações, definindo-o como individualidade, unidade, coesão ou evocando-o como um espelho da natureza, em harmonia com ela. Ao contrário, pela tópica RSI, algo estruturalmente dado no homem – o Simbólico, a linguagem – o colocava em regime de diferença pura, ainda que inevitavelmente entrelaçada com a relação Imaginária que os falantes estabeleciam com outros sujeitos e objetos, reduzindo a diferença à semelhança, e onticamente ancorada no Real, motu insistente acéfalo a lembrar o horizonte do impossível. Um caminho para acompanhar a bifurcação a que a Nova Psicanálise foi levada é considerar o que está em jogo na paráfrase chistosa que Magno faz de um dos enunciados fundamentais do pensamento lacaniano: “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”. Afirma o brasileiro, brincando com a homofonia do original em francês (“l’inconscient est structuré comme un language”): “o inconsciente é estruturado como se o engaja” ou “L’incons141

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cient est structuré comme on l’engage”283. Como a hipótese do Revirão exigiu uma lógica catóptrica, de vocação plerômica, em lugar da lógica do significante, de vocação simbólica derivando para o sintoma corporal, as formações do inconsciente, doravante entendidas como formações do Haver, ganharam novo escopo, seja em seu desenho específico do vivo (Primário), seja em sua competência de transcrição de formação para formação (Secundário), o primeiro sendo subvertido pela função enantiomórfica da mente (Originário), cuja funcionalidade desfigura o entorno por acréscimo de informação igualmente bífida (advinda do Secundário). Essa reformatação foi argumentada, mostrada, didatizada, metaforizada, de diversas maneiras nos Seminários realizados nos anos 1980 e 1990, através de interfaces gnoseológicas estratégicas, como o foram o diálogo com a ideia de autopoiesis de Humberto Maturana e Francisco Varela, que questionavam a suposta autonomia do significante linguístico, pois concebiam conhecimento e linguagem como fenômenos complexos em relação direta com as determinações do vivo284. Ou a aproximação com a teoria das catástrofes, do matemático René Thom, que permitiu especular sobre as lesões e trilhamentos cerebrais como análogas à facilitação orográfica das formações285. Ou a atenção dada aos fenômenos de “flutuação e bifurcação” da física de Ilya Prigogine, que enriqueceu a concepção da Mente como sistema caótico passível de entrar em regime de flutuação, que, levado à “quase” morte térmica, se recompõe ao tomar uma bifurcação286. Ou a concepção de um inconsciente “fractal”, na esteira das pesquisas sobre caos e fractalidade, concebendo de maneira abrangente e abstrata as formações do Haver, como infinitamente grandes e pequenas para todos os lados, sem que saibamos quais são suas co-

283 É preciso lembrar que a teoria lacaniana do inconsciente não produziu claramente uma definição de linguagem, oscilando entre uma abordagem a partir da estrutura como ordem simbólica e sua dispensa em favor da apropriação da língua como sintoma, de que o conceito de alíngua é seu rastro. 284 MAGNO, MD. De Mysterio Magno [Seminário 1988]. Rio de Janeiro: aoutra editora, 1990, p. 108-114. 285 Idem, p. 30-43. 286 Idem, p. 103-107.

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nexões287. O autor teve oportunidade de apresentar parcialmente alguns desses resultados no evento Cenários Brasil 2020 – Workshop Cultural, promovido pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, realizado no Palácio do Planalto em Brasília, em 1997288. Esses são alguns exemplos que apontam para um inconsciente não linguístico, e sim plerômico, pois as formações engatam e são engatadas – “se engajam” – conforme a espontaneidade artificiosa do Haver, aí incluído o Primário do vivo, e o artificioso fabricado por competência de Revirão, ou seja, o Secundário, que tem na língua um de seus indícios, em meio a uma franja infinita de formações. A língua desliza e avessa não porque seja estruturalmente significante diferencial, e sim porque é utilizada por uma formação que porta o Revirão. Logo, a operação por excelência que caracteriza o humano não é a operação metafórica de substituição significante, e sim a terceira instância bífida, que torna possível avessar o binário da língua. Tarefa, aliás, do poeta. “Se o mundo fala carne, madeira, pedra, está falando a linguagem. E é ternário, também. Se o cachorro é binário, ele pertence ao mundo que é ternário, vai no empuxo disso. O Haver fala ternário e não podemos confundir sua fala com a fala binária de suas modalidades (...). é a isso que chamo de Significante. É a isso que chamo mesmo de: A linguagem. Para Lacan, não há linguagem, há línguas. Ele só trata dos fenômenos sintomáticos que encontra. Estou dizendo que A linguagem não diz nada, é apenas a estrutura que, mediante furo, me permite circular”289. 287

MAGNO, MD. Comunicação e cultura na era global, op. cit., p. 37. Também participaram do evento Ângela Maria Dias (ECO/UFRJ), Gilberto de Mello Kujawski (bacharel em direito e mestre em filosofia pela USP e colaborador do Jornal da Tarde e de O Estado de São Paulo), José Miguel Wisnik (professor de literatura brasileira da USP, musicólogo e músico); Luiz Sergio Coelho de Sampaio (lógico, membro da Academia Brasileira de Filosofia); Renato Janine Ribeiro (professor de filosofia da USP). Em Cenários Brasil 2020 – Workshop Cultural – Brasília, 08 de outubro de 1996. Palestras e debates transcritos a partir de gravação. Acervo do CFRJ. 289 MAGNO, MD. Arte & Fato, op. cit., p. 159. Como exercício heurístico, veja-se a diferença de entendimento entre essa perspectiva e a que orientou o Lacan estruturalista, para quem “pensar é substituir aos elefantes a palavra elefante, e ao sol um círculo. Vocês se dão bem conta de que entre essa coisa que é fenomenologicamente o sol – centro do que corre no mundo das aparências, unidade de luz – e um círculo, há um abismo. E mesmo se o franquearmos, que progresso há sobre a inteligência animal? Nenhum. Porque o sol não vale nada. Só vale na 288

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Em suma, não é mais possível abordar os fenômenos sintomáticos a partir da suposição de que o significante, como elemento constitutivo do inconsciente, age separadamente e à revelia do indivíduo, como se significante e significado fossem duas redes que não se recobrem. Ao contrário, não há diferença de natureza entre os registros operativos do inconsciente, como propôs Lacan com seu Real, Simbólico e Imaginário; é preciso ir além, depois de incluir o corpo como sintoma consubstanciado em alínguas e na linguisteria290, e propor outra razão de entrelaçamento entre o vivo e a emergência de competência simbólica, fora da suposta excepcionalidade humana do registro simbólico e da circunscrição exclusivamente mental ou psíquica – no sentido lacaniano dos registros RSI – do inconsciente. Daí, a proposição de uma nova tópica do recalque, que considera o Primário como autossoma e etossoma, junto com seu lastro mimético para a performance do Secundário, que, por sua vez, é já lesão cerebral e cultural indistintamente, restando prover as provas laboratoriais desse engatamento, incluindo a demonstração da inscrição cerebral Primária da enantiomorfia catóptrica da mente 291.

32. As questões fundamentais para o acerto da lente de conhecimento nas próximas décadas precisarão recompor as principais teses sobre a linguagem e abandonar a alternativa ou Freud ou Darwin, em troca de uma perspectiva de convergência. A tese da linguagem como estrutura simbólica entrou no campo freudiano pelas mãos de Lacan e contribuiu para discernir aspectos formais importantes da performance cultural e linguística da espécie (ainda que na medida em que esse círculo é colocado em relação com outras formalizações, que constituem, com ele, o todo simbólico no qual tem seu lugar, no centro do mundo, por exemplo, ou na periferia, pouco importa. O símbolo só vale se se organiza num mundo de símbolos”. Em LACAN, Jacques. O Seminário, Livro I: Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, p. 256-7. 290 LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 20: Mais, ainda, op. cit. 291 Uma via promissora desse caminho investigativo são as pesquisas em neurônios-espelho, como o demonstra, por exemplo, o trabalho do neurocientista indiano V. S. Ramachandran. Para um histórico dessas pesquisas e suas interfaces com a Nova Psicanálise, cf. ALONSO, Aristides. “Os neurônios-espelho e a mente-espelho da Nova Psicanálise” em TranZ: Revista de Estudos Transitivos do Contemporâneo, n. 2, 2007, disponível em www.tranz.org.br; para o trabalho de Ramachandran, cf. RAMACHANDRAN, V. S. O que o cérebro tem para contar: desvendando os mistérios da natureza humana. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

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contramão epistemológica da biologia). Mas é preciso também considerar o papel da morfogênese e da filogênese da espécie humana na emergência de linguagem, entendida como uma competência cerebral de base, como o fez a gramática gerativa de Chomsky, sem que seja preciso supor, junto com o linguista norte-americano, que, uma vez disponível, a linguagem torna-se um fato de cultura, já pouco ou quase nada sofrendo em termos de influência biológica. Para tanto, é fundamental aprofundar os estudos em neurociências, retrospectiva e prospectivamente, pois tanto é válida a hipótese de um cérebro evolutivamente apto à linguagem, demonstrável a partir de seus fundamentos neurais (cruzando funcionalidade cerebral sob a égide de uma sistema-espelho neuronal com som, gesto e mímica para explicar a emergência de linguagem)292, como é válida a perquirição da estrutura e funcionalidade cerebrais a partir do conjunto dos circuitos de neurônios-espelho e seus cruzamentos com outros circuitos para explicar a complexidade global de performance da espécie293. Por fim, a questão é decifrar a natureza dessas conexões – quase nada sabemos sobre elas –, de modo que se possa demonstrar a inscrição Primária de uma função catóptrica cerebral e, junto com ela, as lesões do Secundário como simultaneamente cerebrais e simbólicas/culturais, de modo a abandonar de vez o paradigma separatista nature x nurture e partir para a conexão entre este cérebro catóptrico global que habita o Planeta e a própria estrutura catóptrica do Haver, mediante a postulação do real neutro e indiferente. A convergência nas pesquisas sobre mente precisará produzir a convergência com as pesquisas em Cosmologia física294. 292

ARBIB, Michael. “From monkey-like action recognition to human language: an evolutionary framework for neurolinguistics”. Em Behavioural and Brain Sciences (2005) 28, 105-167. Agradeço a Patrícia Netto pelas conversas esclarecedoras que tivemos sobre essas questões. 293 Para Ramachandran, “o santo graal da neurociência, quer estejamos estudando memória, percepção, arte ou consciência” é entender “como neurônios codificam significado e evocam todas as associações semânticas de um objeto”. Cf. O que o cérebro tem para contar, op. cit., p. 89. 294 Esse argumento é extraído de um SóPapo recente de Magno, de 05 de julho de 2014 (ainda inédito) e procura, com risco próprio, dar exemplos da linha de raciocínio lá apresentada. Para o autor, depois da convergência de investigações de longa data sobre hipnose, transferência, sexualidade, patologias mentais psiquiátricas e psicológicas, etc., na obra freudiana, assistimos à difração do legado de Freud, no século XX, disperso em teorias psicanalíticas, psicológicas e psiquiátricas, lado a lado com as pesquisas sobre cérebro (em muitos momentos, em franca e tola rivalidade com a psicanálise e vice-versa). Nas próximas décadas, precisaremos aban-

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Enquanto isso, por via da Teoria das Formações, a Nova Psicanálise trabalha para conceber uma Gnômica ou Metapsicologia do Conhecimento que, partindo de uma postura “amazônica”295 – modo de metaforizar em brasileiro a atitude de convergência gnoseológica, da mesma maneira que as várzeas, regatos e braços de rios vão cumulativamente desaguando no rio Amazonas e, daí, para o mar –, acolhe como conhecimento o que quer que se diga ou se articule, pois as formações são conhecimento anotado. Parte-se do próprio conhecimento como resultado da transa de formações, com o que se dispensa os artefatos de exclusão produzidos pelas epistemologias, a começar pela pretensão filosófica de estabelecer a distinção entre o que é e o que não é conhecimento e de regrá-los pelas figuras epistemológicas do sujeito e do objeto296. Essa teoria do conhecimento é gnômica porque gnóstica, no sentido de prezar e sustentar uma atitude de abordagem das formações de maneira a insistir no acrescentamento do conhecimento como condição pessoal de possibilidade de se virar no mundo. É uma postura que se afasta das discussões históricas e filosóficas sobre a gnose, para postular tão somente que há conhecimento absoluto como apreensão imediata do real, experiência de presença ou Haver, que é imediatamente cada um saber sua solidão, sua condição de estranho radical ao mundo, dele separado e sem álibi. O conhecimento absoluto causa os movimentos de conhecer, isto é, o conhecimento modal, que é possibilidade tética, em qualquer nível de construção, apresentação, articulação ou proposição. Vê-se, por essa via, a colocação estratégica segundo a qual o que quer que se diga ou se articule é da ordem do conhecimento, pois “não há o que não seja formação e não há o que não seja conhecimento”297. Para refinar a distinção entre os dois níveis de conhecimento, absoluto e donar os raciocínios de exclusão que opuseram os campos e práticas de conhecimento para alcançar uma segunda convergência, que faça afluir os resultados das pesquisas sobre mente, incluindo prova laboratorial da funcionalidade catóptrica do cérebro, com as pesquisas em cosmologia, o que proveria um concerto entre vivo, mente, inteligência artificial, vida artificial, estrutura homogênea da “matéria”, quebra de simetria das partículas por decaimento quântico, os universos conhecidos e desconhecidos e o princípio antrópico. 295 MAGNO, MD. AmaZonas: a Psicanálise de A a Z, op. cit. 296 MAGNO, MD. Ad Rem: primeira introdução à gnômica ou metapsicologia do conhecimento [Falatório 2008], op. cit. 297 Idem, p. 29.

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modal, propõe-se a hierarquia entre Haver e Ser, com o que se quer indicar a dependência de todos os modos de conhecer (Ser) em relação ao Real, como respostas possíveis e provisórias à condenação de Haver. Ora, o interesse psicanalítico pelo conhecimento é em função de sua tarefa, que é a clínica, pois uma análise é um processo infinito de conhecimento, sem genitivo (de si, do outro, do mundo), sendo, por isso mesmo, análise das formações e suas metamorfoses. Nesse sentido, um longo trabalho de elaboração e reformulação do entendimento das afecções psíquicas ocupou a obra de Magno, em um percurso que buscou abstraí-las de sua história social-jurídico-médico-psiquiátrica e da perspectiva lacaniana de “estruturas clínicas”, em prol de raciocínios os mais abstratos possíveis voltados para a anotação e a compreensão das formações e seus vetores. Assim, se a tópica do recalque é Primário (1Ar) → Secundário (2Ar) → Originário (Or), cabe à psicanálise a análise das formações secundárias de uma Idioformação enquanto supostamente patológicas ou patéticas, articulando o Secundário a suas relações e bases necessárias no Primário e à sua geratriz Originária298. Coerente com a Teoria das Formações, por via da Gnômica, as afecções psíquicas são consideradas genericamente como morfoses, abordáveis através de uma Patemática, que considera as pressões vetoriais entre as formações. Etimologicamente morphosis é ação de dar uma forma, como vemos nos vocábulos anamorfose ou metamorfose, por exemplo, e advém de morphé, que significa forma. Trata-se, portanto, de descrever as formas de gozo, em vista de suas metamorfoses, em duplo sentido: entender as morfoses como uma espécie de metadiscurso e acompanhar como as formações são metamorfóticas, podendo transitar de uma para outra 299. A proposição de uma Patemática evoca a tradição lacaniana dos matemas para insistir em que não se trata de proposições discursivas transmissíveis integralmente por sua suposta matemização, e sim de anotações mínimas de acompanhamento vetorial dos avatares gozosos de uma Idioformação de carbono e água, que padece originariamente de desejar reverter o mundo em seu contrário enantiomórfico, até 298 299

MAGNO, MD. Ars Gaudendi: a arte do gozo [Falatório 2003], op. cit., p. 76. Idem, p. 168.

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o Impossível absoluto de não-Haver, no caminho exsudando próteses, que podem se hipostasiar ou não. Na Patemática, portanto, confluem os lastros semânticos do pathetikos, pathetiké, pathetikon: o patético, o emocionante, o impressionante, o sensível. Trata-se do pathos: os gostos, as emoções, os sofrimentos, o que se experimenta, a prova, a experiência, o acontecimento, o infortúnio, a paixão. É também o pathos lógikos, pois as afecções experimentam graus variáveis de enfermidade, relacionadas ao pathé, pathés, isto é, ao estado passivo, ao sofrimento, à aflição, inclusive por se carregar um corpo, sendo propriedade dele esses estados de pathé. Por isso, é pathema, pathematos, pois trata-se de enfermidade, aflição, desgraça e todo evento que afeta o corpo ou a alma, nos lançando em estado pathetos, pateta, patético, muito sofrido. Então, se há simplesmente pathesis – aflição física ou psíquica –, podemos dizer que o axioma Haver desejo de não-Haver denota uma Pathesis Universalis, pois Haver sofre de querer não-Haver e disso decorrem as aventuras do gozo300. A concepção de uma anotação mínima da morfologia do gozo obedece, como indicamos, a uma lógica vetorial, no sentido de acompanhar como as psicomorfoses – isto é, as formações (secundárias) supostamente patológicas de uma Idioformação – transitam e se metamorfoseiam ou tendem a se estiolar e hipostasiar. São propostas quatro modalidades: progressivas, estacionárias, regressivas e tanáticas. Cada uma delas guarda uma reversibilidade intrínseca a seu movimento vetorial, podendo ser uma afecção positiva, que parte do sim, ou negativa, que parte do não. Isso, para fazer a ressalva de que a inscrição afetiva inconsciente é bífida, neutra, indiferente, e é tratada, só depois, como partida em positiva e negativa. Do mesmo modo, para cada posição reversível positiva ou negativa, temos também uma alternância entre ativo e reativo. Outra ressalva: não se trata de atividade e passividade, e sim do entendimento de que ou a posição psíquica se caracteriza mais frequentemente pela moção de capturar, co-mover diretamente as formações, ou essa posição é re-ativa, no sentido de se caracterizar mais frequentemente pela moção de atrair para si 300

Idem, ibidem.

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as co-moções das formações. Assim descrito, parece que não há configuração concreta sintomática a ser analisada, mas é isso mesmo: a ideia é destacar formações genéricas que suportem a leitura a mais abrangente possível de formações de conteúdo. Outra referência importante para a clínica é a tese da sexualidade como gosto, em sua máxima abrangência fractal, o que resulta na compreensão das psicomorfoses como primeiramente inscritas de forma estética, antes ainda de se configurar como pathos logikós. As inscrições sexuais de gosto em sua base estética são chamadas de fundações mórficas301 e atestam as vicissitudes do gozo em relação com os gostos (positivos e negativos) advindos do Primário. Ora, a aplicação imediata dessa posição clínica é dispensar toda a história e a semântica social, jurídica, policial, psiquiátrica ou moral da ideia de perversão e abordar as moções psíquicas de gozo, procurando analisar, entender e acompanhar o entrelaçamento das fundações mórficas da Pessoa com as relações de força das formações secundárias. Assim, por exemplo, as morfoses progressivas (o que a tradição nosológica denominou de perversão) são formas de gozo que carreiam seus interesses gozosos para a frente, sem sofrer bloqueios recalcantes, seja pela face afirmativa da afecção, seja por sua face negativa. Trata-se de uma insistência de gozo, que apresenta vários graus de efetivação, indo do lúdico envolvido em todo projeto afirmativo – das brincanagens sexuais do repertório singular da Pessoa à concepção de uma cosmologia causa de si, como é o caso do pensamento de Espinosa – ao compulsório da legiferação do mundo a partir de uma fundação mórfica, também legiferante para a pessoa por ela afetada, à maneira de um imperativo categórico de cepa kantiana. Aliás, Lacan, ao refletir sobre o que poderia ser a “estrutura perversa”, compreendeu o imperativo categórico kantiano como sendo congruente com o imperativo sadiano do “tenho o direito de gozar do seu corpo e o exercerei, sem que nenhum limite me detenha no capricho das extorsões que me dê gosto de nele saciar”302. Acrescentemos ainda que Gilles Deleuze supôs que o par sadismo / maso301 302

MAGNO, MD. Pedagogia Freudiana [Seminário 1992], op. cit. LACAN, Jacques. Kant com Sade. Em Escritos, op. cit., p. 776-803.

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quismo se explicava por uma disjunção que lhe seria constitutiva, quando, na verdade, se expressam como “S/M: Revirão”, sendo necessário ter sutileza artística ou musical para “escutar” de que maneira a expressão do gosto e do gozo oscila entre uma morfose progressiva positiva no polo da atividade (sadismo) – posição de co-mover diretamente as formações – e uma morfose progressiva negativa no polo da reatividade (masoquismo) – posição de provocar a co-moção para si por via re-ativa303. Quando consideramos a reversão da morfose progressiva positiva, temos uma contribuição valiosa desta teoria para o entendimento do sintoma. Pois, diferentemente das tradições nosológicas que tratam a fobia como avesso da neurose, a Nova Psicanálise considera as moções fóbicas como morfoses progressivas em sua face negativa, ou seja, a fobia é insistência no gozo sem bloqueio de recalque, mostrando a face negativa da progressão. Quanto às morfoses estacionárias, já vimos um exemplo na hemiplegia aplicada à “neurobrás”. O movimento é estacionário, na medida em que o recalque funciona para impedir a movimentação psíquica, de maneira positiva ou negativa. No primeiro caso, trata-se de uma afecção que diz sim à disjunção, obliterando-a, para fantasiar obter tudo ao mesmo tempo – a “proverbial macaquice do brasileiro”, que quer sê-lo imitando o outro. No segundo caso, trata-se da afecção de dizer não à disjunção e sofrer de viver opositivamente, saltando entre o ‘agora isso’, ‘agora aquilo’, ‘mas nem isso’ e ‘nem aquilo’ – o lado mazombo que diz não às circunstâncias autóctones, mas também não às moções autóctones que dão prova de realidade de que é possível ser Brasil heterofagicamente. A distinção que acompanhamos entre “formações de base” e “formações nosológicas” para melhor entender heterofagia e mazombismo também se inscrevem na Patemática, embora tenham sido originalmente propostas em um momento do percurso conceitual em que o entendimento vetorial das formas de gozo ainda convivia com distinções de 303

O “S/M: Revirão”, junto com “A monstruosa progressão” e “A ciência de Sade” são sessões do Seminário “Psychopathia sexualis” em que Magno desenvolve uma série de considerações sobre a obra sadiana, passando ao largo da interpretação lacaniana e deleuziana. Para esta última, cf. DELEUZE, Gilles. Sacher-Masoch: o frio e o cruel. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

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nomenclatura entre “neurose”, “psicose” e “morfose”304. Mas o princípio se mantém: é preciso distinguir entre fundações mórficas e suas bases estéticas, de um lado, e o estiolamento das formas de gozo por processo de reificação compulsória, de outro. As morfoses regressivas são o terceiro caso da Patemática e inscrevem o que as nosologias antigas identificavam como “psicoses”. Como nas modalidades anteriores, parte-se da afirmatividade genérica das fundações mórficas para acompanhar as resultantes de seu entrelaçamento com o processo Secundário. Nesta terceira modalidade, sua característica vetorial é a expressão da forma de gozo sob efeito de um hiper-recalque, o que denota um processo de hipóstase da afecção psíquica, com a qual a pessoa lida como se fosse uma formação do Primário. A morfose é chamada de regressiva, pois o que há de regressivo é o fato de o Secundário ser tratado como Primário. Ora, temos aqui outra contribuição clínica advinda do laboratório de observação da Nova Psicanálise: diferentemente do que o protocolo estruturalista levou Lacan a supor em torno da psicose como foraclusão do nome do pai, a abordagem de Magno, por ser homogeneizante e vetorial, considera as forças recalcantes na morfose regressiva em um grau suficientemente elevado para que a afecção psíquica só encontre modo de expressão em um mimetismo hipostasiado do Primário. Tomemos como exemplo a oscilação hetero e homo nos discursos da sexualidade. Ela é, de saída, uma elaboração do Secundário, pois as sexualidades são performances, discursos, estilos, que transam, incluindo a anatomia como mais um elemento na composição das preferências de gosto. Assim, na morfose progressiva e estacionária, as sexualidades costumam encontrar embates e equacionamentos estéticos, artísticos, discursivos, afetivos, que também se expressam por vias secundárias, o sexo anatômico não sendo uma prova inarredável a favor ou contra o desejo em questão, pois as transas são articuladas no nível da disponibilidade secundária. Já na morfose regressiva, as moções de gozo contrárias ao discurso vigente ao redor são tratadas como se fossem impossíveis de comparecer. Continuando com o exemplo da oscilação 304 MAGNO, MD. O sexo dos anjos: a sexualidade humana em psicanálise [Seminários 19861987]. Rio de Janeiro: aoutra editora, 1988.

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hetero e homo, isso significa que a força recalcante é tão veemente que não há a opção de transar a sexualidade como escolha. Sua realização é formulada como se só fosse possível, virando em seu oposto no Primário. É o caso de Daniel Paul Schreber, cujas Memórias de um doente dos nervos serviram de base para o texto freudiano “O caso Schreber”305. O juiz-presidente da corte de apelação de Dresden lidou com sua homossexualidade desejada como se, para realizá-la, fosse irrevogável ser mulher no Primário e, com isso, transar com Deus, outra formação de vocação hiper-recalcante, consoante as hipóstases produzidas pelos discursos religiosos. A morfose regressiva se articula, portanto, em torno da retroação sintomática de uma formação secundária ao Primário, como se fosse mesmo, com possibilidades muito remotas de dialetização, donde a ideia vetorial, como direção, sentido e força aplicada, de hiper-recalque. Por fim, as morfoses tanáticas, que expressam de maneira mais eloquente o desejo de desaparecimento, sob as mais variadas formas de melancolia, exigindo, como nas outras modalidades de morfose, escuta abstrata para acompanhar as sutilezas de suas manifestações, muitas vezes mescladas com outros interesses de gozo. Quem já não experimentou e até proclamou alguma vontade de morrer? Resta saber como a economia dos investimentos libidinais se articula, a cada caso e a cada vez. Uma última dica para o leitor acompanhar com mais subsídios a leitura dessa série de conferências. A concepção de uma nova tópica do recalque implicou pensar que as formações sintomáticas obedecem a uma ordem implícita no percurso de suas resistências e relativizações. Se, por um lado, nossa especificidade é a competência de reviramento, singularidade de Haver em regime de indiferença e afastamento radicais em relação a qualquer formação comparecente, por outro, sua emergência no seio da construção biológica que conhecemos – esse Primário da ordem do vivo, com complexidade autossomática e etossomática – acaba por podar-lhe essa mesma função originária de pleno Revirão. A máquina indiferenciante convive e é recalcada por cons305

SCHREBER, Paul-Daniel. Memórias de um doente dos nervos [1903]. Rio de Janeiro: Graal, 1984; FREUD, Sigmund. “O caso Schreber” [1911] em Obras completas. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2010, v. 10.

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truções lateralizadas, demarcadas, parcializadas, sistemicamente organizadas no sentido de preservar sua existência. Assim, está dado um modelo espontâneo de funcionalidade, resistência e fechamento para as formações: o nível Primário de recalque. Quando nos apoiamos no funcionamento em Revirão, produzimos Secundário – formações artificiosas que não portam um lacre, um selo espontâneo – , mas que igualmente se decanta, seguindo imitativamente o modelo fechado do Primário. Se é assim, os acontecimentos que incidem sobre a espécie (humana) não estão nem completamente soltos nem colocados em qualquer ordem. Há uma hierarquia forçada pela própria disponibilidade das formações do Haver: Primário, Secundário e a disponibilidade do Originário. Donde a proposição de um creodo antrópico. A palavra creodo é um neologismo cunhado pelo embriologista e geneticista britânico Conrad Waddington em meados do século XX para configurar sua hipótese de que a plasticidade e a canalização são propriedades das redes genéticas. Vale dizer, a capacidade de ajuste em resposta a diferentes condições (plasticidade) e a estabilidade diante de perturbações genéticas e ambientais (canalização) são importantes quando se consideram as mudanças evolutivas não do ponto de vista de genes individuais, e sim de uma rede de interações, onde se entrecruzam dados relativos à maneira como essa rede é construída, aos limites impostos à sua estrutura, à sua robustez ou flexibilidade. Waddington retratou esses processos como uma paisagem complexa de colinas e vales com muitas ramificações, descendo de um platô muito alto, e a denominou “paisagem epigenética”: nela “o platô representa o estado inicial do óvulo fertilizado, e os vales são as vias de desenvolvimento que levam a estados finais específicos, como um olho funcional, um cérebro ou um coração” 306. O matemático René Thom se apropriou do neologismo do creodo para conceber uma “teoria das catástrofes” que, na verdade, é uma espécie 306 JABLONKA, Eva e LAMB, Marion. Evolução em quatro dimensões: DNA, comportamento e a história da vida. São Paulo: Cia das Letras, 2010, p. 84.

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de abordagem metodológica ou “um tipo de linguagem que permite organizar os dados da experiência nas condições as mais diversas”307, aplicável a raciocínios genéricos de descontinuidade que podem se apresentar na evolução global de um sistema qualquer. A ideia de catástrofe corresponderia, assim, aos pontos de clivagem ou de inflexão que desenham momentos de ruptura nos processos sociais, linguísticos, físicos, de engenharia, etc. A abrangência heurística dessa ferramenta conceitual se aplica ao problema de como determinado fenômeno atinge um vértice de funcionalidade e decai para outra função ou sofre um salto para outra variável. Ora, quando a Nova Psicanálise – tomando de René Thom a ideia de creodo como reflexão abstrata sobre os pontos de inflexão de um sistema, tendo por trás o vislumbre de Waddington sobre os processos de pressão ou canalização dos caminhos de desenvolvimento genético – propõe um creodo antrópico a partir da ordem implícita do recalque, isso significa que as Idioformações, em seu encaminhamento sintomático abstrativo, necessariamente passam do Primário ao Secundário para atingir o Originário, dada sua vocação para o excessivo. Percorrer o caminho não é obrigatório, mas se houver movimentação, o macrotrilhamento morfológico – no sentido da teoria das formações – é Primário (1Ar) → Secundário (2Ar) → Originário (Or). Trata-se, portanto, do entendimento do processo sintomático do deslocamento de qualquer Idioformação, que está necessariamente constituída de formações primárias e secundárias. É um esquema de inteligibilidade que leva em consideração que: 1) há formações; 2) o advento dessas formações (como simetrias quebradas) enrugam o tecido homogêneo do Haver em (aparentes) descontinuidades; 3) essas descontinuidades são atratoras de outras formações, em um sistema que está subdito, contudo, a pontos de colapso que “apagam” momentaneamente essas rasuras (real bífido do Revirão). Considere, leitor, que as referências de vínculo das Pessoas são primárias, secundárias e a originária. As Pessoas podem (costumam) transitar entre elas com maior ou menor facilidade, de maneira dinâmica, podendo se situar 307 THOM, René. Paraboles et catastrophes. Entretiens sur mathématiques, la science et la philosophie realisés par Giulio Giorello et Simona Morini. Paris: Flammarion, 1980, p. 59.

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hegemonicamente no mundo a partir de qualquer dessas referências, incluindo a bipolaridade de se situar a partir da oscilação entre uma e outra. Acrescente ludicamente a pregnância de esquemas narrativos religiosos em nosso percurso ocidental como metáfora para esse périplo cultural e você disporá de uma eficaz máquina de clínica geral: Os Cinco Impérios, que, no creodo, seguem a série de Amãe, Opai, Ofilho, Oespírito, Amém. Mas não vamos lhe tirar o prazer de acompanhar a explicação pelas mãos do autor. Assim como esperamos que, com as indicações que fornecemos, você possa tirar o melhor proveito dessas Conferências Simplórias sobre um pensamento nada simplório, e sim brasileiramente solerte. PLAUDITE

Sobre a Autora Nelma Medeiros é Professora adjunta do departamento de filosofia (UFRRJ). Mestre em história (UFF) e doutora em filosofia (UFRJ). Pesquisadora do “...etc.: Estudos Transitivos do Contemporâneo” (GP/CNPq). Membro da UniverCidadeDeDeus. Este texto é parte de pesquisa em andamento, com apresentações parciais de seus resultados sob forma de minicursos, palestras em reuniões acadêmicas, publicações online ou em cd-rom, desde 2010. 155

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ZIG / JAC : MAG Conferências simplórias 2013 para divulgação da Nova Psicanálise realizadas na Universidade Candido Mendes Edição Revista

1. A Psicanálise não é mais Aquela? 1. Primeiro, quero agradecer à Universidade Candido Mendes (Ipanema) por me receber, sobretudo nas figuras de Cecilia Mendes Almeida, diretora, Maria Amaral, Leila Kamel e Heloisa Marra, as amigas que nos trouxeram. O que vim fazer aqui? Vim conversar com vocês sobre meu percurso no mapa da psicanálise. Isto porque este percurso, que já dura décadas, acabou me levando a reconstruir do meu modo tudo que sabia e não sabia sobre psicanálise. Em primeiro lugar, foi naturalmente a figura de Freud que, ainda adolescente, por acidente de percurso, comecei a ler e não parei até hoje. Depois de Freud, veio muita gente. Como sabem, a história da psicanálise é recente, tem pouquinho mais de cem anos, mas muitos operaram sobre esse acontecimento. De tal maneira que há grande quantidade de autores, alguns destacáveis, outros não, ou menos, e até divergências radicais, rompimentos, posturas tão diferentes que já nem parecem ser da ordem da psicanálise. Tivemos que, de certo modo, fazer este percurso, pelo menos conhecer os autores que operaram longamente com isso. Só que, por último, no sentido de grande operação, apareceu no panorama o Doutor Jacques Lacan. Não vamos desenvolver sua história aqui, pois é conhecida e há muita publicação sobre ela. Então, depois de todas as peripécias dos psicanalistas em torno do pensamento de Freud, ninguém melhor do que Lacan para retomar as leituras e refazer completamente o entendimento da teoria psicanalítica. Ele fez isto em cima da leitura da obra de Freud e em contraste com muitos autores que pareciam ter se desviado de maneiras as mais diferentes, mesmo dentro da instituição que parecia ser a representante do pensamento de Freud, que era a chamada IPA (International Psychoanalytical Association). Lacan criou sua escola – a Escola Freudiana de Paris –, produziu uma obra gigantesca e genial, mediante a qual pôde trazer o pensamento de Freud para, verdadeiramente, o século XX. Fui, então, de Freud para Lacan. Lacan me aconteceu já no final da década de 1960, começo da de 1970. Depois de estudar um pouco sua obra, 159

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comecei a criar grupos de estudo sobre ela. Hoje, fala-se sobre sua obra, ele é famoso, mas naquele tempo quase ninguém no Brasil conhecia esse autor e muito menos o estudava ou promovia qualquer coisa sob seu nome. Como os grupos de estudo foram crescendo, estavam dentro de uma Universidade, acabei procurando contato com Lacan e, nesse contato, decidi que precisava ir lá conversar com ele, fazer análise com ele e também trabalhar na Universidade de Paris, no departamento dirigido por ele que, na época, era o único departamento de psicanálise no mundo inteiro. Foi uma experiência extremamente importante, me fez conhecer muita gente de alto nível que trabalhava com ele, me fez estudar bastante seu pensamento, acompanhar seus seminários (aqueles que pude acompanhar). A essa altura, já se aglomerava um grupo grande ao meu redor aqui no Rio de Janeiro. De tal maneira que, lá mesmo em Paris, resolvemos aproveitar esse grupo e fundar uma instituição lacaniana, que foi das primeiras do Brasil. Instituição que nomeamos Colégio Freudiano do Rio de Janeiro. Lacan tinha a Escola Freudiana de Paris, e não ousei chamar de Escola aquele aglomerado que estava se organizando aqui. Chamei-o de Colégio, um grupo de colegas estudando, pois a mestria estava lá fora. Quando comecei com Lacan no Brasil, a reação era grande. Era uma certa reação ao pensamento de Lacan... sem o conhecerem. O pensamento dele é simples, acho eu, mas bastante difícil. Como ele contestava radicalmente a psicanálise existente no planeta, tanto do ponto de vista europeu quanto do americano, havia forte reação. Reação, primeiro, a fazer o grande esforço que era entender o que ele estava dizendo. Segundo, como os analistas estavam bem instalados em suas posições, não estavam a fim de ter que fazer revisão e estudar tudo de novo. Entretanto, a coisa colou de tal maneira – primeiro, na Europa Continental, pois na Ilha é difícil, dado que é a pátria da IPA – que conseguimos instalar o pensamento de Lacan no Brasil. Aí começaram outros movimentos em outra cidades, São Paulo, Nordeste, e o lacanismo hoje é um sucesso – o que talvez seja o seu fracasso. Mas o que fazer?

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2. Acontece que, com o desenvolvimento de meu trabalho durante décadas de estudo, de análise, seminários, etc., acabei necessitando pensar a psicanálise do meu modo. Lacan morreu em 1981 e me dá a impressão de que o século foi junto com ele, antes da hora, e também de que sua obra estava acabada. É, como disse, efetivamente um pensamento de século XX – e a gente continua pensando. Fui, então, desenvolvendo um modo muito pessoal de ler a psicanálise em toda sua história. Naturalmente, que é impossível dizer qualquer coisa que não passe por esse histórico de Freud a Lacan. Acabei reformatando a psicanálise para mim, para meu uso, para meu gasto e transmitindo para quem quisesse ouvir, de modo que ela se transformou, na minha mão, em um projeto diferente. Essa coisa diferente, ajuntamos dentro de uma ideia que resolvi chamar de Nova Psicanálise ou NovaMente. NovaMente, porque é tudo de novo, e Mente Nova, porque estou pensando de outra maneira. Assim, atravessamos momentos de pensamento, de produção de conhecimento, que estão sempre indefectivelmente na dependência de sua época. Não há como fugir da época em que alguém pensa alguma coisa. Freud, na verdade, era um homem do século XIX, com toda aquela formação desse século. Ele teve bastante tempo de século XIX para se tornar um homem tipicamente da época. Entretanto, ele é uma pessoa de vanguarda no pensamento e, em seu trabalho de medicina, de psiquiatria e, depois, na tentativa de entender de outro modo o psiquismo humano, começa, como sabem, a construir uma ideia nova que apelidou de Psicanálise. Então, deu entrada no século XX, do qual é um dos fundadores junto com Einstein, com aquele entorno. Estava-se fundando o século XX enquanto pensamento diferente do século XIX, e foi aí que a psicanálise nasceu. Mas nasceu dentro das condições que ele tinha no momento, condições históricas, culturais, científicas, pessoais. E lidando com seu material de maneira tão nova que o desenvolvimento de sua teoria é entrecortado de idas e vindas, cheio do material que ele pôde conseguir em seu trabalho de escuta dentro do consultório e da leitura das obras que a cultura podia oferecer. O que ele descobriu genialmente, e que está valendo até hoje em sua essencialidade, está no entanto cheio de uma 161

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pletora de acomodações da cultura da época, do lugar que ele viveu. Isto não o impediu de raciocinar direito e de, por trás dessas acomodações, constituir um fio de extremo rigor que permite que a psicanálise continue nos tempos seguintes à sua produção. Freud, como sabem, morre em 1939 e deixa o legado de uma obra imensa. No entanto, já atropelada por alunos que não a entenderam bem, por alunos que começaram a discordar de alguns pontos, às vezes até com razão, ou por alguns que partiram diretamente para a deliração e escaparam do campo. É aí que aparece Lacan para tentar resolver isso. Vejam, por exemplo, os conceitos que Freud criou e que precisaram – e talvez ainda precisem – ser retomados, revistos em sua essencialidade, em sua ordem lógica de base. Por exemplo, sabemos que uma das pedras fundamentais da teoria freudiana é a ideia de complexo de Édipo: aquela historieta familiar, mamãe-papai-neném, que é o que ele escutou no consultório. Ia fazer o quê? As pessoas sofriam disso e apresentavam a questão no nível das transas amorosas e odientas do interior de suas famílias. Ele, então, desenhou desse modo. É claro que não ficou apenas contando uma anedota. Ele tomou uma anedota, remeteu-se até à mitologia grega, foi buscar o Édipo lá, mas no sentido de poder destacar, com esse exemplo mitológico e com as historinhas de caso que pôde escutar, uma articulação de certos elementos que parece que se repetem sempre nas histórias das pessoas. Aí isso virou o tal do Complexo de Édipo que tinha que ser superado dessa ou daquela maneira, que resultava nesta ou naquela patologia. Ele sacou outra coisa fundamental, que a sexualidade, do ponto de vista lógico e funcional, governa o psiquismo e governa desde a primeira infância. Isto assustou alguns, outros acharam muito interessante. Há aqueles que ficam até hoje assustados com isso, mas o que ele sacou é algo absolutamente compreensível e abstraível em sentido pleno quando se entende o que ele quer dizer com essa sexualidade básica da estrutura do psiquismo. Freud entendeu que há um movimento desejante, vigoroso, violento às vezes, que chamou de Pulsão (Trieb). No que começou a desenvolver o entendimento desse movimento pulsional, dessa força desejante, viu que está instalado no corpo e até em certos fragmentos, certas partes do corpo, cada um com sua  162

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configuração. Então, ele esbarra com uma ideia que parecia assustadora naquele momento e que foi até mostrada de outros modos por gente da área da literatura, etc. É a ideia de pulsão de morte, a ideia de que, entre outras forças de movimento desejante, pulsões de vários tipos de interesse, todas parecendo ser uma pulsão de vida, de desejo, de vitalidade, também existia uma pulsão destrutiva. Acho que ele ficou assustado com isso, tão assustado que não entendeu logo de saída a gravidade do que tinha encontrado e começou a fazer em sua obra uma ideia de oposição entre pulsões de vida e pulsão de morte. Mas outrora ele havia descoberto que, na relação entre prazer e realidade (que também parecia uma oposição), em última instância, é o princípio de realidade que está a serviço do princípio do prazer, ou seja, que a dominância é a vontade de prazer e a vontade de gozar. Portanto, que todos os movimentos de construção de realidade são no sentido de preservar para sustentar a ordem do prazer. Assim como descobriu isto, acabou encontrando que as pulsões, sejam quais forem, não desejam senão seu próprio desaparecimento, sua própria morte. Isto é bastante chocante para meados do século XX. Em ultima instância, todo movimento desejante de uma pessoa – diretamente na ordem sexual ou libidinal, ou em qualquer ordem que a humanidade conseguiu operar de maneira metafórica, substitutiva – é mortal. Todo movimento desejante não quer senão extinguir-se, desaparecer, ou seja, no fundo, queremos é Paz. E Paz derradeira, só morrendo mesmo. Mais tarde, Lacan vai deixar claro que toda pulsão é pulsão de morte, não existe outra. A impressão que temos de pulsões de vida são arrastões dessa pulsão em cima de determinados elementos, de determinadas configurações dadas às pessoas por via de sua corporeidade, de sua cultura, etc. As discussões corriam no século XX, e aceitar a pulsão de morte foi difícil. Os analistas não queriam aceitar e, fora da cultura psicanalítica, menos ainda. E mais, acho que Freud também não queria aceitar. Ele me dá a impressão de temer esse conceito – é a impressão que tenho da impressão que ele teve. Digo que ele ficou temeroso da pulsão de morte porque, uma vez que sacou que pulsão é no sentido de desaparecimento, da extinção, da morte, devia, penso eu, ter retornado sobre sua teoria desde o começo e a 163

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reconstruir em cima desse conceito. Ele não o fez e manteve pulsão de vida/ pulsão de morte. Ou seja, mesmo reconhecendo que as pulsões são mortais, que tendem ao desaparecimento, não teve tempo ou condição, penso eu, de, uma vez que achou esse horror dentro da teoria, voltar e refazer sua teoria a partir desse lugar.

3. De repente, aparece o doutor Jacques Lacan, muito jovem no começo do século XX. Um psiquiatra, trabalhando num hospital psiquiátrico, constituindo sua tese de doutorado sobre a psicose paranoica, mas não ainda ligado especificamente à teoria psicanalítica. Só que, logo em seguida, ele se dá conta de que o caminho de solução dos problemas que procurava pensar era a teoria psicanalítica. Então, adere à psicanálise e começa a pensar sozinho a psicanálise. Fez parte das associações psicanalíticas, foi até presidente de uma, mas ele pensava (tem gente que pensa, não só repete o que outros dizem). E no que começou a pensar, começou a verificar que havia muito mal-entendido dentro da teoria psicanalítica de Freud, muito mal-entendido em sua aplicação bem como em seu desenvolvimento teórico. E mais, ele é um homem de outra época. Digamos que Freud é um homem fundamentalmente do século XIX inventando o século XX. Já Lacan é tipicamente um homem do século XX. Isto quer dizer que as circunstâncias que encontrou para operar a psicanálise que ele assumiu eram radicalmente diversas: as teorias científicas haviam mudado muita coisa, a literatura, as artes, as filosofias, etc. Lacan foi uma pessoa que, desde jovem, frequentava grupos de artistas de vanguarda, como os surrealistas e gente do tipo. Então, estava no movimento do burburinho da construção da modernidade típica do século XX, e entrou nessa. E no que entrou, teve que se atualizar em termos de pensamento do século XX. Foi o que fez, assumiu as grandes formações científicas, intelectuais, culturais, artísticas, etc. do século XX já instalado e começou a repensar toda a psicanálise em cima desses conhecimentos novos. Isto causou uma perturbação enorme entre os psicanalistas europeus em geral. Entre os americanos nem se fala, pois lá tem aqueles refugiados que transformaram a Psicanálise em psicologia do sucesso. Na América, a psicanálise é uma  164

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lástima, pois virou psicologia de reforço de ego. Mas, na Europa, Lacan criou um tumulto grande a ponto de o pessoal da IPA vir a Paris para perseguir o rapaz. Fizeram o possível para calá-lo, mas não deu certo, ele continuou pensando, continuou falando e logo-logo já tinha bastante seguidores estudando aprofundadamente o modo teórico que ele apresentou. No que Lacan ia repensando a psicanálise com os instrumentos, o ferramental novo das teorias disponíveis, justo nesse período acontece um fenômeno que radicalizou o pensamento na Europa e até mesmo em muitos lugares no lado de cá, do Novo Mundo. Certo pensador da área da linguística, chamado Ferdinand de Saussure, repensou a teoria da língua e produziu um curso na universidade onde trabalhava na Suíça. Seus alunos publicaram suas aulas com o título de Curso de Linguística Geral. Ele fazia um tal rebuliço dentro das teorias linguísticas da época, uma tal transformação que acabou criando a ideia de estrutura na linguística. Então, ao invés de ficar estudando historicamente e foneticamente as línguas, começaram a estudar de maneira cortante a sua estruturação. Não importa tanto a fonética, mas talvez a questão das oposições sonoras. Criou um arcabouço, que muitos de vocês talvez devam conhecer, chamado linguística estrutural. Esse troço começou a colar na Europa e foi bater numa certa região de estudiosos que desenvolveram muito eficazmente essa ideia de estrutura na linguística: o famoso Roman Jakobson, que desenvolveu um estruturalismo radical em termos de análise de texto, de poemas e prosas; Troubetskoy, que desenvolveu uma teoria da fonologia em termos de oposição e estrutura e cortes verticais dentro da língua... Estou falando muito brevemente, mas esse movimento em torno da linguística colou no mundo porque o aparelho que apresentou para dar conta da linguística tornou-se algo que parecia eficaz no estudo de toda e qualquer construção linguageira, inclusive no campo das ciências, da filosofia, das artes, etc. E começou a ser fortemente aplicado. Havia também um rapaz, professor na França que veio dar aulas em São Paulo e que, como não tinha muito que fazer, começou a frequentar tribos de índios. Ele nem era antropólogo ainda, mas fez levantamentos e estudos de várias tribos no Brasil. E, no interesse de entender os fundamentos de uma 165

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antropologia que pudesse dar conta do material imenso que coletou, ficou procurando uma saída. No que procura a saída, vai para os Estados Unidos e encontra Jakobson, que era o grande estruturalista do momento. Jakobson fez sua cabeça e lhe mostrou que podia pegar todo aquele material antropológico, de pesquisa de campo, e submetê-lo ao pensamento estruturalista da linguística. Ele fez isto e se deu bem, ficou famoso, com uma obra imensa, belíssima. Em 1949, aproveitando essa dica de Jakobson e construindo o estruturalismo antropológico, publicou um livro que fez um rebuliço no planeta, intitulado As Estruturas Elementares do Parentesco. Os estudantes até hoje usam este texto. Freud havia descoberto, junto com seus analisandos e remetido à mitologia, o que chamou de complexo de Édipo. O que estava em jogo nesse complexo, que comparece com frequência grande nas tribos primitivas e mesmo nas sociedades desenvolvidas, é a famosa interdição do incesto, que as pessoas pensam que é proibição de fazer sexo. Na verdade, é não poder ter filho com a mamãe. Não pode porque bagunça o coreto da organização tribal. Lévi-Strauss foi estudar isto, estudou sistemas patrilineares, matrilineares e resolveu que podia dar conta do que era a interdição do incesto na aplicação do pensamento estrutural tratando o material cultural dessas tribos da maneira como é tratado na linguística. Com isto, construiu uma imensa obra chamada estruturalismo – quem sabe?, propriamente dito –, que é a antropologia geral do ponto de vista estrutural. Lacan, como eu disse, era um jovem bem formado com disponibilidade para estudar e estava sabendo de tudo isso que estava acontecendo nessa cultura. Imediatamente, comprou a ideia de Lévi-Strauss, a de Jakobson, comprou essas ideias todas que eram o movimento de peso naquele momento. Era a criação do pensamento estruturalista que dominou grande parte do século XX. Ele, então, aplicou o saber adquirido nesse percurso à psicanálise. Tanto é que, nos primórdios de sua produção, Lacan ficou conhecido como alguém que tratou a psicanálise de maneira linguística. Não é bem assim, pois estava procurando uma construção, que achou dentro do estruturalismo, que pudesse dar rigor ao pensamento psicanalítico. Lacan começou a tratar as manifestações disso que é o essencial no pensamento de Freud, a ideia de Inconsciente, as manifestações do Inconsciente,  166

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de maneira linguística. Fez mesmo a suposição de base de que o Inconsciente era estruturado como uma linguagem e que, portanto, devia ser tratado como tal, como uma linguagem. O que havia de tratamento de linguagem, tirando os lógicos da Inglaterra, Wittgenstein, Russell, era esse pensamento estruturalista em cima da linguística de Saussure. Então, o que foi aproveitado para tratar o inconsciente semelhante a uma linguagem foi o material estruturalista da linguística. Só que ele não ficou aí. Se ficasse, talvez virasse algo banal, sobretudo em cima de três livros fundamentais de Freud: A Interpretação dos Sonhos, O Chiste e sua relação com o inconsciente, e Psicopatologia da vida cotidiana, que trabalham em sua maior frequência com materiais linguageiros oferecidos pelos analisandos. Não que Freud já estivesse operando linguisticamente, e sim que estava mostrando que o processo inconsciente opera com a linguagem e através do entendimento desses movimentos da linguagem podemos chegar melhor à estrutura do Inconsciente. Então, foi sopa no mel. Lacan deitou e rolou. Apareceu, então, a psicanálise estruturalista, que teve um enorme desenvolvimento em sua mão. Mas ele não era bobo, não ficou só nisso, pois, paulatinamente, o movimento de estudo da linguística no planeta foi crescendo e o momento estruturalista parecia que ia dar conta de tudo, abrangeu o pensamento do mundo praticamente todo. E como se podia esperar, ou como se verificou, chega um momento em que isso entra em crise e essa linguística toda não consegue dar conta nem da estrutura das línguas – e muito menos da estrutura do Inconsciente. Lacan, sem abandonar a ideia de que o Inconsciente se estrutura como linguagem, começou a pensar para a frente, com outros teoremas, outras formações de conhecimento e produziu uma obra poderosa, precisa, difícil, sobretudo porque seu estilo é anti-acadêmico, de propósito. A psicanálise foi se desenvolvendo e foi bater, em última instância – estou dando saltos gigantescos, é apenas uma introdução –, na ideia de matema, de formulação, de produzir fórmulas, semelhantes a certa matemática. Isto, para, talvez, quem sabe, fazer uma transmissão direta e completa do pensamento através dessas fórmulas. Na verdade, é emulação das ciências duras. Como o e = mc2 de Einstein é imbatível, quem não quer ter uma fórmula destas? O desenvolvimento foi por aí e, no último momento, acabou adotando a topo167

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logia da matemática para pensar o Inconsciente. Vejam que é uma trabalheira imensa. Eu falando assim em poucas frases, dá a impressão de que é simples, mas é extremamente complexo, é enorme o trabalho que ele fez. Entretanto, tudo isso é criticável, tudo isso algum dia entra em crise. Tanto é que logo depois veio o chamado pós-estruturalismo com pessoas brilhantes como Michel Foucault, por exemplo, que já é uma espécie de aceitação de certas premissas do estruturalismo, mas com um pensamento crítico do funcionamento dessas estruturas. E isso foi indo, foi indo... Com as condições de Lacan, com os conceitos que pôde articular, que pôde tomar do mundo. Então vamos encontrar em Freud alguns conceitos fundamentais. Lacan reestrutura outra vez quatro conceitos fundamentais, todos explicitados, mas, como o próprio pensamento de Lacan sempre mostrou, a pulsão é de morte: a vaca sempre vai para o brejo. Não tem saída, não adianta pensar que pode segurar a vaca, porque ela vai para o brejo, é o destino da vaca. Ou seja, o último Lacan já é um Lacan que está nos estertores finais daquele pensamento. Chega mesmo um momento em que ele até para de falar. Não sabemos se era porque estava gagá, ou porque já não tinha mais o que dizer, ou porque queria dizer o silêncio. Esta ambiguidade paira no ar.

4. Tive a sorte de manter contato com Lacan, com sua presença pensante e seu trabalho de análise nesse seu último momento. Isto é uma sorte grande, pois não fiquei com os cacoetes dos outros alunos que restaram linguisticistas ou operando sobre matemas desgastados. Era um momento de expansão, ao mesmo tempo de seu pensamento e de derrocada do século, derrocada do movimento pensante anterior. Estávamos no fim. Achei muito bom passar por esta experiência porque aprendi, estudei, operei, pratiquei aquilo tudo e tudo aquilo bateu num impasse: chegou a um impasse da teoria, a um impasse da clínica. O que fazemos? Abandonamos, vamos embora, ou entramos de cabeça? Há duas maneiras de ir embora: largar a psicanálise ou ficar repetindo a velha até o século que vem. São duas maneiras de abandonar. Alguns abandonam de vez e outros ficam até hoje repetindo a baboseira. A outra  168

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maneira é: cheguei neste lugar, agora terei que pensar tudo sozinho e de outro modo. De preferência, em coincidência com meu tempo, com minha época, com meu mundo, com o que está acontecendo agora. E tem que ser assim. Freud era da idade de meu avô, Lacan era da idade de meu pai, eu sou a terceira geração, devo ir para trás ou para a frente? Esta é uma questão difícil porque temos que assumir alguma coisa, assumir um dos três riscos: largar tudo, ficar repetindo como um papagaio ou pensar sozinho com o risco de só falar besteira. Eu resolvi falar besteira. É como dizia aquela menininha do conto de Guimarães Rosa: “Antes falar bobagens, que calar besteiras”. Tive que entender a situação em que estava, tentar entender o mundo complicado e desfigurado em que vivemos desde o fim do século passado – que não durou até o final, morreu em 1980 –, e tentar, para meu gasto, inventar uma psicanálise atual. Como enfrentar este século XXI tentando pensar um pouco depois de todos esses acontecimentos dramáticos de falência dos fundamentos em todas as áreas, científicas, filosóficas, religiosas, políticas? De repente, a humanidade começou a se dar conta de que os fundamentos que a fundamentavam não fundamentavam nem a si mesmos. Esta foi a crise. A situação da psicanálise de hoje é esquisita na face do planeta, pois a proliferação de estudos sobre a obra de Lacan, a proliferação de textos de trabalhos, alguns até muito bons, bem feitos, é enorme. No entanto, ficam rodando como peru em círculo de giz. Está-se rodando ali e não se acha nada, apenas se tenta explicar o que Lacan estava dizendo, recompor um teorema que ficou mal entendido, organizar determinada formação teórica para que fique mais explicitável. Desenvolvimento não se tem, e dá a impressão de que aquilo quase que se esgotou. Então, o jeito é ficar fazendo bolo com o material que está disponível. Isto faz com que, no presente, nas condições atuais da psicanálise, tenhamos vários tipos de coisa. Por exemplo, a psicanálise parece que se banalizou, todos falam misturando alhos com bugalhos, Édipo com matemática, etc., pois as pessoas não têm obrigação de estar sabendo aquilo direito. Outra perspectiva que ofereceram foi a de que a psicanálise está em decadência, que ninguém vai mais ao psicanalista, que esse negócio acabou. Não é verdade, e não porque seja bom não ser verdade. 169

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Pode ser até ruim, pois a proliferação é bastante grande em uma repetição terrível. Além disso, acontece – e é arriscado afirmar o que vou dizer, mas afirmo – no mundo contemporâneo um fenômeno incrível, que tem tudo a ver com a psicanálise. Não apenas porque ela foi disseminada e começou a funcionar no seio das famílias, das escolas, etc., como um pequeno aparelho crítico das formações culturais impositivas, um aparelho de recusa de certas repressões, como também aconteceu uma disseminação em quase todas as partes do planeta de comportamentos humanos que não são efeitos de uma análise, e sim de alguns acontecimentos que conseguiram produzir efeitos parecidos com os da análise. Isto é espantoso, pois as pessoas que têm esses comportamentos não são analisadas, continuam a operar dentro de sua ordem sintomática sem se dar conta, mas o conjunto planetário e seus grupos sociais estão sendo invadidos por um tipo de operação que está funcionando como a psicanálise funciona, só que no regime social e não no regime individual. O que é isto? Chama-se: tecnologia, informação generalizada contemporânea, tipo internet. Essa informação varreu o planeta, deslocou certezas e comportamentos sintomáticos, e como as pessoas começam a saber que aquilo que dizem para elas não é bem assim em outros lugares – aliás, não é bem assim em lugar algum –, então começa a haver um grande tumulto comportamental. E está acontecendo isso que vocês sabem que está acontecendo, é só ligar a televisão, ler o jornal, entrar na internet para ver. Esse efeito é parecido com o efeito de uma análise para uma pessoa.

5. O que uma análise pretende? Pretende apontar e dissolver sintomas, colocar a pessoa em maior disponibilidade possível para o que der e vier, ou seja, abandonar as prisões e pesos sintomáticos e, em última instância, chegar a um limite último – que chamamos de pulsão de morte – em que se começa a olhar o mundo, indiferenciar tudo e, ao mesmo tempo, poder lidar com tudo com o mínimo de, ou mesmo sem, prisões sintomáticas. Faço uma metáfora horrorosa, mas que serve. Como há esse bichinho que produz a Aids, esse vírus que prejudica os sistemas imunológicos, as garantias de permanência das formações biológicas estão completamente desvirtuadas pela presença  170

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dele que acaba trazendo a Aids para uma pessoa, a psicanálise pretende fazer o mesmo que o bichinho faz e não consegue muito. A psicanálise prejudica os sistemas ideológicos e, ao mesmo tempo que ela fascina, ela horroriza. A comparação com a Aids foi esta: os sistemas imunológicos são destruídos pelo bichinho e os sistemas ideológicos são o que a psicanálise quer dissolver. Como podemos pensar para além dos sistemas ideológicos que ocupam o mundo há milênios (filosofia, religião, e mesmo certos aspectos da ciência, que, em última instância, são ideologicamente constituídos)? A diferença da psicanálise para com os outros pensamentos é que ela construiu um modo de operar que destrói por dentro qualquer formação que se pretenda ideológica. Tanto é que Lacan deu a melhor definição do que seja a psicanálise. Quando lhe perguntavam o que ela era, dizia: “A psicanálise é a pergunta o que é a psicanálise?” Operamos com o pensamento, com processos de articulação que estão em crise permanente diante do reconhecimento de que o funcionamento do Inconsciente desliza e desconstrói – desculpe o termo, pois não gosto do autor que o utiliza – toda e qualquer formação que se queira metalinguística, que é o termo que Lacan usa. Isto é, que seja uma linguagem que pretenda dar conta da linguagem dos outros. Isto não existe para a psicanálise, pois o processo é furado. Temos que conviver com o século XX e com o que se tem construído como século XXI, no movimento de que o conhecimento é outra coisa que não o que se ofereceu para nós até hoje. Muito menos com o que as epistemologias tentaram nos convencer do que esses conhecimentos fossem. As epistemologias também são ideológicas. Está acontecendo no planeta, por via tecnológica, a disseminação de um processo analítico. Ana-lysis, em grego, quer dizer: pegar uma coisa, dissolvê-la em seus componentes para entender como aquilo é construído. Aquele rapaz colou o apelido de desconstrução – Derrida é o Lacan dos pobres –, mas está é falando do que chamamos de Análise (nem por isso seu trabalho é de se jogar fora, é interessante). A tecnologia informacional, os novos gadgets, as redes de comunicação, sobretudo a chamada internet, estão como que ana-lisando, dissolvendo as construções culturais, sociais, de conhecimento, etc. Isto, mesmo sem saber colocar nada no lugar: estão ana-lisando essas construções de maneira selvagem, abrupta, sem que haja, junto com essa disso171

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lução, uma reflexão sobre o processo, de maneira que possamos continuar. Então, o que acontece, dada – vou usar uma expressão ótima em brasileiro – a Zorra Total? Uma grande parte foge para trás e aí temos a recrudescência de aparelhos ideológicos tipicamente fascistas e de aparelhos religiosos e outros mais ou menos violentos. Há o pessoal que fica de bobo alegre, estagnado, achando que está tudo bem, sem saber que a bomba vai cair em sua cabeça; e há aqueles, poucos, que tentam fugir para a frente, buscando ver o que é possível construir para o entendimento do que está acontecendo e do que virá. Faço a suposição de que não há instrumento, ferramenta melhor do que a psicanálise para pensar essa coisa que está no mundo e que se parece com ela sem ter o estofo que ela consegue ter para lidar com a problemática que se instalou. Há décadas, venho fazendo um esforço, para meu uso – faço questão de sempre dizer isto, pois não gosto que se faça a suposição de que estou pensando para a cabeça dos outros, estou pensando no meu interesse (no entanto, está à disposição: quem quiser, pode levar) –, de reformatar a psicanálise, lembrando que temos um século de Freud e Lacan, pelo menos, com aparelhos fundamentais para serem repensados. Penso que esta reformatação possa ser duas ou três coisas. Há possibilidade de simplificação da Zorra? Qualquer pensador que lide com um campo tão evanescente como este, vai produzindo e geralmente morre sem ter tido tempo de montar um escopo geral do seu pensamento. Em nosso momento, temos que fazer este trabalho. Dá para passar a limpo a psicanálise e procurar denominadores comuns para torná-la mais simples? Assim, evita-se a pletora de conceitos, de falações e ela fica mais compacta, como se faz, por exemplo, com o pensamento geométrico. Dá para torná-la mais manejável e compatível com os movimentos deste século? Isso tudo para tentar entender o movimento da psicanálise no sentido de levá-la para a frente e para que ela possa ter serventia mais eficaz no futuro, ao invés de ficar repetindo a velha baboseira. • P – Você fala da psicanálise segundo três eixos: simplificação, compactação e denominadores comuns. Fala também em colocá-la dentro da época atual usando de outros recursos de pensamento. Além disso, diz que está uma zorra total, com as coisas se dissolvendo com a pulverização  172

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da tecnologia, etc., sem nada a ser colocado no lugar dessa zorra. É o que também me pergunto: o que colocar nesse lugar? Como sou muito pretensioso, o que pretendo – e não sei se conseguirei – é fazer esse trabalho que você descreveu, no sentido de procurar se o pensamento chamado psicanalítico pode me dar uma chave para este momento. O pior é que acho que pode (por isso, disse que sou muito pretensioso). Digo isto com apoio nos acontecimentos de pensamento e de ciência que estão brotando neste momento. Vemos, por exemplo, artigos e textos excelentes de pessoas conhecedoras do assunto em que, no final, após todo o histórico feito, quando chegam ao momento presente, a solução que apresentam é nenhuma. Eles querem dizer alguma coisa, mas não sabem o que fazer. É normal, é o que acontece a nós todos. Mas há uma possibilidade de pensamento para a frente que, talvez, seja chave suficiente para resolver o problema. Surgem problemas sociais, econômicos, políticos, etc., e o que vemos são pessoas tentando resolvê-los com as velhas ferramentas. Não vai dar, pois, quando se utilizava a ferramenta velha, o mundo era compatível com ela – já não é mais! Darei uma pequena impressão no campo da política e consequentemente da economia: só há partidos, inteiros não existem. Uma pessoa que toma partido, é uma pessoa partida e seu momento, seu século, é partido. O que o século atual não consegue mais é alguém ter que ser liberal ou socialista. Por que não ser um pouco mais técnico e, não se aprisionando a partido algum, pensar que há hora para liberar e hora para socializar? É o que chamo de política ad hoc. Agora, se sou uma múmia que tem tal partido, de esquerda, por exemplo, não posso liberalizar nem um pouco. E se sou de direita, pior ainda, não posso socializar. Isso acabou junto com o século XX. Se não mudarmos de perspectiva, não vai dar. É o que quero dizer quando falo em disponibilização da pessoa para seus instrumentos de modo a poder lidar com o mundo que explodiu. Se tomarmos isto em outras áreas, poderemos pensar que essa disponibilidade deve ser impossível. Não é. É apenas dificílimo. Os cientistas, técnicos e outros já estão se esforçando para produzir isto em nível materialmente operacional. Estou ansioso à espera do computador quântico, que pensa como eu. Maneira de dizer, pois pensa como gente 173

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que pensa assim. Ao que quer que se diga para ele, ele dirá o contrário junto. É o “vamos ver como é que se joga”. É um computador que maneja as informações para qualquer lado. Espero também avanços das teorias de estudo da constituição do cérebro: certos psicanalistas dizem que nada tem a ver; tem sim, é muito importante o que está sendo feito nessa área, quero ver o cérebro todo mapeado – porque se provará o que estou dizendo, que o cérebro funciona como Freud ensinou. O que nos permitirá parar de pensar de maneira tão regional as elucubrações que um cérebro humano possa fazer. E vamos notar como somos caretas, como isto aqui é o Planeta dos Macacos – e que podemos ter possibilidades muito maiores de operacionalidade mental. • P – Fico pensando se essa zorra não é a pura condição humana. John Ruskin, no livro Sesame and Lilies, de 1865, diz que a delícia está em passearmos pelos textos, ideias e conhecimentos dos outros, e não entender, ter um tempo de assimilação. Ou seja, sair com as coisas mais abertas do que fechadas... É a condição humana, mas acontece que existe um negócio terrível, que a psicanálise descobriu bastante cedo, que é o chamado Recalque, que amputa e que amputa que... 16/ABR

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2. Conceituação 6. Continuando o papo. A gente pensa, com hábito já bem antigo, que o que não é da ordem da ficção não seja ficção. Não é verdade. Hoje, cada vez mais sabemos que toda construção mental, em última instância, é ficção. Se acompanharmos a linhagem de Jeremy Bentham – que, em termos gerais a respeito mesmo de ciência e filosofia, vai dar em Hans Vaihinger –, veremos, no caso específico da ideia de ficção na literatura, o atual interesse pela obra de Wolfgang Iser e, no Brasil, a obra de um excelente especialista na área que é Luiz Costa Lima. Precisamos nos convencer de uma vez por todas de que, em última instância, toda produção mental é ficção. Variam os motivos, os materiais e as referências, que podem ser desde a mais delirante mitologia até a mais delirante matemática. Por isso, costumo dizer que o que tenho conseguido produzir com o nome costumeiro de teoria psicanalítica é ficção, que prefiro escrever com x: Fixão. Não só é ficcional como é fixante: é a fixação de uma ideia capaz de se desenvolver teórica e abrangentemente. E esta é a minha fixão, como a de qualquer outro, aliás. Há uma pergunta que os filósofos repetem angustiadamente há tempo: por que há o Ser, e não antes o não-Ser? Ou melhor, por que há, e não antes não há? Para dizer do meu modo: por que há o Haver e não o não-Haver? Considero, por um lado, esta uma pergunta cretina à medida que o inquiridor não reconhece que o não-Haver efetivamente – isto é, concretamente – não há, como o nome está dizendo. O nome é não-Haver, logo não há. O nome, este, há. Por outro lado, é uma pergunta fundamental, justamente porque não é uma pergunta, e sim uma denegação, como se diz em psicanálise. Se ele está angustiado se perguntando é porque já viu que não há. Se não tivesse visto, não ficaria tão angustiado com esse não-Haver que não se apresenta porque não há. É uma denegação por parte do inquiridor denegando o conhecimento do desejo que ele tem de não-Haver. Isto é que é angustiante, pois quando alguém pergunta “por que há o Haver e não antes o não-Haver?” parece que está numa nostalgia de não-Haver: “Se houvesse o não-Haver, eu iria para lá, seria mais sossegado”. E há aquele ditame grego Me Funai: antes não tivesse 175

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nascido, antes eu não houvesse – e a Paz seria eterna. É bobagem, pois, se não há, não tem nem paz, quanto mais o resto. Aproveito-me desta situação nossa de não haver o não-Haver e haver desejo de não-Haver como A Lei do que há e, portanto, não não-há. Considerando essas questões – que até vigoram em certas filosofias sem acharem alguma significação definitiva para elas –, e considerando também, como apontei da vez anterior, que a pulsão que há sempre é de morte – toda pulsão é mortal e a pulsão de morte é a que há, as outras são caronas desta pulsão de morte fundamental –, então digo que A Lei do Haver é: Haver desejo de não-Haver. Vejam que estou falando de Lei num sentido que está colado na própria physis, e não de lei apenas no sentido jurídico. É a Lei – Alei, como chamo – que há e que rege o Haver. Que desejo que há?: O desejo de não-Haver – mas é um desejo que será frustrado para sempre porque o não-Haver não há. Desejo de Impossível, portanto, como já enunciara Nietzsche. Segundo esta perspectiva, todo desejo é desejo de Impossível, pois, mesmo que alguma formação, alguma coisa, tome carona no movimento pulsional, em última instância, é o fracasso. Dá para gozar bastante no ínterim, mas é vocação de entropia, de morte, de final. Aproveite quem quiser no meio de campo...

7. Quando uso o verbo Haver com o sentido e a conotação que uso é principalmente para fazer a diferença radical entre Haver e Ser. Quando traduzem os antigos gregos da filosofia primordial, falam em Ser e não-Ser. Não falam em Haver como estou falando. Falo em Haver porque Haver não tem rosto, é um choque que temos diante do estar aqui. Quando Haver começa a ter rosto, começamos a falar deste rosto – e aí chamamos de Ser. Aproveito-me de uma obra do sempre genial Marcel Duchamp para didatizar a diferença entre Ser e Haver. Trata-se de Bruit Secret (Ruído Secreto), de 1916, que ele subtitulou readymade assisté. Subtitulou assim porque pediu a intervenção de outra pessoa. Trata-se de um novelo de barbante, desses comprados em loja, que ele fechou com quatro parafusos entre duas placas de  176

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latão preto, uma em cima, outra embaixo, tapando as duas, digamos, bocas do novelo: o novelo está, então, emparedado entre duas placas de metal e fechado por parafusos. Antes de fechar, Duchamp pediu a seu amigo, Walter Arensberg, para colocar dentro do buraco uma coisa. E mais, que nunca dissesse a ninguém, inclusive a ele, Duchamp, o que lá colocara. Por isso, chamou de ruído secreto – e é ilustrativo da diferença entre Ser e Haver: quando se balança a peça, percebe-se que há algo, mas não se sabe o que é. Lá dentro, há algo. O que é? Quando vamos para o verbo Ser, nada temos a dizer sobre o impacto com esse barulhinho. Temos nós também lá dentro um trocinho que balança, faz barulho e dói – mas não sabemos o que é. Como não sabemos o que é, fazemos desse Haver a causa de um delírio infinito, que é a história de toda a produção da humanidade, de toda a nossa fixão, desde a mitologia mais grosseira de uma tribo primitiva à mais refinada teoria da física quântica. Começamos, então, de modo delirante – sempre é delirante –, a inventar maneiras de Ser para o que Há. O lucro é grande nesta deliração, pois às vezes é com extremo rigor – como Lacan diz que é a vocação da psicose paranoica (para ele, todo conhecimento é paranoico) – que estamos delirando para dar conta do impossível de dizer, que é fazer o Haver Ser alguma coisa. A produção é infinita, não tem fim – por não conseguir, de fato, dizer o que é Haver. O Haver é muito maior do que o Universo, do que os possíveis universos, os universos paralelos, etc. O Haver é o que há. É não apenas isso que há aqui dentro me futucando e me fazendo fazer a besteira que estou fazendo agoraqui, como é a Causa de toda a movimentação desta espécie. Repetindo, então, digo que Alei do Haver, segundo a psicanálise – com apoio até em delírios específicos como a física dos séculos XIX e XX ao criarem a ideia de entropia como a segunda lei da termodinâmica –, é: Haver desejo de não-Haver. Freud se enganou um pouco, pois, como antes percebera as coisas no nível da carona que o corpo e outras coisas pegam no trem do não-Haver, pensou que havia uma pulsão de vida. Isto, até descobrir a tal Pulsão de Morte – e quanto mais andava para a frente via que não há outra, só há esta pulsão. Aquelas que chamou “de vida” não eram senão caronas da Pulsão de Morte. 177

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Ou seja, descobriu que toda Pulsão é mortal. Insista demais em suas pulsões que você morrerá mais depressa. Fiz, então, como disse, a seguinte fixão. Alei é: Haver desejo de não-Haver. Ora, como o não-Haver não há, o movimento do Haver, mesmo do ponto de vista cosmológico – e posso delirar assim, pois existem teorias cosmológicas atuais que me servem de apoio –, é no sentido de não-Haver. Então, como o não-Haver não há, não tem jeito, o Haver quebra a cara e volta para o mesmo lugar onde estava. Volta, continuando a desejar o não-Haver, que não há, onde ele quebra a cara, volta e continua tentando esse Impossível que não há, e assim por diante. Repetindo, Alei do Haver é: Haver desejo de não-Haver. Pegamos este movimento e nele tomamos carona para todos os desejozinhos que temos pela vida.

8. Quando produzimos alguma fixão, no sentido teórico a que estou me referindo, não escapamos das condições, possibilidades e disponibilidades, teóricas ou outras, que temos em nossa vida, inclusive em nosso momento histórico. A psicanálise não é diferente do resto. Ela nasceu num certo momento em que o Doutor Freud arrumou um protocolo de trabalho para, em sua angústia pessoal com o não-Haver, tentar dar conta de uma questão que lhe era sintomática. É a questão de como funciona o psiquismo. Por exemplo, a questão do porquê de ele, Zig, ser tão neurótico. Cada época tem que arranjar um protocolo de acordo com suas circunstâncias. Daí que, na história da psicanálise, temos momentos fecundos em que alguém arruma um protocolo com a visão teórica do que possa ser nossa organização psíquica. Há momentos menos fecundos, em que se repete infinitamente o que um momento fecundo colocara, faz isto proliferar, etc. Há, pois, uma série de epígonos produzindo e acrescentando a fixão. Momentos fecundos na psicanálise, parece que só tivemos dois até hoje. O próprio momento de Freud, com muita gente depois. Aconteceu também de gente muito delirante fazer coisas tais que escaparam completamente das possibilidades de fazer psicanálise. Mas, menos de meio século depois de Freud, houve outro momento: a fixão do Doutor Lacan. Como disse,  178

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cada um deles fez funcionar sintomaticamente sua fixão em função de seu acervo e de seu momento. Veio, por exemplo, a questão dos conceitos fundamentais. Quais são os conceitos fundamentais para o pensamento psicanalítico, que, afinal de contas, tenta dar conta de tudo (se tenta dar conta do funcionamento da mente, então abrange tudo)? Na própria obra de Freud, não se encontram conceitos fundamentais. Encontram-se conceitos fortes, mas não por ele designados como fundamentais. Lacan, que resolveu fazer a leitura – que é a leitura dele, Lacan – da obra de Freud, lá encontra quatro conceitos fundamentais para organizar a psicanálise: o inconsciente, a repetição, a transferência, e a pulsão. Ele supõe poder organizar a teoria da psicanálise em cima desses quatro conceitos. Destes, na verdade, só um foi inventado pela psicanálise. O Inconsciente está falado muito antes dela, basta ver a abordagem de Nietzsche, por exemplo. A repetição não é uma invenção reconhecida da psicanálise, é a tendência de as coisas se repetirem, que estava até na mitologia grega, com o movimento dos astros, etc. A transferência, mesmo sem ter este nome, Lacan vai buscar num diálogo de Platão, o Banquete, hoje muito conhecido: Sócrates e aquelas relações transferenciais em torno dele. Transferencial quer dizer o quê? Designa-se uma pessoa como se fosse o rei da cocada preta, ou seja, esta pessoa é que sabe das coisas e preciso que ela me diga quem eu sou. Alguém está perdido – como todos nós, aliás –, com essa dorzinha de Haver sem saber o que é, aí acha uma pessoa que ele supõe que sabe e vai perguntar para ela. O cara não sabe, mas segura a barra. Não diz que não sabe e fica segurando a possibilidade daquele pobre diabo chegar à mesma conclusão que ele chegou, de que não vai saber nunca. Como dizia, o único conceito produzido pela psicanalise foi produzido por Freud com o nome de Trieb, drive em inglês. Em português, como ninguém sabe traduzir, chamaram de Pulsão. Em minha tradução, o nome da coisa é: Tesão. Você tem tesão no quê? Diz Chico Buarque: “Eu tenho tesão é no mar” – não é proibido. A Pulsão é o movimento do desejo de Haver para não-Haver. Movimento este que dá carona para todos os movimentos desejantes nossos. Se fizermos análise suficiente, ou se vivermos o bastante para organizar todas 179

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as decepções, chegaremos à conclusão de que era só desejo de não desejar. Em última instância, sem falar em pulsão, é o que Sidarta Gautama já tinha dito: “É melhor não desejar” – só que isto não acontece a ninguém. Costumo, então, dizer que não preciso de vários conceitos fundamentais para a psicanálise e nem mesmo preciso dos quatro de Lacan. Se reduzo todo o pensamento a respeito da pulsão a um único conceito, ao conceito de Pulsão de Morte – tiremos a palavra “morte”, já que posso dizer que a morte não há, não há como atingi-la –, isto é, à pura Pulsão entendida como Haver desejo de não-Haver, este movimento é capaz de dar conta dos outros conceitos, que, segundo Lacan, seriam fundamentais. Por quê? Porque Haver deseja não-Haver, não-Haver não há, retorna; Haver deseja não-Haver, não-Haver não há, retorna... Isto se chama repetição (Wiederholung, na língua do Zig). O Inconsciente, este, na definição de Freud, não na de Lacan, é resultado de haver o que, para ele, era a “pedra angular da psicanálise”, isto é, o recalque. Há recalques, embargos, proibições, interdições e Freud ficava procurando saber de onde vinham. Ele queria pensar que, se existe recalque, se o recalque é o que fundamenta o Inconsciente, há Inconsciente porque há recalque, então, algo cai numa zona de inconsciente. Mas por que isto acontece? Ele tinha a ideia de um recalque em algum lugar que pudesse ser o recalque originário, o primeiro, do qual todos os outros decorreriam. A meu ver, não conseguiu explicá-lo, mas ficou a ideia de que, em algum lugar, há um recalque originário que é responsável em sua influência pelos outros recalques nossos de cada dia. Em meu teorema, em minha fixão, o Recalque Originário é óbvio. Se há desejo de não-Haver, e não há desejo de Haver, e se o não-Haver não há, desejaremos o Impossível. E quando desejo esse impossível absoluto, que jamais será conseguido, quebro a cara e retorno. O que aconteceu? O recalque originário, que é o fato de que o não-Haver não há. Então, se o não-Haver não há, o Haver – ou, portanto, o Inconsciente – é o resultado de um movimento de decepção diante de algo que nunca houve nem nunca haverá. Como Freud ficou muito invocado com isto, inventou as ideias de perda original, de objeto fundamentalmente perdido, etc., mas aqui entre nós não é  180

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nada disso. O não-Haver não havendo já fundou o recalque originário, e isto repercute, ressoa, no seio do Haver como o primeiro recalque. Prefiro, então, mais ou menos consentâneo com a física posterior a Freud, chamar de Quebra de Simetria a isto que aí ocorre. O que havia era uma simetria – Haver quer não-Haver, ou seja, quer seu simétrico absoluto –, só que, em não havendo este simétrico, quebrou-se a simetria e a coisa ficou hemiplégica. Esta hemiplegia vai se repercutir em todos os outros lugares: há sempre um recalque. Não é às vezes, não é só neurótico que tem recalque. Isto porque estamos sempre com a metade, inteiro não temos. E estar sempre com a metade é o que chamo de Lei da Catoptria. Katoptron, em grego, é ‘espelho’, mas estou falando de espelho enquanto estrutura, e não de nossa relação com as imagens, que, estas, são extremamente simétricas, participam de uma simetria que se chama de enantiomorfismo: sua figura do lado de lá do espelho é exatamente o avesso da figura que está cá. Basta colocarem uma luva na mão e, ao tirá-la pelo avesso, ver que ela tem a figura da outra imagem que está do lado de lá no espelho. À nossa espécie, diferentemente das outras conhecidas (deste planeta, pelo menos), aconteceu de ter uma estrutura cerebral complexa que, além disso – coisa que esperamos que as ciências do cérebro venham comprovar, já que têm comprovado muita coisa a nosso favor –, é construída como espelho. Nossa mente é estruturada como um espelho. Não é como as imagens no espelho, que chamamos de imaginário ou de especular, e sim como aquilo que o espelho faz: o que quer que se coloque diante dele, ele põe pelo avesso. E se imaginarmos um espelho muito mais radical do que esse a que estamos acostumados, teremos, por exemplo, que uma luz aqui acesa, lá estará apagada. Nossa mente é, pois, um espelho radical que vira tudo pelo avesso.

9. A humanidade chegou à loucura que é nossa vida, à construção e à produção que vemos e acompanhamos ao nosso redor, porque, ao que quer que se lhe apresente, ela pode pensar o contrário. Para um animal, dia é dia, noite é noite. Já para nós, noite pode ser dia, basta acender a luz. Então, se nossa mente avessa o que-quer-que, o nome disto é: loucura. Nossa mente é inteiramente louca. Vem, então, o aproveitamento do recalque originário 181

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para fundar os outros recalques, pois, se vivermos na loucura que a mente propicia, não daremos conta deste nosso boneco que não é revirante, como chamo. Ele, boneco, não revira, não faz o avesso, é careta, localizado. É no nível da mente, e não disso que chamo de Primário – a construção dada do boneco –, que podemos avessar o que-quer-que. E cada um avessa o que pode, o que consegue. Há uma enorme quantidade de coisas que é preciso fazer um esforço gigantesco para conseguir virar. Estamos, pois, na condição esquisita de termos uma construção, digamos, “física” – entre aspas, todas as construções o são –, chamada de corporal, biológica, que é a construção do boneco, que nos é dada quando nascemos. Ela é inteiramente recalcada, pois os elementos do corpo, os elementos biológicos, não podem ficar revirando. Se o fizerem, podem matar o boneco. Temos, portanto, certa constância. Podemos ter o tesão de tomar um drink de ácido nítrico, tomar uma bebida excepcional, mas só é possível sonhar com isto, e não beber. A não ser que, através de outra instância, seja inventado algo que nos permita isso. Afirmo, então, que a estrutura revirante, a estrutura em espelho, causou no seio das estruturas do boneco o que chamo de Secundário. Afirmação esta que nenhuma outra teoria psicanalítica, filosófica ou científica fez. Posso, dentro desta fixão que apresento, afirmar isto porque digo que Alei é: Haver desejo de não-Haver. Consentâneo com isto, quero dizer que a estrutura catóptrica que chamo de Revirão – que revira o tempo todo, que tem a possibilidade de se avessar – causou, no seio da estrutura do boneco, o que chamo de Secundário. Ou seja, temos a possibilidade postiça de, por cima da construção do boneco, produzir linguagens que não estavam dantes produzidas. No Haver, já havia linguagem – isso tudo que há aqui é linguagem, tem uma estrutura de articulação e significação, etc. –, mas começamos a inventar modos de articulação que são da ordem do soft, e não do hard. São as línguas, etc. A loucura fundamental de poder revirar resultou, então, na grande loucura de se constituir um Secundário gigantesco mediante o qual temos a ousadia de até tentar reverter o Primário. Tentamos isto o tempo todo. Por exemplo, não conhecemos animal que use roupa por conta própria, que, se ficar doente e não tiver uma cura marcada em seu repertório, saiba procurar remédio, providenciar alguma cirurgia – e é justo o que fazemos.  182

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Toda nossa vida parece um grande artifício, parece tudo artificioso, e pensamos que há uma radical diferença entre a artificialidade do Secundário e a naturalidade do Primário. Não há. O século XXI vem borrando as fronteiras que sustentávamos até o século XX. O Haver, isso que chamam de Natureza, é tão artificioso quanto nossos artifícios. Para resumir, o que posso fazer aqui em minha fala é dizer que o que chamavam de natureza é um artifício espontâneo e o nosso um artifício industrial, o qual praticamos na imitação do espontâneo. Não vamos ficar tão bestas de pensar que fizemos algo diferente, apenas repetimos de outra maneira a artificialidade do Haver. Digo artificialidade por causa do radical ART. Tudo é Arte, é artifício, articulação de coisa com coisa dentro do Haver, o qual tanto está aqui como está na funcionalidade secundária, que é nossa inventividade. Isto porque a maquininha revirante funciona e nos permite virar ao contrário o que quer que se ofereça. Começamos, então, a inventar construções secundárias, soft, capazes de limitar nossos movimentos. São ideologias, religiões, isso e aquilo, para limitar a loucura da espécie, para reprimir, recalcar, dizer o que pode e o que não pode. Dependendo do poder que temos, exercemos um recalque violento... sobre os outros, é claro. Aquele que recalca é esperto quanto a ele mesmo, é sempre para os outros... Basta estudar a história para ver como os poderes funcionam, são para os outros. Mesmo assim se conseguem grandes construções, bem feitas, bem boladas, no nível do Secundário, para dizer o que somos. Ou seja, dizem para esquecermos o Haver que criou angústia e nos dão uma resposta: “É isto assim, assim, podem crer”. Se crermos, ferrou, teremos que ir para o analista. Se não, como suspender essa crença toda?

10. A coisa é tão violenta que autores de livros de epistemologia chegam a dizer que o conhecimento é uma crença. É verdade, mas o cara que escreveu a epistemologia desde a Grécia antiga estabeleceu que a verdade coincide com o Haver, e que se deve acreditar nela porque ele disse, trouxe uma construção bonita, coerente. Ou, se não, ele tem poderes para impor que a religião do Estado seja tal e quem não acreditar nela será colocado na fogueira, por exemplo. São procedimentos de repressão para fundar um recalque que dê 183

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respaldo a uma construção tão delirante quanto outra qualquer, mas que parece segurar a moçada. São as ideologias de qualquer ordem, religiosas e mesmo científicas. É o sofrimento das epistemologias, isto é, das teorias do conhecimento. Lacan, por exemplo, começou trabalhando com uma sintomática mais ou menos herdada de Freud, o qual acreditava estar fazendo ciência, segundo as ideias de ciência do século XIX. Lacan pensava que iria fazer uma ciência rigorosa, pois o estruturalismo tinha se apoderado de certas organizações lógicas como as linguísticas de Saussure, de Jakobson, a antropologia de Lévi-Strauss, etc. Mas Lacan, em certo momento, começa a ficar um pouco envergonhado e para de chamar de ciência, pois um rapaz chamado Karl Popper publicara um livro dessa grossura dizendo que sabia muito bem o que era e o que não era ciência. O que não fosse falsificável dentro de certo modo de apreensão não seria ciência. Portanto, psicanálise e outras coisas não eram ciência. Interessante é que, passam-se muitos anos e, em seus últimos textos, Popper diz “acreditem no que eu disse se quiserem, pois, em última instância, isto depende de uma crença”. Então, acabou o medo. Quem vai censurar eu dizer que a psicanálise é uma ciência? Baseado em quê? Tratarei disto em outro momento. Falo tudo isso para justificar a audácia de fazer a minha fixão. Freud começou a ser desvirtuado mesmo durante sua vida. Não é proibido delirar sobre o que ele trouxe, mas aí passa a ser outra coisa, saímos do escopo do protocolo e do assentamento que ele fez. Foi uma bagunça que resultou em que a psicanálise quase desaparecesse, mesmo mantendo este nome em várias regiões. Neste ponto é que Lacan se rebela e diz que vai ler Freud de novo. Não vai começar a psicanálise de novo, e sim retornar ao texto e à letra de Freud para ver “exatamente” o que era a psicanálise. Mas quando leio um texto, o que está valendo é a minha leitura. Então, Lacan chamou isso de “retorno a Freud” – ou seja, retorno à mensagem de Lacan. Esta é, portanto, a fixão do doutor Lacan tentando ler aprofundadamente a obra de Freud – mas a lente era dele. Nesse momento, muda-se de enfoque. O paradigma pode continuar o mesmo. O paradigma da psicanálise é sexual. Sexual quer dizer  184

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que a ideia de Sexo é que gere todos os processos. Se há “Haver desejo de não-Haver” e não-Haver não há, acontece que o tesão não atinge seu registro, seu desejado. Então, há quebra de simetria, que Freud chamava de castração. Não se consegue chegar porque é impossível, e não porque não tem jeitinho. Histérica é aquela que pensa que, tentando, a gente chega... Mas não chega e, no que é impossível, houve uma secção radical entre o desejo e o desejado. Isto, esta secção, é que é Sexo. “Não há relação”, como Lacan demonstrou. Sexo é isto (se é que só é isto), em qualquer circunstância em que apareça, seja no corpo do macaco que somos nós com aquele fuc-fuc que pensamos ser o sexo, seja na tentativa de chegar e esbarrar no Impossível. Sexão, sexualidade, paradigma da psicanálise, ou seja, o que Freud chamava de castração. Não é preciso cortar nada de ninguém, é que Freud fazia a metáfora com outras ideias. Simplesmente, seja aonde formos, esbarraremos no impossível. Se conseguirmos assimilar isto, ficaremos bem melhor. Se não conseguirmos, teremos várias saídas. Pode ser aquilo que chamavam de neurótico, psicótico, perverso. A psicanálise vive de tentar levar a pessoa a essa decepção. E isto é curativo, pois paramos de espernear, sabemos que não dá – então, vamos no que dá. Lacan faz esse retorno a Freud constituindo, com excelência, a ideia de Simbólico e pensando em registros de nossa mente como: Real, Simbólico e Imaginário. Esta é a sua tríade, e o trabalho de sua vida foi, sobretudo, entender a ordem simbólica, mesmo tendo, no final, quebrado a cara diante do Real. Estruturou, portanto, tudo na via do entendimento do simbólico, ou seja, no que fazemos ao falar, ao constituir discursos, constituir secundariedades, constituir, em última instância, o artifício industrial, que é o nosso trabalho cotidiano.

11. Ao invés, então, de manter o retorno a Freud, de Lacan, preferi fazer o retorno de Freud. As pessoas ficam me gozando como se eu estivesse vendo fantasma. O retorno de Freud é: pegar o sintoma de Freud de volta. Isto porque seu sintoma era instalar no Primário, e não no Secundário, nessa coisa simbólica. Freud achava que as coisas estavam instaladas no Primário. Interessava-lhe saber que o Primário funciona de certo jeito, que vem um Secundário, e que, 185

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este, ainda por cima tem uma pega com o Primário. Por isso, diz que a pulsão fica entre o biológico e o psíquico. O modelo de Freud quer uma inserção no biológico; o de Lacan é, sobretudo – em seu começo, pelo menos –, simbólico: linguístico, lógico, topológico, etc. Eu peço a reinserção dizendo que é tudo uma coisa só. Não há oposição entre mente e corpo, entre psíquico e somático, é tudo constituído da mesma maneira que o Haver se constitui. Há diferenças regionais, mas o modo de articular é sempre o mesmo. Acabou a fronteira. Como sabem, o extermínio das fronteiras é, digamos, quase um truísmo hoje: as fronteiras de saber, de distância entre o físico e o espiritual, estão todas sendo exterminadas no pensamento do século XXI. Retirei-me, portanto, da inserção direta do biológico, em Freud; da tríade Real, Simbólico e Imaginário, em Lacan; e resolvi pensar que temos, sim, três registros que são: Primário, Secundário e Originário. Primário é o nosso artifício espontâneo: isso nasceu assim. Secundário é aquilo que o Originário, que é a estrutura em espelho, fundou como estrutura que chamam de simbólico, de linguagem, que é a nossa artificialidade no mundo. O Primário não é o que muitos pensadores achavam ser, uma tábula rasa, neutro e que, depois, lá inscreveríamos as coisas. Quando nasce uma criança, já está cheia de inscrições biológicas, de limitações, de recalques, de escolhas feitas pela biologia, ou seja, muita coisa lhe foi excluída. Ela já é um ser sintomático, cheio de sintomas, de formações excludentes, pois a constituição primária é muito recalcante em comparação com nossa disponibilidade secundária. Então, para coisas simples que nos ocorrem como nascer sem asas e querer voar, a única saída é inventar um avião, por exemplo. E só se o inventa com grande trabalho secundário tentando intervir no Primário. Por isso, cultivo estes três registros: o Primário, o espontâneo que me é dado; o Secundário, aquilo que o Originário produziu como competência de equivocar o Primário. Assim, ao que me apresentam, quero também o contrário. Se não gostei, prefiro de outro modo. E quando invento algo que supera a limitação do Primário, estou desrecalcando o que o Primário recalcou. Como veem, somos uma trouxa de recalques, pois, além dos recalques primários, a loucura funcionando muito, a criança se perde. Além disso, vêm  186

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as ideologias culturais, junto com família, religião, estado, escola, etc., e começam a recalcar seus movimentos segundo determinado modelo. O pior é que, sem certo recalque, a criança se perde, e com recalque fica neurótica. Este é o dilema. Se não há limitação, a loucura estraga tudo, se há limitação e o gajo acredita demais – pois tem isto, ele tem que acreditar demais –, aí ele fica o que antigamente se chamava de neurótico, ou fica psicótico, fica algo ruim demais. Tenta-se, então, inventar um procedimento para desrecalcar sem esculhambar. É a teoria da psicanálise: como desrecalcar sem esculhambação? É dificílimo, quase impossível, aliás. Freud disse que analisar é impossível, assim como educar e governar, mas tentamos mesmo assim. Apesar do “je sais bien, mais quand-même” de Octave Mannoni.

12. Como disse, os protocolos que cada um arruma para tentar inventar um aparelho de entendimento dependem do repertório da pessoa e de seu momento histórico, do que está acontecendo. Quando tomamos Freud e Lacan, após certa convivência com suas obras, percebemos que eram rigorosos, eficazes e de acordo com seu momento. Freud precisou de um modelo básico para construir sua teoria. Em sua época, o que saltava aos olhos nos consultórios, nos processos de vida, na política, na religião, aqui e ali, é o que ele chamava de neurose. É um péssimo nome, pois tem a ver com nervos, com doença dos nervos. Este e outros são, aliás, nomes que vieram de heranças ruins, que nos impedem de pensar. Só a palavra neurose nos impede de pensar bastante. Mas o que interessa é que o modelo sobre o qual Freud construiu seu edifício psicanalítico foi o da neurose: o grande modelo da histeria e da neurose obsessiva. São dois nomes ruins que a época ofereceu, pois histeria é útero e há histérico que não tem útero; e a neurose obsessiva, às vezes nem parece estar obcecada. Freud tentou descrever estas duas coisas com base em psiquiatras antigos. Em suma, sobrou a ideia do recalque fundando neuroses. Foi sobre este modelo que Freud construiu sua teoria. Não que ele não procurasse uma teoria da psicose ou da perversão, mas o modelo com o qual instalou sua teoria é o da neurose em cima da ideia fundamental de recalque. 187

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São nomes tão ruins que, para meu uso diagnóstico, não mais chamo de neurose, e sim de Morfose Estacionária. Isto porque, se qualificarmos de histeria, disso ou daquilo, ficaremos aprisionados em nosso entendimento. Além disso, não existem só obsessivo e histérica no pensamento de Freud. Ele se vê às voltas com coisas diferentes: neurose disso, daquilo, é uma colcha de retalhos. Então, o conceitozinho de Estacionário me serve para considerar pessoas que, em seus percalços de vida, constituíram modos de defesa que são: paralisar, não mexer, ou mexer o mínimo. É o que chamaram de neurose, só que meu modelo me deixa solto para pensar qualquer tipo que apareça, sem precisar dizer que é histeria ou obsessiva. Como essa pessoa estacionou? É barbeira? Amassou o carro? Arranhou o carro ao lado? Ou seja, ela paralisou no que chamo de Morfose Estacionária, e isto já muda muita coisa. Retornarei talvez a isto mais adiante no decorrer destas conferências. Se observarem a vida intelectual e afetiva do Doutor Lacan, descobrirão que ele tomou como modelo de seu pensamento, de sua fixão, a psicose. De preferência, a que chamava de psicose paranoica, mesmo antes de chamarem assim. Na juventude, ele teve um caso intelectual terrível com uma louca, que apelidou de Aimeé, que resultou em sua tese de doutorado sobre a psicose paranoica. E vemos que esta ideia é que foi modelar em seu pensamento, muito de acordo com seu amigo Salvador Dali, que inventou a paranoia crítica. Os dois, aliás, ficaram disputando quem era o dono da ideia. Não gosto do nome psicose, muito menos de psicose paranoica ou esquizofrenia. Para meu uso, chamo de Morfose Regressiva. Toda vez, então, que consigo entender que há uma construção no sentido da regressão, da hipóstase para dentro da realidade, chamo assim, pois é um nome que pode conter paranoia, esquizofrenia e qualquer outro tipo de articulação a que antigamente chamavam psicose. Isto, como disse, para evitar esses nomes e também os conceitos. Um pouco mais tarde, no contraponto a Lacan, surge uma dupla – um psicanalista da Escola de Lacan, Félix Guattari, e outro, Gilles Deleuze, já um grande pensador na época – que começa a questionar essas coisas da psicanálise. Eles inventam a teoria da organização do pensamento sobre a psicose, mas não a paranoia, de Lacan, e sim a esquizofrenia, de Deleuze 188

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Guattari. Deleuze e Guattari constituem um pensamento, tentam organizar uma teoria sobre a ideia de esquizofrenia, que é outra psicose. Vejam, então, que no século XX, propriamente dito, depois de Freud, os grandes pensamentos a respeito da constituição da mente têm olho na psicose. Por quê? Porque o século XX é psicótico. O século XIX é tipicamente neurótico, basta ver a literatura e os filmes sobre a época. Já no século XX temos os rigores mais loucos. Por exemplo, a teoria de Einstein: uma paranoia radical – e contestável, relativizável, hoje. Mas o modelo que estava na cara de todos era psicótico. Eles foram, portanto, absolutamente de acordo com a mentalidade geral da psicose da época, com seus rigores, com ciência disso, ciência daquilo. Havia que ser científico radical. A sociologia, por exemplo, tinha que pensar por si. Parece que o resto não existia. É um positivismo, mesmo que oculto, mesmo que larvar. Não se esqueçam de que quem inventou o positivismo foi Auguste Comte, que era completamente psicótico. Eles abandonaram o positivismo, mas mantiveram o entendimento desse momento extremamente psicótico. Estamos começando a ficar livres do século XX, mas mediante outra zorra, que é esta do século XXI. Em nossa vivência do que acontece hoje, isto jamais aconteceu no planeta. Podemos dizer que, até o final do século XX, que, como disse da vez anterior, acaba por volta de 1980, a coisa tinha progressões, havia uma estabilidade neurótica ou psicótica, etc. Já o século XXI entrou com tudo, estão quase todos sem saber o que fazer com o que está acontecendo, pois o modelo da neurose não serve mais, não se fazem mais neuróticos como antigamente quando tínhamos neuróticos de coturno e histéricas que davam ataques. Hoje, as histéricas estão disfarçadas, só sacaneiam o próximo. A psicose, esta, depois de ter tomado o poder – Adolf Hitler, Stalin e Mao são paranoia pura –, também está disfarçada em movimentos democráticos e coisas do tipo. Não riam, pois é tristonho.

13. Qual é a cara do século XXI? Que modelo posso tomar para pensar fora dos modelos neurótico e psicótico? Vocês podem achar estranho, mas é o modelo do que antes, erroneamente, chamavam de perversão. Esta é a estrutura do século XXI. Joguem no lixo a palavra perversão, pois não serve para nada. 189

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A ideia de perversão vem da ordem policial. Ou seja, da ideologia dominante que não quer tal coisa. Se alguém está comendo a mulher do vizinho, é uma perversão, ele vai para a fogueira. Ou, quanto ao modo como alguém trepa com sua mulher, é uma perversão porque a Igreja ou o Estado dizem que está errado. A ideia de perversão nasceu assim, policial, passou para o jurídico, do qual foi assimilada pela medicina, pela psicologia e até pela psicanálise. Freud, pensando estar limpando a barra, começou dizendo que a criança é um “perverso polimorfo”. Ele, ao invés de só dizer que a criança é sexualmente polimorfa, coisa que disse também, tomou o termo da ordem médica, que já tinha sido assimilada da ordem jurídica, e o usou. A criança pode ser diversa, divertida, mas perversa, não. Ela simplesmente está com tanta disponibilidade que vemos todas as tendências antes que venhamos a reprimir e recalcar, dizer que isso ou aquilo não pode. Aí é que o cara fica neurótico. Quando retiramos os conceitos idiotas como os de neurose, psicose e perversão, há que limpar a barra. Temos, então, agora, uma construção em que, diferentemente da neurose e da psicose, o recalcamento funciona como a possibilidade de sustentar uma suspensão do recalque, mesmo ele existindo. Isto está em Freud e é o que chamo Morfose Progressiva. A pessoa é capaz de formular por cima do recalque, suspendendo-o, o que dá as coisas mais maravilhosas e as mais terríveis. Paciência, pois sem este modelo de suspensão não teríamos ciência, criação de teoria nova, etc. Vejam que pode parecer que euzinho, brasileirinho, idiotinha, nascido aqui na joça, não teria direito de repensar o que é a psicanálise, pois só se pensaria na estranja. Se não atuarmos como qualquer cientista, como qualquer pensador, e afirmar “eu vou pensar!”, ou seja, se não fizermos como faz o que chamavam de perverso – que estou chamando de Morfose Progressiva em cima de uma atuação que suspendeu o recalque por algum modo –, calaremos a boca e teremos que ser neuróticos como todo mundo para o resto da vida. O século XXI é inteiramente da Morfose Progressiva, e isto está assustando. Os regressivos e os estacionários estão apavorados não com a quantidade de pessoas progressivas, e sim com a quantidade de produções progressivas tão eficazes que ninguém mais segura, a não ser que se acabe  190

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com a civilização. O movimento de informação, de internet, de computador, etc., pôs em suspensão as certezas anteriores de tal maneira que aqueles estacionariamente ou regressivamente apegados a certas formações estão em pânico e, no pânico, querem subsistir nem que seja jogando bomba nos outros para ver se acabam com o pensamento. Os regressivos, estes, estão tentando refundar o infundável. Isto porque se perdeu o fundamento em religião, e mesmo em ciência e em filosofia. Estão se assegurando para ver se sobrevivem à dissolução das fronteiras e das formações dominantes que está acontecendo pelo simples fato não de que as pessoas deixaram de ser neuróticas, e sim porque o movimento da criação humana dispersou tudo e sem volta. E se tiver volta, é a calamidade, é acabar com a civilização. Então, como vamos sobreviver? Como vamos chegar a esse novo momento? Vemos na televisão todo dia, coisas como o tal presidente da Síria, grupos religiosos, terroristas, jogando bombas nos outros porque acabaram com as certezas deles. Estes são os regressivos e os estacionários. Mas não dá mais para segurar. O casamento é para ser uma instituição em que cada um escolhe como quer fazer, mas estão assustados, pois, para eles, casamento é para fazer neném e família carnal. Sabemos de machão que mata veado em São Paulo, no Rio, etc. Veado é ele, pois se permitem a homossexualidade, ele terá que ser. É o que está em sua cabeça. Por isso, mata o outro para ver se elimina a possibilidade de ser o que ele é em última instância. O psicanalista ele não engana. Esta é a situação em que estamos entrando. Ainda bem que as gerações morrem. A morte é um santo remédio, e o que vai sobrar não será nada disso que está aí. Para onde vamos? Como fazemos? 14/MAI

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3. Mais Conceituação 16. Da vez anterior, eu dizia que o paradigma da psicanálise é sexual. Sempre foi, desde Freud. Assim como foi para Lacan e como estou reiterando aqui agora. Quando dizemos que o paradigma é sexual, pensamos logo em sacanagem, mas não é necessariamente só disto que se trata. O importante no que é sexual, do paradigma psicanalítico, é que nenhuma possibilidade de transação sexual é capaz de encontrar uma relação. Difícil de entender isto, às vezes, mas é simples, ou seja: Não dá certo! Todos, em sua experiência, sabem que não funciona. Claro que pode dar certas satisfações, há transações eróticas satisfatórias. Mas não quanto ao que é correspondente ao Desejo, que seria poder estabelecer uma relação completa. Podemos pensar relação no sentido matemático do termo, isto é, que entre duas situações, entre duas formações, houvesse correspondência plena ponto a ponto. Tanto é que, no nível dos desejos e dos sonhos amorosos, as pessoas ficam na esperança de serem um só com o outro, de fazerem um só, mas isto não acontece. Não existe transa sexual alguma que consiga produzir uma relação. Lacan dizia isto afirmando que “não há relação sexual”, que é impossível. É isto que é sexual, é isto que é secante, que faz um corte entre uma pessoa e outra em sua transa erótica, por exemplo. E em suas transas amorosas também. É impossível, não porque a gente não conseguiu, falhou ou fracassou por falta de potência. Não precisamos nos sentir inadimplentes, pois isso é impossível. A psicanálise descobriu que não há condição alguma na sexualidade, seja ela qual for, em seu movimento desejante para o-quequer-que, de haver completude. Todo gozo, em qualquer sentido, é um fracasso – e custamos a entender isto. Você fez por menos e interrompeu, é assim que funciona. Podemos sonhar à vontade, mas não funciona. Isto é o paradigma da psicanálise. Ela pensa a partir desse Impossível, de que há uma Sexão, uma sexualidade. É um impossível que encontraremos em todo movimento desejante: em certo momento, vai-se esbarrar no Impossível. Isto é secante, cortante. Sexual, portanto. 193

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Cada campo de saber, cada ciência ou cada modo de pensar mais ou menos em profundidade, estabelece seu estatuto, o que é base de seu movimento pensante. Em Freud, dado seu lugar, seu tempo, século XIX para XX, verificamos que ele procurava dar um estatuto científico à psicanálise. Fez todo tipo de esforço para torná-la um pensamento científico. É claro que ficou difícil. Ficou mesmo impossível pensar assim, pois o que se definia como ciência naquele momento não correspondia propriamente ao que Freud estava fazendo. Mas ele insistiu até o fim da vida em querer que a psicanálise fosse ou se tornasse uma ciência. No tempo de Lacan, a coisa ficou ainda mais difícil, pois as epistemologias, ou seja, as teorias do conhecimento forjadas pela filosofia, começaram a ficar tão imponentes e tão dominantes que cada epistemólogo queria dizer com precisão, e com autoridade, o que era e o que não era ciência. Apareceram diversas epistemologias, sobretudo a de Karl Popper, que se tornou a mais famosa. Ele resolveu que havia certo modo de agir na ciência que seria a possibilidade de falsificabilidade. Ou seja, uma teoria científica precisava ter condições de ser contestada e falsificada para que aparecesse outra. A psicanálise não tem essa condição. Assim como também não a tem o marxismo, que era importante na época como pensamento político e econômico. Houve, então, um longo período de dominância, por um lado marxista e, por outro, epistemológica, em que se ficou no mood de desistir da cientificidade da psicanálise. Lacan quando começou, como eu disse antes, ainda fez certo esforço para tornar a psicanálise científica, mas, ao esbarrar nesse momento de contestação da cientificidade, abandonou a ideia e procurou outro estatuto para ela. Ele achou que o estatuto da psicanálise era ético. Ou seja, o que garantia o movimento de pensamento e de prática da psicanálise era certo sentido ético para as pessoas e para a teoria. (Espinosa tem a ver com isto).

17. Sou de outro século, de outra geração, já encontrei tudo trabalhado desse modo – e, de certa forma, derrogado. Para mim, pasmem vocês, o estatuto da psicanálise é místico. Pode parecer esquisito, mas o termo tem garan 194

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tias muito antigas. Hoje, a palavra místico é usada como se fosse crendice: runas, horóscopo, religiões. Mas não é isto. O sentido puro e profundo do termo místico é o daquelas pessoas – seja qual for sua referência, religiosa, teórica, ou coisa de outro tipo – na direção e no sentido do distanciamento do mundo. Distanciar-se do Mundo é ser Imundo, de certo modo. É não ter como sintomática pessoal o que o Mundo, contemporâneo ou não, esteja ditando: procura-se uma posição de distância e indiferença perante o Mundo. Alguns místicos – por exemplo, cristãos – tomavam essa postura, mas a procuravam para se aproximar de Deus, ou de algo assim que estivesse em suas cabeças, em outro sentido. Há, pois, a mística judaica, a mística budista e também místicas leigas, etc. Todas com o denominador comum desse afastamento. Na própria católica, há místicos da maior responsabilidade teórica, teológica e de grande presença nas realizações daquela igreja. Sua mística é inteiramente de afastamento, a ponto de não pretenderem chegar a Deus algum, pois o seu Deus é interior, como é o caso de Mestre Eckhart. Ultrapassadas essas posições de estatuto psicanalítico – primeiro científico, depois ético –, cheguei à conclusão que o que nos sobra é entender a posição teórica e clínica, teórica e prática, da psicanálise como tendo que afastar-se do Mundo e tornar-se indiferente. Ou seja, nada temos a ver com a psicologia, por exemplo. Quando se vai a um psicólogo, espera-se que ele saiba qual é a normalidade – pelo menos, a de seu mundo – e nos leve de volta a ela. Coisa que, aliás, não se conseguirá jamais, mesmo porque ele também não consegue. A psicanálise não tem noção de normalidade que não seja, em ultima instância, a do pensamento psicanalítico. Podemos até pensar nisto, mas não se faz trabalho algum de convencer ou levar uma pessoa a ser como determinado pensamento normativo acha que ela deva ser. Estamos lá para a pessoa se achar, seja ela quem for. Isto não é determinante ou normativo. A ética de cada um é consentânea com seu modelo de pensamento. Então, seu modelo de pensamento dita determinado princípio ético. O estatuto de Freud é científico, mas ele chegou a ditar um modelo ético para a psicanálise, que está na famosa frase: Wo Es war, soll Ich werden. Todos no campo da psicanálise a sabem de cor, mas o negócio difícil é como a traduzir. De nosso 195

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ponto de vista, como suponho ter sido o de Freud, e mesmo o de Lacan, a tradução é: Devo chegar onde Isso estava. Estou traduzindo de maneira bem banal. É como se fosse: se reconheço minha situação humana, reconheço que há Inconsciente, que é ele que determina e não a consciência, então devo fazer o trabalho de ficar consentâneo com minha essencialidade, digamos assim. Devo fazer o trabalho de ir até o reconhecimento do Inconsciente – coisa que as pessoas têm extrema dificuldade de fazer. Elas restam perdidas na consciência cotidiana, na sintomática de sua história, do dia-a-dia, e não conseguem reconhecer o Inconsciente funcionando e determinando suas vidas e seus movimentos. Isto faz uma desgraceira na face da Terra: guerras, maus tratos e coisas da pior espécie. Se reconheço o Inconsciente, sou uma pessoa mais maleável, mais reconhecida aos movimentos desse Inconsciente. Portanto, que não fica com grandes apegos sintomáticos a determinadas construções, que são meras construções e podem ser abandonadas ou transformadas. Para falar de maneira mais banal, que é o que as pessoas entendem melhor, poderia dizer que isso significa que seu Ego deve reconhecer sua determinação inconsciente, a qual não é egóica. Freud chegou à sua postura ética mediante o carro-chefe de situação do Inconsciente de uma pessoa do seu mundo, que era a ideia de Édipo. Tanto é que vai buscar na tragédia grega a velha história do Édipo Rei, que todos conhecem, para mostrar que havia que superar aquela situação no sentido de reconhecer o movimento do Inconsciente no Édipo. Lacan não gostava de falar em Édipo, abandona esta referência mesmo não tendo abandonado a referência grega da tragédia. Diferentemente de Freud, vai buscar a ética da psicanálise em outra tragédia grega do mesmo Sófocles, a qual, aliás, está em continuidade à do Édipo. Não imediatamente com a figura de Édipo, mas com a figura de sua filha, Antígona. Antígona, que se recusou a obedecer a seu tio, Creonte, que era o rei e ordenara que o irmão dela não fosse enterrado, pois este lutara contra a cidade. Ela diz que há uma Lei Maior do que a dele e que vai enterrá-lo faça Creonte o que quiser com ela. Ela paga caro: é emparedada numa gruta para morrer sozinha porque fez o que devia fazer. Então, assim como há o wo Es war, soll Ich werden, de Freud, isto se resume em Lacan  196

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na frase: não abra mão de seu desejo. Esta é, para ele, a ética da psicanálise: o dever de cada um de não abrir mão de seu desejo de referência, sobretudo legal, mesmo que seja contra determinada lei. Isto significa que cada um deve – do verbo dever – realizar-se no Mundo, em sua vida, não abrindo mão, indo até o fim em sua realização. Isto também significa, como dito por Lacan, que cada um tem, de alguma maneira, que bem dizer – que, em português, também tem o sentido de benzer – seu desejo e sua verdade: diga isso bem durante sua vida e estará eticamente resolvido. Fazendo uma digressão interessante, na mesma época, a ética de Deleuze e Guattari, ambos conhecidos no Brasil, é a ética da diferença: a diferença é que deve ser considerada e respeitada. A diferença reconhecida, para eles, propõe que haja multiplicidade. Não há, pois, que reduzir a unidade alguma essa multiplicidade, essa multifariedade que aparece como diferença pura. Então, para esses dois, para Deleuze sobretudo, há o reconhecimento e a aceitação da diferença como fundamento da ética. Costumamos dizer que são os pensadores da “filosofia da diferença”. Chamo atenção para isto, pois vou propor algo que pode parecer filosofia da diferença, mas não é.

18. Dado o aparelho que tenho construído, propus que a ética da psicanálise é a ética do Cais Absoluto e do Vínculo Absoluto, do distanciamento místico: afastamento do Mundo e aproximação do Haver. Lembrem-se de que coloquei o Haver como diferente do Ser. É, pois, distanciamento do Ser e aproximação do Haver. Retirei a expressão Cais Absoluto de um poema de Fernando Pessoa para ser o título deste pensamento que apresento. Cais Absoluto é quando nos afastamos do mundo, da ideia de Ser, tomando a ideia de Haver que é nosso fundamento maior. Aí vamos para uma posição onde estamos à beira de nada, embora ainda dentro de tudo. Estamos à beira do não-Haver, à beira do abismo e, nesta posição, podemos até ter uma escuta analítica, pois indiferenciamos tudo, não aplicamos valores sobre o que está diante de nós. Apenas reconhecemos e operamos, não há complicação sintomática. Todo valor é sintomático. Aqueles que não reconhecem o Inconsciente fazem a suposição de que seus próprios valores são os certos, pois, no momento, têm algum poder metido em alguma 197

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região política ou social – mas são meramente valores pessoais. Do ponto de vista de poder, não temos que respeitar enunciado algum de valor universal. Temos, sim, que respeitar os valores dos outros e exigir que respeitem os nossos, pois cada um tem o sintoma que tem. Então, quando digo que esta posição instaura uma ética da diferença, não é do mesmo modo que no pensamento de Deleuze, de uma filosofia da diferença. O respeito radical à Diferença, aqui, se torna fundamental na ordem social, política, etc., não porque todos são diferentes, e sim porque são idênticos. É, portanto, a Ética da Identidade, que chamo de Vínculo Absoluto. Seja qual for o panorama de mundo, o panorama de Ser, o panorama sintomático de cada um, em sua essencialidade, dada a estrutura da mente humana, todos têm um ponto onde são idênticos, onde são o Mesmo. Trata-se, então, não da ética da diferença, mas da Ética da Indiferença. É o lugar absoluto de minha posição de distanciamento e de indiferenciação, que todos possuem – só precisam desvelá-lo para si mesmos. Por isso, digo que é um Vínculo Absoluto que existe entre qualquer pessoa e qualquer outra. Um Vínculo Absoluto existe, os demais são relativos, são os vínculos de nossa ordem sintomática na ordem do Ser. Um é muçulmano; outro, cristão; outro, não-sei-o-quê; estamos cheios de sintomas demarcando nossa funcionalidade e nossos valores... Mas, em algum lugar, todos são o Mesmo: todos desta espécie são o Mesmo nesse lugar mental. Reconhecendo isto, que todos são o Mesmo, posso dizer uma frase aparentemente absurda (ab surda), mas que é verdadeira: Eu sou você. Em seu tempo, Lacan tomava a frase de Rimbaud, Je est un Autre, e trabalhava a ideia de grande alteridade, a do Outro. Estou dizendo algo mais grave: que, no regime ético da Identidade, sou qualquer outro. Quando passamos para o lado do Mundo, para o lado da sintomática, para o lado do Ser, aí todos são diferentes. É preciso, portanto, respeitar a doençazinha de cada um de nós de ser diferente porque somos todos o Mesmo, embora não sejamos iguais. A França é que gosta de Liberté, Egalité, Fraternité: liberdade + igualdade + fraternidade = mendacidade. Basta olhar o que está acontecendo lá: do ponto de vista da lei, até foram decentes, aprovaram a possibilidade de haver casamento para qualquer um – e saiu um povo na rua, o tal povo que fez a Revolução Francesa, para reclamar  198

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estrondosamente. Então, o que farão com aquele triangulinho? Isto porque igualdade sozinha não garante nada. A briga essencial do ponto de vista político no mundo de hoje é entre o Partido da Liberdade e o Partido da Igualdade. O partido da igualdade é socialista e o da liberdade é liberal. Não se pensa em resolver essa dualidade idiota com a Identidade, quando é tudo a mesma coisa. Então, estão brigando por causa do quê? Vamos ad hoc tentar resolver as situações: mais para cá, mais para lá, aqui está fundo, ali está raso, e a gente vai resolvendo. Isto ainda não aconteceu na política mundial porque justamente não há análise, não há reconhecimento de Inconsciente. A consequência deste tipo de pensamento psicanalítico que reconhece uma vinculação absoluta e portanto exerce um radical reconhecimento e respeito das diferenças, sejam quais forem, é: não tenho o direito de criticar a diferença de ninguém. Segundo a ideia de Hobbes, se deixar muito solto, todos saem na porrada uns com os outros, então podemos ter tentativas de organização dos problemas sociais e administrativos que dirão o que não pode agora, o que não pode de tal jeito, que é preciso inventar outro jeito... Isto é o governo da Diferença. Por isso, acho que existe uma forma superior à democracia, que chamo de Diferocracia: o poder emana da Diferença, e os governantes que se virem para administrar sem questionar a diferença de ninguém. Vejam que isto é radical. Daqui a uns cem anos a gente tenta de novo.

19. Já vimos o estatuto, o paradigma e a ética da psicanálise. Agora, vejamos qual é o campo de operação da psicanálise. Dado o prestígio da ciência no mundo – ainda bem, pois ela tem nos libertado de muita coisa –, apesar de tudo que aconteceu na história da psicanálise, até hoje ainda resta a pergunta: a psicanálise é uma ciência? Direi mais um aparente absurdo: Sim, a psicanálise é uma ciência. Mas qual ciência? A que ciência estou me referindo? Não é a alguma ciência como paradigma. Durante o século XX até agora – embora isto já esteja se dissolvendo –, o paradigmático no pensamento científico foi a Física. Tudo que não fosse da mesma ordem de calculação, de possibilidades de mensuração que a física tenta, embora não consiga plenamente, ficava parecendo não ser ciência. Então, que ciência pode ser a psicanálise? 199

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Digo que é preciso rever esse campo de operação. Já disse que Freud foi notório em situar a psicanálise sob a égide da ciência, da ideia de ciência de seu tempo; que Lacan, por causa de Popper, abandonou sua ideia inicial de que a psicanálise tinha que ser uma ciência e acabou fazendo uma coisa tristonha: querendo ou não, acabou por pendurar a psicanálise no cabide da filosofia – o que é péssimo. Ele imiscuiu, de certo modo, a psicanálise com a filosofia dando um golpe interessante, que foi o de chamar seu pensamento de antifilosofia. Mas antifilosofia, filosofia é: se, positiva ou negativamente, estou preocupado com a filosofia, de certo modo estou pendurando meu pensamento em seu cabide. Com o apelido de antifilosofia, ele ficou perto de outros pensadores que talvez não devamos chamar de filósofos, embora estejam nos livros de história da filosofia: Nietzsche, Pascal, Kierkegaard, Deleuze... São também antifilosóficos, mas são também reconhecidamente filósofos. Isso de Lacan ter antifilosofado, que é o que ele quis dizer, permite a alguns filósofos contemporâneos – por exemplo, Badiou, Zizek, Safatle (este no Brasil) e outros – serem “filósofos lacanianos”. É absurdo, quando os leio me assusto um pouco. Eles têm o direito de pensar assim, mas, a meu ver, não existe filosofia psicanalítica. Houve uma época, no meio do século XX, em que havia psicanálise católica, e até psicanálise marxista em contraposição. Vamos escolher?! Apesar de todo o esforço de Herbert Marcuse, que foi o mais arrumadinho deles, não há como juntar. A psicanálise tem um discurso específico e tem uma posição tão radical que, das duas uma: ou ela se afasta de tudo ou determina o que pertence a esse “tudo” (por exemplo, tenho a intenção de, novamente, pendurar a psicanálise no cabide da ciência, ou melhor, pendurar a ciência no cabide da psicanálise, o que seria mais correto). Ou seja, só podemos hoje em dia pensar a psicanálise em qualquer tipo de transa com a ciência na medida em que é a psicanálise que decide sobre o estatuto dessa ciência. Isto está ficando cada vez mais claro, mas é difícil para o pessoal da ciência engolir. Entretanto, dado o fracasso que eles têm tido na argumentação epistemológica que apresentam, e mesmo na concepção científica que está cada vez mais dissoluta, digamos assim, suponho que acabarão chegando lá.  200

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Faço algum esforço para trazer condições de esta psicanálise produzir ela mesma uma teoria do conhecimento, que chamo de Gnômica. Isto, para principalmente não chamar de epistemologia, pois é uma gnoseologia, uma tentativa de entender o que é o conhecimento sem a pressão limitadora e determinante das epistemologias. Trata-se de pensar de modo psicanalítico, ou seja, produzir uma teoria do conhecimento compatível com o Inconsciente. Se isto puder ser feito, esta psicanálise talvez consiga vir a redefinir o que é ciência. Provisoriamente definindo, digo, então, que ciência é uma investigação, qualquer investigação, que leve à descrição do funcionamento das formações do Haver em compatibilidade com o Inconsciente. No dia em que o pensamento científico, o pensamento sobre o conhecimento, partir daqui, aí a psicanálise pode designar como funciona a ciência de verdade. De verdade, isto é, cujo sintoma é posto a nu pelo reconhecimento do Inconsciente. A sintomática da ciência do século XX é terrível. O século XX é inteiramente delirante. Isto, em termos de política, de religião, de ciência... Parece um bando de psicóticos. Estou exagerando? Já ouviram falar num rapaz chamado Adolf Hitler? Num rapaz chamado Stalin? Num rapaz chamado Mao Tsé-tung? Um rapaz chamado Fidel Castro? Aquilo é a implantação da psicose na política e na sociedade. A deliração científica não ficou atrás e as religiões fizeram tanto esforço de diferenciação que deu nisso que está aí, a porradaria comendo. Vamos ver se o Chicão acaba com isso... A definição provisória que acabei de colocar tem que considerar os diversos níveis e gradientes de apreensão do conhecimento, que vão da intuição mais folclórica à mais refinada qualificação e/ou quantificação. É uma teoria do conhecimento que possa englobar “tudo” porque reconhece o movimento do Inconsciente produzindo teorias como sintomas. Há um pensador psicanalista e linguista chamado Jean-Claude Milner que faz um trabalho importante no campo da teoria psicanalítica e afirma algo consentâneo com o que estou dizendo: uma vez que aconteceu a psicanálise, os outros discursos foram prejudicados porque a psicanálise demonstrou a vontade de sutura, a constituição ideológica, desses discursos. Vontade de sutura quer dizer: querer fechar, não tem brecha, não abre. A psicanálise denunciou isto. Então, todos os 201

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saberes ficaram prejudicados. Assim, se há psicanálise, pensamos de maneira psicanalítica, então todos os saberes estão em crise, estão sob análise. Assim, que ciência pode ser a psicanálise? Uma ciência definida provisoriamente, como acabei de fazer, que opera na investigação de alta sofisticação e efetivamente exerce o espírito científico. Gosto deste sintagma de Gaston Bachelard, que era um cara sensível a isso. Quando queria pensar o que era o pensamento científico, queria ser psicanalítico. É uma pessoa que tenha ido ler Jung, aí não conseguiu muito bem. Ele vivia sugerindo que se fizesse a psicanálise da ciência, pois, sendo um homem de dentro da ciência, percebia a constituição sintomática e ideológica dos aparelhos científicos, que queriam dominar o mundo como O saber, como O conhecimento. Percebemos, portanto, até mesmo em Bachelard, uma denúncia da falsidade ideológica das ciências pré-psicanalíticas, bem como das filosofias. Repito, então, que, reconhecida a psicanálise, reconhecida a moção do Inconsciente, os discursos anteriores foram prejudicados, questionados, embora ainda tenham poder e continuem por aí. É desta posição de questionamento que poderemos constituir uma teoria do conhecimento para o século XXI em diante. Uma teoria que tenha a elasticidade possível para reconhecer o que é conhecimento, o qual não é o fechamento que as epistemologias criaram.

20. Estamos acostumados a ouvir falar em pensamento reflexo, em reflexão e em pensamento complexo que, este, foi o mais aberto que apareceu. Mas a psicanálise é o Pensamento Perplexo. É preciso sustentar a perplexidade diante do Haver, para mantê-lo em abertura e possibilitar as condições de conhecimento. Um analista, que o seja de fato, e não só de direito, diante de seu analisando, é perplexo, parece que nunca o viu, pois cada um é... aquela belezinha que sabemos – é, aliás, que nem que nós. Sem certa perplexidade, viramos um mero psicólogo ditando regras para a pessoa, como se, de alguma maneira, ela fosse conseguir aquilo. Ele pode até fingir, mas não vai conseguir. Há algo nesse pensamento perplexo que é sustentado pelo modo de construção do pensamento na psicanálise, na teoria e na prática. A filosofia e  202

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a ciência são binárias, só conseguem operar em termos de oposições. Este é o pensamento decadente, o pensamento que é a resultante consciente, limitada, hemiplégica, recortada e só metade do pensamento inconsciente. A psicanálise não é binária, não pensa binariamente. Ela pensa ternariamente: isto é oposto a isso, entretanto há aquilo; isto é oposto a isso, entretanto há aquiloutro... Aquiloutro é que é logicamente difícil de conceber. Isto porque, no momento presente, estamos apenas no limiar de, lógica e tecnologicamente, conseguir a instauração deste tipo de conhecimento no Mundo. A psicanálise já o instaurou, mas quem não se aproxima dela, não sofre seu processo e, de preferência, se transforma em psicanalista diante do Mundo, não opera assim. O Mundo, em geral, opera binariamente. Isto é, opera como o computador: 0/1. A psicanálise não opera assim e, felizmente, estamos à beira de conseguir o computador que opera como nós operamos. Trata-se do chamado computador quântico, que funciona não em 0/1 mas com os dois opostos ao mesmo tempo. Ainda é pouco, pois o velho Nicolau de Cusa já havia falado em coincidentia oppositorum. As pessoas vivem no regime de oposições e a psicanálise sabe que facilmente deslizamos para o avesso com a maior facilidade, tanto em termos de língua como em termos de comportamento. Ela sabe, a cada caso, que, ao sonhar, acabamos desmunhecando, pois a coisa vira. O computador que pretende vir a dar conta disto ainda está pensando como Nicolau de Cusa: trata-se simplesmente de inventar o q-bit, que seria a conjunção dos dois opostos. Mas não é assim que o Inconsciente pensa, é justo o contrário: o Inconsciente pensa certa coisa que, decadente, se torna os opostos. Não é, então, que isso se junte aqui, pois não tem oposição juntando aqui. É, sim, um pensamento que pode se tornar oposição na manifestação decadente do mundo. Isto é mais difícil ainda. Mas torço para surgir o computador quântico, pois já vai ajudar as pessoas a entenderem que a mente não é a bobagem que temos até o século XX e que Freud, na passagem do século XIX para o XX, já começara a introduzir um pensamento radicalmente novo, que certamente será banal daqui a cem ou duzentos anos. Isso vira banalidade, vai para a tecnologia: todos poderão vir a ter um gadget no bolso que funciona assim. 203

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Teremos que entender a questão de que o Mundo é da ordem do Ser, tão caro às filosofias. Elas ficam procurando o Ser: o Ser é a falação. Há algo – o que é? Aí, começa a falação infinita para tentar dizer o que é Isso-que-Há. Mas, pela falação do Ser, não se consegue dizer o que Há. Quanto ao que Há: ou sentimos ou desandamos a falar para o resto da vida. O Mundo é o lugar das realidades, e não lugar do Real. O Mundo é o campo da loucura, é nossa loucura total, nossa falação infinita. Eventualmente, consegue-se dizer algo que preste nessa falação toda. Então, mesmo pertencendo à ordem do Ser, um poeta, um criador, um cientista, diz algo que parece ter a ver com o Haver. O Ser, o Mundo é o campo das afetações menores. Já o Haver – e agora direi algo horroroso, mas não acho outra maneira – é como se fosse a substância do Real. Não são realidades, é o lugar, a matéria, da Pulsão, do Tesão – como gosto de traduzir o termo freudiano Trieb – e, ao mesmo tempo, por ser o lugar do Desejo, é o lugar da Angústia. Desde o começo da psicanálise, Freud mostrou que uma pessoa fica angustiada com seu desejo. Se procurarmos traduzir bem nossas angústias, veremos que angústia e desejo estão no mesmo lugar. Tomando, então, minha ideia de que Alei é Haver desejo de não-Haver, vemos que o Desejo é de não-Haver e que a resistência grita, pois esse desejo vai nos matar. Então, ficamos angustiados: não há saída desse lugar. Desejo e Angústia, diferentemente das afetações menores do campo do Ser e do Mundo, são os dois afetos que emergem diante do Haver. Quando estamos diante do Real bruto do Haver, temos duas funções capazes de emergir aí: desejo e angústia. São as duas faces da mesma Pulsão: vivemos de Tesão, por isso vivemos no desejo e na angústia. É o terror.

21. Vocês devem ter ouvido as filosofias e alguns pensamentos, até ditos psicanalíticos, dizerem que é impossível abordar o Real, que ele pode ser causação, mas que não há possibilidade de conhecê-lo. Dizem isto porque sua ideia de conhecimento é a de constituição de saber, no sentido em que eu criticava a constituição de filosofia, de ciência, etc. Do ponto de vista psicanalítico, embora Lacan tenha repetido isto, devo dizer que não há conhecimento do Real, que não há conhecimento do Haver? Ao contrário, do Haver – e, se  204

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quiserem, podem chamar de Real – só há Conhecimento Absoluto. Não se trata de Hegel, de conhecimento conseguido no final das sínteses hegelianas, e sim que aquela Pessoa que eu disse que tem um lugar de Cais Absoluto, um lugar de Vinculação Absoluta, nesse lugar, (ela) conhece absolutamente que (ela) Há. E isto é um Conhecimento Absoluto – porque isso dói e isso goza. Não é preciso pensar em dor corporal alguma, pois todos têm experiência para saber que estar aí dói, que estar aí também goza – e não sabemos o que está doendo e o que está gozando, isso é ambíguo. É o que chamo de Conhecimento Absoluto, que todos têm: a dor e o gozo da Presença. Os pensamentos têm dito que não há verdade absoluta, mas, se há Conhecimento Absoluto referido ao Haver, digo que há, sim, verdade absoluta. A Verdade Absoluta é a verdade da Pulsão, a verdade do Tesão. Ou seja, Haver desejo de não-Haver é Verdade Absoluta que corresponde ao Conhecimento Absoluto de Haver como Alei do Haver. Todas as IdioFormações têm isso. Só que o Haver com sua Verdade e seu Conhecimento é apenas Causa dos conhecimentos e das verdades na ordem do Ser. Se, então, tomarmos os conhecimentos e as verdades que produzimos na ordem do Ser, veremos que são causados pela situação de gozo e de dor diante de Tesão e de Angústia. Esse Conhecimento Absoluto e essa Verdade Absoluta são a causa de meu movimento de perquirição sobre o Ser. Isto, aliás, é coisa de gente, pois nunca vimos cachorro ou mesmo macaco cientista ou filósofo. Há, pois, um Conhecimento Absoluto e uma Verdade Absoluta que causam nosso movimento de tentativa de produção de conhecimentos e de verdades na ordem do Ser. Por isso, o conhecimento na ordem do Ser é precário, relativo e faltoso. A verdade na ordem do Ser é sintomática. Nós funcionamos sintomaticamente. Esta é uma nossa verdade, tentemos dizê-la muito bem. O Haver é a Causa dos conhecimentos e das verdades na ordem do Ser, no campo do Mundo – sem, contudo, entregar-se plenamente a esse Ser e a esse conhecimento relativo. Sem, tampouco, deixar de se oferecer a eles (e isto nada tem a ver com a coisa-em-si, do Doutor Kant).

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22. • P – Você disse que a constituição dessa sua teoria é sintomática e falou da verdade. Qual é a diferença entre essa verdade sintomática e a constituição de saber que é fechada, suturada, como é o caso das filosofias, etc. É a questão do universal? O universal não existe. A ideia de universal é justamente o comandante da sutura. Não há dúvida de que, se a psicanálise se exprime teoricamente, além de clinicamente, na práxis, ela não pode não ter a limitação do sintoma. Tanto é que é possível ela ter desenvolvimento. Quando Lacan fala em retorno a Freud, na verdade, é: crítica de Freud a partir do saber contemporâneo. Quando digo retorno de Freud, em que quero o sintoma de Freud de volta por cima do sintoma de Lacan, estou fazendo outra construção sintomática. Se não, não há progressão. Não há como nos exprimirmos na ordem do Ser sem ser sintomaticamente, mas há algo diferente, que é a Postura com que encaramos isto ou aquilo. A Postura Psicanalítica é radicalmente diferente dessas outras que, aliás, são a mesma: uma postura de saber constituinte e constituído, de saber que quer colocar identidade entre o saber e o Real. Como eles dizem, o Real fica escapando, mas mesmo assim é mantida a postura binária. Do ponto de vista “perverso”, usando uma expressão bem popular é: “Tô sabendo, mas caguei...” Não é possível produzir teoria sem versão sintomática, mas a Postura Psicanalítica é tão radicalmente diferente que, de saída, deixa o teorema em aberto. Quando tenho a audácia de dizer que a Verdade é Haver desejo de não-Haver, eu li a Verdade desse modo. Podem dizer que esta é uma frase sintomática como qualquer outra, mas ela come o próprio rabo. Haver desejo de não-Haver, não-Haver não há, como fazer, então? Se não-Haver não há, a Verdade está prejudicada no que ela é afirmativa. Então, ela tem duas posições ao mesmo tempo. Não há isto em outros pensamentos. • P – É isso o Pensamento Perplexo? Sim. Algumas pessoas, que não me leram ou leram mal, dizem que coloquei um teorema – Haver desejo de não-Haver –que é a destruição. Se desejamos não-Haver, tudo vai para o brejo. Vai mesmo, mas não por isso...  206

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Por quê? Porque o não-Haver não há, então estamos condenados ao Haver. O que esta frase diz é que todos, no fundo, estão desejando a Paz Absoluta, o Gozo Absoluto, o Silêncio, o Chega! – mas não vai chegar, nem morrendo, pois ninguém tem experiência da morte. Quando somos meio doidinhos – como todos, aliás –, passamos por experiências psíquicas, fazemos uma cirurgia e sob anestesia “vemos” a vida após a morte, mas não é preciso estar morrendo, pois também sonhamos com essas coisas: o sonho é que é de acordo com nosso desejo de nunca morrer, de continuar para sempre. Entretanto, ninguém tem experiência de morte. Há certo grupo que inventou uma teoria “religiosa” que diz que as pessoas mortas voltam, que falam com elas, que elas recebem os espíritos... Nada tenho contra, querem acreditar, estejam à vontade, só que não há a menor condição de provar uma coisa dessas, pois ninguém tem experiência de morte. Antes de morrer definitivamente já apagamos. Não se vai ter experiência de morte alguma, podemos desistir. Ou seja, a vida é eterna. Digamos melhor: a vida é sempiterna. Começamos não sabemos de onde, não lembramos nada e quando terminar não vamos perceber coisa alguma. Então, sou eterno. A eternidade é isso: vou viver para sempre. É só entendermos o que é sempre: sempre, é não ter começo, nem fim – sempiternamente. • P – Você propõe que a psicanálise é ciência. Mas por que é preciso dizer que a psicanálise é uma ciência já que você disse que as ciências são binárias e o pensamento psicanalítico é ternário? E mais, por que é preciso ainda que a psicanalise seja considerada ou filosofia ou ciência ou religião? Em primeiro lugar, não é ainda, é novamente. A Psicanálise deve ser considerada tudo isso em função de sua utilização sintomática. Se a psicanálise produziu um pensamento que põe em cheque o pensamento científico, o qual dizia que a psicanálise não pensa com a precisão da ciência, ela precisa mostrar que pensa sim, só que precisão não é aquilo que a ciência pensava, mas o que ela psicanálise aponta. A psicanálise está presente no mundo e deve fazer a crítica dos discursos falidos que ela encontra pela frente. Por isso, ela assume para si este papel. Então, eu já disse que a psicanálise é Arreligião e até digo que pode ser Afilosofia, se ela decidir o que a filosofia deve ser. O que não se pode é fazer como certos autores contemporâneos que ficam 207

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querendo reduzir a psicanálise à filosofia. Isto é bobagem, não vai funcionar. O chato desse pensamento estranho que Freud meteu no Planeta é que ele tem o mau hábito de assumir o lugar de outros pensamentos, e eles não gostam, ficam danados da vida. Se a psicanálise for o pensamento causado pela posição do Haver, será o pensamento adequado sobre o Mundo, então derrogará a filosofia, ou seja, ela será Afilosofia. Escrevo numa palavra só, Afilosofia e Arreligião, para dizer que é e não é. Significa artigo e prefixo de negação ao mesmo tempo. Desde o começo, disse que a psicanálise é Aciência, pois ela tem que manter sua posição de ambiguidade e de perplexidade. Então, não venham com discursos científicos, porque digo que Aciência é a psicanálise; com discursos religiosos, porque digo que a psicanálise é Arreligião; ou com discursos filosóficos porque digo que Afilosofia é a psicanálise. Saiam dessa, se puderem. • P – Ao falar da psicanálise, você se considera filósofo, cientista ou psicanalista? Psicanalista, mais nada. E só me considero, pois não sou. “Pretensão e água benta cada um toma quanto aguenta”. • P – Você falou que Freud buscava uma psicanálise científica, Lacan uma ética e que você propõe uma mística. Isto não é também uma postura ética? Ou você está distanciando a ética para o mundo do Ser e a mística para o mundo do Haver? É uma postura ética, sim, só que assentada nessa concepção do Místico. Eu disse en passant que a ética que designo para a psicanálise é a ética do Cais Absoluto, a ética da Postura Mística. Lacan achava que a postura era ética quanto à exigência de não abrir mão do desejo. Bacana, muito bom, mas acho que é preciso mais. Cada um enlouquece do jeito que pode. 11/JUN

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4. 1AR / 2AR / OR: Etologia e Neo-etologia 23. Como sabem, em nossa consideração, a Lei que rege o que há, o Haver, diz: Haver desejo de não-Haver. A Lei do Haver é pura Pulsão, no sentido freudiano de Pulsão de Morte: toda Pulsão tende para seu esgotamento. Isto no sentido do que, mais ou menos contemporaneamente a Freud, foi percebido pela física como Segunda Lei da Termodinâmica, que é a lei da Entropia. A psicanálise não precisa desta lei, mencionei-a apenas para fazer correlação. Portanto, toda Pulsão é de extinção. Disse também que o Haver, o que quer que haja, em sua plenitude, é homogêneo. Ou seja, para nosso percurso, temos que fazer a suposição de que o que há – e não estou falando de universo, pois este é muito pequeno diante do que há –, lá na última instância, é tudo a mesma coisa. Os físicos cada vez mais se aproximam desta percepção, desta concepção e mesmo da possibilidade de demonstrar que, lá, é uma coisa só. Acontece que, se a Lei do Haver é desejo de não-Haver, o Haver vai quebrar a cara porque o não-Haver não há. Ou seja, o Haver deseja o Impossível. Porque o deseja e não tem como consegui-lo, fica no eterno pedido desse não-Haver que não será conseguido. Então, se aquilo que é desejado não será conseguido pelo Haver, acontece que a simetria de isto querer seu oposto, de isto querer aquilo, de Haver querer não-Haver, esta simetria se quebra. Arremedando da física, chamo esse acontecimento de Quebra de Simetria. É como se ela estilhaçasse o Haver e ele começasse a repeti-la em seu interior e, portanto, começam a aparecer as diferenças, a enorme quantidade de formações. E isso, depois, implodindo, outra vez, vai tentar ir para seu lugar de não-Haver, de desejar não-Haver, não conseguir, espatifar-se, retornar, etc., etc., e assim desde sempre para sempre. Esta é nossa hipótese e de alguns especialistas em cosmologia. As sucessivas quebras de simetria vão constituir a imensa multiplicidade de formações dentro do que chamamos Haver. Podemos, portanto, considerar o Haver como A formação. E às formações que comparecem dentro dele por causa mesmo daquela quebra de simetria, chamo de formações do Haver. Assim sendo, o que quer que haja, 209

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de qualquer índole, de qualquer nível, de qualquer porte, é uma formação do Haver. Isto é bom porque generaliza nossa nomenclatura. O que quer que compareça é uma formação do Haver, dos mais diversos tipos: psíquica, material, de fato. Tudo pertence ao Haver, nada há fora dele. O interessante é que, na concepção desta psicanálise, qualquer formação, pelo simples fato de ser uma formação – e, portanto, ter limites e ser diferente de outras formações –, se estrutura e se organiza como o que chamamos de sintoma. Isto porque é limitada, tem resistência e é mais ou menos paralisada no tempo. Podem chamar de sintoma qualquer formação que pensarem, pois ela não difere em nada dos sintomas que portamos por questões patológicas – os quais são também formações fechadas e justamente nos prejudicam por resistirem à mutação.

24. Consideramos também qualquer formação do Haver, de qualquer tipo, como: uma articulação de outras formações, formações de formações de formações... Até chegar onde a homogeneidade se encontra: onde, em última instância, tudo é a mesma coisa, tudo é O Mesmo. Qualquer formação, portanto, é formação de formações conseguidas modalmente. São modos de articulação, são conseguidas mediante muitas articulações: uma coisa se articula com outra, com outra... Quando falamos articulação, usamos o mesmo radical ART que está em: arte, artifício, artefato. No final, tudo resulta em articulação, tudo é arte: a arte de articular, compor qualquer coisa. Assim, o que o hábito na filosofia e nas ciências humanas chama de natureza – natura, em latim, physis, em grego – estou chamando de artifício espontâneo para evitar confusões de nomenclatura. A natureza é tão artificial quanto qualquer artifício. Ela é articulada, ela se articula, ela é um artifício. Não é preciso de artífice para haver um artifício, ele se articula por si mesmo. Então, qualquer coisa que encontremos “in natura”, como se dizia, é um artifício espontâneo, ou seja, é resultante de articulações que vão formando formações. No seio da pletora de formações espontâneas que já encontramos desde sempre por aí, emergiu, sabe-se lá por quê, uma formação especial chamada vida, desde a mais rudimentar à mais complexa. Supomos que a  210

1AR / 2AR / OR: Etologia e Neo-etologia mais complexa conhecida seja a nossa. É uma suposição, não sejamos arrogantes, pois não sabemos o que há por aí. Então, nessa tal vida apareceu uma complicada e complexa que é a nossa, chamada de vida humana. As espécies chamadas de vivas não são formações inertes, como supomos serem uma pedra, uma montanha, um planeta. Ao contrário, elas são cheias de arte, cheias de possibilidade de articulação. Elas têm comportamentos próprios, isto é, têm modos de articulação para além das espécies mais estacionárias que não são vivas. As formações chamadas de vivas, diferentemente das demais, têm uma constituição específica, própria, que nos permite perceber nelas dois modos de funcionamento. Podemos, pois, numa ameba, num ser humano ou em algo que inventamos, distinguir pelo menos heuristicamente dois modos de articulação. Há uma formação que dá, digamos, a arquitetura de sua incorporação. Aquele bloco vivo – uma ameba, uma pessoa, um boneco humano – tem uma formação que é responsável por sua arquitetura. E há também outra formação que dá o modo de funcionamento da arquitetura assim constituída. É como se fosse um programa comportamental: os seres vivos têm programação de comportamento. Para nosso uso, chamo a primeira formação, que é a arquitetura do ser vivo, de Autossoma, digamos grosseiramente, o próprio corpo. À segunda formação, que é responsável pelo programa de comportamento, chamo de Etossoma, o corpo comportamental. Não estou dizendo que no ser vivo, naquela formação, naquela arquitetura, tenha dois pedaços, pois pode estar tudo misturado, e sim que há a in-formação que é responsável pela constituição do boneco, em nosso caso, e outra responsável pelos funcionamentos desse boneco. Posso distinguir essas duas formações até no momento de estudá-las. Posso tomar um ser vivo que esteja morto e entender sua constituição biológica, sem funcionamento algum, e posso também estudar só o funcionamento, o comportamento, deste ser vivo. Estou distinguindo porque, para nós, esta distinção é importante como ferramenta teórica. Qualquer formação viva é, portanto, constituída de autossoma e de etossoma. Ou seja, podemos dizer aproximadamente que a compleição física seja o hardware do ser vivo, e o programa funcional, o programa de funcionamento, comparativamente, seja o software. Nada parece impedir que, 211

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espalhados pelos universos possíveis, existam outros sítios de vida ou outras formas semelhantes, embora diversas. Ao conjunto dessas formações que são espontâneas, dadas, já as encontramos aí, não foram feitas por nós, dou o nome de O Primário, que é: autossoma + etossoma. É uma nomenclatura para fazermos distinções e designar que nosso boneco – uma pessoa, mas também um cachorro, um gato, um cavalo – tem uma constituição biológica e tem muitas informações comportamentais que já nasceram com ele. Esse Primário, em nosso planeta, é comum a todos os seres vivos, todos o têm. Ele tem sido estudado tanto em sua formação autossomática, que ciências como a Biologia abordam, quanto em suas formações etossomáticas, que geralmente são entregues ao que chamamos de psicologia animal, a Etologia. A psicologia animal tenta entender apenas o etossoma: como esse animal funciona, quais são seus comportamentos, que são extremamente programados. A alta complexidade de certos animais permite uma elasticidade grande do etossoma, eles até aprendem coisas, parecem gente, mas não são, pois aquilo é limitado e eles não chegarão aos lugares onde temos chegado. Mas a etologia está crescendo, pesquisando em campo espécie por espécie, buscando descrever qual o programa que faz tal espécie funcionar e como se comporta.

25. Mas há algo que aconteceu conosco, para bem ou para mal. Neste planeta, surgiu um fenômeno suplementar. No seio das formações vivas, apareceu uma extrapolação que resultou em algo assaz diferente: nossa própria espécie – que nós mesmos chamamos de humana (isto é, que veio do barro, do humus, nasceu no meio desse lodo da terra). Nada parece impedir que este acontecimento também se tenha dado em outros ditos universos, ou neste mesmo, seja qual for sua constituição, de base carbono como a nossa, ou não. Somos uma constituição viva de base carbono, mas lá sei se nos universos por aí não há seres parecidos conosco que sejam de silicone, de lata... Ou mesmo que possamos produzir alguém semelhante a nós feito de matéria plástica... Chamo de IdioFormações estes seres emergentes que são diferentes dos outros que têm apenas autossoma e etossoma. Estejam eles aqui no planeta ou em qualquer lugar, chamo assim para evitar misturar os nomes  212

1AR / 2AR / OR: Etologia e Neo-etologia e dizer que também são humanos. Eles podem ser muito esquisitos, tão esquisitos quanto nós: onde encontrarmos algo que emergiu parecido conosco, em qualquer lugar dos universos possíveis, essas entidades – digamos, os humanos de lá ou os humanos de cá, nós inclusive – serão as IdioFormações. Trata-se, então, de descrever o que é uma IdioFormação que, em nosso caso, virou gente e chamamos de humanos. Nossa espécie, a dita espécie humana, é uma IdioFormação que pintou espontaneamente – não foi fabricada –neste planeta. Mas qual foi o acontecimento no seio do vivo, no seio das possibilidades de vida, que resultou em IdioFormações como a nossa? Seja qual for o motivo – grande complexidade biológica, ou qualquer outro fenômeno –, no seio mesmo dessas novas formações vivas, no seio mesmo de nosso Primário (autossoma + etossoma), apareceu outra formação ainda mais nova, para além de autossoma e etossoma. O esquisito é que todos os seres vivos têm autossoma e etossoma, mas pinta uma espécie que tem isso tudo e mais alguma coisa, alguma formação que as outras espécies não têm – o que a faz diferir radicalmente das outras. Podemos estudar semelhanças genéticas, etc., mas as outras espécies jamais, até agora pelo menos, deram algum salto genético para incluir a formação que nos produziu. Continuam todas, na melhor das hipóteses, animais superiores, como chamamos nossos primos macacos. Hoje, temos certeza de que essas formações esquisitas como as nossas vieram a funcionar cerebralmente com uma formação mais recente que não está nas outras espécies. É um modo de funcionamento diferente, que não sabemos se pertence ao etossoma, e que chamo de Princípio de Catoptria (do grego katoptron: espelho). Então, esta nossa espécie tem alguma coisa muito louca dentro da cabeça que funciona – quando funciona, pois, às vezes, fica recalcada, não se movimenta – como se fosse um espelho. Não é aquele em que vemos a imagem. Este aí é o chamado especular. O catóptrico funciona como o espelho, e não como a imagem refletida do que está diante do espelho. Se analisarmos a geometria de funcionamento específico de um espelho, veremos que o que quer que se coloque em sua frente, ele vira pelo avesso. Não nos damos conta disto porque ficamos encantados com as imagens, 213

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mas o espelho, qualquer espelho, vira tudo ou parcialmente pelo avesso. Os espelhos que usamos viram parcialmente: se colocamos a mão direita aqui, lá é esquerda, ou seja, virou a luva pelo avesso. Mas é possível conjeturar e produzir, até mesmo em laboratório, espelhos muito mais eficazes, que viram pelo avesso totalmente qualquer coisa que lhes apareça, e não só as imagens como faz o espelho plano que usamos cotidianamente. O Princípio de Catoptria é algo em nossa mente que, quando funciona – pois não funciona sempre, e depois veremos por quê –, diante do que quer que compareça, ele pode achar que é o contrário, ou, pelo menos, pode exigir o contrário. Esta é a nossa loucura: o que quer que apareça para uma IdioFormação como a nossa, em qualquer lugar, tem a possibilidade, a disponibilidade de ela achar exatamente o oposto, seu avesso. Geometricamente, isso funciona como se fosse um ponto situado em uma superfície que tem um lado apenas, como, por exemplo, a banda de Moebius. Na matemática topológica, existem superfícies que não têm duas faces, só têm uma: quando estamos em um lado, corremos, passamos para um suposto outro lado e verificamos que é o mesmo. Isto significa que esta superfície unilátera tem a mesma característica de um espelho. É a brincadeira de Lewis Carroll em Alice através do espelho: se percorro infinitamente uma superfície que é espelho – enquanto espelho: não o vidro, e sim a “ideia” de espelho –, vou chegar ao mesmo outro lado, pois não há outro lado, é o mesmo. Nossa mente funciona assim, por isso ela revira. Nas superfícies que são de um lado só, chamadas uniláteras, ao tomarmos um ponto girando, orientado para um lado, direito, por exemplo, ele passeará e quando chegar ao suposto outro lado, que é o mesmo, estará girando ao contrário. Esta é a mágica, é o que a nossa mente faz. Se estamos funcionando para cá, de repente, aquilo vira ao contrário, não sabemos mais por que estávamos pensando uma coisa e aquilo virou ao contrário: amo tanto aquela pessoa que, de repente, quero matá-la – é o mais frequente...

26. Surgiu, então, um aparelhinho suplementar na estrutura cerebral da espécie das IdioFormações, inclusive a nossa. É essa formação unilátera, que nos permite considerar igualmente e mesmo em equivalência todas as oposi 214

1AR / 2AR / OR: Etologia e Neo-etologia ções. Hoje, está compreendido que nossa mente pode considerar com equivalência toda oposição: ela se perde e está no lado contrário. Basta observar o que acontece em sonhos, em distrações. No começo da obra de Freud, há um texto seu que considero da maior importância por apontar para isto, que é O duplo sentido opositivo das palavras primitivas. Para além dos aparelhos distintivos de todas as linguísticas constituídas, Freud percebeu que, quando vamos chegando a línguas muito próximas de sua emergência, há uma quantidade enorme de palavras que – as mesmas palavras – querem dizer isto e seu oposto. Não tratarei disto agora, mas, como parêntese, quero dizer que faço a suposição, e tem dado certo teoricamente em meu desenvolvimento, de que nosso funcionamento mental – digamos, pré-linguístico – é bífido. Ou seja, todas as palavras têm sentido duplo opositivo, mesmo que não existam essas palavras. Elas comparecem no mundo em oposição porque o mundo é partido, mas nossa mente não é originariamente cindida, ela vai se cindir na relação com as cisões do mundo. Spaltung, dizia Freud. Isto é algo que daqui a pouco estará não apenas comprovado como estará atualizado tecnicamente pelo que chamamos de computação quântica. Assim, para simplificar, para ficar mais brasileirinho, ou mais culturalzinho, chamo de Revirão esse aparelhinho suplementar na estrutura cerebral da espécie das IdioFormações. Se tomarmos qualquer ideia e a levarmos longe demais, se não a estancarmos, ela vai parar justamente do lado oposto. O que costumamos fazer é o que faz um filósofo: ele pensa, pensa e para, pois, se continuar, virará pelo avesso. O Revirão, esse acontecimento no seio do vivo, essa emergência completamente nova, é ele, a existência dessa maquininha, que é responsável pela existência das IdioFormações. Elas têm o Revirão, as outras espécies não têm. Chamo, então, o Revirão, esse funcionamento, a nossa origem, de O Originário. Lembrem-se de que falei do Primário, com autossoma e etossoma: o boneco e seu funcionamento, que também pode ocorrer no animal. Nesta espécie das IdioFormações, tem também o boneco com suas programações, mas tem o Revirão que subverte todas as programações (não sempre com muita facilidade, diga-se). Isto porque essa maquininha em nossa mente subverte as condições que os outros animais têm de só terem 215

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Primário e não terem o Originário. Por isso, fizemos tudo que fizemos, essa loucura que é a espécie humana. O Originário é a verdadeira origem desta espécie enquanto radicalmente diferente das demais de nosso planeta. Então, dentro do Primário, aconteceu alguma coisa que deu origem a esta espécie. Nada cai do céu, esta coisa está sendo estudada seriamente em vários campos e, embora pouco se saiba ainda, um dia vai-se dar conta dela concretamente.

27. Repetindo, dentro do Primário, com autossoma e etossoma, alguma construção nova, alguma formação nova, emergiu que chamo de Originário, o qual tem a competência de revirar – embora, como disse, não fique revirando o tempo todo – o que quer que compareça para ele. Assim, além de nos dar origem, a disponibilidade de exercício do Revirão desloca de tal maneira nossas articulações cerebrais – mesmo aquelas que tenham sido herdadas como etossoma – que, a longo prazo, acaba fazendo emergir outra e mais nova formação ainda, que chamo de O Secundário. Este não é senão a nossa competência de articulação linguageira e de produção cultural. Ou seja, ocorreu dentro de um Primário a emergência de um Originário capaz de revirar qualquer coisa, o qual, no que foi tendo chance de revirar, foi se transformando em nossa estrutura mental – e cerebral mesmo – em algo que chamamos de Secundário, que é: começamos a falar, a produzir uma existência completamente constituída, que não havia in natura, que não havia como artifício espontâneo. Lacan chamava uma parte dessa nova formação que chamo de Secundário de Simbólico. São todas as nossas articulações mentais, linguageiras, intelectuais, etc. Elas são o resultado da subversão das formações primárias pelo Originário, produzindo, secretando o Secundário, essa loucura que é nossa produção infinita de cultura. Temos, então, um Primário, feito de autossoma e etossoma. Nasce nele um Originário, inteiramente subversivo, que, com muita dificuldade, consegue deslocar a estupidez do Primário (pois ele é paralisado e resistente). A formação originária começa a subverter, leva milênios e secreta o Secundário, o qual resulta nisso que esta aí no planeta hoje. Pode ser que em outros lugares do universo existam coisas mais loucas que aqui, mas não acabamos, ainda  216

1AR / 2AR / OR: Etologia e Neo-etologia temos muito para enlouquecer. Por mais interessantes e inteligentes que sejam, os outros animais não têm cultura. Eles são inteligentes, mas inteligência é outra coisa, é capacidade de articulação dentro de limites. Em certos campos de ciência, alguns autores falam em cultura animal, mas o animal jamais produziu cultura. Ele pode ter um etossoma de tal tipo que funciona fazendo coisas que achamos espantosas, pode até aprender uma coisa a mais, no entanto, não passa daquilo, não é um produtor de secundariedades. Sua elasticidade é pequena, ele não revira, não inverte as possibilidades. Inverter as possibilidades é: a espécie humana apareceu e havia noite e dia, ela fez muita maluquice e começou a fazer a noite ficar clara, o dia ficar escuro, inventou a eletricidade, etc. Isto, para reverter o que o artifício espontâneo lhe dava. A espécie quer o contrário e, mediante a formação originária que é sua competência, movimenta o Secundário que dá a volta e vai interferir no espontâneo para transformá-lo a seu favor. Tanto é que estamos sentados em uma sala com luz elétrica, microfone, ar condicionado, roupa, isto é, toda essa maluquice que ainda não vi macaco algum fazer. Aliás, macaco é gente séria. Nós, os hipermacacos, é que não temos programação definitiva. Nas lutas políticas contemporâneas por diferença, por expressão própria, é difícil as pessoas entenderem isso que para um Freud, por exemplo, já estava claro, que esta espécie não tem marcação definitiva, ainda que tenha algumas marcações etológicas. Não temos sentido próprio, não sabemos o que estamos fazendo aqui. Cachorro sabe e cachórra o dia inteiro. Às vezes, somos até cachorro, cavalo, burro, veado, qualquer coisa – não sabemos de antemão o que nós somos.

28. Acontece um fenômeno que era de se esperar. Apesar de termos a emergência do Originário produzindo um Secundário riquíssimo, complicadíssimo, isso não sai funcionando com essa beleza e essa facilidade, pois as formações já oferecidas espontaneamente pelo artifício espontâneo, chamado de natureza, são formações e muito sólidas. Toda formação, como disse, é sintomática, reativa e reacionária, não existe formação gracinha. Espinosa chamava isso de conatus, ou seja, qualquer formação resiste à sua mutação. É o que está na 217

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teoria dos sistemas: todo sistema é resistente – tanto é que ele siste, consiste e resiste. Então, as formações, já que compareceram como formações, insistem em sua forma. São, portanto, formações sintomáticas, reativas, reacionárias e resistentes. Elas resistem a quê, em nosso caso? Ao movimento do Revirão. E, no que resistem, estão recalcando nossa possibilidade de reviramento. Recalcar significa que a coisa quer revirar, mas há uma resistência que a segura. Um recalque é aquilo que evita que algo se desloque: o recalque é uma estupidez, uma paralisia. Tivemos, então, a oportunidade de Revirão, de produção de Secundário, mas há uma fortíssima pressão recalcante do Primário. A possibilidade de modificarmos está mais ou menos opressa, oprimida, pelas formações primárias porque, antes ainda de articular com certa competência uma possibilidade de mudança no Primário, se não articular muito bem, farei de tal maneira que destruo o Primário. O boneco reage, se não, vou matá-lo. Seria bacana se pudesse passar por dentro do fogo, mas o boneco aprende: “Não dá! Queima”. E isto é um recalque. A criança fica encantada e quer colocar a mão no fogo. Se colocar, verá logo aparecer um recalque concreto, não é preciso ninguém lhe dizer. Aliás, é melhor falar antes, recalcar na palavra, se não, ela vai se queimar. O recalque é uma formação mais rígida, mais parada, que evita que as coisas se desloquem. O Primário, então, feito de autossoma e etossoma, não quer mudanças, pois está se defendendo, e coloca logo defesa para sobreviver. Está aí o que chamo de Recalque Primário, que tem uma pressão enorme sobre nós. Porque temos Originário, começamos então a produzir, como Secundário, formações novas, aparelhos simbólicos, culturais que não foram dados, e sim inventados por nossa espécie. Inventamos também aparelhos secundários para nosso uso, para a tentativa de bem-estar, mas esses aparelhos secundários vão se decantando, começam a ser usados e a fundamentar ou constituir o que chamamos de cultura. Nossa cultura se comporta assim e assado, come isto e não aquilo, não faz tais coisas, tais atos são impróprios. A cultura ao lado inventou outro sistema e o achamos esquisito porque pensamos que o nosso é que é o verdadeiro. Quando decantamos culturalmente as formações secundárias, elas começam a imitar as primárias, como se fossem naturais, espontâ 218

1AR / 2AR / OR: Etologia e Neo-etologia neas, mas elas não são espontâneas, e sim Artifícios Industriais, produzidos por nós. Há, portanto, os artifícios espontâneos, que podemos chamar de natureza, se quisermos; depois, aparece o Originário, o qual produz o Secundário, que, por sua vez, produz formações sintomáticas, que começamos a usar e elas começam a nos oprimir, igualzinho como se elas fossem um animal. Ou seja, é mais recalque: o pobrezinho do Originário, que já tem um monte de recalques primários, vai agora sofrer os recalques secundários. Vejam que, para dar uma virada, é um esforço enorme. E quando alguém dá uma virada, ficamos desconfiadíssimos, pensamos que é doido, que é melhor colocá-lo numa fogueira, pois pode estragar a espécie toda. Vejam que tristeza: passamos do etológico dos animais, dos comportamentos espontâneos dados por natureza, ao que chamo de Neo-etológico de nossa espécie. Isto é terrível, pois, além da pressão recalcante do etológico, de nossa parte animal dada, mediante o Secundário constituímos cultura e ficamos apegados a ela como sintomas: os sintomas começam a nos recalcar e viramos um animal de espécie nova. Não ficamos na disponibilidade de aceitar ou incluir qualquer possibilidade, viramos um bicho com nome. São neo-animais que têm nome e são capazes de fazer guerra, matar um ao outro para saber qual animal está certo. Dado, então, que hoje as coisas estão se aproximando por pressão tecnológica, começam a aparecer diferenças, conflitos, guerras terríveis, entre neo-espécies humanas. Do ponto de vista secundário, são novas espécies. A chamada humanidade é tudo igual, é da mesma espécie, esse negócio de raça é besteira, uma porcariazinha diferente que resulta numa ou noutra cor. No entanto, vem o Secundário que produz o quê? Isso que chamamos de cultura que, na verdade, são novas espécies do ponto de vista do Secundário. E querem funcionar como espécies diferentes. Não podem suportar a presença do diferente, pois este não pode ser igual a eles. Tribos muito primitivas se chamam de gente, as outras não o são. É igualzinho a como funciona a luta de religiões, de culturas, de Estados. Portanto, sem referência à possibilidade do Originário de deslocar as formações secundárias, e até de deslocar as formações primárias mediante construções tecnológicas, cientificas, viramos um animal completo. No atual 219

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momento da história desta espécie, estamos numa situação difícil, pois está havendo uma refrega, uma aproximação entre esses animais diferentes. Eles se estranham e querem guerrear, ao invés de achar engraçado e ver que são diferentes também. Não pensam: “Quem sabe, a gente não come isso também”. Isto seria o que chamo de Heterofagia, lembrando a antropofagia de Oswald. Ao contrário, começa logo a aparecer o Irch! e o vômito. As novas espécies secundárias são constituídas como formações, como organizações sintomáticas, que são apenas composições ideológicas. Vão aparecendo composições ideológicas, começo a crer que aquilo é a verdade para todos, que todos deveriam se submeter à verdade da minha besteira, e passo a querer impor minha besteira a todos os outros. Como os outros não querem, então vamos à guerra. Era bom a gente saber por quê. Então, pelo fato de tomarmos como referência as formações recalcantes do Secundário, o que acontece espontaneamente são as guerras. Este é um dos motivos de as pessoas não estarem sabendo resolver os problemas contemporâneos de conflito. Precisamos entender que, apesar dos discursos de bonzice, de democracia, de amores religiosos, o mais direto de nossa espécie é o racismo e a xenofobia. É por aí que começamos, não vamos nos enganar. Como há uma enorme pressão recalcante do Primário e do Secundário, e como as pessoas não fazem análise, qualquer tipo de análise, para poderem sair desse fechamento, é preciso lembrar que, quando encontramos o diferente, a primeira tendência é racismo e xenofobia. Se não houver referência a um aparelho dissolvente dessas formações sintomáticas – vamos dar um nome mais conhecido: dessa neurose que vivemos cotidianamente –, a primeira abordagem será conflituosa. Não saímos aceitando o diferente. Primeiro, o rejeitamos. Assim, se não tiver a noção de que minha fonte de recalque me empurra para esse tipo de situação e de que preciso me referenciar à minha origem, que é de disponibilidade e de acrescentamento, a guerra será para sempre. Espero que tenha ficado um pouco clara a introdução que fiz dos conceitos de Primário, Secundário e Originário para, da próxima vez, eu poder mostrar algo – que, aliás, está um pouco velho, já estou cansado de repetir essa besteira da década de 1990 – que introduzi como ideia de um processo não só  220

1AR / 2AR / OR: Etologia e Neo-etologia pessoal, de cada um, como também de um processo histórico baseado no pensamento da psicanálise enquanto entendimento de sintomas, e que pode servir para compreendermos a ordem conflitual de nosso momento histórico. Desenvolverei tudo que apresentei para mostrar como as formações absolutamente sintomáticas de Primário e Secundário, que não conseguem muita referência no Originário, têm um processamento histórico na vida de cada um e na história do mundo. Esta é a leitura que esta psicanálise pode fazer. Nosso tratamento é sintomal, e não sociológico ou político. Há que entender o que está acontecendo pelo entendimento das formações sintomáticas. Da próxima vez, então, vamos tratar de nosso périplo histórico, tanto pessoal quanto da espécie, e do presente conturbado que atravessamos. Tentaremos nos orientar um pouco sobre o que acontece hoje entre os humanos neste Planeta dos Macacos Sem Sentido.

29. • P – Por que, em nossos diálogos mais acalorados, queremos a tal razão? E quando damos a razão ao outro, ele não sabe o que fazer com ela, não consegue mais conversar. Por uma razão simples: todo mundo tem razão, quem não tem razão? Se embarcamos na sequência do pensamento da pessoa, percebemos que ela tem razão. O mito de que a razão universaliza, é só mito. Como a razão é fracionária, tomamos certo fluxo de pensamento, certa onda de racionalidade e temos razão. Outro toma outra onda, e também tem razão. Havia um sábio chinês que era rei. Numa audiência, alguém lhe conta certa situação e diz que lá estava para solicitar tal coisa porque achava que tinha razão. O rei diz que ele tem toda a razão. Mas outro que também lá estava diz que pensa o contrário porque está em conflito com o primeiro. O rei diz que ele tem toda razão. Então, alguém diz: “Como assim? Um fala uma coisa, outro fala o contrário e você diz que todos têm razão?” E o rei diz: “Você também tem razão”. Quem não tem razão? O mito da racionalidade universal é uma besteira dos Iluminismos. Compramos um sintoma de determinada postulação teórica ou filosófica e queremos que funcione, mas só funciona para quem acredita. Não há motivo algum para haver uma função universal. Titular de Universal é vontade de imposição. Basta lembrar da diatribe sobre os universais, na Idade 221

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Média, em que ficavam lutando para, finalmente, terem universais. Onde? Não há universais. O que temos são coisas muito frequentes. O mundo tem certas frequências que nos dão a impressão de que ele é constante. Então, se oferecemos a razão ao outro, ele se perde. Vai fazer o quê com a razão que ele tem e não sabe manejar como um “universal” para nos derrubar? Somos sábios ao dizer que o outro tem razão, pois ele se perde, não tem o que fazer com isso. E mais, se o diálogo continuar dando razão ao outro, se ele começar a se aproveitar dessa razão e for em frente, se for muito longe, ele se perderá e, de repente, vai parar do nosso lado. Só não nos perdemos porque paramos. Se sairmos desta universidade em que estamos e continuarmos andando, chegaremos ao lado oposto, mas, se continuarmos, chegaremos a esta universidade de novo, não é? O mito da racionalidade universal que há séculos vivemos no Ocidente é uma bobagem. Razão serve para alguma coisa? Sim. No meio de campo, posso utilizá-la para muitas coisas, mas é totalitarismo e vontade de poder supor que terei um princípio de universalidade que derrubará toda e qualquer outra posição. • P – Nossa mente como espelho é o que nos possibilita dizer sim e não? Apesar de todas as decantações sintomáticas, recalcantes, do Primário e do Secundário, o que existe de nosso especifico é podermos dizer não em última instância. É a capacidade de dizer não. Se me aparece determinada coisa, posso dizer que não é isso que quero, mas exatamente o contrário. O sim é entrar em acordo. Já quando digo não, começo a criar. “Não é este o país que quero para mim!” – é o que o pessoal está dizendo nas ruas atualmente. Mas o que eles querem? A esquerda, tão viciada em ideologia, fica falando que não sabe o que eles querem, pois não consegue entender suas demandas. Eles querem tantas coisas diferentes que não cabem no cofrinho da esquerda. • P – O recalque, então, como força de fixar, de estacionar, de impedir que se coloque a mão no fogo, por exemplo, é para garantir a sobrevivência do boneco? Um recalque é haver umas formações do lado de cá, primárias, p. ex., que não suportam o fogo e que, enquanto formações, recalcam as formações  222

1AR / 2AR / OR: Etologia e Neo-etologia que tenho de vontade, de tesão, de botar a mão no fogo. Um recalque não surge do nada, tem que haver um bando de formações policiando e dizendo que não se pode, que não se deve, seja pelo motivo que for. Esta é, aliás, a função da polícia. • P – Mas se Haver deseja não-Haver, por que há essa resistência? É preciso esclarecer isto dentro do quadro que apresento. Poderíamos pensar que, se a Lei é Haver desejo de não-Haver, por que não se vai logo para o não-Haver? Porque o não-Haver não há. Todo Tesão é de Impossível. Por isso, a gente transa, transa, e não goza direito. Dá para tirar uma casquinha, mas não era bem aquilo que queríamos. Haver deseja não-Haver é uma Lei terrível, pois pede o Impossível. Como não há o não-Haver, então há uma Quebra de Simetria: a coisa se esfacela em particularidades, que são fechadas, que são cacos. O caco não cresce para lado algum, ele fica fixado. As formações, então, por serem estúpidas e paralisadas, recalcam as possibilidades de movimento. Basta ver como funcionam ciência e tecnologia. O cientista tem que fazer um enorme esforço teórico, depois laboratorial e tecnológico, para nos dar um antibiótico, por exemplo. É um percurso que se depara com algo que vem espontaneamente do Primário. E não adianta rezar ou fazer magia, pois não vai passar. Era, aliás, o princípio da magia no começo da espécie. Começamos fazendo gestos, a xingar, a fazer qualquer coisa para ver se o micróbio vai embora, mas ele não vai. Aí, damos uma volta e começamos a pensar como aquilo funciona. Este é um percurso secundário que vira uma técnica, uma tecnologia, para intervir no Recalque Primário e o desfazer. • P – O recalque é sempre construído? Não. É primário também. • P – Então, já se nasce recalcado? Esta é a desgraça. Um bebê humano é aquele bonequinho que tem Primário, com autossoma e etossoma, e que também tem a condição de Revirão. No entanto, se sair revirando, ele é um bicho doido, ele morre. Por que ficamos tomando conta das crianças o tempo todo? Porque, quando algo 223

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bate em sua competência de reviramento, elas não querem saber de nada, só querem meter a mão na tomada, têm o tesão de enfiar o dedo e o resto que se dane. Mas elas já nascem com o recalque, pois há coisas que elas não fazem, que colocam na boca e cospem. Há coisas em que o recalque é imediato, mas quanto a uma produção tão nova, tão tecnológica quanto a eletricidade, elas não estão pensando no elétrico, e sim no buraquinho que viram. Entretanto, o Primário lá está para recalcar. Se elas não recalcam porque alguém interveio dizendo para tirarem a mão, elas vão botar a mão, tomar um choque e ficar traumatizadas. Vejam que o chamado trauma pode ser por um lado ou por outro. É de trauma em trauma que vamos nos recalcando. Ou o fogo nos queimou, e vamos ficar apavorados sem poder ver fogo para o resto da vida a ponto de irmos ao analista e ele ter que dizer que podemos dominar o fogo, que podemos colocá-lo no fogão... Ou alguém disse para tirarmos a mão, que não pode, e paramos por acreditar que o outro nos está ameaçando feio. É difícil entender a dinâmica das formações recalcantes, pois, para haver um recalque, é preciso haver algumas formações que embargam. Sempre que estamos diante de um recalque, devemos procurar as formações que lá estão recalcando. E é fundamental numa análise saber quais formações estão impedindo alguém de conseguir algo que, muitas vezes, é tão simples. Frequentemente, são formações enormes que têm que ser demolidas anos a fio. As pessoas reclamam de a psicanálise ser tão longa, tão demorada, mas elas chegam com quarenta anos e querem resolver tudo em dez meses. São quarenta anos de estupidez – e não querem ficar mais quarenta anos para tirar a estupidez. Somos fundamentalmente estúpidos. Se não fizermos um esforço constante de dissolução, a estupidez acaba com a gente, paralisamos. Isto é que é uma neurose. Aliás, não gosto mais deste termo, pois nada tem a ver com nervo e nomes antigos, do século XIX, como psicose também, só prejudicam o entendimento. Chamo, então, de Morfose Estacionária: a pessoa é paralisada, não consegue mover coisas que estão atrapalhando seu movimento na vida. O aparelho que estou expondo aqui é um entendimento dinâmico de lidar com o que quer que haja no sentido de compreensão das formações. É  224

1AR / 2AR / OR: Etologia e Neo-etologia preciso entender a dinâmica das formações, quaisquer que sejam, primárias, secundárias e a originária. Se um cientista conseguiu condições de cura de determinada doença antes incurável, ele não as conseguiu porque ficou discutindo com as pessoas. O processo não é subjetivo, não há sujeito algum aí. Ele prestou atenção em como funcionam as formações para intervir no lugar certo e mudar aquilo. Este é o pensamento que resolve em qualquer lugar do mundo. Viemos de um século XVII completamente idiota, com a ideia de sujeito e coisas parecidas, que paralisaram o pensamento. Isto, a ponto de, no século XX, o pessoal ainda estar usando este termo. Lacan fez um grande esforço para conceituar de maneira que o sujeito não fosse coisa alguma, mas continuou com a palavra. Não falamos diretamente com pessoas, falamos com formações. Muitas vezes, dizemos que “fulano não presta”... Há, sim, gente que não presta mesmo, chama-se: psicopata. Mas, às vezes, não é fulano que não presta, ele tem uma formação que não presta, as outras são boas. Se pararmos de considerar a pessoa e considerarmos as formações, poderemos pensar, por exemplo, que fulano é trinta por cento péssimo, mas tem setenta por cento ótimo. É uma maneira de pensar radicalmente outra que o século XXI está exigindo. Se não, não sairemos dessa. • P – Não é curioso o fato de o papa Francisco, que esteve aqui há pouco, declarar em rede mundial que precisaria de um psiquiatra se morasse no morro Santa Marta? É uma postura decente. É dizer: sou igualzinho aos outros, um doido varrido. Se me puserem sozinho, eu piro. Acho isto perfeitamente normal, os outros que se dizem normais é que são mentirosos. O irmãozinho dele anterior, por exemplo... 13/AGO

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5. O Creodo Antrópico 30. Espero que esta seja a última vez que eu fale sobre este assunto. Ele é antigo, data da década de 90 do século passado. Já foi reapresentado em 1997 nada mais nada menos do que num auditório do Palácio do Planalto, em Brasília, ao tempo do Fernando Henrique. O Presidente reunira alguns ditos intelectuais brasileiros para arriscarem um cenário para 2020. Depois, repeti tantas vezes, embora hoje tenha coisas a acrescentar sobre o que então chamei Creodo Antrópico1. Trata-se de um esquema da fundamentação sintomal que me parece servir para explicar a sequência do périplo histórico, tanto o de nossa espécie, quanto o pessoal de cada um. No presente conturbado que atravessamos talvez sirva para nos orientar um pouco sobre o que acontece hojendia entre os humanos neste Planeta dos Macacos Sem Sentido. Certamente notaram que repeti demais nestes nossos encontros as ideias de Primário, Secundário e Originário. Preciso que estes conceitos estejam bem entendidos justamente porque são eles que constituem a Tópica do Inconsciente que desenhei para a Nova Psicanálise. Certamente também se lembram das tópicas anteriores. As duas de Freud: Consciente, Pré-consciente e Inconsciente, que é a primeira; e Id, Ego e Superego, a segunda. Depois, a tópica de Lacan: Real, Simbólico e Imaginário. Elas foram de grande serventia para os sistemas desses dois precursores, mas, como não servem para meu sistema, tive que propor a nova tópica que lhes apresentei da vez anterior (Primário, Secundário e Originário). Voltemos ao Creodo Antrópico. Cre-odo é um termo tirado da língua grega que é importante na Teoria das Catástrofes, do matemático francês René Thom: cre, obrigatório, necessário; odos, caminho, percurso. Portanto, caminho obrigatório, percurso necessário. Por exemplo, o da água que desce da montanha. Dadas a formação de nosso planeta e a distribuição orográfica de seus relevos, se jogarmos água de cima, ela descerá, não há outro 1

Apresentado inicialmente no Seminário de 1994, Velut Luna: A Clínica Geral da Nova Psicanálise (Rio de Janeiro: Novamente Editora, 2008, 2ed).

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caminho, nunca a vimos subir espontaneamente. Assim, sempre que é dada uma formação que configura certa situação, algo ali acontece que este acontecimento fica premido. É como se fosse um sintoma que se repete necessariamente e por um caminho necessário. Quando a situação não é neutra, não há como escolher o caminho, pois, se a situação tem algum desenho, algum caminho se obriga. É bom lembrar que o caminho do Haver (=Haver desejo de não-Haver) é um caminho obrigatório, assim como no Pensamento Zen, o Tao é O Caminho, aliás obrigatório: ninguém escapa do Caminho. Propus, então, o que chamo Creodo Antrópico como o caminho obrigatório da sequência sintomática de nossa espécie, bem como, semelhantemente, o de qualquer tipo de IdioFormação. Lembrem-se de que IdioFormação é qualquer espécie, em qualquer lugar do universo, seja qual for sua origem – de carbono ou não, descendente de macaco ou do dinossauro –, que tenha a condição nossa de reviramento e que, portanto, seja capaz de produzir Secundário. Em nosso caso, tem as características de mamíferos, de primatas, aos quais aconteceu o fenômeno do Revirão. Por isso mesmo, digo que é um Creodo Antrópico, típico de nossa espécie. Qualquer espécie de IdioFormação, em qualquer lugar do planeta, se o teorema que estou trazendo estiver certo, passaria pela mesma situação de encaminhamento. Em outros lugares, elas teriam, por exemplo, um Primário de lata, de matéria plástica, etc., que, se revira, produz o Secundário – e aí temos um colega na mesma situação que nós.

31. Então, dada a fortíssima pressão de formações de recalques – as formações primárias e secundárias, suas decantações, são sempre recalcantes de outras possibilidades – que sofrem tanto a espécie quanto cada um de nós, o caminho de nossa ordenação sintomática, obrigatória (que não é o mesmo que universal) é o seguinte: Primário → Secundário → Originário. Como disse da vez anterior, o que emerge espontaneamente na dita natureza é o Primário. Acontece dentro dele um fenômeno excepcional e por isso brota o Originário. Uma vez que brota o Originário, o Secundário  228

O Creodo Antrópico é produzido pela relação do Originário com o Primário. Vejam que a ordem não parece a mesma daquela que acabei de colocar. Não parece porque, depois de tudo constituído, o Primário é um conjunto enorme – digamos que “infinitamente” grande – de formações. Se toda formação, seja qual for, é necessariamente recalcante, por querer se repetir enquanto tal, ela se parece com uma neurose. É como o que dizem na teoria dos sistemas: todo sistema insiste em sistir. Ou como dizia nosso velho amigo Espinosa: é um conatus – uma exigência de sustentação daquela formação. As formações não querem deixar de ser as formações que, por acaso, se constituíram. Em seguida, então, como apareceu o Originário, surge o Secundário, que é nosso software: somos capazes de inventar qualquer tipo de Prótese, como chamo. Nossa espécie é doidinha, começa a proliferar no Secundário e a inventar próteses para si mesma: cadeira, luz, telefone, avião, dente... Uma dessas próteses, e apenas uma, é a chamada linguagem, que é o que constitui as várias línguas. Vivemos um século passado que fazia a suposição de que era a linguagem que produzia tudo. Este sonho acabou. É a competência de fazer próteses que faz inclusive, depois de milênios de próteses, aparecer uma língua, por mais primitiva que seja. Ela é uma prótese como outra qualquer. Inventamos linguagem e a própria linguagem falada, que são próteses. Vários antropólogos demonstram isto. Por exemplo, André Leroi-Gourhan, que foi diretor do Musée de l’Homme, em Paris, com sua observação da produção humana de tecnologia desde a pré-história. Ou seja, junto com esse negócio de falar veio muita prótese. São as próteses produzidas pelo Secundário porque há o Originário. Como disse, qualquer formação é sintoma. Conseguimos revirar esse sintoma ou não, deslocá-lo ou não. Leva milênios na história para deslocar um sintomazinho ideológico. A sequência sintomática é esta – Primário → Secundário → Originário – porque o Primário foi dado de graça, foi espontaneamente produzido. Mediante o Originário, apareceu o Secundário, que não é senão uma imitação do próprio Primário, cujos modos de composição e de articulação foram parar dentro do Secundário como competência protética, como língua, como tudo isso que conhecemos. Em última instância, na 229

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verdade, quem fica na situação de desembaraço da ordem sintomática é o Originário. Sempre que conseguimos lutar contra, ou driblar, o Primário e o Secundário e fazer uma nova prótese, uma nova produção, tivemos que apelar para a competência de Revirão, que é a competência do Originário. Isto porque ele é neutro. Para ele, está valendo tudo, não tem pegas ou definições. Ele é nossa máquina fundamental. Esta espécie é – especificamente, de verdade – a espécie do Revirão. Mas como é também um bicho que, de saída, para sobreviver, tem que fazer todas as concessões ao Primário, e depois, tem que ter a chance, lentamente, de inventar o Secundário ou de aprendê-lo já pronto, geralmente fica funcionando como qualquer neurótico, repetindo formações do Primário ou do Secundário. Há gente que morre sem revirar, há outros que se viram bastante. Faço, pois, a suposição – não de araque, mas pelo que se pode estudar da história, das produções, da performance genérica da humanidade – de que, dado que a espécie dita Humana apareceu no regime do Primário, seu espontâneo, o boneco, seja uma produção do Primário. Isto, sem intervenção de ninguém. Alguns acreditam que haja Alguém lá em cima fazendo mágica, mas aqui, na base da ciência, isso surgiu espontaneamente neste universo. Provavelmente em outros, deve ter surgido algo parecido. Então, dado o espontâneo que vem como Primário, a primeira referência desta espécie – estou falando de nós, humanos – não pode ter sido senão o Primário funcionando, fazendo tudo quanto é recalque, limitando esse bicho a suas competências mínimas, quase como um animal. Só que, como brotou essa coisa chamada Originário, lentamente, de vez em quando, ele começou a enlouquecer, a inventar machado, barco, uns galhos para morar embaixo... Depois de milênios e milênios, ele inventa uns sons esquisitos para falar com o outro, vai distinguindo esses sons, produzindo uma língua e chega à loucura quase radical que vivemos hoje. Chega à proliferação espantosa de materiais novos criados pela evolução do Secundário. Ou seja, aproveitou-se da disponibilidade do Secundário, que é nosso, e do espontâneo, que é o que a natureza oferece.

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O Creodo Antrópico 32. Do ponto de vista de nossa existência no planeta, esse quase-bicho que, pressionado pela loucura dos reviramentos começa a inventar-se como gente, não tinha outra referência senão o Primário. Então, se, em qualquer língua primitiva que tivesse, ele se perguntasse quem sou eu – quem sou eu dentro de meu grupo, de minha sociedade?, por exemplo –, ele só teria uma maneira de procurar sua origem. Aquela óbvia: sabemos que ele estava dentro da barriga de uma fêmea e foi parido. Todos ali ficavam observando o nascimento e marcando o bichinho novo dentro da ordem materna. Ele, portanto, não tinha saída senão ver-se como alguém que é o filho da mãe. Como ninguém fazia ideia de que era preciso copular para fazer neném, a mãe certamente devia parir todo ano e os filhos eram da mãe. Na melhor das hipóteses, se já tivessem inventado os deuses, os filhos seriam de algum Deus junto com a mãe. Ela era uma espécie de Virgem Maria originária. A referência da Mãe era o status de qualquer pessoa. Já era uma pessoa, portanto. Se tem Primário, Secundário e Originário é uma pessoa, qualquer que seja o tipo. Chamo, então, o momento inaugural da espécie como produtora de próteses, de língua, de organização social, de Primeiro Império. E, dada a situação histórica que conhecemos mediante as várias áreas de estudo e mesmo de ficção, chamo esse Primeiro Império, do Primário, de Império d’Amãe. Coloco numa palavra só para marcar a situação imperial. Este Império d’Amãe nunca deve ter sido um matriarcado. A suposição mais frequente entre os antropólogos é de que nunca houve matriarcado. O que há, em alguns povos bem primitivos, é o sistema matrilinear: a pessoa se nomeia como descendente da linha materna. Isto ocorre num período tardio, pois nesse momento inicial, e durante um longo período, cada um diz: Eu sou o filho da mãe. Os machos dominavam tudo e certamente deixavam os filhos para a mãe cuidar. É como os elefantes que deixam as fêmeas com os filhos, vão embora e voltam somente para mandar... para mandar brasa, como se diz. Então, temos o Primeiro Império, o Império d’Amãe, aquele cuja referência é estritamente o Primário. A única referência que a pessoa tem é que ela veio do Primário, mas já consegue articular coisas. Entretanto, ao se perguntar quem é eu, a resposta é: eu é o filho da mãe. 231

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Primário

1º. Império Amãe

33. Passaram-se milênios e as próteses foram se produzindo lentamente até que chegou um momento importante na história da espécie – e supomos que aconteça do mesmo jeito a qualquer espécie que tenha Primário, Secundário e Originário – em que, de tanto utilizar o Secundário, sem se dar conta, inconscientemente, ela começa a prestar atenção ao Secundário como sendo um modelo possível de organização de seu mundo. Ao fazer isto, descobre que pode também começar a organizar as coisas pelo Secundário e não mais apenas pelo Primário. O Secundário, então, vai lentamente crescendo e toma a hegemonia de um modo tal que os antropólogos, sobretudo aqueles do estruturalismo como o Doutor Lévi-Strauss, acham esse momento tão importante que consideram ser a passagem de natureza a cultura. Considero isto, hoje, uma tolice do século XX, mas naquele momento foi importante. O que houve foi a passagem da referência do Primário ao Secundário, que é algo que não acontece de repente. Não é revolução, e sim uma lenta evolução: o Primário vai se enriquecendo de Secundário, este vai tomando a hegemonia e, um dia, tem – ou não – a hegemonia total. O que acontece aí no meio? Antes ainda dessa hegemonia, fica-se perdido entre a referência primária, que é insistente e importante, e a emergente referência secundária. Nesse momento surge a ideia, mesmo o reconhecimento, de que há Pai. Ou seja, Eu já não é mais só o filho da mãe. Quando os homens começam a criar propriedades, alguma prótese é produzida para se descobrir de quem se é o filho. Descobre-se que é transando que se faz filho, o qual é, então, o filho de tal homem com tal mulher. Isto foi aprendido na produção do Neolítico, quando começaram a observar os animais que  232

O Creodo Antrópico antes criavam meio soltos e perceber que podiam isolá-los e fazer linhagens de produção de gado. Para tanto, deviam separar as fêmeas e escolher qual macho iria copular com elas. O mesmo, pensaram eles, aconteceria com nossa espécie. Assim, para saber que o filho é de tal homem, bastava aprisionar as mulheres, não deixar que transassem com outros que não ele. Existe, pois, a ideia de que, mesmo primariamente, há Pai. Ainda não havia a ideia de genética, mas já era possível observar um aparelho biológico que dava a impressão de que o filho resultava da cópula de tal macho com tal fêmea. É claro que sempre houve o vizinho que pulava a cerca, pois, literalmente, os bichos também pulavam a cerca. Como passaram a tomar conta direitinho das fêmeas, ficaram com a impressão de que o filho era também de tal macho. O que importa é que a referência desse indivíduo biológico constituído primariamente começa a deixar de ser apenas a Mãe e passa a ser o Pai. O Pai só pôde aparecer por uma intervenção do Secundário no Primário, isto é, por uma tecnologia que só foi inventada porque importava o Originário para secundariamente analisar e produzir uma prótese. Os animais não fazem isto por não terem Originário e, consequentemente, não terem Secundário. Aparece, então, o Segundo Império ou o Império d’Opai:

Primário

1º. Império Amãe

Secundário

2º. Império Opai

Foi um Império difícil e turbulento, pois a referência ainda era partida. O Primeiro Império deve ter demorado e ter sido mais difícil de modificar por ter uma referência única e dominante. O Segundo não tem uma referência única e nem mesmo dominante. Por isso, é um Império que levou milênios também para se implantar. Nele, cada um se referia ao Secundário e ao Primário. Tanto é que a ideia de Pai só apareceu consti233

Zig / Jac : Mag

tuída a partir de um aparelho tecnológico capaz de dizer que, no Primário, aquele tal era o pai. É um Império partido entre duas referências, muito turbulento, que consegue inventar coisas incríveis, mas fica esgarçado, ora puxando para cá, ora para lá. É, por exemplo, o momento em que se inventam diversos deuses, todos partidos entre Primário e Secundário. Em nossa cultura greco-judeu-cristã, o caso típico são os judeus. O Deus dos judeus não é estritamente secundário, ele tem aparências humanas e até carnais. É, aliás, uma confusão dos diabos. Isto, mesmo sendo o Segundo Império um passo gigantesco: inventaram o pai e, no caso dos judeus, esse pai deixando de ser distributivo por várias figurações e sendo único. A invenção do monoteísmo é algo de gênio: “Vamos fazer de conta que há um Pai!” – mas ele ainda está meio, perdido entre Primário e Secundário. Basta ler a história, os textos religiosos e literários, para imaginar a confusão entre o carnal e o espiritual que foram esses milênios todos. Nasce aí a bobagem que foi campeã no século XVII com o Doutor Descartes de achar que espírito e matéria são separados. Isto porque a referência é dupla: 1Ar e 2Ar.

34. O Segundo Império cresce, então, literária e historicamente até chegar um momento que é parecido – se não for herdeiro dela – com o que chamam Era Axial, em que, entre os anos 800 e 200 antes da era comum, surgiram pessoas como Confúcio, Buda, Zaratustra, e começa a brotar, em vários pontos do planeta, a ideia de que minha referência precisa deixar de ser partida entre Primário e Secundário e passar a ser sempre secundária. Isto porque nada mais próximo da espécie do que o Secundário, já que o essencial é o Originário e o Primário é dado para qualquer animal. Passa, então, esse longo período de referência entre Primário e Secundário e aparece a ideia de que a referência desta espécie é secundária. O Primário é acontecimento espontâneo, mas somos, como diziam no século passado, os seres falantes, somos os seres pensantes, artistas que produzem próteses – esta é a nossa referência –, e não um mero animal. Depois, então, de milênios perdidos entre o espírito e a carne, começa uma corrente que diz para passarmos a hegemonia ao Secundário puro, pois ele é que rege o resto.  234

O Creodo Antrópico O Primário continua lá, os vícios do Primeiro e do Segundo Impérios permanecem por baixo, sempre atrapalhando, pois não se mata um sintoma com facilidade, ou melhor, sintoma nunca morre, mas vai instituir-se uma ordem cultural cuja hegemonia de referência é o Secundário. É o que acontece no que chamo de Terceiro Império, o Império d’Ofilho. Vejam que isso está na história das religiões. Tiraram a mãe, mas a estou colocando de novo. Ela estava escondida, tão recalcada que somente no século XII é que o cristianismo inventou a Virgem Maria. Em outra cultura já havia Isis. Era preciso recalcar a mãe para poder inventar o Pai para progredir e afastar aquele Primário da mãe. A mãe só existe no Primário. Depois que existe o Pai é que ela se torna a mulher do Pai no Secundário: a senhora fulana, a madame fulana. Antes disso, era a mãe, mais nada, quase um bicho. Quando o Império era do Pai, cada pai tinha pátrio poder, comando e até direito de vida e morte sobre os filhos. Foram, então, percebendo que havia muito pai. Isso é tomado pelo lado Secundário e o Pai vira uma coisa abstrata, do Secundário. Aí inventam a ideia de um único Pai, que não está nem aqui, está no céu, como foi o caso no cristianismo (que é uma das – não foi a única – geniais invenções do Terceiro Império no Ocidente). Trata-se de uma ideia abstrata de Pai como símbolo. Um Pai Simbólico resulta de entenderem que a paternidade é genérica, é de todos os pais. Cria-se a ideia de um Pai abstrato que é o pai de todos: “Somos todos da humanidade, então temos um Pai só, que está no céu”. É esse o grande golpe do cristianismo: todos somos irmãos. Antes não era assim, o filho do outro praticamente, potencialmente, diretamente, era um inimigo, pois podia tentar me matar, tomar minhas terras, minhas mulheres, meu gado... E junto com a ideia do Terceiro Império vêm aquelas de amai-vos uns aos outros, de amor ao próximo. Isto porque o Pai é um só. Inventou-se, pois, um pai abstrato e simbólico que, sendo o Pai de todos, faz de todos filhos do mesmo pai, portanto irmãos. O Terceiro Império tem uma vantagem enorme sobre o Segundo. Como no Primeiro, sua hegemonia é sozinha, não é dividida em sua construção como sintoma cultural:

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Zig / Jac : Mag



Primário



1º. Império



Amãe

Secundário

2º. Império

3º. Império

Opai

Ofilho

Mas nunca os outros Impérios desaparecem. Por isso, quando lemos a história, a antropologia, encontramos uma confusão. A hegemonia é do Secundário, de Terceiro Império, mas, por baixo, estão vigendo os sintomas antigos, sempre retornando. Entre nós, o cristianismo foi uma grande invenção, mas acho que podia ter sido melhor. Mediante minhas leituras de História, faço a suposição – mera suposição – de que, se não tivessem assassinado o pobrezinho do Caio Julio César, teríamos um Terceiro Império sem religião, que é o que ele estava tentando inventar. Mas o mesmo império romano que tinha estrutura de Segundo Império se tornou hegemônico no planeta. E logo que apareceu pela via que deu, que era a dos cristãos, a ideia de Terceiro Império e começou a colar e ficar mais dominante, não foi senão o Imperador romano quem faturou. Constantino faturou a ideia de Terceiro Império junto com aqueles que a estavam preconizando, que eram os Cristãos. Ele teve uma visão, viu coisas, fez o diabo para transformar o império romano em império cristão. Quando se torna Terceiro Império mediante o imperador assumindo o cristianismo, a coisa vai indo de tal modo que o cristianismo toma conta do que sobrou, dos cacos do império romano e se torna o Império do Vaticano. Até hoje, está lá o Chicão que não nos deixa mentir. Esse império está tropeçando, fazendo um esforço danado para sobreviver, mas não vai embora com facilidade. Vejam que o Terceiro Império impõe de tal maneira a pressão do Secundário que toma uma força extrema. Basta perceber, em nosso caso de Ocidente – houve também o império romano oriental e o império russo –, que essa mentalidade foi hegemônica e dominante por milênios, tinha o poder absoluto. Basta acompanhar a história do cristianismo para ver que quem não pensasse como ele era posto na fogueira. Não se podia, por exemplo, fazer ciência sem Deus. A hegemonia de Terceiro Império é brutal. Quem não acei 236

O Creodo Antrópico tasse não era filho de Deus, era filho da... vida, um herege. Não era aquele que não acreditava, e sim aquele que não reconhecia que era filho de Deus. Todos que estão aqui agora passaram pelo Terceiro Império, não pelo rigor absoluto de Idade Média, etc., mas ele está aí, é visível. O século XX – que acabou mais ou menos em 1980, não se deixou o século chegar ao fim do calendário – constitui os últimos estertores do Terceiro Império, das últimas construções que ainda queriam ser estritamente simbólicas, estritamente referidas ao Secundário, seja no campo da religião, das ciências, da filosofia e das artes. É um século que fez coisas incríveis, todas submetidas à ideia de Terceiro Império. No final do século XX, então, em 1980, morre o século, mas não o Terceiro Império, que está ainda atazanando a gente e vai durar muito. Só que agora ele está, tal qual os outros, como rescaldo sintomático do que aconteceu no século XX, que, dos pontos de vista religioso, artístico e científico é forte demais para ser largado de repente. Mas a coisa foi de tal maneira que tudo começou a explodir. A referência estrita ao Secundário, ou seja, a formações sintomáticas bem construídas – que é o que o Secundário produz: próteses secundárias, ideologias, filosofias, ciências –, trouxe sintomas vigorosos e, às vezes, eficazes, dos quais fica difícil passar por cima. Acontece, então, que os próprios eventos na produção de próteses, sejam elas quais forem – ficamos sonhando que foi apenas a tecnologia, a internet, mas não foi –, por emergirem e começarem a ser conhecidos por cada vez mais pessoas, uma vez cruzadas as suas ideias, começaram a mostrar que o Secundário sozinho não se aguenta, que ele é quase tão sintomático quanto o Primário.

35. A partir do momento em que deixamos de seguir um único pensamento, começamos a estudar e vemos que um filósofo diz uma coisa, outro diz outra, a ciência diz isso, um autor diz que só é ciência se disser aquiloutro, e vira uma tal Zorra Comunicacional que as formações antes apresentadas como fundamentos de certas ideias, de certos ideologemas, começam a ser verificadas como relativas, sem a menor condição de serem universais ou de quererem 237

Zig / Jac : Mag

mandar no resto. O que começa a funcionar como revirante do Terceiro Império? A própria comunicação vem mostrar que há um lugar, o Originário, que não muda, mas, ele, como referência, sacoleja tudo. Então, se passamos a nos referir a ele, vemos que se relativiza quase tudo. Isto porque tudo são formações produzidas, próteses como outras quaisquer, e nenhuma tem o direito “natural” de mandar em outra, nenhuma tem direito à hegemonia, pois a ideia de verdade lá contida é apenas uma ideia de verdade e a ideia de conhecimento lá contida é apenas uma ideia de conhecimento. E, no finalzinho do século XX, começa a brotar a referência ao Originário: ela está nas ruas. A pessoa não precisa saber que está fazendo referência a ele, mas como foi sacolejada, se não é nada disso, se não há hegemonia possível de nenhuma formação secundária, então Eu não posso ser da espécie x ou y. No Secundário começaram a ser criadas novas espécies: a do cristão, a do maometano, a do judeu... Eram espécies, a pessoa não se deslocava delas – e quando o outro aparecia com sua espécie diferente, ele não podia ser irmão enquanto filho do mesmo pai. Vejam que o monoteísmo é politeísta, pois o mesmo Deus é único, mas aqui tem uma cara, ali tem outra. Então, qual é a cara dele? Apresente seu rosto de fato. O rosto de fato que apareceu foi que o Império d’Ofilho, muito poderoso e coerente, porque sua referência é o Secundário, começou a ser movimentado, chacoalhado pela emergência mais violenta do Originário. As formações do Secundário, dadas a comunicação e a exacerbação de informações, começaram a mostrar que ele, o Secundário produzido, não estava com nada, que não podia ser universalmente verdadeiro. Foi isto que fez emergir dentro de cada um seu registro de Originário. Afrouxou para o lado de cá e apareceu nitidamente que há um Originário que não é da ordem estrita do Secundário. É o que está acontecendo conosco: estamos, mais ou menos desde a década de 1980, com o século XX já morto, entrando no que chamo de Quarto Império, o Império d’Oespírito, que fica entre o Terceiro e o Quinto.

 238

O Creodo Antrópico

Primário

Secundário

Originário

1º. Império

2º. Império

3º. Império

4º. Império

Amãe

Opai

Ofilho

Oespírito

5º. Império Amém

Vejam que estou tomando coisas da história: mãe, pai, filho e espírito (santo ou não). Chamo de Oespírito o que podemos pensar materialmente como Espírito, ou seja, a pura informação mexendo em tudo. Oespírito é absolutamente material, não há aqui a divisão do nosso amigo Descartes. Aliás, na mesma época dele havia um pensador, mais sério, chamado Espinosa, que já ensinava tudo isso. Mas o século XVII precisava ser muito de Terceiro Império e só agora estamos com direito de reconsiderar a importância maior de Espinosa. O Quarto Império é essa joça em que estamos entrando, com todos atônitos, ninguém entendendo mais coisa alguma. O que está acontecendo? Vão jogar uma bomba? Já é evidente a confusão: umas pessoas dizem uma coisa, outras dizem outra, a efervescência continua e já está nas ruas, até mesmo no Brasil. Ou seja, acabou o Terceiro Império. Ele ainda está vigorando dentro dos poderes constituídos, ainda há o Estado do modo que existia, igrejas e religiões do modo mais ou menos que existiam... Mas está tudo mais ou menos sendo mudado, sendo minado pela referência dupla ao Secundário e ao Originário. Não temos ainda constituídas à nossa disposição formações adequadas tipicamente de Quarto Império. O que temos são religiões, histórias, filosofias, ciências, tudo ainda com cara de Terceiro Império. Um pensador ou outro, um cientista ou outro, já começa a arriscar a produzir próteses tipicamente de Quarto Império, que é dilacerado como o Segundo por não ter uma referência única. Não é possível agora constituir um mundo cuja referência única seja o Originário, mas a referência dominante está lentamente se tornando a originária, aquela que diz coisas como: “isso é o que você acha, eu não penso assim”, “essa é apenas a teoria do fulano, pode 239

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ser boa, mas há outras”, “não me venha com ideias religiosas porque também tenho as minhas”, “não me venha dizer o que é normal em minha sexualidade, porque o normal sou eu”... Será muito difícil sobreviver no Quarto Império, pois, nele, a sintomática de Terceiro ainda está em pleno vigor e qualquer pessoa fica dividida entre as construções do Terceiro e a pressão do Originário. O que acontece, então, hoje, é que, para enfrentar a zorra instalada na face do planeta, a maioria corre para trás. É normal, a maioria sempre correu para trás. Sempre que sentem a turbulência e o medo da turbulência, as pessoas correm para trás. Ou seja, para onde supunham que estavam garantidos, que era isso mesmo. Só que o “isso mesmo” acabou, mas ainda não deixam – e falta muito para isto – de se referir hegemonicamente aos produtos do Terceiro Império: pensamentos, religiões, filosofias, ciências. Entretanto, como disse antes, o próprio movimento, a transferência comunicacional, está abalando até mesmo essas pessoas. Elas estão com referência ali, mas já começando a fazer coisas de cá. Isto porque as coisas do Quarto Império são mais agradáveis, mais interessantes talvez, mais libertárias.

36. Quando falo em Creodo Antrópico quero dizer o que mencionei sobre o movimento da água na montanha: se passar, será por ali. Mas como nada obriga que irá passar, este é o problema sério de atravessar o Quarto Império. Conseguiram atravessar o Segundo, vamos ver se conseguem atravessar o Quarto, ou, ao contrário, se tudo degringola, ou mesmo se estaciona neuroticamente e volta um pouco. Não sabemos. Suponho que seja difícil voltar por causa da produção protética – não gosto de falar em tecnologia, pois parece que é só ela – que está entrecruzada e deslocando tudo. Poucas pessoas no planeta – entre as quais me incluo, desculpem a falta de modéstia – estão fazendo o esforço de sair do Terceiro de vez para ir para o Quarto Império. Faço a suposição de que teremos ainda uns cinquenta anos desse conflito específico de entrada do Quarto Império, que vai encher o saco, produzir muita desgraça, e aí o pessoal vai querer arrumar. Depois, então, teremos talvez uns duzentos anos de implantação. Todos os habitantes atuais do planeta estarão  240

O Creodo Antrópico defuntos quando começarem a implantar, de fato, o Quarto Império. É mera suposição minha: teremos que, primeiro atravessar o conflito da passagem, muita guerra, muito sangue, luta, morte, desgraceira, porque as pessoas têm cabeça de Terceiro e estão entrando atônitas no Quarto Império. Não preciso comentar o que está acontecendo na face do planeta: uma conflituação generalizada – e que vai aumentar, podem esperar. Toda vez que a produção secundária comparece, imediatamente produz naquele que é sintomático, fanático, dessa produção – como é a maioria de nós –, um distúrbio. A pessoa se sente agredida pela mera existência de um pensamento diferente. Sempre que aparece um pensamento novo, uma teoria nova, o primeiro impulso é calar aquele que o traz. A história mais recente e com mais vigor é a da Inquisição na Igreja católica. O pensamento novo deve ser calado por estar tirando meu conforto, por estar me aborrecendo. Daí que, como todos estão sabendo tudo que acontece, o conflito cresce. Isto porque ainda não foi inventada, para se generalizar para a humanidade, uma prótese mental, intelectual, uma ideia, que possa resolver esse problema de maneira referenciada mormente ao Originário. Isto vai demorar muito. Felizmente, as pessoas morrem: a morte é um santo remédio. A terceira geração já vai encontrar a coisa mexida, mas os que estão vivos hoje sofrem da nossa imbecilidade de termos essa história toda. Ou seja, isso é uma neurose nossa que recalca o movimento. Se não, todos estariam correndo para a frente para entender, procurariam formações novas, teorias novas, que mexessem nisso. Mas as pessoas em geral estacionam – é o que chamo de Morfose Estacionária, que antigamente chamavam de Neurose – ou regridem, isto é, ficam praticamente Psicóticas, isto é, em Morfose Regressiva. E alguns que querem andar para a frente, por não entenderem como fazê-lo, entram numa Perversidade radical. Isto também ocorre. Utilizando os termos antigos, nosso momento não é nem neurótico, nem psicótico, é perverso. O nome não presta, o conceito de perversão é um conceito perverso, é maluquice da passagem do século XIX para o XX, é beatice. Por isso, chamo de Morfose Progressiva, que pode dar nas mais diferentes coisas, inclusive em maldades, como o psicótico pode, como o 241

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neurótico também pode. As perversidades não são sempre progressivas. A Inquisição é progressiva? Por isso, é preciso mudar, reformatar os pensamentos. Não é comum no Brasil supor que brasileiros possam fazer coisas. Costumamos comprar pronto de fora – e pagar o triplo do preço. Meu esforço é no sentido de repensar por aqui mesmo tudo isso. Por quê? Porque, desde os dezessete anos, venho caminhando dentro da mentalidade psicanalítica que me foi inoculada pelo Doutor Freud. Caí neste buraco negro e é nele que tenho que viver.

37. Direi agora algo que vocês precisam desenvolver e verificar, pois pode parecer que não é bem o que digo. Freud cria a ideia de psicanálise a partir de uma longa invenção, da ideia de inconsciente e de muitos conceitos que não são inicialmente dele. Já lhes disse que o único conceito que realmente é de Freud é o de Pulsão. Os outros já existiam, ele apenas os re-situou, planejou o processo, renomeou e esclareceu a seu modo. Se prestarem atenção, verão que o passo de Freud é gigantesco ao inventar a psicanálise. Sobretudo, por colocar em questão todos os saberes de sua época. Isto, pelo modo com que operava. Entretanto, as formações configuracionais da psicanálise de Freud são por demais referidas ao Segundo Império. Ele achou funcionando, por baixo do Terceiro Império, um monte de sintomas de Segundo. Principalmente, um sintoma típico que lhe pareceu ser uma espécie de chave-mestra da psicanálise: a ideia de Édipo. Mas o conceito de Édipo – sua elaboração enquanto fenômeno que tem que funcionar dentro do consultório: a pessoa precisa atravessar o Édipo para se curar – não é senão a invenção do Pai. Ou seja, é o mesmo projeto que aconteceu no Segundo Império. Freud viu isso nas pessoas e, melhor, que isso se repete na história de cada um mesmo. Cada um, em sua historinha pessoal, passou pelo Primeiro Império, grudado nos peitos da mãe; pelo Império d’Opai, com forçação do simbólico regulando sua posição pessoal. Cada um, cada história pessoal, atravessa os mesmos Impérios. Não há saída, já que temos Primário, Secundário e Originário. Só por isso. O bebê é quase um animal e, como supõe-se que ele tenha o Originário, o Secundário toma força, aquilo vai indo e ele passa para o Segundo Império. Freud  242

O Creodo Antrópico percebeu que esse fenômeno psíquico existia e concluiu que há que atravessar o Édipo. Ele inventou e colheu mil historinhas de clientes para explicar, mas quem veio mostrar exatamente o que acontecia no Édipo de Freud foi o Doutor Lacan, no Terceiro Império. Lacan é uma mentalidade nítida de Terceiro Império, é praticamente um católico. O tempo passa, releiam-no agora que lá encontrarão... a Virgem Maria, sempre ela. Ele, aliás, gostava muito das virgens Marias... desde que não fossem mais virgens. Lacan tomou a obra de Freud, entendeu seus processamentos e formulações e, estritamente de acordo com seu tempo, produziu uma obra gigantesca, genial, em cima da mentalidade de final de Terceiro Império, pois este já estava morrendo. O que ele nos diz é que esse negócio de Édipo não está com nada, pois o que acontece no Terceiro Império é o nascimento do Pai estritamente simbólico. Vejam que já é um grande passo parar com esse negócio de Édipo, de querer comer a mãe, etc. Trata-se, sim, aí, da passagem da referência do Primário para o Secundário. É a emergência em cada um da ideia de Simbólico, que vai aparecer em sua referência pessoal como entendimento de Pai. Por isso, diz ele que o que importa é o Pai Simbólico, que chamou de Nome do Pai. Como estava respeitando o saber de seu momento – o saber antropológico, estruturalista, linguístico, semiótico –, construiu uma teoria inventando, então, o Nome do Pai. Ele o define como “o significante” – que tomou da linguística, espremeu e ficou só com o bagaço – “que, no campo do Outro” – ou seja, no campo do Simbólico –, “é o significante do Outro enquanto lugar da Lei”. Isto é a definição da emergência do Segundo Império, que Freud não soube fazer bem e foi buscar na literatura grega com o Édipo – e que Lacan reencontrou nas orações do Cristianismo. O pensamento de Lacan é um pensamento de Terceiro Império. Desde que o estruturalismo faleceu, começou a aparecer o que chamavam de pós-estruturalistas, uma cambada enorme, alguns brilhantes, outros meio idiotas, na tentativa de colocar em xeque as formulações do estruturalismo. No campo da psicanálise, ninguém conseguiu. Alguns meteram a mão em Lacan, pensaram uma coisa aqui, outra ali, inventaram uma filosofia de quinta categoria, mas é a zorra pós-estruturalista. É preciso mais, é preciso tentar repensar e fazer o 243

Zig / Jac : Mag

esforço de construção de um aparelho que, ainda que seja psicanalítico, se é que interessa, que possa dar conta do fenecimento do Terceiro Império e da emergência do Quarto. Essas referências não servem mais, o lacanismo morreu, só sobraram lacanianos com suas igrejas. Quando se manifestam é evidente que dizem bobagens de montão. O lacanismo não acabou hoje. Quando estive com Lacan nos anos 1970, fazendo análise, trabalhando em seu departamento na Universidade de Paris, meu susto foi entender que aquilo já tinha morrido. Lá, isto era visível, mas aqui compramos matéria plástica usada. Então, quando eu era apedrejado por fazer o esforço de introduzir o pensamento de Lacan no Brasil e as pessoas estavam na dificuldade de entender do que se tratava, lá já estava claro que aquilo não se segurava mais, que estava moribundo. De qualquer forma, o que tinha para trazer era Lacan. Infelizmente, o Brasil é assim, retardado. Sempre foi, está na bandeira brasileira: Ordem e Progresso. É o positivismo daquele maluco do Auguste Comte, que chegou aqui atrasado. Quando a Europa produzia modernismo, impressionismo, expressionismo, etc., em 1816 o Brasil manda buscar a Missão Artística Francesa. Um bando de acadêmicos, péssimos artistas que vieram estragar o Maneirismo brasileiro que estava nascendo há muito tempo em Minas Gerais e arredores.

38. O que está acontecendo, meus caros, é que estamos entrando no Quarto Império. Há muito a dizer sobre isso. O que tenho tentado fazer – por isso, no cartaz de divulgação destas conferências está escrito: Zig/Jac: Mag: razão de um percurso – é escapar do Terceiro Império. Isto, com a mesma psicanálise. Daí eu dizer que é: NovaMente. Há que começar novamente tudo que Freud e Lacan fizeram, mas agora com outra constituição. Meu momento é outro, o que estamos vivendo é outra coisa, nossos materiais são outros, nossa sintomática é brasileira. Lacan é descaradamente um francês, ele e sua linhagem. Freud é descaradamente um cara de língua alemã. O Brasil sempre se recusa a ser si mesmo, a tentar pensar e produzir segundo nossa sintomática, que é bacanérrima, muito boa, faz-nos pensar coisas que eles nunca ousaram e nem conseguiram por não terem esta sintomática. Nós a temos. Se não a assumirmos, nunca iremos tomar a palavra. Seja  244

O Creodo Antrópico o que for que eu esteja construindo – não importa se é bom ou ruim, e sim que é uma tentativa de construção específica –, não posso ficar repetindo a baboseira do século XX, que, como disse de outra vez, é psicótico. Façam o rol do que aconteceu e verão grandes psicoses como: teorias científicas completamente delirantes, ninguém até hoje sabe resolver a física quântica; política, com Hitler, Stalin, Mao-Tsé Tung, Mussolini, Fidel Castro... A psicose paranoica foi a dominante no século XX. Tanto é que, como também já disse aqui (na segunda seção), se lerem transversalmente, com esta visão, a obra de Freud, verão que ele construiu seu aparelho sobre a ideia de neurose. Não que ele não tenha trabalhado a psicose, mas sua base conceitual é sobretudo a histeria. Lacan é aquele que resolveu constituir um projeto clínico e teórico sobre a psicose. Isto é declarado por ele, não estou inventando. Ele até se diz psicótico, pelo menos enquanto autor. Meu projeto é Progressivo. Interessa-me saber aonde a dissolução do conhecimento pode me levar. Chamam a isto de perversidade científica, mas não é perversidade, e sim progressividade. Não está baseado em recalque e muito menos em HiperRecalque. Como sabem, chamo de HiperRecalque o que funda o psicótico, sobretudo o paranoico. Meu percurso está, portanto, baseado no projeto progressivo, o que dá em coisas ótimas e em coisas péssimas – como qualquer projeto, aliás. Não adianta chamar as pessoas de perversas porque optam pela progressividade. Isto é intriga das beatas do século XX. Algo que o Quarto Império tem que evitar é o ideologema imperativo. Até o século XX, achava-se que uma teoria científica tinha que ser extremamente coerente e nada podia fugir a seu projeto. Hoje, sabemos que isto é uma asneira, pois qualquer teoria, científica ou não, é apenas regional, precisa dialogar com e mesmo incluir as outras. Em 2006, fiz um Falatório extenso intitulado AmaZonas somente sobre isto: a psicanálise é inclusiva. A de Lacan não o é. Freud era um pouco mais inclusivo. É por não ser inclusivo, por apostar estritamente no Secundário, que o Doutor Lacan inventa coisas absurdas. É coerente e bonito, mas é absurdo. Por exemplo, a ideia de que a psicose resulta de foraclusão do Nome do Pai. Hojendia, declaro que isto é um erro. É coerente com seu projeto teórico, 245

Zig / Jac : Mag

mas não é verdade. É a suposição de que, quando atravessamos o Segundo Império, quando temos o nascimento do simbólico – portanto, o surgimento do Pai enquanto simbólico –, se isto não acontecer ficamos malucos. Não é assim. Quando isso não acontece ninguém fica maluco, a pessoa fica sem, é quase um bicho. Isso não cria psicose alguma. Tomo a foraclusão do Nome do Pai como prova de que, para ser coerente com seu projeto, ele – depois de ficar em dúvidas enormes – sacou isso. Basta lerem seu seminário sobre As Psicoses que o verão ir até o meio do livro pensando uma coisa e, de repente, um dia, ter essa luz coerente com a teoria. Aí coloca isso lá, e colou. Se, então, acompanharmos a produção das culturas, do Ocidente pelo menos, veremos que o que acabo de dizer é praticamente uma evidência. Não é assim porque quero, foi o que percebi como uma evidência. Não quer dizer que seja A verdade. Felizmente, há mais gente que pensa para podermos dialogar.

39. • P – Me pareceu difícil entender que o Primário venha à frente do Originário. O Originário é a origem desta condição nossa. Quando falo em Originário parece que é a origem de tudo. É também, pois suponho que o Haver funciona assim. Algumas teorias cosmológicas dizem que os universos, ou o “todo” do universo vai tendendo para o desaparecimento, para a morte, a partir de um Big Bang, mas que, certamente, depois vem um Big Crunch e isso retorna. Então, isso gira assim: morte e vida, morte e vida... Mas estou falando do Originário de nossa situação. O Primário está aí, já havia bicho. Dentro da macacada aconteceu um fenômeno que produziu isso que somos e nenhuma outra espécie é. Por isso, digo que é o Originário disso que somos, do que fazemos, de nossa loucura. Não haveria Originário se o macaco não tivesse passado por esse fenômeno de uma origem, que dá um salto para fora, que sai do espontâneo e vira industrial, no sentido de produzir próteses que nenhum bicho efetivamente produz. Não conhecemos animal ou espécie – talvez esteja por aí como ET – que faça o que fizemos.  246

O Creodo Antrópico • P – O mundo me parece estar idiota. Também, mas isso ele já era, não é novidade. Estamos agora em total conflito historial e vai aumentar. É conflito de pensamento, de tudo, na virada de Império. • P – A sequência dos Impérios enquanto Creodo serve tanto para cada pessoa quanto para os acontecimentos em geral. Com relação ao sintoma brasileiro, se aqui há emergência de ótimas coisas, o que falta, então, seria a decisão pela aceleração do que aqui emerge? Falta a decisão da assunção do que aqui emerge. Não desenvolverei agora, mas vários autores que vocês conhecem, Raymundo Faoro, Vianna Moog, Gilberto Freyre, Oswald de Andrade e outros, tentaram entender o sintoma brasileiro. Eles demonstram que há uma sintomática brasileira de alienação ao estrangeiro, de não referência à própria formação sintomática, à própria produção cultural. Brasileiro vive comprando bugiganga. Estamos até hoje feito índios comprando espelhinho, colarzinho, as bugigangas que vêm de fora. Nem ao menos as compramos para, como fazem os japoneses, copiar tudo e fazer melhor. Essa história da cultura brasileira é longuíssima. • P – E isso resultaria em regressão, no sentido de Morfose Regressiva que você coloca? Isso resulta em paralisia, é neura pura. Num país que teve a sorte de ter uma cultura razoavelmente progressiva, a América do Norte, por exemplo, diante de algo que lá surge, imediatamente o pessoal se orgulha e fatura. Aqui, se abrimos a boca para dizer coisas como as loucuras que estou dizendo, não é fácil, querem te matar. Há que ser muito cara de pau e tinhoso para continuar dizendo. Se não, nem comer nos deixam mais. Isto é típico do Brasil, como sabem. • P – O que é a informação como Oespírito? Oespírito é pura informação. É a ideia de que é preciso dominar e conhecer o processo informativo, seja no Primário, seja no Secundário. Estamos vasculhando a genética, o cérebro, isto é que é querer saber como 247

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é o processo informativo que resulta em tal coisa ou em tal outra. Como já disse, faço a conjetura de que, em última instância, é tudo homogêneo, de que toda essa joça, essa parafernália, veio da mesma substância. Não estou dizendo nada demais, pois o século XVII, com Espinosa, já dissera isto. Hoje, cientistas como Stephen Wolfram também procuram mostrar isto. Ele é um matemático que inventou um software que o deixou zilhonário – e que usa sua fortuna para continuar inventando o processamento computacional que ele quer levar a resolver até mesmo o Primário. Sua conjetura é que uma única forma informacional criou tudo. Gostaria que fosse verdade. É isso que chamo de Oespírito. Não estamos mais procurando na carne, e sim no informacional que existe mesmo dentro do Primário. Como pôde este universo aparecer? Aí vem, por exemplo, a teoria das cordas com suas branas. Ela é completamente delirante, mas vai chegar nalgum lugar. É isto que chamo Oespírito que, junto com o Secundário e a emergência do Originário, quer ser a conjunção e a dominância do Quarto Império. O Quinto Império, de que não falei hoje, seria algo que nem consigo imaginar – o Quarto já está difícil –, mas seria um Império que tivesse referência hegemônica ao Originário:

Primário

Secundário

Originário

1º. Império

2º. Império

3º. Império

4º. Império

Amãe

Opai

Ofilho

Oespírito

5º. Império Amém

Se andarmos para a frente, suponho que eles chegarão lá, nós, não vamos. Chamo-o de Império do Amém: assim seja, topando tudo, ao que quer que apareça. 10/SET

 248

6. Subsequências do Creodo Antrópico 40. Continuo, então, ainda no aproveitamento do que trouxe da vez anterior sobre os Cinco Impérios, que se delineiam a partir da referência ao Primário, ao Secundário e ao Originário:

Primário

Secundário

Originário

A psicanálise é um exercício perene de libertação, é uma ascese radical no sentido da saúde geral – askesis, em grego, é ‘exercício’ –, é caminho para cada vez maior disponibilidade no vetor que vai de Primário para Originário. Isto é, no sentido do Creodo Antrópico que lhes apresentei, o qual se repete na história sintomática de cada um. A psicanálise opera contra a massa que recalca o Revirão do Originário. Nossa especificidade é o movimento do Originário, sendo que, dado o lugar onde ele compareceu – nesta nossa espécie supostamente advinda dos primatas –, há toda uma série de funções recalcantes que impedem o movimento liberto e imediato do Originário. Mesmo porque, se isso se movimentasse muito espontaneamente, ninguém sobreviveria. É, pois, o jogo entre a estupidez e a loucura. O Revirão é o específico de nossa espécie. É ali que se origina nossa espécie especificamente. Digo assim para ser mesmo redundante. É ali que está o Originário de nossa espécie. A análise tem que ser permanente no sentido da substituição do que possa ser um recalque por um Juízo Foraclusivo (Urteilsverwerfung). Destaco este conceito freudiano como sendo o tipo de operação que nossa espécie pode substituir pelos recalques. Então, se não fossem os recalques, seríamos completamente enlouquecidos, revirando aturdidamente. Os recalques seguram, dão configuração, mas também reprimem, oprimem, empobrecem e atrapalham. Este é o jogo. Freud criou o conceito de Juízo Foraclusivo para mostrar que não precisamos necessariamente de um recalque para funcionar. Se nos libertamos dos recalques e sabemos operar 249

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mentalmente bem, podemos fazer exclusões por juízo. Aí, não é que eu esteja sintomaticamente impossibilitado de tal ato, e sim que escolho embargá-lo em função da necessidade de operação do momento. Se a psicanálise conseguisse funcionar bastante bem, talvez pudéssemos ir substituindo paulatinamente – e quanto mais, melhor – todos os nossos recalques por juízos. É o que chamamos popularmente “tomar consciência” dos recalques. Portanto, desrecalcá-los sem ficar enlouquecidos, simplesmente podendo operar com juízo fazendo exclusões ad hoc. Quanto mais o vetor é retrogressivo, quanto mais retarda e fica perto do Primário, maiores são a neurose, a estagnação e o empobrecimento de nossa situação. É estarmos mais perto da constituição que é a dos animais. Por outro lado, quanto mais o vetor segue no sentido do Originário, tanto do ponto de vista histórico geral quanto do da história pessoal, maiores saúde – em latim, o nome da saúde é: valetudo –, riqueza, disposição e produção de próteses de elementos acrescentadores ao que a dita natureza nos oferece. Tudo que temos aqui diante de nós são próteses – a língua que falamos, por exemplo –, tudo é constituição nova porque temos o Originário. Então, quanto mais próximo dele, mais constituição poética, maior produção de próteses – de qualquer nível, de qualquer composição, que acrescentam e bem-dizem nosso poder de criação –, mais amplas e mais variadas as nossas opções culturais. Cultura é produção de próteses.

41. Disse em nosso primeiro encontro aqui que o paradigma da psicanálise é sexual. Sempre foi, desde Freud – o que não é uma implicância com a sexualidade, e sim um paradigma de pensamento. Se Haver deseja não-Haver e não consegue, portanto há Quebra de Simetria, isto é: secção, partição e impossibilidade. Sexualidade é isso, e não roça-roça de órgãos. É partição, primeiro, entre possível e impossível e, segundo, entre diferentes. Como Freud, de começo, não tinha entendido com toda clareza essa partição, chamou-a Castração. É, pois, reconhecimento da diferença, do impossível, da limitação, etc. Uma vez, então, que o paradigma da psicanálise é sexual, importa, sobretudo, entre as possíveis opções culturais – que são muitas, talvez infinitas  250

Subsequências do Creodo Antrópico –, entender e reconhecer as opções sexuais: nada melhor para entender a construtividade da operação psíquica do que entender a dinâmica da sexualidade. No século XIX, Freud assustou um pouco as pessoas ao tratar quase que só da sexualidade. Assustou por isso mesmo, pois é ali que comparecem nuas nossa razão e nossa desrazão. As opções sexuais se produzem em conformidade com o estado (não apenas sobredeterminado, mas) hiperdeterminado da espécie, isto é, em conformidade com a função criativa e curativa do Revirão. Somos demasiadamente sobredeterminados. Freud chamava de sobredeterminação o conjunto de formações que vão nos desenhando na vida, já que somos determinados por todos os elementos configurados de nossa história. Chamo de HiperDeterminação quando esses elementos são tratados pelo Revirão e dão um salto de existência e de significação. É esta HiperDeterminação que de fato nos qualifica. Então, é em conformidade com a função criativa e curativa da HiperDeterminação pelo Revirão que precisamos entender a sexualidade humana. Vamos agora tratar dos sexos humanos, se é que isto existe. Diz Fernando Pessoa num poema curtinho: “O homem não é um animal, é uma carne inteligente, embora, às vezes, doente”. Ele está aí falando justamente da sexualidade. Temos o mau hábito de dizer que o homem é um animal isto ou aquilo, um animal racional, por exemplo... Se o Primário é constituído bioticamente parecido com os animais, a emergência do Revirão em nossa mente nos deslocou radicalmente da animalidade. Nada mais temos a ver com animalidade alguma. Podemos, sim, ter a ver com certo modo de biótico. Por isso, diz ele que é uma carne inteligente, o que é muito bem pensado. Ora, quando Freud se debateu com as questões evidentes da sexuação e da sexualidade, pensou o Édipo como modelo de entendimento e de arrumação e pensou também as formas de castração. Ele estava vendo os bonecos biológicos e – como todos no século XIX e começo do XX – dividiu a espécie humana entre homens e mulheres. E até hoje pensamos que isto – homens e mulheres – existe. Houve mesmo um momento em que, no debate com as “mulheres” que não conseguiam entender porque seu programa era tão masculino, Freud repetiu que “a anatomia é o destino” – é uma frase de Napoleão Bonaparte (aliás, só podia ser de alguém como ele). Mas a anatomia não é o destino. 251

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Como Freud encontrava no infans, nos bebês, nas primeiras idades – e, depois, às vezes, repetidas nos adultos com insistência, com persistência –, certas derivações da sexualidade diferentes do papai-mamãe que se pode supor entre machos e fêmeas – pois é isso que são, e não homens e mulheres –, criou a ideia boba de perversão polimorfa. Disse ele que “as crianças são perversas polimorfas”. Isto num evidente hábito de origem policial e jurídica que passou à medicina e depois, infelizmente, à Psicanálise. Na verdade, o que as crianças têm é sexualidade polimorfa, ou seja, elas conseguem gozar um pouquinho com qualquer parte do corpo. É mais ou menos assim. Isto porque ainda não compareceu o modelo cultural de repressão que quer enquadrá-las num determinado sistema de comportamento sexual. Então, dado que os comportamentos são evidentes, além de separar a espécie em homens e mulheres – que, como disse há pouco, na verdade são apenas machos e fêmeas –, ainda a separaram em homossexual e heterossexual. Tudo isto por referência ao Primário. Vejam que há lá um biótico, uma construção anatômica macho e fêmea, e chamaram os machos de homens e as fêmeas de mulheres, o que, como sabemos, não coincide muito frequentemente. Mais tarde, Lacan dirá que há homens que são mulheres e mulheres que são homens. Como resolver este problema? Também em função dessa anatomia evidente compareceram as conceituações de homossexualidade e heterossexualidade. Estão referidas estritamente ao Primário no seu registro autossomático. Pensava-se que homossexual era aquele que transa com o corpo que é igual do ponto de vista do autossoma, e heterossexual, aquele que transa com o corpo que é diferente. O que Freud desenhou assim é perfeitamente congruente com o protocolo teórico que ele tomou. É o que tinha naquele momento, e só podia dar nisso. Lacan, da metade do século XX para cá, resolveu enfrentar essa questão que não lhe parecia bem resolvida. Como seu protocolo é da ordem do Secundário – lembrem que ele é um pensador de Terceiro Império, assim como Freud é mais de Segundo –, ele procurou apoio em relações formais, lógicas, linguísticas da mente para fazer alguma distinção da sexualidade. Então, escreveu algumas fórmulas pseudomatemáticas, chamadas por ele de matemas, que  252

Subsequências do Creodo Antrópico seriam as fórmulas da sexuação de nossa espécie. A uma fórmula chamou de homem e a outra, de mulher. É outro erro, agora do século XX. Ele mesmo vai reconhecer que há homem que é mulher e que há mulher que é homem. Mas ele não está mais chamando assim diretamente em relação ao Primário. Não está nomeando o sexo de uma Pessoa pela anatomia, e sim pela articulação linguageira do processo ainda de castração. Ele sai da ideia de Édipo, em Freud, e passa para uma formulação lógica de como a sexualidade se estabelece. Podemos, então, dizer com clareza que os sexos apontados por Lacan, os sexos de nossa espécie, já não são de referência obrigatória ao Primário, e sim de referência lógica, secundária. São duas fórmulas que posso resumir dizendo que ele tomou de Russell e Whitehead, e de outros matemáticos as ideias de constituição e de não constituição de totalidade. Assim, ao observar o que seriam as formas de a criança atravessar o processo de castração freudiano, ele dirá que as mulheres, diferentemente dos homens, funcionam de maneira incompleta. Isto é lógico, não é que elas sejam menores, e sim que preferem a incompletude em seu procedimento sexual. Ao passo que os homens preferem pensar de maneira completa. Ou seja, os homens são estúpidos e as mulheres são doidas. É mais ou menos assim. Ele desenhou homem e mulher dessa maneira. Fez isto, como disse, tomando o conceito de castração em Freud e subsumindo a uma perspectiva lógica e matemática. Então, no pensamento de Lacan, temos homens e mulheres, mas nunca se sabe se a anatomia corresponde. Ainda que a estatística pareça ou finja ser mais ou menos dividida pela anatomia, não é assim que funciona.

42. Aí aparece a questão do comportamento sexual, homo e hetero. Lacan diz que homo e hetero são definíveis pela referência ao todo e ao não-todo. O todo é masculino, o não-todo, feminino. Quando você é mesmo homem, tem forte tendência homossexual. Se totalizo, paratodizo, patotizo – a patota, o clube do Bolinha –, isto é uma posição lógica homossexual. Os homens têm tendência lógica à referência totalitária, as mulheres seriam meio rompidas. Segundo aqueles que são mulheres – porque há gente que não tem pênis e não é mulher 253

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–, elas não totalizam nem totalitarizam. Então, diz ele num texto difícil e famoso: “Heterossexual por definição é aquele que ama – ou gosta, pois o verbo francês é aimer – as mulheres, qualquer que seja seu sexo próprio”. Até hoje não consenti se o sexo próprio é de um ou do outro, a frase é extremamente ambígua. Mas a definição de hetero é esta: quem ama as mulheres é heterossexual, o resto é tudo homo. Vejam que é gente à beça. Ou seja, há aqueles que preferem a incompletude, isto é, a heterossexualidade. Àqueles que preferem o fechamento e a completude, ele chama de homossexuais. Como disse há pouco, prefiro chamar de o estúpido e a doida. Quem tem experiência de vida entende isto. Aliás, também está num poema de Fernando Pessoa que só há duas possibilidades: a estupidez e a loucura. Façam jogo, escolham. Ou você cai numa, ou cai na outra. Ou, se não, passeia para lá e para cá: ora fica estúpido, ora louco. Pode-se mesmo fazer tudo isso. Temos, então: vocação homo em relação aos homens e hetero em relação às mulheres. É só vocação. Além do mais – e este é outro raciocínio brilhante de Lacan –, se os dois sexos existentes se formulam distintamente assim, não há possibilidade de qualquer relação lógica entre eles: é impossível estabelecer logicamente uma relação sexual. Ele diz que a relação sexual não existe. Ao falar de relação sexual impossível, está falando da transa erótica, sexual se quiserem, entre homens e mulheres, entre esses homens e essas mulheres lógicos que ele está definindo. Isto é, se homem e mulher se definem assim, não há relação possível entre eles. Então, segundo a psicanálise de Lacan, há esfregação, gozo, mas não há relação sexual. Ou, como ele disse, “a relação sexual é impossível”. Como sabem, relação é coisa séria em matemática. É um mapeamento ponto a ponto: o que há por aqui corresponde ponto a ponto ao dali. Se um é de um jeito e outro de outro, não encaixa. Ou seja, nunca dá certo, percamos as esperanças. Todo esse raciocínio de Lacan é congruente com o protocolo teórico que escolheu. Não temos saída, construímos ou utilizamos um protocolo teórico e ele vai colocar as condições de pensamento que são possíveis dentro dele. Há décadas, como não sabia mais o que fazer com as fórmulas de Lacan – que me pareciam uma contenção lógica dentro da efetividade dos  254

Subsequências do Creodo Antrópico comportamentos eróticos, etc. –, dado que meu protocolo teórico permitia pelo conceito de Revirão, resolvi fazer um conserto nelas. Não podiam ser apenas duas fórmulas. Se as fizer revirar – ou seja, procurar seus avessos –, elas serão quatro: cada uma tendo outro alelo, outra fórmula em Revirão. Então, ao revirar as duas fórmulas de Lacan, aparecem o Sexo da Morte, que não há, porque é impossível – a Morte não funciona sexualmente –, e um sexo insistente, que chamo de Sexo Resistente, o qual é o lugar erótico de qualquer um, não importando a anatomia ou a posição lógica. Na sequência, chamei aqueles que Lacan chamara de homem e mulher de Sexo Consistente e Sexo Inconsistente. Acabemos, portanto, com esse negócio de homem e mulher na confusão com o Primário e com as roupagens com que as culturas vestem machos e fêmeas. O que temos são: um sexo impossível, que não funciona porque é o lugar da morte; e um sexo genérico, que é de qualquer um, pois é pura resistência e insistência do desejo. Desejo este que, como já mostrei, vai em direção a não-Haver, é pulsão de morte. E o Sexo Resistente ora funciona Consistentemente, ora Inconsistentemente. Ou, quando a pessoa é muito viciada, ela só funciona consistentemente ou só inconsistentemente. Que Sexo tenho? O Sexo Resistente de todos nós, e modelos consistentes e inconsistentes. Isto, do ponto de vista lógico e gozoso, de gozos diferentes, de funcionamento sexual. Fiz, então, reforma no pensamento de Lacan, de jogar fora homem e mulher. Para qualquer pessoa, de qualquer sexo primário, sem exclusão de nenhuma das possibilidades e independentemente de homo ou hetero – posições que dependem da história das formações sintomáticas de cada um –, o que comparece são os modelos Consistente e Inconsistente. Seus movimentos, seus gostos, seus trejeitos, suas maluquices eróticas, etc., dependem de sua história, de inúmeros acontecimentos, só que, do ponto de vista lógico, têm duas maneiras de funcionar: consistente ou inconsistentemente. Com a reformatação que fiz, entendemos que a sexualidade de cada um, além de depender desse movimento lógico que pode operar sobre o Primário, sobre os corpos, sobre as anatomias, é imediatamente subvertida pela ordem psíquica. A ordem psíquica subverte as formações anatômicas. Por isso mesmo é que a anatomia não é o destino. Há, sim, ali, um penduri255

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calho, mas o que faço com ele? Isto é outra história. Os animais sabem o que fazer, porque são animais. Felizmente, nós não sabemos. Tanto é que podemos produzir quilos de coisas diferentes disso. A história sintomática de cada um, na relação com os processamentos lógicos que se dão sobre o que aparece como anatomia de base – mas que é subvertido pelo Inconsciente –, é que define o Sexo de cada um. O que é hetero e o que é homo, agora? Além de não sabermos o que é homem e o que é mulher – falarei melhor disto daqui a pouco –, se percorrermos os acontecimentos de mundo contemporâneo, os acontecimentos de sexo e de gênero, as formatações disso tudo, veremos que se perderam completamente as configurações. É claro que a maioria ainda vive, ou finge que vive, dentro dos modelos antigos de aparência masculina ou feminina, que são determinações culturais. Mas isto está sendo borrado, os modelos estão ficando efetivamente ambíguos. À primeira vista, nem mais sabemos que gênero tem uma pessoa – e mesmo que tire a roupa, frequentemente continuamos sem saber.

43. Melhor do que a reforma que tentei nas fórmulas quânticas da sexualidade, segundo Lacan, prefiro agora estabelecer alguma razão sobre a sexualidade em cima do Creodo Antrópico, que é configuracionalmente ao mesmo tempo da ordem da lógica e do sintoma. Dadas as referências imperiais de que lhes falei, a cada passagem de um Império a outro, as configurações culturais mudam radicalmente em função da referência predominante, hegemônica, desse Império. Lembro que chamo o Primeiro Império de Império d’Amãe, pois a referência forte e hegemônica é o Primário: o boneco é doido, é acossado pelo Inconsciente, mas se agarra à estrutura primária para se definir como gente, como Pessoa. Isto passa para uma situação de Segundo Império, que é o Império d’Opai, entre o Primário e o Secundário. O boneco ainda fica partido nessa passagem para o Secundário, mas é quando nascem a ideia de Pai e as ideias que Lacan tentou desenvolver – e a elas se agarrar – de Função Paterna e Metáfora Paterna. Depois, vem o Terceiro Império, o Império d’Ofilho, que hegemoniza a refe 256

Subsequências do Creodo Antrópico rência direta no Secundário e aí já não podemos mais considerar o Primário como único determinante. Ele pode ser um ingrediente e pode ser inteiramente subvertido pela ordem do Secundário, pelas ordens simbólica, linguageira, psíquica, se quiserem. O Terceiro Império, em nossa sociedade, é a cara do Cristianismo – e estamos agora em seus últimos estertores. Começamos agora a entrar no Quarto Império, o Império d’Oespírito, que é extremamente difícil. A zorra mundial está evidente porque este é um Império que fica dividido entre o Simbólico e o Originário. O Simbólico são as decantações metafóricas, as construções imaginativas que colocamos no mundo. Por exemplo, as definições culturais de homem vestir-se assim e mulher assado, e de homem ser isso e mulher aquilo, são o Simbólico decantado. O Simbólico tem o processo de simbolização, que é dinâmico, e o que é simbolizado, que fica outra vez empastado como se fosse uma coisa do Primário. E nós caímos nessa armadilha que nos segura para termos uma referência qualquer, embora idiota. O Secundário, então, como chamo, torna-se não necessariamente um processo de metaforização, mas um bando de metáforas assentadas nas quais ficamos aprisionados de novo como se fôssemos neo-animais. Não somos mais animais, mas somos neo-animais de espécies culturais. São neo-animais, existentes neo-etológicos, que começam a se estranhar, a fazer guerra e dar porrada um no outro só porque um pensa assim e o outro assado, um se veste assim, o outro assado, um se ajoelha e o outro levanta a bundinha para rezar. Fazem guerra por causa de diferenças metafóricas, ao invés de perceberem que apenas tal cultura se decantou de tal modo e outra de outro. Ela é verdadeira? Sim, mas a outra também. Qualquer uma vale, só que nenhuma é A certa. Se você gosta por aqui, vá por aqui, se gosta por ali, vá por ali. Desde Kant, ficou evidente que “gosto não se disputa”. Não vamos, portanto, ficar discutindo o gosto que está “certo”. O que vai, então, acontecer se, como disse, a referência hegemônica passa do Secundário para o Originário e o Quarto Império é aquele que oscila entre a referência ao Secundário e a permanente subversão do Secundário, das instalações culturais, pelo Originário? Não se pode mais definir o sexo de ninguém. Os sintomas estão aí. Se olharmos para uma plateia como esta aqui, 257

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veremos que nela deve ter alguns ambíguos, mas a maioria é mais ou menos desenhada porque continua dentro do sintoma do desenho. Entretanto, quanto a um ou outro, ficamos sem saber se é macho ou fêmea, homem ou mulher, qualquer troço desses. Já no tempo da referência hegemônica ao Secundário, que foi o caso de Lacan, precisávamos de artefatos lógicos para poder nomear – e mesmo assim ele ainda insistiu em chamar de homem e mulher, o que acho uma tolice em sua época, pois poderia ter dado outros nomes –, mas hoje temos um Quarto Império brotando violentamente diante de nós, uma emergência forte, e as pessoas estão perdidas procurando onde se segurar. A maioria corre para trás. Donde o ressurgimento de religiões e de crendices que vemos por aí. Mas não adianta porque ninguém segura rabo de foguete – vai queimar a mão. Se o movimento é este, não dá mais para voltar. Dá até para parar, estacionar durante algum tempo, porém, para trás, mais provavelmente não vai mais. Talvez, então, nossa saída melhor seja ajudar o processo a acelerar para a frente. E, acelerando para lá, qual é o sexo de uma Pessoa? É uma pletora de informações, uma pletora de Formações Sintomáticas, de formações “naturais”, de formações “culturais”, etc., etc. Já dá para notar que, se fizerem uma viagem a uma cultura muito diferente, talvez fiquem algum tempo com dificuldade de saber qual é a diferença sexual, pois lá não temos aquela certa informação. O movimento exacerbado contemporâneo é produzido, sobretudo, pelas próteses binárias, como internet, etc., que estão nos fazendo ver coisas tão diferentes que ficamos perguntando qual é a verdadeira. Não há o verdadeiro, só há diferenças. Não há uma diferença que seja a verdadeira. Portanto, ou aprendemos a dialogar ou a guerra vai durar séculos. Então, de novo, qual é o sexo de fulano? Não sei, só o conhecendo, se ele se deixar conhecer. Ele pode não querer se fazer conhecer. Psicanalista tem a vantagem de ficar anos ouvindo a pessoa e acabar fazendo certa configuração de qual é seu sexo, com todos os seus desempenhos. É este desenho será absolutamente singular. Não há duas pessoas com o mesmo sexo, mesmo se considerarmos o Primário, algum troço que tenham lá no meio das pernas. Isto porque, depois, temos toda a parafernália do Secundário, mais o movi 258

Subsequências do Creodo Antrópico mento do Originário. Se tomarmos a carteira de identidade, leremos que o sexo é masculino, por exemplo. Primeiro, masculino não é sexo, é gênero, e, segundo, gênero também é uma questão de opção, depende do desenho que fazemos diante do espelho. Há pessoas que ficam tão confusas com seu sexo e/ ou seu gênero que procuram a medicina para extirpar um órgão, ou implantar outro. Alguém poderia lhes dizer que não é preciso isto – mas, se quiserem fazer, não deve ser proibido. Se há tecnologia adequada, tudo bem. O sexo de cada um é singular. Singular mesmo! Não existem duas pessoas com o mesmo sexo. Quem tem um pouco de experiência de sexualidade e que já teve casos diversos, sabe muito bem que a cada vez foi um sexo diferente. Em 1992, fui chamado ao Centro Cultural Banco do Brasil para fazer parte de uma mesa sobre a obra de Pasolini. Nela estava um escritor bastante famoso, João Silvério Trevisan. Eu disse o que vou repetir agora e ele ficou bravo comigo. (Ele escrevera um livro bastante rodado, bastante vendido, sobre sexualidade “desviante”, intitulado Devassos no Paraíso, em que incluíra um poema meu. Depois que ficou zangado, tirou o poema da edição seguinte. Achei engraçado). Na mesa, estavam falando sobre a homossexualidade masculina, que seria o caso do cineasta abordado. Em dado momento de minha fala, eu disse: “Acho (...) que Pasolini não é homossexual. Simplesmente, acho que a homossexualidade, a rigor, não existe”1. Perguntou ele então: “Eu não existo?” Respondi-lhe: “Você existe brilhantemente!” – o que não existe é a homossexualidade. Ele não engoliu esta. Dada a situação política das pessoas, elas seguram bandeiras com veemência e precisam dizer que existe sim, que é uma guerra, que têm que lutar... Está certo, política é política. Mas estou repetindo aqui hoje: a homossexualidade, a rigor, não existe. Não existe porque é impossível. O sexo não sendo definido apenas anatomicamente e sim como formação pessoal – dependendo, portanto, do Primário e do Secundário, bem como do Originário –, ninguém é do mesmo sexo que outra pessoa. Não estou falando de sexualidade, de comportamento. O sexo é absolutamente singular, é de cada um. E isto envolve tudo, Primário, Secundário e Originário. 1

MAGNO, MD. Teorema do Sexo Pasolini. In: [1992] Pedagogia Freudiana. Rio de Janeiro: Imago, 1993. p. 149.

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Não adianta alguém ter tal ou qual anatomia, pois não é um bicho, um animal. Mesmo assim, há vários estudos sobre homossexualidade animal, que só podem considerar sua homossexualidade como desvio de comportamento, na base dos hormônios ou algo assim. Aqui nesta nossa espécie tem hormônio, tem loucura, poesia, música, dança, arquitetura, toda a loucura que usamos diariamente. Ninguém é do mesmo sexo de outra pessoa. Ninguém é do meu sexo – cada um pode dizer isto. Se quiser generalizar a afirmação de Lacan, posso dizer que qualquer relação sexual é impossível. Assim, toda e qualquer transa – que não é relação – é heterossexual. Isto, em congruência com o protocolo teórico que estou utilizando. Vejam, então, que a sexualidade, a multivocidade e multiversidade dos comportamentos de sexo e de gênero de hojendia são um campo privilegiado para se observar e reconhecer a efetiva emergência atual do que estou chamando de Quarto Império. Não há lugar mais nítido para observar isto do que a pulverização da sexualidade. Digo mais, a pulverização dos sexos.

44. • P – Não somos animais porque eles não têm a hierarquia familiar, a mãe transa com o filho, o filho com a mãe... Não é essa coisa família na qual nascemos e somos criados. Os animais não têm a confusão, os seres humanos têm. Quanto à frase que ouvimos muito – “o cara tem a alma feminina” –, pelo que você disse, não é isso. Ele é singular, inteiro. Para dizer que o cara tem alma feminina, é preciso, primeiro, já termos definido “o” cara. Como sabemos que é “o” cara? A frase já está errada, pois estamos partindo de uma definição pré-conceitual. Não sabemos se ele é cara. Você diz que somos os usuários, os utentes, da ordem familiar. Temos, então, que fazer uma pergunta séria: a ordem familiar é natural e, portanto, capaz de propiciar uma antropologia de parentesco, como pensa o estruturalismo de Lévi-Strauss? Ou é um ideologema de momento que constituiu deste modo a configuração que chamamos de família e, portanto, a antropologia está enganada? Ou seja, temos esse hábito. O que está acontecendo com a ordem familiar é que ela está também se dissolvendo, pois há, hoje, vários tipos de família. Outra pergunta séria – que deve aterrorizar muita gente, sobretudo  260

Subsequências do Creodo Antrópico aqueles com parti pris moral, religioso ou algo do tipo – é: o que é a interdição do incesto? É um elemento natural que estruturou a passagem de natureza à cultura? Esta foi a resposta dada por Lévi-Strauss, mas não podemos mais engoli-la. Ele a deu por ter que definir natureza em oposição a cultura e para dizer que tinha um elemento pertencente a ambos os estágios, que é a passagem de uma para outra. Mas quem o mandou definir a natureza e a cultura assim? Posso não concordar com essa definição. Digo que tudo é artifício: a natureza é um artifício espontâneo, uma articulação espontânea; e a cultura é um artifício industrial, acrescentado pelo homem ao artifício espontâneo. Cadê a passagem? É tudo da mesma articulação. Uma usina nuclear é tão natural quanto uma árvore. Ou, uma árvore é tão artificial quanto uma usina nuclear. Como será a família do futuro? Fatores ideológicos, sociais e religiosos meteram na cabeça das pessoas que o incesto é naturalmente e artificialmente proibido. Isto, para que não houvesse transa sexual entre parentes próximos, sobretudo do filho com a mãe. O pai com a filha era algo mais leve em várias culturas; e o incesto entre irmãos era algo necessário para manutenção da alta casta (entre os faraós, por exemplo). Qual é a ideia de proibição do incesto no Segundo Império? A de produzir filhos para trás. Isto bagunça o coreto da administração do parentesco. Alguém tinha filho com sua mãe, este era ao mesmo tempo seu irmão e seu filho. Como é uma bagunça lógica, é onde entra Lévi-Strauss afirmando que a interdição do incesto ordena a sociedade enquanto parentesco ao fazer a coisa sempre caminhar para a frente em linha reta. Ora, com a proibição de ter filhos com parentes próximos entrava também a proibição sexual. Isto porque não tinham a pílula, e pouco ou nada sabiam fazer para impedir a procriação. Mas como fica isto no momento em que a procriação pode ser governada? No momento histórico que vem aí, que já está vindo, em que a procriação pode ser governada, o que é o incesto? Esperemos para ver. Não será essa coisa da antropologia estrutural ou de qualquer antropologia prévia que quisesse estabelecer a cultura sobre a sua interdição. • P – Interdição do incesto é um recalque secundário? Sim. Depende do Segundo Império. Foi uma maneira que conse261

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guiram para entrar com a construção da cultura, da sociedade, com referência ao Primário e ao Secundário. Se funcionássemos como mero animal, poderia ser com a mãe mesmo, pois, aí, vai-se com o que está mais perto. Repito o que disse nas palestras anteriores, que os animais não têm a estrutura de reviramento. Quem a tem, deixa de ser animal e passa a ser um perdido. Os animais sabem quase sempre o que devem ser, nós não sabemos. Nosso problema não é que a gente saiba, e sim que não sabe. Um cachorro cachórra, o gato gatorra, o boi boieja, o ser humano faz o quê? Não sabemos. • P – Quero entender melhor a diferença entre Secundário e Originário. O Secundário é o simbólico... ...é toda produção linguageira, é aparecer linguagem. • P – Não é a linguagem já decantada, estabelecida? Não. O processo de aparecer a linguagem também é secundário. O processo de criar é o Secundário comovido pelo Originário. A penúltima psicanálise, de Lacan, ficou preocupada em referir-se à ordem linguageira, pois só operamos nossas próteses, mesmo que seja para intervir no Primário – uma cirurgia, um remédio, por exemplo –, com intermediação do Secundário. É depois que se cria um ideologema, um aparelho cultural, que ele fica empedrado e funcionando como uma neurose. • P – Então, o ato de criar é apenas do Originário? O ato de criar necessariamente passa pelo Secundário co-movido pelo Originário. Sem mediação do Secundário não se consegue. Mas quando alguém ganha prêmio Nobel, ganha um prêmio de originariedade: pelo Originário conseguiu dar a volta no que nunca foi mexido. E, depois que ele dá a volta, necessariamente alguma coisa se decanta. Decanta como Secundário. Imediatamente, torna-se uma neura, isto é, começa a parecer como “natural”. Nossos hábitos culturais são neuróticos, não podem ser outra coisa. Se é um hábito, está decantado do mesmo modo como se constitui uma neurose. Falo a palavra neurose, mas vocês sabem que resolvi aboli-la e chamar de Morfose Estacionária. Uma neurose é constituída igual a uma construção cultural:  262

Subsequências do Creodo Antrópico estabeleceu, decantou, e a pessoa fica repetindo ali dentro sem conseguir sair. Pensem na dificuldade de aprender uma língua estrangeira. É difícil porque sua língua é constituída para você como uma neura, um sintoma pesado. É preciso aboli-la, colocá-la de lado, para entrar na língua do outro. O Originário apenas revira, revira, revira: produz HiperDeterminação em vez de só sobredeterminação. • P – Quando você fala em Quarto Império, não parece que vai surgir uma cultura nova? Você duvida de que já esteja emergindo uma cultura nova extremamente esquisita? • P – Então, quando houver a suspensão do recalque no caso da interdição do incesto, o que virá não será também a produção de um novo recalque? Sim. Mas um recalque pode ser mais brando do que outro, pois o caminho em direção ao Originário necessariamente produz disponibilidade. Isto implica seu mundo ficar cada vez maior, você poder usar coisas daqui, dali... Quem está na neurose não consegue usar nada para a frente, não consegue sair daquela prisão, está amarrado. Ora, se, mediante os artifícios clínicos de uma análise, por exemplo, conseguirmos ir desmanchando as decantações sintomáticas de uma pessoa, ela poderá escolher. Ela não é maluca: ao se deparar com um bando de leões, vai se desviar e, se estiver diante de uma cachorrada, vai se comportar, pois podem morder. Isto é não ser o neurótico que ou nem vai chegar perto, já sai correndo, ou vai achar que pode passar incólume por entre esses animais. Uma coisa é ter escolha, outra, é estar aprisionado por sintomas. Podemos escolher nos comportar bem, ter juízos foraclusivos. Ao lidar com uma pessoa, é preciso cuidado, pois não sei quem ela é, nem sei qual é seu sexo por todas as aparências que mostre. Mas como tenho escolha, tenho disponibilidade de me comportar assim ou assado. Posso ser ator ou diplomata, que são os dois casos em que as pessoas têm necessidade de certa disponibilidade de figuração. O ator, enquanto conceito, deveria ser neutro, desempenhar qualquer papel. É claro 263

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que ele não consegue, pois tem suas configurações, mas quanto mais neutro, mais disponível, melhor ator será. Um diplomata, quanto mais cara de pau for, melhor lidará com os outros países. Na ordem dos negócios também, temos que nos reconfigurar para poder transar. Se não, não funciona. O ganho que existe é o de desconfiguração, disponibilidade, acrescentamento, riqueza, possibilidade de nos movermos mais à vontade. O que o século XIX chamou de neurótico está no que digo de alguém morfoticamente estacionário: a pessoa não consegue sair do lugar. Tudo está definido nessa Morfose Estacionária: verde é verde, amarelo é amarelo... e se não for? Para ela, não pode. Se um matemático, como Lobachevsky, por exemplo, disser que dois mais dois não são quatro sempre, ela entrará em pânico. Tudo porque costuma só usar as quatro patas e não conseguir sair do lugar. Já o outro pode demonstrar que dois e dois não são quatro sempre porque depende da estruturação matemática do jogo.

45. Não fiquem assustados com o Quarto Império porque não é depressa, ele está entrando devagar agora. As pessoas estão assustadas com o movimento – e é por isso que estou tentando inventar uma explicação, pelo menos para mim, e passando a vocês. O conflito dessa implantação está na cara, está evidente até com guerra mesmo. Como já disse aqui, faço a aposta de que o conflito demorará cinquenta anos e, depois que amainar, a implantação do Quarto Império tomará uns duzentos anos ainda. Isso vai durar milênios. Cada Império, às vezes, dura dois ou três milênios. Não faço a menor ideia do que acontecerá lá para a frente, só estou vendo até aqui. Para a frente é problema dos próximos pensadores, e não meu. O meu vai até aqui, já andei bastante. • P – O mundo está de cabeça para baixo mesmo. Em todo lugar tem um probleminha... Se estivesse só de cabeça para baixo, seria fácil. Já teríamos entendido que estava assim e virou assado. O problema é que não está com a cabeça em lugar algum. Não sabemos mais onde está a cabeça do mundo.

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Subsequências do Creodo Antrópico • P – Tenho até saudades da Guerra Fria, quando sabíamos onde estava a bomba, quem estava espionando quem... Vejam por quais situações passamos: nossa PresidentA está invectivando os Estados Unidos e o Canadá por bisbilhotarem sua vida. Ela não sabia? E vamos declarar guerra aos EUA e ao Canadá? • P – Por que a tal família é o problema? É a neura mais frequente em nossa cultura. Todos nascemos dentro de uma neura onde a criança fica doida, não sabe como fazer e tem que aprender a ser neurótica para não ser expulsa de lá. Os que não aprendem são expulsos, são as ovelhas negras. Como a maioria é “esperta”, aprende, fica neurótica como a família. Há outros mais espertos ainda, que fingem estar na família, mas não estão. Família nasceu no Segundo Império, com o pai, o patriarcado... São muitos milênios, isso começou no Neolítico. Vejam que sintoma durável, que foi se tornando cada vez mais complexo, mais definido, mais detalhado. Só agora é que está se esfacelando. • P – A família não é produto da reprodução? Se fosse, cachorro teria família. Cachorro tem pedigree, por interesse do dono. Entre eles, não há família. No Primeiro Império, chamamos apenas metaforicamente de família o que lá havia. Todos estavam é atrás da mãe. Tanto é que, no início, alguns antropólogos pensaram haver Matriarcado, mas o que havia era Referência Materna, não era nem mesmo sistema Matrilinear. Quando alguém do grupo se perguntava “quem sou eu?”, a resposta era: “sou filho dela”. Eles nem sabiam que era o macho que fazia o filho. • P – Uma amiga minha obteve esperma no laboratório e concebeu. Agora, a criança está perguntando quem é o pai. É um espermatozoide. O Pai Real é um espermatozoide. • P – Mas o que dizer para a criança, se todos têm um pai? “Acostume-se com o Quarto Império. Pai é um negócio que a gente adota. Trate de adotar um pai para você”. Esta é uma boa diferença definidora 265

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do Quarto Império. No Segundo e no Terceiro, os pais adotavam filhos. No Quarto, os filhos também adotam pais. • P – As crianças adotadas também querem saber quem são os pais. Há alguma força aí? Nada tem a ver com alguma força que procura pai, e sim com o fato de elas estarem cercadas de gente dizendo que tem um pai assim e assado. Elas também querem, querem ser iguais. Se houvesse força que procura pai, os cachorros iriam rodar o mundo atrás do cachorrão do pai. Seria uma coisa biológica, mas não é. Na verdade, todo pai é adotivo. Mesmo que seja o pai que doou o espermatozoide, finalmente ele teve que adotar a criança, registrar como filho. Se não, como provar que ele é o pai. Hojendia, temos um jeitinho biotecnológico de provar, mas quantos milênios ficamos sem saber? Muitas vezes, o pai é o vizinho... Temos que entender que são apenas ideologemas, sintomas, produzidos, de organização sociocultural. Suponho que, dentro de alguns séculos, cinco ou seis, esse negócio de família acabará, pelo menos do modo como é hoje. • P – Hoje, não tem mais pai que orienta. Temos o coach. Ou, se não, é o analista. Vai-se fazer o quê? Estão sem pai nem mãe. Aqueles que cultivam a estrutura antiga, que ainda tentam frear o mundo para ver se ele não acelera repentinamente, à medida que a coisa vai se dissolvendo eles têm que se dissolver juntos. Vejam a crise atual da Igreja Católica Apostólica Romana. Desde o conclave anterior, cometeram o erro de escolher um Papa que não sabia lidar com o mundo contemporâneo. Isto a ponto de ele ter que pedir licença ou demissão, pois a pressão ficou muito grande. Aí colocaram aquele que deveria ter sido eleito desde o conclave anterior e que está recomeçando a fazer o que a Igreja sempre fez. Ela recusa, recusa, recusa e, quando não dá mais, ela ajeita. É uma sabedoria quase infinita, está durando dois milênios. • P – Anteriormente à formação chamada família, não haveria a necessidade neurótica de o ser humano andar em grupo?

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Subsequências do Creodo Antrópico Não é neurótica, é roça-roça. É porque o roça-roça é bom. • P – Isto não ocorreu quando as pessoas deixaram de estar sozinhas e viram que, em grupo, conseguiam ficar protegidas? As pessoas nunca foram sozinhas, jamais aconteceu isto. Hoje, começa acontecer de as pessoas, dentro da estrutura de grupo, conseguirem certo recolhimento. Há, por exemplo, uma grande percentagem de pessoas que moram sozinhas em Nova York, que é uma cidade evoluída, mas elas só moram sozinhas, não estão sozinhas. Ninguém aguenta ser sozinho, mas, por outro lado, não é preciso estar necessariamente em família. Podemos, aliás, usar o nome família como metáfora: família, eu invento uma para mim. É justo o que está acontecendo na grande entrada de Quarto Império por que passamos: estão inventando famílias, dois homens e os filhos, duas mulheres e os filhos, três mulheres... Qualquer dia, faremos o arranjo que quisermos, será computacional. O que será uma família? Aquilo que conseguirmos computar como tal. • P – A paternidade é uma necessidade ontológica ou uma ficção cultural? É um esquema que foi inventado e que será útil enquanto for, é um ideologema como outro qualquer. • P – Você disse que a libertação da neurose é poder escolher... Sim. • P – ...mas a libertação não estaria além da escolha? Aí vou preferir perguntar aos matemáticos. Não há a menor condição lógica, do ponto de vista matemático, de distinguir escolha de evento. • P – No parágrafo final de Totem e Tabu, Freud escreve que os neuróticos são, sobretudo, inibidos em sua ação, o pensamento substitui a ação, e termina citando Goethe que diz que “no princípio era a ação”. Só que estamos vivendo numa época em que podemos desafiar Freud, Goethe, ou qualquer um a mostrar a diferença entre pensamento e ação. • P – Todos os arcabouços psicanalíticos não poderão se constituir em camadas de couraças neurotizantes... 267

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Sem dúvida. • P – ...que vão gerar um excesso de pensamento e justamente trair o que pede Freud quando diz que o neurótico está contaminado por pensamento e não age. Pensamento nunca é excessivo, pensamento é uma forma de ação como outra qualquer. • P – Mas Freud não está criticando o pensamento como excessivo em relação à ação? Ele está, mas podemos criticá-lo também. • P – E aí você discorda dele? Completamente, o pensamento é uma modalidade de ação. Contudo, não confundir Pensamento com repetição obsessiva de encucação.

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7. Homo Zapiens 46. Hoje, vou falar do Homo Zapiens. É aquele do saber e do comportamento ad hoc que estão entrando no Planeta. Todos certamente conhecem o verbo zapear, que já está dicionarizado e nasceu do controle remoto ligado sobretudo à televisão: ficar mudando de canal, olhar sucessivamente tudo na televisão é zapear. Falam hoje do aparecimento da geração Z, justamente por ser a geração cuja característica principal é zapear. Minha impressão é de que isto extrapolou o uso da televisão e da internet. Estamos entrando num momento que chamo de Quarto Império – e a característica das pessoas neste Império é justamente... zapear. Por isso, as chamo de Homo Zapiens. Zapear o quê? Já não se está zapeando apenas a televisão e a internet, está-se zapeando de tudo. Perdemos, acho que definitivamente, aquela concentração ideológica de nos referirmos a um só discurso, a um só pensamento, sobretudo aos pensamentos produzidos até final do século XX, que são configurados demais. Mesmo os últimos, que são bastante explosivos, ainda são configurados demais. Faço, então, a suposição, a observação mesmo, pois isto cada dia mais é um fato, de que esse homem do pensamento e do comportamento ad hoc, a cada hora, a cada vez, cada vez mais está se afastando de configurações ideológicas, políticas, filosóficas ou artísticas. As grandes configurações estão acabando e as pessoas zapeiam o mundo, o pensamento, as obras e aproveitam de cada zapeada o que estão a fim de aproveitar. Não dá mais para a pessoa ser isto ou aquilo. Todas as configurações do século XX estão agora disponíveis para serem zapeadas, e não para serem seguidas como tais. Mesmo a psicanálise, que tem muitas contribuições de diversos autores, muitas formas de pensar, chegou ao fim do século XX com um grande pensador terminal: Lacan, meu mestre e meu analista, com todo respeito, é um pensador terminal, um pensamento que fecha o Terceiro Império; o século XX acaba junto com ele. Como disse no início destas Conferências, o século XX acabou em 1980 – e depois, a degringolação começou. Então, mesmo o pensamento de Lacan, com toda a abertura e ambiguidade que expunha, 269

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mesmo com a produção de conceitos cada vez mais abstratos e mais intersticiais, digamos, mesmo assim é uma grande narrativa e tem um corpus teórico bastante configurado. Ainda é cedo para as pessoas começarem a ver isto, mas vão começar a ver. Ali terminou um processo, terminou o Terceiro Império com esse tipo de pensamento. E acho que, como emergência de pensamento, não vai acontecer nunca mais. Se alguém quiser produzir algo da ordem da teoria, sobre qualquer coisa em qualquer campo, terá que ser não só uma construção facilmente zapeável, mas uma construção que se questione e se revire a si mesma. Que não seja uma pregação de tipo ideológico, mas uma maquininha de funcionamento capaz de ser utilizada das mais diversas maneiras e que tenha uma competência de produção tão múltipla que não deixa de oferecer a qualquer zapeador alguma coisa que possa lhe interessar. Aliás, minha tentativa na produção desta teoria que, dados os princípios que utiliza, parece fechada e configurada, ela, ao mesmo tempo, só se constitui sobre a ideia de reviramento. Portanto, é extremamente aberta e capaz de produzir na ordem do múltiplo e da casualidade.

47. Este é o tempo que está entrando, o século novo. Não só o século, como o Império novo, vai demorar muito para se instalar, mas já está começando a se desenhar. Grande parte desta possibilitação veio exatamente da tecnologia, isto é, da protética, que cada vez fica mais competente no sentido de esfacelamento e reagrupamento das funções informativas. A tecnologia, ou melhor, a protética, está permitindo isto. Sem o desenvolvimento científico e tecnológico contemporâneo, isto não seria possível. Mesmo que tivéssemos as ideias, não teríamos os meios. E os meios, os media, já chegaram dissolvendo as configurações anteriores. Vemos isto com clareza num campo mais exposto, que é o campo das artes. Ele tem mais visibilidade que o campo do pensamento, da filosofia, e mesmo da literatura, em que o trabalho de leitura é bem maior. Mas no campo das artes visuais, sobretudo, acabaram-se todos os parâmetros. Nenhuma obra  270

Homo Zapiens de arte, em qualquer nível, é reconhecida fora do mercado. Isto não é mais possível, não se reconhece uma obra por algum valor reconhecível por algum crítico, por exemplo. É o contrário: o crítico é que valoriza qualquer coisa que lhe dá na telha e isto entra, ou não, no mercado. Aliás, em meu dizer específico, tudo é ART: tudo se articula, tudo é arte, mesmo as coisas que pensávamos antigamente que tinham a segurança do saber científico. A coisa interessante que aconteceu com o fim do século XX é: o que não é arte? Quanto mais estudamos, mais o tal saber científico parece uma bela ficção. Às vezes, até com representação visual. Estamos no mundo das ficções, onde os valores não são mais determinados na produção. Eles são determinados de fora, no consumo. O que é arte? É aquilo que o mercado compra. Se o mercado não compra, é um troço feito em casa, um barato qualquer.

48. Todos os discursos, querendo ou não, têm vocação ideológica. Meu discurso não consegue escapar disto – nenhum consegue –, mas tenta apresentar-se em disponibilidade para revirar e hiperdeterminar-se. Ou seja, deixar a porta aberta para entrar o que quer que seja. A NovaMente, que alguns chamam de Nova Psicanálise é, sim, uma teoria, mas é uma teoria cuja operação é compreender – que significa: acolher – e descrever a nova posição de Quarto Império em que estamos entrando. Para se comportar adequadamente, ela precisou abandonar vários conceitos habituais até o fim do pensamento do século XX. Se tomarem qualquer pensador, qualquer filósofo de então, verão que tem um cara que é o cara. É o tal Sujeito. Não sabem muito bem o que é e, quando tentam defini-lo, aquilo é uma caixa de gatos. O tal sujeito que sempre se definiu por aí é centrado demais, além de centralizador. Um dos golpes formidáveis de Lacan foi lhe dar uma definição tal que ele parece desconfigurado. Como sabem, Lacan dizia que “sujeito é aquilo que um significante representa para outro significante”. E qual é a definição dele para o significante? É “aquilo que representa um sujeito para outro significante”. Vejam que a resposta é circular. Então, fica um jogo de espelhos para situar o tal sujeito lacaniano que, apesar de tudo, ainda é o mais aberto que se construiu até hoje. No entanto, mesmo depois dessa definição em aberto, 271

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o tema do sujeito continua percorrendo a obra, a formulação supostamente metamatemática, digamos, os matemas ou mitemática de Lacan. E continua mesmo assim a ser referido como aquilo a que temos que dar centralidade no pensamento, juntamente com seu objeto. É o que está lá, isto é inegável, mesmo com essa definição circunloquial. Achei melhor abandonar a ideia de sujeito e a de seu objeto e partir para outra consideração, para ficar mais parecido com nosso século. Assim como é preciso abandonar a ideia de indivíduo, que é algo que efetivamente não existe. Todo mundo é divíduo, é um monte de cacos e está misturado com tudo, com a sociedade, com a natureza... O indivíduo foi um mal-entendido de certa época filosófica. Então, fiquei com um sério problema: como chamar essa gente, que não é propriamente bicho, pois está inteiramente tomada pela ideia do que chamo de Secundário? Resolvi tomar um termo mais antigo e mais complicado ainda, dar um banho nele e apresentá-lo de roupa nova. É o termo: Pessoa. Quero me interessar pelas Pessoas. O que é uma Pessoa? Minha definição é: uma Pessoa, qualquer Pessoa – e Pessoa somos nós – não é senão o que chamo genericamente de IdioFormação. Em qualquer lugar dos universos possíveis, se aparecer um construto – biológico ou não, de máquina ou não – que tiver em sua construção Primário, Secundário e Originário, isso é uma IdioFormação – que chamamos de Pessoa aqui em nosso meio. Podemos chamar o de lá de Pessoa também, mas como sua composição deve ser diferente, vamos chamar a nós mesmos de Pessoa, e deixar o de lá no conjunto das IdioFormações não nomeadas. Frequentemente, pensamos que reconhecemos uma Pessoa. Às vezes, temos um amigo de longa data, ele faz uma merda e dizemos que nunca pensamos que ele fosse capaz daquilo. Qualquer um é capaz de não sei-o-quê – justamente porque é uma construção frouxa, não é individual, e não é subjetiva... O que é? Somos polos aglutinados de maneira recalcada em uma formação biológica. Mas são polos constituídos de muitas formações: formações primárias, que são tudo que possamos vir a conhecer sobre o boneco constituído; formações secundárias, que são tudo que diz respeito à ordem da articulação simbólica, se quiserem; e ainda há o Originário, que, ao  272

Homo Zapiens que parece, não há em outra condição a não ser, aqui entre nós, na condição humana: é a competência de dizer não e virar para qualquer lado a qualquer momento. Isto é uma Pessoa. As pessoas variam muito: são polos. Cada polo – um polo pessoal ou não, mesmo um polo literário – tem um foco. O polo dá a impressão de ser bem desenhado justo por ter focos. Posso até centralizar minha atenção em determinado foco, mas o polo tem também franjas, e isso vai longe. Até onde vai minha transa com o universo? Não tenho a menor ideia. Vai ver que está numa estrela a milhões de anos-luz. Costumo, então, dizer que Pessoas são polares – sendo polares, são polos de alguma coisa em sua existência –, têm focos – o foco pode mudar de lugar: a pessoa bate com a cabeça, pira e acabou – e suas franjas são infinitamente longas. franja

foco

– polo – Qual é a importância disso num sistema de pensamento e em nossa atualidade? A importância é que, se fizermos a cabeça nesse sentido e – ao invés de continuar a pensar e articular nossa vida por hábitos – mudarmos de perspectiva, olharemos de outro modo. Se olharmos de outro modo, sobretudo da posição de analista, então estaremos falando com Pessoas. E o que são essas Pessoas? São uma multiplicidade de formações: algumas são focais agoraqui, outras não, e as franjas vão infinitamente longe. Assim, paro de considerar essas ditas Pessoas como aquela função “subjetiva” de cada um, ou como certo “indivíduo”, e passo a observar como estão em exercício aquelas formações ali em jogo. Paro de repetir a ideia absurda de que há uma Pessoa Inteira. Não existe isto. O polo está ali, parece estar fechado dentro daquele bonequinho biológico, mas não somos determinados apenas por essas formações. Assim, isso se expande e explode de tal maneira que até nosso pensamento é formado de formações de formações de formações... Ficamos, 273

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portanto, com grande disponibilidade de só encarar formações onde quer que a gente vá, zapeadamente. Isto, não só no campo do entendimento das Pessoas, como no de todo o resto, das ciências, das artes, dos comportamentos, etc. Estarei considerando certas formações, apenas isto. Tenho, aliás, que criticar a frase que, para ser didático, acabei de dizer. Não há nenhum eu considerando formações. Também aqui não há essa centração toda. O que há aqui são certas formações que, postas em jogo com outras formações, entram numa Transa. Só a língua portuguesa tem, e no Brasil, este termo maravilhoso: a transa. Vamos, portanto, entrar até na teoria do conhecimento com a ideia de que só existem transas entre formações. Não adianta dizer “segundo o pensamento de Platão...” Isto não nos interessa. O que interessa é: há umas formações transando com outras formações e resultando em outras formações – e pessoas zapeando o mundo e o saber mas só na com-sideração entre formações. Quando digo “pessoas zapeando” significa que aqui existem algumas formações que agora e aqui estão interessadas em transar com outras formações e que, por isso, me fazem mexer o dedinho e zapear. Observem que há muito menos Ego, muito menos Narciso nessa formação. “Eu” é o resultado das transas que estão disponíveis nessa pluralidade de com-siderações. Mais nada!

49. Ficamos em uma situação difícil para a consideração da nossa estada no mundo. Como já mostrei de outras vezes, é difícil situar o que querem chamar de espécie humana. Existe uma espécie humana? Não conheço, nunca vi. Digo assim porque, primeiro, temos que saber de alguma maneira o que é humano, dar uma definição; segundo, temos que considerar que todos aqueles de qualquer tempo e de qualquer lugar que podem ser considerados humanos pertencem à mesma espécie desta definição. A história da filosofia já tentou, mas não conseguiu fechar o processo, fechar a definição. O que temos todos identicamente? A genética varia: as composições, mesmo as biológicas, as anatômicas, variam. Então, o que define a espécie? Já sabemos que não dá para definir pela genética. Além de geneticamente a coisa escorregar muito, as transformações paragenéticas que nossa situação sofre – dados o ambiente,  274

Homo Zapiens o modo como fomos gestados, como nos alimentamos – são transformações epigenéticas de fato. Portanto, somos todos diferentes, não há dois iguais. Como disse da vez anterior, não há possibilidade de sexo igual. Ninguém é igual a ninguém. Inventamos leis dizendo que todos os homens são iguais, mas, não são, todos são diferentes. É preciso dizer que são iguais “perante a lei”. Então, a lei é que é igual a si mesma. Nada temos a ver com isso. Igual a mim, não é. Nem eu sou igual ao outro porque a lei assim o disse. Este é um artifício que mesmo a ordem jurídica precisa repensar. De fato, constituímos uma única espécie? Dada nossa situação em Revirão, de termos um saber absoluto dentro de nós que constitui nossa estada, nossa presença aqui – e de que isso dói e isso também goza –, essa noção de estar é a única coisa que temos identicamente. Noção de estar onde? Não faço a menor ideia. Se soubesse, seria o campeão do saber. Estamos, e agora? Somos a espécie que está identificada e identifica todos os elementos desta espécie pela ideia de uma Vinculação Absoluta. Todos estamos absolutamente vinculados uns com os outros por causa disso. Quanto ao resto, os vínculos são meramente acidentais. Quais são os vínculos que uma pessoa tem com outra? Os que ela tem. Ela transa as formações e quais vínculos são possíveis? Este, aquele, etc. Mas é quanto ao único Vínculo Absoluto que, talvez, eu consiga ter uma visão ética e política no respeito radical a qualquer pessoa. Apenas por isto, por sabermos que somos não iguais – não somos iguais de modo algum, nunca, nem perante a lei: aliás, sabemos desde sempre que, perante a lei, alguns são mais iguais do que outros –, ninguém é meu igual, mas todo e qualquer um é idêntico a mim no lugar do Vínculo Absoluto. Aí, é a mesma coisa, é um vínculo mais radical. Isto muda a perspectiva ética e política. Então, do ponto de vista pessoal, do ponto de vista de cada um, não somos iguais. Há transas possíveis, transas impossíveis, vínculos que se criam e que desaparecem, estamos no jogo da absoluta diferença. Mas, do ponto de vista de nossa estada no Haver e também de estada no Mundo, todos somos idênticos na situação de sermos absolutamente vinculados. Há grande dificuldade dentro da vida, pois cada um tem sua historieta pessoal, sua composição genética, sua composição epigenética, o tipo 275

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de cultura e de educação que teve, e o tipo de economia. Então, todos são diferentes e, sendo diferentes, há, por pressão da composição recalcante do Primário, que é muito poderoso, uma forte tendência de as pessoas, em suas histórias, irem se coalescendo em formações sintomáticas resistentes a qualquer mudança. Consequência: do ponto de vista (não biológico, mas) de nossa situação de mundo, temos muitas espécies diferentes. Temos configurações pessoais muito diferentes, todos são diferentes e, às vezes, dá para juntar um grupo aqui outro acolá, o que parece uma espécie. O momento contemporâneo da cultura está se dando conta disto com a ideia de tribos: a garotada tem tribos. Não é a tribo indígena antiga, e sim a da aparente semelhança num determinado momento e num determinado aspecto. Até mesmo a tribo é zapeável, podemos mudar. Do ponto de vista tal, sou desta tribo, de outro ponto de vista, sou daquela, e assim vai. Esse esfacelamento é o século XXI na entrada do Quarto Império.

50. Para pensar isto que apresentei, buscamos alguma possível sistematização. Aliás, vivemos em trabalhos de sistematização. A ordem jurídica, a ordem política, a policial, a acadêmica, etc., tentam sistematizar a Zorra que sempre foi a tal humanidade. Antigamente, a mobilidade era pequena e podia parecer que estava tudo bem catalogado e sistematizado, mas tudo se rompeu: a velocidade e a quantidade de informação dissolveram esse troço. Quer parecer a muitos pensadores de hoje que as sistematizações antigas, feitas até o final do século XX, não dão conta de mais nada. É preciso, então, criar outras sistematizações para ver se organizamos a Zorra do século XXI – e, já que estamos pensando, temos a obrigação de procurar uma sistematização. Apresento-lhes nossa tentativa de sistematização para o homem zapiens que está nascendo. Quero evocar aqui Michel Foucault, que foi a pessoa mais inteligente que conheci. Inteligência quer dizer: verve, capacidade de pensar depressa, dar soluções. Em certo momento de suas aulas, Foucault deu a sugestão de que era preciso tentar sistematizar em três eixos. Não gosto muito do termo eixos, pois parece René Descartes, mas são três formulações para sistematizar nossa estada aqui. Foucault é aquele cara que está no final  276

Homo Zapiens do século XX, já pegou a confusão e tenta lidar com a multiplicidade. Temos, hoje, um problema mais difícil, pois a Zorra se instalou definitivamente e tentamos arrumar sem mais os artifícios do século XX. Ele sugeriu, então, três eixos: a ética, o saber e o poder. Acho isto bem pensado, são três campos bem interessantes. Ética é, para ele, o tratamento que você dá a si mesmo, é uma coisa pessoal; o saber é o que chamamos de conhecimento no mundo; e o poder é o que se pode, com ou sem configuração estatal, etc. Há, então, que dar conta dessas três coisas. Em meu teorema, que tem o apelido de NovaMente, trato desses três campos do seguinte modo. Primeiro, a MORFOLOGIA, ou seja, a Teoria das Formações; segundo, uma ÉTICA resultante dessa teoria das formações. São, pois, uma teoria do conhecimento e uma teoria política. É um processo grande que venho apresentando há longo tempo. Aqui, só posso dar uma leve descrição, pois cada uma destas áreas precisaria de muita gente trabalhando para levar adiante a produção. O que mais importa é a Teoria das Formações: tratar o que quer que haja em noção de formações. Isto que está aqui, esta vida com todos os seus movimentos e a vida de cada um, é a resultante de uma enorme quantidade de formações em suas transas. Tenho, então, que pensar nas formações. Isto não é eu, sujeito ou indivíduo pensando as formações, e sim a aplicação de formações que estão aqui e eventualmente se encontram em formações que estão por aí. Elas que transem entre si e acabem resultando em outra formação que, eventualmente, é uma boa produção de conhecimento para operar o mundo. Nunca mais pensar em eu como sujeito, como centro. Eu não penso, alguma coisa pensa aqui. Por aqui tem uns troços que pensam. Era arrogância demais pensar que eu penso. Deixem isto para René Descartes, que pensava que existia porque pensava – e eu penso que ele não pensava, logo existia. Temos o mau hábito narcísico de atribuir à nossa intimidade, ou sei lá ao quê em nós, que fazemos e acontecemos. Nós somos vítimas. O que me faz estar na escravidão de estar aqui falando para vocês? A Morfologia, a teoria das formações, é este tipo de consideração. É claro que ela precisa ter um desenvolvimento enorme para prosseguir. O importante é que, quando pensamos deste modo – que são formações funcio277

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nando com formações, transando com formações, para bem ou para mal, para amor ou para ódio, tudo isso está aí –, acabamos por endereçar uma Ética nova. Pensar em termos de formações resulta necessariamente em uma nova ética que, antes de mais nada, é anti-narcísica. Isto porque, o tempo todo, preciso estar me dando conta de que algo se pensa aqui (e que posso até querer faturar em cima porque o mercado permite, mas) que é resultante de algo que está fora de “meu” domínio: é resultante das transas das formações pracá com transas de formações pralá. Então, quando as formações passam (por mim), elas co-movem as “minhas” formações. Às vezes, acompanha-se essa transa e vê-se que há resultantes melhores ou piores, tanto faz. Mas isto faz uma ética. É a ética do Anti-Narciso: não fique besta porque você é apenas uma resultante, a origem não está em você. Antigamente, pessoas menos arrogantes e vaidosas diziam que isso vinha de Deus, etc. Quem o tem que o use bem, pois as formações estão aí. Trata-se de uma ética anti-narcísica, contra os narcisismos de baixa extração que praticamos todos os dias. Mas, infelizmente, podemos estar certos de que o narcisismo de última instância não acaba nunca, pois o próprio Haver é narcísico. O Haver parece que se ama, ele gosta de haver – mas é um narcisismo tão elevado que não precisamos nos preocupar com ele. O narcisismo do cotidiano é que é pior.

51. Dado que esta ética seja possível, como ela funciona no caso da com-sideração das formações? Funciona a partir do estatuto mesmo da Nova Psicanálise, que é como já disse aqui: o estatuto da psicanálise é místico. O que confere à Psicanálise, à Formação do Analista, seu lugar? Uma postura mística. A palavra mística está tão suja que só pensamos em duendes, em santos, mas o núcleo da ideia de misticismo não é alguma crendice ou beatice, e sim o afastar-se o mais longe do Mundo. É claro que, em vários misticismos práticos, religiosos ou não, vemos a pessoa se afastar e achar que está procurando outra coisa. Acho os místicos mais interessantes do  278

Homo Zapiens que santos e beatos. Eles são a coisa específica até mesmo dos pensamentos religiosos, são eles que supostamente dão aval às religiões. O místico mais importante e veemente da história da Igreja Católica foi o hoje chamado Santo Antão, que se retirou por setenta anos numa gruta do deserto: um afastamento cada vez mais radical. Várias obras de pintura e teatro evocam as tentações de Santo Antonio. Quando a Igreja Católica fez um Concílio para saber se Jesus Cristo era deus, ou sei-la-o-quê, foram buscar o homem lá na toca para ele dizer: “É sim, eu vi”. Não sei o quê ele queria dizer, pois só disse isto. Foi em seu entorno que se fundou a Tebaida, cheia daqueles maluquetes místicos que queriam eliminar o Primário, sem comer, botando vermes no corpo, etc. A Tebaida é, ao mesmo tempo, algo bastante sublime. E dali é que saiu a ideia de mosteiro, com Pacômio. O que importa e quero ressaltar é que o que define radical e intrinsecamente a ideia de místico é o afastamento do Mundo: distanciar-se, olhar de longe, isto é, não ser imediatamente afetado pelo Mundo, tornar-se indiferente a ele. Isto – afastamento, distanciamento – é a ideia de possibilidade da psicanálise na cabeça de Freud. Ele a chamava de neutralidade do analista. Para ser neutro, temos que nos afastar tanto que a ordem sintomática fica evidente como apenas um monte de formações, fica parecendo que as minhas formações são cada vez mais desafetadas – desafetadas totalmente, isto não existe – de maneira que posso olhar com certa equidade para todas as formações existentes. Diante do olhar neutro, do olhar em consideração mística do Mundo – isto é, diante desse afastamento –, todas as formações do Haver são válidas e legítimas. Tanto é que estão aí. Então, nosso olhar é indiferente. Pensamos que indiferença quer dizer falta de interesse. Não é isto, e sim que todas as formações são diferentes, mas nosso olhar as olha da mesma maneira, acolhe e aceita a sua existência. Quando trabalhamos essas formações, aí atribuindo valores, aí muda tudo, acabaram-se as possibilidades de distanciamento, acabou-se a ordem mística, e entramos na ordem pragmática do toma-lá-dá-cá. Mas se fazemos a crítica dos valores, podemos ver que eles foram optativos aqui e ali e que não se sustentam fundamentalmente. Ou seja, não há fundamento algum para os valores, são meras escolhas ocasionais. 279

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Esta é a ética da psicanálise: afastar-se o mais possível de maneira a poder olhar neutramente e escutar com indiferença o que quer que seja dito, tenha o valor que tenha. Isto porque, se há valor atribuído, para nós não tem valor, tem apenas existência. Neste caso: valor = existência. Esta é a nossa ética na prática.

52. É esta ética que define a Postura do Analista. Se supomos poder ocupar o lugar do analista, se supomos poder funcionar como analista, a coisa mais importante, além de não sermos demasiado ignorantes – pois quanto mais ignorantes, menos formações reconhecemos –, é assumir a Postura do Analista, que não é senão obedecer à ética da psicanálise: o mais intenso afastamento e as mais intensas indiferença e neutralidade. Ninguém consegue isto na totalidade, mas o exercício, a ascese do psicanalista – askesis, em grego, é exercício – é cada vez mais intensificar sua postura, é tornar-se capaz de ser acolhedor a toda e qualquer resistência, a toda e qualquer existência. Só assim ele escuta. E no que consegue escutar, vai à pragmática do mundo, que é outra história, pois há que considerar os valores em jogo. Ou seja, se formos “preconceituosamente” para a escuta, não escutamos. É preciso ser capaz de escutar o inaudito, a especificidade radical de cada formação. O engraçado é que essa ética, essa postura, é capaz de propiciar uma visão de mundo quando há formações por aqui que se interessam por saber coisas. São formações nossas que estão por aí afetadas, interessadas, pela ideia de conhecimento – e quanto mais conhecimento temos, nossa capacidade de compreensão e de possibilidade de acolhimento pode aumentar. Assim, quanto ao interesse de produção dos eixos de que falou Foucault, nossa ideia de conhecimento explode as teorias de conhecimento que apareceram até hoje. Isto porque essas teorias de conhecimento – chamadas pela filosofia que, supostamente, é a dona desse saber, de epistemologias – são teorias que querem dizer o que é e o que não é conhecimento e principalmente o que é e o que não é conhecimento científico propriamente dito. Houve grande produção no campo da filosofia sobre isso e sabem onde deu? Em nada. Só é bom para ficarem nas universidades discutindo durante séculos sobre o assunto, mas, efetivamente,  280

Homo Zapiens deu em nada. Isto porque as teorias epistemológicas são também ideológicas, não dão conta efetivamente de uma ideia precisa de conhecimento. O tempo passa um pouco e vemos que o que tal ou qual grande teoria do conhecimento encontrou foi meramente opcional. E quando o criador dessa teoria é, pelo menos, honesto, ele confirma isto. A teoria talvez mais em voga sobre o que é conhecimento é a de Popper, no sentido de falsificabilidade, etc. Ela sustentou filósofos durante décadas, mas em seus últimos artigos ele, que era um homem lúcido e honesto, disse que era preciso acreditar: se vocês acreditarem que o conhecimento é isso, então funciona. Ora, qualquer religião diz o mesmo. Questão de fé – demais ou de menos. De nosso ponto de vista, não é preciso acreditar em nada disso. Podemos simplesmente utilizar uma formação, uma teoria – por exemplo, uma teoria do conhecimento –, como mero instrumento de operação, como mais um elemento de nossa caixa de ferramentas. Uma das funções do zapeamento contemporâneo é saber usar uma caixa de ferramentas, usar instrumentos de operação. Tomo esses conhecimentos e tenho uma bela caixa de ferramentas, um monte de instrumentos. Qual é o melhor para aplicar agora? Qual o que aparece com mais eficácia e mais adiante pode dar conta de maiores possibilidades de operação? Não vamos torcer parafuso com martelo, e sim com chave de fenda. Este é o homem que está chegando. Ele jamais dirá “sou Flamengo”, e sim “estou aí, se aquilo ali é interessante, vou pegar, se tal teoria é mais abrangente do que tal outra para tal caso, vou pegar”. Ou seja, é a pegação generalizada. Este é o homem zapiens, que não é um filósofo, mas um zapólogo. Quer me parecer que esta é a configuração das pessoas que está emergindo no século XXI. Assim, esta posição ética, que se afasta decisivamente de tudo e pode considerar tudo com indiferença, cai mais facilmente numa possível inteligência a respeito do que é conhecimento. Chamo a teoria do conhecimento produzida pela NovaMente de Gnômica. Ela não é uma epistemologia, e sim uma gnoseologia. A epistemologia está viciada. Estou trocando o radical anterior para mudar de perspectiva: Gnosis é conhecimento. É, pois, uma posição gnóstica, de gnose, de conhecimento do que surge, sem razões preconceituosas ou pré-fabricadas: consi281

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deremos as formações uma a uma, caso a caso (e sempre lembrar que dizer “consideremos” está errado). Então, que formações considerem formações e tomemos os resultados que possamos zapear e aplicar. Assim, baseado nesta visão de conhecimento, costumo dizer: o que quer que se diga é da ordem do conhecimento – resta saber onde o arrumar, para que serve, se há alguma hierarquia entre isto e aquilo em função de outra formação determinante. Tudo em função do caso a caso, tudo zapeadamente, da pessoa à pessoa. O conhecimento é, pois, resultado da transa entre formações, acervo de instrumentos, caixa de ferramentas... Assim, a ética da psicanálise acaba, ela, sugerindo uma teoria do conhecimento. Ou seja, a Postura do Analista propicia a possibilidade de uma Teoria do Conhecimento que é transa entre formações.

53. Empurrando mais para a frente, esta mesma ética, esta mesma postura, ao considerar o mundo do ponto de vista do Poder, como dizia Foucault, do ponto de vista político e, consequentemente, do ponto de vista econômico, nos leva a ter que pensar o que possa ser a teoria política consentânea com esta postura. Isto é, além de resultar em teoria do conhecimento, esta postura pode chegar a resultar em teoria política. Observem que tento descrever o que parece estar acontecendo, e não, preconizar funcionamentos para o mundo. Ouço tanta gente, leio tantos autores que me parece estar acontecendo no mundo, no século XXI, a tendência de entrada do Quarto Império. Já vemos isto nas ruas quando muitos jovens dizem que não querem saber de Partidos. Isto é sério, não é bobagem ou ignorância, é jovem sabedoria. Quando as ordens instituídas começam a falir e não garantir mais comportamento algum, como pensar? Temos, então, nossa teoria política que sugere que, se as coisas continuarem caminhando desse modo, com os fundamentos em derrocada, com a dispersividade do conhecimento, com o afastamento ético que não considera mais pré-dispositivo algum como valor adquirido definitivamente pela cultura, o que vai acontecer é termos a grande possibilidade – que me parece estar nascendo – de uma política radicalmente nova em que mais ninguém é de partido algum, ou vota e faz isto ou aquilo  282

Homo Zapiens baseado em ideologias. Se todos começarem a não fazer mais isto, qual será a força possível de ser instituída baseada na ética e na teoria de conhecimento de que falei? Qual força é capaz de ser instituída politicamente no mundo com pelo menos um princípio? Quer me parecer que, quando o Quarto Império conseguir se instalar – o que não é para nós, já estaremos mortos, mas, pelo menos, estamos no processo –, surgirá algo parecido com o que chamo de Diferocracia. Seu princípio fundamental é aquele da ética: temos um Vínculo Absoluto com qualquer pessoa, no entanto, ninguém é igual a ninguém, nem mesmo perante a lei. E o Poder emana da Diferença. Pode se instaurar um procedimento político cujo intocável é a Diferença. Isto jamais existiu na história da humanidade. Parece que se está começando a caminhar para lá. Repetindo: qual é o princípio da Diferocracia, se todos somos idênticos no nível do Vínculo Absoluto – e todos temos esta vinculação –, no entanto todos somos diferentes e o soberano é a Diferença? Nenhuma diferença pode ser anulada. Ela pode ser considerada, pode ser até contida, pois há os embates sociais e políticos, mas todas têm que ser respeitadas como legítimas. Depois, conversamos sobre como é a transa entre as pessoas. Isto é outro departamento, outro Congresso. Se alguém odeia não sei-o-quê, é problema dessa pessoa, pois o outro tem o direito de ser daquele modo. Então, como transar? Há que pensar como armar um sistema social com certa contenção, pois, se não, é a guerra. Isto nada tem a ver com democracia. A moda ainda é aquela do século XX, de elogiar e desejar a democracia, mas esta de fato nunca existiu. Democracia é todo mundo votar e a maioria ganhar. Isto se chama ditadura da maioria. Ou, se não, democracia é todos que têm grana e pertencem a um partido forte, ou são gente de algum poder, poderem manipular por muitos meios a massa e os votos de maneira que, de fato, isso é uma oligarquia. Então, das duas uma, o que conhecemos como democracia ou é oligarquia ou é ditadura da maioria. A democracia é uma boa ideia. Se existisse, seria ótimo, mas não há condições, mesmo mentais, para acreditar nela. Isto porque ela começa a se exercer num regime de articulações partidárias, de articulações de classes, articulações econômicas, então perdeu-se. E mesmo que houvesse uma pureza 283

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de escolha, que as pessoas tivessem lucidez e serenidade para votar, ainda assim o que ganha é o mando da maioria. Quem não faz parte desta maioria é o quê? Resto, dejeto, lixo? Então, a única saída talvez, que já está sendo propiciada em seu início no século XXI, é caminharmos para a ideia de Diferocracia. Não preciso chamar atenção para isto, pois está nos jornais, na televisão: as minorias se rebelando e dizendo “quero minha diferença, sou assim e você nada tem a ver com isto”. O movimento é este. Para mim, a resultante disso tudo é chegar à ética e à teoria do conhecimento que seja aceitação de qualquer articulação como conhecimento e, na política, à Diferocracia: o poder do soberano como Diferença. Isto não é filosofia da diferença, pois, esta, nasce na simples consideração das diferenças. A Diferocraria é a ideologia da Identidade de todos num Vínculo Absoluto. Então, por respeito a esta Identidade, devo aceitar todas as configurações de formações que se dão para qualquer um. Cria-se, portanto, a ideia de Diferocracia não por imediato respeito à diferença, pois não tenho como provar a necessidade de respeito à diferença a não ser que tenha vinculação absoluta de Identidade com todos. A partir deste ponto, estou no respeito radical ao direito à Diferença de cada um. Isto necessariamente exige uma reforma enorme, tanto do entendimento quanto das instituições políticas, econômicas e sociais. Alguma situação de governo será necessária, terá que ser inventada. Dado o que já acontece por aí, suponho que será a invenção de políticas ad hoc. Não se terá um partido que acha que deva ser socialista, outro que deva ser liberal. Isto é uma imbecilidade nossa que grassou por aí até final do século XX e já começa a perecer. O que tento sugerir à política é: a melhor convivência possível, a melhor vida para cada um, no respeito a todas as diferenças. Então, essas políticas são ad hoc, caso a caso. Por exemplo, coloca-se no poder um partido com sua imbecilidade específica – todo partido é partido: é um imbecil pela metade, como o nome está dizendo – que acha que deve ser socialista e começa a barrar o liberal. Aí acontece uma mudança qualquer, manipula-se o povo e coloca-se um liberal, o qual deixa os pobres morrerem, eles que se danem (estou exagerando, é claro)? Já o governo diferocrático é ad hoc. Se aqui está ruim, então nesse momento deve-se dar um golpe de liberalismo. Se ali estragou, deve-se dar um golpe de socialismo. Isto porque  284

Homo Zapiens não é liberal ou socialista, e sim um conjunto de formações que está jogando com possíveis formações. Por que, como dizem os deputados, tenho que ser “coerente com meu partido”? Não dá para ser inteligente em vez de coerente? Infelizmente, está assim e estará assim por muito, muito tempo. Apenas suponho que, se o encaminhamento que o século está tomando se desenvolver o bastante, terá que chegar às políticas ad hoc num Estado MiniMax. Vemos, na América, Partido Republicano e Partido Democrata praticamente em guerra por serem partidários demais. Os ultraliberais querem que o Estado seja Mínimo para permitir o máximo de liberdade individual, os Socialistas querem que o Estado seja máximo para garantir que aqueles que não podem efetivar maiores movimentos econômicos tenham um mínimo de possibilidade. Ora, os dois estão certos, mas não dá para juntar e ter um estado que seja, ele, MiniMax. Hoje, com as novas tecnologias, dá, sim, para haver um Governo que seja MiniMax, e ad hoc, a cada caso, a cada emergência. Quereremos que haja grande iniciativa empresarial e também que todos tenham um mínimo de direito a uma boa situação econômica. Isto, sempre num processo de atuação ad hoc na política, e não de crença partidária de crença política. As crenças políticas viram religiões. Ou o marxismo, por exemplo, é o quê?

54. • P – A figura de Zaratustra é a de um místico. Ele faz uma espécie de afastamento do mundo, depois retorna e vê que não é bem assim, que não dá para pregar para o público, que a democracia o comeria. Como o pensamento de Nietzsche está afinado ao seu? Você fala, por exemplo, em indiferenciação, o que poderia ser lido como o amor fati que Nietzsche toma de Espinosa. Nasci depois dessa gente toda, Espinosa, o místico que subiu a montanha, o outro que se trancafiou na caverna... • P – Seu pensamento tem alguma diferença pontual ou está apenas filiado a esses autores? Filiado, não é o caso. Influenciado, sim. Mas o modo de operação e construção da teoria é radicalmente outro. Há uma questão nuclear aí. Quando 285

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Freud se dá conta da ideia de pulsão de morte, até ajudado por analisandos para ele entender, esta é uma ideia assustadora, mesmo para quem a pensou. Faço a Freud a crítica – nem tenho o direito de fazê-la, pois ele já deu tanto, não tinha que dar tudo – de, depois de ter concebido esta ideia, não ter aplicado direito o conceito. Ou ele se assustou ou ficou paralisado, alguma coisa aconteceu que o fez continuar a falar de Pulsão de Morte como destruição, e de Pulsão de Vida... Digo isto porque, quando ele põe o conceito, ele é radical, não existe possibilidade de outra pulsão. Esta teoria que agora apresento está baseada em que a pulsão de morte é a Lei do Haver: Haver desejo de não-Haver. Que eu saiba, ninguém antes disse assim ou partiu daí. Quando partimos daí, ficamos numa situação radicalmente analítica, ficamos dentro do que chamei de estrita Postura do Analista. Algumas pessoas comentam que é pessimismo a Lei ser “desejo de não-Haver”, mas isto nada tem a ver com pessimismo ou otimismo. Se a Lei é Haver desejo de não-Haver, simplesmente o não-Haver não há e há que ficar por aqui mesmo. A pulsão de morte é tão importante e radical que, mesmo sendo transcendental, nos remete em última instância a uma imanência radical: não há outro lado. Entretanto, o fato de esta espécie ou esse troço que somos estar metido no processo de reviramento – que faz com que se diga Haver desejo de não-Haver – é que nos obriga a nos instalarmos definitivamente do lado de cá. Isto, apesar de achar este lado uma merda, de sempre querer cair fora: “Para! Que eu quero descer!”. É o que está no fundinho da cabeça de todos nós. Mas não tem para onde descer. Só que o fato de entender que é assim, que não tem saída, me ajuda a esclarecer. Então, não é uma questão de pessimismo ou otimismo. Preferia não ter nem nascido, era mais confortável... Mas não tem jeito, agora é assim, não tem saída e não tem lado de lá. A angústia de tentar sair da posição é o que cria várias crenças em outro mundo. As pessoas ficam procurando uma saída, mas lamento informar que parece que não há. Portanto, temos que dar um jeito por aqui mesmo. • P – Você disse que Michel Foucault propõe três eixos. Entendo que, com o saber, adquirimos o poder, pois para ter o poder é preciso ter o saber. Mas de onde vem a ética? Nascemos com ela?  286

Homo Zapiens Esta ética é um trabalho enorme de análise. Não se esqueça de que esta ética está sendo preconizada por esta teoria, ela não caiu do céu, nem nasceu espontaneamente. Ela está baseada na postura de reconhecimento da necessidade de afastamento tanto para reconhecer, acolher, como para entender e governar. Esta ética está filiada ao pensamento psicanalítico. Ninguém pode dizer “eu tenho a ética”. Eu tenho esta ética, que me parece capaz de ser consentânea com o que está acontecendo no planeta. Uma ética é genérica, uma moral é outra coisa. Uso aqui os termos grego e latino diferenciados. O que chamo de ética é algo extremamente abstrato. Como o caminho que estou apontando é de um distanciamento tal, não trato com valores, e sim com existências. Mas quando desço ao mundo, como foi dito aqui sobre Zaratustra descer a montanha, tenho que lidar com valores. É aí que Nietzsche propõe sua transvaloração. • P – A transvaloração ou indiferenciação será para poucos. Pretender que a massa faça adesão a isto não seria desconhecer o desejo de massificação, de narcisismo, de união desse gozo mais pleno de todos juntos? Nunca houve “todos juntos”. Há as patotas, as tribos... • P – Não há uma compulsão gregária? Você acha? Quem tem isso é bicho, é o Primário. Quando o Secundário começa a elaborar, começa a ver que isso é dispersado. Pela reflexão, por exemplo. Que há esse sintoma, há sim, pois o Primário é bicho demais. Então, se abrimos um rebanho o pessoal entra, mas quando começa a pensar vai se perguntar o que está fazendo ali. Esta é a questão: quando nos perguntamos o que estamos fazendo aqui, começamos a estragar tudo, toda a gracinha dos amores e seus ódios. • P – Tentando levar algum otimismo para a coisa, você não acha que o Homo Zapiens, em função de conviver com a fragmentação da comunicação, do conhecimento, do fractal de tudo, ele não aceita melhor suas formações? Ele começa a deixar de obedecer a regrinhas dos outros. Por que tenho que ser como você manda? Lacan dizia que a psicanálise é a ciência do singular. Os epistemólogos tremem na sepultura, mas ninguém vai ser você. 287

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Se você não for você, quem vai ser? Não vamos confundir isto com a idiotice americana que o pessoal lá chama de psicanálise e que simplesmente é teoria do ego forte. Apesar de ter o nome de ego forte, e como o ego é uma coisa relativamente estúpida, é uma teoria da adaptação. Não é uma teoria da sua afirmação e aceitação. Isto, desde que você entenda quem é você e não fique pensando que é o que mamãe disse ou que papai falou. A função talvez mais importante da análise é: Quem é você? Com quem estou falando? Até entender que você não é nem Mariquinha nem Maricota. • P – Para que precisamos saber quem a gente é? Para deixar de ser escravo dos outros. A não ser que se goze muito com isto. Estejam à vontade. • P – Quando você falou da ética do distanciamento, lembrei de uma entrevista recente com Cat Stevens, que virou muçulmano. Ele falou de sua experiência, contou que subiu uma montanha e, quando desceu, viu o mundo de uma perspectiva diferente. Ele estava falando de um misticismo que era via Alcorão. Quando este livro caiu em suas mãos, resolveu, deu conta de seu caso clínico, ele o abraçou e foi embora. Então, parece que, para exercer esse misticismo, para, segundo a psicanálise, exercer esse distanciamento, precisamos de um canal. O canal dele foi o Alcorão. Para a maioria das pessoas do Ocidente, é a religião católica. Precisamos sempre de um canal? Sim. O meu se chama Psicanálise. • P – Então, sempre precisamos? Claro! Vamos andar em cima do quê? • P – Então, precisamos de uma pedagogia? Sim. Por isso mesmo publiquei em 1992 um livro intitulado Pedagogia Freudiana. Muito obrigado por me aturarem este ano todo. APLAUSOS 12/NOV  288

Ensino de MD Magno

Sobre o Autor MD Magno (Prof. Dr. Magno Machado Dias): Nascido em Campos dos Goitacazes, Rio de Janeiro, Brasil, em 1938. Psicanalista. Bacharel e Licenciado em Arte. Bacharel e Licenciado em Psicologia. Psicólogo Clínico. Mestre em Comunicação; Doutor em Letras; Pós-Doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (RJ, Brasil). Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Santa Maria (RS, Brasil). Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Professor Associado do Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII (Vincennes), quando era dirigido por Jacques Lacan. Fundador do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro (instituição psicanalítica). Fundador da UniverCidadeDeDeus (instituição cultural sob a égide da psicanálise). Criador e Orientador de NovaMente, Centro de Estudos e Pesquisas, Clínica e Editora para o desenvolvimento e a divulgação da Nova Psicanálise. Atualmente, além de sua atividade como Psicanalista, continua o desenvolvimento de sua produção teórico-clínica (work in progress) em Falatórios, SóPapos e Oficinas Clínicas, realizados na sede da UniverCidadeDeDeus e publicados regularmente.

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Ensino de MD Magno

MD Magno vem desenvolvendo ininterruptamente seu Ensino de psicanálise desde 1976, ano seguinte à fundação oficial do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro. 1. 1976: Senso Contra Censo: da Obra de Arte Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978. 216 p. 2. 1976/77: Marchando ao Céu Seminário sobre Marcel Duchamp. Proferido na Escola de Artes Visuais do Rio de Janeiro (Parque Laje). Inédito. 3. 1977/78: Rosa Rosae: Leitura das Primeiras Estórias de João Guimarães Rosa Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1985. 3ª ed., 220 p. 4. 1978: Ad Sorores Quatuor: Os Quatro Discursos de Lacan Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2007. 276 p. 5. 1979: O Pato Lógico Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986. 2ª ed., 252 p. 6. 1980: Acesso à Lida de Fi-Menina Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 316 p. 7. 1981: Psicanálise & Polética Quatro sessões, sobre Las Meninas, de Velázquez, reunidas em Corte Real, 1982, esgotado. Texto integral publicado por Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986. 498 p. 8. 1982: A Música Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986. 2ª ed., 329 p. 9. 1983: Ordem e Progresso / Por Dom e Regresso Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1987. 2ª ed., 264 p.

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Ensino de MD Magno 10. 1984: Escólios Parcialmente publicado em Revirão: Revista da Prática Freudiana, n° 1. Rio de Janeiro: Aoutra editora, jul. 1985. 11. 1985: Grande Ser Tão Veredas Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2006. 292 p. 12. 1986: Ha-Ley: Cometa Poema // Pleroma: Tratado dos Anjos Publicados em: O Sexo dos Anjos: A Sexualidade Humana em Psicanálise. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1988. 249 p. 13. 1987: “Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise”, Ainda // Juízo Final Publicados em: O Sexo dos Anjos: A Sexualidade Humana em Psicanálise. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1988. 249 p. 14. 1988: De Mysterio Magno: A Nova Psicanálise Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1990. 208 p. 15. 1989: Est’Ética da Psicanálise: Introdução Rio de Janeiro: Imago Editora, 1992. 238 p. 16. 1990: Arte&Fato: A Nova Psicanálise, da Arte Total à Clínica Geral Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2001. 520 p., 2 vols. 17. 1991: Est’Ética da Psicanálise (Parte 2) Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2002. 392 p., 2 vols. 18. 1992: Pedagogia Freudiana Rio de Janeiro: Imago Editora, 1993. 172 p. 19. 1993: A Natureza do Vínculo Rio de Janeiro: Imago Editora, 1994. 274 p. 20. 1994: Velut Luna: A Clínica Geral da Nova Psicanálise Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 2ª ed., 310 p.

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Zig / Jac : Mag

21. 1995: Arte e Psicanálise: Estética e Clínica Geral Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 2ª ed., 264 p. 22. 1996: “Psychopathia Sexualis” Santa Maria: Editora UFSM, 2000. 453 p. 23. 1997: Comunicação e Cultura na Era Global Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2005. 408 p. 24. 1998: Introdução à Transformática: Por uma Teoria Psicanalítica da Comunicação Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2004. 156 p. 25. 1999: A Psicanálise, Novamente: Um Pensamento para o Século II da Era Freudiana: Conferências Introdutórias à Nova Psicanálise Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 2ª ed., 224 p. 26. 2000: “Arte da Fuga” Publicado em: Revirão 2000/2001. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2003. 656 p. 27. 2001: Clínica da Razão Prática: Psicanálise, Política, Ética, Direito Publicado em: Revirão 2000/2001. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2003. 656 p. 28. 2002: Psicanálise: Arreligião Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2005. 248 p. 29. 2003: Ars Gaudendi: A Arte do Gozo Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2006. 340 p. 30. 2004: Economia Fundamental: MetaMorfoses da Pulsão Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2010. 260 p. 31. 2005: Clavis Universalis: Da cura em Psicanálise ou Revisão da Clínica Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2007. 224 p.

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Ensino de MD Magno 32. 2006: AmaZonas: A Psicanálise de A a Z Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 198 p. 33. 2007: A Rebelião dos Anjos: Eleutéria e Exousía Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2009. 210 p. 34. 2008: AdRem: Gnômica ou MetaPsicologia do Conhecimento Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2014. 158 p. 35. 2009: Clownagens Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2012. 210 p. 36. 2010: Falatório [a sair] 37. SóPapos 2011 [a sair] 38. Sópapos 2012 [a sair] 39. SóPapos 2013 Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2015. 40. 2013: Zig/Jac: Mag – Razão de um Percurso (Conferências Simplórias 2013, para divulgação da Nova Psicanálise, realizadas na Universidade Candido Mendes) Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2015. 41. SóPapos 2014 [a sair] 42. SóPapos 2015 [em curso]

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Zig / Jac : Mag

Obra Literária 1. Oferta do Meu Mistério Livro composto e reproduzido pelo autor (mimeografado). Rio de Janeiro, 1966. 2. Aboque/Abaque: Crestomatia Rio de Janeiro: Editora Rio, 1974. 200 p. 3. Sebastião do Rio de Janeiro Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro / Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, 1978. 142 p. 4. CantoProLixo Aoutra editora / Matias Marcier, 1985. 90 p. 5. Kaluda (O Nando e Eu) Publicado em: Letras, Revista do Mestrado em Letras da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM/RS), edição especial, jan/jul 1995, p. 254-285. Republicado em: PUCHEU, Alberto (org.). Poesia (e) Filosofia: por poetas-filósofos em atuação no Brasil. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998. p. 29-50. Terceira publicação: Et Cetera: Revista de Literatura e Arte, n. 3, março 2004, p. 170-177. Curitiba: Travessa dos Editores. ISSN 1679-2734. 6. S’Obras (1982-1999) Coletânea de poemas. Curitiba: Travessa dos Editores, 2002. Editada por Fábio Campana, com coordenação gráfica e editorial de Jussara Salazar.

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Este livro foi composto nas fontes Amerigo BT, Garamond ITC Bold BT e Times New Roman.

MD Magno

Razão de um Percurso

N elma Medeiros

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