Rainha Santa Isabel: Fontes para o seu estudo 9789892619453, 9789892619460

A veneração e o culto da Rainha Santa Isabel, em Portugal, desenvolveram-se logo após a sua morte, que ocorreu em 1336,

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Rainha Santa Isabel: Fontes para o seu estudo
Sumário
Nota introdutória
PRIMEIRA PARTE – MEMÓRIA DA RAINHA SANTA ISABEL ATÉ MEADOS DO SÉC. XVI
I. Memória escrita
I.1. Atos notariais e relato biográfico/hagiográfico na génese do culto da Rainha
I.2. Anais, crónicas e livros de linhagens
I.3. Ofício da bem aventurada rainha D. Isabel de André de Resende
I.4. Textos contemporâneos da obra de Perpinhão
I.5. Tratamento das fontes escritas
II. Tradição. Testemunho presencial
SEGUNDA PARTE – ESTUDO COMPARATIVO
II.1. Antecedentes familiares
II.2. Infância
II.3. Casamento
II.4. Do modo do seu viver
II.5. Conflitos
II.6. Viuvez. Modo de vida
II.7. Obras de assistência
II.8. Peregrinação a Santiago de Compostela
II.9. Devoção
II.10. O complexo de Santa Clara
II.11. Milagres
NOTA FINAL
BILIOGRAFIA
Manuscritos
Textos analisados
Estudos
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Rainha Santa Isabel: Fontes para o seu estudo
 9789892619453, 9789892619460

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Helena Costa Toipa

AINHA

SANTA ISABEL

FONTES PARA O SEU ESTUDO

IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA 2020

A veneração e o culto da Rainha Santa Isabel, em Portugal, desenvolveram-se logo após a sua morte, que ocorreu em 1336, e ficaram registados em relatos

cronísticos, hagiográficos, biográficos e notariais, entre outros, que reuniram abundante informação sobre a sua vida e milagres.

Pedro Perpinhão, religioso da Companhia de Jesus que trabalhou, como

professor, orador e investigador, em Portugal, entre os anos de 1551 e 1561,

escreveu em latim uma biografia da Rainha Santa Isabel de Portugal, De Vita et

Moribus Beatae Elisabethae Lusitaniae Reginae, que era a primeira nesta língua e a mais completa composta até então. Para ela, consultou todas aquelas

fontes medievais portuguesas e utilizou-as de forma exaustiva e imparcial,

num esforço claro de ser completamente fiel à verdade histórica; nela reúne todo o conhecimento da época sobre Santa Isabel, passados mais de dois séculos após a sua morte.

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edição

Imprensa da Universidade de Coimbra Email: [email protected] URL: http//www.uc.pt/imprensa_uc Vendas online: http://livrariadaimprensa.uc.pt coordenação editorial

Imprensa da Universidade de Coimbra C onceção gráfica

Imprensa da Universidade de Coimbra I magem da C apa

Spanish (Madrilenian) School / Public domain I nfografia

Margarida Albino print by

KDP

ISBN

978-989-26-1945-3 ISBN D igital

978-989-26-1946-0 DOI

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1946-0

TOIPA, Helena Costa Rainha Santa Isabel: fontes para o seu estudos – (Documentos) ISBN 978-989-26-1945-3 (ed. impressa) ISBN 978-989-26-1946-0 (ed. eletrónica) CDU     930

© março 2020, I mprensa da U niversidade de C oimbra

Helena Costa Toipa

AINHA

SANTA ISABEL FONTES PARA O SEU ESTUDO

IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA 2020

(Página deixada propositadamente em branco)

su m á r i o

Nota introdutória............................................................................................

7

PRIMEIRA PARTE – MEMÓRIA DA RAINHA SANTA ISABEL ATÉ MEADOS I.

DO SÉC. XVI.........................................................................................

11

Memória escrita.....................................................................................

13

I.1. Atos notariais e relato biográfico/hagiográfico na génese do culto da Rainha...................................................................................................

13

I.2. Anais, crónicas e livros de linhagens...................................................

28

I.3. Ofício da bem aventurada rainha D. Isabel de André de Resende......

33

I.4. Textos contemporâneos da obra de Perpinhão....................................

35

I.5. Tratamento das fontes escritas..............................................................

40

II.

Tradição. Testemunho presencial..........................................................

53

SEGUNDA PARTE – ESTUDO COMPARATIVO...............................................

61

II.1. Antecedentes familiares........................................................................

63

II.2. Infância................................................................................................. 83 II.3. Casamento ............................................................................................ 85 II.4. Do modo do seu viver..........................................................................

91

II.5. Conflitos ............................................................................................... 103

5.1. D. Dinis contra seu irmão, D Afonso............................................. 104



5.2. D. Dinis contra Castela.................................................................. 115



5.3. D. Dinis, árbitro peninsular........................................................... 120



5.4. D. Dinis contra seu filho. Guerra civil 1319-1324......................... 129



5.5. Outras intervenções....................................................................... 158

II.6. Viuvez. Modo de vida........................................................................... 163 II.7. Obras de assistência ............................................................................ 167 II.8. Peregrinação a Santiago de Compostela............................................... 171 8.1. Primeira peregrinação de Santa Isabel.......................................... 177 8.2. Segunda peregrinação de Santa Isabel.......................................... 182 II.9. Devoção................................................................................................. 187 II.10. O complexo de Santa Clara.................................................................. 189 II.11. Milagres................................................................................................. 210

NOTA FINAL................................................................................................... 241 BILIOGRAFIA................................................................................................. 243 Manuscritos........................................................................................... 243 Textos analisados.................................................................................. 243 Estudos.................................................................................................. 244

6

N o ta i n t r o d u t ó r i a

Este estudo resultou de um projeto de Pós-doutoramento em Literaturas Clássicas (Literatura Novilatina em Portugal), subordinado ao tema “O culto da Rainha Santa Isabel, em Coimbra, no século XVI, e as celebrações em sua honra no Colégio das Artes: a obra de Pedro João Perpinhão, S.J.”, ao abrigo do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, com o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. O trabalho agora apresentado revela as fontes historiográficas medievais utilizadas pelo padre jesuíta Pedro Perpinhão, professor do Colégio das Artes, ao compor, em meados do século XVI, em latim, a língua de comunicação dos humanistas e aquela que permitia uma divulgação mais abrangente do conhecimento entre os estudiosos, uma biografia da Rainha Santa Isabel, a mais completa das que existiam nessa época, quer anteriores, quer contemporâneas. O trabalho central consistiu na tradução, comentário e anotação desse texto; subsidiariamente fez-se o levantamento das fontes escritas consultadas pelo autor, maioritariamente medievais, existentes no cartório do Mosteiro de Santa Clara (re) fundado por D. Isabel de Aragão, e eventualmente no de Santa Cruz 1,

1  Os primeiros padres jesuítas que, em 1542, se dirigiram para Coimbra, para aí fundarem o Colégio de Jesus, começaram por ficar hospedados no Mosteiro de Santa Cruz, pelo espaço de um mês, e aparentemente, em situação de boas relações institucionais, pelo menos ao princípio (Francisco Rodrigues, (1931), História da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal, Porto: Apostolado da Imprensa – Empresa Editora, tomo I, pp. 302-327; 405-430). Também em 1555, quando D. João III entregou o Colégio das Artes à Companhia de Jesus, este ocupava as instalações dos Colégios de S. Miguel e de Todos-os-Santos, bem como edifí-

acessíveis a um número reduzido de pessoas; no primeiro, compulsou documentação relacionada com a Rainha e a sua ação em Coimbra e, particularmente, neste mosteiro; no segundo, poderá ter consultado crónicas e anais da história portuguesa. Perpinhão compilou, numa só obra, todas as informações escritas até então, da mais variada proveniência: um relato biográfico/hagiográfico, quase contemporâneo da Rainha, a Crónica de 1419 e as crónicas de Rui de Pina, ofícios litúrgicos e documentos oficiais resguardados nos já referidos mosteiros, alguns eventualmente da própria rainha, como os seus testamentos, declarações públicas ou cartas. A sua intenção era, depois de exaustiva pesquisa, reunir, atualizar e divulgar toda a informação escrita relativa a Santa Isabel e, naturalmente, contribuir para o processo de canonização em marcha desde a sua morte. Apesar de composto entre 1559-1561, o seu relato biográfico permaneceu, no entanto, manuscrito até 1609, ano em que foi publicado em Colónia; veio a servir de inspiração, por sua vez, a outros autores que escreveram sobre a Rainha Santa.

cios anexos, que pertenciam ao Mosteiro de Santa Cruz; apenas em 1566, os jesuítas trocaram estas instalações pelas do Colégio de Jesus, na alta de Coimbra (Vd. Mário Brandão (1933), O Colégio das Artes (1555-1580), Coimbra: Imprensa da Universidade; Francisco Rodrigues, na obra citada; António de Vasconcelos (1939) “Os Colégios Universitários de Coimbra. (Fundados de 1537 a 1779)”. Biblos, XV, Tomo I, Coimbra, pp. 1-170). Apesar de as relações entre crúzios e jesuítas terem sido conflituosas, ao longo deste período, não excluímos a possibilidade de algum intercâmbio cultural entre ambos.

8

F o n t e s h i s t o r i o g r á f i c a s m e d i e va i s p o r t u g u e s a s pa r a a d e f i n i ç ã o d a b i o g r a f i a q u i n h e n t i s ta d a R a i n h a S a n ta I s a b e l

(Página deixada propositadamente em branco)

PRIMEIRA PARTE MEMÓRIA DA RAINHA S ANTA I S ABEL AT É MEADO S DO S É C . X VI

(Página deixada propositadamente em branco)

I . M e m ó r i a e s c r i ta

I.1. Atos notariais e relato biográfico/hagiográfico na génese do culto da Rainha O culto da Rainha Santa Isabel2 começou logo após a sua morte que, significativamente, se revestiu de características maravilhosas, envolvendo-a numa aura de sobrenatural: segundo o primeiro relato sobre a sua vida, comummente conhecido por Lenda da Rainha Santa, nos dias que antecederam o passamento, a Rainha, já moribunda, recebeu a visão de Nossa Senhora que, na opinião dos seus familiares e amigos presentes, a mandara confortar 3; da mesma forma, durante o cortejo

2  Sobre a veneração da Rainha Santa Isabel, a evolução do seu culto e todo o processo e documentação compilada conducentes à canonização, consulte-se obrigatoriamente António de Vasconcelos (1891-1894), Evolução do culto de Dona Isabel de Aragão, esposa do rei lavrador, D. Dinis de Portugal (a Rainha Santa). Reprodução fac-similada da edição de 1891-1894. Prefácio e Introdução de Manuel Augusto Rodrigues. 2 vols. Coimbra, Arquivo da Universidade de Coimbra, 1983. 3  As citações desta obra serão feitas a partir da edição de José Joaquim Nunes, “Vida e milagres de Dona Isabel, Rainha de Portugal. Texto do século XIV restituído à presumível forma primitiva.”, Boletim da Classe de Letras, 13 (1921), pp. 1292-1304 (Introdução) e pp. 1307-1384 (Livro que fala da boa vida que fez a Raynha de Portugal, Dona Isabel, e dos seus boons feitos e milagres em sa vida e depoys da morte). Adiante designá-la-emos por Lenda da Rainha Santa ou simplesmente por Lenda. Pp.1361-62: [A Rainha] Ouve destemperamento per razom de uuma levadiga que lhe saio em no braço, e de seu uum dia segunda feira nom saio da camara ao paaço ouvir missa, segundo soia, em sa capela com elrey, seu filho. E a rainha [D. Beatriz] vinha-se ali pera ela e confortava-a e servia-a e fazia a ela prazer em aquelo que viia que ela prazer aver podia.E, jazendo esta rainha em sa camara, a rainha dona Beatriz seendo acerca da cama, a rainha Dona Isabel disse aa rainha Dona Beatriz: – Filha senhora, dade logo a esta dona que hi vai. E a rainha [disse]:

fúnebre de Estremoz para Coimbra, numa viagem de sete dias, em pleno mês de Julho, o cheiro de rosas que emanava do líquido que escorria pelas fendas do caixão causou a maior estranheza e admiração, levando ao registo do fenómeno em escritura pública, atestada por aqueles que tinham acompanhado o préstito 4. – Que Dona é? E ela disse: – Essa que por i vai dessas vestiduras brancas. E a rainha, nem [n]as outras nom viam cousa do que ela dizia. E teverom que Deus e sa Madre, a que ela dereitamente e devotamente servia, a mandavam confortar. É característico dos textos hagiográficos medievais o relato de visões celestiais com que são contemplados os santos, bem como a descrição das suas virtudes e milagres; o Livro que fala da boa vida que fez a Raynha de Portugal, Dona Isabel, e dos seus boons feitos e milagres em sa vida e depoys da morte é um relato hagiográfico, mas também cronístico, “pela profusão de dados genealógicos e espácio-temporais que inserem a sua figura na realidade e lhe conferem uma dimensão histórica exemplar” (Mª Isabel Cruz Montes, Vida e milagres de Dona Isabel, Rainha de Portugal. (Edição e Estudo). Dissertação de mestrado dactilografada, Lisboa, 1999, p. 37). Vd. Maria Clara de Almeida Lucas (1984), Hagiografia Medieval Portuguesa. Lisboa. 4  Lenda,

pp.1365-1366; 1369-1370. E prougue a Nosso Senhor de querer mostrar em [n]o corpo daquela rainha que conhocia o bõo serviço que d’ela em este mundo recebera de guisa que cuidavam que aquelo fosse fedor e que saisse daquele ataude que fosse o melhor cheiro e odor que omeens veer podessem, de guisa que diziam aqueles que se ao ataude chegavam que tam noble odor de cousa nom virom. E esto tiinham prelados e muitos outros omeens e boas donas que ali viinham por gram milagre que Deus por ela mostrava de veerem o corpo de uuma molher morta por tantos dias (e) nom cheirar senom bem, e davam a Deus graças e louvor por [l]o que se mostrava em esta rainha, que sempre fora sa serva, de nom feder o corpo dela, que era de razom e de natureza, e [de] cheirar assi bem, que era contra natura, pero que o ataude fosse largo e os que ali viinham sentiam o corpo dela ferir de uma parte e da outra em no ataude, que bem criom todo o corpo fosse quebrado e partido; de mais o ataude per razom das feridas que os da sa mercee da dita rainha davam em aquele ataude, [que] chegavam a fazer door, era partido e aberto por logares. E fezerom com aquel corpo sete jornadas de Estremoz a Coimbra per grandes caenturas e per tempo mui destemperado. (...) Des que foi posto o corpo em [n]o moimento, começarom-se aqueles que o levarom ali antre si a maravilhar-se do gram milagre que viiam, uum corpo, que trouxerom aaquel logo por grandes caenturas e que avia nove dias que a alma se del apartara e que era assi quebrado, (e) des que aquel licor corria, em cheirar tam bem, ca uuns diziam ca lhes parecia ca, em tragendo-a, que viinham per rosaes, outros que viinham cheirar, ca nunca atam bom odor de cousa viirom. E todos os que esto viirom davam graças a Deus em querer que eles viissem a grande sa mercee de fazer que o corpo de uma molher, que morto era (e) que naturalmente devia a feder, (e) cheirar tam bem, o que era contra natura. E assi desto ouve i estromento, feito per Joam Dominguez, tabaliom de Coimbra, em que assinarom aqueles que sabiam escrever (e a)quel corpo aaquel moimento trouxerom. Este estromento se fez per mandado do bispo de Lamego.

14

Nos dias que se seguiram ao sepultamento, foram registadas igualmente em escrituras públicas, antes mesmo de passado um mês sobre a morte da rainha5, que ocorreu a 4 de Julho, outras situações de curas maravilhosas, operadas junto do seu túmulo, ou com a sua intercessão, por ação das suas relíquias (por exemplo, as ligaduras que tinham protegido o tumor do seu braço e que curaram uma ama da sua casa, afetada por um “lobinho grande em na mão direita”) 6, com a clara intenção de guardar para a posteridade a sua ação benfazeja e de procurar a sua canonização. Dessas escrituras, existe ainda um manuscrito, escrito a 27 de Julho de 13367, que atesta a ocorrência de duas curas miraculosas: a da freira de Santa Clara, Catarina Lourenço, que tinha um “lobinho” no olho esquerdo, do qual fora curada depois de se encomendar à Rainha, junto do seu túmulo; e a de Dominga Domingues, de Condeixa, que tendo ingerido uma sanguessuga, a expulsara, depois de ter recorrido à intercessão da Rainha Santa. Que a canonização era o objetivo de tais procedimentos, disse-o Rui de Pina, na Chronica d’ El-Rey D. Affonso IV: (…) & sobre as couzas que em sua morte, & enterramento, & dispois sobre seo moimento milagrosamente se passarão cõ algum fundamento de ser canonizada forão tiradas inquirições cõ muy perfeito exame das testemunhas, & por ellas brevemente achey que indo assi seu corpo pello caminho, sendo tão grandes quenturas do sol, que nos corpos mortos cauzão corrupção, & fedor, a este vinhão as gentes cheyrar pello grãde odor que delle saia, que era assi grãde, & de bõ cheiro, como se o levarão por hum grãde, & muy florido rozal, & assi o fazia algum grosso humor que do dito corpo pellas fendas do ataude saia.

5  Vairo, Giulia Rossi (2004), “Le origini del processo di canonizzazione di Isabella D’Aragona, Rainha Santa de Portugal, in un atto notarile del Luglio 1336”. Collectanea Franciscana, 74, pp. 147-193. 6  Lenda,

pp. 1371-72 (vd. infra).

7  Vd.

Maria Helena Cruz Coelho (1983), O Baixo Mondego nos finais da Idade Média, 2 vols. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda I vol., p. 704; Vairo ( 2004), 147-193.

15

(…) E foraõ cõ elle Frei Ioão Paes seu confessor da ordem de São Francisco, e Frei Salvador Bispo de Lamego que foy seu testamenteyro e alem doutros muytos milagres que por escrituras antiguas, & muy autentiquas achey foraõ estes (...) 8 .

É o relato dos milagres, realizados com a intervenção divina por intermédio da Rainha, que dá o sinal do culto popular de que a mesma passou a ser objeto, logo após a sua morte. Os populares, aflitos por doenças ou por calamidades que sobre si se abatiam, acorriam ao seu túmulo, para solicitarem auxílio. De resto, o relato de Rui de Pina, na Chronica d’El-Rey D. Affonso IV, dá informação sobre esse culto popular já existente e a crença no poder taumatúrgico das suas relíquias, ao referir a reação dos acompanhantes do funeral de D. Isabel, em Coimbra: E que por isto em acabando de ser o corpo no moimento metido hum pano grãde vermelho cõ que fora cuberto, as andas em que hia forão loguo rotas, & espadaçadas, & goardados os pedaços, & rachas por grãdes Reliquias as quais tomadas, & lançadas com devação segundo testemunho de muytos, a muytos enfermos aproveytavão. 9

As iniciativas de registar para a posteridade estes acontecimentos, promovidas provavelmente pelo filho, D. Afonso IV, e pelo bispo de Lamego, Frei Salvado Martins, apontam, por parte dos seus próximos, para um desejo de canonização 10 que coroasse uma vida dedicada à piedade, à conciliação dos seus familiares, ao apoio aos mais necessitados e à edificação de obras de assistência social, como acontecera

8  Rui de Pina, (1977), Crónicas (D. Sancho I, D. Afonso II, D. Sancho II, D. Afonso III, D. Dinis, D. Afonso IV, D. Duarte, D. Afonso V, D. João II). Introdução e revisão de M. Lopes de Almeida. Porto: Lello e Irmão Editores, 1977, p. 378. 9  Pina

(1977), p. 378.

10  Vairo

(2004), pp. 167-174.

16

com a sua tia-avó, Santa Isabel de Hungria, que fora canonizada muito pouco tempo depois da sua morte. Com o mesmo objetivo, alguém que com ela convivia de perto redigiu também uma biografia, que viria a servir de fonte e inspiração para a maior parte dos textos que se compuseram ao longo dos séculos sobre D. Isabel; no final desta estão antologiados todos os milagres que, nessa altura, tinham sido objeto de juramentos solenes ou de certificação notarial, com a menção dos respetivos tabeliães e testemunhas 11, nomeadamente aquele ato notarial (instrumentum) de 27 de Julho de 1336, acima referido, o que revela que o seu autor recorreu a fontes escritas anteriores para se fundamentar12. Este relato, consultado em cópia manuscrita existente na biblioteca do mosteiro de Santa Clara, foi editado pela primeira vez por Fr. Francisco Brandão, na Sexta Parte da Monarquia Lusitana, com o título Relaçam da vida da gloriosa Santa Isabel Rainha de Portugal, em 1672 13, e foi posteriormente reeditado em 1921 por José Joaquim Nunes, com o próprio título: Livro que fala

11  Os registos tabeliónicos foram importantes para definir e assegurar para a posteridade o perfil de santidade da Rainha, mas são também documentação importante para o conhecimento dos procedimentos legais deste período, revelando alguns nomes de tabeliães ativos, por exemplo, em Coimbra, como Martim Afonso, João Domingues e Martim Esteves, e em Santarém, como Miguel Martins; testemunhavam estes atos os intervenientes, amigos e familiares, e entidades religiosas, como o Bispo de Lamego, Fr. Salvado, a Abadessa de Santa Clara, entre outras. 12  Vairo

(2004), pp. 170-171: Nella Lenda si riferisce soltanto parzialmente il contenuto dell’instrumentum esaminato: ciò costituisce un fatto rilevante innanzitutto perché mostra il ricorso a fonti scritte, anteriori al manoscritto, note all’autore del testo e utilizzate in occasione della sua stesura; inoltre, conferma l’avvio di un’inchiesta sulla fama sanctitatis di Isabella, promossa su richiesta di fra Salvado, vescovo di Lamego, che aveva l’autorità per farlo e che si preoccupò di raccogliere testimonianze e di farle registrare da pubblici notai, affinché se ne conservasse il ricordo; il tutto con il benestare della Corona, di persone molto vicine alla regina, della comunità de Santa Clara e della cittadinanza di Coimbra. Queste considerazioni autorizzano automaticamente a pensare che di ogni miracolo narrato nella Vita esista memoria scritta – laddove è specificato che ne fu rogato un instrumentum da un pubblico notaio – in atti che sarebbero probabilmente venuti a costituire un dossier sulla sovrana, di cui doveva fare parte anche una sua biografia, in vista di un processo di canonizzazione la cui istruzione, a tempo debito, sarebbe stata impetrata alla Sede Apostolica dal re portoghese.

13  Brandão

(1672) VI, pp. 405-534.

17

da boa vida que fez a Rainha de Portugal, Dona Isabel, e dos seus boons feitos e milagres em sa vida e depoys da morte; tem sido objeto de vários estudos14 e é conhecido também por Lenda ou Legenda da Rainha Santa Isabel, designação que adotaremos neste estudo. O intento de preservar a memória da Rainha está claramente definido no preâmbulo da obra: Pera se nom perder per tempo de memoria dos omeens a vida que em este mundo fez a muy nobre senhora, dona Isabel, per graça de Deus raynha de Purtugall e do Algarve, e o acabamento que ouve e as cousas que Nosso Senhor Ihesu Cristo em ssa vida e depoys sseu saimento deste mundo por ela fez, porem em tanto o ffecto de ssa vida está rrezente e á muytos omeens e molheres dignos de creer que virom e passarom as cousas que se adiante seguem e assy como notorio a todos os de Purtuguall, screpverom-se os seus ffectos, obras e vida, nom adendo, nem errando de verdade todo que se diz. 15

Estes primeiros relatos estão na génese do muito que se escreveu sobre Santa Isabel, ao longo dos séculos, quer em prosa, quer em poesia, quer em relatos hagiográficos ou biográficos, quer em ofícios divinos, quer em discursos comemorativos, panegíricos e sermões 16. Foram traduzi14  F. F. Figanière (1859), Memorias das rainhas de Portugal. (D. Theresa-Santa Isabel). Lisboa: Typographia Universal; António de Vasconcelos, op. cit.; Mª Isabel Cruz Montes (1999), Vida e milagres de Dona Isabel, Rainha de Portugal. (Edição e Estudo). Dissertação de mestrado dactilografada, Lisboa; Mª Isabel Rosa Dias (2009), “A narrativa da vida e milagres da Rainha Santa Isabel: testemunhos e edições”, in Murillo, Jesús Cañas; Quejigo, F. Javier Grande; Díaz, José Rosa (eds.) (2009). Medievalismo en Extremadura. Estudios sobre Literatura e Cultura Hispânicas de la Edad Media. Cáceres: Universidad de Extremadura, pp. 279-292; António Rebelo (2013), “Percurso histórico do códice quinhentista do Livro que fala da boa vida...”, in Pimentel, Maria Cristina, e Farmhouse, Paulo (org.), Vir bonus peritissimus aeque. Estudos de Homenagem a Arnaldo Espírito Santo. Lisboa, Centro de Estudos Clássicos, pp. 699-706. 15  Lenda, p.1307-1308. Esta passagem revela também a data aproximada da composição, pois afirma estarem ainda vivas pessoas que presenciaram os factos contados, nomeadamente seu irmão “D. Fraderic, que ora chamam rey em Sicilia”, e ser recente ainda a vida da Rainha, 16 Sobre a extensa bibliografia dedicada à Rainha Santa, merece destaque o trabalho realizado em torno da exposição e congresso Imagen de la Reina Santa: Santa Isabel, Infanta de Aragón Y Reina de Portugal, que ocorreu em Zaragoça, entre 13 de Maio e 4 de

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dos para latim e integraram os documentos coligidos para o processo de canonização que só seria concluído em 1625. Inspirados na Lenda, dois cronistas que se ocupam dos reinados de D. Dinis e de D. Afonso IV, o autor da Crónica de 1419 17 e Rui de Pina, reproduziram algumas

junho de 1999. Nas atas (vd. Bibliografia) que resultaram desse evento, o volume intitulado “Catálogo de la Exposición” inclui uma exaustiva lista de obras sobre a Rainha ou com ela relacionada, ao longo dos séculos. Escritas em português, espanhol ou latim, principalmente, as obras compiladas incluem biografias e hagiografias da Rainha; ofícios, sermões, orações panegíricas e discursos comemorativos; obras literárias (romance, poesia, drama); antologias e análises da correspondência entre a rainha e os seus familiares; muitos estudos aprofundados sobre questões específicas, que recorrem a um acervo documental valioso, como é o das chancelarias dos reis a que esteve ligada (irmão, marido e filho), que predominam a partir de finais do século XIX e durante o século XX (como por exemplo, os de Francisco de la Figanière, António de Vasconcelos, Fernando Félix Lopes, Sebastião Antunes Rodrigues) e que aumentam e esclarecem os conhecimentos objetivos sobre esta Rainha. Há ainda enumeração daquelas obras mais amplas e generalistas, como as crónicas (dos reis, das ordens religiosas) anais, catálogos de santos e antologias como os Acta Sanctorum e Flos Sanctorum. Para além deste catálogo bibliográfico, refira-se, sobre a mesma questão, na mesma obra, um artigo de José Ignacio Calvo-Ruarta, “Presencia Historica de Santa Isabel”, vol. I, pp. 15-35, que destaca, dessa bibliografia, algumas obras de maior relevância e importância para o tratamento deste tema, ao longo dos séculos: a Lenda, os ofícios religiosos do século XVI; a Vida e milagres da gloriosa rainha sancta Isabel, escrita por Diogo Afonso, editada em 1560 pelos mordomos da Confraria de Santa Isabel, quando esta foi fundada; os Anales de la Corona de Aragón de Jerónimo Zurita de 1562-1579; a Parte segunda das Chrónicas da Ordem dos Frades Menores de Fr. Marcos de Lisboa; a obra do padre jesuíta Pedro Perpinhão, um dos grandes responsáveis pelo culto da Rainha em Coimbra, no século XVI; a Historia y vida de Santa Isabel, Reina de Portugal y Infanta de Aragón de Juan de Carrillo (que se inspirou na de Perpinhão); as crónicas de Rui de Pina; a Historia Seráfica da Ordem dos Frades menores de S. Francisco na Província de Portugal, de Fr. Manoel da Esperança; a Monarquia Lusitana de Fr. Francisco Brandão; os Acta Sanctorum dos Bolandistas; os relatos do processo de canonização e dos festejos que decorreram em Coimbra; a compilação e o comentário por Diego Dormer da correspondência entre D. Isabel e D. Jaime de Aragão, seu irmão; e os estudos mais documentados de Benevides, Figanière, António de Vasconcelos, Fernando Félix Lopes, Sebastião Antunes Rodrigues e de outros autores que se distinguiram também em Aragão, nomeadamente quando da celebração do 7º centenário do seu nascimento, em 1971. A estas informações bibliográficas, foram posteriormente acrescentadas outras na biografia publicada por Mª Filomena Andrade (2012), Santa Isabel. Mãe exemplar, Lisboa, Círculo de Leitores, relativas a publicações e estudos posteriores a 1999, nomeadamente aquelas que se prendem com os trabalhos arqueológicos de recuperação e estudo do mosteiro de Santa Clara-a-Velha, indissociável da figura e do estudo desta Rainha (de que se destacam autores como Artur Corte-Real, Francisco Pato de Macedo, Ana Paula Santos, Teresa Morão, entre outros). 17 A Crónica de Portugal de 1419 compreende o relato dos reinados de D. Afonso Henriques, D. Sancho I, D. Afonso II, D. Sancho II, D. Afonso III, D. Dinis e D. Afonso IV, pelo que foi designada por Crónica do Reino, Crónica Geral do Reino, História Geral dos Feitos do Reino, Crónica Geral dos Notáveis Feitos dos Reis de Portugal, ou Crónica de Portugal.

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informações sobre a Rainha que neles encontraram, nomeadamente as alusivas a uma vida dedicada à beneficência, ao apoio aos outros, à devoção e à pacificação, bem como a alguns dos milagres ocorridos graças à sua intercessão, e acrescentaram outras, respigadas do acervo de documentos oficiais a que teriam acesso como responsáveis pelo Tombo régio, nomeadamente alguns dos registos notariais certificando os milagres e textos que evidenciam o seu papel político. Apesar do registo destes acontecimentos, em escrituras públicas, e da redação da biografia muito pouco tempo depois da sua morte, vivendo ainda alguns dos intervenientes mencionados 18, o culto da Rainha permaneceu circunscrito, muito limitado à cidade de Coimbra e aos seus descendentes. D. Manuel, D. João III conseguem o alargamento do culto a todo o reino e D. Sebastião continua a envidar esforços no sentido de alcançar a santificação de D. Isabel; esta, no entanto, só seria canonizada pelo Papa Urbano VIII em 1625, em pleno domínio filipino, no reinado de Filipe III, na sequência da insistência de Filipe II, que dera uma nova força ao processo em 1611 19.

Esta Crónica é conhecida, hoje, apenas a partir da reconstituição de dois manuscritos tardios descobertos no século XX: o primeiro, existente na Biblioteca Municipal do Porto, mas proveniente da livraria do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, foi publicado por Magalhães Basto, em 1945, no Porto, com o título Crónica de Cinco Reis de Portugal; o segundo, existente na Biblioteca da Casa do Cadaval, foi editado por Silva Tarouca, em 1952, em Lisboa, com o título Crónica dos Sete Primeiros Reis de Portugal; este último é mais completo do que o anterior, pois inclui, para além das mesmas crónicas do anterior, as de D. Dinis e de D. Afonso IV, e procura colmatar as lacunas existentes naquele com transcrição de passagens extraídas das crónicas de Rui de Pina e Duarte Galvão, autores que se inspiraram nesta Crónica de Portugal para compor as suas próprias crónicas. Sobre esta matéria, consultem-se, entre outros: A. Magalhães Basto (1960), Estudos, Cronistas e Crónicas Antigas. Fernão Lopes e a “Crónica de 1419”. Coimbra; L. F. Lindley Cintra (1984), “Crónica de Portugal de 1419”. Dicionário de Literatura. Ed. Jacinto Prado Coelho. Porto: Figueirinhas; L. Krus (1993), “Crónica de 1419”. Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa. Ed. Giulia Lanciani e Giuseppe Tavani. Lisboa: Caminho; Crónica de Portugal de 1419. (1998). Edição crítica com Introdução e Notas de Adelino de Almeida Calado. Aveiro: Universidade de Aveiro. A sua autoria é comummente atribuída a Fernão Lopes. No decurso deste estudo, citaremos a partir da Crónica dos Sete Primeiros Reis de Portugal. 18  Vasconcelos

(1891-94) e Nunes (1921).

19  Sobre

os motivos que terão obstado à canonização de D. Isabel, no início do processo, ou atrasado a sua resolução, leia-se Vairo (2004), pp. 147-193.

20

Este culto privado, com algumas manifestações públicas, prolongou-se, pois, por aproximadamente dois séculos, até ao reinado de D. Manuel, durante o qual se estabeleceram contactos com as hierarquias superiores da Igreja, para se conseguir o seu reconhecimento oficial e solene. É graças à intervenção de D. Manuel que o culto da rainha toma cunho solene (isto é, passa a ser realizado em nome da Igreja, com intervenção dos seus ministros, através de ritos e cerimónias reconhecidas e aprovadas pela autoridade competente), mas apenas na diocese de Coimbra. Simultaneamente, o papa Leão X, em 1516, ao autorizar o culto solene, alcandorou a Rainha a bem-aventurada, isto é, beatificou-a; no entanto, no breve de beatificação designou D. Isabel por Branca. Esse lapso levou a que, em 1545, o bispo de Coimbra, João Soares, considerasse o culto ilegítimo 20 , facto pelo qual D. João III solicitou ao Papa a correção do erro e a extensão do culto à capela real, uma vez que a beatificação, reconhecida no tempo de seu pai, circunscrevera o seu culto solene à diocese de Coimbra. O Papa Júlio III deferiu este pedido a D. João III que, em 1556, solicitará a Paulo IV e obterá a extensão do culto a todo o reino. Novas circunstâncias terão avivado a memória do rei e dos conimbricenses, nos meados do século XVI; assim, por exemplo, a iniciativa de Martim de Azpilcueta Navarro (professor de Cânones que D. João III contratara para a Universidade de Coimbra, entre 1538-1555) que publicitou a cura miraculosa de uma sobrinha, freira professa em Celas, que se encomendara à Rainha, e que desse acontecimento mandou fazer uma representação pictórica (ex-uoto), depois exposta no mosteiro de Santa Clara, terá tido um impacto não despiciendo no reavivar do culto. Ainda na sequência da beatificação da Rainha, foram compostos dois ofícios: um para uso dos cónegos regulares de Santa Cruz de Coimbra, em 1538; outro, de André de Resende, dedicado a D. Catarina, mulher de D. João III, em 1551. Ambos se inspiram inequivocamente na Lenda.

20  Vasconcelos

(1891-1894), pp. 299-302; Vairo (2004), pp. 157-158.

21

Quando, em 1556, D. João III obteve do Papa a extensão do culto da Rainha a todo o reino, determinou a realização de um conjunto de iniciativas nas dioceses do país, nos mosteiros, na Universidade e no Colégio das Artes; encomendou a elaboração de uma biografia de D. Isabel, que narrasse a sua vida, obras e milagres; solicitou cópias de documentos antigos relacionados com esta sua antepassada, conservados no cartório do mosteiro de Santa Clara; mandou fazer estátuas da Rainha e averiguar da veracidade dos milagres. Ao Colégio das Artes ou Colégio Real, que fundara em 1548, em Coimbra, e cuja orientação entregara em 1555 à Companhia de Jesus, ordenou, em 1556, que todos os anos, a partir daí, um professor da instituição fizesse uma oração comemorativa no dia 4 de Julho, em sessão solene, no dia da morte de D. Isabel; instituiu-se esta prática no Colégio e prolongou-se por tantos anos quantos os jesuítas estiveram à frente do seu destino: Para o padre reitor do collegio das Artes em cada um anno, no dia em que se celebra a festa da rainha sancta, mandar um dos lentes fazer uma oração em louvor da sancta: “Padre reitor do collegio das Artes da cidade de Coimbra, eu el-rei vos envio muito saudar. Encommendo-vos que ordeneis que daqui em deante, em cada um anno, no dia em que se celebra a festa da rainha sancta, nessa cidade, haja uma oração publica nesse collegio, a qual dirá um dos lentes delle em louvor da dicta rainha sancta, e se fará nella menção da graça, que eu alcancei do sancto padre, para se rezar della em todos meus reinos e senhorios, e para poder haver altar e imagem della. E eu escrevo e mando ao reitor e Universidade, que no tal dia estejam presentes á dicta oração; e esta minha carta mandareis registar no livro, em que se registam as minhas provisões, para se saber como o assim tenho mandado, e se cumprir inteiramente. Jorge da Costa a fez em Lisboa a 9 dias de setembro 1556. Manuel da Costa a fez escrever. Rei.”

22

E o padre doutor Torres, provincial, mandou que aos 4 de julho de cada anno, em que se celebra a festa da rainha sancta, se façam no collegio orações, assim em verso como em prosa, a louvor da dicta rainha sancta e del-rei D. Dinis, seu marido, e que isto se escrevesse no livro do registo, para que ficasse por memoria. 21

D. João III mandou também um ofício aos bispos e aos provinciais dos mosteiros a solicitar uma biografia da Rainha, referindo expressamente a fonte que deveria ser utilizada, a Lenda da Rainha Santa Isabel: Portaria ordenando em nome d’el-rey D. João III que se escrevam cartas aos bispos do reino, ao provincial dos conventuaes e à abadessa de Santa Clara de Coimbra, com instruções minuciosas, a fim de se dar completa execução ao rescripto da santa sé, que permittiu em todo Portugal o culto religioso da bemaventurada rainha D. Isabel ( Julho de 1556). “Sor – Manda ElRey nosso sor que se escreua aos bispos como sua alteza ouue dosancto padre bulla pª se poder rezar em todos seus Regnos da Rª sancta Jsabel que esta sepoltada em sta crara de coymbra e pª della poder auer em todas as igrejas e most.ros deseus Regnos capella altar e jmagem dadita Rª como verão pollo trelado da bulla que lhe envia que lhe encomenda em que a fação anoteficar e guardar (…). Item carta ao provincial dos conventuais que se enforme das missas que se dizem ordinariamte polla Rª sta E que ordene como se digão daqui em diãnte, della cõ comemoração polla alma delRey dõ dinis e dos mays segdo ordenãça dadita Rª sta (...). E que procure de auer em hum liuro toda a lenda da dita Rª E todos os milagres que deus por ella fez e faz de que ha memoria autentica no conuento de sta crara e faça treladar fielmente o liuro de sua historia por enteyro/.

21  Teixeira, António José (1899), Documentos para a História dos Jesuítas em Portugal. Coimbra, pp. 398-399.

23

E se ouuer alguma Imagem della que elle possa trazer e que já não faça falta pª por ella mãdar ca fazer outras./ E assi se a alguma relíquia della fora desua sepultura / E tudo isto cõ deligencia. / outra da mesma matéria a abbª fazendo mencão do que escreue sobre o caso ao p.e provincial (…)” 22 .

Obedecendo às determinações de D. João III, a Companhia de Jesus, instalada em Portugal desde 1540 aproximadamente, incumbiu um dos seus melhores oradores, professor de Latim e Retórica no Colégio das Artes, em Coimbra, de compor as orações panegíricas comemorativas do dia da Rainha; o jovem padre valenciano Pedro Perpinhão23 consultou, para se documentar, na biblioteca do Mosteiro de Santa Clara, este primeiro relato biográfico da Rainha, não apenas para as Laudationis in Beatam Elisabetham Lusitaniae Reginam Orationes libri tres 24 apre-

22  Vasconcelos

(1891-94), II, p. 63.

23  Pedro

João Perpinhão nasceu em Elche, em Aragão, no ano de 1530; formou-se em Artes em 1547, em Valência, onde ingressou na Companhia de Jesus, em 1551; dali foi enviado para Coimbra, onde fez o noviciado no Colégio de Jesus, juntamente com seu irmão, Luis Perpinhão. Depois de uma passagem por Évora, onde foi professor de Retórica e orador, foi convocado de novo, para Coimbra, desta vez para o Colégio das Artes, em 1555, onde permaneceu até 1560/61. Vivendo em Portugal, entre 1551 e 1561, o padre jesuíta valenciano desempenhou um papel de relevo na cultura portuguesa, quer como professor das classes mais avançadas de Latim, nos Colégios da Companhia de Jesus, (o das Artes, em Coimbra, e o do Espírito Santo, em Évora), quer como orador; nesta qualidade, discursou em momentos significativos para a história daquela instituição em Portugal, nomeadamente na abertura do ano letivo de 1555, no Colégio das Artes, quando D. João III o entregou à orientação da Companhia, e nas comemorações, estabelecidas para o mesmo Colégio, do dia da Rainha Santa Isabel, instituídas pelo mesmo rei, discursando sucessivamente em 1557, 1558 e 1559. Em 1561 foi enviado para Roma, onde desempenhou funções de professor de Retórica e de orador até 1565, ano em que trabalhou em Lyon e Paris, como orador, vindo a morrer em 1566, com 36 anos de idade. Para mais informação sobre a vida e obra de Pedro Perpinhão, leiam-se, entre outros, Petri Lazeri (1749), De Vita et Scriptis Petri Ioannis Perpiniani Diatriba, Roma: Typis Nicolae et Marci Palearini; Bernardus Gaudeau (1891), De Petri Ioannis Perpiniani uita et operibus (1530-1566), Parisiis: apud Retaux-Bray Editorem; Helena Costa Toipa, (2001), A obra de Pedro João Perpinhão em Portugal, ad maiorem Dei gloriam, Viseu; Helena Costa Toipa (2011), “O percurso de Pedro João Perpinhão em Portugal”, Humanitas, 63, pp. 405-426; D. Darío Martínez Montesinos (2004), Pedro Juan Perpiñán. vida y obra: oratoria y poesía latina (Elche 1530-París 1566). Tesis Doctoral, Murcia: Universidad de Murcia. 24  Petri Ioannis Perpiniani (1749), Opera, 3 vols. Tomo II. Ed. Petrus Lazzari, Roma: Typis Nicolae et Marci Palearini, pp. 1-162.

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sentadas em 1557, 1558 e 1559, respetivamente, mas também para uma biografia que ele próprio compôs, entre 1559 e 1561, correspondendo às diretivas da portaria régia acima transcrita, e que intitulou De Vita et Moribus Beatae Elisabethae Lusitaniae Reginae 25. Perpinhão consultou e seguiu fielmente este manuscrito referido na portaria sobre a vida da Rainha, investigou todos os testemunhos notariais e cartas existentes na biblioteca e cartório deste mosteiro sobre os milagres atribuídos à intercessão da Rainha, e acrescentou mais informação, recorrendo, na mais estrita obediência à verdade, a todas as fontes escritas, comparando-as, questionando-as, sem descurar qualquer informação, existentes não só no mosteiro de Santa Clara, ainda habitado e funcional, mas também eventualmente no de Santa Cruz; com efeito, os jesuítas instalaram-se em edificios do mosteiro de Santa Cruz (os Colégios de S. Miguel e de Todos-os-Santos), quando tomaram a seu cargo o Colégio das Artes, em Coimbra, e só os abandonariam em 1566; apesar dos conflitos entre crúzios e jesuítas, não excluímos a possibilidade de Perpinhão ter tido acesso a textos cronísticos que existiram naquele Mosteiro. 26 A sua biografia, terminada em 1561, a primeira escrita em latim, que era a língua dos humanistas e de maior divulgação na época, era a mais completa até essa data, entre todas as que existiam; no entanto, só foi publicada em 1609, em Colónia, tendo sido, porém, registada anteriormente nos documentos dos jesuítas do Colégio das Artes, como se pode verificar pela consulta do códice nº 993 da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Rerum scholasticarum quae a patribus ac fratribus huius Conimbricensis Collegii scripta sunt tomus secundus, ff. 5r-54v. Nos anos subsequentes, outros oradores discursaram sobre o tema no Colégio das Artes, como se pode constatar da consulta dos códices nº 3309 da Biblioteca Nacional de Portugal e do já referido

25  Perpiniani (1749), II, pp. 163-391. Esta monografia de Perpinhão será, adiante, citada, a partir desta edição de 1749, como De Vita et Moribus Beatae Elisabethae Lusitaniae Reginae ou, simplesmente, como De Vita. 26  Vd.

nota 1.

25

nº 993 da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra; nestes códices estão também antologiadas, além das orações, numerosas composições em verso, como elegias e epigramas, celebrando a Rainha, escritas pelos padres do Colégio, para esta e outras ocasiões festivas, e que eram afixadas nas paredes da escola; Perpinhão é também autor de algumas dessas composições. A monografia de Perpinhão é composta por três livros: no primeiro, descreve os antecedentes familiares de D. Isabel, narra o seu nascimento, infância, casamento e intervenção em dois dos conflitos a que assistiu na Península (entre o marido e o irmão, o Infante D. Afonso, e entre o marido e os reis de Castela); no segundo, continua o relato dos conflitos a que a Rainha assistiu e nos quais interveio diplomaticamente (o conflito peninsular entre Castela e Aragão, para o qual D. Dinis foi escolhido como intermediário, e aquele que opôs o marido ao filho de ambos, o Infante D. Afonso), a que acrescenta a atuação da Rainha após a morte de D. Dinis e a sua peregrinação a Santiago de Compostela; no terceiro livro, Perpinhão debruça-se sobre a dedicação de D. Isabel revelada na construção do mosteiro de Santa Clara, sobre o seu modo de vida, no estado de viúva, e finalmente junta todos os milagres atribuídos à Rainha, depois da sua morte, registados por escrito. O jovem padre jesuíta refere a consulta da Lenda e não ignora ou omite qualquer informação veiculada por ela, se bem que, pontualmente, se permita questioná-la, apresentar dúvidas, apontar erros e até criticar o estilo rude em que está escrita 27; esta é, no entanto, a sua fonte

27 Ao falar, por exemplo, dos pretendentes à mão de D. Isabel e das inexatidões de alguns historiadores, diz (De Vita, p. 192): Mas, muito depois, o rei Jaime, irmão de Isabel, apaziguados já os ânimos, tendo-o solicitado ao Pontífice Máximo, deu em casamento, para o futuro, ao rei Roberto, a outra irmã, Violante, pelos motivos de que já falámos. E isto talvez tenha induzido em erro o autor daquela história, quem quer que tenha sido, que, digna de veneração pela antiguidade, é certo, mas inculta e hórrida pelas palavras, se conserva no Mosteiro de Santa Clara, em Coimbra. Com efeito, pelo facto de ter tido conhecimento que Roberto fora escolhido para suceder ao pai falecido, pensou que este tivesse nascido primeiro e acreditou que tinha sido para ele que Isabel fora pedida, aquele com quem, depois, casou a irmã Violante.

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preferida, a mais valorizada, aquela cuja informação é reproduzida na totalidade e seguida com fidelidade. Os próprio discursos ficcionados introduzidos nos seus textos, processo retórico constante na historiografia antiga e medieval, inspiram-se também ali. A linha orientadora do seu relato segue a desta obra, na ordenação das informações ou no destaque dado a algum aspeto em particular, exceto no que diz respeito à narração dos milagres que são atribuídos à intercessão da Rainha; com efeito, estes aparecem antologiados no final da exposição biográfica daquela primeira obra, mesmo aqueles que terão ocorrido em vida da Rainha; Perpinhão, por seu lado, opta, no seu texto, por apresentá-los por ordem cronológica, sem esquecer nenhum, situando-os, na biografia, no momento em que, com verosimilhança, poderão ter acontecido; segue, assim, os preceitos dos historiadores da Antiguidade, de obedecer à ordem cronológica, como teorizava, por exemplo, Cícero 28. Perpinhão terá também eventualmente consultado, redigidas por tabeliães, as afirmações públicas de milagres operados graças à intercessão da Rainha. De qualquer forma, quase todos esses relatos de milagres estavam transcritos já na Lenda e esta fonte bastar-lhe-ia, não necessitando de utilizá-los. Eles estariam no cartório do Mosteiro de Santa Clara (vd. portaria régia supra) e foram consultados provavelmente também por Rui de Pina que os refere, na Chronica d’El-Rey D. Affonso IV, e enumera alguns dos milagres que constavam dessas escrituras, sendo que dois deles não foram incluídos explicitamente na Lenda: (…) outro si huma Caterina Lourenço tãbem Freyra tinha avia dias hum lobinho no olho esquerdo de que nõ via, & estava em dispocisão de operder, & huma vigilia que cõ grãde devação teve ãte o moimento da Rainha se achou ao outro dia de todo são, & assi

A edição que adoptámos para o texto de Perpinhão foi a de P. Lazzari (Petri Lazeri (1749), Petri Ioannis Perpiniani Opera, Roma: Typis Nicolae et Marci Palearini). A tradução do texto é nossa. 28  De

Oratore, 2. 62-63.

27

o fizerão outros muytos de semelhantes dores & maleytas. 29 (…) Item hum Ioão Pascoal de Condexa sendo surdo muytos annos avia tambem huma noyte que cõ devação aly durmio, & se encomendou a ella, ouvio tãbem como se nunqua padecera tal infirmidade & assi outros muytos milagres achei escritos, que por brevidade escuzey de pôr, porque estes abastão para se crer piadozamente que sua alma he Santa, e bem aventurada 30 .

Também não se encontram estes dois milagres no relato de Perpinhão, o que permite concluir que a sua fonte mais fidedigna, aquela em que deposita a maior confiança, é a Lenda; apesar de também se fundamentar nas informações de Rui de Pina (vd infra), é aquela que prefere e segue. Estes registos notariais já tinham sido transcritos para a referida obra, cujos manuscritos vão ser atualizados até 1400, data do último episódio narrado. Tanto o testemunho de Rui de Pina, como o de Perpinhão mostram que seriam em grande número, a ponto de não se poder fazer referência a todos eles.

I.2. Anais, crónicas e livros de linhagens A biografia redigida por Pedro Perpinhão representa a súmula de toda a informação escrita existente desde a morte da Rainha e acessível, em meados de quinhentos, época em que se tentava revitalizar o processo da sua canonização. Para além dos textos já citados, o jesuíta consultou e usou as crónicas medievais, nomeadamente as de Rui de Pina, que terá encontrado na biblioteca do Mosteiro de Santa Cruz. Vejam-se os textos dos historiadores portugueses medievais que lhe poderiam ter fornecido informação:

29  Desta 30  Pina

cura miraculosa, existe ainda o manuscrito da escritura (vd. supra).

(1977), p. 379.

28

Livro das Eras ou Livro de Noa (Santa Cruz) Breve notícia da deslocação de D. Dinis e D. Isabel a Tarragona, ad reformandam pacem, para arbitrar o conflito entre Aragão e os candidatos ao trono de Castela. Esta informação, porém, pode ter sido fornecida por outra das fontes consultadas por Perpinhão. Cronicon Alcobacense Refere o papel da Rainha na vida política do reino, nomeadamente na sua intervenção como pacificadora de vários conflitos (entre D. Dinis e o filho, entre os reis ou candidatos a reis em Castela). Não há alusão aos milagres, ao sobrenatural, ou à vida de devoção e assistência a doentes e desfavorecidos levada pela Rainha. Também não contém informação que Perpinhão não pudesse recolher de outras fontes já referidas. Crónica Geral de Espanha de 1344 Da autoria de D. Pedro, Conde de Barcelos, filho bastardo de D. Dinis, esta crónica refere, na sua 2ª redação, a intervenção da Rainha na guerra civil entre o pai e o filho legítimo, D. Afonso, que se prolongou por vários anos e que despoletou alguns episódios bélicos significativos. Assim, no capítulo DCCXXIII, refere a sua atuação em Guimarães, para onde se teria deslocado para acalmar o filho, quando este sitiava a cidade, e, de seguida, a sua intervenção em Pombal (só esta crónica refere esta deslocação a Guimarães; Perpinhão também não a menciona); o capítulo DCCXXV, por sua vez, refere a sua mediação entre pai e filho, no episódio do mesmo conflito, em Albogas, perto de Santarém. Livro de Linhagens do Conde D. Pedro Refere, sobre D. Isabel, a sua ascendência e descendência próximas (5B6) e o facto de ter acompanhado o marido a Tarragona, quando da sua arbritragem no conflito peninsular entre os reis e candidatos a reis de Castela e Aragão (7D1-3).

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Crónica de D. Dinis e Crónica de D. Afonso IV (insertas nas Crónicas dos Sete Primeiros Reis de Portugal / Crónica de 1419). Perpinhão poderá ter também consultado estas crónicas, ou colhido as suas informações através de Rui de Pina. As informações, no que diz respeito à Crónica de D. Dinis, são idênticas nestas duas obras/autores, se bem que Rui de Pina desenvolva muito mais os assuntos. Assim, há referências, na Crónica de 1419, em primeiro lugar (cap. II), à ascendência e descendência imediatas da Rainha; ao processo das negociações de casamento entre D. Dinis e D. Isabel, ao casamento propriamente dito, primeiro por procuração e depois em Trancoso. Nítida influência da Lenda são os discursos ficcionados de D. Pedro III de Aragão ao despedir-se da filha, e do primo de Castela, D. Sancho, que lhe garantiu salvo-conduto, numa Castela em guerra por questões dinásticas. O capítulo seguinte (III) descreve o modo de vida de D. Isabel depois de casada, dedicando-se à caridade, à oração, jejuando grande parte do ano e mostrando grande humildade, mansidão e paciência. Na sequência desta descrição, enumeram-se (cap. IV) alguns milagres, aqueles que tiveram lugar em vida, a saber, a cura de uma freira do Mosteiro de Chelas; a cura da ferida de um leproso atingido por um guarda dos aposentos da rainha, numa sexta feira de Quaresma, quando a Rainha lavava os pés a um número determinado de leprosos; a cura de um pé gangrenado de uma mulher pobre, numa quinta feira de lava-pés; a cura de uma dor da sua fiel servidora Urraca Vasquez; acrescentando-se, por fim, um que não consta da Lenda: a transformação da água em vinho, que a Rainha se recusava a beber, apesar das prescrições dos médicos. O seguinte capítulo (cap. V) refere a posição de D. Isabel perante os filhos ilegítimos de D. Dinis, a sua paciência, serenidade e ponderação perante a situação, dando assim corpo ao topos literário do “puer senex”, da jovem com a maturidade e a sabedoria de uma idosa. Os capítulos seguintes referem pontualmente o seu aspeto de pacificadora e intermediária da concórdia entre todos, a saber, a sua atuação como medianeira no conflito entre D. Dinis e o irmão,

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D. Afonso (cap. VI), cedendo parte das suas terras e rendas; no conflito que envolveu D. Dinis e os reis castelhanos, quando do não cumprimento do casamento combinado entre sua filha, D. Constança, e D. Fernando, futuro rei de Castela (cap. XI); no conflito peninsular que envolveu os reis de Aragão e Castela e os outros pretendentes ao trono de Castela (cap. XV), acompanhando e apoiando o marido na sua arbitragem decretada pelo Papa; no conflito entre D. Dinis e o filho, agindo como incansável pacificadora nas prolongadas desavenças entre ambos (cap. XXVI-XLV). Finalmente, consta também desta crónica a posição tomada pela Rainha quando da morte de D. Dinis, no que dizia respeito ao seu modo de vida futuro (cap. XLVI). No final desta crónica, o autor remete para a Crónica de D. Afonso IV, onde eventualmente se encontrariam mais informações sobre D. Isabel, mas, à exceção de uma breve referência, primeiro, à deslocação à fronteira entre Portugal e Castela, para o casamento de seus netos, D. Maria, filha de Afonso IV, e D. Afonso XI, filho de D. Constança, e, depois, à sua deslocação a Badajoz, onde se encontrou com os mesmos netos (cap. V), para os congraçar, não há mais referências a Santa Isabel. Crónicas de Rui de Pina Rui de Pina é, em termos de fontes históricas e cronistas portugueses, a fonte privilegiada por Perpinhão; é certo que este também poderia ter recolhido a mesma informação na Crónica de 1419, mas é aquela que segue no tratamento mais desenvolvido de alguns assuntos. As informações que recolhera da primeira biografia da Rainha são complementadas, desenvolvidas, aprofundadas com a narrativa mais detalhada de Rui de Pina, nomeadamente das crónicas dedicadas aos reinados de D. Dinis e D. Afonso IV. Se, pontualmente divergem, como na questão da peregrinação da Rainha a Santiago de Compostela, Perpinhão apela para o testemunho do texto mais antigo, questiona o relato de Rui de Pina, mas não o exclui ou recusa liminarmente.

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A Crónica de D. Dinis veicula informação idêntica à da Crónica de 1419, mas com muito mais detalhe. O capítulo II faz uma pormenorizada relação dos antecedentes familiares de D. Isabel de Aragão, quer da parte da mãe, D. Constança de Hohenstaufen, quer do pai, D. Pedro III de Aragão; dos projetos e concretização do seu casamento com D. Dinis; das despedidas e da viagem por Castela, sem omissão dos discursos ficcionados do pai e do primo, tal como na obra anterior; da vida exemplar da Rainha depois de casada; de milagres ocorridos ainda em vida, por sua intercessão, e das suas virtudes. O capítulo IV refere os filhos legítimos e ilegítimos do rei e elogia a enorme paciência e compreensão de D. Isabel. O papel interventivo que desempenhou agindo, dando opinião, marcando posição, mediando e pacificando, nos vários conflitos que se desencadearam durante a sua vida, é realçado nos capítulos V (no conflito entre D. Dinis e o irmão), IX (o conflito que opôs a coroa portuguesa aos pais e tutores de D. Fernando IV de Castela, a propósito do seu casamento negociado, mas não cumprido, com D. Constança, filha de D. Dinis e D. Isabel), XI (o conflito peninsular, para o qual D. Dinis foi escolhido como juiz) e XIX-XXX (a guerra civil que opôs D. Dinis ao filho D. Afonso, futuramente o IV, que se prolongou por vários anos e que não teve consequências mais nefastas graças à intervenção determinada da Rainha). A posição, tomada depois da morte do marido, de se vestir com hábito de clarissa, não para tomar votos, mas em sinal de viuvez e humildade, ocupa os capítulos XXX/XXXI. Pode haver alguma diferença de pormenor, mas basicamente Rui de Pina segue a linha expositiva da Crónica de 1419, multiplicando a informação adicional; Perpinhão, por sua vez, segue fielmente estas informações de Pina; podem encontrar-se no De Vita de Perpinhão informações e até opiniões deste autor, que algumas vezes aceitou e subscreveu. Na Crónica de D. Afonso IV, Rui de Pina refere a atuação da Rainha, para tentar resolver as más relações conjugais entre os netos, os reis

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de Castela, D. Afonso XI, filho de D. Constança, e D. Maria, filha de D. Afonso IV, deslocando-se a Badajoz. O capítulo XXIII é-lhe inteiramente dedicado: a sua peregrinação a Santiago de Compostela; a deslocação a Estremoz, a sua morte e as peripécias do cortejo fúnebre. Após o relato, faz-se, então, o elenco de alguns milagres ocorridos após a morte, nos dias imediatos, todos eles registados notarialmente. Destas informações de Rui de Pina, Perpinhão não negligencia uma única; em muitos casos segue até as opiniões do cronista, subscrevendo inclusivamente o seu juízo de valor sobre algumas personagens; por exemplo, sobre D. Afonso IV, no seu conflito com o pai (vd. infra). Consultou, ainda, Perpinhão, para aprofundar o seu relato, nomeadamente para falar dos antecedentes familiares da rainha e dos seus pretendentes, informações de cronistas castelhanos e aragoneses, que refere, mas também não identifica.

I.3. Ofício da bem aventurada rainha D. Isabel de André de Resende Perpinhão conheceu outros documentos, que referiu e utilizou para completar a sua biografia, e de onde retirou também informação, nomeadamente algumas cartas cedidas pela abadessa de Santa Clara, algumas das quais foram lidas, traduzidas e incorporadas por Perpinhão na sua monografia, com relatos e testemunhos de milagres ocorridos em épocas mais recentes, já no século XVI; está neste caso o relato da cura milagrosa da freira de Celas, Ana de Azpilcueta (vd. supra), sobrinha do célebre canonista, professor na Universidade de Coimbra, Martim de Azpilcueta Navarro, que celebrizou o caso e sobre ele mandou fazer um quadro, hoje exposto no Museu Machado de Castro, em Coimbra. Também recorreu a textos litúrgicos compostos sobre a Rainha, como ofícios. Perpinhão refere, entre outras iniciativas para a sua comemo-

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ração, a composição de um ofício litúrgico por iniciativa de André de Resende, em 1551 31. Diz, em De Vita: Finalmente, em 1516, o Rei Manuel, informado da quantidade de milagres que aconteciam todos os anos, de forma divina, por intercessão da Rainha santíssima, conseguiu através de Miguel da Silva, Embaixador seu junto do Pontífice Máximo, Leão X, que, em toda a diocese de Coimbra fosse permitido, pelas leis humanas e divinas, cultuá-la em rito solene e dedicar as suas imagens, quer em público, quer em privado, ainda que não tivesse sido inscrita legalmente, em cerimónia pública, no número dos santos; em seu nome, Lúcio André de Resende, varão sumamente douto, no ano de 1551, compôs convenientemente um rito para rezar, a que chamam vulgarmente ofício, um certo género de oração perfeitamente adequado ao costume da igreja. 32

Este ofício não lhe trouxe informação adicional, pois inspirava-se também na Lenda. O próprio André de Resende fala da composição e das fontes do seu Ofício, as mesmas utilizadas por Perpinhão, na dedicatória à rainha D. Catarina: Lúcio André de Resende envia saudações a D. Catarina, Augustíssima Rainha de Portugal. Como eu estivesse em Coimbra, neste ano, Rainha Augustíssima, e em boa ocasião chegasse o dia solene em que se celebra a bem-aventurada Rainha Isabel em sagrado aniversário, tendo-me deslocado ao seu sepulcro por devoção e para rezar, foi-me mostrado o livro dos seus feitos e, na mesma ocasião, o rito solene de oração para aquele dia, a que o uso herdado da Igreja designa por ofício. Ainda que o primeiro

31 O humanista André de Resende encontrava-se, então, em Coimbra, incumbido da tarefa de pronunciar a oração de sapiência no Colégio das Artes, ainda não sob orientação dos jesuítas. 32  De

Vita, II, p. 379.

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destes me incitasse, para além do que se possa dizer, para a piedade de ler coisas belíssimas e cheias de virtude divina, com o segundo, de tal forma fiquei chocado, que pensei que seria pouco merecedor da própria santa, se não afastasse das outras pessoas, com a composição de um novo ofício, a causa de tamanho choque 33 .

I.4. Textos contemporâneos da obra de Perpinhão No espaço de quatro anos após a portaria de D. João III, foram compostas outras duas biografias, para além da de Pedro Perpinhão, com o objectivo de cumprir a solicitação régia de “auer em hum liuro toda a lenda da dita Rª E todos os milagres que deus por ella fez e faz de que ha memoria autentica no conuento de sta crara” e “treladar fielmente o liuro de sua historia por enteyro”. A primeira foi Vida e milagres da gloriosa Raynha sancta Ysabel, molher do catholico Rey dom Dinis sexto de Portugal, editada pelos mordomos da Confraria da Rainha Santa Isabel, quando da sua criação, em 1560; a outra foi “Vida da Bemaventurada sancta Isabel Raynha de Portugal”, de Frei Marcos de Lisboa, inclusa na Segunda Parte das suas Chronicas da Ordem dos Frades Menores e das outras Ordens Segunda e Terceira, instituidas na Igreja pelo Santo Padre Sam Francisco, obra publicada em Lisboa, em 1562. A primeira foi uma biografia composta por sugestão da abadessa do Mosteiro de Santa Clara, D. Ana de Meneses, por Diogo Afonso 34, secretário do cardeal-infante D. Afonso, filho de D.Manuel, e parece também responder à decisão da portaria régia de 1556, acima citada. Fundamentou-se igualmente nos escritos existentes em Santa Clara: 33 André de Resende, Officium Sanctissimae Elisabeth Portugaliae quondam Reginae, reproduzido em A. Vasconcelos, tomo II, pp. 45-57. Vd. Helena Costa Toipa (2011) “O Ofício da bemaventurada rainha Santa Isabel, de André de Resende”, Máthesis, 20, pp. 55-75. 34  Apesar de o seu nome não figurar na obra, a sua composição é-lhe normalmente atribuída. Vd. Barbosa Machado (1741), Bibliotheca Lusitana, Historica, Critica, e Cronologica, Tomo I, p. 628; Vasconcelos (1891-94), II, pp. 69-74.

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Lenda, registos tabeliónicos dos milagres e outra documentação na posse da abadessa de Santa Clara. O seu autor salienta, na dedicatória à “muy alta e muy poderosa Raynha Dona Catherina primeyra deste nome de Portugal”: Depoys de sermos eleytos Mordomos da confraria da gloriosa sancta Ysabel Raynha de Portugal & vermos a multidã das merces, que milagrosamente nosso señor faz por seu meyo a estes reynos. E a sua sanctissima vida tã pouco manifesta ao mundo, determinamos pera gloria sua, & louvor de nosso senhor revolver & buscar nas cronicas antigas dos catolicos reys de Portugal, & e nos seus testamentos, o que mays com verdade a declarase. Como V. A. pode ver por este livro de sua vida que lhe offerecemos, certificandolhe que ho mays della foy tirado da que as madres de sancta Clara de Coymbra entre sy tem, mal escrita, & com palavras antigas que a não deyxam entender. 35

Tendo efetivamente como fio condutor aquela primeira obra sobre a Rainha, de 1336, esta abrevia muito as suas informações, evitando inúmeros detalhes e as minúcias daquela. Está escrita, como intenção expressa do autor, de forma mais atual para a época e mais clara; divide-se em capítulos com títulos, o que ameniza e facilita a leitura; vai intercalando comentários e algumas opiniões abonatórios sobre a Rainha. Apesar de abreviada, não omite informações relevantes veiculadas pela Lenda; acrescenta, isso sim, informação mais recente, nomeadamente os relatos dos milagres ocorridos em épocas mais próximas, informação essa que lhe é facultada principalmente pela documentação cedida pela abadessa de Santa Clara; outros milagres, tê-los-á recolhido da tradição popular; neste relato, encontra-se já escrito o célebre milagre das rosas:

35  Vida e milagres da gloriosa Raynha sancta Ysabel, molher do catholico Rey dõ Dinis sexto de Portugal. Com o compromisso da cõfraria do seu nome, e graças a ella concedidas. Lisboa, MDLX. Adiante, referir-nos-emos a esta obra como Vida.

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Sabido he como a gloriosa raynha dava muytas & muy grossas esmolas. El rey dom Dinis nã era tãto disso, & dezialhe que não destribuysse tantas. E hum dia trazia a gloriosa Raynha na aba de huma sua cota huma soma de dinheiro pera dar a pobres, encontrouse com el Rey que lhe perguntou que levava. Respõdeo Señor rosas. E querendoas elle ver, foy assi, que sendo ho tempo muyto fora dellas ho dinheiro se tornou em rosas. E em memoria deste final chama a huma das portas do mosteyro de sancta Clara a porta da rosa, por as esmolas que a ella mandava dar a gloriosa Raynha. E em algumas partes estaa pintada com as abas cheas de rosas. 36

Perpinhão não parece ter recorrido a esta fonte contemporânea, apesar de se encontrar ainda em Portugal e, mesmo, em Coimbra 37, pois diz nunca ter encontrado o milagre das rosas escrito 38, só pintado. Destas duas narrativas, a Vida editada pelos mordomos foi publicada antes da

36  Vida,

pp. 58-59.

37  Na

sua monografia faz, no entanto, referência à criação da Confraria da Rainha Santa Isabel e a alguns dos seus estatutos (De Vita, pp. 383-384). 38  Nem o relato de Perpinhão, nem o dos outros dois biógrafos contemporâneos incluem uma variação do milagre das rosas, mais conhecido como “milagre de Alenquer”, descrito num opúsculo intitulado Lenda da Rainha Dona Isabel chamada a Sancta molher de’el-Rei Dom Denis a qual fundou a Casa do Spirito Sancto da vila d’Alanquer, provavelmente da autoria de Damião de Góis e escrito, de acordo com elementos fornecidos pelo texto, entre 1548 e 1557, que apresenta também alguns milagres; um deles representa uma diferença em relação ao milagre das rosas: não é o pão/moedas que a rainha levava para acudir aos mais pobres que se transforma em rosas, mas as rosas que se transformam em dinheiro: Item mais se acha que fazendo-sse a dicta obra que passava huma moça com hum molho de rosas na mão per a par do dicto lugar onde a Rainha estava com suas donzellas vendo como trabalhavam e que huma das dictas donzellas pedio as rosas aa moça e as deu aa Rainha. A qual Senhora partindo-sse da obra deu a cada huum dos officiais huma das dictas rosas as quaes elles poseram a paar de seus fatos, e aa tarde querendo-se hir pera casa tomando cada hum a rosa que lhe fora dada se lhe converterão em dobras, do que espantados o forom logo dizer aa Rainha do que ella com muita devação e lágrimas deu graças a Deos e o mesmo fez el-Rey que ao presente ahi estava.

Vd. Sousa, Teresa Andrade (1987), “Lenda da Rainha D. Isabel. Códice iluminado da B.N.” Introdução e leitura crítica de Teresa Andrade e Sousa. Separata da Revista da Biblioteca Nacional. Série 2. Vol. 2 (1), 23-48.

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de Perpinhão estar terminada; dada à estampa em 15 de julho de 1560, já não inclui três milagres de que Diogo de Paiva, Doutor em Teologia, pregando no dia da festa da Rainha Santa, deu notícia, em pleno púlpito; eles são acrescentados porteriormente em adenda à referida obra, juntamente com o Compromisso dos Confrades da Confraria da Rainha Santa Isabel e com a transcrição das indulgências concedidas pelo Papa à mesma Rainha, através do núncio apostólico Pompeu Zambicário. A biografia latina escrita por Perpinhão não só inclui esses três milagres relacionados com três religiosas de Coimbra, atestados pelas abadessas dos respetivos mosteiros, cujas cartas traduz para latim e transcreve, como acrescenta ainda outros posteriores, pelo que terá terminado a sua obra pouco antes de Julho de 1561, altura em que foi enviado para Roma, para o Colégio Romano, da Companhia de Jesus. Fr. Marcos de Lisboa, de Ordem dos Frades Menores de S. Francisco, compôs a crónica da sua instituição, reservando os capítulos XXVI a XXXII do livro oitavo da Parte Segunda à Rainha Santa Isabel. A principal fonte consultada e utilizada é a Lenda, tal como está indicado no título: “Vida de bemaventurada sancta Isabel Raynha de Portugal, a qual viveo e morreo no habito do Padre S. Francisco, e foy tirada esta historia de hum liuro antigo e authentico, que largamente contem a vida e milagres desta Raynha santa, que está em sancta Clara de Coimbra, onde estão suas reliquias.” 39 O autor segue-a fielmente, mas abreviando-a como seria necessário numa obra deste natureza; contém todas as informações essenciais apresentadas de uma forma sucinta e sem pormenores. Para além desta informação fundamentada, recorre também às informações da abadessa de Santa Clara e à tradição popular; no primeiro caso, por exemplo, menciona brevemente os milagres ocorridos em 1560 que envolveram

39   Lisboa, Marcos de (2001), Crónicas da ordem dos frades menores. Organização, introdução e índices do Centro Interuniversitário de História da Espiritualidade do Porto, 3 vols. Porto: Centro Interuniversitário de História da Espiritualidade da Universidade do Porto; pp. 210.

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as religiosas de Coimbra, também relatados pelas biografias anteriores, mas sem especificar o tipo de cura ou os nomes das miraculadas; no segundo, apresenta os milagres, também incluidos nas biografias anteriores, mas provenientes da tradição, uma vez que não constam da Lenda, ou de outras fontes escritas conhecidas. É o caso do milagre das rosas, que é incluído nas três biografias, mas que só Perpinhão refere com reservas, dizendo que nunca o tinha encontrado por escrito, apenas visto no quadro que existia em Santa Clara. Todos os relatos de milagres das outras duas biografias constam da obra de Perpinhão, mas o inverso não se verifica, sendo a narrativa de Fr. Marcos de Lisboa a menos completa. Há, no entanto, um acontecimento peculiar na vida de D. Isabel que não consta da Lenda e que Perpinhão não menciona, nem na biografia, nem nas orações, mas que também está relatado na Vida dos mordomos: envolve dois pagens, um da casa da Rainha, outro da casa do rei; este último, invejoso dos privilégios do primeiro, resolve intrigá-lo junto do rei e acaba por morrer, de forma estranha, vítima das suas ações. Talvez Perpinhão o não tenha incluído por considerá-lo pouco próprio do perfil da Rainha e, por isso, pouco verosímil. Algumas fontes utilizadas na composição destes relatos da vida e obra de Santa Isabel são comuns aos três: a Lenda da Rainha Santa Isabel, a documentação da abadessa de Santa Clara, com o relato dos milagres recentes e a tradição. Não foram tratadas, no entanto, da mesma maneira pelos três: Perpinhão utilizou, de forma exaustiva, toda a informação disponível, traduzindo-a para latim, nomeadamente os decretos régios, as cartas da abadessa ou os relatos das testemunhas dos milagres, complementando-a, ainda, com crónicas de historiadores peninsulares e com a experiência pessoal, descrevendo monumentos, cidades ou quadros e fazendo o ponto da situação das instituções religiosas e de assistência criadas ou patrocinadas por D. Isabel. Os outros dois relatos condensaram a Lenda, no caso de Fr. Marcos de Lisboa, reduzindo-a mesmo ao essencial.

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Perpinhão não leu as obras dos outros autores seus contemporâneos e estes não leram a sua, pois só foi publicada em Colónia em 1609. Perpinhão consultou mais fontes, acrescentou relatos de outros milagres e foi muito mais exaustivo, reconstituindo, em latim, a imagem que da Rainha se tinha formado, durante o período que decorreu entre a sua morte, 1336, e meados do século XVI. Não há informação que conste nos outros dois autores que Perpinhão não tenha; pelo contrário, numa versão muito mais longa que as dos seus contemporâneos, Perpinhão aprofunda muito mais a narrativa.

I.5. Tratamento das fontes escritas Conformando o seu modo de escrever História às palavras de Cícero (o seu autor de eleição), que, apesar de não ser historiador, teorizou sobre História40, e de outros historiadores antigos, como Heródoto, Tucídides, ou Salústio 41, Perpinhão preocupa-se com a sucessão cronológica, com as descrições dos lugares onde ocorreram os factos narrados, com as

40 Cícero,

De Oratore, 2. 62-63. Pois quem ignora que a primeira lei da História é não dizer falsidade alguma? Em seguida, ousar afirmar a verdade? E não deixar nem uma suspeita de parcialidade ou de animosidade? 63 Estes princípios todos os conhecem.(...) A própria construção do edifício assenta nos factos e na arte de os exprimir. A disposição dos factos exige que se siga a sucessão cronológica e a descrição dos locais; requer também, uma vez que nos factos importantes e dignos de memória se esperam conhecer primeiro a preparação, depois a execução e por fim o resultado, que, por um lado, o escritor indique o que pensa sobre o assunto, por outro, que declare, no que diz respeito aos acontecimentos, não só o que foi feito e dito, mas também de que modo o foi, e quando se pronunciar sobre o resultado, que sejam explicadas todas as causas, quer fruto do acaso, quer da sabedoria, quer da temeridade; dos próprios homens referir não só as façanhas, mas também a vida e carácter de cada um daqueles que se revelaram excelentes pela fama e nome. (Vd. Maria Helena da Rocha PEREIRA (1984), Estudos de História da Culltura Clássica. II volume: Cultura Romana. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian).

41  Sobre a conceção da História entre os humanistas portugueses, consulte-se Jorge A. Osório (1991-1992), “Humanismo e História”, Humanitas, XLIII-XLIV, pp. 461-483 e Nair Nazaré Castro Soares (1992), “Humanismo e História: Ars Scribendi e valor do paradigma”, Máthesis, 1 pp. 153-169.

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causas, o desenrolar e as consequências dos vários acontecimentos da vida da Rainha e da história portuguesa desse período, com a referência ao caráter das personagens da história, apresentando-as como exemplos a seguir, ou não, mas, fundamentalmente, no seu De Vita, preocupa-se com a verdade dos factos que transmite; as fontes escritas são a sua segurança na sua busca implacável por essa verdade, nelas depositando grande confiança, como se pode verificar, nesta passagem da terceira oração pronunciada no dia comemorativo da Rainha, no Colégio das Artes: Isto parecer-vos-á, talvez, digno de admiração, mas nada direi, uma vez que, se for necessário, não o posso provar com as letras mais antigas . 42

Por isso reforça frequentemente o que diz, afirmando que o encontrara escrito (nem sempre dizendo onde, porém). Ao falar, por exemplo, do corte de relações entre o pai e o avô de D. Isabel, D. Pedro III e D. Jaime de Aragão, respetivamente, Perpinhão refere: E esta terá sido, para ele, talvez, a razão por que nunca mais, até ao último dia da sua vida (o que eu vi afirmado nas letras mais antigas), terá permitido que viessem à sua presença, quer o seu filho, quer os filhos deste. 43

Esta prática de consulta e crença nas fontes escritas, nomeadamente crónicas portuguesas e castelhanas, confirma-se também, por exemplo, nesta passagem, cuja fonte inequívoca foi Rui de Pina. Comparem-se as seguintes passagens: depois de manifestar estranheza pelo facto de, nas guerras contra os Sarracenos, os Cristãos, com recursos exíguos e exércitos mais pequenos, terem alcançado grandes vitórias sobre os

42  Laudationis 43  De

Beatae Elisabethae Lusitaniae Reginae liber III, p. 145.

Vita, p. 175.

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exércitos muito mais numerosos dos inimigos e protagonizado feitos singulares e inacreditáveis, apresenta a justificação que diz ter encontrado num cronista dos reis de Portugal, apesar de não o identificar; ora, essa mesma justificação encontra-se em Rui de Pina. Perpinhão: Encontrei, então, algo que me libertou de todas as dúvidas. Com efeito, um certo varão, bastante prudente e hábil, que escreveu eloquentemente e de forma elegante a vida e os feitos dos reis lusitanos, quanto era natural àquela época, afirma ter lido, nos antiquíssimos monumentos de literatura, dignos do maior crédito e possuidores da maior autoridade, que, nos castelos e fortificações, para fazerem frente e oposição àquelas bárbaras e desumaníssimas nações, existiam redutos de cavaleiros seletíssimos, que observavam o mais religiosamente possível a lei divina, e conservavam com a maior constância, a verdadeira fé da universal Igreja Romana; que fugiam completamente dos furtos, das rapinas, dos apetites desenfreados, e se atormentavam, eles próprios, de sua livre vontade, com frequente e longo jejum e com outros castigos molestos e graves, pelos pecados admitidos, e acediam ao sagrado ofício divino, todos os domingos e dias santos, com as suas almas completamente purgadas e preparadas pela confissão. E ele considera, com toda a razão, não haver dúvidas de que foi mais esta situação que, não só por aplacar a vontade divina, mas até por reconciliá-la, mereceu os auxílios celestiais, e gerou vitórias tão numerosas, tão insignes, tão inesperadas. O mesmo me lembro eu de ter lido, uma vez, na história antiquíssima dos reis de Castela. 44

Compare-se com esta passagem de Rui de Pina: (…) as antigas, & aprovadas lembranças de Espanha tem que dos Cavaleyros Christãos daquelle tempo averem dos infiéis tam milagrozas

44  De

Vita, pp. 205-206.

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victorias nõ era sem justa permissaõ, e devido galardão da bondade de Deos, porque nesta frontaria dos Mouros em que estavão leyxadas algumas erradas, e viciozas solturas em que dantes vivião erão aly muyto bons Christãos mantendo em tudo seus santos mandamentos, & os verdadeyros artigos da sua fé, porque nõ roubavão o alheo, e dos vícios da carne herão muy abstinentes, e todolos Domingos, e festas se cõfessavaõ, e tomavão o corpo de Nosso Senhor, e faziaõ pendenças de seus peccados, e por esta cauza se diz que os poucos destes tinhão por graça de Deos tal poder e esforço com que vencião os infiéis com que pella fé, e por defensão de sus terra peleijavão 45 .

Pelo contrário, quando diz algo não fundamentado nos documentos escritos, também o refere claramente. Por exemplo, quanto ao milagre das rosas, depois de o descrever, confessa não o ter encontrado em qualquer texto escrito, tratando-se apenas da recolha de uma tradição popular; por isso, quando o insere na sua biografia da Rainha, manifesta as suas reservas, para manter a sua credibilidade como investigador/historiador fiel à verdade dos factos assegurados por documentos escritos; mas não o nega, mencionando a sua existência na tradição oral, que se traduzira já em manifestações artísticas, como o quadro existente em Santa Clara, junto do sepulcro da rainha, mencionado também noutros relatos contemporâneo do de Perpinhão.46 Acrescenta ainda que conhecia 45  Chronica

d’El-Rei D. Affonso IV, cap. LI, pp. 427-428.

46  É

o caso do relato da Vida editada pelos Mordomos (vd. supra) e do de Fr. Marcos de Lisboa, 1562, Livro VIII, Cap. XXXI, p. 213: Levava huma vez a Raynha sancta muytas moedas no regaço pera dar aos pobres, & encontrando a el Rey lhe preguntou que levava, e ella disse, levo aquy rosas. E rosas vio el Rey, não sendo tempo dellas. E com este milagre se pinta a santa Rainha em algumas partes. Tratava-se de um milagre divulgado pelo voz do povo, que poderá ter conhecido maior projeção após o reinado de Manuel, durante o qual ocorreu a beatificação da rainha. A presença de um quadro com a representação desse motivo, no mosteiro de Santa Clara, terá ajudado também a sua afirmação. Com efeito, o poder curativo da Rainha fora ainda recentemente divulgado e conhecera grande projeção, por iniciativa de Martim de Azpilcueta Navarro, cuja sobrinha, Ana de Azpilcueta, freira em Celas, fora curada por intercessão da

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já o mesmo milagre, atribuído a Santa Cassilda, não referindo, porém, que também era atribuído a Santa Isabel da Hungria, tia-avó da Rainha Santa Isabel, sobre quem também já se pronunciara supra, ao falar da linhagem da rainha, e cujo culto estava bem divulgado em Portugal 47: Como, um dia, trouxesse secretamente no regaço com que acudir a alguns pobres, [diz-se] que o rei, suspeitando do que ela levava ocultamente, e, talvez não por não querer que a esposa fosse tão generosa a dar aos miseráveis, mas por querer que nisso ela mantivesse a majestade real, lhe perguntara o que levava; e que Isabel, temerosa, não fosse ele proibi-la de o fazer de novo, no futuro, lhe respondera “rosas” e que por ordem imprevista de Dinis, abrindo o regaço, o que quer que trazia se converteu realmente em belíssimas rosas; e que o rei, estupefacto, nunca mais tentara impedi-la de novo; tanta esperança tivera ela em Deus que, o que dissesse, sem qualquer dúvida, acreditava vir a acontecer; e que Deus, por outro lado, de tal forma lhe obedecera, que não permitira que se encontrasse, no seu regaço, outra coisa diferente do que ela dissera. Isto encontrei eu escrito acerca da jovem Cassilda, filha do rei sarraceno de Toledo, cujas excelentes virtudes, feitos insignes e santíssimos ossos tornaram ilustre Boécio, aldeia da região de Burgos, onde viveu e morreu, abraçando a religião cristã. Com efeito, como, em casa do pai, influenciada por alguma chama celestial, alimentasse alguns cativos de guerra cristãos, e os distraísse na prisão, diz-se que ela passou com o pai aquilo que dissemos ter-se passado entre Isabel e o marido. Sobre a Rainha, nunca o li, nem nos mais antigos, nem nos mais recentes

Rainha. Terá sido desta graça obtida que resultou o ex-voto mandado fazer pelo célebre professor, em agradecimento; é provavelmente a esse quadro que se refere Perpinhão, bem como Fr. Marcos de Lisboa e o autor da Vida. 47 Vd. Anibal Pinto de Castro (ed.) (2007), A Coroa, o pão e as rosas, Coimbra. Giulia Rossi Vairo (2009), “Alle origine della memoria figurativa: Sant’Elisabetta d’Ungheria (12071231) e Isabella d’Aragona, “Rainha Santa de Portugal (1272-1336)” a confronto in uno studio iconografico comparativo”, in Imagem, memória e poder. Visualidade e representação (sécs. XII-XV). Lisboa: Instituto de História de Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, nº 7, pp. 221-235.

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monumentos de literatura, mas, por um lado, é celebrada pela permanente tradição do povo, que frequentemente guarda muitas coisas, sem escrita, transmitidas pelos antepassados, quase como que de mão em mão; e, por outro, assim está representada, no templo de Santa Clara, que ela edificou junto da cidade de Coimbra, num quadro, no altar da capelinha superior. Está, de um lado, Isabel, com aparência e vestimenta real: tem, na cabeça, a coroa, sinal de poder, e, no regaço, rosas, em parte brancas, em parte vermelhas, vestígios suficientemente evidentes do feito. A verdade é que essas representações não são anteriores ao reinado de D. Manuel, rei da Lusitânia. Pense cada um o que quiser; eu, porém, não vejo por que não haveríamos de ouvir a voz popular, quase como um testemunho da multidão. 48

Outras vezes, quando não encontra a informação pretendida, nos textos anteriores, recusa-se a dar essa informação e até se insurge, como nesta passagem em que fala do nascimento de D. Isabel: Qual o dia exato em que nasceu ou a cidade que a recebeu em primeiro lugar assim que nasceu, nunca o encontrei registado em texto algum; quiseram, sem dúvida, que o adivinhassem os vindouros! 49

É também com espírito sagaz e juízo acutilante que questiona, por vezes, algumas das informações escritas e, quando encontra informações contraditórias, apresenta as versões que conhece, deixando a decisão ao futuro leitor; por vezes, manifesta muito sinteticamente as suas hesitações, quando as versões são díspares. Ao falar de Frederico Barba Ruiva,

48  De Vita, pp. 215-216. Sobre este episódio, veja-se Russo, M. (2007), “Isabella d’Aragona, Regina del Portogallo, “Rainha Santa”: la tradizione manoscritta e il miracolo delle rose”, in Donne Sante Sante Donne, a cura di Associazione F.I.D.A.P.A., Sette Città, Viterbo 2007, pp. 33-79. Helena Costa Toipa, (2015), “O milagre das rosas em De Vita et Moribus Beatae Elisabethae Lusitaniae Reginae de Pedro João Perpinhão”. Boletim de Estudos Clássicos, 60, pp. 131-141. 49  De

Vita, p.179.

45

um dos antepassados de D. Isabel, referindo-se à sua morte, apresenta as duas versões dos antigos historiadores sobre o motivo que o teriam levado a entrar no rio onde morreu: O Imperador Frederico, (…) protagonizando feitos grandiosos na Ásia, ao entrar num rio cheio de turbilhões, fosse para se banhar, fosse para o atravessar, deixara, com uma morte repentina, indigna de tamanho poder, o luto ao exército e a fuga ao vencedor 50 .

Outras vezes ainda, mostra-se crítico em relação a essas fontes, nomeadamente quando algo pode parecer inverosímil ou, pelo menos, difícil de acreditar, ou quando os factos não coincidem; nesses casos manifesta as suas hesitações e dúvidas: apesar de acreditar, por princípio, no que está escrito, na autoridade das letras, no entanto, por vezes, quando existem várias versões ou alguma situação menos digna de crédito, apresenta as versões divergentes, não as omitindo. Ao relatar uma segunda peregrinação da Rainha, a pé, como romeira, a Santiago de Compostela, que não consta da Lenda, andando ela pelos 63 anos, Perpinhão duvida da sua veracidade, apesar de a ter lido em Rui de Pina, que é o primeiro que a ela se refere 51: Na verdade, não é apropriado omitir o que encontro em autores dignos de crédito, nem percebo por que razão quem quer que seja há-de retirar o crédito aos feitos menores e mais fáceis, que por todos é

50  De

Vita, p. 169.

51  Rui

de Pina, Chronica d’El-Rey D. Affonso IV, cap. XXIII, p. 378: Andando a era de Cesar em mil, e trezentos, e setenta, e tres anos, e o anno de Christo em mil, e trezentos, e trinta, e sinco a Rainha D. Izabel molher que foy de elRey D. Dinis, e madre deste Rey D. Afõso IV, como era molher de vida mui sãta por acrecentar por seu corpo merecimentos para salvação da sua alma, sendo este anno Iubileu de Sanctiago de Galiza, ella por aver do tizouro da misericórdia, e piedade de Deos indulgencia, e remissão de seus peccados foy a elle, e tornou de pé aforada, e muy desconhecida, pedindo pello caminho esmolas aos fieis Christãos com seu bordão na mão, e fardel ás costas como hua bem pobre romeyra (…)

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atribuído aos bem maiores e mais difíceis. (…) Ainda que haja alguma suspeita de que a mesma peregrinação tenha sido narrada de forma diferente e de que se deva a maior confiança aos textos mais antigos (refere-se à Lenda), nos quais, sobre esta caminhada apenas estão contidos aqueles factos que estão expostos no livro anterior (a saber, De Vita et Moribus B. Elisabethae Lusitaniae Reginae liber secundus), no entanto, uma vez que não podemos decidir sobre esta questão duvidosa, ficamos no meio termo, afirmando que a alternativa não há-de ser terminantemente recusada. 52

Também na oração que pronunciou no Colégio das Artes, em 1559, Perpinhão manifestara as suas dúvidas, sem, no entanto, recusar a informação das fontes escritas: Eu, por mim, não acreditaria nesta tão longa caminhada, se não a tivesse lido na história dos reis da Lusitânia . . Com efeito, tendo eu omitido algumas coisas que, sobre a bem-aventurada Isabel vulgarmente se proclamam, por não as ter encontrado nos antigos monumentos da literatura, não empreenderei, para destruir a minha fé e a minha autoridade, se alguma tenho, junto dos homens mais graves, se parecer comemorar estes feitos tidos como de sucesso garantido, não empreenderei, repito, aquelas que não são celebradas nem pela fama, nem pelas conversas dos homens, ou que não tenham sido transmitidas à memória das letras de quem quer que seja. Mas também não devo temer que penseis que isso não poderia ter sido feito pela santíssima rainha 53 .

Mas o episódio que o leva a questionar as fontes escritas com maior acutilância é o relacionado com a morte da rainha de Castela, D. Constança, filha de Santa Isabel. Conta a Lenda que, indo um dia a

52  De

Vita, pp. 348-349.

53  Laudationis

Beatae Elisabethae Lusitaniae Reginae liber III, p. 124

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caminho da Azambuja, esta foi interpelada por um eremita o qual lhe revelou que tivera uma visão da falecida D. Constança, que lhe solicitara que pedisse a sua mãe que mandasse rezar missas, todos os dias, durante um ano, por um sacerdote casto, para salvação da sua alma, em trânsito para o Paraíso. Apesar das dúvidas e hesitações, a Rainha fez aquilo que lhe tinha sido solicitado e, passado um ano, foi ela própria contemplada com um sonho, no qual lhe aparecia a filha, dizendo-lhe que estava já livre das penas do Purgatório: E morreo esta rainha Dona Constança manceba. E acaeceo que, pouco tempo des que Dona Costança passou, viindo esta rainha Dona Isabel de Santarém pera Lixbõa com elrey D. Dinis, apartando-se ela de uum logar a que chamam Ponteval, e viinha pera uma vila que dizem Azambuja, recodio apos a rainha braadando uum ermitão e dizendo: – Por Deus, senhora, ouvide-me, que vos quero dizer. Aqueles que arredor viinham nom [no] queriam leixar chegar, e o ermitão disse assi que aqueles que i viinham o ouviam: – Senhora, a rainha Dona Costança, vossa filha, pareceo a mim em sonho já por vezes em uma ermida em que faço vida, dizendo-me que vos veesse dizer que ela padecia em [n]o purgatorio e que lhe acorressedes e o acorrimento fosse este: que fezessedes por ela por uum crerigo casto dizer por uum anno cada dia missa, fazendo-se sacrificio de sobre altar, como á ordenado a santa Eigreja. E os que arredor da rainha viinham começarom a riir do que o ermitão dizia, dizendo eles: – Se a rainha Dona Costança parecer podesse a alguum, leixaria de parecer a seu padre ou [a] sa madre ou a seu irmão e pareceria a vós? E a rainha preguntou se conhocia alguum aquele ermitão, e disserom-lhe que nom, nem sabiam u morava. E, des que forom em aquele logar da Azambuja, fez a rainha buscar aquel ermitão pera falar com ele e pera nom ouvir outrem, e nom no acharom, nem souberom parte u morava, nem u estado fazia. E a rainha

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disse esto a elrey D. Dinis, como aquel ermitão lhe parecera e depois o mandara catar e nom no acharom; e elrey disse que era bem de se fazer o que o ermitão dissera. E a rainha fez chamar uum creligo, a que diziam Fernam Mendez, que era, segundo creença das gentes, virgem de nacença e casto e onesto, e mandou-lhe a rainha, que des aquel dia celebrasse missa pela alma da rainha Dona Costança, sa filha, cada dia atá o ano comprido. E o dito Fernam Mendez assi o fez. E, acabado este ano e seendo elrey e a rainha em Coimbra, pareceo[lhe] de noite em visom a rainha Dona Costança e, segundo a rainha Dona Isabel dizia, parecera em vestiduras brancas, e dissera a ela: – Madre senhora, ora sõo eu livre da pena que padecia, e vou-me pera logar, louvado Deus por sempre, u nom e[i] de padecer pena. E a rainha acordou logo com esta visom e disse a elrey em como [lhe] parecera sa filha em dormindo. E em [n]a manhãa, seendo a rainha em seu estrado pera ouvir missa, veo aquel creligo Fernam Mendez a ela e disse: – Senhora, por quem me mandades d’aqui por diante celebrar, ca eu acabei já o ano em que me cantar mandastes por [l]a rainha vossa filha? E a rainha dizia que em aquel hora, nem quando viira aquel visom, nom se acordava daquelas missas que por ela celebrar mandara. E entom aquele dia, veendo aquelo, deu graças a Deus, e fez dizer ao louvor de Deus missas officiadas por religiosos creligos e fez outras esmolas. 54

Perpinhão reproduziu integralmente o episódio, mas deixou ao leitor mais cético, que tivesse dúvidas sobre estes sonhos reveladores e situações sobrenaturais, a decisão de acreditar ou não, argumentando, no entanto, com as opiniões dos doutores da Igreja sobre a questão, que sustentavam a sua possibilidade. Esta posição reforça a sua confiança

54  Lenda,

pp. 1316-1318.

49

nas fontes escritas e, apesar de não forçar ninguém a crer, justifica o acontecido fundamentando-se nos pareceres das autoridades religiosas. Na verdade, percebo que não hão-de faltar aqueles a quem isto pareça inventado e falso, não muito diferente das fábulas dos poetas, como já, então, pareceu a todos que faziam parte da comitiva da rainha. Mas não vejo por que se há-de considerar inacreditável; ou a própria alma de Constança, daquelas regiões infernais onde expiava as penas dos seus pecados, atormentada pelo fogo purificador, durante todo o tempo até voltar aos céus, por vontade divina, procurava ardentemente para si algum socorro e apoio – o que, testemunham-no os escritos de quase todos os teólogos e santos homens, não só pode fazer-se, como, por vezes, aconteceu. Ou, então, sem conhecimento da própria Constança, que permanecia naquela sua prisão para a qual fora lançada por julgamento, os Anjos, por ordem de Deus, enviaram ao espírito do anacoreta, enquanto ele dormia, uma determinada imagem e aparição vazia dela que parecesse pedir o auxílio necessário para Constança – o que Santo Agostinho e outros escritores de assuntos sagrados, notáveis pela sabedoria e pela piedade, transmitiram que costumava acontecer muitas vezes.(...). Se alguém for tão convicto do seu direito e da sua opinião, que não possa ser levado a acreditar nisto, esse considere que, neste caso, eu a ninguém quero impor e obrigar à minha crença, mas apenas expor aquilo que é transmitido pelas letras mais antigas, não considerando nada inacreditável que, transmitido aos vindouros por varões dignos de crédito, se conjugue optimamente com as opiniões dos padres, com os seus preceitos e os seus decretos.

Perpinhão acredita no valor do exemplo, na história “magistra uitae”, como diz Cícero 55; assim, os bons recebem o justo galardão; os maus, pelo contrário, frequentemente pagam, em vida, o mal que fizeram a

55 Cícero,

De Oratore, II, 36.

50

outros. Em mais de uma ocasião, ao relatar as façanhas e o caráter de determinada figura histórica, não deixa de louvar ou criticar a sua atuação. Fá-lo, por exemplo, a propósito de D. Afonso IV, que, por ter feito guerra ao pai, D. Dinis, se viu igualmente a braços com uma guerra com o seu próprio filho, D. Pedro, após a morte de Inês de Castro; fá-lo também ao falar da perversidade de Frederico II, bisavô de D. Isabel, supostamente assassinado pelo seu não menos perverso filho, Manfredo, também ele vítima de uma morte inglória; os maus atos são punidos ainda em vida, mais tarde ou mais cedo, e de acordo com as suas palavras, tanto Frederico como Manfredo tiveram o fim que mereceram, pela sua maldade. Por causa destas situações, como lhe fossem interditados [a Frederico II], e não apenas uma vez, os sacramentos e o contacto dos atos piedosos, retirados os seus poderes, sofreu um castigo digno da sua impiedade e loucura, por ação do filho ilegítimo Manfredo. Com efeito, crê-se que o jovem, desejoso da riqueza do pai e de se apoderar do poder, terá estrangulado, no próprio leito, o velho, debilitado havia muito tempo por doença grave. Da mesma forma, ao irmão Conrado (esta foi, com efeito, uma suspeita muito forte), a quem cabia a herança do reino paterno e avoengo, suprimiu-o com veneno. E teria feito desaparecer, pelo mesmo crime, o seu pequeno filho Conradino, se a sua mãe, senhora muito sagaz, pressentindo os planos do cunhado, não tivesse frustrado as artes ocultas do inimigo doméstico, com um artifício igual. Enganou Inocêncio IV que voltava da Gália, simulando boas relações de amizade; duas vezes caiu sobre o exército pontifício; de forma enganosa, convenceu que Conradino estava morto e, ocupado o reino sarraceno, chamava os militares a Itália para a ruína e devastação. Mas Deus, na verdade, não permitindo que a crueldade unida à impiedade do parricida ficassem impunes e livres, vingou, quanto mais tardiamente, tanto mais gravemente, a perversidade continuada. Carlos, Conde da Provença (parte da Gália Narbonense), enviado pelo Sumo

51

Pontífice para a Itália, confrontou aquele monstro cheio de perfídias, o qual, vencido com os seus Sarracenos em grande combate, junto de Benavento, e atingido por muitas feridas (tal como convém que sejam os finais daqueles que, para satisfazer o desejo de dominar, se aliam a auxiliares inimigos do nome cristão) na própria frente de batalha entregou miseravelmente a terrível alma, contaminada pelo assassínio do pai e do irmão, e perdeu, ao mesmo tempo, a vida e o reino. 56

Mas os bons exemplos também são recompensados, pela lição de vida que dão às gerações vindouras. Referindo-se a D. Jaime I de Aragão, avô de D. Isabel, mostra como a própria Vida e a História concedem as justas e merecidas compensações: Depois de morto, pela bondade da sua vida, foi considerado santo; pela virtude militar, grande conquistador; pelos prósperos sucessos das guerras, afortunado; por tudo isto, na sua totalidade, rei de boa memória para a posteridade; o cognome ficar-lhe-á para a eternidade. E de direito terá acontecido isto certamente, que, por um lado, pelos castigos dos ímpios, se produzam para a posteridade severíssimos exemplos para os restantes, e por outro, pela vida dos bons concluída com uma morte desejável, os restantes sejam convidados a imitá-la. 57

56  De

Vita, pp. 171-172.

57  De

Vita, p. 175.

52

II . T r a d i ç ã o . Testemunho presencial

No episódio da transformação do pão em rosas, revela Perpinhão claramente o seu recurso à tradição popular, às informações veiculadas oralmente pelo povo, que se tinham já convertido em representações artísticas na pintura, por exemplo; não deixa, no entanto, de clarificar que não o encontrara registado nos textos anteriores, cumprindo apenas a tarefa de não deixar nada por dizer. Não pode deixar de lhes dar fé totalmente, mas também não a dá em demasia, seguindo a prática de historiadores como Heródoto. Há, no entanto, alguns elementos da tradição que não valoriza, como é o caso do episódio do moço de câmara do rei (vd. supra), de que eventualmente teria tido conhecimento, tal como os autores das biografias contemporâneas das suas. Também valoriza o seu testemunho presencial, para dar ainda mais fé e credibilidade ao seu relato, como se desejasse corroborar tudo o que conta com a sua própria experiência: descreve o quadro da Rainha que estava em Santa Clara, representando o milagre das rosas, bem como mosteiros e outros edifícios, nomeadamente o convento de Santa Clara e anexos, a que concede grande destaque, que ainda conheceu sem estar submerso pelas águas do Mondego; dá uma visão geral de algumas cidades e localidades portuguesas que foram cenário da história de Santa Isabel (Coimbra, Estremoz e Trancoso), o que concede ao seu texto o valor de documento relevante para o conhecimento da época em que viveu, o século XVI. De Estremoz, que terá eventualmente visitado,

uma vez que passou largas temporadas em Évora, faz, por exemplo, a seguinte descrição: Fica na região de Évora, a vinte e quatro mil passos da cidade, em direção a oriente, a cidade de Estremoz, nova ao que parece, mas bem edificada, nobre na sua argila rubra e barro, mas mais nobre ainda, pelo mármore branco ou mesclado de veios e manchas vermelhas e cor de púrpura, de uma admirável distinção; é, pela grandeza, com os primeiros, povoado e copioso. Tem uma fortaleza de mármore polido, uma muralha dupla, uma grande abundância de água de poços e fontes, não poucos hortos amenos, abundantes em toda a espécie de fruta. Aqui, o que lhe dá não pouca distinção e glória, habitam muitos nobres homens, muitos cavaleiros honestíssimos, de superior glória e dignidade 58 .

Também Trancoso recebe a sua atenção e, eventualmente, a sua visita, como pode deduzir-se da sua descrição: Foi conduzida a Trancoso, onde o rei esperava a chegada da esposa. Esta é uma cidade do interior, na Lusitânia, talvez ainda não fundada no tempo dos Romanos, mas não desconhecida para a nossa memória ou a dos nossos pais, e mesmo até para a dos nossos antepassados. Dista perto de oito mil passos do rio Mondego; de Coimbra, aproximadamente oitenta e oito mil; das fronteiras de Castela, perto de vinte e oito. Está situada não num monte, é certo, mas num lugar eminente e elevado, no sopé daquela montanha que os habitantes chamam Estrela e alguns eruditos pretendem que seja uma parte de Idubeda, erguendo-se numa colina, belíssima à vista, sob todos os pontos de vista. Tem à sua volta uma planície de campos abertos numa longa extensão, uma nobre muralha edificada em seu redor, feita de pedra quadrada, com catorze

58  De

Vita, pp.335-336.

54

torres maiores, largas e elevadas e, para além de outra, uma via direta e notavelmente equipada. A cidadela estabelecida é sublime, com as suas cinco grandes torres quadradas e uma grande cisterna de boa água; a aproximadamente mil passos das muralhas, em todas as direções, o campo não conhece ferro; há uma pastagem com grande abundância de gado, com poucas árvores, na qual há três lagos e foram feitas outras tantas fontes de pedra polida, com água boa e muito abundante. Os próprios habitantes, homens honestos e belicosos, cultivam principalmente a arte de cavalgar. 59

Nestas descrições vão frequentemente notas de atualidade, relacionadas com a vida no século XVI, como por exemplo a população atual dos mosteiros de que fala, o seu estado de conservação/degradação, a situação de algumas instituições criadas pela Rainha, como o Hospital dos Inocentes de Santarém, ou o hospício construído junto de santa Clara (vd. infra). Sobre a situação do Mosteiro de Almoster, que a Rainha patrocinara e acabara de construir, após a morte da sua fundadora, a visão quinhentista de Perpinhão 60: Existe ainda hoje aquela ilustre obra, na qual, para além de outras não poucas mulheres, vivem religiosa e castamente perto de oitenta freiras, tapadas por véu negro, muitas nascidas de nobilíssima família, que fogem do contacto e da conversa dos homens. E (o que não é glória mediana) uma que está à frente das outras, escolhida entre toda a multidão, consagrada em ritual público, destaca-se distintamente com o báculo pontifical. Está situado num vale não desagradável, com tamanha abundância de águas perenes, que, por esse mesmo motivo, não é considerado um lugar suficientemente salubre. Fica junto de uma aldeia muito pequena, com perto de 40 habitantes; aqui, as

59  De

Vita, pp. 197-198.

60  De

Vita, pp. 217-218.

55

religiosíssimas mulheres têm o supremo direito e poder, exceto o de vida e de morte e, de todo aquele campo, do qual parte nenhuma está por cultivar e desocupada, recebem uma renda significativa; além disso, têm outros proventos não pequenos, atribuídos de diversas proveniências. Pelo meio da casa corre um rio mediano e perene, do qual não poucas nem módicas comodidades retiram para os usos domésticos; têm grandes extensões de terreno, limitadas por paredes altíssimas, que se unem ao edifício e o limitam. Aí, muitas árvores de fruto e extensíssimos pomares oferecem não só um aspeto agradável pela verdura, uma sombra fresca pela densidade, mas também uma produção de admirável utilidade. O templo é pequeno e estreito, mas, num lugar quase deserto, não se exigiria um maior: as restantes partes do edifício são suficientemente amplas e embelezadas de uma antiga magnificência.

O Hospital dos Inocentes de Santarém, patrocinado também pela Rainha (vd. infra), sofrera transformações no tempo de D. Manuel e a sua situação, em meados do século XVI, era a seguinte 61: Nos dias de hoje, aquela casa foi suprimida, ou melhor, foi transformada, com outras desta natureza que alguma vez existiram na mesma cidade, num único hospital público, muito grande e muito amplo. Com efeito, o Rei Manuel, porque pensava que isso seria de longe mais cómodo, solicitou ao sumo Pontífice Inocêncio VIII que, em todas as cidades e castelos da Lusitânia, fosse criada uma só instituição pública para receber e curar os pobres, para a qual fossem encaminhados os proventos e benefícios de todas as outras, para que, por esta determinação, só essa sustentasse os encargos de todas 62 . Por isso, fez-se crescer

61  De

Vita, pp. 221-222.

62  No

final do século XV e princípio do XVI, esta instituição, por determinação de D. Manuel, foi incorporada no Hospital de Jesus Cristo, anexado à Misericórdia local. Consulte-se Portugaliae Monumenta Misericordiaram ( 2002). Centro de Estudos de História Religiosa da Faculdade de Teologia – Unversidade Católica Portuguesa. Lisboa. União das

56

um hospital enorme, onde os pobres, afetados seja por que doença for, são tratados cuidadosa e piedosamente também com os recursos daquele antigo orfanato, que fora edificado por Isabel. Assim recebeu as mesmas funções e tarefas, que são incansável e fielmente administradas pelos varões mais religiosos. Ainda agora persistem, todavia, vestígios claros da beneficência régia. Naquela zona da cidade que os cidadãos designam Piro (está atribuída, porém, à paróquia de Santo Estêvão), vê-se um templo não pequeno, consagrado à B. Virgem Maria e aos Santos Inocentes, que, outrora, antes de excitado o tumulto das armas originado pelo Rei Fernando, junto da porta de Leiria, fora das muralhas, se chamava orfanato dos Inocentes. Aí, todos os dias, são celebradas duas missas pelos sacerdotes paroquais de Santo Estêvão, aos quais pagam os responsáveis máximos do hospital, a expensas suas, e, no próprio feriado dos Santos Inocentes, que se celebra no fim de Dezembro, realiza-se uma cerimónia divina, com o maior aparato, e reúne-se a assembleia. De todos os lados, não apenas da cidade, mas também das vilas e aldeias vizinhas, acorre uma grande multidão de homens, atraída pela religiosidade do lugar, ora para venerar, ora para pedir algo, ora para agradecer. Os padres de S. João Evangelista, homens de notável piedade e religiosidade, aos quais foi atribuída a procuração do hospital público escalabitano, queixam-se de que se fazem muitos gastos em nome do antigo orfanato, principalmente quando o dinheiro recebido mal chega para os gastos dos sacerdotes. Eu, por mim, creio que a Rainha, quando impusera tantos encargos, atribuíra grandes quantias em dinheiro para aqueles tempos, mas que agora, em tamanha carestia, já não pode ser suficiente.

Misericórdias Portuguesas. Vol. 3: A Fundação das Misericórdias: o Reinado de D. Manuel I. 2004.

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Visitou as localidades que descreve, inclusivamente, supomos, Santiago de Compostela, onde eventualmente terá estado como peregrino, enquanto noviço no Colégio de Jesus, em Coimbra, pois essa era uma prática instituída pelos jesuítas para a formação dos seus padres. Nas orações que pronunciou no Colégio das Artes, refere com detalhe os locais de romaria a visitar pelos peregrinos. Relata ainda alguns milagres, os últimos de que teve notícia, em Coimbra e Évora; é já o seu próprio testemunho que apresenta: (…) e, na última primavera, estando eu em Évora, na casa de S. Bento, uma certa religiosa do mesmo convento foi salva quase da morte, ouvi-o eu dizer ao próprio médico, que, de noite, fora do que era hábito, fora chamado apressadamente, e dizia ter encontrado restabelecida aquela que a princípio receava encontrar morta. 63 .

Perpinhão teve também em atenção, pois, a tradição popular, com as devidas reservas, e valorizou o seu próprio testemunho presencial, nomeadamente quando alude a cidades, lugares e espaços que percorreu, ou a monumentos que visitou e descreveu. Obedecendo ao preceituado pelos historiadores antigos, Perpinhão pretende compôr um relato, acima de tudo, verdadeiro; por isso privilegia os documentos escritos; quando não pode atestar a veracidade do que conta, alerta o leitor e deixa ao seu critério avaliar aquilo que ele próprio não pode deixar de relatar. Não pretende apenas exaltar a santidade ou os milagres da Rainha, (que também faz, mas aceitando principalmente os que estão documentados por escrito e com testemunhas), mas também mostrar, sempre fundamentado nas fontes escritas, a pessoa nas suas variadas facetas e no seu tempo: mãe extremosa e atenta aos interesses dos filhos; esposa paciente; Rainha interventiva, que se opunha, por vezes, às próprias decisões do rei, manifestando publicamente a sua posição; defensora

63  De

Vita, p. 389.

58

da paz e intermediária nos conflitos, que movia as suas influências para chegar à pacificação das muitas guerras que viveu em Portugal e na Península; protetora dos seus súbditos, desenvolvendo um intenso plano de apoio aos mais desprotegidos da sociedade, não só distribuindo os seus bens por aqueles que necessitavam, mas patrocinando instituições permanentes de assistência religiosa e social.

59

(Página deixada propositadamente em branco)

S EG U NDA PARTE E S T U DO COMPARATIVO

(Página deixada propositadamente em branco)

II.1. Antecedentes familiares

De Vita et Moribus Beatae Elisabethae Lusitaniae Reginae libri tres, do padre Pedro Perpinhão, começa por apresentar os antecedentes familiares de D. Isabel de Aragão, remontando aos seus tetravós, para relembrar os seus muitos e variados feitos, mais ou menos ilustres, já há muito afastados da memória dos homens. Numa ótica de obediência escrupulosa à verdade, não omite qualquer pormenor, seja ilustre, seja menos dignificante, e também não poupa críticas ou elogios quando considera que são merecidos 64 . As suas fontes historiográficas, nesta matéria, são fundamentalmente a Lenda e as Chronica delRey Dom Dinis de Rui de Pina. A primeira é mais parca em informação e resume-se ao seguinte: Esta rainha foy da casa d’Aragom, filha delrey D. Pedro e da raynha Dona Constança. E este rey D. Pedro foi filho delrey D. James e da rainha Dona Violante, filha delrey d’Onglia. E este rey D. James filhou aos mouros Maorgas e Meorga e Eviça e a Fromenteira e Valença, e todo seu reyno, que era de sa conquista, e filhou Murça, e ajudando elrey de Castela.

64  Esta posição de Perpinhão assemelha-se à formulada por Damião de Góis, no Prólogo da Crónica do Felicíssimo rei D. Manuel, quando afirma “ho mais substançial que no screver das Chronicas se requere (...) hé com verdade dar a cada hum o louvor ou a reprehensam que mereçe”.

E a rainha Dona Constança foy filha delrey Manfreu, o qual Manfreu foi filho do emperador Fraderic. 65

D. Isabel de Aragão era oriunda de uma linhagem de reis e de imperadores66. À materna, Perpinhão atribui-lhe uma forte antipatia popular, pelos atos de crueldade e perfídia; a paterna, se bem que marcada pelo desrespeito pelos laços matrimoniais e por alguns comportamentos menos dignos, fez-se valer maioritariamente pela piedade e mesmo pela santidade de alguns dos seus membros. Os exemplos da família materna são de evitar, os da paterna de louvar e imitar; em qualquer dos casos, porém, mesmo na materna, não há qualquer rainha mencionada que lhe mereça a menor crítica; elas são, pelo contrário, geralmente louvadas pela sensatez e inteligência, bem como pelos seus papéis na história dos seus reinos e na proteção da sua família. Do lado materno da Rainha, Perpinhão começa a traçar a árvore genealógica a partir do seu tetravô, Frederico I, Barba Ruiva (11221190), 3º duque de Suábia, rei de Itália (1155-1190) e 1º imperador do Sacro Império Romano-Germânico (1152-1190), tendo sucedido ao pai como duque da Suábia, e ao tio Conrado III, como rei da Alemanha. Depois de abdicar em favor do filho Henrique, morreu ao atravessar o rio Cythos, na Cilícia, quando se dirigia à Palestina, no âmbito da 3ª Cruzada. Perpinhão pronuncia-se sucintamente sobre esta figura, destacando os conflitos que manteve com o Papa e a causa da sua morte, de que terá encontrado versões divergentes nos historiadores consultados 67; como faz recorrentemente nesta sua biografia, apresenta as duas versões:

65  Lenda,

pp.1307-1308.

66  Sobre

este assunto, cf. José Augusto de Sotto Mayor Pizarro (2008), D. Dinis. Lisboa: Círculo de Leitores, Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa, Temas e Debates; e Maria Filomena Andrade (2012), Rainha Santa, mãe exemplar. Isabel de Aragão. Lisboa: Círculo de Leitores. 67  Sobre os historiadores aragoneses, franceses, alemães ou italianos que eventualmente lhe terão fornecido informações sobre os antecedentes de Santa Isabel, veja-se Petri Lazeri

64

O Imperador Frederico, o primeiro deste nome a alcançar o supremo poder, normalmente designado Enobarbo, depois do regresso às boas-graças do Pontífice Máximo Alexandre III, que combatera durante muito tempo com um ódio feroz, protagonizando feitos grandiosos na Ásia, ao entrar num rio cheio de turbilhões, fosse para se banhar, fosse para o atravessar, deixara, com uma morte repentina, indigna de tamanho poder, o luto ao exército e a fuga ao vencedor. 68

Sucedeu-lhe seu filho legítimo, Henrique VI de Hohenstaufen (1165-1197), Imperador do Sacro Império Romano-Germânico (1190-1197), que assumiu a governação quando o pai partiu em Cruzada para a Terra Santa e sucedeu-lhe no trono, quando da sua morte, no ano seguinte. Participou na vida cultural do seu tempo, mas era desprovido de escrúpulos e não olhava a meios para atingir os seus fins, pelo que recebeu o cognome de Cruel. Casou com Constança de Hauteville, princesa da Sicília, filha legítima de Rogério I, rei de Nápoles e da Sicília, da qual lhe adveio o poder sobre esta região. Com efeito, tendo-se candidatado ao trono da Sicília, por morte de seu sobrinho Guilherme II, Constança fora inicialmente rejeitada pelos sicilianos, que concederam o trono ao seu sobrinho natural, Tancredo; Henrique VI, defendendo os interesses da esposa, conquistou a Sicília e acabou por impor a sua autoridade; à sua morte, o seu trono passou para seu filho. Estes são os trisavós maternos de Santa Isabel. Sobre esta princesa, Perpinhão tem palavras de apreço, pois refere que teve prudência e engenho suficiente para salvaguardar a posição do filho, o futuro imperador Frederico II, na sucessão do pai. Quanto a Henrique VI, parece ter governado com equidade, mas acabou por entrar em conflito com o Papa e morreu excomungado. Perpinhão expressa também as duas versões sobre o momento do seu casamento

(1749), De Vita et Scriptis Petri Ioannis Perpiniani Diatriba. Roma: Typis Nicolae et Marci Palearini, pp. 449-487. 68  De

Vita, p. 169.

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com Constança: ainda jovens, ambos, numa aliança tratada por seus pais, ou quando Constança tinha já cinquenta anos, parte deles vividos como freira professa, de cujos votos foi libertada pelo Papa: Henrique, seu filho, administrando já entre os Germanos a totalidade dos assuntos, chamado à Itália e vencido Tancredo, filho da concubina de Rogério, que se apressara a tomar posse do Reino de Nápoles e Sicília, sem dono e vazio, depois da morte de Guilherme, tomou conta da situação, por suprema vontade do Pontífice Máximo. Parece ter governado com muita equidade para cá e para lá do estreito de Sicília, uma vez que tinha tomado como esposa Constança, filha do mesmo Rogério, nascida de casamento legítimo, quer tivesse casado com ela em anos anteriores, em idade florescente, por iniciativa de seu pai Frederico, quer, nascida já há cinquenta anos e consagrada antes a Cristo, em cerimónia pública, lhe tivesse sido dada em casamento, quando chegou, pelo Pontífice Máximo, depois de a libertar do voto de religião. Mas, em breve, porque, seguindo o exemplo do pai, hostilizava a causa pontifícia, deixou a vida, impedido por Inocêncio de aceder aos sagrados altares e templos 69 .

Segue-se Frederico II (1194-1250), Imperador do Sacro Império Romano-Germânico (1220-1250) e rei da Sicília (1197-1250), bisavô de Santa Isabel. Era filho de Henrique VI de Hohenstaufen, que morreu quando ele tinha três anos, e de Constança de Hauteville acima referidos. A mãe atraiu para o filho o favor do Papa Inocêncio III, concedendo muitos privilégios à Santa Sé, e quando Constança morreu, o Papa tomou-o sob sua proteção, educou-o e coroou-o. Não saiu à mãe, em prudência e ponderação, mas, antes, seguiu o exemplo da linha masculina do pai e do avô os quais, na opinião de Perpinhão,

69  De

Vita, pp. 169-170.

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ultrapassou em desprezo e ferocidade de costumes; traça-lhe, então, um perfil com as mesmas pinceladas com que, entre os latinos, Salústio pintara Catilina: um governante com algumas qualidades, mas com uma quantidade semelhante de defeitos. E de facto, embora desleal, pérfido e cheio de vícios, falava várias línguas, fazia versos em italiano e escrevia cartas em latim; compôs o tratado “De arte uenandi cum auibus”; desenvolveu os estudos na Universidade de Pádua, Bolonha, Salerno e fundou a Universidade de Nápoles; colecionava manuscritos preciosos e mandou traduzir para latim obras de Aristóteles, Ptolomeu e Galeno. Ao longo da sua vida, manteve contínuas divergências com o papado, pelo que foi excomungado, em 1239, deposto pelo Papa Inocêncio IV, em 1245, e morreu em 1250, deixando o Império dividido, de modo que os seus sucessores tiveram dificuldade em impor-se. Seguindo a linha dos historiadores antigos e dos humanistas, de que a história é manancial de exemplos a seguir ou a evitar, a louvar e a criticar, respetivamente, pois é magistra uitae 70, Perpinhão afirma que Frederico II teve o castigo que merecia pelos seus atos ao longo da vida, ao ser assassinado pelo próprio filho, Manfredo. Estas informações tê-las-á colhido Perpinhão em Rui de Pina que também o acusa deste crime:

70  Na célebre expressão de Cícero, De Oratore, 2.9.36: ”Historia uero testis temporum, lux ueritatis, uita memoriae, magistra uitae, nuntia uetustatis”.

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Perpiniani, De Vita, pp. 170-171 Constança, senhora prudente, conseguiu o reino para seu filho Frederico que, após a morte da mãe, declarado Imperador, parecia, a princípio, abraçar com grande interesse a dignidade pontifícia; mas, logo depois, mudando a sua disposição, ultrapassou o seu pai e o seu avô em desprezo e ferocidade de costumes. Tinha um talento superior àqueles, uma grande robustez de corpo, uma singular paciência nos sofrimentos, uma exímia prudência nas questões militares, um ardente interesse pelo conhecimento, dominando, quase de igual forma, as línguas grega, latina, germânica, gaulesa e árabe, e uma munificência digna de um Imperador. Mas, enormes vícios igualavam as tão grandes virtudes deste homem. Levava uma vida escandalosa e impura, tinha uma ambição muito desenfreada de glória e poder, uma desumana crueldade para com os vencidos, que deformava quase toda a Itália com uma triste devastação e uma furiosa contenda entre as partes; a ligação com os Sarracenos era mais intensa do que convinha a um Imperador escolhido por toda a República Cristã, aos quais, chamando-os a Tunes, concedera Lucéria, uma cidade antiquíssima da Apúlia; era de uma maldade quase inacreditável para com os Pontífices Romanos, tinha-lhes tamanho ódio que àqueles íntimos com os quais costumava privar da forma mais familiar, a esses mesmos, adeptos do Pontífice Máximo, considerava inimigos capitais71. Por causa destas situações, como lhe fossem interditados, e não apenas uma vez, os sacramentos e o contacto dos atos piedosos, retirados os seus poderes, sofreu um castigo digno da sua impiedade e loucura, por ação do filho ilegítimo Manfredo. Com efeito, crê-se que o jovem, desejoso do dinheiro do pai e de se apoderar do poder, terá estrangulado, no próprio leito, o velho, debilitado há muito tempo por doença grave.

Rui de Pina, Chronica delRey Dom Diniz, pp. 225-26 Este Rey D. Pedro seu filho deste nome ho quarto, e dos Reys Daraguam ho onzeno, contra vontade de seu pay cazou cõ Dona Costança, filha delRey Manfreu, que foy dambas as Cezilias, filho bastardo de Frederiquo II, Emperador Dalamanha, e Rey de Cezilia, e de Napoles, que foy Erege, e máo homem e cruel, e perseguidor de Egreja, assi como fora seu avoo, ho outro Frederiquo, que dicerão Barbarroxa, ho qual Emperador Federiquo II, sendo doente em Fruelmela, Luguar do Reyno Dapulha por consentimento de hum seu Camareyro foy afoguado, e morto por este seu filho Manfreu, que se chamava Principe de Tarento, para loguo aver como ouve, seus tezouros, que eram muy grandes, e esta abominavel maldade fez por tal que em algum testamento, que ho pay podera fazer, nom despozesse de suas riquezas ho contrayro do que dezejava.

71

Sucedeu-lhe, pois, Manfredo (1232-1266), seu filho ilegítimo, que era suspeito de ter assassinado o pai, bem como o seu meio-irmão, Conrado

71 Na elaboração deste retrato, Perpinhão inspirou-se no retrato de Catilina feito por Salústio em De coniuratione Catilinae, V.

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IV (1228-1254), o filho legítimo e herdeiro de Frederico II. Manfredo era príncipe de Tarento, e foi rei da Sicília e Nápoles, depois de expulsar as tropas do Papa Alexandre IV; no entanto o Papa excomungou-o e o reino pretendido da Sicília acabou por ser oferecido a Carlos d’Anjou. Foi poeta e protegeu artistas. A opinião de Perpinhão é francamente desfavorável a esta figura e volta a insistir na afirmação de que os maus atos são punidos ainda em vida, mais tarde ou mais cedo. Manfredo era filho ilegítimo de Frederico II, tão mau como ele, e é aqui acusado de ter apressado a morte do pai, bem como a de ter providenciado a do irmão, Conrado IV, envenenando-o. Este fora herdeiro do trono em 1237, mas derrotado por Guilherme de Holanda, renunciou à Germânia e retirou-se para o seu reino da Sicília, em 1251, tendo morrido repentinamente, de acordo com os relatos históricos. O sobrinho, Conradino (1252-1268), filho de Conrado, parece ter escapado graças à argúcia e previdência da mãe, Isabel de Baviera, e, órfão de pai, foi criado com esta na corte do tio, Luís da Baviera. Manfredo ignorou os direitos do sobrinho e fez-se coroar rei da Sicília, em 1258, impôs-se às cidades do norte de Itália e firmou uma aliança com Aragão, casando sua filha Constança com o futuro Pedro III; mas não tinha o apoio do Papa Urbano IV que frequentemente afrontara e que atribuiu o trono da Sicília a Carlos d’Anjou, irmão do rei de França, Luís. Foi em confronto com este que, aliado aos Sarracenos, morreu em Benavento, em 1266. Quanto a Conradino, de que Perpinhão fala pouco, ao chegar à maioridade, armou um exército e entrou na Itália, para reclamar o seu trono, em 1268, mas foi derrotado por Carlos d’Anjou e decapitado em Nápoles, no mesmo ano. A fonte de Perpinhão continua a ser Rui de Pina:

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Perpiniani, De Vita, pp. 171-172 Com efeito, crê-se que o jovem [Manfredo], desejoso do dinheiro do pai e de se apoderar do poder, terá estrangulado o velho, debilitado há muito tempo por doença grave, no próprio leito. Da mesma forma, ao irmão Conrado (esta foi, com efeito, uma suspeita muito forte), a quem cabia a herança do reino paterno e avoengo, suprimiu-o com veneno. E teria feito desaparecer, pelo mesmo crime, o seu pequeno filho Conradino, se a sua mãe, senhora muito sagaz, pressentindo os planos do cunhado, não tivesse frustrado as artes ocultas do inimigo doméstico, com um artifício igual. Enganou Inocêncio IV que voltava da Gália, simulando boas relações de amizade; duas vezes caiu sobre o exército pontifício; de forma enganosa, convenceu que Conradino estava morto e, ocupado o reino sarraceno, chamava os militares a Itália para a ruína e devastação. Mas Deus, na verdade, não permitindo que a crueldade unida à impiedade do parricida ficassem impunes e livres, vingou, quanto mais tardiamente, tanto mais gravemente, a perversidade continuada. Carlos, Conde da Provença (parte da Gália Narbonense), enviado pelo Sumo Pontífice para a Itália, confrontou aquele monstro cheio de perfídias, o qual vencido com os seus Sarracenos em grande combate, junto de Benavento, e atingido por muitas feridas, tal como convém que sejam os finais daqueles que, para satisfazer o desejo de dominar, se aliam a auxiliares inimigos do nome cristão, na própria frente de batalha entregou miseravelmente a terrível alma, contaminada pelo assassínio do pai e do irmão, e perdeu, ao mesmo tempo, a vida e o reino.

Rui de Pina, Chronica delRey Dom Diniz, pp. 225-26 E deste Emperador fiquou hum filho legitimo, que chamavam Conrado, que era em Alemanha, e vindo para Napoles de Cezilia, que direytamente lhe pertencia também Manfreu seu irmão em hum pastel ho fez matar com peçonha, e deste Conrado fiquára hum filho menino erdeyro dito Conradino, que em mistura de certos prezentes, e joyas também seu tio ho quizera matar cõ peçonha, mas ha Raynha mãy do menino como muy prudente, e receosa das manhas de Manfreu aprezentou em luguar do filho outro menino em tudo conforme, que por elle loguo morreo, ho qual Manfreu por morte de Conrado seu irmão com as muitas riquezas, que tinha occupou loguo, e ouve o Reyno de Cezilia, que sendo sobre esso pelo Papa Alexandre escommungado, e perseguido com exercito para que deixasse ho Reyno, elle por sua ajuda meteo em Italia muitos Mouros de Tunes, e Dafriqua cõ que desbaratou ha gente do Papa, e fez em Italia grandes destoições, e levou della grandes despojos. Pelo qual ho Papa Urbano IV, enviou em França chamar ha Carlo irmão delRey S. Luis ha quem fez Alferes da Egreja, e lhe deu hos Reynos de Napoles, e de Cezilia, porque hos cobrasse de Manfreu, que tiranamente os usurpava, e Carlo ajuntou muita gente, e com ajuda do Papa ouve batalha com Manfreu junto de Benavente em Italia onde ho dito Manfreu foi morto, de que hos Reynos de Cezilia, e de Napoles fiquaram logo pacifiquos ha Carlo, especialmente, que depois da morte de Manfreu tambem Carlo matou em outra batalha ho Conradino neto de Frederiquo, ho que Manfreu quizera nas joyas matar, porque com grande exercito veo contra Carlo para cobrar hos Reynos que dizia lhe pertencerem de direyto, e na contenda foy morto (…)

Em 1282, os sicilianos revoltaram-se contra os franceses (Vésperas Sicilianas) e entregaram o trono da Sicília a D. Pedro, casado com D. Constança de Hohenstaufen, filha de Manfredo e neta de Frederico II; esta foi, pois, rainha de Aragão (1276-1302) e da Sicília (1282-1302); é apresentada por Perpinhão como uma senhora prudente e moderada, que soube aplicar a justiça nos seus domínios; com a sua atuação,

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impediu a morte sumária sem julgamento de Carlos, o Coxo, filho de Carlos de Anjou, quando os sicilianos se vingaram dos franceses. Por seu intermédio, a sua família voltou às boas graças do Papa. Com efeito, no conflito que opôs D. Pedro III de Aragão e sua esposa, D. Constança, a quem caberia o trono da Sicília, a Carlos de Anjou, surgiu esta situação, contada por Perpinhão de forma elíptica, mas bastante desenvolvida em Rui de Pina, em cujo relato recolhe a informação. Carlos de Anjou deixara seu filho por governante da Sicília, mas este foi capturado por um Almirante dos reis aragoneses, Rogério de Láuria, o que causou o desgosto e morte do pai e a completa sublevação dos sicilianos contra os franceses. Perpiniani, De Vita, p.172 Nascida deste pai, destes avós e antepassados, Constança, mãe da nossa Isabel, foi de não medíocre moderação e prudência. A sua chegada à Sicília renovou a memória daquela ilustre Constança, cuja saudade ainda dominava os espíritos dos insulares. E, assim, como os Sicilianos se preparassem para matar Carlos, o Coxo, filho do anterior e herdeiro do trono, capturado por Rogério Láuria, comandante da frota aragonesa, queimados já, na mesma prisão, os restantes cativos, ela aplacou a multidão furiosa de dor e enviou a nobre presa para Espanha, para o rei. E, depois da morte do marido, estabelecida a paz com o gaulês, já antes retirado do cárcere, dirigiu-se, com o filho Jaime, rei de Aragão e Sicília, ao Sumo Pontífice Bonifácio VIII, pelo qual, humanissimamente aceites, foram restituídos à comunidade dos piedosos, de cujos hábitos e assembleia tinham sido excluídos havia tanto tempo.

Rui de Pina, Chronica delRey Dom Diniz, p. 228 (…) hos de Mecina, porque eram por este caso apertados pelo Papa com grandes escõmunhões, e antreditos sabendo ha morte delRey Carlo por mais sua vingança se foram ahos carceres, onde estavam hos Francezes para hos matarem, e porque os prezos eram homens, e bons Cavalleyros se poseram em defençam, e resistencia, e foram dos Cezilianos nos mesmos carceres mortos sem piedade, e queymados, e assi quizeram fazer aho Principe Carlo, se ha Rainha Dona Costança molher delRey D. Pedro, que ha esse tempo era em Cezilia, lhe nom valera, porque estranhou fazerse tam crua justiça, sem mandado, nem autoridade delRey D. Pedro seu marido, e dally concordaram, que Carlo fosse levado preso, como foy Araguam, onde era, e avendo quatro annos, que ho dito Carlo era prezo depois da morte delRey D. Pedro, Reynando em Araguam ElRey D. Affonso deu filho, foy por meio delRey D. Duarte Dingraterra solto sobre ha refens (…). E por esto, e por cazamentos que depois antre elles se fizeram fiquou ahos Reys de Araguam ho direyto no Reyno de Cezilia (...)

Sobre o lado feminino da linhagem materna de Santa Isabel, Perpinhão só tece elogios, não aponta defeitos: as rainhas são previdentes, sagazes, moderadas, agem com prudência e ponderação; eventualmente, têm até vocação para a vida religiosa; D. Isabel não desmerece, pois, da tradição familiar, no ramo feminino. Dos homens, nenhum se distingue pelo bom caráter; os seus exemplos são, pois, absolutamente de evitar.

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Quanto à linhagem paterna, Perpinhão remonta ao bisavô de D. Isabel, D. Pedro II, filho de D. Afonso II de Aragão e de D. Sancha de Castela; foi rei de Aragão e senhor do principado da Catalunha e do condado de Montpellier, pelo seu casamento com Maria de Montpellier. Entre outros feitos, destacou-se na batalha de Navas de Tolosa, contra os Almóadas. Morreu na batalha de Muret, em 1213, lutando contra o exército do chefe dos cruzados, Simão de Monfort, enviado pelo Papa para combater o desenvolvimento e afirmação da heresia cátara nos seus territórios. Deixou órfão seu filho Jaime, com 5 anos de idade, que estava, então, aos cuidados do próprio Simão de Monfort, com cuja filha estava planeado casar-se. As palavras de Perpinhão também não são muito abonatórias para esta figura; lembra sucintamente alguns episódios em que se ilustrou, mas critica a forma como morreu; não refere claramente o seu desprezo pelo tálamo conjugal, nem a artimanha usada pela rainha, D. Maria de Montpellier, para conceber o seu único filho; esse esclarecimento encontra-se em Rui de Pina, na Chronica delRey Dom Diniz, fonte de Perpinhão, que utilizará a informação quando falar do filho. É, pois, ao avô de D. Isabel, com quem ela conviveu nos primeiros anos da sua vida, que Perpinhão dá mais destaque, aludindo às peripécias da sua gestação e escolha do nome, com assistência divina (o que já augurava a sua atividade em defesa da fé), às suas conquistas e à sua vida de santidade. Trata-se de Jaime I (1208-1276), o Conquistador, nome que lhe advém do facto de ter conquistado Maiorca (em 1229), Menorca (em 1231), Ibiza e Formentera (em 1235); com estas conquistas, expulsou os Muçulmanos destas ilhas e acabou com a pirataria, dando início à expansão mediterrânica da coroa aragonesa; em 1238, conquistou Valência, em 1265, Múrcia e, em 1273, Ceuta. Ao que parece, o favor que dispensava aos bastardos originou protestos dos nobres e dos filhos, legítimos e ilegítimos, facto que Perpinhão não refere, atribuindo o mau relacionamento que existia entre pai e filho ao facto de este ter casado sem a sua aprovação com Constança, filha do iníquo Manfredo. Dividiu o poder pelos seus filhos Pedro e Jaime: o primeiro herdou os

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territórios de Valência, Aragão e Catalunha; o segundo, Montpellier e as Baleares. As palavras de Perpinhão são apenas de elogio e admiração, apresentando-o como modelo de virtudes e até de santidade, atribuindo-lhe alguns milagres. A história particular da sua gestação é contada com muito pormenor por Rui de Pina o que permite esclarecer a informação de Perpinhão, que parece um pouco elíptica e obscura, sendo que aquele, erradamente, considera este D. Pedro como o terceiro deste nome, quando se trata efetivamente do segundo: Perpiniani, De Vita, pp.172-173

Rui de Pina, Chronica delRey Dom Diniz 224, 225

O rei Pedro de Aragão (com efeito, os antigos Celtiberos, respirando um pouco já a Hispânia sobre as almas dos bárbaros, começaram a ser chamados aragoneses), repito, o rei Pedro, deste nome o segundo destes povos, varão de espírito ilustre e invencível, digno de ter caído lutando por causa melhor, cuja extraordinária força de corpo e de alma brilhou acima de tudo naquela memorável batalha travada por três reis da Hispânia, contra o rei maometano, rei de ambas as Mauritânias e da Bética, no maciço montanhoso Castulonense da Bética, teve um único filho da esposa já numa idade bem avançada. Este, contra a opinião de quase todos, contra a superior expetativa dos cidadãos, com um plano inusitado da mãe, não nasceu sem a assistência divina, para castigar os inimigos da religião cristã e exterminá-los nas fronteiras da Hispânia citerior, (perceptível até) no canto dos sacerdotes ignorantes do que acontecera, revelador de que seria pública salvação do reino; recebeu, de forma quase divina concedido, o nome do Apóstolo Tiago, que os reis hispânicos muitas vezes em dificílimas batalhas, sentiram como auxílio e defensor máximo.

Porque he de saber, que ElRey D. Pedro deste nome ho terceyro, e dos Reys Daraguam ho noveno, cazou com ha Rainha Dona Maria, filha de D. Guilhemo de Mompilher de que ouve hum filho, que ho socedeo dito D. James deste nome o primeyro, e dos Reys Daraguam ho decimo, este D. James, como nas Coronicas Daraguam se affirma, foy concebido ha caso, e seu nome posto por milagre, porque ElRey D. Pedro por sua natural condiçam, ou por seu vicio era muito dado às molheres estranhas, e muito pouquo à Rainha sua molher, ha que por consentimento de hum camareyro delRey escondida, e muy secretamente se lançou de noyte na cama delRey em luguar de huma moça, com que elle tinha affeyçam, e aquella noyte concebeo do marido, e conhecida por elRey, que do caso foy enverguonhado, ella se nom quis alevantar da cama atée ao outro dia muy claro em que de muitas gentes se fez alli vir conhecer, e daquelle proprio dia de que mandou tomar pubriquos testemunhos ha nove mezes pario hum filho, com que ElRey ouve muito prazer, e por devaçam, e mais segurança da sua vida, mandou loguo offerecer ho menino ha huma Egreja, e encomendallo ha Deos. Preguntando ElRey pelo Officio, ou Psalmos, que se rezavam aho entrar della, foy certifiquado, que ha este tempo hos Sacerdotes cantavam Te Deum laudamus, e daquelle primeyra Egreja ho mandou levar ha outra segunda, onde pela mesma maneyra soube, que aho entrar della com ho menino se dizia Benedictus Dominus Deus Israel, e sendo ambos pay, e mãy em consulta do nome, que lhe poriam, ha Rainha sua madre dice, que sua vontade, e devaçam era parindo filho, que ouvesse ho nome de cada hum dos doze Apostolos, e para esso mandou loguo fazer doze candeas de cera por igual medida, e pezo, e em cada huma hum escrito, e em cada hum escrito ho nome de cada hum dos doze Apostolos, e com ellas juntas, e ha hum proprio momento acezas mandou dizer huma Missa solene do Espirito Santo, e no cabo della has candeas todas arderam, salvo ha que em nome de SanTiaguo foy posta, que fiquou mais inteyra, e por esso no seu nome de James (...)

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A gesta de D. Jaime tê-la-á Perpinhão recolhido de historiadores aragoneses ou da crónica dos seus feitos, mas também na Lenda e em Rui de Pina, se bem que mais abreviada. Perpiniani De Vita, pp. 173-175 Depois, quando cresceu, arrancado às insídias dos seus e alcançado o reino paterno, ilustre quer nas artes da guerra, quer nas da paz, atacou violentamente as forças dos Sarracenos. Tomou, pela força, a ilha maior das Baleares; a menor, fê-la submeter a um tributo, pelo terror da guerra; subjugou Ebuso às suas ordens. No continente, por outro lado, frequentemente lutando armado contra o inimigo, tomou de assalto a nobre cidade de Valência, abundante em toda a espécie de riquezas, juntamente com as restantes fortalezas e castelos deste reino. Expulsou também, juntamente com Afonso, designado rei de Castela, os Sarracenos do reino de Múrcia, o qual está voltado para o mar Ibérico, entre os reinos de Valência e Granada. Na verdade, como aquela parte da Hispânia tivesse sido atribuída aos reis castelhanos, o que fora recebido pelas armas, foi-lhes restituído; ele próprio reservou para si a glória da fortaleza e da habilidade e o fruto sempiterno de tão piedoso esforço. Naquela época, na verdade, diz-se que aconteceram muitas coisas de forma divina a este rei singular, graças à sua piedade. Por exemplo, numa ocasião em que um número muito reduzido de cavaleiros, enviado para o território valenciano, abateu, graças aos auxílios celestes e ao terror divinamente inspirado, uma quase incontável multidão de inimigos que se lançara contra eles, vinda de repente de todo o lado, ficando eles próprios incólumes; para além disso, no próprio cerco da cidade, indo visitar um certo comandante de entre os seus, que jazia na sua tenda por causa de um ferimento, diz-se que arrancara a seta com a sua própria mão e, com um pedaço de tecido molhado na água fria e colocado na perna, curara a ferida. Viveu oitenta e dois anos em trabalhos continuados, reinou cinquenta e oito, foi querido para os seus, admirável para os estrangeiros, temível para os inimigos, fortíssimo defensor da religião, por cujo interesse em aumentá-la se diz que fez levantar e ornar aproximadamente dois mil templos, parte nas ilhas, parte no continente, recebidos dos inimigos; isto, para além daqueles domicílios que edificou para as santíssimas congregações quer de homens, quer de donzelas. Na extrema velhice, tendo tomado o hábito dos monges cistercienses e abdicado do poder, com o maior sofrimento dos seus e com grande dor da Hispânia, partiu desta vida; foi levado por três rainhas, das quais uma era sua filha e duas suas noras, e por dois reis, seus filhos, que acompanhavam o funeral72.

Rui de Pina, Chronica delRey Dom Diniz, p. 225 E este Rey D. James foy ho que tomou segunda vez Valença Daraguam aos Mouros por cerquo, e força, porque da primeyra vez, que por ho Cide Ruy Dias foy tomada, elles Mouros no proprio tempo de sua morte ha tornaram ha cobrar, e atée este Rey ha tiveram. E este Rey D. James depois de muito velho, e nom podendo jáa sofrer o pezo, e carreguo do regimento de seu Reyno fez alevãtar, e obedecer por Rey aho Ifante D. Pedro seu filho, e elle meteose Monge no Moesteyro de Santa Cruz, de Monges branquos, onde jáas sepultado.

72

72  Passagem

inspirada na Lenda (p. 1310): (...) e dizia esta rainha Dona Isabel que se acordava que, em levando elrey D. James pera Poblete, u ele escolhera sa sepultura, que viira ir em pos el dous

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Aos pais de D. Isabel é também dado o devido destaque. D. Pedro III (1239-1285), cognominado O Grande, foi rei de Aragão, Catalunha e Valência. Por ter casado com D. Constança, filha de Manfredo e herdeira do trono da Sicília, D. Pedro autoproclamou-se rei da Sicília, passando a governar com o consentimento da esposa, após o que foi excomungado pelo Papa Martinho IV. Perpinhão destaca a atuação destas duas figuras, nomeadamente no desempenho relacionado com a disputa da Sicília. D. Pedro, a quem os sicilianos tinham dado, pois, o trono da Sicília, que pertenceria, de direito, a sua esposa, D. Constança, defrontou-se com Carlos de Anjou; nesta guerra, surgiu uma situação, contada por Perpinhão de forma elíptica, mas bastante desenvolvida em Rui de Pina, na crónica que dedica a D. Dinis. Carlos de Anjou deixara seu filho por governante da Sicília, mas este foi capturado por um Almirante dos reis aragoneses, Rogério de Láuria, o que causou o desgosto e morte do pai e a completa sublevação dos sicilianos contra os franceses. Nele se distingue D. Constança pela sua moderação, ponderação e noção de justiça (vd. supra). Na sequência de conflitos entre D. Pedro III e Carlos d’Anjou, arbitrou-se um encontro entre os dois reis, acompanhados de 100 soldados cada um, para se resolver a questão. O desafio realizar-se-ia em Bordéus, em território neutro, mas D. Pedro supostamente apareceu disfarçado, temendo uma cilada; foi ao local combinado, mandou que se fizesse um auto da sua presença e regressou a casa sem ser descoberto. Perpinhão seguiu esta informação; mas, num registo de imparcialidade, como conhece outra, diferente, apresenta-a também. Depois de prolongada guerra e graças a conflitos internos entre os franceses, a coroa da Sicília acabou por ser entregue a D. Pedro III que teve de formar um exército para combater a nova força de tropas francesas de Filipe III, que

reys, seus filhos, e tres rainhas; as quais eram a madre desta Dona Isabel, e a rainha Dona Violante, que foy molher delrey D. Afonso, filho delrey D. Fernando, que filhou Sevilha aos Mouros; e a outra rainha era molher delrey D. James, a que ficava o reyno de Maorgas.

75

apoiava a fação de Anjou; em 1285 o rei deposto acabaria por morrer de cólera e, pouco mais tarde, também D. Pedro III adoeceu e morreu, na Catalunha, depois de ter pedido e conseguido o levantamento da excomunhão e confessado fidelidade à Santa Sé. No geral, a sua imagem não sai engrandecida das palavras de Perpinhão, atribuindo até a sua iniquidade aos laços de parentesco que estabelecera ao casar com D. Constança. A fonte é Rui de Pina, que ajuda a clarificar as palavras sintéticas do padre quinhentista: Perpiniani, De Vita, pp. 176-177. Mas Pedro, pela sua virtude e grandeza de espírito, pelo conhecimento das armas não inferior ao de qualquer rei, travou muitas e grandes batalhas prósperas contra o inimigo Sarraceno. A piedade e a religião, a pouco e pouco, ao que parece, foi prejudicada com a nova afinidade com os reis da Sicília e um final triste e digno de lamento, de algum modo, espalhou sombras sobre todas estas façanhas tão admiravelmente executadas. Com efeito, massacrados os Gauleses pelos Sicilianos, na mesma época, apesar dos protestos veementes do Pontífice Máximo, submeteu toda a ilha ao seu poder, em nome da mulher. De seguida, aproximando-se o dia estabelecido para o combate, para, na companhia de cem cavaleiros escolhidos, os dois reis aparentados decidirem pelo ferro o direito universal da Sicília, [aconteceu uma destas situações]: ou não esteve presente abertamente, mas brincando com a religiosidade do juramento, secretamente, junto do Prefeito de Bordéus, onde se devia travar a luta, ou junto de outros, alegou a iniquidade da luta e do lugar e subitamente, em marcha apressada, voltou para casa; ou, então, simulando o medo antes, para que ninguém suspeitasse do que estava para acontecer, determinado o dia, de repente, apareceu armado à vista de todos, montado no cavalo, com voz altíssima invetivando e acusando Carlos ausente, ainda que durante pouco tempo cavalgasse ali à volta, e voltou para os seus em marchas diurnas e nocturnas. Finalmente, como não só era mantido afastado dos templos e das coisas sagradas, e era tido no número dos ímpios e dos celerados, pelos éditos dos Pontífices, como também, espoliado do nome e honrarias de rei, fosse combatido como desertor da religião ou um qualquer Sarraceno, enquanto se esforçava por resistir, com mais ânimo do que forças, aos exércitos dos gauleses que invadiam a Hispânia, com muito poucos recursos (com efeito, completamente abandonados pelos aragoneses, cuja imunidade e instituições tomara a cargo, apenas contava com o auxílio dos catalães, ainda que sofressem dos mesmos males), morreu passados poucos dias, de um golpe recebido

76

Rui de Pina, Chronica delRey Dom Diniz, p. 228 Ha quem ElRey D. Pedro com escuzas coradas das cousas passadas (a exigência do Reyno da Sicília, que pertenceria à mulher) se mandou defender em Roma por seus Embayxadores, hos quaes por guanharem tempo, e escuzarem ha yda dos Francezes sobre Cezilia, porque estavam muito poderosos concordáram em nome delRey D. Pedro por juramentos solenes, que a contenda desse Reyno se partisse por desafio dambos hos reys em pessoas, e com cem Cavalleyros cada hum sôomente, e que fosse em Bordeos, que a esse tempo era delRey Dingraterra, e que aho Rey vencedor fiquasse livremente, e sem contradiçam ho dito Reyno de Cezilia, do que ElRey Carlo foy muy contente, para concordarem o desafio (…) Mas ElRey D. Pedro nom pareceo pubriquo em Bordeos, e porem se diz, que por nom quebrar o juramento, que fizera se mostrou ahi alguns em secreto, e que de como parecera tomou por sua escuza estormentos, e se volveo ha seu Reyno com grande pressa, e por este enguano de que ElRey de França, e Carlo seu tio, e ho Papa juntamente foram muito escandalisados, o Papa escommungou ElRey D. Pedro, e deu contra elle Cruzada, e concedeo ho Reyno Daraguam com grande solenidade, e com grande doaçam ha Felippe Conde de Valois (…)

Os escritores nacionais não fazem menção da ferida. Dizem que morreu de doença, algum tempo depois de capturada Gerona pelo gaulês. Consta que terá morrido sem ter feito pazes com a vontade do Pontífice e que aquela proibição das atividades sagradas terá durado por muitos anos até Bonifácio VIII e ao rei Jaime, seu filho. A verdade é que, estando para morrer, não só expiou os seus pecados, pela confissão, como tomou o santíssimo corpo de Cristo, por conselho de um sacerdote que ele tinha para si, pelas sagradas confissões, ainda que tenha recusado, por um instante, aterrorizado pela consciência daquilo que fizera, contrariando a vontade do Sumo Pontífice.

E por esto, e por cazamentos que depois antre elles se fizeram fiquou ahos Reys Daraguam ho direyto no Reyno da Cezilia; como quer que sobre esta mesma contenda antes de se fazer a mesma concordia ElRey Felippe de França, e este Rey D. Pedro Daraguam faleceram ambos sobre ho cerquo de Girona, ha saber, ElRey de França por doença, e ElRey D. Pedro por dezemparo, e treyção dos seus, foy morto ha ferro, como nas Coronicas de Frãça e Daraguam mais largamente e decrara.

É frequente a referência aos documentos escritos que consultou, para fundamentar absolutamente aquilo que diz. Verifica-se, por exemplo, quando se pronuncia sobre a má relação entre D. Pedro e o pai, que explica pelo facto de este ter casado, contra vontade daquele, com Constança: Diz-se que o pai sentiu essa situação com espírito cheio de indignação. E esta terá sido, para ele, talvez, a razão por que nunca mais, até ao último dia da sua vida (o que eu vi afirmado nas letras mais antigas) 73 , permitisse que viessem à sua presença, quer o filho, quer os filhos deste 74 .

Se a família da mãe, D. Constança, não lhe merece boas referências, no que diz respeito aos homens, já a do pai é enobrecida e santificada pela piedade do avô, D. Jaime, no que diz respeito aos homens, mas atinge a excelência, no campo feminino, com Santa Isabel de Hungria, tia-avó de D. Isabel de Aragão, em homenagem à qual recebeu o seu próprio nome. Isabel, filha de André II da Hungria e de Gertrudes de Andechs-Merano, nascera em 1207, em Pressburg, e tinha apenas 4 anos

73  Refere-se 74  De

provavelmente à Lenda, pp. 1292-1384.

Vita, p.175.

77

quando o pai aceitou casá-la com o Landgrave da Turíngia, o príncipe Luís IV, sendo então levada para a Turíngia, em 1211, para aí ser educada pela sogra; aprendeu a ler, a escrever, a conhecer os hábitos e costumes da Turíngia e a conviver com uma das cortes mais desenvolvidas de então; o casamento efetivo ocorreu em 1221, tinha Isabel 14 anos. Tinha, como meia-irmã, Violante de Hungria, fruto de segundas núpcias do pai com Violante de Courtenay, princesa de Constantinopla, a qual casou com D. Jaime I de Aragão, pai de D. Pedro III, e, portanto, avó de D. Isabel de Aragão. A versão adotada por Perpinhão, sobre a vida de Santa Isabel de Hungria, não corresponde exatamente à versão de outros relatos, nomeadamente hagiológicos, uma vez que não lhe atribui descendência. Na verdade, Santa Isabel e Luís da Turíngia tiveram três filhos, Herman, Sofia e Gertrudes. A sogra, restante família do marido e a corte mostravam-lhe grande hostilidade, por causa da sua humildade e dedicação aos pobres, que manifestava desde pequenina, pelo que, à morte do marido, em 1227, a caminho da VI Cruzada, Santa Isabel, viúva aos vinte anos, e os seus filhos foram afastados da corte e despojados dos seus bens. Acolheram-se à proteção dos tios da jovem viúva, D. Matilde, abadessa do Convento de Ktizingen, e D. Ekbert, Bispo de Bamberga; foi este que desenvolveu esforços para reconduzir Isabel e os legítimos herdeiros ao trono, solicitando o auxílio dos companheiros de Luís, que regressavam da cruzada e traziam os seus restos mortais. Depois de concretizado este objetivo, Isabel confiou os seus filhos aos cuidados de familiares e retirou-se para Marburg para se dedicar ao auxílio aos pobres; alguns relatos apontam para que terá vestido o hábito de mendicante; outros referem que terá vestido o hábito sem professar, vivendo num paço existente nas imediações do hospital, onde desenvolvia grande parte da sua atividade de assistência. Fundou ou ajudou a fundar hospitais e instituições de apoio social, destinados ao acolhimento e tratamento de doentes, leprosos, idosos, mulheres, órfãos. Morreu em 1231, aos 24 anos; depois de abdicar em favor dos filhos, tinha ingressado na “Venerável

78

Ordem Terceira de Penitência do Glorioso S. Francisco”. Foi canonizada em 1235 e estabelecido o dia 19 de Novembro para a comemoração da sua festa solene. São-lhe atribuídos numerosos milagres, quer em vida quer depois da morte. 75 O percurso de Santa Isabel de Portugal assemelha-se, em numerosos momentos e situações, ao de Santa Isabel de Hungria 76. Perpinhão parte, nesta matéria, da informação sucinta da Lenda, alargando-a com documentação existente no Mosteiro de Santa Clara, que era da invocação de Santa Clara e Santa Isabel de Hungria, recorrendo eventualmente a algum Flos Sanctorum, que não faltaria em qualquer mosteiro: [Isabel], encontrando Conrado 77 como mestre de costumes, varão da congregação do bem-aventurado Francisco, insigne naqueles tempos não só em sabedoria como também em probidade, tanto mergulhara no zelo de piedade que parecia um exemplo de todas as virtudes. Casou, por vontade do pai, com Luís, Landgrave da Turíngia (convém, na verdade, alongarmo-nos um pouco mais do que a situação talvez exija, sobre os seus costumes, quer porque foi parente de Isabel, quer porque esta teve este exemplo doméstico para imitar, colocado ante os seus olhos). Tendo sofrido muitos males e muitas injustiças com extraordinária perseverança, finalmente, ultrapassando as dificuldades,

75  Cf.

Castro (ed.) (2007) e Vairo (2009).

76 Cf.

“Duas Princesas, duas Santas nas mesmas virtudes. O culto de Santa Isabel de Hungria em Portugal” in Anibal Pinto de Castro (ed.) (2007), pp. 86-113. O estudo destaca as semelhanças no percurso de vida destas duas santas: ambas descendiam de famílias aristocráticas europeias; os seus casamentos foram políticos; a vida de ambas foi marcada por uma conduta de santidade; optaram por uma vida religiosa depois de viúvas, sem no entanto, professarem, ingressando na Terceira Regra de S. Francisco; dedicaram-se a obras de caridade junto dos mais necessitados e fundaram instituições religiosas e sociais de apoio aos mais carenciados (ambas fundaram hospitais junto dos mosteiros); partilharam vários milagres (nomeadamente o milagre das rosas) e representações iconográficas. 77  Conrado de Marburgo, confessor e diretor espiritual de Santa Isabel de Hungria. Depois da morte desta, compilou todas as notícias que poderiam vir a integrar um processo de canonização, o que aconteceu em 1235, sendo a primeira mulher franciscana canonizada, antes mesmo de Santa Clara, que o foi em 1255.

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convenceu o marido a levar o mesmo modo de vida, o qual, sendo publicamente um príncipe e, em privado, um companheiro de admirável virtude, permitiu à esposa o livre poder de fazer o que quer que achasse apropriado. Ela, seguindo a vontade do marido publicamente, fez o voto de conservar o seu corpo casto e íntegro em todo o resto da sua vida. Não permitia que os seus a tratassem por “senhora”; ela própria, dedicando-se ao trabalho das lãs, pernoitava entre as criadas que trabalhavam à noite; a estas, não só as fazia sentar a seu lado, como mandava tirar a comida da mesma travessa que ela; até as tarefas desprezíveis da cozinha, a que as senhoras honestas têm horror, frequentemente desempenhava rindo, com alegria. A humildade do seu espírito vencera a repugnância da natureza; o desprezo de si, a ambição de glória; o desejo de imitar Cristo, a falsa opinião, imbuídos na qual os homens não apenas tinham já suprimido, noutros tempos, o valor das coisas, como até as verdadeiras palavras. Tolerava as injúrias; na suprema abundância suportava, de sua livre vontade, os incómodos da pobreza; castigava o seu corpo magro e delicado com longos períodos de jejum; dedicava uma boa parte do tempo diurno e noturno às orações sagradas e à contemplação das questões celestiais, na qual, por vezes, de tal forma mergulhava em divina suavidade, de tal forma se abstraía do sentido do corpo, que não sentia a chama nas suas roupas a arder, por qualquer acidente, a não ser que fosse acordada pelos seus. Depois que o Landgrave partiu de casa para a guerra com o Sírio e morreu em Brindes, sem deixar filhos, como todos os seus bens voltassem, de direito, para os seus parentes e familiares, Isabel, daquilo que recebera na qualidade de dote, fez nascer um hospital público, onde, servindo de forma humilde e submissa, os pobres e os doentes, pedindo esmola para si e para eles, depois de consumidos já os bens em lã e em tecido, sem nojo da sordidez, não receando o contágio das doenças, não se poupando ao trabalho nem aos gastos, nesta santíssima servidão gastou o restante tempo da sua vida.

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Ressuscitou 16 mortos; a um homem cego, não por qualquer acidente, mas de nascença, deu-lhe o sentido da visão. Por estas razões, o Pontífice Máximo, o nono desde o primeiro que adoptou este nome, com as maiores cerimónias, de acordo com a opinião comum dos padres purpurados, depois da morte, colocou-a no número dos beatos. Assim, a 12 dias das calendas de Dezembro, por costume e instituição da Igreja Católica, em seu nome, cumprem-se não só preces públicas, por todo o lado, como também cerimónias sagradas. E assim, se tivesse seguido a celebridade e a fama mundanas, já hoje estaria completamente caída no esquecimento; fugindo-lhes, alcançou não apenas a vida feliz e eterna que almejava, como também o que desprezava, a imortalidade do nome.

A Lenda destaca apenas a génese do nome da infanta aragonesa na figura de sua tia avó e a ascendência desta:

Perpiniani, De Vita, p.179-181.

Lenda, pág. 1309:

Conduzida ao templo para ser banhada com a água sagrada, os pais decidiram chamar-lhe Isabel. Na verdade, alguns anos antes vivera Isabel, filha de André, rei da Panónia, de quem acima falei, irmã de Violante, que Jaime, o avô da criança, como já antes ficou explícito, tomou como esposa.

E, quando esta rainha Dona Isabel naceo, andava a era de Cesar em mil e III e nove anos, e, porque a madre delrey D. Pedro fora filha delrey d’Onglia e fora irmãa de Santa Isabel, foy posto a esta rainha de Portugal nome Isabel.

Os exemplos de virtude e santidade são apresentados como exemplos de vida a imitar, tal como os exemplos de maldade são apresentados como exemplos a evitar, pois são sempre objeto de castigo. Santa Isabel de Hungria é proposta como modelo de santidade a seguir pelos leitores deste relato, mas, mais ainda, como exemplo que já frutificara, pois já fora adoptado por alguém que se distinguira igualmente nos mesmos valores e modo de vida, a sobrinha-neta, a, então, ainda, bem-aventurada Isabel de Portugal. Esta, para além de partilhar laços de parentesco, alimentou o culto da tia, dedicando-lhe o Mosteiro de Coimbra,

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fundando instituições de assistência, seguindo também a espiritualidade franciscana. Em termos de iconografia, também se assemelharam; apresentam vários atributos comuns que permitem uma rápida identificação: a coroa, as rosas, a representação no hábito de franciscanas de ordem terceira; ambas receberam o reconhecimento da posteridade pelos seus admiráveis percursos de uma vida dedicada aos outros e à assistência aos mais desprotegidos da sociedade, pobres e doentes, distribuindo pão e esmolas, e fundando hospitais que visitavam com assiduidade 78. Consciente da importância e influência da sua família (o que a levou, por exemplo, a fazer representar no seu túmulo as armas de Aragão, de Portugal e da casa Hohenstaufen), no final da sua vida, D. Isabel costumava relembrar o seu parentesco com numerosos reis e rainhas; Perpinhão inspira-se na Lenda:

Perpiniani, De Vita, pp. 345-46 Nascida de pais, avós, antepassados régios, de uma amplíssima linhagem, casara numa amplíssima família; fora de saúde de corpo suficientemente firme, dotada de grandes riquezas, de modo que não podia deixar de fazer nada pela causa de Deus. Tivera um percurso de vida não pequeno nem breve e, tendo a grande faculdade e vantagem de bem viver e bem fazer, não lhe faltou ocasião para o praticar. Já vivera mais de sessenta anos; vira tantos reis, tantas rainhas e todos eles, seus afins e parentes, quantos ninguém antes de si terá visto, nem sequer entre os estrangeiros; em Aragão, para além dos pais e do seu avô, vira dois Jaimes, com as respetivas esposas, um, tio paterno, rei

78  Vairo

Lenda, pp. 1354-1357 Seendo o moesteiro acabado, conhocia a Deus que fazia muita mercee em este mundo e que por tanto viviria já ela e, quando sa mercee fosse, que a chamasse, que ela per si visse o que dizer nom ou-viira rainha que viisse tantos reys com que divido ouvesse e rainhas: ca ela viira elrey D. James, seu avoo, que a criara, seendo rey de Aragon, e, morto elrey D. James, seu avoo, que viira Dom Pedro, seu padre, rey de Aragon, e D. James, seu tio, rey de Maiorgas, irmão de seu padre, e D. Dinis, seu mari-do, rey de Portugal, e D. Sancho, seu primo coirmão, rey de Castella, e que, seendo casada com elrey D. Dinis, que tornara a Aragom, segundo já dito é, e que viira D. James, seu irmão, rey de Aragom. Depos morte delrey D. Dinis viio em Portugal seu filho D. Afonso e viio, depos morte delrey D. Sancho, D. Fernando, rey de Castella, seu sobrinho e seu genro, e depos morte delrey D. Fernando, viio D. Afonso, seu neto, rey de Castella e de Leom, que era filho da rainha Dona Constança, sa filha. E dizia que viira rainhas: a rainha Dona Constança, sa madre, e a rainha Dona Beatriz, sa sogra, e a

(2009), pp. 221-235.

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da Balear Maior, outro, seu irmão, rei da pátria; da mesma forma, vira Afonso e Frederico, seus irmãos, este antes de obter o reino da Sicília, aquele o de Aragão. Entre os castelhanos vira sua tia paterna casada com Afonso Sábio, Sancho e a sua esposa Maria, o seu genro Fernando e a sua própria filha Constança, seu neto Afonso casado com a igualmente sua neta Maria, e Leonor, irmã de Afonso, antes de ser casada com o Rei de Aragão. Na Lusitânia, vira sua sogra Beatriz, Dinis, o filho Afonso e a sua consorte Beatriz; omito muitos outros que reinaram, por essa época, quer na Hispânia, quer entre as nações estrangeiras, uns mais velhos, outros mais novos, que apenas terá conhecido de nome, e todavia, não terá existido algum até ali, ou que tenha sido rei nos anos próximos, entre os cristãos, com os quais não tivesse algum laço de sangue e parentesco.

Rainha Dona Vio-lante de Castela, molher delrey D. Afonso de Castel-la, filho delrey D. Fernando, o que filhou Sevilha aos mouros, a qual rainha era sa tia, irmãa de seu padre; e viio a rainha Dona Maria de Castela, molher delrey D. Sancho, seu coirmão, e a rainha Dona Branca de Aragom, sa coirmã e molher delrey D. James, seu irmão; e viio a rainha de Maiorgas, molher delrey D. James, seu tio; e viio a dita Dona Costança, sa filha, rainha de Castela e de Leom; e viio a rainha Dona Maria, filha delrey D. Afonso, seu filho, e rainha de Castela, casada per despensaçom do papa com elrey D. Afonso de Castela, outro si seu neto; e viio a rai-nha D. Beatriz de Portugal, molher delrey D. Afon-so, seu filho, sa sobrinha, filha de seu primo coir-mão, e sa nora, e viio a rainha Dona Leonor de Ara-gom, sa neta, em seendo a rainha Dona Leonor ifante e ante que casasse com elrey D. Afonso de Aragom; (…) E em tempo que esta rainha vivia nom avia rey nos christãos, nem rainha que de linhagem de rey decendesse, que se arredasse a ela de parente: elrey de França, D. Felipe, que reinava em França, quando ela acabou seu tempo, era seu sobrinho, filho de seu primo coirmão, e elrey Ruberte segundo coirmão, e elrey de Maiorgas seu sobrinho, filho de primo coir-mão, [e e] lrey de Inglaterra, seu sobrinho, e assi outros reys christãos.

II.2. Infância Da mesma forma que a morte da Rainha foi marcada por circunstâncias maravilhosas, também o seu nascimento, em local não definido pelo primeiro relato biográfico, foi marcado pela estranheza: a menina nasceu envolvida na placenta, facto que à luz do seu tempo, se revestia de grande significado. A fonte deste informação é a Lenda: Perpiniani, De Vita, p. 1749 Mas Isabel foi dada à luz, tal como estava no útero, assim mesmo, coberta por todo o lado e envolvida nas secundinas; quando a parteira as cortou, saiu daqueles invólucros a envergonhada menina que, corando de pudor por nascer nua, de certo modo, arrastara consigo aquela como que vestimenta, com a qual estava vestida no próprio útero.

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Lenda, p. 1309 (...) e esta Dona Isabel, a qual, quando naceo, naceo invistida, envolta e cuberta de uma pele, que lhe nom pare-

(...) Certamente que a mãe, quer comovida pela novidade da situação, quer percebendo já no seu coração e no seu pensamento que futuro lhe estaria reservado, mandou que as membranas tiradas da menina e guardadas numa caixinha de prata fossem conservadas entre os seus tesouros. Estava-se no ano de 1309 da era de César, mas desde o verdadeiro nascimento redentor de Cristo Óptimo e Máximo, o de 1271. (...) Qual terá sido o dia exato em que nasceu ou a cidade que a recebeu em primeiro lugar assim que nasceu, nunca o encontrei registado em texto algum; quiseram, sem dúvida, que o adivinhassem os vindouros!79

cia nembro alguum, a qual pele ou teagem a rainha, sa madre, fez poer em uma coussela de prata, e tragia esta rainha aquela coussela em sas arcas. E, quando esta rainha Dona Isabel naceo, andava a era de Cesar em mil e III e nove anos (...)80

7980

A sua primeira infância viveu-a junto do avô que, por amor à neta, de quem dizia que viria a ser “a melhor molher que saira da casa de Aragom”, fez as pazes com o filho, com quem estava desavindo, segundo informação da Lenda; começava, assim, D. Isabel a revelar a sua faceta de pacificadora. As relações entre D. Jaime I e D. Pedro não eram as melhores, uma vez que o filho, segundo Perpinhão, desobedecendo à vontade do pai, casara com a filha de Manfredo, que ele via como usurpador e assassino.

79  Ironia de Perpinhão sobre a falta de informação, nos textos mais antigos, sobre o local e data de nascimento da Rainha. Os estudos mais recentes também não são unânimes nestes aspetos. Para a data oscilam entre 1269 e 1271; para o local, entre Barcelona e Saragoça, apontando a tradição o seu nascimento na Aljafería desta cidade, onde existe um aposento, onde tradicionalmente se diz que nascera D. Isabel. Para informação mais detalhada, cf. Fernando Félix Lopes (1963), “Data e circunstâncias do casamento da Rainha Santa Isabel”, in Itinerarium – Colectânea de Estudos, Ano IX, nº 40, pp. 193-219; Sebastião Antunes Rodrigues (1982). 7º Centenário do Casamento de D. Dinis com a Princesa de Aragão D. Isabel.” e “A Cultura da Rainha Santa”. Coimbra: Museu Nacional de Machado de Castro; Mariano Ballabriga (1999), “Alguns aspectos de la vida y muerte de Santa Isabel”, Imagen de la Reina Santa – Santa Isabel, infanta de Aragón y reina de Portugal (1999), pp. 13-40. Saragoça, Diputación de Zaragoza. Andrade, (2012), entre outros. 80  Depois de “III” subentenda-se “centos”, logo, a data é 1309, na era de César, 1271, na era cristã.

84

Perpiniani De Vita, p. 182 O excelente velho, porém, apesar de não poder ver, com espírito favorável, nem o filho nem os netos, quando ouviu dizer que nascera Isabel, mandou que trouxessem a menina para junto de si e, como se a adotasse como sua, tanto mais diligentemente a educou, quanto maior costuma ser o amor e a indulgência dos avós para os netos do que os dos pais para com os filhos.(...) E, assim, o avô, ainda que conduzido pelo próprio amor, reconhecendo que nela existia uma superior disposição para a virtude, costumava por isso ocupá-la com frequentes conversas e, penso eu, não sem um certo pressentimento dos acontecimentos futuros, considerando que aquela sua neta e educanda havia de ser, de longe, a melhor e a mais ilustre de todas as mulheres que alguma vez tinham nascido da antiga e nobre estirpe dos reis de Aragão. Andava Isabel por volta dos seis anos, quando o rei Jaime deixou esta vida; com efeito, ele morreu no ano, a contar do parto da Virgem, de 1276 e ela viera a este mundo em 1271.

Lenda, p. 1309 E em tempo que ela naceo avia grande descordia antre elrey D. James e o ifante D. Pedro, seu filho, padre desta Dona Isabel, em tanto que elrey nom queria veer seu filho D. Pedro, nem alguum de seus filhos, pero que, em vivendo elrey D. James, eram já todos os que ele ouve nados, e escolheo esta Dona Isabel, e criava-a e amava-a muito, dizendo por vezes dela, que sa criada e neta avia de seer a melhor molher que saira da casa de Aragom; e foy em aquel tempo aviindo o ifante D. Pedro com elrey D. James, seu padre.

II.3. Casamento O seu casamento foi tratado cedo, como era costume nas casas reais; andaria a Infanta pelos dez anos quando se manifestaram os pretendentes, entre os quais se contava D. Dinis, já então rei de Portugal, desde 1279. A Lenda fala em três pretendentes atraídos pela sua bondade, formosura e compostura: além de D. Dinis, os príncipes herdeiros de Inglaterra e de França (este viria a casar com D. Violante, irmã de D. Isabel); é esta informação que passa para a posteridade, como se constata pela leitura das Crónicas, a de 1419 e a Crónica delRey Dom Diniz de Rui de Pina; só Perpinhão a questiona, analisando pormenorizadamente os perfis dos candidatos e avaliando a probabilidade de o serem, investigando os graus de parentesco impeditivos do enlace.

85

Perpiniani, De Vita, pp. 185-186.

Lenda, pp. 1311-1312:

Já então se espalhara pelas fronteiras da Hispânia não só a fama do valor e feitos ilustres do rei Pedro, mas também a da beleza e dos costumes de Isabel. Movido por estas circunstâncias, Dinis, estando em Estremoz, para lá do Tejo, seguindo o conselho de sua mãe e dos seus, enviou os legados João Velho, João Martins e Vasco Pires, seus conselheiros, varões de grande autoridade, para pedirem ao rei que lhe fosse permitido casar com Isabel; que ele, por causa da sua excelente virtude e da glória paterna e avoenga havia de considerar essa situação como motivo de grande benefício e esperava que acontecesse não ficar ele descontente pelo novo parentesco81. Estava, então, talvez, Pedro em Barcelona; ao chegarem aí, os legados de Dinis, perceberam que o desenlace para a situação seria mais difícil do que pensavam e esperavam. Ali se encontravam, com efeito, ao mesmo tempo, os legados da Bretanha, solicitando a mesma princesa como esposa, para o filho mais velho do seu rei e herdeiro do trono; ali se encontravam também, com as mesmas ordens, os legados enviados por Carlos, príncipe de Salerno, filho do Rei de Nápoles e Sicília; e já secretamente falavam os homens que, com pouca prudência, o Rei recusava a aliança de tais varões.

E criando-se ela assi em casa de seu padre, depos morte delrey D. James, seu avoo, e seendo já de idade de nove annos, morreo-se em Portugal elrey Dom Afonso; morto elrey Dom Afonso, o qual rey morreo aos XVI dias de fevereiro era M. III e XVII annos, e depos sa morte, reinou elrey D. Dinis, seu filho. E seendo D. Dinis rey, ouvio dizer em como elrey D. Pedro de Aragom, que era em aquel tempo, polos feitos que fazia e passava por armas, uum dos reys do mundo de gram fama, avia duas filhas lidimas, (e) mandou a el seus messegeiros e procuradores, pera demandar pera casamento esta filha Dona Isabel. E em aquel tempo que os messegeiros delrey de Portugal chegarom a casa delrey de Aragom eram i os messegeiros de Ingraterra e do filho delrey Carlos, que a demandava pera casamento.

Rui de Pina, Chronica delRey Dom Diniz, 223 (…) estando em Estremoz no anno de mil duzentos oytenta e hum annos, avendo dous annos que jáa Reynava, ordenou seus Embayxadores, e Procuradores para hirem requerer ha dita Ifante Dona Isabel; João Velho, Vasquo Pires, e Joaão Martins, homens de seu Concelho, e pessoas acerqua delle, de grande autoridade, e boa estima, hos quais chegáram à Corte delRey Daraguam, que estava em Barcelona, onde sobre o mesmo caso se acertaram outros Embayxadores delRey de França, e delRey de Inglaterra, que para cazamentos de seus filhos erdeyros enviavam requerer ha dita Ifante.

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A escolha, apesar da grande relutância do pai em vê-la partir, pela afeição que por ela tinha, recaiu sobre D. Dinis, pois, casando com este

81  Segundo F. Félix Lopes, que a esta questão dedicou aprofundado estudo, alicerçado em documentação da chancelaria dionisina e do Arquivo da Coroa de Aragão, nomeadamente em correspondência trocada entre os intervenientes, o casamento de D. Dinis e D. Isabel foi acordado entre o próprio D. Dinis e D. Pedro III de Aragão, pai de D. Isabel, com a intermediação de Filipe III, rei de França. A aliança aragonesa era, à época, mais vantajosa para o rei português, que encetou o processo de negociação; quando os seus procuradores chegaram a Barcelona, já o processo estava encaminhado (cf. “Data e circunstâncias do casamento da Rainha Santa Isabel” 1963). Sobre esta questão, cf. também Rodrigues, (1982).

86

candidato, com o qual, como não tinha um grau de parentesco próximo que impedisse a união, não necessitava de autorização do Papa; além disso, D. Isabel seria de imediato rainha. Perpiniani, De Vita, p. 188

Lenda, pp. 1312-1313

[D. Pedro] Sabia que o da Bretanha e o de Nápoles haviam de reinar; Dinis, porém, já reinava. Àqueles, por serem próximos de Isabel por parentesco, eram proibidas as núpcias, pela religião, a não ser que a autoridade do Pontífice Máximo intercedesse; a este, apesar da consanguinidade, como esta era já muito distante (é certo que Aldonça, bisavó de Dinis, fora filha de Raimundo Berengário, quarto avô de Isabel, e que Afonso décimo de Castela, ainda que tivesse por esposa Violante, irmã de Pedro, tivera Beatriz, mãe de Dinis, fora do casamento), não havia nada que o impedisse de a poder tomar como esposa. Por isso, ainda que o amor do pai suportasse com muita amargura aquela separação, mandou embora com muitos agradecimentos os Bretões e os Gauleses;chamou os Portugueses; agradava-lhe, disse, uma vez que não podia evitar aquela tão temível separação, entregar a sua filha a Dinis (...) João Velho que, em seu nome, Dinis designara para desempenhar esta tarefa, aceitou como esposa, em nome do rei, a distintíssima e honestíssima donzela, perante uma assembleia numerosíssima, com aparato régio, e, estabelecido o dia limite para que a Rainha fosse conduzida à Lusitânia, para junto do marido, os legados regressaram à patria, para prepararem tudo o que a magnificência real, em tamanha alegria de todo o reino, exigia, para a chegada de Isabel.

E, consiirando elrey D. Pedro em como este, que sa filha demandava, era já rey e que a sa filha de sa casa partiria com nome de rainha, e consiirando em como elrey D. Dinis e el nom aviam tanto de parentesco, nem d’outro divido, porque de dereito se embargar podesse este casamento, nem comprisse pera tal casamento despensaçom do papa, e que assi casar podiam sem embargo, assi como outros simprezes omeens, o que nom vira em casamento de rey, e ca por la maior parte nom casava com rey a que em seu casamento comprisse despensaçom, e em como nom podia casar com o filho delrey de Ingraterra, nem delrey Carlos por parentes que erom, sem despensaçom do papa aver, posto que a ele grave fosse de partir de si sa filha, de Deus viinha esto aaquela moça (que já em aquel tempo daquela idade entendia em rezar oras e em servir a Deus por jejuum e por esmolas e em se doer d’aqueles que viia viir a casa delrey, seu padre, com pressa de a demandar pera casamento) (e) de nom aver divido com aquel que a demandava, pera que mester fosse despensaçom, (e) outorgou que casasse com elrey D. Dinis de Portugal, e forom feitos os esposorios per cavaleiros, procuradores pera esto delrey de Portugal e seus vassalos e naturaes de Portugal.

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Rui de Pina, Chronica delRey Dom Diniz, 223-224 Pelo que ElRey D. Pedro vendo que alguns destes Principes jáa se nom podia escuzar consirando, que com hos filhos delRey de Frãça, e de Ingraterra pelos muito conjuntos dividos de sangue, que com elles tinha, elle sem dispensaçaõ Apostoliqua ha nom podia dividamente cazar, e que em caso que cada hum delles cazasse nom saya de sua casa Rainha, mas Ifante, ouve por bem de outorgar, que cazasse com ElRey D. Diniz, porque sem mais longuas esperanças, ella fosse loguo Rainha.

A Crónica de D. Dinis, parte da Crónicas dos Sete Primeiros Reis de Portugal, também reproduz as mesmas informações da Lenda: E era esta sua sua filha Dª Jsabel asy fermosa e estremada em todolos boões costumes, que quantos dela ouuyam falar, ha amavom em suas vontades, e por sua fama a mandavom pedir a seu padre pera casamento, elRey de Jngraterra pera casar com seu filho erdeyro, e elRey Carlos de França pera seu filho Ruberte. E elRey de Aragão era muj graue de a partir de sy, tanto a amaua pelas mujtas bondades que em ela avya. (...) E auendo dous anos que elRey D. Denjs reynava, saber, na Era de MCCCXVIII anos, ouujndo a fama e bondade da Iffante, desejou de a auer por molher. E estamdo em Estremoz, ordenou seus procuradores, saber, Johão Velho, e Johão Martinz e Vasco Periz, e emujoua a pedir a elRey de Aragão seu padre. E quando eles chegarõ com o recado del Rey D. Denjs, ajnda hy errom os mensageyros que disemos, sem aver resposta. E quando vyo elRey que lhe comvinha de a dar a cada hum destes, que a não podia dar a alguns dos filhos delRey de Jnglaterra ou de França, sem despemçação do Papa, pelo grande diujdo que antreles auja, e majs casandoa com cada hum deles, saya ela de sua casa Iffante, e não Rainha, outorgoua a elRey D. Denjs. 82

Depois de aprovado e combinado em 11 de Fevereiro, o casamento realizou-se em Barcelona por procuração, em 17 de Fevereiro de 1281, sendo D. Dinis representado por João Velho, João Martins e Vasco Pires. Fruto dos conflitos que grassavam em Castela entre Afonso X e seu filho, D. Sancho, a viagem de D. Isabel foi sendo adiada e alterada83 e só em

82  Cf. Carlos Silva Tarouca, (1952), Crónica dos Sete Primeiros Reis de Portugal. Lisboa: Academia Portuguesa de História, pp. 9-10. 83  D. Pedro hesitou entre mandar D. Isabel por terra ou por mar; os barcos estavam já aparelhados, quando o rei mudou de ideia e a viagem fez-se por terra, através de Castela com o salvo-conduto e acompanhamento de D. Sancho e seu irmão, o infante D. Jaime, até chegar ao destino. Desta hesitação do rei dão notícia quer a Lenda, (p. 1312), quer a Crónica de D. Dinis de Rui de Pina (p. 229), quer Perpinhão (De Vita, 193-195).

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Junho de 1282 os esposos se encontraram finalmente, em Trancoso, onde decorreram os festejos por vários dias 84. A Lenda descreve todos os passos, desde as hesitações de seu pai, indeciso sobre mandá-la por terra ou por mar, até ao encontro em Trancoso, passando pelos territórios em guerra com a proteção dos seus primos; recorre à introdução do discurso direto na narrativa, processo caro à História Antiga 85, que irá ser repetido por todos os que nesta obra se inspiraram. Por exemplo, na despedida do pai: Perpiniani, De Vita, pp. 195-196

Lenda, 1314

Partiram finalmente, acompanhando Pedro a sua filha até o mais longe que pôde da cidade, pela ternura singular que por ela tinha; e, em lágrimas abundantes, dizia que a ninguém, alguma vez, faltara mais do que a si próprio a sabedoria para deliberar, ao permitir que fosse afastada de si para sempre, o seu bem mais caro e precioso entre todos. Chegaram às fronteiras de Castela. O rei, como não lhe era permitido avançar para mais longe, por muito tempo falou com Isabel, longe de testemunhas. De seguida, abraçando-a, como já não podia conter mais as lágrimas de pai, aquele antes invencível espírito disse: “– Filha, eis que chega a hora de nos deixares, bem como à tua pátria; partes para outras terras, ainda que para junto de um marido ilustre, mas para viveres entre estrangeiros e desconhecidos. É necessário muito juízo para ganhares para ti os corações de todos e para conquistares a simpatia e a benevolência de todos. Mas eu conheci, em todas as situações, uma tal prudência em ti, que penso que não te vão fazer falta nem os meus ensinamentos nem os meus conselhos. Aquele Deus Óptimo e Máximo que, por um secreto e oculto desígnio, te reservou para estas núpcias e fez com que chegasses, ainda em minha casa, ao nome de Rainha, proteger-te-á, com a sua vontade

– Filha, Deus, que te chamou pera este casamento e te guardou pera sair em nome de rainha de minha casa, ele te queira guardar de embargo em este caminho. E entom em terra de Valença começarom seu caminho pera Portugal. Elrey saio com sa filha e abraçava-a e chorava, dizendo: – Vistes omeem de tam pouco recado aver de partir de si pera nunca veer a cousa do mundo que melhor quer e mais amada? E, benzendo-a por vezes e dizendo: – Filha, tu vaas pera outra terra; eu emtanto te tenho por entenduda e castigada, que nom sei

Rui de Pina, Crónica delrey Dom Diniz, 229 (...) e com ella veo também ElRey seu padre atée ho estremo de Castella, onde ante de se espedirem falaram ambos apartados por grande espaço, e em se espedindo ElRey della, elle com olhos cheos de muy saudosas lagrymas lhe dice “Filha, Deos que te chamou pera este cazamento, e lhe prouve que de minha caza saisses Rainha, elle neste caminho te queyra guardar, pera que nom recebas pejo, nem dano algum, e Deos que na terra onde nasceste te amou, e quiz que de todos sempre fosses amada, enderessa tua vida, e teus feytos nessa pera onde vaaz de maneyra que sempre faças couzas de

84  Leia-se a documentação deste processo em F. Félix Lopes e Sebastião Antunes Rodrigues, nas obras já citadas. 85  Cf.

Jean Bayet (1965), Littérature latine. Paris.

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e poder, neste caminho encetado e permitirá que sejas conduzida incólume até junto do teu marido. Ele, aqui, na pátria, sempre te amou; Ele tornou-te amável e graciosa para todos; Ele mesmo queira que esta partida seja faustosa e feliz e esteja contigo perpetuamente naquelas paragens; Ele mesmo modere e reja toda a tua vida, para seres agradável a todos os homens, mas mais agradável a Ele mesmo; e faça que entre ti e o teu marido haja uma óptima convivência, até à última velhice.” Dizendo estas palavras, a chorar, mandou partir a chorosa menina, desejando boa sorte, segundo o costume pátrio e a lei, àquela que se afastava, e regressou à cidade, triste e infeliz.

mais que te conselhe, ca dos teus dias nom senço creatura atam comprida e bem entenduda.

seu santo serviço, e te dee sempre avença, e boa concordia com teu marido.”

Um outro exemplo do aproveitamento posterior das intervenções dialogadas das personagens ocorre quando da passagem da comitiva de D. Isabel por Castela, a caminho de Trancoso. Seu primo, o infante D. Sancho, estava em guerra aberta com seu pai, o rei Afonso X, que, apesar de ter feito jurar nas cortes de Segóvia, em 1276, este filho secundogénito, apoiava agora os direitos dos netos, filhos do seu primogénito, D. Fernando, já falecido; como D. Pedro de Aragão apoiava o primeiro, este permitiu passagem segura à comitiva da já rainha de Portugal, D. Isabel: Perpiniani, De Vita, pp. 196-197 Mas Sancho, seu primo, saiu ao caminho a Isabel, quando esta entrava nos limites de Castela, acompanhado de seu irmão Jaime; recebeu-a da forma mais benevolente e cerimoniosa, como era costume, com toda a comitiva. De seguida disse: “– Na verdade, não só de livre vontade, mas até alegre e feliz, eu te seguiria, Rainha, se fosse possível, até ao extremo limite de Castela e Leão; era o que exigiam terminantemente a tua dignidade, estes costumes singulares, as alianças de vizinhança; era o mínimo que eu podia fazer pelo teu fortíssimo pai, a quem eu nunca poderei

Lenda, p. 1315

– Coirmãa, a mi fez e faz muita ajuda vosso padre, D. Pedro, e meu tio, em tanto que no mundo nom á omeem porque mais fezesse, e eu iria com vosco e vos levaria a Portugal, mais nom

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Rui de Pina,Chronica delRey Dom Diniz, p. 229 (...) veo ha recebella aho caminho, ho dito Ifante D. Sancho, seu primo com irmaõ, porque fora filho da Rainha Dona Violante molher delRey D. Affonso de Castella, que era irmãa delRey D. Pedro Daraguam, e do dito Ifante D. Sancho de que ha Rainha Dona Isabel, e todolos de sua companhia receberam muita honra, e boom trato, e ho Ifante lhe dice: Senhora ElRey vosso padre meu tio, em minhas necessidades me fez sempre tanto favor, e me deu tam grandes ajudas, que por esso, e principalmente por quem vos sois, eu com boa vontade atée Portugual fora com vosquo, mas por

retribuir tanto zelo e trabalho quanto me prestou, nesta guerra. De facto, não ignoras em que trabalhos ando metido; vês-nos, a mim e aos meus, armados; em nenhuma ocasião posso virar, já nem digo o rumo, mas ao menos os olhos, em segurança. Eis meu irmão Jaime, para quem, sei-o bem, a tua salvação e dignidade não é menos cara do que para mim; ele não será, para ti, nesta caminhada, nem desagradável companheiro, nem defensor desprezível; quanto a mim, ainda que nisto não possa ser-te agradável, como quereria, todavia, se porventura acontecer, um dia, que necessites dos meus serviços, imediatamente te farei perceber que não tens ninguém mais zeloso da tua segurança e dignidade.”

posso, porque agora me recrecem grandes guerras e feitos em tanto que nom me posso passar agora deste logar, mais enviarei com vosco o ifante D. James, meu irmão e vosso coirmão, que vos acompanhará e irá com vosco atá Portugal.

estas guerras em que ando, que hee necessario que sempre proveja com minha pessoa, ho nom posso aguora fazer, e peçovos que desta culpa me releveis, e sabey que pera has cousas de vossa honra, e serviço sempre me achareis diligente, e muito agradecido, mas eu enviarey com vosquo ho Ifante D. James meu irmaõ, que vos acompanhe.

II.4. Do modo do seu viver Seguindo a Lenda, Perpinhão exalta prolongadamente o modo de vida exemplar de D. Isabel, já desde infanta em Aragão. A forma como orientou a sua vida, primeiro como rainha e, depois, como viúva, foi inicialmente exposta naquele primeiro relato historiográfico e hagiográfico e reproduzida por todas as biografias posteriores. Destacam-se: a) a meditação, a oração, a recusa da ociosidade, a maturidade e a prudência, expressas no tópico do “puer senex” 86:

86 Vd. Teresa Carp (1980), “Puer-senex in Roman and Medieval thought”, Latomus, 39, pp. 736-739; E.R.Curtius (1989), Literatura Europea y Edad Media Latina. Madrid: Fondo de Cultura Economica.

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Perpiniani, De Vita, pp. 199-201

Lenda, p. 1316

Com tal prudência governava a família, que não se imaginaria que era uma rapariga de 16 anos, mas uma anciã muito grave e sábia; era de tamanha bondade que, ainda que fosse a primeira de todas, quer em nobreza, quer em dignidade, parecia ser igual aos inferiores, pela afabilidade; tomava medidas para a utilidade comum com tal diligência, que pensar-se-ia não ter sido enviada de longe para reinar, mas oferecida para, de forma divina, conservar a salvação do reino. Ostentava visivelmente, nos atos e nas palavras, uma mansidão tão completamente admirável, que nenhum aspecto da sua vida mostrava sequer alguma aparência superficial de soberba e arrogância. (...) Lia, entretanto, os livrinhos escritos sobre piedade, nos quais de tal forma se dispunha algumas vezes, de tal forma se comovia no seu espírito, que não continha mesmo as lágrimas e o choro, mesmo na presença de outros. O restante tempo do dia consumia-o com trabalho e fadiga, para que o seu espírito, amolecendo com o ócio, não se perdesse na meditação daqueles assuntos, como hábito, pouco convenientes aos bons costumes. Dividia equilibradamente as tarefas para as suas damas e donzelas e ela própria, segundo o costume régio, sentada num trono sublime, bordava com pérolas; fazia muitas peças em ouro, em prata e em seda. E, para que o espírito, enquanto trabalhavam as mãos, não esvoaçasse ocioso, nem se generalizassem conversas pouco úteis, durante o próprio labor, falava sempre com as suas criadas, companheiras de trabalho, de questões não apenas honestas, mas mesmo piedosas e edificantes.

E esta rainha, depois que foi casada, começou seus feitos em serviço de Deus (e) em partir com os pobres do que avia e em jejunar e aver coita e piedade dos errados e apressados e a leer e aver breviario por que rezasse as oras canonicas e, as oras rezadas, entendia em sartar aljoufar e fazer e mandar fazer seus lavores a sas donas e donzelas e mandar sa casa, que seria muito de seer de 25 annos ou de trinta. E assi começou despender seu tempo das rendas de sas terras que avia, e daquelo que elrey a ela dava aviam gram parte pobres e mengoados e moesteiros e emparedadas e donas envergonçadas e mengoadas

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Rui de Pina, Crónica delrey Dom Diniz, p. 230 Ella porém com todalas obras, e sinaes de muy Santa, nom leyxava espiritualmente de ser cazada com Deos, ha quem com tanta abstinencia, e continuas orações sempre servia, e contemplava como sempre fizera, sendo donzella em caza delRey Daraguam seu padre, porque sendo cazada, por hum Breviayro por devoto costume, tinha por seu desenfadamento mais familiar, em todolos dias rezava todalas oras Canonicas, e depois desso tomava outros livros de couzas espirituaes, e devotas, e por elles lendo retraida muitas vezes com muitas lagrymas de devaçam ha viram chorar, e depois deste virtuoso officio, que cada dia ordenadamente tinha, por nom estar ocioza custumava por suas mãos lavrar, e fazer cousas douro, seda, e prata, e sobresso com suas donas, e donzellas praticava sempre em cousas devotas, e onestas, e porque sua fée fosse por obras mais perfeyta, e de moor merecimento, ella ha moor parte das suas rendas dava secretamente ha pessoas miseraveis em que sabia, que avia verguonhozas necessidades, e ha estas era tam liberal, e piedoza, e com tam limpo coração, e tam graciozo rostro lhe dava ho seu, que por ella muy verdadeyramente se dizia, que das viuvas e orfans era piedoza madre; e ella foy sempre em todas suas averssidades, e descontentamentos, que lhe socediam, muy armada de paciencia, porque nella nunqua foy conhecida ira, nem sanha (...) Era em suas palavras muy mansa, e em suas obras muy conforme ha toda humildade, sem algum levantamento de soberba (...)

b) as práticas devocionais diárias, o espírito caritativo, a humildade: Perpiniani, De Vita, pp. 200-204 Todos os dias recitava as orações solenes e estipuladas pela Igreja e as que o rito público da mesma consagrava à Virgem Maria, mãe de Cristo. Juntava-lhes, também, as orações fúnebres pelos mortos e os sete salmos penitenciais e honrava, com uma breve oração, a memória de muitos dos santos que, acima de outros, venerava com particular piedade. Para onde quer que se deslocasse, levava consigo uma capelinha magnificamente ornada de forma religiosa, muitos sacerdotes e músicos e outros ministros das cerimónias sagradas, para que lhe celebrassem o ofício divino, de acordo com a época, em cerimónia pública, com canto solene e com aparato real. A isso se entregava todos os dias e assistia ao sacrifício divino, não só com muitíssima piedade, mas também com simplicidade e humildade: aproximava-se dos degraus do altar, recitado o símbolo dos Apóstolos, tal como ensinavam as instituições e os costumes dos antepassados, e, ajoelhando-se e beijando a mão ao sacerdote, oferecia determinada quantia, ora maior ora menor, como parecesse estipular a indicação do dia; e nem, como rainha, considerava torpe para si o que, nestes tempos miseráveis, qualquer mulherzita considera desonroso e ignominioso; naturalmente a dignidade e a grandeza não são contrárias aos santíssimos costumes da Igreja, mas são, antes, uma certa opinião estulta dos homens. À tarde, regressava para as orações vespertinas que, na medida em que o costume das cerimónias sagradas requeria, os seus sacerdotes ou lhe recitavam em voz baixa, ou completavam com canto e música. (...) Já então, na verdade, ela se destacava na devoção, para além do que alguém pode crer. Ela própria visitava, não raro até pelos seus pés, ainda que fosse muito longe, todos os templos de particular santidade, onde quer que eles estivessem, nos quais ouvira dizer que estavam alguns homens ou mulheres insignes pela integridade de costumes, e ela própria lhes fornecia de forma muito liberal tudo o que soubesse que lhes era necessário para se vestirem e se alimentarem. Expiava os seus pecados com frequência, e purificava todas as nódoas e manchas morais, em confissões assíduas e cuidadosas: em três épocas no ano, o que foi uma antiquíssima instituição da Igreja, tomava humildemente o santíssimo corpo de Cristo, com sentimento de grande submissão, com notável reverência: no dia do nascimento de Cristo Óptimo e Máximo; naquele em que saiu vencedor do sepulcro, triunfando sobre a morte, e naquele em que fez descer o Espírito Santo vindo do Céu, para reforçar os espíritos dos seus.

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Lenda, 1331-1333 (...) Vivendo esta rainha casada com elrey, seu marido, despendia seu tempo e fazia vida sua per [la] maneira que se segue. Ela em cada uum dia rezava as oras canonicas e as oras de Santa Maria e dos passados e fazia comemoraçom de muitos santos e santas e saia-se aa capela que ela consigo tragia, mui rica e mui bem apostada, e diziam os seus capelães e creligos, que ela tragia, que bem sabiam oficiar e cantar, uma missa oficiada, segundo está ordiado pela santa Eigreja que se digam missas por cada uum dia do ano. A esta missa ia ela mui umildosamente oferecer, poendo os geolhos ante o sacerdote que a dizia e beijando-lhe a mão e oferecendo do seu aver certa contia em cada uum dia, acrescentando em [n]a oferta, segundo a festa e o dia era. Depois que era ora pera dizerem vesperas, viinham seus creligos e diziam vesperas e rezavam em sa presença; se fezessem ou dissesssem vesperas d’alguum santo a que, segundo a ordiaçom da Eigreja ouvessem de dizer nove lições, diriam vesperas, cantando e oficiando. (...) E ela ia a quaesquer logares e eigrejas de devoçom u soubesse que moravam religiosos ou religiosas que fezessem boa vida, segundo andava por lo reino, e per muitas vezes ia a muitas eigrejas de pee, ainda que muito alongadas fossem, dando aas eigrejas quanto lhes compria, e por qualquer logo ela fosse nom parecia pobre que dela esmola nom recebesse. (...) E per muitas vezes se confessava a seus confessores, e nunca errava que por las festas do Natal, Pascoa e Pentecoste recebesse o corpo de Deus, nosso Senhor, com grande umildade e reverencia.

c) os seus prolongados jejuns, que se estendiam por grande parte do ano: Perpiniani, De Vita, pp. 201-202: Lenda, 1331-32: Para além de pão e água, nada mais acrescentava à sua alimentação, desde o feriado de S. João Baptista até ao da Sacrossanta Virgem Maria, que se celebra a 15 de Agosto, e daí em diante, de novo, até ao dia festivo e solene de S. Miguel Arcângelo, que chamam jejum dos anjos, para além de todo o período consagrado ao advento de Cristo e o do jejum da Quaresma; e ainda, durante o restante tempo do ano e na véspera dos feriados de todos os Apóstolos e da bem-aventurada Virgem Maria e de todos os bem-aventurados, que ela venerava com particular devoção, três dias por cada semana. De maneira que era aproximadamente uma quarta parte do ano que ela se privava, neste tão difícil jejum (se se pode chamar-lhe difícil, porque ela o cumpria com a maior das boas vontades, para domar completamente os apetites do corpo) e nesta tão inacreditável abstinência.

E a rainha, em aquel tempo jejunava tres dias da domaa e vespera dos santos e avento e quareesma de guisa que ela fazia abstinencia per jejuum per mais tempo que as tres partes do ano, e jejunara mais, se nom que a reprendia elrey e nom no queria consentir e defendia a ela que nom jejunasse. E seu jejuum era per esta guisa. Ela jejunava des a festa de sam Joam Bautista atá dia de santa Maria de agosto e a quareesma que dizem dos anjos, que fazem des dia de santa Maria de agosto atá sam Miguel de setembro, e o avento e quareesma e as sestas feiras e os sabados e as vigilias dos apostolos e as de santa Maria em pam e agoa e os dias que dizem de santa Maria per todo o ano a pam e agoa e muitas vesperas de santos e santas em que ela avia devoçom e a que fazia vigilia e jejunava.

Rui de Pina, Crónica delrey Dom Diniz, p. 231: (...) hos dias que a Egreja mandava guardar ella sem quebra dalgum hos jejuava todos ha conduto, sem comer mais que huma sóo vez, e além desso fazia jejuns de pão, e agoa todalas sestas feyras do anno, e Vesperas dos dias de N. Senhora, e sobresso em toda huma quarentena, que vem em cada hum anno de S. João Baptista, até Sãta Maria Daguosto, e atée ho S. Miguel, e outra quoresma dos Anjos, que hee des ho dia de Nª Senhora Daguosto, e assi de dia de todolos Santos atée Vespera de Natal nom comia, nem bebia se nom pão, e aguoa huma sóo vez no dia, de maneyra que fazia este tam aspero jejum has duas partes do anno (...)

d) a assistência aos desfavorecidos e doentes: Perpiniani, De Vita, pp. 207-209

Lenda, p. 1333

No jejum da Quaresma, todas as Sextas-feiras, mandava convocar treze homens pobres, doentes de lepra, e conduzi-los ocultamente para os seus aposentos; lavava-lhes os pés e, restabelecidos por esta inacreditável tarefa, mandava-os partir, agraciados e munidos de dinheiro. Se alguém talvez mais curioso quiser saber a causa deste número específico, não duvidarei em afirmar, apesar de nunca o ter encontrado escrito, que eram

E em cada uma quareesma fazia estremadas esmolas a omeens e a molheres envergonçados e em dia que se diz “Cena Domini” lavava a certas molheres pobres gafas os pees e lhos beijava e vestia as de quecas, de pelotes e cerames, e dava-lhes

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Rui de Pina, Crónica delrey Dom Diniz, p. 231 E esta Rainha por sinal da sua humildade custumava em todas as sestas feyras de quoresma lavar por sy hos pées ha doze homens, hos mais leprozos, que se podiaõ achar, e esto fazia assi secretamente que ElRey particularmente ho nom soubesse (...).

treze os que costumava chamar, porque este número representa aquela santíssima assembleia de Cristo, libertador dos homens, e dos doze Apóstolos. Na verdade, na Quinta-feira, dia consagrado pela religião da Igreja Universal, em que, em santíssima cerimónia, por costume e instituição dos Antepassados, de forma salutar, se renova a lembrança da última ceia de Cristo, mandava que lhe fossem levadas, às escondidas, algumas mulheres afetadas da mesma doença, lavava os pés a todas, secava-os e limpava-os com um pano de linho, beijava-os e dava-lhes roupa nova e calçado. E assim, quando partiam, iam não tanto satisfeitas pelo presente recebido, como estupefactas por esta humildade inusitada. Nesse mesmo dia, mandava chamar até junto de si dois homens, os mais carentes de todos os que pudessem encontrar-se, um sacerdote, outro consumido pela lepra, e recomendava que lhes fosse dada roupa. Na Sexta-feira seguinte, santíssima e religiosíssima, quando se chora, num ritual solene, a morte de Cristo Salvador, com roupa vulgar e com lúgubre aparência, participava nas cerimónias divinas e ouvia um sermão acerca do sofrimento e das penas do libertador de todos os povos (...).Naquele mesmo dia, para, de algum modo, imitar aquele que, por si, tinha derramado o seu sangue e perdido a sua vida, dava abundante e copiosamente do seu dinheiro a todos os pobres, como se fosse do seu sangue. E, nestas práticas, por vezes aconteceram, de forma divina, algumas coisas que manifestamente declaram como eram aceites por Deus os zelos e feitos da excelente Rainha.

de calçar e contas por amor de Deus. E assi em aquel dia fazia entrar uum creligo ordiado de missa e uum gafo, os mais pobres que achassem, e dava-lhes de vistir. E em sesta feira maior seguinte vestia panos mui refeçes, segundo o seu estado, e ouvia sas oras e preegar a paixom, teendo gram tresteza e door, nembrando-se da morte de nosso Senhor que por nós pecadores recebera, mandando fazer em aquele dia muitas esmolas.

E na Semana Santa, na Quinta feyra de Lava pées, em lavando ha treze molheres pobres envergonhadas, huma dellas (...)

e) O auxílio a pobres envergonhados, congregações religiosas e necessitados em geral, para além da ajuda a mulheres em dificuldades ou que pudessem cair em dificuldade.

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Perpiniani, De Vita, pp. 212 E a sua munificência não se continha circunscrita às fronteiras da Lusitânia, nem a Rainha restringia a sua piedade aos mesmos limites com que se limitava o poder no reino. Muitas congregações de ordens religiosas fora da Lusitânia sentiam e não moderadamente a sua bondade. Para onde quer que se dirigisse, não acorria nenhum indigente a quem ela não concedesse benignamente uma esmola. E, assim, era já tão grande, entre todos, a opinião desta beneficência que, a qualquer templo ou outro lugar a que fosse, no próprio acesso e no vestíbulo esperavam-na inúmeros pobres para pedir e, entre os restantes, alguns, por vezes, pouco necessitados dessa esmola. Mas a Rainha, na verdade, era de natureza tão dadivosa e benfazeja, que, ainda que se apercebesse da infinita multidão que a rodeava, não permitia que ninguém partisse sem nada e de mãos vazias. Todos aqueles que encontrasse no caminho perdidos pela necessidade, mandava-os ir para casa, dotava-os de roupa e calçado; aqueles que, por outro lado, percebesse que não ousavam pedir esmola, por vergonha, ainda que precisassem, ela própria, com a sua fortuna, clandestinamente, não apenas aliviava, mas até sustentava.87

Lenda, pp. 1332-34 E polas esmolas que ela fazia, quando sabiam que viinha de uum logar pera outro, asseentavam-se per los caminhos, em nas entradas das vilas e logares, muitos omeens e molheres e moços, pera receber aquela esmola, e, por muitos que fossem, nom parteria nenhuum sem esmola, assi o mandava ela fazer por aqueles que aquela esmola aviam a dar, e muitos e muitas a que aquela esmola nom era mui compridoira se asseentavam ali com os pobres pera receber esmola, avendo devoçom em ela. [A] muitos pobres que viia viir per caminho mandava dar de vestir em sa casa, visitava as enfermas, poendo em elas as mãos mui sem nojo, e mandando elas pensar, segundo a door que aviam o demandava. (…) Em cada uum ano dava certos moios de triigo em nos seus celeiros aos moesteiros que avia em Portugal de Frades Pregadores e Meores e Correadores e Carmelitas, segundo viia que compria e o logar era. E assi aviam dela as donas d’algumas Ordeens, a que ela entendia que era compridoira, sa esmola, e dava aos moesteiros per las vilas por u ia esmolas, ao que viia que compria, e pitanças, e esto fazia a muitos fraires e freiras que eram dos moesteiros fora de Portugal que a ela viinham demandar esmola; e muitos religiosos e religiosas avia em no reyno de Portugal e fora que em cada uum ano esmola dela, pera se vestirem, recebiam. 18. Não soomente o seu aver era partido com os pobres, mais com outros muitos e muitas a que ela dava o seu aver bem francamente, dizendo que alguuns que parecia que nom avia mester darem a eles, que era mais compridoiro que a alguus pobres e dizian aqueles a que do seu aver dava que adiante iam com elo que lhes dava.

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87  Sobre a assistência da rainha aos necessitados, leia-se F. Félix Lopes (1972), “Breve apontamento sobre a Rainha Santa Isabel e a pobreza”, separata de A Pobreza e a Assistência aos Pobres na Península Ibérica durante a Idade Média, Actas das 1as Jornadas Luso-Espanholas de História Medieval – Lisboa, (pp. 527-545). Angela Muñoz Fernández (1989), “Santa Isabel Reina de Portugal: una infanta aragonesa paradigma de religiosidad y comportamiento femenino en el Portugal bajomedieval.” in Actas das II Jornadas Luso-Espanholas de História Medieval. Porto: Instituto Nacional de Investigação Científica, pp.1127-1143.

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f ) a paciência perante as infidelidades do marido e os filhos bastardos, de cuja criação se ocupou: Perpiniani, De Vita, p. 229

Lenda, pp. 1319-1320:

A princípio, Dinis, quando era de natureza moderada e grave, vivia da forma mais unida com a Rainha, como era digno de um rei ilustre. Aquela concórdia era querida e agradável para o povo, uma vez que viam que nenhum deles negligenciava os deveres para o outro, e que o casamento se conservava sem pecado nem mácula. Mal tinham passado poucos anos, porém, quando o Rei, arrastado ou pela mudança da idade ou pelos conselhos infamantes de alguns homens (se pode chamar-se conselho aquilo que arranca todo o juízo do espírito àqueles a quem são dados), mas corrompido pelo hábito e pela conversa quotidiana de uns certos e induzido a fazer mal, por homens sem valor, como transferisse o seu amor para outras mulheres, começou a afastar-se da esposa, ainda que ela nada tivesse que merecesse ser desprezado. E assim, ele gerou sete filhos, cada um de sete mulherzitas: um Afonso Sanches, de cognome Albuquerque; dois Pedros, dos quais, um, ilustre varão, fez conde; João Afonso; Fernando Sanches; duas mulheres de nome Maria, das quais uma casou com João Cerda, irmão do rei Sancho, a outra viveu religiosamente, iniciada nos sacramentos das freiras cistercienses, naquele mosteiro que o pai mandara construir junto da cidade de Lisboa. (...) De seguida, os filhos que ouvisse dizer terem nascido ao Rei, noutro lado, até para o arrancar do prazer, com este comportamento, cuidava de os mandar trazer para junto de si; educava-os como seus, fornecia-lhes comida e roupa, entregava-os a homens honestos e probos para serem educados; a estes meninos não os abraçava com menor entusiasmo, não os tratava e dotava de menos honrarias do que se tivessem sido colocados à sua guarda, como seus filhos.

E, vivendo elrey D. Dinis e a rainha aguardando aquelo que se deve guardar antre casados, elrey D. Dinis foi enduzido por alguuns, que o queriam envolver em pecado de luxuria pera o luxuriarem pera aver outras molheres e pera o afastarem da casa da rainha, e encomençou a teer barregãas e molheres mancebas e aver filhos delas. E a rainha, pero que fosse em aquel tempo molher manceba e esto que elrey fazia soubesse, dava a entender ao mundo que por aquelo nom dava cousa; e quando a ela diziam: «Ora tomou elrey tal por barregãa», entom ela, pera dar a entender que dava pouco e nom curava de tal cousa, começava a rezar e a leer por seus livros ou a departir em alguas cousas que fossem a louvor e serviço de Deus com sas donas e donzelas. (...) E ouve elrey filhos e filhas, os quais sofria a rainha e mandava que se veessem ante ela e dava a eles de vestir e de comeer e criava-os; e assi fazia aos ayos, fazia a todos muito bem e muita ajuda. E maravilhavam-se os da terra, por seer de tam pouco tempo meninha e manceba, de seer de tanto entendimento e de tanta mesura e nom filhar em si pesar, nem nojo. nenhuum de tal cousa, de que soem as molheres receberem gram nojo.

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Rui de Pina, Crónica delrey Dom Diniz, pp. 234-235 E álem destes filhos legitimos. ElRey D. Diniz sendo cazado, ouve doutras molheres com que teve afeiçam sete filhos, e filhas bastardos, cada hum dos quaes foy filho de huma madre (.....). Hos quais filhos bastardos ElReyD. Diniz assi ouve, vencido da sobeja deleytaçãm de sua propria carne, com que afastandose da Rainha sua molher nom lhe guardando ha inteyra ley do matrimonio, seguia por indusimentos falsos, e máos, ha que se inclinava mais por sua vontade, do que por sua dinidade Real, e por sua consciencia, e onestidade, sobresso devia, e por culpa, e peccado desso se diz, que em quanto ElRey D. Diniz se deu a estes apetitos nom licitos, sempre decrinaram has cousas dajustiça, que muito amou, e boa guovernança de sua caza, e fazenda, que sobre todos soya melhor ter e ha Rainha posto, que neste tempo era em idade, e feyções, e desposiçam pera ElRey se della muito contentar, e ella dever sentir hos taes apartamentos e solturas delRey, porém se diz, que ella nom mostrava receber por esso payxam, nem escandalo algum, antes como esquecida, e nom toquada de dores, e paixões tam comuns ha molheres, nom perdia ha devaçam, e exercicio de rezar, e encomendarse ha Deos, e de partir alegremente com suas molheres em cousas honestas, e de serviço de Deos, e sobre esto fazia ho que parecia mais duro, e menos pera fazer, que era dar de vestir às amas, que criavam hos taes filhos delRey, e fazer, e procurar merces ahos ayos, que hos ensinavam.

As suas fundações de carácter religioso e assistencial encontram-se também elencadas na Lenda. A rainha apoiou e patrocinou um número significativo de instituições, durante a sua vida e mesmo depois da morte, contemplando-as com abundantes donativos no(s) seu(s) testamento(s): albergarias, hospícios, mosteiros, gafarias, orfanatos, entre outras. De algumas delas faz Perpinhão, na monografia, o ponto da situação, nomeadamente do Mosteiro de Almoster, cuja construção completou e dotou, do Mosteiro de Santa Clara, que (re)fundou e dotou, e das construções anexas, do Hospital dos Meninos Inocentes de Santarém, entre outros. Sobre a fundação do primeiro, as palavras de Perpinhão ecoam as da Lenda: Perpiniani, De Vita, p. 217 Berengária, uma senhora nobre a abastada, da antiga família dos Aires, mulher de Aires Garcia, varão importante, desejosa de ser benemerente, começou a edificar, a seis mil passos de Santarém, na direção de Lisboa, um mosteiro para freiras cistercienses, que vulgarmente se chama Almoster. Ainda não estava completo e edifício, quando a piedosa senhora adoeceu gravemente; sentiu que estava prestes a morrer e via que não podia acabar a construção do edifício; deixou, então, a tarefa recomendada e atribuída a Isabel, cujo espírito conhecia bem. E esta, depois da morte de Berengária, assumiu a construção, administrou-a e completou-a. Fez construir um claustro, com compartimentos de superior dimensão e dignidade; concluiu a enfermaria e algumas outras partes do edifício; às mulheres consagradas à religião dava dos seus bens quando via que era necessário.

Lenda, pp. 1335-36: Uma boa dona, a que chama[v]am Beringueira Ayras, fundou uum moesteiro de monjas da Ordeem de Cistel acerca de Santarem, u dizem Almoester, e ante que o moesteiro fosse acabado, morreo-se aquela boa dona que o fundara. E, entendendo a boa dona em como esta rainha desejava pera serviço de Deus crecer e como era ajudador de voontade que com boas obras, u quer que se faziam, cuidava que [a] este logar, que ela fundara e começara viir a acabamento, (e) esta rainha quisesse do seu aver fazer esmolas, pera se melhor poderem manteer a serviço de Deus aquelas donas que i viviam e acrescentar e levar adiante e manteer aquelo que era começado em aquel monte. Esta rainha, pera ir adiante o que era começado pera serviço de Deus, filhou depos morte daquela dona aquele moesteiro so si e fez do seu aver a castra e enfermaria e outras casas e obras, e de todo as visitava por vezes e dos seus beens e lhes fazia esmola e bem, segundo via que compria, e pedio-lhe por mercee que quisesse aver aquele moesteiro em sa encomenda.

A rainha D. Isabel patrocinou instituições de apoio aos órfaos, como o Hospital dos Órfãos de Lisboa, que contemplou no seu testamento, e fundou, juntamente com o bispo da Guarda, D. Martinho, que também fora seu médico, bem como de D. Dinis, o Hospital dos

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Inocentes que, no séc. XVI, foi incorporado no Hospital de Jesus, de Santarém, e, depois, na Misericórdia local 88 . Depois da morte de D. Martinho, D. Isabel encarregou-se do Hospital, acrescentou-lhe possessões, rendas e casas e deixou-lhe, ao morrer, mil libras em testamento (vd. infra) 89.

88 Perpinhão dá conta, no seu relato, do destino dessa instituição até ao século XVI (vd. supra). 89  Extratos do «Compromisso ou ordenanças do Hospital dos Inocentes de Santarém, para enjeitados, feito e selado por seus fundadores, a rainha Santa Isabel e D. Martinho, bispo da Guarda, em Santarém, a 12 de Dezembro de 1321» (citado em Lopes (1972), pp. 180-182): (…) Nos, Reynha Dona Isabel e Martinho pella mercee de Deos e da sancta Igreja de Roma bispo da Guarda, conhecendo a Deos, assy como nós podemos, o bem e a mercee que nos sempre fez sem nosso merecimento, (…) outrosy intendendo que he muy bem empregada a esmolla em aquel que per nenhua guisa não pode guanhar nem aver honde viva, (…) Porende cuydamos em nossos coraçõoes de fazer, com a ajuda de Deus e dEl Rey, huum Ospital na villa de Santarem, aa porta de Leirea, a que demos e damos nossas herdades e vinhas e casas e olivaaes e outras possissõoes que compramos(...) E queira Deos que hynda hy mais acrescentaremos pera se criarem hy mininos e enjeitados(...) E mandamos que do al que ficar desse Ospital, da renda delle, que se crieem hy mininos e mininas engeitadas, quantos se hy poderem crear bem. E entendemos por mininos e mininas engeitadas, aquelles que alguuas molheres conceberam, e, tanto que os parem, com medo ou com vergonça ou com outros seus grandes pecados, querendo ante perder as almas que lhy lo saberem, e mandam os deitar pelas augoas e pellas carreiras e pellas corcovas e pellos rios e em outros logares hu os nam possam achar senam de ventura. E asy se perdiam as almas suas e daquelles que assy deitavam, que morriam sem baptismo. Destes taaes asy engeitados mandamos quantos ende aduserem a este nosso Ospital, que os crieem hy e os mantenham asy como de juso sera dito, segundo quanto os bees e as esmollas do Ospital os poderem manteer. E os filhos dos outros pobres, que sas madres andam per as portas e pellas albergarias, e os outros pobres canoões que criam com suas molheres por sa lazeira, estes taaes nam mandamos nos ende hy receber nenhum, mas recebamnos nas albergarias como teverem por bem (...). E depois que forem bem creados, mandamos que os façam bem ensignar a mesteres aa custa do Ospital, como entenderem nos moços e nas moças que lhes sera mais convinhavel. E depois que forem em tal estado que per seus mesteres possam viver, vãaose aa boa ventura. E enquanto forem pequenos que lhes cumpram amas, demlhas a elles e a ellas o que fezer mester pera sa criança.(...)

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Perpiniani, De Vita, pp. 219-221 Mas parece ainda muito maior certamente o que se segue. Viveu, nesses tempos, Martinho, Bispo da Guarda (que foi outrora Egeditano), homem, como esta situação por si só revela, muito zeloso do bem público. Estaria ele talvez em Santarém, com o Rei Dinis, chamado por ele por razões justas e oportunas. Via que muitos meninos recém-nascidos eram expostos pelos pais, ou por pobreza ou por vergonha; que não havia constituída para eles publicamente qualquer proteção, qualquer refúgio; que, a não ser que acudisse a misericórdia de homens bons e abastados, havia o perigo de muitos morrerem e de os inocentes sofrerem castigos injustos, quer pela ação desonrosa, quer pelo crime, quer pela pobreza dos seus pais. Percebia que, de forma nenhuma, podia impedir-se que os expusessem; e, muitas vezes, ainda que pudesse, o homem prudente sabia, todavia, que não convinha. Empreendeu, então, a construção de um orfanato, em nome de Maria, Mãe de Cristo, e dos Santíssimos Meninos Inocentes, onde fossem educados cuidadosamente os bebés expostos pelos pais, para que os inocentes meninos, antes de terem idade de compreender, não corressem perigo da vida, nem aqueles que os tinham exposto fossem forçados a suportar o peso da ignomínia, da ira dos seus ou da pobreza intolerável. Antes deste empreendimento chegar ao fim, achacado pela doença, como percebesse que estava próximo o último dia da sua vida, pediu veementemente e procurou obter da Rainha que tomasse a seu cargo o assunto empreendido e que, com a sua palavra, autoridade e recursos, o financiasse, para que uma obra tão necessária não ficasse inacabada. (...) Quando estavam criados e chegavam àquela idade em que podiam suportar o trabalho, mandava-os levar para serem instruídos por artesãos, de modo que cada um aprendesse aquela arte para a qual a sua natureza fosse mais inclinada. De imediato, logo que podiam, com a sua arte e ofício, procurar garantir o seu sustento, nada recebiam da sua antiga casa. Se, porém, oprimidos pela doença, não tivessem teto sob o qual se abrigassem, ou dinheiro para que se alimentassem, quis a Rainha que fossem recebidos no mesmo lugar e ali fossem alimentados e curados, até que partissem desta vida ou simplesmente enquanto convalesciam. Com efeito, uma vez que os seus pais eram desconhecidos, dizia que era necessário que aquela casa, na qual tinham sido educados, fizesse o papel dos pais miseráveis e carenciados; ali, quando a necessidade os obrigasse, eles deviam refugiar-se, como se fosse a proteção de uma mãe.

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Lenda, pp.1335-36; 1339-40 E ouve em tempo desta rainha uum bispo em [n]a Guarda, a que diziam D. Martinho, e começou a fundar uum esprital a onra dos Inocentes na vila de Santarem em que se criassem meninhos engeitados. E, veendo este bispo que seu tempo que se queria comprir e acabar, pedio a esta rainha que quisesse em si filhar aquel esprital e o quisesse em sa encomenda e que esto fezesse por serviço de Deus e pera nom desperecer aquelo que el fezera, nem se tornasse em outros usos. E a rainha outorgou a este bispo aquelo que lhe em esto demandava, pera fazer em elo serviço a Deus, e depos morte do bispo filhou em seu defendimento o que o bispo ordiara, que certos moços se criassem em aquel esprital. A rainha depos morte do bispo mandou tirar quantos naquel logo lançassem ou engeitassem e crescentou em nas possessões e rendas e casas, e mandava em aquel logar criar os meninhos e manteer certos pobres a que em aquel logo davam de comeer e de vestir. (...)E, quando aaquel logar chegava, fazia ante si trager aqueles meninhos e meninhas e engeitados e ali os criavam e as amas que os criavam e fazia-os poer ante a sa mesa, e dali dava a eles de comeer e, des que eram criados e creçudos, mandava-os poer a mestres e, des que aprendiam mester per que a eles dava assaz de comer e de vestir, dali em diante nom lhes dava cousa do esprital, pero que mandava a rainha que, se door ouvessem ou fossem enfermos, des que per si vivessem e nom ouvessem donde se proveer podessem em [n]a door, que tornassem enfermos pera este esprital u foram criados, que os recebessem e lhes proveessem, segundo a eles comprisse. E esto dizia que mandava fazer, porque a estes, em aquel logo criados, nom erom sabudos padres, nem madres, nem parentes e por ende era de razom que e(m) na necessidade ouvessem acorrimento a este logar, que os criara em logo de madre.

Muitas destas instituições de assistência destinavam-se a mulheres de todas as condições: para além de criar, em sua casa, filhas de fidalgos a quem destinava marido e dote para casamento ou vida religiosa, providenciando-lhes, em qualquer dos casos, um futuro confortável, criou hospitais e outros tipos de apoio para mulheres pobres “envergonhadas”, desamparadas, que apresentavam grande risco de se virem a perder por falta de meios de sustento. Perpiniani, De Vita, pp. 213-215 Da mesma forma, onde soubesse que havia raparigas a quem a pobreza poderia impelir a usarem o seu pudor para sustento, tratava de mandar comprar e arranjar roupa em abundância; confiava a alguma mulher honesta da sua aldeia, castelo ou cidade, à qual acreditava que a tarefa podia ser entregue corretamente sem perigo, a repartição por todas ocultamente e, da mesma maneira, a análise do que exigia a indigência e o perigo de cada uma. Para além disso, a muitas, para que nenhuma desonra ou mancha de torpeza as tomasse, casava-as muito honestamente, enriquecidas e ornadas de dote. Onde quer que soubesse que alguma mulher, principalmente nobre, tivesse caído de grande riqueza para a miséria, às ocultas dava dinheiro em abundâcia para o seu sustento e fazia isto com todo o entusiasmo durante todo o ano, mas com muito mais entusiasmo ainda nos dias da Quaresma. E dava não só aos mendigos e pobres, mas também a muitos outros, para que tivessem com que comprar a comida e a roupa.

Lenda, pp. 1334-1340 1334-35 Per alguuns logares do senhorio de Portugal foi, que lhe disserom que avia i molheres de bõo logo e outras que eram mancebas e pobres, e com a mengoa que nom aviam onde o vestir ouvessem, que verriam a fazer de seu dano, e mandava esta rainha filhar peças de panos e mandava chamar alguma boa dona daquela vila de que ela fiava, e mandava a ela que partisse aqueles panos por aquelas moças a que visse que compria, e esto fazia ela ascondudamente, segundo sabem alguuns e algumas de sa casa. E a muitas dava do seu aver, pera as casarem e nom viirem per mengoa a fazerem dano nos corpos.

Em sua casa, alimentava e tinha consigo os filhos de honestíssimos cavaleiros e de nobres varões, aos quais, em chegando à idade madura, dava ora maridos, ora esposas, com a maior honra, ou arranjava-lhes um outro modo de vida, qualquer que fosse aquele que eles próprios preferissem. E concedia a todos, tirando dos seus bens, quanto exigissem a dignidade dos homens e os modos de vida adotados. Pelo que, vulgarmente, por causa desta enorme liberalidade para com todos os homens, de qualquer sexo, idade ou classe que fossem, principalmente para aqueles que via terem sido destituídos de toda a esperança e recursos, num elogio único, já era designada como mãe das viúvas e dos órfãos. Em Leiria (cidade que lhe fora atribuída), nos paços por si mandados construir, sustentou com os seus recursos, enquanto viveu, uma quantidade muito grande de mulheres honestíssimas que, levadas de uma razoável opulência à miséria, por honesto pudor, eram impedidas de mendigar.

1340 Em sa casa se criavom filhas de muitos nobres omeens e filhos de cavaleiros e doutros omeens e, des que eram de idade e achavam casamentos a si iguais, casava-os, e outras puinha em Ordeem, segundo a cada uma Deus procurava, e dava a elas do seu aver, segundo a pessoa que era e o estado que filhava.

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1353 E em sa vida manteve em Leirea, que era sa vila, uum esprital de molheres pobres envergonçadas, que do seu ouverom algo e tornarom em pobreza, a que dava de comeer e vestir.

Instituiu também casas de recolhimento para prostitutas, para que pudessem mudar de vida. Nem sempre o sucesso foi o desejado, como revela Perpinhão no seu relato quinhentista: Perpiniani, De Vita, 321-22

Lenda, 1351-52

E àquelas mulheres apanhadas e seduzidas pelas tentações do prazer, que se sabia estarem dominadas por toda a infâmia, esforçava-se por encaminhá-las daquela fealdade de vida e de deboche, para o culto do pudor e da boa reputação e para a santidade de costumes. Se essas, por repugnância, arrependidas da vida levada anteriormente, retomassem o caminho certo, deixando aquele erro, zelando pelo seu pudor e dignidade, estabelecessem conservar íntegra para a posteridade a sua alma, livre de toda a mancha do prazer, a essas dava-lhes comida, roupa e dinheiro para o seu sustento, para que não fossem forçadas a procurar, na falta de qualquer coisa, o que lhes faltasse, na flor da idade. Estipulou que se construísse e equipasse uma casa com abundantes recursos, onde qualquer uma delas se emendasse, deixando aquela intemperança e impureza, e que fossem alimentadas e vestidas, e instruídas nos melhores e mais saudáveis ensinamentos e preceitos, para toda a honestidade e virtude, para cujo efeito designara não apenas o lugar, mas até já comprara casas em Coimbra. Na verdade, como via que era difícil que aquelas que abertamente se tinham prostituído, permanecendo na mesma cidade na qual tinham vivido até ali, da forma mais desavergonhada e afrontosa, se contivessem e fossem arrancadas dos seus propósitos, fosse pela conversa, fosse pela própria visão, fosse finalmente pela silenciosa recordação daqueles com os quais tivessem mantido aquele velho hábito da prostituição, mandando-as para longe, para Torres Novas (que é uma cidade não muito longe de Santarém) fornecia-lhes em abundância o sustento necessário. Descobriu, porém, que a sua beneficência e indústria eram desprezadas por aquelas mesmas em favor das quais se fazia a despesa e se assumia tal cuidado, as quais, tendo o velho hábito obtido a força da natureza, em breve, voltavam a si próprias e aos seus costumes, não conseguiam privar-se da sua antiga libertinagem e preferiam ser torpemente escravas dos prazeres do corpo, mesmo na maior indigência, a fruir de forma louvável a verdadeira liberdade de espírito, na maior abundância de todas as coisas. Considerando, enfim, mais útil gastar qualquer esforço ou dinheiro noutras coisas, deixou de querer corrigir aquelas que não tinham vontade de ser corrigidas, as quais muito difícil e arduamente se controlavam no seu ofício, mesmo que quisessem.

Outro si per ela nom mengava de tornarem algumas de pecadores a peendença e, pera que se arrepeendessem do pecado que faziam, e dava-lhes de vestir e de seu aver e queria pera elas fazer uum esprital, e teve em Coimbra as casas feitas pera elas, senom porque achava d’algumas, que eram pruvicas, e mandava-as manteer em sa vila, a que dizem Torres Novas, pera se partirem daquele publico pecado, e dava-lhes de comeer e de vestir, que depois leixasse todo o que lhes fazia, se tornassem a pecar.

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Tanto em vida, como na morte, como se pode verificar pela leitura dos seus testamentos, as mulheres de todas as classes foram alvo da sua atenção e favorecidas com a sua atuação; também as religiosas de todas as ordens, mas principalmente clarissas, foram favorecidas com donativos e patrocínios. Na verdade, o seu espírito transparece nestas palavras da Lenda90: E per u ia e achava que se começava eigreja ou esprital e pontes ou fontes queria ela i do seu aver poer, pera ajudar a fazer e pera seer quinhoeira em toda a boa obra que se fezesse.

II.5. Conflitos Perpinhão investigou a vida da Rainha, nos documentos historiográficos produzidos após a sua morte, com o cuidado e o entusiasmo que punha em tudo o que fazia. Desenvolvendo as informações da Lenda, relatou todos aqueles conflitos em que ela interveio, de alguma forma; destacou a sua faceta política, que revelou ao apelar à rede de relações familiares e ao intervir diplomaticamente, quer a nível interno como externo, ganhando, assim, fama de pacificadora. Dos conflitos que viveu enquanto rainha da Portugal, o primeiro foi o que se travou entre o marido e o cunhado, o Infante D. Afonso; o segundo, entre o marido e o rei de Castela, D. Sancho IV, e, depois da morte deste, os tutores do herdeiro, D. Fernando IV, seu prometido genro; o terceiro, entre os reis de Aragão e de Castela, seu irmão e genro respetivamente, no qual acompanhou o marido na arbitragem dos interesses dos conflituantes; o quarto, entre o marido e o filho; e, finalmente, entre o filho D. Afonso IV, e o neto, Afonso XI de Castela: no decurso desta última intervenção, acabaria por falecer em Estremoz.

90  Lenda,

p. 1335; Perpiniani, De Vita, p. 215.

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D. Isabel de Aragão interveio, com mais ou menos protagonismo, nos vários conflitos; o primeiro, pouco depois de ter chegado a Portugal, foi aquele que opôs D. Dinis a seu irmão, o Infante D. Afonso.

5.1. D. Dinis contra seu irmão, D Afonso Na versão de Perpinhão, as causas apontadas para as hostilidades eram as seguintes: D. Afonso herdara do pai os domínios de Portalegre, Marvão, Castelo de Vide e Arronches, na região fronteiriça, com a condição de estes passarem, por herança, para os filhos homens, nascidos de casamento legítimo, situação que não se verificando, levava a que os territórios voltassem para a Coroa. Morto o filho, D. Afonso solicitou ao irmão que as filhas fossem consideradas herdeiras legítimas para poderem herdar esses territórios. Sendo elas, porém casadas com nobres oriundos de Castela, onde se desenrolavam conflitos gerados por questões dinásticas, a situação tornava-se delicada, pois tratava-se de uma zona estrategicamente situada na fronteira com Castela. Por outro lado, o Infante D. Afonso assumia uma posição arrogante de desafio, por se considerar o herdeiro legítimo do trono, uma vez que afirmava ter nascido quando o casamento de seus pais já estava legitimado, o que não se verificava quando nascera D. Dinis. Ainda segundo o relato de Perpinhão, a Rainha D. Isabel opôs-se à legitimação das filhas do Infante e manifestou-se contra esta pretensão; D. Dinis secundou-a e o conflito começou a anunciar-se; D. Afonso convocou os genros em seu auxílio; estes eram hostis a D. Sancho IV, rei de Castela, com quem D. Dinis tinha recentemente feito um pacto de amizade, reforçado pelo projeto de futuros laços de parentesco, pelo que a situação se agravou; o rei castelhano queixou-se, então, ao rei português por dar refúgio em Portugal aos seus inimigos. D. Dinis ordenou ao irmão que não acolhesse inimigos de Castela, com a qual tinha assumido um compromisso de paz. D. Afonso não obedeceu e

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declarou-se o conflito, em 1289; D. Dinis uniu-se a D. Sancho IV e ambos atacam D. Afonso e os aliados nos seus domínios: Portalegre, Marvão e Arronches; aí acabou o infante por ficar cercado e, após negociações em que interveio D. Isabel, rendeu-se e entregou os seus territórios em troca de Sintra, Ourém e outros mais rendosos, cedidos pela Rainha. De acordo com os estudos atuais, 91 pode traçar-se o seguinte percurso para os acontecimentos: tendo recebido de seu pai, em 1270, os territórios referidos por Perpinhão (Marvão, Portalegre, Arronches e Vide, com todas as rendas e direitos), com a importância estratégica que também aquele lhes reconhece, com a condição de os poder legar ao filho legítimo mais velho ou, na falta deste, à filha legítima mais velha, D. Afonso resolveu, em 1281, fazer muralha e torre em Vide, prerrogativa que cabia apenas ao rei; D. Dinis dirigiu-se a Vide, no sentido de o advertir e forçar retroceder nos seus propósitos; o conflito foi evitado graças às intervenções de D. Pedro III de Aragão, pai de D. Isabel, de D. Beatriz e de D. Branca, mãe e irmã respetivamente dos contendores; D. Afonso foi compensado financeiramente mas foi obrigado a tornar-se vassalo de D. Dinis e a reconhecer a soberania deste nos seus territórios. Alguns anos depois, os problemas dinásticos de Castela, após a morte de D. Afonso X, vieram causar divisões entre os dois irmãos; D. Dinis apoiou as pretensões de D. Sancho IV, que se assumiu como rei de Castela, Leão, Andaluzia e Badajoz; D. Afonso apoiou as pretensões do Infante D. João, a quem o pai, D. Afonso X, tinha deixado Andaluzia e Badajoz, bem como as dos seus partidários 92, dando-lhes guarida e apoio militar, de modo a poderem fazer facilmente guerra a Castela, a

91 Para esta questão, consultem-se os estudos de F. Félix Lopes (1964), “O infante D. Afonso irmão de el-rei D. Dinis”. Itinerarium 10, pp. 190-220; Sotto Mayor Pizarro, (2008); Andrade (2012); História de Portugal – A monarquia feudal. (1997), Dir. José Mattoso. Lisboa: Editorial Estampa; Nova História de Portugal. (1996), Dir. Joel Serrão e A.H. Oliveira Marques. Lisboa: Editorial Presença (Vol. III – Portugal em definição de fronteiras: do Condado Portucalense à crise do século XIV. Coord. Mª. H. Cruz Coelho e A. L. Carvalho Homem). 92 O apoio e a associação entre o infante e Álvaro Nunes de Lara, em guerra aberta com o seu senhor, D. Sancho IV, aliado, por sua vez, a D. Dinis, levou a que estes cercassem D. Afonso em Arronches durante os meses de outubro e novembro de 1287.

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partir dos seus senhorios. D. Sancho queixou-se a D. Dinis que advertiu o irmão mas, face à intransigência deste, desencadeou-se novo conflito, em 1287, juntando-se D. Dinis e D. Sancho para atacar o Infante em Arronches. Para solucionar o problema, acudiram de novo a irmã e a mãe, D. Branca e D. Beatriz, bem como as rainhas de Portugal e Castela, D. Isabel e D. Maria de Molina. O Infante cedeu em poder, mas saiu da contenda igualmente rico. Com o decorrer dos anos, surgiu a questão da legitimação das filhas do infante, uma vez que o seu casamento não fora legitimado pelo Papa, pelo parentesco que o unia a sua mulher. Uma vez que não o conseguiu do Papa, solicitou-o ao irmão; apesar da oposição manifesta de D. Isabel, D. Dinis acabou por legitimar as sobrinhas, mas tal facto não serviu ainda para acalmar os ânimos. Os conflitos recomeçaram em 1299 e, de novo, só com o recurso à mediação de terceiros se solucionou; o papel de D. Isabel, cedendo os seus territórios de Sintra e Ourém ao cunhado, em troca dos fronteiriços, foi decisivo. O conflito teve então o seu desfecho. Perpinhão fundamentou-se escrupulosamente, como faz questão de ir lembrando, em documentos escritos acessíveis nas bibliotecas dos mosteiros, nomeadamente os acima citados. Atribuía a arrogância e a desobediência manifesta de D. Afonso, entre outras razões, ao facto de este se considerar com mais direitos ao trono que D. Dinis, apesar de mais novo, alegando que este nascera antes da morte da primeira esposa do pai, D. Matilde, condessa de Bolonha, não sendo ainda consequentemente legítimo o segundo casamento, com D. Beatriz, mãe de ambos, mas que ele, D. Afonso, nascera já depois da morte da Condessa e quando o casamento dos pais era já legítimo. Poderá haver aqui algumas incorreções. Sobre esta pretensa alegação de D. Afonso de se considerar legítimo, ao invés do irmão mais velho, a investigação de F. Félix Lopes 93 revelou que a situação de ambos era perfeitamente igual, concluindo:

93  Lopes

(1964), pp. 192-193.

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Sendo assim as coisas, à face da Igreja e do mundo a situação de D. Dinis e D. Afonso era perfeitamente igual. Ambos eles haviam nascido depois da morte da condessa Matilde, e por isso ninguém os podia acoimar de filhos adulterinos; e ambos eles haviam nascido filhos naturais, só depois legitimados pela subsequente validação do casamento dos pais com a dispensa papal do impedimento de parentesco. E por isso o infante D. Afonso que bem sabia como tudo fora e falava com gentes que também sabiam, nunca poderia reclamar direitos à coroa de Portugal, alegando que “nascera legítimo depois da morte da condessa de Bolonha primeira mulher del-rei seu padre e que el-rei D. Dinis ainda nascera em sua vida dela e não podia herdar” segundo escreveu Rui de Pina e com ele Duarte Nunes; ou que “nascera legitimado já pelo Pontífice, e dispensado por ele mesmo o casamento de seu pai com a rainha D. Beatriz, mas não assim seu irmão D. Dinis que nascera antes de dada a tal dispensa”, segundo quis emendar Fr. Francisco Brandão. As pretensões do infante D. Afonso à coroa de Portugal são com certeza enfeites emprestados pela lenda às suas arrastadas discórdias com o irmão D. Dinis.

Acrescenta, no entanto, a seguinte informação em nota, mostrando que a alegação dessa motivação não era recente mas estava firmada já na memória: As datas da morte da condessa Matilde, do nascimento de D. Dinis e de seu irmão D. Afonso, da validação do Papa do casamento de D. Afonso III com D. Beatriz, de modo nenhum suportam a explicação das discórdias entre os dois irmãos dadas por Duarte Nunes, Rui de Pina e fr. Francisco Brandão. Note-se todavia que esta explicação já aparece no Breue Chronicon Alcobacense, editado em “PMH. Scriptores”, I, 21, segundo texto atribuído ao séc. XIV: o infante D. Afonso afirmava que ele “deberet regnare, eo quod adhuc uiueret comitissa Bononiae cum Dyonisius natus fuisset, et quando ipse

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Alfonsus natus extitit, iam comitissa obierat, et sic dicebat quod Dyonisius erat illegitimus et ipse legitimus”. Cedo, pois, se apossara a lenda das discórdias entre os dois irmãos.

Sobre estas pretensões de D. Afonso não fala o Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, composto alguns anos depois dos acontecimentos, nem refere este conflito; por sua vez, a Crónica Geral de Espanha de 134494 não refere qualquer motivo para o conflito que deflagrou entre os irmãos: E este rey dom Denis, logo en começo de seu regnado, ouve cõtenda com seu irmãao, o iffante dom Affonso, que se movya contra elle sem razõ. E elle, non querendo catar ao seu movimento, deulhe muyta terra e poselhe grande contia e fezelhe muyta mercee. E despois per tempo o iffante dõ Affonso esposou hua sua filha cõ dom Alvaro Nunez de Lara, filho de dõ Joham Nunez, o gordo. E este dõ Alvaro Nunez era deitado de Castella; e das fortallezas do iffante dõ Affonso, fazia muyto mal en Castella. E, veendo esto el rey dom Sancho, enviousse querelar a el rey dõ Denis, cõ que avya grandes lianças e amor, como da sua terra lhe era feito muyto dãpno e que, se lhe nõ pesasse, que elle tornaria a ello. E el rey dom Denis envioulhe dizer que lhe pesava muyto. E de tal guisa foy crecendo este feito que se ouverõ d’ajuntar ambos os reys e deitarõsse sobre Arronches que era do iffante dõ Affonso. E elle e dom Álvaro Nunez eram entõ en Portalegre e preitejarõ de dar a villa a el rey dom Denis e que elle desse por ella escãybo ao iffante. E elrey deulhe por ella muy grande terra chãa e muy boa que valya mais em renda que tres vezes Arronches. E, despois que esto foi feyto, os reys firmarõ antre sy lianças de grande amor e desy foronsse cada huu pera sua terra.

94  Cintra, Luís Filipe Lindley (ed.) (1951-1990), Crónica Geral de Espanha de 1344, vol. IV. Lisboa: Academia Portuguesa de História e Imprensa Nacional Casa da Moeda, pp. 243-244.

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As Crónicas dos Sete Primeiros Reis de Portugal

95 ,

no entanto,

referem a causa, sem falar da pretensão de D. Afonso em herdar o trono, por ser legítimo e D. Dinis, ilegítimo. De acordo com este relato, o conflito assentava na questão da legitimação dos filhos de D. Afonso, para poderem herdar os territórios já referidos: […] Mas a prjmçepall cousa e majs certa, era porque lhe elRey D. Dinjs nom querja ligitimar os filhos, que ouve de Dª Violamte, que pudessem erdar os seus beems depojs de sua morte, por que ele dezia que deujom de fazer guera e paz daqueles castelos e a quem os ele mandase. E porque D. Afonso dise, que não farja, ouve elRey muj grande sanha dele, e permeteo que o fose çerquar e lhe tomase os castelos por força. Como deues de saber, que estes castelos que ho Iffante D.Afonso tinha, lhe forom dados em doação, per elRey D. Afonso seu padre com condição, que não avendo filho lídimo, que os erdasse depojs da sua morte, que se tornasem a Coroa do Regno. Por que lhe elRey não querja ligitimar os filhos da dicta Dª Violante pêra poderem erdar, lhe mouia ho Iffante D. Afonso guera, e lhe fazia muyto nojo.

Este motivo da legitimação das filhas do Infante, que levou ao deflagrar do conflito é também apontado por Perpinhão; encontra-se também enunciado em Rui de Pina, o mais prolixo dos historiadores que abordaram o tema, entrando em grandes pormenores e esmiuçando os acontecimentos: a questão da legitimação das filhas para poderem herdar os seus territórios é adiantada como motivo para a hostilidade.

95  Tarouca,

(1952-1954), pp. 21-22.

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Perpiniani, De Vita, pp. 234-236 Afonso, então, […], por lhe ter morrido aquele único filho varão que tivera da esposa legítima, antes de lhe ter dado netos, solicitava a Dinis que não só permitisse, mas até que ordenasse, que as suas filhas que lhe tinham restado, casadas com ilustríssimos e opulentíssimos varões, senhores de Castela, fossem tidas como legítimas herdeiras. Era Isabel tão diligente em conciliar e conservar a paz, como prudente em prever os perigos e forte em afastá-los. Se a Afonso fosse concedido o que exigia, considerava que não se devia negar que essa situação arrastaria grande mal para toda a Lusitânia. Com efeito, em primeiro lugar, quanta redução se verificaria no poder e nas riquezas do reino, se cidades tão bem guarnecidas, estabelecidas nas suas próprias fronteiras, barreiras de toda a Lusitânia, fossem alienadas e chegassem a varões nobres e poderosos, chefes do reino vizinho, com o qual nunca houvera paz suficiente. Por outro lado, porque Afonso, Rei de toda a Lusitânia, com a ambição infinita de reinar por mais espaço, vivendo ainda a esposa Matilde, condessa de Bolonha, casara com Beatriz, filha do Rei Afonso X de Castela, e Dinis nascera da posterior, antes da morte da anterior, com razão se considerava não ter nascido legitimamente. Quanto a Afonso, seu irmão, viera à luz depois do desaparecimento da verdadeira esposa e nessa época já as segundas núpcias estavam ratificadas e tidas como ligadas legalmente pelo matrimónio. Por isso, ainda que se tivesse obtido do Pontífice Máximo que Dinis sucedesse ao pai, Afonso, todavia, com o seu caráter feroz, dizia abertamente que o reino era seu e que devia de direito, ter o cetro. (...) Por isto mesmo, a Rainha, refletindo sobre a utilidade e tranquilidade comum de todos, composto um pequeno texto em nome do seu filho Afonso, menino ainda de leite, ao qual caberia herdar o trono, apresentando-o ao Rei, suplicou-lhe que nem ele ordenasse que as filhas do irmão fossem consideradas como legítimas herdeiras, nem permitisse que tal fosse alcançado do Pontífice Máximo, na qualidade de benefício.

Pina, Crónica delrey Dom Diniz, pp. 235-236 E avendo jáa sinquo annos, que El Rey D. Diniz era cazado, e sete que Reynava, ouve grande desacordo antre elle, e ho Ifante D. Affonso seu irmão, e ha cauza principal, era porque El Rey D. Diniz nom queria, nem nunca quis legitimar, e abilitar has filhas do Ifante D. Affonso pera erdarem suas Villas, e Castellos de Portugual depois de sua morte, sobre que ha Rainha Dona Isabel molher delRey D. Diniz, e o Ifante D. Affonso seu filho erdeyro, sendo ha esso ambos conformes fizeram solenes protestações, e requerimentos pera esta abilitaçam, e legitimação nunqua se fazer por ElRey, nem pelo Papa, aleguando muitos inconvenientes se se fizesse, e ouvesse efeyto, e ho principal era ha grande deminuiçam, e perda que seria do Reyno, e Coroa de Portugual se has sobreditas Villas e Castellos, estando no estremo de Portugual, passassem com suas filhas do Ifante, que eram cazadas com homens grandes, e poderosos de Castella, e ainda se diz, que avia receo do Ifante, que pubricamente dizia, que ho Reyno de Portugual lhe pertencia, porque nascera lídimo depois da morte da Condeça de Bolonha primeira molher delRey seu padre e que ElRey D. Diniz ainda nacera en sua vida della, e nom podia erdar, mas com este defeyto era jáa despensado pelo Papa, como na Coronica delRey D. Afonso, Conde de Bolonha jáa dice.

Quanto à questão da legitimação das filhas de D. Afonso para herdarem, Perpinhão aponta o facto de a doação de D. Afonso III especificar que o herdeiro seria apenas o filho varão legítimo. Rui de Pina fala apenas em legitimar as filhas. O facto é que, como D. Afonso e a esposa D. Violante eram parentes próximos, a sua união estava ilegal

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e os seus filhos ilegítimos; o Papa não concedera a devida dispensa e o infante pedia ao irmão a legitimação das filhas. Interveio D. Isabel, pedindo ao marido que não o fizesse, pelos danos que poderia causar ao reino. Não há referência à intervenção da Rainha na Crónica Geral de Espanha de 1344, mas tanto as Crónicas dos Sete Primeiros Reis de Portugal 96 , como a Crónica DelRey Dom Diniz, de Rui de Pina (vd. supra) a referem. A primeira destaca apenas a sua tentativa de solucionar o problema; a segunda refere também a sua oposição à legitimação das filhas do Infante. A intervenção da Rainha opondo-se à legitimação das filhas do Infante, o qual lhe pedira que solicitasse ao rei precisamente o contrário, está documentada no texto publicado por Fr. Francisco Brandão na Monarquia Lusitana 97: Saibão quantos este estromento virem, como dante o mui alto, e mui noble senhor Dom Dinis pela graça de Deos Rey de Portugal, e do Algarve, e presentes Dom Ioanne Bispo de Lisboa, e as testemunhas adiante escritas, com presença de mi Gil Vicente publico tabaliõ de Coimbra, a mui Alta Senhora Dona Isabel pela graça de Deos Rainha da Portugal, e do Algarve di su protestando dante o sobredito Rey, que o Infante Dom Afonso seu irmaõ delRey rogara a ella, que lhi prougesse de rogar a elRey, que lhe legitimasse a seus filhos que avia de Dona Yalante, para herdarem em todolos seus bens, e que ella nunca hy quizera consentir, dizendo, que elRey sabia bem quanta perda, e quanto dano veera já ao seu reyno da doação, que fezera a alRey Dom Afonso seu padre ao dito Dom Afonso dos Castelos de Marvão, de Portalegre, e da Arronches; e que o Dom Afonso perdera o direito que em elles avia, movendo tal guerra contra elRey, como a el fez por

96  Tarouca 97  Brandão

(1952), p. 22. (1650), V, p. 248.

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vezes; e dizendo, e protestando que elRey sabia bem, que na doação que elRey Dom Afonso seu padre fezera ao Infante Dom Afonso era conteúdo, e mandava, que depos morte de su Dom Afonso, que se tornasse todo adonadio aa Coroa do Reyno, se Dom Afonso não ouuesse filho ledemo, e que elRey sabia bem que os nom auia, e dizendo essa Rainha que oyra dezer, que o dito Rey queria ledimar os filhos do dito Infante Dom Afonso, e infante Dona Costança, que nom quizesse ir contra a doação, que elRey D. Afonso fezera, ca era alheamento, e perda do Reyno, e que o nom podia fazer direito. Mayormente que direito, e costume era do Reyno de nom poder alhear castello nenhum de sy, que tal cousa nom podia fazer sem os Prelados, e Ricos homens, e os outros homens bons, o Reyno deshy que o nom podia fazer sem outorgamento seu della, e de seus filhos; dizendo, e protestando por sy, e por seus filhos, e por todo o Reyno, que o contradizia, e pedindolhe por mercê, que se o quizesse fazer, que ouvesse hy ante conselho com sa Corte, e com os do seu Reyno, e rogou a davan dito Bispo, que tal cousa como esta, e tão danosa ao Reyno que a fezesse saber aos outros Prelados do Reyno, e que o estorvassem, e que puzesse seu selo em esta protestação que ella fazia, e como a dezia.

Este protesto (Protestatio…) da Rainha, apresentado na alcáçova de Coimbra, a 6 de fevereiro de 1297, revela o conhecimento dos procedimentos legais no processo de doações do rei, dos costumes na transmissão de propriedades e dos termos da doação de Afonso III. Com efeito, este estipulava, além do mais, “que esses castelos e essas vilas recebede moeda de Portugal e fazede guerra e paz por Rey de Portugal, vos e todos successores vossos, se vos rey de Portugal nom fezer mal ou força ou eixerdamento”. 98 D. Isabel apresenta como argumento também esta desobediência do Infante: “e que Dom Afonso perdera o direito que em elles avia, movendo tal guerra contra elRey, como a el

98  Provas

de História Genealógica da Casa Real Portuguesa, 1, in Lopes (1964), p. 193.

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fez por vezes.” O próprio D. Dinis, apesar de conceder a legitimação dos sobrinhos, em carta de 3 de Julho de 1300, declara ter ajustado com o irmão que, ainda que ele o deservisse com senhor se o houvesse, não lhe tiraria vilas, castelos ou outra herdade que tivesse em Portugal, nem a ele, nem a seus vassalos; também não mandaria derrubar-lhe castelos, vilas ou casas, cortar-lhe vinhas ou árvores, ou pôr-lhes fogo, salvo se o infante ou seus vassalos combatessem castelos ou vilas dele, rei, ou pusessem fogo em terra portuguesa.99 Mas se, defendendo os interesses do reino, D. Isabel se opusera à legitimação pretendida pelo Infante D. Afonso, mostrando-se preocupada com os perigos que daí poderiam advir, também desenvolveu esforços no sentido de tentar conciliar as partes. É o papel apaziguador neste conflito que se destaca na Lenda100, que refere:

11. E, depois que esta rainha veo a Portugal, recreceu descordia antre elrey D. Dinis e o ifante D. Afonso seu irmão. E esta rainha, veendo esta descordia e este mal antre eles, e cercando elrey alguus logares que o ifante tiinha e filhando-os, pera non recrecer descordia maior o dano em [n]a terra, tratou esta rainha per si e per seu conselho e por prelados e outros omees bõos aveença antre elrey e o ifante, seu irmão, e, pera se fazer a paz e concórdia, entregou a elrey a vila de Sintra, que ela tiinha de sa mão delrey, e deu elrey outros logares ao ifante, pera se manter com eles. E fez que o ifante ficasse por vassalo delrey e para seer a seu serviço em todo o tempo, quando a elrey comprisse sa ajuda e seu serviço.

Esta fonte não revela as causas das hostilidades entre os irmãos, nem os vários momentos do conflito nem as consequências; o relato é sucinto

99  Chancellaria 100  Pp.

de D. Diniz, livro III, fol. 11.

1320-1321.

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pois a sua intenção não é debruçar-se sobre a História de Portugal, mas realçar a intervenção da Rainha e o seu papel apaziguador. Perpinhão seguiu muito de perto também o relato de Rui de Pina; tanto este como o das Crónicas dos Sete Primeiros Reis de Portugal, referem também este papel de pacificadora da rainha. A segunda 101 refere que: E a Rainha Dª Isabel, vendo a grande desconcordya, que ambos amtre sy aujom, pedja a elRey por merçee, que se ho Iffante D. Afonso seu jrmão, se contemtase majs da vila de Symtra e outros lugares que erom dela, que os tomase e deseos a seu jrmão em sua vida, e que lhe conheçese senhorjo e não ouuese desvaijo com ele. E elRey não curava daquelo que ela dizia e foyse alaa, e cercou os castelos e qujsera os tomar por força. E os senhores e pesoas que yom com elRey, a quem a Rainha esto emcomemdara mujto, fizerom de maneira que os puserom em auemça.

Rui de Pina que também refere a oposição da Rainha à legitimação das sobrinhas, acrescenta que, quando deflagrou o conflito, ela foi dos principais intervenientes a tentar pôr-lhe termo; a versão de Perpinhão é mais próxima da de Rui de Pina:

101  Tarouca

(1952), p. 22.

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Perpiniani, De Vita, pp. 237-239 Sentiu Dinis que as palavras do irmão apontavam para sublevação e já de há algum tempo irritado por muitos dos seus actos e palavras arrogantes, reúne de todo o lado o maior número de tropas que pode. Ao mesmo tempo cerca Arronches, Marvão e Portalegre, onde estava, então, Afonso. Luta-se, de ambos os lados, com muita coragem; muitos caem mortos, todo o território fronteiriço, quer lusitano, quer castelhano, é devastado pelo ferro e pelo fogo. A Rainha, abalada pela dimensão do mal, não ignorando como seria prejudicial, para toda a Lusitânia, tamanha guerra civil e doméstica, rezava a Deus Óptimo e Máximo que acalmasse as iras implacáveis dos irmãos e que, apaziguada a discórdia, devolvesse o ócio e a tranquilidade arrebatados aos seus; enviava entidades religiosas e outros homens importantes que tivessem muita influência junto de cada um; ela própria não recusava qualquer esforço: dirigia-se ao marido, encontrava-se com o cunhado, maldizia a guerra, exortava à paz, punha diante dos olhos a destruição, o perigo, a devastação de todo o reino; apresentava condições justas para cada uma das partes; pedia insistentemente e suplicava que se preocupassem mais com o bem estar de todos do que com as suas fúrias ou a vantagem de meia dúzia. Dobrou finalmente o espírito de cada um deles e conduziu-os num certo sentido de justiça e bem. Afonso, que continuava cercado, entregou os seus castelos à fidelidade de Aires Cabral, a quem fez prestar juramento de que os não entregaria ao rei antes de saber se lhe tinha sido feito o suficiente. Dinis, tendo-os recebido da Rainha, concedeu ao irmão Sintra e Ourém e algumas povoações situadas numa planície da região de Lisboa. Revelou-se, então, principalmente, quão grande era o empenho de Isabel pela paz e tranquilidade públicas. Com efeito, ainda que o rei tivesse atribuído Sintra à esposa, ela devolveu-lhe, com o espírito cheio de boa vontade, um município riquíssimo, com o que parecia ter sido feito mais que o suficiente por Dinis, para satisfazer a ambição de Afonso.

Rui de Pina Chronica delRey Dom Diniz, pp. 237-238 (…) e durando este cerquo, em que de huma parte, e da outra, em ambos hos Regnos se fez dano asaas, entrevieram ha concerto delRey, e do Ifante ambos irmãaos, hos Perlados, e Senhores principaes do Regno, e sobre todos ha Rainha Dona Isabel, por cujo virtuoso meyo ho Ifante D. Affonso entregou as Villas, e Castellos ha Ayres Cabral, que hos teve em fieldade, e com menagem atée que por elles deram aho dito Ifante has Villas de Sintra, e Dourem, com outros Luguares chãos na Comarqua de Lixboa, e antre has outras muitas, e muy singulares virtudes, que ouve na Rainha Dona Isabel em quanto viveo, foy procurar sempre paaz, e amisade de que se ella prezou muito, porque assi ho fazia antre ElRey, e seus vassallos, de que tirava todolos dias, e escândalos, e assi antre outros quaesquer particulares do Regno, e se por bem das semelhantes concordias compria pagua de dinheyro pêra emenda dalgumas perdas, e danos ha que has partes por algum caso nom podiam comprir, ella porque amizade se nom desfezesse, de seu próprio tesouro has mandava, de maneyra, que as certas bolsas do seu dinheyro nunqua forão arquas, nem cofres, mas hos ventres, vestidos e necessidades dos pobres, e cousas piedosas, em que todo lançava, e ally tudo lhe crecia.

5.2. D. Dinis contra Castela Os problemas dinásticos de Castela tinham condicionado, de alguma forma, as atitudes de D. Dinis, em relação ao irmão. A situação

115

agravara-se após a morte de Afonso X, o Sábio: sucedeu-lhe seu filho secundogénito D. Sancho, que reclamara o trono ainda em vida de seu pai, o qual, se, a princípio se inclinava para a sucessão do infante D. Sancho, agora defendia como herdeiros do trono os netos La Cerda, filhos do seu primogénito, o infante D. Fernando, que já falecera. Neste conflito, D. Dinis tomou o partido do tio, D. Sancho IV, contra o do avô, D. Afonso X, e da própria mãe, D. Beatriz, enviando-lhe mesmo auxílio militar. Não é de estranhar, pois, que se estreitassem os laços entre os dois reis, reforçados, em 1291, num encontro em Ciudad Rodrigo, com a promessa de casamento de D. Fernando, filho de D. Sancho IV e D. Maria de Molina, com D. Constança, filha de D. Dinis e D. Isabel, marcado para 1299, dada a pouca idade dos noivos. Os desenvolvimentos posteriores levaram D. Sancho IV a tentar uma aproximação a França, pensando mesmo casar o seu filho, já prometido à infanta D. Constança, com o herdeiro francês, mas a sua morte alterou de novo a situação. O herdeiro, D. Fernando IV, ainda menor, ficou a cargo de tutores: sua avó, D. Maria de Molina, e seu tio-avô, D. Henrique, que foram protelando o acordado; D. Dinis, entretanto, mudara de partido e defendia, agora a pretensão ao trono do infante D. João, irmão de D. Sancho IV; a sucessão dos acontecimentos levou a que, depois de vários momentos de conflito, os reis de Portugal e Castela se encontrassem em Alcañices, em setembro de 1297, e ali se confirmassem as alianças anteriormente firmadas. Para além do casamento de D. Fernando IV com D. Constança, estabeleceu-se também o de D. Beatriz, irmã do rei de Castela, com o herdeiro do trono português, o infante D. Afonso; D. Fernando IV entregou a D. Dinis Olivença, Campo Maior, São Fins dos Galegos, Ouguela, bem como os lugares, castelos e vilas de Sabugal, Alfaiates, Castelo Rodrigo, Vilar Maior, Castelo Bom, Almeida, Castelo Melhor e Monforte, entre outros, em troca dos lugares de Aroche e Aracena. Ficaram definidas, desde então, as fronteiras entre Portugal e Castela.

116

A versão de Perpinhão baseia-se em Rui de Pina, como pode verificar-se pela comparação de alguns excertos; a Lenda, por sua vez, não refere este conflito. Perpiniani, De Vita, p. 239 (...) Com efeito, Sancho manteve os termos do acordo e do tratado, até ao ponto em que lhe pareceu conveniente e, enviando uma armada para atacar a costa da Lusitânia, tratava do casamento do filho entre os Franceses, recusado pelos quais, de novo se voltou para os Lusitanos. Mas, como Dinis visse a situação arrastar-se, de dia para dia, percebendo que o castelhano tinha aversão à paz, preparou a guerra. Eis que subitamente, porém, Sancho morre e deixa o reino ao filho Fernando. Os tutores do menino, Maria, a mãe, e Henrique, varão nobre, recusavam manter as promessas do pai. O rei lusitano, suportando muitíssimo mal esta situação, conduziu um equipado exército para os limites extremos do reino, decidido a alcançar pela guerra o seu direito, que não conseguia proteger pela própria justiça. Veio logo Henrique até ele, quando este já se preparava para introduzir o exército inimigo no território castelhano; levou-o até Miróbriga, que agora chamam Cidade de Rodrigo, porque foi outrora reconstruída por um certo Conde Rodrigo, genro de Afonso VI, rei de Castela; daí, estabelecida a composição das partes e com condições justas, o mandou em paz.102 Eis, porém, que, violada a palavra dada, nasceu uma guerra tanto mais terrível, quanto foram tardios os seus começos. (...) Dinis, com bandeiras hostis, entrando no território castelhano e destruindo tudo, como se unisse ao sobrinho dele, Afonso da La Cerda, e a João, nobre eminente e seu tio materno, que reclamava o reino de Castela e Leão, penetrou até

Rui de Pina, Chronica delRey Dom Diniz, pp. 239-43: (...)Mas ElRey D. Sancho ho nom comprio assi; porque desejando de desfazer ho dito cazamento procurou contra sua verdade daver hos ditos Castellos da terceria, e ho que pior foy, que hos ouve, e tomou com mortes dalguns Alcaydes Portugueses, de que ElRey D. Diniz foy muy anojado, porque de sua natural, e Real condiçam nunqua se achou, que dicesse mentira, assi sentio, e lhe doeo muito quebraremlhe tam honestamente ha prometida verdade (...). ElRey D. Diniz enviou loguo por sua parte querella aho Papa; mas ElRey D. Sancho mudou sua messagem em outra sustancia, porque enviou ha ElRey D, Felippe de França, requerendolhe huma sua filha pera o Ifante D. Fernando, seu filho, antre hos quais ouve loguo prazer, e outorgua pera este cazamento se fazer. Ho que ElRey D. Sancho loguo fez saber ha ElRey D.Diniz, sem asinar causa evidente porque o fizera, e com esta confiança, e esforço de França, elle rompeo ha paaz, que tinha com Portugual, e mandou loguo sua frota de naos, e gualés aho Alguarve, e nellas muita gente que por maar, e por terra fizeram grandes danos (...). E porque ho cazamento de França, que ElRey D. Sancho tinha por feyto se desconcertou, e desesperou vendo que de necessidade lhe convinha concertarse com ElRey D. Diniz, (...) enviou ha elle por Embaxador D. Mauzinho Bispo de Palença, por ho qual lhe mandou dizer, que sua vontade era de todo concertarse com elle (...) Nesse tempo ante dalguma destas cousas aver efeyto, morreo ElRey D. Sancho estando na cidade de Toledo, na era de mil duzentos noventa e sinquo, sendo ainda mancebo. (...) leyxou à ora de sua morte por seus testamenteiros, e tutores de seu filho à Rainha Dona Maria sua molher, e ho Ifante D. Anrique seu tio, irmãao delRey D. Affonso seu padre. (...) Depois do falecimento delRey D. Sancho, loguo ElRey D. Diniz mandou por seus messegeyros requerer ha ElRey D. Fernando, que novamente começara de Reynar, e assi à Rainha Dona Maria, e aho Ifante D. Anrique, seus tutores, que quizessem comprir hos cazamentos, e fazer ha entrega das Villas, segundo com ElRey D. Sancho seu pay estava concordado e elle em seu testamento leyxara aho tempo de sua,

102

102  Rui

de Pina, Chronica DelRey Dom Diniz, pp. 239-241.

117

Simancas, que dista seis mil passos de morte. Aho que ElRey D. Fernando com acordo, e Píntia103, onde se encontrava o pró- autoridade dos ditos tutores nom satisfez, segundo prio Fernando.(...) ElRey D. Diniz esperava, antes pelo contrayro (...). ElRey D. Dinis anojado desso, com coraçam pera sua emenda, e vinguança muy cheo de sanha determinou sem mais tardar entrar logu de guerra em Castella, e pera esso concertou, e apercebeo muy bem seus Castellos das frontarias, em que leyxou bõos fronteyros, e ajuntou outra vez suas gentes pera mais poderoso entrar em Castella. (....) 103

O conflito entre Portugal e Castela prolongou-se por vários meses, com incursões bélicas em ambos os territórios, matéria desenvolvida também por estes dois autores104. A intervenção da Rainha é destacada pelas crónicas; lembre-se que este conflito não é abordado pela Lenda, logo, a fonte dessas crónicas, nomeadamente a de Rui de Pina ou as Crónicas dos Sete Primeiros Reis de Portugal/Crónica de 1419 é outra, eventualmente alguns documentos existentes no Tombo régio, a que tanto Rui de Pina como Fernão Lopes teriam acesso, no âmbito das suas funções de cronistas oficiais do Reino 105. Perpiniani, De Vita, pp. 239-243: Um ano e três meses durou aquela peste; em todo este período, a Rainha, ainda que tivesse tal ânimo que jamais se deixava abater por qualquer mal, sofria todavia intensamente, era consumida por grande angústia, atormentava-se dias e noites, quando pensava nos males recebidos e infligidos, na terrível desumanidade daquela terribilíssima guerra e no enorme perigo que estava iminente para toda a Hispânia, trazido pelo inimigo comum; estendia as mãos súplices ao céu; rezava assiduamente a Deus; chorando, suplicava-lhe paz e graça; implorava a fé e a misericórdia dos santos; enfim, estava completamente ocupada em tornar favorável a vontade celestial em prol da salvação e tranquilidade de todos. (...)

Rui de Pina, Chronica delRey Dom Diniz, pp. 246-48: Avia hum anno, e tres mezes que esta guerra antre Castella, e Portugal durava tam crua antre hos Castelhanos, e Portugueses, no quaal tempo ha Rainha Dona Isabel, que estava em Portugal por seus Sanctos dezejos, e muitas virtudes com que nacera recebia desta discordia grande nojo, e muita tristeza, e pera que tantos maales com beem, e paaz de todo cessassem, de contino cõ devotas, e perseveradas lagrymas fazia suas oraçõens ha Deos, pera que cõ sua piedade hos remediasse, com segura paaz, pois elle por paaz, e salvaçam do mundo, aho mundo quisera vir, e com esto nom leyxava hos outros meyos, e interesses secretos que pera efeyto desso ahos Rex, e ahos do seu Concelho sempre apontava, mas

103 Valladolid. 104  Bem como pelas Crónicas dos Sete Primeiros Reis de Portugal, caps. VI-XIII, ou Crónica de 1419, pp. 171-176. 105  Tarouca,

(1952), pp. 40; Crónica de 1419, pp. 170.

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Com efeito, ainda que ela colocasse a sua esperança em Deus, que tem os corações dos reis em seu poder, nunca desistia, todavia, entretanto, nem de dizer, nem de fazer o que dizia respeito à paz. Enviava, quer ao marido, quer ao filho de seu primo, inúmeras e secretas embaixadas; lembrava aos conselheiros de cada um, aqueles que considerava terem o primeiro lugar em aceitação junto dos reis, o seu dever; a todos pedia e exortava a que tivessem misericórdia da pátria abatida e perdida. (...) Juntaram-se ambos os Reis em Ergávica, que os Hispânicos chamam agora Alcanizes. Com Fernando, estavam sua mãe, Maria, sua irmã Beatriz e o seu tutor, Henrique; com Dinis estavam a esposa, Isabel, a filha, Constança, e o irmão, Afonso; para além destes, muitos pontífices, muitos nobres que, como acontece, tinham seguido cada Rei, como era seu dever. Ali, como um fizesse ao outro o suficiente em atos e discursos, como todos os danos mútuos de guerra fossem dissolvidos e compensados, a aliança foi confirmada por um tratado, que ficou escrito, em documentos públicos, para memória sempiterna dos homens e foi consagrado por um duplo parentesco. Fernando casou com Constança que, por isso mesmo, viera com a mãe, Isabel; Dinis levou Beatriz, irmã de Fernando, para a Lusitânia, apesar de ainda não estar em idade de casar; em Coimbra, prometeu-a em casamento ao filho Afonso, que andava nos 6 anos, o que aconteceria quando cada um chegasse à idade legítima106. Foi esse o ano de 1297, agradável para todos, não só porque dois reis inimigos entre si assim fizeram as pazes e se uniram, mas também e muito mais até, porque aquela paz trouxe o início certíssimo da pacificação de toda a Hispânia, que já há muito tempo sofria pelas suas forças e armas107.

aprouve ha Deos que vendo ElRey D. Fernando, e seus Tutores, e hos do seu Concelho, e principaes senhores de Castella que ha destroyçam de sua teerra por armas, e guerra jáa se nom podia cobrar, nem vinguar, antes hya cada vez em pior, e mais dano acordaram por melhor tomar ho remedio da paaz, e satisfazer a ElRey D. Diniz nas couzas que juntamente requeria, porque com esso outra se remedeasse, e compuzesse em asseceguo como fez. (...) E com ElRey D. Diniz foy ha Rainha Dona Isabel, sua molher que levou consiguo ha Ifante Dona Costança sua filha, e ho Ifante D. Affõso irmaão delRey D. Diniz, e hos Bispos, e senhores que na carta de escaybo particularmente estão nomeados, e ho Ifante D. Affonso erdeyro ficou na Villa de Trancozo em Portugal hos quaes todos juntos asentaram principalmente entre si, e seus Regnos, e senhorios ha paaz, e seguridade por corenta annos, nos quaes fossem verdadeiros amigos damiguos, e imiguos de imiguos, e que todalas pessoas de qualquer estado, e condiçam que fossem que de hum Regno aho outro durando ho tempo da paaz fizessem guerra, dano, ou maal, que fossem loguo estregues aho Rey, e Regno danificados, pera delles se fazer justiça inteyra segundo fosse ha qualidade do crime, e porque ouveram por beem que os cazamentos que se aly haviam de fazer nom se concertassem, nem fezessem atee que todalas entreguas e escaybos das Villas, e Luguares de hum Regno a outro fossem Feytos e concordados, e como atraaz elles estão apontados. Foy loguo feyta huma carta de concordia das ditas couzas cujo treslado de verbo a verbo tornado fielmente por mim Coronista de Castelhano em Portuguez do próprio original que vy, e jaaz no Tombo he que se segue.(Segue-se o documento).

106107

106  D.

Beatriz teria 3 ou 4 anos, nesta altura.

107 A

fonte deste passo é Rui de Pina na Chronica delRey Dom Diniz (cap. X, p. 248 e seqq), que além de relatar o desfecho, transcreve ainda o documento que resultou deste acordo, o Tratado de Alcanizes.

119

5.3. D. Dinis, árbitro peninsular Muito pouco tempo depois de resolvido este conflito, surgiu um outro, de abrangência peninsular, também relacionado com o anterior; desta vez, D. Dinis não era uma das partes em confronto, mas seria o árbitro escolhido para intermediar a paz. Para este conflito, Perpinhão poderá ter consultado várias fontes escritas, a começar pela Lenda, que valoriza naturalmente o papel de D. Isabel na arbitragem do conflito: Avendo descordia grande antre elrey D. Fernando de Castela, genro desta rainha, e elrey D. James de Aragom, irmão desta rainha, por razom de alguuns logares que elrey de Aragom tiinha filhado[s], que foram dos mouros, os quais elrey de Castela dizia que erom de sa conquista, elrey de Aragom dizendo o contrario, e sobre estas cousas e demandas, que antre eles avia, esta rainha Dona Isabel, consiirando quanto dano e mal per esta guerra em Espanha av[e]ria e se seguiriam muitas mortes de muitos e (de) muitas sem merecimento em reyno de Castela, e de Aragom e doutros muitos senhorios, e logares que se amesturam, e entendendo e temendo-se que, se esta guerra e descordia antre eles muito durasse, que os mouros, emmiigos da Fee Catholica, cobrariam poder contra os christãos, pera se escusar esta guerra e descordia, que antre os ditos reys avia e se recrecia, esta rainha tanto trabalhou per si e per outros que os ditos reys de Castela e de Aragom elegeram e comprometerom que elrey D. Dinis de Portugal fosse juiz sobre este feito, e prometerom so certas penas a estar a qualquer juizo que elrey de Portugal antre eles fezesse e a qualquer sentença que ele desse. E forom elrey D. Dinis e esta rainha Dona Isabel ensembra com el aa cidade de Tarraçona, em senhorio delrey de Aragom, passando por los reynos de Castela e de Leom, e forom em [n]a dita ciidade juntos elrey D. Fernando de Castela e a rainha Dona Costança, sa molher, e a rainha madre delrey D. Fernando, Dona Maria, e ifantes e muitos ricos omeens de Castela e de Leom e muitas nobres donas, e forom

120

tambem elrey D. James de Aragom, irmão desta rainha, e a rainha Dona Branca, sa molher, e muitos nobres omeens e donas de Aragom e de Catalonha. E elrey D. Dinis seve antre eles pera livrar seus feitos e fazer sas pazes, segundo achasse de dereito. E ouvio primeiramente razões delrey de Castella que trazia pera afirmar o que dizia. E depois ouvio as razões delrey de Aragom, que erom em contrairo, e, vistas as razões de uma e de outra parte, deu juizo antre eles, segundo achou de dereito e aveo os ditos reys de tal maneira que se partio todo mal e toda descordia que antre eles por esta razom avia e forom sempre depois amigos, partindo todo odio e mal querença. 108

Perpinhão, apoiando-se no relato das crónicas, nomeadamente na de Rui de Pina (Chronica DelRey Dom Diniz, cap. XI e seqq.) mais detalhado, mas que não contradiz a versão da Lenda, vai desenvolver muito mais a questão, apresentando as causas, o desenvolvimento e as consequências do conflito: Perpiniani, De Vita, p. 244 Ainda mal acalmara aquela tormenta, quando, de súbito, outra se levantou, por ação não sei de que má estrela da Hispânia, que haveria de ser muito mais turbulenta, se Deus Óptimo e Máximo não olhasse pelos seus109. Retomemos os seus antecedentes um pouco mais atrás, para mais facilmente se conhecerem os desenvolvimentos ulteriores.

Rui de Pina, Chronica DelRey Dom Diniz, p. 255 E porque nom fiquem suspensas has cauzas, e fundamentos, que ouve pera antre estes Rex, e Senhores aver has guerras, e competencias que dice, e porque a Estoria se entenda melhor, e nom fique confuza, farey dellas huua breve, e sustancial decraraçam. (…)

109

108  Lenda,

pp. 1321-23.

109  Também

a Crónica de D. Dinis (cap. XV a XVII), das Cronicas dos sete primeiros reis de Portugal, desenvolve com pormenor este conflito mediado pelos reis portugueses, que já fora abordado igualmente no Chronicon Alcobacense e no Livro de Linhagens do Conde D. Pedro (I, p. 130: 7 D 1-3), testemunha por demais fidedigna, uma vez que integrava a comitiva que encerrou o processo. Leia-se Lopes (1967) “Actividades Pacificadoras de S. Isabel de Portugal no Dissídios entre Castela de Aragão, de 1300 a 1304.” Itinerarium, ano XIII, nº 57, 288-339.

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Quando da morte de D. Sancho IV, em 1295, seu filho, D. Fernando IV, era menor e ainda não estava legitimado, pois o Papa não concedera a dispensa de impedimento de parentesco aos pais. Na sequência da crise dinástica que vinha desde o reinado de Afonso X, candidatou-se também ao trono de Castela, o seu tio D. João, irmão do pai, e seu primo, Afonso de La Cerda, filho do primogénito ja falecido de Afonso X. A princípio, estes dois últimos candidatos lutaram pelos seus interesses, cada um para seu lado, mas depois uniram esforços contra D. Fernando IV, estabelecendo a seguinte divisão: D. João ficaria senhor de Leão, Galiza e Sevilha; D. Afonso, de Castela e restante. O reino de Múrcia, também em disputa, entregar-se-ia a D. Jaime de Aragão, em troca do seu auxílio 110; com efeito, também este entrara na contenda, reclamando Múrcia. 111 112113 Perpiniani, De Vita, pp. 245-248: Detinha, então, o poder soberano, entre os aragoneses, Jaime, irmão de Isabel, que foi o segundo rei deste nome, naquela nação. (...) Por isso, Jaime, chamado da Sicília, porque detinha o reino deixado por seu pai, assumindo o trono aragonês, lutava contra Fernando, filho de seu primo, por causa do reino de Múrcia. Efetivamente, enquanto o Rei Afonso111 se dirigia para a Germânia, na esperança de se apoderar do supremo poder, Sancho, pai de Fernando112, morto seu irmão Fernando113, que o pai designara rei com a

110  Sobre

Rui de Pina, Chronica DelRey Dom Diniz, 255-256 E posto que estes casamentos [D. Fernando IV e D. Constança; Infante D. Afonso e D. Beatriz], e booa concordia fosse feyta antre estes Rex, nem por esso ElRey D. Fernando fiquou em paaz, que nom leyxou de teer em seus Regnos guerras, e grandes deferenças, com ElRey D. James, deste nome ho Seguundo Rey Daragaõ irmaaõ da Rainha Dona Isabel, molher delRey D. Diniz, por razão do Regno de Murcia, e com D. Affonso de Lacerda, seu primo com irmaaõ, que tambem se chamava Rey de Castella, e com ho Ifante D. Joham seu

este conflito, cf. Lopes (1967), Pizarro (2008), entre outros.

111 Afonso

X, o Sábio, rei de Castela, tinha condições para se candidatar ao trono do Sacro Império Romano-Germânico, porque sua mãe, D. Beatriz de Suábia, era prima co-irmã de Frederico II. Manteve durante vinte anos a sua pretensão, mas o Papa Gregório X atribuiu o trono imperial a Rudolfo de Habsburgo (1273), em detrimento de Afonso X que, nesta candidatura, desbaratou grandes somas de dinheiro. 112  Fernando IV, filho de D. Sancho IV e de D. Maria de Molina, genro de D. Dinis e de D. Isabel. 113  Fernando de La Cerda, filho primogénito de Afonso X, pai dos infantes La Cerda, que faleceu antes de chegar a rei, irmão de D. Sancho IV e tio de D. Fernando, futuramente o IV.

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aprovação de todas as cidades, antes da sua partida da Hispânia, assumira o governo, ataque e defesa do reino paterno e não permitia que Afonso de Lacerda, o filho do irmão, fosse proclamado o sucessor do avô. O Rei, como cedesse perante Rudolfo, a pedido do Pontífice Máximo, ao regressar à pátria, não só ratificou, ele mesmo, a decisão do filho, contra o pacto de aliança feito com o Francês114, como fez publicamente uma assembleia, para que todas as cidades ratificassem. A rainha Violante115, que se refugiara com os seus dois netos junto de seu pai Jaime, o rei anterior dos Aragoneses, na ausência do marido, receando que os meninos fossem mortos, por ordem do tio, reclamou que fosse atribuído, como herança, o reino de Múrcia a Afonso Lacerda, que era o mais velho, uma vez que os outros lhe tinham sido tirados, de forma criminosa. Com este acordo, ele poderia ser levado a abandonar o seu legítimo direito e entregar e conceder a Sancho os reinos avoengos e paternos.(...) Mas seu [de Afonso X de Castela] neto Afonso, ao ver-se, por fraude do tio, destronado, espoliado e expulso, não suportando a tamanha indignidade da situação, nomeia rei de Leão um outro tio seu, João, e a Jaime de Aragão, primo direito do pai, concede o reino de Múrcia: se vencessem, havia de dar a cada um seu reino; para si conservou apenas o título de rei de Castela.

tio, que se chamava Rey de Liam, hos quaes eram ajudados, e favorecidos de muitos, e grandes Senhores de Castella, e de Liam, contra ho dicto Rey D. Fernando, que por teer no mesmo Regno tam grandes contrayros, padecia grandes afrontas, e era posto em muitas necessidades, nas quaaes se socorreu muitas vezes ha ElRey D. Diniz seu sogro (...). E primeyramente D. Affonso de Lacerda tinha guerra com ElRey D. Fernando ha quaal ficàra começada no tempo delRey D. Sancho, porque D. Affonso era filho primeyro ligitimo do Ifante D. Fernando de Lacerda, e da Rainha Dona Branca filha delRey São Luis de frança, ho quaal Ifante seendo jurado por erdeyro dos Regnos de Castella, e de Liam, faleceo em vida delRey D. Affonso de Castella seu pay teendo jaa filhos, ha saber este D. Affonso de Lacerda, e outro D. Fernando, dos quaaes D. Affonso era o mayor, assi por ser neto do dicto Rey D. Affonso, como por contrato de cazamento feyto antre ElRey São Luis de França, e ho dicto Rey seu avoo devera erdár hos Regnos de Castella, e de Liam, e por esta cauza ho dito D. Affonso de Lacerda andando desterrado em Aragaõ, elle em vida delRey D. Sancho seu tio, em tempo deste Rey D. Fernando de Castella seu filho, se chamou, e intitulou Rey de Castella, e porque ho titulo, e Regno de Liam, elle hos deu aho Ifante D. Johão seu tio, pera que o ajudasse, como logo direi. E porque ho dicto Rey D. Affonso de Castella seu avoo, lhe tinha dado ho Regno de Murcia, que elle ganhara ahos Mouros em que também por este ElRey D. Sancho ouve cõtradiçaõ, como atraaz fica decrarado, este dicto D. Affonso de Lacerda pera teer ajuda, e favor del Rey D. James Daragão, que era seu tio, pera has couzas de Castella lhe deu o direyto, que tinha no Regno de Murcia, cõ toda sua Conquista (...)

114115

114 O primogénito de Afonso X e D. Violante, D. Fernando de La Cerda, casara com D. Branca, filha do rei de França, Luís IX; numa cláusula do contrato deste casamento, estipulara-se que o trono de Castela seria herdado pelos filhos nascidos deste casamento, que seriam D. Fernando e D. Afonso de La Cerda. 115  Filha de Jaime I, o Conquistador, irmã de D. Pedro III de Aragão, esposa de Afonso X, mãe de D. Fernando (o primogénito e herdeiro do trono que morreu antes do pai) e de D. Sancho, defendeu os interesses dos netos Afonso e Fernando de La Cerda, filhos do primogénito.

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Estava a Rainha D. Isabel numa situação privilegiada, em relação a todos os intervenientes; com efeito, ela era irmã de D. Jaime II de Aragão; sogra de D. Fernando IV de Castela, que casara com sua filha, Constança; e prima de D. Sancho IV, pai de D. Fernando IV de Castela, pois aquele era filho de D. Violante, esposa de D. Afonso X, que era irmã de D. Pedro III de Aragão, pai de D. Isabel 116. Por isso, multiplicava-se em contactos, mandava mensageiros da sua confiança117, trocava 116  Sobre o papel ativo que, tal como noutros conflitos, desempenhou a rainha D. Isabel, leia-se Lopes (1967). Destaquem-se, neste artigo, as muitas cartas transcritas, trocadas com seu irmão, D. Jaime, pertencentes ao Arquivo da Coroa de Aragão, reveladoras do seu desempenho nos preparativos para a paz entre Castela e Aragão. Esta, escrita pela Rainha, datada de 15 de fevereiro de 1304 é bem elucidativa desse facto, mas, ao mesmo tempo, revela as boas relações e a amizade entre os irmãos:

Rey hermano, sabede que ver vossa carta e entendy complidamente o que menvyastes dizer en ela, e outrossy o que mhe disse o arcediago Don Reymhom da vossa parte; e gradesco a Deus, porque chegastes los feytos a tam boom estado. E faley com el Rey que tomasse este feyto commo devia, e que envyasse o Conde porque he homem que en todalas cousas quer o vosso serviço e o meu, e estremadamente en esto feyto, e que non catará afan nem trabalho nenhuum pera juntar esto, porque sabe que me serviráhy. El rey manda o ala a vos, por que vos eu rogo que, pois o feito a tal estado trouxestes, que fagades de guisa que venhaçedo a melhor. E eu trabalharey daca o mais que eu puder en todalas cousas que entender que son mester pera este feyto (ir adiante?) commo ata aqui ey feyto. (....)E, irmão, sabede que o arcediagoo mhe deu da vosa parte huma pedra muy bõa, e disse me que fora da Raynha mha madre, e gradesco volo muyto, ca commo quer que a mym non mhe falescam pedras nem outras cousas, desejava a aver muyto alguma cousa das que mha madre tragia. E rogo vos, hirmãao, que creades o arcediagoo do que vos diser da mha parte.(...). Leia-se também Sebastião Antunes Rodrigues (1958), Rainha Santa – Cartas inéditas e outros documentos. Coimbra: Coimbra Editora Lda. Nem sempre as suas intervenções parecem ter sido valorizadas, nomeadamente por alguns homens de confiança de D. Dinis, como revela a documentação estudada por Nuno Pizarro Dias (1996), “Dinis e Isabel, uma difícil relação conjugal e política”, Revista Portuguesa de História. Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 31, pp. 129-165. 117  Entre esses mensageiros, destacou-se uma figura feminina, D. Vataça Lascaris, dama nobre, descendente dos imperadores da Grécia, prima em sétimo grau de D. Isabel, a quem acompanhou quando esta se casou e veio para Portugal. Nem a Lenda, nem Perpinhão se referem a esta figura, mas ela teve um papel muito ativo e importante ao serviço de D. Isabel, como intermediária dos seus assuntos, nomeadamente neste conflito. Casando em Portugal com Martim Anes de Soverosa, foi após a viuvez que a sua atividade mais se intensificou junto da rainha portuguesa, a quem estava ligada por laços de parentesco e vassalagem. Acompanhou D. Constança para o seu novo reino, quando esta casou com D. Fernando IV de Castela e desempenhou o papel de uma mãe adotiva para os infantes D. Afonso e D. Leonor, depois da morte prematura dos reis de Castela. Desempenhou ao longo da sua vida importantes missões diplomáticas ao serviço dos reis de Castela, que lhe fizeram várias doações pelos serviços prestados à família real, e dos reis portugueses; foi, várias vezes, enviada como

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correspondência com o irmão, no sentido de resolver a complexa situação diplomaticamente; disso dão conta as cartas trocadas com os intervenientes conservadas na documentação dos Arquivos da Coroa de Aragão. A própria Lenda118 refere esta atividade epistolar, ao referir o seu alargado parentesco com os reis e rainhas peninsulares: Outro si muitos forom reys e rainhas de que já feita é mençom, que a ela enviavom cartas e messegeiros alguuns e ela a eles, ca depos morte delrey D. Pedro, seu padre, forom reys dous seus irmãos, os quais ela nom viio seendo eles reys, mas viira-os seendo eles ifantes em casa de seus padres: D. Afonso, em Aragom, e D. Frad[er]ic, que se chamou rey em Sicilia. Perpiniani, De Vita, pp. 249-252 A Rainha era irmã de um, sogra de outro e prima do pai (deste), nascida e educada naquelas terras que recebiam os maiores danos daquela guerra. (...) Por esta razão, sem descanso, suplicava primeiro a Deus, pai da paz e da concórdia, pela salvação de toda a Hispânia; derramava abundantes lágrimas sobre os altares dos santos, rezando para que afastassem, com as suas preces, a ira da vontade divina da vida, da liberdade e da fortuna do povo cristão. De seguida, não perdendo a esperança de poder demover tais príncipes, para que afastassem os ódios particulares, tendo em consideração o bem público, se intercedesse a excelente autoridade de algum homem, tratava, por um lado, de os aconselhar e exortar, através daqueles que não tivessem junto deles o último lugar da amizade; por outro, ela própria, com a sua arte e esforço, fazia tanto quanto podia, para conseguir que aqueles que se contavam entre os primeiros reis da Hispânia renunciassem à sua dor e às suas inimizades, pelo interesse do estado cristão. (...) Deste modo, com cartas, embaixadas, exortações, esta excelente senhora, próxima de cada um deles, animava com frequência, os reis vizinhos a fazerem a paz, para salvação da pátria, e não interrompia, por um instante, as súplicas e os votos diurnos e noturnos, com os quais acreditava que podia concluir o assunto muito mais facilmente do que pela autoridade de quem quer que fosse.

Crónica de 1419, p. 178 E a raynha dona Isabel, molher del-rey dom Denis, vendo o mal que se seguia desta guera, trabalhou muito por virem atal avemça e que sua contenda fose livre por juiz e não por armas, em que eles entendiom por seu proveito de o fazer por os mouros não aver azo de lhe corer a terra, em que de seu grado vierom avemça.

mensageira da total confiança da rainha D.Isabel. Após a morte de Dinis, as relações entre as duas senhoras estreitaram-se ainda mais, passando ambas longos períodos de tempo em Santa Clara. D. Isabel, além de a contemplar no seu segundo testamento, nomeia-a também como uma das suas testamenteiras. Estas duas figuras estiveram unidas, ao longo das suas vidas por laços de fidelidade, serviço e amizade.Vd. Lopes (1967); Mª Helena Cruz Coelho e Leontina Ventura (1989), “Vataça – uma dona na vida e na morte” in Actas das II Jornadas Luso-Espanholas de História Medieval. Porto: Instituto Nacional de Investigação Científica. 118  Lenda,

p. 1356.

125

As muitas cartas conservadas, trocadas entre o rei de Aragão, D. Dinis e D. Isabel, mostram o evoluir das conversações e comprovam as informações de Perpinhão e das suas fontes; esta, por exemplo, enviada por D. Isabel a seu irmão, Jaime II, a 26 de Dezembro de 1300, revela a rede de mensageiros e influências movimentadas e o empenho em solucionar o problema a contento de todos: Rey Irmão, vy vossa carta que me envyastes por Remon de Montros arçediano da Guarda vosso clerigo, e entendy bem quanto me envyastes dizer, e gradescovolo muyto e [quan]to o arcediano me dise. Vosso recado [...] e Dona Vataza o envyou dizer al Rey e a mim [...] o Con[de....] me dise en como passarades nas vistas que fezerades com os inffantes Don Anrique e Don Johan. E el Rey e eu avemos sobre esto envyado o Conde [à Re]yna Dona Maria. E depoys lhy enviamos huum cavaleiro seu vassalo [e del R]ey. E o recado que a Reyna sobre esto der ao Conde, logo o vós saberedes, ca o de logo se irá a vós ou volo fará saber por mandadeyro çerto. Outrosi el Rey e eu envyamos logo o dito arçediano vosso clerigo pera a Reyna Dona Maria e pera o Conde. E con qual recado deles ouver, irse á pera vós. E nós tanto que dalo ouvermos recado çerto, el Rey e eu nos trabalharemos de fazermos todaquelo que nós podermos entender que seerá vossa prol e vossa onrra e guardamento de vossa fazenda, assi como fariamos pola nossa mesma. E das nossas vistas, e como e en qual logar e quando, o Conde volo fará saber por sy que irá alo ou por mandadeyro çerto e pelo dito arçediano, de guisa, querendo Deus, que seerá vossa prol e vossa onrra e del rey Don Fernando e nossa. Rey Irmão, rogovos que sempre me façades saber de vossa saude.[...] E rogovos que creades a Remon de Montrros vosso clerigo e arcediano da Guarda, do que vos disser da mha parte.(...) 119

119  Lopes

(1967), p. 299.

126

Para fugir à guerra, tão nefasta para toda a Península, tanto mais que a ameaça dos Muçulmanos continuava sempre presente, as partes beligerantes aceitam a mediação de um juiz imparcial e propuseram-na ao Papa. A escolha deste recaiu sobre D. Dinis. Perpiniani, De Vita, pp. 252-255 Era aquele o ano de 1303 da era cristã, ano em que Bento, décimo primeiro deste nome, legitimamente elevado à categoria depois da morte de Bonifácio VIII, presidia aos destinos dos cristãos, como Pontífice Romano.(...) Ouvira dizer que a Hispânia estava ao rubro numa guerra entre aliados e quase civil; abalado por tal notícia, tal como um um bom pai seria abalado pelos perigos que corressem os filhos, de imediato enviou cartas a cada um dos reis(...). Pedia, suplicava e, entretanto, no uso do seu direito, insistia para que escolhessem o juiz que quisessem, a quem acreditassem poder confiar em segurança a sua causa. (...) Eles, já convencidos pelas advertências e rogos quotidianos de Isabel, mas sobretudo pela autoridade de tal Pontífice, foram convencidos sem dificuldade. Responderam por escrito que lhes agradaria deixarem de guerrear-se e entregarem tudo ao juízo de um só, junto do qual, sem tumulto, com paz e boa vontade, com justiça e análise das leis, resolvessem a querela com debates; que, na verdade, não se poderia encontrar ninguém melhor, nem um juiz mais justo do que Dinis, rei da Lusitânia (...). Num assunto desta natureza, Bento fez de bom grado a vontade aos reis; pediu a Dinis que pudesse servir como juiz e árbitro, entre reis tão poderosos, para sanar tamanhas desavenças. O Lusitano, não ignorando como isso era honroso para si e para os seus, e como seria útil para a restante Hispânia, como não podia desprezar a autoridade do Pontífice, nem repudiar as preces assíduas da esposa, assumiu o trabalho com glória dos seus e o incómodo com vantagem dos outros. (...) Por isso, para pôr fim à querela entre Jaime e Fernando sobre o reino de Múrcia, o infante João, com o qual já antes Fernando fizera as pazes, e Ximenes, Bispo de Saragoça, foram destinados como companheiros ao rei Dinis para conhecer as razões de Afonso e Fernando; para o reino de Castela, foram escolhidos como juízes os reis Dinis e Jaime. Constituídos assim os júris, no ano de 1304, todos os que tinham algum interesse na questão se comprometeram, depois de entregues determinados castelos, a não se afastarem, no futuro, nem um milímetro, da sentença e vontade dos juízes e a considerarem, depois de conhecida a causa, como lei humana e divina o que quer que eles estabelecessem, e apenas isso.

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Pina, Crónica delrey Dom Diniz, pp. 255-258 E seendo neste tempo Prezidente na Egreja de Roma ho Papa Benedicto Undecimo, que era homem Sancto, que sobre todos mais desejou, e procurou ha paaz, e amizade dantre hos Rex, e Principes Christãaos sabeendo desta discordia, que antre estes Rex avia, lhe enviou huum Nuncio com seus Breves, encomendandolhe com tantas razoens, que dezistissem do maal da guerra, e esolhessem ho beem da paaz, e pera antre elles se beem fazer como devia se louvassem em alguum bom Juiz, que antre elles comprisse, e concordasse suas contendas, e que Sua Santidade ajudaria ha comprir sua determinaçaõ. E hos Rex ambos de Castella, e Aragam obedecendo ahos concelhos, e mandados do Papa se concordaram, e enviaram dizer, que antre elles nom podia aver melhor Juiz, nem mais competente, que ElRey D. Diniz de Portugal (...) Da quaal couza prouve muito aho Papa, e ha encomendou com grande afeyçaõ ha ElRey D. Diniz, que por lhe obedecer, e fazer couza dina de taal rey, e assi por has continuas presses da Rainha Dona Isabel sua molher, com que lho pedia, aceytou ho juizo por sua parte (...) E asentaraõ, que no que tocava ha ElRey D. Fernando com ElRey D. James sobre ho Regno de Murcia, fossem Juizes Elrey D. Diniz, e ho dicto Ifante D. Johão, e D. Ximeno Bispo de Çaragoça, e que na contenda, e diferença, que era antre hos dictos Rex D. Fernãdo, e D. Affonso de Lacerda, fossem Luizes hos dictos Rex D. Diniz e D. James soomente sobre huuns, e outros fizessem seus compromissos autorizados, e asellados de seus sellos de chumbo (...)

Em Julho de 1304, D. Dinis, à frente de uma comitiva de mais de 1000 nobres, de que faziam parte D. Isabel, seu irmão D. Afonso, seu filho bastardo D. Pedro e João Afonso de Albuquerque, dirigiu-se para Torrellas, entre Agreda e Tarragona, onde se reuniu com D. Jaime II de Aragão e com D. Fernando IV de Castela, na qualidade de árbitro, para tentar resolver a contenda que se instalara entre os dois reinos. Em Agosto, D. Dinis pronunciou a sua sentença sobre as questões em litígio, e partiram, todos eles, de seguida, para Tarragona onde selaram um pacto de amizade. Perpiniani, De Vita, pp. 255-256 De seguida, como informassem Dinis, através de embaixadores, do compromisso e das penas acrescentadas120, pediram que, uma vez que uma situação tão importante não poderia ser tratada de forma cómoda a não ser presencialmente, não mostrasse dificuldades em vir até eles; que fosse fixado um prazo suficientemente grande para concluir o assunto, de modo que, no dia 18º antes das calendas de Setembro, as decisões de todos já estivessem questionadas, debatidas e tomadas. Ele, considerando, por muitas e justas razões, que não devia evitar nem os incómodos da viagem, nem a enorme despesa, partiu com a esposa Isabel, nas calendas de Agosto, para ela participar na deliberação dos reis e, com a sua gravidade e súplicas, principalmente, fletir os seus corações. Faziam parte da comitiva o seu irmão Afonso, o seu filho Pedro e um número não reduzido de senhores nobres, e ainda perto de mil homens, bem equipados de cavalos e roupas, de acordo com a sobriedade daquele tempo. Conviera a todos que se decidisse a questão de assuntos de tanta importância em Turriasso. Esta é uma cidade da Hispânia citerior, no interior, muito antiga, ocupada outrora pelos Celtiberos, nação muito belicosa; agora, situada nos limites mais afastados do reino de Aragão, está do lado oposto, em frente de Agreda, cidade vizinha dos castelhanos, que outrora se pensa ter sido Gracúrio; a pouco e pouco, mudando-se o nome passou a chamar-se Tarragona. (...)

Pina, Crónica delrey Dom Diniz, pp. 258-59 E tanto que estes Compromissos foraõ concordados hos Rex de Castella, e Daragam, e assi ho Ifante D. Affonso de Lacerda ha que tocava, enviaram por seus Embaixadores pedir a ElRey D. Diniz, que logo quizesse hir em pessoa por quanto has dictas contendas finalmente se aviaõ de sentenciar, e determinar pelos Juizes atee Sancta Maria Dagosto, do que ha ElRey D. Diniz muito aprouve, e se feez logo prestes, e se foy aa Cidade da Guarda, donde logo partio, e entrou em Castella por Cidade Rodrigo, no mes de Junho da dicta era, e levou consigo ha Rainha Dona Isabel sua molher, e ho Ifante D. Affonso seu irmaaõ, e D. Pedro seu filho, e ho Conde D. Johaõ Affonso, e Prelados, e Infançoens, e Cavalleyros em numero de mil pessoas, afora outras muitas gentes pera que feez prestes has gentes de seus Regnos, e na Guarda aprovou, e escolheo della ha que quiz, que foy muita, e muy honrada, e ha mais riqua, e concertada de suas pessoas, cavallos, arreyos, e vestidos, que ateequelle tempo em semelhante cazo se visse, e pera esta ida ouve ElRey D. Diniz grandes ajudas de dinheyro de seus poovos. (...) Tanto que estes Rex, e Senhores foraõ juntos em Tarraçona ouviraõ has partes, e seus Procuradores sobre has cousas, que ha cada huum tocava (...). Aos oyto dias do mez Dagosto do dicto anno, deram sentença ha saber, que Cartagena, e Guadamir, e Alicante, e Acheche

120

120  Quando D. Dinis foi escolhido como juiz, D. Fernando e D. Jaime tinham já tudo decidido. Sobre a escolha de D. Dinis como árbitro, o papel que desempenhou e todo o processo, em geral, leia-se Brandão (1650), Lopes (1967, pp. 288-339), Pizarro (2008, pp 149-160).

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Tratou-se primeiro da querela entre Fernando e Jaime, depois de reconhecida a qual, sem engano, os três árbitros cujos nomes referi acima decretaram que o reino de Múrcia se dividiria e se atribuiria uma parte aos reis de Aragão e ceder-se-ia outra parte aos castelhanos. Desta divisão ainda agora Elche, Illice, Orcelis, Elda, Novelda e mais alguns castelos se contam no reino de Valência. Depois, os reis Dinis e Jaime, sobre a querela entre Afonso Lacerda e Fernando, decidiram que este e os seus descendentes teriam o reino de Castela e a Afonso seriam concedidos determinados castelos com povoações, bem como muitos outros chorudos impostos. Satisfeito com estas concessões, ele viveria de forma privada e abandonaria o nome e as insígnias de rei121.

(....) ficassem, e fossem pera sempre DelRey Daragam, e de seu Senhorio, (....) e que ha cidade de Murcia, e de Molina, e Monte Agudo, e Loreyna, e Alfama (...) ficasem a ElRey de Castella, e que se soltassem prizioneyros de huuma parte, e da outra (...). E tanto que esta sentença foy pubricada, logo no mesmo dia, lugar, e anno, prezente has mesmas testemunhas, ElRey D. Diniz, e ElRey D. James sobre contenda, que era antre ElRey d. Fernando, e D. Affonso de Lacerda, que se chamava Rey de Castella por cõcordia dambos, dera, e pronunciaraõ outra sentença porque ho dicto D. Affonso de Lacerda ouvesse pera si no Regno de Castella livres pera sempre estas couzas, ha saber Alva de Tormes, e Bejar (...). E que o dicto Affonso de Lacerda, entregasse ha ElRey D. Fernando certos Castellos, que tinha de Castella, e que leyxasse pera sempre o titulo, e selo, que tinha de Rey de Castella (...).

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5.4. D. Dinis contra seu filho. Guerra civil 1319-1324 Outro conflito em que interveio foi porventura o mais doloroso para si, aquele que por vários anos opôs o seu filho e o seu marido; neste, teve uma intervenção mais ativa, chegando mesmo a interpor-se entre

121 O

Breue Chronicon alcobacense, editado pelos PMH, Scriptores, I, diz: Era MªCCCªXII, Vº idus agusti Ingressus fuit Rex dionisius et helisabet uxor sua regnum aragonie, scilicet, civitatem tarraconam ad reformandam pacem inter regem Jacobum Iames ara. Frater dicte regine et rex fernandum castelle. O Chronicon conimbricense, editado ibidem, diz também: Era MªCCCªXII Vº Idus Augusti scilicet uigilia sancti laurencii ingressus fuit Rex dionisius cum uxore sua regina donna elisabet villam que vocatur Taracona in regno aragon. ad reformandam pacem inter regem castellen. Et regem aragon. et quecumque incepit illuc perfecit, et rex aragon. erat donnus iohanes filius regis donni petri frater dicte donne helisabeth Regine port. Et rex castelle erat donnus fernandus filius regis donii satii. A Crónica Geral de Espanha de 1344 relata também este conflito e a arbitragem do rei português, nos capítulos DCCXX-DCCXXIII. É de particular importância, pois o seu autor é um dos elementos da comitiva que acompanhava D. Dinis, seu filho ilegítimo, o Conde de Barcelos, que foi, pois, testemunha dos acontecimentos que descreve. (...) Ena era de mil e trezentos e quareenta e dous annos, estando el rey dom Denis na Guarda, ajuntou hy sua companha pera hyr determinar aquella contenda que era antre os reys, como já ouvistes, e escolheo, antre todos, mil cavalleiros de linhagem pera levar consigo e os outros leixou na terra com o iffante dom Affonso, seu filho; ca elle avya outros filhos que nom eram da reyna, dos quaaes diremos adeante, que ficarom no regno com o iffante, senom huum que avya nome dom Pedro, que despois foi conde en Portugal, que entom era mayor de dias que os outros. E este foy com seu padre esta vez. (Cap. DCCXXI).

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as fileiras de soldados, no campo de batalha. Podemos identificar as fontes históricas escritas de que se serviu Perpinhão, que ao conflito dedica grande parte do livro II de De Vita et Moribus Beatae Elisabethae Lusitaniae Reginae, e constatar o esforço de alcançar a veracidade que tão zelosamente procurou para o seu relato. No conflito que opôs D. Dinis ao filho legítimo, o Infante D. Afonso, a Rainha teve efetivamente um papel muito ativo. Em vários momentos evitou que pai e filho chegassem a vias de facto, para além de, por todos os meios, solicitar a intervenção de terceiros para apaziguar os ânimos; mas também não é despiciendo o facto de que, como se deduz das próprias fontes medievais conhecidas, a mãe ter protegido o filho e tentado salvaguardá-lo das iniciativas hostis do pai. Perpinhão enfatizou este desempenho da Rainha, e, se confrontarmos o seu texto com as fontes onde buscou informação e se analisarmos o que diz consultando informação coeva, veremos que há, nas suas palavras, muito rigor de historiador. A fonte principal é a Lenda bem como as crónicas dos reis de Portugal, como se lhe refere, mas que cremos serem essencialmente as Crónicas de Rui de Pina, nomeadamente a Crónica del-Rey D.Dinis. Apesar de este cronista ter composto as suas crónicas baseando-se no texto da Crónica de Portugal de 1419, e de as similitudes serem muito grandes, cremos que é Rui de Pina que Perpinhão consulta. Podemos vê-lo em alguns pormenores. Por exemplo, ao dar início ao relato do conflito que opôs o Infante D. Afonso ao pai, ambas as narrativas destacam as razões por que aquele devia estar agradecido e mostrar-se obediente e humilde a D. Dinis; entre as várias razões, comuns aos dois textos, a Crónica dos Sete Primeiros Reis de Portugal, logicamente naquela parte que corresponde ao reinado de D. Dinis, fala da sua dor por ter perdido um neto, enquanto Rui de Pina, também na sua Crónica de D. Dinis, 122 fala de dois netos que à data já tinham falecido e o mesmo diz Perpinhão. 122 As citações são feitas, no primeiro caso, da edição de Tarouca (1952); no segundo (Rui de Pina), no que diz respeito a este conflito, da edição da Crónica de D. Dinis (segundo

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Perpiniani, De Vita, pp. 263-264 O rei sempre estimara e amara muito seu filho Afonso e dera muitos sinais importantes e certíssimos do seu amor para com ele: quer porque, com enorme solicitude e perigo, conseguira que lhe fosse dada como esposa Beatriz, irmã e filha de rei; quer porque, ainda mal completara seis anos, logo lhe deu Beatriz em casamento, em Coimbra, lhe estabelecera uma casa muito grande e muito bem equipada, à parte, com tratamento régio, e lhe atribuíra avultadas rendas, de modo que não apenas fornecessem em abundância o que lhe fosse necessário para vestuário e alimentação e para o sustento de tão grande casa, mas também que permitissem confiar muitos cargos e benefícios a servidores dedicados e trabalhadores123; quer porque,

Crónicas dos Sete Primeiros Reis de Portugal, pp. 80-81 Bem ouujstes, como disemos, que elRey D. Denjs trouxera por esposa do Jffamte D. Afonso seu filho, Dª Byatriz, Jffamte, jrmãa delRey D. Fernando de Castela, quando casou com ele sua filha Dª Constança. E trazendoa elRey em sua casa, e pera os casar vyo tempo, fez lhe suas vodas, e deulhe grandes riquesas, e a sua molher boas vilas, dos mjlhores lugares de Portugal. E foy feito conselho, que podja auondar a ele e a sua molher e ofeciaes e gentes, andando pelo Regno, e acharom que lhe auomdarja per todo XIII mil marauedis, e que por esto podrja muj bem viver. (…) E elRey ho omraua mujto maravilhosamente, mostrandolhe muy grande amor em todalas cousas, procurando por lhe dar a crjar seus filhos muy nobremente. O qual ouuera

Rui de Pina, Crónica de D. Dinis, p. 100 Atras fica escripto as dificuldades e trabalhos cõ que elRey dom denis casou o Jffãte dom Aº seu fº cõ a Jffante domna briatiz fª delRey dom sancho de castella e por lhe ter grande amor e afeiçã como arezã natural obriga lhe deu cõ sua molher casa em lixª cõ muytas e muy sumptuosas festas para que de seus pouos ouue grandes ajudas e aly se acha que alem de muytas villas e terras que tynha lhe hordenou mays de seu asentamento em cada huu año oytenta mil liuras que estimadas segº a valya da prata da quelle tempo valyã de moeda dagora trinta e dous mil cruzados arezã de duas liuras e mª huu cruzado que he a verdadeyra cõta e açaz aprouada como outras vezes dise. Asy em todollas outras cousas que ocorryã que se vyo que o honrraua e estimaua muyto e tinha cuydado de lhe criar seus fºs por que jaa atee

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o códice inédito nº 891 da Biblioteca Pública Municipal do Porto, seguida da versão actualizada da edição Ferreiriana de 1726). Porto: Livraria Civilização – Editora, 1945. 123  Estas informações recolhe-as numa passagem anterior das duas crónicas, sendo Rui de Pina a fonte privilegiada:

Crónicas dos Sete Primeiros Reis de Portugal, Rui de Pina, Crónica de D. Dinis, cap. XII pp. 45 Partiose dahy elRey D. Fernando, e leuou com sygo a Rainha Dª Constança. E ElRey D. Denjs trouxe a Jffante Dª Brjatiz, jrmam delRey D. Fernando, filha delRey D. Sancho e Dª Rainha D. Marja, por esposa do Jffante D. Afonso, seu filho. Trouea sempre comsyguo, ate que depojs casou. E ao Jffante deu loguo sua casa, porque ele emtom nom fosse de ydade majs de sejs anos. E teue elRey por bem de lhe a dar, porque o amaua muyto de coração. E lhe deu grande terra com grande contia, e mujtos vassalos e boms. Escolheo elRey os majs homrados homens que avya em seu Regno.

Acabadas estas cousas elRey dom fernãdo se partio dalcanizes cõ a Raynha sua molher E elRey dom denis trouxe logo cõsygo para Portugal por esposa do Jffante dom aº seu fº a Jffante domna briatiz Jrmaã delRey dom fernãdo filha delRey dom sancho e da Raynha doña mª. A qual sendo ajnda muy moça andou muy homrradamente em casa do dito Rey dom denis em quãto ambos erã somente casados por palauras de futuro cujo prometimento se fez por eles na çidade de cojmbra na era de cesar de j iij Rb e do anno de Xpo dej iiJ bij, honde elRey dom dinis deu logo ao jffante seu filho semdo de idade de seis anos casa muyto honrrada de muytos vassalos e Ricos homens E de seu assentamento lhe deu grande cõtya de drºs e muytos lugares de sua Jurdiçã e para ter pessoas deseu cõselho e para ofiçiaes de sua casa e fazenda lhe deu os homens mays prinçipaes que em seu Regno sentio que para ysso seriã milhores e mais pertencentes, (…)

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com grandes gastos, celebrara o casamento em Lisboa, depois do regresso de Aragão, com todo o aparato de divertimentos e banquetes, com enorme afluência; quer porque sofrera tão intensamente e suportara com tanta dificuldade a morte extemporânea de dois netos seus, que morreram meninos, que, de Roma, o Pontífice Máximo se esforçou por aliviar o grande pesar do seu espírito despedaçado, consolando-o através de uma carta.

já em este tempo o Jffante D. Denjs. Pola qual rezão lhe ele devera de ser muyto omjlidozo. (…) Em esta sezão moreo o Jffante D. Denjs; seu avo, elRey, tomou grande nojo. E o Papa lhe espreueo huma carta consolatorja, que não tomase nojo por sua morte; a qual carta ele ouue.

este tempo elle ouuera o Jffãte dom aº que minino faleçeo em penela. E asy ouue o Jffãte dom Dinis que elRey dom denis seu avoo cõ grande Amõr criaua em sua casa e nella faleçeo moço por que elRey foy tã Anoxado e triste que nõ sabia nem podia cõ nhuua cousa ser ledo nem cõsollado, em tãto estremo sentio a morte deste seu neto que o ppª lhe escreueo sobre ysso huu breue de cõsollaçã cheo de m.ta prudençia e grandes confortos (…)

A Lenda não se pronuncia sobre esta questão, isto é, sobre as razões por que o Infante devia estar agradecido ao pai e mostrar-se obediente. Estas informações e outras subsequentes, encontraram-nas provavelmente os cronistas no primeiro manifesto de D. Dinis contra o Infante, datado de Julho de 1320, no qual fazia a lista das queixas que tinha do filho; os outros dois manifestos que se seguiram serviram também de base ao relato dos cronistas. 124 De igual modo, sobre as causas do conflito, a Lenda nada diz, mas Perpinhão encontrou-as nas outras fontes. Com efeito, elas vêm elencadas quer na Crónica de D. Dinis, de Rui de Pina, quer na Crónica dos Sete Primeiros Reis de Portugal/Crónica de 1419. Se esta fala da antipatia do Infante pelos bastardos Afonso Sanches e o Conde D. Pedro, a de Rui de Pina fala da antipatia entre o Infante e os bastardos Afonso Sanches e João Afonso, tal como faz Perpinhão, o que nos leva a reafirmar a ideia de que, quando fala das crónicas dos reis da Lusitânia, se está a referir às narrativas de Rui de Pina:

124  Vejam-se os seguintes estudos: Fernando Félix Lopes (1967), “O primeiro manifesto de El-Rei D. Dinis contra o Infante D. Afonso seu filho e herdeiro”. Itinerarium, 55, pp. 17-45; Idem (1970), “Santa Isabel na contenda entre D. Dinis e o filho. 1321-1322”. Lusitania Sacra, VIII, pp. 57-80; Idem (1997), Santa Isabel de Portugal – A larga contenda entre el-rei D. Dinis e seu filho D. Afonso. Braga.

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Perpiniani, De Vita, p. 264 Tudo nasceu, depois, do seguinte: queria obter as riquezas, os recursos e os tesouros do pai, com mais cupidez do que era conveniente a um filho; queria usurpar a administração de todo o reino, as questões sobre assuntos capitais, toda a jurisdição, apesar de vivo o pai e com uma idade ainda suficientemente firme e íntegra para governar o reino. A tudo isto se juntava uma inveja completamente enraizada no seu peito, que deformava o seu espírito excitado de adolescente. A verdade é que, acima de tudo, Dinis tinha dois filhos, Afonso Sanches e João Afonso, e a estes, não legitimamente nascidos, estimava-os particularmente, encontrando-os sempre, em todas as situações, dóceis para si e submissos à sua vontade. Esta situação, não a podia Afonso suportar com indiferença; ainda que fosse tratado, pelo rei, liberal e honradamente, como convinha ser feito com um filho e herdeiro, todavia, no amor, não conseguia suportar um companheiro e émulo, desejava ser o único.

Crónicas dos Sete Primeiros Reis de Portugal, p. 82 Tres rezões achamos çertamente,que mouerom ho Jffamte D. Afonso a ser desobediemte a seu padre, segundo verejs ao diamte. E nenhuma delas porem não he rezoada. A prjmejra: o grande bem que elrey D. Denis querja a Afonso Samches, e ao Conde D. Pedro, seus filhos naturaes. E a segunda; gram cobyça, e desordenada, de cobrar os tisouros, que elRey seu padre tinha. A terçejra: queremdo em toda gujsa que elRey tirase de sy a justiça e a desse a ele,pera livremente usar dela.

Rui de Pina, Crónica de D. Dinis, pp. 101-102 E segundo o que acho e pude comprehender tres rezões ouue e todas sem causa nem Rezã por que o Jffante dom Aº se moueo a esta sua desobediençia cõtrª seu padre das quaes a primrª foy enueja por sentir que elRey dom denis queria grande bem adom aº Sanches e ao cõde dom Joã aº seus fºs naturaes, os quaes segumdo se acha, nõ seruiã e acatauã ao Jffante como elle desejaua e merecia. E deste cõto nõ era o cõde dom pº também seu fº bastardo, e de todos os bastardos o majs velho: por que sempre teue a parte do Jffante. E por ysso arequerimto daº Sanches foi desterrado de Portugal para castella e todas suas trrºs e fazenda tomadas: e depois recobrado como ao diãte se diraa. A segumda causa foy agrande cobiça e desordenado desejo que sempre teue de aver e cobrar para sy as Riquezas e tesouros delRey seu padre. A 3ª por querer que em toda maneira elRey leyxasse e tirase de sy aJustiça e gouernãça do Regno e liuremrnte aleyxase aelle.

A Crónica Geral de Espanha de 1344, da autoria do Conde de Barcelos, D. Pedro, filho ilegítimo de D. Dinis, 125 e, por isso, conhecedor e participante destes acontecimentos, enfatiza este amor aos outros filhos ilegítimos, Afonso Sanches e João Afonso, e a pouca reverência que estes mostravam pelo legítimo herdeiro, bem como a inimizade que tinham a D. Pedro:

125  Lindley Cintra, Crónica Geral de Espanha de 1344, I-IV. Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1951, 1954, 1961 e 1968.

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9 E el rey dõ Denis avya III filhos que nõ era de sua molher, convem a saber: o conde dom Pedro, e D. Affonso Sanchez, e outro que ouve nome Johãne Affonso. E el rey amava muyto Affonso Sanchez e fazia muyto do que elle queria. E, por que o diaboo he contrayro a todo bem, meteo a alguus em coraçõ de meter todo mal antre elle e o iffante, fazendolhe entender que non amava o seu serviço. 10 E esto avyam elles por que Affonso Sanchez nõ guardava o iffante nem se chegava a elle como compria e en esta maneira se ajuntava a elle o outro irmãao que avia nome Joham Affonso que era o menor. Dom Pedro, que era o mayor, chegavasse ao iffante e aguardavao e conhocialhe senhorio. 11 E por esta razom ouverõ os outros irmãaos delle muy grande escândalo e buscarõlhe mal cõ el rey, seu pai.(…) 16 Despois desto, ordenou dom Affonso Sanchez com el rey que tolhesse a terra ao conde dom Pedro; e elle foysse pera Castella e andou la III anos e meo. (IV, 252-253)

O conflito entre D. Dinis e D. Afonso terá surgido pelo facto deste se convencer que o pai pretendia legitimar o bastardo D. Afonso Sanches, pelo favoritismo que revelava em relação a ele. Incitado por aqueles que o rodeavam, nobres descontentes com a ação do rei126, o filho revoltou-se contra o pai e deu início a uma guerra civil que durou, com alguns períodos de tréguas de permeio, de 1319 a 1324. D. Dinis usou, a princípio, meios persuasivos e alguma bondade, mas, depois, viu-se obrigado a recorrer à violência. D. Afonso, por sua vez, solicitou a intervenção em seu favor da rainha D. Maria de Molina, sua sogra, a cuja corte se dirigiu com a mulher e os filhos, contra a vontade do pai; esta fez a vontade ao genro, mas esbarrou com a negativa de D. Dinis. A Lenda não refere esta incursão da rainha castelhana nos assuntos do reino português, pelo que Perpinhão terá encontrado informação nas crónicas referidas que, por sua vez, se terão baseado 126 Consulte-se, sobre este período e sobre este conflito, Pizarro (2008), pp. 232-252, que estuda e sistematiza as conclusões das investigações sobre as referidas questões; José Mattoso (1982), “A guerra civil de 1319-1324”, Estudos de História de Portugal. Homenagem a A.H. Oliveira Marques., vol. I, Editorial Estampa, Lisboa, pp. 163-176.

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nos documentos de D. Dinis, nomeadamente no seu primeiro manifesto contra o filho. O relato das Crónicas dos Sete Primeiros Reis de Portugal/ Crónica de 1419 é mais sucinto; Rui de Pina, contando o episódio de forma idêntica, acrescenta-lhe os nomes dos instigadores da atitude do Infante e o intermediário da Rainha D. Maria, desenvolvendo também um pouco mais a resposta de D. Dinis à sua interferência. Perpiniani, De Vita, p. 265. Crónicas dos Sete Primeiros Reis de Portugal, pp. 86-87 Instou sua sogra Maria, E ele depojs que vyo que rainha de Castela, a a seu padre desto em escrever ao seu pai e nemhuma cousa lhe não a dizer-lhe que tinha aprazia, ouue suas falas grande desejo de ver a per alguns com a Rainha filha e o genro, pedindo- Dª Maria de Castela, sua -lhe e exortando-o a que sogra. E ela emujou mujto os deixasse ir até ela. rogar a elRey D.Denjs, que Mas, como Dinis negou o emujase la o Jffamte e sua pedido que a rainha lhe molher pera os ver, e não fazia, suspeitando que emujando dizer pera que tão súbito desejo fora cousa, ou que prouejto. E engendrado pelo filho, elRey que sabya bem per este foi visitar a sogra alguns que amdauom em sem o conhecimento e Castela, que taes vistas contra a vontade do pai. nom erom de seu provejto, Ainda mal regressara, dise ao Jffante, que escueis que, de repente, uma sasse este camjnho, que mensagem de Maria fosse certo que não era para o rei, pedia insis- de seu prouejto, amte era tentemente e suplicava de deserujço seu e de seu que entregasse o governo pouo e da terra. (…) de todas as coisas a E o Jffamte não qujs leiAfonso. O rei, repreen- xar de segujr seu talante. dendo delicadamente E foy ver a Rainha sua um pedido tão alheio sogra, contra vontade e à prudência de tal rai- mamdado do pay, por falar nha, demonstra-lhe por com ela algumas cousas, que razão não convinha que erom de deserujço delque tal se fizesse. Afonso Rey, segundo ele foy certo. que, por acaso, estava E a Rainha mamdou rogar presente, aceitando mal e pedir a elRey que dese a resposta que lhe fora o regimemto da justiça ao dada,despediu-se do pai Jffamte. ElRey vemdo a e afastou-se irado; desde manejra da cobiça, a que essa altura, sempre evi- se o Jffamte demouja a tou a sua companhia e demandar esto, se foy a seu presença. filho. Emtam estranhoulho mujto, e não o qujs fazer. E o Jffamte partyose delRey muj sanhudo, e com muj grão quejxume.

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Rui de Pina, Crónica de D. Dinis, pp. 102-104 E por q o Jffãte vyo que elRey seu padre em alguma parte desta lhe nõ satisfazia, acõselhado e Jnduzido falsamente de hum Gomez L.do vogado de beja fº de huu carpint.ro que depois foy freire de santiago teue taes meos e Jntelligencias cõ a Rajnha dõna mª de castella Sua sogra q ella enujou pidijr aelRey dom dinis que porquãto desejaua muyto ver sua fª e seu genro o Jffãte e seus netos q Jaa tinha ouuesse por bem que eles a fosem ver Acastela. (….) o Jffante nõ desistyo de seu propósito e sem L.ça e contra mando delRey foi todavia e leuou a castela a Jffante domna briatiz sua molher (…) e nõ passarã muytos djas q logo nõ veyo aelRey dom dinis em nome da RaJnha domna mª sogra do Jffãte huu pº Rendel ouujdor da Justiça em casa delRey dom fernãdo de castella, e da sua parte cõ grande jnstãçia lhe requereo epidio que por algumas causas coroadas q apõtou desse o Regimento da Justiça de seus Regnos ao Jffãte dom aº seu fº do qual requerimento elRey cõ grades estranhamentos se escusou marauilhãdose muyto da bondade e prudençia da Rajnha Requerer tal cousa tã contrayra atoda rezã e honestidade por que em caso que elle por velhice ou por outºs Jmpedimentos que teuera requerera ao Jffãte seu fº para tomar semelhãte regimento aJnda elle como fº obediente sendo seu pay viuo e em boa Idade para reger como era, se devera disso escusar quãto majs querer e forçar o q boõ nunqua fizera, e desta reposta delRey a que o Jffãte era presente elle como agravado e muy anojado se despedio logo de seu pay e folgou sempre Amdar apartado delle.

Segundo estes cronistas, fundamentados nas palavras do primeiro manifesto de D. Dinis acima referido, o Infante tentou, depois, por meio de embustes, de forma desonesta, incriminar Afonso Sanches num plano para pretensamente o envenenar; fez forjar escrituras públicas, em que se atestava, com testemunhas e autoridades, que fora executado, em Castela, um homem que planeara envenená-lo a mando daquele. D. Dinis desconfiou do embuste, até pelo simples facto de o Infante recusar mostrar-lhe o documento oficial enviado pelas autoridades de Magazela, onde supostamente ocorrera o episódio; mandou fazer as suas próprias investigações, chegou à conclusão de que tudo fora forjado pelo Infante e seus aliados, e disso deu conhecimento ao reino. A Lenda não refere o episódio, mas ele é detalhadamente relatado nas crónicas acima referidas, com poucas variações. Perpiniani, De vita, pp. 265-266 Para comprometer o irmão inocente que invejava com um pretexto honesto, falsificou uns documentos públicos, enviados supostamente de Magazela (a cidade que fica nos limites extremos de Castela), cuidadosamente assinados, nos quais estava escrito o seguinte: que naqueles lugares tinha sido assassinado alguém, por certos homens lusitanos (os nomes deles estavam ali escritos), que confessara, estando já às portas da morte, que preparara veneno por ordem de Afonso Sanches, para matar o irmão Afonso, herdeiro do trono da Lusitânia. Enviou um exemplar da carta a Dinis, pedindo-lhe que não deixasse

Crónicas dos Sete Primeiros Reis de Portugal, pp. 88-94 Auendo ho Jffamte grande ramcor em sua vontade pola bemqueremça que elRey amostraua a Afonso Samches, cujdou em seu coraçam como azarja, que o matase elRey e deytase em toda gujsa fora do Regno. E falou com alguns seus, que fosem fora da terra e fizessem esprituras pruujcas pelas quaes se mostrasse claramente, que eles forom buscar e acharam homens, a que Afonso Samches pejtara que dessem peçonha ao Jffamte, com que morese. E os que emujou fora do Regno pera esto, forom hum que auja nome Pero Gujlhelme, e outro Pero Gonçales, que ueujom com ele. E a cabo de tempo chegarom estes e trouuerom estromemtos pruujcos, os quaes ho Jffamte, estando em Cojmbra, fez proujqar peramte os jujzes do dito caso. E loguo pedio que lhe desem deles o trelado em pruujca forma. (…) (…)

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Rui de Pina, Crónica de D. Dinis, pp. 105-110 Porque a maginaçã q o Jffãte tinha do bem que elRey queria aº Sanches seu fº o trazia sem causa em m.ta dor e cuydado para desto ser liure elle cõtª oque aseu Real sangue eestado se deuya fantesiou em sua memoria huu emgano cõ que falsamente e cõ alguu achaque omatasse ou elRey o desterrasse do Reyno. E isto foy que o Jffãte falou secretamente cõ huu pº gujlhelme e cõ outº pº glz q viuia cõ elle em q muyto fiaua aos quaes mãdou que fossem fora da trrª e dellas trouxessem scripturas cõ synaes e mostrãças deserem publicas e muy autenticas e verdadeiras por q claramente se mostrasse q eles de mando do Jffãte forã buscar e chamar homens a que o dito aº Sanches peytara por q trouxessem e dessem tal peçonha ao Jffãte dom aº de que logo morresse.(…) (...)

sem castigo um crime desta gravidade. Mas este homem, de espírito penetrante e manhoso, que via não só aquelas coisas que lhe eram colocadas diante dos olhos, mas que podia também conjeturar as ocultas, uma vez que o filho se recusava a dar-lhe aquela carta original que dizia ter-lhe sido enviada, e porque suspeitava desta situação, imaginou uma coisa singular: tratou de que lhe fossem trazidos secretamente da mesma cidade outros documentos verdadeiros, assinadas com os selos de todo o Conselho, nos quais se revelasse serem falsas e inventadas aquelas coisas que estavam contidas no primeiro documento; que nunca, naqueles lugares, se cometera um crime daquela natureza, nunca tinham existido ali aqueles homens que eram nomeados, nem aqueles nomes, na verdade, alguma vez ouvidos.

E eles lhe emujaram dizer que tajs cousas como aquelas numqua aly acomtecerom, nem ouujrom falar. E que no tempo que o estromento comtaua que fora feyto, não auja tabalyam naquele lugar, que asy ouuese nome, nem nunqua ho hy ouuera desque se eles acordauom. Nem auja hy costume que o que fazia as cartas nem estromentos, se chamaua notayro, mas espriuão pruuico. Nem auja hy tal alguazil, nem homem que asy ouuese nome, nem aujom por costume de lhe asy chamar, mas chamauom lhe juiz. Nem auya hy taes alcaydes em aquele tempo, nem homems que asy ouuesem nome. Nem taes vaquejros, nem homens presos nem soltos, nem numqua aquele lugar vierrom, nem tal estromento, numqua dele souberom parte, nem se fizera. Aly, em seu termo, nom auya lugar que se chamase Val de Gama, nem na vjla não moraua caualeeyro que ouuese nome Ruj Samches. E auja mais de sejs anos, que numqua entrarom suas vaquas em seu termo, porque quando hy emtrrauom, loguo as esprjuiom todas pera auerem seu direyto. Nem ouujrom dizer que numqua tal homem aly fora morto. E por majs avondamento emvyaromlhe escrjtos todos hos nomes dos homens que hy morauom. E não auya nenhum amtre eles de tajs nomes como no estromento nomeaua. E emvyaromlhe dizer que numqua ujrom carta do Jffante sobre aquelo, nem homem que asy ouuese nome, nem sabyom de tal cousa parte. E todo esto lhe emujarom dizer por sua carta, asynada e aselada do selo do Conselho e dos seus. E quando elRey uyo esta resposta, emtemdeo que aquelo era gramde falçedade, e loguo sospeitou porque fora feyta, com gramde sospeita, que ouue desto e doutras cousas mujtas, em que lhe o Jffante era desobediente.

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Com esta resposta do Jffãnte em que pareçeo que elle se çaraua para perfeytamente se nõ saber averdade do caso que deseja, ElRey para tirar disso sospeições e escrupolos da võtade ante tudo ouue por bem de enujar como enujou por massageiro avysado sua carta de Rogo aos do conselho de magazella encomendolhes q do caso que nos estºs era particularmente apõtado lhe mãdasem dizer averdade E q vyesse por todos bem autorizado os quaes Juntos todos em seu cõsistorjo maravilhados primeyramente detal noujdade lhe respõderã sustãçialmente que todallas cousas cõtehudas nos ditos estºs somente huua nõ fora nem era verdade porque na quella villa nõ avia nem nunqª ouuera taes homens que fosem Justiças nem o tam nem os taes vaq.ros nem memoria q tal feyto como a quele acõteçesem em magazella e em seu termo nem em toda aquella comarqua sobre que fizerã grandes diligençias deque enuyarã aelRey dom dinis suas certidões asynadas cõ o sello do cõselho cõ esta reposta de magazella em que a falsidade foy bem compreendida (…)

Antes de se declarar abertamente o conflito, o Infante e os seus aliados ainda tentaram de novo chamar a atenção para a injustiça de que estava a ser alvo, divulgando publicamente que seu pai se esforçava por legitimar o bastardo para que viesse a herdar o trono, uma vez que o legítimo herdeiro parecia não estar bom da cabeça. A Lenda também não refere este facto, mas fazem-no as Crónicas e provam-no o manifesto acima referido, bem como a carta enviada pelo Papa, a quem supostamente fora feito aquele pedido 127; nesta, o Papa João XXII dá conta dos boatos, nega que algum pedido dessa natureza lhe tenha sido dirigido, a si ou a algum dos seus antecessores, e exorta todos os envolvidos nesta situação, Infante, D. Isabel, D. Dinis e o filho ilegítimo, a promoverem a paz e a concórdia entre si. Perpinhão, registando tudo o que estava contido nas fontes consultadas, não deixa também de o referir.

127  Na

tradução incluída nas Crónicas dos Sete Primeiros Reis de Portugal, pp. 104-106: No outro dia ueyo a nosas orelhas per recomtamento de muytos que não deuemos ca declarar… se trabalhão per falsos acometimentos de semear semente de desconcordiaas antre o muyto amado nosso filho D Denjs, nobre Rey de Portugal, e ho homrado barão D. Afonso, seu filho, primogenjto, e amtre o dicto Jffante D. Afonso e ho nobre barão Afonso Sanches, filho natural do dicto Rey D. Denjs, que ese rey nos sopricara que descompemçaçemos com ho dicto Afomso Sanches, seu filho natural, que lhe não competeçe des faleçimento da naçemça, que pudesse erdar o Regno asy como se fosse lidimo. E que esse Afomso Sanches nos emujara dizer algumas cousas contra o dicto Jffante. (…) Sobre estas cousas damos testemunho amte a facee daquele que he Vida e Verdade, que numqua sobre tal despençação Nos foy soprjcado, per palavra, nem per esprito, da parte do dito Rey, nem doutro algum. E ajnda que nos fose sopricado sobre tal cousa, trabalharemos de lho não comprjr, e faremos rezão. E queremdo nos ajnda ser majs certos, se tal sopricação fora fejta a alguns dos Nosos amtecessores, ou se lhe derom tal despemçação, fizemos ler os Registos do Papa Bonifaçjo VIIIº e do Papa Clemente Vº, e achamos fielmente per aqueles, que os mandamos catar, que em nenhum dos Registos nom he feyta memção de tal despemçação, como esta de Afonso Sanches. Semelhauelmente damos testemunho de verdade, que numqua contra ho dicto Jffante, nem contra nenhum outro, emujou dizer nenhuma cousa a Nos que Nos saibamos. Ajnda majs que nunqua Nos lenbra que por sy, nem por outrem Nos emujase nenhuma soplicação. Porem vos rogamos a todos, pola mjsericordia de Jesus Christo, que as falçidades de tajs maldições non outorgues, temdo sem duujda que são grande mentira; e dade obra e ajuda quanto puderedes, por que ho Jffante obedeça tão bõo padre, asy como he rezão e direjto, e o padre faça o que deue de fazer a tal filho de tal estado, e outros y que ho dicto Afomso Samches syrua ho dicto Jffante como Senhor, asy como he rezão. E o Jffante ame e faça a Afomso Samches como a seu jrmão natural.E asy antreles aja carjdade pera sempre, que he madre de todas vertudes e quebranta a malquerença.

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Perpiniani, De Vita, p. 206 Crónicas dos Sete Primeiros Reis de Portugal, pp. 100-104 Afonso, magoado pelo facto Vemdo ho Jffante como de a manha do pai ter ridi- nenhuma destas cousas cularizado a sua, espalhou vinha como a seus deseo boato, por toda a Lusitâ- jados preposytos querja, nia, de que Dinis, de acordo comesarom alguns, que com os desejos de algumas com ele veuyom, a dizer em povoações, reclamara o Cojmbra onde ele estaua, e seguinte nos pedidos ao em Santarem onde elRey Pontífice Máximo: uma estaua, que elRey fizera vez que o filho, herdeiro do por huma carta a XXXII trono, não parecia andar conselhos dos mjlhores suficientemente bem da da sua terra, poer os seus cabeça, como não estava selos e o selo de cada hum apto para assumir tama- homem dos majs homrados nho cargo, e como não que em estes lugares avya, tivesse mais nenhum filho e que posera elRey o seu. legítimo, queria e ordenava E fizerom espreuer em ela, que Afonso Sanches fosse que ele e estes homens considerado como legítimo booms em conselhos, para receber a herança do faziom saber ao Papa, que trono. o Jffante D. Afonso não era O rei desmentiu facilmente homem pera ser Rey, porestas falsidades com os tes- que nom auya syso nem temunhos públicos de todas entendimento, que andaua as cidades e com uma como sandeu desmemorcarta do próprio Pontífice jado, tirando as aranhas Máximo, João XXII, que pelas paredes. E porem não só testemunhou que lhe pediom por merçe, que era sem fundamento que se legitimase Afonso Sanches, atribuía tamanho crime a quando elRey morese que tão grande rei, como acon- erdase os reynos e que ele selhou o jovem exultante mamtiuese ho Jffante. com a audácia a que, como (…) filho, não se incompatibili- Chegou recado a Corte zasse com tal pai, graças a que elRey D. Denjs emucujo interesse e julgamento, jou, em que fez saber ao tinham sido extintos os con- Papa como lhe o Jffante era flitos de reis estrangeiros. desobediemte em muytas cousas. Espjcjalmente lhe espreveo e fez gramde quejxume daqujlo, que os seus amdauom fazendo e dizendo em rezão de legitimação de Afonso Sanches, e de todolas outras cousas que dele defamauom. E ao Papa pesou muyto da desauemça que amtre elos auya. E estando ElRey nos paços de Bemfiqua, que sam huma leguoa de Lixboa, chegou huma carta do Padre Santo, a qual ela fez ler, e proujquar, que dizia em esa gujsa: (etc)

139

Rui de Pina, Crónica de D. Dinis, pp. 114-115; 118-119 Mas o Jffãte vendo que as cousas passadas que por morte ou desterro de aº samches seu Jrmaõ nõ tynha soçedido aa sua võtade para esprementar se cõ o pouo do Regno o podia fezer ordenou estado elle em coJmbra e asy em santarem honde era elRey que se disese como por muytos dos seus publicamente se dizia que elRey cõ asynados e sellos seus e de trinta eduas çidades e villas principaes de seu Reyno enujara cartas de çeridã ao papa por q lhe çertificara que o Jffãte dom aº por falecimento de syso natural e por out.ºs grandes defeytos que tinha nõ era auto para ser rey por que como paruo e desmemoreado andaua tirado as aranhas das paredes e que por ysso pediã a sua sñtidade por merçe que ligitimase o dito aº samches para despois de sua morte Reynar por q para tal soçessã era muy pertencente e q elle das Rendas do reyno mãnteuesse o Jffãte seu Jrmaõ em sua vida. (…) Polla notificação que elRey dom denis fez ao ppª Joaõ xxij das desobediençias e pouqº acatamento que o Jffãte açerqª delle vsaua e asy o que neste reyno falsamente se dizia q elRey acusando defeytos do dito Jffãnte lhe soplicara polla legitimaçã do dito aº Sanches para Reynar sua snctidade em Reposta disto emujou a elRey dom dinis porsy e todollos estados de seus Reynos suas bullas patentes em q cõ palavras de padre bom e piedoso se doe E maraujlha da discordia dãtre o pay e o fº e asy afirma e da testº como vigario Jndigno de xpo q doceo descendeo pera dar testº de verdade q aquellas defamações e aleuãtamentos cõtra elRey E tocauã ao dito aº Sanches seu fº natural todas erã falsas E que em seus tpos taes requerimentos e supplicaçã nunqua lhe fora feyta nem as provisões de tal causa nõ se cõçederã nem pasarã em seu tpo nem nos tpos dos pp.as bonifaçio viijº e do ppª benedicto xj. Nem do ppª clemente vº seus predecessores cujos resistos para mõr justificação desto mãdara cõ diligençia buscar e porem que atodos por muytas e bõas causas que apõtou encomendaua que por serujço de ds e por boõ asesego do Reyno procurassem antre todos pãz e amizade como era rezã.

O pretexto para o começo das hostilidades começou por ser uma visita de D. Afonso ao santuário de S. Vicente, supostamente para rezar, mas, segundo outras perspetivas, para atacar Lisboa. A Lenda128 refere que: Depois a tempo que veerom de Aragom fezerom fazer vodas do dito rey D. Afonso, seu filho, e da dita Dona Beatriz, que eram ifantes. Estas vodas se fezerom mui ricas na nobre ciidade de Lixbõa. E viindo já o dito rey D. Afonso, seendo ifante, por lo reyno em sa parte com sa molher, de mandado delrey, seu padre, fazendo morada na ciidade de Coimbra, por ir em romaria a S. Vicente de Lixbõa, e leixou a ifante, sa molher, e o ifante D. Pedro, seu filho, que já em aquel tempo era nado, em Coimbra. E, des que comprio sa romaria, tornando-se de Lixbõa pera uma villa a que dizem Sintra, elrey seu padre e a rainha, sa madre, viinham-se de Santarém a Lixbõa. E elrey foi enduzido, segundo se dizia, pera apoderar o dito ifante seu filho; e esto nom no sabiam, nem entendiam senom aqueles que eram em aquele conselho.

Perpinhão desenvolve a informação, com base, talvez, no relato da Lenda, pois, tal como esta (bem como a Crónica de 1419), refere que o Infante deixara a Infanta D. Beatriz e o filho Pedro, em Coimbra, e não o conde D. Pedro, como refere Rui de Pina. Entre o relato de Rui de Pina e o da Lenda, Perpinhão encontra ainda outras diferenças; por isso faz uma ressalva sobre os motivos da ida do Infante a S. Vicente, tentando justificar a opinião de Rui de Pina de que a ida do Infante a S. Vicente fora um pretexto para atacar Lisboa, uma vez que essa não coincide com a versão da Lenda.

128  Lenda,

p. 1324.

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Perpiniani, De Vita, p. 267 Crónicas dos Sete Primeiros Reis de Portugal, pp. 107-108 Já anteriormente lhe E leyxou a molher em Cojntinha sido concedida bra, onde o Jffante estaua, e D. Coimbra, uma cidade Pedro seu filho, e leuou com nada pequena. Dei- syguo todos aqueles malfeitores xando aí a mulher e o e degradados e outras genfilho Pedro, acompa- tes. E foyse camjnho de Lejrya, nhado de uma tropa bem dizendo que querja yr a Lixboa sólida e significativa de em romarja a San Vicente. malfeitores, partiu, por E elRey que estaua emtão em motivos religiosos, para Santarem, quando soube que ele a basílica do mártir S. ya pera la e que leuaua comsyVicente, que fica situada guo aqueles omjziados, dise, que naquele promontório da pojs ho jffante ya tão perto dele Lusitânia,outrora cha- com aquelas gentes, que majs ya mado Sacro e que agora a maneira que de romarja e que recebeu este nome, em por tal cousa como aquela tomahonra do nome deste rom aqueles malfeytores mayor mártir. Sei que alguns atreujmento pera fazerem pyoescreveram que o pretexto res feytos, não avendo medo de religioso foi inventado e justiça, e daquelo podrja recresimulado para, sob pre- çer muj grande mal. E era a ele texto da piedade, entrar muj gram mynguoa, e ouue muj na cidade de Lisboa, na gramde pesar da ousamsa que o posse do rei, sem oposi- Jffante tomaua. Não quis loguo ção, para a ocupar sem jr comtra ele, mas mandou-lhe perigo e esforço, para dizer por Pero Esteuez e per a ter ocupada contra a Gomez Eanes, seus vasalos, que vontade do pai; talvez dejtase de sy tajs homens como assim falassem, então, os aqueles e os não leuase comsyque o presenciavam, mas guo, que ele os degradaua. esta fama derivava mais Respondeo ho Jffante e disse doutros feitos da sua que ele os não deitarja de sua audácia e dos seus acom- casa nem merçee, mas que ele panhantes e não tanto os trazerja comsyguo. por se ter um conhecimento seguro disso.

Rui de Pina, Crónica de D. Dinis, pp. 120-121 (…) pollo qual leyxãdo o Jffãte sua molher em cojmbra e cõ ella o cõde dom pº seu jrmaõ partindo dy e leuãdo cõsygo os malfeytores e degradados e outª muyta gente armada, foy caminho de Leiria cõ fama de hir a lixª em Romaria a sã v.te, mas a verdadrª tençã desua jda para tomar e lixª contª elRey estando em sãtarem e sendo certificado da maneira em que o Jffãte hya ouue tal atreuimento por grande seu desprezo que pareçia nõ aver algum temor nem vergonha delle nem de sua justiça espeçialmente pollo Jffãte vijr cõ todos homiziados tã junto delle e como qr q o primrº seu mouimento foy acodir logo a ysso com mays trigãça e moõr aspereza porem ouue por bem eujar lhe primrº dizer por pero esteuez e por gomez eañes seus vassalos q lhe Rogaua q lançase fora de sua cõpanhia os malfeytores q leuaua por q cõ eles mais pareçia hir fazer almogauaria em terra de Jnmigos que por comprir por sua deuaçã sua Romaria em sua terra própria ao que o Jffãte nõ quis satisfazer em este caso estes messageyros leueuã provisões por que em nome delRey ouuerã os ditos malfeytores por degradados fora do Reyno, o que cõ fauor do Jffãte nõ quiserã nunqua fazer.

Estando já o Infante em Sintra, D. Dinis, que o proibira de se aproximar de Lisboa com os homens que o acompanhavam, vendo a sua proibição ignorada, resolveu atalhar o mal e saiu ao seu encontro para o atacar, mas ele já retirara para Sintra; no dia seguinte o filho estava em Alvogas, desafiando ainda as suas ordens, pelo que o pai resolveu atacá-lo de surpresa. Neste processo a rainha interveio, ora avisando o filho do ataque que o pai secretamente planeava, ora aconselhando-o a

141

obedecer, ora rezando129. O relato da Lenda influenciou o de Perpinhão e o dos cronistas de D. Dinis 130: Perpiniani, De Vita, p. 268 Lenda, pp. 1325-1326 E se a Rainha, com a sua habitual diligência, não acudisse a tamanho mal, naquela noite, depois de estar constituído o reino da Lusitânia, perpetrar-se-ia um crime terrível. Com efeito, não faltava quem, com as suas opiniões, se esforçasse por inflamar o espírito paterno, por sua natureza já suficientemente ao rubro, nem quem considerasse que tamanha audácia devia ser pesada e severamente castigada e reprimida. Mas Isabel, ainda que tudo isto se desenrolasse em tal segredo que não sentira sequer a partida do marido, mesmo estando junto dele, logo que soube que ele tinha partido com uma tropa de homens armados, temendo pelo

Estando o dito ifante em Sintra, elrey, seu padre, chegou ao Lumiar, a uma legoa de Lixboa, e soube como o ifante era em Sintra, trasnoitou e gram parte de companhas pera aquel logo u o ifante era, fazendo ante perceber todos os caminhos e logares per u entendia que aaquel logo u o ifante era ir podiam, que nom leixassem omeem alguum passar, pera o ifante nom saber poder a que ele ia. E, pero em aquela noite elrey dormia u a rainha [era], e assi se percebeo elrey, pera (o) nom entender a rainha aquel logar u ele ir propõia, e recudio assi calando que ela nom pôde entender, nem saber, senom passado tempo, que elrey já dali partira. E a rainha, tanto que certa foi que elrey assi daquel logar gram noite partira, cavalgou, e, levando companhas armadas, consiirou que elrey nom ia senom apoderar o ifante,

Rui de Pina, Crónica de D. Dinis, pp. 121-122 (…) pollo qual elRey logo mãdou fazer prestes sua gente q muy.to ante menhã armados partirã e forã cotª olugar honde era o Jffãte e dizse q elRey hordenou esto ser feyto muy çedo e secretamente por que a rajnha onõ soubesse e de sua yda nõ avisasse logo o Jffãte mas a Rajnha maravilhada por sentir no lugar tãta reuolta e ver tãta trigãça e Rumores daparelhos darmas e caualos como soube q era cõt.ª o Jffãte seu fº foy posta em muyta ãgustia por que nã sabia que remedio posese e porem se diz q tãtos homens mãdou ao Jffãte e por tãtos lugares e cõ tal pressa que antes delRey chegar a syntra elle era jaa de sua jda avisado e entanto a rajnha se socorria ads aque em missas e orações cõ muytas lagrimas lhe pidia que guardase o Jffãte da Jra delRey seu padre e por bem de todos o posesse em pãz e amor.

129  Sobre a intervenção da Rainha no conflito, leia-se Giulia Rossi Vairo (2012b), “Isabelle d’Aragon, reine du Portugal, “constructrice de paix” durant la guerre civile (1317-1322)? Étude critique des sources portugaises et des Regesta Vaticana.”; Idem (2015), “Il protagonismo d’Isabel d’Aragona, regina del Portogallo, nella guerra civile alla luce delle fonti portoghesi, aragonesi e dei Regesta Vaticana (1321-1322)”, in Reginae Iberiae: el poder regio femenino en los reinos peninsulares medievales. Santiago de Compostela, Universidade de Santiago de Compostela, pp 131-150. À luz da documentação do Arquivo da Coroa de Aragão e do Arquivo Secreto do Vaticano, o protagonismo da Rainha emerge no apoio público que deu ao filho, na defesa dos interesses deste, facto que terá sido fator de desequilíbrio no seio da família real e do reino, razão por que recebeu cartas do próprio Papa aconselhando-a, admoestando-a e solicitando-lhe esforços no sentido de conciliar as partes. Também com seu irmão, D. Jaime II de Aragão manteve a Rainha abundante correspondência, solicitando o seu apoio para a causa do filho e na defesa dos interesses dos aragoneses que viviam no reino (vd. Diego Josef Dormer (1683), Discursos varios de historia; con muchas escrituras reales antiguas, y notas a algunas dellas. Zaragoza: Herederos de Diego Dormer, pp. 100-153). 130  Também

em Crónicas dos Sete Primeiros Reis de Portugal, pp. 108-109.

142

filho, enviou numerosos mensageiros por diferentes caminhos, para que o avisassem do perigo que corria, uma vez que ele o ignorava e como tal nada receava. Ela própria, entretanto, tendo mandado rezar muitas missas para pedir a paz de Deus, com as suas criadas, que tinha muito bem habituadas, pedia a Deus, muito chorosa, que não permitisse que caísse sobre a Lusitânia tão insanável calamidade, que olhasse com suprema dor pelo seu herdeiro, que tinha visto nascer com alegria pública e privada de todos, caído à maneira de um inimigo, que pacificasse a ira de Dinis, que libertasse o filho juvenilmente insolente e audacioso das armas do velho pai e que convertesse, por sua divina vontade, tamanho ódio em benevolência e amor, que haveria de ser para todas as cidades, não só grato e agradável, como também útil e salutar.

seu filho, e mandou tantos omeens por tantos logares e tam desvairados, pera fazer saber ao ifante que se guardasse de o achar em aquel logar seu padre, que ante per tempo que elrey a Sintra, u o ifante era, chegasse, ante o ifante soube e partio-se dali, e veo-se pera aquel logo u ficara a rainha, sa madre, que avia já tempo que a nom viira; e em tanto esto durou, a rainha com sas donas tiinha grande oratorio e fazia dizer missas e rezar muitas oras, e per sa oraçom e per percibimento que fez teverom que foi arredado gram dano e gram mal que se seguir podera ao reyno de Portugal, se elrey em aquel logo seu filho apoderar podera, porque iam aaquel logo com elrey alguuns a que, segundo se dizia, prouguera de receber dano o ifante e o que por si fazer nom podiam, segundo que parecia, quiseram-no acabar em aquela noite por elrey. E a rainha mandou a seu filho que entendesse elrey e que o onrasse e servisse.

A Rainha teve aqui um papel fundamental para evitar o derramamento de sangue: Perpinhão faz referência a um encontro entre mãe e filho nesta ocasião, tal como a Lenda. As crónicas (de Rui de Pina, Crónica Geral de Espanha de 1344 ou Crónicas dos Sete Primeiros Reis de Portugal) não o referem. Neste encontro teria tentado chamá-lo à razão, mas sem êxito. Perpinhão forja, neste ponto da monografia, um possível discurso de admoestação da mãe ao filho. Apesar da intervenção de D. Jaime II de Aragão, irmão da rainha, que manteve abundante correspondência com todos os intervenientes (D. Isabel, D. Dinis, o Infante e Afonso Sanches), tentando promover a

143

concórdia entre as partes, D. Dinis, dando ouvidos aos seus conselheiros, resolve pôr fim às interferências da rainha que tentava acalmar os ânimos, exilando-a para Alenquer, o que suscitou a reprovação do Papa João XXII, que enviou também cartas aos intervenientes, chamando-os à paz. Referem-no, para além da Lenda, as crónicas consultadas: Perpiniani, De Vita, p. 275

Lenda, p. 1326

Alguns dirigiram-se ao Rei, com espírito muito maldoso e avisam-no que a Rainha era o único obstáculo, a impedir que fosse permitido ao pai, com o direito que lhe assistia, castigar o filho criminoso; aconselham que não se devia suportar que tivesse mais valor a vida de um filho revoltoso para uma mãe, do que a majestade de um ilustre marido para uma esposa; que se comovesse mais com indulgência mulheril, do que com o amor conjugal; que alimentasse e favorecesse a insolência do filho teimoso e desprezasse a dignidade e a gravidade de um pobre velho. (…) Nada pareceu a Dinis mais verdadeiro nem mais certo. Mandou Isabel para Alenquer; proibiu-a de sair dali ou de ir para outro lugar; tirou-lhe tudo que antes lhe dera; mandou que lhe fosse dado apenas o necessário para o gasto com o trigo e restantes bens. Obedeceu a modestíssima senhora à vontade do marido; nem sequer disse uma palavra para que não lhe desse aquela prisão.

A cabo de tempo, seendo elrey D. Dinis em Santarem, conselharam-no que partisse de si a rainha e que elrey tolhesse as villas e os logares que per lo reyno tiinha e as rendas que avia, dando a entender que se nom podia ordiar cousa em sa casa contra o ifante do que se ordiava que nom fosse guardado e proibido per ela, segundo o ifante fora em aquel logo de Sintra, u elrey o cuidara a apoderar, e que, em teendo seus logares e villas e recebendo as rendas, que sempre a rainha faria acorrimento ao ifante pera se manteer. Elrey, segundo aquel conselho, mandou a rainha pera ua vila, a que dizem Alanquer, e tolherom-lhe os logares e vilas e rendas que avia.

Rui de Pina, Crónica de D. Dinis, p. 124 E andãdo as cousas neste danamento elRey apartou de sy a Raynha e mãdou aalamqr cõ fundamento de fazer seus negoçios secretamente e sem sabedorja della Raynha de quem se presomia q o Jffante era logo avisado.

Perpinhão provavelmente não conheceria, nem as fontes que consultava lho indicariam, a correspondência trocada entre a rainha e seus familiares, nomeadamente com seu irmão, D. Jaime II de Aragão, que se guardam no Archivo de la Corona de Aragon. Em carta dirigida ao irmão, escrita em Alenquer, a 23 de Dezembro de 1321, que teve por portador D. Sancho, irmão bastardo de ambos, D. Isabel agradece o empenho com

144

que estes tentaram apaziguar as partes e promover a concórdia entre pai e filho, chamando-os à razão; expõe os esforços por ela própria despendidos e revela o seu desencanto por não ter alcançado os seus objetivos; pelas suas próprias palavras, se confirma a intervenção de terceiros a promover a desavença e não a concórdia, os “estorvadores da parte do bem”, salientando que “nenhuuns trabalhan, salvando en meter discordia”. Foram provavelmente esses que aconselharam o rei e exilá-la em Alenquer: Ao muyt alto e muy nobre Dom Jame, pela graça de Deus rey dAragon (...), Dona Isabel por essa meesma graça Reynha de Portugal(...). Rey Irmãao, vy vossa carta que me inviastes por Dom Fray Sancho vosso irmãao e meu, e el disse a el Rey o que lhi vós mandastes bem e compridamente, e a mi outrosi. E gradescavos deus o boon talan que vós mostrades contra el Rey e contra mi e contra o Iffante Dom Afonso nosso filho, en quererdes saber parte da nossa fazenda e de vos sentirdes dela, e fazedes gran direito e gran razon. E, Irmãao, sabede que, veendo eu as cousas en como passaban e receando de vinire ao estado en que estan, pedi por muytas vezes a el Rey e roguey alguuns de seu Conselho que tevessen por bem que estes feytos non fossen cada dia pera peyor como foron, e que me dessen logar, e que eu que trabalharia hy quanto podesse, de guisa que o Iffante e os outros ouvessen bem e mercee del Rey, e que todos vivessen como deviam e a serviço del Rey, e que a todos fezesse mercee. E sabe Deus que esta foy senpre a minha voontade, e seria cada que podesse e Deus por bem tevesse. Mais tantos foron senpre os estorvadores da parte do bem, que non pudi hy rem fazer. E sabe Deus que ey eu ende gran pesar no corazon, polo del Rey primeiramente a quien eu desejo vida e saude e onrra como a minha meesma, e polo do iffante e polo meu, que vivo vida muyto amargosa. E se per Deus non vem hy alguua avininça ou bem antreles, non creo que por obra domens se possa hy fazer rem, moormente hu nenhuus trabalhan, salvando en meter discordia. Dom

145

Fray Sancho vos dirá o recado que achou en el rey e no Iffante outrosi do estado da terra en que estado está. (...) 131 .

Os alcaides dos seus castelos reagiram a esta decisão de D. Dinis e dos seus conselheiros e ofereceram os seus préstimos a D. Isabel, para esta recuperar as suas rendas e direitos. Perpinhão segue o relato da Lenda, pois as crónicas não referem essa intervenção e o oferecimento dos seus alcaides. Perpiniani, De Vita, pp. 275-279 Dirigem-se até junto dela os alcaides dos castelos de que fora senhora; vinham saber se era verdade aquilo que tinham ouvido dizer; exclamam, com dor no coração, que não se podia suportar um estado de coisas tão indigno; que eles lhe eram obedientes e submissos por juramento solene; que pedisse, se quisesse ir com eles para os seus castelos; que tinham homens e armas com os quais restituiriam a rainha à sua antiga dignidade; que não fora de tal forma destruída a virtude pátria, a ponto de não poderem vingar a crueldade régia. Mas ela, na verdade, nada dizia quanto a ambicionar a antiga fortuna; era suficiente, para si e para os seus, aquele aperto de património e de lugar; o que o rei quisesse, decidisse e mandasse, considerá-lo-ia bem-vindo, agradável e doce; onde ele a mandasse estar, era aí que estaria de boa vontade, durante quanto tempo quisesse quem o ordenara, enquanto lhe parecesse apropriado que ali estivesse, até que ele mesmo, que a tinha afastado, a mandasse chamar para junto de si e devolvesse todas as coisas que tivesse tirado; que não era necessário, nem preparar nem fazer uma guerra por esse motivo e aumentar, com um novo terror, tamanho mal interno e doméstico. Penosa e desagradável era para os servidores de Isabel esta suavidade e humildade, desprezando as suas ofensas; aconselhavam muitas vezes que não rejeitasse a oferta tão extraordinária e tão manifesta de tais varões; por vezes, também suplicavam que ou mandasse, ou, pelo menos, permitisse que se fizesse guerra a partir dos seus castelos; prometiam que, assim, em breve, havia de ser restabelecida no seu estado primitivo. Preferiu,

131  Transcrita

em Lopes (1970), pp. 57-80.

146

Lenda, pp. 1326-1328 E, a rainha seendo bem obediente e estando em aquel logar, souberom os cavaleiros de Portugal, que a ela aviam feita omenagem per castelos que tiinham, que, desapoderando-a elrey do que ela avia ou partindo-a de si, fezessem guerra d’aqueles castelos e acolhessem-[n]a em eles. E veerom alguuns aaquel logar, dizendo que a eles fora dito que elrey a apartara de sa casa e desapoderara do que avia e que veerom a saber se era certo aquelo que a eles era dito, e que o achavam por certo, e que ora, ela se se quisesse ir pera os castelos, que a acolheriam e que fariam guerra por [l]o que a ela fazem; a que respondeo ca ela [se] tiinha por contenta de fazer o quequer que elrey mandasse e que prazia a ela, pois a elrey prazia de estar ali, e que, quando sa mercee fosse, el mandaria por ela e lhe entregaria o que i tinha, ca, por elrey a ela tolher as rendas e as terras, que el a avia de manteer. E, respondendo a todo com gram mesera (e) a muitos dos que viviam em sa mercee e casa pesava muito que nom queria a rainha consentir ou mandar que fezessem guerra e porque curava tam pouco de quanto a ela faziam, aveindo que os que a esto a ela procuravam pera a fazer a ela viinha pouca onra, e conselhavam[-na] que consentisse que se fezesse daqueles castelos guerra e que, por se fazer, que ela cobraria mais cedo logares que elrey a

no entanto, esta senhora, com notável mansidão, piedade e submissão, suportar sozinha as ofensas privadas, todas as indignidades e amarguras, a ver serem espoliados e mortos muitos inocentes, se provocasse uma guerra. Ordenou claramente àqueles que estavam à frente dos castelos que não permitissem que ninguém levantasse dali um movimento; que os que estivessem à sua disposição conservassem a mesma fidelidade ao rei. (…) Enquanto estes acontecimentos se desenrolavam com tanta rivalidade, com tão funestos ódios de todos, a santíssima rainha, não ignorando a que ponto crítico tinham chegado tanto o filho como o marido e quanta calamidade invadiria toda a Lusitânia, chamando, de todo o lado, todas as mulheres que sabia viverem da forma mais honesta e santa, juntamente com elas, naquele como que exílio, ou melhor, prisão, vivia em admirável abstinência e em piedade. Em muitos dias de cada semana, alimentava-se apenas uma vez, nada acrescentando aos alimentos para além de pão e água; todo o tempo que podia retirar às restantes atividades e ao repouso necessário gastava-o em santas súplicas, em preces, em muitas missas que mandava dizer, para aplacar a ira de Deus; (…)

ela tolhera. E ela respondia aaqueles que desto a conselhavam que melhor era de padecer ela mingoa e de consiirar ela o que a ela faziam ca consentir em se fazer guerra por aquela causa, fazendo-se [que] muitos, que erom sem culpa do que a ela faziam, aviam de padecer dano e estrago nos averes e nos corpos, expressamente defendeo aaqueles que os castelos tiinham que deles nom fezessem guerra. E, em quanto ela fez morada em aquel logar, fez ali viir muitas boas donas, que entendia que faziam boa vida. E em aquel logar fazia gram esteença, e jejuando tres dias da domaa sem conduito, e despendia seu tempo em rezar e orar, e esteve ali por tempo, e elrey, conhocendo tanta umildade e mesura como em ela avia, mandou por ela.

O conflito agudiza-se. D. Afonso pusera a família a salvo em Alcanizes e empreende a conquista de vilas e cidades portuguesas. Tenta começar por Santarém, mas D. Dinis vem defendê-la; continua para Torres Novas, Tomar, conquista Coimbra, Montemor o Velho, Vila da Feira, Vila Nova de Gaia, Porto e sitia Guimarães, cuja rendição ou conquista não conseguira. No Porto, junta-se-lhe o meio irmão, o conde D. Pedro de Barcelos, que andava exilado por Castela por ter tomado o partido do Infante. A Lenda não refere este percurso.

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Perpiniani, De Vita, p. 277 Afonso, porém, expulso de todo o lado, dirige-se para Coimbra; toma de assalto a fortaleza de Monte Mor o Velho, como é designado, na mesma margem do Mondego; chega à cidade do Porto, situada um pouco acima da foz do rio Douro; pelo caminho, toma dois castelos, o da Feira e o de Gaia, das quais, aquela crê-se que foi outrora Langóbriga, esta Cale; submeteu facilmente ao seu poder a própria cidade, ainda não rodeada de muralhas. Juntou-se-lhe ali o conde Pedro, seu irmão, chamado de Castela, onde, por causa dele, estava exilado, tendo-lhe sido confiscados todos os bens; uniu-se-lhe como companheiro e partícipe em todas as situações. À cidade de Guimarães, impedidos de atravessar as muralhas da cidade, primeiro atacaram-na, depois sitiaram-na.

Crónicas dos Sete Primeiros Reis de Portugal, pp. 113-114 E dahy foyse a Cojnbra e apoderouse da çidade e tomou ho castelo, ho derradeiro dia de dezembro da era de MCCCLIX anos. E depojs tomou o castelo de Monte Mor o Velho. Daly mandou dizer ao Conde seu jrmão, D. Pedro, que andaua em Castela, que chegase ao Porto, que ele emtendia de jr laa. E daly se partyo e foy tomar o castelo de Feyra, que he em terra de Santa Maria. (…) Depojs foy tomar o castelo de Gaya. (…) E des ahy foyse ao Porto e filhouo. E hy chegouho Conde D. Pedro a ele, e andou em sua companhya. Emtam se partyo ho Iffante do Porto e foyse a Gujmaraes, (…). E o Jffante começou de combater a vila.

Rui de Pina, Crónica de D. Dinis, p. 125 E logo dhy tomou tambem o castello de mõte moõr o velho domde mãdou dizer ao cõde dom pº seu Jrmaõ q amdaua em castella desterrado que se viesse aa çidade do porto por que elle hya para laa (…). E dy foy ao porto e o tomou, e aly chegou o cõde dom pº q sempre amdou em sua companhya.

A Crónica Geral de Espanha de 1344 refere que D. Isabel se deslocara a Guimarães para aplacar o filho. Apesar de Perpinhão não o referir, nem a Lenda, nem qualquer outro cronista que se debruçou sobre este reinado, antes dele (todos estes textos informam que a Rainha saiu de Alenquer, a que estava confinada, para Coimbra), este episódio tem fortes probabilidades de ser verdadeiro, uma vez que quem o relata é o próprio D. Pedro, conde de Barcelos, que, nesta altura, andava com o infante. 27 E, estando o iffante sobre Guimarãaes, chegou hy sua madre, a reya dona Isabel, por trautar algua avença antre elle e seu padre. E estando em suas fallas, foisse el rey dom Denis deitar sobre Coimbra. E entõ levãtousse o iffante de sobre Guimarãaes e foisse pera Coimbra. 28 E, ante que la chegasse dous dias, o conde dom Pedro e outros fidalgos que hy era d’ambas as partes fezerom com el rey que ouvesse tregoas cõ o iffante. E entom veo o iffante cõ sua madre a Coimbra.

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Nova intervenção da rainha em Coimbra, para onde D. Afonso se desloca, largando o cerco de Guimarães, vai evitar o pior: falando ora com o pai, ora com o filho, ambos já em estado de guerra, D. Isabel leva-os a negociar e a encontrarem-se para fazer tréguas; o Infante receberia o domínio de Coimbra, Montemor o Velho, a cidadela do Porto e mais rendas; o rei recebeu o juramento de fidelidade do filho. Perpinhão inspira-se na Lenda e nos cronistas 132: Perpiniani, De Vita, pp. 280-282. Lenda, p. 1328-29 Foge, de surpresa, daquela prisão, dirige-se para Coimbra; vai ter com o marido; dá conselhos ao filho. Reúne os principais varões de ambas as partes; entre outros, conta-se o conde Pedro, irmão de Afonso; não para, não repousa, não se cansa; a uns pede, a outros afasta, a uns suplica, a outros promete; usa todos os artifícios. Vira-se para aqui e para ali, dobra, com piedoso choro, os corações de todos; faz com que deponham as armas, se dirijam para outro lado, onde, sem o estrépito das armas, sem sangue, reconhecidas as exigências do filho que parecessem justas, depois de se terem retirado, tudo fosse resolvido por varões bons e religiosos e livres de toda a suspeição. Dinis, com este sopro de paz e de tranquilidade, não muito diferente do dia sereno que nasce da turbulenta tempestade, quase exultante, abandonando o cerco, dirige-se para Leiria com todas as suas tropas. Isabel vem com o filho até Pombal, uma povoação que dista de Coimbra quase vinte e oito mil passos e, aí, o conflito foi deste modo resolvido; o rei concedeu a Afonso Coimbra, Montemor, a cidadela

132  Também

Avendo adiante descordia antre elrey e o ifante, seu filho, elrey foi cercar a ciidade de Coimbra, que o ifante, seu filho, já tiinha pera mantiimento seu e dos seus; e seendo em aquel logo juntos elrey e o ifante, ali os demais que em aquel tempo em Portugal avia, uuns com elrey e outros com o ifante, fazendo-se gram estrago na terra, chegou esta rainha doendo-se de tam gram descordia como viia acontecer antre elrey e seu filho e do gram estragamento que viia já por [la] terra, chegou aaquel logo de Coimbra, tratou antre eles que elrey se alçasse daquele logo e se fosse a Leirea, e fez ao ifante que fosse aaquel logo veer seu padre e fez que o ifante conhocesse [a] elrey o que filho e vassalo é teudo de conhocer a seu padre e a seu senhor, e que elrey desse ao ifante rendas com que se manteer podesse, segundo a seu estado compria. Partirom-se assi

Rui de Pina, Crónica deD. Dinis, pp. 128-129 Por esta discordia q antre elRey e o Jffãte auja a Rainha domna Jsabel era triste e muy anojada e por aver antre alles bõa paz e amor como era Rezã, fazia a ds E mãdaua fazer muytas orações e deuações e sendo certificada destas mortes e males tã grandes q desta desavença se segujã, Ella de sua própria e virtuosa võtade se partyo dalamqr honde estaua e se veyo a cojmbra. E por sy falou atodollos sõres q erã cõ elrey e cõ o jffãte e asy cõ o cõde dom pº E cõ eles por sua sancta Jnterçessã banhada cõ pyadosas lagrimas Asentou que era bem fazerse logo pãz e concordia e aRaynha cõ elRey e cõ o Jffãte cõcordou q ambos se partissem daly e se fosem a outrºs lugares donde por pessoas sem sospeyta se veriã as cousas q o Jffãte requiria para dellas lhe serem outorgadas aquellas que fosem de rezã e honestidade (…) E elRey cõ prazer e cõ consintimento disto se foy a leyrea E a Raynha e o Jffãte se forã a pomball E aly conçertarã que elRey deu ao Jffãnte cojmbra e mõte moõr cõ seus castelos e a fortaleza da see do porto por que a çidade jnda entã nõ era çerquada e por ellas se fez o iffãte

nas Crónicas dos Sete Primeiros Reis de Portugal, pp. 115-116.

149

da cidade do Porto, na qual está a Sé; atribuiu-lhe grandes quantias em dinheiro; deu o perdão de todas as coisas que tinham sido feitas contra si, quer ao próprio quer a todos aqueles que tinham seguido o seu partido. Ao conde Pedro, não só perdoou, como restituiu o que lhe tinha sido tirado. Afonso, regozijando de forma inacreditável com tudo isto, principalmente com a graça concedida ao irmão Pedro, no templo sagrado de Pombal, diante da rainha sua mãe e de muitos varões principais, em público e solene ritual, fez o juramento ao pai. Primeiro: todos os condenados por algum crime e que tivesse na sua comitiva, havia de os mandar embora; aqueles que pudesse encontrar, entregá-los-ia ao suplício, segundo o costume dos antepassados. Segundo: havia de estar à disposição do rei, tal como do pai e seu senhor, na paz e na guerra; o que quer que recebesse, haveria de o governar, segundo a sua vontade e comando; havia de considerar comuns inimigos e amigos. Fez prestar o mesmo juramento a alguns principais dentre os seus e pediu à mãe, para que a paz fosse mais firme, que ela também jurasse com fórmulas solenes.

per esta rainha aviindos, escusandose per ela e per [l]as obras que ela fazia muito dano e estrago, que se seguira, durando a descordia, que muitos per [l]os seus reinos recebiam. Elrey, veendo tanta mesura desta rainha e as obras em que andava, entregou a ela os logares, vilas e rendas que a ela tolhera, segundo suso dito é.

menagem a elRey para de todos fazer guerra e mãter pãz como elle mãdase. E asy acreçentou ao Jffãte seu fº soportamento mais cõtya de drº e panos alem do q elle tynha. ElRey perdoou ao Jffãte e aos seus todo o passado e o Jffãte aos delRey E a rogo do Jffãte foy tãbem perdoado o conde dom pº que foy Restituydo atodo o que tynha e lhe era tomado, e destas cousas mostrou o Jffãte ser muy ledo e contente (…) E o Jffãte tãbem pedio a Rajnha por merçe que para mayor e mais seguro penhor desta concordia e por que elRey dy em diãte mais descãsase sobre elle q tãbem ella quisesse fazer por elle este Juramento e menagem aelRey e ella também asy o fez como cadahuum dos outºs.

Este papel de pacificadora era estimulado também pelas exortações que o Papa João XXII, atento aos conflitos entre pai e filho, entre rei e herdeiro legítimo da Coroa portuguesa, lhe enviava. A carta que se segue (uma dentre várias que dirigiu à rainha) é reveladora do empenho que punha na resolução do conflito, aconselhando-a a continuar com os seus esforços para congraçar pai e filho, uma vez que até ali nada se tinha ainda conseguido:

150

À caríssima filha em Cristo, Isabel, ilustre rainha de Portugal. Recordamos que te escrevemos já, filha caríssima, para empregares todo o empenho da tua solicitude a fim de arrancares completamente a discórdia e restaurares a concórdia, naquela situação perigosa que a malícia do antigo inimigo suscitou entre o nosso caríssimo filho em Cristo, Dinis, rei de Portugal e teu ilustre marido, e o teu querido filho Afonso, nobre varão, vosso filho comum. Na verdade, como ouvimos que, intrometendo-se a hostilidade do inimigo do género humano, adversário da paz, os nossos desejos não foram satisfeitos, não deixamos de insistir e até aumentamos a insistência, exortando com muita veemência a Serenidade Régia, tanto mais afectuosamente quanto mais frequentemente: que te disponhas, em absoluto, a empregar o zelo da tua vigilância, face aos perigos e escândalos variados que, a não ser que se acorra com celeridade, se receia que advenham, com toda a probabilidade, de uma turbulência desta natureza, e face aos benefícios que poderão seguir-se do bem da paz e da concórdia, aduzidos no escrutínio da correta consideração, para que entre os mesmos se extinga completamente toda a discórdia e se reforme a concórdia; a casa régia, afastados os perigos e afugentados os incómodos, agadecê-lo-á, com êxitos desejados, e a tua grandeza será exaltada por causa disto, com louvores de digna consideração. Dada a 2 dos idos de fevereiro, ano sexto. 133

Os conflitos, porém, não cessaram, apesar de todas as manifestações de boa vontade e de muitos esforços; querendo o Infante, algum tempo depois, deslocar-se a Lisboa, o rei não lho permitiu. A Lenda reitera a ideia de que a discórdia entre pai e filho era alimentada por terceiros mal-intencionados e Perpinhão desenvolve também essa informação. Depois das pazes juradas em Pombal, nas quais a própria Rainha também tivera de prestar juramento, D. Afonso solicitava reunião das cortes,

133  Transcrita

em Lopes (1970), pp. 57-80. A tradução é nossa.

151

a que o pai resistiu até certa altura, acabando, depois, por marcá-las. A Crónica Geral de Espanha de 1344, relato pouco posterior à Lenda, refere essa exigência do Infante, e faz, como esta, referência às más influências de terceiros, mas nada diz sobre a sua não participação nelas. 8 E, logo em esse verãao, tornou o iffante a Lixboa por veer seu padre e lhe mover outras cousas affora aquello que antre elles era posto. E esto per cõselho do vilãao vogado que ante dissemos e doutros que andavam fazendo estas maneiras. 9 E sobre esto ouverõse de fazer cortes e forom em ellas desaviidos como de cabo o padre e o filho, dizendo el rey que nõ avia por que fazer mais que aquello que antre ellos era posto. E o iffante lhe disse que, sem aquello que lhe demãdava, nõ podia passar como convinha a sua hõrra.(256) Perpiniani, De Vita, p. 283 A verdade, porém, é que essa concórdia não foi tão duradoura como devia. O inimigo da paz e fomentador da discórdia, inimigo capital do género humano, num curto espaço de tempo, desencadeou furiosamente muitos motivos de ódio e discórdias, separou completamente e despedaçou o pai e o filho, unidos pelo parentesco natural, pela comunhão de sangue, pela santidade de um pacto mútuo e um juramento. Dinis, a pedido de Afonso, marcara uma reunião para os principais varões e cidadãos, para Lisboa, mas, depois, ele próprio, por cuja exigência os homens tinham sido convocados, não queria participar. Ora alegava um pretexto, ora outro, adiava; como fosse pressionado com mais veemência, dirigiu-se para Santarém e tudo foi debatido e decidido, na sua ausência.

Lenda, pp. 1328-29 E depois aqueles que foram começo da descordia que fora antre elrey e seu filho, e nom prazendo a eles de perseverarem em aveença e concordia a que os esta rainha trouvera sementarom descordia que os trouve a tal tempo que, em querendo o ifante ir u elrey era, elrey veo a duas legoas de Lixbõa e nom queria consentir que alá fosse.

Rui de Pina (cap. XXIX) p. 142 Avendo Ja huu anño e sete meses que a concordia antre elRey e o Jffante era feyta o Jffante por alguuas causas e rezões q alegou de mingoa de justiça e doutºs defeytos que dizia averem no Reyno lhe pidio q para remedio de tudo quisesse fazer cortes as quaes elRey por nõ auer dellas tãta neçesydade quisera escusar e em fim por satisfazer ao Jffãte E asy para notificar os agrauos que do Jffante depois de suas auenças reçebera prouuelhe fazellas em lixª para dõde chamou seus pouos como em tal caso he custume honde tãbem foy o Jffante. E o dia em q se ouue de fazer a fala publica e a proposição costumada, elRey mãdou dizer ao Jffante que vyesse aas cortes para nellas estar como aelle em tal auto comujnha. E o Jffante se escusou fazello e detãtas delongas esem rezões vsou açerqª disso q elRey ouue por bem começallas sem elle.134

134

134  Vd.

também Crónicas dos Sete Primeiros Reis de Portugal, pp. 122-123.

152

Deflagra novo conflito, que leva, mais uma vez, à intervenção da Rainha; esta protagoniza um novo episódio, que ficou para sempre no imaginário popular: avançando montada numa mula, pelo meio das fileiras dos soldados, sem que ninguém segurasse as rédeas do animal, a Rainha garantiu de novo a paz. A situação é contada por Perpinhão de forma semelhante à da Lenda: Perpiniani, De Vita, pp. 284-286

Lenda, pp. 1329-1330

Eis que cada um manda soar o sinal; os soldados soltam um clamor, correm e podia ver-se já não a movimentação de parte a parte das lanças, mas feridos, sangue e alguns cadáveres espalhados. A notícia de tamanho mal chega a Lisboa; a rainha que, como costumava fazer, em perigos semelhantes, consagrava todo o tempo, desde a partida de Dinis, a aplacar Deus, receou que antes de aí chegar, se abatesse sobre cada um deles uma enorme calamidade. Manda selar uma mula, monta-a com a maior rapidez possível, dirige-se para o campo de batalha; ninguém lhe segurava o freio, como era costume entre a realeza; não estava rodeada da habitual comitiva de nobres senhoras e donzelas; a custo, algum dos cidadãos a seguia, enquanto corria; considerava que nenhum atraso devia ser permitido em atacar tão atroz e perigoso combate. Chegara junto dos próprios exércitos; por todo o lado se lutava violentamente; uns atiravam dardos contra o inimigo; outros lançavam pedras, das fundas, uma antiga modalidade de luta; nem com a chegada da rainha, uns desistiam de abrir, outros de barrar o caminho pelo ferro. Enquanto os outros que seguiam atrás de Isabel se imobilizaram, paralisados de medo pela intensidade do perigo, ela não receou o barulho dos soldados, nem o brilho das armas, nem o golpe dos dardos que voavam pelos ares, nem o sangue derramado, nem os corpos espalhados pelo chão; sozinha, entrou pelo meio dos exércitos e das cerradas formações militares, com os dardos

E depois aqueles que foram começo da descordia que fora antre elrey e seu filho, e nom prazendo a eles de perseverarem em aveença e concordia a que os esta rainha trouvera sementarom descordia que os trouve a tal tempo que, em querendo o ifante ir u elrey era, elrey veo a duas legoas de Lixbõa e nom queria consentir que alá fosse. (...) Estando em uum logar caminho de Lixboa, que chamam Louras, os do ifante querendo ir pera Lixbõa, os delrey defendendo a viinda, forom paradas azes da parte delrey e do ifante e ali foy elrey com os seus de uma parte e o ifante com os seus da outra antresinados e ferindo-se os peões a pedras e a dardos da uma parte a outra e jazendo omeens mortos e feridos antre as azes. Esta rainha, veendo elrey, seu senhor e marido, e o ifante, seu filho em tam gram perigoo estar, pera se escusar tam grande dano e morte de muitos que ali estavam, cada uum pera servir a seu senhor, tanta foi a door que ouve e o amor que foi per meo das azes, cavalgada em uma mua, sem levando-

153

Rui de Pina Crónica de D. Dinis, p. 145 E em se começado alguua Rotura antre os homens bayxos alguuns dambas as partes se diz q moreraõ depedras e dardos que se remessauaõ E cõ esta triste noua que aa Rª chegou ella por escusar cõ sua sancta pª out.ª mayor Rotura antre o pay e o fº cõ grande pressa caualgou em huua mulla e passando por meo das Azes sem algua pª hir diante nem aleuar polla rédea nem tã pouqº esperar polla cõpanhya que a ella por sua Real pª se deuja e sem medo dos muitos perigos aq se oferecia chegou logo ao Jffante seu fº a que estranhou muyto tal vimda pois era cõtra võtade delRey seu pay acusandoo polla quebra da menagem que lhe dera e dos grandes juramentos q em pombal ads fizera rogandolhe que se tornase e nõ anojase elRey em tãtas cousas ao menos o fizesse por seu amõr della que por elle e por seu Rogo tinha feytos os juramentos e prometimentos q sabia os quaes posposta cõçiençia e onestidade os via de todo por elle quebrados, e sobre ysto tornou logo falar aelrey cuja Jra pos em tal temperãça cõ que

a zumbir à volta dos seus ouvidos; acorre a um lado e a outro; fala com o filho; censura-o com dureza, repreende a sua obstinação; amaldiçoa a sua traição. Depois de apaziguado Afonso, em parte pelas preces, em parte pela autoridade maternas, volta a sua atenção para o rei; chorando, procura afastar o ódio, por meio de súplicas, com a justificação da idade; pede ardentemente e roga que ele próprio mostrasse, perante a audácia e temeridade juvenis, quanto valia o esplendor da moderação e da severidade da velhice. Facilmente levou o suavíssimo coração do pai à misericórdia; veio Afonso até Dinis, a pedido da mãe, acompanhado simplesmente de seis cavaleiros, chama-o seu senhor e rei, pede perdão. O rei, considerando que devia agir de forma mais grave já e mais severa com o filho tantas vezes revoltoso, diz: “Agradeço a estes fortíssimos e fidelíssimos soldados, que te forçaram a obedecer-me, com a sua coragem, quando tu o recusavas, senhor de ti”. Manda-o voltar para Santarém;135 (diz-lhe que) onde quer que estivesse, se alguma vez de novo se afastasse da santidade do dever, ele próprio voaria para aí e reduziria à obediência todas as barreiras, tomando-o pelo pescoço.

-a omeem per renda e soo, [por que], por razom das pedras que lançavam da uma parte e da outra, omeem nem molher nom ousava d’ir em pós ela. E, pero que, indo ela assi, nom leixavam de lançar dardos e pedras, quis Deus, em cujo serviço andava esta rainha, a guardar que nom recebesse ferida, nem outro cajom nenhuum, e foi u elrey estava e du elrey estava tornou ao ifante, e por vezes, viindo de uma parte pera outra, tratou antre eles per tal maneira que o ifante fosse beijar as mãos a seu padre e que elrey beezesse seu filho, e partirom d’ali amigos.

outra vez tornou avença antre eles homde se diz que o Jffãte Jaa sobre cõcordia cõ seis soos de caualo veyo falar aelRey, e pidirlhe perdã. dizemdo que lhe obediçiria em tudo como aseu padre e seu sõr, E que elRey lhe respondera que a elle nã aguardeçia sua tal obedyençia mas aaquelles seus boõs e naturaes vassalos que cõ elle estauã dizendo lhe q se partisse se quisesse e serja bom comselho fazello ca honde qr q fosse se mais lhe desobedecesse la o hiria tomar polla guarganta e cõ jsto o mãdou hir a sñctarem e elRey se tornou para Lixboa.136

135136

Ainda teve um outro episódio, esta guerra; a Lenda já não o conta, pois nele não intervém a Rainha, mas Perpinhão ainda o inclui no seu

135 Na

Crónica Geral de Espanha de 1344 (p. 258), o episódio também é referido: E, quando o iffante vyo que o nõ tiinha en al com el rey, veosse meter en sua mercee com VI de cavallo/ 10 e disse-lhe que fezesse o que lhe aprouguesse, ca elle se viinha poer en sua mãao como de padre e senhor. 11 E el rey lhe disse que lho nõ gradecia, mas que o gradecia a Deus e aaqueles seus vassallos e naturaes que cõ elle stavã. E o iffante lhe disse que nõ era viindo a elle por o anojar mas por fazer todo seu mandado. 12 E entom lhe mandou el rey que se fosse pousar a hua egreja que hy sta e elle foisse pêra la. E logo en outro dia veo veer seu padre sobre a ponte com IIII de bestas. 13 E el rey mandoulhe que se tornasse logo pera Santarem e elle assy o fez.

136  Vd.

também Crónicas dos Sete Primeiros Reis de Portugal, pp. 124-125.

154

relato; a sua fonte é naturalmente Rui de Pina, que desenvolve o episódio no cap.xxxj, inspirado naturalmente pela Crónica de 1419: Perpiniani, De Vita, p. 286 Não muito depois, no ano seguinte, no mês de Fevereiro, como o rei por acaso viesse ali, gerou-se um grande tumulto, por ação de criados de ambos, logo acalmado, no entanto, graças à diligência de homens bons. Depois, através de varões escolhidos de parte a parte, em tratado selado com pesadíssimos castigos, chegou finalmente ao fim tão penosa discórdia.137

Crónicas dos Sete Primeiros Reis de Portugal, pp. 126-127 Conta a Estorja que depojs a pouquos dias partyo elRey pera Samtarem. (…) E depojs de comer acomteçeo que ouuerom rezões alguns do Jffante com os delRey. Sobre que ouue gramde aroydo e começarom a pelejar huns com os outros. (…) E quando foy a tarde fizerrom treguoa amtre elRey e o Jffante, e ceçou aquele aroydo. (…) E com todo deu poderjo a estes XXIV que pusessem a tal avemça amtre ele e ho Jffante per que toda a descordia que ata hy ouuera amtre eles fosse pasyfiqua, e não pudesse majs naçer outra, e naçendo, que fiquasem loguo emligidos jujzes que ao majs tardar detrjmjnasem ata LX di. Qualquer dos delRey ou do Jffante que contra esto fosse, cayse em caso de trejção, e fosse teudo de ele soo poer ho corpo a quatrro, e não ho fazendo asy, que qualquer que o pudesse matar, que o matase, sem coyma e sem pena que per estes XXIV fosse feyta e detrjminada.

Rui de Pina,Crónica de D. Dinis, pp. 146-148 Passados alguns dias depois deste alvoroço se foy elRey delixª para santarem (…) e sobre comer por rezões q os do Jffãte ouueraõ cõ os delRey se aleuãtou huum grande e perigoso aRoydo a que elRey e o Jffãte acudirã em pessoas e cadahum aseu bamdo apartado Eporem depois dalguns mortos e feridos damballas bandas foy procurada e posta tregoa sobre a tarde amtre elRey e o Jfante e os seus. (…) e q aparte desobediente pagase mais duzentas mil liuras de pena (…) E que os fidalgos e nobres do Reyno sobpña de treyçã as ffizessem pagar Jmtrªmente a qualqr que esta concordia quebrasse e que sob a dita pña logo eles se vyesem e servissem aelRey ou ao Jffante qualqr destes que aas determinações dos Juizes fosse obediente (…)

137

137  Este

episódio está mais claro na Crónica Geral de Espanha de 1344: 14 E logo a poucos dias (o rei) foisse pera Sanctarem mas, ante que la chegasse, foilhe dito que o nõ queria o iffante nem o concelho receber na villa. (…) 16 E, despois que comeram, começarom de pellejar os do iffante e os da villa cõ os del rey e de cada hua parte aderençarõ pera honde el rey stava, per aquella rua mayor que vay do alcácer pera o pelourinho. (…) Dom Johã de Lacerda e Martym Anes de Briteiros e Vaasco Pereyra e Stevõ Soares e outros muytos e boos cavaleiros fezerõnos logo dally afastar muy asinha per força e morrerõ hy alguus cavaleiros e outros forom presos. 18 E, veedo o iffante como os seus passavam mal, ouve de viir per outra parte e morrerõ hy cavaleiros. E despois recolheosse o iffante e os seus. E aa tarde foy feita tregoa antre el rey e o iffante. 19 E, veedo todos como este feito hya pera mal, forom escolheytos doze cavaleiros por parte del rey e XII por parte do iffante e foilhes mãdado e outorgado que todo o que elles em aquelle feyto determinassem e julgassem que fosse recebido e comprido.

155

Perpinhão segue de perto, como pode constatar-se, os relatos de Rui de Pina e da Lenda, que é o seu fio condutor. Muitas informações que esta não tem, encontra-as Perpinhão na narrativa daquele, utilizando-as para assim complementar a sua biografia; não ignora qualquer informação que nestas fontes escritas encontra, mesmo que o relato do cronista não seja sempre o mais favorável ao infante, opinião que, aliás, Perpinhão corrobora. A Lenda, que destaca o papel interventivo e pacificador da Rainha, nada diz que critique ou possa denegrir o comportamento do Infante; talvez a concisão deste tipo de relato o não permitisse; talvez o seu autor não tivesse tido acesso aos manifestos de D. Dinis e a outros documentos de que os cronistas posteriores se socorreram; talvez não fosse oportuno criticar o Infante, incluindo qualquer dos episódios que o apresentam como ingrato, pouco honesto e desleal, uma vez que, à data da composição desta primeira biografia da Rainha, como se diz acima, pouco após a sua morte, ele seria o rei em exercício. O certo é que Perpinhão não omitiu nenhuma das informações que encontrou nessas fontes e não poupou críticas ao Infante. Acha-o mal formado e subjaz e este juízo a sua outra faceta, a de pedagogo, de educador: Perante tanta boa vontade de seu pai manifestada em relação a si, o filho deveria respeitá-lo com muita atenção e muito afetuosamente, pois apesar de ser duro e férreo, convinha que fosse respeitado e amado. 138 Mas, a verdade é que aconteceu de forma muito diferente, por diversas

138  É opinião também dos cronistas anteriores, em cujo relato se baseia. Tanto na Crónica de Rui de Pina, como na incluída nas Crónicas dos Sete Primeiros Reis de Portugal, depois de se enumerarem todos os benefícios que D. Afonso recebera de seu pai, D. Dinis, provas do seu amor, se aponta a ingratidão do filho:

Crónicas dos Sete Primeiros Reis de Portu- Rui de Pina, Crónica de D. Dinis, pp. 100-101 gal, p. 80 Pola qual rezão lhe ele deuera de ser mujto omjlidozo. Ele não embargando todo esto, foylhe sempre muy desobediemte, em muytas cousas, que deuera de ser pelo comtrajro.

(…) e por estas alem das outªs obrigações naturaes e Reaes nõ he de duuydar que o Jffãte dom aº deua sempre amar o obedecer sobre todos aelRey dom denis seu padre, e asy lhe Acatar por aver a bençã de ds e asua, o que em principio de sua jdade e em sendo Jffãte nõ se acha ser asy antes o cõtrº(…)

156

razões. Com efeito, em primeiro lugar, por uma excessiva indulgência (em comparação com a qual nada há de mais pernicioso, na educação dos filhos), o espírito juvenil corrompido, por se imaginar, a si próprio, rei e senhor antes de homem, despertara nele tamanha arrogância, que pensava dever submeter tudo ao seu domínio, até o próprio pai. 139

O seu comportamento com o pai, reflete Perpinhão, pagou-o com a guerra que teve com o seu próprio filho; nesta conceção de que os comportamentos errados não ficam sem castigo, pelo que devem ser evitados, fica a ideia da História como mestra da vida; os ensinamentos da história, os bons ou maus exemplos do passado devem condicionar a atuação presente dos homens, que os devem seguir ou evitar. O que esperar quando um filho pega em armas contra o próprio pai, senão que esse veja, um dia, o próprio filho a pegar em armas contra si? Conclui o relato deste acontecimento, com esta reflexão: Mas Deus, gravíssimo vingador dos crimes e defensor da dignidade do pai, não permitiu que aquela ferocidade juvenil ficasse impune e livre, e, assim, do mesmo modo em que ele próprio fora molesto a Dinis, assim recebeu em recompensa, depois de velho, penas mais atrozes, dignas de tamanho crime. Com efeito, seu filho Pedro, herdeiro do trono, a quem os feitos deram o cognome de Cru, depois da morte da esposa, Constança, teve abertamente com o nome de amiga, uma certa Inês, de linhagem, de cognome Castro, em quem já antes tinha pousado os olhos, e dela teve filhos. Como Afonso a mandasse matar, receando que ocultamente alguém desse veneno a seu neto Fernando, para que o trono fosse herdado pelos filhos dela, aquele (Pedro) furioso de dor e enlouquecido, associando-se a dois irmãos dela, que em Castela dominavam, numa vasta extensão, congregou muitos criminosos, reunidos de todo o lado; começou uma guerra funesta contra o pai; atacou com muita

139 Perpiniani,

De Vita, p. 264.

157

hostilidade aquela parte de província Tarraconense, que, só unida à Lusitânia, está limitada pelos dois rios, Douro e Minho. Com a composição das partes, enfim, seguiu-se que, para onde quer que se dirigisse, tinha o poder e última decisão, exercia o reconhecimento não só das coisas privadas, como das públicas, podia matar, mandar para o exílio, punir os condenados com o confisco dos bens, dava cartas, éditos, decretos, tinha conselho e julgamento que seriam superiores a todos os julgamentos do rei e aos prefeitos das cidades. Isto não aconteceu injustamente, que o filho lhe apontasse as armas, a ele que, tantas vezes, tivera a mão armada contra o pai, e vivo ainda, repôs-se a ordem, ele que, de algum modo, tentara espoliar seu pai do reino. 140

5.5. Outras intervenções Em todos os conflitos em que seu marido se envolveu, D. Isabel interveio, não só com preces e práticas devotas, mas recorrendo à diplomacia e aos contactos privilegiados que tinha com os intervenientes. No reinado de D. Afonso IV, apesar de levar uma vida mais afastada na corte e mais recatada, ainda interveio para resolver as questões dos netos; com efeito, D. Afonso XI de Castela, filho de sua filha, D. Constança, casado com D. Maria, filha de Afonso IV de Portugal, desprezava a mulher e vivia publicamente com a manceba, D. Leonor de Gusmão, o que, para além do mais, provocava grande perturbação entre os dois reinos. D. Isabel deslocou-se a Badajoz para admoestar o neto.

140 Perpiniani,

De Vita, pp. 287-288.

158

Perpiniani, De Vita, pp. 326-327 Na verdade (e para voltar àquele ponto donde se afastou a nossa exposição), por essa altura, Afonso, rei de Castela, desprezando sua esposa Maria, pela esterilidade da natureza, estava preso pela intimidade de Leonor Nunes, viúva nobre, principalmente pelo filho que dela tivera. Quando a notícia desta situação chegou aos ouvidos de Isabel, agitada com aquela violação do direito divino e humano, pela indignidade do neto e o sofrimento da neta, pelo perigo da discórdia, acorre a Betúria Esurim, cidade que, hoje, entre nós, se chama Xerez de Badajoz, enviando à frente um mensageiro, para que informassem o rei da sua chegada e lhe pedissem que não se recusasse a vir pessoalmente a esse encontro. Aí, houve variadas e numerosas conversas, tal como convinha, em tamanha mancha de torpeza doméstica e infâmia do nome cristão; a avó, com singular franqueza para o neto, impeliu o jovem, inflamado de um desejo ardente, a dar a sua palavra de que viveria mais honestamente no tempo restante e de forma mais digna, como um rei cristão.141

Pina, Chronica delRey D. Affonso IV pp. 345 e segs. Indo jà em dous annos, que Dom Afonso de Castella hera cazado com a Rainha Dona Maria, e nam avendo della geraçam, namorouse, e ouve em seu poder em Sevilha D. Leanor Nunes de Gusmão filha de Dom Pedro Nunes de Gusmão, que estava viuva de poucos dias, e hera muyto Fidalga, moça, e fermoza, e muyto discreta, e estava em poder de hum seu avò, e elRey a vira em caza de hua sua irmaam cazada com Dõ Henrique Henriquez, daqual ficou muyto contente, e della ouve elRey por tempos muytos filhos, e contra sua honra, e estado real, e conciencia, a teve sempre em todo estado, e acatamento de Rainha denegando tudo isto a Rainha Dona Maria sua molher, a quem tratava com grandes disfavores, e com muy poucas mostranças de verdadeyro amor, aqual cousa sabida em Portugal, a Rainha Dona Isabel, molher, que foy delRey Dom Dinis, que ainda hera viva, e avo que hera de ambos, e este Rey Dom Afonso, e a rainha Dona Maria sua molher dezejando atalhar no comesso este fogo de discordia ante que mais se acendesse, teve vistas com elRey seu neto em Xares de Badajos a quem aconselhou em seus feytos tão sam, e direytamente como se esperava de Rainha tão virtuoza, e tão sancta como ella era, e que com elle tinha tanta rezão; e dali se partio elRey com promessas que fez de se não dar tanto a afeição de Dona Leanor, mas elle depoys fez todo o contrairo de sua promessa (...)

141

D. Afonso IV, revoltado com o tratamento a que o genro submetia a sus filha e neto, moveu-lhe guerra. Foi também para tentar sanar o conflito nascido desta situação, que, em 1336, se dirigiu a Estremoz, para falar e tentar apaziguar tanto o neto, como o filho, já preparado para atacar o genro e sobrinho; depois de uma viagem em pleno verão, através do centro interior do país, adoeceu e morreu, pouco depois de chegar ao destino, a 4 de julho de 1336.

141  Esta intervenção da rainha junto dos netos não está na Lenda, mas é referida pelas Crónicas dos Sete Primeiros Reis de Portugal (Crónica de D. Afonso IV), p. 155; também por Rui de Pina (Chronica delRey D. Affonso IV, pp. 345 e segs.).

159

Fazendo ela morada em Coimbra em aquelas casas que fezera acerca do seu moesteiro, disserom a ela que elrey de Portugal, seu filho, e elrey de Castela, seu neto, estavam em ponto de se desaviir; daquela desaveença a ela pesava muito, dizendo que os que se tragia[m] e tratava[m] que eles antre si veessem a desamor e desaviir, que os nom amavam tanto como ela, dizendo por vezes antre muitos que pedia a Deus por mercee que, se desaviindos a ser aviam, que a nom leixasse tanto viver que as desaveença visse, ca per [l]a sa desavença aver-se-ia a seguir gram dano e nom se conhoceria, nem guardaria antre eles tantos e tam bons dividos, que estes reys antre si aviam; ca outros omeens dentro qualquer estado que uum dos dividos que antre si estes reys aviam ouvessem, amar-se-iam e se ajudariam e nom creeriam a quem antre eles quisesse poer mescla ou mestura, moormente estes, que de tam noble [linhagem] e per sangre eram senhores de tam gram recado e entender, que deviam a conhocer tantos e tam bõos dividos que antre si aviam e quererem escusar de viir a se desaviir, ca per [l]a descordia sua se segueria gram dano e morte a muitos dos seus reynos e senhorios, que seeriam sem culpa daquelo por que eles a descordia veessem, e que os sobervosos aviam prazer e os humildosos padeciam dano e os que a Deus serviam padeciam nojo e medo e os que ao demo serviam aviam, prazer e riquezas e ousança, e os reys nom seeriam assi aguçosos em fazer justiça em [n]os maos, como eram, estando aviindos, em que Deus deles serviço grande recebia. E, pera se arredarem de nom viirem estes senhores reys, filho e neto desta rainha, a tanta descordia, propos a ir u cada uum destes reys fosse, pera tratar antre eles e guardassem antre si os dividos e amor que aviam, pera se nom morrerem e fazerem guerra. E, querendo-a alguuns partir daquele caminho, per razom das caenturas grandes que em aquel tempo fazia e porque sa idade era mais pera folgar que pera trabalhar, [respondia] que entendia bem que em nenhuma [cousa] nom podia ela mayor serviço fazer a Deus, como faria, se arredar podesse tam grande dano e estrago como se alguum averia, viindo estes reys

160

antre si a descordia e a se desaviirem. E começou seu caminho e chegou a Estremoz. 142

Este conflito, de que falam detalhadamente as crónicas que cobrem este período, opunha D. Afonso IV de Portugal a D. Afonso XI de Castela. Este casara com D. Maria, a “formosíssima Maria” de Camões, filha do primeiro, mas tomando-se de amores por uma dama da corte, D. Leonor Nunes de Gusmão, só a ela tratava dignamente, com estado de rainha, vivendo e despachando os assuntos do reino em casa dela, dando-lhe, a ela e aos seus filhos, honras de rainha e de príncipes, desprezando e humilhando a rainha e o príncipe herdeiro, D. Pedro. Além do mais, D. Afonso XI impedia, pela força, a passagem para Portugal de D. Constança Manuel, sua primeira esposa e filha do seu inimigo D. João Manuel, que se dirigia para junto do seu futuro marido, o infante D. Pedro, filho de Afonso IV. Estas razões levaram ao desencadear das hostilidades entre os dois reinos e a rainha não pôde, desta vez, impedi-lo, sucedendo-se uma guerra sangrenta, a que só pôs fim a ameaça dos Sarracenos avançando sobre a Europa e a Península. A Lenda não descrimina as causas das desavenças entre D. Afonso IV e o sobrinho e genro, D. Afonso XI, mas tanto as Crónicas dos sete primeiros reis de Portugal, como Rui de Pina, na Chronica delRey D. Affonso IV (cap. V – XXIII), as desenvolvem pormenorizadamente, bem como todas as peripécias do conflito, e forneceram as informações para o relato de Perpinhão, que refere não só esta romagem final de Santa Isabel, mas os motivos específicos que a levaram a fazê-la: Enquanto isto acontecia na Lusitânia, o rei Afonso de Castela, desprezando os conselhos da avó e pouco lembrado da palavra dada, ainda que a esposa Maria já lhe tivesse gerado um filho herdeiro, vivia todavia de tal forma que não só não expulsara Leonor de sua casa,

142  Lenda,

pp. 1359-1361.

161

como até transferira todo o seu governo para casa dela. Como esta estivesse cheia da multidão régia, e fosse frequentada diariamente por todas as classes, entristecia-se, no silêncio, o lar abandonado da esposa, e, deplorando a miserável servidão do seu senhor, exigia a sua antiga dignidade. Nada era tão difícil de ser feito, que não se conseguisse por intermédio de Leonor; pelo contrário, nada era tão justo ou tão fácil, que se pudesse obter contra a vontade de Leonor. Era ela que presidia à população inteira, nas questões públicas e nas causas dor crimes; era ela, no direito civil e, nos conflitos de todos os privados; era ela que dominava, em todas as questões de guerra e paz, era ela que tinha sob a sua autoridade justiça, leis, honras, poderes, sacerdócios, enfim, o próprio rei, ainda não suficientemente fortalecido pela prudência e pela razão, uma vez que o seduzia por todos aqueles meios com os quais aquela idade pode ser seduzida e manobrada. Também a própria rainha, senhora seriíssima e modestíssima, conservando um nome vazio de dignidade régia, com o filho Pedro, sempre que queria reunir-se com o marido, tinha de suportar, com grande dor, aquela indignidade, de transpôr o limiar daquela impuríssima barregã. Por tantas injúrias à filha, dissimuladas e silenciadas em prol da tranquilidade pública, divulgadas na Lusitânia, ora nas cartas de algumas pessoas, ora nas conversas de muitas outras, gerou-se uma não mediana ofensa nos corações, mas que estava completamente fechada no peito. Porém, eis que uma nova situação quase forçava os reis a pegar em armas, já irritados nos seus espíritos e que já quase nada esperavam senão uma ocasião para começar uma guerra. Com efeito, Afonso, rei da Lusitânia, pedira ao nobilíssimo e poderosíssimo fidalgo João Manuel que desse em casamento sua filha Constança a seu filho D. Pedro, herdeiro do trono. Tanto para o Castelhano que ora mostrava uma aparência dissimulada, ora maquinava em segredo, e que, em público, revelava alegria por palavras, mas, às escondida, se esforçava por impedir, com várias manobras, um casamento que via com maus olhos, como para o Lusitano que desconfiava e dava ouvidos,

162

na verdade, com muito mais atenção do que a situação exigia, como é costume, nada lhes parecia ser mais próximo do que anunciarem a guerra um ao outro. 143

D. Isabel foi, pois, ao longo da sua vida, uma rainha interventiva na vida política do Reino, concordando ou discordando do rei, dando a sua opinião, fazendo os seus protestos públicos, tomando partido, movimentando as suas influências, familiares e não só, na defesa dos seus e do reino. Essa sua faceta pode bem clarificar-se pelo estudo das crónicas medievais e na correspondência que sobreviveu, por exemplo, nos Arquivos da Coroa de Aragão e do Vaticano, que confirmam as palavras da Lenda.

II.6. Viuvez. Modo de vida Adoecendo D. Dinis, entre o final de 1324 e princípio de Janeiro de 1325, em poucos dias se finou. A Rainha fez, ainda o rei estava moribundo, uma declaração pública, a 2 de Janeiro de 1325, afirmando que, no caso de morrer antes de seu marido, queria que o seu corpo fosse amortalhado num hábito de clarissa e sepultado no Mosteiro de Santa Clara 144; de

143 Perpiniani,

De Vita, pp. 349-351.

144 Esta

intenção de adotar o hábito de Santa Clara, quer como mortalha apenas, no caso de morrer antes de D. Dinis, quer como vestimenta diária, se sobrevivesse ao marido, sem, no entanto, professar, simplesmente em sinal de viuvez e de humildade, é expressa no seguinte Protesto, que fez a Rainha S. Isabel de morrer no Habito de S. Clara, (...), de 1325, documento transcrito por D. António Caetano de Sousa nas Provas da História Genealógica da Casa Real Portuguesa, (Tomo I, Livros I e II, pp. 142-143): In nomine Domini Amen. Noverint universi praesentes nostras literas inspecturi, quod nos Elisabeth Dei gratia Regina Portugalii & Algarbii ad declarationem conservationem, & defensionem status bonorum, & jurium nostrorum dicimus, denunciamus, & protestamus expresse: quod si contingat nos de hac vita migrare superstite, & relicto serenissimo Principe, & Domino Domino (sic) Dionysio Dei gratia illustri Rege Portugaliae, & Algarbii marito nostro legitimo, quod cum nodosa cordula habiti ad cingendum, & cum quadam veste in una nostra archa repositis, quae videtur esse de habitu, & ad instar habitus sororum, seu monialium Ordinis Sanctae Clarae,

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igual modo, no caso de lhe sobreviver, como de facto aconteceu, tinha a intenção de adotar o referido hábito, em sinal de viuvez e humildade, sem, todavia, professar ou sujeitar-se a qualquer ordem religiosa, para poder continuar a dispor de todas as suas prerrogativas de rainha e das suas rendas e bens, a fim de continuar a ajudar as pessoas da sua Casa e a dedicar-se às suas obras de assistência. Esse documento, redigido em latim, é um dos poucos documentos contemporâneos da Rainha que se constituem como fonte de informação e permitem delinear a sua personalidade. Foi traduzido por Perpinhão, inspirado provavelmente na versão de Rui de Pina, na Crónica de D. Dinis. Perpiniani De Vita, pp. 292-294 Pedi sempre eu a Deus Óptimo e Máximo, varões fidelíssimos, que não trouxesse ao meu espírito, se assim lhe aprouvesse, este tão grande sofrimento, de assistir à morte do meu e vosso rei, único a quem amei na vida, mas que permitisse, antes, que ele me sobrevivesse por muito tempo, para a tranquilidade e salvação públicas. E, se acontecesse o contrário do meu anseio, como nesta tamanha instabilidade e variedade das coisas humanas eu imaginava que podia acontecer, pedia que me fosse permitido viver a restante vida com um humilde e vulgar hábito, como o que Santa Clara deixou às suas freiras. Com este espírito, há já muitos anos que guardo, em casa, uma indumentária feita nestes moldes, testemunha desta minha perpétua

Pina, Chronica DelRey Dom Diniz, p. 309 Porque eu tenho grande esperança em Jesu Christo meu Senhor, e nom menos confiança na Glorioza Virgem sua Madre, e assi singular devaçam na Ordem, e Abito de Sancta Clara, assi como sempre ha tiveram aquelles de que descendo, sempre puz em minha vontade, que falecendo primeyro ElRey meu Senhor, e marido, eu acabar a vida no dicto Abito, e por esso ho tenho feyto, e aa muitos dias que comigo ho trago, e em minha arqua, por taal que se por ventura acontecesse delRey meu Senhor, primeyro que

volumus, & intendimus sepeliri in Monasterio Sanctae Clarae apud Colimbriam, & de nostris bonis destribui prout apparebit in testamento nostro plenius contineri. Si vero praefatum Dominum maritum nostrum, praemori, quod absit, & post ipsum vivere nos contingat, volumus, proponimus, & intendimus praedictas vestem, & cordulã ac velum viduitatis licet instar habeat Ordinis supradicti, assumere, accipere, & induere, non in habitum religiosum probatorium, vel professorum, nec causa probationis, vel professionis, seu obedientiae alicujus Ordinis, regulae, vel personae, sed solum causa, & in signum viduitatis, & humilitatis illis, intentione, mente, corde, & animo, ut quandocumque, & qotiescumque voluerimus, possimus ipsas libere, & licite demitere, sine nota, & alias quascumque seculares, & laicales, quas nobis competere viderimus, & voluerimus assummere, & induere, & de nostris rebus bonis juribus, & persona disponere, & facere libere velle nostrum, quodque licet hujusmodi cordulã, vestem & velum, ut praemittitur assumere, & induere, proponamus, tamen panos lineos, quibus ad praesens utimur, & uti consuevimus, & alia nobis seculari, & laicae viduae competentia, non intendimus demittere, sed prout voluerimus illis uti.(...) Também se encontra em Brandão (1650), V, pp. 248-49, e Vasconcelos (1894), II, pp. 8-9.

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vontade. Percebo agora que chegou essa hora, feliz para quem anseia uma vida cumulada de todos os bens, frequentemente muito receada por mim, tanto por minha, como por vossa causa, mas que não deve ser proibida por nenhum conselho humano, nem evitada por quaisquer esforços nossos, a hora em que o ilustre governador do mundo levará Dinis, livre das cadeias do corpo e arrebatado de nós, para a região dos bem-aventurados, como esperamos. O que já tinha há tanto tempo estabelecido, pois, fá-lo-ei de livre vontade, com a vossa aprovação, e livre dos compromissos do casamento, entregar-me-ei àqueles interesses com os quais me deleitei intensamente desde a mais tenra idade. Mas fá-lo-ei de tal forma que não vos pareça desprezar a atenção que me mereceis. Não está, com efeito, no meu espírito tomar quaisquer votos ou professar a disciplina de Santa Clara em solene rito; não abandonarei a distintíssima família de honestíssimos homens, donzelas e donas; não diminuirei o seu número; conservarei os territórios e rendas que me foram atribuídos pelo rei; ocupada com a sua administração e gasto, trarei para junto de mim muito mais jovens do que tive até agora, em número e condição de filhas, e, de acordo com o seu espírito e as minhas riquezas casá-las-ei ou tratarei de as fazer admitir nalgum convento de freiras. Finalmente, não obrigada por quaisquer leis ou instituições, de minha livre vontade, passarei o que resta da minha vida com esta indumentária humilde e desprezível, de tal modo que colocarei todo meu empenho, com a ajuda divina, a acudir aos homens e dividirei as minhas riquezas, livremente, por quem eu quiser, por ordem e lei da vontade divina. Assim sendo, varões fidelíssimos, não há razão para comoções, quando me virdes, depois de mudar completamente a forma de vestir; haverá, antes, razão para que vos alegreis, se, em tamanho luto de todos, ainda pode haver lugar para a alegria, quer por minha causa, quer pela vossa: pela minha porque, daqui em diante, terei liberdade e inteira faculdade para atender aos meus interesses; pela vossa, porque, num diferente modo de vida, tudo o que teria de ser gasto noutras coisas, tudo será gasto, agora, para vos ajudar, para educar e encaminhar os vossos filhos e para ajudar e encorajar os necessitados.

eu falecer, ho que deos nom queyra, eu vestisse logo ho dicto Abito por lembrança de minha tristeza, e por sinal de tamanha mudança destado, que eu mais nom devo teer, nem por fazer no dicto Abito profissam, nem obedecer ha alguua Ordem que nom hee minha tençam fazello. Especiaalmente porque eu por minha idade, e grandes infirmidades nom poderia soportar hos grandes encargos, e trabalhos da Religiam, mas posto que eu este Abito vista, e traga, por esso nom leyxarey minha Caza, nem has Donas, e Donzelas, que comigo vivem, mas prazendo a Deos, espero trazer estas, e tomar outras como filhas, e irmaãs, e cazallas, e aviallas com ho que eu poder dos meus bens, e fazenda, porque como dice, eu proponho nom fazer profissão nesta Ordem, nem em outra alguuma, nem tenho em alguuma feyto voto pubriquo solene, nem secreto, e esto digo porque em cazo, que no meu corpo vista o dicto Abito, que minha alma fique livre pera de minha fazenda seem alguum outro cargo, nem obrigaçam de Religiam poder despoer livremente todo ho que por beem tiver, e assi ho tenho dicto, e decrarado muitas vezes aho Ifante D. Affonso meu filho, e ha Frey Johaõ meu Confessor.(...)

Ao morrer o rei, D. Isabel vestiu o referido hábito, que recebeu das mãos das damas da sua casa e, de novo, fez afirmação pública,

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a 8 de Janeiro de 2025 145, de não se tratar de profissão em qualquer ordem religiosa, uma vez que a sua saúde o não permitia, os seus conselheiros mais próximos o não aconselhavam e ela própria queria continuar a dispor livremente da sua fortuna para ajudar quem entendesse.

145  A declaração feita pela rainha D. Isabel, no ato de vestir o hábito de clarissa, de não querer sujeitar-se a qualquer ordem religiosa, pessoa ou regra e de não fazer qualquer voto ou profissão, encontra-se transcrita em Vasconcelos, II, pp. 10 e 11:

In nomine Domini Amen. Conhoscaõ quantos esta nossa presente carta virem, que nós Dona Isabel mulher em outro tempo do muito alto, & muy nobre Rey, & Senhor D. Diniz (...) aviamos posto em nossa vontade, que se acontecesse que nós moressemos antes que o dito Rey D. Diniz nosso marido lidimo, qua aviamos devoçom de morrer no avito de Santa Clara, o qual autto convem a saber huma corda com noos para cingir, & hum veo branco, & huma vestidura que tinhamos ja tempo ha em nossa arca para esto. E se por ventura o dito Senhor Rey D. Diniz primeiro morresse, o que Deos nom quizesse, & contecesse que nós vivissemos depois, queriamos, & entendiamos de filhar, & receber, & vestir este avito segundo como dito he: solamente per razom de tresteza, & de doo, & domildade, & nom per Religiom, nem per professom, nem por obedeença dalguma ordem estremadamente. Porque somos em tal idade, & em tal estado, & avemos tais enfermidades que nom poderiamos sosteer, nem comprir aquello que he de ordem (...). E de mais dezemos que voto algum simples, ou solene, calado ou expresso, ou profissom, ou obedeença calada, ou expressa, nom avemos demostrada, nem feita per alguma maneira, nem queremos, nem entendemos demostrar, nem fazer em este recebimento de corda, & vestidura, & veeo sobreditos, nem em outra maneira. E outro si nom demostramos, nem entendemos, nem propoemos, nem queremos fazer, nem fazemos a nenhuma Ordem, nem regla, nem pessoa alguma obligaçom de nos, nem de nossos bens, nem de nossos direitos por todalas cousas sobreditas, nem por alguma dellas; mais entendemos, & queremos com todos nossos bens, & direitos moveis, & de raiz de todo em todo livremente ficar, & desses vender, doar, alongar, a penhorar, emprazar, & emprazamentos teer, & fazer Igrejas, & Mosteyros, & Espitais, & outros piedosos logares, & esmolas, & dos outros cada que quizermos despoer em nossa vida, & em nossa morte, assi como a nos prouguer, & por bem tevermos, & como nos Deos der graça de fazer.

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Perpinhão, De Vita, p. 295. Uma vez que Deus, governante de todas as coisas, quis que eu sobrevivesse ao meu marido, em cuja salvação estava contida a minha, eu própria estabeleci, no dia de hoje, que aquele que não posso seguir em corpo, siga em espírito e vontade, de forma que, ainda que seja necessário permanecer neste como que presídio da vida, até ao momento de desaparecer, por mandado do imperador, todavia, de tal forma viva que esta pareça mais a minha morte que propriamente a vida. E, assim, para declarar aos mortais, no futuro, a disposição do meu espírito, vesti esta túnica vulgar e de luto que vedes, cingi-me com este cordão rude e disforme, cobri a cabeça com este véu de linho branco, não para me entregar àquela disciplina de que são próprias estas insígnias, mas para, abrigando-me, de algum modo, nesta humildade e obscuridade, um pouco mais livremente, como devo, poder servir a Deus, senhor e governante de todas as coisas, enquanto for bafejada por ele da aura celestial.

Rui de Pina, Chronica DelRey Dom Diniz, p. 311 Pois Deos por seu grande poder, e profundo Juizo ouve por beem, que ha morte delRey meu Senhor, e marido ante passasse ha minha, e seem sua vida eu fiquo, e sam tanto como morta, e de razam eu jaa morri com elle, e por esso eu quis logo mudar hos vestidos, e trajos que vedes, que sam este abito pardo cingido com esta corda, e este veeo branquo, que ponho sobre minha cabeça porque ha vida, que seem elle viver seja com doo, e tristeza pera sempre, e esto nom faço por seer Freyra, nem teer feyto alguum voto, e obrigaçam de Religiam como teenho dicto, mas por minha humildade, porque nelle sirva ha Deos, nas couzas em que ha sua graça me ajudar.

II.7. Obras de assistência As obras de assistência e os atos de devoção intensificaram-se depois da morte de D. Dinis. As fontes escritas que mostram este seu empenho continuam a ser a Lenda e os seus testamentos, que determinam com precisão todas as entidades beneficiadas e as verbas que lhes eram atribuídas; atendendo ao segundo, por exemplo, redigido em 22 de dezembro de 1327, são contemplados, para além da sua família e dos membros da sua casa, igrejas e mosteiros de várias ordens religiosas, tanto femininas como masculinas, em Portugal e no estrangeiro, mulheres emparedadas, frades pregadores, cativos, leprosos, os orfanatos de Lisboa e Santarém, albergarias, hospitais146, mas, principalmente o mosteiro de Santa Clara

146  Extratos

do segundo testamento (Vasconcelos, (1891-94), II, pp. 12-18:

(...) Item mando pera catiuos tirar mil libras. Item mando pera pobres uestir mil libras. Item mando aos frades pregadores, & meores de todo o senhorio delRey de Portugal, a cada huum conuento cinquoenta libras. Item mando às Donas de Santa

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e o seu hospital, cujo funcionamento vai, posteriormente, regulamentar por meio de um codicilo, feito a 12 de Março de 1328. Chegada da peregrinação a Santiago de Compostela, empreendida logo após a morte de D. Dinis, desfez-se de jóias e roupas e transformou-as em utensílios, vestimentas e ornamentos religiosos, etc, que distribuiu por igrejas e mosteiros. Perpiniani, De Vita, p. 306 Tinha grande quantidade de roupa preciosa, tanto em tapeçaria como em vestuário de tecidos de seda e ouro, decorados com padrões magníficos; trouxe-a toda e fazendo dela, prontamente, vestes sacerdotais e outros ornamentos desta natureza para as igrejas, tratou de que fosse consagrada por certo Pontífice. Trouxe também o que tinha em ouro e prata, trabalhado ou em bruto, mandou que se transformasse tudo em cálices para uso nas cerimónias religiosas, em cruzes, umas maiores que fossem levadas nas procissões, outras, mais pequenas que se colocassem nos altares, e ainda em incensários, lampadários suspensos e outros presentes e dádivas desta natureza. Quis que uma parte deles fosse consagrada no Mosteiro com a invocação de Santa Clara; outra parte dividiu-a pelos restantes templos da Lusitânia, quando sabia que era vantajoso fazê-lo, de acordo com a sua religiosidade ou pobreza. Distribuiu, mesmo, as coroas reais magnificamente feitas, os colares de ouro e pedras preciosas e algumas outras jóias mais nobres pela rainha Beatriz, sua nora, pelas suas duas netas, depois rainhas, Maria, filha de Afonso, e Leonor, nascida de Constança, que poucos anos depois casou com Afonso, rei de Aragão, e por algumas outras donas nobres familiares suas, de modo a que, naquela austeridade de vida que procurava, ainda assim conservasse a bondade para com os seus.

Lenda, p. 1344 E, acabado aquelo, tornou-se pera Coimbra, pera dar cima e cabo ao moesteiro que começara, e ali mandou apartar quantos panos de ouro e de seda avia em tempo que era casada, que eram muitos e mui nobres, e mandou deles fazer vestimentas e ornamentos pera as eigrejas e, des que forom acabadas, feze-as beenzer e, acabadas e beentas, partio-as per muitas eigrejas de Portugal, e dando a cada uma eigreja e logar, segundo o logar era e o merecia e segundo saber podia que compria. E da moor parte do ouro que avia fez fazer calezes e cruzes e encensairos e lampadas, e pos destes ornamentos em aquel seu moesteiro e partia per outras eigrejas, segundo viia que compria ao logar. E coroas que avia e alguas outras nobrezas partio com a rainha D. Beatriz, molher delrey, seu filho, e com suas netas, a rainha Dona Maria de Castela e a rainha Dona Leonor de Aragom e com outras de seu linhagem.

Clara de Lisboa duzentas libras. Item mando às Donas de Santa Clara de Santarém çem libras. Item mando às Donas de Sam Domingos de Santarem çem libras. Item mando a todalas emparadeandas de Lisboa, de Santarem, de Óbidos, de Leiria, & de Coimbra duzentas libras. Item mando aos gafos das ditas vilas duzentas libras. (...) Item mando ao hospital dos meninos de Lisboa çem libras. Item ao hospital dos meninos de Santarem mil libras. Item mando a todolos hospitais, & albergarias do senhorio do Reyno de Portugal quinhentas libras. (...) Item mando ao dito meu Mostejro de Santa Clara, & de Santa Isabel doze mil libras pera a obra dese Mostrº & pera mantimento da Abadessa, & das donas desse Mostrº & se mais ficarem de trinta & sex mil libras que eu ey dauer depos minha morte das Rendas das minhas terras (...) plazme, & mando que as aia o dito Mostejro pera essa obra & pera mantimento da Abdessa & conuento, ou o que hi acharem.(...)

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Continuando a dispor dos seus vastos bens e rendas, deu largas à sua atividade em prol de mosteiros, ordens religiosas e desfavorecidos, pondo em prática as obras de caridade e de misericórdia: Perpiniani, De Vita, pp. 322-323 Mas ela nunca desistiu de agir: de matar a fome aos famintos e a sede aos sedentos; de acolher no albergue os peregrinos e os pobres; de fornecer roupa aos pobres; de visitar os doentes e prestar assistência médica, em algumas situações oportunas; de cuidar de dar sepultura aos mortos e de suportar a despesa dos funerais dos indigentes; de pagar, com o seu nome e recursos, todas as dívidas dos infelizes; de resgatar os cativos aos mouros. Aconselhando estes procedimentos, censurando e pedindo, reconduzia ao caminho certo os que se afastavam da senda da virtude, exortando, inflamava os bons, persuadindo, reafirmava os vacilantes, consolando, mitigava a tristeza dos que choravam; por fim, não ignorava nenhum dever, nenhum obséquio, nenhum género de piedade, em relação a quem quer que fosse.

Lenda, pp. 1351-52 E mandava ela do seu aver e pam dos celeiros dar aaqueles a que viia que era aguisado de o dar [e] a quem compria. E consiirava mui bem ca em todo o que desse a estes que assi pediam avia per ela de seer [consiirado] que pessoa era e se lhe compria e logar dos religiosos qual era e se erom muitos ou poucos, e assi, segundo o logar e pessoas e mester a eles fezesse, assi seria o que [a] eles dessem. E per esta rainha se faziam as tres obras de caridade, ca ela aos mengoados e pobres acorria com esmolas e, se era alguum per que ela devesse de aver sanha, perdoava o rancor e a satisfaçom. E esto foi cousa maravilhosa, que nunca a viram sanhuda.(...) E as sete obras de misericordia, ca ela vestia [os] nuus e aos que aviam fame ou sede mandava-lhes acorrer com comer e bever. E o[s] enfermo[s] visitava e fazia visitar. E os mortos fazia soterrar e lhes dava pera sepulturas o que mester aviam, por [l]os apressados pagava e corrigia os que perdiçom estavam [e] conselhava pera perseverarem. E ela mantiinha a espritalidade, remiia cativos, pagando por eles do seu aver, a outros dando ajuda pera se remiirem. E livrava aquelo tambem das obras que ela fazia e o que a ela pediam.

Em épocas de mais aperto, abria as portas dos seus celeiros para acudir a quem pecisava, como aconteceu, por exemplo, em 1333, em que as más condições climatéricas levaram a que esse fosse um ano de grande carência de alimentos, em Portugal 147, causadora de doenças

147  Há, no Breue Chronicon alcobacense (In Portugaliae Monumenta Historica, Scriptores, vol.I) referência a esta calamidade que se fez sentir em Coimbra: Era Mº CCCª LXXª Iª fuit annus malus ita quod alquer tritici constitit colimbrie XX soldos, et de milio tercedim soldos, et de centeno XVI, et multi mortui sunt pro (?) magnitudine famis, et tunc seperunt idere sanaceni gibraltar. O Chronicon Conimbricense (publ. por Antº C. Sousa, Provas da Historia Geneal. da Casa Real Port., vol.I) é um pouco mais detalhado: Na E. de mil e CCC LXXI año fuy tã mao ano por todo Portugal q andou o alqueire do trigo a XXI soldos, e o alqueire do milho a XIII soldos, e o ceteo a deziseis per la medida coymbraa. Item en esse ano andou el almude do vinho bermelho a XXIIII soldos, e lo blanco a XXX soldos por la medida coymbrãa. E bem assi foi menguado o ano de todos outros frutos per que se agente havia de manteer; en este ano morreron

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e inúmeras mortes, entre a população; a Rainha distribuiu alimentos, mas também providenciou para que os mortos fossem sepultados com dignidade. Perpiniani, De Vita, pp. 338-341: No ano de 1333 da era de Cristo, vivendo a rainha em Coimbra, começou o preço do trigo a tornar-se, de dia para dia, mais elevado, mal que aumentou, de tal modo, num breve espaço de tempo, pois muitos açambarcaram o trigo, por causa da procura, como costuma acontecer, de modo que já não era só a carência que assolava a cidade, certamente, mas, mais gravemente, a fome. Chegava o trigo, em moedas daquele tempo, a quinze soldos, cada alqueire (...). Aquela quantidade, porém, não era grande, de modo que mal poderia fornecer o alimento de uma semana para um rapaz. (...) O panorama era desanimador e débil todo o aspeto da cidade; os rostos, os vultos de todos marcados pela tristeza e infelicidade; os próprios espíritos aterrorizados com a expetativa da morte ameaçadora; os corpos consumidos por uma horrível como que putrefação; a cor desaparecera, as forças fugiam. Tudo se misturava com clamores; ressoavam os lugares públicos e privados com o choro e lamento dos infelizes; a dignidade não segurava as senhoras em casa, nem o pudor, as donzelas, nem o medo, as crianças, nem a gravidade, os homens, mas todos, como que fora de si e atónitos, corriam de um lado para o outro irrefletidamente, ora lamentando os meninos pequenos, ora a sua época. Em tamanho e tão insanável mal que assolava a cidade, brilhou maximamente a bondade e misericórdia da santíssima Rainha (...); abriu os celeiros, mostrou os tesouros, dividia, por uns, trigo, por outros, carne, por outros ainda, dinheiro. Não eram impedidos de aceder às suas portas nem pobres, nem ricos, nem crianças, nem velhos, nem varões, nem mulheres, nem homens, fossem religiosos consagrados pelas diversas ordens, fossem leigos. A sua casa era tida como a reserva de trigo dos ricos, recurso da

Lenda, pp. 1357-1359 E, vivendo ela em Coimbra pera dar cima a sas obras, veo gram careza de pam em [n]a terra, de guisa que na ciidade de Coimbra valia o alqueire quinze soldos, e é pequeno aquele alqueire pera pam de uum moço per uma somana, em [n]a era de 1371 annos, e recodiam aaquela [cidade] muitos pobres e do seu fazia elas grandes esmolas de pam e de carne, e com probeza morriam muitos omeens e molheres, que andavam desemparados com fame. E aos que morriam, de que ela parte saber podia, mandava ela soterrar e dar sudairos e candeas e fazer fossas e covas em que os soterrassem, e mandava pera as albergarias e logares u morriam os creligos fazer oficios da santa Eigreja e pera os soterrarem. Em aquel tempo nom era [em] memoria dos omeens que tanta careza viissem de pam em na terra, ca com fame omeens e molheres paciam as ervas e comiam as carnes das bestas mortas e outras cousas que nom som pera comeer omeens, nem molheres. E esta rainha fez em aquel tempo a muitos, que mester aviam, tam bem ricos como pobres e religiosos e religiosas, grande acorrimento com pam e com dinheiros, em tanto que alguuns, que em sa casa avia, a reprendiam, porque nom guardava daquelo que assi dava, porque nom sabia que tempo a seguir se avia. E ela

muytas gentes de fame quanta nunca os homens virom morrer por esta razõ nem virõ nem ovirõ dizer oomeens antigos dante sy q tal cossa vissem nim ovissem, e tantos fuerõ os passados q fuerõ soterrados em os adros das Egrejas q nom cabiã en eles, e ante os soterravã fora dos adros e deytavaos nas covas quatro a quatro, e seys a seys asi como os achavã mortos per as ruas e por fora. E esto foi asy todo do compeço do ano ata o outro renuevo do ano seguinte.

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plebe carenciada e aflita, armazém de todos os que morriam de fome148. Esta situação provocava uma grande apreensão aos seus servidores, receosos de, por causa de tamanha largueza e beneficência, serem prejudicados não só eles, mas também a Rainha. (...) Mas ela, reprimindo moderada e suavemente o temor e as angústias do coração, ordenou-lhes que se animassem; que deviam sentir, ter esperança e falar da divina clemência e bondade, de forma mais grandiosa; que se não acudisse aos cidadãos em perigo de vida, da forma que pudesse, então podia legitimamente temê-los; que, enquanto fizesse a sua obrigação, não se devia recear que Deus permitisse que morressem de fome aqueles que, antepondo ao seu perigo a desgraça presente dos outros, expulsassem, com os seus recursos e diligências, tamanho flagelo do género humano; que, para si, era verdadeiramente uma espécie de morte, e até mais grave e amargo que a própria morte, ver arrebatado, pela fome, alguém a quem ela própria podia acudir facilmente; e que não duvidava de que aquele vingador severo havia de lhe pedir contas da vida e do sangue de todos os infelizes que, implorando-lhe a sua fé e misericórdia, podia parecer, com toda a legitimidade, estar a matar, se os não ajudasse, ainda que tivesse essa possibilidade.

respondia, que pareceria ela, se nom acorresse aaqueles que viia desperecer por fame em aquelo que acorrer podesse e per mingoa d’acorrimento desperecessem? Que ela ficaria em culpa de sa morte e que Deus acorreria a ela depois e que [a] ela daria proviimento.

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II.8. Peregrinação a Santiago de Compostela O texto mais antigo que fala da peregrinação da Rainha Santa Isabel a Santiago de Compostela é a sua primeira biografia que, sobre a referida viagem, diz: E, ante que se comprisse o ano do dia do passamento delrey, começou esta rainha caminho, sem o dando a entender, pera ir aa eigreja em romaria u jaz o corpo de Santiago apostolo. E assi calou pera u ia que os de sa companha per alguuns dias que nom entendiam a que

148 Também a sua tia avó, Santa Isabel de Hungria, abrira as portas dos seus celeiros, em 1226, para acorrer aos famintos, numa época de grande carência, motivando também o descontentamento e apreensão dos seus. Sobre as semelhanças nos percursos de Santa Isabel de Hungria e Santa Isabel de Portugal, vd. supra.

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partes ir queria, atá que nom chegou acerca de Santiago a uum logar que é alongado da vila per uma legoa, onde parecia a eigreja. Foi de pee com gram devoçom atá a eigreja de Santiago, e esto era no mês de julho, ante a festa de Santiago por dias, e teve ali a festa. E em no dia da festa, dizendo o arcebispo missa, ofereceu esta rainha ao apostolo Santiago a mais nobre coroa que ela avia com muitas pedras preciosas, e os mais nobres e melhores panos, apostados com muito aljoufar, pedras ricas (e) penas, que, [em] vivendo com elrey, seu marido, vestira, e avia uma mui fremosa e de gram valia, cuberta das mais ricas sueiras, que diziam aqueles que ali eram, que nunqua veer podessem rainha, nem outra senhora tam nobres cousas oferecer, e a mua [que] era enfreada de huum freo que nom era senom ouro e pedras preciosas. E ofereceo i uus panos d’ondas, de geebe rosado com sinais de Portugal e de Aragom, em que andava muito aljoufar, e ofereceo copas mui nobres e mui bem lavradas, por que ela em tempo delrey bevia. E tragia feitas capas, uma vestimenta com almatica pera diacono e com todo comprimento mui nobre e rico e mui bõo e oferecia ao apostolo Santiago, e do seu aver fez outrosi grandes ofertas e esmolas de guisa que diziam os da eigreja de Santiago que ali erom que [nom] era [em] memoria de omeens em aquel tempo que tam nobre e tam rica oferta a nenhuma pessoa viissem dar aa eigreja de Santiago. E, comprida sa romaria, o arcebispo da eigreja deu aa rainha uum bordom e esportela, pera per [l]o bordom e esportela parecer romeira de Santiago, e tornou-se pera Portugal. E as gentes das comarcas per u viinha saiam de sa propria voontade aos caminhos e logares por [l]a veerem, por [l]a bondade que dela ouviom dizer que avia, e a serviam (...) e os das vilas e logares do senhorio delrey de Castela a acolhiam em [n]as cercas, ela e os seus, e, pero que muitas companhas com ela veessem, nom receavom d’acolher-la, por sa bondade e porque era avoo delrey, seu senhor. 149

149  Lenda,

pp. 1341-43.

172

Nos relatos históricos que cobrem os reinados de D. Dinis e de D. Afonso IV, não há referência à peregrinação, nem no Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, contemporâneo da Rainha, nem na Crónica Geral de Espanha de 1344, composta pelo mesmo autor; mas refere-a Rui de Pina, na Crónica del Rey D. Affonso IV e acreditamos que terá existido uma alusão também na Crónica de D. Afonso IV inserta na Crónica de Portugal de 1419, uma vez que o autor a promete no final da Crónica de D. Dinis; não encontrámos, porém, essa alusão. Rui de Pina, na Chronica d’El-Rei D. Affonso IV, no cap. XXIII, refere a peregrinação, mas numa versão diferente da Lenda. Primeiro, situa-a em 1335, um ano antes da morte da Rainha, e não em 1325, ano da morte de D. Dinis; as circunstâncias da viagem são também outras, apresentando a rainha como simples romeira, viajando a pé e pedindo esmola pelo caminho: Andando a era de Cesar em mil, & trezentos, & setenta, & tres anos, & o anno de Christo em mil, & trezentos, & trinta, & sinco a Rainha D. Izabel molher que foy de elRey D. Dinis, & madre deste Rey D. Afõso IV. como era molher de vida mui sãta por acrecentar por seu corpo merecimentos para salvação de sua alma, sendo este anno de Iubileu de Sanctiago de Galiza, ella por aver do tizouro da misericordia, & piedade de Deus indulgencia, & remissão de seus pecados foy a elle, & tornou de pé aforada, & muy desconhecida, pedindo pello caminho esmolas aos fieis Christãos com seu bordão na mão, & fardel ás costas como huma bem pobre romeyra, e no anno seguinte depois de vir a Portugal, porque corrião os tratos do casamento do Infante Dõ Pedro seu neto, ella seveo a Estremos onde adoeceo em quinta feyra aos 4 de julho do año de Christo de mil, e trezentos, e trinta, e seis, e aly foy loguo seu corpo reuolto em hum couro de boy, e posto em seu ataúde, e levado com muyta solemnidade ao Mosteyro de S. Clara de Coimbra que ella novamente fundou (…) 150

150  Rui

de Pina, Chronica d’El-Rey D. Affonso IV, p. 378.

173

Para os seus textos, as orações à Rainha compostas para o dia 4 de Julho e a sua biografia, Perpinhão consultou estes dois textos. Perante a disparidade dos relatos, no seu propósito de não ignorar nada do que estivesse escrito e de revelar a sua fidelidade à autoridade da escrita, Perpinhão optou por referir as duas peregrinações. A primeira, de 1325, não lhe levanta qualquer dúvida; quanto à segunda, de 1335, manifesta, no entanto, as suas reservas. A versão da Lenda é comprovada pelo facto de, no jacente que mandou fazer para o seu túmulo, a Rainha se ter feito representar como rainha, clarissa e peregrina de Santiago, com os respetivos símbolos (vd. infra); este túmulo foi colocado na igreja do Mosteiro de Santa Clara, quando da sua sagração, em 1330. Além disso, quando da primeira abertura do túmulo, em 1612, encontraram-se aqueles objetos que a Lenda refere como ofertas do Arcebispo de Santiago de Compostela, o bordão e a bolsa de peregrina. Se peregrinou em 1335, essa já não era a primeira vez que o fazia, mas foi este segundo relato que colheu o maior favor popular. Entre os textos compostos sobre a Rainha, depois dos acima referidos e antes da monografia de Perpinhão, podem referir-se dois ofícios religiosos: um para uso dos cónegos regulares de Santa Cruz de Coimbra, de 1531, o outro composto por André de Resende, Ofício da bemaventurada rainha D. Isabel, de 1551, a que Perpinhão faz referência como manifestação do culto da Rainha, após a beatificação 151; o primeiro faz uma breve alusão, nas “Lectiones”, à peregrinação após a morte do marido, destacando os presentes oferecidos por aquela, ecoando as informações da Lenda, mas o segundo não fala em qualquer peregrinação. Segundo o ofício dos Cónegos de Santa Cruz: Ao adoecer o mar ido Dinis, nunca lhe faltou com qualquer dever ou assistência de esposa, mesmo que fosse servil, e ao chegar o último dia, ela, vestindo imediatamente o hábito de Santa Clara,

151 Perpiniani,

De Vita, p. 379.

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acompanhou o corpo do marido ao mosteiro de Odivelas, onde jaz o seu corpo sepultado num monumento magnificamente construído e, aí, a esposa cheia de piedade apaziguou os manes do cônjuge, da forma mais solene, como convinha à majestade régia. Daí, partindo para Santiago, em Compostela, no próprio dia festivo do apóstolo, ofereceu ao arcebispo celebrante um pontifical insigne, uma coroa de ouro, adornada com muitas e preciosas pedras preciosas e gemas, e outros presentes como nunca, até àquele dia, acreditavam terem sido oferecidos àquele templo. 152 .

Na Vida e milagres da gloriosa Raynha sancta Ysabel, molher do catholico Rey dõ Dinis sexto de Portugal. Com o compromisso da cõfraria do seu nome, e graças a ella concedidas, editada pelos mordomos da Confraria da Rainha Santa Isabel, acabada de fundar, em 1560 (vd. supra), o relato segue também o texto do Lenda, no que diz respeito à peregrinação: Da romaria que sancta Ysabel fez a Santiago de Galiza. Capit. XXII Bem mostraua esta senhora quam reverenciados ajã de ser os sanctos dos q viuem, com fazer em pessoa romarias às suas casas, & muytas vezes a pé. Entre as que fez muy notauel foy a de Santiago de Galiza, determinandoa encubertamente sem dizer onde hia, no mês de Iulho na força de todas as calmas, & des ho lugar q estaa a legoa da cidade, donde se parece a igreja do bem aventurado Apostolo foy a pee e nella esteue ho seu dia em q disse missa ho arcebispo, & offereceolhe esta senhora de muytas coroas q tinha a mais rica, de muytas pedras preciosas. E de todos os seus vestidos q em vida del rey vestia os melhores, apontados cõ muito aljôfar, perolas e pedras preciosas & huma mula enfreada cõ hum freo de ouro & prata & de muytas pedras preciosas

152  Vasconcelos

(1891-1894), II, pp. 36-42. A tradução é nossa.

175

cõ huma riquíssima cuberta: & huns panos muito ricos rosados com as armas de Portugal & Daragã com lijonjas de aljôfar. & capas muyto ricas q trazia feytas, e hum riquíssimo pontifical, cõ todo ho cõprimento do mesmo jaez. E humas copas de maravilhosa obra releuada, por onde bebia em vida del Rey seu marido. E em dinheyro deo muy grande offerta e esmolas, q deziã todos nã auer memoria de outras igoaes a estas. Vindose pera Portugal o arcebispo lhe deu pera parecer romeyra de Santiago bordã e conchas que aceytou. E por os caminhos, lugares & vilas a vinhã a ver por a fama da sua bondade e virtude por ho mundo conhecida, & de nosso senhor estimada. 153

A versão de Fr. Marcos de Lisboa, na sua Crónica também difere um pouco da versão da Lenda, ao referir, como Rui de Pina, que a Rainha fora a pé: E daly se partio em romaria pera Sanctiago a pé, & esteue em sua casa a propria festa do Apostolo, & fez muy rica offerta de muy ricas peças de ouro, prata, pedras preciosas, & ornamentos de borcados & sedas, que trazia feitos pera offerecer, & em dinheiro deu tambem taõ grande offerta & esmolas, que diziaõ todos naõ auer memoria doutras iguaes a estas. 154

Ainda no âmbito das primeiras biografias contemporâneas de Perpinhão, refira-se também o texto intitulado Lenda da Rainha Dona Isabel chamada a Sancta molher d’el-Rei Dom Denis a qual fundou a Casa do Spirito Sancto da uila d’Alenquer, um texto do séc. XVI, que consta de um códice da época, do fundo de manuscritos da Biblioteca Nacional de Lisboa, da provável autoria de Damião de Góis155, composto

153  Vida, 154  Fr.

p. 33-34.

Marcos de Lisboa (1562), p. 213.

155  Sousa

(1987), pp. 23-48, p. 47.

176

provavelmente entre 1548 e 1557 (vd. supra), que narra uma peregrinação de contornos diferentes, que revela a influência de Rui de Pina: (…) e depois da morte de seu marido no anno de Christo de mil e trezentos e XXXV, ella em pessoa a pee foi a Santiago de Galliza a ganhar o Jubileu que era naquele anno, pedindo sempre no caminho esmola e como qualquer outra pobre trazia seu fardel aas costas e bordão na mão sem se deixar conhecer doutra nenhuma pessoa, que daquelas que consigo levou que forom os menos que ella pode.

8.1. Primeira peregrinação de Santa Isabel Perpinhão fala da peregrinação de 1325, empreendida após a morte de D. Dinis, antes que se completasse um ano sobre este acontecimento, na segunda oração, dita em 1558, Laudationis in Beatam Elisabetham Lusitaniae Reginam liber secundus, e no segundo livro da monografia, De uita et moribus Beatae Elisabethae Lusitaniae Reginae liber secundus. Neste relato, segue fielmente a Lenda: data; acompanhantes que a rainha mantém na ignorância do seu destino, até chegarem a uma légua da catedral de Compostela; atitude de veneração que adotou ao chegar a esse local; presentes que levou para Santiago; admiração que suscitou em todos; presentes que recebeu do Arcebispo; regresso triunfante. Lenda, pp. 1341-1343

Perpiniani, Laudationis, pp. 77-82 E, ante que se comprisse o ano Ainda não fizera um ano que do dia do passamento delrey, Dinis deixara a vida (…) começou esta rainha caminho, sem o dando a entender, pera ir aa eigreja em romaria u jaz o corpo de Santiago apostolo.

177

Perpiniani, De Vita, pp. 297301 Por isso, antes do fim do corrente ano, no verão que se seguiu à morte do rei, em parte para ceder aos desejos do seu espírito, em parte para implorar o auxílio e a misericórdia dos santos e rogar pelo falecido marido, empreendeu uma muito longa e difícil peregrinação, principalmente naquela época.

E assi calou pera u ia que os de sa companha per alguuns dias que nom entendiam a que partes ir queria, atá que nom chegou acerca de Santiago a uum logar que é alongado da vila per uma legoa, onde parecia a eigreja

(…) ela chama os seus, manda que lhe preparem uma viagem e parte. Já tinha feito o percurso de alguns dias; já atravessara o Douro156, já transpusera o Minho e ninguém, de tamanha comitiva, sabia, porém, o que fazia ou para onde se dirigia, ainda que, quer pela sua vida e costumes, quer pela orientação do percurso, já, então, alguns talvez desconfiassem.

A Rainha, de ilustre piedade, emocionada com tudo isto, chama os seus criados; depois de feitos todos os preparativos, não revelando, porém, a ninguém o seu desígnio, põe-se a caminho, na mais incómoda época do ano, a de maiores calores, e os companheiros de viagem não perceberam para onde se dirigia, nem suspeitaram com que estado de alma partira de sua casa, antes de a contemplarem reverenciando o templo de S. Tiago quando lhes aparecia ao longe.

156

156  Não se sabe ao certo qual o percurso seguido por D. Isabel e comitiva, uma vez que os textos mais antigos não o referem; poderá ter sido semelhante, porém, ao seguido por D. Manuel, menos de dois séculos depois, o qual nos é descrito na crónica do mesmo rei escrita por Damião de Góis (I Parte, Cap. LXIIII):

Partio elRei de Lisboa afforrado no mês Doctubro deste anno de mil, & quinhentos, & dous, fazendo seu caminho per Coimbra, onde visitou ho mosteiro de S. Cruz, & vendo que ha sepultura delrei dõ Afonso henrriquez fundador daquella rica, & sumptuosa casa, requeria outra mais digna ahos mereçimentos de hum tão magnanimo Rei, logo presopos de ha mãdar fazer de nouo, quomo depois fez, de modo que agora está. Dalli foi ter a Montemór ho velho, & Aueiro, & aho Porto onde ordenou que ha sepultura de sam Pãtalião se acabasse pelo modo que ho elRei dõ Ioam mãdara em seu testamento. Do Porto foi a Valença de Minho, & em alguas villas destas mandou fazer justiça rigurosa de pessoas em q atte aquelle tempo se nam podera fazer execuçam, pela muita valia, & parentesco que tinham naquelles lugares. De Valença entrou em Galiza pela çidade de Tui, tomando dalli ho caminho direito atte ha casa do bemauenturado Apostolo, com muita deuaçam, onde se deixou conheçer, & foi festejado, assi do cabido da Sé, quomo dos gouernadores da çidade, & fidalgos que nella morauam. Serrão (1973), pp. 10-11, aponta, para o séc. XIII, três itinerários principais: Atinge-se, deste modo, o século XIII e os itinerários surgem melhor delimitados: o primeiro vai de Lisboa a Coimbra, por Alcobaça ou com desvio por Santarém, e dali segue para o Porto e para a cidade dos arcebispos; o segundo liga as Beiras – Viseu e Lamego – com Braga, por intermédio do rio Douro ou seguindo em direção a Chaves e tomando o caminho espanhol em Orense; enfim, o terceiro, referente apenas à província de Trás-os-Montes, a região portuguesa mais despovoada, leva os peregrinos a Chaves, com o mesmo desvio para Orense, ou então, prosseguindo pelas longínquas paragens da serra do Bouro, até à Metrópole da Igreja portuguesa. Moreno & Martins (1993), p. 110) referem que se pode fazer uma ideia do caminho seguido pela Rainha, atendendo aos albergues que terá nessa altura frequentado ou conhecido, e que contemplou no seu testamento: “En el caminho, doña Isabel tomó contacto más

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Foi de pee com gram devoçom atá a eigreja de Santiago, e esto era no mês de julho, ante a festa de Santiago por dias, e teve ali a festa.

Chegara-se àquele lugar, do qual se avistam, em primeiro lugar, as torres altíssimas do santíssimo templo157. Desmontou subitamente a Rainha de ilustre nascimento e, com a admiração de todos, que não ousaram, contudo, opor-se, completou, desta maneira, o que restava do caminho.

E em no dia da festa, dizendo o arcebispo missa, ofereceu esta rainha ao apostolo Santiago a mais nobre coroa que ela avia com muitas pedras preciosas, e os mais nobres e melhores panos, apostados com muito aljoufar, pedras ricas (e) penas, que, [em] vivendo com elrey, seu marido, vestira, e avia uma mui fremosa e de gram valia, cuberta das mais ricas sueiras, que diziam aqueles que ali eram, que nunqua veer podessem rainha, nem outra senhora tam nobres cousas oferecer, e a mua [que] era enfreada de huum freo que

(…) Chegara, entretanto, esse dia festivo e solene de S. Tiago e a Rainha, tendo percorrido todos os lugares, voltara à cidade, quando o Arcebispo fazia a celebração com o maior aparato. Ela participou, alegre e risonha; nessa ocasião, na verdade, deu suficientes sinais do espírito com que teria usado os ornamentos régios, enquanto Dinis era vivo. Trazia uma grande coroa, de ouro, de grande peso, belíssima ao olhar pelas suas muitas e ilustríssimas pedras preciosas; vestes de muito valor, resplandecentes de muitíssimas pérolas e

Com efeito, o túmulo térreo está bastante destacado, a quatro mil passos da cidade e, daí, se revelam primeiro as duas altas torres da catedral aos que chegam, e nela está fixa uma cruz (…) Logo que Isabel chegou a este lugar, desmontou da mula; os restantes fizeram o mesmo e todos, saudando de igual modo o Apóstolo, prosseguiram a pé o resto do caminho, cheios de respeito. Aproximavam-se já as festividades solenes de S. Tiago, que ocorrem a 25 de Julho Avança diante dos degraus do altar a excelente viúva, num humilde trajo, levando consigo muitos presentes de grande valor. Em primeiro lugar, uma coroa de grande peso, com acabamentos de uma arte notável, como era próprio daqueles tempos, resplandecente por muitas e grandes pedras preciosas refulgentes, as mais preciosas de todas as que alguma vez tivera; de seguida, trajos distintos pelo seu artifício singular, graças às belíssimas pérolas e penas e às gemas reluzentes, as mais ornamentadas e as mais abundantes que

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directo com los hospitales y albergues que recogían a los peregrinos. Este hecho marcó de tal forma a la reina, que al morir dejó en testamento quinientas libras para ser repartidas por estas instituciones.” Consultado o testamento, porém, pouco mais avançamos no conhecimento do percurso, pois a rainha não menciona quais os albergues ou hospitais em questão. Consulte-se também Moreno (1986), pp. 77-89. 157  Para quem vai de Portugal, é o ponto da rota dos caminhos portugueses em que se vêem pela primeira vez as torres da catedral. Chamam os galegos a esse lugar Humilladoiro ou Milladoiro que fica aproximadamente a uma légua de Compostela. Ao chegar a esse local, a Rainha Santa apeou-se e fez o resto do caminho a pé.

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nom era senom ouro e pedras preciosas. E ofereceo i uuns panos d’ondas, de geebe rosado com sinais de Portugal e de Aragom, em que andava muito aljoufar, e ofereceo copas mui nobres e mui bem lavradas, por que ela em tempo delrey bevia. E tragia feitas capas, uma vestimenta com almatica pera diacono e com todo comprimento mui nobre e rico e mui bõo e oferecia ao apostolo Santiago, …

gemas; grandes taças, obras-primas com tamanha variedade de lavores, que parecia que a arte rivalizava com a abundância: de sua livre vontade, tudo levou e quis que figurasse nos ornamentos de tão religioso templo.(…) Levara consigo um honesto e completo paramento de pontífice, para fazer a celebração divina. Havia também muito ouro, muita prata e muitas pedras preciosas, e uma grande quantidade de outras dádivas, dignas daquela santidade, dignas da celebridade do lugar, dignas da munificência da poderosíssima rainha. Tudo mandou colocar também na capela do Apóstolo.

….e do seu aver fez outrosi grandes ofertas e esmolas de guisa que diziam os da eigreja de Santiago que ali erom que [n]om era [em] memoria de omeens em aquel tempo que tam nobre e tam rica oferta a nenhuma pessoa viissem dar aa eigreja de Santiago.

Todas as pessoas presentes se admiravam, ficavam espantadas, examinavam atentamente, de novo e de novo, ambicionavam e não podiam de forma nenhuma cansar-se. Exclamavam que absolutamente ninguém, em toda a memória, oferecera a S. Tiago presentes tão abundantes e tão ricas.

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vestira, enquanto o marido era vivo; para além disto, uma tapeçaria de cor púrpura, às ondas, na qual, com um lavor variado e requintado, estavam bordadas as armas dos reis da Lusitânia e de Aragão, onde estavam embutidas muitíssimas pérolas de esplendor admirável; juntavam-se a estes presentes grandes taças laboriosamente feitas de prata, que ela própria usara antes deste período; e ainda uma mula escolhida com generosidade, de ótima cor, enorme e belíssima, com um freio notavelmente feito de ouro, prata e pedras preciosas, com um selim e coberturas de tal espécie que, a todos os que contemplavam, provocavam grande admiração. Além do mais, superava facilmente os outros presentes, pelo esplendor e pela riqueza, um paramento pontifical, elaborado, na sua totalidade, naquele antigo artifício das coisas sagradas, absoluto em todos os números que, com as restantes coisas, deu de presente a S. Tiago a Rainha de excelente munificência.. Entregou grandes quantias em dinheiro, em parte, para o gasto da catedral, em parte divididas por pobres e mendigos, individualmente, de tal modo que os próprios sacerdotes e outros homens de idade avançada que, pela sua longevidade, tinham já visto e podiam lembrar muitas coisas, negavam ter existido alguém, na sua memória, que tivesse dado ao Apóstolo tantas coisas, tão variadas e tão preciosas.

E, comprida sa romaria, o arcebispo da eigreja deu aa rainha uum bordom e esportela, pera per lo bordom e esportela parecer romeira de Santiago, e tornou-se pera Portugal.

Depois de tudo executado por ela, segundo o costume e rito antigos, o Arcebispo ofereceu-lhe, para o regresso a Portugal, um bordão e um alforge, para imitar, até com o próprio hábito, aqueles que tinham empreendido peregrinações àqueles lugares.158

E as gentes das comarcas per u viinha saiam de sa propria voontade aos caminhos e logares por la veerem, por la bondade que dela ouviom dizer que avia, e a serviam (...) e os das vilas e logares do senhorio delrey de Castela a acolhiam em [n]as cercas, ela e os seus, e, pero que muitas companhas com ela veessem, nom receavom d’acolher-la, por sa bondade e porque era avoo delrey, seu senhor.

Por onde quer que passasse, acorriam grandes multidões, de todo o lado. E não vinham apenas daquelas fortalezas, castelos e aldeias por onde regressava, mas também das vizinhas, somente para a ver; e os homens não admiravam tanto a majestade régia e a comitiva, como a afabilidade, a humanidade e o inacreditável amor da religião, ao verem que ela, cujas riquezas e poder sabiam ser enormíssimos, se deleitava grandemente com o ornato comum dos peregrinos, por causa de um voto.

Depois de terminadas estas tarefas, como Isabel tivesse visitado todos os locais sagrados e religiosos e tivesse satisfeito a piedade da sua alma, com o dever cumprido, o Arcebispo de Compostela deu-lhe, quando ela se preparava para partir, um bordão e um alforge, testemunhos e símbolos desta santa peregrinação. Com estes presentes, voltando ela feliz, para casa de modo admirável, a custo se pode dizer quanta atenção de todos os homens terá chamado para si. Por onde quer que viesse, a sua viagem era celebrada com inacreditável concurso, admiração e favor de todos; uma imensa multidão espalhando-se por todo o lado, vinda dos campos vizinhos, com o desejo de a ver, obstruía os caminhos e os acessos. (…)

158

158  A Rainha recebeu, do arcebispo de Compostela, um bordão de peregrino e um alforge, que significavam, segundo o Liber Sancti Iacobi, o aperto do jejum e da pobreza, a mortificação da carne, a fé na SS. Trindade e a confissão dos pecados. Com esse bordão se fez sepultar a Rainha, como se pôde verificar quando da primeira abertura do seu túmulo, em 1612; media seis palmos e estava lavrado com conchas de Santiago. Macedo (2004), p.16:

Terá sido, muito provavelmente, por vontade expressa da própria rainha D. Isabel, seguindo o costume dos que haviam realizado a peregrinação, de serem enterrados com as insígnias obrigatórias no decurso da viagem, que a bolsa e o bordão de peregrina a Compostela a acompanharam na sua última peregrinação, embora não se tenha encontrado documento que o possa comprovar. Faz hoje parte do que os historiadores de arte designam como “o tesouro da Rainha Santa Isabel”, que comporta também uma imagem grande de Nossa Senhora com o Menino, em prata dourada, um colar em ouro, um relicário do Santo Lenho, em coral e prata, e uma cruz em ágata. Por outro lado, fez também representar estes símbolos na estátua jacente que

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8.2. Segunda peregrinação de Santa Isabel Se a primeira peregrinação não oferece dúvidas a Perpinhão, pois era perfeitamente natural que uma rainha como Santa Isabel visitasse, nessa qualidade, acompanhada de grande comitiva, a catedral de Santiago, levasse presentes dignos do seu estatuto que, pelas suas características, eram transportados com aparato, e fosse saudada à sua passagem pelos súbditos do seu neto, já a segunda a conta com muitas reservas, atendendo principalmente à sua idade já avançada e debilitante para aqueles tempos. Relata-a na terceira oração, a de 1559, Laudationis in Beatam Elisabetham Lusitaniae Reginam liber tertius, e e no terceiro livro da monografia, De uita et moribus Beatae Elisabethae Lusitaniae Reginae liber tertius: Rui de Pina Chronica d’El-Rei D. Affonso IV, cap. XXIII, p. 378 Andando a era de Cesar em mil, & trezentos, & setenta, & tres anos, & o anno de Christo em mil, & trezentos, & trinta, & sinco a Rainha D. Izabel molher que foy de elRey D. Dinis, & madre deste Rey D. Afõso IV, como era molher de vida mui

Perpiniani, Laudationis, pp. 124-124-126 Ouvira dizer que, no antiquíssimo e religiosíssimo templo de Santiago, aquele era ano de Jubileu, ano em que todos os que ali se dirigissem, com piedade e religiosidade, contanto que levassem o arrependimento e vergonha pelos

Perpiniani, De Vita, p. 349 Teve lugar esta religiosa caminhada, de acordo com o que escreveram os historiadores régios, no ano de mil trezentos e trinta e cinco, da era cristã, em relação à qual, pela diferença dos motivos, pela variedade do procedimento,

mandou esculpir para o sarcófago que estabelecera construir para si e colocar na igreja de Santa Clara a Velha. (Macedo), 2004, pp. 18-21: Efectivamente, foi na sua tripla qualidade de rainha, de clarissa da terceira ordem e de peregrina, que Isabel de Aragão se fez representar no jacente do seu sarcófago, responsável pela introdução de modificações morfológicas e plásticas na tumularia, em Portugal. (…) A peregrinação ficou, igualmente, eternizada na estátua tumular através do bordão, seguro com o braço direito e disposto paralelamente ao cordão nodoso do hábito de clarissa, e da bolsa de esmolas, presa à cintura e tão recheada de moedas, que estas deixam a sua marca visível, exteriormente, o que não pode deixar de se associar a um reforço intencional da alusão à sua caridade pródiga. A vieira, atributo por excelência do peregrino a Santiago, encontra-se presa à bolsa numa identificação enfatizada das deslocações ao túmulo do apóstolo, em especial a que efectuou, com toda a probabilidade, no ano de 1325, e que lhe mereceu ter sido obsequiada, pelo arcebispo D. Berenguer de Landoira, com “uum bordom e esportela, pera per o bordom e esportela parecer romeira de Santiago…”

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sãta por acrecentar por seu corpo merecimentos para salvação de sua alma, sendo este anno de Iubileu de Sanctiago de Galiza, ella por aver do tizouro da misericordia, & piedade de Deus indulgencia, & remissão de seus pecados foy a elle, (…). (…) & tornou de pé aforada, & muy desconhecida, pedindo pello caminho esmolas aos fieis Christãos com seu bordão na mão, & fardel ás costas como hua bem pobre romeyra,(…)

seus pecados, alcançariam a remissão de todas as penas que, depois da morte, devem ser cumpridas no fogo purificador.

pela discrepância temporal, é manifesto ter sido diferente daquela de que acima falámos.

(…) Ela própria mudou os sapatos e as roupas, tomou nas suas mãos um bordão e, com uma ou outra companheira, pôs-se a caminho na mais prejudicial época do ano, com muitíssimo calor, e, assim, aquela a quem todos os reinos respeitavam, pela singular dignidade da sua vida, desconhecida para todos pela estranheza do vestuário, completou a enorme caminhada pelos seus pés, indo e regressando.

Em anos anteriores, rodeada de grande comitiva de homens e mulheres, segundo o costume régio, levando consigo muitos presentes, fora já àquele templo; agora decidira uma outra forma completamente diferente; com efeito, acompanhada de poucas mulheres, mudando de indumentária, para não ser reconhecida, foi e veio a pé, pedindo, como mendiga, de aldeia em aldeia e de casa em casa, com o seu pesado alforge; esta forma era mais grata a Deus, mais digna de admiração para os santos, uma vez que nenhum aplauso, nenhum reconhecimento popular seguia a desconhecida.

Quanto a esta peregrinação, não a tendo encontrado escrita nos textos mais antigos (refere-se muito provavelmente à Lenda), Perpinhão manifesta as suas dúvidas, na terceira oração; mas não deixa de a referir, pois a encontrara noutros textos que lhe mereciam crédito e para não tirar o mérito à Rainha; nesta e em muitas outras passagens da sua biografia, Perpinhão, numa manifestação do seu modo de escrever história, proclama a sua confiança apenas no que encontra escrito, em autores que lhe merecem crédito, como garante da sua preocupação apenas com a verdade: Eu, por mim, não acreditaria nesta tão longa caminhada, se não a tivesse lido na história dos reis da Lusitânia. Com efeito, tendo eu omitido algumas coisas que, sobre a bem-aventurada Isabel vulgarmente

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se proclamam, por não as ter encontrado nos antigos monumentos da literatura, não referirei, para destruir a minha credibilidade e a minha autoridade, se algumas tenho, junto dos homens mais sérios, se parecer recordar estes feitos tidos como de sucesso garantido, não referirei, repito, aquelas que não são celebradas nem pela fama, nem pelas conversas dos homens, ou que não tenham sido transmitidas à memória das letras de quem quer que seja. Mas também não devo temer que penseis que isso não poderia ter sido feito pela santíssima rainha 159 .

É, no entanto, no terceiro livro da monografia que manifesta mais a sua desconfiança: Sinto que dificilmente é credível isto que conto; vejo que nenhum crédito terei junto daqueles que avaliam aquelas coisas que contam sobre os mais importantes homens, não segundo as forças destes, mas segundo a sua própria debilidade. Mas, a verdade é que não é apropriado omitir o que encontro junto de autores idóneos, nem percebo por que razão é negado crédito, por quem quer que seja, às coisas mais pequenas e mais fáceis, tanto mais que é atribuído, por todos, às coisas maiores e mais difíceis.(...) Em ano anterior, rodeada de grande quantidade de homens e de mulheres, com aparato régio, levando consigo muitos presentes, fora já a esse templo; agora, porém, decidira uma outra forma completamente diferente: com efeito, acompanhada de poucas mulheres, mudando de indumentária, para não ser reconhecida, foi e voltou pelos seus próprios pés, com o seu pesado alforge, mendigando de terra em terra e de casa em casa (…). Teve lugar esta religiosa caminhada, de acordo com o que escreveram os historiadores régios, no ano de 1335 da era de Cristo que, pela diferença de causas, pela variedade do modo, pela discrepância do tempo, parece ter decorrido de forma diversa daquela de que falámos acima. Ainda que haja, no fundo,

159 Perpiniani,

Laudationis, pp. 124-125.

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alguma suspeita de que se tenha contado de forma diferente a mesma peregrinação, e que se deva a maior confiança aos textos mais antigos (Lenda), nos quais, sobre esta caminhada, apenas estão contidos aqueles factos que estão expostos no livro anterior (scilicet, De Vita… Liber II), no entanto, uma vez que não podemos decidir sobre esta questão duvidosa, ficamos no meio termo, não recusando terminantemente as afirmações de uns e outros. 160

A ida de Santa Isabel como incógnita e pobre romeira a Santiago, pedindo de porta em porta, com o alforge às costas e apoiada no seu bordão de peregrina, popularizou-se e difundiu-se por muitas das biografias posteriores, que enfatizaram esta visão da rainha como humilde romeira, caíra no gosto popular e dera origem a versos como estes: Vai romera a Sant-Iago Doña Isabel de Aragón, Raiña de Portugal, En vez de vestes reaes, Traía un hábito de freira, Os ollos cheios de lágrimas E vai curvada e humilde Pedindo esmola na estrada 161 .

Perpinhão revela, aqui, também, a sua intenção de se manter fiel às fontes, no sentido de conferir autenticidade ao seu relato. No entanto, apesar das suas dúvidas sobre esta questão, não se limita a negar; deixa espaço para que cada um pense o que quiser e acredite ou não.

160 Perpiniani,

De Vita, pp. 348-349.

161  Transcrito

em P. Echevarría Bravo (1965) “Portugal a través del camiño de Santiago”, sep. das Actas do Congresso Internacional de Etnografia. Lisboa: Junta de Investigação do Ultramar.

185

Os textos biográficos mais antigos sobre a Rainha e as Crónicas dos reis portugueses consultados por Perpinhão não dão outras informações sobre a viagem de Santa Isabel a Santiago de Compostela. Por isso, Perpinhão, a um facto que tivera lugar quase dois séculos antes, para o enquadrar e complementar, acrescenta informação adicional colhida de testemunhos e práticas contemporâneas: dificuldades da viagem, características e descrição da Galiza, de Santiago e da sua Catedral; história de S. Tiago e sua ligação a Santiago de Compostela; lugares ligados à passagem do apóstolo S. Tiago, que mereciam a visita dos devotos; condições da assistência física e espiritual dos peregrinos. Parece falar com conhecimento de causa, como alguém que contactou in loco com aquilo de que fala e que passou pelas agruras de um peregrino que fez a romaria nas condições em que Rui de Pina conta que a Rainha a fizera. É provável que tenha peregrinado a Santiago de Compostela, ainda que não tenhamos encontrado referência a esse facto; o que é certo é que essa prática era corrente e estava institucionalizada na Companhia de Jesus, para os noviços; desde a elaboração das Constituições de Santo Inácio e companheiros, que aqueles que houvessem de ser admitidos na Companhia, deviam ser postos à prova com um mês de peregrinação; depois estipulou-se que esta devia ser feita a pé e sem dinheiro. No Colégio de Coimbra também se instituiu esta prática, escolhendo-se para o efeito o período das férias escolares; os santuários mais frequentados eram o de Santiago de Compostela, Nª Senhora de Guadalupe, Nossa Senhora da Nazaré, entre outros; iam normalmente dois a dois, vestidos pobremente, pedindo alimento pelo caminho e recolhendo, à noite, nos hospitais e palheiros onde podiam ficar por esmola 162.

162  Francisco Rodrigues (1931-1950), História da Companhia de Jesus na Assistência a Portugal. 4 vols. Porto: Apostolado da Imprensa, Tomo I, pp. 358-364; Baltasar Teles (16451647), Chronica da Companhia de Jesus na Provincia de Portugal (2 vols). Lisboa. Tomo I, pp. 186-87.

186

II.9. Devoção O modo de vida que D. Isabel adotou depois de viúva encontra-se registado na Lenda, cujas informações foram repetidas por todas as biografias que se escreveram da Rainha. Perpinhão foi o primeiro a reproduzir essa informação, na totalidade, traduzindo-a para latim. Perpiniani, De Vita, pp. 313-317 Desde há algum tempo que tinha já em casa duas senhoras da ordem de Santa Clara; agora acrescentou a esse número mais três, para ter cinco companheiras das suas paixões, perfeitamente experimentadas em todo o modo de orar e uma variedade adequada às diferentes épocas. Com elas, tinha assim distribuídas as horas do dia e da noite: primeiro, mal afastavam o desejo natural de dormir, estavam acordadas durante grande parte de noite e, recitadas as preces matutinas, até à hora prima, acrescentavam três cerimónias sagradas; mas estas não eram feitas do mesmo modo. Isabel levava, com efeito, consigo, para onde quer que fosse, convenientemente preparado para o efeito, um pequeno altar, equipado e ornado com todos os objetos que, onde quer que estivesse, mandava colocar e desmontar no seu quarto, de modo a usá-lo como sacrário privado e doméstico. Estando, portanto, já tudo previamente preparado e ornado, logo que rompia a aurora, celebrava-se uma missa, com voz baixa, com aparato módico, à qual assistiam apenas a Rainha com as suas companheiras de oração, com aquela piedade e sentimento na alma com que, de forma divina, são dotados os que estabeleceram colocar todos os seus cuidados e pensamentos no martírio e morte de Cristo e no admirável amor e na indulgência de Deus para com todos os homens, e tratá-lo no espírito. Depois, vinha com toda a família para a capelinha pública do seu palácio onde estavam já preparados e dispostos os sacerdotes e cantores que, sem exceção, antes de tudo, faziam uma cerimónia divina por Dinis, com uma oração solene pelos mortos e canto lúgubre. De seguida, de igual modo, com voz lamentosa, com melodia triste, adiantando-se um e respondendo os outros, dirigiam a Deus os seus votos, com a assistência daqueles que estavam presentes, para que colocasse a alma do Rei defunto, se porventura era atormentado pelo fogo purificador, libertando-o daquele sofrimento e dor, na ilustríssima e agradabilíssima região dos Bem-aventurados. Logo depois, as cerimónias próprias de cada dia faziam-se de acordo com a invocação do dia; nelas, se se celebrasse algum feriado, havia sermão sobre assuntos

187

Lenda, pp. 1350-1353 E, des que esta rainha foi veuva, despendia seu tempo em esta maneira: Ela tiinha consigo cinco donas da Ordeem de S. Clara, que sabiam leer e rezar, e erguia-se a rainha gram manhãa e aquelas donas da Ordeem e rezavam as Matinas muito a ponto e mui bem, aguardando em rezar o costume da eigreja de Roma; depois que Matinas fossem ditas, rezavam Prima; depois que Prima fosse rezada e dia fosse claro, aguisavam uum altar, que ela sempre tragia, e a camara tiinha por oratorio e ali ouvia uma missa calada com gram devoçom. E, depois que aquela missa fosse dita, viinha-se pera seu paaço, u capela tiinha e u estavam já prestes seus capelães e creligos, pera dizer missas e oficiar, e u atendiam donas e donzelas e outras molheres que [em] na casa viviam. E começavam aqueles capelães e creligos e diziam logo missa oficiada, que se diz per os passados, por la alma delrey D. Dinis. E, acabada aquela missa, que se dizia por elrey, diziam os creligos todos uum responso por elrey e faziam aqueles e aquelas que i siiam por elrey D. Dinis oraçom e, dito aquel responso por elrey, começavam os creligos a oficiar outra missa, segundo o dia que era. E, ditas assi estas missas e acabadas as outras oras, que se por [l]o dia devem rezar, por aqueles creligos, começava a rainha a rezar com sas donas Terça, Sexta e Noa; se festa fosse, ante que rezasse, ouvia preegaçom. (...) Colher-se-ia a sa camara e saeria a rezar Noa por ela, e sas freiras, vinham os capelães e creligos e diziam ante ela Vesperas. Se se seguia alguma festa, as

divinos, como é costume acontecer; para além disso esperava, durante uma grande parte do dia, que os sacerdotes, por ordem sua, cumprissem as sagradas funções; então, finalmente, ela própria, recitadas as orações das restantes horas até ao meio dia, a saber, a terceira e a sexta, com aquelas suas cinco companheiras, declinando já o dia para a tarde, para cuidar do corpo e refazê-lo com o alimento necessário, afastava-se contrariada. (...) À tarde, recitadas as orações solenes da hora nona, dirigia-se à capelinha com as suas criadas. Estavam preparados os sacerdotes para rezarem as orações vespertinas e do entardecer, de modo mais simples, nos dias de trabalho, ou para as entoarem, nos feriados e dias solenes, de forma melodiosa e cadenciada. Depois de as ouvir com muita atenção e devoção, ela própria recitava de novo, com as companheiras, as orações vespertinas. De seguida, se o dia não estivesse destinado ao jejum, pois eram muitos, vinha para o jantar, preparado não com requinte régio, mas com a frugalidade e a parcimónia dos antigos. Após o jantar, recitava as últimas orações do dia e as fúnebres pelos mortos; dispensadas as companheiras, permanecia no quarto apenas com o acompanhamento necessário. Ficava acordada grande parte da noite, como se soube depois, por informação das criadas que consigo conservava, ora meditando nos assuntos divinos, com inacreditável sentimento, examinando-os no seu espírito, ora adorando Deus Óptimo Máximo, de forma pura e casta, com choro e lágrimas, e procurando afastar, por meio de súplicas, a sua terrível ira, de si e dos seus, de toda a Lusitânia e de todo o género humano. Muitas e muitas vezes, levantava-se bruscamente da cama, da qual se queixava por estar acolchoada com demasiado conforto, e increpando e censurando asperamente a fraqueza do seu espírito, que não era nenhuma, e condenando-se a si própria pela preguiça, lançava o seu corpo já idoso, cansado dos grandes esforços continuados, martirizando pela abstinência de comida, e deitava-se nalgum estrado duro e rígido.

vesperas [erom] oficiadas, e per [l]os outros dias caladas.E, des que ouviam as Vesperas, que se diziom pelos seus creligos, tornava a dizer Vesperas com sas freiras; assi era entenduda e costumada em rezar que, se os seus creligos erravam em sa presença em ler ou em [n]o canto, ela os corregia e emendava, e ela liia mui bem em latim e lingoagem. E, ouvidas e ditas assi Vesperas, se dia fosse em que jejunar ela nom ouvesse, ia a cear, ca ela jejunava os mais dos dias da domaa. E, des que ceasse, dizia Completas e as oras dos passados e ficava em sa camara e as freiras colhiam-se a seu logar, e, segundo davam testemunho aquelas que em a sa camara ficavam, ela a maior parte da noite despendia em contemplar e em orar e em rezar, erguendo-se por vezes de sa cama e filhando outra mui refez.

Este modo severo de vida decorreu frequentemente em Coimbra, onde mandara construir um paço para sua morada e outras dependências para si, junto da porta do Mosteiro de Santa Clara, onde passou grande parte dos onze anos que sobreviveu a D. Dinis.

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II.10. O complexo de Santa Clara A memória da Rainha Santa Isabel anda indissoluvelmente ligada à do Mosteiro de Santa Clara, em Coimbra, que ela (re)fundou. Esta instituição tivera um início atribulado; fora fundado por D. Mór Dias, uma abastada dama da nobreza que, decidindo afastar-se do mundo, recolhendo-se num mosteiro, em 1250, sem, no entanto, professar, para poder continuar a possuir e a administrar os seus bens, começara por escolher para a sua reclusão, o mosteiro feminino da Ordem de Santa Cruz, em Coimbra, onde viveu algum tempo, aparentemente em situação de poder dispor dos seus bens. Poucos anos depois, por volta de 1278, mandou construir, junto do Mondego, umas casas e, em 1283, obtinha autorização para fundar um mosteiro onde pudesse recolher-se, da ordem de Santa Clara, dedicando-o a Santa Isabel de Hungria e Santa Clara. Os Cónegos Regrantes de Santa Cruz, no entanto, não aceitaram pacificamente esta transferência de Mór Dias e da sua fortuna para outra instituição e iniciaram contra ela uma demanda, argumentando que tinha professado na sua ordem e que, como tal, quer a pessoa quer os seus bens lhes pertenciam. O facto de Mór Dias ter abandonado Santa Cruz era considerado um ato de rebeldia e levou ao litígio nos tribunais eclesiásticos; além disso, estariam em causa os bens avultados de D. Mór Dias e provavelmente também o antagonismo entre crúzios e franciscanos 163, pelo que o conflito se prolongou por mais de 30 anos, mesmo para além da morte desta senhora, em 1302, contando mesmo com a intervenção da Santa Sé, quer em vida da fundadora, quer depois da sua morte, excomungando-a por desobediência à ordem a que pertenceria. Finalmente, por decisão do tribunal, favorável aos frades de Santa Cruz, as clarissas foram expulsas e o mosteiro ficou desabitado. Perpinhão segue rigorosamente a informação da Lenda:

163  Macedo,

2006, p. 116.

189

Perpiniani, De Vita, pp.224-225 Próximo daquele lugar, para o lado sul da ponte (com efeito, o templo de S. Francisco fica para ocidente), Maior Dias164, dona honesta e endinheirada, começou a edificar um mosteiro consagrado à congregação de Santa Clara. Mas, por vontade de Deus, não levou a obra até ao fim, para que, a seguir, se construísse uma obra muito mais augusta e magnificente. Já eram exíguos os aposentos para habitação e, neles, tinha sido levantada uma estreita capela, quando ocorreu a morte da piedosa e religiosa mulher. Pronunciara ela, talvez, os votos a Deus Óptimo e Máximo, segundo o costume e instituição solene de determinada ordem religiosa, e, por esse motivo, não tinha direito e poder sobre si, mas estava sob o poder daquele, quem quer que ele fosse, que governasse aquela assembleia como chefe proposto para esta tarefa pelos votos de todos. Aquele que, então, escolhido pelos sufrágios dos outros, exercia essa autoridade, como instruísse os juízes destinados pelo Pontífice Máximo, ordenou que o que quer que ela tivesse construído, enquanto fora viva, depois da sua morte, caísse sob a sua alçada e jurisdição, de tal modo que as castas e religiosas mulheres que ali habitassem fossem mandadas mudar-se para outro lugar, que esvaziassem a sua casa e a deixassem para si livre e desocupada. Finalmente, como [a questão] andasse de uns para outros, como costuma acontecer, (...) o facto é que o lugar que, antes, em pública e muito sagrada cerimónia, pela religião e disciplina da tão íntegra congregação, era consagrado ao culto de Cristo, depois disto, naquele deserto e abandonado, se constituiu como a cidadela dos proxenetas, um antro de perdição, um refúgio de impureza.165

Lenda, pp. 1336-1337 Outrosi per uma boa dona, a que diziam Moor Diaz, fora fundado uum moesteiro de donas da Ordeem de S. Clara; avendo já i casa e oratorio, veo a morrer esta Moor Diaz, e o prior de Santa Cruz de Coimbra, que em aquele tempo era, dizia que aquela Moor Diaz era dona professa daquel seu moesteiro e que aquel logo u começara de fazer aquel logar era daquel moesteiro, u avia feito profissom. E contenderom tanto perdante os juizes, a que per [l]o papa fora aquel feito cometudo, que umas pouca de donas que em aquel logo estavom forom lançadas daquel logar e forom despa[vo]radas as casas com seu terreiro (que) per [l]o priol do moesteiro de Santa Cruz e di adiante ficarom aquelas casas despobradas e tornou-se aquel logar, que fora começado pera fazerem em ele serviço a Deus, acolhimento de muitos maos e maas pecadores pruvicas e sem vergonça.

164

164  D. Mór Dias foi a primeira fundadora do Mosteiro de Santa Clara. Era filha do alcaide de Coimbra e sobrejuiz do rei, D. Vicente Dias, e de D. Boa Peres; teve duas irmãs, Teresa Dias e Joana Dias: a primeira professou no Mosteiro de Celas, em Coimbra, e chegou a ser prioresa no Mosteiro de Santa Ana; a segunda casou com Fernando Fernandes Cogominho, vassalo de D. Afonso III. Solteira, D. Mór Dias ingressou no Mosteiro feminino da ordem de Santa Cruz, Mosteiro das Donas de S. João, em Coimbra, em 1250, por questões de segurança e resguardo de sua honestidade, manifestando a intenção de não tomar votos ou professar para, assim, continuar a dispôr dos seus avultados bens. Trinta e três anos passados, em 1283, D. Mór Dias resolveu criar e dotar um mosteiro feminino destinado a Clarissas, para ser dedicado “ad honorem Salvatoris nostri Jehsu Christi et Beatae Virginis matris suae et Beatae Helisabeth specialiter et Beatae Virginis Clarae”, a saber, Santa Isabel de Hungria e Santa Clara. A autorização foi concedida pelo vigário geral da diocese de Coimbra, D. João Martins de Soalhães, e D. Mór Dias deu uma propriedade sua, situada na margem esquerda do Mondego, para o mosteiro, e concedeu um dote para a sua construção e subsistência das freiras; em 1286 lançou-se a primeira pedra; em 1287/88 o mosteiro foi entregue à Ordem de Santa Clara.

190

165

Sobre a atuação dos frades de Santa Cruz, Perpinhão não se manifesta abertamente; refere que D. Mor Dias talvez tivesse tomado votos e, assim sendo, estaria sob a jurisdição do prior de Santa Cruz. Consideraram os padres desta instituição que assim acontecera, pelo que passariam a ser os detentores de todos os bens desta senhora; o conflito começou em vida da fundadora de Santa Clara e prolongou-se muito após a sua morte 166.

165 Todo este processo foi abordado por numerosos estudiosos: Fr. Manoel da Esperança (1666), Historia Serafica da Ordem dos Frades Menores de S. Francisco na Provincia de Portugal. Segunda Parte. Lisboa: Oficina de Antonio Craesbeeck de Mello, pp. 19-33; Frederico de la Figanière (1859), Memórias das Rainhas de Portugal. Memórias de D. Isabel de Aragão. Lisboa: Typ Universal, pp.185-192; António Vasconcelos (1891-1894), Evolução do culto de Dona Isabel de Aragão, esposa do rei lavrador, D. Dinis de Portugal (a Rainha Santa), (2 vols). Coimbra: Imprensa de Universidade, pp. 68-133; Fernando Félix Lopes (1953), “Fundação do Mosteiro de Santa Clara de Coimbra. Problema de direito medieval”, Colectânea de Estudos, IV, 2ª série, pp. 166-192; e, mais recentemente, Giulia Rossi Vairo (2001), “Isabella d’Aragona, Rainha Santa de Portugal, e il Monastero di Santa Clara e Santa Isabel di Coimbra (1286-1336)”. Collectanea Franciscana 71 1/2. Roma – Istituto Storico dei Cappuccini, pp.139-169; Francisco Pato de Macedo (2006), Santa Clara-a-Velha de Coimbra, singular mosteiro mendicante. Dissertação de doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, policopiada. Coimbra, pp. 105-137; Mª Teresa Sanchez Miranda Morão (2004), Mosteiro de Santa Clara – Entre murmúrios e orações. Dissertação de Mestrado em Museologia e Património Cultural. Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra; e Ana Paula Santos (2000), A fundação do Mosteiro de Santa Clara de Coimbra (da instituição por D. Mór Dias à intervenção da Rainha Santa Isabel) (2 vols.) – Dissertação de Mestrado em História da Idade Média apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Estas últimas obras recorrem ao significativo acervo documental sobre todo este processo, que estava no Cartório do Mosteiro de Santa Clara e, presentemente se encontra no Arquivo Distrital de Braga e na Torre do Tombo. 166  Em 1305, de acordo com um documento de D. Dinis, reinaria naquele edifício, algum desregramento, a ponto de ter de colocar ali guardas: (…) parou-se mal no temporal e no feyto das almas per mingua de bõa guarda que nom aviam qual deviam per loucura de algumas donas que y jazem que nom querem temer Deus nem guardar sa orden como devem, outrosi per loucura d’algumas dõas que el sofreo despos da morte da dita dona Mayor Dias que entrassem y que meteron y e metem mal e omezio e escandalo antre elas e porque o moesteiro non ouve cura em tempo de Dõa Mayor Diaz nem avia y abadessa nem prioressa nem aveençaes nem no er pode ainda o bispo fazer em seu tempo disse-mi esse bispo porque el nom podia y entender per si que stava o moesteiro alongado de todo boom regimento e pidio-mi que lhi desse hum homem meu com mha carta que stevesse hy en esse moesteiro pera o guardar de mal que nom entrasse en esse moesteiro nenhuum homem nenhuma molher sospecta per que podesse viir mal a esse moesteiro e que nom er filhasse nem migalha dos beens desse moesteiro per seu poder ou per sa autoridade. (Transcrito em Santos (2000) II, p. 157).

191

Em 1307, o bispo D. João Martins de Soalhães autorizou a Rainha D. Isabel a tomar medidas para resolver o problema entre Santa Clara e os Crúzios; a sua intervenção foi no sentido de defender as clarissas e o seu mosteiro. Apesar dos esforços despendidos, as negociações que se seguiram entre o bispo e os Cónegos de Santa Cruz levaram, em 1311, à extinção do mosteiro e à entrega dos bens de Mór Dias; as freiras clarissas deviam ir para onde os seus prelados as enviassem e as instalações do primitivo mosteiro seriam dadas aos franciscanos do convento vizinho, que ficariam com encargo de rezar missa quotidiana pela alma da fundadora, cujo corpo permaneceria sepultado na sua igreja. O lugar ficou abandonado por algum tempo e nele começaram a refugiar-se marginais. Só em 1319, o conflito foi finalmente resolvido. Foi, pois, a intervenção da Rainha D. Isabel de Aragão que veio dar novo alento à iniciativa de Mór Dias, contribuindo para a composição das partes em litígio. Em 1314, D. Isabel, que se interessara vivamente em dar continuidade a esta obra, conseguiu autorização da Santa Sé, do Papa Clemente V, para fundar um mosteiro da Ordem de Santa Clara em Coimbra, nas mesmas instalações antes destinadas para o efeito, mas agindo como se começasse de novo, comprando os terrenos em redor, e planeando uma grande construção; o mosteiro conheceu, após a intervenção da rainha, o seu grande desenvolvimento. Em 1316 já decorriam as obras, a cargo de Domingos Domingues, responsável também pelo claustro do Mosteiro de Alcobaça, e, em 1317, instalam-se as primeiras freiras, que ainda terão ocupado dependências do mosteiro primitivo, uma vez que as obras ainda decorriam. 167

167 Sobre o empenho de D. Isabel dotando o mosteiro, atribuindo-lhe rendas e bens patrimoniais, veja-se a documentação editada por Ana Paula Santos, na obra acima referida.

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Perpiniani, De Vita, pp. 225-226 Quando tal viu, a Rainha de excelente espírito angustiou-se seriamente; sofria em silêncio e não descansou enquanto não conseguiu do Pontífice Máximo que, naquele lugar, lhe fosse permitido conceder donativos e dedicar um domicílio às donzelas sagradas da ordem da Bem-aventurada Clara. Então, rejubilando de genuína alegria, negociou, com os seus proprietários, aquela área, com as suas pequenas construções, se tivesse algumas; comprou muitas propriedades vizinhas, nas redondezas; preparadas cuidadosamente todas as coisas que diziam respeito à construção, ordenou que se lançassem os primeiros fundamentos do templo. Participaram muitos homens de todas as condições, muitas individualidades da Religião Cristã, com os quais ela própria, de igual forma, lançava com as suas mãos, em solene ritual, as primeiras pedras em buracos abertos.

Lenda, pp.1336-1337 Veendo esta rainha aquel logar despobrado e doendo-se ende, propos a fundar acerca daquel logar eigreja e moesteiro da Ordeem de Santa Clara, pera [se] fazer em ele serviço a Deus, e cobrou aquel logar daqueles cujo era. Comprou possessões a redor, de lecença e mandado especial da papa fez fundara eigreja a onra de Deus e da Virgem gloriosa, sa madre, em no qual fundamento e edificaçom forom juntos prelados e outras muito boas companhas eclesiasticas e segraes, e ela com sas mãos lançando com aqueles bispos as pedras primeiras [em] no fundamento.

Solicitadas pela Rainha, juntaram-se às recentes freiras do Mosteiro onze clarissas vindas de Zamora, para instruir a nova comunidade de Santa Clara sobre a observância da Regra adotada. A informação da Lenda é retomada por Perpinhão: Perpiniani, De Vita, pp. 226-227 Foi, então, anunciado àquela que assim matutava nestas questões assiduamente e que convivia dia e noite com estes cuidados que, em Sentica, cidade situada na margem direita do Douro, no limite da Hispânia Tarraconense (que hoje se chama Zamora), havia um mosteiro daquela ordem, no qual viviam muitas mulheres de notável integridade de costumes, de singular piedade, florescentes com a reputação de vida honesta e inocência, bem experimentadas naqueles assuntos que constavam nos ensinamentos de Santa Clara. Portanto, chamou desse mosteiro onze virgens escolhidas e tratou de as fazer vir para Coimbra, para que lhes fosse convenientemente atribuída aquela tarefa não mediana. Acompanhavam-nas, quando chegaram, alguns homens escolhidos da ordem de S. Francisco, e aquele que, então, dentre esse número, estava à frente da Província da Galiza. Quando a Rainha tomou conhecimento de que eles se aproximavam, exultante de alegria, por ver que tinha conseguido o que tinha desejado, como era de espírito humilde e pouco orgulhoso, foi ao seu encontro, com seu filho Afonso, herdeiro, até três mil passos. Recebeu de forma honrosa as mulheres pobrezitas, que tinham repudiado, além do mais, todas as honras; conduziu-as ao lugar designado para a construção, mais do que às construções propriamente ditas. Colocou-as, como pôde, naquelas casas inacabadas;

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Lenda, pp. 1337-38 E, pera aquel mosteiro seer fundado de donas daquela Ordeem de boa vida e bem espertas em[n]a regra de Ordee de Santa Clara, pera [que] as outras donas que aaquel moesteiro depos elas veessem seguissem a sãa vida e recebesssem ensinança, mandou a Çamora por onze donas daquela Ordeem que i avia de boa vida, porque em aquel tempo diziam que em moesteiro de qual Ordeem [quer] que em Espanha fosse, nom avia donas de tam boa vida, nem que assi guardassem a regla de sua Ordeem e forom tiradas por mandado e lecença de seus maiores. E veerom com aquelas atá Coimbra frades meores e aquel que em aquel tempo era menistro em [n]a provincia de Santiago. E, quando a rainha foi certa que vinham, forom, ela e o ifante, seu filho, bem acerca de uma legoa, pera viirem com estas pobres e as onrarem; tanta era a umildade desta rainha, que ensembra veo com elas, atá que chegarom aaquel logou ela começava seu moesteiro.

O Mosteiro começou a crescer, tanto em edifícios como em fama, e atraiu, desde cedo, muitas jovens da nobreza, influenciadas também pela presença da Rainha. Entre essas jovens, destacou-se Isabel de Cardona, sua sobrinha. Dona Isabel de Cardona era filha de uma meia-irmã de D. Isabel e de D. Raimundo de Cardona, fidalgo aragonês que viera na comitiva da Rainha e ficara ao serviço dos reis de Portugal, quer de D. Dinis, quer de seu filho D. Afonso IV. Dos seus filhos, o primogénito chamou-se Guilherme de Cardona; a filha, Isabel de Cardona, foi das primeiras noviças do mosteiro de Santa Clara e, mais tarde, sua segunda abadessa, tendo desenvolvido, como tal, intensa atividade para a sua construção e afirmação 168. Perpinhão segue a Lenda: Perpiniani, De Vita, pp. 227-228; 317-320 (...) duas idosas, entre o número todo (das religiosas que tinham vindo de Zamora), que não tinham feito voto de viver nos claustros, tomou-as para si, como colegas e companheiras, para que tivesse, em casa, algumas participantes que partilhassem dos seus zelos Desde esse dia, recebendo já algum fruto do seu trabalho, começou a apressar a obra com muito mais entusiasmo do que antes. Ela própria estava presente, dava instruções para que se colocasse o telhado no templo, que se terminassem os quartos começados e que se lançassem os fundamentos novos dos outros edifícios, uma vez que via claramente aquilo que exigia o traçado da obra empreendida; e para que as casas não ficassem nuas e vazias, todos os dias, às antigas possessões, acrescentava umas novas. (...) E, na verdade, Deus não faltou a este espírito da excelente Rainha; muitas donzelas, nascidas de honestíssimas famílias, arrebatadas por um certo instinto e sopro divinos, para mais à vontade, livres de cuidados, se entregarem aos assuntos divinos, desprezados os necessários, rejeitados os facultativos, entregavam-se àquela religiosíssima assembleia, de modo que crescia quase mais, com a ajuda divina, o número de habitantes, do que o edifício ou os prédios, graças à diligência de Isabel.

Lenda, pp. 1338; 1345-1346 E, quando forom postas em aquel começo que fazia pera o moesteiro, foi i esta rainha, e a rainha começou de mandar lavrar em [n]a eigreja e lançar fundamentos pera casas, segundo viio que compria a tal logar. E começarom de crecer cada dia em aquel logar dali adiante e filhar a Ordeem filhas de muitos cavaleiros e d’outros homeens bõos em aquel logar por capelães. E começou a comprar e aver possessões pera mantiimento daquelas donas e filhou pera si e pera sa casa duas donas anciãas, que nom prometeram ençarramento, pera andar com ela per u ela fosse dali por diante.

168  Vd.Vasconcelos (1891-1894); Andrade (2012) pp. 250-252, bem como Henrique David, Amândio Barros e João Antunes, (1987) “A família Cardona e as relações entre Portugal e Aragão, durante o reinado de D. Dinis.” Revista da Faculdade de Letras. História. Porto. Universidade do Porto, II série, vol. IV, pp. 69-87).

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(...) E, entre outras nascidas de ilustríssima linhagem que, pertencendo muitas delas à casa da Rainha, incitadas por certo impulso do seu espírito e inflamadas pelo recente entusiasmo daquela disciplina, quiseram iniciar-se e devotar-se a Cristo, contava-se Isabel de Cardona que fez diligências para conseguir que lhe fosse permitido servir a Deus, Senhor Óptimo e Máximo, dentro daquele recinto, desprezadas as questões dos homens. Era ela, tanto pela ilustração de uma nobre linhagem, como pelas riquezas, poderosa e endinheirada; com efeito, sua mãe fora Beatriz, irmã ilegítima da Rainha, e seu pai era Raimundo de Cardona, nobilíssimo varão. A riqueza do dote naturalmente adequava-se ao esplendor e dignidade dos antepassados (...) Grande prazer recebia a Rainha não só com o desejo das outras jovens donzelas, mas mais ainda com este enorme desejo de Isabel; arrastou, porém, a situação por muitos dias, com variados terrores e desculpas, de modo não só a experimentar a sua perseverança, mas também a acender ainda mais o seu desejo. (...) Finalmente, (...) no último domingo da Quaresma, em que, em santíssima cerimónia, se celebra a entrada na cidade de Cristo Salvador, por entre folhas de palma e ramos de oliveira, estando presentes entre outros, o rei Afonso com as rainhas, mãe e esposa, em ritual público, admitida na assembleia das freiras, mudaram-lhe o vestido. E Isabel Cardona, na verdade, algum tempo depois, pela sua notável virtude, colocada à frente de toda a comunidade pelos votos de todas, governou com castidade e honestidade a família que lhe fora confiada, a seguir à primeira, como madre superiora que, por palavra tirada da língua judaica, se designa vulgarmente por Abadessa.

(...) Esta rainha avia uma sa sobrinha, que tiinha pera casamento, e esta sa sobrinha era rica dona, com outras sas donzellas, ricas donas e de bõo logo, e outras molheres que quiserom em aquel logo escolher sa vida [e] se ençarrar, pera servirem a Deus. E trouxe-as a rainha per tempo consigo, des que disserom que queriom em aquel moesteiro se ençarrar, pera veer se queriam provar em [n] o que diziam, e elas, nom mudando seu proposito e prometimento, entrarom por freiras em aquel moesteiro em uum dia de Ramos, seendo i elrey, seu filho, e a rainha Dona Beatriz, sa molher, que faziam muita honra aaquela rica dona, que era sa criada. E esta sobrinha desta rainha foi depois a segunda abadessa em aquel moesteiro e diziam-lhe Dona Isabel de Cardona, porque era filha de Dom Reimon de Cardona e de Dona Beatriz, irmãa desta rainha, a qual elrey D. Pedro de Aragom, padre desta rainha, ouve de uma ifante de Aragom.

Em 1328, D. Isabel fixara o número de freiras que devia existir no mosteiro em 50, que não devia diminuir, antes, aumentar; Perpinhão refere a existência, na época em que o conheceu, de 100 freiras e 50 noviças; na mesma altura, o autor da Vida dos mordomos, contabiliza 90. Perpinhão chama-lhes “a flor da nobreza portuguesa”; com efeito, às primeiras clarissas, juntaram-se algumas damas do paço e muitas outras senhoras ilustres, pertencentes à nobreza de Portugal, Castela e Aragão, e mesmo à casa real, como é o caso de D. Isabel de Cardona, sobrinha de Santa Isabel, e, mais tarde, da Princesa Joana, filha de D. Afonso V que, tendo preferido o Mosteiro de Jesus de Aveiro, se acolheu em Santa

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Clara quando ali grassou a peste, ou ainda de D. Joana de Castela, a “Excelente Senhora” que, recolhida por imposições políticas, no mosteiro de Santarém, também se refugiou em Santa Clara de Coimbra, onde tomou votos em 1480, regressando pouco depois a Santarém. O facto de a maioria das clarissas que viveram em Santa Clara provir das classes superiores da sociedade secular era previsível, devido ao exemplo da sua fundadora. A entrada no convento destas meninas privilegiadas permitia também às famílias evitar o elevado dote do seu casamento e proporcionar-lhes uma educação e uma vida honestas e honrosas, afastando-as dos perigos do mundo e aproximando-as da perfeição, alcançada ao serviço de Deus. 169 Mas foi principalmente depois de viúva que D. Isabel se dedicou mais intensamente ao mosteiro, ao paço régio para sua morada e ao hospital, edifícios já em fase de decadência no tempo de Perpinhão. Com efeito, para seguir de perto e orientar a construção, quando estivesse em Coimbra, a Rainha mandou construir, nas proximidades, uma casa para si e para os seus, que posteriormente acompanhou de outros edifícios, destinados a um hospício que albergaria separadamente 15 homens e 15 mulheres pobres, com a respetiva capela e cemitério consagrados; estes edifícios ficariam, à sua morte, de acordo com o seu último testamento e codicilo 170, propriedade do mosteiro.

169  Vd.

Morão (2004), p. 56: “As linhagens nobres encontraram no convento o lugar ideal onde colocar as suas filhas, não só porque estas mantinham o status e a posição social, como as famílias mantinham intacto o património familiar, uma vez que, em certos casos, o dote para dar entrada no convento era menor do que o dote necessário a um bom casamento dentro da sua classe. (…) Os conventos eram encarados como refúgios salvíficos e escolas de vida, possibilitando às mulheres que nelas ingressavam continuar a educação e a instrução da sua infância, ao mesmo tempo que se aperfeiçoavam nos assuntos da fé e do sagrado. Os mosteiros femininos funcionavam, muitas vezes, como centros culturais e como escolas de formação feminina onde as religiosas desenvolviam certas artes ou dons – como as letras, a música, as artes decorativas, os bordados, a culinária, a doçaria – e os ensinavam às noviças”.

170  Apud

Vasconcelos (1891-94), II, pp. 12-22.

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Perpiniani, De Vita, p. 308 Por isso, fosse para apressar mais essa obra e para a acabar com maior rapidez, como desejava, fosse para poder visitar com mais frequência aquela comunidade de santas mulheres, vivendo mais perto, e para lhe ser permitido deleitar-se amiúde com os seus santíssimos costumes, mandou construir uma casa, para si e para os seus, a montante do rio, um pouquinho afastada do convento, para ser concluída em poucos meses.171 Foi esse quase uma espécie de sepulcro para Isabel, vivendo ela ainda, ao qual de tal forma se acolheu no fim da velhice que, quanto mais vivia em Deus, tanto menos era vista e, em verdade, se julgaria estar completamente morta e sepultada para as coisas humanas e para as vaidades desta vida.

Lenda, pp. 1344-45 E fez juntar pedreiros e carpinteiros e começou per eles a fazer lavrar em aquel moesteiro [a] eigreja que começara, e mandou fazer pera si sepultura e começou a fazer lavrar acerca do moesteiro, pera sa morada e dos seus, umas nobres casas, e forom acabadas em pouco tempo, e fez fazer em aquel logar aquelas casas, pera poder ir mais a meude delas a veer [l]o moesteiro e donas e veer [l]as obras que ela fazer mandava como se faziam, ca todas as casas que ela mandava todo se fazia segundo ela divisava (…)172

171172

Apesar de não professar, a Rainha frequentava o Mosteiro, para o que tinha uma permissão especial do Papa João XXII, que a autorizava a aceder livremente à clausura, acompanhada das damas do seu séquito, e ali convivia com as freiras que seguiam a Regra e adotava o seu modo de vida. O seu acesso ao interior do mosteiro era facilitado pelas dependências que mandou construir adjacentes à portaria.

171  Enquanto residia em Coimbra, estas eram as instalações de Santa Isabel; no seu 2º testamento, de 1327, e no codicilo, de 1328, a Rainha estipulava que, após a sua morte, devia ser habitado apenas por membros da família real. Foi efetivamente ocupado por membros da família real, nomeadamente, muito pouco tempo depois, por seu neto, D. Pedro, que ali viveu com D. Inês de Castro e filhos; foi nestas instalações que morreu D. Inês, a 7 de Janeiro de 1355, ficando sepultada no Mosteiro até ser transladada para Alcobaça. O paço foi utilizado pela família real até às últimas décadas do século XV (vd. Vasconcelos (1891-94), I, pp. 194-210; II, pp.12-22; Macedo (2006) pp. 857-885). 172  As palavras da Lenda indiciam cultura da Rainha, que além de possuir conhecimentos médicos, de ler bem em linguagem e em latim, a ponto de corrigir, por vezes, os seus capelães, também demonstrava ter alguns de engenharia e arquitetura, pois acompanhava de perto a construção dos edifícios, orientando os trabalhadores. Vd. Rodrigues (1971).

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Perpiniani, De Vita, p. 310 Mas Isabel, nesse tempo, enquanto aí vivera, de forma pia e religiosa, mandara construir alguns edifícios para si junto à porta do convento, para onde se deslocava muitas vezes, vinda daquele seu domicílio vizinho (obtivera, com efeito, do Pontífice Máximo, que, todas as vezes que quisesse entrar nele, lhe fosse permitido fazê-lo, acompanhada da necessária comitiva de servas); morava, durante muitos dias, entre essas mulheres dedicadas a Cristo, com inacreditável prazer de espírito, aceitando os seus suavíssimos e sumamente íntegros costumes; vivia juntamente com elas; com elas tomava as refeições; com elas rezava as orações estabelecidas e solenes.

Lenda, pp. 1349-1350 E as donas da Ordeem em aquel moesteiro eram ja mais de cincoenta. E esta rainha entrava antre elas por [la] dita graça que o papa a ela outorgara e fezera uma camara pera si aa porta do moesteiro e por ali se viinha por vezes a rainha das casas outras de sa morada e estava i por dias e rezava com aquelas donas do moesteiro e siia antre elas e de seer com elas avia gram prazer e confortava-as e dizia a elas que perseverassem em [n]o serviço de Deus, cujas esposas eram, e outras e mui nobres palavras, que ela bem sabia dizer.

Para além destas dependências, o paço régio construído pela rainha para sua morada, enquanto residisse em Coimbra, ruiu em 1559, ano em que Perpinhão ainda estava em Portugal e compondo a monografia da Rainha. Relata até um episódio curioso ocorrido durante a derrocada: um rapaz que ali se abrigara saiu incólume dos escombros, protegido por uma espécie de grade que se formou com as traves do edifício (vide infra) O hospital coadunava-se com o espírito assistencial da Rainha e o seu cuidado prolongou-se mesmo após a sua morte, uma vez que o contemplou generosamente no seu testamento173 . A fundação destas 173  No

seu codicilo, de 12 de Março de 1328, D. Isabel deixou instruções claras:

Item mandamos e ordinhamos que en este Espital sseia pera senpre quinze homeens e quinze molheres pobres de uergonha e de boa uyda, as quaaes poys a morte nossa escolhera a dita Abadessa de santa Clara e sseu Convento, ou con a mayor parte, assy que senpre sseia homeens e molheres de Cinquenta anos ou de mays. Outrossy mandamos e ordinhamos que os ditos pobres aia cada huum delles en saa uida pera sseu comer e pera sseu beuer trynta e duas onças de pam cozido e huma tagara de vinho comunal e dous arataes de carneyro ou de porco ou de uaca como por bem teuer a dita Abadessa, guardando necessidade de doença aos ditos pobres. E no dia que ouuerem de comer pescado darenlho como uirem que seera conuenhauil, e darem a cada huum dos ditos pobres pera uestyr pelotes e ssayas em cada huum ano, e de dous em dous anos pelicos e cerames destanferee ou doutro pano que sseia de preço de quinze soldos de dinheiros uelhos portuguezes o couedo. E de a dita Abadessa aos ditos homeens e molheres em cada huum ano Camissas e calçaduras assy como lhys conuir. Item lhys de quando uyr que conprem ssenhos

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obras de assistência não era inédita, na região de Coimbra; entre outras iniciativas, destaque-se a da própria Mór Dias, primeira fundadora do Mosteiro de Santa Clara, que criara um hospital em Ceira. D. Isabel, entre outras obras de assistência, fundou este hospício, destinado a 15 homens e 15 mulheres pobres e idosos. A sua função era a prestação de cuidados a cidadãos pobres e idosos e não tanto a cura de doenças. De acordo com as diretivas detalhadas que deixou no seu codicilo de 1328, para o funcionamento do hospital, nomeadamente após a sua morte, os beneficiados tinham, além de abrigo, alimentação, vestuário, calçado e cuidados médicos. Terá começado a funcionar entre 1328-1336; entre as alas destinadas, uma a homens, outra a mulheres, fez também construir uma igreja. A sua fundação foi autorizada, em 1322, por Bula de João XXIII, que confirma a sua construção em 1327 e autoriza a existência, nele, de altares, capelães e cemitério; a 8 de Dezembro é consagrado o altar da igreja, dedicado “ad honorem Sancte Helizabet”. A abadessa do Mosteiro era a responsável pelo serviço eclesiástico desta igreja; nomeava um sacerdote que prestava assistência aos habitantes do hospital, mas também do paço. 174 Perpiniani, De Vita, pp. 323-24 Quando morava em Coimbra, imitava, tanto quanto lhe agradava, aquela conduta da ilustre Isabel, sua tia paterna175, e o seu admirável modo de vida. Com efeito, diante da residência real, que dissemos ter sido colocada próxima do convento de Santa Clara, na mesma margem esquerda do rio, de um lado e de outro, fez construir muitos edifícios, entre os quais uma capelinha que alinhou em frente à residência real, deixando, entre todos eles uma área quadrada

Lenda, p. 1346 E ante as casas de sa morada, que pera si e os seus fez fazer, fez fazer uma capela com seu cemeterio e casas pera o esprital, em que pos quinze omeens pobres e quinze molheres pobres, e os omeens pos em sa casa apartada e as molheres em outra e a capela [em] na metade das casas, e a estes pobres [dava] certas rações de pam

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almadraques e ssenhas colchas e ssenhos chumaços e cubertas segundo uyr que lhys conprir. (Apud António de Vasconcelos (1891-1894), vol.II, pp. 20-21). 174  Macedo

(2006), pp. 872-885.

175  O

percurso de Santa Isabel de Portugal segue as pisadas da sua tia homónima, Santa Isabel de Hungria; também aquela fundara um hospital, para acorrer aos necessitados. Vd. Castro (2007).

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suficientemente grande para compreender um poço, no meio. Nestas casas, a humaníssima rainha, por mais nenhuma vizinhança deleitada, colocou em lugares separados, de acordo com a diferença de sexo, quinze homens pobres e outras tantas mulheres; a este número de pessoas, para que fossem dignas deste benefício, destinou certas quantias em dinheiro para sustento perpétuo, donde se providenciava para cada um, todos os anos, pão, cama e roupa. Na capelinha próxima, consagrada com o cemitério, colocou de guarda um sacerdote que, na presença daqueles que recebiam um subsídio anual do dinheiro atribuído, celebrasse diariamente o ofício divino e cantasse as preces solenes de todas as horas. (...) a essa liberalidade, juntou-lhe aquelas tarefas que até as mulherzitas humildes e obscuras evitam, considerando-as alheias à sua dignidade. Pelo contrário, não considerando a rainha cristã serem indignos de si todos os aspetos da humanidade e da beneficência, visitava frequentemente aqueles que tivesse ouvido dizer estarem dominados por alguma doença, confortava-os com uma conversa variada e plácida, exortava-os a suportar a aflição do espírito e as dores do corpo; (...) e esquecida da sua autoridade régia, ela própria levantava, abraçando-os, os jazentes e levando-os já preparados diante das refeições, afastava o fastídio com palavras; e, finalmente, reconhecendo Cristo nos pobres, executava piedosa e humildemente todas estas tarefas (...)

e de vinho e de carne e de pescado, segundo o dia era, e leitos pera dormirem e de vestir em cada uum ano. E ordiou que cada dia veessem ouvir as oras canonicas em aquela capela de uum capelam que ela pos em ela com seu moozinho, que fossem em aquela capela com seu cemeterio. E a rainha por vezes viinha visitar os que em este esprital erom enfermos e per si apresentava a eles o que aviam de comeer.

Em 1560, aproximadamente, a situação deste hospital era a seguinte, de acordo com as palavras de Perpinhão: Desta tão grande liberalidade e humanidade, ainda hoje se encontram alguns ténues e obscuros vestígios. Com efeito, conservam-se ainda esses edifícios, em volta das ruínas do paço régio, muito frequentemente habitados por pobres, com a sua antiquíssima capela, na qual, aos domingos, um determinado sacerdote da vizinha casa de S. Francisco celebra os rituais; e 12 mulheres pobres são providas, neste convento de Santa Clara, de algum dinheiro, que se diz que Isabel outrora tinha atribuído. Com verosimilhança me parece ser este aquele dinheiro que a literatura mais antiga lembra ter sido atribuído, como dissemos, para alimentar e vestir trinta pessoas; mas, encarecendo o trigo cada

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vez mais, de dia para dia, o facto é que, por fim, o que era suficiente, naquela suprema pobreza desses tempos, para alimentar trinta pessoas, essa mesma, nesta tão grande falta e carência no abastecimento de trigo, a custo pode já alimentar doze. 176

Do mosteiro propriamente dito, isto é, da igreja, dos claustros e das outras dependências, fala, com conhecimento de causa, Perpinhão, que o visitou certamente, antes de ficar imerso nas águas do Mondego, quer no âmbito da sua tarefa de discursar nos dias consagrados às festividades da Rainha, quer no exercício da redação da monografia; para ambas as circunstâncias, consultou, como ele próprio refere na monografia, o manuscrito da Lenda177, seguindo fielmente o seu relato, mas acrescentando dados da sua observação. Perpinhão descreveu o complexo do mosteiro, tal como estava em meados do século XVI e o seu relato foi, nos séculos seguintes, um dos raros documentos para o seu conhecimento, depois de ter sido “engolido” pelas águas do Mondego: No princípio, há uma área quadrangular, de latitude mediana, cingida já, então, desde o início, de três lados, pelos edifícios mais humildes, onde, em parte, habitam as servidoras necessárias ao sagrado colégio, em parte as mulheres pobres, a quem se fornece alimentação diária 178 . O quarto lado, voltado para sul, é fechado pelo próprio templo com um pórtico não muito grande, que se estende da porta de dois batentes até à porta do mosteiro.

176 Perpiniani,

De Vita, p.325.

177  Lenda,

p. 1348: Depois que a eigreja e dormitorio foi acabada, fez abobedas aa castra e fez mui nobres paaços e bem postados e pera refeitorio e dormitorio e enfermaria e castra e cozinha e todas as outras casas, pera os oficios que compriam em no moesteiro, e fez cercar todo o moesteiro de alto muro.

178  Situar-se-iam aqui as dependências que a Rainha mandara preparar para si, na portaria, para entrar no Mosteiro mais facilmente quando quisesse (vd. supra).

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O templo, feito com pedra quadrada, naquela antiga arte e engenho, com o tecto em abóbada, com duas fileiras de enormes pilares sustentando a cobertura abobadada tríplice179 , está ornado com muitos quadros e estátuas de santos. Diante da cúpula que cobre o altar-mor, está o duplo coro, como acima referimos, um de pé plano, outro sobre uma abóbada elevada em altura, diante da capelinha erigida em lugar alto e do sepulcro de Isabel. E esta mesma capelinha tem uma dupla entrada, uma partindo do templo, com degraus de pedra bem feitos, pela porta maior, outra partindo do pórtico exterior, por uma humilde entradita a norte, pelas mesmas escadas através das quais se ascende à porta. A especial e quase prodigiosa grandeza do coro demonstra claramente qual a frequência, qual a espécie, qual a amplitude que a rainha de espírito ilustre concebera para a posteridade. E, agora, com efeito, ainda que só aquelas que pública e solenemente pronunciaram os seus votos sejam outro tanto mais quanto eram no seu conjunto, ele está, todavia, longe de encher-se com tão grande multidão, de modo que poderia comportar um número de longe maior. Dentro estão dois claustros, de grandeza semelhante, mas de diferente nobreza. Um, unido ao próprio templo, foi edificado de forma mais magnificente. Com efeito, está limitado por quatro galerias, com tetos de formato abobadado, como uma tal multidão de pilares sustentando paredes arqueadas 180 , com uma tal quantidade de colunas, em

179 As descobertas, após as intervenções arqueológicas recentes, vão ao encontro da descrição de Perpinhão. O templo é composto por três naves sem transepto e cabeceira composta por uma ábside poligonal de três panos e dois absidíolos rectos exteriormente e poligonais no interior. Tem cobertura em terraço sem telhado. As capelas colaterais têm forma recta no prolongamento das naves. Para aprofundar este tema, veja-se Macedo (2006) e Corte-Real (2001). 180  Com esta expressão, Perpinhão refere-se provavelmente aos arcos que ornamentavam as paredes das galerias, tal como Fr Manuel da Esperança os viu e descreveu, poucos anos depois (Historia Serafica dos Frades Menores na Provincia de Portugal, T. II, L. VI, Cap. XVII, p. 35): Todos os lados de fóra (do claustro) ião tecidos em arcos: huns grandes, outros pequenos: huns abertos, outros fechados com redes da mesma pedra, por galante artificio.

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grupos de oito sustentando cada um seu pilar, que rivaliza, em amplitude, em arte e em firmeza, com todas as obras dos reis mais ricos. No complúvio que está a meio, existe um tanque grande e, dele, nos quatro cantos, outras tantas fontes181 aí colocadas derramam água com agradabilíssimo som. Ao lado, um poço, quando enche, previne muito antes que as inundações do rio vão trazer grande incómodo, se não se fugir dele, como se se tratasse de um sinal dado de um lugar de observação. O que resta de espaço verdeja com ervas requintadíssimas, arbustos e árvores. Aqui, é admirável de ser dito, existem cinco fileiras de quartos, das quais qualquer uma parecerá poder ser suficiente para uma comunidade não pequena, para além ainda de duas menores. Aqui, uma sala de reuniões 182 com o comprimento de uma vez e um terço da largura, ilustríssima, seja pela abundância de janelas e portas, seja pelo traçado apropriado, cujas paredes interiores se ornam de mosaico lavrado, com tal dignidade que parece ter sido feita para acalmar todas as revoluções da alma. Aqui, finalmente, um refeitório tão amplo em comprimento e largura que podem sentar-se nele, da forma mais cómoda, duzentas freiras. 183 E, assim, quer por causa desta tão vasta dimensão, quer porque, quando o rio cresce, se enche com uma humidade doentia, ele não é utilizado. Diante deste refeitório, existe uma fonte para lavar as mãos, feita de pedra, coberta por um teto abobadado, suspenso e apoiado em 40 colunas.

181  De uma dessas fontes, faz Fr. Manuel da Esperança uma breve descrição, na obra e pág. acima citadas: No meio do mesmo claustro descuberto a o ceo, ocupava grande campo hum tanque mui aprazivel, em o qual desagoavão muitas fontes por diferentes figuras, & a maior, que eu ainda achei, pela boca de hua serpe, enroscada no braço de hua Ninfa. Vinha de fóra a agoa, por hum cano, que se chamou “dos amores” por razão de huma fonte deste nome, onde tem o seu principio. 182 Provavelmente a Sala do Capítulo onde, na primeira construção de D. Mor Dias, ficava a igreja do mosteiro, onde aquela ficou primeiro sepultada. 183  Diz

a Lenda, p. 1348: Depois que a eigreja e dormitorio foi acabada, fez abobedas aa castra e fez mui nobres paaços e bem postados e pera refeitorio e dormitorio e enfermaria e castra e cozinha e todas as outras casas, pera os oficios que compriam em no moesteiro, e fez cercar todo o moesteiro de alto muro.

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Nas proximidades estava um plátano, árvore raríssima 184 nestas paragens, para sombrear o lugar, estendendo-se com as suas ramagens abertas, que, no ano passado, por ter chegado talvez um pouquito de sal às suas raízes mais fundas, pela demasiada fragilidade da sua natureza ou por não poder sofrer a menor injúria, diz-se que secou completamente. O outro claustro está ornado com árvores abundantes, com galerias e com colunas; mas, afetado já da própria longevidade, tem um refeitório com mesas de pedra, onde agora se tomam as refeições, e oficinas e quartos necessários para tão grande multidão. O jardim, verdadeiramente grande, plantado com muitas árvores, não só agradáveis pela amenidade das ramagens, mas também úteis pela abundância de frutos, rodeado de um altíssimo muro, oferece, aos que estão cansados do trabalho constante, um descanso de espírito nem desonesto, nem desagradável. Por outro lado, tudo que está voltado para o rio está fortificado, de fora, por um muro mediano, como uma barreira para fazer frente aos ímpetos do rio, no inverno. 185

Após ter colocado a hipótese de ser sepultada em Alcobaça, como consta do seu primeiro testamento, e no Mosteiro cisterciense de S. Dinis de Odivelas186, Dona Isabel decidiu escolher para seu eterno descanso a igreja do Mosteiro de Santa Clara, sagrada em 1330, sendo então arquiteto Estevão Domingues, e tratou de mandar fazer o seu túmulo. Foi colocado no meio da Igreja, mas desde logo, as águas do Mondego se mostraram ameaçadoras, dando sinal já do destino que havia de sofrer esta vasta edificação, que foi conquistada, ao longo dos séculos, pelas águas, das quais só recentemente se voltou a libertar; assim sendo, a

184  Sobre o plátano e sua raridade nessas paragens e nessa época, leia-se De Platano, de João Rodrigues de Sá, do qual se pode encontrar a tradução parcial em Américo da Costa Ramalho (1985), Latim Renascentista em Portugal, Coimbra: INIC, pp. 118-135. 185 Perpiniani, 186  Vd.

De Vita, II, 330-333.

Vasconcelos (1891-1894), vol.II, pp. 3-7).Vairo (2009b), pp. 845-867.

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Rainha mandou lançar um outro piso, na igreja, sobre arcos, dividiu-o em coro e igreja, e nele colocou a arca tumular, juntamente com a de sua neta Isabel, para a qual mandou executar um túmulo semelhante. Perpiniani, De Vita, pp. 327-328 Terminada a igreja, no ano anterior, fora colocado, no meio, um grande monumento, talhado em pedra, que seria o tranquilo depósito do corpo da rainha depois da morte, rodeado de grades por todo o lado. Isso ocupara tanto espaço que parecia diminuir muito a amplitude e a dignidade do templo187. Por isso, um acontecimento inesperado convenceu facilmente o espírito de Isabel, já de sua vontade inclinado a procurar outro lugar para o sepulcro; é que, nesse mesmo ano, que era, desde o nascimento de Cristo, o de mil trezentos e trinta e um, de tal modo sucedeu que o Mondego, grandemente aumentado com as chuvas, cresceu como não havia memória, entre os homens, de alguma vez ter crescido antes; como o leito, ainda que, segundo dizem, muito mais fundo do que agora é, não pudesse comportar, todavia, tanta quantidade de água, esta, irrompendo no edifício recente, cobrira o monumento inteiro e suprimira completamente qualquer hesitação, se alguma ainda tivesse, em transferi-lo para outro lugar. Por isso, uma parte, diante, outra, sobre o odeão (assim denominam os gregos o lugar onde canta o coro), que fora construído ao fundo do templo, no lugar mais afastado da zona do altar, mandou erguer, quase a meia altura, uma grande câmara unida por arcos de pedra;188 como a dividisse, a meio, com uma

Lenda, pp. 1347-1348 E, acabada a eigreja do moesteiro e abobeda, fez poer o moimento que ela já tiinha feito pera sa sepultura em meo da eigreja. E per razom do moimento, que era mui grande e per razom das gradizelas, postas por derredor, que tiinham gram parte da eigreja, ficava embargada muito. E em aquel tempo que o moimento na eigreja seia sobreveo uum deluvio d’augua em Coimbra, dezoito dias de Fevereiro, era 1369 anos, que entrou a augua do rio Mondego, que vem por redor da cidade de Coimbra, per aquela eigreja, e em tanto que nom era naquele tempo em memoria dos omeens que aquela augua a tal logar veesse chegar, nem que aquel rio tam creçudo fosse, e foi tanta a augua do rio em na eigreja, que foi aquel moimento cuberto d’augua. E a rainha, veendo em como o rio aaquel logo chegara e veendo em como per aquel asseentamento a eigreja era embargada, ordiou logo como se fezesse em aquela eigreja, que

187188

187  Indo, de alguma forma, ao encontro das palavras de Perpinhão e da Lenda, Macedo (2006), p. 661, põe a hipótese de a Rainha ter considerado que a monumentalidade do túmulo, colocado naquele primitivo espaço, impedia as freiras, do lado de lá das grades do coro, de verem o desenrolar da liturgia que se desenrolava no altar. Essa terá sido uma razão a pesar na decisão de D. Isabel, que terá ficado completamente convencida com primeira inundação do Mondego. 188  Deste alteamento do pavimento, Perpinhão refere apenas o da igreja, não fugindo ao relato da Lenda. À medida, no entanto, que a água ganhava terreno e o claustro se transformava numa “imensa cisterna”, nas palavras de Fr. Manoel da Esperança, foi necessário continuar com outros alteamentos por todo o edifício. O acrescento da capela funerária forneceu a cota a partir da qual se fez um novo pavimento de toda a área da igreja, nos inícios do século XVII; segundo Macedo (2003), p. 18: O original acrescento desta capela funerária, a meia altura do templo, na zona de bipartição do espaço eclesiástico, não só marcou consideravelmente o espaço da

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parede suficientemente grande, um dos lados, traçado em forma de capela, ao qual se podia chegar, do exterior, através de degraus, adornou-o com assentos, altar e estátuas; o outro lado, interior, completamente incluído nas paredes do convento, fortificava-o admiravelmente com as grades de ferro do coro, pensando todos e dizendo-o publicamente que não acontecera sem o sinal e a vontade divinas que o rio, naquele lugar, aonde nunca tinha chegado antes, penetrasse com força e ímpeto repentino, para que, no mesmo edifício, fossem estabelecidos como que dois templos e dois coros. Sobre este aposento, abobadado, na capelinha mais elevada, foi colocado o monumento, para não ter ocupada, nem obstruída, com a sua magnitude, qualquer parte do templo, e para não poder ser submerso, de qualquer lado, quando quer que o rio crescesse. com as chuvas, de novo.

era alta quanto compria, sobre arcos uma capela alçada em meo da eigreja como coro, pera as donas estarem, e fez fazer departimento grande antre o coro e a capela, e fez em cima poer aquel seu moimento e sepultura, que tiinha em fundo, e fez ali poer o moimento da ifante Dona Isabel, sa neta, que ela criara e passara em sa casa e fez fazer altar e imagees e seedas, para seerem os creligos e os outros que veessem i ouvir as oras ou dizerlas, e assi, per razom da augua que entrou em na eigreja, á ora em [n]a eigreja duas eigrejas e dous coros; e teverom que a Deus aprouguera de se assi fazer, quando a el prouguera de entrar aquela augoa em aquela eigreja e u nom soía entrar.”

Deste túmulo da rainha, faz Perpinhão, séculos depois, em 1559, uma descrição um pouco mais detalhada, numa das orações em louvor da Rainha, integrada nas comemorações anuais instituídas por D. João III para o dia 4 de Julho: Foi colocado na capelinha superior, onde agora se vê. Apoiava-se, como também agora vedes, sobre oito leões e era ornado, de todos os lados, por muitas figurinhas. Uma imagem muito grande da Rainha, vestida com o hábito das freiras de Santa Clara, com as mãos juntas, bem como os pés, semelhante à falecida, jazia por cima. A verdade é que, graças à liberalidade e piedade destas santas mulheres, ele está magnificamente ornado. Tudo brilha em belíssimas cores e está coberto de ouro e de uma abóbada de madeira excelsamente pintada, que é

igreja, como também forneceu a cota para ser lançado, nos inícios do século XVII, um novo pavimento em toda a área da igreja. O alteamento dos pavimentos, como forma de resistir às inundações, foi outras vezes utilizado, como a escavação mostrou, embora nunca de forma tão radical como a que teve lugar na edificação da capela funerária e, posteriormente, no referido piso, datado do século XVII.

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suportada, de todos os ângulos, por quatro colunelos preciosamente feitos de madeira. 189

189 Perpiniani,

Laudationis in B. Elizabetham Lusitaniae Reginam Liber III, p. 155. Encontra-se uma descrição muito pormenorizada do túmulo da rainha, tal como Perpinhão o viu e o descreveu, no auto que se fez quando da sua primeira abertura, no processo de canonização de Santa Isabel, em 1612, perto de meio século depois de o ter visto Perpinhão: (...) os ditos snõrs juizes forão ao mostrº de santa Clara que esta fora dos muros dadita cidade, Ealem do Rio mondego, esobirão aCapella superior do dito mostrº eiunto ao choro alto delle onde esta osepulchro da beata Rainha Isabel olim deste Reino de portugal, Eahi uirão odito sepulchro oqual he depedra branca que se produs em hum Lugar que chamão Ançaã duas leguas desta cidade, feito em modo de huma arca cauada por dentro e de huma soo pedra de treze palmos de comprimento, Ede seis de largo, Ede cinco de alto todos palmos comuñs, posta Sobre outo Leois da mesma pedra com as cabeças pera fora eem todo o redor cercada de jmagens de figuras lauradas na mesma pedra de meio releuo. E de dous palmos de comprido cada huma, que por ailharga damão direita mostrão hum coro de freiras postas em ordem de procissão com seus livros abertos na’ mãos como que estão encomendando aalma da Rainha defunta e no principio deste coro esta hum Bispo uestido depontifical acompanhado de dous ministros com Sobre pelis, e da parte esquerda esta outro choro com as imagens de Christo nosso Salvador, edos doze apostolos, Ena cabeceira do dito sepulchro (que esta ao poente) esta hum christo crucificado com as imagens de nossa Snorã ede São João de huma parte eda outra, Eassimais dous escudos pequenos das armas de Aragam; Enos pes do dito sepulchro (que Estão aoleuante) ajmagem de santa Clara Ededuas Rainhas com coroas douradas na cabeça todas da mesma grandeza, e da mesma Escultura demeio releuo enos quatro cantos os quatro animais figuras dos quatro euangelistas. Esta Caxa Earca se cobre com huma soo pedra da mesma grandeza, na qual da parte superior esta esculpida do releuo inteiro a imagem e figura da mesma Rainha que se entende ser ao natural, esta uestida no habito das freiras de santa Clara e com ueu preto, esobre elle na cabeça huma coroa dourada, eesta cingida com cordão da mesma ordem, enelle da banda esquerda pendurada huma bolsa e sobre ella laurada huma concha de Santiago dourada, eas mãos postas huma sobre aoutra sobre ocorpo, ede baxo da direita hum liuro, Eda esquerda, hum bordão da mesma feição, de outro bordão Ebolsa que se achou dentro da sepultura sobre o ataude Ea Cabaceira da dita Rainha estão dous Anjos hum de cada parte com seus toribulos prateados nas mãos encensando o corpo da dita rainha, Ea cabi ceira da jmagem da dita S.ta Rainha hum capitel de pedra dourado e bem laurado que parece foraposto dipois de sua morte, porque mostra não ser amesma pedra, Eda parte defora, esta huma figura de hum Anjo com os bracos abertos, Ehuma toalha sobre elles ena toalha huma figurinha pequena que de nota a alma da dita santa. – Aqual imagem do uulto da dita santa, esta Encarnada epintada a oleo e representa ensi grande magestade Eueneração, ea olongo desta imagem estão outo Escudos com as armas de portugal, Aragão, E do Emperador, Eno friso desta pedra de cima que todo esta dourado esta hum Letreiro de letras pretas grandes dos uersos seguintes. Elisabella jacet sacro hoc Regina sepulcro Quae meritis nitidi fulget in arce poli Nempe ita dum uixit caeco se gessit in orbe

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O túmulo da rainha, construído em 1330 sob a orientação da própria, atribui-se normalmente a Mestre Pero, que executou outras obras em Portugal 190 ; este seria provavelmente um escultor aragonês, contratado pela própria Rainha, que sempre manteve contactos com a sua terra natal. O seu túmulo é inovador no panorama nacional, pois “veio introduzir um tipo de arcas fúnebres de grandes dimensões, paralelepipédicas, autónomas das paredes e, por isso, decoradas em todas as

Uirtute ut morum uixerit omne genus Quo fit ut asummo diua haec selecta tonante Regnet & angelico nos juuet usque choro. E toda amachina deste sepulcro esta rodeada de grades de ferro, na altura damesma sepultura enos cantos pilares de ferro, sobre que esta armado hum Sobreceu de madeira dourado que cobre todo o sepulcro. E nouão do Sobreceu outro Escudo das armas de portugal, E Aragão partidas. Na parede da dita Capella, que fica aparte da Cabeceira do dito sepulcro esta metida huma pedra com hum letreiro deletras antigas goticas douradas que diz oseguinte. Era M.CCC.LXX iiij die quarta mensis Iulii, in Castro de Estremos obiit inclita Domina Elisabetha Regina portugaliae et fuit sepulta x ij die dicti mensis in hoc monasterio Sanctae Clarae, quod ipsa met fieri jussit et dotauit, & fuit uxor domni Dionisii Illustrissimi Regis portugaliae & filia Regis domni petri de Aragonia & reginae domnae Constantiae, atque mater domni Alphonsi, Strenuissimi Regis portugaliae, & Domnae Constantiae reginae Castellae, fuit que auia Regis Alphonsi de Castella, & Reginae domnae Mariae uxoris suae, hos timuit, hos honorauit iis bene dixit, cuius anima requiescat in pace. (Transcrito em Vasconcelos (1891-1894), vol II, pp 113-115) 190  Reynaldo dos Santos (1970), Oito séculos de arte portuguesa. História e Espírito. I. vol. Editorial Notícias; História da Arte Portuguesa (1995), Vol I. Direção de Paulo Pereira, Círculo de Leitores; Francisco Pato de Macedo (1999), “O túmulo gótico de Santa Isabel”, in Imagen de la Reina Santa. Estudios. Saragoça, Diputación Provincial de Zaragoza, vol. II, pp. 93-114; Macedo (2004), “Isabel de Aragão, Rainha de Portugal, Peregrina de Santiago”. III Memorial Filgueira Valverde. Santiago e a Peregrinación. Pontevedra: Publicación da Cátedra Filgueira Valverde, pp. 9-43; Macedo (2006), Santa Clara-a-Velha de Coimbra, singular mosteiro mendicante. Dissertação de doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, policopiada. Coimbra; Joana Râmoa (2010)), “Isabel de Aragão, rainha e santa de Portugal: o seu jacente medieval como imagem excelsa de santidade.” Cultura 22, Centro de História da Cultura, 63-77; Giulia Rossi Vairo (2001) “Isabella d’Aragona, Rainha Santa de Portugal, e il Monastero di Santa Clara e Santa Isabel di Coimbra (1286-1336)”. Collectanea Franciscana 71 1/2. Roma – Istituto Storico dei Cappuccini; G. Rossi Vairo (2009a), “Alle origine della memoria figurativa: Sant’Elisabetta d’Ungheria (1207-1231) e Isabella d’Aragona, “Rainha Santa de Portugal (1272-1336)” a confronto in uno studio iconografico comparativo”, in Imagem, memória e poder. Visualidade e representação (sécs. XII-XV). Instituto de História de Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, nº 7, pp. 221-235; Carla Varela Fernandes (2018), Pero: o Mestre das imagens. Cerca de1300-1350, Imprimatur, Lisboa.

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faces, que foram produzidas em Portugal no século de Trezentos, em quantidade elevada”. 191 Neste sarcófago, a Rainha fez-se representar no seu jacente na qualidade de rainha, clarissa da ordem terceira, apesar de nunca ter tomado votos, e peregrina: aparece vestida com o hábito humilde de Clarissa, que adotara nos últimos anos de vida, mas não renunciou aos símbolos do poder terreno – a coroa e os escudos das casas reais de Portugal e de Aragão; como peregrina fez representar o bordão e a bolsa de moedas, decorada com a vieira e a cruz de Santiago. 192 Apesar de ainda habitado e funcional, o Mosteiro e edifícios anexos mostravam já sinais de degradação, tendo mesmo já caído em ruínas o paço onde se instalara a Rainha. Um século depois, a sua situação era já deplorável e pouco saudável, pois, por baixo do pavimento que fora alteado em todo o edifício, havia uma autêntica cisterna 193. O mosteiro de Santa Clara foi cedendo progressivamente, perante a força das águas do Mondego e foi abandonado em 1677, transferindo-se as freiras para o novo mosteiro mandado construir ali perto, no monte da Esperança, por decisão de D. João IV, já em 1647; é designado como Santa Clara-a-Nova, para se distinguir do anterior, do século XIV; com elas foi também o túmulo pétreo da Rainha, hoje colocado no coro baixo deste novo edifício. O corpo incorrupto da Rainha, porém, foi transferido para um sarcófago de prata e cristal e colocado no altar mor da igreja do dito Mosteiro 194.

191  Macedo

(1999), p. 99.

192  Para

a descrição completa dete túmulo, leiam-se as obras supra referidas de Francisco Pato de Macedo, Joana Râmoa e Giulia Vairo. 193 Leia-se a descrição de Fr. Manoel da Esperança, (1666), pp. 18-90; Toipa, (1998), pp. 77-96; e (2009), pp. 225-239. 194  Vd.

Borges (1999), pp. 115-128.

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II.11. Milagres A preocupação de Pedro Perpinhão em fornecer o relato mais completo sobre a vida e feitos da Rainha levou-o, também, a enumerar e descrever com exaustão todos as ocorrências maravilhosas ou milagres atribuídos à sua intervenção, recolhidos de várias fontes: dos documentos dos tabeliães, da Lenda, das Crónicas de Rui de Pina e dos relatos que existiam na livraria de Santa Clara, na posse da sua abadessa, que traduziu para latim e incluiu na sua biografia. A monografia de Perpinhão apresenta o rol de todos os milagres registados por escrito nas fontes medievais, à exceção de dois que constam da Chronica d’El-Rey D. Affonso IV de Rui de Pina, mas não da Lenda: um deles diz respeito à cura miraculosa de uma freira, relatada no único instrumentum 195 ainda existente (vd. supra); Perpinhão não o inclui, eventualmente por não constar da referida obra. Relato tabeliónico E a dicta Catalina Lourenço respondeu e disse que para Deus et para a ordem que tynha et obediencia a que era tehuda que ela diria ende verdade. E que a verdade era per esta guisa et que a ela contecera que ela tynha huum lobinho no olho senestro. E que ela veendo et osservando o ben que sempre ouvira dizer qe a Rainha Donna Isabel fezera por o amor de deus et o que lhe ela vira fazer. E outro si o ben et a mercee que Deus fazia aos coytados que ham o Corpo da dicta Senhora Rainha iazia ela no sseu coraçom filhara devoçom que a rrogasse ao Corpo sancto da dicta Rainha que rogasse a deus por ela que lhi ouvesse mercee aa coita e door que ela avia en o dicto olho onde avia a vista muito enbargada. E dise que poendo ela feuza en deus que el lhe daria saude no dicto olho por amor da dicta Rainha por tantos milagres mostrava que ela que en ssa oraçom que sse achara guarida et saa do dicto lobinho et que avia toda saa vista comoa ante avia et que mostra logo o dicto olho saao aa dicta Abbadessa, aas freiras do dicto monasterio que virom et sabiam a door que ela en el avia.

195  Vairo

(2004), p. 191.

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Rui de Pina, Chronica d’El-Rey D. Affonso IV, p. 379 Outro si huma Catarina Lourenço tãbem Freyra tinha avia dias hum lobinho no olho esquerdo de que non via, & estava em dispocisão de operder, & huma vigilia que cõ grãde devação teve ante o moimento da Rainha se achou ao outro dia de todo são, & assi i fizerão outros muytos de semelhantes dores & maleytas.

A outra cura que consta da Crónica de Rui de Pina acima referida 196 também não a inclui no seu relato, nem consta de nenhuma outra fonte, medieval ou contemporânea; é a seguinte: Item hum Ioão Pascoal de Condexa sendo surdo muytos annos avia tambem huma noyte que cõ devação aly durmio, & se encomendou a ella, ouvio tãbem como se nunqua padecera tal infirmidade & assi outros muytos milagres achei escritos, que por brevidade escuzey de pòr, porque estes abastão para se crer piadozamente que sua alma he Santa, & bem aventurada.

Não há um só destes episódios relatados pela Lenda que este autor ignore; os que acrescenta, ou os recolhe nos cronistas, ou, no caso dos mais recentes, nas cartas que a abadessa de Santa Clara lhe faculta, ou mesmo no seu próprio testemunho. Ao contrário da Lenda, porém, que antologia todos os milagres no final do relato 197, coloca-os por ordem cronológica, situando-os no período da vida da Rainha em que aconteceram ou poderiam ter acontecido, na sua opinião. Os milagres atribuídos à intervenção da Rainha acontecem com maior frequência após a sua morte, durante e logo após o funeral, quando os populares acorrem junto ao seu túmulo e a ela se encomendam. A Lenda começa os milagres com o relato da cura de uma freira de Santa Clara, Constança Anes, que, logo após o falecimento da Rainha, enquanto decorriam as cerimónias fúnebres, tendo uma ferida na boca, ficou de imediato curada, ao beijar a urna. O acontecimento foi, de imediato, registado em escritura pública, como aliás, todos os que são relatados na Lenda.

196 Pina, 197  Será

Chronica d’El-Rey D. Affonso IV, p. 379. esta a ordem que seguiremos na exposição.

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Perpiniani, De Vita, pp. 360-361 Com efeito, naquele sagrado mosteiro, Constança Anes, natural de Évora, sofria já há muito tempo de uma doença horrível e incurável; uma ferida pestilenta destruía-lhe os lábios e as gengivas e, gradualmente, alastrava para o lado e não parecia faltar muito para lhe levar todos os dentes. Muitas vezes vociferava de forma infeliz, não suportando as dores de tão grande mal e perturbava a tranquilidade das outras e o lazer das religiosas com os seus clamores; nem a sabedoria dos médicos, nem alguma medida conseguiam proporcionar o alívio de tamanha peste. Conhecia muito bem a vida da Rainha, via acontecerem muitas coisas de forma maravilhosa, depois da sua morte; tinha esperança de que, se recorresse a esta advogada junto de Deus, haveria de alcançar o que quer que fosse com mínimo embaraço; lançou-se suplicante sobre o féretro; beijou o ataúde, de forma a tocar com a parte doente e atacada por aquele corrimento, e voltou para junto das outras. (...) Enquanto o santíssimo corpo era levado da porta do mosteiro até ao túmulo, Constança, sentido-se livre daquele antigo sofrimento, chama as companheiras, expõe-lhes toda a situação, mostra a boca para que seja inspecionada: não se via o mais leve indício daquela peste; descobriram que tudo estava íntegro e bem tratado, os lábios, as gengivas, os dentes, o palato; estupefactas com tal milagre, todas proclamam, ao mesmo tempo e a uma só voz, a santidade da Rainha, e admiram a sua graça junto a Deus e glorificam com louvores a divina bondade(...). Este tão grande e tão manifesto prodígio foi, naquele mesmo dia em que ocorreu, lavrado em escrituras públicas por aquele mesmo Martim Afonso, para memória sempiterna de todos os séculos, tendo sido comprovado junto do Bispo de Lamego pela religiosidade e autoridade não só daquela que fora curada, mas também das outras freiras.198

Lenda, pp. 1368-1369 Antre aquelas donas avia uma, a que dizem Costança Anes, natural de Évora, e que padecia uma grande enfermidade em [n]os beiços e em nos dentes de praga que os comiia, e estava em ponto de [lhe] caerem os dentes, e era tam grande a door que padecia que dava grandes vozes que as donas outras erom por essas vozes embargadas. E, avendo devoçom que Deus faria a ela mercee per aquel corpo da rainha, segundo as obras que merecia ela fazer em sa vida, foi beijar aquel ataude e por aquel logo u a door padecia. E tornou-se com as outras donas, des que o corpo da rainha tirarom fora onde elas estavom e o levarom pera a capela, [e] sentio-se sem door, e catarom os beiços e nom acharom aquel comiimento, nem [no] dano que em eles a praga fazia, e acharom-[nos] curados e derom graças e louvor ensembra a Nosso Senhor por quanta mercee a elas fezera em querer que aquela dona, que em aquel dia viiram aquela door padecer e a que nom prestavom meezinhas per tempos de físicos, de querer que fosse curada e sãa em uum momento per mercee que queria fazer per aquela dona. E assi foi provado perdante Dom Frey Salvado, Bispo de Lamego, e foi per[d]ante o Visitador das Freiras daquel moesteiro de Santa Clara per [l]as donas que viirom aquela dona aver aquela door, ante que o corpo da rainha ali chegasse, e teer plaga em nos beiços, e que a virom g[u]arida logo em aquel dia. Desto ouve i estromento, feito per mão de Martim Afonso, tabaliom de Coimbra.

198

198  Rui de Pina também refere este milagre, (Chronica d’El-Rei D. Affonso IV, cap. XXIII, pp. 377-78), esclarecendo que o lera em escrituras antigas, provavelmente nos documentos notariais feitos para assegurar a veracidade dos acontecimentos. A sua fé nesses documentos reflete-se nestas palavras: “E forão cõ elle Frei Ioão Paes seu confessor da ordem de São Francisco, e Frei Salvador Bispo de Lamego que foy seu testamenteyro e alem doutros muytos milagres que por escrituras antiguas, e muy autentiquas achey forão estes”. (Segue-se o relato de cinco milagres, cujos beneficiados são: Constança Anes, Domingas Domin-

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Segue-se o episódio do cidadão de Coimbra, Fernando Esteves, que, ao visitar o túmulo, espetara o pé num prego das andas que tinham transportado a urna (que aparentemente foram desfeitas e, segundo Rui de Pina – vd. supra –, distribuídas como relíquias) e mal conseguia caminhar; lamentou-se, encomendou-se a Santa Isabel e logo ficou curado. Perpiniani, De Vita, p. 371 Fernando Estevão de Coimbra, quando cedia à turba (era, na verdade, enorme a multidão de homens), espetou no pé um prego muito aguçado do caixão que estava no chão, o qual terá arrancado a custo, com uma muito penosa sensação de dor, e de tal forma coxeava por causa da ferida que não podia caminhar nem estar de pé. Disse: “Ó santíssima Rainha, esperava eu um prémio bem diferente pelo meu serviço, da tua bondade e vida imortal e bem-aventurada, e não que fosse daqui manco, eu que cheguei com os pés sãos”. Gritando estas palavras, com boa esperança e muita devoção suplicava àquela que já estava entre os seres celestiais, que volvesse os olhos para o acidente tão injusto de um devoto tão cioso e infeliz, e com as suas preces e aceitação junto de Deus, curasse tão repentino mal. Ainda mal acabara de rezar quando, mais rapidamente do que levara a pronunciar as suas palavras, a ferida ficou completamente curada e nem sequer se via cicatriz ou vestígio. E isto foi o que o mesmo João Domingues, com fidelidade e autoridade pública entegou às letras.

Lenda, p. 1370 O corpo posto no moimento e querendo-se partir aqueles que ali estavam, em esto começarom as andas em que aquel ataude com o corpo da rainha viinha, e embicando [em] aquelas andas uum homeem bõo, cidadam de Coimbra, a que diziam Fernande Estevez, querendo-se tirar a fora, per razom da companha, que era muita, foi-se o pee d’el meter em uum prego daquelas andas, que adur o tirar podiam, e ficou manco do pee, em guisa [que], o pee tirado do prego, el nom se podia mover. E começou a dizer: Ay boa senhora, outro galardom cuidava eu levar per serviço que vos fazer veera, ca nom viir aqui são e partir manco. E pedia-lhe com fiuza e devoçom que lhe ganhasse de Deus mercee. E logo em aquela ora se ergueo são do pee. Desto ouve uum estromento per mão de Joam Dominguez, tabaliom de Coimbra.

Também ficaram curados, ao contemplarem o ataúde da Rainha, dois homens, Afonso Martins, clérigo, e João Maçoeira, mantieiro (responsável pelo guarda-roupa) da Rainha, que padeciam de febre.

gues, Maria Martins, Catarina Lourenço e João Pascoal de Condeixa. Os três primeiros estão incluídos na Lenda e são também narrados por Perpinhão. Os outros dois, como referimos acima, não constam de um texto nem de outro; Rui de Pina tê-los-á conhecido através das próprias escrituras que se fizeram desses acontecimentos).

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Perpiniani, De Vita, p. 365 Afonso Martins, clérigo da diocese do Pontífice de Lamego, e João Maceira, um dos criado da Rainha, roupeiro da sua casa, quando ainda vivia, ao aproximarem-se do ataúde para venerar, cheios de febre, com o corpo doente, e pedissem que se lhes arrancasse aquele mal, deixaram de sentir de súbito, desde aquele momento, a febre que se desvanecia; de modo que, segundo a sua confissão, testificada pelo Bispo de Lamego, pode conhecer-se este facto pelas escrituras de Martim Afonso, tabelião de Coimbra.

Lenda, p. 1371: E disserom e derom de si fee Afonso Martiinz, creligo do bispo de Lamego, e Joam Maçoeira, que fora manteeiro da dita rainha, que padece[r]o[m] door de fevre em seus corpos, que veerom aaquel ataude u a rainha viinha e que lhe pediom que lhes ganhasse mercee de Deus e que receberom logo saude e dali em diante se sentirom curados daquelas enfermidades. E assi disserom e jurarom perdante o bispo de Lamego, segundo é conteudo em uum estromento, feito por Martim Afonso, tabaliom de Coimbra.

E uma ama da casa da Rainha, uma das muitas que ali viviam para criar as filhas dos fidalgos a cargo de D. Isabel, de nome Maria Miguéis, que tinha um “lobinho grande em [n]a mão direita”, cobriu o seu mal com uma compressa que envolvera a própria ferida da Rainha, que tinha sido trazida de Estremoz por Maria Domingues, uma das suas acompanhantes; colocado antes de iniciarem uma refeição, logo após esta o mal tinha desaparecido. Esta é uma outra evidência de que as suas relíquias já operavam milagres, o que dá o sinal do seu culto como santa logo quando da sua morte. Perpiniani, De Vita, pp. 365-366 Isabel, enquanto fora viva, dominada pelo desejo de fazer o bem, educando em sua casa muitas filhas dos mais honestos cavaleiros, tinha não poucas amas em sua casa e, partindo para a cidade deixara-as todas com as suas educandas. Entre elas contava-se Maria Miguel de Leiria, a quem já há muito tempo se desenvolvera um enorme tumor na mão direita. No dia em que o funeral real chegara a Coimbra, como se sentassem para comer e, durante a refeição, com tristeza, falassem da vida da rainha e dos seus notáveis feitos, e da grande quantidade de pessoas que haveriam de lamentar ter-lhes sido arrebatado um tal socorro, uma certa Maria, filha de Domingos, que acompanhara a rainha no seu último percurso, quer ainda viva, quer depois de morta, interpelou a outra que tinha na mão o tumor, dizendo-lhe: “Reza, para que ela peça a Deus que permita que este lobinho que te afeia tristemente a mão te seja arrancado; eu tenho uma ligadura que costumava ser impregnada com os unguentos para colocar sobre a doente, tingido com o sangue que saía do seu

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Lenda, pp. 1371-72 Em casa da dita rainha andava uma ama que criava filha de uum cavaleiro, a qual chamavam Maria Miguees e era natural de Leirea e avia gram tempo que tragia uum lobinho grande em [n] a mão dereita e ficara em Coimbra, quando a rainha di partira com outras amas que criavam filhas de cavaleiros, que esta rainha fazia criar em sas casas. E, seendo comeendo, des que o corpo da rainha ao moesteiro chegara, e departindo da vida que a rainha fezera e da mengoa que faria a muitos, que outra molher, a que diziam Maria Dominguez, que fora com a rainha a Estremoz, dissera a ela: “pedide-lhe que rogue a Deus que vos tolha esse lobinho que tanto vos defea essa mão” e que aquela molher dissera: “Eu trago aqui o pano com que

tumor; creio que nele, graças aos singulares méritos da Rainha em relação a Deus, foi colocado um grande poder para mitigar e expulsar todas as doenças.” Estas palavras trouxeram a todas uma certa esperança, graças à memória recente quer da sua vida, quer daquilo que acontecera depois da morte; pelo presente auxílio da santíssima mulher, o tumor podia ser removido, ainda que fosse grande e enraízado; mandaram que mostrasse o pano; envolvido com ele a mão doente e, depois da refeição, posto de novo à mostra a mão envolvida, não foi encontrado sequer vestígio do tumor; tal foi o poder curativo que Deus quis outorgar até àquelas coisas que, de alguma forma, tivessem tocado no corpo de Isabel. Este facto, confirmado pelos santíssimos testemunhos quer da própria Miguela (Maria Miguel), que fora contemplada por tão insigne benefício, quer das outras que estavam presentes, está contido nas escrituras públicas do mesmo tabelião, Martim Afonso, para memória futura.

legavam as meezinhas que poinha a rainha”; andava em [aquel] pano sangue, que saira daquela levadiga que a rainha [tevera], quando finara; e asseentando-se a comeer, poseram aquele pano sobre aquele lobinho e legarom-no a redor do braço e, levantando-se de comeer, deslegarom o braço e nom acharom i sinal de lobinho; e em como viira[m] aquele lobinho, ante de comer, (e) aaquela Maria Miguees e em como, depos comeer, viirom o braço sem ele (e) em que o tiinha e como fez per juramento aos avangelhos que assi acaecera, segundo é dito, e á i estromento, feito por Martim Afonso, tabaliom de Coimbra.

Por sua vez, Maria Martins, cega havia muito tempo, foi levada por sua irmã e seu cunhado junto ao monumento onde jazia a Rainha; ali adormeceu e, quando acordou, tinha recuperado a visão; da cura foi lavrado documento notarial, como, aliás, de todos os que constam da Lenda. Perpiniani, De Vita, pp. 372-373 Vivia em Coimbra, na freguesia de S. Cristóvão, Maria Martins que, por causa de uma cegueira prolongada e persistente, não conseguia sequer distinguir o branco do preto; tinha ela uma irmã, Margarida Martins, casada com um certo Pascoal Lourenço; conhecendo eles, por ouvir dizer e pela fama, tantos e tão grandes benefícios concedidos por Deus através da Rainha, foi conduzida ao sepulcro e repousou; aí, deitada por um momento, suplicando a Deus que lhe concedesse, pelos merecimentos da Rainha, que lhe fosse restituída a visão já há tanto tempo perdida, adormeceu por acaso. Ao acordar, abriu um dos olhos; olhou; viu o monumento régio, viu a capelinha onde está situado; cheia de inacreditável alegria, agradecendo a Deus por tamanha graça, voltou para casa, para junto da irmã e do cunhado. (...) Mal colocara o pé na soleira da porta quando, de repente, começou a ver também com o outro olho. E assim, tanto a irmã Margarida, como o marido ficaram estupefactos; todos simultaneamente, louvando com voz altíssima a bondade de Deus, autor de

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Lenda, pp. 1372-73 Em aquel tempo que o corpo trouxerom da rainha a Coimbra avia em Coimbra em [n]a freiguesia de S. Christovam uma molher, a que diziam Maria Martiinz e era de gram tempo cega que nom viia, nem esguardar podia alvo, nem preto; esta molher cega avia uma irmãa a que chamavam Margarida Martiinz e siia casada com uum omeem que chamavam Paschoal Lourenço e moravom na freiguesia de S. Christovam. E ouvindo dizer em como Deus fazia muita mercee por [l]a dita rainha, fezerom o dito Paschoal Lourenço e Margarida Martiinz levar ao moimento em que jazia o corpo da dita rainha a dita Maria Martiinz cega. E, jazendo esta Maria Martiinz cega apar do moimento em que a dita rainha jazia e pedindo a Deus mercee, que lhe desse lume por aquela rainha, que tanto serviço a el fezera, adormeceo e acordou daquel sono e abrio uum dos olhos e que vio o moimento e

todas as dádivas mais importantes, esquecendo, porém, aquela por cuja intercessão tinham recebido de Deus tamanho benefício, foram junto do Bispo de Lamego e contaram tudo sobre a anterior cegueira e sobre a restituição da visão; levados a juramento, nada mudaram, e toda a situação foi escrita em registos públicos por Martim Afonso, para que não pudesse cair no esquecimento ou carecesse de credibilidade junto dos vindouros. A custo se pode dizer quanta admiração se terá apoderado do Bispo com toda a sua comitiva; ordena a Maria que se aproxime; inspeciona com muito cuidado os olhos que antes estavam cegos e agora viam, examina com insistência, e de forma nenhuma consegue cansar-se.199

a capela em que o moimento seia e que fez sa oraçom, dando a Deus graças por quanta mercee lhe fezera, e tornou-se aa pousada d’aquela sa irmãa e cuinhado e vio com ambos os olhos. Veendo este tam fremoso milagre o cuinhado e irmãa, louvaram com a dita Maria Martiinz o nome de Deus por quantas mercees a eles fezera e veerom perdante Frey Salvado, bispo de Lamego, e per juramento fezerom aos avangelhos que esto assi passara; e estava i a dita Maria Martiinz, que o dito bispo e os que i estavom viiram aver vista em seus olhos, e era notorio em aquel logo u morava que de gram tempo era cega. E de como passarom todas as cousas e forom escritas e certas e provadas é certo perdante o dito bispo, á i estromento, feito por Martim Afonso, tabaliom de Coimbra.

199

Antes de passado um mês do falecimento da Rainha, veio uma mulher de nome Domingas Rodrigues, de Condeixa, que tinha uma sanguessuga alojada na garganta, que a deixara magra e pálida; junto ao monumento da Rainha, enquanto se rezava o Ofício, na presença de muitos, expulsou o parasita. Perpiniani, De Vita, pp. 373-374 De seguida, antes de perfazer trinta dias sobre o sepultamento da Rainha, Domingas Dinis201, oriunda

Lenda, 1373-74 Ante que os triinta dias acabassem do dia que o corpo da rainha em aquel logar [fora] soterrado, veo aaquel

Registo tabeliónico200 (...) Em presença de mim sobre dicto tabelliom (Martim Afonso), et dos testemunhos que adeante son escriptos et

200201

199 Esta cura miraculosa também é contada por Rui de Pina, na Chronica d’El-Rey D. Affonso IV, p 379. 200  Vairo

(2004), pp. 191-192.

201  Perpinhão

tem Dominica Dionysia, quando a Lenda tem Domingas Rodrigues; numa pública forma deste acontecimento surge Domingas Deiz; consultada por Figanière, este leu Domingas Domingues, interpretando assim a forma Deiz (Nunes, 1921, p. 1374). Terá Perpinhão consultado a pública forma, interpretando, por sua vez, Deiz como Dinis? Rui de Pina, por sua vez, chama-lhe Domingos Domingues, na Chronica d’El-Rey D. Affonso IV, p. 379: Item hum Domingos Domingues morador em S. Felipo tendo huma sanguexuga na garganta avendo muytos dias, de que cada dia se sangrava á morte, & nõ lhe aproveytando remedios, nem romarias, encomendandosse a Deus, & aos rogos, & merecimentos desta S. Rainha veo dormir huma noyte ao seu moimento, & a o outro dia a sanguexugua muyto grãde, & viua lhe apontou na venta direyta por onde lhe foy tirada, & foy são.

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da região de Condeixa, onde outrora se dizia ter sido Coimbra, movida pela fama de tantos factos maravilhosos, veio ao monumento, enfraquecida pela magreza e palidez; com efeito, tinha uma sanguessuga completamente entranhada na garganta, que sugava todos os líquidos e o sangue da infeliz, a qual já muitos médicos e cirurgiões se tinham esforçado por arrancar, experimentando em vão a sua arte. Mas como, abatida, junto ao sepulcro, chorando, pedisse auxílio à Rainha, na presença daqueles que tinham sido da sua casa, tanto homens como mulheres, que honravam piedosamente os ofícios fúnebres que se faziam pela falecida, com voz baixa e fraca (pois não podia falar muito alto), começou a avisar de que a sanguessuga estava entre os lábios; acorre um candeeiro202 da Rainha e lançou as tenazes; mas ela, escapando com o seu corpo escorregadio, encondendo-se de novo na parte mais interior da garganta, de súbito, saindo pelo nariz, para grande admiração de todos, provou como as forças celestiais são maiores do que as humanas. Os que estavam presente deram muitas graças a Deus, por cujo consentimento e dádiva fora permitido ver tão prodigioso feito; engrandeceram com as suas palavras a virtude de Isabel; receberam na sua alma uma grande alegria;

moimento uma molher dapar de Condeixa, u dizem Sam Fipo, e lhe chamam Domingas Rodriguez, e tragia uma samexuga e era amarela e seca per razom do nojo e dano que recebia em tragendo aquela samexuga, e muitos meestres de Física e outros provarom com seu saber e ciencia pera a tirarem e nom poderom. Ouvindo falar u morava da mercee que Deus a muitos fazia per esta rainha, veo aaquel logar e estando chorando apar daquel moimento e presentes aqueles que ficavam da mercee da rainha, omeens e molheres, que estavam em aquel logar ouvindo oficio que se fazia por [l]a dita rainha, aquela molher começou a dizer mui fracamente que nos beiços tinha aquela samexuga. E uum candeeiro daquela rainha, que guardava as candeas, veendo a samexuga ante os beiços, lançou em ela as tenazes e nom [n] a podia tirar e colheo-se a dentro em [n]a boca, e logo em aquela ora, presentes todos, virom-na sair aquela samexuga per uma venta dos narizes e caer em [n]a terra. Desto derom graças a Deus muitas companhas que estavam i, porque quisera que eles viissem atam nobre miragre. E de como passou á i estromento, feito por mão de Martim Afonso, tabaliom de Coimbra.

chamados et rrogados o dicto senhor Bispo per o dicto Priol de Guimaraães fez yurar aos sanctos Evangelhos Domingas Dominguez morador em San Philypo que dissesse a verdade do ben e da mercee que lhy deus fezera aã coyta et pressa que avia. Ela respondeu et disse per o yuramento que fez a deus et aos sanctos Evangelhos que nom ssabia ben certo en que tempo comera ou bevera huma samecuga nem por que guisa mais que passava per oyto dias et mais que lhy saiam grandes gorgoçadas de sangui pela garganta (...) E disse que ela com gram corsa et com gram pressa da morte que sse vehera meter soõ seu moymento da dicta Raynhae que lhy pedira de coraçom et de voontade que rrogasse a deus por ela que lhy posesse consselho aã gram coyta que avia. E disse que iazendo ela assy so omoymento laçando muito sanguy que sentira viir bolindo pelos narizes e que lhy vehera apontar a cameçuga aã ventaã dereyta et que lha filharom e louvaram todos o nome de deus.

202

Por sua vez, António de Vasconcelos opta por Domingas Domingues (1891-1894, pp. 259-263). 202  Um

criado que tinha como funções acender e espevitar as candeias e tochas.

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ganharam uma confortável esperança para o futuro, de poder afastar todos os males, com o socorro de tamanha santidade, com a anuência de Deus. Quanto ao resto, para que não houvesse, alguma vez, lugar para dúvidas de que isto realmente tivesse acontecido, quer o perigo da mulher doente, quer a sua libertação, aprovada por muitas testemunhas da maior devoção, foi relatada por Martim Afonso em escrituras públicas.203 203

Outra habitante do mosteiro, padecendo de grandes dores nos joelhos, obteve a cura pedindo a sua intervenção junto de Deus.

203 Existe ainda a pública forma deste episódio, na Torre do Tombo. Muitos milagres foram registados por notários, como se pode ler quer na Lenda, quer no relato de Rui de Pina, mas apenas se conhece um pergaminho que contém dois ocorridos logo após a morte da rainha, pois o documento está datado de 27 de Julho de 1336; trata-se deste e do de Catarina Lourenço (vd. supra). Sobre o de Domingas, que engolira uma sanguessuga e a expulsara depois de ter rezado à Rainha Santa, diz Coelho (1983/reeimp. 1989), I vol. p. 704:

O documento é, aliás, particularmente interessante pelo roteiro que nos fornece das peregrinações a lugares de culto da tradição pagã e aos de cariz religioso, na região de Coimbra. Primeiro esta mulher recorreu aos efeitos curativos da água e foi, sem êxito, às fontes de Alfafar e a outra em Penela: “que lhi disseron que fosse aa fonte d’Alffaffar....e ela fora à dita fonte; “que lhi disseron depois que fosse a par de Penela ao Barco que chamam Valoiro...e disse que foy ao dito Barco”. Só depois se voltou para os santos e percorreu um longo itinerário – S. Brás, os Mártires de Marrocos no Mosteiro de Santa Cruz, Santa Maria da Parede na igreja de S. Bartolomeu e por fim a Rainha Santa no mosteiro de Santa Clara. Quadro vivo da superstição e crença, na região de Coimbra, em tempos medievais. Veja-se também Santos (2000), que localiza o documento na Torre do Tombo, CR, Santa Clara de Coimbra, Documentos Particulares, m. 27, nº 18; e Vairo (2004).

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Perpiniani, De Vita, pp. 367-368 Vivia, com efeito, naquele mosteiro uma mulher martirizada por tantas dores nos joelhos, que não conseguia dobrar as pernas, nem sequer mexer-se de qualquer forma; quando soube da morte da Rainha e da chegada do seu santíssimo corpo, sofrendo intensamente não apenas por causa da sua saúde, mas muito mais até pelo facto de estar impedida de cumprir com as outras freiras o último dever na assembleia comum à sua mãe, não desistiu de rezar, chorando, com um certo pressentimento na sua alma, àquela que fruia da vontade divina, que lhe obtivesse de Deus a libertação de tamanho sofrimento; cumprindo-se o voto, rindo de alegria, juntamente com as outras, absolutamente admiradas por tão repentina transformação, avançou para entoar o canto fúnebre, ora ditando ora respondendo à vez, o que depois, graças ao seu testemunho e ao de outros, foi revelado claramente junto do bispo de Lamego e relatado, em escrituras públicas por aquele mesmo mesmo tabelião, Martim Afonso.

Lenda, pp. 1374-75 Em aquel moesteiro avia uma dona que, ao tempo que o corpo da rainha aaquel logo chegou, padecia grandes enfermidades nos geolhos de guisa que se nom podia mover e disse perdante aquel bispo de Lamego e per[d]ante seu Visitador, que a ela encomendava por obedença que dissesse verdade e al nom mesturasse, que ela com devoçom pedira aaquela rainha que lhe ganhasse de Deus e per (l)a sa mercee santa fosse curada daquela enfermidade de guisa que ela com as outras podesse ir a dizer os responsos, e que Deus por ela lhi fezera mercee que fora curada daquela enfermidade e que dali em diante ficara curada; desto como passou e como a dita dona disse, e as outras do moesteiro que a virom enferma e a virom curada, segundo ela afirmara, á i estromento, feito por Martim Afonso, tabaliom de Coimbra.

Também Teresa Rodrigues, cega, pediu a sua intervenção e obteve a graça da sua cura, deslocando-se descalça, em agradecimentos, de Santarém a Coimbra. Perpiniani, De Vita, pp. 374 Em Santarém, na freguesia de S. Nicolau, Teresa Rodrigues, doente dos olhos, recebeu visão, através de Isabel, graças às suas súplicas assíduas. Comovida com esta graça, como visitasse devotamente o seu sepulcro, confirmada por juramento solene toda a situação, tratou de a certificar com letras públicas e testemunhos através de Martim Afonso. Acrescenta que sabia que, na mesma cidade, tinham sido concedidas muitas graças a muitos cidadãos, de forma divina, graças aos méritos e orações da Rainha.

Lenda, p. 1375 Em Santarem avia uma molher a que diziam Tareija Rodriguez, moradora na freiguesia de S. Nicolau, a qual era cega dos olhos, que nom viia cousa, e, ouvindo falar da mercee que Deus per esta rainha fazia a muitas pessoas (e) que lhe pedira que guaanhasse a ela mercee de Deus per que recebesse vista e lume em nos olhos, a qual recebeo vista em seus olhos. E veo da vila de Santarem a Coimbra descalça aaquel logo u [é] a sepultura da rainha. E desto fez per juramento aos avangelhos que assi passara, segundo dito é, e que a muitos em aquel logo u ela morava fazia Deus mercee por ela. Desto em como a dita Tareija Rodriguez disse e vira á i estromento, feito per Martim Afonso, tabaliom de Coimbra.

Um homem, de nome Estevão Gonçalves Leitão, fora ferido num braço e este ficara inutilizado; pediu a cura à Rainha e logo a alcançou;

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para credibilizar o seu relato, jurou-o perante o alcaide de Coimbra, clérigos e cavaleiros. Perpiniani, De Vita, pp. 376-377 E dois anos depois, Estevão Gonçalves Leitão, varão ilustre, mestre militar da Ordem de Cristo, diante do alcaide da cidade de Coimbra e de uma grande multidão de todas as ordens, prestado o juramento, testemunhou de forma religiosa que, como o braço lhe adormecia por causa de um ferimento, de modo que não podia agarrar ou abraçar nada, lembrando-se do que soubera da santidade da Rainha para com os seus servidores, tinha rezado junto do monumento para obter de Deus a sua primitiva firmeza, para que não fosse obrigado a viver manco o resto da vida, tristemente, com o braço doente e frágil; (testemunha ainda) que obtivera o que desejara por divina vontade e dádiva.

Lenda, 1375-76 D. Estevam Gonçalvez Leitom, meestre de cavalaria de Ordeem de Christus em Portugal fora ferido em uum braço e per razom da ferida o braço ficara dormente (e) que nom avia em ele esforço pera poder filhar nem travar com ele. E conhecendo [a] vida que viira fazer a esta rainha, cujo criado ele fora, e em como servia a Deus, veo a pedir que lhe ganhasse graça de Deus pera receber saude em aquel braço e nom ficar assi leijado, nem perdido del. E recebeo de Deus tanta mercee que, depois que esto pedio, que dai em diante nom sentio door em aquel braço e que ficou del guarido. E esto disse em Coimbra, primeiro dia de novembro, era de 1375 annos, jurando que assi passara e seendo a esto presentes o alcaide de Coimbra e creligos e cavaleiros, e muitos jurando que assi fora e passara.

Na sequência destas curas que ocorreram após a morte da Rainha, no alinhamento seguido pela Lenda, foram introduzidos, neste ponto, cinco milagres ocorridos em vida de Santa Isabel; Perpinhão situou-os no momento da vida da Rainha em que verosimilmente teriam acontecido, Do primeiro, beneficiou D. Margarida, freira de Chelas, que se queixara à Rainha de um inchaço e uma dor sobre o estômago; aquela fez, sobre este, o sinal da cruz e tudo desapareceu. Perpiniani, De Vita, p. 289 Certo dia, uma certa senhora nobre e religiosa oriunda deste mosteiro [Chelas], de nome Margarida, visitou a Rainha que estava na cidade. A sua face empalidecia, todo o seu corpo impressionava pela magreza; aparentava ter perdido completamente a saúde. Quer saber, a Rainha, a razão de tamanha debilidade e palidez e ela responde: “Sobre o estômago, nasceu um tumor que me aflige com grande dor e sofrimento.” A rainha fez o sinal da cruz sobre a parte doente, colocou sobre ela a sua mão e fê-la regressar ao mosteiro; aí, Margarida apercebeu-se de que não só todo o tumor se curara, mas também de que

Lenda, pp. 1376-77 Acerca de Lisboa avia uma dona em uum moesteiro, que dizem Achelas, e diziam-lhe Dona Margarida e veo veer esta rainha, que era em Lixbõa, e andava mui doente e muito amarela, e a rainha a preguntou que door avia que assi andava amarela. E ela disse que tiinha uum mui grande inchaço sobre o estamago; e a rainha fez o sinal da cruz e pos em ela a mão e trouxe-a fora a seu moesteiro, achou-se curada e sem inchaço e sem door. E desto que assi fora e passara deu testemunho, jurando sobre os livros das avangelhos, segundo é conteudo em uum estromento, feito por Miguel Martiiz, tabaliam de Santarem, Orraca

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a dor acalmara completamente. Isto foi depois revelado claramente com completíssimos testemunhos e relatado em escrituras públicas; a senhora falava publicamente e dizia a quem quisesse ouvir que tinha sido libertada de gravíssima doença, de uma forma miraculosa, por intervenção da rainha.204

Vaasquez, dona de Santarem, que era molher de boa vida e nunca quis casar e guardou a Deus sua virgiindade e, por de boa vida que era e de bõo entendimento, fiava dela a rainha e sabia antre os segredos. E este meesmo testemunho derom donas daquel moesteiro de [A]chelas.

204

Costumava a Rainha, frequentemente, tratar de mulheres doentes, alimentando-as, lavando-lhes as feridas, fazendo curativos, sem qualquer repulsa. Numa ocasião, numa sessão de lava-pés, na Quaresma, em Quinta-Feira Santa, D. Isabel lavou, beijou e curou o pé ulcerado de uma mulher pobre e doente, contra a vontade desta, que se mostrava muito envergonhada e constrangida; o pé ficou curado, sem feridas. Perpiniani, De Vita, pp. 210-212 Certa Quinta-feira daquela semana que merecidamente os nossos antepassados, por causa da magnitude e santidade dos mistérios que então se celebram, quiseram que fosse designada Maior, lavava ela os pés de mulheres doentes de lepra. Aconteceu que uma desse número tinha um pé quase todo comido por um cancro, de modo que pouco faltava para que lhe caíssem dois dedos. Isabel, depois de lavar aquele que estava bem tratado (com efeito, a envergonhada mulher apresentara-o primeiro), mandara colocar o outro na bacia, para o tratar da mesma forma. Mas ela, consciente do mal latente e da horrível deformidade, ocultava-o cuidadosamente; dizia que aquele pé não convinha minimamente ser tocado pelas mãos da Rainha, nem ser visto pelos seus olhos. Estava presente Urraca Vasques, como costumava estar em situações desta natureza; ordenou-lhe a Rainha que ela própria colocasse o pé da renitente na bacia. Assim que a ordem foi cumprida, espalhou-se de repente um odor tão desagradável e terrível, que todas as criadas da Rainha, até a que colocara o pé, como não pudessem suportá-lo e sentissem agitar-se muito gravemente com a repugnância, saíram dos aposentos com toda a celeridade; apenas permaneceu Isabel que teve um espírito tão forte que não se horrorizou com a ferida pútrida; que teve tanta piedade que desejou prestar

Lenda, pp. 1377-78 A rainha, segundo escrito é, lavava em cada uum ano em dia da Cea do Senhor a certas molheres os pees. E, seendo em aquel tempo ainda elrey D. Dinis vivo, aveo que antre aquelas mulheres andava uma que tiinha uum pee comesto de cangro, a que queriam caer os dedos, e esta molher nom queria poer no bacio senom uum pee e encobria aquel comesto, e a rainha disse, des que lavou [a] ela uum pee: – Amiga, poede o outro em [n]o bacio. E a pobre disse: – Senhora, nom é para lavar. E a dita rainha disse aa dita Orraca Vaasquez que posesse em [n]o bacio o pee daquela pobre e esta Orraca Vaasquez fez[e]-o assi. E dizia, quando viira Orraca Vaasquez o pee daquela pobre assi comesto, e outras, que ali tragiam augua pera lavar os pees aaquelas pobres, que se anojarom e tirarom a fora, e que a rainha que lhe lavara aquel pee mui sem nojo e guardando pera nom lhe lastimar e depois que lho alimpou com as toalhas e lho

204 Rui de Pina também conta esta cura miraculosa, na Chronica DelRey Dom Diniz, p. 231, bem como as Crónicas dos Sete primeiros Reis de Portugal (Crónica do rei D. Dinis, cap. IV), p. 15.

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cuidados médicos dentro das suas possibilidades; tanto zelo e ardor que não hesitou em tratar com as suas mãos aquilo de que as suas criadas nem podiam sequer suportar o aspeto. Aproxima-se cheia de sentimento de dever, cheia de piedosa dor; ajoelha diante da infeliz mulher; aquece, com água quente, o que já não é um pé, mas uma chaga perpétua e horrenda, e, assim, suavemente e com doçura, com os dedos, toca suavemente e limpa, para que o curativo e a tarefa não provoquem dor. Finalmente, beija a chaga, cujo odor simplesmente parecia intolerável. Grande é, sem dúvida, grande é a vontade divina! Grande e ilustre é a graça dos bons junto de Deus! Aquele mal pestífero e incurável, que derrotara facilmente o esforço e a arte de todos os médicos, esgotara as lojas de todos os farmacêuticos, foi finalmente expurgado e curado do mal com um beijo! Não sentiu logo a mulher a obra divina. Voltou para casa e como nenhuma dor a afligia, como antes, destapou o pé, inspecionou-o e encontrou-o intacto, completamente sarado da ferida. E testemunhou publicamente que, desde esse dia, não voltara a sentir nenhuma ferida, nem nenhum mal; e, ainda que antes se admirasse a humildade e piedade da Rainha para com os homens, de seguida começou a admirar-se uma força nova e um poder concedido de forma divina para curar.205

beijara em aquel cangro. Esta molher, des que ali comeo, tornou-se pera aquel logo u se colhia e achou-se sãa e guarida do pee e disse, que, des que a rainha em aquela praga beijara, que no pee nunca mais sentira door, e achara sãa a dita Orraca Vaasquez e dona Catelina, madre de D. Lourenço, bispo de Salamanca, que o jurarom aos avangelhos e que viirom aquela door aaquela molher e que a viirom assi curada.

205

Em determinada Sexta-Feira Santa, a Rainha tratava de leprosos; como um deles se atrasava a sair dos aposentos onde entrara com os outros, às escondidas do rei e dos guardas, foi ferido na cabeça por um destes. S. Isabel tratou-o, colocando uma clara de ovo sobre a ferida; quando foram saber novas dele, dias depois, encontraram-no curado.

205  Rui de Pina, na Chronica DelRey Dom Diniz também o conta (cap. II, p. 231-232) bem como as Crónicas dos sete primeiros Reis de Portugal (Crónica do rei D. Dinis, cap. IV, 16-17)

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Perpiniani, De Vita, pp. 209-210 No final da Quaresma, certa Sexta-feira que, de direito, os nossos antepassados chamaram Santa, pela sua singular religiosidade, estava Isabel em Scalabis, que é uma cidade situada na margem do Tejo, a cerca de 56 mil passos de Lisboa, e porque fica junto do rio onde foi descoberto o corpo de Santa Irene, vulgarmente e por corruptela, se designa por Santarém. Foram, então, reunidos, como era prática habitual, alguns leprosos e introduzidos num certo quartinho do palácio, às escondidas; a maior parte deles, confortada pela ação e bondade da Rainha, partiu; mas um, mais atrasado que os restantes, como a força da doença o afligisse com mais intensidade, permaneceu sentado por um pouco no aposento régio. Eis que chega o porteiro, feroz e inoportuno, que, desconhecendo toda esta situação, perguntou: “– Mas como, homem insolente?! Ousas entrar nesta casa real, com esse corpo, essa peste impura?! Quiseste, com esse teu espírito contaminado e repulsivo, soprar sobre todos nós o mal mortífero?!” Enquanto berrava estas palavras, pegou no bastão e bateu, com suprema força e ferocidade desumana, na cabeça do homem miserável, consumido por doença incurável, uma vez que ele mal se podia mexer. O infeliz caiu aos pés do homem, depois de receber esta ferida; jazia lamentando-se e queixando-se de dor e, como o sangue lhe enchesse a cara e os olhos, arrependia-se de ter vindo: não sabia o que fazer, nem tinha para onde se voltar. Urraca Vaz, senhora muito próxima da Rainha, pelo zelo na devoção, viu a indignidade desta má atitude e apressou-se, correu, expôs o que acontecera. Condoeu-se Isabel com a desgraça do pobre homem inocente; mandou-lhe que o levasse aos seus aposentos; para aí se dirigiu também e foi ela própria, com as suas próprias mãos, que colocou uma clara de ovo bem batida, embebida numa estopa, sobre a ferida; depois de lhe dar esmola, mandou-o embora para casa. No dia seguinte a estes acontecimentos, porque sabia que a ferida era grave e perigosa, enviou quem lhe perguntasse como estava; ele respondeu que, quanto a si, estava ótimo, e que, quanto à cicatriz, depois de ter sido feito o curativo pela Rainha, sarara de imediato. E, assim, o mal que a ferocidade do criado régio fizera, curara-o a clemência da própria Rainha, bem como as suas excelentes preces junto de Deus.206

Lenda, pp.1378-79 Em uum dia de quareesma, que era sexta feira maior, esta rainha, querendo fazer piedade aos gafos, fez poer dentro nos seus paaços em Santarem ascondudamente em uma camara de gafos, pera fazer a eles esmola e piedade por amor de Deus e pera os servir ao comeer, e depois, poendo-os fora daquel logar, ficou uum, que nom podia, por enfermo que era, tam cedo partir como os outros, e uum porteiro, que nom sabia daquelo parte, achou-o e ferio-o com o pao em na cabeça, dizendo que gafo nom era pera entrar em paaço da rainha. E aquela Orraca Vaasquez, que sabia que o gafo veera, e quando lhe vio o sangue sair da cabeça, ouve del door e disse-o aa rainha, e a rainha disse a esta dona que o fezesse levar pera a pousada desta dona, e a dona feze-o assi e, des que ali foi, veo a rainha veer e pos por sa mão em aquela chaga uma clara d’ovo e mandou dar a ele dinheiros pera pensar de si e foi-se. Outro dia, porque o gafo parecia mal ferido da chaga, mandou a rainha saber como lhi ia e achou-o são e guarido da chaga, dizendo o gafo que, depois que a rainha pensara da chaga e que a fezera catar, (e) que se nom doia e (que) achou a chaga çarrada e sãa. E esto disse esta Orraca Vaasquez per juramento que fez aos avangelhos, preguntada per [l]o bispo de Lixbõa, que assi passara.

206

206 Contado entre os milagres da Rainha, este episódio é por alguns estudiosos visto como prova da sua grande cultura, revelando-a detentora de conhecimentos médicos tais que conheceria o efeito da clara do ovo no processo da cicatrização das feridas (vd. Rodrigues (1958), p.134; e 1982, p. 36 e seguintes). Rui de Pina, na Chronica DelRey Dom Diniz, também o conta (cap. II, p. 231) bem como as Crónicas dos Sete Primeiros Reis de Portugal (Crónica do rei D. Dinis, cap. IV), p. 16.

223

Uma das donas de sua casa, Urraca Vasquez, senhora da sua maior confiança, queixou-se a certa altura de sofrer de uma dor e desmaios e pediu o seu auxílio; ela fez o sinal da cruz, sobre o local da dor e a cabeça, e D. Urraca curou-se. Este episódio revela a crença no seu poder taumatúrgico, ainda durante a sua vida. Perpiniani, De Vita, pp. 258-259 Morto o genro207, os reis deslocaram-se a Miróbriga para visitar Constança e para a consolar na sua dor. Seguiu-os Urraca Vasquez, à qual já acima fizemos frequentes referências, que, pelo seu empenho e amor das questões celestes, consagrara a sua castidade a Deus, e, pela sua reputação de virtude, era íntima de Isabel. A esta, repetidas vezes, subitamente, invadia-a uma dor tão forte que por muito tempo jazia estendida, sem consciência e sem sentidos, uma vez que não podia alimentar-se nem falar. Muitos médicos se tinham esforçado repetidamente em vão por debelar tão grave doença. Quando estava em Miróbriga, de repente, a habitual dor atacou a infeliz senhora; quando respirou e voltou a si, um pouquito recomposta, a Rainha visitou a sua criada, ou melhor, a companheira e aliada das suas decisões. Ela não ignorava como a Rainha vivia de forma santa e religiosa e disse: “– Vês? Vês, Rainha, como sou atormentada e torturada tantas vezes e tão penosamente? Reza a Deus, peço-te, para que, se Lhe parecer apropriado, me devolva a firmeza da saúde, ou mande partir a sua serva deste caos, para a assembleia dos bem-aventurados. É preferível morrer, com efeito, a suportar esta dor com tanta vergonha”. Comoveu-se o humaníssimo coração da rainha, com o triste aspecto e pedido desta mulher, sua servidora. Reza a Deus para que Ele próprio socorresse com a Sua bondade dor tão insuportável e que tivesse piedade de uma mulher tão honesta e tão religiosa; de seguida, tocando levemente a cabeça e o restante corpo com a mão, faz o sinal da cruz salvadora. É maravilhoso dizer-se: aquela que antes era frequente e tão gravemente oprimida e achacada, a ponto de não parecer estar muito longe da morte, desde esse dia nunca mais sentiu qualquer dor. E isto testemunhou-o publicamente ela própria.208

Lenda pp. 1379-80 Esta Orraca Vaasquez disse per juramento aos avangelhos que, em tempo que elrey D. Dinis e esta rainha foram a veer a rainha de Castela, dona Costança, sa filha, depos morte delrey D. Fernando, a Ciidad[e] Rodrigo, que ela per tempo avia uma door que de tempo a ela recodia, e, quando a ela viinha, que se lhe tolhia o comeer e a fala e esmorecia em tanto que [lhe] legavam os pees e as mãos com cordas e que lhe [poinham os] fisicos meezinhas e nom [n]a podiam daquela door curar, e a rainha, acordando esta Orraca Vaasquez daquela enfermidade, que a fora veer, e esta, conhecendo em como viia esta rainha continuar em serviço de Deus, que lhe dissera: «Senhora, pedide a Deus mercee por mim, que me cure desta door ou me tire deste mundo, ante que padecer [tam] estranha door e tanta vergonça», e disse que a rainha se doera dela e fez a Deus sa oraçom e pos a ela mão pe[r l]a cabeça, e per [l]o corpo, fazendo o sinal da cruz, e ficou guarida em tal guisa que dali em diante nunca aquela door sentio, e soia-lhe a recudir a meude.

207208

207  D. Fernando IV morreu em 1304, muito pouco tempo depois do encontro dos reis peninsulares em Tarragona. 208 Este é outro milagre atribuído à Rainha, ainda em vida. Também está em Rui de Pina, Chronica DelRey Dom Diniz, cap II, p.232, e Crónica de D. Dinis das Crónicas dos Sete Primeiros Reis de Portugal, cap. IV, p. 17.

224

Em momento indeterminado, indo a Rainha de Coimbra para o Porto, foi abordada por uma mulher, em Arrifana, que lhe pedia que curasse a cegueira de sua filha, e a menina obteve a cura. Perpiniani, De Vita, pp. 290-291 Certo dia, a Rainha partiu de Coimbra e foi à cidade do Porto, a Arrifana, uma povoação que dista quinze mil passos da cidade. Saiu-lhe ao caminho uma certa mulher frágil e rústica; trazia consigo uma filhinha cega, que dizia ser assim de nascença; não ignorando a fama de santidade de Isabel e, ao mesmo tempo, pensando quão numerosas e grandiosas coisas se conseguem pelas preces dos homens de excelente virtude, suplicava-lhe que apenas tocasse os olhos da menina com as suas mãos; esperava que, com este ato, pudesse facilmente curar-se a cegueira. Ela, apesar de evitar o aplauso e o louvor populares, que são os maiores inimigos da virtude, todavia, como era amável e humana, vencida pela súplica e por compaixão pela menina, como se fizesse outra coisa, cedeu à vontade da mãe.(...) Com efeito, poucos dias tinham passado quando a santíssima Rainha voltou ao mesmo lugar; exultante e rejubilando de alegria, acorre a mãe com a sua filhinha; mostra a menina com os olhos sãos e perfeitamente preparados para cumprir a sua missão; agradeceu muitíssimo por tamanho benefício, num discurso rude e pouco polido, mas com grande emoção e simplicidade, com expressão de um espírito não medianamente grato a Isabel. Isabel explica que era a Deus e não a si que se devia tamanho benefício; era a Ele que se deviam dar eternas graças; a Sua grandeza e a Sua bondade é que deviam ser louvadas, pois era nas Suas mãos que tudo estava colocado; ela tocara os olhos da menina, mas fora Deus que devolvera a luz. Manda-a esconder o caso, com o seu silêncio, não falar de si a ninguém e, para mais facilmente atingir os seus objetivos, oferece-lhes roupa, a uma e a outra, e, enquanto viveu, não permitiu que o que ali acontecera fosse lembrado publicamente. Porém, muitos dos seus criados tiveram o conhecimento certo não só de que a menina nascera cega, mas também de que, com o simples toque da rainha, passara a ver, pelo que, assim que ela morreu, disseram-no testemunhando sob juramento

Lenda, p. 1380 Viindo esta rainha de Coimbra pera a ciidade do Porto, recodio ao caminho uma molher em uum logar a que dizem Arrifana e pedio-lhe por mercee que posesse as mãos em nos olhos de uma moça, sa filha, que dizia que era cega de nacença. Esta rainha lhe pos as mãos em [n]os olhos e, tornando aaquel logo a rainha, recodio aquela molher com aquela moça, a que Deus dera já vista, e mostrava, e a rainha mandou se calasse e esto que o nom dissesse. E, pera se calar, mandou aa madre e aa filha dar de vestir. Esto virom e passarom muitos da casa da rainha, e que souberam por certo que aquela moça era cega de nacença e que em aquel dia em que a rainha posera as mãos e recebera vista. E a rainha em sa vida nom quis consentir que lho dissessem.

Retomam-se, depois desta passagem pelas curas obtidas por intervenção directa da Rainha, estando ainda viva, os milagres após a sua morte, ligados ao monumento da sua sepultura. Um cónego regrante, Afonso Martins, pediu por sua mãe cega e obteve a graça da sua cura.

225

Perpiniani, De Vita, pp. 374-375 A aproximadamente três mil passos de Coimbra, do outro lado do rio, na margem esquerda, há um mosteiro consagrado a S. Jorge, que, em anos anteriores, os religiosíssimos varões da ordem de Santo Agostinho, chamados Canónicos, tinham obtido. Um deles, de nome Afonso Fernandes, à sua mãe, que levara, cega, ao túmulo de Isabel, reconduziu-a a casa vendo perfeitamente.

Lenda, p. 1380 Em Coimbra avia uum coonego regrante do moesteiro de S. Jorge, a que diziam Afonso Fernandez, e tinha sa madre cega, e fez[e-a] ali trager aa sepultura desta rainha, e veo cega aaquel logo e partio dali com sa vista; esto foi notorio na ciidade de Coimbra.

Muitos outros, não nomeados, sofrendo de variados males, dirigiram-se à sepultura e partiram dali curados. Perpiniani, De Vita, p. 378 Muitos outros, para além destes, naqueles tempos, ora afetados por diversas e graves doenças, ora dominados pelos demónios, afluindo ao Mosteiro da santíssima Rainha, voltaram para casa, recebida a cura, alegres e risonhos. Longo seria, com efeito, prosseguir a narração de quantos e quão grandes benefícios os homens alcançaram de Deus, pai das coisas, por intermédio de Isabel; os que acompanharam a sua vida consideravam completamente digna aquela a quem tanta honra é atribuída por ele.

Lenda, p. 1380 Muitos omeens [veem] aaquela sepultura, uus enfermos de quartãa em tempo de inverno, e outros enfermos de desvairadas enfermidades, tangidos do demonio, que partem dali curados, de guisa que longo seeria de contar as mercees que Deus faz a muitos por esta rainha. E teem todos os que a sa vida virom que merecido o tinha ela a Deus.

Uma mulher, que não via nem sabia nada do filho havia muitos anos, pediu à Rainha a graça de poder vê-lo antes de morrer e a graça foi-lhe concedida. É uma graça que com toda a esperança se podia solicitar a uma Rainha que fora, durante a sua vida, uma mãe exemplar na proteção dos seus filhos, que costumava pedir a Deus que, à hora da sua morte, lhe concedesse a ela a graça de estar acompanhada de seu filho (uma vez que a filha morrera havia muitos anos) 209.

209  Segundo

o relato da Lenda, pp. 1362-63: E, seendo em aquel dia depos Vesperas departindo com elrey seu filho, e nom cuidando [os] fisicos que per aquela door sa morte acerca fosse, disse a elrey que se fosse a cear, e elrey disse que já ceara. E saio-se elrey da camara e os fisicos com ele, que i estavam. E, estando elrey ante a porta da camara, a rainha saio-se da cama e encostou-se a ela e começou de esmorecer. Aqueles que em [n]a camara estavam derom vozes a elrey. Tornou aa camara elrey e, tomando-a per [l]as mãos e beijando-as, acordou a rainha daquel esmorecer e veo a falar com elrey em como esmorecera e

226

Perpiniani, De Vita, p. 375 Em Taveiro, povoação que fica na região de Coimbra, um pouco acima do templo de S. Martinho, uma certa mulher, com saudade do filho ausente, acerca do qual não sabia se era vivo ou morto, não suportando a saudade, suplicou com lágrimas à Rainha que, se por acaso ele estivesse vivo, lhe fosse permitido fruir da sua presença, antes de partir desta vida. O jovem estava afastado da casa paterna cerca de cento e vinte mil passos; o seu espírito, de repente, começou a inflamar-se com tanta preocupação e tanto desejo de ver a mãe, que não pôde ficar parado por mais tempo naquele lugar. Voltou a casa, ainda não tinham passado oito dias após aquele em que ela solicitara o seu regresso à Rainha. Foram ambos ao túmulo, para agradecer.

Lenda, pp. 1380-81 Em Taaveiro acerca de Coimbra avia uma molher que avia uum filho, avia tempo que partira de sa casa, e nom sabia parte se era morto, se vivo, e pedio a esta rainha que, se vivo era, que lhe gaanhasse de Deus mercee pera o veer, ante que morresse. E o filho morava alongado daquel logo bem por triinta legoas e disse que lhe veera cuidado tam grande pera se viir que verdadeiramente parecia a el que abafava, se em aquel logo mais se detevesse. E chegou a casa de sa madre antes dos oito dias, des que esto aa rainha pedira. E a madre, veendo a mercee que a ela, que estava desejosa por seu filho, Deus fezera em [n]o trager a sa casa, veo o filho com ela aaquel logar u o corpo da rainha jaz soterrado, conhecendo e dando graças a Deus por [l]a mercee que entendia que a ela Deus fezera per esta rainha.

Em Évora jazia um homem moribundo, por causa de uma sanguessuga; já tinha preparada a mortalha e o funeral, já quase se lhe fazia o velório, quando alguém lhe lembrou que se encomendasse à Rainha; fê-lo com voz sumida e foi curado, já in extremis. Perpiniani, De Vita, pp. 375-376 Em Évora, em casa de Bento Peres, mercador abastado, um certo criado seu jazia semivivo. Efetivamente, uma sanguessuga, havia já quinze dias agarrada à garganta, bebia-lhe o sangue todo; inchara-lhe a garganta com muita intensidade e já havia dois dias que não podia falar nem comer. Como se acreditava que ele havia de morrer nesse mesmo dia, preparadas já e túnica, as tochas e os restantes acessórios necessários para fazer o funeral, João Anes, reposteiro-mor do rei, visitando

Lenda, pp. 1381-82 Em Evora em casa de Beento Perez, mercador, jazia uum seu omeem mui mal doente de uma samexuga que tragia avia quinze dias na garganta e nom [n]a podia aver fora e inchou-lhe a garganta tanto que avia dous dias que nom falava, nem comiia, e tiinha[m] mentes que aquel dia morresse. E tiinham-lhe aguisado pano e candeas pera o soterrarem. Em aquel dia Joan’Eanes de Curuche, reposteiro moor delrey, fora veer Lopo Estevez Gaviam, que morava apar deste Bento Perez, u jazia este

em razom da ifante Dona Leonor, sa neta, filha sua delrey, que ela muito amava, e em outros seus netos. E, assi falando, conhocendo seu acabamento, começou a dizer: Maria, mater gratiae, mater misericordiae, tu me ab hoste protege et hora mortis suscipe. Des i começou a dizer: Credo in Deum patrem, o símbolo dos apostolos, e des i o Pater noster e outras orações. E, em rezando, assi foi enfraquecendo [em] no dizer e falar que a nom podiom entender, e, assi rezando, acabou seu tempo. E, a alma saida do corpo seu, sem ajuda nenhuma se lhe cerrarom os olhos e a boca, e ali comprio a ela Deus o que ela a el por vezes pedira, que prouguesse a el que, quando ela comprisse seu tempo, fosse elrey seu filho i. E finou deste mundo [em] no castelo de Estremoz, quatro dias de julho, era de mil e trezentos e seteenta e quatro annos.

227

Lopo Esteves, vizinho de Bento Peres, perguntou o que pretendia aquela enorme multidão de gente à porta do mercador. Quando soube a causa de tanta afluência, disse: “Se o infeliz pudesse fazer votos, pela sua saúde, de que havia de visitar o monumento da Rainha Isabel, se melhorasse, sem dúvida que Deus, por ela, lhe mostraria algum remédio em tamanho perigo de vida.” Entretanto, jazia ele moribundo, com um aspecto medonho: as pálpebras mal fechavam e tinha os olhos em alvo; pensavam que estava prestes a expirar; aproximam-se algumas mulheres, aconselham-no a implorar mentalmente o auxílio da Rainha Isabel; quando ele, estendendo as mãos ao céu, deu sinal de pretender seguir essa recomendação, com uma tosse repentina, expeliu sangue; logo, levantando-lhe a cabeça aqueles que ali estavam presentes, como expulsasse a própria sanguessuga envolta em sangue pisado, naquele mesmo dia logo começou a falar.

omeem doente, e vio estar muita gente e preguntou que era e disserom que jazia i aquel omeem doente. E foi o dito Joan’Eanes disse: “Se este omeem ouvera tempo de se prometer aa rainha Dona Isabel que fosse u ela jaz, fezera-lhe Deus mercee por ela.” E o omeem jazia com os olhos em alvo, cuidando todos que queria espirar. E molheres que i estavam chegarom-se a ele e chamarom-[no] per seu nome e disserom-lhe que, se [se] encomendasse aa rainha Dona Isabel, (e) que lhe faria Deus mercee por ela. E el mui piad[os]amente alçou as mãos contra os ceos, e logo a ora começou de tossir e lançar sangue. E alçarom-lhe a cabeça, e lançou outro sangue pisado com a samexuga e logo falou em aquel dia. E filhou Estevom Martiiz, olhos de Gaviam, padre do dito Lopo Estevez, a samexuga em uum sendal.

Um outro caso em que foi solicitada a intervenção de Santa Isabel e se obteve a sua graça, foi a de um monge preso, havia anos, pelo abade de Alcobaça, para quem o sobrinho pedia a libertação; para além de doentes, cegos, ausentes, a intervenção da Rainha recaía também sobre presos, como se continuasse a cumprir as obras de misericórdia, como durante a vida empenhadamente fizera: Perpiniani, De Vita, p. 376 Mais, no ano de 1335 da era de Cristo210, um certo monge cisterciense da abadia de Alcobaça, lançado na prisão, como ia já no quarto ano e não conseguia qualquer ajuda por cartas e rogos de varões importantes, com o socorro da mesma Rainha, no espaço de um mês após lhe ter sido formulada a súplica, foi libertado.

Lenda, p. 1382 Aconteceo que o abade de Alcobaça tiinha preso uum seu monge em uma torre muito escura, em que foi preso por quatro anos, e uum seu sobrinho, a que diziam Ruy Martiiz [e] era natural de Santarém, (e) trabalhou per rogos de senhores pera o livrar da dita prisom e nunca o fazer pode. E, ouvindo em como Nosso Senhor fazia muitas mercees per esta rainha, veo a pedir a ela e feze-o saber ao monge que lhe pedisse que lhe ganhasse de Deus mercee pera sair livre daquela prisom. E a petiçom feita em [n]o mes de março da era de 1373, aos dezassete dias do dito mês o livrou da dita prisom; trouxe-o aquel seu sobrinho a este logo, u a sepultura da dita rainha era, e aa dona ofereceu sas ofertas E desto todo como se soube per juramento aos avangelhos á i estromento, feito per Martim Estevez, tabaliom de Coimbra.

210

210 A data está errada, já na Lenda, pois neste ano a Rainha ainda não tinha morrido (Nunes (1921), p. 1382); com efeito, o episódio narrado na Lenda, que Perpinhão não relata

228

Alguns milagres referidos na Lenda são acrescentos posteriores à redação inicial. É o caso dos que se seguem. Uma mulher de Lamego, possuída por demónios, tendo-se já libertado de alguns, em muitas romarias e igrejas que visitara para esse fim, dirigiu-se ao mosteiro, para se ver livre dos sete restantes; pernoitando junto do monumento da sepultura, de manhã, viu-se livre deles. Perpiniani, De Vita, p. 377 No ano de 1382, a 18 de Abril, uma certa mulher de Lamego chegou a Coimbra; como era atormentada por muitíssimos demónios, dizia ter-se visto livre de alguns, depois de ter empreendido e executado de forma devota muitas peregrinações; mas que tinham ainda ficado sete que afirmaram que não haviam de a deixar antes de ela ir à capela onde jaz a Rainha. Acompanhavam a sua parente dois frades da ordem de S. Francisco, os irmãos Estevão e Francisco; com estes, um grande número de homens e mulheres conduz a infeliz mulher ao túmulo; passam toda a noite acordados, rezando a Deus e implorando a fé de Isabel. Eis que, ao amanhecer, os demónios, como era costume, com uma grande força, agitam a mulher oprimida; expulsos e postos em fuga pelas orações dos presentes, por obra da Rainha, deixaram-na livre para sempre. Chamadas Beatriz Pimentel, que então presidia aos destinos do Mosteiro, e todas as outras freiras impressionadas pela recordação e visão de tamanha situação, com as restantes, agradeceram a Deus, alegrando-se por tamanho benefício.

Lenda, pp. 1383-84 Na era de Cesar de 1420 anos, no moesteiro de Santa Clara de Coimbra, aos dezoito dias do mês de abril, chegou uma molher, que dizia que era natural de Lamego, a qual avia door de demonio e dizia que ela ouvera em si tantos demonios quantos dias á no ano e per virtude de muitas romarias que andara, assi em Portugal, como em Castela, a leixarom todos, sacando sete, que lhe disserom que a leixariom na capela donde jazia o corpo da rainha santa, Dona Isabel. E andavam com ela dous fraires de S. Francisco, que eram seus parentes, convem a saber, ambos irmãos, naturaes de Santarem, per nome chamado uum Frey Francisco e outro Fr. Estevo, e chegarom aa capela onde jazia o corpo desta santa rainha, jouverom aquela noite estes fraires e outros muitos omeens e molheres, moradores no dito moesteiro de Santa Clara, e[m] nos paaços que a dita rainha [fezera] em sa vida (…). E, quando veo per [l]a manhãa, a molher tomarom os emmigos, como aviam em costume, [e] logo derom o sinal nas mãos daqueles fraires, presentes todas estas testemunhas e outras muitas que nom som nomeadas. Foi i logo chamada a abadessa, Dona Beatriz Pimentel, com todas suas freiras a veer aquel miragre e maravilha que Deus fezera em aquela molher per virtude desta rainha santa em tirar sete demonios do corpo daquela molher pecador Deus aja graças e louvores.

na totalidade, talvez por perceber alguma incongruência, refere a deslocação dos beneficiados à sepultura da Rainha, que, àquela data, ainda não tinha morrido. Perpinhão não menciona a deslocação à sepultura (onde D. Isabel anda não estava, nessa data); parece colocar a resolução do problema na diplomacia e intervenção real de rainha, junto de entidades competentes para o efeito.

229

Finalmente, conta-se ainda, na Lenda, também num acrescento posterior, o caso de uma freira a quem nascera uma excrescência na palma da mão, que lhe caiu quando se encomendou à Rainha. Perpiniani, De Vita, pp. 377-378 Dezoito anos depois, uma das freiras que viviam naquele Mosteiro, cuja mão direita tinho um mal de impingem, um género de doença muito grave, foi auxiliada por graça da santíssima Rainha, junto do criador do mundo. Com efeito, como lhe oferecesse uma mão de cera, um pequeno presente, mas de grande piedade e fé, dentro de vinte dias, o mal tornou-se mais negro que o pez e caiu espontaneamente sem que a moça o sentisse; isto, que foi revelado e provado junto de Catarina, nobre senhora que, então, quis o acaso que governasse aquele convento, e das restantes freiras, inflamou intensamente os entusiasmos de todas.

Lenda, p. 1384 Outro miragre fez esta rainha santa beedita na era de 38 anos, quinze dias do mês de setembro. Naceo a uma freira moça na palma da mão dereita uma espungem, tamanha como uma mea de fava, e doia-lhe e fazia-lhe grande nojo o empacho aa mão; ofereceo-se a esta rainha santa com uma mão de cera; certa cousa foi e provada ante a abadessa Dona Catelina e todas suas freiras que ante de viinte dias a espungem tornou negra como pez na palma da mão que nacera, e caio que a moça nunca a vio, nem na sentio, quando caio. Deus aja graças e louvores por este milagre e por outros muitos que Deus fez e cada dia faz pelos seus merecimentos desta santa rainha beendita.

A Vida editada pelos mordomos da Confraria conta igualmente todos estes milagres, à excepção do último, ordenando-os da mesma maneira, e acrescenta-lhes, não só os mais recentes, dos quais havia documentos escritos, no cartório e na posse da abadessa de Santa Clara, ou testemunhas, mas também alguns ocorridos ainda em vida da Rainha, que não constam da Lenda, mas estão referidos nas Crónicas de Rui de Pina e nas Crónicas dos Sete Primeiros Reis de Portugal. Perpinhão tomou conhecimento deles pelas mesmas vias, não por ter consultado a Vida. É comum aos dois textos contemporâneos, por exemplo, o relato da queda das ruínas do paço que D. Isabel mandara construir junto do mosteiro de Santa Clara, para aí se alojar, que ocorreu a 23 de Fevereiro de 1559, sem que, milagrosamente, matasse ou ferisse os muitos servidores e crianças que ainda ali se encontravam. A versão de Perpinhão é, como se pode ver, muito mais completa:

230

Perpiniani, De Vita, pp.308-309 Ainda não estava inteiramente construída aquela casa de Santa Clara, que dissemos ter sido instalada junto de Coimbra, na margem do Mondego. Por isso, fosse para apressar mais essa obra e para a acabar com maior rapidez, como desejava, fosse para poder visitar com mais frequência aquela comunidade de santas mulheres, vivendo mais perto, e para lhe ser permitido deleitar-se amiúde com os seus santíssimos costumes, mandou construir uma casa, para si e para os seus, a montante do rio, um pouquinho afastada do convento, para ser concluída em poucos meses. Foi esse quase uma espécie de sepulcro para Isabel, vivendo ela ainda, ao qual de tal forma se acolheu no fim da velhice que, quanto mais vivia em Deus, tanto menos era vista e, em verdade, se julgaria estar completamente morta e sepultada para as coisas humanas e para as vaidades desta vida.211 Esta casa permaneceu de pé até à nossa época, durante cerca de duzentos e trinta e três anos, e de algum modo sucedeu que, graças ao cuidado e providência de Deus, não ruiu tão insigne monumento da sua religiosidade e santidade, antes de ser imortalizado pelas letras de muitos. Pelo que, em verdade, durante todo esse tempo, existiu aquele abrigo para os homens pobres e desgraçados, para onde eles corriam a abrigar-se das injúrias do céu, suficientemente aberto e muitíssimo oportuno, de modo que, aqueles que ela, vivendo, protegera com todo o zelo, a esses, de igual modo, depois de morta, oferecia um porto de abrigo. No ano de Cristo Salvador de mil quinhentos e cinquenta e nove, tendo todo este facto sido, por nós, trazido à luz, no verão anterior, numa outra oração sobre os feitos da Rainha, antes de se ter dito a terceira, que foi a última, no começo da Primavera, na noite que antecedeu o feriado de S. Matias, por estar não só consumida pela decrepitude por ninguém restaurada, mas também abalada com as abundantes e frequentes chuvas do último inverno, sem inquilinos, ruiu, em grande parte, como se soubesse que, por um lado, desempenhara completamente a sua tarefa, e, por outro, sentisse que albergava habitantes outrora queridíssimos a Isabel.212

Vida dos Mordomos, p. 55 Na era de 1559, aos 23 dias do mes de Feuereyro antes da meya noite cayrã parte dos paços que a gloriosa raynha mandou fazer, & debaxo estavã muytos seruidores do mosteiro de sancta Clara & sancta Ysabel, e azemelas, & crianças que ficarã dentro. E milagrosamente com cayrem nam empeco em cousa alguma.213

211212213

211  Vd.

nota 159.

212  Perpinhão

residia em Coimbra, nessa data, e teve conhecimento pessoal desse acontecimento; aqui, a sua fonte é o seu próprio testemunho presencial. A derrocada ocorreu em 23 de Fevereiro de 1559, como refere, entre as suas duas últimas orações de sapiência: a segunda, de 1558, e a terceira, de 1559, que ainda não tinha sido pronunciada. Também a Vida dos mordomos se lhe refere contando o facto como um milagre, por se terem salvo todos os que se abrigavam no local, como, de resto, também refere Perpinhão. Com esta datação, Perpinhão situa a contrução desta casa régia no ano de 1326. Nas recentes escavações arqueológicas pouco se encontrou desse edifício, à excepção de duas janelas no muro da cerca. Pode ver-se uma reconstituição hipotética dessa construção em Macedo (2006), p. 861. 213  Vida

(1560), p. 55.

231

Com efeito, na véspera desse dia, abrindo fendas, tal como antes de uma ruína anunciada, deu sinal a todos para que partissem para outro lugar, antes que fossem esmagados; mas, um rapaz que permanecera sozinho com um burro, nos aposentos interiores, como as traves se erguessem como que voluntariamente do solo para a outra parede que estava de pé, à maneira de uma grade, e sustentassem o peso do teto a ruir, de tal forma suave o recebeu que, ao limpar-se logo o lugar, graças à rápida diligência de muitos, foi tirado coberto de pó, é verdade, mas completamente intacto, ele que todos suspeitavam estar completamente esmagado. Sem dúvida que, embora os tetos mudos e sem alma carecessem de sentidos, existia, todavia, e vigorava ainda a divina força daquela a cujas, não só vontades, mas também sinais, eles se submetiam.

No mosteiro de Celas, em meados do século XVI, residia uma freira, Ana de Azpilcueta, tolhida das pernas, que encomendando-se à Rainha, ficou curada, na véspera da sua festa; este facto foi divulgado e celebrizado por seu tio, o canonista Martim de Azpilcueta Navarro. Este milagre, bem como os seguintes, já não está na Lenda, mas provavelmente na documentação então na posse da abadessa, que Perpinhão consultou. A Vida editada pelos mordomos, também o refere. Terá sido desta graça obtida que resultou o ex-voto guardado no Museu Machado de Castro, mandado fazer por Martim de Azpilcueta Navarro, em agradecimento; é provavelmente a esse quadro que se refere Perpinhão, ao contar milagre das rosas (vd. supra). Perpiniani, De Vita, pp. 380-381 Existe perto de Coimbra um Mosteiro consagrado a Santa Maria, a que deram o nome da povoação, Celas, com grande frequência de freiras da ordem de S. Bernardo. Era abadessa desse convento Maria de Távora, ilustre não só pela virtude, mas também pela linhagem, quando Ana Azpilcueta, que se contava nesse número, jazia havia já muito tempo tolhida das pernas, com os nervos tão enfraquecidos, que não podia transportar nada, nem caminhar por si própria; nenhum remédio dos médicos mais industriosos foi esquecido, mas a arte foi vencida pelo mal e deixou toda a glória da restituição da saúde, primeiro, a Deus e, depois, à santíssima Rainha. Aproximava-se, nesse ano de 53 desse século, o dia de Santa

232

Vida dos Mordomos, p. 55-56 Sendo abadessa do mosteiro de nossa señora de Celas a illustre & muyto virtuosa senhora dona Maria de tavora, huma religiosa deste seu mosteiro chamada Ana de Azpilcueta, esteue muyto tempo tolhida das pernas, de maneira que não podia andar mais de quanto a traziam. E vindo a festa da bem aventurada Raynha sancta, estando á noyte sua mestra rezãdo as matinas, lhe decraraua os milagres da gloriosa Raynha, dizendolhe que se encomendasse a ella com deuação, o que ella parece que fez bem segundo a obra se mostrou. E despoys de dormir hum pedaço da noyte, sonhaua que lhe

Isabel e, na noite que antecedeu esse dia, a mestra da freira doente, recitando as orações matinais, que expunha os feitos que tinham sido realizados de forma divina por obra da Rainha, à ouvinte sequiosa e atenta, ao mesmo tempo, exortava a que ela, como suplicante, pedisse o seu auxílio; fê-lo com diligência e devoção, como mostrou o desfecho da situação. De seguida, apoderou-se dela, cansada dos seus males, um sono muito pesado; durante o sono, porém, através da visão, pareceu-lhe ouvir que alguém lhe ordenava que se levantasse, restituída a sua saúde por Isabel. Acordando subitamente, tremeram-lhe todas as articulações. Levantou-se da cama sozinha, não chamando ninguém; sentindo a presença do auxílio divino, vestiu-se e veio até ao coro, onde se cantavam as outras preces matutinas. Fácil é de conjeturar quanta foi a admiração de todas, quanta a alegria, quantas as lágrimas provocadas pela devoção da alma. Todo o caso foi exposto, em escrituras públicas, para que a antiguidade não causasse o seu fim, pelo empenho de Martim Azpilcueta Navarro, cuja notável prudência em direito pontifício trouxe grande luz a toda a Hispânia.

deziam que a Raynha sancta lhe daua saude, que se aleuantase. Em acordando deste sonho deulhe hum grande tremor em todo ho corpo, & alevantouse soo sem chamar ninguem, & achouse saã. & assi se foy ao coro onde estávamos cantando matinas, as quaes se acabáram com muytas lagrimas de deuaçã, dando muytos louuores a nosso senhor, & á bem aventurada raynha. Avianse feito a esta religiosa todos os remedios que em medicina se podiam achar, & nenhuma cousa lhe aproueytou, porque guardava nosso senhor esta saude pera a dar polas mãos desta señora. E disto se tomou logo hum estormento pubrico cõ testemunhas, que deue destar em sancta Crara, ou ho terá ho doutor Nauarro, porque esta religiosa he sua sobrinha, & elle ho mãdou tirar. E isto passou assi tudo na verdade, e por ser assi a sobredita senhora abbadessa, deu disso seu assinado.

Há ainda um outro episódio maravilhoso, ocorrido em vida de Santa Isabel, colhido das Crónicas de D. Dinis (a de Rui de Pina e a de 1419) segundo o qual, a Rainha, por estar doente, era aconselhada pelos médicos a beber vinho; como se recusasse a fazê-lo, sempre que tocava no copo da água, esta transformava-se em vinho. Perpiniani, De Vita, p. 203 Certa altura, estando em Ierábrica, que é uma cidade grande e rica, situada no território de Lisboa, a cerca de 28 mil passos da cidade (desde há algum tempo designada por Alenquer), de saúde débil e perdida, prescreveram-lhe os médicos aquilo que viam que pedia a natureza da doença, isto é, que bebesse um pouco de vinho. Ela, sentindo talvez que não era vantajoso para si, nem necessário para a cura da doença, disse que não o faria. É perfeitamente admirável o que vou dizer, mas nem difícil nem inusitado para Deus, o qual já outrora, na Galileia, participando num casamento, transformara a água num vinho excelente e suavíssimo, e não foi inútil para fazer valer a

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Rui de Pina, Chronica DelRey Dom Diniz, cap. II, 232 Estando ha Rainha em Alamquer muito doente de humores frios pera que os Fisiquos por meyzinha lhe mandavam bever vinho no puquaro porque bebia, ella ho nom quiz fazer, trazendolhe aguoa pera ella beber milagrosamente se tornou duas vezes vinho no puquaro porque bebia.

obra e arte dos médicos; por duas vezes os seus lhe trouxeram um pequeno pote de água, por duas vezes a água foi subitamente transformada em vinho, por vontade divina.214 214

O seguinte caso ocorreu também em vida de Santa Isabel: um moço de câmara do rei intrigou um moço de câmara da Rainha, insinuando que ela lhe tinha afeição; o rei preparou uma cilada para mandar matar o dito moço, mas, porque este tinha uma devoção incontornável e não faltava a uma missa, entrando na igreja sempre que ouvia tocar para ela, salvou-se, morrendo, no seu lugar, o moço do rei. Nem Perpinhão, nem os cronistas fazem menção desta ocorrência; apenas é relatado na Vida dos mordomos e na Crónica dos Frades Menores de Fr. Marcos de Lisboa; circularia, eventualmente, na tradição oral. Tendo a Vida dos mordomos saído a 15 de julho de 1560, os acontecimentos posteriores foram acrescentados em post-scriptum, ao passo que Perpinhão os incluiu no seu relato. Ana de Távora, freira do mosteiro de Celas, doente de um inchaço que lhe tolhera as pernas, a ponto de não caminhar, encomendou-se à Rainha, na véspera da sua festa, untou a perna com azeite da lâmpada que alumiava o seu sepulcro e ao outro dia obteve a cura, que foi atestada publicamente e até objeto do sermão de Diogo de Paiva, durante as festas. Perpinhão traduz e transcreve a carta enviada pela abadessa de Celas, Maria Távora, à abadessa de Santa Clara, Ana de Meneses, relatando o acontecido com Ana de Távora e acrescentando outro caso, ocorrido com a porteira do mosteiro, Joana Araújo:

214  Perpinhão encontrou este episódio maravilhoso, que não está na Lenda, em Rui de Pina (Chronica delRey Dom Diniz, 232) e na Crónica de D. Dinis inserto nas Crónicas dos sete primeiros reis de Portugal (p. 17), e serve para ilustrar a grande contenção da Rainha, que fazia mais do que o próprio Deus queria; com este fenómeno, Deus mostrava-lhe os seus limites.

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Perpiniani, De Vita, pp. 385 Ana Távora, uma das nossas, esteve todo o ano tristemente imobilizada com uma das pernas paralisada e sem ação; na verdade, a força deste mal, constrangidos os nervos da coxa, muito em breve afetara também a outra perna. São testemunhas os insignes médicos Jorge de Sá e Afonso Guevara, dos quais, aquele, na última primavera, lhe esticou um pouco os nervos e os músculos, com alguns remédios, mas não conseguiu que pudesse apoiar-se naquela perna, por um instante que fosse, uma vez que Deus reservava a Santa Isabel o corolário dessa cura. Ontem, nas orações vespertinas que em seu nome se cantavam, a doente foi transportada numa cadeira e todas nós, com o mesmo espírito, fizemos votos pela sua salvação, ainda que não merecedores de tamanho benefício. Na noite passada, tendo ungido a perna com o azeite que arde na lâmpada pênsil que está diante do altar da Rainha, seguiu-se uma grande dor para além do normal. Depois, ao amanhecer, a perna estalou com estrondo. Ela sentiu que estava curada; foi-nos anunciado quando cantávamos as orações da hora prima; chorando de alegria, corremos para ela. Como viesse juntamente connosco, com a perna bem firme, pelo seu próprio pé, para o templo, agradecemos a Deus por ela, diante do altar da santíssima Rainha.

Vida, p. 67 Porque no mesmo dia (4 de Julho de 1560) estando dona Ana de Tauora filha de Ruy Lourenço de Tavora & religiosa no mosteyro da Cellas muyto enferma, & de inchaços que lhe naceram na ilharga do baço se lhe encolheo a perna, que em nenhuma maneyra podia andar avia hum anno, & traziamna de huma casa a outra em huma cadeira ou ao colo. Na vespera da gloriosa Raynha se fez leuar ao coro em huma cadeyra, & se lançou no chão, em quanto se cantavão as vesperas, encomendandose com muyto fervor & devaçã a nosso senhor, pedindolhe saude per meyo da gloriosa Raynha sancta Ysabel. Acabadas as vesperas a tornaram a trazer em huma cadeyra a sua cama onde se deytou. Começoulhe a doer a perna muyto, a qual logo fez untar com ho azeyte da alampada da gloriosa sancta Ysabel, & na noyte teue grandes dores. Pela menhaã querendose vestir pera estar vestida sobre a cama, em se meneando lhe deu a perna hum grande estalo que lhe doeo muyto, e foy ouvido de huma religiosa que a acompanhaua, vendo o que era achou & sintio que a perna doente, que com a outra saã se nam igualaua estava tam comprida como a outra, de que lhe veyo hum tremor grande a todo ho corpo. A religiosa tanto que vio milagre tam evidente vayse com pressa ao coro a dizer ás religiosas que rezavam a terça como dona Ana era saã. (...). E daqui ficou sanissima. Do que tudo ho senhor bispo dom Ioaã Soarez bispo de Coymbra mãdou tirar hum estormento por ho doutor Sebastião de Madureyra seu prouisor.

Também Joana de Araújo, freira do mesmo mosteiro, que tinha muitas feridas na cabeça, que os médicos lhe diziam ser doença de fígado, untou as feridas com o azeite da lâmpada da Rainha e ao outro dia estava curada. Estes acontecimentos foram relatados na mesma carta pela abadessa e comunicados ao Bispo de Coimbra, dos quais se fez uma escritura pública. Perpiniani, De Vita, p. 384 Nesse mesmo ano, pouco antes do feriado de Isabel, naquele Mosteiro que dissemos chamar-se de Celas, a porteira, de nome Joana de Araújo, mostrara a Afonso Guevara, médico reputado, a sua cabeça

Vida, pp. 73-74 No mesmo mosteyro Ioana Daraujo freyra professa & porteyra delle foy muyto doente da cabeça, que tinha chea de chagas grandes, de que lançava sangue & materia. Amostrouse a hum excellentissimo varão doutor em medicina,

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cheia de feridas que segregava um líquido purulento. Dando-lhe ele a entender que aquele género de doença era incurável e sem esperança, e que não tinha menos danificado o fígado que a cabeça, ela ungiu as feridas com óleo tirado da lâmpada pendente diante do altar da Rainha, rezando com grande esperança para que ela implorasse para si a misericórdia divina. Na noite seguinte, foi cruelmente torturada por dores terríveis; como ela pensasse logo em limpar o azeite, por considerar que que a dor era excitada por ele, uma outra exortou-a, por palavras, insistindo que devia conservar a maior esperança. E assim, invocando Isabel, implorando a sua divina bondade, no dia seguinte, levantou-se da cama sem qualquer ferida.

chamado Afonso de Guevara, que neste nosso tempo faz maravilhosas curas, & elle lhe deu a entender que era mal incuravel, & que tam danado tinha ho figado como a cabeça. Vntouse com ho azeite da Raynha sancta Ysabel, a quem se encomendou com muyta devação, pedindolhe que lhe alcançase saude. E naquela noyte passou grandissimas dores. E querendo alimpar ho dito azeyte, por lhe parecer que lhe procederia delle lhe disse dona Guiomar da Cunha freyra do mesmo mosteyro. Nam alimpeys, antes agora tende muyto mays confiança na gloriosa Raynha. E encomendandose a ella muyto se leuantou ao outro dia saã de todas as chagas, & ho he oje este dia. De que se tirou hum estormento por mandado do senhor Bispo de Coimbra, por ho seu prouisor, & vigayro geral, & notayro Apostolico acima declarados, com muytas testemunhas.

Finalmente, ambas as obras contam o que ocorrera quando do nascimento de D. Sebastião: estando todo o país expectante com o nascimento do herdeiro, com os olhos postos no parto de D. Joana, viúva do príncipe D. João, filho de D. João III, a população de Coimbra saiu em procissão a Santa Clara; quando se rezava na capela da Rainha, nasceu D. Sebastião: Perpiniani, De Vita, p. 381 Poucos anos depois, morto João, único herdeiro do trono, toda a esperança da Lusitânia assentava no parto da esposa, Joana, que ele deixara grávida e já quase no fim do tempo. Oscilavam os espíritos de todos entre a esperança e o medo; não havia uma só cidade, na qual se não fizessem súplicas quotidianas, em todos os templos. Os conimbricenses, considerando, com justiça, seu o perigo comum, certo dia, de manhã cedo, com solene pompa, dirigiram-se ao sepulcro da Rainha para rezar. Consta que, estando ali todo o povo fazendo votos pela salvação comum e tranquilidade do reino, nascera o rei Sebastião, que nos foi oferecido como divino presente; pela sua religião e piedade para com Deus e restantes divindades celestes, pela sua coragem contra os inimigos do nome cristão, pela justiça e

Vida dos Mordomos, pp. 74-75 Antes que elRey dom Sebastiam nosso senhor nacese, que muytos annos viua, estãdo Portugal sem principe por falecer ho Principe dõ Ioam seu pay. E ho Christianissimo & muy catholico Rey dom Ioam ho terceiro nosso senhor, que estaa em gloria nã tevesse filhos, & a Raynha dona Catharina nossa senhora já nã parisse, tinha Portugal toda sua esperança posta em nosso senhor que lhe daria principe. E outro remedio nam tinhã se nam do parto da serenissima princesa de Portugal iffante de Castela dona Ioana. Todo Portugal andava abrasado com devações a nosso senhor que lhe alumiasse a princesa no seu parto. A cidade de Coymbra fez huma procissam em huma aluorada ao mosteyro de sancta Clara, aa gloriosa Raynha sancta, pedindolhe que poys fora raynha destes Reynos, tevesse conta com ho seu emparo, & com a paz delle, de que fora tam amiga. Por certissimo & muy averiguado se tem que no mesmo tempo em que a cidade de Coimbra estava

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beneficência para com os seus, confiamos na capela da Raynha sancta, que no mesmo aluque virá a ser digno dos mais ilustres reis miou nosso senhor a princesa dona Ioana, & pario seus antepassados e digno de tal estirpe. elRey nosso senhor, que assi como no lo deu de sua mão, assi lhe dará muyta vida & tal governo, que bem seja descendente da gloriosa Raynha sancta, & Rey dado milagrosamente pera emparo & conservaçam dos Reynos de Portugal, & dilatação da nossa santa fee catholica.

De duas fontes escritas recolheu Perpinhão grande parte das suas informações, não só para este capítulo, mas para toda a biografia: a Lenda e Crónicas de Rui de Pina. Por vezes, manifesta as suas dúvidas sobre alguns dos milagres, mas não deixa de os incluir, como acontece com o milagre das rosas, recolhido da tradição popular (vd. supra), mas não indiscriminadamente. Em resultado da sua exaustiva pesquisa e labor intenso, refere quase todos os milagres acima referidos, conhecidos através das fontes historiográficas medievais, e ainda acrescenta mais alguns, também escritos, de que terá tido conhecimento pessoalmente, o que torna o seu relato mais completo que todos os outros, mesmo os seus contemporâneos, que tiveram acesso à mesma informação. Assim, junta-lhes mais dois, dos quais tivera recentemente conhecimento. O primeiro, que ocorrera em Novembro de 1560, leu-o numa carta dirigida à abadessa de Santa Clara, da autoria de um clérigo, de nome António Afonso, que contava o caso de sua mãe, cuja barriga inchara desmesuradamente, mas que se curara depois de se encomendar à Rainha e de se ungir com o azeite da lâmpada que alumiava o sepulcro. Perpinhão traduziu a carta para latim, como fez com todos os documentos que transcreveu, e incluiu-a na biografia. Nesse mesmo ano (sc.1560), no mês de Novembro, aconteceu outra coisa absolutamente grandiosa e não sei se não será, de longe, mais admirável do que todas as anteriores. Com efeito, Catarina, filha de um cidadão de Coimbra, Fernando, senhora de grande linhagem, afetada por uma doença prolongada, e quase dominada por ela, com o auxílio

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de Santa Isabel, foi arrancada como que de uma morte longínqua; por esta razão, uma vez que o seu filho escreveu uma carta suficientemente pormenorizada do recente acontecimento a Maria Meneses, que é abadessa da congregação de Santa Clara, transcrevemo-la abaixo, a partir da qual se perceba o que aconteceu e como.

António Afonso a Maria de Meneses, Abadessa do Mosteiro de Santa Clara, envia muitas saudações.

“São grandiosas e evidentes as coisas que Deus faz muitas vezes, da forma mais maravilhosa, obedecendo à vontade de suplicantes superiores. Eu, com efeito, sacerdote na freguesia de S. João, tenho a minha mãe de idade já avançada, a qual sofre, vai para sete anos, de uma grave e perigosa doença. Afirmavam os médicos que a tratavam que não havia cura para tamanho mal, a não ser que fosse providenciado de forma divina. Por isso, desesperando dos médicos, mas tendo grande esperança na Rainha Santa Isabel, nossa concidadã, por cujos bons serviços Deus Ótimo e Máximo faz tantas coisas para além do natural, nela depositou a sua esperança, com grande sentido na alma. Eu próprio fiz algumas missas; ela mesma ungiu o corpo com azeite da lâmpada pendente diante do seu sepulcro, suplicando para obter de Deus, na qualidade de benefício e graça, que, por estar tão gravemente atingida por tão insanável mal e atormentada por uma dor tão intolerável, ou que Ele lhe devolvesse a saúde, ou que a chamasse finalmente para si, deixando tantas tribulações. É a seguinte a natureza desta doença: há seis anos e um mês a esta parte, a sua barriga inchou de tal maneira que não podia tocar o umbigo com a mão; mas agora, não tendo deixado de rezar à Rainha Isabel, nos últimos dias, isto é, a 3 das calendas de Dezembro, tendo sida levada para o sol, para se aquecer, de súbito, foi invadida por uma grande dor. Como, invocando muitas vezes a santíssima Rainha, fosse reconduzida a casa e colocada no leito, de repente, saiu-lhe do corpo uma tão grande

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quantidade de água que parecia um rio, e esse fluxo durou-lhe até ao oitavo dia antes dos idos de Dezembro; durante todo este período de tempo, lançou no mínimo três recipientes de líquido; desde essa altura, começou a levantar-se do leito e, de dia para dia, ia ficando melhor, de modo que, entretanto, agora já caminha. Espero que dentro de dois dias vá agradecer a Santa Isabel, através da qual alcançou tão insigne benefício. Todos estes médicos tinham perdido a esperança na sua salvação, primeiro, Afonso Guevara, tão experiente nas operações, depois, Jorge de Sá, Cosino Lopes e o seu irmão Pedrosa, Amador Rodrigo, que já morreu, e Simão Dias 215 . E se mais médicos houvesse nesta cidade, apesar de eu ser de pouquíssimos recursos e da mais inferior condição entre os sacerdotes, mais médicos eu consultaria. Com efeito, sinto que, de maneira nenhuma, poderia fazer um agradecimento à altura de minha mãe. Se for necessário conhecer a largura da túnica que usava sobre aquele inchaço, conserva-se entre nós; não faltarão testemunhas sérias e devotas para comprovar isto que dizemos, se for necessário, para que não só a divina vontade seja em maior respeito, como nós, em todas as tribulações e perigos das doenças, acrescentemos Isabel, que já frui de vida bem-aventurada, como patrona que aplacará a ira de Deus. Oxalá que ela, por ti e pelas jovens que te foram entregues para a regra, suplique a Deus para que vos guarde por muito tempo, em corpo e alma, salvas e incólumes.” 216

A segunda cura milagrosa tivera lugar em Évora: E, na última primavera 217 , estando eu em Évora, no mosteiro de S. Bento, uma certa religiosa do mesmo convento foi salva quase da morte, ouvi-o eu dizer ao próprio médico, que, fora do que era hábito,

215  Médicos

de Coimbra, contemporâneos de Perpinhão.

216 Perpiniani, 217  Do

De Vita, 387-388.

ano de 1561; Perpinhão permaneceu em Évora, até partir para Roma, em Julho.

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fora chamado apressadamente, de noite, e dizia ter encontrado restabelecida aquela que a princípio receava encontrar morta.

Os milagres incluídos por Perpinhão constituem aqueles que foram registados por escrito nos documentos dos séculos XIV e XV e permitiram definir o perfil de santidade da Rainha ao longo desse período.

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NOTA FINAL

Compulsando documentos dos séculos XIV e XV sobre D. Isabel de Aragão e sobre D. Dinis, Pedro Perpinhão delineou, em meados do século XVI, na sua monografia e nas suas orações, o perfil que se fora construindo, ao longo da Idade Média, de uma Rainha que, logo após a sua morte, foi venerada como santa. A imagem que dela transmite é a mais completa e a mais representativa das biografias compostas até essa data e traduz os conhecimentos medievais sobre esta infanta de Aragão e rainha de Portugal. Recorreu a fontes informativas escritas de carácter hagiográfico, mas também cronístico e historiográfico sobre a Rainha (como a Lenda, as Crónicas de Rui de Pina, a documentação do mosteiro de Santa Clara) e, direta ou indiretamente, da própria Rainha (Protestatio, testamentos, declarações públicas). Os seus textos dedicados a Santa Isabel constituem-se como um repositório de toda a informação acessível em Portugal, registada por escrito maioritariamente, que surgiu ao longo de dois séculos. Quando compôs esta biografia da rainha D. Isabel, Perpinhão tinha em mente as regras do labor do historiador, de acordo com os autores clássicos; a sua maior preocupação prendia-se com a fidelidade à verdade dos factos, o que o levou a fazer alusão frequentemente às fontes escritas consultadas, para creditar o relato; foi essa preocupação também que o levou, na presença de mais do que uma versão dos acontecimentos, a referi-las todas, para não cair em suspeita de parcialidade. A história assume também, pelas suas palavras claras de crítica ou de louvor, uma função pedagógica, quando destaca os castigos sofridos pelos que

praticaram o mal e as recompensas merecidas pelos que se dedicaram ao bem e, assim, se tornaram exemplos de vidas a evitar ou a seguir, respetivamente. As informações recolhidas permitiram-lhe traçar o perfil de uma Rainha que desempenhou um papel relevante na sociedade portuguesa: foi interventiva; defensora dos interesses dos seus filhos, dos seus conterrâneos, da sua Casa e do Reino; pacificadora; mediadora de conflitos, movimentando, muitas vezes, nos bastidores, as suas influências familiares, para sanar os problemas, quer internos, quer peninsulares, agindo diplomaticamente; mas, acima de tudo, foi uma Rainha empenhada em minorar, com os seus vastos recursos, o sofrimento dos mais necessitados e desprotegidos da sociedade (doentes, órfãos, mulheres desamparadas, pobres envergonhados, presos, religiosos, entre outros), fundando ou patrocinando obras permanentes de assistência social e religiosa (hospitais, mercearias, albergarias, orfanatos, mosteiros, entre outras), que, por serem contempladas no seu testamento, continuaram a sua ação mesmo após a sua morte.

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BILIOGRAFIA

Manuscritos Códice nº 3308 da Biblioteca Nacional de Lisboa: Rerum scholasticarum quae a patribus ac fratribus huius Conimbricensis Collegii scripta sunt tomus primus. Códice nº 993 da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra: Rerum scholasticarum quae a patribus ac fratribus huius Conimbricensis Collegii scripta sunt tomus secundus. Códice XII da Biblioteca Pública e Arquivo de Évora, Orationes Perpiniani.

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(Página deixada propositadamente em branco)

HELENA COSTA TOIPA é licenciada em Humanidades pela Universidade Católica Portuguesa (1986), mestre em Estudos Clássicos (Literatura Novilatina) pela

Universidade de Coimbra (1991) e doutorada em Estudos Clássicos (Literatura Novilatina) pela Universidade Católica Portuguesa (2001), com a tese A obra de Pedro João Perpinhão em Portugal “ad maiorem Dei gloriam”, realizada

sob orientação do Professor Doutor Américo Costa Ramalho. É investigadora integrada no Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Faculdade de

Letras da Universidade de Coimbra (CECH), onde desenvolveu um projecto de Pós-doutoramento subordinado ao tema: O culto da Rainha Santa Isabel, em Coimbra, no século XVI, e as celebrações em sua honra no Colégio das Artes: a

obra de Pedro Perpinhão, S.J. A sua investigação tem refletido sobre o papel da

Companhia de Jesus, em Portugal, no século XVI, em particular o de um dos seus ilustres professores e oradores, Pedro Perpinhão, e sobre a evolução do culto da Rainha Santa Isabel. Tem artigos publicados em revistas da especialidade.

Série Documentos Imprensa da Universidade de Coimbra Coimbra University Press 2020