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Portuguese Pages '94 [194] Year 2020
A PSICOLOGIA DAS MULTIDÕES GUSTAVE LE BON
«Nos nossos dias, a soma das opiniões hesitantes das multidões é maior do que nunca e isto por três razões diferentes. A primeira é que as antigas crenças, perdendo cada vez mais o seu domínio, já nio actuam, como outrora, sobre as opiniões transitórias para lhes darem determinada orientação. O desaparecimento das crenças gerais deixa lugar a uma multitude de opiniões particulares sem passado nem futuro. A segunda razão é que, por ser cada vez maior o poder das multidões, que também cada vez vai tendo menos contrapeso, a extrema mobilidade de idéias que nelas verificámos pode manifestar-se livremente. A terceira, finalmente, é a recente difusão da imprensa, que apresenta incessantemente aos olhos das multidões as mais opostas opiniões. Assim, as sugestões que qualquer dessas opiniões podia originar são dentro em pouco destruídas por sugestões opostas, do que resulta que nenhuma opinião poder dilatar-se, estando, portanto, votada a existência efêmera. Morre assim qualquer opinião antes de ter podido espalhar-se o bastante para ser opinião geral.»
CHARLES-MARIE GUSTAVE LE BON (1841-1931) Foi um polímata francês cujos interesses e estudos se debruçaram sobre antropologia, sociologia, psicologia, medicina e física. Formado em Medicina, nunca exerceu, tendo-se dedicado à investigação e opondo-se ã medicina tradicional. Alistou-se no Exército durante a guerra franco-prussiana. A derrota nessa guerra e o facto de ter presenciado os acontecimentos da Comuna de Paris (1871) influenciaram-no imenso. Viajou demoradamente pela Europa, Ásia e pelo Norte de África, estudando as diferenças entre os povos, culturas e civilizações à luz da recentemente criada antropologia. A partir de 1890, juntou ao estudo antropológico o estudo da psicologia e da sociologia, tendo escrito algumas das suas mais importantes obras nessa época. Apesar de ter sido sempre desprezado pela academia francesa, as obras de Le Bon foram uma reconhecida influência em personalidades tão diferentes como Roosevelt, Mussolini, Freud, Hitler, José Ortega y Gasset ou Lenine. AGOSTINHO JOSÉ FORTES (1869-1940), o tradutor, foi um professor, jornalista, tradutor e político português. Formado em Letras e muito versado em literatura grega, concorre em 1904 à cadeira de História Antiga, Medieval e Moderna, ficando aprovado. Em 1906 foi eleito, em congresso, membro substituto do directório do Partido Republicano Português, vindo a ser, após a proclamação da República, chefe de gabinete de Teófilo Braga. Durante o ano de 1910 fundou o jornal A Reforma Social, que se pretendia ser porta-voz da corrente radical socialista. Segundo a informação da época, foi um republicano convicto com acentuados princípios socialistas, filiando-se no Partido Socialista Português em 1919. Em 1911 substitui Consiglieri Pedroso, por falecimento deste, na regência da cadeira de História Geral, tendo passado para a Faculdade de Letras, que secretariou durante muitos anos. Foi vereador do Município do Lisboa na primeira vereação republicana e Presidente da Junta Geral do Distrito de Lisboa.
A PSICOLOGIA DAS MULTIDÕES GUSTAVE LE BON
Editor responsável: Pedro Bernardo Título original: Psychologie des foules Tradução: Agostinho José Fortes Revisão: Helder Guégués Paginação: JuSA Todos os direitos para língua portuguesa reservados para esta edição por Bookbuilders / Letras Errantes, Lda. Bookbuilders é uma chancela editorial de Letras Errantes, Lda. Rua Oceano Atlântico, 5 2560-510 Silveira www.bookbuilders.net [email protected] 1." edição, Janeiro de 2020 Esta é a primeira tiragem deste livro, impressa na Papelmunde, em Janeiro de 2020 com o Depósito legal 466369/20 e o ISBN 978-989-8973-13-9
A PSICOLOGIA DAS MULTIDÕES GUSTAVE LE BON Tradução de Agostinho Fortes
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ENSAIO
ÍNDICE
PREFÁCIO DO AUTOR
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PSICOLOGIA DAS MULTIDÕES
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INTRODUÇÃO - A ERA DAS MULTIDÕES
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PRIMEIRO LIVRO A ALMA DAS MULTIDÕES PRIMEIRO CAPÍTULO - CARACTERES GERAIS DAS MULTIDÕES - LEI PSICOLÓGICA DA SUA UNIDADE MENTAL SEGUNDO CAPITULO - SENTIMENTOS E MORALIDADE DAS MULTIDÕES 1. Impulsividade, mobilidade e irritabilidade das multidões 2. Sugestibilidade e credulidade das multidões 3. Exagero e simplismo dos sentimentos das multidões 4. Intolerância, autoritarismo e conservantismo das multidões 5. Moralidade das multidões 7
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A
PSICOLOGIA
DAS
MULTIDÕES
TERCEIRO CAPÍTULO - IDÉIAS, RACIOCÍNIOS E IMAGINAÇÃO DAS MULTIDÕES 1. As idéias das multidões 2. Raciocínios das multidões 3. A imaginação das multidões
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QUARTO CAPÍTULO - FORMAS RELIGIOSAS QUE REVESTEM TODAS AS CONVICÇÕES DAS MULTIDÕES
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SEGUNDO LIVRO AS OPINIÕES E CRENÇAS DAS MULTIDÕES PRIMEIRO CAPÍTULO - FACTORES LONGÍNQUOS DAS CRENÇAS E OPINIÕES DAS MULTIDÕES 1. A raça 2. As tradições 3. O tempo 4. As instituições políticas e sociais 5. Instrução e educação SEGUNDO CAPÍTULO - FACTORES IMEDIATOS DAS OPINIÕES DAS MULTIDÕES 1. As imagens, as palavras e as fórmulas 2. As ilusões 3. A experiência 4. A razão TERCEIRO CAPÍTULO - OS GUIAS DAS MULTIDÕES E SEUS MEIOS DE PERSUASÃO 1. Os guias das multidões 2. Os meios de acção dos guias: a afirmação, a repetição, o contágio 3. O prestígio 8
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ÍNDICE
QUARTO CAPÍTULO - LIMITES DE VARIABILIDADE DAS CRENÇAS E OPINIÕES DAS MULTIDÕES 1. As crenças fixas 2. As opiniões móveis das multidões
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TERCEIRO LIVRO CLASSIFICAÇÃO E DESCRIÇÃO DAS DIVERSAS CATEGORIAS DE MULTIDÕES PRIMEIRO CAPÍTULO - CLASSIFICAÇÃO DAS MULTIDÕES 1. Multidões heterogêneas 2. Multidões homogêneas
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SEGUNDO CAPÍTULO - AS CHAMADAS MULTIDÕES CRIMINOSAS
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TERCEIRO CAPÍTULO - OS JURADOS DOS TRIBUNAIS DO CRIME
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QUARTO CAPÍTULO - AS MULTIDÕES ELEITORAIS
165
QUINTO CAPÍTULO - AS ASSEMBLEIAS PARLAMENTARES
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PREFÁCIO DO AUTOR
Consagrámos já uma obra à descrição da alma das raças; na presente, estudaremos a alma das multidões. A alma de uma raça é constituída pelo conjunto de caracteres comuns que a hereditariedade imprime a todos os indivíduos dessa raça. Sempre que um certo número desses indivíduos se encontram reunidos em multidão para agirem, a observação demonstra que do próprio facto da sua aproximação resultam determinados caracteres psíquicos novos, que se sobrepõem aos caracteres da raça e, por vezes, deles profundamente diferem. Sempre as multidões organizadas têm desempenhado importantes funções na vida dos povos, mas nunca essas funções atingiram a importância que hoje têm. A acção inconsciente das multidões, substituindo a acção consciente dos indivíduos, é uma das características principais dos actuais tempos. Procurei tratar do difícil problema das multidões por processos exclusivamente científicos, isto é, tentando ter um método e pondo de parte as opiniões teóricas e doutrinas empiricamente estabelecidas. Tal é o único meio, creio eu, de chegar à descoberta de algumas parcelas de verdade, principalmente, ao tratar-se, como no presente assunto, de uma questão que vivamente 11
A
PSICOLOGIA
DAS
MULTIDÕES
apaixona os espíritos. O sábio que procura certificar-se de um fenômeno não deve preocupar-se com o facto de as suas investigações irem de encontro a quaisquer interesses. Numa recente publicação, um pensador eminente, Goblet d'Alviela, observava que, não pertencendo eu a nenhuma das escolas contemporâneas, estava, por vezes, em oposição com algumas conclusões de todas essas escolas. O presente trabalho, tenho essas esperanças, merecerá com justiça a mesma observação; pois que pertencer a uma escola significa que se hão-de necessariamente perfilhar todos os preconceitos e pertinazes pretensões dessa mesma escola. Devo, todavia, explicar ao leitor porque há-de ver que eu tiro dos meus estudos conclusões diferentes daquelas que, à primeira vista, se podiam esperar; porque é que, verificando eu, por exemplo, a extrema inferioridade mental das multidões, sem exclusão das assembleias de escol, eu declaro contudo que, não obstante essa inferioridade, seria perigoso alterar-lhes a organização. É que a observação atenta dos factos da História tem-me sempre mostrado que, sendo os organismos sociais tão complicados como os de todos os outros seres, não está em nossas mãos o fazer-lhes sofrer bruscamente profundas transformações. A Natureza, algumas vezes, é radical, mas nunca como nós entendemos que se deve ser radical, pelo que a mania das grandes reformas é o que há de mais desastroso para um povo, por muito boas que essas reformas teoricamente possam parecer. Só seriam úteis se fosse possível mudar-se instantaneamente a alma das nações, o que só o tempo tem força para fazer. O que governa os homens são as idéias, os sentimentos e os costumes, coisas que estão em nós mesmos. As instituições e as leis são a manifestação da nossa alma, e não a podem mudar visto que dela procedem. O estudo dos fenômenos sociais não pode separar-se do estudo dos povos em que se manifestam. Filosoficamente, esses fenômenos podem ter valor absoluto, mas, praticamente, apenas têm valor relativo. 12
PREFÁCIO
DO
AUTOR
É necessário, pois, ao estudar-se um fenômeno social, considerá-lo sucessivamente sob dois aspectos muito diferentes. Verifica-se então que os ensinamentos da razão pura são muitíssimas vezes contrários aos da razão prática. Não há dados, nem mesmo físicos, aos quais esta distinção se não aplique. Sob o ponto de vista da verdade absoluta, um cubo e um círculo são figuras geométricas invariáveis, rigorosamente definidas por certas fórmulas; para a nossa vista, essas figuras podem revestir formas muito variadas. A perspectiva, na realidade, pode transformar o cubo em pirâmide ou quadrado, o círculo em elipse ou em linha recta e estas formas fictícias muitas vezes são mais importantes para o estudo do que as formas reais, pois que são as únicas que vemos e que a fotografia e a pintura podem reproduzir. O irreal é, em alguns casos, mais verdadeiro que o real e, por isso, representar os objectos com as suas formas geométricas exactas seria deformar a Natureza e torná-la desconhecida. Se supuséssemos um mundo cujos habitantes só pudessem copiar ou fotografar os objectos, sem terem a possibilidade de os tocar, esses indivíduos só muito dificilmente chegariam a formar uma idéia exacta dos objectos. O conhecimento dessa forma, apenas acessível a um pequeno número de sábios, não apresentaria de resto mais do que medíocre interesse. O filósofo que estuda os fenômenos sociais deve ter presente no espírito que esses fenômenos, concomitantemente com o valor teórico, possuem valor prático, e que para a evolução das civilizações é este último o que alguma importância tem. Esta idéia deve fazê-lo muito circunspecto nas conclusões que, à primeira vista, a lógica pareça impor-lhe. Outros motivos há ainda que contribuem para mais lhe recomendar essa circunspecção. É tal a complexidade dos factos sociais que é impossível abrangê-los no seu conjunto e prever os efeitos da sua recíproca acção. Parece também que por detrás dos factos invisíveis se ocultam, por vezes, milhares de causas invisíveis. Os fenômenos sociais visíveis parecem ser a resultante de um 13
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PSICOLOGIA
DAS
MULTIDÕES
imenso trabalho inconsciente, a maior parte das vezes inacessível à nossa análise. Podem comparar-se os fenômenos perceptíveis às ondas que vêm reproduzir na superfície do oceano as alterações subterrâneas, que aí se passam e nos são desconhecidas. Observadas na maior parte dos seus actos, as multidões dão prova quase sempre de uma mentalidade singularmente inferior; mas outros actos há em que as multidões parecem guiadas por essas forças misteriosas chamadas pelos Antigos destino, Natureza, providência, que nós denominamos voz dos mortos, e cujo poder não podemos deixar de reconhecer, embora ignoremos a sua essência. Por vezes quase nos chega a parecer que no seio das nações se encontram forças latentes que as guiam. O que é que, por exemplo, há mais complicado, mais lógico e mais maravilhoso do que uma língua? E, todavia, de onde sai essa coisa tão bem organizada e tão subtil, senão da alma inconsciente, das multidões? As mais eruditas academias, os mais apreciados gramáticos, dificilmente registam as leis que regem as línguas e seriam absolutamente incapazes de as criarem. As idéias geniais dos grandes homens, sabemos nós, por acaso, com certeza se são exclusivamente obra desses grandes homens? Sem dúvida são sempre essas idéias criadas por espíritos solitários; mas os milhares de grãos de areia que formam a aluvião em que essas idéias germinaram não foram talvez formados pela alma das multidões? As multidões, sem dúvida, são sempre inconscientes; mas, porventura, essa mesma inconsciência é um dos segredos da sua força. Na Natureza, os seres sujeitos exclusivamente ao instinto efectuam actos cuja maravilhosa complexidade nos admira. A razão é coisa ainda muito nova na humanidade, e muito imperfeita também ainda, para que possa revelar-nos as leis do inconsciente e, principalmente, substituí-lo. É enorme em todos os nossos actos a parte do inconsciente e muito pequena a da razão. O inconsciente actua ainda com uma força desconhecida. Se nos quisermos, pois, restringir aos acanhados mas seguros limites das coisas que a ciência pode conhecer, e não quisermos 14
PREFÁCIO
DO
AUTOR
andar errantes no terreno das vagas conjecturas e das hipóteses vãs, devemos simplesmente procurar determinar os fenômenos que nos são acessíveis, não passando além da sua verificação. Muitas vezes são prematuras as conclusões tiradas das nossas observações; além dos fenômenos que vemos bem, há outros que vemos mal e, porventura, para lá destes últimos, há outros ainda que nem sequer vemos.
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PSICOLOGIA DAS MULTIDÕES
INTRODUÇÃO
A ERA DAS MULTIDÕES
Evolução da idade actual. — As grandes mudanças da civilização são c o n s e q ü ê n c i a de m u d a n ç a s no p e n s a m e n t o dos povos. — A m o d e r n a crença no poder das multidões. — Essa crença transforma a política tradicional dos povos. — C o m o se dá a intervenção das classes populares e c o m o se exerce o poder dessas classes. — Conseqüências necessárias do poder das m u l t i d õ e s . — As m u l t i d õ e s só p o d e m exercer f u n ç õ e s destruidoras. — É por meio delas que se completa a dissolução das civilizações muito velhas. — Geral ignorância da psicologia das multidões. — I m p o r t â n c i a do estudo das multidões para os legisladores e homens de Estado.
As grandes alterações que precedem as mudanças de civilização, tais como a queda do Império Romano e a fundação do Império Árabe, por exemplo, parecem, à primeira vista, determinadas principalmente por consideráveis transformações políticas, invasões de povos ou quedas de dinastias. Um estudo mais atento desses acontecimentos prova, porém, que, por detrás das suas causas aparentes, se encontra, na grande maioria dos casos, como causa real uma modificação profunda nas idéias dos povos. As verdadeiras alterações históricas não 19
A
PSICOLOGIA
DAS
MULTIDÕES
são as que nos enchem de espanto pela grandeza e violência; as únicas mudanças importantes, das quais provém o renovamento das civilizações, operam-se nas idéias, concepções e crenças. Os acontecimentos memoráveis da História são efeitos visíveis das mudanças invisíveis do pensamento dos homens. E, se estes grandes acontecimentos se manifestam tão raramente, é porque não há nada tão estável numa raça como o fundo hereditário dos seus pensamentos. A época actual constitui um desses momentos críticos em que o pensamento dos homens está em via de transformação. Dois factores principais estão na base desta transformação. O primeiro é a destruição das crenças religiosas, políticas e sociais, de que derivam todos os elementos da nossa civilização; o segundo é a formação de condições de existência e de pensamento completamente novas, resultantes das modernas descobertas das ciências e da indústria. As idéias do passado, se bem que meio destruídas, são ainda muito poderosas e as idéias que as hão-de substituir apenas se encontram em via de formação, pelo que a idade moderna representa um período de transição e anarquia. Não pode facilmente dizer-se, por enquanto, o que um dia poderá sair deste período forçadamente um pouco caótico. Em que idéias fundamentais se basearão as sociedades que hão-de suceder à nossa? Não o sabemos; mas o que desde já vemos bem é que, pela sua organização, hão-de ter de contar com um poder novo, último soberano da idade moderna, o poder das multidões. Sobre as ruínas de tantas idéias, outrora tidas por verdadeiras e hoje mortas, sobre os destroços de tantos poderes sucessivamente quebrados pelas revoluções, o poder das multidões é o único que se elevou e parece que bem depressa absorverá os outros. Agora que todas as nossas antigas crenças oscilam e desaparecem, que as velhas colunas das sociedades vão derruindo, o poder das multidões é a única força que não é ameaçada e cujo prestígio vai aumentando. 20
A E R A DAS M U L T I D Õ E S
A idade em que vamos entrando há-de ser, na verdade, a ERA DAS M U L T I D Õ E S .
Há apenas um século, os principais factores dos acontecimentos eram a política tradicional dos povos e as rivalidades dos príncipes. A opinião das multidões, na maioria dos casos, em nenhuma conta era tida; hoje, são as tradições políticas, as tendências individuais dos soberanos e as suas rivalidades que em nenhuma conta são tidas, sendo, pelo contrário, a voz das multidões a preponderante. Essa voz dita aos reis a sua conduta e é a única que estes procuram ouvir; já não é nos conselhos de príncipes mas na alma das multidões que se preparam os destinos das nações. A intervenção das classes populares na vida política, ou seja, na realidade, a sua transformação progressiva em classes dirigentes, é uma das características mais acentuadas da nossa época de transição. Não foi, na verdade, pelo sufrágio universal, tão pouco preponderante durante muito tempo e tão facilmente dirigível no começo, que se caracterizou essa intervenção. O desenvolvimento progressivo do poder das multidões iniciou-se pela formação de certas idéias que lentamente se foram introduzindo nos espíritos, e depois pela gradual associação dos indivíduos no intuito de realizarem as concepções teóricas. Foi pela associação que as multidões conseguiram formar idéias, senão muito justas, pelo menos muito firmes, dos seus interesses, conseguindo também ter a noção da sua força. As multidões fundam sindicatos perante os quais todos os poderes vão capitulando e bolsas de trabalho que, apesar de todas as leis econômicas, tendem a reger as condições do trabalho e do salário; mandam, às assembleias governamentais ou parlamentos, representantes destituídos de qualquer iniciativa e independência e reduzidos a maior parte das vezes às funções de simples porta-vozes dos partidos que os escolheram. Hoje as reivindicações das multidões precisam-se cada vez mais e pretendem nada menos do que derrubar completamente a 21
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PSICOLOGIA
DAS
MULTIDÕES
sociedade actual, para a reconduzir ao comunismo primitivo, que foi o estado normal de todos os grupos humanos antes da aurora da civilização. Restrição das horas de trabalho, expropriação de minas, caminhos-de-ferro, oficinas e solo, divisão igualitária de todos os produtos, eliminação de todas as classes superiores em proveito das classes populares, etc., tais são as reivindicações da multidão. Pouco aptas para raciocinarem, as multidões são extraordinariamente aptas para a acção. Devido à organização que actualmente possuem, a sua força é imensa. Os dogmas a cujo despontar assistimos bem depressa hão-de ter o poder dos velhos dogmas, ou seja, a força tirânica e soberana, que coloca tudo a salvo da discussão. O direito divino das multidões vai substituir o direito divino dos reis. Os escritores que gozam do apoio da actual burguesia, que melhor lhe representam as idéias um pouco acanhadas, as vistas um tanto curtas, o cepticismo um tanto superficial, e o egoísmo por vezes algum tanto excessivo, completamente se desorientam em presença do novo poder cujo engrandecimento verificam, e, para combaterem a desordem dos espíritos, apelam desesperadamente para as forças morais da Igreja, por eles outrora tão desdenhadas. Falam-nos da bancarrota da ciência e, voltando penitentes de Roma, procuram chamar-nos para os ensinamentos das verdades reveladas. Contudo, estes recém-convertidos esquecem-se de que é muito tarde para conseguirem o que desejam. Se, na realidade, foram tocados pela graça, esta, infelizmente para eles, não tem poder idêntico em almas pouco dadas a preocuparem-se com o que incomoda estes devotos de fresca data. As multidões hoje já nada querem com os deuses que ontem já pouco lhes importavam e que elas ajudaram a quebrar. Não há poder divino ou humano que possa obrigar os rios a subirem para a nascente. A ciência não fez bancarrota e em nada contribui para a actual anarquia do espírito, nem para o novo poder que no meio desta 22
A ERA
DAS
MULTIDÕES
anarquia vai crescendo. A ciência prometeu-nos a verdade ou, pelo menos, o conhecimento das relações que a nossa inteligência possa apreender; mas nunca nos prometeu a paz nem a felicidade. Soberanamente indiferente aos nossos entendimentos, não ouve sequer os nossos lamentos. Cabe-nos o procurar viver ou não com a ciência, pois que nada há que possa restituir-nos as ilusões que ela haja feito fugir. Sintomas universais, visíveis em todas as nações, indicam-nos o rápido aumento do poder das multidões e não nos autorizam a supormos que esse poder deva deixar de aumentar. Seja o que for que esse poder nos traga, a ele temos de sujeitar-nos. Tudo quanto contra esse poder discreteemos, não passará de vãs palavras. É possível, sem dúvida, que a intervenção das multidões marque uma das últimas escalas das civilizações ocidentais, um regresso completo para os períodos de confusa anarquia que parece que hão-de sempre preceder o desabrochar de qualquer sociedade nova. Mas, como havemos nós de impedir isso? Até agora as grandes destruições de civilizações muito velhas constituíram a função mais clara e perceptível das multidões. E, na verdade, não é de hoje que essa função aparece no mundo. A História diz-nos que na ocasião em que as forças morais, sobre as quais assentava uma civilização, perderam o seu domínio, a dissolução final é levada a cabo pelas multidões inconscientes e brutais, com bastante justiça classificadas de bárbaras. As civilizações até agora só têm sido criadas e guiadas por uma pequena aristocracia intelectual e não pelas multidões. Estas só têm poder para destruir e o seu domínio representa sempre uma fase de barbaria. Uma civilização implica regras fixas, uma disciplina, a passagem do instintivo para o racional, a previsão do futuro, um elevado grau de cultura, condições estas que as multidões abandonadas a si mesmas mostraram sempre serem incapazes de realizar. Pelo seu poder unicamente destrutivo, actuam como aqueles micróbios que activam a dissolução dos corpos debilitados 23
A
PSICOLOGIA
DAS
MULTIDÕES
e dos cadáveres. Sempre que o edifício de uma civilização está carcomido, são as multidões que produzem o desmoronamento; é então que a sua principal função se manifesta e, por momentos, a filosofia do número afigura-se-nos a única filosofia da História. Sucederá o mesmo com a nossa civilização? Eis o que podemos talvez recear; mas nos é impossível ainda saber. Como quer que seja, devemos resignar-nos a sofrer o governo das multidões, já que imprevidentes mãos sucessivamente foram derrubando as barreiras que as poderiam suster. Conhecemos muito pouco as multidões de que tanto se começou já a falar. Os psicólogos de ofício, tendo vivido longe delas, desconheceram-nas sempre e, quando delas se ocuparam nestes últimos tempos, foi apenas relativamente aos crimes que elas podem cometer. É fora de dúvida que há multidões criminosas, mas há também multidões virtuosas, multidões heróicas e ainda muitas outras. Os crimes das multidões constituem apenas um caso particular da psicologia dessas multidões e, por isso, conhecese tanto a constituição mental dessas multidões só pelo estudo dos seus crimes, como se conheceria a de um indivíduo de que só conhecêssemos os vícios. Contudo, a bem dizer, todos os senhores do mundo, todos os fundadores de religiões ou de impérios, os apóstolos de todas as crenças, os homens de Estado eminentes, e, em mais modesta esfera, os simples chefes de pequenas colectividades humanas, têm sido sempre psicólogos inconscientes, possuindo conhecimentos instintivos, muitas vezes muito certos, da alma das multidões e exactamente por a conhecerem bem é que com facilidade se fizeram senhores. Napoleão percebia maravilhosamente a psicologia das multidões do país em que governou; mas, por vezes, desconheceu absolutamente a das multidões pertencentes a raças diversas('); e a isto se deveram principalmente as suas expedições à (') Os seus mais argutos conselheiros também a não conheceram, nem compreenderam. Talleyrand escrevia a Napoleão que «a Espanha receberia 24
A ERA
DAS
MULTIDÕES
península hispânica e à Rússia, em que o seu poder recebeu golpes tais que o derrubaram. O conhecimento da psicologia das multidões é hoje o último recurso do homem de Estado que queira, já não dizemos governá-las, que isso hoje é dificílimo, mas, ao menos, não ser governado por elas. Só estudando um pouco profundamente a psicologia das multidões é que se compreende até que ponto as leis e as instituições pouca acção exercem sobre elas; quão incapazes são de terem quaisquer opiniões, além das que lhe são impostas; que não é com regras baseadas na equidade teórica pura, mas procurando o que possa impressioná-las e seduzi-las, que podem ser guiadas. Se um legislador quiser, por exemplo, lançar um novo imposto, deverá, porventura, escolher o que teoricamente seja mais justo? De nenhum modo; pois que o mais injusto poderá praticamente ser o melhor para as multidões e será tanto mais facilmente recebido, quanto menos perceptível e menos pesado seja na aparência. É assim que um imposto indirecto, por mais exorbitante que seja, será sempre aceite sem grandes protestos pela multidão, porque, sendo pago hora a hora nos objectos de consumo diário, às vezes em décimos de real, não lhe altera os hábitos nem a impressiona. Mas se, em vez deste imposto, se lançar um imposto proporcional sobre os salários e outros rendimentos, para ser pago por uma só vez em cada ano, levantar-se-ão protestos e reclamações unânimes, embora esse imposto fosse teoricamente dez vezes menos pesado que o outro. É que, neste caso, os décimos de real quase inapreciáveis de hora a hora são na realidade substituídos por uma soma relativamente elevada que parecerá imensa e, por conseqüência, muito revoltante, no dia em que seja necessário pagar. Só pareceria
os soldados napoleónicos como libertadores». Ora a Espanha recebeu-os exac tamente como quem recebe bestas feras, facto este que um psicólogo conhecedor dos instintos libertadores da raça facilmente teria previsto. 25
A
PSICOLOGIA
DAS
MULTIDÕES
pequeno à multidão o imposto se fosse pago pouco a pouco, quase insensivelmente, ou pondo-se de parte dia a dia uma diminuta importância para o seu pagamento; mas semelhante processo econômico representa previdência de que as multidões são incapazes. O exemplo precedente é dos mais simples e a sua exactidão facilmente se percebe. Não teria certamente escapado a um psicólogo como Napoleão, mas são incapazes de compreendê-lo os legisladores ignorantes da alma das multidões. A experiência ainda lhes não ensinou o bastante para que compreendam que os homens nunca podem ser levados pelas prescrições da razão pura. Muitas outras aplicações poderiam fazer-se da psicologia das multidões; o conhecimento que dela tenhamos projecta a mais intensa luz num grande número de fenômenos históricos e econômicos, que de outra forma são absolutamente ininteligíveis. Terei ocasião de provar que, se Taine, o mais notável dos modernos historiadores, não compreendeu, por vezes, perfeitamente os acontecimentos da grande Revolução Francesa, foi por nunca haver sequer pensado em estudar a alma das multidões. Para o estudo deste complicado período, Taine tomou para guia o método descritivo dos naturalistas; mas a verdade é que entre os fenômenos que são objecto do estudo dos naturalistas não figuram para nada as forças morais. Ora são precisamente estas forças que constituem as verdadeiras molas da História. Ainda que só atendêssemos ao lado prático, o estudo da psicologia das multidões merece na verdade realizar-se; se fosse apenas objecto de mera curiosidade, ainda disso seria digno, pois que determinar os motivos das acções dos homens é tão interessante como o estudar um mineral ou uma planta. O estudo da alma das multidões que vamos encetar não pode ser mais do que uma síntese breve, mero resumo das nossas investigações. Dele o leitor deverá esperar alguns modos de ver sugestivos; outros virão que levarão a obra mais adiante. Hoje, 26
A
ERA
DAS
MULTIDÕES
nós apenas rompemos um sulco num terreno, na verdade, quase virgem(2).
( 2 ) Os poucos autores que têm tratado do estudo psicológico das multidões apenas, como já tive ocasião de notar, se têm ocupado da criminalidade. Como a este assunto só consagro um capítulo da obra presente, cumpre-me indicar ao leitor que deseje conhecer especialmente o assunto os trabalhos de Tarde e o opúsculo de Sighele, As Multidões Criminosas. Este último trabalho não tem uma só idéia original do autor, mas apresenta uma compilação de factos que poderão ser aproveitados pelos psicólogos. Devo também dizer que as minhas conclusões sobre a criminalidade e moralidade das multidões são absolutamente contrárias às dos escritores que acabo de citar. Numa obra que tenho em preparação, a Psicologia do Socialismo, darei notícia das importantes conseqüências das leis que regem a psicologia das multidões. Estas leis, além disso, aplicam-se a assuntos muito diferentos. A. Gevaert, director do Real Conservatório de Bruxelas, apresentou recentemente uma aplicação notável das leis que eu expus num trabalho sobre música, arte por ele muito justamente classificada como arte das multidões. «Foram as vossas duas obras», escreveu-me o ilustre professor, «ao mandar-me a sua memória, que me deram a solução de um problema, até então por mim considerado insolúvel, a aptidão admirável de toda a multidão para sentir um trecho musical recente ou antigo, nacional ou estrangeiro, simples ou complicado, uma vez que seja bem executado por artistas dirigidos por um chefe entusiasta.» Gevaert demonstra admiravelmente porque «é que uma peça musical que foi incompreensível a músicos notáveis, que liam a partitura no isolamento do gabinete, foi, por vezes, apreendida de uma assentada por um auditório estranho a toda a cultura técnica». E também demonstra perfeitamente porque é que estas impressões estéticas não deixam nenhum vestígio. Nada, que eu saiba, se tem escrito mais sugestivo acerca da música do que as resumidas páginas do tão brilhante mestre. 27
PRIMEIRO LIVRO
A ALMA DAS MULTIDÕES
PRIMEIRO CAPÍTULO
CARACTERES GERAIS DAS MULTIDÕES LEI PSICOLÓGICA DA SUA UNIDADE MENTAL
O que constitui uma multidão para o critério psicológico. — Uma aglomeração numerosa de indivíduos não basta para formar uma multidão. — Caracteres especiais das multidões psicológicas. — Orientação fixa das idéias e sentimentos nos indivíduos que as compõem e desvanecimento da sua personalidade. — A multidão é sempre d o m i n a d a pelo inconsciente. — Desaparição da vida cerebral e preponderância da vida medular. — Diminuição da inteligência e completa transformação dos sentimentos. — Os sentimentos transformados podem ser melhores ou piores que os dos indivíduos de que a multidão se compõe. — A multidão é tão facilmente heróica como criminosa.
Em sentido vulgar, a palavra «multidão» significa uma reunião de indivíduos, quaisquer que sejam a sua nacionalidade, profissão e sexo e quaisquer que sejam as causas, ocasionais ou não, que os reúnem. Psicologicamente, a palavra «multidão» tem um sentido absolutamente diverso. Em determinadas circunstâncias, e só nestas circunstâncias, um agrupamento de homens possui caracteres novos muito diferentes dos caracteres dos indivíduos que compõem esse agrupamento. A personalidade consciente 31
A
PSICOLOGIA
DAS
MULTIDÕES
desvanece-se, os sentimentos e as idéias de todas as unidades são orientados num só e mesmo sentido; forma-se uma alma colectiva, sem dúvida transitória mas com caracteres muito acentuados. A colectividade transforma-se então no que eu, à falta de expressão melhor, chamarei a multidão organizada, ou, se preferirdes, a multidão psicológica. Forma então um único ser e está sujeita à lei da unidade mental das multidões. Facilmente se percebe que não é só pelo facto de muitos indivíduos se encontrarem acidentalmente reunidos que esses indivíduos adquirem os caracteres de multidão organizada. Mil indivíduos, acidentalmente reunidos numa praça pública, sem nenhum determinado objectivo, de nenhum modo constituem psicologicamente uma multidão. Para que o fossem, para lhe adquirirem os caracteres especiais, seria necessária a acção de certos excitantes, cuja natureza vamos determinar. O desvanecimento da personalidade consciente e a orientação dos sentimentos e pensamentos num determinado sentido, primeiros traços característicos da multidão em via de organizar-se, nem sempre exigem a presença simultânea num mesmo local de diversos indivíduos. Milhares de indivíduos separados podem adquirir, em certas ocasiões, sob a acção de certas emoções violentas, como, por exemplo, um grande acontecimento nacional, os caracteres da multidão psicológica. Bastará para isso que um acaso qualquer os reúna e os seus actos tomarão logo os caracteres especiais dos actos das multidões. Em certas ocasiões, meia dúzia de homens podem constituir multidão psicológica, ao passo que centenas de homens casualmente reunidos podem não constituí-la; por outro lado, um povo inteiro, sem que haja aglomeração visível, pode tornar-se multidão sob a acção de certas influências. Quando a multidão psicológica se constitui, adquire caracteres gerais provisórios, mas perfeitamente determináveis. A estes caracteres gerais acrescem caracteres particulares, variáveis, conforme os elementos de que a multidão se compõe e que podem modificar-lhe a constituição mental. 32
CARACTERES
GERAIS
DAS
MULTIDÕES
As multidões psicológicas são, pois, susceptíveis de uma classificação e, quando dela tratarmos, havemos de ver que uma multidão heterogênea, isto é, composta de elementos dissemelhantes, apresenta caracteres comuns com as multidões homogêneas, ou compostas de elementos mais ou menos semelhantes, tais como seitas, classes e castas, e, ao lado desses, caracteres particulares que permitem diferenciá-las. Antes, porém, de tratarmos das diversas categorias de multidões, devemos examinar os caracteres que a todas são comuns. Assim, procederemos como o naturalista que começa por descrever os caracteres gerais comuns a todos os indivíduos de uma família, antes de tratar dos caracteres particulares, que permitem diferenciar os gêneros e as espécies que essa família abrange. Não é fácil descrever com exactidão a alma das multidões, porque a sua organização não só varia conforme a raça e a composição das colectividades, mas ainda conforme a natureza e o grau dos excitantes a que essas colectividades estão sujeitas. Esta mesma dificuldade se apresenta no estudo psicológico de qualquer indivíduo; só nos romances é que se vêem os indivíduos atravessarem a vida com um carácter constante e invariável. Só a uniformidade dos meios cria a aparente uniformidade dos caracteres. De resto, já mostrei que todas as constituições mentais contêm possibilidades de carácter, que podem manifestar-se logo que o meio mude bruscamente. É assim que entre os mais ferozes convencionais se encontravam inofensivos burgueses que, em circunstâncias ordinárias, teriam sido pacíficos tabeliães ou virtuosos magistrados. Passada a tempestade, retomaram o carácter normal de pacíficos burgueses e Napoleão encontrou neles os mais dóceis servidores. Não podendo estudar neste ponto todos os graus de organização das multidões, encará-las-emos sobretudo na sua completa fase de organização. Assim veremos o que elas poderão ser, mas não o que sempre são. É somente nesta fase adiantada de organização que, sobre o fundo invariável e dominante da raça, se 33
A
PSICOLOGIA
DAS
MULTIDÕES
sobrepõem alguns caracteres novos e especiais, e se produz a orientação de todos os sentimentos e pensamentos da colectividade numa direcção idêntica. Só então se manifesta o que chamei a lei psicológica da unidade mental das multidões. Nos caracteres psicológicos das multidões há alguns que são comuns aos indivíduos isolados; outros, pelo contrário, são absolutamente especiais e só se encontram nas colectividades. Esses caracteres especiais são os que vamos estudar primeiro, para fazermos sobressair a sua importância. O mais curioso facto que uma multidão apresenta é o seguinte: quaisquer que sejam os indivíduos que a compõem, por mais semelhantes ou dissemelhantes que sejam os seus modos de vida, as suas ocupações, o carácter ou inteligência, pelo simples facto de se haverem transformado em multidão, esses indivíduos possuem uma espécie de alma colectiva que os faz sentir, pensar e proceder de um modo absolutamente diverso daquele por que sentiria, pensaria e procederia cada um deles isoladamente. Há idéias e sentimentos que só surgem, ou se transformam em actos, nos indivíduos em multidão. A multidão psicológica é um ser provisório, formado de elementos heterogêneos que por momentos se soldaram, exactamente como as células que constituem um corpo vivo formam pela sua reunião um ser novo que apresenta caracteres muito diferentes daqueles que cada uma das células possui. Contrariamente à opinião de um filósofo tão agudo como Herbert Spencer, no agregado que constitui uma multidão de nenhum modo há soma ou média de elementos, mas sim combinação e criação de novos caracteres, assim como na química alguns elementos postos em presença uns dos outros, como as bases e os ácidos, se combinam para formarem um corpo novo, que possui propriedades absolutamente diferentes das dos corpos que entraram na sua constituição. Fácil é verificar o quanto o indivíduo em multidão diverge do indivíduo isolado; mas já não é tão fácil achar as causas dessa diferença. 34
CARACTERES
GERAIS
DAS
MULTIDÕES
Para que possamos, ao menos, entrever essas causas devemos ter primeiramente presente na memória a afirmação da moderna psicologia de que não é só na vida orgânica, mas no funcionamento da inteligência, que os fenômenos inconscientes desempenham papel preponderante. A vida consciente do espírito apenas representa uma parte bem fraca junto da sua vida inconsciente. O mais hábil analista, o mais penetrante observador, só consegue descobrir um pequeníssimo número dos móbeis inconscientes que o dirigem. Os nossos actos conscientes provêm de um substracto inconsciente, criado principalmente por acções hereditárias. Este substracto contém os inumeráveis resíduos ancestrais que constituem a alma da raça. Além das causas declaradas dos nossos actos, há sem dúvida causas secretas que nós não confessamos; mas, além destas, ainda há outras mais secretas, pois que nem nós as conhecemos. A maioria das nossas acções quotidianas são o resultado de móbeis ocultos que escapam à nossa consciência. É sobretudo pelos elementos inconscientes, formadores da alma de uma raça, que se assemelham todos os indivíduos dessa raça e é especialmente pelos elementos conscientes, resultados da educação mas ainda mais de uma hereditariedade excepcional, que eles divergem. Os homens mais dissemelhantes em inteligência têm contudo instintos, paixões e sentimentos muito semelhantes. Em tudo que seja matéria de sentimento, religião, política, moral, afectos, antipatias, etc., os homens mais eminentes só raramente vão além do nível dos indivíduos vulgares. Assim, entre um grande matemático e o seu sapateiro pode haver um abismo intelectualmente, mas moralmente a diferença, a maior parte das vezes, é nula ou fraquíssima. Ora são precisamente as qualidades gerais de carácter, regidas pelo inconsciente e possuídas quase na mesma quantidade pelos indivíduos normais de uma raça, que nas multidões são postas em comum. Na alma colectiva, as aptidões intelectuais dos indivíduos e, por conseqüência, a sua individualidade, apagam-se. 35
A
PSICOLOGIA
DAS
MULTIDÕES
O heterogêneo afoga-se no homogêneo e as qualidades inconscientes dominam. É esta comunidade de qualidades vulgares o que exactamente nos explica o facto de as multidões nunca poderem efectuar actos que exijam elevada inteligência. As decisões de interesse geral tomadas por uma assembleia de homens distintos, mas especialistas em matérias diversas, não são sensivelmente superiores às decisões que uma assembleia de imbecis tomaria. Pois que, na realidade, esses homens distintos só podem fazer comuns as qualidades medíocres que toda a gente possui. Nas multidões, é a tolice que se acumula e não o espírito. Não é toda a gente, como tantas vezes se repete, que tem mais espírito que Voltaire, mas é certamente Voltaire quem tem mais espírito que toda a gente, se por toda a gente devemos tomar as multidões. Todavia, se os indivíduos em multidão se limitassem a porem em comum as qualidades vulgares das quais cada um deles tem a sua parte, haveria simplesmente média e não, como já tivemos ocasião de dizer, criação de caracteres novos. Cumpre-nos agora investigarmos como se estabelecem esses novos caracteres. Diversas são as causas que determinam a aparição dos caracteres especiais das multidões, que os indivíduos isolados não possuem. A primeira é o facto de o indivíduo em multidão adquirir, apenas pela qualidade, um sentimento de poder invencível, que lhe permite ceder a instintos que, estando isolado, forçosamente teria refreado. E tanto menos os refreará quanto, sendo anônima a multidão e, portanto, irresponsável, o sentimento da responsabilidade que sempre retém os indivíduos mais for desaparecendo, até desaparecer de todo. A segunda causa, o contágio, igualmente intervém na determinação das multidões para estas manifestarem caracteres especiais e ao mesmo tempo a sua orientação. O contágio é um fenômeno de fácil verificação, mas ainda não explicado, que devemos relacionar com os fenômenos de ordem hipnótica que rapidamente estudaremos. Numa multidão, todos os sentimentos, todos os 36
CARACTERES
GERAIS
DAS
MULTIDÕES
actos, são contagiantes e por tal forma que o indivíduo sacrifica muito facilmente o seu interesse pessoal ao interesse colectivo. Há nisto uma aptidão muito contrária à sua índole e de que o homem é absolutamente incapaz, quando não faça parte da multidão. A terceira causa, e esta é a mais importante, a sugestibilidade, determina nos indivíduos em multidão caracteres especiais, por vezes absolutamente contrários aos do indivíduo isolado. O contágio a que já nos referimos não é mais do que resultado da sugestibilidade. Para que possamos compreender este fenômeno, devemos ter presente no espírito algumas recentes descobertas da fisiologia. Sabe-se hoje que, por variados processos, um indivíduo pode ser posto em estado tal que, havendo perdido toda a sua personalidade consciente, obedeça a todas as sugestões do operador que lhe haja feito perder a personalidade, praticando esse indivíduo os actos mais antagônicos à sua índole e aos seus hábitos. Ora as mais cuidadosas observações parecem provar que o indivíduo mergulhado, durante um certo tempo, no seio de uma multidão em actividade bem depressa, em resultado dos dilúvios que dela se despedem ou por qualquer outra causa desconhecida por nós, se encontra num estado particular, que muito se avizinha do estado de fascinação em que se encontra o hipnotizado nas mãos do seu hipnotizador. Paralisada a vida do cérebro no sujeito hipnotizado, este é o escravo de todas as actividades inconscientes da sua espinal medula, então dirigida pela vontade do hipnotizador. A personalidade consciente desvaneceu-se completamente, a vontade e o discernimento perderam-se. Todos os sentimentos e pensamentos são orientados no sentido que o hipnotizador determina. Quase idêntico é também o estado do indivíduo que faça parte de uma multidão psicológica. Ele não tem consciência dos seus actos. Nele, como no hipnotizado, ao mesmo tempo que certas faculdades são destruídas, podem outras ser levadas a um grau de extrema exaltação. Sob a acção de uma sugestão, esse indivíduo 37
A
PSICOLOGIA
DAS
MULTIDÕES
lançar-se-á com impetuosidade irresistível na execução de certos actos. Esta impetuosidade é mais irresistível ainda nas multidões do que no sujeito hipnotizado, porque, sendo a sugestão a mesma para todos os indivíduos, exagera-se por se haver tornado recíproca. As individualidades que, na multidão, poderiam ter personalidade bastante forte para resistir à sugestão são em número tão diminuto que não podem lutar contra a corrente; quando muito poderão tentar uma diversão por uma sugestão diferente, e é por isso que, algumas vezes, um bom dito, por exemplo, uma imagem evocada a propósito, têm desviado as multidões dos mais sangrentos actos. Portanto, desvanecimento da personalidade consciente, preponderância da personalidade inconsciente, orientação, por via de sugestão e de contágio, dos sentimentos e das idéias num mesmo sentido, tendência para imediatamente transformar em actos as idéias sugeridas, são os principais caracteres do indivíduo em multidão. O indivíduo deixa de pertencer-se, fez-se um autômato em que a vontade própria nenhuma acção exerce. Também, pelo simples facto de fazer parte de uma multidão organizada, o homem desce alguns graus da escala da civilização. Isolado, seria talvez um indivíduo culto; em multidão, é um bárbaro, ou seja, um instintivo. Quando em multidões, tem o indivíduo a espontaneidade, a violência, a ferocidade e também os entusiasmos e os heroísmos dos seres primitivos dos quais ainda mais tende a aproximar-se pela facilidade com que se deixa impressionar por palavras e imagens, que nenhuma acção exerceriam sobre os indivíduos isolados e com que se deixa levar à prática de actos contrários aos seus mais claros interesses e aos seus mais conhecidos hábitos. O indivíduo em multidão é um grão de areia no meio de outros grãos de areia que o vento levanta e impele à vontade. É por isso que vemos júris darem veredictos que cada jurado individualmente reprovaria; assembleias parlamentares votarem leis e providências que cada um dos seus membros particularmente 38
CARACTERES
GERAIS
DAS
MULTIDÕES
condenaria. Considerados em separado, os homens da Convenção eram burgueses ilustrados, dados à paz; reunidos em multidão, não hesitavam na aprovação das mais ferozes propostas, nem em mandarem para a guilhotina indivíduos manifestamente inocentes e até, contrariamente a todos os seus interesses, não hesitaram em renunciar à sua inviolabilidade, dizimando-se uns aos outros. Não é apenas pelos actos que o indivíduo em multidão diverge essencialmente de si mesmo. Antes de haver perdido toda a independência, as idéias e os sentimentos transformaram-se-lhes, e tão profundamente que o avarento se muda em pródigo, o céptico em crente, o homem honrado em criminoso, o poltrão em herói. A renúncia de todos os privilégios, votada num momento de entusiasmo pela nobreza francesa na célebre noite de 4 de Agosto de 1789, não teria sido certamente aceite por nenhum dos nobres isoladamente. Do que precede concluímos que a multidão é sempre intelectualmente inferior ao homem isolado e que com relação aos sentimentos, aos actos provocados por esses sentimentos, a multidão pode, conforme as circunstâncias, ser melhor ou pior. Tudo depende do modo por que a multidão é sugestionada. É isto o que absolutamente ignoravam os escritores que apenas têm estudado as multidões sob o aspecto da criminalidade. A multidão, sem dúvida, é muitas vezes criminosa, mas também muitíssimas vezes é heróica. São principalmente as multidões que se conseguem levar a fazerem-se matar pela vitória de uma crença ou de uma idéia, que se entusiasmam pela glória e honra, que se arrastam, quase sem pão e sem armas, como no tempo das Cruzadas, à libertação do túmulo de um Deus, em mãos de infiéis, ou, como em 1793, à defesa do solo da pátria. São heroísmos um pouco inconscientes, não há dúvida, mas é com esses heroísmos que se faz a História. Se lançássemos no activo dos povos apenas as grandes acções friamente raciocinadas e resolvidas, os anais do mundo bem poucas teriam que registar. 39
SEGUNDO CAPÍTULO
SENTIMENTOS E MORALIDADE DAS MULTIDÕES
1. Impulsividade,
mobilidade e
irritabilidade das
multidões.
—
A multidão
é joguete de todas as excitações exteriores, reflectindo-lhe as variações incessantes. — As impulsões a que obedece são tão imperiosas que o interesse pessoal se apaga. — Nada é premeditado nas multidões — Acção da raça.
2. Sugestibilidade e credulidade das multidões.
— Obediência destas
às sugestões. — As imagens evocadas no seu espírito são por elas tomadas como realidades. — Porque é que essas imagens são semelhantes para todos os indivíduos que compõem a multidão. — Igualdade do sábio e do imbecil numa multidão. — Diversos exemplos das ilusões a que todos os indivíduos de uma multidão estão sujeitos. — Impossibilidade de dar crédito ao testemunho das multidões. — A unanimidade de numerosas testemunhas é das piores provas que podemos invocar para assentarmos na verdade de um facto. — Fraco valor dos livros de História. — 3. Exagero e simplicidade dos sentimentos das multidões.
— As multidões desconhecem sempre a
dúvida e a incerteza e vão sempre aos extremos. — Os seus sentimentos são
sempre excessivos.
—
4.
Intolerância,
autoritarismo e conservantismo
das multidões. — Causas destes sentimentos. — Servilismo das multidões em presença de u m a forte autoridade. — Os m o m e n t â n e o s i n s t i n t o s revolucionários das multidões não as impedem de serem extremamente conservadoras. — Por instinto, as multidões são inimigas de mudanças e do progresso. — 5. — Moralidade das multidões. — A moralidade das multidões, conforme as sugestões, pode ser muito superior ou muito inferior à
41
A
PSICOLOGIA
DAS
MULTIDÕES
dos indivíduos que as compõem. — Explicação e exemplos. — As multidões raras vezes têm por guia o interesse, que, na maioria dos casos, é o móbil exclusivo do indivíduo isolado. — Função moralizadora das multidões.
Depois de havermos indicado de um modo muito geral os caracteres principais das multidões, resta-nos entrar nos pormenores desses caracteres. Notar-se-á que, entre os caracteres especiais das multidões, alguns há, como a impulsividade, a irritabilidade, a incapacidade de raciocinar, a ausência de juízos e de espírito crítico, o exagero dos sentimentos e ainda outros, que igualmente se observam nos seres pertencentes a formas inferiores da evolução, como são a mulher, o selvagem e a criança; esta analogia, porém, indicamo-la apenas incidentalmente, porquanto a sua demonstração está fora dos limites desta obra. De resto essa demonstração seria inútil para as pessoas que conhecem a psicologia dos seres primitivos e seria pouco conveniente para as que desconhecem essa psicologia. Estudaremos sucessivamente os caracteres diversos observáveis na maioria das multidões.
1. Impulsividade, mobilidade e irritabilidade das multidões A multidão, como dissemos, ao estudarmos os seus caracteres fundamentais, é quase exclusivamente guiada pelo inconsciente. Os seus actos estão muito mais subordinados à acção da espinal medula que à do cérebro e nisto se avizinha muito dos seres perfeitamente primitivos. Os actos executados podem ser perfeitos quanto à execução, mas, não sendo dirigidos pelo cérebro, o indivíduo procede segundo o acaso das excitações. A multidão é o joguete de todas as excitações exteriores, reflectindo-lhes as variações incessantes; é, portanto, escrava das impulsões que recebe. O indivíduo isolado pode estar sujeito aos mesmos excitantes que 42
SENTIMENTOS
E
MORALIDADE
DAS
MULTIDÕES
actuam no homem em multidão; mas, como o cérebro lhe mostra os inconvenientes de ceder a essa acção, não cede. Este fenômeno podemos nós, fisiologicamente, exprimi-lo dizendo que o indivíduo isolado possui aptidões para dominar os seus actos reflexos, aptidão esta que a multidão não possui. As diversas impulsões a que as multidões obedecem poderão ser, conforme as excitações, generosas ou cruéis, heróicas ou pusilânimes, mas serão sempre tão imperiosas que o interesse pessoal, o interesse da própria conservação, não conseguirá dominá-las. As multidões são extremamente móveis, porque os excitantes que as podem actuar são muito variados e elas sempre lhes obedecem. Assim, vemo-las passar de um momento para o outro da mais sanguinária ferocidade à generosidade e ao mais perfeito heroísmo. A multidão faz-se muito facilmente carrasco; mas também, não menos facilmente, se faz mártir. É do seu seio que sempre correm as torrentes de sangue exigidas pela vitória de cada crença. Não é preciso remontarmos às idades heróicas para conhecermos de quanto são capazes as multidões. Nesse ponto dão de barato a vida num motim popular e não há ainda muitos anos que um general em França subitamente popular, se quisesse, teria facilmente encontrado cem mil homens decididos, prontos a deixarem-se matar por ele. Nada, pois, pode ser premeditado nas multidões. Estas podem percorrer sucessivamente a gama dos mais contrários sentimentos; mas estarão sempre sob a acção de excitações de momento, são semelhantes às folhas arrebatadas pelo furacão, por este espalhadas em todas as direcções e que depois tornam a cair. Ao estudarmos algumas multidões revolucionárias, apresentaremos alguns exemplos da variabilidade dos seus sentimentos. A mobilidade das multidões faz com que elas sejam difíceis de governar, principalmente quando se encontram na posse de parte dos poderes públicos. Se as necessidades da vida quotidiana não constituíssem como que um invisível regulador das coisas, 43
A
PSICOLOGIA
DAS M U L T I D Õ E S
as democracias não tinham possibilidade de duração; pois que se as multidões querem freneticamente as coisas, não são, todavia, pertinazes nesse querer. São tão incapazes de vontade persistente como de pensamentos duráveis. A multidão não é apenas impulsiva e móvel. Como o selvagem, não admite que qualquer coisa se possa interpor entre o seu desejo e a realização desse desejo. E compreende isso tanto menos, quanto é certo que o número dá-lhe o sentimento de um poder irresistível. Para o indivíduo em multidão desaparece a noção de impossibilidade. O indivíduo isolado sente bem que, só por si, não poderia incendiar um palácio, roubar um armazém, porque, mesmo quando se sentisse tentado a fazê-lo, facilmente venceria essa tentação. Fazendo parte de uma multidão, o indivíduo tem a consciência do poder que o número lhe dá e basta sugeriremlhe idéias de morticínio e pilhagem para que ele imediatamente ceda à tentação. Um obstáculo inesperado que se depare será freneticamente destruído. Se o organismo humano permitisse a perpetuidade do furor, podia dizer-se que o furor era o estado normal da multidão contrariada. Na irritabilidade, impulsividade e mobilidade das multidões, como em todos os sentimentos populares que tivermos de estudar, intervém sempre os caracteres fundamentais da raça, que constituem o invariável terreno em que gravitam todos os nossos sentimentos. Todas as multidões são sempre, sem dúvida, irritáveis e impulsivas, mas com grandes variações de intensidade. É, por exemplo, extraordinária a diferença entre uma multidão latina e uma multidão anglo-saxónica. Os mais recentes factos da História projectam vivíssima luz neste assunto. Há anos, bastou a publicação de um simples telegrama que noticiava um suposto insulto dirigido a um embaixador para fazer explodir tal ira que dela resultou imediatamente uma guerra terrível; anos depois deste facto, e não muitos, a notícia telegráfica de um revés insignificante em Langson determinou uma nova explosão que deu em resultado a queda imediata do governo. Nesse momento, o revés 44
SENTIMENTOS
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MORALIDADE
DAS
MULTIDÕES
muito mais grave sofrido por uma expedição inglesa em Cartum só produziu fraca impressão em Inglaterra, não determinando sequer a queda do governo. As multidões em toda a parte são femininas, mas as latinas são, de todas, as mais femininas. Quem nelas se apoiar pode subir muito e muito rapidamente, mas andará sempre muito vizinho da rocha Tarpeia e com a certeza de ser dela um dia precipitado.
2. Sugestibilidade e credulidade das multidões Dissemos, ao definirmos as multidões, que um dos seus caracteres gerais era uma excessiva sugestibilidade e mostrámos quanto, em qualquer aglomeração humana, uma sugestão é contagiosa, explicando por este facto a rápida orientação dos sentimentos em diversos sentidos. Por muito neutra que a suponhamos, a multidão encontra-se a maior parte das vezes num estado de atenção expectante que facilita a sugestão. A primeira sugestão formulada que surgir impõe-se imediatamente por contágio a todos os cérebros, e a orientação estabelece-se imediatamente. Como sucede com todos os seres sugestionados, a idéia que invadiu o cérebro tende a transformar-se em acto. Trate-se de incendiar um palácio ou trate-se de um acto de dedicação e altruísmo, a multidão pouco se importará, prestando-se a qualquer deles com a mesma facilidade. Tudo está dependente da natureza do excitante e não, como no ser isolado, das relações existentes entre o acto sugerido e as razões que possam opor-se à sua realização. Por isso a multidão, errante sempre nos limites do inconsciente, sofrendo com facilidade todas as sugestões, tendo toda a violência de sentimentos própria dos seres que não podem apelar para a acção da razão, desprovida de espírito crítico, não pode deixar de ser de uma excessiva credulidade. Para ela, não existe o inverosímil, e bom é que nunca esqueçamos isto, para nos não 45
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PSICOLOGIA
DAS
MULTIDÕES
causar espanto a facilidade com que se formam e propagam as mais inverosímeis lendas e narrações(3). A formação de lendas que tão facilmente circulam nas multidões não é apenas determinada por uma credulidade completa; também o é pelas prodigiosas deformações que os acontecimentos sofrem na imaginação das pessoas reunidas. O mais simples acontecimento encarado pela multidão altera-se num momento. A multidão pensa por imagens e a imagem evocada, por sua vez, evoca uma série delas que nenhuma relação lógica têm com a primeira. Facilmente concebemos semelhante estado, se pensarmos nas extravagantes sucessões de idéias a que, por vezes, somos levados pela recordação de um facto qualquer. A razão mostra-nos a incoerência que há nestas imagens, mas a multidão é que não vê isso e, portanto, tudo quanto a sua imaginação deformada acrescentar ao real será com este confundido. A multidão não separa o subjectivo do objectivo; admite como reais as imagens despertadas no seu espírito e que, na maioria das vezes, só relações muito longínquas têm com o caso observado. As deformações sofridas da multidão por um acontecimento qualquer de que ela é testemunha deviam ser, ao que parece, inúmeras e em diversos sentidos, por serem de temperamentos muito diferentes os indivíduos que as constituem. Todavia, não é assim. Devido ao contágio, as deformações são da mesma natureza e no mesmo sentido para todos os indivíduos. A primeira deformação feita por um dos indivíduos da colectividade é o núcleo da sugestão contagiosa. Assim S. Jorge, antes de aparecer a todos os cruzados nas muralhas de Jerusalém, só foi certamente visto por um dos (') As pessoas que assistiram ao cerco de Paris, na Guerra Franco-Prussiana, tiveram ocasião de apreciar exemplos numerosos da credulidade das multidões nas coisas mais inverosímeis. Uma vela que se acendesse num andar mais alto era considerada imediatamente como um sinal dado aos sitiantes por qualquer traidor, se bem que fosse de incontestável evidência, após dois segundos de reflexão, que era materialmente impossível ver-se a algumas léguas de distância a pequena luz da vela. 46
SENTIMENTOS
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MORALIDADE
DAS
MULTIDÕES
assistentes e, por via da sugestão e do contágio, o milagre notado por um foi imediatamente aceite por todos. É este sempre o mecanismo das alucinações colectivas, tão freqüentes na História, que parecem possuir todos os caracteres clássicos da autenticidade, pois que se trata de fenômenos verificados por milhares de pessoas. E não se pode argumentar contra estes factos com a qualidade mental dos indivíduos de que a multidão se compõe, pois que esta qualidade nenhuma importância tem para o caso. Logo que estejam como partes integrantes da multidão, tanto o sábio como o ignorante são incapazes de exercerem a observação. A tese poderá parecer paradoxal. Para a demonstrarmos com toda a minuciosidade, seria necessário relatarmos tantos factos históricos que com eles muitos e muitos volumes se encheriam. Contudo, como não queremos deixar o leitor sob a impressão de fazermos afirmações gratuitas sem provas, vamos apresentar alguns exemplos comprovativos do que deixámos dito, e tirados ao acaso do enorme acervo dos que se poderiam citar. O facto que vamos narrar é dos mais típicos, porque o fomos buscar às alienações colectivas que atacam uma multidão em que se encontram indivíduos de todas as classes, ignorantes e instruídos. Este facto é incidentalmente narrado pelo tenente da Marinha Julien Félix no livro que compôs a propósito das correntes do mar e foi mais tarde reproduzido na Revue Scientifique. A fragata francesa Belle-Poule andava em cruzeiro no mar, com o fim de encontrar a corveta Berceau de que uma violenta tempestade a havia separado. Era meio-dia e o sol brilhava com todo o esplendor, quando, subitamente, o vigia dá sinal de que enxergava uma embarcação perdida. A tripulação dirigiu os seus olhares para o ponto indicado e todos, oficiais e marinheiros, viram nitidamente uma jangada carregada de homens e rebocada por alguns barcos que arvoraram o sinal de perigo extremo. Contudo, isso não passava de uma alucinação colectiva. O almirante Desfossés mandou lançar à água uma embarcação que fosse socorrer os náufragos. 47
A
PSICOLOGIA
DAS
MULTIDÕES
À proporção que se aproximavam, os marinheiros e oficiais que tripulavam o barco de socorro viam grande número de homens que se moviam, estendendo as mãos pedindo socorro e ouviram o ruído confuso de grande número de vozes. Quando, porém, a embarcação chegou ao ponto onde viam tudo isso, depararam-se-lhes apenas alguns ramos de árvores cobertos de folhas e que a tempestade havia arrancado na costa próxima. Em presença de um tão palpável e evidente testemunho, a alucinação desvaneceu-se. Neste exemplo vê-se desenrolar com toda a clareza o mecanismo da alucinação colectiva como nós a explicámos. De um lado, uma multidão em estado de atenção expectante; do outro, uma sugestão efectuada pelo vigia que deu o sinal de embarcação abandonada às ondas, sugestão esta que, por contágio, foi aceite por todos os presentes, oficiais e marinheiros. Não é necessário que a multidão seja numerosa para ser destruída a faculdade de ver correctamente o que diante dela se passa e para os factos reais serem substituídos por alucinações que nenhumas relações com eles tenham. Logo que alguns indivíduos estejam reunidos, constituem multidão e, muito embora esses indivíduos sejam sábios ilustres, a verdade é que tomam todos os caracteres das multidões, em tudo quanto esteja fora dos limites da sua especialidade. A faculdade de observação e o espírito crítico de que cada um deles é dotado apagam-se imediatamente. Davey, psicólogo engenhoso, dá-nos também um curiosíssimo exemplo, há pouco publicado nos Annales des Sciences Psychiques, que não resistimos à tentação de narrarmos nesta nossa obra. Davey reuniu alguns distintos observadores, entre os quais um dos mais notáveis sábios ingleses, Wallace, e, na presença deles, permitindo-lhes que examinassem todos os objectos e timbrassem o que melhor lhes parecesse, executou todos os fenômenos clássicos do espiritismo, materialização dos espíritos, escrita em ardósias, etc. Depois, alcançando desses notáveis observadores relatórios escritos em que afirmavam que os fenômenos observados só podiam dever-se a meios sobrenaturais, descobriu-lhes que 48
SENTIMENTOS
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MORALIDADE
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MULTIDÕES
eram apenas o resultado de embustes, de resto muito simples. «O mais extraordinário da investigação de Davey», escreve o autor da narrativa, «não é o maravilhoso dos passes e habilidades, mas a fraqueza extrema dos relatórios dos não iniciados no embuste. Portanto», acrescenta ele, «as testemunhas podem fazer narrações numerosas e positivas que são absolutamente errôneas, mas cujo resultado é serem inexplicáveis pelo embuste, a aceitarmos como verdadeiras as suas descrições, os fenômenos que descrevem. Os processos usados por Davey eram tão simples que é de admirar como ele teve ousadia para empregá-los. Isto prova, porém, que era tal a sua acção no espírito da multidão que a levava a presuadir-se de que via o que na realidade não via.» Como se vê, aqui como em tudo e sempre, há a manifestação do poder do hipnotizador sobre o hipnotizado. E a acção desse poder sobre espíritos superiores, e antecipadamente desconfiados, dá bem a medida de quão fácil será iludir as multidões vulgares. São quase inumeráveis exemplos análogos a este. Agora que estamos escrevendo estas linhas, vemos exactamente os jornais pejados com o caso de duas meninas que se afogaram e foram retiradas do Sena. Essas crianças foram reconhecidas categoricamente por uma ou duas dúzias de testemunhas como as duas determinadas crianças. Os testemunhos eram tão unânimes que nenhuma dúvida podia caber no espírito do juiz de instrução que, em vista disso, mandou lavrar a certidão de óbito. Mas, precisamente na ocasião em que as duas afogadas iam ser enterradas, o acaso descobria que as supostas vítimas estavam de perfeita saúde e que só muito de longe se pareciam com as pobres afogadas. Neste caso, como nos exemplos precedentemente citados, a asseveração da primeira testemunha, vítima de uma ilusão, bastou para sugestionar as restantes. Em casos semelhantes, o ponto de partida da sugestão é sempre a ilusão produzida num indivíduo pelas reminiscências mais ou menos vagas que possui, depois vem o contágio por via da afirmação da primitiva ilusão. Sendo o observador muito 49
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PSICOLOGIA
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MULTIDÕES
impressionável, bastará muitas vezes que o cadáver que ele julga reconhecer apresente qualquer particularidade, uma cicatriz, ou um pormenor qualquer de trajo que possa recordar-lhe a idéia de uma outra pessoa para que o observador afirme que a reconhece, embora o cadáver nenhuma semelhança real tenha com essa pessoa. A idéia que surgiu no espírito pode ser então o núcleo de uma espécie de cristalização que invade os domínios de entendimento e paralisa todas as faculdades críticas. O que o observador então vê já não é o objecto mas a idéia no seu espírito despertada. É assim que se explicam os reconhecimentos errados de cadáveres de crianças, reconhecimentos feitos pelas próprias mães, como no caso seguinte, que, embora antigo, foi recentemente lembrado nos jornais, caso este em que precisamente se manifestam as duas ordens de sugestão cujo mecanismo acabamos de indicar. «A criança foi reconhecida por outra criança que, na realidade, estava enganada. Desde então começou de desdobrar-se a série dos reconhecimentos inexactos. E presenciou-se então uma coisa extraordinária. No dia seguinte àquele em que um estudante havia reconhecido o cadáver, uma mulher exclamou: "Ah, meu Deus, é meu filho!" Levaram-na junto do cadáver, examinou atentamente o estado do cadáver e verifica que existe uma cicatriz na fronte. "Sim, sim", diz a pobre mãe, "é, na verdade, o meu pobre filho que andava perdido desde Julho, roubaram-mo e mataram-mo!" A pobre mulher era porteira na Rua do Forno e chamava-se Chavandret. Mandaram chamar um cunhado que tinha, e este, sem hesitar, disse: "É o pequeno Philibert." Muitos vizinhos reconheceram também no cadáver o pequeno Philibert Chavandret, e o próprio mestre-escola o reconheceu por uma medalha que o pequeno tinha. Pois bem, vizinhos, cunhado, mestre-escola e mãe, todos se enganaram. Seis semanas mais tarde, estabeleceu-se a identidade da criança. Era natural de Bordéus, aí fora assassinada e transportada para Paris. (Éclair de 21 de Abril de 1895). 50
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Devemos advertir que estes reconhecimentos, na maioria dos casos, são feitos por mulheres e crianças, isto é, precisamente pelos seres mais impressionáveis. Ao mesmo tempo, esses reconhecimentos mostram bem a importância que em julgado devem merecer tais testemunhos. O testemunho das crianças, principalmente, nunca deveria invocar-se. Os magistrados, como se sabe, repetem como um lugar-comum que na idade infantil se não mente; ora, se os magistrados tivessem uma cultura psicológica um pouco mais séria que a que ordinariamente possuem, ficariam sabendo que, ao contrário do que eles afirmam, nesta idade mente-se sempre. Sem dúvida, as mentiras, nessa idade, são inocentes, mas nem por isso deixam de ser mentiras. Mais valia condenar-se um acusado pelo seu simples aspecto, como tantas vezes se tem feito, do que pelo testemunho de uma criança. Voltando às observações feitas pelas multidões, concluiremos que as observações colectivas são de todas as mais errôneas e que, na maior parte dos casos, representam simplesmente a ilusão de um indivíduo que, por meio do contágio, sugestionou os outros. Poderíamos multiplicar quase infinitamente o número de factos comprovativos de que o testemunho das multidões deve merecer-nos a mais absoluta desconfiança. Milhares de homens assistiram, há trinta e oito anos, à célebre carga de cavalaria da Batalha de Sedan, e, todavia, é impossível, em presença dos testemunhos oculares mais contraditórios, saber-se por quem essa carga foi comandada. Num livro recente, o general inglês Wolseley provou que se têm cometido os mais graves erros a respeito dos mais importantes factos da Batalha de Waterloo, factos estes atestados por muitas centenas de testemunhas(4).
C) Saberemos nós, por acaso, para uma batalha só que seja, como as coisas se passaram? Duvido bem. Ordinariamente sabemos quem foram os vencedores e os vencidos, mas quase sempre nada mais do que isso. O que d'Harcourt, actor e testemunha, narra da Batalha de Solferino pode aplicar-se a todas as batalhas. Escreve ele: «Os generais, naturalmente, informados por centenas de 51
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Estes e outros factos semelhantes provam bem o que vale o testemunho das multidões. Os tratados de lógica incluem a unanimidade de testemunhos na categoria das mais sólidas provas que possam invocar-se para provar a exactidão de um facto. O que sabemos, porém, da psicologia das multidões mostra bem que os compêndios de lógica devem ser completamente modificados neste assunto. Os acontecimentos que mais dúvidas nos devem oferecer são exactamente aqueles que, porventura, foram examinados por maior número de pessoas. Dizer-se que um facto foi simultaneamente verificado por milhares de testemunhas eqüivale, muitas vezes, a dizer que o facto na realidade foi muito diferente do que se conta. Do que fica dito, deduz-se claramente que devemos considerar os livros de História como obras de pura fantasia. São narrativas fantasiosas de factos mal observados, acompanhadas de explicações dadas sem critério. É preferível, por mais útil, amassar gesso a perder o tempo em escrever tais livros. Se o passado não nos houvesse legado as suas obras literárias, artísticas e monumentais, nada absolutamente real e verdadeiro saberíamos do passado. Por acaso, conhecemos nós uma só palavra que seja verdadeira respeitante à vida dos grandes homens que desempenharam importantes funções na humanidade, como Hércules, Buda, Jesus e Maomé? Não, provavelmente. De resto, no fundo, a sua vida real pouco nos importa; o que realmente temos interesse em conhecer é o que os grandes homens são como a lenda popular os fantasia. São
testemunhas, transmitem os seus relatórios oficiais; os oficiais encarregados de transmitirem as ordens modificam esses documentos e redigem o projecto definitivo; o chefe do Estado-Maior concorda ou torna a fazer um novo plano. Depois levam-no ao marechal, que exclama: «Estais absolutamente enganados!» e dá nova redacção ao projecto. Neste ponto, já quase nada resta do relatório primitivo.» Harcourt conta este episódio como uma prova da impossibilidade em que nos encontramos de estabelecer a verdade sobre os factos, ainda os mais importantes e melhor observados. 52
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sempre heróis lendários e nunca heróis reais os que impressionam a alma das multidões. Infelizmente as lendas — incluindo as que estão fixadas pelos livros — não têm consistência nenhuma. A imaginação das multidões transforma incessantemente as lendas, conforme os tempos e, principalmente, conforme as raças. Há enorme distância do Jeová sanguinário da Bíblia ao Deus todo amor de Santa Teresa, e o Buda adorado na China nenhuns caracteres comuns tem com o que a índia venera. Nem mesmo é preciso que passem séculos sobre os heróis para que a imaginação das multidões lhes modifique as lendas. A modificação, por vezes, faz-se no prazo de alguns anos. Assim, já em nossos dias, vimos a lenda de um dos maiores heróis da História modificar-se algumas vezes em menos de cinqüenta anos. Sob os Bourbons, Napoleão foi como que uma personagem idílica, filantrópico e dadivoso, amigo dos humildes, que, na expressão dos poetas, esses humildes em suas pobres choupanas deviam por muito tempo recordar com saudade. Trinta anos depois, o herói bondoso e meigo transformara-se num déspota sanguinário que, depois de haver usurpado o poder e a liberdade, fez com que três milhões de homens morressem, unicamente para satisfazer a sua desmedida ambição. Em nossos dias vai-se dando uma nova modificação na lenda. E, quando algumas dezenas de séculos hajam passado sobre ela, os sábios do futuro, em presença dessas narrativas contraditórias, porão talvez em dúvida a existência desse herói, como já os de boje, às vezes, duvidam de Buda, e só verão nele algum mito solar, ou o desenvolvimento da lenda de Hércules. Consolar-se-ão, porém, sem dúvida, facilmente dessa incerteza, porque melhor iniciados do que nós no conhecimento da psicologia das multidões, saberão que a História só pode perpetuar mitos.
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3. Exagero e simplismo dos sentimentos das multidões Os sentimentos, bons ou maus, manifestados por uma multidão apresentam o duplo carácter de serem muito simples e muito exagerados. Neste ponto, como em tantos outros, o indivíduo em multidão aproxima-se muito dos seres primitivos. Inacessível à graduação, vê as coisas em monte e não conhece transições. Na multidão, o exagero dos sentimentos fortifica-se pelo facto de um sentimento manifestado aumentar consideravelmente a sua força, propagando-se rapidamente pela sugestão e contágio a evidente aprovação de que é objecto. A simplicidade e exagero dos sentimentos das multidões fazem com que estas não conheçam dúvidas nem incertezas. Como as mulheres, vão sem hesitações até aos extremos. Uma suspeita apenas enunciada transforma-se imediatamente em indiscutível evidência; um começo de antipatia ou de reprovação, que no indivíduo isolado se não acentuaria, torna-se imediatamente em ódio feroz no indivíduo em multidão. A violência dos sentimentos das multidões é principalmente ainda exagerada nas multidões heterogêneas pela ausência de responsabilidade. A certeza da impunidade, tanto mais forte quanto mais numerosa é a multidão, e a noção de um considerável poder momentâneo, devido ao número, tornam possíveis à colectividade sentimentos e actos que para o indivíduo isolado são impossíveis. Nas multidões, o ignorante, o imbecil e o invejoso estão libertos do sentimento da sua nulidade e da sua incapacidade, sentimento este que é substituído pela noção de uma força brutal, passageira mas imensa. O exagero nas multidões traz desgraçadamente muitas vezes maus sentimentos, restos atávicos dos instintos do homem primitivo, que o receio do castigo obriga o indivíduo isolado e responsável a refrear. E isto é que faz com que as multidões sejam tão facilmente levadas aos piores excessos. 54
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Só, todavia, habilmente sugestionadas é que as multidões são capazes de heroísmo, dedicação e outras elevadas virtudes. São até mais capazes dessas virtudes que o indivíduo isolado. Voltaremos a este assunto ao estudarmos a moralidade das multidões. Exagerada nos sentimentos, a multidão só é impressionada por sentimentos excessivos. O orador que quiser seduzi-la deve abusar das afirmações violentas. Exagerar, afirmar, repetir e repisar, não procurar demonstrar seja o que for pelo raciocínio, são processos de argumentação bem conhecidos dos oradores das reuniões populares. A multidão exige ainda os mesmos exageros nos sentimentos dos seus heróis. As suas qualidades e as suas virtudes aparentes devem ser sempre amplificadas. Tem-se observado com muita justeza que no teatro a multidão quer que o herói da peça tenha sempre qualidades de coragem e moralidade, e possua virtudes tais que na vida nunca se realizam. Com razão se tem falado da óptica especial do teatro. Sem dúvida que existe uma, mas as suas regras, na maioria dos casos, nada têm que ver com o bom senso e a lógica. A arte de falar às multidões é, sem dúvida, de ordem inferior, mas exige aptidões muito especiais. Muitas vezes pela leitura não achamos explicação do bom êxito alcançado por algumas peças teatrais. Os próprios empresários e directores de cena, quando recebem as peças, são os primeiros a não saberem se elas serão aplaudidas pelo público, porque, para o saberem ao certo, seria necessário que eles se pudessem transformar em multidão(5). Neste assunto, se pudéssemos O Este facto explica-nos a razão por que, às vezes, peças rejeitadas por todos os empresários obtêm êxito entusiástico, quando, casualmente, são representadas. É bem conhecido o êxito alcançado pela peça de Coppée, Pour la couronne, rejeitada por todos os teatros, durante dez anos consecutivos, apesar do nome do autor. A Madrinha de Charley, rejeitada por todos os teatros, é representada à custa de um corretor de fundos, teve duzentas representações em França e mais de mil em Inglaterra. Sem a explicação que apresentámos mais acima sobre a impossibilidade em que se encontram os directores de 55
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desenvolvê-lo, teríamos azo de mostrar a acção preponderante da raça. A obra teatral que muitas vezes entusiasma a multidão num país vai cair redondamente noutro, ou alcança apenas um êxito de estima e convenção, porque, evidentemente, não põe em acção as molas capazes de entusiasmarem o novo público. Julgo desnecessário acrescentar que o exagero das multidões apenas se exerce nos sentimentos e de nenhuma forma na inteligência. Já fiz ver que só pelo facto de o indivíduo se encontrar em multidão sofre imediata e considerável baixa no nível intelectual. Este facto foi também confirmado por um erudito magistrado, Tarde, nos seus inquéritos acerca dos crimes das multidões. Só na ordem dos sentimentos é que as multidões podem elevar-se às maiores culminâncias ou descerem às mais fundas baixezas.
4. I n t o l e r â n c i a , a u t o r i t a r i s m o e c o n s e r v a n t i s m o das multidões As multidões apenas conhecem os sentimentos simples e extremos; as opiniões, idéias e crenças que lhes sejam sugeridas são aceites ou rejeitadas em globo e consideradas verdades ou erros absolutos, não admitindo meio-termo. Sucede sempre isto com as crenças determinadas pela sugestão, em vez de provindas do raciocínio. Todos nós sabemos quão intolerantes são as crenças religiosas e o despótico domínio que sobre nossas almas exercem. A multidão é tão autoritária como intolerante, por isso que nunca estabelece a mais pequena dúvida sobre o que lhe parece verdade ou erro e porque possui também a noção nítida da sua força. O indivíduo admite contradição e discussão, o que
teatro de poderem fazer mentalmente as vezes da multidão, tais aberrações de apreciação seriam incompreensíveis da parte de indivíduos competentes e bastante interessados em não cometerem tão graves erros. É um assunto que eu não posso tratar nesta obra e que, todavia, é digno do estudo mais aturado. 56
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a multidão nunca admite. Nas reuniões públicas, a mais ligeira contradição por parte de um orador é imediatamente acolhida com gritos, ou, melhor, uivos de furor e invectivas violentas, bem depressa seguidas de vias de facto e de expulsão, se o orador insistir um pouco. Sem a presença inquietadora dos agentes da autoridade, o contraditar seria mesmo freqüentemente chacinado. O autoritarismo e a intolerância são gerais em todas as categorias de multidões, mas apresentam graus muito diversos, reaparecendo também aqui a noção fundamental da raça, dominadora de todos os sentimentos e de todos os pensamentos dos homens. É, principalmente, nas multidões latinas que o autoritarismo e a intolerância se têm desenvolvido em mais alto grau, chegando ao ponto de haverem destruído completamente o sentimento da independência individual tão poderoso nos anglo-saxões. As multidões latinas só são sensíveis à independência colectiva da seita a que pertencem, e a característica desta independência é a necessidade de subjugarem imediata e violentamente às suas crenças todos os dissidentes. Nos povos latinos, os jacobinos de todos os tempos, desde os da Inquisição, nunca puderam elevar-se a outra concepção de liberdade. O autoritarismo e a intolerância são para as multidões sentimentos muito nítidos, que facilmente concebem e aceitam, tão facilmente como os praticam, logo que lhos impõem. As multidões respeitam docilmente a força e são mediocremente impressionadas pela bondade, que para elas só representa uma forma de fraqueza. As simpatias das multidões nunca vão para os senhores bonacheirões, mas para os tiranos que vigorosamente as hajam esmagado. A estes é que elas erigem as mais elevadas estátuas. Quando de boamente pisam o déspota derrubado, fazem-no porque, havendo ele perdido a força, reentrou na categoria dos fracos que se desprezam por já se não temerem. O tipo do herói querido para as multidões há-de ter sempre a estrutura de um César que as seduz com o penacho, se impõe pela autoridade e as atemoriza com o sabre. 57
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Sempre pronta a levantar-se contra uma autoridade fraca, a multidão curva-se com servilismo diante de uma forte autoridade. E quando a força da autoridade seja intermitente, a multidão, obedecendo sempre aos seus sentimentos extremos, passa alternadamente da anarquia para a escravidão e da escravidão à anarquia. De resto, seria desconhecer quase completamente a psicologia das multidões o acreditar na preponderância dos seus instintos revolucionários. Só as suas violências nos iludem neste ponto. As suas explosões de revolta e destruição são sempre muito efêmeras. As multidões são muito regidas pelo inconsciente e muito sujeitas, por conseguinte, à acção de hereditariedades seculares, para deixarem de ser extremamente conservadoras. Abandonadas à sua própria acção, bem depressa se cansam com as suas desordens e dirigem-se instintivamente para a servidão. Foram os mais altivos e intratáveis dos jacobinos exactamente aqueles que mais energicamente aclamaram Bonaparte quando este suprimiu todas as liberdades e fez sentir duramente a sua mão de ferro. É de difícil compreensão a História, principalmente a das revoluções populares, quando não tenhamos em consideração os instintos profundamente conservadores das multidões. Elas bem querem mudar os nomes das suas instituições e fazem por vezes até violentas revoluções para alcançarem essas mudanças; mas o fundo dessas instituições é por tal forma a expressão das necessidades hereditárias da raça que, na realidade, voltam sempre à mesma. A mobilidade incessante das multidões apenas actua em coisas absolutamente superficiais. De feito, as multidões possuem instintos conservadores tão irredutíveis como os de todos os seres primitivos. É absoluto o respeito feiticista que manifestam pela tradição, é profundíssimo o horror inconsciente que nutrem por todas as inovações susceptíveis de lhes alterarem as condições reais de existência. Se as democracias tivessem o poder que hoje têm na época em que se inventaram os teares mecânicos, o vapor e os caminhos-de-ferro, teria sido impossível a realização de tais inventos, ou só se conseguiriam à custa de revoluções e repetidas 58
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e sangrentas desordens. Foi uma felicidade para o caminhar progressivo da civilização que o poder das multidões só desabrochasse quando já se haviam efectuado as grandes descobertas da ciência e da indústria.
5. Moralidade das multidões Se dermos à palavra «moralidade» a acepção de respeito constante por certas convenções sociais e de permanente repressão dos impulsos egoístas, é evidente que as multidões são muito impulsivas e extremamente móveis para que possam ser susceptíveis de moralidade. Mas se na palavra «moralidade» fizermos entrar a momentânea aparição de certas qualidades tais como a abnegação, a dedicação, o desinteresse, o sacrifício pessoal, a necessidade de equidade, podemos então dizer que, pelo contrário, as multidões são muitas vezes susceptíveis de uma muito elevada moralidade. Os raros psicólogos que têm estudado as multidões só as têm encarado pelo aspecto de seus actos criminosos, e, vendo que estes actos são muito freqüentes, consideraram-nas como possuidoras de um baixíssimo nível moral. Ora, sem dúvida, muitas vezes assim é: mas porquê? Simplesmente porque os instintos de ferocidade destrutiva são resíduos das idades primitivas, que dormem no fundo de cada um de nós. Na vida do indivíduo isolado ser-nos-ia perigoso satisfazê-los, ao passo que a absorção numa multidão irresponsável, em que, por conseqüência, a impunidade nos está assegurada, nos dá plena liberdade para nos entregarmos a esses instintos. Como, em regra, não podemos exercer esses instintos destruidores sobre os nossos semelhantes, limitamo-nos a exercê-los sobre os animais. A paixão tão generalizada pela caça e os actos de ferocidade das multidões derivam da mesma fonte. A multidão que lentamente vai despedaçando uma vítima sem defesa dá provas de ferocidade 59
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muito cobarde; mas para o filósofo, essa ferocidade é muito vizinha da dos caçadores que se reúnem às dúzias para terem o prazer de assistirem à perseguição e extirpamento de um mísero veado, levados a efeito por cães. A multidão é capaz, como se sabe, de assassinar, incendiar e praticar todos os crimes, é igualmente capaz de actos de dedicação, sacrifício e desinteresse muito elevados, mais elevados até do que aqueles de que é capaz o indivíduo isolado. É, principalmente, sobre o indivíduo em multidão que se actua e muitas vezes até a ponto de obter-se dele o sacrifício da vida, invocando sentimentos de glória, honra, religião e pátria. A História está cheia de exemplos análogos aos das cruzadas e voluntários de 1793. Só as colectividades são capazes dos grandes desinteresses e das grandes dedicações. Que multidões se não têm heroicamente deixado chacinar por crenças, idéias e palavras, que às vezes mal compreendem! As multidões que fazem greves fazem-no muito mais em obediência a uma ordem do que para obterem um aumento do magro salário com que quase sempre se dão por satisfeitas. O interesse pessoal rarissimamente é poderoso estimulante das multidões, sendo todavia estímulo quase exclusivo do indivíduo isolado. Não foi certamente o interesse que guiou as multidões em tantas guerras, a maior parte das vezes incompreensíveis para a sua inteligência, e em que se deixavam chacinar tão facilmente como as cotovias hipnotizadas pelos espelhos dos caçadores. Aos mais refinados patifes sucede muitas vezes, pelo simples facto de estarem reunidos em multidão, manifestarem momentânea e passageiramente princípios muito severos de moralidade. Taine salienta o facto de os matadores de Setembro virem depositar na mesa das comissões carteiras e jóias das vítimas, de que facilmente se podiam ter apossado. A multidão ululante, raivosa e cheia de miséria que invadiu as Tulherias na Revolução de 1848 não se apoderou de um único dos objectos que a deslumbraram e cada um dos quais representava pão para muitos dias. 60
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Esta moralização do indivíduo pela multidão não é exactamente uma regra constante; mas é, sem dúvida, um facto que se dá com freqüência. Podemos observá-la até em circunstâncias muito menos graves que aquelas que acabamos de citar. Já dissemos que, no teatro, a multidão exige ao herói da peça virtudes exageradas e é facto de banal observação o de uma reunião, embora composta de elementos inferiores, mostrar-se em regra muito formalista. O estroina, o chulo que vive à custa de mulher, o gatuno trocista, murmuram muitas vezes ao presenciarem uma cena pouco decente ou uma conversação ligeira, muito anódinas, todavia, comparadas com as cenas e conversações da sua vida habitual. Portanto, as multidões, se muitas vezes se entregam a baixos instintos, dão também, por vezes, o exemplo de elevados actos de moralidade. Se o desinteresse, a resignação, a dedicação absoluta por um ideal quimérico ou realizável são forças morais, podemos afoitamente dizer que as multidões possuem essas forças em intensidade tal que os mais sábios filósofos raramente a atingiram. Sem dúvida, as multidões praticam essas virtudes inconscientemente, mas isso que importa? Não nos lamentemos, pois, muito por as multidões serem principalmente guiadas pelo inconsciente e não raciocinarem. Se algumas vezes as multidões houvessem raciocinado e atendessem aos seus imediatos interesses, porventura nenhuma civilização se teria desenvolvido à superfície da Terra e a humanidade não teria história.
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TERCEIRO CAPITULO
IDÉIAS, RACIOCÍNIOS E IMAGINAÇÃO DAS MULTIDÕES
1. As idéias das multidões. — As idéias fundamentais e as idéias acessórias. — C o m o as idéias contraditórias podem subsistir simultaneamente. — Transformações que as idéias superiores devem sofrer para serem acessíveis às multidões. — A função social das idéias é independente da parte de verdade que elas possam conter. — 2 . 0 raciocínio das multidões. — As multidões não se d e i x a m a c t u a r pelos r a c i o c í n i o s . — Os r a c i o c í n i o s das multidões são sempre de ordem muito inferior. — As idéias que associam só têm aparências de analogia, ou de sucessão. — 3 .A imaginação das multidões. — Poder da imaginação das multidões. — Pensam por imagens e essas imagens sucedem-se sem nenhuma ligação. — As multidões impressionam-se principalmente com o lado maravilhoso das coisas. — O maravilhoso e o lendário são os verdadeiros suportes das civilizações. — A imaginação popular tem sido sempre a base do poder dos homens de Estado. — C o m o se apresentam os factos capazes de impressionarem a imaginação das multidões.
1. As idéias das multidões Quando tivemos ocasião de estudar as funções das idéias nas evoluções dos povos, provámos que cada civilização deriva de um pequeno número de idéias fundamentais muito raramente 63
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renovadas. Indicámos como as idéias se estabelecem na alma das multidões; a dificuldade com que nela penetram e o poder que possuem logo que aí penetram. Tivemos ocasião, finalmente, de ver como as grandes perturbações históricas, a maior parte das vezes, resultam das mudanças dessas idéias fundamentais. Como já tratámos suficientemente este assunto, limitar-nos-emos a dizer algumas palavras acerca das idéias acessíveis às multidões e da forma por que estas as concebem. As idéias acessíveis às multidões podem dividir-se em duas classes. Numa colocaremos as idéias acidentais e as passageiras, criadas sob a acção do momento, como, por exemplo, a predilecção por um indivíduo ou por uma doutrina; na outra, as idéias fundamentais às quais o meio, a hereditariedade e a opinião dão grande estabilidade, como outrora as crenças religiosas e hoje as idéias democráticas e sociais. As idéias fundamentais poderiam ser figuradas pela massa das águas de um rio percorrendo lentamente o seu curso; as idéias passageiras pelas pequenas vagas, sempre mutáveis, que lhe agitam a superfície e que, embora sem importância real, são mais visíveis que o próprio curso do rio. Em nossos dias, as grandes idéias fundamentais de que nossos pais viveram estão cada vez mais oscilantes. Perderam toda a solidez e, no mesmo tempo, as instituições que nelas assentavam vêem-se profundamente abaladas. Dia a dia, formam-se muitas destas pequenas idéias transitórias de que há pouco falámos; mas só muito poucas parecem aumentar visivelmente, para adquirirem acção preponderante. Sejam quais forem as idéias sugeridas às multidões, só podem tornar-se dominantes revestindo uma forma muito absoluta e muito simples, porque só assim se apresentam sob o aspecto de imagens, única forma por que são acessíveis às massas. Estas ideias-imagens não se ligam por nenhum laço lógico de analogia ou sucessão, e podem substituir-se umas às outras como os vidros da lanterna mágica que o operador retira da caixa em que estavam 64
IDÉIAS,
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E IMAGINAÇÃO
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sobrepostos. E é por isso que se pode ver nas multidões manterem-se simultaneamente as mais contraditórias idéias. Conforme as ocasiões de momento, a multidão colocar-se-ia sob a acção desta ou daquela das diversas idéias armazenadas no seu entendimento, podendo, por conseguinte, cometer os actos mais contraditórios, que não chega sequer a perceber pela ausência completa do espírito crítico que a caracteriza. Semelhante fenômeno não é privativo das multidões; observa-se também em muitos indivíduos isolados, não somente nos seres primitivos, mas em todos aqueles que por qualquer aspecto de espírito, como os sectários de uma intensa fé religiosa, por exemplo, se aproximam dos primitivos! Observei isto em grau curioso nos hindus ilustrados, educados nas universidades europeias, e nelas formados. Sobre o seu fundo imutável de idéias religiosas ou sociais hereditárias, sobrepuseram-se, sem de nenhum modo as alterar, as camadas de idéias ocidentais, que nenhum parentesco tinham com as primeiras. Conforme a ocasião, umas ou outras aparecem com o seu cortejo especial de actos e discursos, apresentando desta forma o mesmo indivíduo as mais flagrantes contradições. Estas, porém, são mais aparentes que reais, porque só as idéias hereditárias exercem no indivíduo isolado acção bastante que as torne móbeis da conduta desse indivíduo. E só quando, por cruzamentos, o homem se encontre com impulsos de hereditariedades diferentes é que os actos realmente podem ser de um momento para outro absolutamente contraditórios. Julgamos inútil insistir por agora nestes fenômenos, porquanto pensamos que são necessários pelo menos dez anos de viagens e observações para chegarmos a compreendê-los. Porque as idéias só são acessíveis às multidões depois de haverem revestido uma forma muito simples, devem, para serem populares, sofrer muitas vezes as mais completas transformações. Quando se trata de idéias filosóficas ou científicas um pouco elevadas é que, principalmente, podemos verificar a profundeza das modificações de que carecem para de camada em camada 65
A P S I C O L O G I A DAS M U L T I D Õ E S
descerem ao nível das multidões. Estas modificações dependem das categorias das multidões ou da raça a que essas multidões pertençam; mas são sempre redutoras e simplificadoras. Eis porque, para o critério social, não há na realidade hierarquia de idéias, ou seja, idéias mais ou menos elevadas. O simples facto de uma idéia chegar às multidões e poder actuar sobre elas é o bastante para essa idéia ficar despojada de quase toda a elevação e grandeza, por maior e mais verdadeira que na origem haja sido. De resto, para o critério social, o valor hierárquico de uma idéia é uma coisa sem importância. O que interessa são os seus resultados. As idéias cristãs da Idade Média, as idéias democráticas do século X V I I I , as idéias sociais de hoje, não são certamente muito elevadas. Filosoficamente, só as podemos considerar como bem pobres erros, e, todavia, a sua função foi e será imensa e, por muito tempo, figurarão entre os mais essenciais factores da conduta dos Estados. Ainda mesmo que a idéia haja sofrido transformações que a façam acessível às multidões, essa idéia, porém, só actua quando, por processos diversos, que teremos ocasião de estudar, haja penetrado no inconsciente, tornando-sè um sentimento, o que exige sempre muito tempo. Não deve aceitar-se, na verdade, que, simplesmente por ser demonstrada a exactidão de uma idéia, esta produza os seus naturais efeitos, porque tal se não dá nem mesmo nos espíritos cultos. Rapidamente percebemos isto ao vermos quanto a mais clara demonstração pouca acção exerce na maioria dos homens. A evidência, quando manifesta, poderá ser reconhecida por um ouvinte instruído; mas este recém-convertido bem depressa será reconduzido pelo inconsciente às suas primitivas concepções. Se o tornardes a ver alguns dias depois, ele empregará novamente os seus antigos argumentos, exactamente pelos mesmos termos. Na realidade, ele está sob a acção de idéias anteriores transformadas em sentimentos e são elas as únicas que actuam nos profundos móbeis dos nossos actos e palavras. 66
IDÉIAS,
RACIOCÍNIOS E
IMAGINAÇÃO
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Mas quando, por processos diversos, uma idéia chegou a penetrar na alma das multidões, possui um poder irresistível e desenvolve uma série de efeitos a que temos de sujeitar-nos. As idéias filosóficas que determinaram a Revolução Francesa gastaram perto de um século para se implantarem na alma das multidões. Sabe-se bem qual foi a sua irresistível força, quando se estabeleceram nessa alma. O impulso de um povo inteiro para a conquista da igualdade social, para a realização de direitos abstractos e liberdades ideais fez oscilar todos os tronos e alterou profundamente o mundo ocidental. Os povos, durante vinte anos, precipitaram-se uns sobre os outros, e a Europa conheceu então hecatombes que teriam enchido de espanto Gengiscão e Tamerlão. Nunca, como então, o mundo viu com tanta intensidade o que o desencadear de uma idéia pode produzir. As idéias carecem de muito tempo para se estabelecerem na alma das multidões, mas também não carecem de menos tempo para de lá saírem. Por isso ás multidões, relativamente às idéias, estão sempre algumas gerações atrasadas em relação aos sábios e filósofos. Todos os homens de Estado sabem hoje perfeitamente quão errôneas são as idéias fundamentais há pouco citadas, mas não menos sabem quanto a sua acção ainda é poderosa e por isso se vêem obrigados a governarem segundo princípios em cuja verdade não crêem.
2. Raciocínios das multidões Não pode afirmar-se absolutamente que as multidões não raciocinam, nem são actuáveis pelos raciocínios; mas, na verdade, os argumentos que empregam e aqueles pelos quais se deixam actuar são logicamente tão inferiores que só por analogia os podemos qualificar de raciocínios. Os raciocínios inferiores das multidões baseiam-se, como os raciocínios elevados, em associações; mas as idéias associadas 67
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DAS
MULTIDÕES
pelas multidões só têm entre si laços aparentes de analogia ou de sucessão. Essas idéias encadeiam-se como as do esquimó que, sabendo por experiência que o gelo, corpo transparente, se funde na boca, conclui que o vidro, por ser também transparente, deve igualmente fundir na boca; como as do selvagem que supõe adquirir bravura comendo o coração de um inimigo valente ou com a do operário que, havendo sido explorado por um patrão, conclui imediatamente que todos os patrões são exploradores. A associação de coisas dissemelhantes, que apenas têm relações aparentes, e a generalização imediata de casos particulares, tais são as características do raciocínio das multidões. São raciocínios deste jaez os que lhes apresentam sempre os que as sabem manejar, porque são os únicos que as podem actuar. Uma série de raciocínios lógicos é totalmente incompreensível às multidões, motivo este que permite dizer-se que não raciocinam, ou raciocinam erradamente, nem são actuáveis por um raciocínio. Por vezes, admiramo-nos, quando os lemos, da fraqueza de certos discursos que, apesar disso, exerceram enorme acção nas multidões que os ouviram. Mas se nos não esquecermos de que esses discursos foram feitos para arrastarem colectividades e não para serem lidos por filósofos, a nossa admiração desaparece. O orador em comunicação íntima com a multidão sabe evocar imagens que a seduzam. Se tem bom resultado, o seu fim realizou-se; e vinte volumes de discursos, arquitectados pacientemente, não valem algumas frases que chegaram aos cérebros que é necessário convencer. Seria supérfluo acrescentar que a incapacidade das multidões em raciocinarem bem impede-as de terem qualquer espírito crítico, isto é, impede-as de estarem aptas para distinguirem a verdade do erro, para formularem um juízo preciso sobre o que quer que seja. Os juízos aceites pelas multidões são impostos e não discutidos. Muitos homens há também que, sob este ponto de vista, não ultrapassam a craveira da multidão. A facilidade com que algumas opiniões se generalizam provém sobretudo da impossibilidade em que a maior parte dos homens se encontram 68
IDÉIAS,
RACIOCÍNIOS
E
IMAGINAÇÃO
DAS
MULTIDÕES
de formarem uma opinião particular baseada nos seus próprios raciocínios.
3. A imaginação das multidões Assim como em seres em que o raciocínio não intervém, a imaginação representativa das multidões é muito poderosa, muito activa e susceptível de ser vivamente impressionada. As imagens que uma personagem, um acontecimento, um desastre, lhes despertam no espírito assumem quase a vivacidade das coisas reais. As multidões estão, por assim dizer, no caso do dorminhoco, cuja razão, momentaneamente suspensa, deixa que lhe surjam no espírito imagens de extrema intensidade, mas que se dissipariam rapidamente se pudessem ser submetidas à reflexão. As multidões, incapazes de reflexão e de raciocínio, não conhecem o inverosímil; ora são precisamente as coisas mais inverosímeis as que geralmente mais impressionam. Esta é a razão por que são sempre os aspectos maravilhosos e lendários dos acontecimentos os que mais impressionam as multidões. Ao analisarmos uma civilização, vemos que os seus verdadeiros sustentáculos são o maravilhoso e o lendário. Na História, a aparência desempenhou sempre um papel muito mais importante que a realidade. Nela, o irreal prepondera sempre sobre o real. As multidões, porque só podem pensar por imagens, só se deixam impressionar por imagens. Só estas as aterrorizam ou seduzem, só estas se tornam estímulos de acção. E eis porque as representações teatrais, que dão a imagem sob a forma mais nitidamente visível, têm sempre enorme acção nas multidões. Pão e espectáculos constituíram outrora para a plebe romana, que nada mais queria nem desejava, o ideal da felicidade. Na série dos tempos este ideal pouco tem variado. Nada impressiona mais a imaginação das multidões de todas as categorias do 69
A
PSICOLOGIA
DAS
MULTIDÕES
que as representações teatrais. Toda a sala de espectáculos sente ao mesmo tempo as mesmas emoções, e se estas emoções se não transformam imediatamente em actos é porque ainda o mais inconsciente dos espectadores não pode ignorar que é vítima de ilusões e que riu ou chorou por casos absolutamente imaginários. Contudo, às vezes, são tão fortes os sentimentos sugeridos pelas imagens despertadas, que elas tendem, como as sugestões habituais, a transformar-se em actos. Contam-se muitas historietas daquele teatro popular que representando só dramalhões terríveis se via obrigado a proteger à saída o actor que desempenhava o papel de tirano, para evitar que os espectadores, indignados com os crimes passados em cena, espancassem o pobre homem. Eis, no meu modo de ver, um dos mais notáveis indícios do estado mental das multidões e, principalmente, da facilidade com que se sugestionam. O irreal exerce sobre elas quase tanta acção como o real; manifestando as multidões uma indiscutível tendência para os não distinguir. É na imaginação popular que se baseia o poder dos conquistadores e a força dos Estados. É, principalmente, actuando nela que se arrastam as multidões. Todos os grandes factos históricos, a criação do budismo, do cristianismo, do islamismo, a Reforma, a Revolução, e, em nossos dias, a ameaçadora invenção do socialismo, são conseqüências directas ou longínquas de fortes impressões produzidas na imaginação das multidões. Por isso todos os grandes homens de Estado, em todos os tempos e em todos os países, não excluindo os déspotas mais absolutos, consideraram a imaginação popular a base do seu poder e nunca tentaram governar contra ela. «Foi fazendo-me católico», dizia Napoleão no Conselho de Estado, «que acabei a guerra da Vendeia; foi fazendo-me muçulmano que me sustentei no Egipto e foi fazendo-me ultramontano que captei os sacerdotes na Itália. Se eu governasse um povo de judeus, restabeleceria o templo de Salomão.» Nunca, porventura, depois de Alexandre e César, nenhum grande homem soube melhor do que Napoleão 70
IDÉIAS,
RACIOCÍNIOS
E IMAGINAÇÃO
DAS
MULTIDÕES
como a imaginação das multidões deve ser impressionada. A sua preocupação constante foi impressioná-la; nisso pensava no meio das suas vitórias, nos seus discursos, nos seus actos e até mesmo no leito da morte. Como é que se impressiona a imaginação das multidões? Daqui a pouco o veremos. Por agora, limitemo-nos a dizer que não é procurando actuar sobre a inteligência e a razão, ou seja, pela demonstração. Não foi com trabalhada retórica que Antônio conseguiu amotinar o povo contra os assassínios de César, mas sim lendo-lhe o testamento deste e mostrando o seu cadáver. Tudo que abala a imaginação das multidões se apresenta sob a forma de uma imagem empolgante e bem nítida; livre de qualquer interpretação acessória ou apenas acompanhado de alguns factos maravilhosos ou misteriosos, tais como numa grande vitória, um grande milagre, um grande crime, uma grande esperança. É necessário apresentarem-se as coisas em globo, nunca indicando a sua gênese. Cem pequenos crimes ou cem pequenos desastres não impressionarão absolutamente nada a imaginação das multidões, enquanto um grande crime, um grande desastre, impressionálas-ão profundamente, ainda que os seus resultados sejam muito menos dolorosos que os dos cem pequenos desastres reunidos. A epidemia da influenza que há poucos anos matou em Paris, em poucas semanas, cinco mil pessoas impressionou muito pouco a imaginação popular, porque esta verdadeira hecatombe não se traduzia por qualquer imagem visível, mas apenas pelas indicações semanais da estatística. Um desastre que, em vez destas cinco mil pessoas, tivesse feito morrer apenas quinhentas, mas no mesmo dia, numa praça pública, por um caso bem visível, como, por exemplo, a queda da Torre Eiffel, teria, pelo contrário, produzido imensa impressão na imaginação popular. A perda provável de um transatlântico, que, por falta de notícias, se supunha haver naufragado no mar largo, impressionou profundamente, durante oito dias, a imaginação das multidões. Ora as estatísticas oficiais mostram que, só no ano de 1894, oitocentos navios de vela e 71
A
PSICOLOGIA
DAS
MULTIDÕES
duzentos e três a vapor se perderam. Mas as multidões nem um só instante se preocuparam com estas sucessivas perdas, bem mais importantes como destruição de vidas e de mercadorias do que poderia ter sido a do transatlântico. Não são, pois, os factos em si que ferem a imaginação popular, mas sim o modo por que são divididos e apresentados. É necessário que pela sua condensação, se assim me é permitido exprimir-me, produzam uma imagem empolgante que encha e impressione o espírito. Aquele que conhecer a arte de impressionar a imaginação das multidões conhecerá também a arte de as governar.
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QUARTO CAPÍTULO
FORMAS RELIGIOSAS QUE R E V E S T E M TODAS AS CONVICÇÕES DAS MULTIDÕES
Em que consiste o sentimento religioso. — É independente da adoração de uma divindade. — As suas características. — Poder das multidões que revestem a forma religiosa. — Diversos exemplos. — Os deuses populares nunca desaparecem. — Novas formas sob as quais renascem. — Formas religiosas do ateísmo. — Importância destas noções do ponto de vista histórico. — A Reforma, o dia de São Bartolomeu, o Terror e todos os acontecimentos análogos são conseqüência dos sentimentos religiosos das multidões e da vontade de indivíduos isolados.
Provámos que as multidões não raciocinam, que admitem ou rejeitam as idéias em globo, que não admitem nem discussões, nem contradições e que as sugestões que sobre elas actuam invadem completamente o campo do entendimento e tendem desde logo a transformar-se em actos. Provámos que as multidões convenientemente sugestionadas estão prontas a sacrificarem-se pelo ideal que lhes foi sugerido. Vimos também que só conhecem os sentimentos violentos e extremos, que nelas a simpatia bem depressa se torna adoração e que a antipatia, apenas desabrochada, se transforma em ódio. Estas indicações gerais permitem já que pressintamos a natureza das suas convicções. 73
A P S I C O L O G I A DAS M U L T I D Õ E S
Ao examinarem-se de perto as convicções das multidões, tanto nas épocas de fé, como nas grandes alterações políticas, como as do fim do século X V I I I , verifica-se que estas convicções revestem sempre uma forma especial, que julgo ficar bem determinada dando-lhe o nome de sentimento religioso. Os caracteres deste sentimento são muito simples, adoração de um ser que se supõe superior, temor do poder mágico que se lhe atribui, submissão cega aos seus mandamentos, impossibilidade de discutir os seus dogmas, desejo de os propagar, tendência para se considerarem inimigos os que não admitam esses dogmas. Quer esse sentimento se aplique a um Deus invisível, a um ídolo de pedra ou de madeira, a um herói ou a uma idéia política, logo que apresente os caracteres que indicámos, fica sempre da essência religiosa. O sobrenatural e o miraculoso encontram-se no mesmo grau, nesse sentimento. As multidões inconscientemente revestem de um poder misterioso a fórmula política ou o chefe vitorioso que na ocasião os fanatiza. Não se é apenas religioso quando se adora uma divindade, mas sim quando se empregam todos os recursos do espírito, todas as submissões da vontade, todos os ardores do fanatismo ao serviço de uma causa ou de um ser que se faz alvo e guia dos pensamentos e actos. A intolerância e o fanatismo constituem o necessário séquito de um sentimento religioso. São inevitáveis em quem julga possuir o segredo da felicidade terrestre ou eterna. Estes dois traços encontram-se em todos os homens agrupados, sempre que uma convicção qualquer os anima. Os jacobinos do Terror eram fundamentalmente tão religiosos como os católicos da Inquisição e era a mesma a origem do ardor de uns e outros. As convicções das multidões revestem os caracteres de cega submissão, feroz intolerância e necessidade de propaganda inerentes ao sentimento religioso, pelo que podemos dizer que todas as suas crenças têm uma forma religiosa. O herói aclamado por uma multidão é, para estas, verdadeiramente um deus. Napoleão 74
FORMAS
RELIGIOSAS
foi deus durante quinze anos e nunca nenhuma divindade teve tão completos adoradores; nenhuma com tanta facilidade arremessou homens à morte; os deuses do paganismo e do cristianismo nunca exerceram um domínio tão absoluto nas almas que haviam conquistado como Napoleão. Todos os fundadores de crenças religiosas ou políticas só conseguiram a realização dos seus desejos porque souberam impor às multidões os sentimentos de fanatismo, que fazem com que um homem encontre a felicidade na adoração e obediência e se prontifique a dar a vida pelo seu ídolo. Sempre assim tem sido em todos os tempos. No seu belo livro acerca da Gália romana, Fustel de Coulanges acentua com muita exactidão que o Império Romano de nenhum modo se manteve pela força, mas sim pela admiração religiosa que inspirava. Seria uma coisa sem exemplo na História do mundo, diz ele, com razão, que um regime detestado pelas populações haja durado cinco séculos. Seria impossível explicar que trinta legiões do império houvessem podido obrigar à obediência cem milhões de homens. Se obedeciam é porque o imperador que personificava a grandeza romana era adorado como uma divindade por consenso unânime. Na mais humilde povoação do império tinha o imperador os seus altares. Viu-se neste tempo, continua Fustel de Coulanges, surgir nas almas, de um extremo a outro do império, uma nova religião que tinha por divindades os próprios imperadores. Alguns anos antes da era cristã, toda a Gália, representada por sessenta cidades, elevou em comum um templo a Augusto, junto da cidade de Leão... Os seus sacerdotes, eleitos pela reunião das cidades gaulesas, eram as primeiras personagens da nação... É impossível atribuir tudo isto ao medo e ao servilismo. Povos inteiros não são servis e, quando o sejam, não o são durante três séculos. Não eram os cortesãos quem adorava o príncipe, era Roma, e não Roma apenas em si, mas a Gália, a Espanha, a Grécia e a Ásia. Hoje, a maior parte dos grandes conquistadores de almas já não têm altares, mas têm estátuas e imagens e o culto que se lhes 75
A
PSICOLOGIA
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MULTIDÕES
presta não é muito diferente do que outrora se prestava. Só chegaremos a compreender um pouco a filosofia da História quando nos hajamos compenetrado deste ponto fundamental da psicologia das multidões: ou se é para elas um deus, ou se não é nada. E não vá julgar-se que isto são superstições de outras eras, expulsas definitivamente pela razão. Na sua eterna luta contra a razão, o sentimento nunca foi vencido. É facto que as multidões já hoje não querem ouvir falar em divindade, nem em religião, em nome das quais por tão longo tempo foram avassaladas, mas nunca possuíram tantos feitiços, como de há cem anos para cá, e nunca as velhas divindades conseguiram que se lhes elevassem tantas estátuas e altares como aos feitiços de hoje. Os que estudaram o movimento popular conhecido por boulangismo tiveram ocasião de verificar com que facilidade os instintos religiosos das multidões estão sempre prestes a renascerem. Não havia casebre de aldeia que não tivesse o retrato do herói. Atribuíam-lhe a virtude de obstar a todas as injustiças e a todos os males e milhares de homens teriam voluntariamente dado a vida por ele. Que lugar extraordinário este homem não teria ocupado na História se a sua energia de carácter houvesse sido um pouco forte para sustentar a lenda! É por tudo isto que é uma banalidade bastante inútil repetir que as multidões carecem de uma religião, pois que todas as crenças políticas, divinas e sociais só se estabelecem nelas com a condição de sempre revestirem a forma religiosa, que as põe ao abrigo da discussão. Se fosse possível fazer aceitar o ateísmo às multidões, este havia de ter todo o intolerante ardor de um sentimento religioso, e bem depressa se transformaria em culto nas formas exteriores. A evolução da pequena seita positivista dá-nos uma prova curiosa disso. Aconteceu-lhe bem depressa o mesmo que ao nihilista, cuja história nos é narrada por Dostoievski. O nihilista esclarecido um dia pelas luzes da razão quebrou as imagens das divindades e santos que enchiam o altar de uma capela, apagou as velas, e, sem perda de um instante, substituiu as destruídas imagens pelas 76
FORMAS
RELIGIOSAS
obras de alguns filósofos ateístas, como Büchner e Moleschott, reacendendo piedosamente as velas. Transformara-se o objecto das suas crenças religiosas; mas podemos, porventura, dizer que os seus sentimentos religiosos mudaram? Só se compreendem bem, mais uma vez o repetimos, certos acontecimentos históricos — e precisamente os mais importantes — quando tomamos em consideração a forma religiosa que as convicções das multidões acabam por adquirir. Há fenômenos sociais que devem estudar-se mais psicologicamente do que como objecto de história natural. O grande historiador Taine só estudou a Revolução como naturalista, do que resultou haver-lhe escapado muitas vezes a gênese real dos acontecimentos. Taine observou perfeitamente os factos, mas, por desconhecer a psicologia das multidões, nem sempre soube remontar às causas. Como os factos o espantaram pelo lado sanguinário, anárquico e feroz, Taine só via nos heróis da grande epopeia uma horda de selvagens epilépticos, entregues desenfreadamente aos seus instintos. As violências da Revolução, os seus morticínios, a sua necessidade de propaganda, as suas declarações de guerra a todos os reis só se explicam cabalmente se aceitarmos que a Revolução foi simplesmente o estabelecimento de uma nova crença religiosa na alma das multidões. A reforma, a noite trágica de São Bartolomeu, as guerras de religião, a Inquisição, o Terror são fenômenos de ordem idêntica, realizados por multidões animadas dos sentimentos religiosos, que levam necessariamente à extirpação sem dó nem piedade, pelo ferro e pelo fogo, de tudo quanto se oponha ao estabelecimento da nova crença. Os processos adoptados pela Inquisição são os de todos os verdadeiros convictos e, se de outros fizessem uso, não seriam realmente convictos. Alterações análogas às que acabamos de indicar só são possíveis quando a alma das multidões as faz surgir. Os mais terríveis déspotas não as poderiam desencadear. E, assim, quando os historiadores nos dizem que a São Bartolomeu foi obra de um rei, patenteiam a sua ignorância da psicologia das multidões e da dos 77
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PSICOLOGIA
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MULTIDÕES
reis. Manifestações semelhantes só podem sair da alma das multidões. O mais absoluto, o mais despótico poder de um monarca não faz mais do que apressar ou retardar o momento. Não foram os reis quem fez a São Bartolomeu, nem as guerras religiosas, como também não foram Robespierre, Danton ou Saint-Just quem fez o Terror. Por detrás destes acontecimentos encontra-se sempre a alma das multidões e nunca o poder dos reis.
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SEGUNDO LIVRO
AS OPINIÕES E CRENÇAS DAS MULTIDÕES
PRIMEIRO CAPÍTULO
FACTORES LONGÍNQUOS DAS CRENÇAS E OPINIÕES DAS MULTIDÕES
Factores preparatórios das crenças das multidões. — O aparecimento das crenças das multidões é conseqüência de uma elaboração anterior. — Estudo dos diversos factores destas crenças. — l . A raça. — Influência preponderante que nela exerce. — Ela representa as sugestões dos antepassados. — 2. As tradições. — Elas são a síntese da alma da raça. — Importância social das tradições. — Em que é que, depois de haverem sido necessárias, se tornam prejudiciais. — As multidões são tenazes conservadoras das idéias tradicionais. — 3.0 tempo. — Prepara gradualmente o estabelecimento das crenças, depois da sua destruição. — É mercê do tempo que a ordem pode sair do caos. — 4. As instituições políticas e sociais. — Idéia errônea das suas junções. — A sua acção é extremamente fraca. — São efeitos e não causas. — Os povos não podem escolher as instituições que lhes parecem melhores. — As instituições são rótulos que, sob a mesma designação, cobrem as coisas mais dissemelhantes. — C o m o se podem criar as constituições. — Necessidade pura alguns povos de algumas instituições teoricamente más, como a centralização. 5. A instrução e a educação. — Erro das idéias actuais acerca da acção da instrução nas multidões. — Indicações estatísticas. — Função desmoralizadora da educação latina. — Influência que a instrução poderia desempenhar. — Exemplos fornecidos por diversos povos.
Acabámos de estudar a constituição mental das multidões. Conhecemos já os seus modos de sentir, pensar ou raciocinar. 81
A
PSICOLOGIA
DAS
MULTIDÕES
Iremos agora examinar como nascem e se estabelecem as suas opiniões e crenças. São de duas ordens, longínquos e imediatos, os factores determinantes das opiniões e crenças. Os longínquos ou remotos são os que tornam as multidões capazes de adoptarem certas convicções e absolutamente inaptas para se deixarem penetrar por outras. Estes factores preparam o terreno em que repentinamente se vêem germinar determinadas idéias novas, cuja força e resultados admiram, mas cuja espontaneidade é apenas aparente. A explosão e a aplicação de certas idéias nas multidões apresentam algumas vezes fulminante instantaneidade. Isto, todavia, não passa de um efeito superficial, por baixo do qual se deve procurar um longo trabalho anterior. Os factores imediatos são os que, sobrepondo-se a esse longo trabalho, sem o qual nenhum efeito teriam, provocam a persuasão activa nas multidões, isto é, fazem tomar forma à idéia e desdobram-na com todas as suas conseqüências. É por estes factores imediatos que surgem as resoluções que bruscamente levantam as colectividades, por eles estala um motim ou decide-se uma greve, por eles enormes maiorias levam um homem ao poder ou derrubam um governo. Em todos os grandes acontecimentos da História, verificamos a acção sucessiva destas duas ordens de factores. A Revolução Francesa, para não fatigarmos os leitores com outros exemplos, teve, no número dos factores longínquos ou remotos, as obras dos filósofos, as exacções da nobreza, os progressos do pensamento científico. Assim preparada, a alma das multidões foi depois facilmente agitada pelos factores imediatos, como os discursos dos oradores e as resistências da corte a reformas verdadeiramente insignificantes. Há nos factores longínquos ou remotos, os factores gerais que se encontram no fundo de todas as crenças e opiniões das multidões, tais são a raça, as tradições, o tempo, as instituições e a educação, cujo papel vamos estudar. 82
FACTORES
LONGÍNQUOS
DAS
CRENÇAS...
1. A raça O factor raça deve colocar-se em primeiro lugar porque muito sobreleva a todos os outros em importância. Já em outra obra tivemos ocasião de estudar este factor, fazendo ver o que é uma raça histórica e como esta, quando os seus caracteres estão formados, possui, em virtude das leis de hereditariedade, tal poder que as suas crenças, instituições e artes, numa palavra, todos os elementos da sua civilização, não são mais do que a expressão exterior da sua alma. Mostrámos que é tal o poder da raça, que nenhum elemento pode passar de um povo para outro sem que sofra as mais profundas transformações(6). O meio, as circunstâncias, os acontecimentos, representam sugestões sociais de momento. Podem ter considerável acção, mas esta é sempre momentânea quando contrária às sugestões da raça, isto é, às sugestões da série completa dos antepassados. Em vários capítulos desta obra teremos ocasião de nos referirmos à acção da raça e de mostrarmos que essa acção é tão grande que domina os caracteres especiais das multidões; daí que as multidões de diversos países apresentem nas suas crenças e no seu comportamento diferenças muito consideráveis, e não podem ser influenciadas da mesma maneira.
2. As tradições As tradições representam as idéias, necessidades e sentimentos do passado. São a síntese da raça e pesam com toda a força sobre nós. ( 6 ) Como esta asserção era quase desconhecida e a História sem ela é absolutamente incompreensível, consagrámos vários capítulos da minha obra (Leis Psicológicas da Evolução dos Povos) à sua demonstração. Neles o leitor verá que, apesar de enganadoras aparências, nem a língua, nem a religião, nem as artes, nem, numa palavra, nenhum elemento de civilização pode passar intacto de um povo para outro. 83
A
PSICOLOGIA
DAS
MULTIDÕES
Transformaram-se as ciências biológicas desde que a embriologia mostrou a extraordinária acção do passado na evolução dos seres; as ciências históricas sofrerão também não menores transformações logo que esta noção esteja mais espalhada. Não o está ainda suficientemente e muitos homens de Estado deixaram-se ficar fiéis às idéias dos teóricos do século xvm, que pensavam que uma sociedade pode romper com o passado e refazer-se em todas as peças tomando apenas por guia as luzes da razão. Um povo é um organismo criado pelo passado, que, como todo o organismo, não pode modificar-se senão por lentas acumulações hereditárias. O que conduz os homens, principalmente quando estão em multidão, são as tradições e, como muitas vezes temos dito, estas só mudam facilmente os nomes, as formas exteriores. Não é para lamentarmos que assim suceda. Sem tradições, não há nem alma nacional nem civilização possíveis. Por isso as duas grandes ocupações do homem, desde que existe, tem sido o criar uma rede de tradições e depois procurar destruí-las, quando os seus efeitos benéficos se extinguiram. Sem tradições, não há civilização; sem a destruição das tradições, não há progresso. A dificuldade está em encontrar o justo equilíbrio da estabilidade e da variabilidade, e esta dificuldade, devemos confessá-lo, é imensa. Quando um povo permite que os costumes se fixassem solidamente durante muitas gerações, torna-se incapaz de mudanças e, como a China, impossibilita-se de aperfeiçoar-se. As revoluções violentas nada podem fazer, porque sucede, a darem-se, que os fragmentos quebrados da cadeia ou se tornam a soldar e o passado reconquista sem mudanças o antigo domínio ou esses fragmentos ficam dispersos, seguindo-se bem depressa à anarquia a decadência. O ideal para um povo é a conservação das instituições do passado, transformando-as apenas insensivelmente e pouco a pouco. Este ideal é dificilmente acessível. Os Romanos nos antigos tempos 84
FACTORES
LONGÍNQUOS
DAS
CRENÇAS...
e os Ingleses nos modernos são quase os únicos que conseguiram realizá-lo. Os mais tenazes conservadores das idéias tradicionais, aqueles que mais obstinadamente se opõem às mudanças, são precisamente as multidões e, principalmente, as categorias de multidões que constituem as castas. Já insistimos no espírito conservador das multidões e mostrámos que as revoltas mais violentas só dão em resultado uma mudança de palavras. Nos fins do século xvm, perante as igrejas destruídas, em presença dos sacerdotes expulsos ou guilhotinados, e da perseguição geral do culto católico, poder-se-ia supor que as velhas idéias religiosas haviam perdido todo o poder; todavia, passados alguns anos apenas, foi necessário restabelecer-se o culto abolido, que assim o exigiam reclamações gerais(7). Apagadas, por um instante, as velhas tradições haviam retomado a antiga preponderância. Nenhum outro exemplo nos prova melhor o poder das tradições na alma das multidões. Não é nos templos que se encontram os mais temíveis ídolos, nem nos palácios os mais despóticos tiranos, porquanto uns e outros podem ser derrubados num instante; mas nos invisíveis senhores que dominam os nossas almas, escapam a qualquer tentativa de revolta e só cedem à lenta consumpção dos séculos.
( 7 ) O relatório do antigo convencional Fourcroy, citado por Taine, é muito explícito no assunto. «O que se via em parte sobre a celebração do domingo e a freqüência das igrejas prova que a massa dos franceses quer voltar aos antigos usos, e já não é tempo de se resistir a esta tendência nacional... A grande massa dos homens tem necessidade de religião, culto e sacerdotes. É um erro de alguns filósofos modernos, erro a que eu mesmo me deixei arrastar, o acreditar na possibilidade de uma instrução tão largamente difundida, que possa destruir os preconceitos religiosos, pois que estes para o grande número de desgraçados são fonte de consolo e alívio... É necessário, portanto, deixar à massa do povo os sacerdotes, os altares e o culto.» 85
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MULTIDÕES
3. O tempo Tanto nos problemas sociais como nos biológicos, um dos mais enérgicos factores é o tempo. É este o único verdadeiro criador e o único grande destruidor. Foi o tempo quem fez as montanhas com grãos de areia e elevou à dignidade humana a obscura célula dos tempos geológicos. Basta a intervenção dos séculos para que um fenômeno qualquer se transforme. Disse-se, e muito assisadamente, que uma formiga, se pudesse dispor de tempo suficiente, aplanaria o monte Branco. Um ser que tivesse o mágico poder de fazer variar à sua vontade o tempo teria o poder atribuído pelos crentes a Deus. Nesta obra, porem, só temos de nos ocupar da acção do tempo na gênese das opiniões das multidões, acção que é indubitavelmente imensa. O tempo tem sob a sua dependência grandes forças, como a raça, que só por ele se podem formar. Faz nascer, crescer e morrer todas as crenças; pela sua acção é que estas adquirem e perdem o poder que exercem. É o tempo que, principalmente, prepara as opiniões e as crenças das multidões ou, pelo menos, o terreno em que elas hão-de germinar. E esta é a razão por que certas idéias são realizáveis numa época e não noutra. É o tempo que acumula o imenso detrito de crenças e pensamentos em que nascem as idéias de uma época. As idéias não germinam ao acaso nem caprichosamente; as suas raízes mergulham num longo passado. Quando florescem, já o tempo lhes havia preparado o despontar e devemos sempre olhar para trás, quando queiramos conceber-lhes a gênese. As idéias são filhas do passado, mães do futuro, eternas escravas do tempo. O tempo é, pois, o nosso verdadeiro senhor, e basta deixá-lo actuar para que vejamos transformarem-se todas as coisas. Hoje, inquietamo-nos muito com as ameaçadoras inspirações das multidões e com as destruições e alterações que pressagiam. Ora, é isso um erro, porque só o tempo, e exclusivamente ele, se encarregará de restabelecer o equilíbrio. «Nenhum regime», escreve muito verdadeiramente Lavisse, «se fundou num dia e de uma assentada. 86
F A C T O R E S L O N G Í N Q U O S DAS C R E N Ç A S . . .
As organizações políticas e sociais são obras que exigem séculos; o feudalismo existiu informe e caótico durante séculos, até achar as suas regras; a monarquia absoluta viveu também durante séculos sem haver encontrado meios regulares de governo e todos esses períodos de espera foram épocas de grandes perturbações.»
4. As instituições políticas e sociais A idéia de que as instituições podem obviar aos defeitos das sociedades, de que o progresso dos povos é conseqüência do aperfeiçoamento das instituições e dos governos e de que as mudanças sociais podem fazer-se com decretos é uma idéia ainda hoje muito espalhada. A Revolução Francesa teve essa idéia como ponto de partida e as teorias sociais contemporâneas têm nela o seu ponto de apoio. As mais contínuas experiências ainda não conseguiram abalar seriamente esta terrível quimera, cujo absurdo os filósofos e historiadores incessantemente têm procurado provar. Todavia, não lhes tem sido difícil demonstrarem que as instituições provêm das idéias, sentimentos e costumes, e que nem idéias, nem sentimentos, nem costumes se modificam e refazem pela modificação dos códigos. Um povo não escolhe livremente as suas instituições, como não escolhe a cor dos olhos e dos cabelos. As instituições e governos são produto da raça; não são criadores, mas criações de uma época. Os povos não são governados pelos seus caprichos de momento, mas sim em harmonia com o seu carácter. São necessários séculos para que se forme um regime político, como são necessários séculos para o transformar. As instituições não possuem nenhuma virtude intrínseca; em si não são nem boas nem más. As que, num dado momento, são boas para um determinado povo, podem ser detestáveis para outro. Não está também no poder de um povo o mudar realmente as suas instituições. Pode, sem dúvida, um povo, à custa de violentas 87
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revoluções, mudar o nome das instituições, mas no fundo não se modifica. Os nomes são apenas meras etiquetas com que o historiador que aprofunda um pouco as coisas não tem de se preocupar. É assim, por exemplo, que o mais democrático dos países do mundo é a Inglaterra(s) que, todavia, vive em regime monárquico, ao passo que os países onde mais se faz sentir o mais desbragado despotismo são as repúblicas hispano-americanas, apesar de regidas por constituições republicanas. Não são os governos, mas o carácter dos povos que guia os destinos destes. É este um modo de ver que nos temos esforçado por assentar, apoiados em exemplos categóricos. É, pois, uma tarefa muito pueril, um exercício inútil de retórico ignorante o perder tempo na factura de constituições. A necessidade e o tempo se encarregam de as elaborar, sempre que tenhamos o bom senso de deixar actuar estes dois factores. Assim têm procedido os anglo-saxões e isto nos diz o seu grande historiador Macaulay num trecho que os políticos de todos os países latinos deviam aprender de cor. Macaulay, depois de haver mostrado todo o bem que têm podido fazer leis que, para a razão pura, parecem um caos de absurdos e contradições, compara as dúzias de instituições mortas nas convulsões dos povos latinos da Europa e da América com a da Inglaterra e faz ver que esta só muito lentamente e por partes é que tem sido modificada, sob a acção de necessidades imediatas e não de raciocínios especulativos. «Não se preocupar com a simetria, mas sim e muito com a utilidade; não tirar nunca uma anomalia unicamente por ser uma (") É isto o que até nos Estados Unidos da América do Norte reconhecem os republicanos mais avançados. O jornal americano Fórum recentemente exprimiu também esta opinião categórica nos termos que vamos reproduzir, segundo a Review ofReviews de Dezembro de 1891: «Nunca devemos esquecer, até mesmo os mais fervorosos inimigos da aristocracia, que a Inglaterra de hoje é o país mais democrático do Universo, aquele em que os direitos do indivíduo são mais respeitados e aquele em que os indivíduos mais liberdade possuem e mais direitos gozam.» 88
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anomalia; não inovar senão quando algum mal-estar se faça sentir, e, neste caso, inovar só precisamente o bastante para debelar esse mal-estar; nunca estabelecer uma proposição mais lata do que o caso particular que se procura remediar, tais são as regras que, desde, os tempos de João até aos de Vitória, geralmente, têm orientado as deliberações dos nossos 250 parlamentos», escreveu o grande historiador inglês a que fizemos referência. Era necessário considerarmos uma a uma as leis e as instituições de cada povo para mostrarmos até que ponto são a expressão das necessidades da raça, não podendo, por este motivo, serem violentamente transformadas. Podemos, por exemplo, dissertar filosoficamente acerca das vantagens e inconvenientes da centralização; mas, quando vemos um povo, constituído por elementos de raças muito diversas, consagrar mil anos de esforços para progressivamente chegar a essa centralização, quando verificamos que uma grande revolução, cujo fim foi quebrar todas as instituições do passado, foi forçada a respeitar essa centralização, exagerando-a até, nós dizemos que essa revolução é filha de necessidades imperiosas, condição até de existência, lamentamos o fraco alcance mental dos homens políticos que falam em destruí-la. Se por acaso pudessem conseguir isso, a hora do seu triunfo seria o sinal imediato de uma terrível guerra civil(9), que imediatamente traria uma nova centralização muito mais pesada que a antiga.
C) Se conjugarmos as profundas dissensões religiosas ou políticas que separam as diversas partes da França e são sobretudo uma questão de raças, com as tendências separatistas manifestadas na época da Revolução e que novamente começaram a acentuar-se no fim da Guerra Franco-Alemã, veremos que as diversas raças existentes no solo francês estão longe de estarem fusionadas. A enérgica centralização da Revolução e a criação de departamentos artificiais no intuito de alterar, confundindo-as, as antigas províncias foi, sem dúvida, a obra mais útil dessa Revolução. Se se pudesse organizar a descentralização de que tanto falam hoje os espíritos imprevidentes, dentro em pouco daria azo às mais sanguinolentas discórdias. Só poderá desconhecer isto quem absolutamente ignora a História francesa. 89
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Do que deixamos dito, concluímos que não é nas instituições que deve procurar-se o meio de actuar profundamente na alma das multidões, e, quando vemos alguns países, como os Estados Unidos do Norte da América, atingirem um alto grau de prosperidade com instituições democráticas, ao passo que outros, como as repúblicas hispano-americanas, vivem na mais triste desordem, não obstante possuírem instituições absolutamente semelhantes, devemos confessar que essas instituições são tão estranhas à grandeza de uns como à decadência dos outros. Os povos são governados pelo seu carácter, e todas as instituições que não sejam intimamente moldadas neste carácter apenas representam um fato de empréstimo, um disfarce transitório. Certamente, guerras sanguinolentas, revoluções violentas se têm feito e farão para se imporem instituições, às quais se atribui, como a relíquia de santos, o poder sobrenatural de criar a felicidade. Parece, à primeira vista, que se deveria dizer que, de certa forma, as instituições actuam na alma das multidões, uma vez que originam movimentos tais; mas, na realidade, não são as instituições que então actuam, pois sabemos que, triunfantes ou vencidas, elas não possuem em si nenhumas virtudes. O que nessa ocasião actua na alma das multidões são fantasmagorias e palavras. E, principalmente, palavras, essas quiméricas e poderosas palavras cujo extraordinário domínio em breve mostraremos.
5. Instrução e educação Na primeira linha das idéias dominantes de uma época, cuja força e pequeno número já tivemos ocasião de indicar, se bem que elas por vezes sejam ilusões puras, encontra-se hoje a de que a instrução é capaz de mudar consideravelmente os homens, tendo como resultado certo melhorá-los e até fazê-los iguais. Pelo simples facto de serem muito repetidas, estas asserções acabaram por ser um dos mais inabaláveis dogmas da democracia, em 90
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que hoje seria tão difícil tocar, como outrora o foi tocar com os da Igreja. Mas, neste ponto, como em muitos outros, as idéias democráticas estão em profunda discordância com os dados da psicologia e da experiência. Alguns eminentes filósofos, como, entre outros, Herbert Spencer, nenhum trabalho tiveram para demonstrar que a instrução não faz o homem nem mais moral, nem mais feliz, que lhe não muda os instintos nem as paixões hereditárias, que é até, por vezes, logo que seja mal dirigida, muito mais perniciosa do que útil. Os estatísticos vieram confirmar estes modos de ver, assegurando-nos que a criminalidade aumenta com a generalização da instrução ou, pelo menos, de uma certa instrução, que os piores inimigos da sociedade, os anarquistas, se recrutam muitíssimas vezes nos laureados das escolas, e ainda num trabalho recente, um distinto magistrado, Adolphe Guillot, acentuava que se encontram agora 3000 criminosos ilustrados para 1000 analfabetos, e que, no período de cinqüenta anos, a criminalidade passou de 227 por 100 000 habitantes para 552, o que representa um aumento de 133 por cento. Notou ainda esse magistrado, como também todos os seus colegas, que a criminalidade aumenta principalmente entre os mancebos para os quais o patronato foi, como se sabe, substituído pela escola obrigatória e gratuita. Não significa isto, nem mesmo sequer ninguém o ousou sustentar, que a instituição bem dirigida não dê resultados práticos utilíssimos, senão para o levantamento moral, pelo menos para o desenvolvimento das capacidades profissionais. Desgraçadamente os povos latinos, principalmente de há trinta e tantos anos para cá, basearam os seus sistemas de instrução em princípios muito errôneos e, não obstante as observações dos mais eminentes espíritos, persistem em seus lamentáveis erros. Numa das minhas obras tive também já ocasião de provar que a nossa educação actual transforma em inimigos da sociedade a maior parte dos que a receberam e recruta numerosos discípulos para as piores fórmulas do socialismo. 91
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O que constitui o primeiro perigo desta educação - muito justamente qualificada de latina - é o basear-se num erro fundamental de psicologia, qual é o de aceitar-se que, aprendendo-se de cor os manuais, se desenvolve a inteligência. Por isso tem-se procurado apenas aprender de cor o mais que se possa; e da escola primária à licenciatura e ao doutoramento, o mancebo nada mais faz do que decorar livros sem que o seu raciocínio e a sua iniciativa tenham tido ocasião de se exercer. A instrução consiste para ele em recitar e obedecer. «Estudar livros, saber de cor uma gramática ou um compêndio, repetir bem, imitar bem, eis», escreveu Jules Simon, antigo ministro de Instrução Pública em França, «uma educação divertida em que todo o esforço é um acto de fé perante a infalibilidade do mestre, educação que termina por nos rebaixar e incapacitar.» Se esta educação fosse somente inútil, poder-nos-íamos limitar a compadecer-nos das desgraçadas crianças, as quais, em vez de tantas coisas necessárias que deviam aprender nas escolas, se prefere ensinar a genealogia dos filhos de Clotário, as lutas da Neustíria e da Austrásia, ou classificações zoológicas; mas a verdade é que semelhante educação apresenta um perigo muito mais grave e muito mais para ponderar. Proporciona ao indivíduo que a recebeu um desgosto violento pelas condições em que nasceu e desperta-lhe o desejo intenso de se livrar delas. O operário não quer continuar operário, o camponês nem mais uma hora quer ser camponês e o mais modesto burguês só deseja para os filhos um salário pago pelo Estado. Em vez de preparar homens para a vida, a escola apenas os prepara para empregos públicos, nos quais se possam obter bons resultados, sem que a pessoa careça de se dirigir por si ou manifestar qualquer parcela de iniciativa. Na parte inferior da escola, a educação de hoje cria os exércitos de proletários descontentes com a sua sorte e sempre prontos a revoltarem-se; na parte superior, sustenta a nossa frívola burguesia simultaneamente céptica e crédula, tendo supersticiosa confiança no Estado-providência do qual contudo incessantemente diz mal, 92
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atribuindo sempre ao governo os seus próprios erros e incapaz de empreender qualquer coisa sem intervenção da autoridade. O Estado que, à força de manuais, fabrica todos estes diplomados só pode utilizar um pequeno número deles, deixando todos os outros sem empregos. Tem de resignar-se a alimentar os primeiros e a ter por inimigos os segundos. Do vértice para a base da pirâmide social, do simples caixeiro ao professor e ao prefeito, a enorme legião dos diplomados assalta hoje todas as carreiras. E ao passo que um negociante só muito dificilmente encontra quem, como agente, queira ir representá-lo nas colônias, são aos milhares os pretendentes aos mais modestos lugares oficiais. Só o departamento do Sena conta vinte mil professores e professoras sem colocação, e todos eles, desprezando o campo e as oficinas, se dirigem ao Estado, solicitando-lhe um emprego de que possam viver. Como o número dos eleitos é restrito, o dos descontentes é forçosamente imenso. Estes estão prontos para todas as revoluções, quaisquer que sejam os chefes e os fins a que se proponham. A aquisição de conhecimentos, para os quais se não encontra aplicação, é o mais seguro meio de fazer do homem um revoltado.(10) Evidentemente é já muito tarde para levar de vencida semelhante corrente. Só a experiência, última educadora dos povos, se ( l0 ) Este fenômeno não é privativo dos povos latinos; observa-se também na China, país dirigido também por uma sólida hierarquia de mandarins e em que o mandarinato, como entre nós, se alcança por concursos cujas provas consistem apenas na recitação imperturbável de grossos manuais. A lógica dos letrados sem emprego considera-se hoje na China uma verdadeira calamidade nacional. O mesmo sucede na índia, onde, depois de os Ingleses abrirem escolas, não para educar, como se faz em Inglaterra, mas simplesmente para instruir os indígenas, se formou uma classe especial de letrados, os babus, que, desde que não alcançam um emprego público, se fazem inimigos irreconciliáveis do domínio inglês. Em todos os babus, providos ou não em emprego, o primeiro resultado da instrução foi fazer baixar imensamente o nível da sua moralidade. Este facto foi por nós tratado desenvolvidamente nas Civilizations de Vinde e tem sido verificado e confirmado por todos os autores que têm visitado a grande península. 93
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encarregará de nos mostrar os nossos erros. Só ela será bastante poderosa para nos convencer da necessidade de substituirmos os nossos odiosos manuais, os nossos lastimosos concursos, por uma instrução profissional capaz de levar a juventude para os campos, oficinas e empresas coloniais, de que hoje só procura fugir. Esta instrução profissional, hoje reclamada por todos os espíritos esclarecidos, foi a que outrora receberam os nossos pais e que os povos, que hoje dominam o mundo pela sua vontade, iniciativa e espírito empreendedor, souberam conservar. Em páginas notáveis, de que terei ocasião de reproduzir as partes essenciais, um grande pensador, Taine, provou claramente que a educação francesa outrora era quase o que é hoje a educação inglesa ou americana, e, num paralelo notável entre o sistema latino e o sistema anglo-saxão, patenteou bem frisantemente as conseqüências dos dois métodos. Condescender-se-ia talvez, com extremo rigor, em aceitar todos os inconvenientes da nossa educação clássica, embora só produzisse desocupados e descontentes, se a superficial aquisição de tantos conhecimentos, a perfeita recitação de tantos manuais, elevassem o nível da inteligência. Mas, na realidade, elevam-no? Infelizmente, não! As condições para a vitória na vida são o raciocínio, a experiência, a iniciativa, o carácter, e nada disto é dado pelos livros. Os livros são dicionários cuja consulta é útil, mas é perfeitamente inútil meter na cabeça os longos trechos que os formam. Taine, no trecho que vamos transcrever, mostra perfeitamente como é que a instrução profissional pode desenvolver a inteligência a alturas que a instrução clássica de nenhum modo pode atingir. «As idéias», escreve Taine, «só se formam no seu meio natural e normal; o que lhes faz vegetar os germes são as inumeráveis impressões sensíveis que o mancebo recebe todos os dias na oficina, na mina, no tribunal, no estudo e no arsenal, no hospital, à vista das ferramentas, materiais e operações, em presença dos clientes e operários, do trabalho, da obra bem ou mal paga, lucrativa ou dispendiosa. São estas as pequenas percepções particulares 94
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dos olhos, dos ouvidos, das mãos e até do olfacto que, recolhidas involuntariamente e surdamente elaboradas, nele se organizam para lhe sugerirem, cedo ou tarde, uma nova combinação, uma simplificação, economia, aperfeiçoamento ou invenção. De todos estes preciosos contactos, de todos estes elementos assimiláveis e indispensáveis, está privado o jovem francês, precisamente na idade fecunda. Durante sete ou oito anos, o jovem é seqüestrado numa escola, está longe da experiência directa e pessoal que lhe havia de dar a noção exacta e viva das coisas, dos homens e das diversas maneiras de os manejar. Nove mancebos em cada dez perderam certamente o tempo de trabalho, alguns anos de vida e anos eficazes importantes e até decisivos. Contai primeiramente metade ou dois terços dos que se apresentam a exame, falo de reprovados; em seguida entre os admitidos, graduados e diplomados também a metade ou dois terços, dos sobrecarregados. Exigiu-se-lhes muito, obrigando-os num dia determinado, numa cadeira ou diante de um quadro, a estarem, durante duas horas, a mostrarem que são num grupo de ciências o reportório vivo de todo o conhecimento humano. E, na verdade, eles o foram, ou quase, nesse dia, durante duas horas; mas, um mês mais tarde, deixaram de o ser e com certeza não conseguiriam passar em novo exame; as suas aquisições, muito numerosas e muito pesadas, deslizam incessantemente para fora dos seus espíritos e não adquirem outros conhecimentos. O vigor mental estiolou-se-lhes, a seiva fecunda esgotou-se, o homem feito aparece e muitas vezes é já um homem liquidado. Este, colocado, casado, resignado a andar indefinidamente, no mesmo círculo, acolhe-se na sua restrita profissão; desempenha-se correctamente, mas não vai além. Tal é o rendimento médio; a receita certamente não equilibra a despesa. Na Inglaterra e na América, como outrora, antes de 1789, em França, emprega-se o processo inverso e o rendimento obtido é igual ou superior.» O ilustre historiador mostra-nos em seguida a diferença do nosso sistema do dos anglo-saxões. Estes não possuem as nossas 95
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inumeráveis escolas especiais; o ensino entre eles não é dado pelo livro, mas pelas coisas. O engenheiro, por exemplo, faz-se na oficina e não numa escola, o que permite que cada um chegue exactamente ao ponto que a sua inteligência lhe proporciona, operário ou contramestre, se mais não puder alcançar; engenheiro, se as aptidões a isso o levarem. Isto é um processo muito mais democrático e muito mais útil para a sociedade do que a dependência de toda a carreira de um indivíduo de um concurso de algumas horas, feito aos dezoito ou vinte anos. «No hospital, nas minas, na oficina, no arquitecto, no escritório do advogado, faz o aluno, admitido ainda muito novo, a sua aprendizagem e prática, como entre nós um escrevente de notário ou um aprendiz de pintor. Antecipadamente e antes de entrar, pôde seguir algum curso geral e arranjar um quadro em que possa colocar as observações que vai fazendo. E tem ainda ao seu alcance, a maior parte das vezes, alguns cursos técnicos que poderá acompanhar nas horas livres para ir coordenando as experiências que quotidianamente faz. Com este regime, a capacidade prática cresce e desenvolve-se por si, até ao grau a que possam chegar as faculdades do aluno e na orientação de que a sua futura ocupação carece, pelo trabalho especial a que desde então quer adaptar-se. Deste modo, na Inglaterra e nos Estados Unidos da América do Norte, o mancebo bem depressa consegue tirar de si tudo quanto pode dar. A partir dos vinte e cinco anos, e ainda muito mais cedo, se lhe não faltarem o fundo e a substância, é não só um executante útil, mas ainda um empreendedor espontâneo, não só uma roda, mas, o que é mais, um motor. — Em França, onde prevaleceu o processo inverso e onde cada geração se faz cada vez mais chinesa, é enorme a soma de forças perdidas.» E o grande filósofo chega à seguinte conclusão sobre a inconveniência sempre crescente da nossa educação latina e da vida. «Nos três graus de instrução, para a infância, adolescência e juventude, a preparação teórica e escolar nos bancos, por meio de livros, prolongou-se e sobrecarregou-se, em atenção ao exame, ao 96
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grau, ao diploma e ao certificado, única e simplesmente, e pelos piores meios, pela aplicação de um regime antinatural e anti-social, pela excessiva demora da aprendizagem prática, pelo internato, pelo artificial enlevo e acessórios mecânicos, pela sobrecarga, sem considerações pelo tempo que se há-de seguir, pela idade adulta e ocupações viris que o homem feito há-de exercer, fazendo abstracção do mundo real onde o mancebo vai entrar imediatamente, da sociedade ambiente a que é necessário adaptá-lo ou resigná-lo antecipadamente com o conflito humano onde, para se defender e conservar de pé, deve aparecer equipado, armado, exercitado e habituado às provações. Este indispensável equipamento, esta aquisição mais importante que todas as outras, esta solidez do bom senso, da vontade e dos nervos, não são proporcionadas pelas nossas escolas, bem pelo contrário; em vez de qualificarem o aluno, as nossas escolas desqualificam-no para as suas condições próximas e definitivas. Eis porque a sua entrada no mundo e os seus primeiros passos no campo da acção prática, na maioria dos casos, não passam de uma série de dolorosas quedas; fica magoado e por muito tempo, às vezes estropiado. É uma prova rude e dolorosa esta; altera-se o equilíbrio moral e mental, e corre-se o risco de não se restabelecer; vem a desilusão brusca e completa; as decepções foram grandes e os dissabores muito fortes("). Por acaso, no que deixamos dito, nos afastámos da psicologia das multidões? Com certeza que não. Se quisermos compreender as idéias e as crenças que hoje germinam nas multidões e amanhã (") Taine, o Regime Moderno, t. II, 1894. Estas páginas são quase as últimas escritas por Taine e resumem admiravelmente os resultados da longa experiência do grande filósofo. Infelizmente, julgo-as absolutamente incompreensíveis para os professores da nossa universidade que não hajam estado no estrangeiro. A educação é o único meio que possuímos para actuarmos na alma de um povo e é profundamente triste ter de pensar que não há quase ninguém em França que possa chegar a compreender que o nosso actual ensino é um elemento terrível de rápida decadência e que em vez de elevar a juventude, a rebaixa e perverte. 97
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hão-de desabrochar, é necessário sabermos como o terreno tem sido amanhado. O ensino dado à juventude de um país permite avaliar o que será amanhã esse país; a educação fornecida à geração actual justifica as mais sombrias previsões. É em parte com a instrução e a educação que melhora e se modifica a alma das multidões. É, pois, necessário mostrar como o actual sistema de instrução a tem trabalhado e como a massa dos indiferentes e dos neutros se foi progressivamente transformando num imenso exército de descontentes, prontos a obedecerem a todas as sugestões dos utopistas e dos retóricos. É na escola que hoje se formam os socialistas e os anarquistas e nela se preparam para os povos latinos as horas bem próximas de decadência.
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SEGUNDO CAPÍTULO
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1. As imagens, as palavras e as fórmulas. — Poder mágico das palavras e fórmulas. — O poder das palavras liga-se às imagens que evocam e é independente do seu sentido real. — As idéias variam de época para época e de raça para raça. — O gosto das palavras. — Exemplos de importantes variações de sentido de algumas palavras muito usadas. — Utilidade política de baptizar com nomes novos as causas antigas, quando as palavras com que eram designadas produzem impressão desagradável nas multidões. — Variações de sentido das palavras, conforme a raça. — Diferentes sentidos da palavra «democracia» na Europa e na América. — 2. As ilusões. — Sua importância. — E n c o n t r a m - s e na base de todas as civilizações. — Necessidade social das ilusões. — As multidões preferem-nas sempre às virtudes. — 3. A experiência. — Só a experiência pode estabelecer na alma das multidões verdades que se tornaram necessárias, bem c o m o destruir ilusões que se tornaram perigosas. — A experiência só actua com a condição de ser freqüentemente repelida. — O que custam as experiências necessárias para persuasão das multidões: — 4. A razão. — Nulidade da sua acção sobre as multidões. — Só se actua sobre as multidões actuando nos seus sentimentos inconscientes. — A função da lógica na maioria. — As causas secretas dos acontecimentos inverosímeis.
Acabamos de investigar os factores longínquos e preparatórios que dão à alma das multidões uma receptividade especial, 99
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tornando possível o desabrochar de certos sentimentos e de certas idéias. Resta-nos estudarmos agora os factores capazes de actuarem de um modo imediato, e, num capítulo que há-de seguir-se, veremos como devem manejar-se para que possam produzir todos os seus efeitos. Na primeira parte desta obra, estudámos os sentimentos, as idéias e os raciocínios das colectividades e deste conhecimento poderíamos evidentemente deduzir de um modo geral os meios com que se lhes impressiona a alma. Já conhecemos o que fere a imaginação das multidões, o poder e o contágio das sugestões, principalmente das que se apresentam sob forma de imagens. As sugestões, porém, podem ser de origem muito diversa e os factores capazes de actuarem na alma das multidões podem ser muito diferentes. É necessário, portanto, examiná-los em separado, o que não constitui um estudo inútil, pois que as multidões são um pouco como a esfinge da antiga fábula, carece-se de se resolverem os problemas que a sua psicologia nos propõe, sob pena de por elas sermos devorados.
1. As imagens, as palavras e as fórmulas Ao estudarmos a imaginação das multidões, vimos quanto é impressionada, sobretudo por imagens. Nem sempre estão à disposição estas imagens, mas é possível evocá-las pelo judicioso emprego de palavras e fórmulas. Manejadas com arte, possuem, na verdade, o poder misterioso que outrora lhes atribuíam os sequazes da magia. Fazem rebentar na alma das multidões as mais formidáveis tempestades, mas sabem também acalmá-las. Só com os ossos dos homens vítimas do poder das palavras e das fórmulas, elevar-se-ia uma pirâmide mais alta que a do velho Queóps. O poder das palavras está ligado às imagens que evocam e é absolutamente independente do seu significado real. Por vezes até aquelas cujo sentido está pior definido é que possuem mais 100
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acção, como, por exemplo, os termos «democracia», «socialismo», «igualdade», «liberdade», etc., cuja acepção é tão vaga que grossos volumes não bastariam a precisá-la. E, todavia, é bem certo que um poder, verdadeiro mágico, se liga às suas breves sílabas, como se nelas estivesse contida a solução de todos os problemas. Sintetizam as mais diversas aspirações inconscientes e a esperança da sua realização. A razão e os argumentos não podem, em certos casos, lutar contra determinadas palavras e fórmulas. São pronunciadas com recolhimento e unção diante das multidões e, apenas se ouvem pronunciar, os rostos tornam-se respeitosos e as frontes inclinam-se. Muitos consideram-nas como forças da Natureza, poderes sobrenaturais; despertam nas almas imagens grandiosas e vagas, mas o próprio vago que as ensombra aumenta-lhes o misterioso poder. São divindades misteriosas, vistas por detrás do tabernáculo e das quais o devoto só se aproxima com religioso tremor. As imagens despertadas pelas palavras, independentes do significado destas, variam de época para época e de povo para povo, sob a identidade de fórmulas. A certas palavras ligam-se transitoriamente certas imagens; a palavra não é mais do que o botão de chamada que as faz aparecer. Nem todas as palavras, nem todas as fórmulas, possuem o poder de despertar imagens e algumas há que, depois de haverem despertado as imagens, se gastam e nada mais despertam no espírito. Transformam-se então em cuidados vãos, cuja principal utilidade é dispensar quem as emprega da obrigação de pensar. Com um pequeno fundo de fórmulas e lugares-comuns aprendidos na juventude, possuímos tudo quanto é necessário para se atravessar a vida, sem a fatigante necessidade de reflectir no que quer que seja. Se examinarmos uma língua qualquer, veremos que as palavras que a compõem mudam muito lentamente no decorrer dos tempos; mas o que incessantemente muda são as imagens que despertam ou o sentido que se lhes liga, e eis porque já tivemos ocasião 101
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de dizer, numa das nossas obras, depois de havermos chegado a esta conclusão, que é totalmente impossível a tradução perfeita de uma língua, principalmente de línguas de povos desaparecidos. Na realidade, o que é que nós fazemos quando substituímos por um vocábulo da nossa língua um termo latino, grego ou sânscrito, ou até quando procuramos compreender um livro escrito, há dois ou três séculos, na nossa própria língua? Substituímos simplesmente as imagens e as idéias que a vida moderna pôs na nossa inteligência por noções e imagens absolutamente diferentes que a vida antiga fizera nascer na alma das raças sujeitas a condições de existência sem analogia com as nossas. Quando os homens da Revolução Francesa julgavam copiar os Gregos e os Romanos, não faziam mais do que darem a palavras antigas sentidos que elas nunca haviam tido. Que semelhança pode haver, porventura, entre as instituições dos Gregos e as designadas hoje por palavras correspondentes? Uma república então não era mais do que uma instituição essencialmente aristocrática, formada por uma reunião de pequenos déspotas que dominavam sobre uma multidão de escravos conservados na mais absoluta das sujeições. Essas aristocracias comunais, baseadas na escravidão, não poderiam viver um momento que fosse sem esta. E que poderia significar a palavra «liberdade» que se parecesse com o significado que hoje lhe damos, numa época em que a possibilidade da liberdade de pensar nem sequer era entrevista e em que não havia crime maior nem menos vulgar do que discutir os deuses, as leis e os costumes da cidade? O que significava, por exemplo, a palavra «pátria» para a alma de um ateniense ou de um espartano? Era apenas o culto de Atenas ou de Esparta e nunca o da Grécia, que se compunha de cidades rivais e sempre em guerra umas contra as outras. E que significado tinha essa mesma palavra «pátria», entre os antigos Gauleses, divididos em tribos rivais, de raças, línguas e religiões diferentes, que César venceu com facilidade, por ter sempre entre elas aliados dedicados? Foi Roma quem deu à Gália uma pátria, dando-lhe a unidade política 102
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e religiosa. Sem mesmo remontarmos tão longe, e recuando apenas dois séculos, por acaso a palavra «pátria» era concebida, como hoje, pelos príncipes franceses que como, por exemplo, o grande Condé se aliavam ao estrangeiro contra o soberano nacional? Certamente que não, como ainda tinha um significado bem diferente do sentido moderno para os emigrados do tempo da Revolução, que julgavam obedecer às leis da honra combatendo a França, o que, para o seu critério, era uma verdade, pois que a lei feudal prendia o vassalo ao senhor e não à terra e, por isso, onde estivesse o senhor ali estava a verdadeira pátria. Numerosas são as palavras cujo significado mudou profundamente de época para época e que só após um longo esforço podemos conseguir interpretar como outrora se interpretaram. Diz-se, e com muita razão, que é necessária muita leitura para que consigamos conceber o que para os nossos mais afastados antepassados significavam os termos «rei» e «família real». Ora, se assim é, o que não será para termos ainda mais complexos? As palavras têm, pois, apenas significações móveis e transitórias, mutáveis de época para época e de povo para povo, e sempre que por meio delas queiramos actuar sobre a multidão, carecemos de saber o sentido que para essa multidão as palavras têm num dado momento e não o que outrora tiveram ou possam ter ainda hoje para indivíduos de constituição mental diferente. Por isso, quando as multidões, após profundas alterações políticas e mudanças de crenças religiosas, acabaram por adquirir profunda antipatia pelas imagens despertadas por certas palavras, o primeiro dever do verdadeiro homem de Estado é mudar as palavras, sem que, compreende-se bem, toque nas próprias coisas, porque estas, ligadas a uma constituição hereditária, não podem ser transformadas. O judicioso Tocqueville há já muito tempo acentuou que o trabalho do Consulado e do Império consistiu, principalmente, em revestir com palavras novas a maior parte das instituições do passado, isto é, em substituir as palavras que 103
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despertavam imagens desagradáveis na imaginação das multidões por outras palavras cuja novidade impedia que essas imagens se despertassem. A talha transformou-se em contribuição predial, a gabela em imposto do sal, as ajudas em contribuições indirectas, e direito, tudo reunido, a taxa dos senhorios e jurandas passaram a chamar-se patentes, etc. Uma das mais essenciais funções dos homens de Estado consiste, pois, em baptizar com palavras populares ou, pelo menos, neutras as coisas que as multidões não podem suportar com os antigos nomes. É tão grande o poder das palavras, que basta designarem-se com termos bem escolhidos as coisas mais odiosas para que as multidões as aceitem. Observa com muita exactidão Taine que foi invocando a liberdade e a fraternidade, palavras então muito populares, que os jacobinos «puderam instalar um despotismo digno de Dahomey, um tribunal semelhante ao da Inquisição, hecatombes humanas idênticas às do antigo México». A arte dos governantes, como a dos advogados, consiste, principalmente, em saber manejar as palavras. Uma das grandes dificuldades desta arte é que, numa mesma sociedade, as mesmas palavras têm muitas vezes sentidos muito diferentes para as diferentes camadas sociais. Aparentemente, essas camadas empregam as mesmas palavras; mas nunca falam a mesma língua. Nos exemplos precedentes, fizemos sobretudo intervir o tempo como o actor principal da mudança de sentido das palavras. Mas, se houvéssemos feito intervir também a raça, teríamos então visto que numa mesma época, em povos igualmente civilizados, mas de raças diversas, as mesmas palavras correspondem muitíssimas vezes a idéias extremamente dissemelhantes. Esta diferença só se apreende por meio de numerosas viagens e isto nos leva a não insistirmos no assunto, limitando-nos a acentuar que são precisamente as palavras mais empregadas pelas multidões aquelas que, de um povo para outro, maior diferença de sentido apresentam. Isto dá-se, por exemplo, com as palavras «democracia» e «socialismo», hoje tão freqüentemente empregadas. 104
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Estas palavras correspondem na realidade a idéias e imagens absolutamente opostas nas almas latinas e anglo-saxónicas. Entre os latinos, a palavra «democracia» significa principalmente apagamento da vontade e iniciativa individuais, em presença da vontade e iniciativas da comunidade representadas pelo Estado. O Estado é quem está encarregado cada vez mais de dirigir tudo, centralizar, monopolizar, fabricar tudo; para ele apelam, sem excepção, todos os partidos, radicais, socialistas e monárquicos. Entre os anglo-saxões, principalmente na América, a mesma palavra «democracia» significa, pelo contrário, desenvolvimento intenso da vontade e do indivíduo, afastamento, tão completo quanto possível, do Estado, ao qual, além da polícia, exército e relações diplomáticas, nada se deixa dirigir, nem sequer a instrução. Logo, a mesma palavra que num povo significa apagamento da vontade e iniciativa individuais e preponderância do Estado, significa num outro povo exactamente o contrário, isto é, um excessivo desenvolvimento da vontade e iniciativa iudividuais e apagamento completo do Estado e da sua intervenção(12).
2. As ilusões Desde a aurora das civilizações, as multidões sofreram sempre a acção das ilusões. E aos criadores de ilusões que elas têm levantado mais templos, estátuas e altares. Ilusões religiosas outrora, ilusões filosóficas e sociais hoje, encontramos sempre estas formidáveis soberanas à frente de todas as civilizações que sucessivamente têm florescido no planeta que habitamos. Foi em seu nome que se construíram os templos da Caldeia e do Egipto, os edifícios religiosos da Idade Média, que toda a Europa há um (l2)
Nas Leis Psicológicas da Evolução dos Povos, insistimos demorada-
mente na diferença que separa o ideial democrático latino do ideal democrático anglo-saxão. 105
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século derrubou, e não há uma só das nossas concepções artísticas, políticas ou sociais que não sinta a força do seu poder. O homem, por vezes, derruba-as à custa de terríveis alterações, mas parece que sobre ele pesa a condenação de as tornar a levantar sempre. Sem elas o homem não teria podido sair da primitiva barbaria, sem elas recairia bem depressa nessa barbaria. Sem dúvida essas ilusões são sombras vãs, mas a verdade é que, filhas dos nossos sonhos e devaneios, obrigaram os povos a criarem tudo quanto constitui o esplendor das artes e a grandeza das civilizações. Diz Daniel Lesueur: «Se se destruíssem os museus e bibliotecas e se desfizéssemos em estilhas todas as obras e todos os monumentos de arte que as religiões inspiraram, o que restaria dos grandes sonhos humanos? Dar aos homens a parte da esperança e ilusão sem a qual não podem existir é a razão de ser dos deuses, heróis e poetas. Durante cinqüenta anos, a ciência pareceu assumir esta função; mas o que a comprometeu para os corações famintos de ideal foi o não se atrever a prometer muito e o não saber mentir bastante.» Os filósofos do século x v m dedicaram-se ardentemente à destruição das ilusões religiosas, políticas e sociais, de que, durante muitos séculos, nossos maiores haviam vivido. Destruindo-as, secaram as fontes da esperança e da resignação; além das quimeras sacrificadas, encontraram as forças cegas e surdas da Natureza que, inexoráveis para com a fraqueza, não conhecem a compaixão. A filosofia com todos os seus progressos ainda não pôde oferecer às multidões nenhum ideal que as encante, e, porque elas carecem a todo o custo de ilusões, dirigem-se instintivamente, como o insecto que se arremessa para a luz, para os retóricos que lhas apresentam. O grande factor da evolução dos povos nunca foi a verdade, mas sim o erro. O socialismo, se é hoje tão poderoso, é por ser a única ilusão que ainda hoje tem vida. E assim, apesar de todas as demonstrações científicas, o socialismo continua a crescer. A principal força do socialismo reside em ser defendido por espíritos que ignoram da realidade das coisas o bastante 106
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para ousarem prometer a felicidade aos homens. A ilusão social pompeia hoje sobre todas as ruínas acumuladas do passado e pertence-lhe, sem dúvida, o futuro. As multidões nunca tiveram sede de verdades; em presença de evidências que lhes desagradem, afastam-se, preferindo deificar o erro, se este as encantar. Quem facilmente as souber iludir, assenhorear-se-ia delas; quem tentar desiludi-las será sempre vítima delas.
3. A experiência A experiência constitui quase o único processo eficaz para se estabelecer solidamente uma verdade na alma das multidões e destruir ilusões que se hajam tornado excessivamente perigosas. É necessário ainda que a experiência se realize em larga escala e se repita muitas vezes. As experiências feitas por uma geração são ordinariamente inúteis para a geração seguinte, e eis porque não podem servir os factos históricos invocados como elementos de demonstração. A única utilidade que esses factos têm é provarem até que ponto as experiências devam repetir-se de tempos a tempos, para exercerem alguma acção e conseguirem abalar um só erro que seja que esteja solidamente implantado na alma das multidões. Os dois últimos séculos, o xvm e o xix, serão sem dúvida citados pelos historiadores do futuro como uma era de experiências curiosas. Em nenhuma época se tentaram tantas. A mais gigantesca de todas elas foi a Revolução Francesa. Para que se descobrisse que se não refaz uma sociedade em todas as suas peças só pelas indicações da razão pura, foi necessário chacinar alguns milhões de homens e trazer toda a Europa em agitações durante vinte anos. Para se provar experimentalmente que os Césares custam caro aos povos que os aclamam, foram necessárias duas ruinosas experiências em cinqüenta anos e, apesar da sua clareza, parece que não foram bastante convincentes. A primeira 107
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todavia custou três milhões de homens e uma invasão, a segunda um desmembramento e a necessidade de exércitos permanentes. A terceira esteve a ponto de realizar-se, não há ainda muito tempo, e sê-lo-á seguramente um dia. Para fazer compreender a um povo inteiro que o imenso exército alemão não era, como lhe ensinavam, uma espécie de guarda nacional inofensiva(13), foi necessária a guerra terrível, que tão cara nos custou. Para reconhecer que o proteccionismo arruina os povos que o adoptam, serão necessários, pelo menos, vinte anos de experiências desastrosas. Poderíamos multiplicar indefinidamente estes exemplos.
4. A razão Na enumeração dos factores capazes de impressionarem a alma das multidões, poderíamos absolutamente deixar de falar na razão, se não fora necessário indicar-lhe o valor negativo da sua acção. Já mostrámos que as multidões não são actuáveis pelo raciocínio, nem compreendem mais do que grosseiras associações de idéias. Por isso também os oradores que sabem impressioná-las (") A opinião das multidões era, neste caso, formada por associações grosseiras de coisas dissemelhantes cujo mecanismo precedentemente expusemos. Como a Guarda Nacional francesa então era formada por pacíficos logistas sem sombras de disciplina, ninguém em França tomava a sério o que tivesse o mesmo nome, visto que despertava as mesmas imagens, considerando-se igualmente inofensivo. O erro das multidões, como tantas vezes sucede com as opiniões gerais, era então também partilhado pelos seus guias. Num discurso pronunciado em 31 de Dezembro de 1867 na Câmara dos Deputados e mais tarde reproduzido por E. Olivier num livro, um homem de Estado que muitas vezes seguiu a opinião das multidões, mas nunca a precedeu, Thiers, repetia que a Prússia, além de um exército activo quase igual em número ao nosso, não possuía mais do que uma guarda nacional análoga à francesa e, portanto, também sem nenhuma importância. Estas asserções eram tão exactas como as previsões que o mesmo homem de Estado fez acerca do pouco futuro que os caminhos-de-ferro apresentaram. 108
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só apelam para o sentimento e nunca para o raciocínio(14). Para convencer as multidões é necessário primeiramente ter bem cientes os sentimentos de que elas estão animadas, fingir partilhá-los, depois tentar modificá-los, provocando, por meio de associações rudimentares, algumas imagens bem sugestivas; saber, quando seja necessário voltar à primitiva fase, adivinhar principalmente em cada momento os interesses que se fizeram despertar. A necessidade de variar incessantemente a linguagem, em harmonia com o efeito produzido na ocasião em que se fala, fere de incapacidade antecipada qualquer discurso preparado e estudado, porquanto, neste último, o orador segue o seu pensamento e não o dos auditores, tornando-se desta forma absolutamente nula a sua acção. Os espíritos lógicos, habituados a serem convencidos por uma série de raciocínios um tanto cerrados, não podem deixar de recorrer a este modo de persuasão quando se dirigem à multidão, e, por isso, ficam sempre muito surpreendidos com a falta de efeito dos seus discursos. «As conseqüências matemáticas usuais
(' ') As nossas primeiras observações sobre a arte de impressionar as multidões, e sobre os fracos recursos que neste ponto oferecem as regras da lógica, datam do cerco de Paris, no dia em que vimos levar ao Louvre, onde então funcionava o Governo, o marechal V..., que a multidão irritada pretendia haver surpreendido a levantar um plano das fortificações para o vender aos Prussianos. Um membro do Governo, G. P., orador muito em voga, saiu para falar à multidão que exigia a execução imediata do prisioneiro. Esperávamos então que o orador demonstrasse o absurdo da acusação, dizendo que o marechal acusado era precisamente um dos construtores das fortificações cujo plano de resto se encontrava à venda em todas as livrarias. Com grande espanto nosso, éramos então muito moços, o discurso foi absolutamente o contrário do que esperávamos. «Far-se-á justiça», gritou o orador, avançando para o prisioneiro, «e justiça inflexível. Deixai que o Governo da defesa nacional termine o inquérito e até lá, à cautela, aprisione o acusado.» Imediatamente serenada com certa aparente satisfação, a multidão escoou-se e, ao cabo de um quarto de hora, o marechal dirigiu-se tranqüilamente para casa. Ora com certeza teria sido chacinado se o orador empregasse para a irritada multidão os raciocínios lógicos que para a nossa juventude tão convenientes pareciam. 109
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baseadas no silogismo, isto é, em associações de identidades», escreve um lógico, «são necessárias... A necessidade obrigaria ao assentimento até uma massa inorgânica, se esta fora capaz de seguir as associações de identidades.» Sem dúvida, assim seria; mas as multidões, como as massas orgânicas, são absolutamente incapazes de seguir essas associações e até mesmo de as compreenderem. Procure alguém convencer pelo raciocínio os espíritos primitivos, os selvagens e as crianças, por exemplo, e então ficará convencido do fraco valor deste modo de argumentar. Não é necessário mesmo descermos aos seres primitivos para vermos a absoluta incapacidade dos raciocínios na luta contra os sentimentos. Recordemo-nos simplesmente de quão tenazes foram, durante séculos, as superstições religiosas, contrárias à mais simples e elementar lógica. Por quase dois mil anos, os mais luminosos gênios estiveram curvados às suas leis e foi necessário chegar-se aos tempos modernos para que a veracidade dessas superstições pudesse ser contestada. A Idade Média e a Renascença tiveram, sem dúvida, muitos homens ilustrados, mas não tiveram um só que fosse a quem o raciocínio houvesse mostrado o aspecto pueril dessas superstições e fizesse aparecer no espírito dúvidas sobre as maldades do Diabo ou sobre a necessidade de queimar os feiticeiros. Mas deve lamentar-se o facto de as multidões não serem guiadas pela razão? Não ousamos fazê-lo. A razão humana com certeza não teria conseguido arrastar a humanidade no caminho da civilização com o ardor e a ousadia que lhe imprimiram as quimeras. Filhas do inconsciente que nos guia, eram sem dúvida necessárias. Cada raça tem na sua constituição mental as leis dos seus destinos, e é, porventura, a essas leis que ela obedece por um instinto contra o qual não pode lutar, até mesmo nos impulsos, aparentemente mais desarrazoados. Por vezes chega a parecer que os povos estão sujeitos a forças secretas análogas às que obrigam a glande a transformar-se em carvalho ou o cometa a descrever a órbita. lio
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O pouco que dessas forças nós podemos pressentir deve procurar-se na marcha geral da evolução de um povo e não nos factos isolados de que esta evolução parece, por vezes, surgir. Se apenas tomássemos em consideração os factos isolados, a História pareceria regida por acasos inverosímeis. Inverosímil era que um carpinteiro ignorante de Galileia pudesse ser, durante dois mil anos, um deus omnipotente em cujo nome se fundassem as civilizações mais importantes; inverosímil era também que alguns bandos de árabes, saídos dos seus desertos, pudessem conquistar a maior parte do mundo greco-romano, fundando um império maior que o do Alexandre; inverosímil era também que na Europa, muito velha e muito hierarquizada, um obscuro tenente de artilharia pudesse reinar sobre grande número de povos e reis. Deixemos, pois, a razão aos filósofos, mas não exijamos a sua interferência no governo dos homens. Não tem sido com a razão, antes, a maioria dos casos, é contra os seus ditames, que se têm criado sentimentos como os da honra, abnegação, fé religiosa, amor da glória e da pátria, que até hoje têm sido os grandes fulcros de todas as civilizações.
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TERCEIRO CAPÍTULO
OS GUIAS DAS MULTIDÕES E SEUS MEIOS DE PERSUASÃO
1. Os guias da multidão. — Necessidade instintiva da todos os seres em multidão obedecerem a um guia. — Psicologia dos guias. — Só eles podem criar a fé e dar organização às multidões. — Forçado despotismo dos guias. — Classificação dos guias. — Função da vontade. — 2. Os meios de acção dos guias. — A afirmação, a repetição, o contágio. — Papel respectivo destes diversos factores. — C o m o pode o contágio ascender das camadas inferiores de uma sociedade às superiores. — Uma opinião popular depressa se transforma em opinião geral. — 3. O prestígio. — Definição e classificação do prestígio. — O prestígio adquirido e o prestígio pessoal. — Diversos exemplos. — C o m o desaparece o prestígio.
Já nos é conhecida a constituição mental das multidões e também já sabemos quais os móbeis capazes de lhes impressionarem a alma. Falta-nos, porém, investigar como se devem aplicar esses móbeis e por quem possam ser utilmente postos em acção.
1. Os guias das multidões Logo que um certo número de seres vivos se encontram reunidos, quer se trate de um agrupamento de animais, quer de uma 113
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multidão de homens, colocam-se todos instintivamente sob a autoridade de um chefe. Nos agrupamentos humanos, o chefe muitas vezes não é mais do que um guia, mas nesta qualidade desempenha funções importantes. A sua vontade é o núcleo em torno do qual se formam e identificam as opiniões; o guia constitui o primeiro elemento de organização das multidões heterogêneas, preparando-lhes a organização em seitas. Enquanto a organização se não faz, o guia dirige a multidão que é um rebanho servil, que nunca poderia dispensar um senhor ou dono. O guia, muitas vezes, foi primeiramente também um guiado. Ele próprio foi hipnotizado pela idéia de que em seguida se fez apóstolo. A idéia apossou-se dele por forma tal que desaparece tudo que a ela seja estranho e qualquer opinião em contrário se apresenta ao seu sequaz como erro e superstição. Isso se deu, por exemplo, com Robespierre, hipnotizado pelas idéias filosóficas de Rousseau e empregando os processos inquisitoriais para as propagar. Os guias, na maioria dos casos, não são homens de pensamento, mas de acção. São pouco clarividentes, nem mesmo o poderiam ser, pois que a clarividência conduz geralmente à dúvida e à inacção. Recrutam-se principalmente entre os nevróticos, os excitados e semialienados, que se avizinham das raias da loucura. Por mais absurda que a idéia defendida por eles possa ser ou o alvo que pretendam atingir, todo o raciocínio se vai embotar contra as suas convicções. O desprezo e as perseguições não os incomodam ou apenas servem para mais os excitar. Interesses pessoais, família, tudo eles sacrificam. O próprio instinto de conservação é tão fraco neles que muitas vezes a única recompensa que pedem é ser mártires. A intensidade da sua fé imprime às suas palavras um grande poder sugestivo. A multidão está sempre pronta para escutar o homem dotado de vontade enérgica que se lhe saiba impor. Os homens reunidos em multidão perdem toda a vontade e instintivamente voltam-se para aquele que a possuir. 114
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Os povos nunca tiveram falta de guias, mas é necessário que todos estes se encontrem animados das convicções fortes que fazem os apóstolos. Muitas vezes, porém, são argutos sofistas com a mira unicamente em interesses pessoais, que procuram persuadir, lisonjeando os mais baixos instintos. Nestes casos, pode ser muito grande a acção por eles exercida; mas é também sempre efêmera. Os grandes convictos que agitaram as multidões, os Pedro Eremita, os Lutero, os Savonarola, os homens da Revolução, só exerceram fascinação nas multidões depois de eles próprios haverem sido fascinados por uma crença. Só então puderam criar nas almas o formidável poder chamado fé, que faz do homem o escravo absoluto do seu sonho. Criar a fé, quer se trate de fé religiosa, quer de fé política ou social, fé numa obra, numa personagem, numa idéia, é principalmente a função dos grandes guias, pelo que a sua acção é sempre muito grande. De todas as forças de que a humanidade dispõe, a fé tem sido sempre uma das maiores, e tem muita razão o Evangelho ao atribuir-lhe o poder de transportar montanhas. Dar ao homem uma fé é decuplicar-lhe a força. Os grandes acontecimentos da História foram levados a efeito por obscuros crentes que só dispunham da fé. Não foi com letrados e filósofos nem principalmente com cépticos que se constituíram as grandes religiões que têm dirigido o mundo, nem os vastos impérios, que se dilatam de um a outro hemisfério. Mas, nestes casos, trata-se dos grandes guias, tão raros que a História pode facilmente marcar-lhes o número. Formam a cúpula de uma série contínua, que vem descendo destes poderosos manejadores de homens até ao operário que, numa pousada fumarenta, fascina lentamente os camaradas, remoendo incessantemente algumas fórmulas que não compreende, mas cuja aplicação, em seu modo de ver, deve produzir seguramente a realização de todos os sonhos e de todas as esperanças. Em todas as esferas sociais, das mais altas às mais baixas, logo que o homem não esteja isolado, bem depressa cai sob o domínio 115
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de um guia. A maioria dos homens, principalmente nas massas populares, não tem, fora das suas especialidades, idéias nítidas e razoáveis sobre o que quer que seja. São incapazes de se conduzirem por si e é o guia quem os encaminha. Pode talvez o guia ser substituído, embora muito insuficientemente, pelas publicações periódicas que fabricam opiniões para os leitores, proporcionando-lhes frases já feitas que os dispensam de raciocionarem. A autoridade dos guias é muito despótica e só chega a impor-se por causa do despotismo. Muitas vezes se tem notado a facilidade com que eles, embora não tenham meio nenhum de apoiarem a sua autoridade, se fazem obedecer nas mais turbulentas camadas operárias, fixam as horas de trabalho, o preço dos trabalhos, resolvem as greves, determinando-lhes o início e fazendo-as terminar à hora fixada. Os guias tendem hoje a substituir cada vez mais os poderes públicos, à proporção que estes se deixam discutir e enfraquecer. A tirania destes novos senhores faz com que as multidões lhes obedeçam muito mais docilmente do que a qualquer governo. Se, em resultado de qualquer acontecimento, o guia desaparece e não é imediatamente substituído, a multidão transforma-se numa colectividade sem coesão nem resistência. Na última greve dos empregados dos ônibus em Paris, bastou prenderem-se os guias que a dirigiam para que de imediato cessasse. Não é a necessidade de liberdade mas a da escravidão que domina sempre a alma das multidões, que têm tal desejo de obedecerem que instintivamente se submetem ao que se declarar seu senhor. Pode estabelecer-se uma divisão bem acentuada na classe dos guias. Uns são homens enérgicos, de forte vontade, mas momentânea; outros, muito mais raros que os precedentes, são homens que possuem uma vontade enérgica e perdurável. Os primeiros são violentos, valentes, ousados, e são sobretudo úteis para dirigirem uma surpresa, arrastarem as massas, apesar do perigo, e fazerem heróis dos recrutas da véspera. Assim foram Ney e Murat no I Império, e, em nossos dias, Garibaldi, aventureiro sem talento, 116
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mas enérgico, que com um punhado de homens conseguiu apoderar-se do antigo Reino de Nápoles, que estava defendido por um exército disciplinado. Contudo, se é poderosa a energia destes guias, é todavia momentânea e não sobrevive à excitação que a despertou. Voltando às ocupações da vida ordinária, os heróis que dessa energia estavam animados dão muitas vezes provas, como os que há pouco citámos, da mais extraordinária fraqueza. Eles, que tão bem souberam conduzir-se em circunstâncias graves, parecem então incapazes de reflectir e de se conduzir. São, pois, guias que só podem exercer as suas funções com a condição de eles próprios serem guiados e incessantemente excitados, e terem sempre como superiores um homem ou uma idéia, seguindo uma linha de conduta bem traçada. A segunda categoria de guias, a dos homens de vontade perdurável, tem, apesar das formas menos brilhantes, uma acção muito mais importante. Nessa categoria se encontram os verdadeiros fundadores de religiões ou de grandes obras, S. Paulo, Maomé, Cristóvão Colombo, Lesseps. Inteligentes ou acanhados, isso pouco importa, o mundo pertencer-lhes-á sempre. A persistente vontade que possuem é uma faculdade infinitamente rara e infinitamente forte que faz curvar tudo. Não se pode calcular bem o quanto pode uma vontade enérgica e contínua; nada lhe resiste, nem a Natureza, nem os deuses, nem os homens. O mais recente exemplo de quanto pode uma vontade enérgica e contínua foi-nos dado pelo homem ilustre que separou dois mundos e realizou a obra inutilmente tentada há três mil anos pelos maiores soberanos. Mais tarde sofreu um desastre em empresa idêntica; mas foi porque a velhice o atingira e perante a velhice tudo se extingue, até a própria vontade. Quando se quiser mostrar quanto a vontade só por si pode, basta apresentar pormenorizadamente a história das dificuldades que foi necessário vencer para a escavação do canal de Suez. Uma testemunha ocular, o Dr. Cazalis, sintetizou em algumas 117
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empolgantes linhas a história desta grande obra contada pelo seu imortal autor. Escreve Cazalis: «Lesseps contava episodicamente, seguindo dia a dia, a epopeia do canal. Contava tudo que teve que vencer, o impossível que ele fizera possível, todas as resistências e coligações contra ele levantadas, os dissabores, reveses e desastres, que não conseguiram, todavia, desanimá-lo nem vencê-lo; recordava a guerra que a Inglaterra lhe fizera, atacando-o sem descanso, o Egipto e a França hesitantes e o cônsul francês opondo-se mais que qualquer outro aos primeiros trabalhos, e, por encontrar resistência, coagindo os operários pela sede, negando-lhes água potável; o Ministério da Marinha e os engenheiros, tudo gente séria, experimentada e de saber, todos eles naturalmente hostis à empresa, todos cientificamente convencidos do desastre, calculando-o e prometendo-o como quem marca um eclipse em determinados dia e hora.» O livro que narrasse a vida de todos estes grandes guias não enunciaria muitos nomes; mas esses poucos eram os de homens que estiveram à frente dos mais importantes acontecimentos da civilização e da História.
2. Os meios de acção dos guias: a afirmação, a repetição, o contágio Quando se trata de arrastar por um momento uma multidão, determinando-a ao cometimento de qualquer acto, como saquear um palácio, deixar-se matar na defesa de uma praça-forte ou de uma barricada, é necessário actuar nessa multidão por sugestões rápidas, das quais a mais enérgica é ainda hoje o exemplo. Para isso, porém, carece-se de que a multidão esteja já preparada por certas circunstâncias e especialmente que quem pretender arrastála possua o prestígio, qualidade que teremos ocasião de estudar. Quando, porém, se trata de se fazer penetrar idéias e crenças no espírito das multidões, como, por exemplo, as modernas teorias 118
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sociais, são diferentes os processos de que os guias lançam mão. Recorrem principalmente a três processos muito característicos, a afirmação, a repetição e o contágio. A acção é, sem dúvida, muito lenta, mas, produzidos os resultados dessa acção, a verdade é que adquirem duração extraordinária. A afirmação pura e simples, desprovida de raciocínio e prova, é um dos meios mais seguros para fazer penetrar uma idéia no espírito das multidões. Quanto mais concisa for a afirmação, quanto menos aparências tiver de provas e demonstrações, tanto maior autoridade exercerá. Os livros religiosos e os códigos de todos os tempos serviram-se sempre de simples afirmações. Os homens de Estado na defesa de qualquer causa política, os industriais que tornam conhecidos os seus produtos pelo anúncio sabem perfeitamente o valor da afirmação. A afirmação só tem, todavia, acção real sendo constantemente repetida e, tanto quanto possível, nos mesmos termos. Foi, cremos, Napoleão quem disse que a única figura séria que a retórica tem é a repetição. O que se afirma chega, pela repetição, a gravar-se nos espíritos tão profundamente que todos acabam por aceitá-la como uma verdade demonstrada. Compreende-se facilmente a acção da repetição nas multidões vendo até que ponto ela subjuga os espíritos mais ilustrados. O poder da repetição provém do facto de a coisa repetida acabar por se incrustar nas profundas regiões do inconsciente, onde se elaboram os motivos das nossas acções. Ao cabo de algum tempo, já não sabemos quem é o autor da asserção repetida e acabamos por dar-lhe crédito. Disto provém a espantosa força do anúncio. Quando lemos cem vezes, mil vezes, que o melhor chocolate é o X, imaginamos que ouvimos dizer isso por toda a parte e acabamos por nos convencer de que essa é a verdade. Quando lemos muitas e muitas vezes que a farinha Y curou pessoas importantes das mais pertinazes doenças, acabamos por nos sentir tentados a experimentá-la quando nos julgamos atacados de doença do mesmo gênero. Se lermos todos os dias no mesmo jornal que 119
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A é um refinado malandro e B uma excelente pessoa, acabamos por nos convencer disso, se, claro está, não lermos muitas vezes um outro jornal de opinião contrária, em que, por conseqüência, as apreciações sejam inversas das primeiras. Só a afirmação e a repetição são por si elementos bastante poderosos para se poder combater. Quando uma afirmação haja sido suficientemente repetida e haja unanimidade na repetição, como tem acontecido com algumas empresas financeiras célebres, ricas bastante para comprarem todos os auxiliares, forma-se o que se chama uma corrente de opinião e desde então intervém o poderoso mecanismo do contágio. As idéias e sentimentos, emoções e crenças, exercem nas multidões um poder contagioso tão intenso como o dos micróbios. Este fenômeno é tão natural que até se observa nos próprios animais logo que estes se encontrem em multidão. A manha de um cavalo é bem depressa imitada pelos cavalos que se encontrem na mesma cavalariça. Um terror pânico, um movimento desordenado de alguns carneiros, estende-se bem depressa por todo o rebanho. No homem em multidão todas as emoções são muito rapidamente contagiosas e assim se explica a celeridade dos terrores pânicos. As próprias desordens cerebrais, como a loucura, são também contagiosas. Sabe-se perfeitamente quão freqüente é a alienação nos médicos alienistas. Tem-se citado recentemente formas de loucura, como, por exemplo, a agorafobia, transmitidas do homem aos animais. O contágio não exige a presença simultânea de indivíduos num mesmo ponto; pode fazer-se a distância, sob a acção de certos acontecimentos que orientem todos os espíritos no mesmo sentido e dêem às multidões os seus caracteres especiais, principalmente quando os espíritos estão preparados pelos factores longínquos, que já tivemos ocasião de estudar. É assim, por exemplo, que a explosão revolucionária de 1848, iniciada em Paris, se estendeu bruscamente a uma grande parte da Europa, abalando algumas monarquias. 120
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A imitação, a que tanta acção se tem atribuído nos fenômenos sociais, não é, na realidade, mais do que um simples efeito do contágio. Como já demonstrámos a sua acção, limitar-nos-emos a reproduzir o que, há cerca de trinta anos, já dizíamos e que outros escritores desenvolveram em publicações recentes. «Semelhante aos animais, o homem é naturalmente imitativo. A imitação é para ele uma necessidade, contanto que, é claro, essa imitação seja facílima. Esta necessidade é que faz tão imperiosa a acção do que nós chamamos a moda. Quantos são os que ousam subtrair-se à acção da moda, quer se trate de opiniões, idéias, manifestações literárias, ou simplesmente de trajo? Não se guiam as multidões com argumentos, mas com modelos. Em todas as épocas, há um pequeno número de individualidades que imprimem a acção e que a massa inconsciente imita. É necessário todavia que essas individualidades se não afastem muito das idéias recebidas, porque então seria muito difícil imitá-las e a sua acção seria nula. E é precisamente por esta razão que os homens muito superiores à sua época, geralmente, nenhuma acção exercem sobre ela, visto que é muito grande a distância que os separa. É ainda por esta mesma razão que os europeus, com todas as vantagens da sua civilização, pouca e insignificante acção exercem nos povos do Oriente, dos quais muito divergem. A dupla acção do passado e da recíproca imitação acaba por fazer todos os homens do mesmo país e da mesma época tão semelhantes, que até nos que mais pareceriam dever subtrair-se a essa acção, filósofos, sábios e literatos, o pensamento e o estilo apresentam como que um ar de família que nos faz reconhecer imediatamente o tempo a que pertencem. Não precisamos falar muito tempo com um indivíduo para conhecermos a fundo as suas leituras, ocupações habituais e o meio em que vive.»(15) O contágio é tão poderoso que impõe aos indivíduos não só certas opiniões, mas até certos modos de sentir. É o contágio que C5)
G u s t a v e Le B o n , L'Homme et les Sociétés, t. II, p. 116, 1881. 121
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faz com que numa época se desprezem algumas obras, como, por exemplo, o Tannhüuser, que esse mesmo contágio alguns anos depois faz admirar exactamente por aqueles que mais as haviam maltratado. É sobretudo pelo mecanismo do contágio, e nunca pelo do raciocínio, que se propagam as opiniões e crenças das multidões. É na taberna que, pela afirmação, repetição e contágio, se estabelecem as actuais concepções dos operários, como sempre assim se têm criado as crenças das multidões. Renan compara, muito judiciosamente, os primitivos fundadores do cristianismo com os operários socialistas que espalham os suas idéias de taberna em taberna, e até Voltaire já notara, a propósito da religião cristã, que «durante os cem primeiros anos, ou mais, só a mais vil canalha a abraçara». É de notar que, em exemplos análogos aos que acabamos de citar, o contágio, depois de haver exercido a sua acção nas camadas populares, passa para as superiores. E isto se dá em nossos dias com as doutrinas socialistas, que começam já a captar aqueles que estão naturalmente indicados para serem as suas primeiras vítimas. O mecanismo do contágio é tão poderoso que, em presença da sua acção, o próprio interesse pessoal se desvanece. Este é o motivo por que toda a opinião que se tornou popular consegue sempre impor-se com grande força às mais elevadas camadas sociais, por mais patente que possa ser o absurdo da opinião triunfante. Há nisto uma reacção das camadas sociais inferiores sobre as superiores, tanto mais curiosa quanto é certo que as crenças da multidão derivam sempre mais ou menos de alguma idéia superior que, no meio em que se originou, não adquiriu muitas vezes nenhuma acção. Os guias, subjugados por esta idéia superior, entranham-se nela, deformam-na e criam uma seita que lhe imprime nova deformação e vai depois espalhá-la no seio das multidões que continuam a deformá-la cada vez mais. Feita verdade popular, essa idéia de qualquer modo regressa ao meio originário, actuando então nas camadas superiores de uma nação. Em resumo, 122
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definitivamente, é a inteligência que guia o mundo; mas, na verdade, guia-o de muito longe. Os filósofos criadores de idéias já de há muito estão reduzidos a pó, quando, em resultado do mecanismo que acabamos de descrever, o seu pensamento alcança o triunfo.
3. O prestígio O que principalmente contribui para dar enorme poder às idéias propagadas pela afirmação, repetição e contágio é o facto de elas conseguirem a aquisição desse poder misterioso que se chama prestígio. Tudo o que tem dominado no mundo, homens ou idéias, tem-se principalmente imposto pela irresistível força expressa pela palavra «prestígio». É um termo cujo sentido todos nós apreendemos; mas que tem aplicações tão diversas que é difícil dar-se a sua definição. O prestígio pode conter alguns sentimentos, como os de admiração ou de terror; por vezes mesmo se baseia neles, mas também pode existir perfeitamente sem eles. São mortos, e, por conseqüência, seres que não tememos, Alexandre, César, Maomé e Buda, por exemplo, e todavia são dos que mais prestígio possuem. Por outro lado, há seres ou ficções que não admiramos, como as divindades monstruosas dos templos subterrâneos da índia, que contudo nos parecem revestidos de grande prestígio. O prestígio é realmente uma espécie de domínio exercido no nosso espírito por um indivíduo, uma obra ou uma idéia. Este domínio paralisa todas as nossas faculdades críticas e enche a nossa alma de espanto e respeito. O sentimento provocado é, como todos os sentimentos, inexplicável; mas deve pertencer à categoria da fascinação sofrida por um magnetizado. O prestígio é a mola mais poderosa de todo o domínio. Sem ele, deuses, reis e mulheres nunca teriam preponderado. As diferentes variedades de prestígio podem reduzir-se a duas formas principais, o prestígio adquirido e o prestígio pessoal. 123
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O adquirido é o resultado do nome, fortuna e reputação, podendo até ser independente do pessoal. Este, pelo contrário, é alguma coisa individual, que pode coexistir com a reputação, glória e fortuna, podendo ser por elas reforçado, mas podendo também existir perfeitamente sem esses auxiliares. O prestígio adquirido ou artificial é incomparavelmente muito mais espalhado. Só pelo facto de o indivíduo ocupar uma certa posição, possuir uma boa fortuna ou estar carregado de títulos nobiliárquicos tem prestígio, ainda que o seu valor pessoal seja nulo. Assim, um militar fardado e um magistrado com a sua toga têm sempre prestígio. Pascal muito arrazoadamente notou a necessidade que os juizes tinham de togas e cabeleiras, porque sem elas perderiam três quartas partes da sua autoridade. O mais assanhado socialista fica sempre um pouco impressionado com a presença de um príncipe ou de um marquês e basta declinar estes títulos para se intrujar tanto quanto se queira o mais ladino comercianteO6). Este prestígio de que acabo de falar é o exercido pelas pessoas; a seu lado podemos colocar o exercido pelas opiniões, obras literárias ( " ) A acção dos títulos, fitas e uniformes nas multidões encontra-se em todos os países, até naqueles em que o sentimento de independência pessoal mais desenvolvido está. Reproduzimos a este respeito o curioso excerto do livro de um viajante acerca do prestígio de certas personalidades na Inglaterra. «Em diversas ocasiões», escreve ele, «ainda não tinha dado pela embriaguez particular a que o contado ou a presença de um par de Inglaterra expõem os ingleses, ainda os mais sensatos e equilibrados. Contanto que o seu aparato corresponda ã alta posição que o ocupa, os Ingleses amam os seus pares e suportam-lhes tudo com encanto. Enchem-se de prazer quando qualquer par se aproxima e, se lhes fala, a sua alegria quase não conhece limites. Têm, como se costuma dizer, o lorde no sangue, como o espanhol a dança, o alemão a música e o francês a revolução. A sua paixão pelos cavalos e por Shakespeare é menos violenta, a satisfação e orgulho que por eles sentem menos profundos. O Livro dos Pares tem um grande consumo e em qualquer parte da Inglaterra, por mais distante que seja, se encontra em todas as mãos, exactamente como a Bíblia.»
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ou artísticas, etc., que, na maioria dos casos, não é mais do que a repetição acumulada. A história, principalmente a história literária e artística, é a repetição das mesmas opiniões que ninguém tenta verificar, e todos chegam a repetir o que aprenderam na escola, havendo, por isso, nomes e factos em quem ninguém ousaria tocar. Homero, sem dúvida, causa imenso enfado ao leitor moderno; mas quem é que ousaria confessar semelhante coisa? O Parténon actualmente não passa de um montão de ruínas, desprovidas de todo o interesse, mas é tal o prestígio de que está rodeado que ninguém o vê tal como é, mas sim aureolado com todas as recordações históricas. O carácter privativo do prestígio é o impedir ver as coisas tais como elas são, paralisando assim todos os nossos juízos. As multidões sempre, e os indivíduos a maior parte das vezes, carecem de opiniões já feitas acerca de todos os assuntos. O êxito destas opiniões é independente da parte de verdade ou erro que contenham, pois que depende apenas do seu prestígio. Chegamos agora ao prestígio pessoal, que é de índole muito diferente do artificial ou adquirido, de que nos ocupámos. O prestígio pessoal é uma faculdade independente de qualquer título ou autoridade, que só um pequeno número de pessoas possuem e que a estas permite exercerem uma fascinação verdadeiramente magnética sobre os que os rodeiam, embora socialmente sejam seus iguais e nenhum meio ordinário de domínio possuam. Impõem as suas idéias e sentimentos aos que os cercam e estes obedecem-lhes como os animais ferozes ao domador que tão facilmente poderiam devorar. Os grandes guias de multidões, como Buda, Jesus, Maomé, Joana d'Arc e Napoleão, tiveram em grande escala esta forma de prestígio e foi principalmente por isso que se impuseram. Os deuses, os heróis e os dogmas impõem-se e não se discutem; porque, se os discutimos, deixamos de ver neles as qualidades que no-los impunham. Muito antes de se haverem notabilizado já as grandes personagens que acabámos de citar possuíam o seu poder fascinador, 125
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sem o qual não teriam saído da obscuridade. É evidente que, por exemplo, Napoleão, no auge da sua glória, só pelo seu poder exercia imenso prestígio, mas não é menos evidente que já deste era dotado quando ainda não tinha nenhum poder e era absolutamente um desconhecido. Quando, ainda um general desconhecido, foi mandado, devido a grandes protecções, comandar o exército de Itália, Napoleão cairia por assim dizer num meio de rudes generais que se preparavam para receberem nada agradavelmente o intruso mancebo que o Directório lhes mandava. Desde o primeiro instante, a partir da primeira entrevista, sem frases, sem gestos nem ameaças, ao primeiro olhar do futuro grande homem, todos esses generais estavam subjugados. Taine, baseando-se em memórias de contemporâneos, dá uma curiosa narração desta entrevista, narração que transcrevemos: «Os generais de divisão, entre outros, Augereau, espécie de tarimbeiro heróico e grosseiro, prosapioso com a sua elevada estatura e grande bravura, chegam ao quartel-general muito mal impressionados com o recém-chegado garoto que de Paris lhes haviam mandado. Pela descrição que dele lhe haviam feito, Augereau, antes de vê-lo, injuria-o e insubordina-se, por assim dizer, apodando-o de valido de Barras, general do Vindimiário, general de rua, verdadeiro urso que está sempre a pensar, cara de boneco, com reputação apenas de matemático e sonhador. São introduzidos os generais no quartel-general; Bonaparte faz-se esperar e aparece depois cingindo a espada, cobre-se, explica os seus planos, dá-lhes ordens e despede-os. Augereau emudece e só fora do quartel-general é que se sente outra vez senhor de si, repetindo os seus habituais palavrões, embora convenha com Massena em que aquele generalzito de borra lhe mete medo, não podendo sequer explicar o ascendente por que se sentiu esmagado no primeiro olhar.» Quando já era um grande homem, o prestígio aumentou com toda a sua glória e tornou-se, pelo menos, igual ao exercido por uma divindade sobre os seus devotos. O general Vandamme, 126
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tarimbeiro revolucionário, mais brutal e mais enérgico ainda que Augereau, dizia em 1813, acerca de Napoleão, ao duque de Ornano, quando juntos subiam a escada das Tulherias: «Meu caro, este homem do diabo exerce em mim fascinação tal que eu nem sequer a percebo. É de tal ordem que eu, que não temo nem Deus nem o Diabo, quase tremo como uma criança quando dele me aproximo e estou certo de que por ele passaria pelo fundo de uma agulha e me arremessaria ao fogo.» Esta fascinação exerceu Napoleão sobre todos os que dele se aproximaram(17). Davoust dizia, falando da sua dedicação e da de Maret, que se o imperador dissesse a ambos que, aos interesses da sua política convinha destruir Paris sem que ninguém pudesse sair da cidade nem salvar-se, estou certo de que Maret guardaria o segredo, mas que poderia talvez dá-lo a perceber, fazendo sair a família da cidade. Pois bem, eu, com receio de o dar a saber, deixaria na cidade mulher e filhos.» Só lembrando-nos deste admirável poder de fascinação podemos compreender o maravilhoso regresso da ilha de Elba, a conquista imediata da França por um homem só, que tinha diante de si todas as forças organizadas de um grande país, que podia crer-se já fatigado de tanta luta e da sua própria tirania. Bastou-lhe
C7) Muito consciente do seu prestígio, Napoleão sabia que o acrescentava ainda tratando um pouco pior que a palafreneiros as grandes personagens que o rodeavam e entre as quais figuravam alguns dos célebres convencionais que a Europa tanto temera. As narrativas da época estão cheias de factos signficativos a este respeito. Um dia, em pleno Conselho de Estado, Napoleão increpa rudemente a Beugnot, a quem trata como um criado mal-educado. Produzido o desejado efeito, aproxima-se e diz-lhe: «Oh grande idiota, já encontraste a cabeça?» Nisto, Beugnot, da altura de um tambor-mor, agacha-se e Napoleão, levantando a mão, agarra-o por uma orelha, sinal de inefável valimento, escreve Beugnot, gesto familiar do senhor que se humaniza. Tais exemplos dão uma noção exacta do grau de baixa chateza que o prestígio pode provocar. Fazem compreender o imenso desprezo do grande déspota pelos homens que o cercavam e que ele simplesmente considerava como carne para canhão. 127
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contemplar os generais que tinham sido mandados para o prenderem e que a isso se tinham obrigado por juramento, para, em vez de ser preso, os atrair a si. Todos se submeteram sem discussão. «Napoleão», escreve o general inglês Volseley, «desembarca em França quase só e como um fugitivo da ilhota de Elba que era o seu reino, e conseguiu em algumas semanas destruir, sem derramamento de sangue, toda a organização do poder da França, sob o seu legítimo rei. Porventura se manifestou alguma vez mais brilhante o ascendente pessoal de um homem? Mas, de princípio a fim desta campanha que, para ele, foi a última, quão notável é o ascendente por ele exercido sobre os aliados, obrigando-os a seguirem-lhe a iniciativa e estando quase a ponto de os esmagar?» O prestígio de Napoleão sobreviveu-lhe e continuou a aumentar. Foi esse prestígio que fez sagrar como imperador um obscuro sobrinho do grande militar. Vendo-se hoje renascer a sua lenda, vê-se bem quanto essa grande sombra ainda é poderosa. Maltratai os homens quanto vos aprouver, massacrai-os aos milheiros, acarretai invasões sobre invasões, que tudo vos será permitido se tiverdes suficiente prestígio e o talento necessário para o manterdes. Invocámos um exemplo de prestígio muito excepcional, sem dúvida, mas era indispensável e útil que o citássemos, para fazermos compreender a gênese das grandes religiões, das grandes doutrinas e dos grandes impérios, pois que essa gênese seria incompreensível sem a acção que sobre a multidão exerce o prestígio. Mas o prestígio não se funda unicamente no ascendente pessoal, glória militar e terror religioso; pode ter origens mais modestas e ser ainda mais importante. Destes casos podem os nossos tempos dar alguns exemplos, dos quais um dos mais impressionantes é aquele, que a posteridade há-de recordar em todas as gerações, fornecido pela história do homem ilustre que modificou o aspecto do globo e as relações comerciais dos povos pela separação de dois continentes. Levou a cabo a empresa pela imensa vontade de que era dotado, é facto, mas também 128
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pela fascinação que exercia sobre todos que dele se acercavam. Bastava-lhe aparecer para levar de vencida a oposição unânime que contra ele se levantara; falava alguns momentos e, perante o encanto que dele dimanava, os opositores faziam-se seus amigos. Os Ingleses, principalmente, combatiam com encarniçamento o projecto, e bastou que ele aparecesse em Inglaterra para que todos o seguissem. Quando, mais tarde, passou por Southampton, os sinos tocaram à sua passagem e hoje a Inglaterra pensa a sério em elevar-lhe uma estátua. Tendo vencido tudo, homens e coisas, pântanos e rochedos e areias, já não acreditava em obstáculos e quis repetir Suez no Panamá. Recomeçou a obra pelos mesmos processos, mas a velhice chegara e, além disso, a fé que levanta montanhas só as levanta se estas não forem muito altas. As montanhas resistiram e a catástrofe que deste facto resultou destruiu a deslumbrante auréola de glória que circundava o herói. A vida deste mostra bem como pode aumentar o prestígio e como é que este pode desaparecer. Depois de haver igualado em grandeza os mais célebres heróis da História, foi rebaixado pelos magistrados do seu país à categoria dos mais vis criminosos. Quando morreu, o seu caixão passou quase desacompanhado por meio das multidões indiferentes. Só os soberanos estrangeiros prestaram à sua memória a homenagem devida a um dos maiores homens que a História conheceu(18).
('") Um jornal estrangeiro, o Neu Frei Presse, de Viena, publicou, a propósito da sorte de Lesseps, reflexões psicológicas de muito valor, que tomamos a liberdade de reproduzir. «Depois da condenação de Ferdinand de Lesseps, nenhum direito temos de nos admirarmos do triste fim de Cristóvão Colombo. Se Ferdinand de Lesseps é um intrujão, toda a ilusão nobre e levantada é um crime. A Antigüidade teria coroado a memória de Lesseps com uma auréola de glória e ter-lhe-ia feito beber a taça de néctar no meio do Olimpo, porque ele mudou o aspecto da Terra e levou a cabo obras que aperfeiçoam a Criação. Condenando Ferdinand de Lesseps, o presidente do tribunal imortalizou-se, porque os povos hão-de sempre querer saber o nome do homem que não receou rebaixar o seu século 129
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Mas os diversos exemplos que acabamos de citar representam formas extremas. Para que assentemos pormenorizadamente a psicologia do prestígio, é necessário colocarmos os pormenores na extremidade de uma série que venha dos fundadores de religiões e impérios até ao particular que procura deslumbrar os vizinhos com uma casaca nova ou uma condecoração. Entre os mais distanciados termos desta série, devem colocar-se todas as formas de prestígio nos elementos diversos de uma civilização, ciências, artes, literatura, etc., e então ver-se-ia que o prestígio constitui o elemento fundamental da persuasão. Consciente ou inconscientemente, o ser, a idéia ou a coisa que possuam prestígio são, por via do contágio, imitados imediatamente e impõem a uma geração inteira certos modos de sentir e preparar o seu pensamento. A imitação é, de resto, a maior parte das vezes inconsciente e isto é precisamente o que a faz perfeita. Os pintores modernos, que reproduzem as cores apagadas e as atitudes rígidas de alguns pintores primitivos, não têm dúvidas sobre donde
vestindo a camisa de forçado a um velho cuja vida foi a glória dos seus contemporâneos. «Ninguém nos fale doravante em justiça inflexível, quando o que domina é o ódio burocrático contra as grandes e ousadas obras. As nações carecem de homens audaciosos que tenham confiança em si e transponham todos os obstáculos sem considerações pelas suas próprias pessoas. O gênio não pode ser prudente porque com a prudência nunca poderia alargar o círculo da actividade humana. «[...] Ferdinand de Lesseps conheceu a embriaguez do triunfo e a amargura das decepções: Suez e Panamá. Aqui o coração revolta-se contra a moral do bom êxito. Quando Lesseps conseguiu ligar dois mares, príncipes e nações prestaram-lhe homenagem: hoje, que fica vencido contra as cordilheiras, não passa de um intrujão vulgar... Há nisto uma guerra das classes sociais, um descontentamento de burocratas e do empregados que se vingam pelo código criminal daqueles que quiseram elevar-se acima dos outros: os modernos legisladores vêem-se embaraçados diante destas grandes idéias do gênio humano; o público ainda as compreende menos, pelo que é fácil a um delegado provar que Stanley é um assassino e Lesseps um pantomineiro.» 130
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lhes venha a inspiração; acreditam na sua própria sinceridade, quando, se um mestre eminente não houvesse resuscitado esta forma de arte, se continuariam a ver apenas os aspectos ingênuos e inferiores. Aqueles que, à imitação de um outro mestre ilustre, inundam as telas com sombras violáceas vêem na Natureza mais cor violeta do que há cinqüenta anos, mas estão sugestionados pela impressão pessoal e especial de um pintor que, não obstante a sua extravagância, soube adquirir grande prestígio. Poderíamos facilmente arranjar exemplos semelhantes em todos os elementos da civilização. Pelo que precede, vê-se que são muitos os factores que podem entrar na gênese do prestígio e um dos mais importantes desses factores tem sido sempre o bom êxito. Todo o homem que vença, toda a idéia que se imponha, deixam por esse motivo de ser contestados. A prova de que o bom êxito é uma das bases principais do prestígio está em que este desaparece quase sempre conjuntamente com o primeiro. O herói que a multidão na véspera aclamava é apupado no dia seguinte, se obteve mau êxito em suas empresas. A reacção mesmo será tanto mais intensa quanto maior haja sido o prestígio. A multidão olha então para o herói caído como para um igual e vinga-se de haver-se inclinado perante uma superioridade que lhe não reconhece agora. Quando Robespierre mandava cortar a cabeça aos colegas e a um grande número de contemporâneos, possuía prestígio enorme e a multidão acompanhou-o até à guilhotina com as mesmas imprecações com que na véspera afrontava as outras vítimas. É sempre com grande furor que os crentes despedaçam as estátuas dos seus antigos deuses. O prestígio perde-se bruscamente pelo mau êxito. Pode, embora mais lentamente, gastar-se também pela discussão. Contudo, este último processo é de mais seguros resultados. O prestígio que se discute já não é prestígio. Os deuses e os homens que souberam conservar por muito tempo o seu prestígio nunca consentiram discussões. Para conservar-se a admiração das multidões, é necessário conservá-las a distância. 131
QUARTO CAPÍTULO
LIMITES DE VARIABILIDADE DAS CRENÇAS E OPINIÕES DAS MULTIDÕES
1. — As crenças fixas. — Invariabilidade de certas crenças gerais. — Estas são os guias de uma civilização. — Dificuldade de as desarraigar. — Em que é que a intolerância constitui uma virtude para os povos. — O absurdo filosófico de uma crença geral não prejudica a sua propagação. — 2. As opiniões móveis das multidões. — Mobilidade extrema das opiniões que não derivam de crenças gerais. — Aparentes variações das idéias e crenças em menos de um século. — Limites reais das variações. — Elementos sobre os quais a variação se exerceu. — O actual desaparecimento de crenças gerais e a extrema difusão da imprensa fazem em nosso tempo as opiniões cada vez mais móveis. — C o m o as opiniões das multidões tendem na maior parte dos indivíduos para a indiferença. — Impossibilidade de os governos dirigirem a opinião como outrora. — O actual parcelamento das opiniões obsta à sua tirania.
1. As crenças fixas Há íntimo paralelismo entre os caracteres anatômicos dos seres e os seus caracteres psicológicos. Nos caracteres anatômicos encontramos alguns elementos invariáveis ou tão pouco variáveis que só com a extensão das idades geológicas podem apresentar 133
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mudanças, e, ao lado destes caracteres fixos, irredutíveis, vêem-se outros muito móveis que o meio, a arte do criador e do horticultor facilmente modificam e, por vezes, até a ponto de dissimularem, para o observador pouco atento, os caracteres fundamentais. O mesmo fenômeno observamos nos caracteres morais. Ao lado dos elementos psicológicos irredutíveis de uma raça, encontram-se elementos móveis e passageiros. E é por isto que, ao estudarem-se as crenças e opiniões de um povo, se verifica sempre a existência de um fundo muito fixo no qual se enxertam opiniões tão móveis como a areia que cobre às vezes alguns rochedos. As crenças e opiniões das multidões formam, pois, duas classes bem distintas. Por um lado, as grandes crenças permanentes, que duram muitos séculos e sobre as quais assenta uma civilização inteira, como, por exemplo, outrora, a concepção feudal, as idéias cristãs, as da Reforma, e, em nossos dias, o princípio das nacionalidades, as idéias democráticas e sociais. Por outro lado, as opiniões momentâneas e movediças, a maior parte das vezes, derivadas das concepções gerais a cujo nascimento e morte cada época assiste, como são as teorias que orientam em certos momentos as artes e a literatura, aquelas que, por exemplo, deram o romantismo, o naturalismo, o misticismo, etc. Na maioria dos casos, essas teorias são tão superficiais como a moda e mudam exactamente como esta. São as pequenas vagas que se formam e desfazem incessantemente a superfície de um lago de águas profundas. As grandes crenças gerais são em número muito restrito. O seu aparecimento e a sua extinção formam o ponto culminante da História para toda a raça histórica; essas crenças constituem o verdadeiro esqueleto do edifício das civilizações. É facílimo estabelecer uma opinião passageira na alma das multidões; mas é difíicílimo assentar nela uma crença duradoura. Como é igualmente muito difícil destruí-la, logo que ela se haja assentado. A maior parte das vezes, só à custa de violentas revoluções é que essa crença se pode mudar, sendo para notar que mesmo as revoluções só conseguem isso quando a crença haja 134
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completamente perdido o domínio sobre as almas. As revoluções só servem para de todo varrerem o que já estava quase abandonado, mas que o hábito impedia de ser completamente abandonado. As revoluções que se iniciam são, na realidade, crenças que acabam. É fácil reconhecer-se o dia preciso em que uma grande crença há-de morrer; é aquele em que ela começa a ser discutida. Qualquer crença geral, sendo apenas uma ficção, só pode subsistir não sendo sujeita a nenhum exame ou análise. Mas, ainda quando uma crença seja fortemente abalada, as instituições que dela derivam conservam o seu poder e só lentamente se vão apagando. Mas quando essa crença perdeu completamente o seu domínio, desmorona-se com rapidez tudo quanto sobre ela se baseava e nunca povo nenhum pôde mudar as suas crenças sem que, desde logo, deixasse de estar condenado a transformar todos os elementos da sua civilização. O povo transforma esses elementos até haver achado uma nova crença geral, que seja aceita, vivendo até esse momento forçosamente na anarquia. As crenças gerais são as bases necessárias das civilizações; imprimem orientação às idéias e só elas podem inspirar a fé e criar o dever. Os povos sentiram sempre a utilidade de adquirirem crenças gerais, e compreendem instintivamente que a desaparição delas deve marcar para eles a hora da decadência. O culto fanático de Roma foi para os Romanos a crença que os fez senhores do mundo e, logo que essa crença morreu, Roma teve os seus dias contados. E os bárbaros que derrubaram a civilização romana só atingiram uma certa coesão e só puderam sair da anarquia quando adquiriram algumas crenças comuns. Não é, pois, sem razão que os povos têm sempre defendido com intolerância as suas convicções. Essa intolerância, por mais censurável que, filosoficamente, seja, representa a mais necessária das virtudes na vida dos povos. Foi para fundar ou manter crenças gerais que a Idade Média acendeu tantas fogueiras, que 135
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tantos inventores e inovadores morreram desesperados, quando conseguiam evitar os suplícios. Foi para defesa dessas crenças que o mundo tantas vezes se convulsionou, que tantos e tantos milhões de homens morreram e morrem nos campos de batalha. Há muita dificuldade no estabelecimento de uma crença geral, mas também, logo que esta definitivamente se estabelece, adquire por muito tempo força verdadeiramente invencível, e impõe-se aos mais luminosos espíritos, seja qual for a sua falsidade filosófica. Os povos da Europa há mais de quinze séculos que não consideram como verdades indiscutíveis lendas religiosas tão bárbaras, ao analisarmo-las profundamente(19), como as de Moloch. O absurdo terrível da lenda de um Deus que se vinga, com suplícios horrorosos, no filho da desobediência de uma das suas criaturas não foi sequer entrevisto durante muitos séculos. Os mais poderosos gênios, um Galileu, um Newton, um Leibniz, não supuseram um momento sequer que a verdade desses dogmas pudesse ser discutida, o que prova, melhor que qualquer outro facto, a hipnotização produzida pelas crenças gerais e indica também optimamente os humilhantes limites do nosso espírito. Logo que um novo dogma se haja implantado na alma das multidões, faz-se inspirador das suas instituições, artes e conduta, e então é absoluto o domínio que exerce nas almas. Os homens de acção só pensam em realizar esse dogma, os legisladores procuram sempre aplicá-lo, filósofos, artistas e literatos só se preocupam com reproduzi-lo sob formas diversas. Da crença fundamental podem surgir idéias momentâneas acessórias, que trazem gravada a marca da crença de que provieram. A civilização egípcia, a europeia medieval e a muçulmana dos árabes derivam de um pequeno número de crenças religiosas que
D Filosoficamente bárbaras, é bem de ver. Praticamente, essas lendas criaram uma civilização completamente nova e, durante quinze séculos, deixaram entrever ao homem os paraísos encantados do sonho e da esperança que ele nunca conseguirá conhecer. 136
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imprimiram o seu carácter aos mais pequenos elementos dessas civilizações, permitindo reconhecê-las imediatamente. E é por isso que, graças às crenças gerais, os homens de cada época estão cercados por um tecido de tradições, opinião e costumes a cujo jugo se não podem subtrair, e que os faz sempre muito semelhantes uns aos outros. O que, principalmente, conduz os homens são as crenças e os costumes que delas derivam. São elas que regulam os menores actos da nossa existência e à sua acção nem mesmo os mais independentes escapam. Só é verdadeira tirania a que inconscientemente se exerce nas almas, porque esta é a única que não pode combater-se. Tibério, Gengiscão, Napoleão foram, sem dúvida, temíveis tiranos, mas do fundo de seus túmulos Moisés, Buda, Jesus, Maomé e Lutero têm exercido nas almas um despotismo muito maior. Uma conspiração pode derrubar um tirano; mas o que pode fazer, na verdade, essa conspiração contra uma crença fortemente arraigada? Na sua violenta luta contra o catolicismo, não obstante a aparente adesão das multidões, apesar dos processos de destruição tão descaroáveis como os da Inquisição, a nossa grande Revolução é que foi vencida. Os únicos tiranos verdadeiros que a humanidade tem conhecido têm sido sempre as sombras dos mortos, ou as ilusões que ela tem criado. O absurdo filosófico que muitas vezes apresentam as crenças gerais nunca foi um obstáculo ao seu triunfo. Este só parece até possível quando essas crenças contenham qualquer misterioso absurdo. Não será, pois, a fraqueza evidente das crenças socialistas actuais o que obstará ao seu triunfo na alma das multidões. A verdadeira inferioridade das crenças socialistas, relativamente a todas as crenças religiosas, reside unicamente no facto de estas apresentarem um ideal de felicidade que só numa vida futura será realizado, não podendo, portanto, ninguém contestar-lhe a realização. O ideal de felicidade socialista, porque tem de ser realizado na terra, patenteará, logo às primeiras tentativas de realização, a inanidade das suas promessas e a nova crença perderá nessa ocasião todo o seu prestígio. O seu poder só aumentará, pois, até ao 137
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dia em que, pelo triunfo obtido, comece a sua realização prática. E é por isto que, se a nova religião exerce agora, como todas que a precederam, uma função destruidora, não poderá depois exercer, como estas, a função criadora.
2. As opiniões móveis das multidões Por cima das crenças fixas, cujo poder acabamos de mostrar, encontra-se uma camada de opiniões, idéias e pensamentos que constantemente nascem e morrem. Algumas têm a duração de um dia; as mais importantes não vão além da vida de uma geração. Já acentuámos que as mudanças que nestas opiniões se dão muitas vezes são mais superficiais do que reais e que trazem sempre a impressão das qualidades da raça. Ao tomarmos em consideração as instituições políticas da França, vimos que os partidos aparentemente mais opostos, monárquicos, radicais, imperialistas, socialistas, etc., têm um ideal absolutamente idêntico, resultante unicamente da estrutura mental da nossa raça, pois que, com nomes análogos, encontramos em outras raças um ideal absolutamente contrário. Não é o nome dado às opiniões, nem enganosas adaptações, que mudam o fundo das coisas. Os burgueses da Revolução, todos impregnados de literatura latina, que, com os olhos fitos na república romana, adoptaram desta as leis, os feixes de varas e as togas, procurando imitar-lhe as instituições e exemplos, não se fizeram romanos por estarem sob o domínio de uma poderosa sugestão histórica. O papel do filósofo é investigar o que, nas mudanças aparentes, subsiste das antigas crenças e distinguir o que na onda movediça das opiniões é determinado pelas crenças gerais e pela alma da raça. Sem este critério filosófico poderia julgar-se que as multidões mudam freqüentemente e à vontade crenças políticas ou religiosas, tanto mais que, na realidade, toda a História, política, religiosa, artística e literária, assim o parece provar. 138
L I M I T E S D E V A R I A B I L I D A D E DAS C R E N Ç A S . . .
Tomemos, como exemplo, um bem curto período da História francesa, apenas o que vai de 1790 a 1820, isto é, trinta anos, a duração apenas de uma geração. Nesse período, vemos as multidões, até então monárquicas, fazerem-se extremamente revolucionárias, depois excessivamente imperialistas, voltando em seguida a ser muito monárquicas. Em religião, durante esse mesmo tempo, vão do catolicismo ao ateísmo, deste passam para o deísmo, voltando outra vez às formas mais exageradas do catolicismo. E isto não se dá apenas com as multidões, dá-se também com aqueles que as dirigem, e é com singular pasmo que vemos os grandes convencionais, inimigos jurados dos deuses, que não queriam nem deuses nem senhores, fazerem-se servos humildes de Napoleão e, depois deste, empunharem piedosamente tochas nas procissões do tempo de Luís XVIII. E, nos setenta anos seguintes, que mudanças se não deram nas opiniões das multidões. A «pérfida Albion» do começo do século xix é aliada da França com o sucessor de Napoleão; a Rússia, invadida duas vezes pelos Franceses, e que tanto se regozijara com os nossos últimos reveses, é, quase de um momento para outro, considerada a melhor amiga da França. Em literatura, em arte, em filosofia, as opiniões sucessivas são ainda mais rápidas. Romantismo, naturalismo, misticismo, etc., nascem e morrem alternadamente. O artista e o escritor ontem aclamados serão amanhã desdenhosamente considerados. Mas o que é que vemos ao analisar todas essas mudanças aparentemente tão profundas? Que apenas duram efemeramente todas as que forem contrárias às crenças gerais e aos sentimentos da raça e que o rio desviado do seu curso bem depressa o retoma. As opiniões que não se ligam a nenhuma crença geral, a nenhum sentimento da raça e que, por conseqüência, não podem ter fixidez, estão à mercê de todos os acasos ou, se preferirmos, das menores alterações do meio. Formadas por sugestões e contágio, são sempre momentâneas; aparecem e desaparecem por vezes tão rapidamente como as dunas que o vento forma ao longo das costas. 139
A
PSICOLOGIA
DAS
MULTIDÕES
Em nossos dias, a soma das opiniões móveis das multidões é maior do que nunca e isto por três razões diferentes. A primeira é que as antigas crenças, perdendo cada vez mais o seu domínio, já não actuam, como outrora, sobre as opiniões transitórias para lhes darem determinada orientação. O desaparecimento das crenças gerais deixa lugar para uma multidão de opiniões particulares sem passado nem futuro. A segunda razão é que, devido a ser cada vez maior o poder das multidões, que também cada vez vai tendo menos contrapeso, a extrema mobilidade de idéias que nelas verificámos pode manifestar-se livremente. A terceira, finalmente, é a recente difusão da imprensa que incessantemente apresenta aos olhos das multidões as mais opostas opiniões. Assim, as sugestões que qualquer dessas opiniões podia originar são dentro em pouco destruídas por sugestões opostas, do que resulta o nenhuma opinião poder dilatar-se, estando, portanto, votada a existência efêmera. Morre assim qualquer opinião antes de ter podido espalhar-se o bastante para ser opinião geral. Destas diversas causas resultou um fenômeno absolutamente novo na História do mundo, mas absolutamente característico dos tempos actuais, qual é o da impossibilidade para o governo de dirigir a opinião. Outrora, e não vão muito distantes esses tempos, a acção dos governos, a acção de alguns escritores e de um pequeníssimo número de jornais constituíam os verdadeiros reguladores da opinião. Hoje, os escritores perderam toda a acção e os jornais são apenas reflexo da opinião. Os estadistas, em vez de a orientarem, procuram apenas seguir-lhe as indicações, e o receio que dela têm atinge por vezes o grau de terror, tirando toda e qualquer fixidez à linha de conduta desses homens de Estado. A opinião das multidões tende, pois, a ser cada vez mais o regulador supremo da política. Hoje já impõe alianças, como recentemente vimos na aliança franco-russa, devida exclusivamente a um movimento popular. É curiosíssimo sintoma o 140
L I M I T E S D E V A R I A B I L I D A D E DAS C R E N Ç A S . . .
vermos, em nossos dias, papas, reis e imperadores submeterem-se às exigências da entrevista jornalística, para apresentarem às multidões os seus modos de ver em determinado assunto. Em outros tempos, dizia-se com justiça que a política não era coisa em que entrasse o sentimento; poder-se-á, porém, dizer o mesmo hoje que a política vai cada vez mais tendo por guia as impulsões das multidões móveis, que não conhecem o raciocínio e que só podem ser guiadas pelo sentimento? A imprensa, outrora guia da opinião, teve, como os governos, de sumir-se em presença das multidões. Sem dúvida, a imprensa possui extraordinário poder, mas este provém-lhe unicamente do facto de ser o reflexo das opiniões das multidões e das suas incessantes variações. Fazendo-se simples agência de informações, a imprensa renunciou às suas funções de investigação e imposição de qualquer idéia ou doutrina. A imprensa hoje acompanha todas as mudanças do pensamento público e, forçada pelas exigências da concorrência, vê-se coagida a segui-las, sob pena de perder os leitores. Os antigos órgãos solenes e de peso de outros tempos, como o Constitucional, o Debates, o Século, cujas palavras eram religiosamente escutadas como oráculos pela geração que nos precedeu, ou desapareceram, ou estão reduzidos a jornais de notícias e casos de rua intercalados com crônicas divertidas, cancãs mundanos e reclamos comerciais e financeiros. Onde se encontraria hoje um jornal com recursos pecuniários tais que permitissem aos seus redactores opiniões pessoais, e que acção exerceriam essas opiniões em leitores que apenas exigem notícias de casos picarescos e alegres e que, por detrás de qualquer recomendação ou idéia, receiam sempre ver aparecer o especulador? A crítica já nem sequer tem força para popularizar um livro ou uma peça de teatro. Pode ser-lhes prejudicial, mas nunca pode servir-lhes de utilidade. Os jornais têm tanta consciência da inutilidade de tudo quanto seja crítica ou opinião pessoal, que, gradualmente, têm ido suprimindo as críticas literárias, limitando-se a inserirem o título do livro com duas ou três linhas de reclamo, facto este 141
A
PSICOLOGIA
DAS
MULTIDÕES
que, dentro de vinte anos, se há-de dar também com a crítica teatral. Prescrutar a opinião pública é hoje a preocupação essencial da imprensa e dos governos. O que incessantemente é necessário saber-se é o efeito produzido por um acontecimento, por um projecto de lei ou por um discurso, e a coisa não é fácil, porque nada é mais móvel nem mais mutável do que o pensamento das multidões, nada é mais freqüente do que vê-las receber com imprecações e anátemas o que na véspera entusiasticamente haviam aclamado. Esta ausência total de direcção da opinião e, simultaneamente, a dissolução das crenças gerais tiveram como resultado final o completo esboroamento de todas as opiniões e a crescente indiferença das multidões por tudo quanto não diga claramente respeito aos seus interesses imediatos. As questões doutrinárias, como o socialismo, só recrutam defensores verdadeiramente convictos nas camadas absolutamente iletradas, mineiros e operários de outros misteres, por exemplo. O burguês modesto, o operário com algumas unturas de instrução, é de um cepticismo absoluto, ou, pelo menos, de uma extrema mobilidade. É extraordinária a evolução que, de trinta e tantos anos a esta parte, se tem operado. Na época que precede imediatamente a nossa e, portanto, ainda bem pouco remota, ainda as opiniões possuíam uma orientação geral; derivavam da adopção de alguma crença fundamental. Só por ser-se monárquico, tinham-se fatalmente idéias assentes e definidas tanto em História como em ciência, como pelo simples facto de ser-se republicano se tinham idéias absolutamente opostas. Um monárquico sabia muito propositadamente que o homem não descende do macaco e o republicano, não menos propositadamente, sabia que essa descendência era indiscutível. O monárquico devia falar com horror da Revolução, o republicano com toda a veneração; havia nomes como o de Robespierre e Marat que era necessário pronunciarem-se com semblante recolhido e devoto, e outros, como os de César, Augusto e Napoleão, que se deviam articular crivando-os de 142
LIMITES
DE
VA RI A B I L I D A D E DAS
CRENÇAS...
invectivas. E até na Sorbona era geral esta extravagante forma de conceber a História(20). Hoje, perante a discussão e a análise, todas as opiniões perdem o prestígio, as suas arestas gastam-se depressa e bem poucas são aquelas que nos podem apaixonar. O homem moderno é cada vez mais invadido pela indiferença. Não lamentemos, porém, muito este fraccionamento geral das opiniões, embora não possa contestar-se que isto seja um sintoma de decadência na vida de um povo. É certo que os videntes, os apóstolos, os guias, numa palavra, os convictos, têm uma força bem diferente da que possuem os negativistas, os críticos e os indiferentes; mas não esqueçamos também que, com o actual poder das multidões, se uma única opinião pudesse adquirir o prestígio suficiente para se opor, bem depressa se revestiria de um poder tão tirânico, que imediatamente tudo se curvaria diante dela e a época da discussão livre fechar-se-ia por muito tempo. As multidões, por vezes, representam senhores pacíficos, como em algumas horas o eram Heliógabalo e Tibério; mas têm também caprichos curiosos. Quando uma civilização está prestes a cair nas mãos da multidão, fica à mercê de muitos acasos e não poderá durar muito tempo. Se alguma coisa pudesse retardar um pouco a hora do desmoronamento, seria precisamente a extrema mobilidade das opiniões e a crescente indiferença das multidões por qualquer crença geral.
(2U) Algumas páginas de livros dos nossos professores oficiais são, neste ponto do vista, muito curiosas e mostram até que ponto o espírito crítico está pouco desenvolvido pela nossa educação universitária. Citaremos para exemplo as linhas seguintes extraídas da Revolução Francesa, obra de um professor de História na Sorbona: «A tomada da Bastilha é um feito culminante não só na História de França, mas de toda a Europa, porque inaugurava uma época nova da História do mundo. Quanto a Robespierre, sabemos com espanto que a «sua ditadura foi sobretudo de opinião, de persuasão, de autoridade moral: foi uma espécie de pontificado nas mãos de um homem virtuoso» (pp. 91 e 220). 143
TERCEIRO LIVRO
CLASSIFICAÇÃO E DESCRIÇÃO DAS DIVERSAS CATEGORIAS DE MULTIDÕES
PRIMEIRO CAPÍTULO
CLASSIFICAÇÃO DAS MULTIDÕES
Divisões gerais das multidões. — Sua classificação. 1. As multidões heterogêneas. — C o m o se diferenciam. Acção da raça. A alma da multidão é tanto mais fraca, quanto mais forte seja a alma da raça. — A alma da raça representa o estado de civilização e a alma da multidão o estado de barbarismo. 2. As multidões homogêneas. — Divisão das multidões homogêneas. As seitas, as castas e as classes.
Já indicámos nesta obra os caracteres gerais comuns às multidões psicológicas. Resta-nos mostrar os caracteres particulares que acrescem a estes caracteres gerais, conforme as diversas categorias de colectividades quando, sob a acção de estímulos convenientes, se transformam em multidões. Exponhamos, porém, antes de mais nada e sucintamente, uma classificação das multidões. O ponto de partida será a multidão simples. A sua forma mais inferior apresenta-se quando constituída por indivíduos pertencentes a raças diversas, tendo apenas como laço comum a vontade mais ou menos respeitada de um chefe. São tipos desta espécie de multidões os bárbaros de origens muito diversas que durante alguns séculos invadiram o Império Romano. 147
A
PSICOLOGIA
DAS
MULTIDÕES
Superiores a estas multidões de raças diferentes, encontram-se as que, sob a acção de certos factores, adquiriram caracteres comuns e acabaram por constituir uma raça. Sempre que a ocasião o proporcione, apresentarão as características especiais das multidões, muito embora essas características venham a ser mais ou menos dominadas pelas da raça. Essas duas categorias podem, sob a acção dos factores que já estudámos, transformar-se em multidões organizadas ou psicológicas. Destas multidões organizadas apresentamos a seguinte classificação: A. Multidões heterogêneas 1.° Anônimas (multidões das ruas, por exemplo) 2.° Não anônimas (júris, assembleias parlamentares, etc.) B. 1.° 2.° 3.°
Multidões homogêneas Seitas (seitas políticas, religiosas, etc.) Castas (castas militar, sacerdotal e operárias, etc.) Classes (classes burguesa, dos camponeses, etc.)
Passamos agora a indicar rapidamente os diferentes caracteres essenciais destas diversas categorias de multidões.
1. Multidões heterogêneas As multidões heterogêneas são as colectividades cujos caracteres temos vindo estudando nesta obra. Compõem-se de quaisquer indivíduos, seja qual for a sua profissão ou inteligência. Sabemos já que, só pelo facto de os homens formarem uma multidão em actividade, a sua psicologia colectiva diverge essencialmente da sua psicologia individual, diferenciação a que nem a própria inteligência os pode furtar. Vimos que, nas colectividades, a inteligência nenhuma função desempenha; só os sentimentos inconscientes actuam. 148
CLASSIFICAÇÃO
DAS
MULTIDÕES
Um factor fundamental, a raça, permite diferenciar bem profundamente as diversas multidões heterogêneas. Algumas vezes já nos temos referido à função da raça e mostrámos que esta é o mais poderoso dos factores capazes de determinarem as acções dos homens. Também a raça manifesta a sua acção nos caracteres das multidões. Uma multidão composta de quaisquer indivíduos, mas todos ingleses ou chineses, diferenciar-se-ia profundamente de outra multidão igualmente composta de quaisquer indivíduos, mas de raças diferentes, russos, franceses, espanhóis, por exemplo. As divergências profundas que a constituição mental hereditária cria no modo de sentir e pensar dos homens manifestam-se imediatamente sempre que circunstâncias, de resto assaz raras, reúnem numa mesma multidão, em proporções quase iguais, indivíduos de nacionalidades diferentes por mais semelhantes que aparentemente sejam os interesses que os reúnam. As tentativas feitas pelos socialistas para reunirem em grandes congressos representantes da população operária de todos os países têm sempre terminado nas mais furiosas discórdias. A multidão latina, por mais revolucionária ou conservadora que a suponhamos, apelará invariavelmente para a intervenção do Estado no intuito de realizar as suas exigências, pois que é sempre centralizadora e mais ou menos cesarista. A multidão inglesa ou americana, pelo contrário, não conhece o Estado e só apela para a iniciativa particular. A multidão francesa aspira antes de mais nada à igualdade, a inglesa à liberdade. São precisamente as diferenças de raças que fazem com que haja tantas formas de socialismo e democracia quantas as nações. A alma da raça domina, pois, inteiramente a alma da multidão. É o poderoso substrato que lhe limita as oscilações. Por isso nós consideramos como lei essencial que os caracteres inferiores das multidões são tanto menos acentuados quanto mais forte seja a alma da raça. O estado de multidão e o domínio das multidões é o barbarismo e o regresso ao barbarismo. Só pela aquisição de 149
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PSICOLOGIA
DAS
MULTIDÕES
uma alma solidamente constituída é que a raça se vai subtraindo ao poder irreflectido das multidões e sai da barbaria. Fora da raça, a única classificação importante que há a fazer para as multidões heterogêneas é separá-las em multidões anônimas, como as das ruas; e em não anônimas, como as assembleias deliberativas e júris, por exemplo. O sentimento da responsabilidade, nulo nas primeiras e desenvolvido nas segundas, dá aos seus actos orientações muito diferentes. 2. Multidões homogêneas As multidões homogêneas compreendem seitas, castas, classes. A seita é o primeiro degrau na organização das multidões homogêneas. Compreende indivíduos de instrução, profissões, e meios por vezes muito diferentes, que entre si apenas têm o laço das crenças. Tais são, por exemplo, as seitas religiosas e políticas. A casta representa o grau mais alto de organização de que a multidão é susceptível. Ao passo que a seita compreende indivíduos de profissão, educação e meios muito diferentes, e apenas ligados pela comunhão de crenças, a casta apenas compreende indivíduos da mesma profissão e, por conseqüência, de educação e meios quase semelhantes. Tais são, por exemplo, as castas militar e sacerdotal. A classe ê constituída por indivíduos de diversas origens reunidos, não pela comunhão de crenças, como os membros de uma seita, nem pela comunhão das ocupações profissionais, como os membros de uma casta, mas por certos interesses e determinados hábitos de vida e de educação muito semelhantes. Tais são, por exemplo, a classe burguesa, a classe, agrícola, etc. Tratando nesta obra apenas das multidões heterogêneas, reservando-nos para estudarmos as homogêneas, seitas, castas e classes, numa outra, não insistiremos por agora nos caracteres destas. E terminaremos o estudo das multidões heterogêneas pela análise de algumas determinadas categorias de multidão, que escolhemos como típicas. 150
SEGUNDO CAPÍTULO
AS CHAMADAS MULTIDÕES CRIMINOSAS
As chamadas multidões criminosas. — Uma multidão pode ser legalmente, mas não psicologicamente criminosa. — Inconsciência completa dos actos das multidões. — Diversos exemplos. — Psicologia dos setembristas. — Os seus raciocínios, a sua sensibilidade, a sua ferocidade e a sua moralidade.
Parece difícil classificar de criminosas em alguns casos as multidões, pois que elas, após um certo período de excitação, caem no estado de simples autômatos inconscientes, guiadas por sugestões. Por isso conservamos esse qualificativo errôneo, apenas por haver sido consagrado por investigações psicológicas recentes. Certos actos das multidões são seguramente criminosos, se apenas os considerarmos em si, mas exactamente pelo mesmo motivo por que classificamos de criminoso o acto de um tigre que devora um hindu, depois de haver permitido, para distrair os tigres seus filhos, que estes lhe vão cortando alguns pedacinhos. Os crimes das multidões têm geralmente como móbil uma poderosa sugestão e os indivíduos que neles tomaram parte ficam em seguida convencidos de que cumpriram um dever, o que não é positivamente o caso do criminoso ordinário. 151
A
PSICOLOGIA
DAS
MULTIDÕES
A história dos crimes praticados pelas multidões põe em evidência o que precede. Podemos citar como exemplo típico o assassínio do governador da Bastilha, Launay. Depois da tomada desta fortaleza, o governador foi crivado de golpes por uma multidão excitadíssima que por todos os lados o atacava. Havia quem se propusesse prendê-lo, quem quisesse cortar-lhe a cabeça ou atarem-no ao rabo de um cavalo. Defendendo-se, o governador involuntariamente deu um pontapé num dos assistentes e logo alguém sugeriu a idéia, imediatamente aclamada pela multidão, do indivíduo que apanhara o pontapé ser quem cortasse a cabeça do governador. «O homem que apanhara o pontapé, cozinheiro desempregado, meio pateta, que fora até à Bastilha ver o que se passava, julga a idéia, visto que essa é a opinião geral, a expressão de um acto patriótico e pensa mesmo que merece uma medalha por dar cabo de tal monstro. Emprestam-lhe uma espada e fere o pescoço nu do governador, mas, como a espada está mal afiada e não corta, então saca da algibeira uma faca de cabo preto e como, na sua qualidade de cozinheiro, sabia perfeitamente cortar carne, leva a cabo a operação com toda a felicidade.» Nesta narrativa vê-se claramente o mecanismo que já indicámos: obediência a uma sugestão tanto mais poderosa quanto é colectiva, convicção do assassino de que praticou um acto muito meritório, convicção tanto mais natural quanto é certo ter a seu favor a aprovação geral dos seus concidadãos. Semelhante acto pode ser legalmente, mas nunca psicologicamente, qualificado de criminoso. Os caracteres gerais de todas as chamadas multidões criminosas são exactamente os que verificámos em todas as multidões, sugestibilidade, credulidade, mobilidade, exagero dos bons ou maus sentimentos, manifestação de determinadas formas de moralidade, etc. Vamos encontrar todos estes caracteres numa das multidões que na História francesa deixou as mais sinistras recordações, a 152
AS
CHAMADAS
MULTIDÕES
CRIMINOSAS
dos setembristas, que de resto apresenta muita analogia com as multidões que fizeram a matança de São Bartolomeu. De Taine, que se aproveitou das memórias coevas do facto, extraio os pormenores da acção. Não se sabe com exactidão quem deu a ordem ou sugeriu a idéia de se esvaziarem as prisões, chacinando os prisioneiros. Que fosse Danton, o que é provável, ou qualquer outro, não importa; o único facto importante para nós é o da poderosa sugestão que a multidão encarregada da chacina recebeu. A multidão compreendia cerca de trezentas pessoas e constituía o tipo perfeito da multidão heterogênea. Pondo de parte um diminutíssimo número de vadios profissionais, essa multidão compunha-se principalmente de lojistas e de artistas de todas as qualidades, sapateiros, serralheiros, cabeleireiros, pedreiros, empregados, caixeiros, etc. Sob a acção da sugestão recebida, estão, como o cozinheiro em que falámos, absolutamente convencidos de que cumprem um dever patriótico. Desempenham uma função dupla, juizes e carrascos, mas de nenhum modo se consideram criminosos. Compenetrados da importância do seu dever, começam por formar uma espécie de tribunal e imediatamente se manifestam o espírito simplista e a equidade, não menos simplista, das multidões. Atendendo ao grande número dos acusados, decidiram primeiramente que os nobres, os sacerdotes, os oficiais, os servos do rei, isto é, todos os indivíduos cuja profissão só por si é uma prova de culpabilidade aos olhos de um bom patriota, hão-de ser chacinados em monte, sem necessidade de nenhuma decisão especial. Os outros serão julgados pela cara e pela reputação. Satisfeita assim a rudimentar consciência da multidão, esta vai proceder legalmente à chacina, dando curso livre aos instintos de ferocidade cuja gênese já mostrei e que as colectividades têm sempre o poder de desenvolver em alto grau. De resto nada disto impedirá, o que é regra nas multidões, a manifestação concomitante de outros sentimentos contrários, como uma sensibilidade muitas vezes tão exagerada como a ferocidade. 153
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PSICOLOGIA
DAS
MULTIDÕES
«Os setembristas têm a expansiva simpatia e a sensibilidade espontânea do operário parisiense. Na prisão da Abadia, um federado, ao saber que os presos estavam, havia vinte e seis horas, sem água, queria dar cabo do negligente carcereiro e tê-lo-ia feito, se não foram as súplicas dos próprios encarcerados. Quando um prisioneiro é absolvido pelo seu improvisado tribunal, guardas e matadores, toda a gente enfim o abraça com arrebatamento e o aplaude entusiasticamente, depois do que se vai continuar a matança em monte dos outros. Durante o massacre existe sempre uma alegria cordial; dançam e cantam de roda dos cadáveres, põem bancadas para as senhoras terem a felicidade de ver matar aristocratas, continuando assim a dar provas de uma equidade especial. Um dos matadores, na Abadia, queixou-se de que as senhoras, estando um pouco distantes, viam mal e só alguns assistentes podiam ter o prazer de ferir os aristocratas; esta queixa considera-se justíssima e decide-se então fazer passar as vítimas entre duas alas de assassinos que só poderão bater nas vítimas com as costas do sabre, para que o suplício possa ser prolongado. Em La Force despem completamente as vítimas, martirizam-nas durante meia hora e, quando toda a gente se sente satisfeita das barbaridades já cometidas, acaba-se com as vítimas furando-lhes o ventre. Os algozes de resto são muito escrupulosos e dão provas de moralidade cuja existência no seio das multidões já fizemos notar. Não se apoderam do dinheiro nem das jóias das vítimas, entregando todos os valores aos comitês. Em todos os seus actos, encontram-se sempre as formas rudimentares de raciocínio, características da alma das multidões. E assim é que, após a matança de doze ou quinze mil inimigos da nação, alguém observa, e a sua sugestão é imediatamente aceite, que as outras prisões, aquelas que têm velhos mendigos, vagabundos e mancebos retidos por suspeição, encerram na realidade bocas inúteis, das quais era, por este motivo, conveniente desfazerem-se. Demais, com certeza, há-de haver entre eles amigos 154
AS
CHAMADAS
MULTIDÕES
CRIMINOSAS
do povo, como, por exemplo, uma certa senhora Delarue, viúva de um envenenador, que, dizem eles, deve estar furiosa na prisão e que, se pudesse, lançaria fogo a Paris, como sem dúvida mais de uma vez o tem dito. Portanto, mais uma vassourada em tantos inimigos. A demonstração parece a todos evidente e é tudo massacrado em massa, incluindo cinqüenta crianças de doze a dezassete anos, que poderiam vir a ser inimigos da nação, havendo, portanto, indiscutível interesse em serem mortas. Ao cabo de uma semana de trabalho, estava tudo acabado e os algozes puderam enfim pensar no descanso. Persuadidos bem intimamente de que bem haviam merecido da pátria, vieram reclamar às autoridades uma recompensa, e os mais zelosos chegaram mesmo a exigir uma medalha. A história da Comuna de 1871 dá-nos também alguns factos análogos aos precedentes. Com a acção cada vez maior das multidões e as sucessivas capitulações dos poderes, estamos destinados a presenciar muitos outros.
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TERCEIRO CAPÍTULO
OS JURADOS DOS TRIBUNAIS DO C R I M E
Os jurados dos tribunais do crime. — Caracteres gerais dos júris. — A estatística prova que as suas decisões são independentes da sua composição. — C o m o se impressionam os jurados. — Fraca acção do raciocínio. — Métodos de persuasão dos advogados célebres. — Natureza dos crimes para os quais os jurados são indulgentes ou severos. — Utilidade da instituição do júri e supremo perigo da sua substituição por magistrados.
Como é impossível estudarmos agora todas as categorias de júri, trataremos apenas da mais importante, a dos jurados dos tribunais do crime. Estes jurados constituem um exemplo excelente da multidão heterogênea, não anônima. Nessa multidão encontramos a sugestibilidade, a preponderância dos sentimentos inconscientes, a fraca aptidão para o raciocínio, a acção dos guias, etc. Estudando os júris, teremos ensejo de observar interessantes espécimes dos erros que pessoas não iniciadas na psicologia das colectividades podem cometer. Os jurados dão-nos primeiramente um exemplo excelente da pouca importância que para as decisões apresenta o nível mental dos diversos elementos componentes de uma multidão. Já tivemos 157
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MULTIDÕES
ocasião de ver que, quando uma assembleia deliberativa é chamada para dar opinião sobre um assunto que não tenha carácter absolutamente técnico, a inteligência nenhum papel desempenha, e que uma reunião de sábios ou artistas, só pelo facto de estes estarem reunidos, não tem, sobre assuntos gerais, opiniões sensivelmente diferentes das de uma assembleia de pedreiros ou de merceeiros. Em diversas épocas, principalmente antes de 1818, a administração fazia cuidadosa escolha das pessoas que haviam de constituir o júri, recrutando-as entre as classes ilustradas, professores, funcionários, letrados, etc. Hoje, o júri recruta-se principalmente entre os pequenos negociantes, pequenos industriais e empregados. Ora, com grande pasmo dos escritores da especialidade, qualquer que haja sido a composição dos júris, a estatística prova que as decisões são sempre idênticas. Os próprios magistrados, embora muito hostis à instituição do júri, tiveram de reconhecer a verdade desta asserção. Eis como sobre o assunto se exprime um antigo presidente de um tribunal do crime, Bérard de Glajeux, nas suas Recordações. «Hoje a escolha dos júris está, na realidade, nas mãos dos conselheiros municipais, que admitem ou eliminam, à sua vontade, conforme as preocupações políticas e eleitorais inerentes à sua situação... A maioria dos escolhidos compõe-se de comerciantes de menor importância que os outrora escolhidos, e de empregados de determinadas repartições. Todas as opiniões se fundem com todas as profissões nas funções de juiz, muitos têm o ardor dos neófitos, os homens de melhor vontade encontram-se nas mais humildes situações, pelo que o espírito do júri não mudou: os seus veredictos são positivamente os mesmos.» Retenhamos o excerto que acabamos de citar, as conclusões que são muito justas e não as explicações que são assaz fracas. Não nos cause, porém, espanto essa fraqueza, porque a psicologia das multidões e, por conseqüência, dos jurados, parece ter sido a maior parte das vezes tão desconhecida dos advogados como dos magistrados. Disso encontro a prova num facto referido pelo autor 158
OS
JURADOS
DOS
TRIBUNAIS
DO
CRIME
que há pouco citámos, qual é o de um dos mais ilustres advogados, Lachaud, utilizar-se sistematicamente do direito de recusa para com todos os indivíduos inteligentes que fizessem parte do júri. Ora a experiência, e só a experiência, ensinou a absoluta inutilidade das recusas; e a prova está em que hoje o Ministério Público e os advogados, pelo menos em Paris, renunciaram absolutamente ao direito de recusa, apesar do que, como bem observa Glajeux, os veredictos não mudaram, «não são nem melhores nem piores». Como todas as multidões, os jurados são muitíssimo impressionados por sentimentos e muito pouco pelo raciocínio. «Não resistem», escreve um advogado, «ao espectáculo de uma mulher dando de mamar a um filhinho, ou a um desfilar de órfãos.» «Basta que uma mulher seja de agradável presença», diz Glajeux, «para que alcance a benevolência do júri.» Inflexíveis para com os crimes que parecem poder atingi-los, e que são de resto precisamente os mais temíveis para a sociedade, os jurados são, pelo contrário, muito indulgentes para os chamados crimes de paixão. Raramente são severos para os infanticídios praticados pelas raparigas seduzidas; também nunca são muito rigorosos para com as raparigas abandonadas pelos amantes, que, para se vingarem, os vitriolizam, tendo muito claramente a noção instintiva de que tais crimes são pouco perigosos para a sociedade e de que, num país em que a lei não protege as raparigas abandonadas, o crime que se vinga é mais útil do que prejudicial, intimidando previamente os futuros sedutores.(21) ( 2I ) Incidentalmente, notemos que esta divisão, instintivamente muito bem feita pelos jurados, em crimes perigosos para a sociedade e crimes para esta não perigosos não é destituída de exactidão. O alvo das leis criminais deve ser evidentemente o proteger a sociedade contra os criminosos perigosos e não vingá-la. Ora os nossos códigos, e principalmente o espírito dos nossos magistrados, estão impregnados do espírito de vingança do velho direito primitivo e o termo «vindicta» (vindicta, vingança) é ainda de emprego diário. A prova 159
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DAS
MULTIDÕES
Os júris, como todas as multidões, deixam-se deslumbrar muito pelo prestígio, e o presidente Glajeux observa mui judiciosamente que sendo os júris muito democráticos na sua composição, são, pelo contrário, muito aristocráticos nas suas afeições. «O nome, o nascimento, a fortuna, a reputação, a participação de um advogado ilustre, as coisas que dão distinção, as que brilham, constituem factores muito consideravelmente recomendáveis nas mãos dos acusados.» Actuar nos sentimentos dos jurados, e, como para com todas as multidões, raciocinar muito pouco, ou empregar apenas formas rudimentares de raciocínio, deve ser a preocupação de todo o bom advogado. Um advogado inglês que se notabilizou pelos bons resultados que sempre obteve nos tribunais mostrou bem a forma de proceder. «Enquanto falava, ia observando o júri. Era o momento favorável. Com finura e prática, o advogado lê nas fisionomias o efeito de cada frase, de cada palavra, e tira as suas conclusões. Trata-se primeiro de distinguir os membros do júri, antecipadamente ganhos para a causa. O defensor, por meio de uma habilidade, assegura-se deles, depois do que passa a tratar dos membros que, pelo contrário, parecem estar maldispostos, esforçando-se por adivinhar o motivo por que são contrários aos acusados. Esta é a parte delicada do trabalho, porque pode haver uma infinidade de razões para se desejar condenar um homem, além do sentimento de justiça.»
desta tendência nos magistrados está na recusa de muitos deles à aplicação da excelente lei Bérenger, que permite ao condenado só cumprir a pena quando reincida no crime. Ora nenhum magistrado há que possa ignorar, visto que a estatística o prova, que a aplicação da primeira pena origina infalivelmente reincidência. Quando os juizes libertam um culpado, sempre lhes parece que a sociedade não foi vingada. Em vez de não vingá-la, preferem criar uma reincidência perigosa. 160
OS
JURADOS
DOS
TRIBUNAIS
DO CRIME
Estas poucas linhas resumem o mecanismo de toda a arte oratória e vemos por elas porque é que o discurso feito com antecedência é de quase nenhum efeito, visto que é necessário poder-se, a cada momento, modificar os termos empregados, conforme a impressão produzida. O orador não carece de converter todos os membros de um júri mas apenas os guias que hão-de determinar a opinião geral. Como em todas as multidões, há sempre um pequeno número de indivíduos que guiam os outros. «Fiz a experiência», diz o advogado que citámos, «de que no momento de se dar o veredicto bastavam um ou dois homens enérgicos para arrastarem o júri. São exactamente esses dois ou três que é necessário convencer por sugestões hábeis. Antes de mais nada, é necessário agradar-lhes.» O homem em multidão a quem se haja agradado está prestes a ser convencido e muito disposto a achar excelentes quaisquer razões que lhe apresentem. Num interessante trabalho acerca de Lachaud, encontro a seguinte anedota: «É sabido que, enquanto discursava nos tribunais, Lachaud não perdia de vista dois ou três jurados que ele sabia, ou pressentia, que haviam de exercer acção sobre os outros, mas eram rebeldes. Geralmente, conseguia reduzir estes recalcitrantes. Contudo, uma vez, na província, encontrou um contra o qual vãmente empregava a mais tenaz argumentação, havia já três quartos de hora. Era o primeiro jurado da segunda bancada, isto é, o sétimo. O caso era para desesperar! Subitamente, no meio de uma apaixonada demonstração, Lachaud interrompe-se e dirigindo-se ao presidente do tribunal, diz: "Senhor presidente, peço-vos o favor de mandardes correr aquela cortina, pois que o sétimo dos senhores jurados está muito incomodado com o sol." O sétimo jurado ruborizou-se, sorriu, agradeceu; estava ganho pela defesa.» Alguns escritores, entre os quais muitos realmente notáveis, têm combatido violentamente, nestes últimos tempos, a instituição do júri, que é, todavia, a única protecção que possuímos contra os erros, na realidade, muito freqüentes de uma casta que não tem 161
A
PSICOLOGIA
DAS
MULTIDÕES
fiscalização(22). Uns desejam um júri recrutado apenas nas classes ilustradas; mas nós já tivemos ocasião do provar que, neste caso, as decisões serão também idênticas às que agora são tomadas. Outros, baseando-se em erros cometidos pelos jurados, propõem a supressão destes e a sua substituição por juizes. Mas é extraordinário este modo de ver, pois os que o sustentam parecem esquecer-se de que os erros de que tanto censuram ao júri foram primeiro cometidos por juizes, pois que quando um acusado vai sujeitar-se à decisão do júri, já terá sido considerado criminoso por alguns magistrados, juizes de instrução, procurador da República e presidente do tribunal. E, nestes casos, se o acusado fosse definitivamente julgado por magistrados, em vez de o ser também por jurados, perderia a única probabilidade de ser reconhecido um inocente. Os erros dos jurados foram sempre primeiramente erros de magistrados. É, por conseqüência, só a estes que devemos atribuir as culpas de erros judiciais, essencialmente monstruosos, como a recente condenação do doutor X..., que foi perseguido por um juiz de instrução, na verdade muito estúpido; por denúncia de uma rapariga meio idiota que o acusava de a haver feito abortar, em troca de trinta francos. Este médico teria sido vítima da prisão, se não fora a explosão da ( 22 ) A magistratura representa na realidade a única colectividade social cujos actos não estão sujeitos a nenhuma fiscalização. Apesar de todas as revoluções, a França democrática não possui o direito de habeas corpus, de que a Inglaterra tanto se orgulha. A França expulsou todos os tiranos; mas estabeleceu em cada cidade um magistrado que à sua vontade dispõe à vontade da liberdade dos cidadãos. Qualquer juiz de instrução acabado de sair da faculdade de Direito tem o revoltante poder de mandar à sua vontade para a cadeia, por simples suposição de culpabilidade de que não precisa justificar-se para com ninguém, os cidadãos mais honestos. Pode metê-los na prisão seis meses ou até um ano, sob pretexto de instrução, libertando-os quando lhe apetece sem lhes dever nem indemnizações nem desculpas. A contrafé do juiz de instrução criminal é absolutamente o equivalente da carta em branco, apenas com a diferença de que esta, tão censurada à antiga monarquia, só servia as grandes personagens, ao passo que a contrafé está à disposição de uma classe de cidadãos que estão muito longe de serem os mais ilustrados e os mais independentes. 162
OS
JURADOS
DOS T R I B U N A I S
DO
CRIME
indignação pública, que fez com que o chefe de Estado o indultasse imediatamente. A honradez do condenado, proclamada por todos os seus concidadãos, evidenciava o absurdo do erro, que os magistrados eram os primeiros a reconhecer, o que não obstou a que, por espírito de casta, fizessem tudo quanto puderam para impedir a concessão do indulto. Em todos os casos análogos, cheios de pormenores técnicos de que nada pode compreender, o júri, naturalmente, escuta o Ministério Público que diz que, no fim de contas, o processo foi instruído por magistrados habituados a todas as subtilezas. Quais são então os verdadeiros autores do erro: os jurados ou os magistrados? Conservemos preciosamente o júri, pois que ele constitui porventura a única categoria de multidão incapaz de ser substituída por qualquer individualidade. Só ele pode amaciar as durezas da lei que, igual para todos, o deve ser em princípio e não conhecer dos casos particulares. Inacessível à compaixão e conhecendo apenas o texto da lei, o juiz com a sua dureza profissional castigaria com a mesma pena o assassino e a pobre rapariga levada ao infanticídio pelo abandono do sedutor e pela miséria; é então que o júri sente muito bem instintivamente que a rapariga seduzida é muito menos criminosa que o sedutor e, por isso, lhe merece toda a indulgência, tanto mais justa quanto é certo que o sedutor escapa à acção da lei. Sabendo muito bem o que é a psicologia das castas e o que é também a psicologia das outras categorias de multidões, não vemos um caso sequer em que, se fôramos acusados injustamente de um crime, deixássemos de preferir os jurados aos magistrados profissionais. Com os jurados teríamos algumas probabilidades de sermos reconhecidos inocentes, mas com os magistrados nenhumas teríamos. Tememos o poder das multidões, mas tememos ainda muito mais o poder de algumas castas. As primeiras podem deixar-se convencer, as segundas nunca se dão por vencidas.
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QUARTO CAPÍTULO
AS MULTIDÕES ELEITORAIS
Caracteres gerais das multidões eleitorais. — C o m o elas se persuadem. — Qualidades que o candidato deve possuir. — Necessidade do prestígio. — Porque que é que operários e camponeses só raramente escolhem candidatos entre seus companheiros. — Poder das palavras e fórmulas sobre o eleitor. — Aspecto geral das discussões eleitoriais. — C o m o se formam as opiniões do eleitor. — Poder das comissões eleitorais. — Representam a mais temível forma da tirania. — As comissões da devolução. — Apesar do seu fraco valor psicológico, o sufrágio universal não pode ser substituído. — Por que razão os votos seriam idênticos, embora o direito de sufrágio se restringisse a uma limitada classe de cidadãos. — O que significa o sufrágio universal em todos os países.
As multidões eleitorais, ou seja, as colectividades chamadas para elegerem os titulares de certas funções, constituem multidões heterogêneas; mas, como apenas actuam num determinado ponto, escolher um ou mais de diversos candidatos, nestas multidões só podemos observar alguns dos caracteres precedentemente descritos. Os caracteres das multidões por elas manifestados são sobretudo a fraca aptidão para o raciocínio, a ausência de espírito crítico, a irritabilidade, a credulidade e a simplicidade. 165
A
PSICOLOGIA
DAS
MULTIDÕES
Encontram-se também nas suas decisões a acção dos guias e a função dos factores por nós já enumerados, a afirmação, a repetição, o prestígio e o contágio. Procuremos agora ver como se seduzem essas multidões. Dos processos que melhores resultados dão, deduzir-se-á claramente a sua psicologia. A primeira das condições que um candidato deve possuir é o prestígio. O prestígio pessoal só pode ser substituído pelo da fortuna. O talento, o próprio gênio, nem por isso são elementos muito sérios de bom êxito. Para o candidato, é capital a necessidade de possuir prestígio, isto é, de poder impor-se sem discussão. Assim, se os eleitores, cuja maioria é constituída por operários e camponeses, só raramente elegem um dos seus companheiros para os representar, é porque as personalidades que pertencem à sua categoria não têm para eles nenhum prestígio. E, quando, por acaso, elegem um dos seus companheiros, é quase sempre por motivos acessórios, como o de contrariar um homem eminente, um patrão poderoso em cuja dependência quotidianamente se encontram os operários que assim têm a ilusão de serem também senhores por momentos. Mas só a posse do prestígio não é o bastante para assegurar ao candidato o bom êxito. O eleitor quer que lhe lisonjeiem as aspirações e vaidades; é preciso enchê-lo das mais extravagantes bajulações, não hesitando em lhe fazer as promessas mais fantásticas. Se o eleitor é um operário, nunca será demais para o candidato injuriar e denegrir os patrões. Com respeito ao candidato contrário, urge procurar esmagá-lo assentando, por afirmação, repetição e contágio, que ele é o último dos velhacos e que ninguém ignora que ele tem praticado alguns crimes. É inútil, evidentemente, procurar qualquer coisa que se pareça com uma prova de semelhantes asserções. Se o adversário conhecer mal a psicologia das multidões, procurará justificar-se por argumentos, em vez de limitar-se a responder às afirmações com outras afirmações, e, assim, não terá nenhuma probabilidade de triunfar. 166
AS
MULTIDÕES
ELEITORAIS
O programa escrito do candidato não deve ser muito categórico, pois que os adversários podem mais tarde opor-lho; mas o programa oral nunca pecará por excessivo. Podem prometer-se sem receio as mais importantes reformas; na ocasião, estes exageros produzem muito efeito e a nada obrigam para o futuro. Na verdade, é um facto de observação constante que o eleitor nunca se preocupou em saber até que ponto o eleito seguiu a profissão de fé aclamada e na qual se supõe que a eleição se apoiou. Reconhecemos aqui todos os factores de persuasão que já descrevemos. Vamos ainda encontrá-los na acção das palavras e das fórmulas, cujo mágico império já tivemos ocasião de mostrar. O orador que souber manejá-las conduzirá à sua vontade as multidões e leva-las-á para onde quiser. Expressões como o capital infame, os exploradores vis, o operário admirável, a socialização das riquezas e outras que tais, embora já um pouco gastas, produzem sempre o mesmo efeito. Mas o candidato que achar uma fórmula nova bem destituída de significação precisa e podendo, por conseqüência, corresponder às mais diversas aspirações, alcançará infalivelmente um bom resultado. A sangrenta revolução espanhola de 1873 foi feita com uma destas palavras mágicas de sentido complexo, que cada indivíduo pode interpretar a seu modo. Um escritor contemporâneo contou a gênese dessa revolução em termos que merecem ser transcritos. «Os radicais», escreve o autor a que nos referimos, «haviam descoberto que uma república unitária é uma monarquia disfarçada, e as cortes, para eles serem agradáveis, haviam proclamado por unanimidade a república federal, sem que nenhum dos votantes pudesse com verdade dizer o que acabava de ser votado. Esta fórmula, porém, encantava toda a gente; era uma embriaguez, um delírio. Acabava-se de inaugurar na Terra o reinado da virtude e da felicidade. Um republicano a quem um adversário recusava o título de federalista recebia isso como afronta mortal. Quando os amigos e simples conhecidos se encontravam nas ruas, cumprimentavam-se com a fórmula Salud e república 167
A
PSICOLOGIA
DAS
MULTIDÕES
federal! Depois disto, entoavam-se hinos à santa indisciplina e à autonomia do soldado. Mas no fim o que era, para toda a gente, a república federal? Uns interpretavam-na como a emancipação das províncias, com instituições semelhantes às dos Estados Unidos, ou a descentralização das províncias; outros tinham por fito o aniquilamento de toda e qualquer autoridade, como introdução para a próxima grande liquidação social. Os socialistas de Barcelona e Andaluzia pregavam a absoluta soberania das comunas, querendo que a Espanha tivesse dez mil municípios independentes, que legislassem para si e suprimissem de uma assentada o exército e a polícia. Bem depressa se viu a insurreição propagar-se no Sul, de cidade em cidade, de aldeia em aldeia. Logo que uma comuna fazia o seu pronunciamento, tratava imediatamente de destruir os telégrafos e os caminhos-de-ferro, para cortar todas as comunicações com os vizinhos e com Madrid. Não havia burgo, por muito insignificante que fosse, que não quisesse fazer a sua panela à parte, como popularmente se diz. O federalismo fora substituído por um cantonalismo brutal, incendiário e sangrento e por toda a parte celebravam-se cruentas saturnais.» A respeito da acção que o raciocínio possa exercer nos espíritos dos eleitores, só não terá opinião definida sobre o assunto quem nunca haja lido as actas de uma reunião eleitoral. Nas reuniões eleitorais trocam-se afirmações, invectivas, bordoada até por vezes, mas nunca razões. Se por instantes se estabelece o silêncio, é porque um assistente pouco acomodatício participa que vai apresentar ao candidato uma dessas embaraçosas perguntas que alegram sempre o auditório. Mas a satisfação dos opositores não é muito duradoura, porque a voz dos preopinantes é bem depressa abafada pelos uivos dos adversários. São tipos de reuniões as descritas nas notícias seguintes, tomadas ao acaso de centenas de outras semelhantes, que se encontram nos jornais: «Um dos organizadores pediu aos assistentes que nomeassem um presidente. Foi o bastante para que a tempestade se desencadeasse. Os anarquistas saltam para a cena na intenção de assaltarem 168
AS
MULTIDÕES
ELEITORAIS
a mesa; os socialistas defendem-se com energia; trocaram-se socos, tratam-se mutuamente de espiões, vendidos, etc., um cidadão retira-se com um olho vazado. Finalmente, a mesa instala-se de qualquer maneira, no meio de grande tumulto, e sobe a tribuna o companheiro X. O orador cai a fundo sobre os socialistas, que o interrompem, chamando-lhe cretino, bandido, canalha, etc., epítetos estes a que o companheiro X responde expondo uma teoria pela qual os socialistas ou são idiotas ou farsantes. «...O partido germanista organizou, ontem à noite, na sala da Comuna, Rua do Faubourg-du-Temple, uma grande reunião preparatória da festa dos Trabalhadores no 1.° de Maio. A senha era sossego e tranqüilidade. O companheiro G. trata os socialistas por cretinos e intrujões. Então oradores e ouvintes insultam-se e chegam a vias de facto; cadeiras, bancos, mesas, tudo toma parte na encarniçada batalha.» Não imaginemos, por um instante sequer, que esta espécie de discussões seja privativa de uma determinada classe de eleitores e esteja dependente da posição social destes. Em qualquer assembleia anônima, embora composta exclusivamente de literatos, a discussão reveste sempre as mesmas formas. Já dissemos que os homens em multidão tendem para a igualdade mental e a todos os momentos encontramos a prova disso. Como prova do que asseveramos, damos um extracto da notícia de uma reunião exclusivamente composta de estudantes, notícia que extraímos do Le Temps de 13 de Fevereiro de 1893. «O tumulto aumentava à proporção que a hora avançava; creio que nenhum orador pôde dizer duas frases seguidas, porque as interrupções choviam. Ininterruptamente, ouviam-se gritos em todos os pontos da sala; estes aplaudiam, aqueles assobiavam; os ouvintes envolviam-se em discussões violentas; levantavam-se ameaçadoramente bengalas; pateava-se; berrava-se para os interruptores que saíssem fossem para a tribuna. 169
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PSICOLOGIA
DAS
MULTIDÕES
O Sr. C. brinda fortemente a associação com os epitetos de odiosa, covarde, monstruosa vil, venal, vingativa, e declara que o seu desejo é destruí-la.» É caso para se perguntar como é que, em tais condições, um eleitor poderá formar a sua opinião. Mas o fazer semelhante pergunta é dar prova de ignorância ou extraordinária ilusão sobre o grau de liberdade de que uma colectividade pode gozar. As.multidões têm opiniões impostas e nunca raciocinadas. No caso que ora vimos tratando, as opiniões e votos dos eleitores estão nas mãos das comissões eleitorais, cujos guias, na maioria das vezes, são alguns negociantes de vinhos, com preponderância nos operários em favor dos quais abrem créditos em suas casas. «Sabeis o que é uma comissão eleitoral?», pergunta Scherer, um dos mais valentes defensores da actual democracia. E acrescenta, como resposta, «é muito simplesmente a chave das nossas instituições, a peça principal da máquina política. A França é hoje governada pelas comissões eleitorais»(23). Também não é muito difícil actuar nessas multidões, contanto que o candidato seja aceitável e possua recursos suficientes. Pelas declarações dos dirigentes, sabemos que três milhões de francos bastaram para se conseguirem as múltiplas eleições do general Boulanger.
( 21 ) As comissões, seja qual for o nome que adoptem, clubes, sindicatos, etc., constituem porventura o mais terrível perigo do poder das multidões. Na realidade, representam a forma mais impessoal e, por conseguinte, mais opressiva da tirania. Os guias que dirigem as multidões, julgando falarem e procederem em nome de uma colectividade e estarem isentos de qualquer responsabilidade, podem permitir-se tudo. O mais feroz tirano nunca teria ousado pensar sequer nas proscrições ordenadas pelas comissões revolucionárias, das quais Barras diz que haviam dizimado e assediado regularmente a Convenção. Robespierre foi senhor absoluto em nome dessas comissões. No dia em que o terrível ditador delas se afastou, levado pelo amor-próprio, ficou perdido. O reinado das multidões é o das comissões, isto é, dos guias. É impossível imaginar-se um despotismo mais cruel. 170
AS
MULTIDÕES
ELEITORAIS
Tal é a psicologia das multidões eleitorais. É idêntica à das outras multidões. Nem melhor, nem pior. Por isso não tirarei nenhuma conclusão condenatória do sufrágio universal e, se a sorte deste de nós dependesse, conservá-lo-iamos tal como é, por motivos práticos que se deduzem precisamente do nosso estudo da psicologia das multidões e que, por isso, vamos expor. É fora de dúvida que os inconvenientes do sufrágio universal são muito palpáveis para que deles possamos alegar ignorância. É impossível contestar-se que as civilizações têm sido obra de uma pequena minoria de espíritos superiores, que constituem o vértice de uma pirâmide, cujas camadas se alargam à proporção que o valor mental decresce e representam as camadas profundas de uma nação. Não é, certamente, do sufrágio dos elementos interiores, apenas representativos do número, que pode depender a grandeza de uma civilização. É fora de dúvida ainda que os sufrágios das multidões são muitas vezes bastante perigosos. À França já têm custado algumas invasões e, com a vitória que estão preparando, para o socialismo, é provável que as fantasias da soberania popular nos venham ainda custar muito mais caro. Estas objecções, excelentes em teoria, perdem, porém, na prática toda a força, pois não devemos esquecer o poder invencível das idéias transformadas em dogmas. O dogma da soberania das multidões é filosoficamente tão pouco defensável como os dogmas religiosos da Idade Média; mas é inegável que exerce hoje um poder absoluto que o torna tão inatacável como outrora as idéias religiosas. Supondo um livre-pensador do nosso tempo transportado por um poder mágico a plena Idade Média, julgais por acaso que, depois de haver verificado o soberano poder das idéias religiosas que então preponderavam, ele tentaria combatê-las? Caindo nas mãos de um juiz que queria mandar queimá-lo, imputando-lhe o haver concluído um pacto com o Diabo, ou o haver estado num sabbat, pensaria ele porventura em contestar a existência do Diabo e do sabbat? Certamente, não; porque não se 171
A
PSICOLOGIA
DAS
MULTIDÕES
discute com as crenças das multidões, como se não discute com os ciclones. O dogma do sufrágio universal possui actualmente o poder que outrora tiveram os dogmas cristãos. Oradores e escritores falam dele com respeito e adulações que o próprio Luís XIV não conheceu. É necessário, pois, proceder-se para com o sufrágio universal como se procede para com todos os dogmas religiosos; só o tempo actua sobre eles. De resto, seria tanto mais inútil procurar abalar este dogma, quanto é certo que em seu favor militam razões aparentes. «Nos tempos de igualdade», escreve, com muita razão, Tocqueville, «os homens não têm fé uns nos outros, por causa da sua semelhança; mas esta mesma semelhança dá-lhes uma confiança quase ilimitada no juízo do público, porque lhes não parece verosímil que, tendo todos as mesmas luzes, a verdade se não encontre do lado do maior número.» Dar-se-á, porém, o caso de, pelo sufrágio restrito, restrito só às capacidades, se assim o quiserdes, se melhorarem os actos das multidões? Nem por momentos podemos admitir semelhante coisa, por causa, como já tivemos ocasião de dizer, da inferioridade mental de todas as colectividades, qualquer que seja a sua composição. Em multidão, os homens igualizam-se sempre, e, em questões gerais, o sufrágio de quarenta acadêmicos não é melhor que o de quarenta aguadeiros. De nenhum modo aceitamos que alguns dos votos muito censurados ao sufrágio universal, como, por exemplo, o do restabelecimento do império, houvessem sido diferentes se os votantes tivessem sido recrutados exclusivamente entre sábios e letrados, pois que não é pelo facto de um indivíduo saber grego ou matemática, ser arquitecto, veterinário, médico ou advogado que adquire conhecimentos particulares acerca das questões sociais. Todos os nossos economistas são pessoas instruídas, professores e acadêmicos, na sua grande maioria, e, apesar disso, não há uma só questão geral, proteccionismo, bimetalismo, etc., em que hajam conseguido unanimidade de opiniões. Isto resulta de a sua ciência não ser mais do que uma forma atenuada da ignorância universal. 172
AS
MULTIDÕES
ELEITORAIS
Ora, em presença dos problemas sociais, em que entram tantas e tão complexas incógnitas, todas as ignorâncias se igualizem. Logo, se só pessoas cheias de saber é que constituíssem o corpo eleitoral, os seus votos não seriam melhores que os de hoje; guiar-se-iam principalmente pelo sentimento e pelo espírito do partido que seguissem. Nem por isso deixaríamos de ter nenhuma das actuais dificuldades e teríamos certamente a agravante da pesada tirania das castas. Restrito ou generalizado, atacando um país republicano ou monárquico, praticado em França, na Bélgica, Grécia, Portugal ou Espanha, o sufrágio das multidões é por toda a parte idêntico e o que, em última análise, representa são as aspirações e necessidades inconscientes da raça. A média dos eleitos representa em cada país a alma da raça e de uma geração para outra encontramo-la quase idêntica. É assim que mais uma vez ainda recaímos na noção fundamen tal da raça, já tantas vezes encontrada e sobre esta outra noção da primeira que decorre de que as instituições e os governos desempenham apenas um papel insignificante na vida dos povos. Estes últimos são principalmente conduzidos pela alma da sua raça, pelos resíduos ancestrais de que esta alma é o somatório. Os senhores misteriosos que regem os nossos destinos são a raça e a engrenagem das necessidades quotidianas.
173
QUINTO CAPÍTULO
AS ASSEMBLEIAS PARLAMENTARES
As multidões parlamentares apresentam a m a i o r parte dos caracteres comuns às multidões heterogêneas não anônimas. — Simplismo das opiniões. — Sugestibilidade e limites desta sugestibilidade. — Opiniões fixas irredutíveis e opiniões móveis. — Porque predomina a indecisão. — Papel dos guias. — Razão do seu prestígio. — São os verdadeiros senhores de uma assembleia em que os votos não são senão de uma pequena minoria. — Poder absoluto que eles exercem. — Os elementos da sua arte oratória. — As palavras e as imagens. — Necessidade psicológica que os guias têm de serem geralmente convictos e limitados. — Impossibilidade para o orador sem prestígio de fazer admitir as suas razões. — Exagero dos bons e maus sentimentos nas assembleias. — Automatismo a que chegam em certos momentos. — As sessões da Convenção. — Casos em que a assembleia perde os traços das multidões. — A acção dos especialistas nas questões técnicas. — Vantagens e perigos do regime parlamentar em todos os países. — Está adaptado às necessidades modernas; mas acarreta o descalabro das finanças e a progressiva restrição de todas as liberdades. — Conclusões.
As assembleias parlamentares representam multidões homogêneas não anônimas. Apesar do seu recrutamento, variável segundo as épocas e os povos, assemelham-se muito pelos seus caracteres. A influência da raça exerce-se sobre elas para atenuar ou exagerar, 175
A
PSICOLOGIA
DAS
MULTIDÕES
mas não para impedir a manifestação dos caracteres. As assembléias parlamentares dos mais diversos países, tais como as da Grécia, Itália, Portugal, Espanha, França e América, apresentam grandes analogias nas discussões e votos e deixam os respectivos governos a braços com dificuldades idênticas. O regime parlamentar, de resto, representa o ideal de todos os povos civilizados modernos. Traduz a idéia psicologicamente errônea, mas geralmente admitida, de que muitos homens reunidos são muito mais capazes do que um pequeno número de tomarem uma decisão boa e independente sobre um determinado assunto. Nas assembleias parlamentares vamos encontrar os caracteres gerais das multidões, a simplicidade das idéias, a irritabilidade, a sugestibilidade, o exagero dos sentimentos, a acção preponderante dos guias. Mas, em virtude da sua composição especial, as multidões parlamentares apresentam algumas diferenças que vamos indicar. O simplismo das opiniões é um dos seus mais importantes caracteres. Em todos os partidos, nos povos latinos principalmente, encontra-se uma tendência invariável para a resolução dos mais complicados problemas sociais por meio dos mais simples princípios abstractos e por leis gerais aplicáveis a todos os casos. Os princípios muito naturalmente variam com cada partido; mas só o facto de os indivíduos estarem em multidão faz com que eles tendam para o exagero do valor desses princípios, levando-os até às últimas conseqüências. Por isso é que os parlamentos representam principalmente opiniões extremas. O mais perfeito tipo do simplismo das assembleias foi realizado pelos jacobinos da grande Revolução Francesa. Todos os revolucionários, dogmáticos e lógicos, com o cérebro cheio de vagas generalidades, tratavam de aplicar princípios fixos sem se preocuparem com os acontecimentos e deles, com muita verdade, se podia ter dito que atravessaram a Revolução sem a verem. Com os dogmas muito simples que lhes serviam de guia, pensavam em refazer completamente uma sociedade e levarem uma civilização 176
AS
ASSEMBLEIAS
PARLAMENTARES
requintada a uma fase muito anterior da evolução social. Os meios que empregaram para realizarem o seu sonho estavam igualmente impressos de absoluta simplicidade; na realidade, limitaram-se a destruir violentamente o que os incomodava. De resto, todos, girondinos, montanheses, termidorianos, etc., estavam animados do mesmo espírito. As multidões parlamentares são muito sugestionáveis e, como para todas as multidões, a sugestão emana dos guias que possuem prestígio. Todavia, nas assembleias parlamentares, a sugestibilidade tem limites muito precisos, que convém marcar. Em todas as questões de interesse local ou regional, cada membro de uma assembleia tem opiniões fixas, irredutíveis, e que nenhuma argumentação poderá abalar. O talento de um Demóstenes não conseguiria mudar o voto de um deputado em questões como o proteccionismo ou o privilégio de quaisquer concessões que representem exigências de eleitores de peso. A anterior sugestão destes eleitores é bastante preponderante para anular todas as outras sugestões e manter uma fixidez absoluta de opinião(24). Em questões gerais, queda de um ministério, estabelecimento de um imposto, etc., não há absolutamente fixidez de opinião e as sugestões dos guias podem actuar, mas de nenhum modo como numa multidão ordinária. Todo o partido tem os seus guias que às vezes exercem acção igual. Disto resulta que o deputado se encontra entre sugestões contrárias e fatalmente fica muito hesitante. Assim se explica que num quarto de hora haja votações muito opostas, se acrescente a uma lei um artigo que a destrói, como, por exemplo, tirar aos industriais o direito de admitirem e
( 24 ) É a estas opiniões anteriormente fixadas e tornadas irredutíveis por necessidades irredutíveis que, sem dúvida, se aplica a seguinte reflexão de um velho parlamentar inglês: «Há cinqüenta anos que tenho a minha cadeira em Westminster, tenho ouvido milhares de discursos; poucos deles mudaram a minha opinião, mas nem um só o meu voto.» 177
A
PSICOLOGIA
DAS M U L T I D Õ E S
despedirem os seus operários, anulando quase, um pouco depois, essa medida por uma emenda. É por isto também que em cada legislatura uma câmara tem opiniões muito fixas e outras opiniões muito indecisas. E, como, no fundo, as questões mais gerais são as mais numerosas, a indecisão é que prepondera, indecisão mantida pelo constante receio do eleitor, cuja sugestão latente tende sempre para contrabalançar a acção dos guias. Todavia, são estes os que definitivamente são senhores nas numerosas discussões em que os membros de uma assembleia não tenham opiniões bem assentes. É evidente a necessidade destes guias pois que, sob o nome de chefes de grupos, os encontramos nas assembleias de todos os países. São os verdadeiros soberanos de uma assembleia. Os homens em multidão não podem passar sem um senhor, e é por isso que os votos de uma assembleia geralmente só representam as opiniões de uma diminuta minoria. Os guias actuam muito pouco pelos seus raciocínios e muito pelo seu prestígio. A melhor prova disto está em que, se uma qualquer circunstância os despojar desse prestígio, deixam de exercer qualquer acção. O prestígio dos guias é individual e não depende nem do nome, nem da celebridade. Jules Simon, falando dos grandes homens da assembleia de 1848, de que também fez parte, dá-nos curiosos exemplos do que asseveramos. «Dois meses antes de ser omnipotente, Luís Napoleão nada valia. Victor Hugo, quando subiu à tribuna, não teve nenhum êxito. Escutaram-no como escutavam Félix Pyat; mas ninguém o aplaudiu. "Não gosto das idéias dele", dizia-me Vaulabelle, falando-me de Félix Pyat, "mas devo confessar que é um dos maiores escritores e o maior orador de França." Edgar Quinet, esse raro e possante espírito, não era tido em nenhuma conta. Teve momentos de popularidade antes da abertura da Assembleia, mas nesta não valeu nada. 178
AS
ASSEMBLEIAS
PARLAMENTARES
As assembleias políticas são o lugar em que menos se faz sentir o brilho do gênio. Nelas só se tem em linha de conta uma eloqüência apropriada ao tempo e ao lugar, e os serviços prestados aos partidos e não à pátria. Para se prestar homenagem a Lamartine em 1818 e a Thiers em 1871, foi necessário o estímulo do interesse urgente, inexorável. Passado o perigo, todos se curaram simultaneamente do reconhecimento e do medo.» Reproduzimos o excerto precedente pelos factos que nele se contêm, que não pelas explicações que dá, pois que são de medíocre psicologia. Uma multidão perderia o seu carácter de multidão se atendesse aos serviços prestados pelos guias, quer à pátria, quer aos partidos. A multidão que obedece ao guia sofre-lhe o prestígio, não intervindo nisso nenhum sentimento de interesse ou de reconhecimento. O guia dotado de suficiente prestígio possui um poder quase absoluto. É bem conhecida a acção imensa que, durante longos anos, mercê do seu prestígio, exerceu um célebre deputado, derrotado nas últimas eleições, em resultado de certos acontecimentos financeiros. Bastava, por assim dizer, um sinal desse deputado para que os ministérios caíssem. Um escritor indicou claramente nas seguintes linhas o alcance da acção desse deputado. «É ao Sr. X que principalmente devemos o havermos comprado o Tonquim por três vezes mais, o não termos adquirido em Madagáscar mais do que uma posição incerta, o termos perdido um verdadeiro império no Baixo Niger, o havermos perdido a situação preponderante que ocupávamos no Egipto. As teorias de X custaram-nos mais territórios que os desastres de Napoleão I.» Não se deveria ter tratado tão descaroavelmente o guia em questão. Custou-nos, sem dúvida, muito caro, mas uma grande parte da sua preponderância provinha de ele seguir a opinião pública que, em assuntos coloniais, não era positivamente a mesma que hoje. É raro um guia preceder a opinião; limita-se quase sempre a segui-la, tomando-lhe todos os erros. 179
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Além do prestígio, os meios de persuasão dos guias são os factores que já algumas vezes temos enumerado. Para que habilmente os maneje, o guia deve ter penetrado, pelo menos de um modo inconsciente, a psicologia das multidões, e deve saber como lhes há-de falar. Deve sobretudo conhecer a acção fascinadora das palavras, fórmulas e imagens; deve possuir uma eloqüência especial composta de enérgicas afirmações, destituídas de provas, e de imagens impressionantes acompanhadas de muitos raciocínios sumários. É um gênero de eloqüência que se encontra em todas as assembleias, incluindo o Parlamento inglês, que é todavia o mais ponderado de todos. «Podemos ler constantemente», diz o filósofo inglês Maine, «as discussões na Câmara dos Comuns que consistem somente na troca de generalidades assaz fracas e personalismos bastante violentos. Na imaginação de uma democracia pura, este gênero de fórmulas gerais exerce prodigiosa acção. Será sempre fácil fazer aceitar a uma multidão asserções gerais apresentadas em termos empolgantes, embora não hajam nunca sido verificadas, nem sejam porventura susceptíveis de verificação.» A importância dos «termos empolgantes», indicada na citação precedente, não é exagero. Algumas vezes já temos insistido no poder especial das palavras e das fórmulas. É necessário escolhê-las de modo que despertem imagens muito vivas. A frase seguinte, extraída de um discurso de um dos guias das nossas assembleias, constitui um excelente espécime do caso: «No dia em que o mesmo navio leve para as terras febris da relegação o político desvergonhado e o anarquista assassino, poderão os dois travar conversação e aparecerão um ao outro como os dois aspectos complementares da mesma ordem social.» A imagem assim despertada é bem visível e todos os adversários do orador se sentem ameaçados por ela. Vêem de uma assentada as regiões da febre, o barco que os há-de levar, porque, porventura, também fazem parte da mal limitada categoria de políticos ameaçados. É então que sentem o surdo receio que deveriam sentir 180
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os convencionais que os discursos vagos de Robespierre mais ou menos ameaçavam com a guilhotina e que, debaixo deste receio, lhe cediam sempre. Os guias têm o maior interesse em se lançarem nos mais inverosímeis exageros. O orador de que citámos há pouco uma frase pôde afirmar, sem levantar grandes protestos, que os banqueiros e os padres pagavam aos dinamitistas e que os administradores das grandes companhias merecem o mesmo castigo que os anarquistas. Estas e outras que tais afirmações actuam sempre nas multidões. A afirmação nunca é bastante furiosa, nem a declamação muito ameaçadora. Nada há que mais intimide os ouvintes do que esta eloqüência, porque, protestando, receiam passar por traidores ou cúmplices. Esta eloqüência especial tem sempre preponderado, como há pouco dizíamos, em todas as assembleias e acentua-se fortemente nos períodos críticos. É muito interessante para o assunto a leitura dos discursos dos grandes oradores que compunham as assembleias da Revolução. A cada momento se julgavam obrigados a interromperem-se para verberarem o vício e exaltarem a virtude; depois soltavam torrentes de imprecações contra os tiranos e juravam viver livres ou morrer. A assembleia levantava-se em peso, aplaudia entusiasticamente e, depois de serenada, tornava a sentar-se. O guia pode algumas vezes ser inteligente e instruído, mas esta qualidade geralmente é-lhe mais prejudicial do que útil. Mostrando a complexidade das coisas, permitindo explicá-las e compreendê-las, a inteligência traz a indulgência e suaviza muitíssimo a intensidade e a violência das convicções necessárias aos apóstolos. Os grandes guias de todos os tempos, principalmente os da Revolução, têm sido extraordinariamente limitados de inteligência e foram precisamente os mais acanhados os que maior acção exerceram. Os discursos do mais célebre de todos eles, Robespierre, enchem-nos muitas vezes de pasmo pela sua incoerência; se os 181
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lermos, nenhuma explicação plausível neles encontramos do imenso papel que o poderoso ditador desempenhou. «Lugares-comuns e redundâncias da eloqüência pedagógica e da cultura latina, ao serviço de uma alma mais pueril do que chata, e que, no ataque e na defesa, parece limitar-se ao salta para aqui dos estudantes. Nem uma idéia, nem uma habilidade, nem um rasgo, é o enjoo na tempestade. Quando se acaba uma tão enfadonha leitura, sentimos desejos de gritar, uf!, que maçada, como fez o amável Camille Desmoulins.» Por vezes é terrível pensar-se no poder que a um homem que possua prestígio dá uma forte convicção unida a uma grande estreiteza de espírito. É necessário, todavia, realizar estas condições para desconhecer obstáculos e saber querer. Instintivamente reconhecem as multidões nestes enérgicos convictos o senhor de que sempre carecem. Numa assembleia parlamentar, o êxito de um discurso depende quase exclusivamente do prestígio do orador, e nada das razões que apresente. A melhor prova disto está em que, quando uma causa qualquer faz perder o prestígio a um orador, este perde ao mesmo tempo toda a sua preponderância, ou seja, o poder de dirigir à sua vontade os votos. O orador desconhecido que vem com um discurso que apenas contém boas razões nenhuma probabilidade tem de ser escutado. Um deputado, que é também psicólogo perspicaz, o Sr. Descubes, desenhou recentemente nas linhas que seguem o perfil de um deputado sem prestígio: «Quando tomou lugar na tribuna, tirou da sua pasta um caderno de apontamentos que metodicamente dispõe na sua frente e começa com segurança. Sente-se lisonjeado por julgar que vai transmitir à alma dos ouvintes a convicção que o anima. Pesou bem todos os seus argumentos, encheu tudo de números e provas, está certo de que a razão está do seu lado. Será inútil qualquer resistência em presença da evidência que ele traz. Começa, confiado no seu bom direito 182
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e também na atenção dos seus colegas, que certamente apenas desejam inclinar-se perante a verdade. Fala e imediatamente se surpreende com o movimento da sala, um pouco irritado com o ruído que nela se faz. Então porque não há silêncio? Porque é que ninguém presta atenção? O que pensam então aqueles que estão em tão animada conversa? Que motivo tão urgente faz com que aquele outro abandone o lugar? Inquieta-se, enruga a fronte, estaca, mas, animado pelo presidente, continua erguendo a voz. Ainda lhe prestam agora menos atenção. O orador ergue o tom de voz, agita-se, o ruído aumenta, já quase nem a si mesmo se ouve, estaca novamente, depois receando que o seu silêncio provoque o incômodo grito de "terminou, terminou!", recomeça com mais vigor. O barulho então torna-se insuportável.» Quando as assembleias parlamentares chegam a um certo grau de excitação, tornam-se idênticas às multidões heterogêneas ordinárias, e os seus sentimentos apresentam, por conseguinte, a particularidade de serem sempre extremos. Vê-las-emos praticarem os maiores actos de heroísmo ou os piores excessos. O indivíduo já se não pertence e votará as medidas mais opostas aos seus interesses pessoais. A história da Revolução mostra até que ponto as assembleias se podem tornar inconscientes e obedecer às sugestões mais contrárias aos seus interesses possoais. A renúncia dos privilégios era para a nobreza um sacrifício enorme e, todavia, numa célebre noite da Constituinte, a nobreza não hesitou em fazer essa renúncia. Para os convencionais era uma ameaça permanente de morte a renúncia à inviolabilidade e contudo fizeram-na e não recearam dizimar-se uns aos outros, sabendo todavia que o cadafalso, a que hoje mandavam os seus colegas, lhes estava reservado para o dia seguinte. É que eles haviam chegado ao grau de completo automatismo que já descrevemos, e nenhumas considerações havia que pudessem impedi-los de cederem às sugestões que os hipnotizavam. O seguinte trecho das memórias de um deles, 183
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Billaud-Varennes, é perfeitamente típico no assunto: «As decisões que tanto nos censuram», diz ele, «na maioria das vezes um ou dois dias antes da votação não as aceitávamos; só a crise as suscitava.» Nada é mais exacto. Manifestaram-se os mesmos fenômenos de inconsciência durante todas as tempestuosas sessões da Convenção. «Aprovam e decretam», diz Taine, «aquilo a que têm horror, não só as tolices e as loucuras, mas crimes, assassínio de inocentes e dos próprios amigos. Por unanimidade e com os mais entusiásticos aplausos, a esquerda, reunida à direita, manda ao cadafalso Danton, o seu chefe natural, o grande promotor e guia da Revolução. Por unanimidade e com os maiores aplausos, a direita, reunida à esquerda, vota os piores decretos do governo revolucionário. Por unanimidade e com gritos de admiração e de entusiasmo, com testemunhos de apaixonada simpatia por Collot d'Herbois, Couthon e Robespierre, a Convenção, por espontâneas e múltiplas reeleições, sustenta o governo homicida detestado pela Planície por ser homicida, detestado pela Montanha porque a dizima, Planície e Montanha, a maioria e a minoria, acabam por consentir o seu próprio suicídio. A 22 do Prerial, toda a Convenção ofereceu a pescoço; a 8 do Termidor, durante o primeiro quarto de hora, depois do discurso de Robespierre, tornou a oferecê-lo.» O quadro pode parecer sombrio. É, contudo, exacto. As assembleias parlamentares suficientemente excitadas e hipnotizadas apresentam os mesmos caracteres. Fazem-se rebanho movediço que obedece a todas as impulsões. A seguinte descrição da assembleia de 1848, devida a um parlamentar, Spuller, cuja fé democrática ninguém porá em dúvida, descrição que reproduzimos da Revista Literária, é muito típica. Encontram-se nessa assembleia todos os exagerados sentimentos que já descrevemos nas multidões e a mobilidade excessiva que permite passar de um instante pela gama dos mais opostos sentimentos. «As divisões, os ciúmes, as suspeitas, e alternadamente a confiança cega e as esperanças ilimitadas levaram o partido 184
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republicano à perdição. A sua ingenuidade e a sua candura só eram igualadas pela sua universal desconfiança. Nenhum sentimento de legalidade, nenhuma compreensão de disciplina; terrores e ilusões sem limites: o camponês e a criança identificam-se neste ponto. A sua tranqüilidade rivaliza com a sua impaciência. A sua selvajaria corre parelhas com a sua docilidade, o que é próprio de um temperamento por definir e de uma educação incompleta. Nada os espanta e tudo os desconcerta; trêmulos, medrosos, intrépidos, heróicos, lançar-se-ão através das chamas e recuarão diante de uma sombra. Não conhecem os efeitos nem as relações das coisas. Tão prontos para os desânimos como para as exaltações, sujeitos a todos os pânicos, sempre muito elevados, ou muito baixos, nunca no grau necessário nem na conveniente medida. Mais fluidos que a água, reflectem todas as cores e tomam todas as formas. Que base de governo se poderia estabelecer com tais elementos?» Felizmente que nem sempre se manifestam nas assembleias parlamentares todos os sentimentos que acabamos de descrever. Só são multidões em determinados momentos. Os indivíduos que as constituem conseguem conservar a sua individualidade num grande número de casos; e a isto se deve o poder uma assembleia elaborar excelentes leis técnicas. Estas leis, na verdade, têm como autor um determinado indivíduo que as preparou no silêncio do gabinete e a lei votada é, na realidade, obra de um indivíduo e não de uma assembleia. Estas leis são naturalmente as melhores e só se tornam desastrosas quando uma série de desgraçadas emendas as torna colectivas. A obra de uma multidão é sempre, e em toda a parte, inferior à de um indivíduo isolado. São especialistas os que livram as assembleias de medidas muito desordenadas e muito inexperientes. O especialista é então um guia de ocasião; a assembleia não actua nele, mas sim ele na assembleia. Apesar de todas as dificuldades do seu funcionamento, as assembleias parlamentares representam o que até agora os povos têm encontrado melhor para se governarem e principalmente para 185
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se subtraírem o mais possível ao jugo das tiranias pessoais. Sem dúvida são o ideal de um governo, pelo menos para os filósofos, pensadores, escritores, artistas o sábios, numa palavra, para tudo o que constitui o cume de uma civilização. De feito, de resto, não apresentam mais do que dois perigos sérios, um é um desperdício forçado das finanças, o outro uma progressiva restrição das liberdades individuais. O primeiro destes perigos é conseqüência forçada das exigências e da imprevidência das multidões eleitorais. Assim, se um membro de uma assembleia parlamentar apresentar uma proposta que aparentemente satisfaça as idéias democráticas, tais como, por exemplo, assegurar a reforma de todos os operários, aumentar o ordenado dos cantoneiros ou dos professores, etc., os outros deputados, sugestionados pelo receio dos eleitores, não ousarão mostrar que desprezam os interesses dos eleitores, reprovando a proposta apresentada, muito embora saibam que a sua aprovação virá sobrecarregar gravemente o orçamento, tornando necessária a criação de novos impostos, o impossível para os deputados hesitarem no voto. As conseqüências do aumento das despesas são longínquas e sem resultados sérios para eles, ao passo que as conseqüências de um voto negativo poderiam manifestar-se claramente no dia imediato, logo que lhes fosse preciso apresentarem-se a solicitar votos aos eleitores. Ao lado desta primeira causa do exagero de despesas, há uma outra, não menos imperativa, qual é a da obrigação de autorizar todas as despesas de interesse meramente local, às quais um deputado se não pode opor porque representam também exigências de eleitores e porque cada um dos deputados só pode alcançar o que carece para o seu círculo com a condição de apoiar os pedidos análogos dos colegas(25).
( 25 ) No número de 6 de Abril de 1895, L'Economiste apresentava uma curiosa revista do quanto podem custar «num ano as despesas de interesse exclusivamente eleitoral, principalmente em caminhos-de-ferro. Para servir Langayes (povoação de 3500 habitantes), alcandorada numa montanha, no 186
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O segundo perigo que mencionámos, qual é a restrição forçada das liberdades pelas assembleias parlamentares, é aparentemente menos visível, mas no fundo bem real e verdadeiro. Resulta esse perigo das inúmeras leis, sempre restritivas, cujas conseqüências os parlamentos, com o seu espírito simplista, vêem mal e se julgam obrigados a votar. É um perigo na verdade inevitável, pois que a própria Inglaterra, que, sem dúvida, oferece o mais perfeito tipo do regime parlamentar, aquele em que o representante, mais independente é do seu eleitor, não conseguiu evitá-lo. Herbert Spencer, num trabalho já antigo, mostrou que o aumento da liberdade aparente devia ser acompanhado de uma diminuição de liberdade real. Servindo-se da mesma tese no seu livro O Indivíduo contra o Estado, diz o seguinte acerca do Parlamento inglês: Puy, votou-se a construção de um caminho-de-ferro que custará quinze milhões de francos. Para ligar Beaumont, com 3000 habitantes, com Castel Sarraziu, votou-se uma despesa de sete milhões de francos. Para ligar a aldeia de Oust (com 23 habitantes), à de Seix (que conta 1200), votou-se uma despesa também de sete milhões de francos. Para ligar Trades à aldeia Olette (que conta 737 habitantes), seis milhões, etc. Apenas para 1895, votaram-se nada menos de noventa milhões de francos para construções de linhas férreas, que nenhum interesse geral representam. Não são menos importantes outras despesas devidas a necessidades meramente eleitorais. A lei sobre reformas de operários custará dentro em pouco o mínimo anual de cento e sessenta e cinco milhões de francos, na opinião do ministro da Fazenda, e de oitocentos milhões, segundo o acadêmico Leroy-Beaulieu. É fora de dúvida que a progressão contínua de tais despesas trará, como conseqüência inadiável, a falência. Muitos países europeus, Portugal, Grécia, Espanha e Turquia, já chegaram a esse estado; outros para lá caminham; mas não é motivo para nos preocuparmos, pois que o público tem sucessivamente aceitado sem grandes protestos reduções de quatro quintos no pagamento dos cupões nesses países. Estas engenhosas falências permitem equilibrar de um momento para o outro os orçamentos. As guerras, o socialismo, as lutas econômicas preparam-nos ainda muitos outros desastres e, na época de desagregação universal em que entrámos, devemos resignar-nos a viver o dia-a-dia, sem nos importarmos muito com o que venha a ser o dia de amanhã. 187
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«A partir desta época, a legislação seguiu o caminho que havíamos indicado. Medidas ditatoriais, rapidamente multiplicadas, têm continuamente tendido para a restrição das liberdades individuais, por duas formas, estabelecendo, anualmente e cada vez em maior número, regulamentos que impõem aos cidadãos restrições em coisas em que antes os seus actos eram completamente livres, forçando-os a praticarem actos que antes tinham plena liberdade de praticar ou não. Simultaneamente, exigências públicas, cada vez mais pesadas, sobretudo as exigências locais, restringiram-lhes mais as liberdades, diminuindo-lhes a quantidade de vantagens que a seu modo podiam fruir e aumentando-lhes a quantidade arrebatada para ser despendida conforme aos agentes públicos apeteça.» Esta progressiva restrição das liberdades manifesta-se para todos os países sob uma forma especial, que Herbert Spencer não indicou, mas que podemos exprimir da seguinte maneira: medidas legislativas criadas, todas em geral de carácter restritivo, trazem necessariamente o aumento do número, poder e acção dos funcionários encarregados da sua aplicação. Estes funcionários tendem assim progressivamente para serem os verdadeiros senhores dos países civilizados. O seu poder será tanto maior quanto é certo que, nas mudanças incessantes de poder, a casta administrativa é a única que escapa a essas mudanças, é a única que possui a irresponsabilidade, a impersonalidade e a perpetuidade. Ora, não há despotismos mais gravosos do que os que sob esta tríplice forma se apresentam. A incessante criação de leis e regulamentos restritivos, que vêm cercar com as mais bizantinas formalidades os menores actos da vida, tem como resultado fatal o apertar cada vez mais a esfera dentro da qual os cidadãos possam livremente mover-se. Vítimas da ilusão de que a igualdade e a liberdade se acham mais bem asseguradas pela multiplicação das leis, os povos aceitam todos os dias as mais pesadas peias. Mas não é impunemente que as aceitam. Habituados a suportar todos os jugos, acabam por procurá-los e chegam a perder toda a 188
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espontaneidade e toda a energia. Então não passam de vãs sombras, autômatos passivos, sem vontade, sem resistência, sem força. E então também o homem vê-se forçado a procurar fora de si a força que em si não encontra. Com as crescentes indiferença e incapacidade dos cidadãos, o papel dos governos aumentará ainda forçadamente. São eles que forçosamente hão-de ter o espírito de iniciativa, de empreendimento e conduta que os particulares não têm. Será necessário que os governos tudo empreendam, tudo dirijam, tudo protejam. O Estado será um deus omnipotente. Mas a experiência ensina-nos que o poder de tais deuses nunca é nem muito duradouro nem muito forte. A progressiva restrição de todas as liberdades em certos povos, não obstante a licença exterior, que lhes dá a ilusão da posse dessas liberdades, parece ser conseqüência da sua velhice tanto como a de qualquer regime. Constitui um dos sintomas precursores da fase de decadência a que nenhuma civilização até hoje pôde escapar. A avaliarmos pelas lições do passado e por sintomas que por toda a parte se manifestam, algumas das nossas civilizações modernas chegaram à fase da velhice extrema, que precede a decadência. Ao que parece, são fatais em todos os povos fases idênticas, pois que as vemos muitas vezes repetidas na História. E fácil indicar sumariamente estas fases da evolução geral das civilizações e com essa indicação terminaremos a obra. O rápido quadro que vamos apresentar projectará porventura alguma luz sobre as causas do actual poder das multidões. O que vemos, ao analisarmos nas suas grandes linhas a gênese da grandeza e decadência das civilizações que precederam a nossa? Na aurora dessas civilizações, há uma nuvem de homens de variadas origens, reunidos pelos acasos das imigrações, das invasões e das conquistas. Estes homens de diversos sangues, de crenças igualmente diversas, só têm como laço comum a lei meio reconhecida de um chefe. Nestas confusas aglomerações encontram-se no mais alto grau os caracteres psicológicos das 189
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multidões. Têm destas a momentânea coesão, os heroísmos, as fraquezas, os impulsos e as violências. Nada nelas é estável. São bárbaras. Depois o tempo acaba a sua obra. A identidade dos meios, a repetição dos cruzamentos, as necessidades de uma vida comum, actuam lentamente. A aglomeração de unidades dissemelhantes começa a fusionar-se e a formar uma raça, isto é, um agregado que possui caracteres e sentimentos comuns, que a hereditariedade vai fixando cada vez mais. A multidão fez-se povo e este povo vai ter a possibilidade de sair da barbaria. Todavia só dela sairá completamente quando, após longos esforços, depois de lutas incessantemente repetidas e inumeráveis tentativas, haja adquirido um ideal. A natureza deste ideal pouco importa; seja ele o culto de Roma, o poder de Atenas ou o triunfo de Alá, será o bastante para dar a todos os indivíduos da raça em via de formação uma unidade perfeita de sentimentos e pensamentos. Só então é que pode nascer uma civilização nova, com as suas instituições, crenças e artes. Arrastada pelo seu sonho, a raça adquirirá sucessivamente tudo o que dá brilho, força e grandeza. Em algumas horas será ainda, sem dúvida, multidão, mas então, por detrás dos caracteres móveis e mutáveis das multidões, encontrar-se-á o substracto sólido, a alma da raça, que estreitamente limita a extensão das oscilações de um povo e vai regularizar o acaso. Depois de haver exercido a sua acção criadora, o tempo começa, porém, a obra de destruição a que nada escapa, nem deuses, nem homens. Chegando a um certo nível de poder e complexidade, a civilização deixa de aumentar e, desde que isto se dá, está condenada a declinar. A hora da velhice está prestes a soar para ela. Esta hora inevitável é sempre marcada pelo enfraquecimento do ideal que sustentava a alma da raça. A proporção que este ideal empalidece, todos os edifícios religiosos, políticos ou sociais de que ele era o inspirador começam a abalar-se. 190
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Com a expansão progressiva do seu ideal, a raça perde cada vez mais o que constituía a sua coesão, a sua unidade e a sua força. O indivíduo pode crescer em personalidade e em inteligência, mas também, ao mesmo tempo, o egoísmo colectivo da raça é substituído por um desenvolvimento excessivo do egoísmo individual acompanhado pelo rebaixamento de carácter e pela diminuição de aptidões para a acção. O que até então formava um povo, uma unidade, um bloco, acaba por fazer-se uma aglomeração de individualidades sem coesão, que ainda mantêm artificialmente durante algum tempo as tradições e as instituições. É então que, divididos pelos seus interesses e aspirações, não sabendo já governar-se, os homens exigem uma direcção para os actos mais insignificantes e o Estado exerce a sua absorvente acção. Com a perda definitiva do antigo ideal, a raça acaba por perder completamente a alma; esta já não é mais do que uma nuvem de indivíduos isolados e transforma-se no que foi o seu ponto de partida: uma multidão. Tendo desta todos os caracteres sem consistência e sem futuro. A civilização deixa de ter fixidez e fica à mercê de todos os acasos. A plebe é senhora e os bárbaros avançam. A civilização poderá então parecer ainda brilhante, porque possui a fachada exterior construída por um longo passado, mas, na realidade, é um edifício arruinado que já não tem amparos e se desmoronará à mais leve tempestade. Passar da barbaria para a civilização, prosseguindo um sonho, depois declinar e morrer, fogo que esse sonho perdeu a força, tal é o ciclo da vida de um povo.
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