Português em Contato 9783964563002

Descrição dos contextos nos quais o português está (ou esteve) em contato com outras línguas.

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Portuguese Pages 390 [398] Year 2009

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Table of contents :
Sumário
Agradecimentos
Introdução
ÁFRICA
Os primeiros contatos afro-portugueses: implicares para a expansáo da língua
Assimetrias da mudança linguística em situação de contacto de línguas: o caso do portugusês das línguas bantu em Moçambique
O Portugués e o crioulo na Guiné-Bissau
As formas divergentes em cabo-verdiano santiaguense
Liliana Invernó: A transiçáo de Angola para o português vernáculo: estudo morfossintáctico do sintagma nominal
AMÉRICA
Marcadores de plural no português brasileiro e no crioulo cabo-verdiano
Sobre as origens estruturais do português brasileiro: o garimpo continua
Português xinguano: origem e trajetória
Aquisiçáo do subsistema de preposigdes no português em contato no Xingu
Itinerários lingüísticos de africanos e seus descendentes no Brasil do século XIX
Estudo comparativo do bilingüismo em duas áreas de colonização alemã
Políticas lingüísticas e bilingüismo na educaçâo de surdos brasileiros
Bilingüismo sem diglosia: O português e o espanhol no norte do Uruguai no século XIX
O portugués da fronteira Uruguai-Brasil
ASIA
O Portugués em Macau: Contato e assimilagao
EUROPA
A Realidade sociolinguística galega. "Recuperando " e prestigio lingüístico
O labirinto ortográfico galego: das propostas de padronizaqáo aos usos públicos quotidianos
Urna análise dos "principios " e "esixencias " a fundarem as normas ortográficas e morfolóxicas do idioma galego
Autores
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Português em Contato
 9783964563002

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Ana M. Carvalho (org.) Portugués em Contato

Lingüística luso-brasileira Editada por: Clarinda de Azevedo Maia (Coimbra) Rosa Virginia Mattos e Silva (Salvador) Wolf Dietrich (Münster) Volker Noll (Münster) Vol. 2

Ana M. Carvalho (org.)

Portugués em Contato

Iberoamericana Vervuert

2009

© Iberoamericana 2009 Amor de Dios, 1 E-28014 Madrid [email protected] www.ibero-americana.net © Vervuert Verlag 2009 Elisabethenstr. 3-9 D-60594 Frankfurt am Main [email protected] www.ibero-americana.net

ISBN 978-84-8489-410-0 (Iberoamericana) ISBN 978-3-86527-433-5 (Vervuert) Deposito legal: B-30.925-2009 Diseño de la cubierta: Michael Ackermann Ilustración de la cubierta: Ina Nakao Este libro está impreso integramente en papel ecológico sin cloro Impreso en España

Sumário Ana M. Carvalho: Introdugäo AFRICA John Lipski: Osprimeiros contatos afro-portugueses: implicaqoes para a expansáo da língua

11

Perpétua Gonijalves e Feliciano Chimbutane: Assimetrias da mudanga lingüística em situando de contacto de línguas: o caso do portugués e das línguas bantu em Mozambique

31

Hildo Honorio do Couto: O Portugués e o crioulo na Guiné-Bissau

53

Nicolás Quint: As formas divergentes em cabo-verdiano santiaguense

67

Liliana Invernó: A transiqáo de Angola para o portugués vernáculo: estudo morfossintáctico do sintagma nominal

87

AMERICA Fernanda Ferreira: Marcadores de plural no portugués brasileiro e no crioulo cabo-verdiano

107

María Marta Pereira Scherre e Anthony Julius Naro: Sobre as origens estruturais do portugués brasileiro - o garimpo continua

131

Charlotte Emmerich e Maria da Conceigao de Paiva: Portugués xinguano: origem e trajetória

153

Christina Abreu Gomes: Aquisigäo do subsistema de preposigdes no portugués em contato no Xingu

165

Tánia Alkmim: Itinerarios lingüísticos de africanos e seus descendentes no Brasil do século XIX

177

Paulino Vandresen: Estudo comparativo do bilingüismo em duas áreas de colonizaqäo alema

199

VI

Ronice Müller de Quadros: Políticas lingüísticas e bilingüismo na educaqäo de surdos brasileiros

215

Magdalena Coli: Bilingüismo sem diglosia: O portugués e o espanhol no norte do Uruguai no sáculo XIX

237

Virginia Andrea Garrido Meirelles: O portugués da fronteira Uruguai-Brasil

257

ASIA Alan N. Baxter: O Portugués em Macau: Contato e assimilagao

277

EUROPA Luzia Domínguez: A Realidade sociolinguística galega. "Recuperando " e prestigio lingüístico

313

Mário J. Herrero Valeiro: O labirinto ortográfico galego: das propostas de padronizaqáo aos usos públicos quotidianos

337

Antonio Gil Hernández: Urna análise dos "principios " e "esixencias " a fundarem as normas ortográficas e morfolóxicas do idioma galego

359

AUTORES

385

VII

Agradecimentos Gostaria de expressar minha gratidáo a Kerstin Houba da Vervuert/Tberoamericana, por ter acreditado na idéia deste livro, e a Volker Noll, co-editor da serie Lingüística Luso-Brasileira, por sua minuciosa orientaíao durante a sua edi?ao final. Urna licenfa sabática da Universidade do Arizona em 2006 permitiu que o projeto fosse levado a cabo. Agrade?o a todos os autores deste livro pelas revisóes nos seus textos e pelo trabalho desenvolvido como pareceristas, e a Celso Alvarez-Cáccamo (Universidade da Corunha), Hildo Couto (Universidade de Brasilia) e Marta Scherre (Universidade de Brasilia) pela indica9áo de pesquisadores atuando em áreas relevantes ao assunto da coletánea. Estou extremamente grata a Elise DuBord (Drew University), por sua meticulosa colaborado na formata9áo do livro e edi?áo de textos, a Malcolm Compitello (University of Arizona), por seu constante apoio, e a Ainsley Lloyd, por seu indispensável auxilio nos últimos retoques. O livro é dedicado a Guto, Mia, Lui, Henrique e Léa (in memoríam), todos falantes de portugués em contato.

Ana Maria Carvalho

Introduco

Portugués em contato é o segundo volume da sèrie Lingüística LusoBrasileira l a c a d a pela Editora Vervuert/Iberoamericana. Esta sèrie tem por principio "fomentar urna visào da diversidade na unidade da Lingua Portuguesa" segundo afirmam os editores no primeiro volume, O portugués do Brasil: Perspectivas da pesquisa atual (Dietrich/Noll 2004: 7). Ambos os volumes tèm em comum o tratamento de questoes relacionadas à lingua portuguesa. Enquanto o primeiro se dedica ao portugués do Brasil, este apresenta discussòes relacionadas a situa?5es onde o portugués se encontra em contato com outras línguas em oito países espalhados por quatro continentes. O portugués, sexto idioma mais falado no mundo (Crystal 1997: 289), é usado por mais de 200 milhòes de pessoas muitas vezes em contextos bilingües ou multilíngües. No entanto, nào havia urna coletánea que se dedicasse ao estudo desse idioma em contextos de contato de línguas, ao contràrio do espanhol, que conta com urna longa lista de publicares desse tipo (entre elas, Fishman/Cooper/Ma Newman 1971, Amastae/Elías-Olivares 1982, Barkin/Brandt 1982, Elias-Olivares 1983, Elias-Olivares/Leone/Cisneros/ Gutiérrez 1985, Ornstein-Galicia/Green/Bixler-Marquez 1988, Wherrit/García 1989, Bergen 1990, Coulmas 1990, Lope-Blanch 1990, Klee/Ramos-García 1991, Siguan 1993, Roca/Lipski 1993, Silva-Corvalán 1995, Roca/Jensen 1996, Blas Arroyo 1999, Roca 2000, Zimmermann/Granda 2004, Ortiz López/Lacorte 2005). Portugués em Contato tem como objetivo principal preencher essa lacuna editorial. Esta coletánea reúne estudos de dezoito pesquisadores que trabalham em quatro continentes distintos com diversos aspectos do portugués em contato com outras línguas.1 Após urna chamada de trabalhos e alguns contatos individuáis, os textos recebidos foram submetidos a irai processo de selenio e revisào por mim e por pareceristas anónimos também autores neste livro. A revisào de trabalhos pelos colaboradores permitiu referéncias intertextuais que destacam paralelos entre os diferentes contextos, trazendo coesào ao volume.

A ortografía da nacionalidade ou preferencia dos autores foi raantida, e portanto há artigos que seguem normas ortográficas divergentes.

2

Ana M. Carvalho

1 O portugués no mundo Desde a conquista de Ceuta, que em 1415 marcou o inicio da expansào marítima do reino de Portugal, a lingua portuguesa tem se difundido multiplicando-se, assim, seus usuários. Em 1141 os portugueses chegam à costa africana e em 1487 dobram o Cabo da Boa Esperaba, estabelecendo a conexào entre o oceano Atlàntico e índico, e abrindo o caminho em direzào à India. A expansào continua no século XVI, que se inicia com a chegada ao Brasil em 1500, e se estende à China e ao Timor em 1514. Estabelecida em cinco continentes já no século XVI, a lingua portuguesa continua a expandir-se e chega à atualidade através de contextos diversos como lingua majoritária e minoritária, do colonizador e do colonizado, nos centros e nas fronteiras, idioma de quem imigra e de quem recebe. Como lingua majoritária e oficial, o portugués é falado em 8 países representados pela CPLP (Comunidade dos Países de Lingua Portuguesa), criada em 1996 pelos chefes de estado de Angola, Brasil, Cabo Verde, GuinéBissau, Mozambique, Portugal, Sào Tomé e Principe e Timor Leste. Nos países africanos de expressào portuguesa, o portugués coexiste com vários idiomas nativos e crioulos de base portuguesa. Falado na maioria dos casos como segunda lingua em contextos de elevada diversidade lingüística,2 o portugués tem exercido o papel unificador de lingua franca entre as etnias intra-nacionais desde a independencia quando "a lingua companheira do impèrio transformou-se em camarada de revoluto" (Mateus 1995: 11). Em Angola, estima-se que o portugués seja falado por menos de 20% da populado, sobretodo pela elite e por jovens nos centros urbanos, enquanto que o restante 80% é monolíngüe, bilingüe, ou multilíngüe em línguas locáis, apresentando diferentes níveis de competéncia em portugués (Inverno, neste volume). Em Mozambique, o portugués coexiste com mais de 20 línguas bantu, é falado por 39% da populado, sendo que somente 6% da popula dioso, senhor > sioro, vós > boso, etc.; e existem casos da simplifica9ào de A/ > [y]/[z]: mulher > mujere, etc. (2) Nos primeiros textos emprega-se o pronome (a) mim como sujeito gramatical; este tra?o desaparece nos textos afro-hispánicos no século XVI mas persiste em Portugal pelo menos até o século XVIII: Fernam de Silveira [texto 1]: a min rrey de negro estar Serra Lyoa, lonje muyto terra onde viver nos Gil Vicente, O clérigo de Beyra [texto 3]: A mi abre oio e ve Antonio Ribeiro Chiado, Auto das regateiras [texto 6]: A mim frugá, boso matá Anón."O preto, e o bugio [...]" [texto 13]: Mim agola sem trabaiá nom pore conté, ainda que mim ter abominaron a captiveiro cruere de blanco

(3) Nos primeiros textos emprega-se o infinitivo (as vezes sem /r/ final) como verbo invariável em vez das formas conjugadas. A partir do século XVI é mais frequente a terceira pessoa do singular como verbo invariável. A forma bai/vai substitui o verbo ir. Fernam de Silveira [texto 1]: Querer a mym logo ver-vos como vay Gil Vicente, Fragoa d'amor [texto 4]: Mi bem la de Tordesilha Antonio Ribeiro Chiado, Auto das regateiras [texto 6]: A mim frugá, boso matá

(4) A partir do fim do século XVI aparece o verbo copulativo híbrido sa/sñ, que combina as funfòes de ser e estar: Gil Vicente, O clérigo de Beyra [texto 3]: Ja a mi forro, ñama sa cativo

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John M. Lipski Sebastiao Pires, Auto da bella menina [texto 8]: Eu sa negro de bosso yrmSo que onte de Brasil chegou [...] Anon. Auto de Vicente Anes Joeira [texto 9]: esse home sa mofina Anon. Dum poema anònimo do século XVII [texto 11]: Isso s a j a prohibida

(5) Os primeiros textos afro-portugueses oferecem casos dos pronomes de sujeito empregados como complemento direto, fenómeno que persiste até hoje na linguagem popular brasileira e angolana: Gil Vicente, O clérigo de Beyra [texto 3]: Pois mi ha d'andar buscando, a levare elle na bico António Chiado, Pratica de oito figuras

[texto 7]: Nunca voso crupa elle

(6) Na maioria das línguas da África ocidental a ordem preferível de palavras é S-V-O. Na familia mande (as línguas mende, mandinga, vai, kpelle, bambara, etc.) a ordem principal é S-O-V. Este grupo de línguas figurava entre os primeiros contatos luso-africanos (aparece freqüentemente o nome mandinga) e em alguns textos observamos a ordem ObjetoVerbo: Henrique da Mota [texto 2]: [...] Vos loguo todos chamar [...] vos pipa nunca tapar, vos a mym quero pinguar [...]

(7) Na morfossintaxe vemos os primeiros casos de elisào de /s/ final de palavra somente no sufixo -mos da primeira pessoa do plural (Lipski): Gil Vicente, O clérigo de Beyra [texto 3]: nam temo comere ni migaia [...] nao vamo paraíso Anon. "Sa qui turo" [texto 10]: ha cantamo y bayamo que fosso ficamo

(8) A partir do século XVII vemos os primeiros casos - tanto em Portugal como na Espanha - da retenfào de /s/ do plural só no primeiro elemento dos sintagmas nomináis. Trata-se dos "plurais ñus" que ocorrem até hoje na linguagem popular do Brasil (por exemplo, o estudo de Alkimin (neste livro) e de Angola (Inverno, neste livro) mas poucas vezes em Portugal (Scherre/Naro, neste livro) e quase nunca em espanhol (com exce?ao do espanhol uruguaio fronteiriío, como nos mostra Carvalho 2006). Também existem plurais ñus em algumas variedades afro-hispánicas, por exemplo, em Chota de Ecuador (Lipski 1986), Chocó de Colombia (Caicedo 1992; Schwegler 1991) e entre os falantes de origem africana nos "Yungas" de Bolivia (Lipski 2006a, 2006b, 2007).1 Os primeiros exemplos literários sào:

Também ocorrem plurais ñus no espanhol "fronteriQo" no norte do Uruguai (Carvalho 2006).

Os primeiros contatos afro-portugueses

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Canfáo anónima "Sa qui turo"Anón, [texto 10]: Vamos a fazer huns fessa.' Carta do "Rei Angola" ao "Rei MinasAnon." [texto 12]: sabe vozo, que nossos festa sa Domingo, e que vozo hade vir fazer os forgamenta, ya vussé náo falta vussé cumpadra, que os may Zoana os fia dos may Maulicia, Dum poema anónimo do século 17Anon. [texto 11]: Pógi pra qui sá os bordño [...] Anón. "O preto, e o bugio [...]" [texto 13]: O trabaio a que vozo obliga ospleto, e os blanco, sá huns trabaio a que ninguem se pore negá sem melecé huns cóssa bom

Os plurais ñus náo resultam do contato de nenhuma lingua africana específica2 nem sao urna conseqüéncia natural da aprendizagem do portugués como segunda lingua, mas constituem urna autèntica inova?ào que evidentemente só ocorreu como resultado do contato entre o portugués e o espanhol com as línguas africanas. O plural nu combina a ausencia dos sufixos nomináis ñas línguas africanas e a indicado da pluralidade só urna vez no sintagma nominal. A configurado resultante respeita a morfologia do portugués acrescentando urna interpretado nova: o primeiro elemento dos plurais ñus é quase sempre um determinante, reinterpretado funcionalmente como prefixo de flexào.

4 Origem de (a) mim como pronome de sujeito O emprego do pronome tònico de complemento mim em vez do pronome de sujeito eu merece um comentário, pois ñas línguas ibero-románicas todos os pronomes de sujeito sao tónicos e podem ocorrer só, por exemplo, como resposta a urna pergunta. Isto nào ocorre, por exemplo, no francés: o pronome je é um clítico que nao pode aparecer isoladamente, já que é preciso empregar o pronome de complemento moi, que também aparece ñas línguas crioulas de base francesa. Além disso, em todos os crioulos de base afrolusitana - Cabo Verde, SSo Tomé, Príncipe, Annobom, Guiñé Bissau, o papiamentu e possivelmente o palenquero afro-colombiano (Schwegler 2002) - o pronome de sujeito da primeira pessoa singular deriva-se de mim (nos crioulos afro-portugueses o pronome reduz-se a urna consoante homorgànica à consoante seguinte). Por outra parte, ñas línguas crioulas de base portuguesa na Ásia (Diu, Damao, Korlai, Macau, Sri Lanka, Malacca, etc.) e possivelmente no crioulo hispano-filipino conhecido como chabacano (Lipski 1988), o pronome de sujeito respectivo deriva-se claramente de eu/yo. Existe, porNas línguas da familia bantú a pluralidade dos sintagmas nomináis expressa-se por meio de prefixos enquanto que ñas outras familias lingüísticas africanas os mecanismos morfológicos säo mais variados.

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John M. Lipski

tanto, uma contribuifào "afro" ainda pouco conhecida na selepào dos pronomes de sujeito. Nos textos que imitam a linguagem bogal produzidos em Espanha e Portugal (com exce^ào do misterioso texto "O preto, e o bugio ambos no mato discorrendo sobre a arte de ter dinheiro sem ir ao Brasil") desaparece o emprego de (a) mim corno sujeito até o final do século XVI. Num traballio anterior (Lipski 1991) sugerimos que o uso de (a) mim corno sujeito tem uma origem pelo menos dupla, fruto dos múltiplos contatos lingüísticos e culturáis no Mediterràneo desde os tempos medievais e na Africa ocidental a partir do século XV. Por uma parte, há urna contribuifào da misteriosa linguagem mediterránea conhecida como lingua franca ou sabir, documentada em várias regioes do Mediterráneo desde o século XVI até o fim do século XIX (Collier 1976, Lang 2000, Schuchardt 1909). Só existem imitares literarias e alguns comentários de viajantes, de maneira que nao temos uma idéia precisa da sua composÌ9ào. Aparentemente tratava-se duma linguagem transitoria dotada dum forte componente de elementos dialetais italianos. Conforme a sua localiza9ào geográfica, esta lingua franca também continha elementos espanhóis, franceses, turcos, gregos, etc. Todos os navegantes e exploradores dos países do Mediterráneo conheciam esta linguagem, que servia de modelo de comunica9ào básica com os povos "exóticos". Desde os primeiros momentos a lingua franca européia empregava os pronomes mi e ti como sujeito, em vez dos pronomes italianos io e tu: Mi follere canzon 'eu quero uma canino' (canción anónima 1581 em Collier 1976) mi saber como curar a fe de Dio 'por Deus que eu sei curar' (1612 em Haedo 1927: 106) Mi star Muftì; ti qui sar qui? 'eu sou Mufti, quèm és tu?' (Le bourgeois gentiihomme 1670 em Molière 1882: 130)

O uso de mi e ti na lingua franca nào provém do italiano florentino mas das línguas regionais dos impérios marítimos que dominavam o Mediterráneo naqueles tempos: Nápoles e Veneza. Nestas variedades italianas, os pronomes derivados do latim ego e tu tinham sofrido tanta erosào fonética que a partir do século XVI - justamente o momento em que a lingua franca come?a a circular plenamente - foram substituidos pelos pronomes disjuntivos mi e ti. Os navegantes europeus conheciam este novo paradigma e empregavam os mesmos pronomes quando falavam com pessoas de na?6es estrangeiras. O outro fator que contribuía ao emprego de (a) mim como sujeito nos crioulos afro-lusitanos mas nào nos crioulos portugueses na Ásia é a presen?a - puramente casual - numa ampia gama de línguas da África ocidental, de pronomes da primeira pessoa singular de forma (a) mi, (e) mí, etc. (às vezes com a variante ni): Twi, Ashanti, Fanti, Ga, Ewe e outras línguas da antiga Costa dos Escravos tem mi/me como pronome do sujeito; em Temne mi e a

Os primeiros contatos afro-portugueses

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variante acusativa do pronome. As variantes ni/ne ocorrem em Wolof, Bambara, Vai e Malinke. As línguas de Benim e Nigéria tem mi com variantes fortes emi/ami: Yoruba, Nupe, Igbo, Efik, Gbari, etc. As principáis línguas de Angola e do antigo Congo portugués tem ami/emi como pronomes fortes. Schuchardt (1882: 905-907) sugeriu que o pronome mi nos crioulos de Sao Tomé e Príncipe deriva-se dos pronomes semelhantes em várias línguas africanas, enquanto que Migeod (1911: 98-99) observa que "the first word that strikes the eye is the familiar "mi" [...] this familiar form of the first personal pronoun [...] exists in West African languages (the languages of black men), as it does also in Aryan languages (the languages of white men)" [a primeira palavra que chama a ateneo e o mi familiar ... esta forma familiar do pronome da primeira pessoa ... existe ñas línguas da África ocidental (as línguas dos pretos) e ñas línguas arianas (as línguas dos brancos)]. Os outros pronomes africanos sao muito diferentes duma lingua a outra e nao parecem com os pronomes portugueses. É fácil imaginar como os primeiros exploradores portugueses na costa da África ocidental empregavam o pronome mais semelhante ao uso das línguas africanas que encontravam. Na Ásia, nenhum pronome das línguas regionais tem a forma (a) mim e, portanto este pronome nunca se enraizou nos crioulos portugueses da Ásia.

5 Origem da cópula invariável sa/sá O verbo copulativo sa aparece nos crioulos do Golfo da Guiñé (Sao Tomé, Príncipe, Annobom). A variante nasalizada sa (com a variante arcaizante sao) também existe no crioulo de Macau, e existia urna variante nasalizada antiga em Annobom (Schuchardt 1888a: 196). No angolar o verbo homólogo é 8a, muito provavelmente urna simples transformado fonética de sa. Em trabalhos anteriores (Lipski 1999, 2002a, 2005) sugerimos que o verbo invariável sa/sá provém da confluéncia de dois fatores. Primeiro, o portugués medieval continha a forma samos (Williams 1962: 235-6), variante dialetal de somos (e a outra forma analógica sernos, existente também em espanhol). Em outras palavras, existia um paradigma "paralelo" dum verbo hipotético sar ou essar, talvez em rela?ao analógica com o verbo estar, que já adquiría funfoes copulativas na época medieval. O corpus de textos afroportugueses e afro-hispánicos dos séculos XV-XVII revela urna ampia variedade de variantes deste verbo analógico: sa, sa, sar, essar, samos, etc. Sabemos que os portugueses que tinham contatos lingüísticos com os africanos e os asiáticos nos séculos XV-XVII1 saiam principalmente das classes sociais inferiores e das áreas rurais de Portugal, onde abundavam as formas verbais analógicas e inovadoras.

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John M. Lipski

O outro fator que contribuía á formado da cópula sa/sá diz respeito ao paradigma do verbo ser antes do século XVI. A forma latina sedeo > sejo no portugués antigo foi substituida por um derivado da primeira pessoa singular de esse: sum > som ou so, com vogal nasal. A terceira pessoa do plural tinha seguido a evolu^áo normal: sunt > som > so, deixando como resultado urna identidade fonética entre as duas formas do verbo ser. A partir do século XV as vogais nasais [si] e [5] come?avam a sua ditongagáo em [ao] e a resultante confiisáo com o ditongo nasal [ao], resultado da combinado -anu do latim. As idénticas formas do verbo ser eram escritas indiscriminadamente como som, sam e sao e faziam rima com a antiga vogal nasal [5]. Estes dados oferecem um modelo para a realizado variável da cópula afro-ibérica como salsa e sao em diferentes lugares e em distintas épocas. Podemos postular que este verbo penetrou o pidgin afro-portugués na Costa do Ouro/Costa dos Escravos da Bahia de Benim, por exemplo, ao citar um documento escrito pelo sacerdote Joseph de Naxara, que morava em Aliada (Benim) em 1659-60 (Naxara 1672). Naxara descreve a fala pidginizante dum africano com a seguinte imitado: Nao me chegué á ela, porque sa Ramera [...] é meu Pai me votará á ó tronco, se sabe que mi falé co ela [...] é mais, que mi non quero chegar á ela, porque sa Ramera [...].

Da Bahia de Benim os verbos sa e sa teriam chegado a S3o Tomé e Príncipe e as comunidades africanas falantes do pidgin afro-portugués em Portugal. A cópula sa - ainda nasalizada - teria chegado a Macau na boca dos escravos pretos que povoavam todas as colonias portuguesas da Asia. No crioulo de Macau é freqüente a r e d u j o do ditongo -ao a [á]. A p r e s e r a de negros africanos em Macau durou trés séculos, ou seja, todo o período formativo dos crioulos de base portuguesa (Teixeira 1976). Como testemunho da intensidade dos contatos culturáis entre africanos e asiáticos, Amaro (1980) descreve alguns jogos da África Ocidental (e mesmo da Bahía de Benim) no folclore macaense. Eis um resumo da formado da cópula invariável sa/sa: • • • •



Realizado da primeira pessoa do singular e a terceira pessoa do plural de ser como [sa]/[sa3] no século XV. Confiisáo de ser e estar nos primeiros contatos lingüísticos afro-ibéricos; criado das formas híbridas (essar, sar, etc.). Existéncia de samos como variante dialetal de somos em Portugal. Interpretafáo das vogais e ditongos nasais como vogal nasal simples [a] ou vogal desnasalizada [a] pelos africanos na Bahia de Benim, S3o Tomé e Angola. Traslado da cópula as - parcialmente integrada ao pidgin afro-portugués - desde a Costa dos Escravos/Bahia de Benim a Sáo Tomé.

Os primeiros contatos afro-portugueses •

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Traslado da cópula salsa desde a Bahia de Benim (e possivelmente Sao Tomé) até Macau, provavelmente no século XVII.

6 O infinitivo invariável O emprego do infinitivo em vez dum verbo conjugado é urna característica de muitas imita?6es do bogal e de outros estrangeiros que aprendem o portugués e o espanhol. Isto é curioso porque a freqüéncia do infinitivo ñas línguas ibero-románicas é relativamente baixa frente às formas conjugadas, sobretudo a terceira pessoa singular. É evidente, portante que os falantes nativos do portugués simplificavam deliberadamente a sua linguagem quando falavam com os africanos, como reflexo duma t r a d i t o européia muito antiga (Lipski 2001, 2002b). Durante a época medieval as imita$oes dos estrangeiros - na Itália, Fran?a, Alemanha, Espanha e Portugal - empregavam o infinitivo em vez das formas conjugadas dos verbos. A lingua franca ou sabir do Mediterráneo - com base ñas variedades dialetais de Itália - também continha infinitivos sem flexáo: Anón., Italia (ca. 1353): come ti voler parlare? 'como tu queres falar?' Gigio Giancarli, La cingana (ca. 1550): mi no saber certa 'eu nüo sei com certeza' Diego de Haedo, Topografia e historia general de Argel (ca. 1612) mirar como mi estar barbero bono y saber curar, si estar malato y ahora correr bono 'olhe como eu sou barbeiro e sei curar, se está doente será curado' Francisco Manuel de Melo, Visita das fontes (ca. 1657): Quem pintar senhor cristao? Pintar cristao ou mouro? [...] Pois [...] bem parecer, porque, se pintar mouro, pór mouro a cavalo e mais de trinta Santiagos ao pé! 'Quem pintou o cristao? Pintou-o um cristao ou um mouro? Pois parece que ... se[...] se fosse pintado por um mouro, teria posto o mouro sobre um cavalo e mais de trinta Santiagos aos pés' Carlo Goldoni, L'impresario delle Smirne (1761): star omo, o star donna? 'é homem ou é mulher?' Dictionnaire de la langue franque ou petit mauresque (ca. 1830): Comme ti stari Mi star bonou, et ti? Mi star contento mirar per ti. 'Como estás? Eu estou bom, e tu? Fico muito contente de te conhecer'

Para muitos observadores esta lingua franca é a base para os crioulos "atlánticos" e a "lingua de reconhecimento" que servia de modelo para a formafáo dos crioulos portugueses. É evidente que a op9ào do infinitivo na lingua franca mediterrànea nào é urna conseqüéncia natural da gramática do italiano mas de urna selefào deliberada pelos "inventores" origináis do sabir. Schuchardt (1909: 444) e Coates (1971: 71-72) argumentam que a sele9ào do infinitivo

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John M. Lipski

na língua franca representa urna selefáo deliberada a nao aprendizagem natural das línguas romances. O infinitivo também figurava ñas imitares dos soldados mercenários alemaes ou todesche na Itália medieval (Migliorini 1966: 331): Noi trincare un flasche plene "bebemos um frasco cheio" Mi non biver oter vin "eu nío bebo outro vinho"

As variedades pidginizantes do alemao além da linguagem infantil empregam o infinitivo sem flexao, oferecendo um modelo para o infinitivo ñas variedades reduzidas do portugués. As imitafoes literarias do "mouro" em Portugal e Espanha também empregavam o infinitivo invariável (Sloman 1949): Gil Vicente, Cortes de Júpiter (ca. 1520): Mi no xaber que exto extar, mi no xabe r que exto xer, mi no xaber onde andar. Farsa del sacramento llamada le los lenguajes (anón, século XVI): Mi xonior, no estar cristiano Xenpre yo estar ben creado, mi no hurtar, ni matar, ni hazer otro becado Lope de Rueda, Armelina: ¿Qué te parexer, xeñor honrado? ¿Tenería todo ben entendido? Luis de Góngora (1615): o estrelias mentir, o estar Califa vos, chequetilio.

Os franceses também conheciam o estereotipo do estrangeiro que falava só com infinitivos. Por exemplo, numa fábula medieval francesa Román de Reynart uns animais que só falam inglés (a língua dos animais selvagens na opiniao dos franceses) dizem em um francés pidginizado (Combarieu du Gres/Subrenat 1981: 348-9): No saver point ton reson diré "nao sei falar a tua língua". Emprega-se o infinitivo invariável ainda hoje nos pidgins de base italiana (Eritrea, Somalia), espanhola (Ilhas Filipinas), francesa (Costa do Marfim) e portuguesa (Angola); Schuchardt (1888b: 251-252) descreve o portugués pidginizante falado em Angola no século XIX, sobretudo a tendéncia de empregar a terceira pessoa do singular como verbo invariável: eu vae, eu está, etc. Na língua portuguesa o infinitivo invariável nao é um componente freqüente da linguagem infantil, a diferen^a do francés e das línguas germánicas, mas aparece na língua dos adultos como resultado de vários impedimentos lingüísticos e cognitivos conhecidos coletivamente como impedimento lingüístico seletivo (Lipski 2002b). Este impedimento nSo afeta as demais capacidades cognitivas, mas na opiniao popular as pessoas que sofrem da doen9a compartilham os mesmos traaos lingüísticos que as crian?as com deficiéncias mentáis. Visto que o infinitivo invariável figurava ñas variedades lingüísticas consideradas como "infantis" ou "defeituosas", era lógica a inserfao do infinitivo na "fala de estrangeiro" ou linguagem deliberadamente reduzida a um nivel considerado como infantil pelos portugueses para a co-

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munica?ào com os escravos e os indígenas das térras africanas e asiáticas. A existència prèvia de perífrases verbais baseadas no infinitivo (por exemplo o infinitivo gerundivo como andar/estar a + I N F I N T I V O e as combinares estar por, estar pera) contribuía à formafào dum novo sistema verbal ñas línguas crioulas surgidas através dos contatos entre europeus e as ra9as politicamente subordinadas.

7 Ausencia da partícula ta e as primeiras mostras de estar (a) + infinitivo Os primeiros textos afro-portugueses também sao importantes devido à ausencia de configurares que posteriormente aparecem ñas línguas crioulas de base afro-portuguesa. Em particular nunca aparece a partícula pré-verbal ta em combina9ào com verbos invariáveis derivados do infinitivo, configura?ào típica das línguas crioulas. A partícula aspectual ta existe em todos os crioulos de base portuguesa e espanhola com excepao dos crioulos de Sao Tomé, Príncipe e Annobom, embora tenha valores semánticos muito diversos nestas línguas. A construido ta + V E R B O I N V A R I Á V E L (urna forma do verbo derivado quase sempre do infinitivo) faz pensar que a origem desta combina?ào é a perífrase progressiva estar a + I N F I N I T I V O do portugués europeu contemporáneo: estou a trabalhar, etc. (Lipski 1992). Naro (1978: 342) prop5e que a partícula ta formou-se no século XVI no pidgin afro-lusitano conhecido como "linguagem de reconhecimento". Apesar destas afirma95es, os textos literários da fala de preto dos séculos XV-XVIII nào contém um só exemplo da combinado ta + I N F I N I T I V O , embora os crioulos indo-portugueses tenham sido formados no século XVI e os crioulos afro-lusitanos no comefo do século XVII. Os textos literários só apresentam verbos mal conjugados e muitos casos do infinitivo invariável. Na lingua portuguesa dos séculos XVI-XVII o verbo auxiliar estar ainda se combinava com o gerundio (está trabalhando) e às vezes com as preposi^òes pera (para) e por + I N F I N I T I V O . Era mais freqüente a combinafáo andar + I N F I N I T I V O mas o gerundio era a forma preferida pelo menos nos textos literários. A combinafào "moderna" do infinitivo gerundivo estar a + I N F I N I T I V O aparece pela primeira vez nos textos literários do século XIX, ao lado do gerundio tradicional. Apesar da auséncia notável do infinitivo gerundivo nos documentos literários anteriores ao século XIX, a linguagem popular favorecía o infinitivo gerundivo desde a época medieval. Por exemplo, no texto de A demanda do Santo Graal (Magne 1970: 81; fi. 117, cap. 352) encontramos: "Quando aquèles que estavam a ouvir éste conto entenderom que aquel era Erec, filho de rei Lac [...]". De Camoes temos: "[...] aonde entào estava vizitar a el Rey a Evora" (Lund 1980: 66). De Gil

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Vicente (Floresta de enganos): "Hi está elle a peneirar, e elle mesmo ha damassar, porque a negra he co marido". Nesta mesma obra um homem branco que pretende passar por mulher preta fala com a linguagem pidginizada da fala de preto e emprega só o infinitivo invariável e estar com o gerùndio: "Que cosa estar vos hablando?" Esta obra é duma importancia extraordinària pois revela que a combinafào estar a + INFINITIVO ainda nào formava parte do pidgin afro-lusitano estereotipado mas pertencia à linguagem "normal" dos brancos; os pretos bozais ainda preferiam os infinitivos invariáveis e os verbos conjugados na terceira pessoa do singular: a mí llama, etc. Maler (1972: 267) diz respeito aos diálogos ñas pe?as populares portuguesas no final do século XVIII: "Ao todo, vinte casos de infinitivo gerundivo sobre um total de exatamente 200 exemplos de construyes perifrásticas à base estar ou andar - se contei bem - quer dizer, nSo mais de 10% nesses materiais que devem ser olhados como uma amostra bem representativa do diálogo popular do final do século XVIII". Maler também afirma que "a construfào perifrástica com andar, em primeiro lugar, mas também com estar + a + INFINITIVO, comefa a penetrar, ainda que muito raramente, na lingua escrita do século XVI". Como dado de muita importáncia aparecem várias combinafSes de estar + INFINITIVO em alguns poemas anónimos dos primeiros anos do século XVII que imitam a fala de preto [texto 11]: pois toro estamo amorte a pediro [...] [...] os fia sempre está a fazero [...]

Estes poemas representam o único exemplo do infinitivo gerundivo atribuido ao pidgin portugués dos escravos pretos, e documentam a presen?a desta constru9ào na fala dos grupos marginais muito antes de ser aceita pela lingua literaria. Barbosa (1999) encontrou exemplos do infinitivo gerundivo em documentos oficias de Portugal e Brasil das últimas décadas do século XVIII, e adverte: Vale ressaltar que o registro do infinitivo gerundivo, apesar de raro, remonta à fase arcaica da lingua portuguesa [...]. Se a forma infinitivo gerundivo se generalizou na sociedade portuguesa de tal forma que, hoje, se apresenta como um dos contrastes mais contundentes da variante européia da lingua portuguesa face à brasileira, é provável que eia nao estivesse sofrendo restribes de ordem social [...]. O estigma de popular, portanto, nSo deveria estar sendo aplicado àquela época a essa variante. (Barbosa 1999: 227).

Como exemplo contemporáneo da erosào fonética que pode produzir a estrutura verbal ta + INFINITIVO nos crioulos de base portuguesa citamos o portugués dos musseques (bairros populares) de Angola, onde a primeira sí-

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laba de estar desaparece na linguagem vernácula. Eis alguns exemplos literarios: Mas tá passá gente perto (Viriato da Cruz, "Makèzu" em Ferreira 1976: 164165). O porícia tá viri (Rebello de Andrade, "Encosta a cabecinha e chora" em Andrade 1961). Dominga tá ver eles [...]. E Dominga num tá querér [...]. E Dominga num tá reparó nesses confusao todo [...]. Que vucé tá fazerl [...]. Ma Dominga tá ftcar co medo [...]. (Cochat Osório, "Aiué" em Andrade 1961). parece é tá dormir ainda (Vieira 1980). Também é preciso reconhecer que no portugués vernáculo do Brasil o gerundio às vezes perde a última sílaba numa erosào fonética extrema, deixando urna configura9ào semelhante ao infinitivo: falando >/alano > falá/fala. Isto fornece outra possibilidade para a combinafào verbal ta + INFINITIVO a partir do gerundio clàssico. Postulamos os seguintes fatores como explicafào da combinado ta + INFINITIVOS nos crioulos de base portuguesa: •





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O emprego do infinitivo invariável das línguas romances desde tempos medievais como representafáo da fala dos estrangeiros indesejáveis e inferiores e também como estratégia para falar com os estrangeiros e na lingua franca ou sabir do Mediterráneo. Emprego do infinitivo nao flexionado na linguagem infantil de muitas línguas romances e germánicas e também na linguagem das pessoas que sofrem dos impedimentos lingüísticos. A variante na lingua portuguesa - existente desde a época medieval estar a + INFINITIVO em vez do gerundio para as construyes progressivas. A tendencia ñas variedades pidginizantes do portugués de empregar a terceira pessoa do singular como verbo invariável. A preferéncia nos pidgins por urna sintaxe reduzida sem componente de flexào; a combinafào já existente estar (a) + INFINITIVO oferecia um modelo ideal para os falantes dos pidgins de base portuguesa visto que contém duas formas verbais sem flexào que podem se transformar num paradigma inovador. A erosào fonética do infinitivo, o gerùndio e o verbo estar praticada pelos aprendizes da lingua portuguesa na África, Ásia, América e mesmo em Portugal nos primeiros anos de contatos lingüísticos afro-lusitanos.

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8 Outros traaos dos (semi)crioulos que nao aparecem nos primeiros pidgins Nao encontramos nos textos afro-portugueses dos séculos XV-XIX exemplos da nega?ao dupla, combinazáo freqüente no vernáculo brasileiro e angolano, e também no portugués de Mozambique, Sao Tomé e Príncipe. No caso do Brasil, Angola e Golfo da Guiñé, é muito provável urna contribui?ao do kikongo, língua da familia bantu, que emprega a negapáo dupla da mesma forma que o portugués vernáculo destes países. A seguir apresento alguns exemplos africanos: Angola: Mas agora nao pode, nao. (Eduardo Teófilo, "Urna poga de água" em César 1969b: 466). Mozambique: Nao vai hoje, nao (Mendes 1981: 111). S3o Tomé e Príncipe: Só Silvino com ele nao brinca, nao! (Fernando Reis, "'Maiá" em César 1969a: 305-327).

No portugués vernáculo brasileiro e ás vezes em Angola, apresenta-se também a negafáo posposta: sei nao, tem nao, etc. Parece que esta configura