Palmares & Cucaú: o aprendizado da dominação

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Sumário

Abertura

capítulo

9

1

Ajustes . . . .

1. Lá e Cá 2. A Voz da Experiência

29 31

54

3. Homens de Palavra . .

. Velho Palmares (c.1642) ■3. "li Novo Palmáres (c.1645) PALMARES Mocambo Velho (1664) GRANDE 5 (1644-1&49» _

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S Legenda

mento do reino do Ndongo e a interferência portuguesa na política interna dos reinos africanos fizeram avançar a fronteira da escravização em direção ao sul do Kongo e além do rio Cuanza. Luanda tornou-se, então, o grande porto exportador de escravos. Entre 1650 e 1680 a área de escravização expandiu-se de novo, em direção ao vale do rio Cuango148. O Mapa 3 permite visualizar a totalidade dessas zonas de escravização, entre 1520 e 1680, tal como delimitada

por Joseph Miller. Nessa região, no século xvn, havia três maneiras básicas de se obter escra­

vos149. A primeira era enviar comerciantes às feiras de escravos nos reinos do Kongo e do Ndongo e nas regiões fronteiriças. Em Mpumbu (Lago Malebo, no rio Congo) havia uma das mais importantes feiras, e talvez dela tenha deri­ vado o nome dado aos comerciantes especializados nesse comércio, chamados pombeiros'ía. Os pumbos localizavam-se em geral nos entroncamentos das rotas comerciais, variando de importância conforme estivessem ligados ao comér­ cio regional ou atlântico e as mercadorias ali negociadas. Como bem lembra

Isabel Castro Henriques, as feiras não serviam apenas para o abastecimento do tráfico atlântico, mas destinavam-se também à comercialização de produtos para o consumo africano — incluindo-se aí os escravos destinados às sociedades africanas e ao trabalho nas propriedades portuguesas na África151. Aospumbos somaram-se os mercados nas cidades litorâneas e nos presídios, núcleos fortificados de residência dos portugueses no interior. Estabelecidos em pontos estratégicos em termos militares e comerciais, os presídios mar­ cavam ao mesmo tempo a penetração portuguesa pelo sertão e seu domínio

sobre as redes comerciais152. No século xvii, os principais presídios eram Massangano (construído em 1583), Muxima (1599), Cambambe (criado em 1604,

148. Joseph C. Miller, op. cit., 1988, pp. 141-144. 149. Beatrix Heintze inclui ainda os escravos doados como presentes ou recebidos como pagamento de dívidas, que deixamos de considerar aqui. Ver “O Comércio de ‘Peças’ em Angola. Sobre a Escravatura nos Primeiros Cem Anos da Ocupação Portuguesa”, em Angola nos Séculos xvi e xvn, 2007, pp. 491-495. 150. David Birmingham, The Portuguese Conquest ofAngola, 1965, p. 25. Sobre as feiras em Angola ver Rosa da Cruz e Silva, “As Feiras do Ndongo. A Outra Vertente do Comércio no Século xvn”, 1997 e Carlos Couto, “As Feiras: Sua Origem e Evolução”, 1972. 151. Isabel Castro Henriques, “A Rota dos Escravos. Angola e a Rede do Comércio Negreiro”, 1996,

P- 133152. Idetn, pp. 139-140.

200

CONJUNÇÕES

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Legenda

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Capital africana Cidade colonial Presídio Áreas de guerra, (1615-1660)

Mapa 3 — A África Central e as áreas de guerra e de ESCRAVIZAÇÃO NO SÉCULO XVII Fontes: Joseph C. Miller, Way ofDeath, 1988, p. 148; Linda M. Heywood ejohn K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, 2007, pp. 50 e 227-235.

próximo à feira do Ndongo), Ambaca (lón), Pungo Andongo (estabelecido

em 1671, depois da vitória sobre o reino do Ndongo) e Caconda (na região de

Benguela, em i682)‘53. Em segundo lugar, as guerras forneciam muitos prisioneiros. A depender do tipo de guerra, de quem havia comandado as investidas e de seus resulta­ dos, os prisioneiros pertenciam aos governadores portugueses ou aos sobas. Os governadores e os comandantes militares ficavam com alguns prisioneiros, descontavam o quinto da Coroa e distribuíam os restantes pelos soldados. Co­ merciantes particulares, negros e brancos, acompanhavam as expedições para comprar esses prisioneiros, gerando assim um tráfico específico, dependente das guerras'54. Certamente havia o risco de a mercadoria ser perdida com uma derrota portuguesa. Os números são às vezes extraordinários. Birmingham

informa, por exemplo, que a vitória das forças do Kongo, Ndongo e Matamba sobre os portugueses, na batalha de Ngoleme-a-Kitambu, em 1590, fez os

mercadores perderem o equivalente ao carregamento de 24 navios'55. O terceiro método de obtenção de escravos eram os tributos pagos pelos

reis e sobas, depois de conquistados pelos portugueses. Derrotados, os gover­ nantes centro-africanos eram transformados em vassalos dos portugueses. A

vassalagem era, ao mesmo tempo, uma relação econômica, política e militar. Oficializada por meio de cerimônias específicas (o undamento), impunha obri­ gações, como a assistência militar em caso de guerra e o pagamento de tribu­

tos e outros impostos, além da garantia do livre trânsito para o comércio'56. Ao se comprometerem a pagar tributos (em mercadorias e escravos), abrir os caminhos e feiras para os mercadores portugueses e os negociantes a eles liga­ dos, prestar ajuda militar e, em alguns casos, fornecer trabalhadores, os sobas avassalados passavam a contribuir para o fluxo de escravos para o mercado

atlântico. Uma relação desigual, que constituía um mecanismo fundamental

153. Idem, p. 140. Sobre a política de expansão territorial e a criação de presídios em Angola ver Mathieu Demaret, “Stratégie militaire et organisation territoriale dans la colonie d’Angola (xvf-xvn* siècles)", 2014. 154. Para uma visão geral dos nexos entre guerra e escravidão ver John. K. Thornton, op. cit., 2004, pp. 153-167. 155. David Birmingham, op. cit., 1695, p. 25.

156. Ver Beatrix Heintze, ‘ O Contrato de Vassalagem Afro-português em Angola no século xvn”, em Angola nos Séculos xviexvn, 2007, pp. 386-436.

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CONJUNÇÕES

do domínio português sobre a região que chamavam de Reino e Conquista de Angola157. É preciso, entretanto, mergulhar um pouco mais na história da coloniza­ ção portuguesa na região Congo-Angola para entender como essas três for­

mas de aquisição de escravos estavam entrelaçadas. O caminho exige alguma paciência, mas abre novas possibilidades para compreender o que se passou do lado de cá do Atlântico.

Quando os portugueses chegaram à foz do rio Congo, em 1483, o Kongo era um reino relativamente forte e estruturado em províncias (como Soyo, Mbamba, Bembe e Wandu) governadas por linhagens locais ou por chefes escolhidos pelo rei e dele dependentes158. A partir do final do século xv, a penetração portuguesa na região do Kongo consolidou-se com a conversão do mani Mvemba-a-Nzinga ao cristianismo, que se fez batizar com o nome de

Afonso 1. A capital (Mbanza Kongo) passou a se chamar São Salvador e a no­ breza conguesa, além de incorporar o cristianismo, adotou nomes e costumes portugueses, como vestir sedas e outros tecidos finos, como sinal de distinção e diferenciação social. A troca de cartas entre monarcas, a prática de enviar infantes congueses para estudar em Portugal, as missões evangelizadoras e as

embaixadas entre os dois reinos foram comuns no século xvi'5’. As armas e a religião portuguesas, bem como suas mercadorias, ajudaram a fortalecer o poder do rei do Kongo, assim como o comércio de escravos — principal interesse de Portugal na região. O desenvolvimento da cultura da

cana em São Tomé fomentou o tráfico já existente desde meados do século anterior em direção a Lisboa e outras cidades portuguesas. Por volta de 1530, o

número de escravos exportados do Kongo pelo porto de Mpinda somava entre

157. Os tributos não envolviam apenas o envio de escravos. Para uma análise detalhada do jogo de interesses na cobrança de tributos (legais e ilegais) em Angola, ver Beatrix Heintze, “Os Tributos dos Vassalos Angolanos no Século xvn”, em Angola nos Séculos xvie xvn, 2007, pp. 437-472. 158. Os principais trabalhos sobre o Kongo nos séculos xvi e xvn são: W. G. L. Randles, Lancien royautne du Congo des origines à la fitt du xix* siècle,2002 [1968]; John K. Thornton, The Kingdotn of Kongo, 1983; Anne Hilton, The Kingdotn ofKongo, 1985. Para um bom panorama em português ver Alberto da Costa e Silva, A Manilha e 0 Libatnbo, 2002, pp. 359-405. 159. Ver também Carlos Alberto Garcia, “A Acção dos Portugueses no Antigo Reino do Congo (1482-1543)”, 1968; Ilídio do Amaral, O Reino do Congo, os Mbundu (ou Ambundos), 0 Reino dos “Ngola” (ou de Angola) e a Presença Portuguesa, 1996, pp. 24-29; Adriano A. T. Parreira, The Kingdotn of Angola and Iberian Interference, 1483-1643, 1985, cap. 1.

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quatro e cinco mil cativos por ano'60. Nesse período, os escravos eram obtidos

por meio do pagamento de tributos, cuja arrecadação era mediada pelo rei do Kongo, e das guerras para manter o controle sobre os sobas locais que, por sua

vez, ocorriam na região dos ambundos, ao sul, entre os rios Dande e Cuanza'6'. Tanto o rei de Portugal como o do Kongo insistiam que todos os escravos deviam ser exportados a partir do porto de Mpinda'62.

Quando da chegada dos portugueses, o Ndongo era um pequeno reino, tributário do rei do Kongo'63. Como o rei do Ndongo tinha o título de ngola, os portugueses chamaram a região de Angola. A baía de Luanda oferecia boas

condições para a ancoragem dos navios e o interesse na obtenção de escravos foi aos poucos promovendo incursões diretas contra o Ndongo. A região li­

torânea de Angola passou a ser frequentada por comerciantes que queriam escapar ao controle de Portugal e do Kongo, especialmente por aqueles que comerciavam com a ilha de São Tome, onde havia uma produção açucareira significativa e, portanto, uma demanda crescente por escravos'64.

A primeira expedição oficial em território angolano foi realizada em 1520, embora a conquista da região pelos portugueses só tenha se efetivado com as

expedições de Paulo Dias de Novais, em 1560 e 1575. Ao avançar em direção ao sul do reino do Kongo no final do século xvi, os portugueses imaginavam encontrar minas de prata e evangelizar novos povos, contudo sabiam que a

grande riqueza adviria do fornecimento de escravos para as plantações de cana em São Tome e no Brasil e para as possessões espanholas na América'65. Em 1568 e 1574, o Kongo foi invadido por grupos imbangalas (chamados jagas pelos portugueses)'66, que chegaram a expulsar portugueses e congueses

160. David Birmingham, op. cit., 1965, p. 7. 161. Idetn, ibidetn. O ambundos são o segundo maior grupo étnico centro-africano, concentrando-se na região entre os rios Cuanza e Bengo. 162. David Birmingham, op. cit., 1965, p. 9. 163. Para a história da formação do reino do Ndongo ver Virgílio Coelho, “Em Busca de Kabasa: Uma Tentativa de Explicacao da Estrutura Político-administrativa do Reino do Ndongo”, 1997. 164. Sobre o interesse português pela região de Angola, ver Ilídio do Amaral, O Reino do Congo, 1996, pp. 149-192 e Adriano A. T. Parreira, op. cit., 1985, cap. 2. 165. Sobre o período em que Angola foi governada por Paulo Dias de Novais, ver Ilídio do Amaral, O Consulado de Paulo Dias de Novais, 2000. Para um panorama geral sobre o avanço português em Angola ver Alberto C. Silva, op. cit., pp. 407-450 e Flávia Maria de Carvalho, Sobas e Homens do Rei, 2015. 166. Os diferentes grupos que adotavam o kilombo ou possuíam títulos kinguri eram genericamente

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da capital, São Salvador. A retomada do reino, em 1571-1574, ocorreu por for­ ça das armas portuguesas, aumentando o incentivo para a conquista da região ao sul, onde esperavam conseguir manter um domínio mais estável. Portugal concedeu as terras na região entre o sul do Kongo e o rio Cuanza a Paulo Dias

de Novais, para que ele, como governador vitalício, ali instalasse uma nova co­ lônia. Novais tentou estabelecer uma colonização branca na região de Angola,

enfrentando a concorrência dos comerciantes de São Tomé, que traficavam ilegalmente na área. Nessa época, o reino do Ndongo já havia se fortalecido, sobretudo a partir das relações que vinha mantendo com o tráfico atlântico. Era vassalo do reino do Kongo, mas tinha sua própria política em relação a Portugal e aos comerciantes que apareciam no litoral de Luanda, bem como com os reinos e sobados da região. O tráfico se desenvolveu com intensidade crescente na região de Angola,

sobretudo a partir de 1579, quando Novais investiu com suas tropas contra o Ndongo107. Ao contrário do que ocorria no Kongo, onde os portugueses combatiam grupos dissidentes com o apoio dos poderes locais, em Angola os

portugueses lutavam ao mesmo tempo contra o Ndongo e os imbangalas, em especial na região de Kasanje'68. As posições portuguesas dependiam das guer­ ras de conquista: eram elas que permeavam as relações com os reinos e sobas

locais, que permitiam o controle sobre as redes comerciais e forneciam lucros por meio da cobrança de impostos e do próprio comércio de escravos e marfim (os principais produtos). Elas constituíam, também, as formas mais rápidas de

enriquecimento, pois ofereciam ocasiões propícias para o comércio particular

e para o roubo. A tensão entre defender e controlar as redes comerciais ou guerrear envolvia não apenas os interesses da Coroa, como incluía ainda aque­

les dos governadores, dos agentes do tráfico e dos próprios sobas. Com a união das coroas em 1580, a morte de Dias Novais em 1589 e a der­ rota fragorosa em Ngoleme, em 1590, a coroa espanhola avaliou a situação e

tentou alterar sua política, para reconquistar Angola, promover mais uma vez

chamados de “jagas” pelos portugueses. Adriano Parreira, Economia e Sociedade em Angola, 1990, p. 159. Sobre as invasões dos imbangalas ver, entre outros, Joseph C. Miller, “Requiem for thejaga”, 1973 ejohn K. Thornton, “A Resurrection for thejaga”, 1978. 167. David Birmingham, op. cit., 1965, p. 13. 168. Idem, p. 19.

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a colonização e investir na busca de minas de prata e na agricultura169. Ao invés

de contar com os particulares, que se assenhoreavam dos sobados conquistados, e com o apoio dos jesuítas — como na época de Novais —, a Coroa chamou para si a relação com os sobas locais. Até 1605, essas mudanças acompanharam as tentativas, afinal frustradas, de controlar as minas de sal de Kisama e de achar

minas de prata em Cambambe. As excursões a Kisama e a Cambambe foram acompanhadas por novas guerras, que geravam escravos, mas não o domínio almejado sobre o território. A partir de 1605 ficou claro que o tráfico, e não as minas, era a base da prosperidade dos portugueses170. O domínio sobre es­ sas terras e seus habitantes devia articular-se de forma a poder garantir que o

abastecimento dos navios com escravos se desenvolvesse conforme os interes­ ses de todos. As guerras tornaram-se então parte importante do processo de

conquista e colonização dessa região. Havia vários tipos de guerras, movidas por diversos motivos. No perío­ do entre 1607 e 1660 elas derivaram, sobretudo, da crise dinástica do reino do

Kongo e das tensões entre os portugueses e o reino do Ndongo, constituindo a

principal fonte dos escravos traficados. Como bem observam Linda Heywood ejohn Thornton, essas não eram guerras “étnicas”, mas políticas, originadas da diferença de interesses entre portugueses e grupos políticos diversos nos reinos do Kongo e na área dos ambundos. De um lado, os portugueses queriam obter escravos para enviá-los para o Brasil e para a América espanhola (e assim cumprir

o asiento). No reino do Ndongo, as linhagens lutavam pelo controle do poder e usavam ora os portugueses, ora os imbangalas para fortalecer sua posição. A luta

entre os que queriam as alianças ou manter a independência levou à escravização de muitos ambundos, bem como de habitantes do Kongo ou de suas províncias, que se aliaram algumas vezes ao Ndongo contra os portugueses. No caso do

reino do Kongo, as questões dinásticas levavam a guerras entre os postulantes ao trono, que realizavam afianças com grupos políticos africanos ou com os

portugueses, e terminavam por escravizar também alguns habitantes do Kongo.

A intensidade e a frequência das guerras podem sugerir que elas eram feitas a esmo, conforme os desígnios e interesses mais imediatos. Ao contrário. Para

os portugueses, havia limites impostos pela Coroa e as investidas só podiam

169. David Birmingham, Tradeand Conflicl in Angola, 1966, esp. pp. 51-63. 170. David Birmingham, op. cil., 1965, p. 24.

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CONJUNÇÕES

1

ser realizadas depois de declaradas justas pelo voto de uma Junta composta pelo bispo, pelo ouvidor-geral, pelo provedor da Fazenda e pelos ministros. Apesar dessas regras, muitos governadores ordenaram guerras sem aprovação prévia. Mesmo as guerras justas davam margem a várias apropriações privadas, consideradas ilegais.

Para os chefes centro-africanos as guerras podiam significar a possibilidade de aumentar o domínio sobre terras e gente, com desdobramentos imediatos em termos do fortalecimento de seu poder em relação a grupos rivais, por exemplo. Elas geravam prisioneiros que se transformavam em escravos des­ tinados ao cultivo dos campos, a engrossar os exércitos, ao pagamento dos tributos, ou a serem vendidos diretamente para o mercado atlântico. Mas re­ presentavam também um risco, pois a derrota podia significar exatamente o

contrário... Linda Heywood e John Thornton realizaram um detalhado estudo das

guerras empreendidas entre 1607 e 1660, conseguindo determinar os lugares em que ocorreram, quem era escravizado e quem os escravizava17'. As áreas

cinzas no Mapa 3 mostram a somatória das áreas abrangidas por esses conflitos, confirmando sua convergência geográfica com as fronteiras da escravização

definidas por Joseph Miller. Vale a pena acompanhar esses autores para ob­ servar em pormenor como guerras e tráfico estavam entrelaçados. O Mapa 3

também traz a localização das áreas mencionadas. Depois das guerras em Kisama, na virada do século xvi para o xvn, a Coroa tentou estabelecer a paz com os sobas, impulsionar a agricultura e fixar os por­

tugueses em pontos específicos, a fim de evitar as guerras privadas para captu­ rar escravos e manter o controle sobre o comércio de produtos e escravos. Nos primeiros anos do século xvn, os escravos comerciados em Luanda vinham de

zonas mais longínquas situadas a leste e ao sul; em alguns anos, chegavam a dez ou treze mil os embarcados de Angola'77. A opção pelo comércio “pacífi­

co”, no entanto, foi logo deixada de lado. A recalcitrância dos sobas, que mui171. Linda M. Heywood e John K. Thornton, op. cit., esp. cap. 3. Observo, entretanto, que este estu­ do não trata dos escravos enviados para o Brasil, mas daqueles que foram levados para as colônias inglesas e holandesas nas Américas. Contudo, os processos de escravização na África Central eram

os mesmos, essencialmente controlados pelos portugueses. Para outras descrições dessas guerras, ver David Birmingham, op. cit., 1966, caps. 5 e 6 e Beatrix Heintze, op. cit., 1984, esp. pp. 15-55 (para uma análise centrada no reino do Ndongo e referente ao período entre 1611-1630). 172. Linda M. Heywood e John K. Thornton, op. cit., pp. no e 113.

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tas vezes escapavam do domínio português ou se negavam a abrir as rotas para o tráfico ou dele participar, a demanda por escravos, a necessidade de assegurar o controle sobre as rotas comerciais, os interesses pessoais dos comerciantes privados e dos funcionários coloniais, substituídos a cada três anos e ávidos por enriquecer de pronto, levaram a repetidas campanhas de “punição”173. Nessa fase das guerras, os portugueses aliaram-se aos imbangalas, usando-os como nos ataques aos sobas que se insurgiam contra o domínio português ou bloqueavam as rotas comerciais, ao longo dos rios Lucala e Cuanza. Ben­ to Banha Cardoso, que governou Angola entre 1611 e 1615, ao terminar seu mandato, vangloriava-se de ter submetido mais de oitenta sobas dos reinos vi­ zinhos, trazendo-os para o domínio português e exigindo que pagassem os tri­ butos em escravos e permitissem o funcionamento dos mercados fornecedores

de cativos nas terras anexadas174. Seus sucessores guerrearam tanto ao norte de Angola, na região dos Ndembos, entre o Ndongo e o Kongo, como ao sul, em Benguela. A tentativa de estabelecer um domínio mais efetivo em Benguela fracassou em 1617 e essa região tornou-se apenas um entreposto para o comér­ cio local, não um porto de abastecimento para o tráfico atlântico (como viria a ser mais tarde, depois do final do século)173. Durante o governo de Luís Mendes de Vasconcelos (1617-1621), o Ndon­ go foi atacado massivamente por tropas portuguesas e imbangalas, que ex­

ploraram suas rivalidades internas. Ao final de seu mandato, o governador orgulhava-se de ter submetido cerca de 110 sobas, incluindo antigas famílias do Ndongo, transformando-os em vassalos de Portugal pagantes de tributos176. As tropas portuguesas e imbangalas atacaram territórios dominados pelo rei­

no do Kongo próximas de Luanda, incluindo Kasanze, Sonsa e pontos de travessia do rio Bengo. Em meio a esses confrontos, nem sempre os imbangalas se aliavam aos por­

tugueses: realizavam ataques por conta própria ou se juntavam a facções con­ trárias a eles. E, claro, faziam prisioneiros, vendidos aos milhares para o tráfico atlântico. Havia ainda colonos que se aproveitavam para realizar expedições particulares ou simples pilhagens, a fim de angariar escravos que acabavam 173. Beatrix Heintze, op. cit., 1984, p. 13. 174. Linda M. Hcywood ejohn K. Tliornton, op. cit., p. 115. 175. Idein, p. 116. 176. Idem, p. 119.

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CONJUNÇÕES

enviados para o mesmo destino. Assim, as guerras e o caos delas decorrente faziam com que a zona de fornecimento de escravos fosse mais restrita do que aquela atingida pelas redes comerciais que funcionavam até por volta de 1611. A escravização, agora, ocorria nas áreas de guerra: no interior do reino do Ndongo e na região ao sul do reino do Kongo'77. Entre 1621 e 1641, o planalto do Ndongo e em seguida o vale do rio Cuango continuaram a ser o cenário de guerras destinadas a adquirir minas, terras e escravos, ou a submeter os sobas'13. Ngola Mbandi, rei do Ndongo, tentou negociar com os portugueses. As manobras políticas e diplomáticas envolveram Njinga, irmã mais velha do rei, sem sucesso'79. Houve momentos em que as feiras voltaram a funcionar, em regiões próximas a Mbwila e mais ao sul, na di­ reção do rio Zenza e do presídio de Ambaca, onde se comerciavam escravos vin­ dos das terras mais a leste. Após a morte de Ngola Mbandi, a oposição de Njinga à intervenção portuguesa na sucessão do Ndongo abriu novas oportunidades para a guerra, que envolveu facções, sobas e famílias não reinantes do Ndongo, com grupos de imbangalas lutando de vários lados, em batalhas na região de

Kabasa, Pungo Andongo, Kindonga e Tunda'80. Njinga venceu algumas delas, manipulou várias forças políticas e militares, aliou-se aos imbangalas, conseguiu estabelecer sua capital durante algum tempo nas ilhas de Kindonga e dali ata­ cou Matamba, onde finalmente estabeleceu sua própria capital, que ela muitas vezes chamava de kilombo, reforçando sua aliança com os imbangalas18'. Foi as­ sim que nasceu o reino de Matamba, que tanto trabalho deu aos portugueses. Durante todo esse período, o coração do reino do Ndongo continuou a ser uma das grandes fontes de escravos para o comércio em direção às Américas'82. Apenas no vale do Cuango, mais próximo de Luanda, o desenvolvimento de

uma administração e economia mais estáveis levou, aos poucos, à diminuição do caos e das guerras'83.

177. Idem, p. 123. 178. Idem, pp. 123-124. 179. O mais recente estudo sobre Njinga é de Linda M. Heywood, Njinga of Angola, 2017. A respeito das negociações para o tratado entre o Ndongo e os portugueses ver especialmente pp. 50-54. 180. Linda M. Heywood e John K. Thornton, op. cit., pp. 127-128. 181. Ver, por exemplo, a carta de Njinga de 13 dez. 1655. Monnmenta Missionária Africana, 2011, vol. 11, doc. 168, pp. 524-28. 182. Linda M. Heywood e John K. Thornton, op. cit., p. 127. 183. Idem, p. 124.

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Nesse mesmo período, no Kongo, a morte do rei Álvaro n em 1614 de­

sencadeou uma guerra entre os membros da família real que reivindicavam o

trono e abriu novas oportunidades de domínio político e obtenção de escra­ vos para os colonizadores. Os portugueses aproveitaram para atacar Kasanze, vassalo do reino do Kongo e vizinho de Luanda, com muitos prisioneiros enviados ao Brasil'8*. As guerras civis no reino do Kongo só terminaram com

a ascensão de Garcia n ao trono em 1641. Foi nesse contexto que a presença holandesa se tornou mais agressiva (em função das rivalidades com a Espanha a partir de 1621), oferecendo uma alternativa para novas alianças contra os por­

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tugueses. A aproximação entre o reino do Kongo e os holandeses significou

que a área de escravização mais uma vez mudou do interior para a zona mais

próxima do litoral. Os traficantes portugueses puderam comprar milhares de congueses cristãos de Mbamba, São Salvador, Nsundi e Soyo18s. Havia ainda

ações militares e comerciais na colônia de Benguela, ao sul, e alguns escravos eram exportados de longe, de Kakongo e Loango, que forneciam de quando em vez cativos para o comércio atlântico'86.

A invasão holandesa de Luanda (1641-1648) e a aliança com o reino do Kongo, bem como a tentativa de engajar Njinga contra os portugueses, mu­ daram o cenário das guerras depois de 1641. Explorando a insurgência local, os holandeses enviaram expedições para a região ao longo dos rios Bengo e

Cuanza. Os mercadores luso-africanos do Kongo foram perseguidos (algumas vezes expulsos das vilas, com seus bens e escravos confiscados) e as posições

portuguesas foram atacadas'87. Durante esse período, o rei do Kongo enfren­ tou também rivalidades internas. Na região de Mbamba e Mpenda havia sobas

descontentes e o Soyo resistia ao domínio do Kongo — todas essas guerras forneciam mais prisioneiros e escravos188. Njinga aproveitou para fazer suas

próprias alianças, na tentativa de retomar o reino do Ndongo dos portugueses, mas conseguiu apenas expandir seu domínio sobre Sengas de Kavanga'8’.

184. Idem, pp. 136-137. 185. Idem, p. 142. 186. Idem, pp. 143-144. 187. Idem, pp. 145-147. 188. Idem, pp. 152-153. 189. Idem, pp. 146-148.

210

CONJUNÇÕES

Enquanto isso, os portugueses, ajudados por seus aliados imbangalas, in­ vestiram contra os rebeldes na região dos Ndembos. Portugueses e holandeses

chegaram a um acordo em 1643, enquanto o Kongo continuava a resistir aos portugueses e procurava aliados africanos, Njinga, em especial”0. Com ajuda

de tropas enviadas do Brasil, incluindo parte do terço dos Henriques, os por­ tugueses enfrentaram Njinga, chegando a invadir sua capital em Kavanga”'. Em 1643, uma grande aliança entre holandeses, congueses, soldados dos sobas leais aos holandeses e arqueiros de Njinga derrotou os portugueses, destruindo duzentas propriedades à volta de Massangano, Muxima e Cambambe”2. Em 1648, com o apoio das tropas comandadas por Salvador Correia de Sá, vindas

do Brasil, os portugueses conseguiram retomar Luanda e restabelecer alianças com vários sobas à volta da capital, no Bengo, libertando Massangano e Muxi­ ma, além de voltar a controlar o vale do Cuanza”3. Reconquistada a capital, foi a vez de recuperar o domínio sobre o Libolo,

ao sul, e na região dos Mdembos, ao norte, em guerras que resultaram na reafirmação dos laços de vassalagem dos sobas e na obtenção de escravos”4. O debate entre estabelecer rotas comerciais e empreender guerras ofensivas vol­ tou à tona”5. De todo modo, o abastecimento de escravos era garantido pelas

guerras entre os africanos. Njinga, em permanente estado de alerta, atacou a partir de seu kilombo em Matamba vários de seus vizinhos, incluindo Kasanje

e regiões próximas a Mbwila. Kasanje, por sua vez, estabeleceu seu kilombo em Ngangela e dali investiu contra Matamba, Libolo, Bembe, Haku, Songo,

Yaka, abastecendo o mercado de Luanda com mais e mais escravos”6. Em 1656, o governador de Angola conseguiu fazer novo acordo com Njin­

ga, que se comprometeu a largar os costumes imbangalas adquiridos desde 1626-1629, voltando a ser cristã. O reino de Matamba passou a ser reconhecido

pelos portugueses, que assim garantiram acesso aos escravos que pudesse for-

190. Idem, pp. 148-149. 191. Idem, p. 150. Sobre o envio das tropas de Henrique Dias para Angola, ver Luiz Felipe de Alencastro, op. cit., 2000, pp. 228 e 259; Hebe Mattos, “Henrique Dias: Expansão e Limites da Justiça 192. 193. 194. 195. 196.

Distributiva no Império Português”, 2006, pp. 35-36. Linda M. Heywood e John K. Thornton, op. cit., p. 151. Idem, p. 152. Idem, p. 154. Idem, pp. 154-155. Idem, p. 156.

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necer — pelo menos até a morte de Njinga, em 1663. Com o fim dos enfrentamentos nessa região, o governador pode atacar Kisama, próximo ao litoral,

sob o pretexto de buscar fugitivos, fazendo muitos prisioneiros1’7. Ao norte, a rivalidade entre o Soyo e o Kongo continuou a ser explorada pelos portugueses, que aproveitavam para atacar grupos locais, nem sempre com sucesso, mas que geravam prisioneiros logo adquiridos pelos comercian­

tes e remetidos para o tráfico atlântico1’8. A tensão aumentou com a ascensão de dom Antônio 1 ao trono do Kongo e a chegada de André Vidal de Negreiros (que havia governado Pernambuco e fora nomeado para Angola) a Luanda. O pretexto para o reinicio da guerra foi a cobrança de cláusulas do acordo de retomada do Kongo depois da derrota holandesa. Em outubro de 1665,

as forças contrárias enfrentaram-se em Mbwila. Antônio 1 e grande parte da nobreza, bem como milhares de soldados, foram mortos. Os portugueses não conseguiram levar todos os prisioneiros, pois muitos dos africanos que os au­ xiliavam haviam desertado. Depois da batalha de Mbwila, o Kongo se dividiu em guerras intestinas pela sucessão. Embora os portugueses nunca tivessem

estabelecido um domínio efetivo sobre esse reino, a desunião e a falta de um governo estável ofereceram boas oportunidades para a escravização. Agora, eram os ambundos que entravam no Kongo em busca de escravos, invertendo o fluxo que existira cem anos antes1". No Ndongo, o ngola Ari rebelou-se contra o domínio português, recla­

mando da aproximação dos portugueses com Njinga, da escravização ilegal

de seus súditos, levados como escravos para trabalhar nas fazendas e casas dos portugueses, e da falta de pagamento por parte dos comerciantes. Os portu­ gueses tentaram manobrar a situação e conseguiram nomear um rei depois de

sua morte; mas ele também se rebelou e tentou expandir o reino do Ndongo em direção ao sul. Atacou Ambaca, depois se retirou para Pungo Andongo, onde foi finalmente derrotado, em 1671, pelas tropas portuguesas. Essa batalha marcou o fim do Ndongo como reino independente, como vimos. Em Matamba, a morte de Njinga reabriu os enfrentamentos com os por­

tugueses, que acabaram por perder as posições conquistadas. Enquanto isso, Kasanje se fortalecia, tornando-se um intermediário poderoso no tráfico com 197. Idern, p. 157. 198. Idern, pp. 158-159. 199. David Birmingham, op. cit., 1965, p. 37.

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CONJUNÇÕES

a região da Lunda, que despontava como um grande fornecedor de cativos. No início da década de 1680, o reino de Kasanje envolveu-se em guerras su­

cessórias, das quais participaram também Matamba e os portugueses. De novo, as batalhas implicaram perdas para os comerciantes de Luanda e Luís Lopes de Sequeira, que havia participado das batalhas de Mbwila em 1665 e Pungo Andongo em 1671, foi enviado para conter os rebeldes de Kasanje e Matam­ ba. Desta vez ele foi vencido. O tratado de paz com Matamba, firmado em 1683, previa a devolução aos portugueses dos escravos que haviam fugido, o

pagamento de indenização em escravos, o abandono de qualquer pretensão em relação a Kasanje e à exclusividade do comércio de escravos com os portu­ gueses200. Como observa Birmingham, essa última cláusula é uma novidade, reveladora dos novos problemas a serem enfrentados na região: a concorrência com os comerciantes ligados aos interesses holandeses e ingleses20'. Na verdade, apenas o registro escrito da cláusula era novo. Toda a história das guerras na África Central desenvolveu-se, desde o início do século xvu, em um contexto maior de conflitos envolvendo diversas nações europeias202. O mais importante dentre eles foi a guerra dos Trinta Anos, que colocou em

confronto os holandeses e os estados da península Ibérica, unidos sob a mesma coroa entre 1580 e 1640. Indo além do teatro europeu, os conflitos extravasa­ ram pelos territórios ultramarinos e adicionaram novos ingredientes às guerras que escravizavam tanta gente naquela parte do continente africano. Por isso, durante todo o tempo, os europeus interessados no tráfico negreiro precisaram enfrentar os sobas da região, por meio das guerras e dos acordos de paz, e evitar

que eles se afiassem ou comerciassem com seus rivais. Os sobas, por sua vez,

exploravam essas rivalidades europeias em seu benefício. Assim, como se pode facilmente concluir, o tráfico negreiro estava imbricado na história da presença dos portugueses na África Central, até aqui narrada de um ponto de vista político e militar. A profusão de detalhes torna patente o fato de as guerras terem sido o principal instrumento para obtenção

de escravos, tanto para os colonos portugueses quanto para os reinos e soba-

200. Idem, p. 41. 201. Idem, ibidem. 202. Beatrix Heintze, op. cit., 1984, p. 14. Para uma visão mais ampla das rivalidades europeias e sua importância na concorrência colonial, ver Fernando Antonio Novais, Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial, 1979, esp. cap. 1.

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dos africanos. Guerras, campanhas punitivas ou defensivas, acordos políticos e

alianças militares estavam entrelaçados e promoviam a produção e a circulação de escravos. A ação militar não era possível sem o domínio político e vice-ver­ sa: ela legitimava e assegurava os acordos de vassalagem, ao mesmo tempo que fazia parte de suas cláusulas. Os tributos estipulados pelos capítulos ajustados

com os sobas forneciam escravos que, por sua vez, eram obtidos por meio das guerras ou das feiras - que só funcionavam se abastecidas de prisioneiros e se as caravanas atravessassem os sertões. O poder militar português foi fundamental para submeter os sobas e deles angariar tributos — pagos em grande parte com prisioneiros capturados nas

guerras. O domínio político sobre os reinos centro-africanos e os sobados ga­ rantia ainda privilégios para os interesses portugueses nas feiras e rotas comer­ ciais. Sem as guerras e os acordos de vassalagem, que garantiam a ida e a vinda das mercadorias e das caravanas de escravos, os navios do tráfico que zarpavam para a América não podiam ser abastecidos. Havia, portanto, uma sintaxe que

conjugava guerra e paz, e articulava autoridades portuguesas e linhagens lo­ cais, especialmente no Kongo e Ndongo. A investigação minuciosa de Linda Heywood e John Thornton mostra

ainda que as fronteiras da escravização desenhadas de modo mais genérico por Joseph Miller para o século xvn podem ganhar contornos mais definidos.

Os centro-africanos exportados a partir de Luanda, chamados de “Angola” em Pernambuco, provinham dessas guerras que aconteceram principalmente no entorno de Luanda, em áreas concêntricas que se expandiam rumo ao in­

terior. No início do século xvn, elas ocorreram especialmente na região dos Mdembos, ao redor de Luanda e na direção de Matamba, avançando entre os rios Cuanza e Bengo. Em meados do século, estenderam-se sobre a região

norte do rio Ambriz, mas continuaram a ocorrer com intensidade ao redor dos presídios angolanos, havendo guerras mais ao sul somente na segunda metade do século xvn303.

Assim, desde o final do século xvi e ao longo do xvn, os “angolas” que chegaram a Pernambuco eram majoritariamente gente ambundo. Geralmente escravizados em decorrência das sucessivas guerras que se multiplicavam na

203. Mapas detalhados localizando essas áreas de guerra podem ser encontrados em Linda M. Hey­ wood e John K. Thornton, op. cit., pp. 227-235.

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CONJUNÇÕES

! África Central, podiam vir de diferentes reinos ou sohados mas, além de falarem uma língua comum, o quimbundo, formavam um contingente relativamen­ te homogêneo do ponto de vista étnico204. Nesse período, poucos foram os bacongos mandados para o outro lado do Atlântico, em virtude da políti­ ca empreendida pelos reis do Kongo — até pelo menos a batalha de Mbwila, em 1665205. Na segunda metade do século xvn, com a ampliação da fronteira de escravização, há maior diversidade política e étnica entre os escravizados levados para Pernambuco. Mesmo assim, a continuidade das guerras no en­ torno de Luanda manteve um fluxo constante de gente ambundo aprisionada

e vendida para as redes do comércio atlântico. Raros deviam ser também os imbangalas. Ainda que esses guerreiros pudessem se abar a diferentes lados, geralmente estavam com os que venciam as guerras. Eram temidos na região, que devastava as terras por onde passavam, capturando gente e destruindo lavouras e palmeiras206. Como já se observou, o perfil da escravaria pernambucana deve ter se re­ produzido em Palmares. Os mocambos se formaram no início do século xvn, quando os ambundos predominavam entre os escravizados. E eles continua­ ram a prevalecer no período seguinte, mesmo durante a ocupação holandesa. Além dessa preponderância étnica, a escravaria de Pernambuco — e os habi­

tantes dos Palmares — eram herdeiros de uma experiência de contato com os europeus que remontava há um século ou mais. Linda Heywood e John Thornton destacam três grandes áreas culturais

na região centro-africana, que correspondem a graus diferentes de interação entre a cultura local e a portuguesa, chamada por eles de “zonas de criouliza­ ção”207. No litoral, em particular na ilha de Luanda, na capital e nas imedia­

ções, assim como nos presídios de Massangano, Muxima, Ambaca e Cambambe, havia maior presença portuguesa e de africanos livres e forros, bem como

204. Idem, pp. 236-240. 205. Sobre a batalha de Mbwila e seu impacto político na história do reino do Kongo, ver John K. Thornton, op. cit., 1983, esp. pp. 75-77. Para seus desdobramentos atlânticos ver Luiz Felipe de Alencastro, op. cit., 2000, pp. 292-294. 206. John K. Thornton, op. cit., 2008, pp. 789-790. 207. Linda M. Heywood e John K. Thornton, op. cit., pp. 185-207. A “crioulização” é terreno de mui­ tas controvérsias, que não pretendo explorar aqui. Para um balanço desses debates em relação à história africana, ver Roquinaldo Ferreira, ‘“Ilhas Crioulas’: O Significado Plural da Mestiçagem Cultural na África Atlântica”, 2006.

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de escravos'08. À volta desse núcleo, vários sobas independentes, seus escravos e vassalos também viviam em contato com os portugueses. Nessa região, eram sobretudo as elites africanas e menos as pessoas comuns que participavam da

vida social e política associada à presença portuguesa. Mas havia áreas do reino

do Ndongo e de Matamba em que esses contatos podiam ser menores. Desde o início da política de conquista do reino do Ndongo, em 1575, a proximidade com a religião e os costumes portugueses dependia do ritmo das guerras, osci­ lando ao longo do tempo. Nas zonas mais remotas, como o Loango, ou mais renitentes, como a Kisama, onde a presença portuguesa estava mais ligada às

expedições militares, as tensões culturais eram maiores. Assim, a presença portuguesa na África Central, entre 1607 e 1660, se fazia sentir de modos diversos, implicando graus variados de contato com a língua e os costumes portugueses, conforme as oscilações das guerras e dos acordos de vassalagem209. Heywood e Thornton enfatizam os aspectos religiosos e cul­

turais, privilegiando em sua análise os rituais religiosos e políticos, e a cultura

material. Isso significa dizer que a presença de capela com imagens católicas, de orações cristãs e de rituais de batismo e casamento registradas pelo padre

Antônio da Silva nos Palmares210 bem poderia ser explicada por práticas trazi­ das da África Central ou vindas de lá e somadas a comportamentos aprendidos

ou impostos durante a experiência da escravidão em Pernambuco. Mas a crioulização podia se fazer sentir também em termos emínentemente políticos. Podemos caminhar um pouco mais nessa direção para aprofundar

o exame desse aspecto da questão.

4. Sobas, Vassalos e Escravos Como deixa evidente o episódio dos membros sobreviventes da família real

do Ndongo desterrados depois da batalha de Pungo Andongo, nem todos os prisioneiros das guerras eram enviados para o tráfico atlântico. Os portugueses 208. Linda M. Heywood e John K. Thornton, op. cit., p. 186. 209. Ainda que esses autores não explorem esse aspecto, ele pode ser deduzido facilmente da análise dos mapas que elaboraram, que mostram as regiões específicas em que as guerras ocorreram entre 1615 e 1660 e as zonas de maior ou menor crioulização. Idem, pp. 227-235. 210. Padre Antônio da Silva, “Relação da Ruína dos Palmares”, p. 20. Na versão de Évora, p. 118.

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CONJUNÇÕES

reconheciam haver diferenças sociais e políticas entre os centro-africanos e não

deixavam de levá-las em conta ao tratar com os poderes locais e ao operar os mecanismos que produziam escravos para o tráfico negreiro. Na África Central, o poder estava assentado em linhagens descendentes de

um ancestral comum (muitas vezes mítico) ou referenciadas por uma divin­ dade. O domínio sobre as pessoas e o território era exercido por meio de uma

rede hierárquica de linhagens aparentadas, que controlava seus membros e os escravos pertencentes a elas, usados como criados, soldados e trabalhadores211. O poder era medido, assim, sobretudo pela capacidade de dominar pessoas ou de produzir dependentes212. Ao mesmo tempo político e religioso, o controle das linhagens combinava-se à eficiência na cobrança de tributos (em produtos, serviços, incluindo os militares, e escravos). Por meio desse sistema corporati­ vo e hierarquizado, a riqueza, medida em produtos e escravos, circulava e po­ dia ser acumulada. A cobrança de taxas e tributos e as guerras - originadas por crises dinásticas ou por rivalidades políticas — eram as formas mais frequentes

de crescimento econômico e aumento de poder político2'3. No Kongo, as linhagens nobres que cercavam o rei e as instaladas nas pro­ víncias, relacionadas entre si por meio do casamento, mantinham relações co­ merciais e políticas controladas a partir da capital, Mbanza Kongo, batizada de

São Salvador pelos portugueses. A nobreza estava em geral sediada nas cidades (mbanza), que dominavam um conjunto de aldeias (lubata), cada uma com seus

respectivos chefes locais (nkulutu) e líderes religiosos (kitomi). A unidade do rei­ no mantinha-se pelo controle centralizado no rei do Kongo (mani ou ntotela), que governava os chefes locais, tanto os ligados a ele quanto os de províncias

relativamente independentes com as quais mantinha relações de soberania e

vassalagem. Além dos nobres, a população se dividia em livres e escravos, estes 211. Para uma visão geral sobre as linhagens na África Central, verjoseph C. Miller, “Lineages, Ideology, and the History of Slavery in Western Central África”, 1981. Para um enfoque das linhagens no Kongo, ver Anne Hilton, “Family and Kinship among the Kongo South of the Zaire River from the Sixteenth to the Nineteenth Centuries”, 1983; Wyatt MacGaffey, “Lineage Structure, Marriage and the Family amongst the Central Bantu”, 1983 e Antônio Custódio Gonçalves, “Di­ nâmicas Linhageiras do Poder Tradicional”, 2005, pp. 99-140. Para Angola, verjoseph C. Miller, op. cit., 1976, pp. 42-54. 212. Ver, entre outros, Joseph C. Miller, op. cit., 1988, esp. caps. 1 e 4. Para um balanço das formas da escravidão na África Central ver John K. Thornton, op. cit., 2004, pp. 122-152 e Alberto da Costa

Silva, op. cit., pp. 79-132. 213. John K. Thornton, op. cit., 2004, pp. 127- 137.

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adquiridos nas guerras de conquista. Os prisioneiros podiam ser integrados às

linhagens como dependentes ou como escravos, que possuíam certo grau de liberdade e podiam enriquecer ou se libertar214. No reino do Ndongo, o rei ou ngola governava linhagens matrilineares que possuíam posições titulares geralmente enunciadas como relações de pa­

rentesco (tios e sobrinhos, pais e filhos etc.). Instaladas em aldeias, as linhagens eram governadas em termos políticos e religiosos por um grupo de homens que ocupavam as posições titulares (ngundu) e controlavam o acesso à terra e aos meios naturais. O principal posto era ocupado com frequência pelo mais idoso, chamado soba, que governava a linhagem assistido por um conselho

de anciãos (makota). A população se dividia entre livres (chamados murinda) e escravos (mttbika, que podiam ser vendidos para fora, e kijiku, que permane­ ciam no local). Os escravos podiam ser obtidos por compra ou capturados nas guerras, chegando a ser algumas vezes incorporados às linhagens por meio de casamentos. Serviam de guerreiros, eram carregadores ou trabalhavam nos campos do sobado, constituindo uma das fontes de poder dos sobas2'5.

Havia ainda outros pequenos reinos e províncias, que se organizavam de modo semelhante e estavam vinculados ao Kongo ou ao Ndongo. Além des­ ses dois reinos mais centralizados, os imbangalas eram a terceira grande força política na região, que podia fazer pender a balança em favor de um ou outro grupo. Diferentemente do Kongo e do Ndongo, não formaram estados cen­

tralizados, a não ser na segunda metade do século xvn. Sua origem é motivo 214. John K. Thornton, op. cit., 1983, pp. 15-27. 215. Joseph C. Miller, op. cit., 1976, pp. 42-54; Adriano Parreira, op. cit., 1990, pp. 160-167; Beatrix Heintze, op. cit., 1984, pp. 13-14. Para uma análise mais detalhada da condição dos escravos no Ndon­ go, ver Beatrix Heintze, “O Comércio de ‘Peças’ em Angola”, 2007, pp. 473-506. As formas da escravidão centro-africana podem ter inspirado os habitantes dos Palmares, mas a experiência do tráfico atlântico e o cativeiro nos engenhos e casas senhoriais de Pernambuco, com características bem diversas das do outro lado do Atlântico, também podem ter modificado estas concepções. De todo modo, não há evidências documentais diretas sobre a escravidão em Palmares, a não ser refe­ rências secundárias, em Gaspar Barléu (op. cit., p. 243) e rápidas menções emjoan Nieuhof (op. cit., p. 14), Francisco de Brito Freyre, op. cit., p. 282) e Sebastião da Rocha Pita (op. cit., p. 475), repetida por Domingos do Loreto Couto, op. cit., 1903 [1757], p. 189. Assim, o debate sobre o tema (com posições à esquerda, como no caso de Benjamin Péret, ou à direita, como em Leandro Narloch) é mais especulativo e político do que propriamente histórico. Ver, por exemplo, Benjamin Péret, “Que foi o Quilombo de Palmares?”, 2002 [1956], pp. 130-132; L. Narloch, Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, 2011, pp. 83 e 86. Sobre a relação entre a escravidão na África Central e nos Palmares, ver John K. Thornton, op. cit., 2008, pp. 780-782 e 792-793.

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de grande debate entre os historiadores2'6 que, no entanto, concordam que eles constituíam agrupamentos políticos militares de gente sem linhagens de­ finidas, liderados por chefes que detinham títulos temporários (kingurí). Ao se deslocarem pelo planalto central angolano, esses grupos muitas vezes se fracionavam; alguns adotavam um modo de vida mais sedentário e uniam-se a linhagens locais ou agrupavam-se em torno de poderosos chefes militares,

constituindo um kilombo — sociedade iniciática guerreira, não linhageira, dota­ da de forte disciplina militar. Formaram-se assim poderosos bandos guerreiros que se deslocavam pela região ambunda; neles, a liderança era exercida por chefes militares sem ancestrais, cujo poder não passava para os descendentes. Chamados algumas vezes de “capitães”, seu poder rivalizava com o dos makotas. O kilombo era estruturalmente instável, pois os chefes com títulos subordi­ nados e os makotas muitas vezes buscavam apoio externo — e, assim, aliavam-se aos europeus ou aos reinos locais217. Se a população em Palmares era majoritariamente composta por gente

ambundo, essa estrutura linhageira deve ter servido de referência para estru­ turar o governo sobre terras e gentes que ali se formou. Um dos princípios da organização política mais importante na África Central, a linhagem agregava

e estruturava a população das aldeias e a relação entre elas. Como vimos, no período da ocupação holandesa já era possível identificar um rei que gover­ nava os mocambos e declinar seu nome, Dambi. No tempo do governador Francisco de Brito Freire as informações eram menos nítidas, embora se possa encontrar o registro na documentação do conhecimento de um “maior” que

exercia o poder e de postos militares a ele subordinados. No final da década de 1670, na conjuntura dos ataques de Fernão Carrilho e do acordo de paz, ao revelarem nomes e relações de parentesco entre as lideranças, as fontes docu­ mentam a existência de uma estrutura linhageira na governança palmarista.

O governador Aires de Sousa de Castro e os demais oficiais pernambuca­ nos não parecem ter tido dificuldade em relação às características centro-afri-

canas da gente dos Palmares. A presença constante dos “línguas” nas diversas tentativas de negociação indica o reconhecimento da existência de uma dife­ rença cultural e política. Gana Zumba negociou e se comportou na efetivação

216. Adriano Parreira, op. cit., 1990, pp. 155-159 oferece um balanço resumido dos debates. 217. Joseph C. Miller, op. cit., 1976, esp. caps. 5 a 8.

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do acordo de modo semelhante a muitas lideranças africanas diante das auto­ ridades portuguesas do outro lado do Atlântico. Como tal, ele foi reconhecido

pelas autoridades coloniais: como “rei” dos Palmares, detentor de poderes políticos assentados em uma rede de relações familiares, que lhe permitia falar em nome de seus “súditos”. Na África Central, como vimos, as posições ocupadas pelos indivíduos

na estrutura linhageira eram identificadas por títulos e a relação hierárquica

entre elas por relações de parentesco2'8. Isso significa que, se do ponto de vis­ ta das autoridades coloniais em Pernambuco os nomes pudessem se referir a

pessoas específicas, para os habitantes dos Palmares talvez indicassem posições titulares ou mesclassem a referência a essas posições com identidades indi­ viduais. Os registros são muito fragmentários para que se possa ter alguma certeza a esse respeito.

Já mencionamos que alguns estudiosos dos Palmares discutiram se Zambi ou Zumbi e Ganga ou Gana eram títulos ou nomes próprios. O debate foi

encaminhado em termos linguísticos, sem levar em conta a possibilidade de

compreensões diversas dessas palavras, conforme quem as dizia ou ouvia. Nina Rodrigues, observando ter havido “além do Zambi rei, diversos Zambis gene­

rais”, defende ter sido este “não o nome de um indivíduo, mas o título de um cargo”2'9. Edison Carneiro, apesar de chamar Zumbi a liderança “que chefiou

o quilombo na fase mais decisiva da luta”, também considera a possibilidade de ser este nome “um título ou um apelido, talvez mesmo a simplificação de um nome maior”220. Aos poucos, foi se fixando a forma Zumbi e a ideia de que designava o nome de um indivíduo22'. Gana (Ngana), como já mencionado, é

claramente uma forma de tratamento e aparece em vários nomes palmaristas, como Gana Zumba, Gana Zona, Gana Solomim. O padre Antônio da Silva,

em sua “Relação”, é o único a se referir a uma dessas pessoas sem recorrer ao axiônimo: “o Zona”222. Ngana Inene era uma titulação utilizada para designar 218. Idem, pp. 45-46. 219. Nina Rodrigues, op. cit., 1932 [1904!, pp. 137 e 141-142. 220. Edison Carneiro, op. cit., 1958, pp. 70-71. 221. Ver, a respeito destes debates, Andressa Mercês Barbosa dos Reis, Zumbi, 2004. Para a nomencla­ tura adotada neste livro, ver “Notas Explicativas”, item 3, pp. 392-398. 222. Padre Antônio da Silva, “Relação da Ruína dos Palmares”, p. 21. O uso da forma de tratamento na composição do nome é identificado por John K. Thornton (op. cit., 1993, p. 735) como um costume na região de Angola.

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a esposa do ngola, remetendo ao fato de que a primeira esposa do primeiro soberano do Ndongo ter sido assim chamada213. O reaparecimento desse nome entre os palmaristas, especialmente para designar a mãe de Gana Zona, pode ter ecoado, de alguma forma, esse costume. Mas isso certamente não era do

conhecimento das autoridades pernambucanas. Do mesmo modo, o nome de Gana Muisa poderia evocar o título de sobas da região de Ambaca, que entram em luta pela sucessão, depois da morte de dom Sebastião Ngonga a Mwiza, ocorrida entre 164.6 e 1648224. Talvez, nesse caso, pensando nos laços estreitos entre os que lidavam com a administração das duas margens do Atlântico, a lembrança possa ser menos improvável.

Seguindo as indicações da historiografia africanista, as relações de paren­ tesco (irmão, sobrinho, mãe), por sua vez, talvez assinalassem mais o lugar

ocupado pelas lideranças masculinas e femininas na hierarquia palmarista do que propriamente a consanguinidade entre elas. Ainda assim, é importante

salientar que essa estrutura linhageira era reconhecida e levada em conta pelas autoridades pernambucana ao se relacionarem com as lideranças palmaris­ tas. A importância dos irmãos do “rei dos Palmares”, de sua mulher e filhos aparece registrada tanto na composição das embaixadas e no desenrolar das

negociações quanto na avaliação do destino dos que eram aprisionados nas investidas militares. Na região Congo-Angola os portugueses conectaram-se à estrutura po­ lítica centro-africana, como parceiros políticos e militares, interessados que

estavam em obter escravos, por meio do controle indireto das rotas comerciais e dos tributos. No caso do Kongo, a presença portuguesa foi garantida pela

associação direta com o rei, que conseguiu manter sua relativa independência. As cerimônias dos tratados e acordos entre os soberanos do Kongo e de Portu­ gal misturavam elementos africanos e europeus, os comerciantes portugueses

e padres tinham salvo-conduto e influíam na política conguesa, mas não havia governadores do Kongo nomeados por Lisboa. A região do Ndongo, ao contrário, foi ocupada militarmente. O reino,

inicialmente tributário do Kongo, foi conquistado por tropas portuguesas e, 223. Joào Antônio Cavazzi de Montecúccolo, Descrição Histórica dos Três Reinos do Congo, Matamba e Angola, 1965 (1687), vol. I, p. 254. 224. Beatrix Heintze, “Ngonga a Mwiza: Um Sobado Angolano sob Domínio Português no Século xvn”, em Angola nos Séculos xvie xvii, 2007, pp. 539-554.

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a partir de 1575, tornou-se uma capitania com uni governador nomeado pelo

rei. A partir de 1607, a Coroa retomou para si o governo, passando a nomear a cada três anos um capitão-mor e governador da “conquista e reino de Angola e das mais províncias dela”22S. Tornou-se, então, um poder concorrente em relação aos demais reinos e chefes locais, lutando para impor a eles laços de vassalagem. Do mesmo modo que os chefes africanos, buscava alianças com o poder militar oferecido pelos bandos imbangalas. Conjugava guerra e alianças para fortalecer seu domínio sobre a região, seus habitantes e riquezas. Assim, a tradição política centro-africana que articulava guerras e acordos de paz acontecia em quimbundo e português, e interessava aos falantes das duas línguas. Do ponto de vista político, a vassalagem envolvia a “obediência” ao governo português e a seus mandatários civis e eclesiásticos, a convivência pacífica com outros sobas vassalos e o compromisso de não açoitar fugitivos. Em troca, os sobas recebiam ajuda militar, proteção e a promessa de não serem atacados. O vassalo continuava a manter relativa autonomia em relação a as­

suntos internos, contudo, obrigava-se a aceitar a presença de padres e repre­ sentantes do governo português em suas terras. Os acordos com os sobas eram escritos e celebrados entre poderes que se reconheciam mutuamente com soberania para tal226. A negociação envolvia os representantes da Coroa portuguesa (governadores, capitães-mores dos presí­ dios, ou os chefes dos conselhos ou distritos) e os sobas ou seus embaixadores. A cada novo governador em Angola, renovavam-se os laços de vassalagem, por meio do envio de embaixada e troca de presentes227. Os rituais europeus mesclavam-se aos costumes africanos envolvendo rituais específicos, como a troca de presentes, etiquetas formais etc. Se houvesse quebra das cláusulas que regiam a vassalagem, o vassalo era

considerado “rebelde” e contra ele as guerras podiam se justificar como puni­ ção ou como demonstrações de força para trazê-lo de volta à antiga submissão. Beatrix Heintze observa que, num certo sentido, os tratados de vassalagem 225. Ver, por exemplo, a carta patente de dom Manuel Pereira de 2 ago. 1606. Alfredo de Albuquerque Felner, Angola, 1933, pp. 426-427. 226. Beatrix Heintze, “O Contrato de Vassalagem Afro-português”, 2007, pp. 399-400. Ver também Catarina Madeira Santos, “Escrever o Poder. Os Autos de Vassalagem e a Vulgarização da Escrita entre as Elites Africanas Ndembu”, 2006. 227. As cerimônias do contrato de vassalagem estão descritas em Beatrix Heintze, “O Contrato de Vassalagem Afro-português”, 2007, pp. 401-406.

222

CONJUNÇÕES

correspondiam, na prática, a acordos de capitulação e sujeição. A guerra, que no mais das vezes precedia a cerimônia de vassalagem, tendia a reforçar essa avaliação. Além disso, tratava-se de uma relação desigual e as cláusulas com sanções aplicavam-se em geral aos sobas avassalados e não aos portugueses. Por outro lado, a aliança com os portugueses fortalecia o poder dos chefes centro-africanos e das linhagens a eles ligadas, e lhes garantia certa autono­

mia228. Em alguns casos, o fato de serem escritos permitia que fossem usados pelos africanos para acionar mecanismos institucionais portugueses em busca de fazer valer reivindicações e direitos229. Quando de lutas pela sucessão, por exemplo, uma das facções podia recorrer aos portugueses para denunciar o rival por haver quebrado o acordo ou ganhar a simpatia ao oferecer presentes e escravos. As ocasiões de renovação do governo em Luanda muitas vezes ofere­ ciam oportunidades para esse tipo de manobras e intrigas, que eventualmente chegavam a ser discutidas pelo Conselho Ultramarino230. Familiarizados com a sintaxe que articulava guerra e paz, os escravizados levados para Pernambuco estavam, portanto, habituados ao sistema da vassa­ lagem. A derrota em uma guerra podia significar o imediato avassalamento do chefe e, com ele, de seus súditos. Formada nas décadas que se seguiram à expulsão dos holandeses — ou reconhecida como tal pelas autoridades de Per­

nambuco nesse período — a linhagem governante dos Palmares agiu segundo uma sintaxe política que podia ser praticada dos dois lados do Atlântico. Avassalar-se depois de ter sido submetido por força das armas era uma forma de defender a continuidade da linhagem e manter seu poder sobre terras e gentes. Como vimos, a linhagem palmarista havia sofrido muitas perdas durante

a ofensiva de Fernão Carrilho. A “Relação” de 1678 registra o desaparecimen­ to da mãe de Gana Zumba e a morte de seu filho Tuculo. Também morreu “o Gone, filho do rei”. A mulher de Gana Zumba, pelo menos dois de seus filhos e vinte netos ou sobrinhos foram presos, assim como a mulher de Gana Zona, com seus dois filhos. Entre a “gente de guerra”, o mestre de campo Gana Muisa foi preso (ou morto)231; Gaspar, “capitão da guarda do rei”, João Tapuia e Ambrósio, “capitães afamados”, mortos - além de “outros a quem 228. 229. 230. 231.

Idem, pp. 425-428. Catarina M. Santos, “Escrever o Poder”, 2006, esp. pp. 89-92. Beatrix Heintze, “Ngola a Mwiza", 2007, pp. 539-547. Padre Antônio da Silva, “Relação da Ruína dos Palmares”, p. 36. Na versão de Évora, pp. 136-137.

PALMARES & CUCAÚ

223

a ignorância dos nomes sepultou em perpétuo esquecimento”. As cerca reais de Macaco e Subupira, onde moravam o rei e seu irmão, o mocambo de Aca Inene, sua mãe, e o de Amaro estavam destruídos. No lugar de Subupira, fora instalado um arraial para abrigar as tropas ofensivas2’2. Assim, segundo a “Relação” do padre Antônio da Silva, no final de janeiro de 1678, quando Carrilho deu “por destruídos os Palmares”, houve movimen­ tos no sentido da abertura de negociações para um acordo de paz. Carrilho enviou um casal de idosos aparentados do governante dos Palmares para pro­ por a paz, mas também Antônio Pinto Pereira, que andava pelas proximidades com sua tropa, serviu de mediação, convencendo Gana Zumba a “fazer [as] pazes”. Mais que um simples acordo, no entanto, pode-se entender o “papel” negociado em 1678 como um tratado de vassalagem à moda centro-africana. Como costumava acontecer na África Central, ele foi negociado por meio

de uma embaixada, envolvendo mediadores e as lideranças políticas e militares de ambos os lados. A descrição feita pelo padre Silva da chegada da embaixada,

dos gestos e solenidades que precederam a negociação, bem como o envio de mensageiros para a troca de documentos escritos que selavam os termos acor­ dados — tudo lembra práticas luso-africanas da outra margem do Atlântico2”. Os termos desse tratado empenhavam Gana Zumba como chefe da linha­

gem governante dos Palmares, respeitavam a hierarquia política e militar que ele liderava e lhe atribuíam poder para submeter os que porventura recalcitrassem. A restituição do “bem da liberdade e perdão” ao líder palmarista impli­ cava que ele voltasse a obedecer ao monarca português, avassalando-se. Ainda que a expressão não apareça explicitamente no “papel” então redigido, há

clara menção ao fato de que, uma vez acertada a paz, os habitantes de Cucaú passariam a gozar dos mesmos privilégios que os demais vassalos do prínci­

pe português2’4. Na “Relação” do padre Silva, no entanto, o termo aparece

232. Padre Antônio da Silva, “Relação da Ruína dos Palmares”, pp. 19-21 e 34-35. Na versão de Évora, pp. 117-119 e 133-134. 233. Ver Padre Antônio da Silva, “Relação da Ruína dos Palmares”, pp. 43-47 e Beatrix Heintze, “O Contrato de Vassalagem Afro-português”, 2007, pp. 401-406. Tais práticas remontam ao final do século xv, desde as negociações entre os portugueses e o reino do Kongo. A possibilidade deste diálogo político, a partir da semelhança entre vários elementos que caracterizavam as estruturas sociais, políticas e econômicas portuguesa e conguesa, são analisadas por John K. Thornton, op. cit., 1981. 234. Cópia do papel que levaram os negros dos Palmares.

224

CONJUNÇÕES

1

r claramente: a embaixada que entrou no Recife foi “prostrar[-se] aos pés de dom Pedro de Almeida, com ordem do rei [dos Palmares] para lhe renderem vassalagem e pedirem a paz que desejavam”235. Foi por terem conseguido “a vassalagem daqueles bárbaros” que no dia 20 de junho se deu graças a Deus e a Santo Antônio na igreja matriz do Recife236.

As cláusulas negociadas ecoavam muitas das que também estavam pre­ sentes do outro lado do Atlântico. Uma vez aceitas por Gana Zumba, todos os negros dos Palmares e seus “potentados” estavam obrigados a cumprir o que fora acertado, ou seriam compelidos por ele a fazê-lo. Para submeter os eventuais rebeldes, Gana Zumba poderia contar com o auxílio das tropas co­ loniais — terceirizava-se, assim, a submissão dos rebelados que se abrigavam nas matas de Pernambuco. A manutenção do poder militar palmarista associava-se à continuidade de sua jurisdição. Gana Zumba aceitava a presença de padres para o ensino da doutrina cristã — algo que não era extraordinário no contex­ to centro-africano, ao contrário, já que a presença dos missionários em geral

reforçava o poder das lideranças locais. E, sobretudo, conseguira a cessão de terras onde poderia viver com seus súditos. Cucaú tornava-se, então, um ter­

ritório cedido e reconhecido pelas autoridades pernambucanas e pelo próprio regente português, onde os palmaristas podiam se instalar, cultivar suas roças e viver em paz.

Há ainda outros ecos centro-africanos nos termos acordados em 1678. Na África Central, a sintaxe política que permitia e mantinha o tráfico

implicava diferenciar os centro-africanos. As fronteiras da escravização, para retomar a expressão de Joseph Miller, eram circunscritas do ponto de vista i

geográfico e, também, social. Com os chefes e os que gravitavam mais dire­ tamente à sua volta era possível negociar, estabelecer acordos e tratados de vassalagem. Para eles era possível fazer concessões: dar liberdades, oferecer privilégios. Agindo de modo similar aos governadores de Angola, Aires de Sousa de Castro comprometeu-se a devolver os membros da família de Gana

Zumba que haviam sido aprisionados e a alforriar pessoas específicas, impor­ tantes para os palmaristas.

235. Padre Antônio da Silva, “Relação da Ruína dos Palmares”, pp. 43-44. 236. Idetn, p. 45.

PALMARES & CUCAÚ

225

Ao negociar com os portugueses, as lideranças centro-africanas defendiam seus súditos da escravização. Foi assim que a maioria dos bacongo escapou das malhas do tráfico atlântico-já que o Kongo conseguiu manter sua autonomia até pelo menos meados do século xvn237. Foi assim também com os súditos di­ retos do rei do Ndongo, enquanto se submeteu à aliança com os portugueses, até a derrota em Pungo Andongo. É bem provável que a cláusula que con­

cedeu liberdade aos nascidos nos Palmares tenha sido negociada à luz dessas práticas centro-africanas. No tempo de Francisco de Brito Freire, já se havia previsto a concessão de liberdade aos nascidos nos Palmares238. Agora, em 1678, ao reconhecer e reafirmar o domínio da linhagem governante dos Palmares, as autoridades coloniais em Pernambuco admitiam também que podia haver gente livre entre os súditos de Gana Zumba. Cruzavam-se, assim, dois princípios que só na aparência eram contradi­

tórios. Do lado americano do Atlântico, vigorava a regra escravista de que os filhos seguiam a condição das mães; do lado africano, respeitavam-se as dife­ renças hierárquicas e jurídicas dos vassalos dos sobas. O que permitia a junção dos dois erajustamente a articulação entre escravização e escravidão, processos operados nas duas margens do Atlântico. Na África Central, portugueses, co­

lonos e chefes locais tinham que estar de acordo sobre a legitimidade da escra­ vização. Na América, todos os desembarcados pelo tráfico eram considerados escravos. No caso das cláusulas do acordo de 1678, abria-se a possibilidade de

distinguir livres e escravos - e de ceder à liderança palmarista a defesa da liber­ dade de seus súditos, em troca de seu avassalamento e obediência.

Mas Gana Zumba comprometeu-se também a devolver os que haviam fugido para os Palmares. Nem todos ficariam livres: os que eram escravos con­ tinuavam escravos e deviam ser devolvidos a seus donos. Também a restituição de fugitivos aparecia nos termos de avassalamento centro-africanos. Para os portugueses, as guerras contra as populações locais não podiam ser feitas a esmo - tinham que ser reconhecidas como legítimas. Só assim os pri-

237. Para uma avaliação das diferentes fases do processo de escravização e da capacidade de o rei do Kongo proteger seus vassalos da escravização ilegal, ver Linda Heywood, “Slavery and its Transformation in the Kingdom of Kongo: 1491-1800”, 2009. 238. Regimentos de Francisco de Brito Freire de 29 dez. 1661 e de 4 jan. 166(2]. Respectivamente, auc, cca, vi-in-j-1-31, fls. 66-66v, doc. 60 e fls. 66V-67V, doc. 61. Ver também o edital de 6 dez. 1662, ideni, fls. 86V-87, doc. 123.

226

CONJUNÇÕES

sioneiros podiam ser considerados licitamente escravizados239. Para os africa­ nos, havia que se preservar a diferença entre livres e escravizáveis em meio aos que eram feitos prisioneiros. Para as lideranças de ambos os lados, o respeito (ou o desrespeito) a esses princípios era um instrumento importante no equilí­ brio (ou desequilíbrio) político e militar que sustentava seu domínio na região. Evidentemente, em meio ao caos da guerra e conforme as forças em jogo de um ou outro lado, especialmente tendo em vista o interesse dos traficantes e os lucros que a venda de escravos para o comércio atlântico gerava, pessoas livres e até sobas podiam ser escravizados240. Em geral, havia certa concordância de que as pessoas livres que viviam junto aos portugueses em Luanda e nos presídios não corriam risco de serem escravizadas. O mesmo acontecia com os sobas vassalos da Coroa portuguesa e seus súditos livres. Eles estavam protegidos pela vassalagem, que garantia que

o fluxo dos escravos seria realizado pelo pagamento de tributos e por meio das rotas comerciais que traziam os escravos vindos do interior. No entanto, nem sempre essas salvaguardas funcionavam. Muitas vezes, diante do avanço das guerras, temendo ser escravizadas, aldeias inteiras fu­ giam para o mato, no intuito de escapar aos exércitos. Em 1624, o governador

Fernão de Sousa chegou a determinar que todos os escravos fossem marcados a ferro, para evitar serem confundidos com livres e, sobretudo, para permi­ tir que os sobas pudessem voltar a suas banzas sem serem aprisionados pelos brancos241. Não sei se a medida chegou a ser aplicada; mesmo que tenha sido letra vã, torna patente a preocupação pelo menos de algumas autoridades em manter a legitimidade das relações políticas que asseguravam o correto fluxo

dos escravos. As fugas de escravos aparecem com frequência nas negociações entre os sobas e os administradores portugueses. Como vimos, os escravos que faziam

239. Para uma visão geral dos debates acerca das guerras justas e sua relação com os processos de escravização, ver Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron, Linha de Fé, 2011. 240. É o caso, por exemplo, de sobas e potentados que foram aprisionados e levados à Bahia em 1622 depois da guerra contra Kasanze. Ver Linda M. Heywood e John K. Thornton, op. cit., p. 140. Joseph Miller, ao tratar do episódio, menciona que houve gente devolvida a Angola, que teria recriado o reino de Kasanze.Ver “A Note on Kasanze and the Portuguese”, 1972. 241. “O Extenso Relatório de Fernão de Sousa a seus Filhos (s.d., 1625-1630)” em Beatrix Heintze, Fontes para a História de Angola do Século xvn, 1985, vol. 1, p. 222. Ver também Linda M. Heywood ejohn K. Thornton, op. cit., p. 121.

PALMARES & CUCAÚ

227

parte dos pagamentos dos tributos, taxas e demais “presentes” podiam ter sido adquiridos pela via comercial, nas feiras, ou eram prisioneiros feitos nas guerras. Grande parte dos escravos era vendida no circuito atlântico, mas uma parcela permanecia na região. Eles eram tão importantes para os centro-africanos quanto para os portugueses, pois constituíam o contingente de traba­

lhadores que cultivava os campos, transportava os bens, tratava da lida da casa e, ao servirem como soldados, ajudavam a arranjar mais escravos e a assegurar o poder político242.

Para um escravo, uma vez doado como parte de um tributo, negociado como prisioneiro de guerra ou vendido, o risco de ser enviado para o comércio atlântico era grande. Os que permaneciam como trabalhadores dos africanos,

portugueses e luso-africanos, e sobretudo os que ficavam com o mesmo dono, tinham mais chances de não serem selecionados para a venda além-mar. Como a possibilidade de compra da liberdade era mínima, a fuga tornava-se um ex­ pediente eficaz para escapar da escravidão243.

Os fugitivos dirigiam-se normalmente para longe da zona de influência portuguesa, para se livrarem dos senhores, das guerras e dos pumbeiros, ou

procuravam asilo nos sobados inimigos de seus senhores. A zona de Kasanze, até o início dos anos 1620, era um desses refúgios. Em 1615, os portugueses organizaram uma expedição contra o mani de Kasanze, sob pretexto de ele

ter “roubado” escravos e não querer devolvê-los. Kisama, ao sul do rio Cuan-

za, também era um bom refúgio para os escravos fugidos dos presídios de Muxima, Massangano e Cambambe — o que ofereceu motivo para diversas expedições punitivas e negociações específicas para devolução de fugitivos244.

O mesmo ocorria com a região dos Ndembos, ao norte do Cuanza, e com Matamba, conforme a conjuntura245. A devolução desses fugitivos podia fun­ cionar como pretexto para guerras ou fazer parte dos acordos com os sobas e

chegou a provocar debates em Lisboa. Em alguns casos, a promessa de liberda­ de para os fugitivos que integrassem a “guerra preta”, como foi feito no início

242. Beatrix Heintze, “Asilo Ameaçado: Oportunidades e Consequências da Fuga de Escravos em Angola no Século xvn”, em Angola nos Séculos xvi e xvn, 2007, pp. 508-509. 243. Idem, pp. 509-512. 244. Jessica A. Krug, op. cit., esp. pp. 58-85.

245. Ver Beatrix Heintze, “Asilo Ameaçado”, 2007, PP- 5>4-532. Para uma análise da importância da região de Kisama como refúgio de fugitivos ver Jessica A. Krug, op. cit.

228

CONJUNÇÕES

»

da campanha contra Njinga em 1626, era uma arma utilizada para enfraquecer a força dos exércitos inimigos246. O território palmarista certamente funcionava como asilo para os que queriam escapar da escravidão na zona pernambucana. Não se tratava apenas de fugir do domínio senhorial, mas de buscar abrigo e proteção em uma re­ gião que, pela continuidade de sua ocupação e pelo domínio que ali havia se instaurado, estava sob outra jurisdição. A devolução dos fugitivos era, assim, uma concessão palmarista que estava diretamente ligada ao reconhecimento da autoridade de Gana Zumba pela governança de Pernambuco. Como se pode concluir, mais uma vez, as lideranças dos Palmares e a ad­

ministração pernambucana estavam conjugando uma sintaxe centro-africana ao negociarem os termos do acordo de paz. Certamente a devolução de fugi­ tivos, nesse caso, tinha dimensões diversas da que acontecia na outra margem do Atlântico. Para os fugitivos, não se tratava de escapar da possibilidade de

ser traficado, mas de livrar-se da escravidão. Para as lideranças políticas que negociavam os termos do tratado, porém, estava em jogo um equilíbrio de forças que tinha em mira outros interesses presentes no entorno: o respeito ao poder senhorial talvez servisse como garantia para que a concessão de terras em Cucaú e o domínio de Gana Zumba sobre elas e sua gente fossem aceitos. Assim, a sintaxe política centro-africana ecoa na história dos Palmares de vários modos. Diferentes entre si, por pertencerem provavelmente a vários es­

tados ou ocuparem posições sociais diversas, os centro-africanos transportados da África para o Brasil — e para Pernambuco — compartilhavam uma mesma cultura política. Haviam sido escravizados segundo mecanismos variados, mas articulados e foram obrigados a se transformar igualmente em escravos no Novo Mundo. A experiência política que havia conformado suas vidas até

então não ficou em terra, do outro lado do Atlântico. Ela orientou seus com­ portamentos e escolhas durante a vida como cativos e forjou o modo como reagiram à escravidão e se organizaram para viver e sobreviver fora dela. Tais convergências e, sobretudo, essa cultura política que tinham em co­ mum fazia com que o temor das autoridades coloniais em relação à presença

dos príncipes do reino do Ndongo no Brasil tivesse muitas razões de ser. Os membros da corte do Ndongo levados para o Brasil poderíam tentar voltar

246. Beatrix Heintze, “Asilo Ameaçado”, 2007, pp. 530-531.

PALMARES A CUCAÚ

229

para Angola, aproveitando as muitas conexões que ligavam as duas margens do Atlântico. O risco de sejuntarem aos negros dos palmares de Pernambuco, no entanto, parecia ainda maior. Ali, podiam se tornar aliados, parceiros, e fortalecer o reino negro que havia se formado naquelas terras do interior. Vale a pena perguntar mais uma vez: o que teria acontecido se aqueles

príncipes exilados tivessem se juntado à linhagem governante dos Palmares?

230

CONJUNÇÕES

) i

Tk

JfT UITOS JÁ DISSERAM QUE A HISTORIA NÃO CONHECE VERBOS

I % / ■ regulares. Também não pode ser entendida na base de conjectuJL ▼ «jX. ras contrafactuais. Sem dúvida, lidamos com o passado — com o que aconteceu, não com o que poderia ter acontecido. Para compreendê-lo e explicá-lo, as respostas não são simples. Lógicas binárias e raciocínios causais não conseguem dar conta da multiplicidade de razões e sentidos das ações hu­ manas. Muito menos de suas indeterminações e contradições. Por isso, sempre que uma explicação for demasiado lógica ou evidente, é bom desconfiar. Nos detalhes da documentação, no que não combina, não encaixa, nem se ajusta reside a brecha para aprofundar a análise e, talvez, achar elementos que ajudem

a captar a complexidade da vida — e, portanto, da história. Este capítulo investiga os desdobramentos do acordo de paz negociado em junho de 1678. Ao seguir os indícios que aparecem aqui e ah nas fontes, podem

ser encontrados nexos que oferecem interpretações alternativas a eventos já muito conhecidos. Não se trata de substituir uma versão por outra, mas de aventar novas possibilidades de conhecer a história.

i. A Aldeia de Cucaú Conta Aires de Sousa de Castro que, passados 23 dias depois de negociados os termos do acordo firmado entre os filhos de Gana Zumba e o governador

de Pernambuco, nova embaixada palmarista chegou ao Recife. Isso deve ter acontecido poucos antes de 19 de julho de 1678, data em que ele escreveu

PALMARES & CUCAÚ

233

outra carta ao príncipe português, contando a novidade. Mais uma vez, Gana

Zumba enviava seus emissários, que vinham acompanhados pelos soldados do terço dos Henriques para ratificar as determinações ajustadas em 22 de junho.

Enquanto isso, segundo informa o governador, “outros a que eles chamam reis

ficavam ajuntando a gente, que estava mui espalhada, para com ela se recolher ao sítio que se lhe tem assinalado”'. O acordo seria implementado e o gover­

nador começou a tomar as medidas necessárias para sua execução. É possível que a sintaxe política centro-africana tenha presidido as esco­

lhas das duas partes que haviam feito o ajuste. Ambas operavam conforme práticas que não eram de modo algum desconhecidas no império português

e que haviam mostrado bons resultados na África Central. De um lado, dom Pedro de Almeida e Aires de Sousa de Castro talvez vissem na paz um jeito de obter certa estabilidade e restabelecer o domínio sobre terras cultiváveis e

gentes escravizadas em Pernambuco. De outro lado, Gana Zumba podia bus­ car uma aliança que ajudasse a fortalecer a linhagem governante dos Palmares e garantisse que seus súditos não fossem escravizados. Havia, porém, outros

elementos importantes que caracterizavam a vida política, militar e econômi­ ca deste lado do Atlântico — e que o tornavam bastante diferente do Reino e Conquista de Angola.

Em 22 de julho, para cuidar que o acordo pudesse se concretizar, Aires de Sousa de Castro determinou às câmaras e aos capitães das vilas de Sirinhaém,

Porto Calvo e Alagoas que separassem “uma pouca de farinha” para que os negros dos Palmares tivessem “algum sustento” enquanto não pudessem se

“valer de suas plantas e agilidade”2. Enviou também uma carta ao coronel das Ordenanças para que ele ajudasse a comboiar os que viessem se “aquartelar ao

sítio que pareceu mais acertado e conveniente” e a transportar a farinha arreca­ dada pelas câmaras. As medidas tinham a intenção de auxiliar o deslocamento das pessoas, e é provável que pretendessem também cuidar para que as condi­

ções fossem cumpridas como o combinado — além de ser um gesto “para que

eles experiment[ass]em no nosso agrado a segurança com que os reduzimos”3.

1. Carta de Aires de Sousa de Castro de 19Jul. 1678, ahu_acl_cu_0I5, Cx. ii, D. 1124. 2. Cartas de Aires de Sousa de Castro para as câmaras de Sirinhaém, Porto Calvo e Alagoas e para os capitães mores das ditas vilas de 22 jul. 1678, auc, cca, vi-m-i-i-31, fl. 335V, doc. 10 e fls. 335V-336, doc. 11.

3. Carta de Aires de Sousa dc Castiiro de 22 jul. 1678, idem, fl. 336, doc. 12.

234

ALTERNATIVAS

O deslocamento de tantas pessoas não era um ato corriqueiro e demandava vários preparativos. Era preciso “juntar a gente” e providenciar seu sustento, pois o trajeto iria durar alguns dias. Do ponto de vista do governo, havia que cuidar para que os habitantes dos mocambos fossem, de fato, para o local determinado e, ao mesmo tempo, não fossem atacados ou aprisionados — e o

ajuste viesse por água abaixo. Nesse caso específico, a movimentação de tanta gente revestia-se ainda de circunstâncias rituais, pois se tratava de efetivar um acordo negociado e acertado entre governos até então rivais. A providência de fornecer farinhas e destacar soldados para o comboio não

era incomum. Já havia sido tomada em outros casos, como nas negociações entre o governador Francisco de Brito Freire e os “tapuias da nação de João Duim” [os janduís], em outubro de 1661. Nessa ocasião, com a ajuda dos pa­ dres do Oratório, o governador havia conseguido que os índios se deslocassem

e se instalassem em uma aldeia, que devia ficar nas cabeceiras do rio Ipojuca, onde havia “muita caça, mel, peixe do rio, e ferramenta para trabalharem”4. A pedido dos índios, o governador aceitou mudar o local da aldeia para uma re­

gião próxima ao rio Capibaribe, desde que não estivessem “tanto ao sertão que

pareça que desconfiamos de sua vizinhança, nem tão chegados aos currais que

dela possam receber dano”5. Acertado o local, Brito Freire designou soldados do terço do Camarão para acompanhar os índios durante quinze dias e ajudá-los a iniciar as plantações para seu sustento6. Além disso, comprometeu-se a dar cem alqueires de farinha em cada um dos primeiros três meses depois da mudança, para que pudessem se sustentar7. Ato contínuo, designou o padre João Duarte do Sacramento para ficar na aldeia e nela “levantar logo igreja

no lugar que escolher e tiver por mais conveniente para conversão daquelas

almas”, que se contavam pelo número de seiscentos8.

As medidas adotadas por Aires de Sousa de Castro para o descimento dos

habitantes dos Palmares para Cucaú eram, portanto, muito semelhantes às

tomadas em relação aos janduís dezessete anos antes. Para além da farinha pro4. 5. 6. 7. 8.

Carta de concessão de Francisco de Brito Freire de 12 out. 1661, idem, fls. 62-62V, doc. 53. Carta de concessão de Francisco de Brito Freire de 22 out. 1661, idem, fls. 6ov-6i, doc. 49. Ordem de Francisco de Brito Freire de 1° nov. 1661, idem, fl. óiv, doc. 51. Carta de concessão de Francisco de Brito Freire de 12 out. 1661. Ordem de Francisco de Brito Freire de 25 out. 1661, auc, cca, VT-m-1-1-31, fls. 6i-6iv, doc. 50. Sobre os aldeamentos feitos no governo de Brito Freire com auxílio dos padres do Oratório, ver Maria do Céu Medeiros, Igreja e Dominação no Brasil Escravista, 1993, pp. 50-54.

PALMARES * CUCAÚ

235

videnciada e da presença dos oratorianos, a comparação permite aprofundar algumas observações feitas no primeiro capítulo, sobre a possibilidade de 0 governador de Pernambuco ter percebido a povoação de negros que se forma­

va na proximidade de Sirinhaém como uma aldeia indígena.

A fixação dos índios em aldeias remonta à época do primeiro governo

geral, em que havia uma intenção catequética explícita. Dos sucessos iniciais

na Bahia quinhentista, no entanto, o aldeamento havia rapidamente se trans­ formado em terreno de conflitos entre índios, padres, senhores de engenho

e autoridades coloniais’. Não pretendo historiar aqui esses embates nem os debates jurídicos que eles envolveram; basta observar que o assentamento dos

indígenas em aldeias e o modo como eram formadas e governadas estavam imbricados na delicada questão da liberdade dos índios. Ao longo do sécu­ lo xvn, a mesma legislação que oscilou entre reconhecer a plena liberdade

dos índios e permitir sua escravização, reformou diversas vezes os modos de administrar os aldeamentos e os procedimentos para utilizar e controlar o trabalho indígena10.

Convencidos pelo diálogo ou pela força das armas, os grupos indígenas eram forçados a se deslocar de suas aldeias no interior para pontos próximos

ao litoral, onde permaneciam sob o governo de padres jesuítas ou de missio­ nários - ou ainda de administradores leigos — conforme a legislação régia em

vigor. De início, os únicos responsáveis pelas missões eram os jesuítas, mas logo outras ordens religiosas vieram sejuntar a eles. A lei de 10 de setembro de 1611 restringiu a alçada dos padres aos assuntos espirituais, ao determinar que

o governo fosse exercido por um capitão — em geral, um morador de destaque na região. A provisão de 17 de outubro de 1653, a lei de 9 de abril de 1655 e a provisão de 12 de setembro de 1663 proibiram a designação de capitães e deter­

minaram que as aldeias fossem governadas pelos missionários e pelos “princi-

9. Para uma visão gera] do avanço do processo colonizador sobre os territórios indígenas ver John Hemming, “Os índios e a Fronteira no Brasil Colonial”, 1999. Para uma análise mais específica da política de aldeamentos ver Maria Regina Celestino de Almeida, Metamorfoses Indígenas, 2003, cap. 2. 10. Para uma análise da legislação indígena no século xvr e início do xvn, ver Mathias C. Kiemen, The Indian Policy of Portugal in the Atnazon Region, 1614-1693, 1973; Georg Thomas, Política Indigenista dos Portugueses no Brasil, 1300-1640, 1982; Beatriz Perrone-Moisés, “índios Livres e índios Escravos: Os Princípios da Legislação Indigenista do Período Colonial”, 1992 e Carlos Zeron, Linha de Fé, 2011, cap- 3-

236

ALTERNATIVAS

pais” das nações indígenas”. Ainda que estas últimas se referissem ao Estado do Maranhão, serviam de diretriz para outras regiões do Estado do Brasil. Localizadas em função dos interesses da administração colonial na defesa do território ou dos colonos que queriam se aproveitar do trabalho indígena, as aldeias tinham suas terras reconhecidas como um território sob jurisdição especial'2. Governadas em nome do soberano português, pelos padres, capitães

ou até pelos índios, elas constituíam um lugar diferenciado em relação ao ter­ mo das vilas e cidades, sob a alçada das câmaras. O regime de missões servia, assim, a interesses que mesclavam o proselitismo cristão, a avidez por mão de obra e a preocupações mais gerais de defesa do território colonial contra os ataques dos índios bravios ou dos negros dos mocambos'3. A política indigenista portuguesa também implicava a exploração das ri­

validades entre as várias nações — aspecto igualmente aproveitado pelos ho­ landeses e franceses em suas tentativas de se fixar na América portuguesa. Os potiguares da Paraíba, os janduís do Rio Grande, os cariris e os goianas da região do São Francisco foram os principais abados dos holandeses, enquanto os portugueses eram auxiliados por outros potiguares e por índios que haviam

sido convertidos e integravam algumas tropas, como a liderada por Antônio Felipe Camarão. A expulsão dos holandeses foi, não por acaso, seguida de guerras — chamadas “dos bárbaros” — destinadas a submeter esses contingentes

indígenas, de modo a reconstruir o domínio português na região'4. A negocia­

ção com os janduís empreendida por Brito Freire em 1661 foi apenas um dos muitos episódios desse quadro maior'5. A sintaxe política centro-africana não era, pois, a única a articular guerras

e acordos de paz em Pernambuco. Na capitania — assim como no resto do Estado do Brasil “mesmos privilégios” acertados com este último. Mais uma vez, a confiança 1na palavra empenhada e a confirmação das promessas feitas eram reafirmadas em textos administrativos. Além da instalação das pessoas em Cucaú, outras cláusulas do ajuste tam­ bém foram sendo cumpridas. No início de dezembro, o governador ordenou ao provedor da Fazenda Real que registrasse a restituição “aos negros dos Palmares, [d]as pessoas todas dos quintos” que estavam para ser remetidas para Portugal. Elas haviam sido entregues à Provedoria por dom Pedro de Almeida, e agora seriam devolvidas aos palmaristas. Do mesmo modo, o provedor ficou encarregado de registrar a entrada na Provedoria “de seis pessoas que eles trou­ xeram para se entregarem a seus donos”35. A Fazenda Real devia arcar, ainda, com os gastos feitos com “Gana Zona e os 40 negros que em sua companhia vieram dos Palmares”. O total somava 368950 réis, incluindo 128730 réis de dois vestidos para ele e uma sobrinha e 248220 réis com mantimentos36. Como se vê, os rituais da troca de presentes e do tratamento diferenciado em relação às autoridades palmaristas que se instalavam em Cucaú continuavam a ser pra­ ticados e tinham lugar nas finanças da capitania. Os poucos números referentes ao deslocamento de pessoas e à devolução de prisioneiros registrados pela documentação são espantosamente baixos: quatrocentas pessoas se instalaram em Cucaú, as embaixadas contavam de dez a quarenta pessoas e apenas seis cativos foram devolvidos a seus senhores. As

35. Ordem de Aires de Sousa de Castro de 2 dez. 1678, auc, cca, vi-111-1-1-31, fl. 338, doc. 17. 36. Ordem de Aires de Sousa de Castro de 2 dez. 1678, idein, fl. 338, doc. 18.

244

ALTERNATIVAS

I

cifras devem se referir a essa conjuntura, pois a “Relação” de 1678 menciona mais prisioneiros, contabilizando explicitamente quase duzentos nos diversos ataques aos mocambos em 167737. Como no caso dos cômputos da população dos Palmares, c difícil tanto verificar as quantidades como precisar o significa­ do dos números registrados pelas fontes administrativas para os que participa­ vam daqueles acontecimentos. Tudo parecia, de fato, caminhar bem. Mas — coincidência ou não — no final de dezembro, foi a vez de passar em revista as Ordenanças, com a convocação de todos os homens entre catorze e cinquenta anos para uma “mostra” no último dia do ano38.

A documentação é sem dúvida avara em informações, mas todos os da­ dos sugerem que as cláusulas do ajuste firmado em junho de 1678 estavam sendo cumpridas por ambas as partes. Os palmaristas desciam em grupos, sob as ordens de seus chefes, para se estabelecerem em Cucaú. O contato entre as lideranças dos Palmares e o governo da capitania se fazia conforme as regras de praxe, com troca mútua de presentes, e as condições eram cumpridas. Os prisioneiros foram devolvidos e alguns escravos restituídos a seus donos. A bibliografia é ainda mais econômica que a documentação. Se as negocia­ ções de 1678 ocupam um lugar menor na historiografia sobre Palmares, Cucaú mereceu ainda menos atenção39. O local não aparece nos mapas elaborados por Edison Carneiro em 194740 e por Hans A. Thofehrn em 1971'", nem em quase todas as obras de autores posteriores42. Há pouquíssimos dados sobre o lugar nas fontes e apenas três autores, Robert N. Anderson, Gérard Police e Felipe Aguiar Damasceno, anotam a localização de Cucaú em seus mapas; os dois

primeiros sem dar explicações, o último com mais detalhes43. 37. Padre Antônio da Silva, “Relação da Ruína dos Palmares , pp. 15-48. 38. Bando de 26 dez. 1678, auc, cca, vi-iii-i-i-31» 359» ^oc- 7^39. Rocha Pombo chegou a afirmar que os habitantes dos Palmares “não deixaram [...] suas florestas para recolher-se às matas do Cucaú” e chamou o tratado de “imaginário". História do Brasil, 1951, vol. 2, p. 125. 40. Edison Carneiro, op. cit., 1947, entre pp. 9 e 10. 41. “Tentativa de Localização Geográfica das Povoações dos Palmares...em Décio Freitas, Palmares, 1971, encarte entre as pp. 8 e 9. 42. Ver, por exemplo, a edição brasileira de Benjamin Péret, “Que foi o Quilombo de Palmares. , 2002 [1956], pp. 145-151; Flávio dos Santos Gomes, Palmares, 2005, p. 87 e Pedro Paulo de A. unan,

Arqueologia de Palmares”, 1996, p. 35. 43. Gérard Police, oP. cit., p. r7o; Robert N. Anderson, “The Quilo^o of Palmares: A New Over-

PALMARES & CUCAÚ

245

A versão inicial da “Relação” de 1678 indica tratar-se de uma “dilatada mata que jaz pelas cabeceiras de Sirinhaém e Rio Formoso, que se chama Cucaú”44. Essa região, a sudoeste de Sirinhaém, é de ocupação bastante an­ tiga já que, antes da invasão holandesa, abrigava um engenho fundado por Alexandre de Moura que, em 1623, pertencia a seu filho, Francisco de Moura. Pereira da Costa menciona que o nome lhe vinha de um riacho que nascia no município de Gameleira e cortava as terras, para desaguar no rio Sirinhaém45. Segundo Evaldo Cabral de Mello, o engenho tinha um açude e era capaz de produzir três a quatro mil arrobas de açúcar, mas, por falta de água, às vezes deixava de moer. Foi ocupado pelos holandeses, ficou abandonado por al­ gum tempo, voltou a moer, mas foi incendiado em 1639; vendido em 1641 ao comerciante Duarte Nunes, voltou a funcionar na segunda metade do sé­ culo xvn46. Na região havia também uma aldeia de índios. Ela estava situada próxima a Sirinhaém mas, em 1666, no tempo do governador Jerônimo de Mendonça Furtado, os moradores da vila pediram para mudar a aldeia para o engenho de Cucaú, para que dali os aldeados ajudassem a combater os ataques dos “negros tapanhuns” que estavam “levantados”47. A região não era, portanto, desabitada; nela havia em 1678 pelo menos um engenho e uma aldeia de índios. Os documentos disponíveis deixam enten­ der que os palmaristas (e provavelmente Gana Zumba) tenham participado da escolha das terras que lhes seriam doadas por mercê. Ao que parece, o “sítio a que chamam Cucaú” era tido como região fértil, na qual havia muitas palmei-

44. 45. 46.

47.

246

vicw of a Maroon State in Seventeenth-century Brazil”, 1996, p. 546; Felipe A. Damasceno, op. cit., 2018, mapas 539, pp. 113, 129, 162, 171, 174 e pp. 116-117. Décio Freitas (op. cit., 1984, p. no) informa que a região ficava a 32 km de Sirinhaém, número próximo do oferecido por Police, que menciona cinco léguas (p. 146), sem que se saiba a origem dos dados. Padre Antônio da Silva, “Relação da Ruína dos Palmares — O Manuscrito de Évora”, pp. 149-150. Francisco Augusto Pereira da Costa, Anais Pernambucanos, 1983 [1951], vol. 5, pp. 228-229. Evaldo Cabral de Mello, O Bagaço da Cana, 2012, pp. 127-128. Esse engenho transformou-se no século xix em usina, mantendo o mesmo nome. Sobre essa usina, ver Manuel Correia de Andrade, História das Usinas de Açúcar de Pernambuco, 1989; Gonçalves e Silva, O Açúcar e 0 Algodão em Pernam­ buco, 1929; Severino Moura, Senhores de Engenho e Usineiros, 1998. O pedido dos moradores foi atendido e o governador mandou que a câmara providenciasse os man­ timentos necessários para os primeiros meses. Ele ainda lamentou não poder ajudar com soldados, mas isentou de qualquer pena os que fizessem as entradas e matassem os que levantados que resis­ tissem. Ver duas cartas de Jerônimo de Mendonça Furtado de 17 jun. 1666, auc, cca, vi-m-i-i-31, fls. 203V-204V, doc. 171 e fls. 204V-205, doc. 172.

ALTERNATIVAS

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Mapa 4 — Cucaú, 1678-1680* *

Projeções aproximadas. Para fontes e outras informações ver “Notas Explicativas”, item 4 (p. 406).

ras. Segundo o diário da expedição holandesa que atacou os Palmares em 1645, “os negros tinham grande apreço pelas palmeiras” pois as [...] usa[va]ni para cobrir suas casas, em segundo [lugar] para fazer suas camas, em

terceiro abanos para o fogo, em quarto comem os grãos das nozes, com as quais fazem cachimbos, e comem também a parte de fora delas e os palmitos das árvores. Das no­

zes fazem um óleo para comer e uma manteiga muito branca, e também uma grapa para beber; destas árvores tiram, para comer, uns vermes da grossura de um dedo. Por isso gostam muito dessas árvores4’.

A “Relação” de 1678 registra que, das palmeiras, os habitantes dos mocam­ bos faziam “vinho, azeite, sal, roupas. As folhas servem às casas de coberturas, os ramos de esteios, os frutos de sustento e da contextura com que as pencas se

cobrem no tronco se fazem cordas para todo o gênero de ligaduras e amarras”49. A preferência por palmares é significativa, sobretudo se lembrarmos da importância do vinho das palmeiras em rituais sociais e religiosos na África

Central. A literatura sobre o sertão angolano é farta em referências ao tema.

Adriano Parreira, por exemplo, indica que além de aproveitarem os ramos,

as folhas e o tronco das palmeiras para a construção de casas e paliçadas, os habitantes dessa região usavam a fibra exterior da empela para encher colchões e travesseiros, assim como as folhas para fabricar cestos e esteiras. Os panos po­

diam ser feitos de vários tipos de palmeira, aproveitando-se as fibras de umas e

outras para fabricar sacos, cobertores, esteiras e vestuário. Alguns deles, mais

trabalhosos e difíceis de serem tecidos, eram destinados para uso exclusivo dos titulares. Outros podiam servir de moedas°.

O extenso estudo de José Curto sobre o álcool na África Central é rico em dados sobre o uso ritual do vinho de palma, chamado malavu (ou malafu). Obtido da fermentação da seiva retirada do cume da palmeira, essa bebida era consumida sobretudo pelos nobres, sobas e reis, especialmente em rituais

religiosos e em cerimônias de importância política e social, como a recepção

de convidados e casamentos. Por isso, mesmo não sendo armazenável, pois

48. Journael vande voyagiedie Cap[itey]nJohan Blaergedaen heeft naerde Palmares A.0 1645, Arquivo Nacio­ nal da Holanda, nl-H3NA_owic 1.05.01.01, inv.nr.60, doc. 47. 49. Padre Antônio da Silva, “Relação da Ruína dos Palmares”, p. 16. 50. Adriano Parreira, Economia e Sociedade em Angola, 1990, pp. 45-49 e 52-54.

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ALTERNATIVAS

azedava com facilidade, chegou a ser usado como imposto e mercadoria de troca. Seu valor prático e simbólico era tão grande que, em muitas campanhas militares no século xvn, os invasores adotavam a tática de cortar as palmeiras dos oponentes5'. Assim, se as terras próximas a Sirinhaém foram escolhidas por Gana Zum­ ba por terem “palmeiras para o seu sustento”52, certamente poderíam abrigar costumes cujas raízes remontavam ao outro lado do Atlântico. Ali o reino que se formara nos Palmares podia se instalar e crescer, e a linhagem que o gover­ nava conseguiría se enraizar. Para Aires de Sousa de Castro, a formação de uma aldeia — ou talvez de um sobado estável — podería ser o fim dos confrontos com os negros rebeldes que tanto atormentavam os moradores da capitania.

2. Problemas Pouco mais que isso se consegue saber sobre os acontecimentos relacionados à mudança da gente de Gana Zumba para Cucaú. Além dos documentos cita­ dos, há ainda o relato feito por Aires de Sousa de Castro na carta que enviou ao príncipe português, em 8 de agosto de 1679”. Ela informa que pelo menos três mocambos, “onde estavam os seus principais”, desceram para Cucaú com suas famílias. Nem todos, porém: segundo o governador, não se havia conseguido “re­ duzir com a mesma brevidade” um deles, “por ficar mais distante”. Lá haviam se refugiado a maior parte dos cativos que tinham “repugnância” de “torna­ rem [a voltar] para a casa de seus senhores”. Duas tentativas para submetê-los foram feitas, uma delas com a ajuda de Gana Zona, sem sucesso. Mas alguns haviam atendido a seu chamado e teriam ido com ele para Cucaú54. 51. José C. Curto, Álcool e Escravos, 2002, esp. pp. 48-62. 52. Padre Antônio da Silva, “Relação da Ruína dos Palmares - O Manuscrito de Évora”, p. 150. 53. Carta de Aires de Sousa de Castro de 8 ago. 1679, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 12, D. 1144. Essa carta está apenas parcialmente legível. Seu conteúdo pode ser recuperado por meio do resumo oferecido na consulta do Conselho Ultramarino de 26 jan. 1680, AHü_ACL_cu_Consukas de Pernambuco, Cod. 265, fls. 26-27V. 54. Idetn, ibidetn. Relatos militares posteriores mencionam duas ou três entradas “em demanda do ne­ gro Zumbí ” que não conseguiram localizá-lo, mas destruíram roças e fizeram prisioneiros. Ver a informação do Conselho Ultramarino de 1692, ahu_acl_cu_oi5, Cx. 16, D. 1576; consulta do

PALMARES & CUCAÚ

249

O governador também pondera que, como agora o governo de Pernam­ buco contava com guias fornecidos pelos “próprios negros”, seria mais “fácil induzi-los por força” mesmo que tivessem penetrado no “mais oculto daque­ les Palmares”. Aires de Sousa de Castro intentava fazer novas expedições logo após a partida da frota. Por outro lado, observava que, apesar dessa demora, ha­ via distribuído 190 léguas de terras nessa região, que “todos se comunica [va] m sem fazer prejuízo” e que, agora, os palmares estavam “cheios de estradas e de muitos gados”55. Uma lista das sesmarias doadas pelo governador depois de “cessado o prejuízo que faziam os negros dos Palmares”56 permite conhecer os nomes dos agraciados — vários deles comandantes de tropas que haviam atacado os Palmares junto com Fernão Carrilho, contemplado com vinte léguas de ter­ ras57. Segundo o levantamento de Felipe Damasceno, a maior parte das terras doadas estavam situadas ao sul dos Palmares, entre os Campos de Garanhuns e Alagoas do Sul; apenas duas sesmarias ficavam ao norte, mais próximas da região ocupada pelos mocambos palmaristas58. De todo o modo, a rapidez na distribuição das terras indica cobiça, que combina bem com a insistência do padre Antônio da Silva em afirmar, na sua “Relação”, que os Palmares estavam situados numa região montanhosa, mas cheia de “várzeas fertilís-

Conselho Ultramarino de 5 abr. 1702, ahu_acl_cu, Consultas Mistas, Cod. 19, fls. 331V-336V, entre outras. 55. Carta de Aires de Sousa de Castro de 8 ago. 1679, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 12, D. 1144. O governador opera aqui com a oposição entre o sertão bravio e resiliente (“o mais oculto daqueles Palmares”) e terras conquistadas e apaziguadas (“cheios de estradas e de muitos gados”). O recurso retórico é analisado por Kalina Vanderlei Silva, Nas Solidões Vastas e Assustadoras, 2010, esp. cap. 3. 56. “Declaração das Léguas de Terras...”, idem, Cx. 12, D. 1150. O documento está anexo à carta de João Fernandes Vieira de 20 ago. 1679, mas é mencionado expressamente na carta de Aires de Sousa de Castro de 8 ago. 1679, que indica remetê-la ao Conselho junto com a missiva, e na consulta de 2Ójan. 1680, que a examina. Deve ter sido deslocado no processamento arquivístico. Ernesto Ennes (Aí Guerras nos Palmares, 1938, doc. 8) lhe atribui a data de 1685, mas o cruzamento dos dados indica ter sido escrita provavelmente em 8 ago. 1679. 57. Além de Carrilho, os principais beneficiados foram: o capitão João de Freitas da Cunha, com cin­ quenta léguas, o coronel Belchior Álvares, com quarenta léguas e os capitães Domingos Gonçalves Freire, Estevão Gonçalves e Gonçalo Teixeira, com dez léguas cada um. Eles ocupavam postos nas Ordenanças e vários tinham cargos administrativos e terras (na Paraíba ou nos sertões a noroeste das Alagoas). Para uma análise das sesmarias doadas e dos agraciados ver Felipe A. Damasceno, op. cit., 2018, pp. 162-171. 58. Felipe A. Damasceno, op. cit., 2018, esp. Mapa 8, p. 171.

2J0

ALTERNATIVAS

simas para as plantas” e, à oeste, com campos menos férteis, “só para pastos acomodados”59. O governador estava esperançoso de que tudo iria se acertar em breve. O acordo estava sendo cumprido e a resistência de um mocambo - motivada pela “repugnância” de serem reescravizados - poderia ser facilmente contor­ nada com a ajuda de Gana Zona. A distribuição das sesmarias, mesmo sem incorporar diretamente o território palmarista ao domínio colonial, era usada para mostrar que se caminhava nesse sentido. A segurança pretendida, entre­ tanto, “ainda” não fora totalmente alcançada. Ao final de sua carta, comen­ tava rapidamente que, “depois” de “reduzidos” os negros, os moradores que haviam deixado seus engenhos e fazendas, por não se sentirem seguros em suas casas, poderiam novamente se instalar na região. Mostrava-se, porém, um pouco apreensivo, pois apesar de ter relatado tudo “o que tem sucedido sobre esta matéria”, continuava sem ter “a resolução de Sua Alteza para com ela se conseguir todo o acerto”69. Como se vê, mesmo depois de tantas novidades, Lisboa e o Recife continuavam a ter diferenças no ritmo e na avaliação dos acontecimentos. Em 16 de agosto foi a vez de o provedor da Fazenda, João do Rego Barros, enviar sua versão dos fatos61. Segundo ele, apenas “dois príncipes potentados”, Gana Zumba e seu irmão, tinham descido para Cucaú, com quase “300 almas”, ficando nos Palmares outro potentado, chamado Zumbi, “com sua tropa”62. Vários avisos haviam sido mandados pelos tios ao sobrinho Zumbi e se havia até prometido a ele “o perdão, em nome de [sua] alteza, como aos mais se havia feito” — sem sucesso. O provedor ensaia uma explicação para essa resis­ tência, já que Zumbi aparece descrito como alguém que tinha “feito grandes danos e mortes aos moradores” da região e, por isso, tinha receio em se juntar 59. Padre Antônio da Silva, “Relação da Ruína dos Palmares”, pp. 17-18. 60. Carta de Aires de Sousa de Castro de 8 ago. 1679, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 12, D. 1144. 61. Carta de João do Rego Barros de 16 ago. 1679, idern, Cx. 12, D. 1146. Infelizmente, o documento está ilegível, mas seu conteúdo pode ser recuperado pelo resumo que consta na consulta do Con­ selho Ultramarino de 26 jan. 1680, AHü_ACL_cu_Consultas de Pernambuco, Cod. 265, fls. 26-27V. 62. Apesar de bastante danificada, o original da carta de Rego Barros registra com clareza que o nome da liderança que permaneceu nos Palmares é Zotnby. A consulta do Conselho Ultramarino de 26 jan. 1680, que resume seu conteúdo, grafa o nome como Zombiy e Zombi. Estes dois documentos e outras fontes administrativas datadas de 1679 e 1680 permitem ter certeza de tratar-se agora de uma mesma e única pessoa, que passamos a chamar, seguindo a tradição historiográfica, de Zumbi. Para mais informações acerca das denominações, ver Notas Explicativas, item 3, pp. 392-398.

PALMARES 8c CUCAÚ

251

aos outros — além de trazer “consigo a melhor gente de guerra”. Como Gana Zona não havia conseguido convencê-lo, o governador, depois de consultar os capitães e oficiais da câmara, se resolveu “logo dar guerra e destruir este negro rebelde”, pagando-se as custas da tarefa com os quintos das casas do Recife63. O relato feito por Rego Barros é mais objetivo e pragmático — e mais pessimista. Segundo ele, são apenas dois mocambos e não três que desceram para Cucaú e Zumbi é retratado com características bélicas fortes o suficiente para justificar sua resistência: ele não só tinha uma “tropa” como reunia os melhores combatentes. Somadas as informações das duas cartas, fica claro que, para as autoridades coloniais, a decisão de Zumbi se justificava pelo medo de ser ele punido pelos “grandes danos e mortes” que havia infligido “aos mora­ dores daquele distrito”, e a de seus companheiros por não quererem voltar a ser escravos. Se os motivos correspondem ou não à avaliação dos palmaristas é difícil confirmar. As informações sugerem que, diferentemente do grupo de Gana Zumba, em que havia filhos e netos — portanto gente nascida nos mocambos — e “famílias”, Zumbi agregava em torno de si pessoas que haviam vivido na escravidão — e que não queiram voltar para ela. Além de fugitivos inconformados, eram também bons guerreiros64. As duas cartas indicam ter havido divergências entre as lideranças dos Pal­ mares. Elas não quebraram, entretanto, suas hierarquias internas: a autoridade do rei manteve-se e a discordância gerou o afastamento de todo um mocambo sob a liderança de um de seus parentes. A rebeldia de Zumbi, nesse caso, foi dupla, já que recusou ao mesmo tempo o poder de Gana Zumba e o que fora ajustado emjunho de 1678. Como resultado, internou-se no mato. Lembran­ do das observações de Igor Kopytoff, pode-se afirmar que o procedimento não era extraordinário - sendo até comum em situações de crise na África Central, em que o deslocamento de grupos que se separam das sociedades 63. Consulta do Conselho Ultramarino de zójan. 1680, AHU_ACL_cu_Consultas de Pernambuco, Cod. 265, fls. 26-27V. O escrivão erra ao transcrever o nome de Gana Zumba, substituindo o nome pró­ prio por um advérbio: “dois príncipes potentados, enganosamente (sic) e seu irmão” (fl. 27). 64. Idetn, ibidem. Raymond Kent atribui à diferença na composição dos habitantes dos mocambos a reação diante do acordo de paz, que teria sido aceito por aqueles em que predominavam os nativos (crioulos ou nascidos nos Palmares), como em Macaco, ou os recém-chegados (ou recém-saídos da escravidão), como nos mocambos de Zambi e Amaro. No entanto, não há dados na documentação que sustentem tal avaliação. Raymond K. Kent, “Palmares: An African State in Brazil”, 1965,

P- 173-

252

ALTERNATIVAS

!'!

originais fazia avançar a fronteira65. Mais uma vez a sintaxe política centro-africana se fazia presente nas matas de Pernambuco, servindo de guia para que os dissidentes avançassem na direção dos lugares “mais ocultos” daqueles palmares, em busca de refúgio e de condições para se estabelecerem em torno de uma Liderança militar. Ainda que as fontes sejam avaras, elas revelam a continuidade e o desdo­ bramento de dinâmicas presentes nos acontecimentos que deram origem ao acordo de 1678. O avassalamento ou a permanência nas matas eram possibili­ dades que podiam ser avaliadas e encaminhadas segundo lógicas centro-africanas. Mas as entrelinhas da documentação permitem também aventar uma diferença entre os que haviam permanecido mais tempo nos mocambos, com famílias e filhos, e aqueles que haviam experimentado a escravidão. A recusa de Zumbi, portanto, pode ter sido não apenas em relação a Gana Zumba e ao acordo, mas sim da escravidão. Isso não significa que os que desceram para Cucaú não tenham sido escravos antes da vida nos Palmares, mas que a expe­ riência da escravidão em Pernambuco pode ter pesado de modos diversos nas opções que se abriam para os habitantes dos Palmares. Como previa uma das cláusulas do acordo de 1678, havendo renitentes, era o caso de obrigá-los a se ajuntarem aos que desciam para Cucaú - o que estava sendo feito por tropas comandadas por gente dos Palmares e por oficiais de Pernambuco. A guerra ia recomeçar — mas não do mesmo modo que até então fora feita, pois membros da linhagem governante dos Palmares e Gana Zona participavam das expedições e dos combates ao lado das tropas coloniais66. Mesmo sem contar com notícias de Lisboa, o governador continuou a agir e tomou as providências necessárias. Entre 17 de agosto e 13 de setembro de 1679 expediu várias ordens, com a finalidade de armar uma expedição. Elas se encarregaram de tornar evidente que a decisão de “fazer de novo a guerra” fora tomada em reunião da Junta da capitania e sejustificava pelo fato de que nem todos os negros dos Palmares tinham aceitado viver “debaixo da obe­ diência deste governo nas partes que se lhe[s] assinalou”: havia “faltado a esta 65. Ver Igor Kopytoff, “The Internai African Frontier: The Making of African Political Culture", 1987. Para maiores comentários ver o item “Além da Cultura” no cap. 2. 66. Desde junho de 1679, Antonio Pinto Pereira e Gana Zona já realizavam incursões juntos para re­ duzir os que não se conformavam com as cláusulas do acordo. Carta de Aires de Sousa de Castro de lojun. 1679, ahu_acl_cu_0T5, Cx. 19, D. 1863, anexo 17.

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palavra o negro Zumbi com os inais do seu mocambo”67. Assim, o binômio da obediência e da rebeldia foi retomado e posto mais uma vez em prática, a fim de justificar as entradas para reduzir os que se recusavam a cumprir o acordo. Ainda em agosto, o governador nomeou Manuel Lopes para comandar a expedição e publicou um bando a fim de incentivar as pessoas a integrarem a campanha: os prisioneiros que fossem escravos dos moradores seriam entre­ gues aos donos mediante o pagamento de um “assento”, como de costume, mas os outros poderíam ser livremente repartidos entre os participantes da entrada (sem o pagar o quinto, portanto), e os que ajudassem com escravos para carregar os mantimentos seriam atendidos em seus pedidos de postos nas Milícias e em ofícios públicos68. Mandou que as câmaras de Sirinhaém, Porto Calvo, Alagoas e Rio de São Francisco ajuntassem, “com toda a brevidade”, a gente e os mantimentos necessários6”. Ordenou à câmara de Itamaracá que enviasse o que se havia arrecadado com o contrato do sal7° e determinou ao provedor da Fazenda que distribuísse 102S000 réis para os oficiais que iriam combater em Palmares71, bem como para comprar munições71, medicamentos e alimentos73. Manuel Lopes deve ter partido em seguida, mas logo encontrou dificul­ dades pois, em 8 de dezembro, o governador determinou que o capitão João de Freitas da Cunha saísse da vila das Alagoas em direção aos Palmares, com toda as munições, pessoas, soldados e escravos para carregar os mantimentos, para “ir investir ao mocambo em que está o negro Zumbi aquartelado”. Como Bando de 17 ago. 1679, auc, cca, vi-in-l-l-31, fl. 339V, doc. 24. Bando de 17 ago. 1679, idem, fl. 340, doc. 24. Cana de Aires de Sousa de Castro de 17 ago. 1679, idem, fl. 340, doc. 25. Ordem de 18 ago. 1679, idem, fl. 360V, doc. 86. Ordem de 30 ago. 1679, idem, fl. 360V, doc. 86. O sargento-mor Manuel Lopes recebeu 50S000 réis, o capitão Cipriano Lopes, o capitão Antonio Pinto e o capitão Estevão Gonçalves io$ooo réis cada um, o capitão-mor do campo Francisco Ramos, o sargento-mor dos pretos João Martins e o ajudante Francisco Tavares (responsável pelas munições e mantimentos) 6S000 réis cada; e o capitão do terço dos pretos Alexandre Cardoso 48000 réis. 72. Ordem de 30 ago. 1679 e de 12 set. 1679, auc, cca, vi-in-i-1-31, fls. 360V, doc. 87 e fls. 361-361V, doc. 91. 73. Duas ordens de 1® set. 1679; idem, fls. 360V-361, doc. 88 e fl. 361, doc. 89. Por ter mantido as tropas mobilizadas e logo reiniciar os combates, Mário M. Freitas considera Aires de Sousa de Castro um governante previdente. Reino Negro de Palmares, 1988 [1954], pp. 255 e 257. Décio Freitas (pp. cit., 1984, pp. 19-120) afirma que uma guarnição havia sido mantida no arraial do Bom Jesus e a Cruz, fundado por Carrilho. A documentação, porém, não fornece indícios seguros sobre isso.

67. 68. 69. 70. 71.

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sempre, havia o incentivo de repartir os prisioneiros igualmente pelos solda­ dos, mas agora se acrescentava a pena de “três tratos de braço solto” e degredo para Angola para aqueles que desertassem “tanto da marcha como da campa­ nha sem licença”; além da pena física, eles ficariam conhecidos “pela infâmia de se retirarem de ocasião tão importante”. As medidas eram severas e, ao invés de serem pregadas na porta da matriz, como em ocasiões anteriores, deviam ser anunciadas ao som de caixas “na presença de todos”7*. As providências tomadas em seguida confirmam os contratempos - a cam­ panha não estava sendo tão fácil quanto o previsto. Às tropas que perseguiam Zumbi e os que haviam se ocultado nas matas dos Palmares logo se juntaram mais soldados, pois em 16 de fevereiro, André Dias, morador em São Miguel, foi nomeado “capitão-mor de campo da vila das Alagoas e seus distritos”. Ele tinha ordens para percorrer “o campo e mais lugares por onde tiver notícia que andam negros fugidos e levantados”, com poder para os prender “em qualquer parte onde os colher ainda que seja em fazendas ou casa de quaisquer morado­ res” e de matá-los “livremente” se resistissem7’. Em relatos militares posteriores estas dificuldades são omitidas, registran­ do-se que Manuel Lopes comandou mais de duzentos homens, instalando-se num arraial nas matas por seis meses, fazendo mais de seiscentos prisioneiros76. Tais resultados, que não foram de pouca monta, devem ter compensado os custos — supridos (ao menos em parte) pelas câmaras77. Além das expedições militares, o governador também tomou outras deci­ sões, que interferiam no domínio dos senhores sobre os escravos reavidos. Elas

74. Bando de 8 dez. 1679, auc, cca, vi-in-l-1-31, fl. 362, doc. 94. Dois dias antes, o governador já havia mandado o almoxarife da capitania entregar munições ao capitâo.Ver ordem de Aires de Sousa de Castro de 6 dez. 1679, idem, fl. 361 v, doc. 93. 75. Carta patente de Aires de Sousa de Castro de 16 fev. 1680, ihgal, Cx. oi, Pac. 02, Doc. 02, fls. 5959V. 76. Ver, entre outros, consulta do Conselho Ultramarino de 4 mar. 1687, certidão de Manuel Lopes de 13 abr. 1680 e consulta do Conselho Ultramarino de 8 ago. 1684 ahu_acl_cu_0I5, Cx. 14, D. 1406; Cx. 19, D. 1863, anexo 7 e Cx. 13, D. 1297. Um relato dos feitos de Manuel Lopes menciona que nessa expedição foram mortas “mais de 800 peças”. Consulta do Conselho Ultramarino de 30 jan. 1689, idem, Cx. 15, D. 1475. 77. Em uma carta de obrigação de 26 jan. 1680, por exemplo, a vila de Alagoas determinava que seus moradores deviam arcar com o envio ao arraial instalado nos Palmares um comboio com vinte arrobas de carne, quinhentos curimãs e duas mil tainhas, carregados por cinquenta negros, que devia chegar lá “até 10 de fevereiro”, ihgal, Cx. oi, Pac. 02, Doc. 02, fl. 56V.

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estavam baseadas na constatação de que os prisioneiros que permaneciam em Pernambuco “em muito pouco tempo, não somente fugiam, mas ainda sedu­ ziam a outros para que o fizessem”. Por isso, era mesmo preciso que fossem enviados para o Rio de Janeiro ou para Lisboa — única forma de se conseguir de fato “extingui-los”. Em 26 de fevereiro de 1680, o governador ordenou então que os moradores que tivessem escravos “destes que se aprisionaram e que conhecidamente forem seus” os embarcassem para fora da capitania num prazo de oito dias. As mulheres podiam ficar, desde que entregues “conforme o assento que nesta parte se usa” — é difícil de saber a que procedimento se referia. Mas a determinação era clara e, como se tratava de uma “conveniência do serviço” real, os custos deviam correr por conta dos donos dos escravos78. Portanto, além de arcar com as despesas da guerra, os senhores teriam agora que perder seus cativos e pagar para deportar os que fossem aprisionados. A ordem, evidentemente pouco popular entre os proprietários de escravos reavidos depois de tantos esforços, não impõe penas, talvez para deixar alguma margem de negociação ou evitar abrir outra frente de conflitos. Apesar do ônus e dos problemas, os resultados parecem ter ido além da quantidade de prisioneiros. Entre eles havia gente que podia ser identificada e nomeada, como “um negro a que chamam Maioio”, acusado pelos moradores de Porto Calvo, Alagoas e Rio de São Francisco de cometer “grandes crimes e insolências”. Ele fora preso por Manuel de Inojosa e enviado à cadeia do Recife, às ordens do ouvidor-geral e auditor da gente de guerra para ser pro­ cessado e castigado79. É revelador o fato de se recorrer à Justiça. Como se viu,

as ações dos negros dos Palmares eram percebidas sob a tópica da rebeldia. Os rebeldes podiam ser reduzidos à obediência - como no caso da instalação da aldeia de Cucaú — e os escravos fugidos deviam ser aprisionados e devolvidos a seus donos. No caso de criminosos, era preciso punir os crimes cometidos contra os moradores - daí o recurso à Justiça. O balanço geral era positivo e o fato foi comunicado ao governador do Estado do Brasil, que felicitou o colega de Pernambuco diante do “excelente 78. Bando de 26 fev. 1680, auc, cca, vj-m-i-i-31, fls. 34OV-341, doc. 28. 79. Aviso de Aires de Sousa de Castro de 18 mar. 1680, idem, fl. 341V, doc. 30 e informação do Conselho Ultramarino (de 24 mar. 1683]. ahu_acl_cu_015, Cx. 13, D. 1248. Domingos do Loreto Couto afirma que foi João Martins, sargento-mor do terço dos Hcnriques, quem prendeu Maioio “prin­ cipal de um mocambo e autor de grandes delitos”. Op. cit., 1903 (1757], p. 107.

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sucesso”80. A correspondência entre as duas autoridades mostra que os es­ forços para a destruição do mocambo de Zumbi e a prisão dos que resistiam e continuavam pelos matos ultrapassavam os limites da capitania, já que o governador geral se comprometia a voltar a pagar os soidos de Manuel de Inojosa, que também participava das guerras contra Palmares. Em Pernam­ buco, outras câmaras além das mais próximas dos Palmares, como no caso da vila de Olinda, associavam-se para pagar os oficiais que corriam os matos em busca de fugitivos81. Mais uma vez, a via da guerra não foi a única a ser tentada. Em março de 1680, Manuel Lopes, o sargento mor encarregado do comando das expedições, fez publicar um bando em que pedia a qualquer pessoa que, “por alguma in­ dústria”, noticiasse “ao capitão Zumbi” que o governador “novamente lhe tem perdoado em nome de sua alteza que Deus guarde todos os crimes que contra estes povos tem cometido”, desde que “se reduza à obediência das nossas ar­ mas, buscando [...] a seu tio Gana Zona para viver a mesma liberdade com toda [a] sua família”. Como se vê, a oferta reiterava os termos acordados em junho de 1678, que eram cumpridos por Gana Zona, “o único homem que soubefra] guardar sua palavra”82. Ao autorizar qualquer pessoa a servir de intermediário, o sargento mor reconhecia ter dificuldade para localizar Zumbi e, ao mesmo tempo, que outras pessoas podiam chegar até ele sem serem incomodadas. O interessante é que Manuel Lopes e o governador não pediram que Zum­ bi se entregasse, mas que fosse morar “com seu tio, ficando com toda [a] sua família liberta”. O reconhecimento do poder das lideranças com as quais se havia negociado a paz era, assim, reiterado — agora na figura de Gana Zona. Essa era a forma de reduzir a rebeldia de Zumbi. Mais interessante ainda é o fato de o bando, além de ofertar a paz, trazer explicações sobre a prisão de algumas lideranças palmaristas. João Mulato, Canhogo, Gaspar e Amaro haviam sido detidos, pois “tinham combinado com muitos escravos [...] cativos para se alevantarem faltando às pazes prometidas” e por terem matado “com peçonha seu rei Gana Zumba para melhor fazerem a sua aleivosia”. É assim que se fica sabendo da morte de Gana Zumba. A prisão 80. Carta de Roque da Costa Barreto de 2 mar. 1680, auc, cca, vi-in-1-1-31, fl. 341, doc. 29. 81. Ordem de Aires de Sousa de Castro de 20 mar. 1680, idem, fl. 362, doc. 95. 82. Bando do sargento-mor Manuel Lopes de 26 mar. 1680, ihgal, Cx. oi, Pac. 02, Doc. 02, fls. 57V-58. As citações dos dois próximos parágrafos sào retiradas deste documento.

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dos revoltosos se justificava pelo crime cometido, não porque o governador desejasse faltar “ao que com eles tinha efetuado”. A situação era, portanto, delicada. Dois dos agraciados com a alforria em 1678, João Mulato e Amaro, haviam conspirado contra o que fora ajustado; tratava-se de traição e, por isso, era preciso prendê-los. Podiam ser reescravizados; mais que isso: como tinham cometido o crime de atentar contra a vida de um rei reconhecido pelas autoridades coloniais, deviam ser processados e punidos. É difícil imaginar que essa lógica tenha sido compreendida ou aceita por Zumbi. Na sintaxe política centro-africana, como vimos, a discordância po­ lítica implicava a separação das facções em disputa e, eventualmente, a aliança de uma delas com grupos rivais. Assim fizeram os portugueses e muitas lide­ ranças políticas do Ndongo - Njinga é um dos exemplos mais famosos. Em alguns casos, as lutas sucessórias e as conspirações contra os sobas e potentados locais incluíam o assassinato por envenenamento. Venenos também eram uti­ lizados em julgamentos judiciais centro-africanos, como forma de ordálio’3. Infelizmente, as fontes são fragmentárias demais para que a hipótese possa ser verificada. Não há dados para saber se houve ou não ligação entre Zumbi e o grupo acusado de ter matado Gana Zumba, nem se a conspiração objetivava a fuga coletiva, uma rebelião ou somente a deposição de Gana Zumba. Também dessa vez, é a carta enviada pelo governador de Pernambuco a Lisboa, em 22 de abril de 1680 que oferece um panorama mais abrangente da situação84. Ele conta que, depois da partida da frota, havia mandado Manuel Lopes e outras tropas da capitania entrar “para o sertão” e atacar todos os “mocambos e famílias”. Eles tinham conseguido derrotar os negros, havendo muitos “cativos e mortos, que passa[v]am de 800 peças”, além dos que mor­ riam “de doença [e] por falta de mantimentos e [do] aperto que se lhes fizera”. 83. Um caso famoso c a morte por envenenamento de Ngola Mbande, em 1624, que levou à ascensão de Njinga ao poder. Ver Linda M. Heywood, Njinga of Angola, 2017, p. 55. Um exemplo judicial é o “juramento de ndua", analisado por Roquinaldo Ferreira, Cross-cultural Exchange in the Atlantic World, 2012, pp. 196-201. Jessica A. Krug argumenta que, apesar da falta de informações, o recurso ao veneno, no caso de Palmares, pode ter sido uma forma de contestar o poder monárquico cen­ tralizado de Gana Zumba. Fugitive Modernities, 2018, pp. 160-161. A habilidade dos cativos com venenos no Brasil seiscentista é mencionada na informação de Cristóvão de Burgos de Io ago. 1681, AHU_ACL_CU_005, Cx. 25, D. 30l8. 84. Carta de Aires de Sousa de Castro de 22 abr. 1680, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 12, D. 1163. O documen­ to está ilegível e seu conteúdo é resumido na consulta do Conselho Ultramarino de 8 ago. 1680, AHü_ACL_cu_Consukas de Pernambuco, Cod. 265, fl. 29V.

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Só restara “Zumbi que é o que hoje os governa, mas com mui poucos”. Como havia ainda gente que estava se “passando para nós por não terem outro remé­ dio” e as tropas continuavam suas diligências, mesmo no “rigor do inverno”, a avaliação do governador e dos moradores era relativamente otimista, ainda mais porque eram ajudados pelo “maioral dos negros que assistia na aldeia de Cucaú [...], com zelo e fidelidade”. Mas isso não era tudo: os que haviam permanecido em Cucaú “se foram desviando do que prometeram” e estavam “conjurados para se retirarem ou­ tra vez levando muitos escravos dos moradores daquela vizinhança, além de darem avisos e levarem mantimentos e munições para a defesa dos outros pos­ tos”. Fora então preciso “mandá-los prender e havê-los por cativos, como os mais”. A decisão fora tomada com o “parecer dos letrados, soldados e pessoas de maior capacidade” e o quinto da Coroa, obtido com os prisioneiros, fora aplicado para custear as guerras. A pilhagem livre para os soldados fora aplica­ da apenas em relação aos outros prisioneiros85. Nem uma palavra sobre a morte de Gana Zumba e a prisão de seus auto­ res. O balanço da situação não parecia muito alentador para Aires de Sousa de Castro. Os rebeldes que não haviam descido para Cucaú estavam quase de todo derrotados, mas ele fora obrigado a prender e a cativar muitos dos que estavam na aldeia. Ainda que o governador não enuncie com todas as palavras, o acordo fracassara. O quadro parece claro: ele se certificara de que os que estavam em Cucaú conjuravam para fugir e os mandara prender. Não foram, entretanto, enviados à justiça nem despachados para fora da capitania, mas simplesmente reescravizados. Ao considerá-los “cativos, como os mais”, Aires de Sousa de Castro quebrou o padrão até agora seguido, que separava rebeldes, fugidos e crimi­ nosos. A decisão deve ter sido difícil, pois fora necessário consultar várias pes­ soas. Todos passaram a ser considerados fugitivos - e a gente das Ordenanças estava liberada para escravizar qualquer “negro” que andasse pelos matos. Os relatos dos feitos militares apresentados posteriormente por candida­ tos a postos e mercês registram que o governador de Pernambuco ordenou marchas em direção às aldeias do Una e de Cucaú86. Na primeira, que era uma 85. As citações, aqui, foram retiradas do resumo da carta de Aires de Sousa de Castro de 22 abr. 1680, constante da consulta do Conselho Ultramarino de 8 ago. 1680. 86. Consulta do Conselho Ultramarino de 28 fev. 1688, ahu_acl_cu, Consultas Mistas, Cod. 18, fls.

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aldeia de índios, foram presos “alguns negros que nela se achavam”, sem que se possa encontrar mais detalhes a respeito8’. O ataque a Cucaú, porém, aparece explicitamente justificado pela quebra do acordo e pelo fato de ali se abriga­ rem os que eram combatidos pelas autoridades coloniais. O “cerco que se pôs à aldeia de Cucaú” durou cerca de três meses e resultou na prisão de “todos os negros rebeldes”: cerca de “200 peças, entre famílias e negros de armas” incluindo “os principais motores da rebelião”88. Pedro de Sousa de Castro, filho do governador, participou desta expedição, reivindicando depois para si o mérito de ter destruído a aldeia, castigado os “principais cabeças do motim” e levado ao Recife mais de “600 peças”8’. Ele pode ter exagerado; mesmo as­ sim, as informações convergem com as fornecidas pelo governador e indicam a importância do episódio. O fim de Cucaú não deixou Aires de Sousa de Castro muito satisfeito: em meio às notícias enviadas para Lisboa, comentou que, embora “todos aqueles moradores e soldados antigos” confessassem ter obrado “alguma coisa” na­ quele ano, “ele governador tinha pouca experiência do Brasil, [ej não o sabia avaliar por tal”. Ficava, porém, com “o sentimento de não poder adquirir o [que] desejava no real serviço”. Como consolo, ponderava que “a muita des­ pesa daquela guerra” não havia onerado a Fazenda Real90. Para quem havia tido tanto orgulho de ter reduzido os negros no “tempo do seu governo”, o fim da aldeia de Cucaú parecia diminuir o brilho de ter destruído os mocambos. Em junho daquele ano, atendendo a uma petição do próprio governador, encaminhada por decreto ao Conselho Ultramarino, os conselheiros opinaram a favor de sua substituição: Aires de Sousa de Castro

131-131 v; consulta do Conselho Ultramarino de 8 jan. 1705, ahu_acl_cu_oi5, Cx. 21, D. 1987; carta patente de 11 jun. 1698, antt, chr, Pedro 11, L. 24, fls. 269-269V e antt, rgm, Pedro 11, L. 9, fl. 366V. 87. Carta patente de 29 nov. 1683, antt, chr, Afonso vi, L. 52, fls. 261-261 v e consulta de 28 fev. 1684, AHU_ACL_CU_005-02, Cx. 2Ó, D. 322$.

88. Ver, entre outras, consulta do Conselho Ultramarino de 4 mar. 1687 e informação do Conselho Ultramarino de 1692, ahu_acl_cu_015, Cx. 14, D. 1406 e Cx. 16, D. 1576; carta padrão de 21 jan. 1700, antt, chr, Pedro 11, L. 26, fls. 94V-95V. 89. Consulta do Conselho Ultramarino de 6 set. 1681, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 12, D. 1204 e ahu_acl_ cu, Consultas Mistas, Cod. 17, fls. 338-34. 90. Consulta do Conselho Ultramarino de 8 ago. 1680, AHU_ACL_cu_Consultas de Pernambuco, Cod. 265, fl. 29v.

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alegava sofrer de “achaques doenças tão graves”, queria retornar a Lisboa e já se haviam completado os três anos de seu mandato9'. Antes de continuar a análise, cabe tratar do modo como a bibliografia interpretou esses acontecimentos. Edison Carneiro observa que, apesar das festas em Olinda e Recife, e do fato de os vitoriosos se sentirem tranquilos o suficiente para pedir a doação de terras e sesmarias em recompensa de seus serviços, as dúvidas sobre o acordo se concretizaram: ele não foi aceito “pelos chefes mais resolutos dos Palmares”92. Zumbi, sobrinho do rei, se internou nos matos, “certamente com outros chefes de mocambos mais jovens”, para conti­ nuar a lutar. Foi tentada uma negociação com Zumbi, sem êxito: “enérgico, resoluto, obstinado, Zumbi iria dar à luta o caráter heroico que a celebrizou entre as insurreições de escravos no Brasil”93. A oposição entre velhice e juventude, associada ao binômio acomodação e resistência aparece em diversos autores e é a principal chave interpretativa dos eventos. A ela se agregam outros elementos. Manuel Arão afirmou, por exem­ plo, que o acordo de paz não tinha sido tratado com as autoridades competen­ tes dos Palmares, o que motivou a dissensão que levou ao assassinato de Gana Zumba e à emergência de um novo rei, Zumbi94. O tema da autoridade está presente também em Jaime de Altavilla, que ponderou que os habitantes dos Palmares possuíam ideais e princípios, marcando uma distância moral entre Gana Zumba e Zumbi, evidenciada pela aceitação da paz pelo primeiro e pela renúncia às regalias e galhardias oferecidas ao segundo93. Alfredo Brandão, por sua vez, considerou que Zumbi “desconfiou das promessas dos portugueses”, recusou-as, “revoltou-se contra o próprio tio, o rei, matou-o com peçonha, reuniu os seus cabos de guerra, internou-se nas matas e, como chefe, como rei,

continuou a luta”96.

91. Consulta do Conselho Ultramarino de 25 jun. 1680, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 12, D. 1167 e ahu_acl_ cu, Consultas de Partes, Cod. 48, fls. 266V-267. 92. Edison Carneiro enfatiza que os governantes dos Palmares eram idosos, como Gana Zumba e seus auxiliares mais imediatos. Afirma ainda ser ele um “homem idoso quando resolveu fazer as pazes de 1678”. Op. cit., 1958, pp. 69-70 e 119. As fontes não permitem confirmar as informações. 93. Idern, p. 119. 94. Manuel Arão, “Os Quilombos dos Palmares", 1922. 95. Jayme de Altavilla, “A R.edempção dos Palmares”, 1926, p. 59. 96. Alfredo Brandão, “Os Negros na História de Alagoas”, 1988 [ 1935]. P- 72-

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Mesmo para Benjamin Péret, que não dedicou muita atenção às negocia­ ções de 1678, Gana Zumba teria sido “destituído e envenenado por ter pedido a paz com os brancos ou por ter concordado com ela”. Para Péret, a autoridade de Zumbi residia “na recusa da paz aceita por Gana Zumba e na supressão deste último (para a qual, sem dúvida, colaborou)”97. Ao contrário de Gana Zumba, Zumbi teria liderado uma guerra sem fim contra os brancos, na qual “um dos dois [lados] dev[ia] desaparecer”98. A oposição entre Zumbi e Gana Zumba aparece também em Clóvis Moura, que registra que Gana Zumba pre­ sidia o conselho formado pelos chefes dos principais quilombos, “até o ano de 1678 quando, havendo negociado a paz com os brancos, perdeu o prestígio en­ tre seus pares e foi assassinado, tendo sido substituído por Zumbi, que passou à história como líder incontestável e herói de Palmares”99. Segundo Mário M. Freitas, entretanto, como foi o filho mais velho de Gana Zumba que foi ao Recife assinar a paz, ela acabou sem ser “ratificada pelo rei supremo dos palmarinos e deus da guerra dos quilombos”. Não fica claro, em seu texto, se apenas a gente de Gana Zumba se dirigiu a Cucaú. Para ele, a paz foi minada pelas investidas contra os quilombos — a “colônia de Cucaú” entre eles -, pelo “cordão de segurança” à volta de Cucaú e da serra da Barriga, que fechavam o comércio dos negros com as vilas vizinhas, bem como pelo bando que isentava os voluntários do pagamento do quinto, e pelo incômodo dos moradores de Porto Calvo e Sirinhaém diante da concessão da “floresta majestosa do Cucaú aos rebelados”100. Sem ver conflitos entre Zumbi e Gana Zumba, Mário M. Freitas considerou que a trégua teria sido quebrada quando Zumbi tomou conhecimento de que o governador distribuira entre seus ca­ pitães as terras dos Palmares “e que nada mais restava para os negros senão a floresta de Cucaú, onde deveríam viver ilhados para o resto da vida, cercados

97. Benjamin Pcret, op. cit., pp. 118, 125 e 126. 98. Idem, pp. 125-126. Segundo Pcret, por esta razão, as iniciativas posteriores de paz empreendidas por Zumbi “eram meras astúcias de guerra, destinadas a dar ao quilombo um descanso que lhes permitiría retomar forças” (p. 126). 99. Clóvis Moura, “O Quilombo dos Palmares”, 1972 [1959], p. 180. Ainda segundo o autor, nos Palmares, “os chefes militares de maior prestígio colocaram-se contra o acordo e, depois de dis­ cutirem o assunto, resolveram desrespeitá-lo, executar o rei e entregar a direção de Palmares ao Zumbi, sobrinho do rei, elemento novo e de ‘grande valimento’” (p. 188). 100. Mário M. Freitas, op. cit., p. 253.

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pelas armas da opressão”'01. Avaliando os eventos de um ponto de vista políti­ co, tanto do lado dos negros quanto dos governadores, soldados e moradores, Mário M. Freitas situa as negociações no cruzamento de intenções e estratégias diversas, que contribuem para que seu resultado não tenha sido efetivo'". Décio Freitas, por sua vez, lamenta a falta de fontes sobre os aconteci­ mentos ocorridos em Palmares depois da expedição de Fernão Carrilho e do “pacto do Recife”, mas aponta para a existência de “um profundo descon­ tentamento na massa palmarina” diante das derrotas sofridas, atribuídas “à inépcia e à irresponsabilidade de Ganga-Zumba”103. Além disso, a resistência aumentou e se exacerbou “principalmente devido à cláusula cruel que imola­ va ao cativeiro os nascidos fora de Palmares”. Por isso, apenas um “reduzido número” de gente seguiu Gana Zumba, e “mesmo os beneficiários do pacto desconfiavam instintivamente das intenções das autoridades coloniais e dos senhores de escravos”'04. Sua descrição das lutas entre as facções é detalhada e vivida. Zumbi é o “chefe da oposição” e, ao retomar Macaco, assumiu “o poder na confedera­ ção palmarina”, instalando algo como “uma ditadura de salvação pública”'03. Traçou estratégias para fazer frente às necessidades da guerra e agiu de modo a minar a autoridade de Gana Zumba'06. Para isso contribuía o clima de insa101. Idetn, p. 254. A avaliação de Mário Freitas lembra a de Rocha Pombo, que entretanto negou que os habitantes dos Palmares tivessem se deslocado para Cucaú. Ao invés disso, teriam tratado “logo de concentrar-se em um grande núcleo, ou de reunir o maior número de guerreiros em uma grande fortaleza central que servisse de refúgio para os habitantes dos mocambos do interior”. Rocha Pombo, História do Brasil, 1951, vol. 2, p.125. 102. Clóvis Moura segue na mesma direção, mencionando que o acordo foi reprovado em Lisboa, pois podia ser enganoso e colocar em risco a reputação das autoridades que negocissem com negros fugitivos. Op. cit., 1972 [1959], p. 188. 103. Décio Freitas, op. cit., 1984, p. 114. O autor chega a afirmar que Gana Zumba “teria comandado uma operação em estado de completa embriagues” (idetn, ibidetn). 104. Idetn, p. 115. 105. Idetn, ibidetn. Freitas diz retomar a expressão “ditadura de salvação pública” de Benjamin Péret. Este autor, no entanto, anota que o “reinado” de Zumbi correspondeu a um “verdadeiro governo de ‘salvação pública’ antecipado, pois trata-se da realidade de vencer ou morrer". Benjamin Péret, op. cit., p. 126. 106. Décio Freitas, op. cit., 1984, p. 118. Alfredo Brandão contesta essa possibilidade, defendendo a tese de que os quilombolas, diante da destruição dos mocambos e das tropas que continuavam nessa região, deslocaram-se para a serra Dois Irmãos, sem voltarem para a serra da Barriga. Ver “Os Negros na História de Alagoas”, 1988 [1935], pp. 73-76. Sobre isso, ver também, do mesmo autor, Viçosa de Alagoas, 1914, pp. 5-37.

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tisfação e insegurança diante das incursões que pretendiam capturar fugitivos, da destruição de roças e da impossibilidade de comércio com os moradores da região. Enquanto Zumbi era perseguido pelas tropas coloniais, a tensão entre Palmares e Cucaú cresceu e armou-se uma conspiração para depor Gana Zumba. As lutas internas degeneraram “em carnificina” e Gana Zona foi o único a sobreviver. Cucaú foi arrasado, os “chefes da intentona” degolados e os demais reduzidos à servidão perpétua, partilhados entre os senhores de escravos locais. Terminava assim a história da “capitulação de Gana Zumba”, como ele a chamou: estava destruído “Cucaú, o caricato anti-Palmares tão esperançosamente inventado pelas autoridades coloniais”'07. O posicionamento crítico de Décio Freitas é seguido com maior ou menor ênfase pela bibliografia, que opera de modo a construir uma polaridade entre Gana Zumba e Zumbi. Mesmo considerando, por exemplo, que as fontes tra­ duzem a percepção portuguesa de “conflitos de poder entre chefes militares negros” que têm sido interpretados pelos historiadores a partir de uma coerên­ cia inexistente na realidade, Gérad Police recorre ao repertório politizado da “guerra civil” entre “inimigos declarados” para analisar o episódio108. Como se pode ver, na maior parte das interpretações, o exame mais cui­ dadoso das fontes cede lugar a inferências que operam para confirmar um sen­ tido geral atribuído à história dos Palmares. De um lado, há mais detalhes do que se pode encontrar na documentação; em geral, a interpretação se impõe aos acontecimentos. O acordo de paz e Cucaú recebem atenção apenas para marcar certa inflexão na continuidade de uma história linear, cujo significado está dado de antemão e que, a partir de então, entraria em seu apogeu. De outro lado, a narrativa é presidida por um jogo de opostos que serve como explicação, sem que a natureza das relações entre os que foram para Cucaú ou se internaram nas matas, e entre eles e as autoridades coloniais seja investigada. Esse modo de narrar a história dos Palmares também se preocupa pouco em elucidar os acontecimentos ocorridos em Cucaú. Segundo Edison Carnei­ ro, o “juramento de vassalagem” foi logo esquecido por aqueles que haviam 107. Décio Freitas, op. cit., 1984, pp. 118-120. Apesar de referir-se muito rapidamente a essa conjuntura, Rómuio Luiz Xavier Nascimento segue o diapasão da análise de Freitas, ao considerar que Zumbi “pensava estrategicamente de forma impecável”, reorganizando os quilombolas diante da “falida proposta de paz levada a cabo por Ganga Zumba”. Palmares, 2014, p. 121. 108. Gcrard Police, op. cit, p. 149.

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se estabelecido nas novas terras. Começaram a fugir e a juntar-se às fileiras de Zumbi, levando mantimentos e munições, serviam de espiões para ele e re­ crutavam escravos das vizinhanças para os Palmares'09. Como Gana Zona foi enviado para intermediar e tentar com que Zumbi depusesse as armas, à opo­ sição entre Gana Zumba e Zumbi agrega-se agora uma segunda, ente Zumbi e Gana Zona. O próprio Carneiro contrasta os dois: enquanto um liderava a resistência, o outro várias vezes serviu de intermediário nas tentativas de ne­ gociação e colaborou com as forças oficiais"0. Richard Price, como vimos, é um dos poucos que contesta essa imagem de Gana Zumba. Para ele, não teria havido traição nem fraqueza; as comparações com acordos realizados no Suriname indicam que, na maior parte das vezes, os fugitivos continuavam escondidos das autoridades coloniais, sem que se efetivasse a determinação de devolver os companheiros para o cativeiro"'. A comparação com outros acertos de paz nas Américas é importante pois, como vimos, abrem a possibilidade de entender a lógica das escolhas feitas pelos fugitivos e suas lideranças. Vista como um aldeamento à moda da política indigenista portuguesa ou um sobado centro-africano avassalado, Cucaú podia significar uma alternativa à escravidão nas plantações pernambucanas, com autonomia política, proteção e direito a terras para plantar e viver. Flávio Gomes, por sua vez, critica a “oposição Gana Zumba - como trai­ dor da causa dos mocambos — versus Zumbi, o herói destemido”"2, e recomen­ da ser melhor tratar dos diversos motivos econômicos e geopolíticos envolvi­ dos nos acontecimentos"3. Gomes tem razão. Mas quais teriam sido esses motivos? Ele menciona o fato de os senhores locais e as autoridades coloniais estarem interessados na manutenção do “projeto escravista cristão do Império português”"4. Outros

109. Edison Carneiro, op. cit., 1958, p. 120. 110. Idem, p. 119. 111. Richard Price, “Palmares como Poderia Ter Sido”, 1996. Gérard Police caminha na mesma dire­ ção, ao propor uma comparação detalhada entre as duas comunidades de fugitivos. Op. cit., pp. 26-27 e 250-254. 112. Flávio S. Gomes, op. cit., 2005, p. 134. 113. Idem, pp. 134-140. Apesar da crítica, Gomes dedica todo um capítulo de seu livro à oposição entre Zumbi e Gana Zumba, em meio às expedições para captura dos que continuavam a resistir nas matas. “Entre Zumbi e Ganga-Zumba: Lutas pelo Poder”, pp. 137-144. 114. Flávio S. Gomes, op. cit., 2005, p. 134.

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autores informam que os moradores de Porto Calvo e Sirinhaém estavam insa­ tisfeitos, pois a negociação fora feita à revelia de interesses de vários dos senho­ res da região. Acordada pelo governador da capitania e em nome do príncipe regente, a liberdade dos habitantes dos Palmares fora garantida por instâncias superiores aos interesses locais, sem ouvir as câmaras. Mencionam que muitos reclamavam que as melhores terras haviam sido concedidas aos rebelados e que os soldados que patrulhavam as matas também causavam prejuízo em suas plantações'1’. Afinal, a região era visitada por expedições em busca de fugiti­ vos, que exigiam mantimentos ou destruíam roças, e continuavam a onerar os moradores e dificultar a vida econômica. Além disso, a concessão de sesmarias para os que haviam participado das batalhas em 1678 não parece ter compensa­ do os senhores e as câmaras locais, que haviam arcado com os custos"6. A documentação encontrada, contudo, não registra tais insatisfações; mostra, ao contrário, que as câmaras haviam sido consultadas — pelo menos por meio das instituições e dos canais normais, da junta da capitania ou de inquirições a letrados e pessoas experientes naquela guerra"7. Há ainda ordens do governo de Pernambuco para que as contribuições dos moradores para a guerra dos Palmares fossem ressarcidas"8. O governador, por sua vez, suspeita­ va de alguma aliança entre moradores e os “negros dos Palmares”, mandando o ouvidor tirar devassa para saber se havia comunicação entre eles e se os últimos recebiam “armas, munições ou ferramentas” dos primeiros"’. Certamente a divergência de opiniões, o ônus da continuidade da guerra e as esperanças frustradas com o fracasso da paz ajustada não deviam contribuir para um clima otimista na capitania.

Havia ainda um interesse dos moradores e sesmeiros nas terras férteis ocu­ padas pelos mocambos. Vários autores mencionam o avanço da área colonial para o sertão, com a pecuária e o cultivo de alimentos para as áreas açucareiras, embora situem as disputas territoriais em um período cronologicamente

115. M. M. de Freitas, op. cit., p. 257 c Ivan Alves Filho, op. cit., p. 105.

116. Ver Décio Freitas, op. cit., 1984, p. 126 e Ivan Alves Filho, op. cit., pp. 103. 117. Edital de 17 ago. 1679, auc, cca, vi-in-i-1-31, fl. 339V, doc. 24. 118. Ordens de Aires de Sousa de Castro de 29 ago. 1680, AUC, CCA, VI-lIl-I-I-31, fl. 362V, doc. 97 e fls.

362V-363, doc. 98.

119. Ordem de Aires de Sousa de Castro de 6 dez. 1680, idem, fl. 365, doc. no.

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posterior a esta conjuntura’20. Felipe Damasceno, seguindo Carmem Alveal, mostra como a conjuntura posterior ao acordo de paz foi uma “grande em­ preitada de distribuição de terras como recompensa por participação em cam­ panhas militares”121. Os novos sesmeiros haviam liderado expedições contra os mocambos e, na maioria das vezes, eram fazendeiros e criadores de gado que alargavam e consolidavam seus domínios na região. Mas tal concessão de terras também podia ser fazer parte de uma estratégia de ocupação territorial para defesa contra os que não tinham se deslocado para Cucaú122. Certamente houve muitos motivos para o fracasso do acordo que deu ori­ gem a Cucaú. Além das conjecturas de uns poucos autores, no entanto, o ponto de vista dos palmaristas geralmente não aparece na bibliografia. Eis a novidade da análise que apresentamos aqui. Antes de dar continuidade a ela, convém examinar como a destruição de Cucaú foi compreendida do outro lado do Atlântico.

3. Debates em Lisboa Aires de Sousa de Castro atravessou quase o tempo todo de seu governo sem que Lisboa se pronunciasse especificamente sobre as medidas que tomou em relação aos negros dos Palmares. Nenhuma carta foi enviada a ele sobre esse as­ sunto, mesmo que o governador tenha tentado manter o Conselho Ultramari­ no e o monarca informados de todos os acontecimentos. Não havia notícia do que pensavam os conselheiros ou o príncipe sobre o ajuste de paz e os eventos posteriores. Pelo menos não de modo oficial. Isso não significa que Lisboa tenha ficado indiferente ao que se passava em Pernambuco. Ao contrário. A primeira reação foi reticente. Na capa da carta enviada por Aires de Sou­ sa de Castro, em 22 de junho de 1678, o secretário do Conselho Ultramarino 120. Ver, entre outros, Luiz F. Alencastro, O Trato dos Wventes, 2000, pp. 238-242 e Pedro Puntoni, op. cit., 2002, cap. 1. 121. Carmen M. Oliveira Alveal, Converting Land into Property in lhe Portuguese Atlantic World, Century, 2007, pp. 172 e 195. Ver também Felipe A. Damasceno, op. cit., 2018, esp. pp. 162-171. Para uma análise do interesse por recompensas a serem obtidas na repressão a fugitivos, embora para período posterior e outra região, ver Laura de Mello e Souza, “Violência e Práticas Culturais no Cotidiano de uma Expedição contra Quilombolas”, 1996. 122. Felipe A. Damasceno, op. cit., 2018, pp. 169-170.

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anotou: “que se espere por cartas do governador”123. Outra anotação, feita em 9 de novembro de 1678, à margem da carta enviada em 22 de junho pelo pro­ vedor da Fazenda, manda consultar o procurador da Coroa124. Este respondeu dois dias depois e ponderou que, ainda que a guerra não tivesse sido ordenada pelo príncipe, o “ajuste com os negros” se justificava, pois um “dano iminente ped[ia] remédio pronto”. Para ele, os governadores eram homens experimen­ tados e podiam avaliar se aquela submissão não poderia ser uma forma de o “inimigo” refazer suas forças. De qualquer modo, ponderava, haviam agido bem ao batizá-los, contudo, como aquele “gentio” era “acostumado a exercitar-se em roubos” e vivia na “liberdade, tão apartados da lei de Deus”, era prudente que ficassem “o mais longe que puder das nossas praças”, sem que seu número “aumenta[sse]” ou que “fabricafsem] novas aldeias”. O procurador considerou ainda a alforria concedida “àqueles que não podia sujeitar” como um “modo de os cativar”, e que a promessa de devolução dos filhos e mulheres “que já estavam cativos em tão justa guerra” era “muito pródiga”, já que não só acarretava prejuízo aos que haviam se tornado seus novos senhores, como contribuía para favorecer aqueles que, de fato, deviam ser castigados125. Resposta rápida, mas ambígua. Havia anuência em relação ao ajuste feito, entendido como um modo para submeter os levantados. Seus termos, porém, implicavam riscos que deviam ser considerados: os interesses dos proprietários dos escravos capturados tinham sido prejudicados e havia o perigo do aumento do número de aldeias dos fugitivos. Esta não era a única opinião: conforme as cartas foram chegando, a controvérsia cresceu. É difícil saber detalhes sobre a sequência dos debates, pois nem todos os registros estão datados e os papéis foram misturados pelos arquivistas’26. Um

123. Anotação sem data, à margem da carta de Aires de Sousa de Castro de 22 jun. 1678, ahu_acl_ cu_oi5, Cx. 11, D. 1116. 124. Anotação à margem da carta de João de Rego Barros de 22 jun. 1678, ideni, Cx. 11, D. 1118. 125. Parecer do procurador da Coroa de 11 out. 1678, idem, Cx. 11, D. 1118. 126. No Arquivo Histórico Ultramarino, as cartas enviadas de Pernambuco em 22 jun. 1678 pelo governador e pelo provedor da Fazenda de Pernambuco, as cartas de Aires de Sousa de Castro de 19 jul. 1678 e de 8 ago. 1679, e aquela de João do Rego Barros de 16 ago. 1679 fazem parte de três dossiês separados. Contudo, elas foram discutidas ao mesmo tempo. Além do próprio parecer de 1680, que analiso mais adiante, na capa da primeira carta de Rego Barros há uma anotação feita pela secretaria do Conselho que diz: “Dentro as cartas do governador Aires de Sousa de Castro que tratam dessa matéria”. Mas elas não estão juntas.

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rascunho de parecer, sem assinatura, datado de 9 de dezembro do mesmo ano, é francamente contrário ao que se passava em Pernambuco: pondera-se ali que aqueles negros não constituíam “nação política” com que se pudesse empe­ nhar o nome do regente português e que eles, “por seus próprios nascimentos eram escravos” — donde se seguia que “conceder[-lhes] a liberdade era um dano” aos direitos da Coroa e dos moradores127. A grande diferença entre as duas opiniões reside em considerar ou não todos os habitantes dos Palmares como escravos fugitivos. O procurador da Coroa havia sido cuidadoso: falara em escravos, mas também em cativos fei­ tos em uma guerra que considerava justa, em inimigos e gentios. Sua avalia­ ção tende a considerar os negros dos Palmares pela chave das relações com os indígenas, mas também reconhece a possibilidade de serem levantados e, portanto, de haver espaço para uma negociação política — o que foi nega­ do pelo parecerista anônimo. Para este último, os habitantes dos Palmares eram inequivocamente escravos fugidos, para os quais só havia a alternativa da apreensão e reescravização. Tudo indica que o Conselho estava dividido. Quase chegou a uma conclu­ são: na margem da carta escrita por Aires de Sousa de Castro há um parecer do Conselho, datado do início de dezembro, mas que foi logo em seguida rasurado, para deixar de ter vigor. O pouco que se consegue ler indica que se pretendia sugerir ao príncipe desaprovar as medidas tomadas por Aires de Sousa de Castro. Infelizmente, as rasuras foram eficientes e não se pode ter certeza sobre seu conteúdo'28. Opiniões contraditórias, pareceres escritos e depois riscados: a discussão entre os Conselheiros do Ultramarino deve ter sido grande. Mas não houve, pelo que se pode deduzir, uma decisão final a ser encaminhada ao monarca. Pelo jeito, resolveram esperar mais notícias de Pernambuco — embora não te­ nham feito nenhum pedido explícito a esse respeito. As novidades vieram na sequência, com as cartas de Aires de Sousa de Castro de 19 de julho de 1678 e

127. Parecer anônimo de 9 dez. 1678, ahu_acl_cu_0I5, Cx. ii, D. mó. 128. As rasuras são de época mas deixam que se desconfie de seu conteúdo: “Ao conselho parece fazer presente a V. A. que [....] o governador de Pernambuco nesta sua carta vos desserviu [?] que ti­ nham [tirou?] as nossas armas na guerra que se faz aos negros dos Palmares e estado em que hoje se acham e que acordando o governador daria gra[...j de fara [?] obrada, se faz tudo presente a V.A. Lisboa [...] [6?] nov. 1678. [seguem-se três rubricas]”, idem.

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de 8 de agosto de 1679, e aquela do provedor da Fazenda, de 16 de agosto de 1679, examinadas há pouco neste capítulo. Foi apenas em 26 de janeiro de 1680, mais de um ano depois dos primeiros debates e pareceres, que o Conselho conseguiu emitir uma opinião para ser enviada ao regente. O parecer refere-se ao conteúdo de todas as cartas men­ cionadas, de junho de 1678 a agosto de 1679, pelo governador e pelo provedor da Fazenda de Pernambuco, e também à cópia do “papel” mandado aos negros dos Palmares. Depois de tanto tempo e de tantos acontecimentos, o Conse­ lho decidia, tendo em vista “as disposições do governador Aires de Sousa de Castro e aquele zelo com que sempre se empregou no serviço de [sua] alteza e o que tem obrado na guerra dos Palmares, tratando da extinção daqueles negros por conservar em quietação os vassalos de [sua] alteza livrando-os das hostilidades e danos que padeciam nos assaltos que lhes davam”, que o prínci­ pe deveria agradecer a forma como o governador tem agido, “deixando a seu arbítrio esta matéria para que nela obre o que for mais conveniente ao bem co­ mum daquela capitania e se consiga o sossego de todos aqueles moradores”'2’. Sim; isso mesmo. A redação é confusa e o pronunciamento bastante vago: um agradecimento pelo serviço prestado e uma recomendação que não deixa saber se a matéria ficava ao arbítrio do governador ou do próprio regente. Não há qualquer registro sobre a resolução tomada pela Coroa, nem sobre alguma comunicação enviada ao governador. Tudo indica que, diante do assunto, na prática, a responsabilidade na condução dos eventos ficava (pelo silêncio) de­ legada para a autoridade colonial. Nem a distância entre Pernambuco e Lisboa nem o regime de comuni­ cação baseado nas frotas podem explicar tanta demora e tamanha indecisão. Como vimos, a possibilidade de acertar as pazes com os negros levantados dos mocambos não era novidade. Há registros de notícias sobre negociações desde pelo menos o início dos anos 1640, no tempo em que ainda não existia o Conselho Ultramarino. Criado em 1642, as atividades do Conselho foram regulamentadas por uma deliberação em 1645, que reservou as reuniões das quintas e sextas para tratar dos negócios do Brasil130. Palmares não era de modo algum o único assunto que entretinha os conselheiros — talvez nem mesmo 129. Consulta do Conselho Ultramarino de 26 jan. 1680, AHU_ACL_cu_Consultas de Pernambuco, Cod. 265, fls. 26-27V. 130. Essa mesma deliberação convencionou que o Conselho se reuniría às segundas, terças e quartas-

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fosse o mais importante. Nos anos 1670, o delicado problema da liberdade dos índios e das missões também frequentava as reuniões do Conselho. O tema vinha sendo objeto de debate há tempos e esperava-se que a provis:;ão régia de 1663, que regulou a liberdade dos índios do Maranhão e determi­ nou a forma pela qual eles deviam ser administrados pelos padres da Compa­ nhia de Jesus e de outras ordens religiosas, tivesse posto fim às divergências'31. Mas essas determinações não haviam, entretanto, dado fim aos conflitos entre os religiosos. Na tentativa de resolver a questão, os conselheiros elaboraram uma espécie de questionário, com vários itens. Entre 1671 e 1673, ex-governadores, franciscanos, mercedários, carmelitas e jesuítas responderam aos quesi­ tos propostos pelo Ultramarino, oferecendo opiniões sobre vários aspectos a respeito do modo como as aldeias deviam ser administradas, como deviam ser feitos os resgates e o modo da repartição do trabalho dos índios'32. Entre os pontos discutidos, estava a possibilidade de as aldeias serem go­ vernadas pelos próprios índios e serem atribuídas a uma ou várias ordens mis­ sionárias. As opiniões eram divergentes, mas franciscanos e mercedários de­ fendiam que os capitães designados para administrar as aldeias apenas queriam enriquecer rapidamente e que o melhor modo de catequizar os índios e man­ tê-los próximos dos brancos era deixar que governassem suas próprias aldeias. A posição foi derrotada em 1680, quando a Coroa decidiu proibir todos os resgates e declarar, mais uma vez, ser contra toda e qualquer forma de escravização dos índios. Ao mesmo tempo, determinou que todos deviam ser re­ colhidos em aldeias, assentadas em terras que lhes seriam concedidas, livres de tributos, e governadas exclusivamente pelos jesuítas. Continuava a prevalecer, assim, a política de aldeamentos, submetida a um complexo jogo de poderes para regulamentar a distribuição do trabalho indígena entre os moradores'33.

-feiras para tratar dos negócios da índia e aos sábados da Guiné, Cabo Verde e demais conquistas. Marcelo Caetano, O Conselho Ultramarino, 1969, p. 48. 131. Provisão de 12 set. 1663, abn, 66, pp. 29-31, 1948. Para uma análise destes debates, ver Mathias C. Kiemen, op. cit., esp. cap. 4. Ver também Camila Loureiro Dias, L*Amazonie avant Pombal, 2014,

PP- I3O-I35132. As respostas foram anexadas ao aviso do Conselho Ultramarino de 18 maio 1672, ahu_acl_ cu_009, Cx. 5, D. 569. A análise mais detalhada destes documentos continua sendo a realizada por Mathias C. Kiemen, op. cit., caps. 5 e 6. 133. Lei de i° abr. 1680, abn, 66, pp. 57-59, 1948. Para uma análise das determinações constantes nessa lei ver Camila L. Dias, op. cit., pp. 137-139- Para um balanço da legislação indigenista portuguesa

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Os debates sobre os índios do Maranhão não eram os únicos sobre o tema, que ecoava, por exemplo, nas discussões relativamente contemporâneas sobre a criação de missões no sertão baiano do rio São Francisco, vistas como meio de manter os índios sossegados e de afirmar o domínio português sobre ter­ ras distantes do litoral. O contexto era um pouco diferente, pois os ataques dos tapuias às fazendas do Recôncavo baiano eram constantes e as expedi­ ções militares contra eles também. O problema foi discutido pelo Conselho Ultramarino várias vezes'34, e deu origem a um extenso parecer de Salvador Correia de Sá, provavelmente escrito em 1675. Referindo-se a uma proposta dos padres capuchos que queriam estabelecer missões entre “o gentio que não quiser voluntário vir para o mar”, Correia de Sá considerava ser este o meio mais eficaz para estender o domínio e estabelecer a “vassalagem [...] pela terra adentro”. Manter os índios em aldeias sob a supervisão dos missionários, além de contribuir para o povoamento do sertão e para a evangelização de seus po­ vos, tinha a vantagem de impedir que, vazias, as terras servissem de couto para negros fugidos e salteadores135. Como se vê, havia em Lisboa um campo de debates que pode explicar o fato de a “redução” de Gana Zumba e sua gente ter sido compreendida pe­ las autoridades metropolitanas segundo a chave da política indigenista, como acontecera com Aires de Sousa de Castro em 1678. O reconhecimento da li­ berdade para os nascidos em Palmares e a concessão das terras em Cucaú eram temas que se entrelaçavam a uma política mais larga de domínio sobre a popu­ lação do sertão na América portuguesa. Assentados em uma aldeia em Cucaú, os antigos levantados teriam proteção real e, isentos da obrigação de qualquer “trabalho particular”'34, ali permaneceríam com suas famílias, como vassalos da Coroa, vivendo e morrendo “pela fé de Cristo”. No contexto em que ainda para o período entre 1647 e 1706, ver Rafael Ivan Chambouleyron, Portuguese Colonization of the Atnazon Region, 1640-1706, 2005, pp. 228-257. 134. Ver, por exemplo, consultas de 3 nov. 1669 e de 20 set. 1672, respectivamente ahu_acl_cu_0O5-02, Cx. 20, D. 2331 a 2333 e Cx. 21, D. 2497; carta de Afonso Furtado de Castro do Rio de Men­ donça Brasil de 22jan. 1675, idern, Cx. 23, D. 2691. 135. Voto de Salvador Correia de Sá sobre a missionação e o povoamento do sertão, Conselho Ultra­ marino, c. 1675. Citado por Pedro Puntoni, op. cit., 2002, p. 72. Ver também Cassiana Maria M. Gabrielli, Capuchinhos Bretães no Estado do Brasil, 2009, pp. 48-49. Para uma análise das guerras con­ tra os tapuias no Recôncavo e no sertão do São Francisco, nos anos 1650-1670, ver Pedro Puntoni, op. cit., pp. 89-122. 136. O termo, como vimos, aparece explicitamente no acordo de 1678 e foi analisado no cap. 1.

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se debatia a possibilidade de autogoverno dos índios do Maranhão - posição derrotada em 1680 — a criação de um reduto de negros livres, sob a proteção real, podia representar a melhor forma de reduzir aqueles levantados e por fim às longas guerras que causavam tantas despesas e dissensos entre os moradores e as autoridades coloniais. Podia, mas não deu certo. O desdobramento dos acontecimentos em Per­ nambuco tornou evidente o fracasso da iniciativa. Como vimos, mais de seis meses depois, quando teve que analisar a carta enviada pelo governador em 22 de abril de 1680, que comunicava a continuidade da guerra e os problemas que começavam a existir em Cucaú, o Conselho se calou e encaminhou as notícias ao príncipe, sem qualquer comentário'17. Imaginavam, talvez, que os próprios fatos se encarregassem de resolver o impasse entre as diversas opiniões. Nesse caso, contudo, os eventos acabaram por gerar novos problemas. E novos e acirrados debates. Desta feita, o que esquentou a discussão foi a reescravização dos habitantes de Cucaú. As fontes disponíveis indicam que as controvérsias em Lisboa foram intensas. O principal indício dessa intensidade é que o príncipe finalmente se pronunciou, mas por meio de um alvará, em 10 de março de 1682. Há pouquís­ simas informações sobre os debates que levaram à redação desse texto, e em quais instâncias deliberativas eles ocorreram118. É difícil saber por que, ao invés



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de uma determinação comum, comunicada por meio de uma carta régia, por exemplo, o monarca optou por um documento legal de maior envergadura. Possivelmente porque se tratava, agora, de definir questões relativas à liberda­ de e ao cativeiro dos negros dos Palmares - assuntos de maior alcance - e não apenas de julgar as atitudes dos governadores e dos moradores de Pernambuco em relação a eles. Assim, com toda a pompa de um texto legal, o príncipe português promulgou medidas destinadas a terminar de vez com os “danos que pertencem ao sossego público” e solucionar as questões jurídicas criadas pela reescravização daqueles que haviam se rebelado depois de ajustada a paz. 137. Consulta do Conselho Ultramarino de 8 ago. 1680, AHU_Acr_cu_Consultas de Pernambuco, Cod. 265, fl. 29V. 138. É bastante provável que o alvará tenha sido promulgado com base no parecer emitido pelo bispo secretário de Estado, por volta de agosto de i68t.Ver o decreto de 13 ago. 1681, ahu_acl_cu_ois, Cx. 12, D. 1203. Talvez, pela falta de informações, Ivan Alves Filho tenha erradamente conside­ rado o documento um “relatório” feito pela Coroa e submetido ao Conselho Ultramarino. Ivan Alves Filho, op. cit., pp. iTi-112.

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Ordenou, em primeiro lugar, a continuidade da campanha armada contra os rebeldes dos Palmares e sugeriu que os moradores de Pernambuco abrissem mão “do direito que p[udessem] ter ao domínio” daqueles negros para que os capturados pudessem ser distribuídos aos soldados. Os senhores que tivessem “alguma repugnância” em assim proceder continuavam a pagar I2$ooo réis por escravo apreendido, para cobrir os gastos havidos naquela empresa. Tais medi­ das visavam não só incentivar os soldados a manter a guerra, sem onerar os co­ fres públicos, como também levavam em conta os interesses senhoriais, procu­ rando equilibrar os dissensos entre os que estavam do mesmo lado na contenda. Em seguida, o texto passava a regular tanto “a liberdade, como o cativeiro dos tais negros”: os que eram livres antes de ir para os Palmares, assim como seus descendentes, continuavam livres; os que antes eram escravos perma­ neciam escravos, assim como seus filhos e descendentes, “seguindo o parto a condição do ventre”. A fórmula parecia ser simples, mas exigiu várias expli­ cações e adendos pois tinha que lidar com o fato de que os prisioneiros haviam sido reescravizados e com a espinhosa questão da liberdade concedida aos nascidos nos Palmares — que já havia aparecido anteriormente no Conselho Ultramarino. Ao considerar que podia haver gente que devia ser livre, mas estava cativa, o alvará abria a possibilidade de instaurar demandas contra os senhores, por meio de causas sumárias, no prazo de cinco anos. O alvará determinava ainda que seriam perdoados os que tivessem cometido algum crime antes da fuga, se se apresentassem voluntariamente. Entretanto, nenhum deles, livres ou escra­ vos, podia continuar no Estado do Brasil (à exceção dos menores de sete anos e dos que haviam respeitado o acordo de 1678); os cativos presos que tornassem a fugir seriam “lançados na galé”. Por fim, tocava na questão central. O “indulto” concedido pelo governa­ dor, que libertara os “negros e mulatos, suas mulheres e filhos e descendentes” que haviam buscado a “obediência” régia e, “depois de estarem nela não delinquiram rebeldes”, ficava mantido. Esta liberdade, entretanto, não era reconhe­ cida para aqueles que haviam incorrido em “traição”: ela os levara de volta “ao antigo estado” e, portanto, eles haviam perdido o direito ao benefício. Para que tudo fosse averiguado, o regente português ordenava a abertura de uma “devassa do crime de traição” cometido pelos negros dos Palmares depois de terem acordado a paz com o governador de Pernambuco. Os culpados seriam

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ALTERNATIVAS

condenados à morte, e suas cabeças levantadas em “postes altos e públicos” no lugar do delito para que o tempo as consumisse13’. Como se pode observar, o alvará de 1682 reiterou os termos do acordo de 1678 e, de certo modo, lhe serviu de continuação. Ao mesmo tempo, porém, interpretou-o de forma um pouco diferente. Apesar de reconhecer que a con­ dição escrava do ventre devia ser mantida no caso dos cativos que haviam fu­ gido para os Palmares, reafirmou a liberdade para os nascidos nos mocambos, tal como concedida pelo governador de Pernambuco, registrando o ato como um “indulto”, uma “graça” concedida140. O termo dá continuidade à com­ preensão dos Palmares como um corpo político. Não se tratava simplesmente de uma “alforria”, como registrado no “papel” que selou a paz em 1678. Os palmaristas instalados em Cucaú eram tratados no alvará não como escravos, mas como merecedores de uma graça: um favor, uma mercê ou um benefício,141 não uma concessão senhorial. Ao serem apreendidos nesse campo semântico, os que haviam desrespeitado a concessão régia passavam a ser considerados traidores e deviam ser condenados à morte. No longo texto, apenas uma vez há referência à “povoação que se lhes assinou para viverem”, onde estavam os negros dos Palmares depois de reduzidos à “obediência” real. Talvez em Lis­ boa se imaginasse que Cucaú continuava a existir. No entanto, dificilmente a aldeia sobreviveu depois do cerco de 1680 — a partir desse momento ela deixa de ser mencionada nas fontes administrativas, aparecendo apenas nos relatos dos militares escritos para pedir cargos e outras mercês142. O texto dedica atenção ainda àqueles que haviam incorrido em “traição”. Não fica claro se o tal crime se refere à conjuração mencionada por Aires de

139. Alvará de 10 mar. 1682. Silvia Hunold Lara (org.), “Legislação sobre Escravos Africanos na Amé­ rica Portuguesa”, 2000. 140. Raphael Bluteau indica que o indulto “vale o mesmo que graça concedida”. Um significado dis­ tante da alforria, explicitamente definida como a “liberdade que o senhor dá a seu escravo". Voca­ bulário Portugueze Latino, 1712-1728, verbetes “indulto” e “alforria”. 141. Raphael Bluteau, op. cit., verbete “graça”. 142. No início do século xvm, o local pode ter servido para abrigar um dos três arraiais do terço do Pal­ mar, composto pelos paulistas que derrotaram Palmares em 1694. Ver carta de Francisco de Castro Morais de 2 jan. 1706, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 22, D. 2009, e carta régia de 12 mar. 1707, bnrj-ms, Cod. 11,3,1, fls. 413-414, título 64, doc. II. Alguns anos depois, no entanto, o arraial instalado em Cucaú padecia de falta de soldados. Ver, por exemplo, carta de Sebastião Caldas de 28 fev. 1710, auc, cca, vi-m-i-i-32, fl. 72, doc. 72 e ordem de Lourenço de Almeida de 17 ago. 1715, idem, fls. 223-223V, doc. 49.

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Sousa de Castro, à morte de Gana Zumba ou à fuga para juntar-se a Zumbi. Aliás, os nomes palmaristas estão completamente ausentes do alvará, que fala apenas, genericamente, nos “negros” ou “negros e mulatos” dos Palmares. De qualquer modo, a questão havia sido repassada para a Justiça e os que haviam incorrido no tal crime perderíam a liberdade, tivesse sido ela obtida ou conce­ dida a qualquer título. Apesar de reiterar os termos ajustados em 1678, o alvará reequacionava o debate e anunciava a decisão por meio de um documento assinado pelo próprio príncipe. Mesmo assim, o texto legal não foi capaz de extinguir as contendas em Lisboa. Em janeiro de 1683, o jesuíta Manuel Fernandes, deputado na Jun­ ta dos Três Poderes e conselheiro do príncipe regente, escreveu um parecer que retomou o tema143. Para ele, o governador buscara proceder com todo o acerto “neste negócio dos índios” [síc] ao consultar “pessoas doutas” que dis­ seram que aqueles “negros aldeados” eram “justamente [...] cativos”. O padre Fernandes tinha, porém, outra opinião. Para provar que “todos estes negros aldeados [eram] livres e [...] não podiam ser cativos”, elencava quatro razões. Primeiramente, Aires de Sousa de Castro, em nome do príncipe português, lhes dera a liberdade e eles “nela estiveram e viveram algum tempo, fazendo-se cristãos e assistindo com eles ministros que os instruíam, batizavam e o bispo de Pernambuco crismou a muitos; e dada esta liberdade e feitos cristãos, não se podiam cativar, porque é contra as leis daquele Estado”'44. Em segundo lugar, havia muita gente entre os “aldeados” que não tinha contato com os “dos Palmares e seus aliados” nem havia cometido o crime de traição, não podendo ser por isso castigada. Em terceiro lugar, Manuel Fernandes contestava o argumento do governador e de seus conselheiros que justificava a reescravização dos aprisionados pelo fato de a liberdade ter sido dada com a condição de permanecerem obedientes ao soberano português.

143. Parecer de Manuel Fernandes de 8 jan. 1683, ba, Cod. 50-V-39, doc. n. 153, fls. 397-397V. Décio Freitas é o único a mencionar este parecer, mas o coloca como parte dos debates que antecedem a promulgação do alvará de 1682. Op. cit., 1984, pp. 120-129. 144. Parecer de Manuel Fernandes de 8 jan. 1683, fl. 397. Não se tem notícia de qualquer lei que impeça os cristãos de serem cativos, mas a confusão pode ter sido causada pela proximidade, mais uma vez, com os temas e os termos do debate sobre o cativeiro e a liberdade dos índios do Maranhão. A visita do bispo de Pernambuco aos Palmares e os sacramentos constam da carta que o prelado escreveu ao papa em 6 ago. 1680, Arquivo Secreto do Vaticano, Congr. Concilio, Relat. Dioec. 596 (Olinden).

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! Ao se referir explicitamente ao “papel em que a estes homens se prometeu e deu liberdade” e transcrever algumas de suas passagens, o padre tentava de­ monstrar que a única cláusula condicional ali registrada consistia na ameaça de continuidade da guerra caso não aceitassem o acordo, sem haver qualquer condição que limitasse a concessão da liberdade. Por fim, Fernandes observa que todas as informações colhidas sobre o provável crime de traição - apre­ sentada como a principal justificativa para a reescravização dos habitantes de Cucaú — eram “extrajudiciais”. Como a matéria era grave, exigia procedimen­ tos formais mais claros e jurídicos145. Como se vê, o jesuíta tocava no ponto fundamental da legitimidade da liberdade concedida àqueles homens e mulheres que seguiram Gana Zum­ ba, e se posicionava de modo claro ao indicar que a solução do dilema era essencialmente jurídica. A chave interpretativa, aqui, mais uma vez, é a da aldeia indígena. Como os índios aldeados, os negros de Cucaú não podiam ser escravizados. Outro importante conselheiro do regente, Roque Monteiro Paim tam­ bém se pronunciou sobre os acontecimentos — mas foi favorável à decisão to­ mada por Aires de Sousa de Castro. Para ele, o governador havia consultado “todas aquelas pessoas que o podiam aconselhar e seguiu o parecer, que em todos foi uniforme” e, de acordo com o que informava o bispo de Pernam­ buco, “não impugnou mais que o cativeiro dos menores e inocentes, que ou pela idade, ou pelas ações não houveram [stc] culpa”. A frase faz pensar que o governador tenha tido o cuidado de separar as crianças dos adultos ao distri­ buir os prisioneiros de Cucaú, talvez para preservar a liberdade dos nascidos nos Palmares — mas não há fontes que permitam comprovar essa informação. Roque Paim considerou que o alvará de 1682 encaminhava bem a questão, ao reconhecer a liberdade concedida anteriormente e ao remeter para a justiça a decisão sobre os negros que tivessem “a culpa de rebelião”. Por fim, ponderan­ do que as decisões tinham sido tomadas pela Junta das Missões, recomendava que “todos devfiam] ver estes papéis” e outros que fossem necessários, para

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melhor aconselhar o monarca146.

145. Parecer de Manuel Fernandes de 8 jan. 1683, fl. 397. 146. Parecer de Roque Monteiro Paim de 19 jan. 1683, ba, Cod. 50-V-39, doc. n. 154, fl. 398.

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Este final é revelador. Roque Paim provavelmente se refere à Junta Geral das Missões, criada em 1655 e que tinha por atribuição abrigar as questões referentes às missões ultramarinas atendendo às demandas dos missionários'47. Ou seja: a discussão parecia ter se deslocado do Conselho Ultramarino para um órgão que estava acostumado a lidar com o difícil tema da liberdade — dos índios no Brasil e, agora, também dos “negros” — pelo menos os de Cucaú. Tantos debates, mas nenhuma ação efetiva. Os efeitos do alvará de 1682 foram poucos. A carta régia que encaminhou o texto legal ao governador-geral do Brasil designou Francisco da Silva Souto Maior e, em seu impedimento, Antônio Rodrigues Banha, ambos da Relação da Bahia, para proceder à devas­ sa'4’. Os dois se declararam impedidos e foram substituídos primeiro por An­ tônio Nabo Paçanha e, depois, por João do Couto de Andrade, procurador da Coroa e Fazenda Real'4’. O governador do Estado do Brasil foi acusado de não cumprir as ordens régias e tanto o Conselho Ultramarino quanto o príncipe reiteraram as nomeações e a determinação para que a devassa fosse realizada'40. Um ano depois de promulgado o alvará, o príncipe chegou a mandar que o Conselho Ultramarino fizesse um regimento com os procedimentos a serem adotados na devassa'4', mas a medida não parece ter surtido qualquer efeito. Couto de Andrade foi obrigado a embarcar “contra sua vontade” para Pernam­ buco, mas tudo indica que em meados de 1683 já estava de volta a Salvador'44.

147. Ver Márcia E. A. Souza e Mello, Pela Propagação da Fé e Conservação das Conquistas Portuguesas, 2002.

148. Carta régia de 10 mar. 1682, ahu_acl_cu_005-02, Cx. 25, D. 3084, anexo 1. 149. Provisão de 16 mar. 1682, AHU_ACL_cu_Provisões, Cod. 93, fl. 299; carta de Francisco da Silveira Souto Maior de 18 jul. 1682 e carta de Antônio Luís de Sousa Telo de Meneses de 20 jul. 1682, ahu_acl_cu_005-02, Cx. 25, D. 3084, anexo 5 e D. 3083; carta régia dc 25 nov. 1682, ahu_acl_ cu, Canas da Bahia, Cod. 245, fls. 81V-82. 150. A consulta do Conselho Ultramarino de 12 nov. 1682 (ahu_acl_cu_oi5, Cx. 13, D. 1238) resume as dificuldades encontradas nas nomeações dos desembargadores e demais cargos para realização da devassa. A resolução régia que reitera a ordem para a realização da devassa é de 25 nov. 1682. Ver também três cartas régias expedidas na mesma data, nomeando juiz, escrivão e meirinho para a devassa, AHU_ACL_cuCartas da Bahia, Cod. 245, fls. 81, 81 v e 82. 151. Decreto de 4 mar. 1683, antt, Ms. do Brasil, n. 33, microf. 4114, fl. 79. 152. Carta de Bernardo Vieira Ravasco de 7 jul. 1682, dh, 32, p. 202, 1936; consulta do Conselho Ul­ tramarino de 3 out. 1683, ahu_acl_cu, Consultas de Partes, Cod. 49, fls. 35-35V. Gaspar Vieira de Espinosa, quando meirinho, acompanhou João de Couto de Andrade a Pernambuco em 1682, para “deliberar sobre a liberdade, cativeiro e castigo dos negros dos Palmares". Consulta do Conselho Ultramarino de 3 fev. 1692, ahu_acl_cu_005-02, Cx. 29, D. 3677.

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Assim, as idas e vindas revelam que a tal devassa nunca chegou a ser rea­ lizada. Nem há registro de qualquer demanda judicial envolvendo algum ha­ bitante de Cucaú por ter sido injustamente cativado. As mais de duzentas pessoas aprisionadas depois do cerco feito à aldeia devem ter sido mesmo reescravizadas. A documentação administrativa não registra nenhuma informação sobre elas, embora alguns relatos militares posteriores se refiram ao fato de que, entre os prisioneiros, estavam “os principais autores da resolução” de 1678 ou os “principais autores da rebelião”'53. Com a destruição de Cucaú, a guerra contra os Palmares se generalizou novamente. A possibilidade da paz aventada por Gana Zumba e pelas auto­ ridades coloniais em 1678 mostrara-se inviável e as expedições que visavam submeter os que resistiam ao acordo retomaram o estilo anterior. Sem a alter­ nativa de Cucaú, não se tratava mais de submeter os renitentes, mas de investir contra os Palmares. A liderança de Zumbi mudava, portanto, de sentido - e foi se firmando cada vez mais.

4. Tempos de Guerra O final do governo de Aires de Sousa de Castro foi gasto com providências para armar expedições. Nos últimos meses de 1680, trocou cartas com Antô­ nio Pinto Pereira, que comandava tropas em busca dos que estavam com Zum­ bi'54. Apesar de satisfeito com os sucessos obtidos e com a notícia de que “esse negro” fora ferido por um tiro, dizia estar “enfadado deste negócio”. Parecia agastado com o pedido de mais soldados, mas prometeu enviar algumas tropas e deixar outras de plantão'55. De fato, vinha cuidando de arranjar munição e mantimentos e de reforçar o contingente com o terço dos índios do Camarão, aos quais forneceu armas'56. E continuou a preparar outra expedição, sob o co153. Ver, por exemplo, consulta do Conselho Ultramarino de 16 dez. 1690 e consulta do Conselho Ultramarino de 21 fev. 1693, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 15, D. 1518 e Cx. 16, D. 1593. 154. Antônio Pinto Pereira marchou por quinze dias em outubro de 1680, lutando contra os negros por dois dias. Certidão de Aires de Sousa de Castro de 2 fev. 1681, idern, Cx. 19, D. 1863, anexo 9. 155. Carta de Aires de Sousa de Castro de 17 nov. 1680, idem, ibidern, anexo 33. 156. Ver ordens de 7, 8 e 16 out. 1Ó80, e de 2 maio 1681, auc, cca, vwn-l-l-31, fl. 363, doc. 100; fl. 363, doc. 100; fl. 363v, doc. 102 e fl. 367V, doc. 120, bem como o termo de vereação de 19 dez. 1680, ihgal, Cx. 01, Pac. 02, Doc. 02, fls. 56-56V.

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mando de Antônio da Silva Barbosa1”. As coisas não pareciam caminhar bem. Essa entrada ficou 57 dias no sertão, atacou os mocambos, mas teve que voltar por falta de mantimentos15’. Foi nesse contexto que o governador ordenou ao ouvidor que investigasse se havia gente na capitania que estava em contato com os pahnaristas ou lhes enviava armas, munições e ferramentas'5’. As informações sobre a atuação de Antônio Pinto Pereira e de outros sol­ dados indicam ter havido várias expedições em 1680 e 1681,6°. Em 12 de agos­ to de 1681, o governador alegou ser “preciso continuar a guerra aos negros levantados dos Palmares [...] com causa mais justificada pelos grandes danos que têm feito aos moradores das capitanias [...] vizinhas”, e convocou todos os oficiais e soldados das companhias que haviam sido mandadas para Buenos Aires para fazer nova entrada contra os mocambos, sob pena de degredo para Angola'61. Quatro dias depois soltou outro bando, ainda mais duro. O tom mudara completamente. Nem sombra da autoridade afável que seguia os rituais do Antigo Regime ao tratar com Gana Zumba e Gana Zona ou explicava os motivos de suas determinações aos oficiais coloniais. Aires de Sousa de Castro queria agora acabar de vez com “os negros dos Palmares”, por considerá-los “uma canalha vil e rebelde [que] de pouco tempo a essa parte se resolvera a fazer alguns excessos dignos do maior castigo”. Ele determi­ nava que todas as tropas da capitania fizessem arraiais “donde mais convier” e que nenhum soldado desse “quartel a nenhum negro de armas”, sob penas de ser tratiado na poles'62. Os “negros dos moradores que tive[ss]em fugido para o sertão e por medo e temor da guerra se recolhe[ss]em outra vez à casa 157. Ordens de 24 e 29 nov. 1680, auc, cca, vi-ni-l-1-31, fl. 364V, doc. 107 e fl. 365, doc. 109. 158. Certidão de Antônio da Silva Barbosa de 2 set. 1681, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 19, D. 1863,anexou. 159. Ordem dc Aires de Sousa de Castro de 6 dez. 1680, auc, cca, vi-in-i-1-31, fl. 365, doc. 110. 160. Além dos documentos relativos a Antônio Pinto Pereira, já citados, ver a informação do Conselho Ultramarino de 1688, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 14, D. 1454; ordem de Aires de Sousa de Castro de 2 maio 1681, auc, cca, vi-m-i-i-31, fl. 367V, doc. 120. Deve ter sido por essa época que Aires de Sou­ sa de Castro mandou que tropas da Paraíba fossem ao sertão em busca dos negros dos Palmares, que se dizia “se tinham retirado para aquela capitania”. Paulo de Sousa Alvim acompanhou uma tropa que entrou “mais de 80 léguas pelo sertão dentro”, achando a “trilha dos negros e alguns mortos por falta de água”. Andaram por 67 dias pelos matos e descobriram que “os negros se ti­ nham retirado ao seu antigo domicílio”. Ver consultas do Conselho Ultramarino de 12 dez. 1684 e de 27jan. 1687, ahu_acl_cu, Consultas de Partes, Cod. 49, fls. 127V-128 e ahu_acl_cu_oi4, Cx. 2, D. 145. 161. Bando de 12 ago. 1681, auc, cca, vi-in-i-1-31, fls. 342V-343, doc. 33. 162. Ou seja, ser suspenso na polé (roldana fixada em uma armação de madeira, como no caso da forca),

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de seus senhores” deviam ser remetidos para o Recife para serem expulsos da capitania — tomou, entretanto, o cuidado de determinar que uma indenização fosse paga aos respectivos proprietários, “como [fosse] mais conveniente Qualquer pessoa que ocultasse algum daqueles “negros” seria castigada. Para

incentivar as tropas, determinou que “todas as bagagens de crias e negros que

se tomarem da dita guerra ser[iam] livres para se repartirem por todos os que forem a ela” e que os criminosos que participassem da guerra seriam perdoados

de suas culpas, desde que não tivesse cometido um crime de morte165. As medidas deram certo resultado, já que relatos militares posteriores

mencionam uma grande expedição à serra do Barriga no final de 1681, que

durou mais de seis meses. Nela foram queimadas muitas casas e armazéns de mantimentos, e mais de seiscentas pessoas foram aprisionadas'64. Alguns, cap­ turados nessa guerra ou nas anteriores, foram remetidos para o Reino, como parte do quinto'65; outros faleceram na prisão'66. O novo governador, dom João de Sousa, tomou posse em janeiro de 1682

e, mais de um ano depois, ao escrever para Lisboa dando conta das notícias de seu governo, elogiou o antecessor:

Muito é o que Aires de Sousa de Castro obrou nas disposições e eficácia em pre­ juízo dos negros dos Palmares [...], reduzindo-os de poderosos em que os achou a diferente estado em que hoje se veem, destituídos das maiores cabeças que os capi­

taneavam, por morrerem na última guerra que o ano passado [em 1681] lhe mandou

fazer não sem muito dispêndio da sua própria fazenda, porque só fez interesse da desestimação dela167. com pesos amarrados nos pés, e depois ser solto subitamente, de modo a destroncar os braços. Ver Bluteau, op. cit., verbete “polé”. 163. Bando de 16 ago. i68t, auc, cca, vi-m-i-i-31, fls. 343-343V, doc. 34. 164. Ver, por exemplo, carta padrão de tença de 23 abr. 1688, antt, chr, Pedro 11, L. 18, fls. 233V-234V; informação do Conselho Ultramarino [de 3Ojul. 1682], ahu_acl_cu_ois, Cx. 12, D. 1230; carta padrão de tença de 13 mar. 1688, antt, chr, Pedro 11, L. 18, fls. 189V-19OV. Carta patente de 21 mar. 1687, ahu_acl_cu_ois, Cx. 19, D. 1863, anexo 30. Em alguns desses relatos há menção de que os palmaristas haviam levado mulheres dos moradores, que foram recuperadas pelos soldados. 165. Consulta do Conselho Ultramarino de 13 dez. 1681, AHU_ACL_cu_Consultas de Pernambuco, Cod. 265, fl. 33. Há referência ao pagamento de 10S000 réis a um médico em Lisboa por ter pres­ tado assistência aos negros dos Palmares. Consulta do Conselho Ultramarino de 28 fev. 1682, AHU_ACL_CU_015, Cx. 12, D. 1220.

166. Ver a ordem de Aires de Sousa de Castro de 20 dez. 1680, auc, cca, vi-in-1-1-31, fl. 365, doc. 111. 167. Carta de dom João de Sousa de 26 maio 1682, ahu_acl_cu_ois, Cx. 12, D. 1226. A carta foi lida

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De fato, àquela altura, Palmares tinha deixado de ser tão poderoso como no final dos anos 1670. Entre 1678 e 1680, com o acordo de paz e a instalação da aldeia de Cucaú, havia se dividido. Os que se afastaram haviam sido ata­ cados, mas não se conseguira fazê-los descer para Cucaú nem que deixassem os mocambos. Depois da destruição de Cucaú, restaram aqueles que estavam sob a liderança de Zumbi. O número dos capturados na investida à serra do Barriga não é desprezível e indica que ele conseguira reunir muita gente em torno de si. É difícil saber se esse contingente era composto por seus segui­ dores desde 1678 ou se incluía os que haviam acompanhado Gana Zumba e buscavam refúgio depois do fim de Cucaú. As expedições do final do governo de Aires de Sousa de Castro, sobretudo a de 1681, podem ter enfraquecido os Palmares. Mesmo assim, as “hostilidades” dos negros continuavam a incomo­ dar as autoridades e os senhores da região, que os acusavam de matar e roubar os moradores, “levando para os seus mocambos algumas mulheres brancas, escravos e escravas”'68. Zumbi se instalara na serra do Barriga, para onde então convergiam as investidas contra ele. As referências a esse local começam a aparecer somente a partir de novembro de 1681 e, depois disso, com constância169. Durante o governo de dom João de Sousa, as expedições costumavam sair de Alagoas ou Porto Calvo, ficando alguns meses nos matos, em arraiais, seguindo as trilhas deixadas pelos fugitivos ou atacando o local onde Zumbi estava “fortifica-

pelo Conselho Ultramarino em 29 de agosto do mesmo ano, que simplesmente a remeteu ao príncipe, sem qualquer manifestação. AHU_ACL_cu_Consultas de Pernambuco, Cod. 265, fl. 34V. 168. Consulta do Conselho Ultramarino de 12 fev. 1701, ahu_acl_cu_oi5, Cx. 19, D. 1867. 169. A primeira menção a uma cerca fortificada “na serra chamada o Barriga” aparece na certidão de Clemente da Rocha Barbosa de 27 nov. 1681, ident, Cx. 19, D. 1863, anexo 12. Uma consulta do Conselho Ultramarino de 20 de dezembro de 1697 menciona um ataque ao outeiro do Barriga em 1680. ahu_acl_cu_0I5, Cx. 17, D. 1741. Nas fontes, o nome aparece sempre referido no mascu­ lino. Talvez isso se deva ao apelido “o Barriga”, atribuído a Antônio Bezerra Monteiro, um dos patriarcas da família Álvares Camelo, possuidora de terras e cargos na região de Alagoas do Sul. Ver Antônio José Victoriano Borges da Fonseca, “Nobiliarquia Pernambucana”, 1925, p. 164. A maior parte da historiografia chama a cerca do Barriga de Macaco. Este mocambo, no entanto, foi destruído em 1678 e, depois desta data, seu nome não mais aparece na documentação. Ver, entre outros, Edison Carneiro, op. cit., 1958, pp. 146,153-154 e 158; Benjamin Péret, op. cit., p. 12; Décio Freitas, op. cit., 1984, pp. 148 e 160-165; Gérard Police, op. cit., p. 174; Ivan Alves Filho, op. cit., pp. 127, 144, 147 e 149; Flávio dos Santos Gomes, op. cit., 2005, p. 148, Pedro Puntoni, Portugal, uma Retrospectiva, 1694, 2019, pp. 85-87.

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do”'70. Às vezes as campanhas duravam pouco mais de um mês, outras seis, sete ou oito meses. Os ganhos podiam ser poucos, como na invasão de “um mocambo que constava de seis peças, quatro negros que se mataram e duas negras que se aprisionaram”; outras vezes havia muitos mortos e prisionei­ ros, incluindo lideranças importantes'71. Um relato posterior menciona que em 1681 as tropas lideradas por Damião de Magalhães conseguiram destruir um mocambo próximo ao rio Mundaú com mais de 170 casas, “matando ao dito Zumbi, aprisionando-lhe sua mulher e família, e trazendo uma mulher branca com um filho que à força haviam levado para os Palmares”'71. Como já acontecera antes, nem sempre a morte de uma liderança se confirmava, mas a quantidade de casas é expressiva, assim como a prisão de familiares de Zumbi. Naqueles tempos, em meio aos altos e baixos, guerra e paz voltaram a se articular. Logo no início de seu governo, domjoão de Sousa tentou ainda uma vez negociar com Zumbi. Por volta de maio de 1682, as tratativas pareciam caminhar bem, pois ele escreveu ao capitão-mor João da Fonseca dizendo que o ajuste, por ser “negócio de tanta consideração” deveria ser feito em sua presença, e recomendava que, se Zumbi concordasse em ir ao Recife, devia fazê-lo no prazo de vinte dias. E avisava: “se não [se] acomod[assem] a estar sujeitos debaixo da jurisdição desse governo”, voltaria a fazer contra ele e to­ dos os seus uma guerra sem quartel'73. Talvez imaginasse poder colher as gló­ rias antes pretendidas por dom Pedro de Almeida e Aires de Sousa de Castro. A tentativa, porém, fracassou e o governador passou a tomar medidas se­ veras contra Palmares. Em uma carta dirigida às câmaras de Sirinhaém, Porto Calvo, Alagoas e Rio de São Francisco, quase um ano depois, relatou o falhan­ ço das negociações e mandou que se fizesse uma “cruel guerra” para dar con-

170. Ver, por exemplo, os relatos que constam das consultas do Conselho Ultramarino de 18 nov. 1699 e de 12 fev. 1701, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 18, D. 1797 e Cx. 19, D. 1867. Às vezes, há menção a outros locais, como no caso da expedição comandada por Manuel de Inojosa em 1682 contra os “negros dos Palmares que viviam junto ao rio Pratagi”. Carta patente de 2 abr. 1688, antt, chr, Pedro 11, L. 18, fls. 225V-226. 171. Ver, por exemplo, os vários relatos na consulta do Conselho Ultramarino de 12 fev. 1701, ahu_ acl_cu_0I5, Cx. 19, D. 1867. 172. Consulta do Conselho Ultramarino de 2ójan. 1685, ahu_acl_cu, Consultas Mistas, Cod. 18, fls. Il-liv. Sobre a prisão da “mulher e família” de Zumbi ver também a informação do Conselho Ultramarino [de 24 mar. 1683], ahu_acl_cu_oi5, Cx. 13, D. 1248. 173. Carta de dom João de Sousa de 23 maio 1682, auc, cca, vi-m-i-i-31, fl. 384, doc. 49.

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tinuidade à “redução dos negros fugidos dos Palmares”. Assim se expressava dom João de Sousa: [...] o negro Zumbi, cabeça de todos os mais rebelados, moveu [...] maliciosa­ mente um tratado e ajustamento de paz e, não obstante a experiência dos exemplos

passados e a pouca confiança que se deve ter da palavra de semelhantes homens, me pareceu mandar ouvi-lo pelo capitão mor dessa vila [do Recife] João da Fonseca para maior justificação do ânimo e desejo de evitar dispêndios que semelhante guerra re­

petidamente costuma causar aos moradores deste Pernambuco. E com efeito se ajus­ tou a sujeição dos ditos negros, sítio em que haviam de habitar, entrega dos cativos que haviam de fazer [e] tempo determinado para a conclusão de tudo, a que o dito

Zumbi e seus sequazes têm faltado, mostrando em todas as suas ações um malévolo e pernicioso ânimo, preparando-se com toda a sagacidade para resistirem à guerra que certamente conhecem se lhe há de fazer'74.

Os termos do acordo eram semelhantes aos ajustados com Gana Zumba

quatro anos antes. Poderia ser, novamente, um jeito de submeter os rebela­ dos. Mas havia agora, manifestamente, a preocupação com o financiamento

das expedições. A paz poderia ser um caminho para aliviar os encargos que a continuidade da guerra acarretaria para as câmaras e os moradores.

O tempo decorrido entre as duas cartas - de quase um ano — pode indicar ter havido um momento em que as negociações devem ter parecido promis­ soras. Por malícia de Zumbi ou não, o ajuste não prosperou, levando dom

João de Sousa a preparar uma nova expedição. Para o governador, o recurso da negociação estava esgotado e ele recomendou a todos que, dessa vez, de modo algum “se lhes admitisse proposição de pazes que oferecessem, por a

experiência ter mostrado em muitas ocasiões a falsidade do ânimo com que

intentam semelhantes partidos”. Agora, apenas a guerra conseguiría castigar a “insolente e escandalosa culpa” daqueles negros.

Fernão Carrilho, que havia sido nomeado para uma das companhias pagas de Pernambuco em 6 de dezembro de 1681, foi encarregado de comandar a

nova entrada'75. A lição havia sido aprendida e o capítulo 15 de seu regimen-

174. Carta de dom João de Sousa de i°jul. 1683, idem, fls. 386V-387, doc. 60. 175. Resolução régia de 6 dez. 1681, ahu_acl_cu_oij, Cx. 13, D. 1298 e carta patente de 17 dez. 1681, antt, chr, Afonso vi, L. $2, fls. 4V-5. Carrilho foi a Lisboa logo depois de ser nomeado para este

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to determinava expressamente que “não atendesse em nenhum caso àquelas pazes, na consideração [de] que os negros lhas propusessem, antes procurasse com o maior esforço possível oprimir e castigar a tirania inveterada de bárba­ ros tão prejudicialíssimos”1’6. O fracasso de Cucaú e das tentativas posteriores de algum acerto de paz havia calado fundo nas autoridades coloniais. Para assegurar a retomada da guerra, foram adotadas as providências de sempre, com ordens para as câmaras contribuírem com armas, homens e man­ timentos. A preocupação com os gastos se tornara mais evidente, já que o governador determinou uma escrituração dos recursos empregados no abas­ tecimento das tropas e pediu contribuições dos moradores, sobretudo dos “maiores e mais ricos”, apesar dos pagamentos feitos pela Fazenda Real'77. Al­ guns documentos expedidos nesse contexto indicam que a guerra pretendida pelo governador seria generalizada, pois em novembro de 1683 ele autorizou o capitão do campo de Olinda a entrar nas casas e fazendas em busca dos “es­ cravos fugidos e levantados para os prender”'78. Carrilho partiu de Santo Amaro das Alagoas e, em 30 de novembro de 1683, formou um arraial no rio Mundaú. Vinte e sete dias depois foi à “serra chamada o Barriga, onde achfou] os bárbaros negros fortificados com grandes cercas, estacadas, fossos e estrepes”; lutou durante toda a noite “com grandessíssimo trabalho”, conseguindo finalmente desalojá-los, destruir suas casas e fortificações'79. As tropas instalaram-se nas fraldas do outeiro e ali ficaram perseguindo os fugitivos por dois meses. A vitória, porém, parece ter durado pouco. Fernão Carrilho foi substituído por João de Freitas da Cunha, que mu­ dou o arraial para a barra do Paraíba Mirim'80, de onde partiram novas expe­ dições. Depois da ofensiva de Carrilho, Zumbi conseguira se retirar “com sua gente [...] para outro sertão”'8' e, em abril de 1684, já estava instalado “na pa-

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posto, voltando ao Brasil em 1682. Ver Helena C. Barreto, The Life and Times of Fernão Carrilho, 1980, pp. 33-34. Esse regimento não foi localizado, mas o capítulo 15 é citado na carta de dom Joào de Sousa de 10 ago. 1684, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 13, D. 1298, anexo 1. Ordem de i° jul. 1683; carta de 6 jul. 1683, ordem aos oficiais da câmara de Olinda de 16 set. 1683 e ordem de dom Joào de Sousa de 8 nov. 1683. Respectivamente auc, cca, vi-in-i-1-31, fl. 387V, doc. 62; fls. 387V-388, doc. 63; fl. 374V, doc. 14 e fls. 390-390V, doc. 74 Ordem de 22 nov. 1683, idem, fls. 375-375v, doc. 17. Certidão de Fernão Carrilho de 27 fev. 1684, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 19, D. 1863, anexo 15. Certidão de Damião de Magalhães de 12 abr. 1685, idem, Cx. 16, D. 1601, anexo 9. Consulta do Conselho Ultramarino de 12 fev. 1701, idem, Cx. 19, D. 1867.

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ragetn a que chamam Gongoro”, a quarenta léguas da vila de Alagoas do Sul'82, onde foi atacado por tropas comandadas por Gonçalo Moreira da Silva'8’. Os relatos militares indicam que as ofensivas continuaram em 1684, abran­ gendo uma área cada vez mais extensa. Em fevereiro de 1684, o governador autorizou Manuel Albuquerque a fazer uma entrada na região de Sirinhaém, também para prender os negros levantados dos Palmares, concedendo-lhe o privilégio de ficar com todos os prisioneiros que não tivessem senhor'8*. Do arraial de João de Freitas da Cunha no Paraíba Mirim, partiam grupos de sol­ dados em várias direções, incluindo a serra do Jacaré'8’. Havia ainda outros assentamentos de fugitivos localizados na serra de Porangaba (onde foram fei­ tos treze prisioneiros e sete mortos), no rio Camaragibe (onde foram mortos seis e se aprisionou um sobrinho de Zumbi), no sertão das Tabocas, na serra da Batalha, na serra de Santa Cruz'86. Em 1685, foi a vez do mocambo situado na serra da Haca'8’. As expedições se multiplicavam, organizadas de modos diversos, envol­ vendo problemas variados. Todavia, não eram apenas os Palmares a preocupar as autoridades coloniais. Em abril de 1684, diante dos “insultos, roubos, for­ ças de mulheres, escravos e furtos” cometidos nas estradas e nos “contornos” das cidades de Olinda e Recife por “negros e mamelucos levantados” o go­ vernador autorizou Brás de Araújo a buscar e a prender “negros ou mulatos levantados [...] em mocambos, ou casas e fazendas”'88. Como no ano anterior,

182. Outro relato informa que o sítio do Gongoro estava localizado a trinta léguas do arraial situado na barra do rio Paraíba Mirim. Certidão de Damião de Magalhães de 12 abr. 1685, idem, Cx. 16, D. 1601, anexo 9. 183. Certidão de Gonçalo Moreira da Silva de 10 mar. 1685, idem, ibidem, anexo 11. Ver também consul­ ta do Conselho Ultramarino de 20 dez. 1697, idem, Cx. 17, D. 1740. Em abril e maio de 1684 houve luta renhida, mortos e feridos, mas as tropas se retiraram por falta de mantimentos. Certidão de Gonçalo Moreira da Silva de 6 dez. 1684, idem, Cx. 19, D. 1863, anexo 19. 184. Carta de concessão de 14 fev. 1684, auc, cca, vi-ni-1-1-31, fls. 375V-376, doc. 18. 185. Consulta do Conselho Ultramarino de 27jan. 1698, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 18, D. 1748. 186. Consulta do Conselho Ultramarino de 14 mar. 1696, idem, Cx. 17, D. 1696. Ver também registro de mercê de Jerônimo de Albuquerque de Melo de 4 out. 1696, antt, rgm, Pedro 11, L. 10, fl. 332. 187. Consulta do Conselho Ultramarino de 6 maio 1699, ahu_acl_cu_oo6, Cx. 1, D. 42. 188. Ordem de dom João de Sousa, s.d. e ordem de 17 abr. 1684, auc, cca, vi-m-i-i-31, fls. 376V-377, doc. 22 e fl. 377, doc. 23. É provável que tenha sido por essa ocasião que buscas mais efetivas te­ nham sido feitas no Recife e em Santo Antônio, temendo-se um levante dos “negros do gentio de Guiné”. Ver, a respeito, a informação do Conselho Ultramarino de 1693, ahu_acl_cu_oi5, Cx. 17, D. 1676, anexo 1.

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tratava-se de buscar a gente dos Palmares não só nos matos, mas também os que haviam voltado para seus senhores e não se mantinham subordinados. Do mesmo modo que no final do governo de Aires de Sousa de Castro, as buscas podiam invadir o sagrado domínio senhorial - o que sugere terem sido provi­ dências extremas, para remediar um grave mal. Nem todos, porém, estavam de acordo com a necessidade de uma per­ seguição sem quartel, como queria o governador. Como vimos há pouco, Fernão Carrilho foi substituído por João de Freitas da Cunha no comando da investida à serra do Barriga. O motivo não é mencionado na maior parte das narrativas militares posteriores, feitas para pedir mercês. Mas devia ser conhecido de muitos. Segundo o relato do governador ao rei, em agosto de 1684, antes mesmo de entrar em combate, Carrilho resolvera por conta pró­ pria fazer as pazes com Zumbi. Dom João de Sousa informa que ele tentara rever a cláusula de seu regimento antes de partir, sem sucesso. Apesar disso, “logo que entrou no mato”, começou a negociar a paz “que os negros lhe pe­ diram”. Recebendo ordens do governador para que “emendasse o desacerto” e fosse “desalojar incontinente [os negros] do outeiro do Barriga”, partiu para o ataque — mas os palmaristas tinham sido avisados e fugido'8’. A violação da cláusula lhe valeu a prisão, julgamento e pena de degredo para a capitania do Ceará, em julho de 1684”°. Foi por isso que o capitão João de Freitas da Cunha foi nomeado para dar continuidade à guerra contra Palmares, sob as ordens de Zenóbio Acioli de Vasconcelos1’1. Em Lisboa, mais uma vez, a avaliação parece ter sido diferente daquela das autoridades em Pernambuco. Ao receber as informações e os autos sobre as atitudes de Carrilho, o Conselho Ultramarino lavou as mãos, remetendo o assunto para os corregedores do crime, para que Carrilho fosse sentenciado “como for justiça, na forma do estilo”, encaminhamento aceito pelo rei pou­ cos dias depois”2. 189. Carta de dom João de Sousa de 10 ago. 1684, idcm, Cx. 13, D. 1298. 190. Ordens de 24 jul. 1684, auc, cca, vi-ni-l-1-31, fl. 393. doc. 87 e fls. 393~393v» doc. 88 e parecer do Conselho Ultramarino de 29 nov. 1684, AHU_ACL_cu_Consultas de Pernambuco, Cod. 265, fl- 37v191. Ordem de 4 nov. 1684, auc, cca. vi-m-i-i-31, fls. 378V-379, doc. 31. Do arraial, Cunha atacou “alguns mocambos donde se degolaram alguns negros” e nele permaneceu todo o inverno. 192. Consulta do Conselho Ultramarino de 29 nov. 1684, AHU_ACL_cu_Consultas de Pernambuco, Cod. 265, fls. 37V-38.

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Era tempo de mudança de governo em Pernambuco e o contexto pode talvez explicar a aparente neutralidade. Décio Freitas afirma ter localizado uma carta régia dirigida ao “capitão Zumbi dos Palmares”, escrita em 26 de fevereiro de 1685. Por meio dela, o rei oferecia-lhe o perdão “de todos os ex­ cessos” cometidos, dizendo entender que a sua “rebeldia” fora motivada pelas “maldades praticadas por alguns maus senhores em desobediência às minhas reais ordens”. A frase é enigmática, e não há dados para esclarecê-la. Em se­ guida, “convida[va]” Zumbi a escolher um local para residir com sua mulher, filhos e capitães, “livres de qualquer cativeiro e sujeição”, como fiéis e leais súditos, sob a proteção real1’3. Décio Freitas observa que o documento pode ter sido levado pelo novo governador, mas não se sabe se chegou a ser ou não entregue ao “chefe negro”'94. Os termos lembram de perto as bases do acerto com Gana Zumba em 1678 e com Zumbi em 1682. Mas é estranho que o rei tenha interferido diretamente nas negociações, sobretudo diante da posição reticente do Conselho Ultramarino. No início de agosto de 1685, ao relatar a Lisboa suas impressões iniciais so­ bre o estado em que se encontrava a capitania que acabara de assumir, João da Cunha Souto Maior observou ter dificuldades em manter a guerra e ponderou que, se Palmares lhe oferecesse a paz, seria forçado a aceitá-la,9S. Isso já havia acontecido no tempo de seu antecessor e a baixa na produção de açúcar pio­ rava a situação. Menos de um mês depois, no entanto, diante das queixas em contrário das câmaras, das mortes que haviam sido feitas pelos negros em Sirinhaém ao longo daquele mês de agosto, “dos novos mocambos que vão [se] formando no mato”, e da constatação de que as negociações de paz eram “fin­ gidas”, resolveu retomar as investidas militares contra Palmares. Tirou Fernão Carrilho da prisão “sob menagem” (sob palavra) e o encarregou de comandar

193. Carta régia a Zumbi de 26 fcv. 1685. Décio Freitas, op. cit., 2004, p. 183. Ao publicar o documento, Freitas nào referencia a instituição de guarda do original, mas em Palmares, 1984, p. 132 afirma ter localizado o manuscrito na Biblioteca da Ajuda, cujo acervo não costuma incluir papéis oficiais. Apesar de inusitado e com termos fora do padrão das missivas régias, alguns elementos textuais permitem aventar ter sido escrito no âmbito do Conselho Ultramarino. Infelizmente, não conse­ gui localizar o texto na Biblioteca da Ajuda ou no Arquivo Histórico Ultramarino. 194. Décio Freitas, op. cit., 2004, p. 183. 195. Carta de João da Cunha Souto Maior de 8 ago. 1685, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 13, D. 1329. Nesse documento, nem em outro, o governador mencionou a carta régia publicada por Décio Freitas.

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novas expedições contra os Palmares, em setembro de 1685190. Além de tomar medidas para armar e abastecer as tropas, assim como seu antecessor, tentou cobrir os custos combinando contribuições voluntárias dos moradores com verbas da Fazenda Real. Também lançou bandos concedendo “as presas livres para quem as tomasse”, sem a cobrança dos quintos e da “joia que se costuma dar aos governadores”1’7. Ao discutir as estratégias para o ataque, aconselhou um dos comandantes que, para vencer as batalhas, era preciso “ter a Deus pela causa”, não deixar “faltar mantimentos aos soldados” e oferecer “grande po­ der” contra “esta canalha na primeira entrada”1’8. O governador queria uma solução rápida e eficiente. Talvez por isso tenha recorrido a forças maiores, designando Santo Antônio como soldado para a guerra1’’. O Conselho Ultramarino, ao examinar essa carta do início de agosto, foi desfavorável a qualquer ajuste de paz: para os conselheiros, não só a experiên­ cia mostrava “que esta prática [era] um meio engano”, como também resultava na diminuição da “reputação” das autoridades que tratavam com “uns pretos fugidos e cativos”20’. A decisão final apoiava-se num longo parecer do ex-governador de Pernambuco, dom João de Sousa, que era contrário a qualquer acerto com “os negros do Palmar”, e que advertia contra a “cavilação” com que eles simulavam “contemporizar com o novo governador que chega” ou 196. Ordem dc 6 set. 1685, auc, cca, vi-m-i-i-31, fls. 402-403, doc. 7 e carta de João da Cunha Souto Maior de 7 nov. 1685, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 13, D. 1345. A devassa sobre os procedimentos de Fernao Carrilho continuou, apesar de haver discussões sobre a instância com jurisdição para jul­ gar a causa. Ver a carta do ouvidor-geral da capitania de Pernambuco de 5 jan. 1686 e consulta do Conselho Ultramarino de 12 fev. 1686, idern, Cx. 14, D. 1351 e D. 1464. 197. Ordem de João da Cunha Souto Maior de 10 set. 1685, auc, cca, vi-ni-i-1-31, fl. 427, doc. 75; carta de João da Cunha Souto Maior de 7 nov. 1685, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 13, D. 1345. A apropriação de prisioneiros pelos governadores era chamada de “joia”. Fontes da década de 1660 mencionam que eles ficavam com as “crias” que fossem capturadas. Este era um costume praticado no Reino de Angola desde meados do século xvn e aparece também no aprisionamento de índios. Ver, por exemplo, o edital de 6 dez. 1662, auc, cca, vi-in-i-1-31, fls. 86V-87, doc. 123 e carta de 30 ago. 1691, bnp-res, pba, Cod. 239, fls. 357-358. 198. Carta de João da Cunha Souto Maior de 26 nov. 1683, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 14, D. 1371, anexo 2. 199. Portaria de 13 set. 1685, bnrj-ms, Cod. 11,3,1, fl. 335, doc. 4. O pagamento da farda e do soldo seria feito pelo síndico do Convento de Olinda “enquanto houvesse guerra em Pernambuco”. A nomeação do santo imitava outra semelhante feita pelo rei para as guerras do Reino. Em 1692, uma provisão régia confirmou o pagamento ao santo. Provisão régia de 23 jun. 1692, ahu_acl_cu, Provisões, Cod. 94, fl. 185V. Ver, a respeito, Luiz Mott, “Santo Antônio, o Divino Capitão-do-mato”, 1996 e Rafael Brondani dos Santos, Martelo dos Hereges, 2006, cap. 5. 200. Parecer do Conselho Ultramarino de 7 fev. 1686, ahu_acl_cu_oij, Cx. 13, D. 1329.

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agiam diante da ameaça de uma guerra201. Aires de Sousa de Castro também participou dos debates, mas defendeu uma negociação firme, com prazos cer­ tos para não haver protelações, além de julgar “muito acertado” que eles qui­ sessem “descer para baixo [sir] e estarem sujeitos às ordens daquele governo [de Pernambuco]”202. Foi voto vencido203. O partido da guerra parecia predo­ minar agora também em Lisboa. Cartas enviadas ao capitão das Ordenanças de Pernambuco em março e abril de 1686 indicam que as tropas em Pernambuco estavam bem armadas e que havia esperança de vitória, já que “o negro anda desalojado da sua cerca e atormentado com as ocasiões e emboscadas que fez o capitão-mor Fernão Carrilho, que em todas foi mal-sucedido o dito negro, porque sempre fugiu e perdeu gente”204. Partindo de Porto Calvo, os soldados haviam atacado um mocambo, fazendo muitos prisioneiros; ficaram cerca de oito meses e meio “saindo fora do seu arraial a buscar a trilha dos negros”2°s. Em agosto de 1686, o governador escreveu mais uma vez para Lisboa, para contar que Fernão Carrilho investira contra os Palmares em janeiro, mas en­ frentara dificuldades. Sabendo da entrada, aqueles “insolentes” haviam sur­ preendido as tropas antes que chegassem à cerca; depois de “renhida peleja”, Carrilho conseguira que fugissem; matou muita gente e destruiu casas e man­ timentos, motivo pelo qual “já mortos de fome [vieram] alguns pedir miseri­ córdia e buscar perdão aos seus absurdos”. O inverno atrapalhava as andanças pelos matos e havia dificuldades para pagar as despesas de guerra: era preciso suplementar as dotações da Fazenda Real pois os moradores vinham contri­ buindo “mais do que lhe[s] era possível e não éjusto que assist[isse]m para esta

201. Parecer de dom João de Sousa de 2 dez. 1685, idem, ibidem, anexo 2. 202. Parecer de Aires de Sousa de Castro de 14 nov. 1685, idem, ibidem, anexo 1. 203. A consulta final foi enviada ao rei em 7 fev. 1686, AHü_ACL_cu_Consultas de Pernambuco, Cod. 265, fls. 41 v e ss. Nova consulta, em 27 de abril de 1686, reitera a mesma avaliação, ahu_acl_cu_ Consultas de Pernambuco, Cod. 265, fls. 44V-45. 204. Cartas de João da Cunha Souto Maior de 7 mar. 1686 e 8 abr. 1686, ahu_acl_cu_oi5, Cx. 14, D. 1371, anexos 364. Um relato dos feitos de Luís da Silveira Cardoso menciona expedições em 1686. Numa delas atacaram “uma grande emboscada de negros” e mataram muitos, incluindo “um grande corsário a quem cortaram a cabeça e a trouxeram em um pau”, em outra desalojaram Zumbi da “cerca do Calongui, em que estava situado o seu chamado rei”. Consulta do Conselho Ultramarino de 4 abr. 1718, idem, Cx. 28, D. 2536. 205. Carta patente de 10 fev. 1687, ahu_acl_cu, Ofícios, Cod. 120, fls. 251V-252V.

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empresa com mais do que têm”206. Dessa vez, os conselheiros concordaram prontamente com o governador, lembrando ao rei a urgência da matéria que, desde o ano passado, aguardava uma resposta20’. Não era a primeira vez que os moradores contribuíam para as expedições contra os Palmares. Em 1678 e 1680, por exemplo, o comerciante Gonçalo Fer­ reira da Costa havia aplicado grandes quantias para ajudar a pagar e a sustentar os soldados da infantaria que foram ao sertão. Fez o mesmo em 1686, “pelas muitas vexações que davam aos moradores das Alagoas, Porto Calvo, Sirinhaém, e mais capitanias do sul com os grandes roubos que lhe faziam assim nas lavouras como nas casas tirando-lhe seus móveis levando em sua compa­ nhia muitos escravos do gentio de Guiné e outros muitos atrevidos”208. Desta feita, o governador contava com o poderoso apoio dos Vieira de Melo. Foram eles que, diante da “impossibilidade da Fazenda Real” e do aperto dos “se­ nhores de engenho e mais povo”, haviam respondido ao “pedido voluntário”, cedendo escravos, gado e mantimentos209. E mantiveram aldeias de índios em suas terras para que defendessem seus engenhos e todo o distrito da “invasão dos negros dos Palmares”2'0. Em março de 1687, o rei finalmente tomou uma decisão. Mandou que o governador escolhesse quatrocentos soldados pagos, incluindo gente dos terços de Henrique Dias e do Camarão, e que eles se instalassem nos Palma­ res, “para que, persistindo naquele sítio, p[udesse]m fazer correrías por toda aquela campanha de sorte que os negros se v[isse]m perseguidos e destruídos”. Determinou ainda que isso fosse feito logo que tivessem “recolhidos os man­ timentos das suas lavouras e palmares”, que seriam utilizados para sustentar os soldados enquanto estes não conseguissem plantar ou abrir novos caminhos para receber socorros. Considerando que, “assim perseguidos e hostilizados”,

206. Carta de Joào da Cunha Souto Maior dc 2 ago. 1686, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 14, D. 1383. 207. Consulta do Conselho Ultramarino de 23 out. 1686, idetn, ibidetn, anexo 1. 208. Requerimento de Gonçalo Ferreira da Costa de 1689, idetn, Cx. 15, D. 1540. Ver tainbém carta de confirmação de 30 mar. 1688, antt, chr, Pedro n, L. 64, fls. 285-285V. Para outros auxílios no sustento das tropas nesse período ver, por exemplo, informação do Conselho Ultramarino de 1688 e requerimento de Manuel da Fonseca Rego de 1689, ahu_acl_cu_oi5, Cx. 14, D. 1451 eCx. 15, D. 1483. Sobre este último ver Felipe A. Damasceno, op. cit., 2018, pp. 99-100. 209. Certidões expedidas por João da Cunha Souto Maior em 29 nov. 1686, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 22, D. 2043, anexos 6 e 22. 210. Carta régia de 9 dez. 1686, auc, cca, vi-iii-i-i-33» fls. I34V-I35, doc. 5.

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os palmaristas não mais conseguiríam “manter a guerra”, acrescentou: “e re­ duzidos a estes termos se lhe[s] poderá oferecer perdão, declarando-se-lhes que serão mandados livres para este Reino e ilhas”2". Sim, mais uma vez, guer­ ra e paz. Agora com menos concessões — apenas o oferecimento da liberdade num exílio forçado, para bem longe das capitanias do Brasil. Tudo parecia resolvido adequadamente, seguindo o costume de sempre. Mas não foi bem assim. Enquanto as providências para cumprir a ordem régia eram tomadas, chegou uma carta ao Conselho com informações mais detalha­ das do que ocorria em Pernambuco. O quadro ali desenhado era bem menos promissor. O texto, escrito em Pernambuco, mas sem identificação de autoria, co­ meça por dizer que “os negros” estavam “muito absolutos e desaforados”. Fingindo serem escravos dos moradores, haviam entrado em contato com os cativos, convencendo-os a se levantarem e matarem seus senhores; o plano fora descoberto por causa de “uma negra”212. E continua: “robustos e sofredo­ res de todo trabalho [...] são muitos em número e [...] não lhes falta destreza nas armas, nem no coração ousadia”; estavam cada vez mais confiantes, sem serem vencidos pelas “várias e repetidas entradas” feitas contra eles. Carrilho havia obtido sucesso ao lutar contra os “mocambos dos negros fugidos” e enfrentar “a densidade dos matos [...] e o empinado dos outeiros”, fazendo muitos prisioneiros; por isso ganhara “fama de feiticeiro, parecendo-se-lhes que excede as forças humanas”. O medo fizera com que “dois régulos vie[ssem] pedir paz, que se lhes concedeu”. Mesmo assim, o panorama era sombrio. Apesar das diligências dos governadores Aires de Sousa de Castro e dom João de Sousa, não se havia conseguido extinguir os Palmares, cujos habitantes continuavam a cometer “mortes, roubos e insolências”. Isso sem contar com o perigo de que os “inimigos” que infestavam a costa podiam se “confederar com eles e causfar] uma grande ruína”. Era preciso tomar medidas mais eficientes. E o missivista propunha meios para dar “remédio ao dano do gentio dos Palmares”: fazer uma casa forte sob 211. Resolução regia de 20 mar. 1687, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 14, D. 1383, anexo 1. Carta régia de 21 mar. 1687, ahu_acl_cu, Cartas de Pernambuco, Cod. 256, fl. 69. 212. Indo além do que está no documento, Ivan Alves Filho afirma que “os palmarinos preparavam uma verdadeira insurreição em Pernambuco, em estreita ligação com os escravos da capitania”. Op. cit., p. 121.

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comando de Fernão Carrilho e distribuir as aldeias do Camarão e de outros “índios domésticos” pelo sertão mais próximo, dando ordem a seus cabos para enforcar “todo negro que fugir”, de modo a impedir que se sintam confiantes e fazer que, “com a morte de poucos, se segurfem] os escravos de todos”; per­ suadir os “gentios bravos que cercam os Palmares”, e que são “seus acérrimos inimigos” e querem vê-los mortos, a cercar e combater os negros. O sustento da tropa seria custeado no primeiro ano pelos moradores, até que os soldados pudessem plantar e colher seus alimentos213. A proposta deve ter preocupado os conselheiros, que logo pediram a opi­ nião do procurador da Fazenda, do procurador da Coroa, de Aires de Sousa de Castro e de dom João de Sousa. O debate mais uma vez foi grande. O primeiro foi evasivo, embora afirmasse que “a destruição e extinção dos ne­ gros dos Palmares [...] era [matéria] não [só] utilíssima, mas necessária”214. O segundo ponderou que os meios determinados pela resolução régia de 20 de março “eram muito importantes”, mas pouco eficazes “para se acudir a um mal tão grande e já tão envelhecido”; as propostas feitas na carta lhe pareciam melhores: usar os recursos da Fazenda Real, obtidos com a contribuição dos povos, ou criar algum subsídio para as despesas da guerra, e adotar a pena de morte para os fugitivos, sem o “menor escrúpulo”2'5. Os ex-governadores foram menos concisos. Aires de Sousa de Castro des­ confiou que o autor do texto fosse o próprio Fernão Carrilho e, apoiando-se em sua experiência como governador, se mostrou desfavorável às sugestões. Segundo ele, a casa forte não seria capaz de “cobrir mais de 80 léguas de ser­ tão” e mudar as aldeias envolvería muito “trabalho e perigo”, sem muitos resultados. O melhor seria fazer “um arraial de 400 ou 500 homens entre pai­ sanos e soldados pagos, com aqueles cabos mais práticos”, de onde sairíam para os ataques, recorrendo a tropas das mais capitanias para perseguir os fugitivos onde se escondessem. Permanecendo no arraial todo o verão, com roças e lavouras, os soldados podiam ter o sustento necessário quando entrassem em 213. Carta sem autor identificado de 1687 [data atribuída]. Há duas cópias desse documento, em ahu_ acl_cu_0I5, Cx. 14» D- 1409. anexo 2 e D. 1383, anexo 2. Edison Carneiro (op. cit., 1958, p. 132) e Décio Freitas (op. cit., 1984, p. 136) atribuem a autoria desta carta a Fernào Carrilho. A ideia de que os soldados deviam se instalar em um local fortificado e cultivar seus alimentos já havia aparecido no parecer do padre Francisco de Matos, [1682], ba, Cod. 50-V-37, Hs. 242- 243v, doc. 84. 214. Parecer do procurador da Fazenda de 25 jun. 1687, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 14, D. 1409, anexo 2. 215. Parecer do procurador da Coroa de lojul. 1687, idern, ibidem, anexo 5.

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campanha. Quanto aos prisioneiros, deviam ser distribuídos entre os soldados, desde que fossem mandados para fora da capitania “porque não sendo assim, logo fogem e levam os domésticos”2'6. Dom João de Sousa foi bem mais críti­ co, opinando que o plano era “mais quimérico que convincente”. Desaprovou a ideia da casa forte e o deslocamento dos índios, agregando mais argumentos aos dados por seu antecessor — além disso, desabonou Fernão Carrilho, ava­ liando que este só tentava ser restituído em seu posto. Para ele, a solução era simples: tropas de soldados pagos e de índios deviam sair de Alagoas, Porto Calvo e Sirinhaém no verão, junto com moradores voluntários (interessados em ficar com os prisioneiros) “com ordem para não só procurarem castigar a rebeldia inveterada destes negros na mais crua guerra”, mas também destruir suas lavouras, para que delas não pudessem tirar seus frutos. Segundo ele, “continuada esta disposição por alguns anos [...] se sujeit[aria]m os negros e respirfariajm os povos”. As despesas deviam correr por conta dos subsídios administrados pela câmara de Olinda, que vinha gastando em obras inúteis2'7. O Conselho ignorou o debate acerca das estratégias e recomendou ao rei manter sua resolução anterior (de enviar quatrocentos soldados pagos e fazer arraiais), por julgá-la “a mais conveniente para a extinção dos negros dos Pal­ mares”. Não deixou de dizer, no entanto, ser necessário investigar as contas da câmara de Olinda nos últimos dez anos2'8. Quinze dias depois, o rei concordou com os conselheiros2'9. Os documentos deixam entrever que a situação em Pernambuco, de fato, andava tensa. O levante de escravos que incluía matar os senhores não foi discutido em Lisboa, que focalizou o debate no plano mais eficaz para acabar com os Palmares. Apesar do silêncio, os adjetivos usados para descrever os habitantes dos mocambos eram fortes e tratava-se de analisar os custos para melhor atingir o tão esperado objetivo. Havia uma crise econômica que debi­ litava os senhores de engenho desde que os holandeses, expulsos da América portuguesa, haviam se instalado no Caribe e começado a produzir açúcar, acirrando a concorrência. A lenta recuperação se fazia sentir desde os anos 216. Parecer de Aires de Sousa de Castro, 1687, idem, ibidem, anexo 3. 217. Parecer de dom João de Sousa de 8 ago. 1687, idem, ibidem, anexo 4. 218. Parecer do Conselho Ultramarino de 22 nov. 1687, idem, ibidem, anexo i. Ver também consulta do Conselho Ultramarino de 22 nov. 1687, idem, Cx. 14, D. 1428. 219. Resolução régia de 12 dez. 1687, idem, ibidem.

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1670, permitindo que os senhores investissem nas expedições contra os Pal­ mares220. Mas elas não acabavam com o problema, renovando sempre o ônus das seguidas entradas. Além dos gastos, havia dívidas. Em 1683, os senhores de engenho haviam conseguido renovar o privilégio de não terem suas proprie­ dades e escravos penhorados22', mas o comércio de açúcar nem sempre corria bem, com o perigo dos piratas que saqueavam as costas222. Em meados de agosto de 1685, notícias vindas de Angola informavam ha­ ver uma epidemia de bexigas na região, que poderia atingir Pernambuco, tão dependente dos escravos que de lá eram embarcados em grande volume223. E ela, de fato, chegou224. No ano seguinte, aproveitando a epidemia, “os negros levantados” e “alguns mulatos” tentaram saquear as casas em Olinda e Reci­ fe225. Além das dificuldades em lidar com a escravaria, as autoridades estavam preocupadas com o aumento de assassinatos na capitania, aventando a possi­ bilidade de ampliar a jurisdição do ouvidor geral para poder sentenciar esses crimes226. Adversidades econômicas, insegurança e contendas. O ouvidor nem sempre se entendia com os senhores de engenho em relação ã execução de suas dívidas227, e o próprio governador Souto Maior entrara em conflito com poderosos da capitania228.

220. Ver Stuart B. Schwartz, Segredos Internos, 1999, cap. 7; Vera Lúcia A. Ferlini, Terra, Trabalhoe Poder, 1988, cap. 2. Para uma análise da economia açucareira pernambucana na segunda metade do século xvii ver Gustavo Acioli Lopes, Negócio da Costa da Mina e Comércio Atlântico, 2008, cap. 1. 221. Provisão de 14 jan. 1683. Consulta do Conselho Ultramarino de 17 nov. 1682, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 13, D. 1239. 222. Consulta do Conselho Ultramarino de 27 abr. 1686 e carta de João da Cunha Souto Maior de 15 jul. 1686, idern, Cx. 14, D. 1362 e D. 1374. 223. Carta de João da Cunha Souto Maior de 14 ago. 1685, idern, Cx. 13, D. 1336. 224. Tratava-se do primeiro surto de febre amarela, vinda da Ásia via Antilhas. Freijaboatão conta duas mil mortes no Recife e em Santo Antônio em 1685 e 1686. Fr. Antonio de Santa Maria Jaboatào, Novo Orbe Serajico Brasílico, 1859 [1761] p. 449. Pedro Puntoni (op. cit., 2002, p. 132) informa que teriam sido mais de três mil mortos somente no primeiro trimestre de 1687. Ver também Lycurgo de Castro dos Santos Filho, História Geral da Medicina Brasileira, 1977, vol. 1, pp. 171-172. 225. Requerimento de Gonçalo Ferreira da Costa de 1689, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 15, D. 1540. 226. Carta do procurador da Coroa da capitania de Pernambuco, anterior a 6 set. 1686, idern, Cx. 14, D. 1388. 227. Ver requerimento da câmara de Olinda de 21 mar. 1684, idern, Cx. 13, D. 1279. 228. Ver, por exemplo, as queixas por abuso de poder e autoridade na carta de Manuel Dias de 20 jul. 1686, as acusações contra o governador e seu filho feitas pelo ouvidor e provedor dos defuntos e ausentes de Pernambuco na consulta do Conselho Ultramarino de 8 fev. 1687; reclamações em duas cartas do ouvidor-geral de Pernambuco de 10 ago. 1687, e os conflitos com o provedor da

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Tais instabilidades devem estar na origem de outro documento que foi enviado diretamente ao rei, sem passar pelo Conselho Ultramarino, com pro­ postas para “vencer os negros que se retiraram de Pernambuco para os Pal­ mares”22’. Escrito por volta de 1686, o texto faz um balanço dos perigos que a presença dos “negros rebelados” nas matas que vão do Rio de São Francisco até o sertão de Ipojuca, de onde saíam a fazer assaltos e roubos contra fazendas e currais, causando mortes, forçando mulheres e levando escravos. Fortifica­ dos no outeiro do Barriga, sob a liderança de Zumbi, eles eram destros nas ar­ mas e, avisados dos ataques, conseguiam se por a salvo das expedições. Assim, enquanto os habitantes dos Palmares aumentavam em número e ficavam mais violentos, a Fazenda Real cobria as despesas de uma guerra inútil e perdiam-se muitas vidas. O quadro não era muito diferente do descrito na carta que chegou em 1687 ao Conselho Ultramarino. Mas “os meios [...] para se por remédio a tantos insultos”, sim. A primeira coisa a fazer era “castigar os moradores que têm contraído amizade com os negros”, avisando-os das expedições e fornecen­ do-lhes armas. Em seguida, propunha-se a construção de um arraial com casa forte no Ipanema com cinquenta soldados tirados das companhias da Bahia e uma aldeia de índios vindos do Rio de São Francisco para cultivar mantimen­ tos; e a instalação de outro “presídio de soldados” com cinquenta soldados das companhias de Pernambuco no outeiro do Barriga, com índios do terço do Camarão e gente do de Henrique Dias, alimentados com contribuições da câmara de Alagoas “e das mais circunvizinhas”. Além disso, o rei deveria con­ ceder “postos da Ordenança e companhias de cavalo” como prêmio aos que lutassem com honra na guerra contra os Palmares e perdão aos criminosos que “à sua custa” participassem das entradas ou assistissem nos arraiais. Por fim, os prisioneiros deviam ser restituídos a seus senhores que, depois de pagar “o que costumam”, deviam vendê-los para o Pará ou Maranhão (com exceção dos menores de dez anos) porque, ficando em Pernambuco, tornavam “a fugir para os Palmares, levando consigo outros [...], sucedendo muitas vezes que por um Fazenda Real de Itamaracá na consulta do Conselho Ultramarino de 2 abr. 1688. Respectivamen­ te, idem, Cx. 14, D. 1375, D. 1397, D. 1422, D. 1423 e D. 1439. Evaldo Cabral de Mello oferece um balanço mais amplo das tensões políticas do governo de Souto Maior em A Fronda dos Mazombos, 1995. cap. 2. 229. Informação ao rei dom Pedro 11 [1686], ba, Cod. 50-V-37, fls. 260-262V, doc. 92.

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que se cativava acrescerem dez e vinte inimigos mais”. O texto termina com o “leal vassalo” oferecendo-se para ir à guerra “com sua pessoa e 100 homens à sua custa e muitos escravos que ajudem a este serviço para o que oferece a sua vida e a sua fazenda”. Não há nenhum registro de que essa proposta tenha sido lida pelo rei ou avaliada por seus conselheiros. Mas o fato de ter sido enviada diretamente ao monarca mostra o quanto a situação em Pernambuco estava tensa, a exigir solução urgente. Senhores e governantes estavam com medo —um sentimento às vezes “ex­ cepcional” ou uma verdadeira “paranóia”, como o caracterizou Evaldo Cabral de Mello230. Como no final do governo de Fernão de Sousa Coutinho, quase dez anos antes, a situação em Pernambuco era difícil e não havia consenso a respeito do melhor modo de acabar com os Palmares. Em 1677, o Conselho Ultramarino havia discutido propostas feitas por Manuel de Inojosa e acabara encarregando João Fernandes Vieira de realizar uma “guerra viva [...] até se extinguirem ou [se] reduzirem” os negros23'. O governador dom Pedro de Almeida, mesmo indisposto com alguns poderosos de Pernambuco, resolvera armar uma grande expedição, comandada por Fernão Carrilho. Vitoriosa, ela resultou no acordo de paz firmado em 1678 e na aldeia de Cucaú. Mas tudo havia desandado e a sintaxe que articulava guerra e paz já não parecia mais funcionar. Ela fora tentada diversas vezes, sem sucesso. O grande comandante da exitosa expedição de 1677 já não lograva ter qualquer sucesso em destruir os mocambos. Nem em fazer as pazes. Os Palmares estavam fortes novamente, entrincheirados no outeiro do Barriga e muitos outros mocambos se espalha­ vam pela região. Além disso, a insubordinação dos escravos parecia aumentar, com planos de sublevação em Olinda e no Recife. Todos, em Pernambuco e em Lisboa, pareciam concordar que uma “cruel guerra” era a melhor solução — e o rei decidira formar uma grande tropa para atacar os Palmares. Depois de dez anos, antigos problemas voltavam à baila: seria mesmo possível vencê-los? Qual a melhor estratégia para a guerra? Como

financiar as expedições?

230. Evaldo Cabral de Mello, op. cit., 1995, pp. 92-94. 231. Consulta do Conselho Ultramarino de 28 jun. 1677, AHU_ACL_cu_Consultas de Pernambuco, Cod. 265, fls. 14V-15.

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EVISITAR FONTES E FATOS HÁ MUITO CONHECIDOS, PRESTANDO

atenção aos detalhes, pode revelar novidades. No entanto, quando se quer conhecer o significado das ações humanas no passado, não basta seguir os eventos. É preciso ter uma pergunta a orientar a investiga­ ção. Ela nasce do diálogo com a historiografia, pode ser fruto do que se vai aprendendo com as diversas vozes filtradas pelos documentos ou da simples curiosidade. As escolhas feitas por homens e mulheres em certas situações podem re­ percutir por muito tempo ou desaparecer mais rapidamente. Seus desdobra­ mentos variam conforme o modo como foram apreendidos pelos contempo­ râneos e pelos que vieram logo em seguida, a partir de pontos de vista de gente situada em lugares sociais diversos. Este capítulo trata dos ecos do acordo de 1678 no período posterior à destruição de Cucaú, quando a cerca do Barriga se mostrou mais forte do que imaginavam as autoridades de Pernambuco. Ele acompanha a nova conjuntura da história dos Palmares, continuando a prestar atenção à cronologia e ao contexto em que as informações foram registradas. Depois, procura saber mais sobre o destino dos habitantes dos Palmares. Ao perscrutar as filigranas da documentação, o que é possível apreender? Como tirar lições dessa história?

i. Contra o Barriga Ao escrever para o rei em 7 de novembro de 1685, o governador João da Cunha Souto Maior mencionou rapidamente ter recebido uma carta de “uns paulistas

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que anda[va]m nos sertões” que se ofereciam para conquistar “os gentios” em troca de patentes militares. Souto Maior, porém, tinha outras prioridades. Con­ siderando serem os paulistas “os verdadeiros sertanejos” e disporem de “quatro­ centos homens de armas”, pediu-lhes que atacassem os Palmares, comprometendo-se a lhes dar “patentes de conquistadores” e conceder “grandes honras e mercês”, além das “presas livres”1. Embora tenham tomado conhecimento da decisão do governador, ao analisar as notícias que chegavam de Pernambuco, os conselheiros do Ultramarino não fizeram qualquer comentário a respeito2. Em março de 1687, o governador escreveu novamente ao rei e contou que os paulistas não haviam participado da investida contra Palmares realizada em 1686, pois tinham permanecido “no sertão do Rio de São Francisco”, achando que ele tinha morrido na epidemia. Desfeito o boato, enviaram representantes e com eles se acertou fazerem a “conquista dos negros” em troca de “alguns partidos”3 e “pouco dispêndio da Fazenda [Real]”. O governador estava es­ perançoso; pensava que, assim, os moradores de Pernambuco finalmente fica­ riam livres “do pejo que esta má vizinhança [dos Palmares] lhes causa” e que terminaria de vez com esta “guerra que tantos desvelos tem custado em tantos anos”4. A carta chegou ao Conselho Ultramarino em meio aos debates sobre a melhor estratégia para vencer os Palmares, detalhados no capítulo anterior. Os conselheiros e o rei, mais uma vez, mantiveram-se silenciosos sobre as ne­ gociações entre o governador de Pernambuco e os paulistas5. A ideia de recorrer aos sertanistas de São Paulo não era nova. Como vimos no primeiro capítulo, no início dos anos 1670, o então governador Fernão de

1. Cana de João da Cunha Souto Maior de 7 nov. 1685, ahu_acl_cu_oi5, Cx. 13, D. 1345. A oferta dos paulistas havia sido encaminhada a dom João de Sousa, antecessor de Souto Maior. O texto não é claro, mas c provável que os sertões e os gentios mencionados ficassem na Bahia. As negociações devem ter avançado já que, menos de um ano depois, o governador enviou pólvora e balas aos paulistas que iam “fazer guerra aos negros dos Palmares”, por meio de um barco que ia para o Rio de Sao Francisco (atual Penedo). Ordem de João da Cunha Souto Maior de 17 set. 1686, auc, cca, VI-Jn-I-I-31, fl. 435V, doc. 102.

2. Consulta do Conselho Ultramarino de 27 abr. 1686, AHu_ACL_cu_Consultas de Pernambuco, Cod. 265, fl. 44v. 3. Partidos, isto é, condições. Ver Raphael Bluteau, Vocabulário Portugtutez e Latino, 1712-1728, verbete “partido”. 4. Carta de João da Cunha Souto Maior de n mar. 1687, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 14, D. 1409. 5. Ver consulta do Conselho Ultramarino de 22 nov. 1687 e resolução régia de 12 dez. 1687, idem, Cx. 14, D. 1428.

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SUBORDINAÇÃO?

Sousa Coutinho já tinha cogitado valer-se deles. Mas o governador do Estado do Brasil o dissuadira, alegando que os “pernambucanos não [eram] menos robustos que os paulistas” e que os Palmares podiam ser derrotados sem essa ajuda6. Em 1674 e 1675, dom Pedro de Almeida também pensara em recorrer aos paulistas, sendo mais uma vez dissuadido pelo governador do Estado do Brasil7. Em 1682, o jesuíta Francisco de Matos chegou a sugerir ao rei que as tropas para combater os negros dos Palmares podiam ser formadas por solda­ dos portugueses e do terço de Henrique Dias, índios das aldeias, mulatos e “sertanistas de São Paulo”8. Mas agora era diferente. As expedições de 1683, 1684 e 1Ó86 não tinham logrado o êxito pretendido e Souto Maior enfrentava dificuldades em Per­ nambuco. Um parecer anônimo, escrito no início dos anos 1690, acrescenta mais alguns elementos para explicar o gesto de Souto Maior. Segundo o au­ tor, o “modo de peleja” dos palmaristas tinha vantagens sobre o das tropas: eles andavam “nus e descalços, ligeiros como o vento, só com arco e flechas, entre matos e arvoredos fechados”, alimentando-se de frutas, pássaros e raízes, escondendo-se no mato; enquanto os soldados, “embaraçados com espadas, carregados com os mosquetes e espingardas e mochilas com seu sustento” não tinham a mesma destreza e logo eram obrigados a se retirar. Mas a gente de São Paulo tinha “ânimo intrépido”, sabia viver dos frutos da floresta e tinha livrado os moradores da Bahia da “opressão e hostilidades” que haviam padecido com os tapuias alguns anos antes. Por isso, diante do “nada que podiam nossas armas”, o governador “solicitou e mandou convocar os mesmos paulistas”’. Eles estavam estacionados no Rio de São Francisco”, dispostos a “con­ quistar, destruir e extinguir totalmente os negros levantados dos Palmares”. O 6. Ver cartas de Afonso Furtado de Castro do Rio de Mendonça de 7 nov. 1671, bnrj-ms, Cod. 08,01,003, fls. 144-144V, doc. 335 e fl. 144V, doe. 336. Sobre a dificuldade de contar com os paulistas ver também a carta de 12 maio 1672, idem, fl. 164, doc. 374. 7. Carta de dom Pedro de Almeida de 30 abr. T674, ahu_acl_cu_oij, Cx. 10, D. 1007; carta de Afon­ so Furtado de Castro do Rio de Mendonça de 25 fev. 1675, bnrj-ms, Cod. 08,01,003, ds. 196-196V, doc. 461. 8. Parecer do padre Francisco de Matos, [ 1682], ba, Cod. 50-V-37, fls. 242- 243V, doc. 84. 9. Parecer anônimo [sobre os tapuias que os paulistas aprisionaram...[ posterior a 1691, ba, Ms. Av. 54-XIH-16, n. 162. As vantagens militares dos paulistas no combate aos Palmares são comentadas por Kalina Vanderlei Silva, O Miserável Soldo &a Boa Ordem da Sociedade Colonial, 2001, pp. 159-162. 10. Carta de João da Cunha Souto Maior de 11 mar. 1Ó87, ahu_acl_cu_015, Cx. 14, D. 1409. Trata-se, provavelmente, do Rio de São Francisco de Rodelas, de onde Domingos Jorge Velho escreve uma

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contrato acertado entre o governador e os procuradores do coronel Domingos Jorge Velho" previa o envio de armas, munições, alimentos e “outros petrechos de campanha” para o início das entradas. Souto Maior comprometia-se a conceder aos paulistas sesmarias “nas mesmas terras dos Palmares”, bem como no rio de Camarões e Parnaíba, além de quatro hábitos das três ordens militares para Jorge Velho e seus oficiais, e “perdão geral” nos crimes que ti­ vessem cometido. Acordaram ainda que os prisioneiros seriam integralmente repartidos entre os paulistas, sem cobrança dos quintos reais ou da “joia” do governador, sob condição de serem enviados para venda no Rio de Janeiro ou em Buenos Aires, ficando em Pernambuco somente os “negros filhos dos Pal­ mares de idade de sete anos até doze”. Os “filhos do mato” ficavam todos com Domingos Jorge Velho, “como que se em guerra os [tivesse cativado]”. Em contrapartida, ele se obrigava a entregar os “negros cativos” que “busca [ssem] seus senhores com temor” ou fossem presos “debaixo das armas”, recebendo 8S000 réis por capturado. Além de derrotar os Palmares, Jorge Velho prome­ tia devolver aos senhores os escravos que fugissem futuramente para aqueles sertões e a impedir que ali se instalasse “algum mocambo ou quilombo” ou que criminosos se homiziassem em seus arraiais e povoações. Uma cláusula específica proibia tanto o governador quanto Jorge Velho de “dar perdão” aos “negros” ou de isentá-los do cativeiro, e outra autorizava o coronel a prender “qualquer morador” que “socorrefsse] aos negros dos Palmares”'2. O caminho a seguir estava claro: tratava-se agora de uma guerra a ser em­ preendida por gente especializada e, tudo indicava, devia terminar em breve. A Fazenda Real iria contribuir com parte dos custos para armar e sustentar as tropas e a remuneração dos serviços a serem prestados pelos paulistas in­ cluía terras, títulos e o direito de ficar com os prisioneiros. Não eram poucas certidão em 25 abr. 1688, idern, Cx. 21, D. 1994, anexo 13. O ponto de origem do deslocamento dos paulistas torna-se, assim, questão controversa, já que Rodelas e Penedo ficam em margens opostas do rio São Francisco, distantes entre si cerca de 350 km. 11. Os procuradores eram: o padre frei André da Anunciação, o sargento-mor Cristóvão de Mendonça e o capitão Belchior Dias Barbosa. Os militares integravam a tropa paulista e o padre, ligado aos carmelitas calçados de Pernambuco, era seu capelão. 12. Capítulos e condições concedidas a Domingos Jorge Velho em 3 mar. 1687, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 18, D. 1746, anexo 5. Talvez os crimes fossem a morte de um ouvidor cometida em São Paulo por Matias Cardoso de Almeida e Manuel Matias de Toledo ou o assassinato de um administrador das minas no rio das Velhas.Ver Pedro Puntoni, A Guerra dos Bárbaros, 2002, p. 135 e Márcio Santos, Bandeirantes e Paulistas no Sertão do São Francisco, 2009, p. 67.

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as concessões — bem mais que as feitas a Fernão Carrilho por dom Pedro de Almeida, no final dos anos 1670. Domingos Jorge Velho também passaria a ser o comandante-geral de toda a empresa mas, dessa vez, com maiores poderes e mais regalias. Souto Maior pretendia mesmo acabar de vez com os Palmares. O contrato foi assinado em 3 de março de 1687 e o governador tratou ime­ diatamente de cumprir sua parte. Dois dias depois concedeu a Jorge Velho as sesmarias prometidas no rio dos Camarões e Parnaíba'3 e mandou o almoxarife da capitania dar as ferramentas necessárias para os paulistas fazerem seu arraial'4. Na semana seguinte, avisou o rei, por meio de uma carta que, como mencio­ nado, não recebeu atenção do Conselho Ultramarino'5. Em fevereiro de 1688, Domingos Jorge Velho avisava ter chegado ao Rio de São Francisco, “depois de andar cinco meses por caatingas”; informava que devia seguir para as Piranhas e previa estar nos campos do Ipanema em maio, para daí mandar apanhar as munições e farinhas prometidas em Penedo - e então “entrar logo ao Palmar”'6. Mas os planos foram interrompidos. Nos primeiros meses de 1687, os con­ flitos entre os janduís e os moradores do Rio Grande, que remontavam aos anos 1670, tornaram-se mais agudos. Depois da morte do filho de um prin­ cipal, as hostilidades se transformaram em revolta generalizada dos índios, com muitas baixas de ambos os lados. Tropas da Paraíba e de Pernambuco foram chamadas, mas a rebelião se alastrou. Além dos ataques aos moradores, 13. Carta deJoão da Cunha Souto Maior de 5 mar. 1687, auc, cca, vi-m-i-i-31, fls. 411V-412, doc. 28. Os rios de Camarões (ou Poti) e Parnaíba ficam no atual estado do Piauí, onde Domingos Jorge Velho e sua tropa haviam se estabelecido no início dos anos 1660 com fazendas de lavouras e gado, segundo informa o requerimento da viúva de Domingos Jorge Velho que resultou na confirmação da sesmaria concedida, em 3 de janeiro de 1705. Documentação Histórica Pernambucana, 1954, vol. 1, pp. 116-120. A localização dessas terras está ligada à controvérsia acerca da primazia no povoamento do Piauí. Para um bom balanço da polêmica, ver Barbosa Lima Sobrinho, O Devassamento do Piauí, 1946, pp. 61-73. 14. Ordem de João da Cunha Souto Maior de 4 abr. 1687, auc, cca, vi-in-i-l-31, fl. 440V, doc. 121. 15. Carta de João da Cunha Souto Maior de 11 mar. 1687, consulta do Conselho Ultramarino de 22 nov. 1687 e Resolução régia de 12 dez. 1687, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 14, D. 1409 e D. 1428. 16. Carta de Domingos Jorge Velho de 3 fev. 1688, auc, cca, vi-in-1-1-31, fl. 448V, doc. 152. O tempo, as distâncias e localidades mencionadas nesta carta reforçam a hipótese de que Jorge Velho tenha saído do Piauí para combater os Palmares. Documentos posteriores mencionam que ele andou entre quinhentas e seiscentas léguas até chegar a Pernambuco. Ver carta de Bento Surrei Cainilio [1694] e requerimentos de Bento Surrei Camilio e de Domingos Jorge Velho (entre 1695 e 1697], ahu_acl_cu_oi5, Cx. 17, D. 1674, anexo 12 e Cx. 18, D. 1746, anexos 1 e 2. Como a carta de 1688 foi escrita em Aracati, talvez tenha andado por terras hoje situadas no atual estado do Ceará, o que parece pouco provável.

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milhares de cabeças de gado estavam sendo dizimadas e havia o perigo de aliança com outras nações indígenas17. Para enfrentar a situação, o governador do Estado do Brasil, Matias da Cunha, convocou uma junta e decidiu julgar que “a guerra que se devia fazer aos bárbaros era justa, devia ser ofensiva e os prisioneiros cativos”18. Ordenou então aos governadores de Pernambuco, Itamaracá e Paraíba que socorressem com tropas, armas e mantimentos os que estavam lutando contra os índios no Rio Grande19. Escrevendo diretamente para Domingos Jorge Velho, Matias da Cunha mandou que suspendesse a ida aos Palmares e determinou que “marcha[sse] [...] com todas as forças que tive[sse] sobre aquele bárbaro”. Como incenti­ vo, já que a guerra era justa, permitiu que ficasse com os prisioneiros como cativos10. Além dos trezentos homens armados que estavam com Jorge Ve­ lho, também foram enviados para o Rio Grande André Pinto, que estava a caminho dos Palmares com mais de seiscentos homens21, e ainda soldados dos presídios de Olinda, Itamaracá e Paraíba, do terço de Henrique Dias, os índios do Camarão, os paulistas que estavam com Matias Cardoso no Rio de São Francisco, e mais uma companhia de pardos, degredados e criminosos. Todos municiados com verbas da Fazenda Real e das câmaras de Olinda, Itamaracá e Paraíba, para que a guerra fosse feita “pelos sertões da Paraíba, R.io Grande e Ceará”22. Era, sem dúvida, uma tropa de grandes proporções e a intenção era sufocar de vez a rebelião dos janduís. Souto Maior curvou-se diante dos acontecimentos e das ordens recebi­ das23. E todos os esforços passaram a convergir para o Rio Grande24. Domingos 17. O “levante geral dos tapuias” ou “guerra do Açu” é analisado em detalhes por Pedro Puntoni, op. cit., 2002, cap. 4. 18. Cartas de Matias da Cunha de 8 mar. 1688 e de 14 mar. 1688, bnrj-ms, Cod. 08,01,003, fl. 233V, doc. 596 e fls. 233V-235, doc. 597. 19. Cartas de Matias da Cunha de 14 mar. 1688, idem, fls. 238-239, doc. 605; fls. 233V-235, doc. 597 e fls. 236-236V, doc. 600. 20. Carta de Matias da Cunha de 8 mar. 1688, idem, fl. 233v, doc. 596. Ver também carta de Matias da Cunha de 10 mar. 1688. Décio Freitas, República de Palmares, 2004, p. 255, doc. 63. 21. Cartas de Matias da Cunha de 14 mar. 1688, bnrj-ms, Cod. 08,01,003, fls. 236-236V, doc. 600 e fls. 238-239, doc. 605. 22. Cartas de Matias da Cunha de 14 mar. 1688, idem, fls. 233V-235, doc. 597 e fls. 236-236V, doc. 600. 23. Carta de Matias da Cunha de 2 jun. 1688, idem, fl. 242, doc. 616. 24. Há várias ordens sobre o envio de farinhas, gado, armas, munições e fardamento para Domingos Jorge Velho, para a guerra contra “os tapuias”. Ver, por exemplo, certidão de Domingos Jorge Ve­ lho de 25 abr. 1688, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 021, D. 1994, anexo 13. O mesmo acontece no governo

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Jorge Velho e os paulistas logo se destacaram na peleja, recebendo elogios e patentes militares que envolviam o pagamento de soidos15. Mas os índios re­ sistiam e a guerra passou a exigir cada vez mais soldados, armas e mantimen­ tos. Os governantes se empenhavam em abastecer os paulistas e as tropas que haviam se dirigido para o norte, mas não se esqueciam dos Palmares: alguns meses depois de assumir o governo do Estado do Brasil, em maio de 1689, Manuel da Ressurreição esperava que, assim que tudo se acalmasse no Rio Grande, os paulistas pudessem atacar os mocambos, que davam “sempre tanto que temer a Pernambuco”16. Davam a temer e não paravam de ameaçar. As autoridades tentavam lidar com duas frentes de batalha, pois os Palmares continuavam a atrair fugitivos e a exigir medidas repressivas e defensivas dos moradores locais. Um balanço da situação, escrito em Lisboa em janeiro de 1689, tratava dos dois problemas: a necessidade de destruir os mocambos e “converter o gentio do cabelo corredio”. Sem se identificar, o autor se diz português e parece conhecer bem as estratégias de guerra dos palmaristas. Começava logo por afirmar que, “falar nos Palmares parece uma bicha de sete cabeças, não há quem possa tomar pé [d]aquele pe[ri]go”. Atribuía o fracasso das várias expedições enviadas des­ de os anos 1650 ao modo de guerrear “dos negros” que não eram como o “da Europa”: enquanto os primeiros andavam grandes distâncias e aproveita­ vam os recursos da floresta, os soldados tinham que carregar seus alimentos e apetrechos, marchando uma ou duas léguas por dia e logo voltavam “ao povoado” quando a fome apertava. Considerando que “por três vezes estive­ ram destruídos os Palmares”, sem que a vitória ficasse firme, propunha que se tentasse mais uma vez a paz, perdoando e considerando forros os habitantes dos mocambos “como são os de Henrique Dias e os índios do Camarão”. Se isso não bastasse, sugeria que as expedições fossem realizadas não “no meio do verão [...] em novembro, dezembro e janeiro”, mas em agosto, quando os palmaristas ainda não tivessem colhido “seus legumes e milhos” que podiam, então, ser usados para alimentar os soldados. Recomendava ainda detalhadaseguinte. Ver, por exemplo, ordens de Fernão Cabral de 2 ago. 1688 e de 30 ago. 1688, auc, cca, vi-iii-1-1-31, fl. 457, doc. 8 e fl. 463, doc. 23. 25. Carta de Matias da Cunha de 13 out. 1688, bnrj-ms, Cod. 08,01,003, fls. 248V-249, doc. 637. 26. Cartas do frei Manuel da Ressurreição de 14 e de 24 maio 1689, idetn, fls. 261-261V, doc. 662 e fls. 261V-262V, doc. 664.

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mente várias medidas para minar os procedimentos usados pelos “negros do Palmar” para proteger suas famílias e enfrentar as tropas enviadas contra eles, de modo a ter “aquela infesta canalha destruída e os povos felizes, e Vossa Majestade bem servido”27. Nesse caso, a avaliação feita em Lisboa coincidia com as dificuldades en­ frentadas em Pernambuco. Em fevereiro de 1689, alguns escravos de Sirinhaém que haviam fugido para os Palmares foram perseguidos por tropas das Orde­ nanças e soldados índios28. Em março, os senhores dos escravos capturados e devolvidos foram notificados para pagar as chamadas tomadias — a taxa co­ brada pelas capturas2’. A aldeia dos índios de Antônio Pessoa Arcoverde foi impedida de mudar de local, por ser considerada estratégica para a defesa dos moradores, diante da “avexação dos negros levantados dos Palmares”50. Talvez por isso, enquanto se aguardava a chance de retomar a guerra con­ tra os mocambos de forma mais eficaz, o capitão (e senhor de engenho em Porto Calvo) Rodrigo de Barros Pimentel tenha tentado mais uma vez a via das negociações, trocando cartas com Zumbi. Mas foi dissuadido de qual­ quer atitude nessa direção pelo então governador de Pernambuco, Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho, que preferia aguardar pelos paulistas para “sitiar no Palmar e destruir essa canalha com incessantes correrias”51. No entanto, mesmo esperando contar com a gente de Domingos Jorge Velho, o governador soltou ordens para que as tropas das Ordenanças daquela vila assaltassem os Palmares, sob pena de degredar para Angola os soldados que faltassem à convocação52.

27. Carta ao rei de 28 jan. 1689, ba, Cod. 50-V-37, fls. 168-170, doc. 65. Ivan Alves Filho, Memorial dos Palmares, 2008 [1988], pp. 136-137 atribui esta carta a Antônio Vieira e, apesar da discrepância de datas, confunde o texto com um parecer emitido pelo jesuíta em 1691, que será analisado mais adiante. 28. Ordens de Matias de Figueiredo e Melo de 16 fev. 1689, auc, cca, vi-m-i-i-31, fls. 468V-469, doc. 7; fl. 469, doc. 8 e fl. 479, doc. 46. 29. Ordem de Matias de Figueiredo e Melo de 26 mar. 1689, idem, fl. 472, doc. 19. 30. Ordem de Matias de Figueiredo e Melo de 27 mar. 1689, idem, fl. 471 v, doc. 17. 31. Carta de Antônio Luís Gonçalves da Câmera Coutinho de 12 fev. 1690, idem, fls. 487-487V, doc. 16 e fl. 487V, doc. 17. O governador menciona ter recebido cópia da carta escrita por Zumbi e da resposta dada por Rodrigo Pimentel, com a qual concordou, pedindo que este último “procure nova carta deste negro” e o avise “incontinente”, para “se considerar o que nesta matéria se deve resolver". 32. Bando de Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho de 7 fev. 1690, idem, fl. 495, doc. 33.

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Os paulistas realmente demoravam a chegar. Palmares continuava a cau­ sar desassossego. A câmara de Porto Calvo manifestava-se exaurida com as contribuições para a guerra, que vinham sendo feitas “há mais de 30 anos” e informava que os moradores, temendo “tanto poder e ousadia” dos negros dos Palmares faziam atalaias e pegavam em armas para defender suas casas. Por isso, pedia a isenção do pagamento do donativo para o dote da rainha da Grã-Bretanha e propunha o assentamento de três aldeias nas cabeceiras das vilas de Alagoas, Porto Calvo e Sirinhaém, cada uma com cem índios do regimento de Antônio Pessoa Arcoverde33. Um ano depois, em julho de 1690, ao opinar sobre a proposta, o marquês de Montebelo, que acabara de assumir o governo de Pernambuco, discordou. Ele apostava que o mestre de campo dos paulistas logo subiria para o sertão dos Palmares, “a tratar da sua conquista e da extinção dos negros que o habitam”34. O tempo passava e Domingos Jorge Velho continuava a tardar. Os paulis­ tas mostravam-se essenciais na guerra contra os índios: eram mais eficientes do ponto de vista militar e custavam menos à Fazenda Real. Em março de 1690, o governador do Estado do Brasil reorganizou os contingentes empregados na “guerra dos bárbaros”, diminuindo a tropa paga e reforçando a dos paulistas, que ficaram sob o comando somente de Matias Cardoso de Almeida33. O regi­ mento de Jorge Velho ficou independente, mas sem soidos, e ele foi instado a voltar para a “empresa dos Palmares”30.

33. Carta da câmara de Porto Calvo de 17 jul. 1689, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 15, D. 1509, anexo 2. A contribuição obrigatória para o dote do casamento de Catarina de Bragança com Carlos Stuart iniciou-se em 1662, estava vinculada às tratativas de paz com a Holanda e envolvia as capitanias da Bahia, Rio de Janeiro, Pernambuco e o reino de Angola (a partir de 1678). Sobre as dificuldades para o pagamento do tributo, ver Rodrigo Bentes Monteiro e Letícia dos Santos Ferreira, “Alianças d’Além-mar: O Casamento Inglês e a Paz com a Holanda na Bahia (16Ó1-1725)”, 2012. 34. Carta do marquês de Montebelo de 20 jul. 1690, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 15, D. 1509. Ver também consulta do Conselho Ultramarino de 16 nov. 1690, AHU_ACL_cu_Consultas de Pernambuco, Cod. 265, fls. 62V-63. Na consulta, os conselheiros sugerem ao rei isentar os moradores do pagamento do tributo, mas não se pronunciam quanto ao deslocamento das aldeias. 35. Alvará de 4 mar. 1690 e cartas do frei Manuel da Ressurreição de 9 mar. 1690 e de 10 mar. 1690, bnrj-ms, Cod. 08,01,003, fls. 269V-27OV, doc. 674, fls. 270-272 e 272V-273, doc. 675 e 677, fl. 269, doc. 673. Para mais detalhes sobre as mudanças na guerra contra os índios e a reforma das tropas, ver Pedro Puntoni, op. dt., 2002, pp. 152-154. 36. Carta do frei Manuel da Ressurreição de 10 mar. 1690, bnrj-ms, Cod. 08,01,003, fls. 273-273V, doc. 678. Matias Cardoso pretendia juntar-se a Domingos Jorge Velho depois de finda a guerra dos bárbaros. Ver carta do frei Manuel da Ressurreição de 28 jul. 1690, idem, fls. 273V-274V, doc. 679.

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A expectativa era grande. Mas a situação em Pernambuco exigia medidas mais imediatas. Em agosto, diante de ataques dos Palmares em Sirinhaém, Una e Porto Calvo, foi enviada nova expedição, formada com os índios de Antônio Pessoa Arcoverde37. Entre 1689 e 1690, o soldado Bento Ferreira de Almeida foi encarregado “de prender ou matar o negro Miguel Cacunda, cabeça de muitos levantados”, que estava em um mocambo; houve “muitos tiros de parte a parte”, cerca de cem foram mortos e Miguel e sete prisioneiros levados para o governador Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho3’. A região estava conturbada, com novas tentativas de fuga coletiva para os mocambos. Em setembro, “um negro” chamado Miguel Golajanga havia li­ derado uma delas em Sirinhaém; acabara preso e esperava a sentença para ser castigado3’. Poucos meses depois, em dezembro de 1690, o marquês de Mon­ tebelo escreveu para Domingos Jorge Velho pedindo-lhe que retornasse logo a Pernambuco para atacar os Palmares. Solicitava ser avisado ao se aproximar de Olinda, para que pudessem se encontrar e tratarem juntos das “melhores disposições desta empresa”40. O paulista, no entanto, demorava-se no Rio Grande, interessado em apri­ sionar mais índios, chegando a cativar alguns que tinham buscado a paz e estavam numa aldeia dos jesuítas4'. Sua permanência na guerra, embora con­ tribuísse para reprimir os índios, acabava por gerar debates entre os governos do Rio Grande e de Pernambuco sobre a responsabilidade pelo sustento de suas tropas44. Enquanto isso, em Pernambuco, o governador multiplicava or-

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Contudo, a carta régia de 23 dez. 1691, que trata da distribuição das tropas paulistas que haviam ficado no Açu, não menciona sua ida para os Palmares, bl, Add Ms 21.000, fl. 47, doc. 35. Portaria do marquês de Montebelo de 29 ago. 1690, bnp-res, pba, Cod. 239, fl. 35. Consulta do Conselho Ultramarino de 16 dez. 1690, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 15, D. 1518. Portaria do marquês de Montebelo de 7 set. 1690, bnp-res, pba, Cod. 239, fl. 39. Um ano depois o marquês de Montebelo escreveu ao juiz ordinário de Sirinhaém, pedindo que não fizesse devassa para investigar a morte de um dos "vários negros levantados e fugidos para o Palmar”, que haviam sido presos e levados para a cadeia da vila; determinou ainda que a tomadia a ser paga pelos que foram devolvidos a seus senhores devia ser de 12S000 réis. Carta do marquês de Montebelo de 17 ago. 1691, idem, fls. 354-355Carta do marquês de Montebelo de 2 dez. 1690, idem, fl. 297. Ver também cartas do marquês de Montebelo de 1691 e de 24 mar. 1691, bl, Add Ms 21.000, fls. 9OV-91, doc. 6e auc, CCA, vi-in-1-1-31, Hs- 55I-551V, doc. 129. Carta régia de 31 jan. 1691, auc, cca, vi-m-i-i-33, fl. 197V, doc. 60; carta do marquês de Montebelo de 1691, bl, Add Ms 21.000, fls. 104-104V, doc. 22. Carta do marquês de Montebelo de 24 mar. 1691, auc, cca, vi-ni-l-I-31, fls. 551-55IV, doc. T29;

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dens para municiar soldados e combater os Palmares4’. Além deles, havia ou­ tros mocambos que também demandavam cuidados. Próximo ao Recife, nas freguesias de Nossa Senhora da Luz e do Cabo, negros e criminosos estavam fugindo para os matos e atacando moradores, sem que se soubesse se haviam se juntado aos dos Palmares ou não44. Em julho de 1691, finalmente, chegaram notícias de que Jorge Velho co­ meçava a se deslocar em direção aos Palmares. Os problemas dos moradores de Sirinhaém, Porto Calvo e Alagoas teriam, enfim, uma solução; as previsões eram de que em um mês o paulista atacaria os mocambos4’. Mas não: no início de agosto ele informava que a cheia dos rios e uma rebelião dos prisioneiros indígenas que havia incorporado em sua tropa, bem como uma excursão em busca de uma mina de prata, haviam atrasado sua marcha46. Compreensivo, o governador de Pernambuco avocou para si a punição dos índios rebelados e reiterou o compromisso de não cobrar os quintos e as joias sobre os prisionei­ ros e de ajudá-lo “com largueza” na conquista dos Palmares47. Estava sendo sincero. Sabia que, até então, Lisboa não havia se pronunciado sobre a contra­ tação dos paulistas e, convencido de que Palmares só poderia ser vencido pela

carta de Agostinho César de Andrade de 17 abr. 1691 e carta do marquês de Montcbelo de 26 abr. 1691, BNP-RES, PBA, Cod. 239, fls. 319-32O C 32O-32I.

43. Portaria do marquês de Montebelo de 22 mar. 1691 e portaria do marquês de Montebelo de 2 abr. 1691, BNP-RES, PBA, Cod. 239, A*- 77 C 82. 44. Portarias do marquês de Montebelo de 21 e 24 abr. 1691. Idem, fls. 85-86 e 86-87. Outras expedições contra mocambos de negros fugitivos, nem sempre ligados aos Palmares, também foram feitas. Ver ordens do marquês de Montebelo de 21 maio 1691, 18 set. 1691 e 5 fev. 1693 e ordens de Caetano de Melo de Castro de 16 jun. 1693 e 13 jul. 1693. Respectivamente, idem, fls. 95 e 138 e auc, cca, vi-in-i-1-31, fl. 542, doc. 101, fl. 566V, doc. 27 e fls. 568-568V, doc. 31. 45. Carta do marquês de Montebelo de 12 jul. 1691, bl, Add Ms 21.000, fl. 89, doc. 1. Avaliação mais pessimista foi feita pelo capitão-mor do Rio Grande, que calculou em abril de 1691 que os paulistas chegariam aos Palmares somente em agosto, pois “suas jornadas são de 2 léguas e nos alojamentos gastam muitos dias”. Carta de Agostinho César de Andrade de 17 abr. 1691, bnp-res, pba, Cod. 239, fls. 322-324. 46. Carta de Domingos Jorge Velho de 7 ago. 1691, bnp-res, pba, Cod. 239, fls. 355-357- Cerca de 150 índios que estavam com Jorge Velho se recusaram a deixar suas terras, fugiram e foram perseguidos pelo mestre de campo e duzentos soldados; depois do fracasso de alguma negociação, que envolveu a busca de uma mina de prata, o “rei” dos índios foi preso e seus guerreiros degolados. 47. Carta do marquês de Montebelo de 30 ago. 1691, idem, fls. 357-358- A carta menciona ainda a ordem régia de restituição à liberdade de “100 índios machos e fêmeas” aprisionados na guerra do Rio Grande e vendidos em Pernambuco; o resgate seria pago pela Fazenda Real, solução conveniente para o paulista e o governador.

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força das armas, pedira ajuda do conselheiro Roque Monteiro Paim para obter a confirmação das cláusulas acordadas em 1687. Aproveitou para sugerir que se lhes desse também alguma ajuda de custo48. O governador parecia não saber o que fazer diante da demora. Palmares continuava a atormentar os moradores, as fugas engrossavam suas fileiras e perturbavam o domínio senhorial. Além disso, os custos com as expedições pesavam para todos, ainda mais com a continuidade da guerra contra os índios. Mais uma vez, havia a tentação de negociar a paz, mesmo que isso estivesse expressamente proibido no contrato firmado com Jorge Velho, que ele tanto se empenhava em fazer cumprir. Iniciativas vindas de outras instâncias torna­ ram a hipótese mais concreta. No início de 1691, o marquês de Montebelo foi consultado pelo rei a res­ peito de um jesuíta italiano, Antônio Maria Bonucci, que se oferecia para ir aos Palmares para reduzir os negros “a viverem na sujeição da igreja”, das leis régias e “deste governo”4’. O rei parecia inclinado a aceitar a proposta, desde que con­ tasse com a anuência do bispo e do governador de Pernambuco. Este último, no entanto, relutou em concordar, lembrando que o próprio rei havia mandado submeter os mocambos pela força das armas e que a possibilidade estava proibi­ da pelo contrato acertado com os paulistas. Coincidência ou não, o bispo dom Matias de Figueiredo e Melo estava de partida para o Rio de São Francisco, “para correr as capelas em cujo distrito estão os negros dos Palmares”5".

48. Cartas do marquês de Montebelo 11691 ou 1692] e de 6 fev. 1691, bl, Add Ms 21.000, fls. 177-179 e fls. 84-86, doc. 35. 49. Carta regia de 28 jan. 1691, auc, cca, vi-m-i-1-33, fls. 181-181V, doc. 20. Nascido em Arezzo em 1651, Antônio Maria Bonucci entrou para a Companhia de Jesus em 1671 e ordenou-se padre em 1680. Foi para a Bahia em 1681, acompanhando Antônio Vieira, depois para Pernambuco, ficando pouco tempo em Olinda e permanecendo por mais de dez anos no Recife; voltou para a Bahia em 1696. Escreveu diversas obras em italiano, português e latim, além de auxiliar Antônio Vieira a terminar sua Clavis Prophetarum. Depois da morte de Vieira em 1697, foi ele quem preparou esta obra para publicação e recolheu e organizou suas cartas. Bonucci morreu em Roma, em 1729. Ver, a seu respeito, “Bonucci, Antônio Maria”, em A. A. Marques de Almeida (org.), Dicionário dos Ita­ lianos Estantes em Portugal, s.d. Arlindo Rubert afirma que Bonucci era muito próximo do bispo de Pernambuco, que morreu velado por ele, em 1694. Ver A Igreja no Brasil, 1981, vol. 2, pp. 348-349. 50. Carta do marquês de Montebelo de 1691, bl, Add Ms 21.000, fls. 108 v-109, doc. 32. A proposta chegou a ser debatida na Corte e contou com um parecer contrário de Antônio Vieira, que foi aca­ tado pelo rei. A decisão, no entanto, só foi enviada a Pernambuco em março de 1692. Ver carta de Antônio Vieira de 2jul. 1691. João Lúcio de Azevedo (ed.), Antônio Vieira, 1970, vol. 3, pp. 636-640; carta régia de 6 fev. 1692. André de Barros, Vida do Apostolico Padre Antonio Vieyra da Companhia de

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É difícil saber se o jesuíta italiano chegou a ir aos Palmares, mas em outu­ bro de 1691 o governador mandou que o capitão-mor da vila de Porto Calvo acudisse o bispo prontamente com “infantaria das Ordenanças, mantimentos, escravos, armas e munições para o negócio [d]a redução dos negros le­ vantados”5'. Pedia ainda que ele e os moradores mostrassem “fidelidade [...] paz e amizade” quando “os ditos negros [...] vi[ess]em abaixo chamados pelo dito senhor”. De todo modo, se houve alguma negociação de paz, ela foi logo seguida por uma entrada dos índios de Antônio Pessoa Arcoverde contra os “negros levantados dos Palmares”, que continuavam a fazer “consideráveis insultos aos moradores destas capitanias”52. A demora da entrada dos paulistas na guerra contra os Palmares e as ten­ sões crescentes em Pernambuco, assim como os dissensos entre as autoridades coloniais e metropolitanas não foram muito discutidas pela historiografia, que tende a abordar essa conjuntura a partir da oposição entre as tropas de Domin­ gos Jorge Velho e os Palmares, com o interregno imposto pela guerra con­ tra os janduís53. O esforço para caracterizar os “bandeirantes” como soldados experientes na guerra nos matos, mas bárbaros, impiedosos e animados pela cobiça geralmente domina a narrativa54. Dela ficam de fora as tentativas das autoridades de Pernambuco de enfrentar os mocambos pela força das armas ou recorrendo às negociações e, especialmente, as movimentações dos escravos55. Jesus, 1746, p. 479; carta régia de 20 mar. 1692, auc, cca, vi-lll-l-l-33, fls. 190V-191, doc. 43. O pa­ recer de Vieira é parcialmente analisado por Décio Freitas, Palmares, 1984, pp. 151-154. Ver também Ronaldo Vainfas, “Deus contra Palmares”, 1996. 51. Ordem do marquês de Montebelo de 22 out. 1691, bnp-res, pba, Cod. 239, fl. 155. 52. Ordem do marquês de Montebelo de 12 nov. 1691, auc, cca, vi-m-1-1-31, fl. 537V, doc. 80. A docu­ mentação não oferece referências geográficas precisas, mas é possível que a expedição de Arcoverde “ao sertão” tenha atacado outros mocambos que não os situados no Rio de São Francisco, para onde se dirigia o bispo de Pernambuco. 53. Em geral, os autores analisam as condições do contrato firmado com Domingos Jorge Velho, men­ cionam a ida dos paulistas para a guerra contra os janduís e logo descrevem as expedições de 1694 contra o outeiro do Barriga. Ver, por exemplo, Mario Martins de Freitas, Reino Negro de Palmares, 1988 [1954], pp. 289-311; Décio Freitas, op. cit., 1984, pp. 143-147; Ivan Alves Filho, op. cit., pp. 127-138; Flávio dos Santos Gomes, Palmares, 2005, pp. 145-148. 54. Edison Carneiro, por exemplo, afirma que Domingos Jorge Velho “era um típico bandeirante rude, enérgico, dado aos prazeres da cama e da mesa, animado pela cobiça e pela rapacidade, cruel na guerra, impiedoso na paz”. O Quilombo dos Palmares, 1958, p. 149. Ver também Décio Freitas, op. cit., 1984, pp. 140-143 e Ivan Alves Filho, op. cit., p. 127. 55. Sem indicar as fontes, Décio Freitas afirma que, a partir de 1689, os Palmares aterrorizavam a “re­ gião alagoana com raptos de escravos, mortes de amos e feitores, incêndios de canaviais e destruição

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No entanto, depois de tantos anos e sucessivas expedições, a concentração de fugitivos na serra do Barriga e o aumento das fugas, assim como as tentativas de rebelião como a que fora abortada em 1687 (mencionada no capítulo ante­ rior) e a liderada por Miguel Golajanga em 1690 tensionavam cada vez mais a região56. Por isso é preciso acompanhar com atenção o ir e vir das cartas e as diferentes avaliações da situação feitas em Pernambuco e em Lisboa. No início de novembro de 1691, Jorge Velho finalmente chegou a Santo Antão. Antes de prosseguir sua marcha, porém, tratou de cobrar do governo o pagamento dos óooSooo réis prometidos no contrato, o envio de munições e de “toda [a] gente do Camarão”, bem como a confirmação das cláusulas ajustadas entre seus procuradores e Souto Maior. Avisou que ia esperar pelo capitão Bernardo Vieira de Melo e pelas providências em Tapirabaté, pedindo pressa, pois considerava já estar em terras que eram os “princípios de Pal­ mares” e sabia que os negros tinham “correspondentes por estes povoados”. Parecia bem-informado, pois soubera da expedição do bispo, que teria sido acompanhado por Fernão Carrilho, e aproveitou para reclamar da tentativa de fazer as pazes com os negros dos Palmares57. Rapidamente, o marquês de Montebelo ordenou os pagamentos solicita­ dos, providenciou a compra de remédios para a botica da tropa, enviou um ornamento para se dizer missa na campanha dos Palmares, mandou dar ma­ chados para os índios que dela participavam, e pólvora, balas de chumbo, além de uma caixa de guerra para os paulistas58. Teve de insistir para que o provedor da Fazenda cumprisse suas ordens, pois este alegava não ter autorização régia de engenhos”. Essas informações não constam, entretanto, dos documentos consultados. Por outro lado, este autor enfatiza o peso da “crise colonial” no início dos anos 1690, com a queda nos preços do açúcar, inflação, dificuldades para pagamento dos soidos, agravada pela seca de 1693. Op. cit., 1984, pp. 146 e 154-155. 56. Em 1692, o vicc-consul francês em Lisboa informou o secretário de Negócios Estrangeiros que “os negócios não [iam] bem no Brasil” por causa de uma doença que reinava há seis anos, matando muita gente, e que “os negros se acostumaram a deixar seus senhores e vão se juntar aos que foram para os Palmares”, onde há “uma espécie de estado na melhor parte do Brasil”. Carta do abade Deltrées de 22 dez. 1692, Arquivo Nacional da França, ae bi 648, fls. 414-418V, doc. 179. Ivan Alves Filho traduz a passagem de modo ligeiramente diverso do meu. Op. cit., p. 138. 57. Carta de Domingos Jorge Velho de 10 nov. 1691, bnp-res, pba, Cod. 239, fls. 361-3Ó3. 58. Ordens do marquês de Montebelo de 20 e 21 nov. 1691, auc, cca, vi-m-i-i-31, fl. 537V, doc. 81 e fl. 538, doc. 82; portaria do marquês de Montebelo de 21 nov. 1691, bnrj-ms, Cod. 11,3,1, fls. 409-410, título 64, doc. 5; portarias do marquês de Montebelo de 21 e 29 nov. 1691 e de Io dez. 1691, bnp-res, pba, Cod. 239, fls. 160-161, 164, 165 e 166.

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para tais gastos59. Foi em meio a esses preparativos e contendas que o gover­ nador ratificou os capítulos acordados entre Souto Maior e os procuradores de Domingos Jorge Velho, com exceção de duas cláusulas, a que isentava os paulistas da cobrança dos quintos sobre os prisioneiros e a que lhes concedia quatro hábitos das ordens militares, por considerar que tais promessas depen­ diam de ordem expressa do rei60. Enquanto Lisboa não se pronunciava, os acontecimentos em Pernambu­ co exigiam atenção. Apesar da tentativa de paz, o governador de Pernambu­ co empenhava-se em cumprir o contrato firmado em 168761, a despeito dos questionamentos do provedor da Fazenda da capitania sobre o uso das verbas régias62. Entre 1691 e 1693 a troca de cartas entre Domingos Jorge Velho e o marquês de Montebelo mostra um clima afável entre os dois, que tratam de questões ligadas à grande expedição que se avizinhava, mas também das minas de prata e de esmeraldas e do destino dos índios aprisionados no final da guerra “dos bárbaros”63. Os documentos administrativos do governo de Pernambuco

59. Ver três cartas de José de Sá Mendonça de 21 nov. 1691, auc, cca, vi-in-1-1-31, fls. 538 e 538V, does. 83 e 86 e bnp-res, pba, Cod. 239, fl. 163. O governador insiste no cumprimento de suas ordens por meio de duas portarias de 22 nov. 1691 (numa delas, manda investigar como as despesas tinham sido pagas até então) e de dois despachos de 22 nov. 1691, auc, cca, vi-m-i-i-31, fl. 538V e fls. 538V-539, does. 85 e 87 e bnp-res, pba, Cod. 239, fls. 162 e 163-164. 60 Ratificação dos capítulos e condições concedidas a Domingos Jorge Velho em 3 dez. 1691, ahu_ acl_cu_0I5, Cx. 18, D. 1746, anexo 5. 61. Há menção explícita ao cumprimento das cláusulas do contrato na portaria do marquês de Mon­ tebelo de 7 dez. 1691 e na carta do marquês de Montebelo de 19 dez. 1691, bnp-res, pba, Cod. 239, fls. 167 e 363-365. A necessidade de confirmar o contrato aparece também na carta do governador de Pernambuco a Roque Monteiro Paim [1691 ou 1692], o que indica que ele procurava apoios na Corte, bl, Add Ms 21.000, fls. 177-179. Ver também carta do marquês de Montebelo de 1692, idem, fls. 140-140V, doc. 38. 62. Essas discordâncias continuaram em 1692 e 1693. Ver carta régia de 9 fev. 1692, bl, Add Ms 21.000, fl. 38V, doc. 3; portaria do marquês de Montebelo de 13 jan. 1693, carta de João do Rego Barros de 14jan. 1693 e despacho do marquês de Montebelo de 15 jan. 1693, bnp-res, pba, Cod. 239, fls. 242 e 24363. Essas cartas reiteram o cumprimento de algumas das cláusulas do contrato. Ver as cartas do mar­ quês de Montebelo de 19 e 30 dez. 1691 e de 7 ago. 1692, bnp-res, pba, Cod. 239, fls. 363-365, 366367, 367-368 e 380-381. Carta de Domingos Jorge Velho de 26 dez. 1691, bnp-res, pba, Cod. 239, fls. 365-366. A questão do cativeiro dos índios aprisionados envolveu um intenso debate no Brasil e em Lisboa. Ver, por exemplo, a carta do marquês de Montebelo de 1691, bl, Add Ms 21.000, fls. 104-104V, doc. 22; o parecer [sobre os tapuias que os paulistas aprisionaram...] anônimo, posterior a 1691, ba, Ms. Av. 54-XIH-16, n. 162 e o exórdio que fizeram os reverendos padres missionários a Sua Alteza dom Pedro [entre 1692 e 1694], antt, Ms. do Brasil, L. 4, microf. 272, fls. 141-142.

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atestam a dedicação do marquês de Montebelo no abastecimento das tropas que foram combater os Palmares, com verbas da Fazenda Real e auxílio das câmaras de Porto Calvo e de Alagoas64. Os moradores dessas vilas também eram incentivados a lutar sob as ordens do mestre de campo, com a promessa de que poderíam participar da partilha “dos negros que se apanharem”65. Ao mesmo tempo, preparavam-se entradas mais pontuais, como a destinada a re­ primir um mocambo que havia se formado na costa de Copaíba66, ou a prender e devolver aos senhores os escravos que da freguesia de Nossa Senhora da Luz fugiam “para os sertões do Ararobá e outros lugares dos Palmares”67. Finalmente, em setembro de 1692, o governador podia escrever para o rei, informando que as tropas de Domingos Jorge Velho já estavam “no coração dos Palmares, fazendo cruel guerra aos negros”68. Depois de tanta espera, o mocambo do outeiro do Barriga foi atacado e suas lavouras destruídas; en­ quanto isso, tropas auxiliares de índios perseguiam os que, “acossados com a assistência dos paulistas”, haviam fugido para a região de Sirinhaém e Una69. Uma carta de Domingos Jorge Velho permite saber mais detalhes sobre a investida70. As datas são um pouco diferentes, pois ele conta ter partido de seu arraial em outubro e caminhado doze dias até os Palmares. O “mocambo do negro” estava incrivelmente fortificado, “com três cercas e muito fogo e estreparia da banda de fora”. Divididas em “três troços”, as tropas se posiciona­ ram para o ataque, mas os negros levantaram uma bandeira branca. Houve um princípio de negociação, durante a qual Jorge Velho aproveitou para sondar as forças do “inimigo”. Os palmaristas, entretanto, fizeram uma emboscada 64. Em dezembro e ao longo de 1692, foram expedidas várias ordens para o abastecimento das tropas paulistas e dos índios do Camarão. Ver, por exemplo, portarias de 7 e 17 dez. 1691 e de 12 de maio, 29 de julho e 25 ago. 1692, bnp-res, pba, Cod. 239, fls. 167, 168, 201, 216-217 e 220-221; portaria de 15 jan. 1692, auc, cca, vi-m-i-i-31, fl. 540, doc. 93 e ordem de 5 ago. 1692, bnp-res, pba, Cod. 239, fls. 218-219. 65. Cartas do marquês de Montebelo de 4 e 15 ago. 1692, bnp-res, pba, Cod. 239, fls. 379-380 e 381-382. 66. O mocambo havia se formado há dezesseis anos e todos os fugitivos foram presos em 1691. Con­ sulta do Conselho Ultramarino de 26 nov. 1694, ahu_acl_cu_oi4, Cx. 3, D. 193. 67. Ordem do marquês de Montebelo de 5 mar. 1692, bnp-res, pba, Cod. 239, fl. 179. 68. Carta do marquês de Montebelo de [5 de setembro de] 1692, bl, Add Ms 21.000, fls. 144V-145V, doc. 49. 69. Portaria do marquês de Montebelo de 20 set. 1692, bnp-res, pba, Cod. 239, fls. 223-224. Documen­ tos posteriores mencionam problemas na participação dos índios nos ataques a Palmares. Ver a carta do marquês de Montebelo de 9 dez. 1692, idetn, fls. 400-401. 70. Carta de Domingos Jorge Velho de 27 nov. 1692, idetn, fls. 404-405.

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“tão forte” contra um grupo de soldados que os paulistas foram obrigados a se retirar por falta de munições. Jorge Velho ficou então à espera de ajuda para poder atacar novamente o mocambo. Conseguiu resolver o sustento da tropa

com os mantimentos das roças encontradas, mas esperava poder contar com mais duzentos soldados, dez ou doze arrobas de pólvora, chumbo e granadas vindos de Porto Calvo e Rjo de São Francisco para retomar a luta, “cercar o mocambo e fazer-lhe contra-estacada”. Já não bastava avançar com as tropas, era preciso mais soldados e armas, e construir uma barreira ou trincheira que facilitasse o avanço dos soldados. O paulista parecia surpreso com a situação: os palmaristas estavam confiantes, muito fortificados e preparados, tinham juntado todos (inclusive as mulheres) dentro da cerca, que ele considerava ser “inexpugnável”7'. O sargento-mor Manuel Álvares de Morais foi encarrega­ do de buscar e comboiar os socorros. Ao voltar, trouxe as munições pedidas,

acompanhadas de recomendações para moderação nos gastos, pois os arma­ zéns da capitania estavam ficando vazios; levou também ordens do marquês de Montebelo para que se continuasse a guerra sem pensar de modo algum em “conceder pazes a quatro [síc] negros cativos e rebelados”’2.

Tanta expectativa e resultados tão menores do que o esperado73. Em ja­ neiro de 1693, alguns moradores do Rio de São Francisco apresentaram-se para entrar nos Palmares sob as ordens de Domingos Jorge Velho74. Apesar

71. Ident, ibidetn. Além de pedir reforços e mais munições, bem como um padre para servir de capelão, Jorge Velho denunciou gente do Rio de São Francisco que comerciou pólvora e chumbo com os negros dos Palmares. 72. Portarias do marquês de Montebelo de 10 e de 12 dez. 1692 e carta do marquês de Montebelo de 12 dez. 1692, bnp-res, pba, Cod. 239, fls. 239, 240 e 402-403. Além da pouca pólvora, faltava farinha na capitania. Ver Bando de Caetano de Melo de Castro de 19 jun. 1693, auc, cca, vi-ui-i-i-31, fls. 567-568, doc. 29; cartas de Caetano de Melo de Castro de 11 e 28 dez. 1693, lapeh, Maço 05, doc. 02 e Décio Freitas, op. cit., 2004, pp. 163-164, doc. 33. 73. Edison Carneiro afirma que Jorge Velho e os paulistas, “desamparados, sem mantimentos”, com o terço destroçado, retiraram-se para Porto Calvo, o que não se confirma pela documentação. Décio Freitas caracteriza o episódio como uma “derrota dos paulistas” que, hostilizados pelos moradores, foram obrigados a se deslocar do acampamento próximo de Porto Calvo para as margens do riacho Parataji [provavelmente Pratagi). Edison Carneiro, op. cit., 1958, pp. 146-147; Décio Freitas, op. cit., 1984, pp. 148-150. A origem de algumas dessas informações pode ser o requerimento de Domingos Jorge Velho, [entre 1695 e 1698], ahu_acl_cu_0I5, Cx. 18, D. 1746, anexo 2. Este documento tem sido o mais utilizado pela bibliografia para o relato da investida contra Palmares em 1694, especial­ mente pelo fato de ter sido publicado por Ernesto Ennes, As Guerras nos Palmares, 1938, pp. 316-344. 74. Ordem do marquês de Montebelo de 7 jan. 1693, auc, cca, vi-m-i-i-31, fls. 524V-525, doc. 22.

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de novos questionamentos por parte do provedor da Fazenda da capitania, os pagamentos de farinhas, legumes e de outras despesas necessárias para o provimento das tropas continuaram a ser feitos75. Contudo, não há notícias do esperado ataque aos Palmares. Enquanto isso, novas ordens foram expedidas para que soldados das Ordenanças prendessem quaisquer fugitivos que fossem para os mocambos ou andassem roubando pelas estradas76. A demora, desta vez, pode ter sido causada pela mudança de governo. Em junho de 1693, Caetano de Melo de Castro assumiu a governança de Pernam­ buco e logo tomou providências para a “destruição e total extinção dos negros levantados e fugidos”77. Convocou as tropas para as mostras habituais78, reite­ rou as ordens para caçar os fugitivos79, tomou providências para impedir que os que saíssem dos mocambos atacassem outras regiões da capitania80 e tratou de conseguir reforços. Em dezembro, notícias de ataques dos negros do Palmar aos currais do sertão do Ararobá e mais pedidos de socorro às tropas estacionadas junto ao outeiro do Barriga tornavam a situação mais urgente. O governador chamou então os índios do Camarão e da aldeia do Ararobá, gente das Ordenanças de Alagoas, Rio de São Francisco, Sirinhaém e oficiais experientes que já haviam lutado contra os Palmares, como Bernardo Vieira de Melo e Antônio Pinto Pereira, para que sejuntassem às tropas de Domingos Jorge Velho8'.

75.

76. 77. 78. 79. 80.

Ver também certidão de Mateus Pereira Girão de i° mar. 1693, AHU_ACL_CU_0I5, Cx. 19, D. 187I, anexo 12. Portaria do marquês de Montebelo de 13 jan. 1693, carta de João do Rego Barros de 14 jan. 1693 e despacho do marquês de Montebelo de 15 jan. 1693, bnp-res, pba, Cod. 239, fls. 242 e 243; ordem do marquês de Montebelo de 23 jan. 1693, auc, cca, vi-m-i-i-31, fl. 541, doc. 98. Ver também certidão do almoxanfe da Fazenda Real de Pernambuco de 20 jan. 1695, ahu_acl_.cu._oi5, Cx. 38, D. 3398, anexo 4. Ordem do marquês de Montebelo de 5 fev. 1693, auc, cca, vi-m-i-i-31, fl. 542, doc. 101. Ordem de Caetano de Melo de Castro de 28 ago. 1693, idem, fls. 571-571 v, doc. 43. Ver, entre outros, os bandos de Caetano de Melo de Castro de 15 jun. 1693, 9 jul. 1693 e 11 ago. 1693, «dem, As- 566-566V, doc. 26; fl. 568, doc. 30; fls. 569-569V, doc. 35. Ordens de Caetano de Melo de Castro de 16 jun. 1693 e de 13 jul. 1693, idem, fl. 566V, doc. 27 e fls. 568-568V, doc. 31. É o caso das “entradas” feitas pelos negros dos Palmares no “sertão das cabeceiras da freguesia

de Santo Amaro de Jaboatão”. Ordem de Caetano de Melo de Castro de 4 set. 1693, idem, fl. 557, doc. 5. 81. Carta de Caetano de Melo de Castro de 9 dez. 1693, ahu_acl_cu_oi5, Cx. 38, D. 3398, anexo 49; ordem de Caetano de Melo de Castro de 23 dez. 1693, auc, cca, vi-m-i-i-31, fl. 572, doc. 47; cer­ tidão de Domingos Jorge Velho de 8 fev. 1694, ahu_acl_cu_oi5, Cx. 19, D. 1863, anexo 28. Não

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No início de janeiro de 1694, um grande contingente de soldados estava “ao pé da serra do Barriga”82. Providências também foram tomadas para abas­ tecer os soldados e outras guarnições foram mandadas para entrar nos matos onde houvesse suspeita de estarem ocultos os negros dos Palmares, na tenta­ tiva de que, “baixando-os ao mesmo tempo [por] várias tropas e por diversos sítios, se consiga extinguir de todo esses rebeldes, ou afugentá-los de modo que se lhe embarace o conservarem-se e unirem-se outra vez”8’. Foi construída uma contracerca, “em roda da dos ditos negros que cons­ tava de 270 braças de pau a pique”’4. Em 16 de janeiro de 1694, concluída a obra, começou o sítio8’; numa das noites seguintes houve uma batalha renhi­ da, que terminou com o recuo dos soldados que atacavam a cerca dos negros. Havia esperança de que a chegada de uma “peça de campanha” pudesse aju­ dar a romper a defesa dos palmaristas que, além ser alta, incluía armadilhas se sustenta, assim, a versão de Domingos Jorge Velho de que ele teria atacado o Barriga “com o seu terço só”. Ver requerimento de Domingos Jorge Velho [entre 1695 e 1698], idem, Cx. 18, D. 1746, anexo 2. 82. A descrição mais detalhada das tropas enviadas para combater os Palmares no início de 1694 é feita pela ReIIação Verdadeyra da Guerra que sefez aos Negros Levantados do Palmar... bnp-res, cod. 11358, n. 37, fls. 75-99. O manuscrito é anônimo e sem data, mas Maria Lêda Oliveira, que o localizou, trans­ creveu e publicou, atribui sua autoria a Bernardo Vieira de Melo, que o teria escrito entre 1694 e 1714, talvez no período em que solicitava o posto de capitão-mor do Rio Grande ou em que esteve preso pelo envolvimento na guerra dos Mascates. Ver Maria Lêda Oliveira, “A Primeira Rellação do Último Assalto a Palmares”, 2005, pp. 251-324 (a transcrição atualizada do documento está nas pp. 300-324). Um balanço do contigente reunido para atacar Palmares é feito por Pedro Puntoni, Portugal, tuna Retrospectiva, 1694, 2019, pp. 85-87. 83. Carta de Caetano de Melo de Castro de 4 fev. 1694, lapeh, maço 05, doc. 03. A carta menciona ainda que as presas deveriam ser distribuídas entre os que tivessem feito os prisioneiros. 84. Certidão de Domingos Jorge Velho de 3ojan. 1694, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 38, D. 3398, anexo 46. A contracerca já havia surgido como estratégia para vencer os Palmares desde 1692, como vimos antes. Sua construção, agora, também é mencionada na Rellação Verdadeyra..., bnp-res, cod. 11358, n. 37, fl. 79 e no requerimento de Domingosjorge Velho [entre 1695 e 1698], ahu_acl_cu_0I5, Cx. 18, D. 1746, anexo 02. Neste último documento, Velho menciona que a cerca de Palmares media 2470 braças craveiras. Segundo Miguel da Silva Marques (Cartografia Antiga, 2001, p. 53) uma braça no Brasil correspondia a 2,17 m e 2,20 m em Portugal (a craveira). Assim, 270 braças resultam entre 586,9 m e 594 m. Antonio de Moraes Silva (Diccionario da Lingua Portugueza, 1789) informa que uma braça craveira corresponde a dez polegadas. Assim, 2470 braças craveiras são equivalentes a 617,5 m85. Esta versão difere, portanto, da oferecida por Domingosjorge Velho, que indica a conclusão da cerca em 5 de fevereiro, quando Zumbi teria descoberto a estratégia e dito a um dos vigias: “e tu deixaste fazer essa cerca aos brancos? Amanhã seremos entrados e mortos e nossas mulheres e filhos cativos”. Requerimento de Domingosjorge Velho [entre 1695 e 1698], ahu_acl_cu_0I5, Cx. 18, D. 1746, anexo 2.

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e estrepes espalhados por todo o terreno. Tentou-se novo ataque em 23 de janeiro, sem sucesso; uma terceira tentativa foi feita no dia 29; igualmente fracassada86. A tal peça chegou, junto com granadas, mas as novas armas de nada adiantaram. Todas as tentativas de arrancar os estrepes em volta da cer­ ca resultavam em mortos e feridos. Palmares mais uma vez revelava-se mais forte e bem defendido do que haviam imaginado as autoridades e os coman­ dantes militares de Pernambuco87. Os dois lados da contenda tinham meios de obter informações um do outro e ambos se preocupavam em esconder a força militar de que dispu­ nham. Havia suspeitas de que gente de fora da cerca “tinha fala com os de dentro” e algumas ordens eram dadas em segredo; mas havia informações em sentido contrário: “um negro da cerca do inimigo” informou que, de­ pois de assediado por 22 dias, o mocambo já estava com falta de munição e as lideranças arquitetavam um plano de fuga para o 7 de fevereiro88. Os acontecimentos se precipitaram e, na madrugada de 6 de fevereiro, a grande cerca do Barriga foi atacada em várias frentes8’. Um grupo, liderado por Zumbi havia começado a retirada por um boqueirão, mas, premidos pela forte investida, acabaram caindo num despenhadeiro; ele levava um filho nas costas e “sete concubinas, pegadas todas umas nas cintas das outras”. Como havia “muita quantidade de mulheres e meninos” não foi possível retroceder e quase todos foram mortos ao despencarem do rochedo em que estavam ou degolados pelas espadas dos soldados que os atacaram90. A batalha avançou

86. Certidão de Domingos Jorge Velho de 30jan. 1694, Ideai, Cx. 38, D. 3398, anexo 46. Ver também consulta do Conselho Ultramarino de 11 dez. 1694, ahu_acl_cu_018, Cx. 1, D. 37 87. A dificuldade imposta pelo terreno escarpado e pela tripla cerca, com várias guaritas e rodeada por fossos e armadilhas é relatada também por Dommgosjorge Velho em seu requerimento [entre 1695 e 1698], ahu_acl_cu_oi5, Cx. 18, D. 1746, anexo 2. 88. Rellação Verdadeyra..., bne-res, cod. 11358, n. 37, fls. 91-92. A informação consta também da carta de Caetano de Melo de Castro de 18 fev. 1694, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 17, D. 1674, anexo 5. 89. Rellação Verdadeyra..., bnp-res, cod. 11358, n. 37, fl. 92; carta de Caetano de Melo de Castro de 18 fev. 1694, ahu_aci_cu_015, Cx. 17, D. 1674, anexo 5. 90. Rellafão Verdadeyra..., bnp-res, cod. 11358, n. 37, fls. 92-93. A descrição deve ter inspirado Sebastião da Rocha Pita a afirmar que Zumbi e seus “mais esforçados guerreiros” tenham “voluntariamen­ te" se jogado do penhasco, preferindo a morte a serem cativados. O trecho da Rellação Verdadeyra, no entanto, não registra explicitamente a morte de Zumbi. Sebastião da Rocha Pita, História da América Portugueza, 1730, p. 485. O suicídio de Zumbi fez fortuna historiográfica até o início do século xx. Ver, a respeito, Andressa Mercês Barbosa dos Reis, Zumbi, 2004, esp. cap. 3. O episódio

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SUBORDINAÇÃO?

pela madrugada. Alguns conseguiram escapar, muitos foram mortos, outros tantos feitos prisioneiros9'.

Ao entrarem na “cerca do inimigo”, os invasores acharam [...] 232 casas de moradia, todas feitas com admirável perfeição e ordem, divididas umas das outras, que inda que se lhe desse fogo não poderiafm] as chamas penetrar na

outra, todas em roda pela dita cerca, não ficando parte onde não estivesse por junto dela[s] feito e coberto abrigozinho para as sentinelas. Havia mais 40 casas de tendas de ferreiros, aonde em todo o dia estavam fazendo palanquetas de ferro e zagaias para

as flechas, sendo nisto tão cuidadosos na vigilância cada qual do seu posto que mais

parecia militares que bárbaros92.

Dentro da cerca havia plantações de milho e criações de galinhas, bem como “uma mata de meia légua com uma fonte abundantíssima de água”. A descrição lembra em muitos aspectos aquela feita pelos holandeses que ataca­ ram os mocambos além das cabeceiras do rio São Miguel nos anos 1640 - mas agora os aspectos militares ganham proeminência. E a violência da investida parece ter sido maior. Casas e roças foram saqueadas e contaram-se mais de

quinhentos mortos. Os prisioneiros somaram cerca de seiscentos93. No dia seguinte, encontraram gente escondida nas matas, dentro da cerca: uns foram mortos, outros aprisionados. As tropas também percorreram os arredores, caminhando por “muitas brenhas e serras” em busca dos que ha­ viam conseguido escapar, fazendo mais mortes e prisioneiros: “foram tantos [os] feridos que o sangue que iam derramando serviu de guia às tropas que os

seguiram, e aprisionaram muitos e outros se tornaram a recolher, mas, erran-

é referido também, com menos detalhes, no requerimento de Domingos Jorge Velho, [entre 1695 e 1698], ahu_acl_cu_ois, Cx. 18, D. 1746, anexo 2. 91. O número de mortos varia entre duzentos e trezentos e o de prisioneiros entre quatrocentos e seiscentos. Ver as certidões expedidas por Domingos Jorge Velho em 8 fev. 1694 e a de Caetano de Melo de Castro, de 15 jul. 1694, ahu_acl_cu_oi5, Cx. 19, D. 1863, anexo 28 e Cx. 38, D. 3398, anexo 47; Cx. 38, D. 3398, anexo 52; carta patente de 8 jan. 1695, antt, chr, Pedro 11, L. 22, fls. 197-198; certidão de Domingos Marques de 22 fev. 1697, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 21, D. 1959» anexo 7. 92. Rellação Verdadeyra..., bnp-res, cod. 11358, n. 37, fls. 94-95. 93. Idem, fl. 95. Carta de Caetano de Melo de Castro de 18 fev. 1694, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 17, D. 1674, anexo 5.

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do o caminho, se despenhou grande parte deles de uma rocha tão alta que se

fizeram [em] pedaços”’4. As informações oferecidas pelas cartas dos governadores dirigidas a Lisboa, as certidões dos serviços prestados pelos soldados e comandantes das tropas, bem como os relatos militares dos ataques contra a cerca do Barriga e o exten­ so relato da investida final contra Palmares revelam detalhes destes eventos até agora não mencionados pela historiografia, que sempre narrou a batalha de 1694 apoiada em um requerimento escrito por Domingos Jorge Velho, entre 1695 e 1698’’. Esse documento foi produzido em meio a contendas entre o comandante paulista e as autoridades coloniais e tende a valorizar a atuação de Domingos Jorge Velho e sua gente. Outras fontes indicam, no entanto, ter havido um esforço de guerra bem mais amplo, com a participação de tropas diversas e muitas dificuldades para vencer os Palmares. A longa espera pela chegada das tropas paulistas e os percalços para juntar, armar e abastecer os contingentes locais e regionais, assim como as guerras contra os janduís e as várias trocas de governo na capitania de Pernambu­ co abriram espaço para que Palmares se fortalecesse novamente. Desde 1681, como vimos no capítulo anterior, a serra do Barriga tornara-se o ponto de concentração dos fugitivos, especialmente depois da destruição de Cucaú. Fo­ ram várias as expedições que atacaram o local ao longo dos anos 1680, algumas chegando a invadir o mocambo, mas Palmares resistia. E crescia. As fugas in­ dividuais e coletivas, sempre mencionadas nessas fontes, contribuíam para o adensamento da população palmarista. Além do aumento do número de pessoas, havia uma organização militar cada vez mais estruturada e sólida. Aproveitando as escarpas e penhascos da região, os palmaristas construíram paliçadas bem guarnecidas, cujas descrições lembram as utilizadas na África Central96. A extensão da área cercada no outei­

ro, a quantidade de casas e a abundância das lavouras e criações causavam tanta

94. Carta de Caetano de Melo de Castro de 18 fev. 1694. Ver também certidão de Domingos Jorge Velho de 9 fev. 1694, idetn, Cx. 38, D. 3398, anexo 53. 95. Requerimento de Domingos Jorge Velho, [entre 1695 e 1698], idetn, Cx. 18, D. 1746, anexo 2. A Rellação Verdadeyra e a documentação utilizada nas últimas páginas contêm diferenças nas datas de alguns dos entreveros militares. Segui, em geral, as indicações da correspondência administrativa e dos relatos militares. 96. Ver, a respeito, John K. Thornton, Warfare in Atlantic África, 1999, pp. 99-125 e 146.

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SUBORDINAÇÃO?

admiração entre os contemporâneos quanto o sofisticado sistema de defesa, a

capacidade de produzir armas, e a valentia e habilidade dos que lutavam por Palmares. Na “Relação Verdadeira da Guerra que se Fez aos Negros Levantados do Palmar”, são poucos os nomes mencionados. Zumbi aparece ali como o “cabe­ ça de todos os do Palmar”, o “principal” que traçava estratégias, dava as ordens

e repartia a gente de guerra. Havia também outras lideranças como Camuanga, um negro seu valente e grão-corsário”, que comandou um dos ataques contra as tropas paulistas; e ainda Gandu, um “cabo” que havia ajudado na rendição de um grupo que resistiu renhidamente no dia seguinte à invasão do mocambo97. Além dos detalhes sobre os “notáveis estrepes” e os “fojos [armadilhas] cheios deles”, que tantas dificuldades causaram aos que atacavam os Palmares, há rápidas descrições das táticas de guerra dos palmaristas. Eles

investiam com paus pontiagudos “que tinham dois palmos e meio e três de comprido”, lançavam pedras “com as mãos ou em fundas”, atiravam flechas e disparavam armas de fogo.

Como sempre, aqui e ali há revelações importantes. No início de janeiro, enquanto esperavam chegar a tal peça de campanha, os paulistas estavam arranchados a menos de meia légua ao pé da serra do Barriga, de onde podiam ver a cerca do mocambo, meia légua mais acima. Apesar da proximidade, fo­ ram surpreendidos pelos palmaristas, que marchavam “todos, em um corpo ’, depois de terem feito “grandes bailes e folia e grande alarida, com o seu rústico instrumento de atabales, até meia-noite”. Na tarde do dia 15 de janeiro, quan­ do se terminou de construir a contra cerca, os palmaristas responderam com armas de fogo e “infinitas flechas e pedras”, atacando “com tão grande alarida de homens e mulheres e inumeráveis atabaques e uma caixa de guerra, tocada

excelentemente, e uma trombeta”. A batalha durou toda a noite e toi ilumina­ da por “inumeráveis fachos, que davafm] tão grande c laridade que parecia o mesmo dia em roda da mesma cerca”98. Depois que o mocambo toi invadido e as tropas procuravam pelos que haviam conseguido escapar, “pelo meio-dia se descobriu dentro de uma lapa, em meio do rochedo, uma tropa de negros ; tiveram dificuldade para atacá-los “pelo inviolável do despenhadeiro . Mas

97. Rellaçdo Verdadeira..., 98. Idern, fls. 80-81.

bnp-res,

cod. 11358, n. 37, fls. Soe94.

PALMARES A CVCAÜ

3-3

Bernardo Vieira de Melo supôs estarem ali “seus maiores cabeças” pois, con­ fiantes, estavam “tocando gaitas e atirando muitos tiros”99. Os rituais da guerra seguiam as praxes do tempo. Havia caixas de guerra e trombetas também nos exércitos coloniais'09, mas não bailes com tambores nem alaridos de homens e mulheres. Essa forma de guerrear, usada pelos centro-africanos, não era de todo desconhecida em Pernambuco, pois havia sido utilizada durante as guerras contra os holandeses. Pelo que informa o padre Manuel Calado, em 1645, na batalha do monte das Tabocas, os escravos de João Fernandes Vieira (muitos dos quais eram angolas) haviam se lançado à luta “armados com arcos e flechas, zagunchos [lanças] e facões, todos com penachos a seu modo e tocando flautas, atabaques e buzinas, fazendo grande vozeria e com tanta fúria e estrondo” que assustaram o inimigo, contribuindo para a vitória, considerada “milagrosa”'01. Era também um modo de atemori­ zar os inimigos durante os ataques, como haviam feito tantos exércitos centro-africanos do outro lado do Atlântico. Há mais. A “Relação Verdadeira” registra que, certa vez, enquanto as tro­ pas dos paulistas avançavam ao som de suas caixas e trombetas, e o primeiro tiro da peça de campanha atingiu uma ponta da cerca, os soldados escutaram os negros “dizendo pela sua língua ‘olenga, olenga, Barriga acabou’”102. Sim, pa­ lavras em quimbundo e em português: fujam, fujam, Barriga acabou193. Ainda era 23 de janeiro; apesar do alerta, os palmaristas continuaram a resistir. Do seu jeito, na sua língua, com suas táticas e estratégias militares. Ao amanhecer do dia 6 de fevereiro, depois de tanta luta e resistência, a

cerca foi invadida e destruída. Agora sim: olenga, olenga, Barriga acabou. Mas os Palmares teriam mesmo terminado?

99. Idetn, fl. 93. 100. Para a presença de músicos em uma expedição contra um quilombo na segunda metade do século xvm em Minas Gerais, ver Laura de Mello e Souza, “Violência e Práticas Culturais no Cotidiano de uma Expedição contra Quilombolas”, 1996, pp. 199-200. 101. Padre Manoel Calado, O Valeroso Lttcidenoe Triuphoda Liberdade, 1668, p. 202. 102. Rellação Verdadeyra..., bnp-res, cod. 11358, n. 37, fl. 84. 103. “Lenga” é verbo nominal que significa fugir. Ver J. Pereira do Nascimento, Dicionário Portngnez-kimbundu, 1907, verbete “fugir”. O termo pode se referir simplesmente a escapar, mas também a uma das estratégias utilizadas na África Central de retirada para a floresta para proteção e reor­ ganização das forças quando as cercas eram destruídas. Ver John K. Thornton, op. cit., 1999, pp. 110-112.

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SUBORDINAÇÃO?

2. Contendas Não foram apenas embates armados os travados ao longo daqueles anos. Como vimos, em Pernambuco, o governador, o provedor da Fazenda e o almoxarife da capitania não concordavam sobre quem devia arcar com o pagamento das despesas com armas, munições e sustento das tropas. Havia ainda diferenças entre o governador e as autoridades em Lisboa. O silêncio do Conselho Ul­ tramarino e do rei sobre o contrato feito com Domingos Jorge Velho escon­ dia dissensos. As alterações introduzidas pelo governador de Pernambuco ao ratificar o contrato em 1691 foram acompanhadas por debates em Lisboa, que se mesclaram à discussão sobre como financiar a retomada da guerra contra os Palmares. As dissonâncias aumentaram ainda mais depois que os paulistas, considerando-se vitoriosos, passaram a cobrar que as cláusulas fossem cumpri­ das. As controvérsias envolviam várias questões: o pagamento dos custos da

guerra e de soidos, a concessão de terras, a nomeação para postos militares. E, claro, os procedimentos a serem adotados em relação aos capturados104. É este último ponto que será focalizado aqui, pois permite abordar desdo­ bramentos do acordo de paz de 1678 de um ângulo diferente. Também é uma forma de buscar respostas para a pergunta formulada há pouco. O tema será

enquadrado numa perspectiva mais ampla, voltando um pouco na cronologia, para compreender melhor as implicações do que foi acertado com os paulistas. Em termos gerais, nessa época, os procedimentos com as chamadas “presas de guerra” eram regulados pelo Regimento das Fronteiras, de 1645, elaborado no contexto da Restauração e adotado no Brasil em 1653l0í. Os capítulos 78 a 82 dessa determinação estipulavam que as presas deviam ser levadas ao almo104. Edison Carneiro (pp. cit., 1958, pp. 169-195) foi dos poucos autores a tratar dessas polêmicas (“uma nova guerra — a das palavras”, como ele as caracteriza) embora as situe no período posterior à vitória sobre os Palmares, (citação na p. 170). Para um balanço mais amplo das disputas entre os paulistas e a Coroa acerca da remuneração dos serviços prestados na guerra contra Palmares e em outros contextos, ver Adriana Romeiro, Paulistas e Etnboabas tto Coração das Minas, 2008, esp. pp. 257-261. Ver também Bruno Rafael Veras de Morais e Silva, “Armas Afiadas, Pena Precisa: O Discurso Bandeirante e as Mercês sob as Cinzas dos Palmares”, 2011. Sobre as disputas de terras ver Felipe A. Damasceno, A Ocupação das Terras dos Palmares, 2018, pp. 176-193. 105. Alvará de 29 ago. 1645. Marcos Carneiro de Mendonça, Raízes da Formação Administrativa do Brasil, 1972, vol. 2, pp. 631-656. Ver também a carta régia de 23 ago. 1653. dh, 78, pp. 366-367,1947 c 79» PP- 3-50, 1948. Os dois capítulos do Regimento das Fronteiras não especificam se as determinações em relação às “presas” se aplicam aos prisioneiros ou aos despojos de guerra em geral. Como foram

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xarife, responsável por inspecioná-las (pois não podiam pertencer aos vassalos de Portugal, nem terem sido feitas em terras do Reino) e depois vendê-las. Do valor apurado descontavam-se os gastos, tirava-se o quinto da Coroa e o saldo devia ser repartido entre soldados e oficiais (conforme os soidos e as hierarquias militares). Certamente a guerra contra os mocambos era diferente daquela contra inimigos externos no Reino, mas as determinações estabeleci­ das pelo Regimento deviam servir de orientação geral. O regimento feito para uma expedição liderada por Antônio Jácome Be­ zerra em 1654 define várias estratégias a serem adotadas contra os mocambos, mandando ainda que os negros que resistissem aos ataques fossem arcabuzeados e pendurados “em quartos pelas árvores”. O castigo pretendia ser exemplar e visava atemorizar os que pretendessem permanecer nos matos. O documento não traz detalhes sobre como proceder em relação aos que fossem aprisionados ou se entregassem, determinando apenas que o então sargento-mor cuidasse de resolver da melhor maneira as questões que se apresentassem106. Ao que tudo indica, os prisioneiros foram distribuídos entre os soldados que partici­ param da jornada'07. Um regimento elaborado em 1661, para uma das expedições do tempo do governador Francisco de Brito Freire, também mandava arcabuzear os que oferecessem resistência e prender todos os que pudessem ser alcançados “se­ jam mulheres ou meninos”, para serem levados ao Recife e repartidos entre os soldados10’. O governador de Pernambuco chegou a pensar em soltar um edital concedendo aos moradores que quisessem participar das entradas contra os Palmares a posse dos aprisionados, desde que tivessem fugido há mais de um ano e seus senhores deles abrissem mão. A proposta era ousada e ele pediu aos párocos que consultassem seus fregueses, “em particular aos que tiverem neescritos no contexto metropolitano, é mais provável que tratem do segundo caso e não da venda de pessoas. 106. Regimento expedido por Francisco de Brito Freire em 5 set. 1654, auc, cca, vi-111-1-1-31, fls. 2ov-2t.doc. 39. Um bando do governador de Pernambuco de mesma data também manda arcabuzear e enforcar nas árvores os que resistissem, “para exemplo e temor dos negros”, idem, fls. 16-17, doc. 33. Um regimento expedido em 24 dez. 1661 segue, grosso modo, as mesmas determinações. Idem, fls. 62V-63, doc. 54.

107. Carta dejerônimo de Ataíde de 20 mar. 1655, bnrj-ms, Cod. 1-31,32,006, fls. 3V-4, doc. 10. 108. Regimento expedido por Francisco de Brito Freire em 4 jan. 1661, auc, cca, vi-ni-1-1-31, fls. 66V-67V, doc. 61. Medidas semelhantes, embora menos detalhadas, encontram-se cm outro regi­ mento de Francisco de Brito Freire de 24 dez. 1661, idem, fls. 62V-63, doc. 54.

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SUBORDINAÇÃO?

gros nos Palmares”, para saber se concordavam com medidas tão extremas'09. Pediu também a opinião do governador-geral do Brasil, que apoiou as medi­ das, ponderando que apenas “os prisioneiros [que] se conhecerem haver sido cabeças e os do principal governo” fossem degolados. Avisou que o destino dos demais seria decidido quando chegassem, ficando no Brasil somente “os que tiverem idade que segure o temor de se tornarem a ir aninhar naquela par­ te”. Também mandou queimar as povoações e lavouras, “de maneira que não fique mais que as memórias de sua destruição”, mas não escreveu uma linha sobre dar os prisioneiros aos soldados"0. Realizada a expedição, ao que tudo indica, os capturados foram levados à cadeia, colocando-se avisos para que seus senhores os viessem buscar. Eles tinham que pagar então a tomadia, “como é uso e costume”, e os custos com seu sustento desde o dia em que haviam sido presos. Se fossem vendidos para fora de Pernambuco, os senhores podiam reivindicar o valor apurado, com os devidos descontos'". Em 1664, um bando do governador determinou que o valor das tomadias e da venda para fora da capitania dos que não tinham senhor identificado fosse repartido entre os soldados e os oficiais, depois de serem des­ contados os quintos pertencentes à Coroa e as despesas feitas com munições"2. O descompasso em relação às determinações do Regimento das Fronteiras é marcante. No Reino, o valor apurado com as presas de guerra (raramente constituídas por pessoas) servia para remunerar a Coroa e os soldados e oficiais das tropas que haviam realizado os saques depois das batalhas. No caso das pre­ sas feitas nos Palmares, havia que contemplar interesses conflitantes: dos se­

nhores (que queriam recuperar ao menos o investimento feito nos escravos que haviam fugido), das autoridades coloniais (preocupadas em reaver os custos da guerra, mas também em desterrar os aprisionados para evitar novas fugas) e dos soldados (que pretendiam ganhar algo pelos esforços despendidos no ser-

109. Edital de Francisco de Brito Freire de 6 dez. 1662. Idem, fls. 86V-87, doc. 123. 110. Carta do conde de Óbidos de 9 set. 1663, bnrj-ms, Cod. 08,01,003, fls. 3V-4V, doc. 10. 111. É o caso de Pedro, único escravo de Antônio de Sá, que tinha por hábito fugir para os Palmares e foi vendido para fora da capitania. O senhor reivindicou e obteve o pagamento de seu valor, descontados o sustento durante o tempo em que esteve preso e a tomadia.Ver a carta de Francisco de Brito Freire de 16 ago. 1663, auc, cca, vi-in-i-I-31, fls. 92V-93, doc. 142. 112. Bando de Jerônimo de Mendonça Furtado de 26 nov. 1664, idem, fls. i68-i68v, doc. 124. Ver também o regimento expedido por Jerônimo de Mendonça Furtado cm 26 nov. 1664, idem, fls. 164V-166V, doc. 122.

PALMARES * CUCAÚ

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I

viço das armas). Em alguns casos, também se pretendia dar castigo exemplar aos amocambados, expondo os corpos dos renitentes mortos nas matas. O único consenso parece ter sido o uso do valor arrecadado com as tomadias e a venda das presas para cobrir os custos da guerra. Mesmo com algumas diferenças, parece ter se fixado um procedimento padrão, pelo menos em termos gerais. É o que se deduz do acordo entre as vilas

de Porto Calvo e Alagoas, de 1668, que mandava vender as presas maiores de doze anos para fora da capitania, pagando os senhores 12S000 réis (ou óSooo réis pelos que se entregassem). As que haviam fugido de outras capitanias po­ deríam ficar com os soldados. Com exceção dessas últimas, é provável que se repartisse entre os soldados o valor apurado com as vendas, depois de feitos todos os descontos, e não os prisioneiros propriamente ditos"3. No ano seguinte, as câmaras de Alagoas, Porto Calvo e Sirinhaém adota­ ram dispositivos semelhantes, acrescentando que os capturados cujos senhores não fossem conhecidos ficariam para quem os tivessem prendido"4. O mesmo aconteceu no acordo entre as câmaras de Alagoas, Porto Calvo e Penedo, por ocasião da preparação da expedição de Fernão Carrilho, em 1676. A diferença é que o valor de 12S000 réis a ser pago pelos senhores aplicava-se tanto para os aprisionados quanto para os que se entregassem, ficando isentas de pagamen­ to as crianças com menos de três anos. Como comandante, Carrilho poderia determinar o que melhor lhe parecesse em relação aos outros prisioneiros"3. Apesar de reiterados, esses procedimentos não deixaram de suscitar alguns conflitos. Os senhores relutavam em vender seus escravos para fora da capi­ tania. Alguns documentos indicam que eles tinham trinta dias para mandar os prisioneiros capturados para o Recife, sob pena de perder o “direito” que tinham sobre os escravos apreendidos”6. Outra dúvida dizia respeito à cobran-

113. Termo de vereaçào de 17 dez. 1668, ihgal, Cx. oi, Pac. 02, Doc. 01. 114. Termo de vereação de 3 out. 1669, idem. 115. Termo de vereaçào de 3 fev. 1676, idem, fls. 156-158. Um regimento emitido pelos vereadores de Alagoas do Sul em 1681 indica bem a importância dos prisioneiros vindos “do mato dos Palma­ res”: a tomadia paga nesse caso era dos costumeiros 12S000 réis — bem mais alta que os 2S000 réis estipulados pelos fugitivos pertencentes aos moradores da vila, os 4S000 réis para os que viessem de fora do termo da vila, 8$ooo réis que fossem de Pernambuco e ioSooo réis da Bahia. Regimento que fez o capitào-mor do campo em 1681, idem, Doc. 02, fls. 62-62V. 116. Ordem de Bernardo de Miranda Henriques de 21 mar. 1669, idem, Doc. 01. Ver também a certidão de Gonçalo Rodrigues de 6 abr. 1669, idem, ibidem.

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SUBORDINAÇÃO?

ça dos quintos e, especialmente, a quem exatamente eles pertenciam, já que

os governadores (com títulos de generais) reivindicavam ter recebido do rei o privilégio de embolsar esse valor"7. Havia, entretanto, dissensos maiores. Segundo informa o governador de Pernambuco, depois de uma expedição liderada por Jácome Bezerra em 1673, a ideia era seguir as determinações do Regimento das Fronteiras, com as presas sendo entregues ao almoxarife da capitania. As câmaras, porém, reivindicaram ser melhor seguir um “estilo antiquíssimo nestas capitanias”, segundo o qual os escravos dos Palmares deviam ser entregues a seus antigos senhores que, em

troca, pagavam por prisioneiro I2$ooo réis. O governador consultou então o auditor geral e o provedor da Fazenda e resolveu atender ao pedido das câma­ ras, desde que os senhores assinassem um termo comprometendo-se a pagar pelo quinto devido à Coroa, repartindo-se os demais “pela gente que fez a presa”, se assim determinasse o regente português. Além disso, os senhores se comprometeram a enviar todos os negros para fora da capitania"8. Ao receber essas informações, o Conselho Ultramarino debateu o assunto e encaminhou ao regente propostas que iam em outra direção. Achou por bem reiterar as sugestões feitas em consulta anterior, de 1671, na qual se mandava seguir o Regimento das Fronteiras na repartição das presas, exceto pelo quin­ to, que não deveria ser cobrado; e a distribuição dos prisioneiros entre os sol­ dados seria feita depois de descontado o custo com as munições. O Conselho ponderava ainda que os prisioneiros não podiam ficar no Brasil: os machos [que] passarem de sete anos” deviam ser marcados com um R no rosto e man­ dados para Portugal, podendo ser até levados para Castela"’. Como se pode verificar, entre as autoridades metropolitanas e as que esta­ vam em Pernambuco havia uma diferença considerável de posição. Para estas últimas, o Regimento das Fronteiras não atendia as necessidades militares nem os interesses senhoriais. O tal “costume” colonial privilegiava a devolução dos

fugitivos a seus antigos donos, ignorando a cobrança do quinto régio, o gover-

117. Carta de Alexandre de Sousa Freire de 28 abr. 1669, bnkj-ms, Cod. 08,01,003, fls. 90-90V. doe. 218. 118. Carta de Fernão de Sousa Coutinho de 19 ago. 1673, ahu_*cl_cu_ois, Cx. 10, D. 988. 119. Consulta do Conselho Ultramarino de 9 out. 1671. AHU_ACL_cu_Consultas Mistas, Cod. 17. fls. 2-2V. As sugestões foram renovadas na consulta do Conselho Ultramarino de ,8 nov. .673, *hu_ ACt_cu_Consultas de Pernambuco, Cod. 265, fls. 2-2V. Parte dessas discussões fot comentada no capítulo 1.

PALMARES tc CUCAÚ

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nador cedeu às reivindicações das câmaras, embora a assinatura do termo pelos senhores o resguardasse de alterações posteriores eventualmente ordenadas pela metrópole. Na ocasião, houve discussão acirrada no Conselho Ultrama­ rino120, que recomendou medidas enérgicas ao regente, destinadas a impedir que os prisioneiros tornassem a fugir e, assim, a eliminar a possibilidade de novos Palmares na região. A única concessão foi renunciar ao quinto, de modo a incentivar a participação dos soldados nas expedições repressivas. Todavia, como o príncipe regente não tomou uma decisão em relação às consultas de 1671 e de 1673, o tema permaneceu em suspenso. Suspenso quanto a uma decisão final da Coroa. Na capitania, o novo go­ vernador manteve o tal “costume”. Por meio do bando de 1674, que regula­ mentou novas entradas contra os Palmares, determinou que as presas, depois de descontado o quinto, fossem repartidas entre os participantes da expedição, vendendo-se as maiores de dez anos para fora da capitania121. Assim, até meados da década de 1670, o procedimento padrão implicava reconhecer diferenças entre os habitantes dos Palmares: havia os fugidos dos senhores da região e os vindos de outras capitanias, e se distinguiam homens, mulheres e crianças. O “costume” mais importante a ser respeitado era o da devolução dos fugitivos a seus antigos donos, que arcavam com os custos do apresamento. Para impedir a reincidência das fugas, mandava-se expulsar os capturados de Pernambuco, vendendo-os para locais distantes. Os valores das tomadias podiam variar, os limites de idade para a permanência na capitania também - mas os princípios gerais parecem ter sido fixados, equilibrando-se os diversos interesses envolvidos. A cobrança do quinto continuou a ser um ponto duvidoso, diretamente ligado ao ressarcimento dos custos da guerra à Fazenda Real. A questão era controversa, já que a preparação das expedições oficiais implicava a cobrança de tributos, a compra de alqueires de farinha ou peixe, editais para o forne­ cimento de escravos carregadores, que oneravam as câmaras e os moradores. Os quintos podiam cobrir esses custos. Por outro lado, o recurso de liberar as

120. Nessa ocasião foram consultadas pessoas experientes “nas coisas do Brasil”, que recomendaram medidas ainda mais duras, como estabelecer o valor máximo dos prisioneiros em 40S000 réis. Tais sugestões não aparecem nas recomendações finais enviadas ao príncipe regente. Ver, por exemplo, a minuta de 6 out. 1671, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 10, D. 917, anexo 2. 121. Bando de dom Pedro de Almeida de 19 out. 1674, ihcal, Cx.oi, Pac.02, Doc. 01, fls. 138-138V.

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SUBORDINAÇÃO?

B

=

presas para os soldados (não apenas para os oficiais, como determinado pelo Regimento das Fronteiras) funcionava como um incentivo para o engajamen­ to nas tropas, que sofriam com a deserção dos soldados. Novos elementos aparecem a partir das expedições de 1677-1678, coman­ dadas por Fernão Carrilho e Manuel Lopes. As intenções iniciais, presentes no acordo feito entre as câmaras e Carrilho, em 1676, seguiam a praxe costumeira, com o pagamento das taxas de captura e o comandante dispondo dos prisio­ neiros “a seu alvedrio”122. Com a vitória obtida e as negociações de paz reali­ zadas entre as autoridades coloniais e Gana Zumba em 1678, não houve mu­ danças substanciais, a não ser a devolução de alguns prisioneiros aos Palmares. Com a continuidade da guerra, o quadro foi se tornando mais complexo. Em 1678, para incentivar a destruição completa dos mocambos, um bando havia liberado as presas para os que integrassem as expedições de caça aos que permaneciam nas matas123. Depois da destruição de Cucaú, em 1681, novo ban­ do ampliou as determinações de 1678, na tentativa de acabar com a “canalha vil e rebelde” dos Palmares. Para isso, o governador mandou formar tropas por toda a capitania, estabelecer arraiais, castigar os que dessem abrigo a algum fu­ gitivo, e prender os que se entregassem a seus antigos senhores para vendê-los para fora da capitania. Como incentivo, instituiu prêmios aos participantes das expedições, que poderiam ficar com as “crias e negras” aprisionadas; os criminosos teriam perdão de suas culpas e os que dessem informações sobre a localização dos mocambos poderiam se apossar de todos os que conseguissem capturar124. Houve, portanto, um alargamento do conjunto de pessoas que po­ diam ficar com os que eram capturados. Havia, no entanto, outros problemas. A captura de “mais de 200 peças” pelas tropas que destruíram Cucaú’23 le­ vou a outro debate, como já vimos, sobre a reescravização de gente que fora considerada livre ou alforriada pela Coroa. As discussões, ocorridas em Lisboa, resultaram no alvará de 10 de março de 1682, que aborda diversos lados da

questão, tratados no capítulo 4. Com relação aos prisioneiros, o alvará reiterou 122. Termos de união de 3 fev. 1676 e de certificação de 12 fev. 1676, idern, Doc. 01, fls. 156-158. 123. Bando de dom Pedro de Almeida de 14 fev. 1678, idein, Doc. 01, fls. 191-19IV. A mesma medida de liberar a cobrança dos quintos sobre as presas foi tomada depois que fracassou a tentativa de acordo com Zumbi, em 1679. Ver bando de Aires de Sousa de Castro de 17 ago. 1679, auc, cca, V1-111-1-1-31, fl. 339V, doc. 24. 124. Bando de Aires de Sousa de Castro de 16 ago. 1681, auc, cca, vt-ni-1-1-31, fls. 343-343V, doc. 34. 125. Consulta do Conselho Ultramarino de 4 mar. 1687, ahu_acl_cu_oij, Cx. 14, D. 1406.

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práticas anteriores, como a distribuição dos capturados entre os soldados e o pagamento de 12S000 réis de tomadia. A novidade, entretanto, estava na con­ firmação da liberdade concedida aos nascidos nos Palmares e aos que haviam sido indultados por retornarem à “obediência” régia126. Com isso, o alvará san­ cionava uma diferenciação na condição jurídica dos habitantes dos Palmares que passou a ser considerada também quando eles eram capturados. Foi o que aconteceu com alguns deles. No final de 1681, Pedro Sueiro, um dos presos que havia sido enviado a Lisboa e trabalhava no Estanco do Tabaco, adoeceu. Fez um requerimento pedindo para ser sustentado por Fernão Car­ rilho, que então estava na Corte, mas o Conselho Ultramarino e o príncipe regente decidiram que ele devia ser encaminhado para o hospital, enquanto se aguardava a decisão das devassas determinadas pelo alvará de 1682, realiza­ das em Pernambuco127. Era preciso saber “se [estes negros dos Palmares] eram cativos ou não” para se poder responder adequadamente ao requerimento de Sueiro. A espera do resultado das devassas foi mencionada também pelo go­ vernador de Pernambuco, ao enviar três prisioneiros pertencentes aos quintos régios para Lisboa, no mesmo período128. A definição da condição jurídica deles - se livres ou escravos — determinava a responsabilidade por seu sustento. Assim, mesmo após o fracasso do acordo de paz e ainda que as inquirições judiciais previstas no alvará de 1682 não tenham se realizado, um novo diferen­ cial havia se introduzido no tratamento dado aos prisioneiros feitos nas guerras contra Palmares: era preciso distinguir os escravos, aqueles que haviam fugido de seus senhores e continuavam nos matos, dos que tinham aceitado o acordo de paz ou haviam nascido nos mocambos, considerados forros ou livres. Uma

das cláusulas do acordo de 1678 se mantinha, e os Palmares continuaram a ser tratados como um corpo político específico e seus habitantes, embora captu­ rados, tinham um tratamento que os distinguia de outros fugitivos. A historiografia não prestou muita atenção aos termos negociados em 1678 e muito menos se preocupou em verificar seus ecos na documentação poste-

126. Alvará de 10 mar. 1682, ahu_acl_cu, Provisões, Cod. 93, fls. 296-297V. 127. Consulta do Conselho Ultramarino de 9 dez. 1681, ahu_acl_cu_oí5, Cx. 12, D. 1210. Fernào Carrilho foi a Portugal por volta de 1681 e 1682 quando apresentou requerimentos pedindo mer­ cês. Helena C. Barreto, The Life and Times of Fernão Carrilho, 1980, pp. 33-34. 128. Consulta do Conselho Ultramarino de 13 dez. 1681, AHU_ACL_cu_Consultas de Pernambuco, Cod. 265, fl. 33.

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SUBORDINAÇÃO?

rior. A diferença entre prisioneiros livres e escravos, bem como a condição especial dos capturados que haviam nascido nos mocambos, no entanto, con­

tinuou a ser observada, com intermitência, nos anos seguintes. Reapareceu, com algumas alterações, no contrato celebrado entre Souto Maior e os pro­ curadores de Domingos Jorge Velho, em 1687. E foi objeto de contendas, que demoraram a ser resolvidas.

-

Com pequena variação nas idades dos que podiam permanecer na capita­ nia, no valor das tomadias e nos locais designados para a venda dos capturados, as determinações estabelecidas no contrato celebrado entre Souto Maior e os procuradores de Domingos Jorge Velho em 1687 seguem o padrão praticado nas décadas anteriores. Há, entretanto, um elemento novo: pelo menos duas cláusulas mencionam “os negros filhos dos Palmares” ou “os filhos do ma­ to”11’. Porém, já não se cogita que eles possam permanecer livres nem se reco­ nhece a alforria obtida com o “indulto” concedido em 1678 e confirmado em

1682. As crianças entre sete e doze anos podiam permanecer em Pernambuco e os “filhos do mato”, como passaram a ser chamados os nascidos nos Palmares a partir de então, tornavam-se cativos dos paulistas. Era suspensa, assim, uma cláusula importante do acordo de 1678. O entendimento não é unânime, pois um parecer anônimo escrito em Lis­ boa em 1689 menciona claramente, na hipótese de um acordo de paz, a possibi­

lidade de considerar forros os “filhos do mato” e as “negras cativas que forem casadas com os filhos do Palmar” bem como os “negros cativos que forem ca­ sados com as filhas do mato”'30. De modo geral, porém, ainda que a diferença entre livres e escravos tenha sido considerada no início da década de 1680, depois do contrato com Domingos Jorge Velho ela esteve diretamente ligada à distribuição dos prisioneiros entre os paulistas. Enquanto eles guerreavam os janduís e outras expedições atacavam os mocambos, deu-se continuidade à prática de entregar os capturados aos soldados, para que fossem vendidos e en­ viados para fora de Pernambuco'3'. A medida era recomendada pelo Conselho Ultramarino e ao menos um documento indica que os prisioneiros feitos em 1689 foram levados para a cadeia do Recife, para seretn depois entregues a seus 129. Capítulos e condições concedidas a Domingos Jorge Velho em 3 mar. 1687, ahu_acl_cu_ois, Cx. 18, D. 1746, anexo 5. 130. Carta ao rei de 28 jan. 1689, ba, Cod. 50-V-37, fls. 168-170, doc. 65. 131. Consulta do Conselho Ultramarino de 22 nov. 1687, ahu_acl_cu_ois, Cx. 14, D. 1428.

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inn:

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senhores, mediante o pagamento de tomadias’32. Outro, datado de agosto de 1691, revela que parte dos prisioneiros foi levada para a cadeia de Sirinhaém, onde alguns morreram e outros foram entregues a seus senhores, que paga­ ram valores bem abaixo dos costumeiros 12S000 réis. O governador ordenou então que o erro fosse logo corrigido1*3. Mas não há, nessas fontes, qualquer menção ao contrato com os paulistas, nem uma diferenciação na condição jurídica dos prisioneiros. Depois que o contrato com Domingos Jorge Velho foi ratificado, Lisboa retomou os debates acerca do cativeiro dos capturados e seu destino. Ao co­ municar ao rei, em 1692, que as tropas paulistas tinham finalmente chegado aos Palmares, o governador de Pernambuco mencionou ser conveniente conside­ rar escravos todos os que haviam sido aprisionados “por serem por si e seus an­ tecessores cativos e por não terem os senhores esperança de os recobrarem”134. O pragmatismo colonial não encontrou respaldo régio e, manifestando ter dúvidas quanto ao “prêmio” de julgar todos os negros “verdadeiramente cati­ vos”, o rei pediu mais informações sobre o assunto ao governador13’. Problemas com as frotas atrasaram as cartas, mas, finalmente, em setembro de 1692, o marquês de Montebelo conseguiu explicar ao rei e ao Ultramarino seus motivos para ratificar os capítulos acordados entre Souto Maior e Domin­ gos Jorge Velho. Fez um balanço da situação, mencionou que os palmaristas haviam se tornado “mais insolentes” e, diante dos vários esforços feitos pelos paulistas, justificou ser necessário aprovar o contrato para que eles pudessem saber “o que hão de lucrar” e os governadores como proceder. Nem uma pa­ lavra sobre os prisioneiros136. O governador estava confiante e as notícias eram boas, mas o Conselho Ultramarino precisava tomar uma decisão, pois eram muitas as cláusulas do contrato. O procurador da Fazenda Real e o da Coroa foram chamados a

132. Ordem de Matias de Figueiredo e Melo de 26 mar. 1689, auc, cca, vi-ni-1-1-31, fl. 472, doc. 19. 133. Carta do marquês de Montebelo de 17 ago. 1691, bnp-res, pba, Cod. 239, fls. 354-355. 134. Carta do marquês de Montebelo de 1692, bl, Add Ms 21.000, fls. 140-140V, doc. 38 135. Carta régia de 20 mar. 1692, idetn, fls. 48-48V, doc. 39. 136. Carta do marquês dc Montebelo de 5 set. 1692, idern, fls. 144V-145V, doc. 49. Ao observar que os paulistas haviam partido de “seu distrito tantas léguas de distância, corno são as que há da capita­ nia de São Paulo a Pernambuco”, este documento é mais um a colocar dúvidas sobre o ponto de origem das tropas de Domingos Jorge Velho.

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SUBORDINAÇÃO?

opinar; trataram de alguns temas importantes, mas não dos prisioneiros'37. Os conselheiros, sim: disseram que os paulistas só podiam ficar com os que eram “cativos antes de fugirem para os Palmares” e não os “que eram livres antes de irem para esta parte”, nem seus descendentes, e que era preciso considerar o que havia sido determinado pelo alvará de i682'jS. O rei anuiu prontamente, três dias depois. Ou seja: a liberdade concedida em 1678 por Aires de Sousa de Castro a Gana Zumba e sua gente ainda devia ser considerada, mesmo depois de tantos anos.

Como diferenciar os escravos fugidos de quem havia sido declarado livre em 1678 e 1682 e, depois da destruição de Cucaú, se abrigara nos Palmares? A resposta era difícil e, semanas depois, o rei voltou ao tema dos prisioneiros; determinou que a cobrança dos quintos sobre os capturados devia ser mantida, que somente as crianças até sete anos podiam permanecer em Pernambuco e que as dúvidas sobre os “cativeiros” dos aprisionados fossem julgadas suma­ riamente pelo ouvidor-geral e pelo vigário do bispado (com desempate do governador, se fosse o caso), apesar das determinações do alvará de i6821j’. Com essa decisão, expediu-se então um alvará, em 7 de abril, que confirmou várias das condições acertadas entre Domingos Jorge Velho e o governador de Pernambuco, João da Cunha Souto Maior, com alguns adendos'40. Finalmente

Lisboa tomava uma decisão. Além dessas divergências, havia ainda outras posições. Uma carta enviada em outubro de 1693 ao governador-geral do Brasil por um paulista que queria participar da guerra contra os Palmares mostra que a diferença de condição dos 137. Parecer do procurador da Fazenda [entre 5 dez. 1692 e 8 jan. 1693] e do procurador da Coroa de 14 jan. 1693, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 16, D. 1584. O primeiro observa que as sesmarias deviam ser dadas com a obrigação de serem cultivadas e o segundo que o acordo só devia ter efeito quando estivesse integralmente cumprido. 138. Parecer do Conselho Ultramarino de 7 fev. 1Ó93, idem, ibidem, e consulta do Conselho Ultrama­ rino de 7 fev. 1693, AHU_ACL_cu_Consultas de Pernambuco, Cod. 265, fls. 77V-78. 139. Resoluções régias de 9 mar. 1693 e 3 abr. 1693, AHU_ACL_cu_Consultas de Pernambuco, Cod. 265, fl. 77v. 140. Alvará de confirmação de 7 abr. 1693, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 18, D. 1746, anexo 3. A questão dos prisioneiros não foi a única tratada nessa ocasião. As determinações do alvará incluíam também a doação de sesmarias. Havia também o pagamento de ajudas de custo aos paulistas, tratado na consulta do Conselho Ultramarino de 5 mar. 1693, na resolução régia de 7 mar. 1693, e na carta régia de 8 mar. 1693, idetn, Cx. 16, D. 1595 anexo 1 e antt, Ms. do Brasil, L. 43, nücrof. 5272, fls. 514-515V. No entanto, nem a resolução régia de 3 abr. 1693, mencionada na nota anterior, nem o alvará de 7 abr. 1693 tratam do cativeiro dos prisioneiros.

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335

prisioneiros continuava a existir. Ao propor estratégias para combater os Pal­ mares de forma “independente” de Domingos Jorge Velho, sugere que todos os prisioneiros ficassem com os “conquistadores dos Palmares”, com exceção dos fugidos nos últimos cinco anos, que deviam ser devolvidos a seus senhores mediante o pagamento de 10S000 réis. Com relação às crianças, elas seriam entregues “à ordem do governador de Pernambuco”, por “pertence[re]m a Sua Majestade”1-". Mais uma vez, o ponto de vista de quem estava na colônia tendia ao pragmatismo. Neste caso, o destino dos apresados podia facilmente ser decidido levando-se em conta a idade (sendo as crianças provavelmente nascidas nos Palmares) e o tempo que haviam conseguido permanecer fugiti­ vos, tentando-se um equilíbrio entre os interesses dos senhores (que pagariam tomadias menores), dos “conquistadores” e da Coroa. A essa altura, o marquês de Montebelo estava no final de seu governo, sendo substituído emjunho de 1693 por Caetano de Melo de Castro, que logo escreveu ao rei relatando as dificuldades financeiras da capitania'42. Ponderou que os moradores estavam exauridos e que resolvera não pedir contribuições para as despesas com os paulistas na guerra contra os Palmares'43. O alvará que confirmava o contrato com Domingos Jorge Velho chegou a Pernambuco no segundo semestre de 1693,44, quando tudo parecia pronto para o grande ataque à cerca do outeiro do Barriga. Os acontecimentos se precipitaram e trouxeram novos elementos para o debate. Com as providências para a guerra tomadas e contando com a aprovação régia, Caetano de Melo de Castro preparou-se para ir pessoalmente aos Pal­

mares. Provavelmente queria colher as glórias de um triunfo militar, como seus antecessores. Antes de deixar o Recife, foi surpreendido pela notícia da vitória sobre os palmaristas'45. O triunfo foi comemorado em grande estilo. 141. Carta de 6 out. 1693, Arquivo Público do Estado da Bahia, Cartas Régias, 1696-1697, Livro 4, doc. 81. 142. Carta dc Caetano de Melo de Castro de 26 ago. 1693, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 16, D. 1619. 143. Consulta do Conselho Ultramarino de 23 nov. 1693, AHU_ACL_cu_Consultas de Pernambuco, Cod. 265, fls. 84V-85V. 144. Alvará de confirmação de 7 abr. 1693, ahu_acl_cu_0I5, Cx. 18, D. 1746, anexo 3. Esta cópia do alvará indica que ele foi registrado em diferentes livros da secretaria do governo dc Pernambuco em julho, agosto e setembro de 1693. 145. Ver carta de Caetano de Melo de Castro de 15 fev. 1694, idetn, Cx. 038, D. 3398, anexo 51. Outro que não chegou a ir aos Palmares em virtude da notícia da vitória foi Alexandre da Costa Pinto. Ver carta patente de Caetano de Melo de Castro de 23 dez. 1694, idetn, Cx. 19, D. 1884, anexo 2.

33„-•■;.■ ihSô. F-emào -Carrilho -e k-rònimc ne .Ainiiçuerçut arararan r nwaraX' Caranhum. -situado a sessenta scguas oe distancia. zazermt sessenta tsnsioneiros. entro os -onais "seu masor. Anooia >.

Já tratamos dos imbangalas e do kilombo no capítulo 3, mas é preciso reto­ mar a análise, para aprofundar o exame de alguns elementos. Como palavra

comum, o termo podia designar o acampamento das caravanas comerciais ou

os arraiais militares mais ou menos permanentes, ou ainda referir-se apenas a uma junta, união de pessoas2”. Do ponto de vista institucional, era o nome

de uma comunidade iniciática de origem ovimbundo, apropriada pelos im­ bangalas. A descrição clássica do kilombo baseia-se na de Andrew Battel, que menciona o acampamento circular cercado de paliçadas feitas de troncos que

congregava guerreiros nômades unidos por normas e rituais específicos, en­ tre eles as leis yijila e o maji a samba (que envolvia sacrifícios humanos)260. A

descrição de Cavazzi de Montecúccolo, embora com elementos díspares, lhe Schwartz, considerando que a flexibilidade do kilombo imbangala para integrar gente sem linha­ gem engajada na guerra e na autodefesa fez parte do processo de transculturação que permitiu adaptar elementos da cultura africana ao contexto crioulo afro-brasileiro. R. Anderson, “The Quilombo of Palmares”, 1996, pp. 558-565. 257. E. G. Ravenstein (ed.), The Strange Adventures of Andrew Battel of Leigh in Angola and Adjoining Regions, 1901 [1613], pp. 1-70. 258. Jan Vansina, “Quilombos on São Tome, or in Search of Original Sources”, 1996, pp. 453-454. “Jaga” é o termo utilizado pelos portugueses no século xvn para designar os imbangalas. 259. Adriano Parreira, Economia e Sociedade em Angola, 1990, p. 153. Maria Conceição Neto esclarece que a palavra, com algumas variações de significado e grafia, existe em quimbundo e umbundo. Maria Conceição Neto, op. cit., pp. 5-6. Ver também Kabengele Munanga, op. cit. 260. E. G. Ravenstein (ed.), op. cit., pp. 19-35.

3Ó4

SUBORDINAÇÃO?

serve de complemento, reforçando a violência e o poderio militar dos imban­

galas26'. Os autores são unânimes em observar que o kilomho agregava gente sem laços linhageiros, unidos pela disciplina militar, sob a liderança de um

grande guerreiro. Mas, como bem observa Joseph Miller, se o pertencimento ao kilotnbo era marcado pela observância dos rituais, alguns grupos imbangalas

também se aliaram aos ambundos, adotando parte de seus costumes262. Maria

Conceição Neto aponta uma mudança no significado do termo quilombo que acompanha esse movimento e passa não apenas a designar o arraial de guerra

dos imbangalas, mas também a “sede do poder de um jaga’“. Mais fixo, com atividades agrícolas em seu interior e uma “organização aldeã”, assimilados às

Línguas, instituições e linhagens locais, as antigas interdições do kilomho foram perdendo importância263. Este era o caso da capital dos reinos de Matamba e Kasanje, em meados do século xvn. Assim, por exemplo, segundo Cadornega,

o opulento quilombo do jaga Kasanje, era o lugar onde ele “assisti[a] [...] com seu capelão e oficiais de Milícia”, que tinha mais de quarenta léguas, abrigava

mais de trezentas mil almas e cem miljagas, e a partir do qual comerciava gran­

des quantidades de escravos e marfim264. Cavazzi e Cadornega escrevem nos anos 1680, uma conjuntura signifi­ cativa da história da África Central. Depois da batalha de Mbwila, em 1665, o reino do Kongo havia mergulhado em guerras internas e parecia não mais oferecer tanta resistência ao domínio português, embora as tropas coloniais enviadas contra o conde do Sonho em 1670 tenham sido derrotadas263. Em 1671, o reino do Ndongo fora vencido e nunca mais conseguiu se reerguer, sobretudo porque os membros sobreviventes da família real foram deportados

para o Brasil e Portugal266. No último quartel do século xvn, era especialmente

com os reinos de Matamba e Kasanje que os portugueses tinham que se haver

261. Pe. João Antonio Cavazzí de Montecúccolo, Descrição Histórica dos Tres Reinos do Congo, Matamba e Angola, 1965 [1687], livro 11, esp. pp. 191-193. 262. Verjoseph C. Miller, op. cit., 1976, esp. cap. 8. 263. Maria Conceição Neto, op. cit., pp. 10-12. 264. Antonio de Oliveira Cadornega, op. cit., t. 11, p. 217 265. Ver John K. Thornton, “Firearms, Diplomacy and Conquest in Angola: Cooperation and Alliance in West Central África, 1491-1671”, 2011, p. 186 ejan Vansina, “The Kongo Kingdom and its Neighbors”, 1992, pp. 564-566. 266. Silvia Hunold Lara, “Depois da Batalha de Pungo Andongo (1671): O Destino Atlântico dos

Príncipes do Ndongo”, 2016.

PALMARES A CUCAÚ

3Ó5

na região ao sul do reino do Kongo26’. Como vimos no capítulo 3, esses reinos haviam se formado num processo que envolvia a associação entre lideranças ambundas e imbangalas e resistiam à expansão portuguesa em direção ao inte­ rior africano. Suas capitais eram chamadas quilombos266. Já analisamos os muitos laços que conectavam as duas margens do Atlân­ tico, em especial o reino de Angola e Pernambuco. Havia grande circulação de gente ligada à administração colonial e ao comércio: cartas, pessoas e mer­ cadorias que iam e vinham, mantendo esses dois mundos em constante diálo­ go. E também soldados. Como bem mostra Luiz Felipe de Alencastro, desde meados do século xvn, tropas formadas na América portuguesa combateram

no outro lado do Atlântico: soldados dos terços dos Henriques e oficiais das Ordenanças fizeram carreira militar ou ocuparam postos nos exércitos e na administração ultramarina em Angola, antes ou depois de terem vivido no Brasil26”. É possível, portanto, que esse alargamento do significado do termo quilombo tenha ecoado em Pernambuco — sobretudo no último quartel do século xvn2’0. Foi nesse período que a palavra quilombo passou a ser usada para designar

os assentamentos nos Palmares. Mais militarizados e nucleares, eles eram di­ ferentes dos mocambos antes existentes. Concentravam força militar dentro

de suas paliçadas, eram centros de convergência de fugitivos, povoações com casas e roças que resistiam nas matas. Por isso, é bem provável que o significado dessa palavra não se refira simplesmente ao acampamento guerreiro imbangala, mas remeta às capitais dos reinos que enfrentavam o avanço português

pelos sertões centro-africanos. A coincidência cronológica combina com a observação de Thornton a respeito do medo que as populações ambundas tinham dos imbangalas na África Central, por seus costumes e pela devastação 267. Uma breve análise dessa conjuntura é oferecida por David Birmingham, Trade and Conjlict in An­ gola, 1966, pp. 123-128. Ver também Ralph Delgado, História de Angola, [1973), vol. 3, pp. 309-403. 268. Talvez essa acepção tenha marcado o significado mais recente da palavra, como “conjunto de forças militares, arraial, lugar de reunião ou sanzala de trabalhadores’’. Ver A. de Assis Junior, op. cit., verbete “kilombo”. 269. Luiz Felipe de Alencastro, “História Geral das Guerras Sul-atlânticas: O Episódio de Palmares”, 2010, pp. 61 e 71-74. 270. Em uma nota, Alencastro comenta a possibilidade de ex-governadores de Angola ou conselheiros do Ultramarino familiarizados com os eventos da África Central terem “atribuído verbalmente o nome ‘quilombo’ a Palmares”, mas considera — ao contrário do que defendo aqui — que isto não teve significado na história palmarista. Luiz Felipe de Alencastro, op. cit., 2010, pp. 90-91.

306

SUBORDINAÇÃO?

que causavam com seus ataques, que redundavam em mortes e na escravização de muitas pessoas nessa região271. Assim, é no termo português quilombo e não no kilotnbo imbangala que se pode buscar a chave para decifrar o enigma mencionado por Schwartz. A

partir da década de 1680, com a destruição do reino linhageiro que havia se

formado nos Palmares e a militarização crescente dos palmaristas, a situação no interior de Pernambuco poderia lembrar a de Angola depois da derrota do Ndongo, quando apenas os reinos de Matamba e Kasanje ofereciam maior resistência ao domínio colonial português. As correrías dos negros levantados

do Palmar no interior de Pernambuco e a liderança do “corsário” Zumbi, refratário às propostas de acordo e oponente feroz às expedições enviadas para combatê-lo, podiam lembrar aquelas promovidas pelos exércitos centro-afri-

canos que se opunham ao domínio português do outro lado do Atlântico. Trata-se de uma caracterização feita por gente que circulava pelo Atlântico ou tinha contato com o que se passava no reino de Angola. Não há como sa­

ber o modo como os próprios palmaristas designavam seus assentamentos. As

informações sobre eles, como já se observou, são raras e fragmentárias e se con­ centram nas narrativas que descrevem as expedições vitoriosas de 1678 e 1694. Somadas aos registros administrativos e militares dos anos 1680 e 1690, elas indicam uma alteração nas características políticas e militares dos Palmares que combina com mudanças na terminologia “angolana”. Especialmente na con­ juntura posterior à destruição do Barriga, havia novos significados para “qui­

lombo” que só podem ser compreendidos na conexão entre Angola e Pernam­

buco que, muito provavelmente, envolvia também os habitantes dos Palmares. Ao mesmo tempo, é preciso observar que o uso do termo para designar os

palmaristas não foi generalizado. Ao contrário. Aparece aqui e ali nas fontes e está ausente em textos importantes, como os de Sebastião da Rocha Pita e

Domingos do Loreto Couto, escritos em 1730 e 1757272. Ao longo do xvm, no entanto, ele foi se tornando hegemônico para denominar os assentamentos de escravos fugitivos273. Isso tem a ver com o medo do surgimento de novos Palmares em outras regiões da América portuguesa. 271. John K. Thornton, op. cit., 2008, pp. 784-789. 272. Sebastião da Rocha Pita, História da América Portugueza, 1730, pp. 471-486 e Domingos do Loreto Couto, op. cit., 1903 [1757], pp. 187-194. 273. Este movimento pode ter tido um paralelo na África Central, já que no início do século xvm as

PALMARES li CUCAÚ

3Ó7

Defensor de medidas extremas para conter as fugas, no início do século xvni, o governador da capitania das Minas Gerais chegou a propor o corte da perna direita dos fugitivos e sua substituição por uma de pau, para evitar a reincidência. Para ele, a repressão severa era importantíssima, pois “dela pode depender a conservação ou ruína deste país [...] porque vejo muito inclinada a negraria deste governo a termos aqui [em Minas Gerais] algo semelhante aos Palmares de Pernambuco”2’4. A medida extrema nunca chegou a ser implanta­ da. Mas ele continuou preocupado, pois considerava Palmares um “escândalo, mais prejudicial e violento que a opressão dos holandeses”275. Uma arma mais eficiente, no entanto, foi criada: o ofício de capitão-do-

-mato, gente especializada em caçar fugitivos. Ao longo do século xvn, com nomenclaturas diversas como “capitão-do-campo”, “capitão-das-entradas” ou “capitão-de-assalto”, sua designação era esporádica276. É o caso, por exemplo, de André Dias, que já havia lutado nos Palmares, e foi nomeado por Aires de Sousa de Castro “capitão-mor-de-campo da capitania das Alagoas”, em 1680. Sua atribuição era correr “o campo e mais lugares por onde tiver notícia que andam negros fugidos e levantados” para prendê-los, podendo até mesmo entrar nas casas e fazendas ou matar os que resistissem277. Função parecida desempenhou Pedro Soares, nomeado em março de 1696 para “correr o campo [na freguesia da Vargem] e prender a to­

dos os negros fugidos que achar, e trazê-los à cadeia, para daí serem entregues a seus senhores”2’8. comunidades de fugitivos na região de Angola eram denominadas mutolos ou quilombos. Ver, por exemplo, Aida Freudenthal, op. cit., p. m e Roquinaldo Ferreira, op. cit., 2014, esp. pp. 76-82. 274. Carta do conde de Assuinar de 13 jul. 1718, Revista do Arquivo Público Mineiro, 3, pp. 251-252, 1898. Ver também a carta de 20 abr. 1719, idetn, pp. 263-266. O medo do aparecimento de novos Palma­ res não foi exclusivo do conde de Assumar, estando presente na correspondência administrativa do governo das Minas Gerais em 1699, 1730 e 1746. Ver Carlos Magno Guimarães, “Mineração, Quilombos e Palmares”, 1996. 275. Segundo Assumar, Palmares não havia aceitado “em um dos governos antecedentes o partido da liberdade e inteira posse do sítio que ocupavam” para viverem em paz com “os moradores de Porto Calvo, Alagoas e outras distâncias”. Por isso, fora necessário “puxar por todas as forças do estado” para destruí-lo. Discurso Histórico e Político sobre a Sublevação que nas Minas Houve no Ano de 1720, 1994, pp. 150-151. 276. Stuart B. Schwartz, por exemplo, menciona nomeações para postos de capitães do campo, pela câmara de Salvador, desde meados do século xvn. Op. cit., 2001 [1992], pp. 223-224. 277. Carta patente de Aires de Sousa de Castro de 16 fev. 1680, ihgal, Cx. 01, Pac. 02, Doc. 02, fls. 59~59v278. Portaria de Caetano de Melo de Castro de 20 mar. 1696, auc, cca, vi-m-i-i-31, fl. 579, doc. 81.

368

SUBORDINAÇÃO?

A partir de 1715, nas Minas Gerais, por meio de regimentos específicos ex­ pedidos pelas câmaras, esse ofício passou a ser regulamentado279. E espalhou-se rapidamente pelos quatro cantos onde havia escravidão na América portugue­ sa. Os regulamentos promulgados no início do século xvni estabeleciam uma

variação nos prêmios a serem pagos pelos senhores dos escravos capturados, discriminando cuidadosamente as dificuldades enfrentadas para trazer os fu­ gitivos de volta ao domínio senhorial. O valor das tomadias dependia de os fugitivos terem sido apanhados longe ou próximo das vilas, ou em quilombos. Nesses documentos, a palavra passou a ter uma definição bem clara, significan­ do, por exemplo, uma “povoação onde estejam acima de quatro negros, com ranchos e pilões, e modo de ah se conservarem”, ou “toda a habitação de negros fugidos que passem de cinco em parte despovoada ainda que não tenham ran­

chos levantados nem nele se achem pilões”2So. Certamente, é uma acepção bem distante do tamanho e do poder dos quilombos palmaristas. A necessidade de impedir a formação de novos Palmares, de cortar a possibilidade que podia se anunciar no ajuntamento de poucas pessoas decididas a viver longe de seus se­ nhores deve ter pesado para a generalização do ofício ao longo do século xvni. A definição estrita do termo quilombo ganhou o mundo na legislação setecentista e fixou-se na historiografia, passando a designar todos os mocam­ bos dos Palmares. Do mesmo modo que um enredo narrativo sobre Palmares se firmou, também o termo quilombo se transformou em um conceito com características universais e abstratas — e tomou conta da descrição da história dos mocambos que se formaram no Brasil — e especialmente nos palmares de Pernambuco. Qualificado com um (ou vários) quilombo(s), Palmares acabou por perder sua historicidade: tornou-se exemplo de um mesmo fenômeno observável em várias regiões e períodos, produzido por escravos de diferentes procedências, em contextos demográficos, sociais e políticos os mais diversos.

Há, sem dúvida, uma história dessas palavras e de seus significados sociais e políticos que ainda está por ser feita — ela apenas começa pela etimologia e

279. Ver, a respeito, Silvia Hunold Lara, “Do Singular ao Plural”, 1996. Para uma visão mais ampla acerca da relação entre quilombos e capitães do mato em Minas Gerais no século xvm ver Donald Ramos, “O Quilombo e o Sistema Escravista em Minas Gerais do Século xvni”, 1996. 280. Regimento dos capitães-do-mato de 17 dez. 1722. Revista do Arquivo Público Mineiro, 2, pp. 389-391, 1897 e provisão de 6 mar. 1741, Silvia Hunold Lara (org.), “Legislação sobre Escravos Africanos na América Portuguesa”, 2000.

PALMARES & CUCAÚ

369

está longe de ser linear. Os dicionários podem revelar, no entanto, uma ten­

dência. O de Bluteau, de 1712-1718, não registra o vocábulo quilombo, mas o de Antônio de Moraes Silva, de 1789, o inclui, definindo-o como um subs­ tantivo “usado no Brasil” para designar “a casa sita no mato ou ermo, onde vivem os calhambolas ou escravos fugidos”. A palavra reaparece nos verbetes “mocamaos” e “mocambo”, cujos sentidos já foram mencionados281. Na docu­ mentação, ainda que mocambo continuasse a ser um termo empregado aqui e ali, a palavra quilombo foi se tornando cada vez mais frequente e, com ela, o

ofício de capitão-do-mato. Olenga, olenga, a escravidão não se acabou.

281. Antonio de Moraes Silva, op. cit., verbetes “quilombo”, “mocamaos” e “mocambo". Tudo indica que o significado da palavra quilombo no Brasil do século xvm difere do quimbundo atual, já que o Dicionário Kimbundu-português, de A. de Assis Junior, define “kilombo” como “conjunto de forças militares, arraial, lugar de reunião ou senzala de trabalhadores”.

370

SUBORDINAÇÃO?

Em 1691, quando um jesuíta italiano se ofereceu para “ir aos Palmares” e ne­ gociar com seus habitantes1, o padre Antônio Vieira foi consultado. Como vimos, em várias ocasiões desde a expulsão dos holandeses, a negociação havia

se tornado complementar às investidas militares. Durante o governo de Fran­ cisco de Brito Freire, pelo menos um acordo com os palmaristas fora tentado, sem qualquer sucesso. Depois foi a vez de dom Pedro de Almeida e Aires de Sousa de Castro: com as vitórias obtidas pelas tropas comandadas por Manuel Lopes e Fernão Carrilho, os dois governadores ajustaram a paz com Gana Zumba, em meados de 1678. O acordo envolveu diversas cláusulas e parte da gente dos mocambos se instalou na aldeia de Cucaú, até o início de 1680.

Mesmo assim a guerra não terminou. Várias expedições foram enviadas para

submeter os que permaneceram nas matas, sob a liderança de Zumbi. Com a destruição de Cucaú, as entradas se fizeram ainda mais frequentes. Dom João de Sousa ensaiou nova negociação com Zumbi, em 1682, e o insuces­

so o fez pender para o lado da guerra; chegou até a prender Fernão Carrilho por uma nova tentativa de paz com os Palmares, em 1684. A tendência foi mantida por seu sucessor, João da Cunha Souto Maior que, ao contratar Domingos Jor­ ge Velho em 1687, o proibiu de perdoar ou isentar os palmaristas do cativeiro.

Enquanto os paulistas combatiam os janduís no Rio Grande, as investidas con­

tra os Palmares prosseguiram, sem que houvesse alguma vitória significativa. 1. Como vimos no capítulo 5, trata-se do jesuíta Antônio Maria Bonucci, que pretendia “reduzir [os habitantes de Palmares] a viverem na sujeição da igreja e das leis [...] desse governo”. Carta régia de 28 jan. 1691, auc, cca, vi-m-i-1-33, fls. 181-181V, doc. 20; carta do marquês de Montebelo de 1691, bl,

Add Ms 21.000, fls. 108V-109, doc. 32.

PALMARES & CUCAÚ

371

No início da década de 1690, as despesas com a guerra continuavam a one­

rar as câmaras e os moradores sofriam com fugas coletivas e revoltas de escra­

vos, como as lideradas por Miguel Cacunda e Miguel Golajanga. Sem poder contar com as tropas paulistas, ajustar a paz parecia ser uma boa alternativa.

Chamado por um dos conselheiros do rei a opinar sobre a proposta do italia­

no, o famoso jesuíta foi contrário a qualquer acordo.

Ele considerou que um emissário, mesmo se fosse um dos “padres naturais

de Angola”, seria visto como espião dos governadores e, portanto, não teria condições de negociar. Poderia falar a língua dos Palmares e até ganhar a con­ fiança de seus habitantes mas, à menor suspeita, seria morto “com peçonha, como fazem oculta e secretissimamente uns aos outros”. Vieira sabia da pre­

dominância da gente de Angola na escravaria de Pernambuco e, portanto, nos Palmares. Parecia conhecer seus costumes e, talvez, tivesse notícia da morte

de Gana Zumba por envenenamento, cerca de dez anos antes. Julgava haver um grande risco para aquele padre, “bom de espírito e fervoroso”, mas sem

“nenhuma experiência nestas matérias”.

Em segundo lugar, Vieira observou que, “ainda que cessassem os assaltos que fazem no povoado dos portugueses”, os palmaristas nunca deixariam de receber os “de sua nação que para eles fugifssem]”. O jesuíta reconhecia existir

uma solidariedade entre os que estavam nos Palmares e os que permaneciam nas senzalas: a fuga nunca deixaria de ser uma alternativa para os escravizados,

que seriam bem acolhidos nos mocambos. Ponderou também que, “sendo re­ belados e cativos, estão e perseveram em pecado contínuo e atual”. Só pode­

ríam ser absolvidos se voltassem “ao serviço e obediência de seus senhores, o que de nenhum modo hão de fazer”. Ou seja: ele sabia bem que escravos que se levantavam contra seus senhores e fugiam para os matos não costumavam

voltar atrás. Por isso, concluía: [...] só um meio havia eficaz e efetivo para verdadeiramente se reduzirem, que era concedendo-lhe Sua Majestade e todos seus senhores, espontânea, liberal e segura liberdade, vivendo naqueles sítios como os outros índios e gentios livres e que então os padres fossem seus párocos e os doutrinassem como os demais1.

2. Carta de Antônio Vieira de zjul. 1691. João Lúcio de Azevedo (ed.), Antônio Kieira, 1970, vol. 3, p. 639.

372

LIÇÕES

Como se vê, mais de dez anos depois, os ecos do acordo de 1678 ainda se faziam ouvir. Para enfrentar mocambos fortes como os de Palmares, o jesuíta,

fiel ao programa de sua ordem, considerava a possibilidade de transformá-los

em uma aldeia de “índios e gentios livres” sob a tutela de missionários. Como bem lembra Ronaldo Vainfas ao analisar este parecer de Vieira, tratava-se de dar um “salto da rebelião à missionação” e de converter Palmares em algo

próximo do “cenário exemplar do projeto escravista cristão” da Companhia

de Jesus, que aliava cristianização e liberdade3. De fato, o ajuste efetivado em 1678 envolvia libertar os que se estabelecessem na aldeia de Cucaú, onde pa­

dres oratorianos se encarregariam de sua evangelização.

Contudo, para Vieira, tal transformação era impraticável. O motivo não era apenas o fato de o projeto jesuíta considerar que os negros só como escra­

vos poderíam ser catequizados, como afirma Vainfas. Não se tratava de sim­ plesmente opor índios livres e africanos escravizados; de fato, a liberdade e a

escravidão de uns e outros implicavam estratégias de conversão e cristianização diferentes, na América ou na África. Contudo, em 1678, as autoridades colo­ niais julgaram ser possível conjugar políticas de domínio praticadas nas duas

margens do Atlântico para reduzir os “negros levantados” à obediência. Por

isso mesmo, a alternativa aventada por Vieira merece ser examinada com vagar. Ao considerar que os palmaristas podiam ser tratados como os índios, o

jesuíta calou um tema que havia sido sua grande preocupação desde os anos 1650 e 1660, quando esteve no Maranhão: a necessária associação entre o go­

verno espiritual e temporal dos aldeados. Ou seja: para ele, os padres deviam encarregar-se não apenas da conversão e da vida cristã dos índios, mas também de distribuir e controlar seu trabalho nas aldeias e, especialmente, nas casas e

fazendas dos colonos. Em seus sermões e em sua atuação na Corte portuguesa, lutara para que os jesuítas ficassem incumbidos destes dois lados da administra­

ção dos aldeamentos4. Ao mencionar a “liberal e segura liberdade” a ser con­ cedida aos fugitivos, Vieira deixava implícito o lado temporal das missões. O

procedimento contrasta com a cláusula do acordo de 1678 que isentou os que

3. Ronaldo Vainfas, “Deus contra Palmares”, 1996, p. 78. 4. Ver, a respeito, Dauril Alden, “Some Reflections on Antonio Vieira: Seventeenth-century Troubleshooter and Troublemaker”, 2003; Mathias Kiemen, The Indian Policy of Portugal in the Amazon Region, 1614-1693, 1954, cap. 4 e Camila Loureiro Dias, L’Amazotiie avant Pombal, 2005, esp. pp. 104-118.

PALMARES & CUCAÚ

373

fossem para Cucaú da obrigação de qualquer “trabalho particular”. A liber­

dade, nesse caso, não significava apenas uma condição jurídica, mas também autonomia econômica, pois em Cucaú, os palmaristas poderíam “plantar [...]

e te[r] os mesmos lucros que têm os mais vassalos” do monarca português. Eram, portanto, muito diferentes dos “outros índios e gentios livres” que vi­ viam nas missões. Razão diversa deve ter lhe parecido mais fundamental e foi explicitada de

modo contundente e inequívoco. A hipótese de aldear os palmaristas signi­ ficava aceitar a fuga e os mocambos como meios legítimos para obtenção da liberdade — seja ela jurídica ou econômica. A conclusão de Vieira foi bastante

clara. Disse ele que, conceder

[...] esta mesma liberdade assim considerada seria a total destruição do Brasil, porque conhecendo os demais negros que por este meio tinham conseguido o ficar livres, cada cidade, cada vila, cada lugar, cada engenho, seriam logo outros tantos Palmares, fugindo e passando-se aos matos com todo o seu cabedal, que não é outro mais que o próprio corpo5. As ponderações do jesuíta desvendam os limites e os impasses vividos em

diversas ocasiões e, especialmente em 1678, pelas autoridades coloniais. Des­

de a tentativa de Brito Freire, acordar a paz implicava mais do que estabele­

cer uma aldeia, uma missão. Em 1663, o governador de Pernambuco havia oferecido aos “negros dos mocambos”, além de terras para roças e aldeias, a liberdade para “os pais” e para as “crias de toda a sua descendência”6. As

mesmas concessões foram incluídas no acordo de 1678, que previa também a isenção de trabalhos obrigatórios e medidas mais pontuais (como devolver

alguns dos prisioneiros ou alforriar pessoas específicas), em troca da “obe­ diência”, da restituição de fugitivos e da colaboração militar para submeter os renitentes. Como vimos, todas estas cláusulas situavam-se na confluência

de várias práticas que envolviam as políticas do domínio colonial nas duas margens do Atlântico português. Ao combinar a gramática dos tratados de

vassalagem centro-africanos com a política indigenista colonial para “reduzir” os negros levantados que habitavam as matas de Pernambuco, os governadores 5. Carta de Antônio Vieira de 2jul. 1691. João L. Azevedo (ed.), op. rir., vol. 3, p. 639. 6. Edital de Francisco de Brito Freire de 6 dez. 1662, auc, CCA, vi-m-i-I-31, fls. 86V-87, doc. 123.

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LIÇÕES

haviam de certo modo reconhecido a fuga e os mocambos como via de acesso

à liberdade, tanto para os que haviam fugido quanto para seus descendentes. Este reconhecimento foi objeto de vários debates em Lisboa, mas acabou sen­ do mantido e reforçado com a promulgação do alvará de 1682. Como resulta­ do, a Coroa portuguesa e seus representantes haviam inscrito a possibilidade concreta de muitos Palmares em cada canto onde houvesse escravos. A preocupação não era nova. Em 1654, ao discutir a liberdade concedi­

da aos escravos alistados no terço dos Henriques, o Conselho Ultramarino já havia ponderado que esta não devia ser uma política permanente, pois “seria

dar a Henrique Dias todos os negros do Brasil”, que deixariam de servir a seus

senhores, colocando em risco “a lavoura e povoação” daquelas terras. Por isso recomendou que, com a “permissão de seus donos” e mediante indenização, somente os já engajados nas tropas de Henrique Dias pudessem ficar livres7.

Este quadro mais geral, presente nos debates que se seguiram ao acordo de

1678, pode ter servido de pano de fundo para a avaliação de Vieira. Como tantos outros, ele também associava o domínio senhorial ao colonial: segundo ele, a possibilidade de muitos Palmares significava “a total destruição do Bra­ sil". Escravos levantados precisavam ser novamente colocados “ao serviço [...]

de seus senhores” e na “obediência” ao monarca português. O padre Antônio

da Silva já havia observado algo semelhante em 1678, ao elogiar dom Pedro de

Almeida por ter conseguido acabar com duas “monstruosidades indignas de se publicarem no mundo”: negros cativos que se levantavam contra o domínio

“das melhores capitanias de Pernambuco” e escravos que queriam dominar seus “próprios senhores”8. Como se vê, esses homens sabiam bem que o con­

trole sobre as terras e gentes nas áreas coloniais estava diretamente ligado à manutenção do poder senhorial sobre os escravos. O que fazer, no entanto, quando a rebelião escrava se mostrava difícil de

ser vencida? Por mais que o padre Antônio da Silva tenha se esforçado para enaltecer a vitória obtida contra os Palmares em 1677-1678, os mocambos não

haviam sido, de fato, derrotados. O acordo de 1678 tentou conjugar experiên­ cias bem-sucedidas nos dois lados do Atlântico português e em outras partes 7. Consulta do Conselho Ultramarino de 12 out. 1657, ahu_acl_cu, Consulta de Partes, Cod. 46, fls. 78V-79V 8. Padre Antônio da Silva, “Relação da Ruína dos Palmares”, em Silvia Hunold Lara e Phablo Ro­ berto Marchis Fachin (orgs.), Guerra Contra Palmares, 2021, p. 30.

PALMARES H CUCAÚ

375

coloniais para domar a desobediência escrava. Envolveu, como observou Viei­ ra em seu parecer, concessões do monarca português e dos senhores pernam­

bucanos. Mas fracassou. De todas as cláusulas ajustadas naquela ocasião, a mais problemática e a que mais perdurou foi sem dúvida a da liberdade concedida aos filhos dos palmaristas. Ela era uma novidade em relação aos tratados de vassalagem cen-

tro-africanos, que não punham em causa a liberdade ou o cativeiro dos que to­ mavam parte das negociações nem de seus descendentes, embora envolvessem

a escravização de muita gente. O tema também não aparecia diretamente no âmbito da política indigenista, que foi quase unânime em afirmar a liberdade

dos índios, mesmo ao abrir brechas para sua escravização. Mas esteve poten­

cialmente presente em 1663 e se concretizou em 1678. Para submeter escravos

rebeldes seria necessário renunciar a um dos pilares da escravidão moderna, que tornava cativos os filhos das escravas?

Ainda que as notícias não tenham chegado a Pernambuco, a alternativa

da concessão de uma liberdade tão estendida havia se mostrado viável na re­ gião de Vera Cruz, com a criação do pueblo de San Lorenzo de los Negros na

primeira metade do século xvn. A aldeia de Cucaú não foi “o caricato anti-Palmares”, como afirmou Décio Freitas, mas um meio “esperançosamente

inventado pelas autoridades coloniais” (retomando as palavras do mesmo au­ tor, com outro sentido) para domar a rebeldia escrava e restaurar o domínio

senhorial e colonial. A derrocada de Cucaú e a predominância da guerra como caminho para

restabelecer o poder dos senhores sobre os escravizados não significou uma solução imediata para o dilema. Especialmente porque as tropas senhoriais e

coloniais não conseguiam derrotar definitivamente os Palmares. Por isso, a liberdade concedida aos palmaristas continuou pendente mesmo depois do al­ vará de 1682 e sempre vinha à tona a cada leva de prisioneiros que chegava ao

Recife. Com o tempo e a insistência de Domingos Jorge Velho em fazer valer os termos de seu contrato, a alforria concedida aos amocambados e a seus filhos

desapareceu. Todos os fugitivos aprisionados passaram a ser considerados es­ cravos. Enquanto Palmares resistiu, porém, os problemas e dilemas persistiram.

O fracasso inicial das tropas paulistas foi logo compensado por um esforço militar em larga escala que, finalmente, arrasou a fortaleza do Barriga. Em seguida, o modo de lidar com os fugitivos mudou. Uma política alternativa

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LIÇÕES

à guerra, baseada na ação de gente especializada na captura dos que queriam escapar da escravidão, foi regulamentada e se generalizou por todos os lados. Os capitães-do-mato passaram, então, a fazer parte constante da história e

do cotidiano do escravismo no Brasil. Seu objetivo era caçar os fugitivos e

devolvê-los a seus senhores antes que formassem mocambos e quilombos, que passaram a ser definidos a partir de um pequeno contingente de pessoas com

disposição de permanecer longe do cativeiro. Evidentemente, as fugas con­ tinuaram e a história registra grandes e duradouros quilombos em períodos

posteriores. Mas as autoridades coloniais haviam aprendido a lição, tratando de criar estratégias para impedir a existência de novos Palmares.

Há, entretanto, um problema na avaliação de Vieira. Ele pode ter sido

sagaz ao avaliar os limites da política de negociação com os mocambos, mas

seu olhar para os que fugiam para os matos é um tanto restrito. Ele os reco­ nhecia como gente vinda de Angola e como escravos, mas não como sujeitos políticos. Ao fugir, levavam consigo bem mais “que o próprio corpo”: eram homens e mulheres inspirados por uma cultura política que fazia parte do

mundo de onde eles, seus parentes e antepassados, tinham sido tirados à força. Majoritariamente centro-africanos, falantes do quimbundo, haviam aprendi­ do a lidar com o domínio senhorial e colonial na outra margem do Atlântico

e certamente usaram esse conhecimento para enfrentar a escravidão nas casas e nos engenhos pernambucanos. E também para fugir. A vida que construí­ ram nos palmares de Pernambuco e o modo como lutaram e negociaram para

defendê-la foram desenhados por idéias e valores que haviam trazido consigo

ou aprendido com seus pais. O parecer de Vieira serve de guia para pensar as políticas senhoriais e co­ loniais, mas só elas não contam toda a história. Outras lógicas também esta­ vam em ação no acerto feito em 1678. Enfraquecido pela grande quantidade de mortes e de prisioneiros, com a rede de mocambos destruída e a liderança linhageira esgarçada, Gana Zumba negociou a paz para tentar salvar sua li­

nhagem e seus súditos da destruição completa. Como outras lideranças cen-

tro-africanas em situações semelhantes, aceitou devolver fugitivos e dar ajuda militar para submeter os recalcitrantes em troca do reconhecimento de sua au­

toridade e de terras onde pudesse viver com sua gente, em Cucaú. A liberdade concedida aos nascidos nos Palmares reafirmava sua jurisdição sobre um ter­

ritório que era e continuaria a ser, de certo modo, autônomo (embora vassalo

PALMARES & CUCAÚ

377

de Portugal). Também é provável que, como muitos sobas centro-africanos, ele tenha procurado alianças para solidificar seu poder e fazê-lo reconhecido

e respeitado por seus “vizinhos”. As duas possibilidades não são excludentes e o medo dos administradores coloniais em deixar que os príncipes do Ndongo

ficassem no Brasil indica que elas, de alguma forma, também foram aventadas

pelas autoridades coloniais no século xvn. Cucaú parece ter constituído também um caminho alternativo para mui­ tos dos habitantes dos Palmares: uma forma de obter liberdade, terra para trabalhar e segurança para sobreviver e crescer. Esses elementos podem ter

sido importantes para aqueles que haviam experimentado o tráfico atlânti­ co e a escravidão nas fazendas, casas, currais e nos engenhos pernambucanos. Significavam a possibilidade de uma nova vida para si e seus filhos, fora do

escravismo e sem as ameaças da (re)escravização. Inspirados por seus valores e tradições, conjugavam políticas que mostravam haver uma chance de ir além

da sobreviência, reconstruindo todo um mundo que parecia perdido diante dos ataques de 1677-1678. Por isso mesmo, o reduto de homens e mulheres que haviam conquistado a liberdade depois de tantas guerras representava uma ameaça para os senhores de engenho pernambucanos.

Os dissidentes que recusaram o acordo e optaram por permanecer nos matos também mobilizavam a sintaxe política centro-africana. Internando-se sertão adentro com sua gente, Zumbi fez avançar a fronteira dos Palmares. Com o fracasso do acerto feito em 1678 e a destruição de Cucaú, a partir dos

anos 1680, a cerca do Barriga passou a ser referência e refúgio para os fugiti­ vos. Depois que ela foi destruída, em 1694, os palmaristas espalharam-se por

uma vasta região, agrupados em mocambos e quilombos, realizando correrías

e resistindo às investidas das tropas coloniais. Seja por juntarem mais “gente de guerra” ou por serem forçados pelos constantes ataques sofridos, adotaram uma estrutura mais militarizada. Já não havia uma rede de mocambos gover­

nada por uma patenteia linhageira, mas sim núcleos relativamente indepen­ dentes, com lideranças políticas e bélicas capazes de combater, lutar, resistir. A

alternativa seguida por Gana Zumba em 1678 não era mais possível; os tempos eram outros.

Impensável na avaliação de Vieira, a política palmarista diante da possibili­

dade de um acordo de paz se descortina de modo evidente quando se examina com vagar os acontecimentos. Ao colocar no centro da análise os documentos

378

LIÇÕES

que registram as negociações entre Gana Zumba e o governo de Pernambuco

e seus desdobramentos, pode-se chegar a uma nova compreensão da história

dos Palmares. Ela difere da oferecida pela maior parte historiografia que, a partir da segunda metade do século xx, tendeu a apreender Palmares como

um fenômeno auto-evidente, cujo sentido libertário tornou-se praticamente inquestionável, apoiado em eventos apresentados numa sequência cronológica única e linear. Como vimos ao longo deste livro, Palmares viveu conjunturas diversas e suas características demográficas, territoriais e políticas variaram

ao longo do tempo. O acordo de paz, em todas suas dimensões, só pode ser

entendido quando situado num contexto específico, que foi avaliado de forma diversa pela linhagem governante dos mocambos, pela “gente de guerra” lide­

rada por Zumbi, e pelas autoridades coloniais em Pernambuco e em Lisboa. Realizada como exercício de análise e interpretação de fontes desprezadas

pela historiografia, essa história retira Palmares do isolamento e lhe confere

historicidade. Em muitos sentidos. Seguir a documentação de perto impli­ cou detectar variações no tempo e lidar com diferentes avaliações das fugas e dos agrupamentos de fugitivos que se instalaram nas matas de Pernam­

buco. Moradores, soldados, autoridades coloniais e metropolitanas tinham

concepções, prioridades e estratégias nem sempre convergentes - e talvez tais desentendimentos, lá e cá, possam ter pesado na enorme dificuldade em

“vencer” os Palmares. Tais divergências não diziam respeito apenas à destruição dos mocambos, mas tocavam em aspectos importantes da própria continuidade da escravidão

em terras coloniais. Os debates podem ser acompanhados em diversos níveis da administração colonial, como no caso da discussão sobre a melhor política a

ser adotada em relação aos Palmares. Fazer a guerra ou negociar a paz? Cobrar os quintos da Coroa ou deixar os prisioneiros com os soldados? Respeitar o domínio senhorial ou obrigar os donos a vender os capturados para outras ca­

pitanias? A resposta a cada uma destas perguntas dependia de uma avaliação do

jogo de forças em cada momento, mas também do impacto que a decisão podia ter sobre os outros escravos. Ou seja: o modo como lidassem com a “insolência

dos negros” impactava a manutenção do domínio escravista. E vice-versa.

Para compreender tal conexão foi necessário levar em conta as relações que se estabeleceram nas sociedades coloniais e entre as duas margens do Atlân­

tico. De modos diferentes e por caminhos variados, experiências diversas cru-

PALMARES tc CUCAÚ

379

zaram os mares e os matos. O circuito colonial não foi percorrido apenas pelos

europeus, nem suas vontades e interesses foram os únicos. Os centro-africanos

possuíam uma sintaxe política que informou o modo como lidaram com os portugueses e outros europeus que se estabeleceram na África e foi aprimorada

no contato com eles. Os que foram forçados a sair de Angola para o Brasil — e para Pernambuco — trouxeram consigo essa cultura política e a empregaram no Novo Mundo, para sobreviver como escravos, fugir e viver nos palmares.

A história contada aqui mostra que essas experiências constituíram, para os diversos grupos em confronto, um aprendizado: um processo lento e cer­

tamente não linear em que sujeitos históricos informados por tradições e

interesses díspares se enfrentaram, testando possibilidades e alternativas. O contexto social e institucional em que foram escritos o “papel” que registra o

acordo de paz e as cartas trocadas entre Gana Zumba, Gana Zona e o governa­ dor de Pernambuco, em 1678, fornece bons indícios para avaliar as condições

de diálogo entre homens tão diferentes e tão desiguais. Eles indicam que, na­

quelas circunstâncias, Palmares pôde ser reconhecido e tratado pelas autorida­ des coloniais como outro poder, como um estado. Tal percepção deriva tanto

das avaliações nem sempre convergentes do lado senhorial e administrativo,

quanto do modo como os habitantes dos mocambos resistiram às expedições militares e se organizaram para viver, longe da escravidão. A historiografia tende a tratar o exercício da dominação a partir de uma

lógica binária, sem dar tanta atenção aos gestos e valores contraditórios dos

vários grupos em confronto’. No caso da história da escravidão, e dos Palma­

res em particular, o mundo dos escravos e dos fugitivos tem sido relativamente

pouco investigado. Por isso, recuperar abordagens que estavam um tanto es­

quecidas e colocá-las em contato com a produção mais recente sobre a história dos centro-africanos no século xvn foi essencial para iluminar as pistas forne­

cidas pela documentação e compreender a lógica das escolhas e os objetivos dos que habitavam os mocambos, seguiram para Cucaú ou permaneceram nas

9. Um exemplo de como uma abordagem sistêmica, na qual a ação dos homens cede lugar a forças abstratas e genéricas para a construção de explicações mais lógicas que históricas a respeito de Palmares, pode ser encontrado em Rafael de Bivar Marquese, “A Dinâmica da Escravidão no Bra­ sil. Resistência, Tráfico Negreiro e Alforrias, Séculos xvn e xvm”, 2006. Uma primeira resposta contudente ao seu argumento foi feita por Flávio S. Gomes e Roquinaldo Ferreira, “A Miragem da Miscigenação”, 2008.

38o

LIÇÕES

matas. Hoje podemos saber bem mais sobre os processos de escravização e o tráfico negreiro que forçou homens e mulheres a trabalhar como escravos em

Pernambuco. Conhecendo melhor os que foram pegos pela “onda angolana” que atravessou o Atlântico naquele período, também se consegue entender melhor os valores e modos de ver o mundo que orientavam os fugitivos que se instalaram nas matas pernambucanas.

Certamente a documentação traz o ponto de vista da administração colo­ nial, dos que lutaram contra Palmares e dos cronistas que enalteciam os feitos

de ambos. Aqui e ali aparecem menções a dissidências, a gente que convi­ via com os habitantes dos mocambos ou os avisava da proximidade de no­

vos ataques. As descrições da vida no interior das cercas são raras, mas alguns

procedimentos analíticos tornam possível compreender o ponto de vista dos habitantes dos Palmares. Acompanhar o vai e vem dos textos e das palavras,

esclarecer o contexto em que foram produzidos e recuperar a multiplicidade de vozes neles registrada permitem colher um olhar sobre o outro, em contex­

tos e situações específicos. Iluminados por perspectivas historiográficas mais antigas ou recentes, que levam em conta as características demográficas, sociais

e políticas do enorme contingente de centro-africanos escravizados em Per­ nambuco, esses indícios ganham vida.

Ao mesmo tempo, prestar atenção a tantos detalhes impediu que os cos­

tumes e as práticas palmaristas fossem tomados como uma cultura estática,

descrita por qualquer um, em qualquer tempo. Olhando por cima do ombro de soldados, das autoridades coloniais e de seus cronistas, pode-se entender o que eles pensavam sobre Palmares e sua gente, em cada momento. Do mesmo

modo, suas descrições e avaliações abrem caminho para conhecer o mundo dos habitantes dos mocambos em diferentes circunstâncias e períodos. Torna-se

possível, assim, perceber mudanças — uma das almas da história. Palmares passou por várias conjunturas, organizou-se de modos variados,

deslocou-se no espaço. No final dos anos 1670, governadores, ouvidores, pro­ vedores e soldados sabiam onde estavam localizados, quem eram seus habi­ tantes e quais as relações políticas e sociais que ligavam Gana Zumba, Gana

Zona, Aca Inene, Gone, Zambi, laca Inene, Tuculo, Andalaquituxe, Osenga,

Dambiabanga, Anajuba, Pacassa e Gana Muisa. A liderança política e militar

dos que continuaram a resistir na cerca do Barriga, chefiados por Zumbi, e nos mocambos e quilombos que, nas décadas seguintes, se espalharam pela região,

PALMARES & CUCAÚ

38i

nunca deixou de ser temida e respeitada. Seus nomes também eram conheci­ dos: Gandu, Camuanga, Cabanga, Gana Solomin, Zangui, Quissama, Pedro

Capacassa, Quiloange, Mouza e Nambiasuna. Havia ainda outras lideranças

importantes, que não sabemos se estavam ou não ligadas aos Palmares, como Miguel Golajanga e Miguel Cacunda. Muitos não deixaram vestígio nas fon­

tes, mas certamente estavam lá: lutando, vivendo e sobrevivendo de diversos

modos e maneiras. A potência das raízes centro-africanas dos Palmares e o vigor de seus líde­ res atravessaram os séculos. Escrevendo em meados do século xvni, Domingos

do Loreto Couto destaca, dentre os “homens pretos” pernambucanos “valo­

rosos”, dom Pedro de Sousa Castro Ganasona, “filho de Ganazumba” e “Brás

de Sousa Castro, irmão de Gangasona”, que teriam combatido os “negros re­ belados” ,0. Mesmo incorporados às tropas coloniais, esses soldados palmaristas

preservaram seus nomes centro-africanos junto com os que receberam ao se­ rem batizados. Como tantos outros que haviam ido para Cucaú ou permane­

cido nos matos, não parecem ter abandonado os ensinamentos de seus parentes

e antepassados. São por estes nomes centro-africanos — e não pelos apelidos cristãos que algum dia, como escravos, tiveram — que todos eles se fizeram

lembrar. Ainda que possa haver dúvida acerca da grafia e do que significam,

são estes os nomes pelos quais eram conhecidos por seus companheiros e fo­ ram registrados nas fontes. E permanecem na história até hoje.

O modo como esses homens e mulheres viveram e os caminhos que se­ guiram para enfrentar a escravização e a escravidão também atravessaram os

séculos e ecoam em todos nós. As marcas que deixaram na história certamente podem nos ensinar muitas maneiras de enfrentar a dominação. Barriga não acabou!

10. Domingos do Loreto Couto, Desagravosdo Brasil e Glórias de Pernambuco, 1903 [1757], p. 107.

382

LIÇÕES

Notas Explicativas

1. Sobre a Documentação A documentação utilizada neste livro é formada por diversos tipos de textos, produzidos em diferentes instâncias da administração colonial, que têm carac­

terísticas e nomes específicos. A correspondência administrativa entre Pernambuco e o monarca por­

tuguês é constituída por cartas e requerimentos de várias autoridades (o go­

vernador, o provedor da Fazenda, as câmaras) que seguem para Lisboa e são analisadas primeiramente pelo Conselho Ultramarino (criado em 1642). Os

conselheiros podem pedir pareceres para outros órgãos metropolitanos (como a Provedoria da Fazenda Real, a Procuradoria da Coroa) e pessoas, ou solicitar

mais informações ao próprio governo de Pernambuco ou ao governo geral do Brasil. Depois de discutir o assunto, os conselheiros redigem uma consulta:

um parecer circunstanciado enviado ao soberano com sugestões para que ele

possa tomar uma decisão. Com base nela, o monarca emite uma resolução régia determinando o que deve ser feito a respeito do assunto. Suas ordens podem dar origem a vários tipos de documentos emitidos pelo próprio Conselho Ultramarino ou pelo monarca. Os do Conselho, em geral, tomam a forma de

provisões, passadas em nome do monarca e assinadas pelos conselheiros. Outras vezes o próprio soberano dirige-se ao governo de Pernambuco ou do Estado

do Brasil por meio de uma carta régia, na qual descreve suas determinações. Essas cartas têm força de lei, assim como os alvarás eprovisões assinados por ele. Toda essa documentação encontra-se depositada em vários fundos do Arquivo

Histórico Ultramarino, que ainda guardam conjuntos complementares, pro-

PALMARES & CUCAÚ

383

duzidos pelas instâncias administrativas que se encarregavam do governo das colônias. São fontes que fornecem diversas versões sobre os acontecimentos em Pernambuco, registrando diferenças de avaliação entre as instâncias admi­

nistrativas e entre as autoridades coloniais e metropolitanas. O governo de Pernambuco também pode consultar o Conselho da capi­ tania (que geralmente reúne o provedor da Fazenda Real e o ouvidor-geral da capitania, mas tem existência menos formal que o Conselho Ultramarino) e emite suas determinações por meio de cartas, ordens e provisões enviadas às

autoridades que devem executá-las. Os bandos contêm determinações gerais, destinadas a todos os moradores. O governador mantém correspondência ainda com o governo-geral do Estado do Brasil, sediado na Bahia, e com au­

toridades subordinadas nas capitanias sob sua jurisdição, como os ouvidores, provedores, comandantes das tropas e as câmaras. Esse conjunto de fontes está disperso em várias instituições, podendo-se encontrar originais ou cópias deles

em acervos portugueses (como a Seção de Reservados da Biblioteca Nacional

de Portugal, no Arquivo da Universidade de Coimbra), brasileiros (Arquivo Nacional, Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional), ou ainda nos arqui­

vos estaduais de Pernambuco e da Bahia. Trata-se de uma documentação que,

por circular entre autoridades que vivem na colônia, geralmente fornece mais

detalhes sobre os acontecimentos — ao mesmo tempo que permite avaliar ou­ tros pontos de vista sobre eles. Ainda mais próximos do cotidiano colonial são os documentos produ­

zidos pelas câmaras, que incluem tanto os termos de vereação (que registram as decisões tomadas pelos vereadores), como sua correspondência com diversas

autoridades, coloniais ou metropolitanas. No caso de Pernambuco, pouca coi­ sa sobreviveu, mas há um livro da câmara da vila de Santa Maria Madalena da

Lagoa do Sul (Alagoas do Sul) do período entre 1666 a 1681 que está guardado

no Instituto Histórico, Geográfico e Arqueológico de Alagoas. Vias ou cópias das cartas expedidas pelas câmaras podem ser encontradas nos acervos dos

órgãos e instituições para as quais foram enviadas. A administração metropolitana cuida ainda da nomeação de pessoas para

postos militares, administrativos ou judiciais que atuam na área colonial. Isso

é feito por meio de editais e da análise das qualificações dos candidatos que se apresentam. Muitos soldados que lutaram em Palmares concorreram a esses postos, sobretudo os militares, e seus feitos aparecem registrados nas consultas.

384

NOTAS EXPLICATIVAS

Relatos breves ou mais extensos das expedições contra Palmares também estão

incluídos nos pedidos em que comandantes ou soldados tomam a iniciativa de

pedir mercês (títulos, tenças, terras) ao monarca, como retribuição pelos servi­ ços prestados. Geralmente são requerimentos acompanhados por certidões, infor­

mações ou folhas corridas dos serviços prestados (fés de ofício). Nos dois casos, os conselheiros do Ultramarino emitem um parecer circunstanciado, sugerindo

a nomeação de alguém ou a concessão dos benefícios, por meio de uma constdta, havendo em seguida a resolução régia. Algumas das decisões do monarca,

no caso de certos postos ou concessões, demandam registros na Chancelaria Régia ou confirmações por outros tribunais, como a Mesa da Consciência e

Ordens (para a concessão de hábitos das ordens militares, por exemplo). Os

documentos emitidos pelo Ultramarino estão depositados no Arquivo Histó­ rico Ultramarino e os registros da Chancelaria (e Registro Geral de Mercês), bem como os dois outros tribunais e órgãos da administração central estão no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Esse é um conjunto documental

volumoso, mas um pouco repetitivo, pois as narrativas reiteram as mesmas

informações, criando uma memória selecionada dos acontecimentos que são referidos a partir de algumas características consideradas importantes, como

o comandante da expedição, a qualidade do prisioneiro capturado ou as cir­

cunstâncias de uma batalha. Apesar disso, essas fontes podem oferecer detalhes

interessantes sobre as expedições, com descrições dos mocambos e seus habi­ tantes — especialmente quando as trajetórias dos soldados foram comprovadas

por certidões efés de ofício (documentos emitidos pelos comandantes atestando os

serviços prestados, algumas vezes redigidas poucos dias depois de uma batalha, outras anos depois).

Além da correspondência administrativa e da produção textual gerada pela governança colonial, há ainda um terceiro tipo de documento importante para

a história dos Palmares, constituído por narrativas (também chamadas relações), memórias e histórias. São textos elaborados por padres, governadores e mili­

tares, entre outros, que descrevem a formação dos mocambos e suas caracte­ rísticas ou certos eventos (uma batalha ou acontecimentos ocorridos durante certo tempo) a fim de justificar atos e propostas ou enaltecer alguém. Escritos por gente direta ou indiretamente envolvida com as forças e os interesses em

jogo em momentos diversos da história dos mocambos, podem ter circulado

sob a forma de manuscritos ou foram publicadas até meados do século xvm.

PALMARES & CUCAÚ

385

Obras raras, estão geralmente guardadas em sessões especializadas de grandes e antigas bibliotecas portuguesas (principalmente na Nacional e na da Ajuda)

e brasileiras (a Nacional e a do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, por

exemplo). Além desses principais tipos documentais, as fontes para a história dos Palmares incluem uma variedade de textos complementares. Há pareceres, cartas e outros papéis escritos pelos administradores coloniais ou membros da Corte portuguesa sobre tópicos específicos, que estão guardados no Arquivo

Nacional da Torre do Tombo ou na Biblioteca da Ajuda; sermões proferidos em missas solenes rezadas pelas vitórias alcançadas (como os pertencentes à

Seção de Reservados da Biblioteca Nacional de Portugal). A lista de Fontes Manuscritas referencia com detalhes todos esses conjun­ tos documentais, organizando-os por instituição. Como já observei, tendo em

vista variados problemas na transcrição dos documentos publicados, preferi ler, citar e referenciar os manuscritos originais ou as cópias mais próximas

do período em que foram produzidos, nos séculos xvn e xvm. A Base de Da­ dos Documenta Palmares (acessível em https://www.palmares.ifch.unicamp. br/) permite ler os originais de todas as fontes sobre Palmares mencionadas nas notas e muitas outras localizadas durante a pesquisa, acompanhadas pelas

principais transcrições publicadas ao longo dos séculos xix e xx, e por uma

transcrição com grafia atualizada de cada texto.

2. Sobre a “Relação” de 1678 A “Relação das Guerras Feitas aos Palmares de Pernambuco no Tempo do Go­ vernador Dom Pedro de Almeida de 1675 a 1678” é um dos textos mais usados

pela bibliografia sobre Palmares. O documento é conhecido pelo título que lhe foi atribuído pelo conselheiro Drummond, responsável por sua primeira

divulgação nas páginas da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em

1859'. A publicação não traz nenhuma referência sobre o original consultado

por ele nem qualquer outra informação sobre o texto e sua transcrição. Até

1. “Relação das Guerras Feitas aos Palmares de Pernambuco no Tempo do Governador Dom Pedro de Almeida de 1675 a 1678 (M. S. Offerecido pelo Exm. Sr. Conselheiro Drummond)”, 1859.

386

NOTAS EXPLICATIVAS

meados do século xx, no entanto, alguns autores que se dedicaram à história dos Palmares mencionaram que o documento estava depositado na Torre do Tombo, em Lisboa, havendo ainda uma cópia na Biblioteca Nacional, no Rio

de Janeiro2. De fato, a Seção de Manuscritos dessa última instituição guarda uma cópia

da “Relação”, que integra um códice que compila diversas transcrições de do­ cumentos da Torre do Tombo3. A letra cursiva e o papel indicam ter sido feita

provavelmente a partir de meados do século xix ou início do xx, sem que se

possa ter qualquer certeza sobre os motivos e as condições em que foi produ­ zida. O título é bem diferente do que foi publicado pelo conselheiro Drum-

mond, assim como algumas palavras e expressões, sugerindo não ter sido essa a base documental utilizada para a edição de 1859. Ao final, há uma referência

que diz: “Tomo primeiro de Papéis Vários de folhas 149 até 155 verso existente

no Armário dos Manuscritos do Real Archivo da Torre do Tombo”.

A indicação é antiga e a Torre do Tombo não possui registro dos rearranjos topográficos de seu acervo para facilitar a localização do documento, o

que obrigou a uma pesquisa longa e exaustiva em vários catálogos e fundos.

Finalmente, um códice que reúne diversos manuscritos dos séculos xvn e xvui foi localizado; na lombada está escrito Papéis Vários e, nas folhas menciona­

das, pode-se ler o original da publicação feita sob os auspícios do conselheiro

Drummond. São catorze páginas bem cheias com uma letra miúda, em tinta marrom escuro, sem capa, título, data ou indicação de autoria4.

2. Ver, por exemplo, Nina Rodrigues, “As Sublevações de Negros no Brasil Anteriores ao Século xix. Palmares”, 1932 [1904], p. 117; Edison Carneiro, O Quilombo dos Palmares, 1947, p. 222; Manuel Arão, “Os Quilombos dos Palmares”, 1922, p. 233 e Mário Behring, “A Morte de Zumbi”, 1930 [1906], pp. 142-143. 3. “Descripção com notícias importantes do interior de Pernambuco como rio de São Francisco, Porto Calvo, Palmares, cabo de Santo Agostinho, as distâncias de huns lugares aos outros etcetera, das partes mais férteis; costumes dos Palmares (negros) e modo como vivem seu regimen, dos damnos que recebem os portugueses deles: enfim o estado em que foram achados os Palmares, sobre a partida de Pero de Almeida contra os ditos, e a descripção do que se fez para a ruína, em que vierao a cair os Palmares”, bnrj-ms, 7,3,001, fls. 73-113, doc. 6. Agradeço a Márcio Roberto Alves dos Santos a primeira indicação sobre esse documento e a Vera Faillace e aos funcionários da Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro as várias tentativas para identificar

a origem do códice em que foi copiado. 4. Papéis Vários, antt, Ms. da Livraria, n. 1185 (antigo 528). Agradeço a valiosa ajuda de Odete Mar­ tins, pesquisadora desse arquivo, que acompanhou com empenho minhas buscas por esse códice.

PALMARES & CUCAÚ

38?

Em 1876, Pedro Paulino da Fonseca, sócio honorário do Instituto Arqueo­ lógico e Geográfico Alagoano, ofereceu ao congênere brasileiro e publicou em sua revista um texto intitulado “Memória dos Feitos que se Deram durante os Primeiros Anos de Guerra com os Negros Quilombolas dos Palmares, seu Destroço e Paz Aceita em Junho de IÓ78”S. Nesse caso, trata-se de uma recriação de outra versão da “Relação”, não de uma transcrição — fato que é explici­ tamente reconhecido pelo autor, que indica tomar por base um manuscrito existente na Biblioteca Pública de Évora6. Como Paulino da Fonseca declina a cota do documento, sua localização é mais fácil. Trata-se de um manuscrito anônimo, escrito retro e verso em oito folhas avulsas, com letra clara, em tinta marrom, sem capa ou título, sem data e incompleto (por omissão da última folha). Esse documento foi referenciado no catálogo elaborado no início do século xix pelo mais famoso bibliotecário daquela instituição como tendo sido escrito em 1678, recebendo ali o título “Relação do que se Passou na Guerra com os Negros dos Palmares nos Sertões de Pernambuco”7. A comparação do manuscrito de Évora com o texto publi­

cado por Paulino da Fonseca confirma que este último fez várias modificações, acrescentou dados e completou o texto, adicionando-lhe um final em que refere acontecimentos até 1695. Dele há também uma cópia manuscrita depositada na Seção de Manuscri­ tos da Biblioteca Nacional, com um título bem próximo do que lhe atribuiu o bibliotecário de Évora8. Essa cópia, feita possivelmente no final do século xix ou início do xx, é uma transcrição do manuscrito do século xvii, mas

5. Pedro Paulino da Fonseca, “Memória dos Feitos que se Deram durante os Primeiros Annos de Guerra com os Negros Quilombolas dos Palmares, seu Destroço e Paz Aceita em Junho de 1678”, 1876. A referência ao manuscrito de Évora, com a respectiva cota, está na p. 321. Antes de iniciar o texto, o autor registra outro título: “Memória dos Acontecimentos Havidos nos Primeiros Annos de Guerra Contra os Negros das Palmeiras, e dos Successos Obtidos, até a Paz Feita com o Rei Gangasuma, em Junho de 1678”. 6. Como bem nota Andressa Mercês Barbosa dos Reis, Zumbi, 2004, pp. 54-55, as alterações inseri­ das por Pedro Paulino da Fonseca distorcem o sentido do documento em várias passagens, sendo interessantes para um estudo sobre a produção da imagem de Palmares no século xix. 7. [Relação do que se Passou na Guerra com os Negros dos Palmares nos Sertões de Pernambuco], bpe, cod. cxvi-2-i3-n. 9. Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara, Catalogo dos Manuscriptos da Bibliotheca Publica Eborense, 1850,1.1, p. 144. 8. Relação do que se Passou na Guerra com os Negros nos Palmares nos Sertões de Pernambuco, é Escrita em 1678 eestá Incompleta, bnrj-ms, Cod. 12,2,003, fls. 107V-123V, doc. 25.

388

NOTAS EXPLICATIVAS

lí II

I

contém diferenças se comparada aos trechos citados na “Memória” publicada por Fonseca em 1876. Décio Freitas afirma ter localizado duas outras versões da “Relação” de 1678 durante pesquisas realizadas em 1974 no Arquivo Histórico Ultramarino e na Biblioteca Nacional de Portugal, que foram publicadas em 2004 na cole­ tânea de documentos que organizou9. Os dados arquivísticos fornecidos pelo autor são incongruentes10 e a comparação entre os textos que transcreveu e os manuscritos que se encontram na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro revela que, na verdade, ele publicou as cópias mais recentes depositadas na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Assim, foram localizados, até hoje, quatro manuscritos da “Relação”: dois com letra do século xvn e duas cópias deles (uma de cada) feitas no século xix ou início do xx. Interessam aqui, particularmente, os dois manuscritos seiscentistas. A letra do que pertence à Torre do Tombo é a mesma do existente na Biblioteca Pública de Évora e a colação dos dois permite identificar palavras

II

I í

substituídas, alterações de frases e supressão ou inclusão de informações, sem contudo haver mudança no sentido geral do texto. Eles constituem etapas de um processo de escrita, cujo resultado é a versão completa e acabada, guardada pela Torre do Tombo. A similitude da letra dessas duas versões com a de uma brochura que reúne vários sermões e poemas do padre Antônio da Silva permite identificar a auto­ ria da “Relação” escrita em 1678". Além da letra, outros elementos materiais, como o traçado do pequeno adorno em parágrafos finais presentes em várias

UI

9. Décio Freitas, República de Palmares, 2004, pp. 19-50. 10. As informações sobre os documentos encontram-se em Décio Freitas, op. cit., 2004, p. 19. As cotas, “ahu Códice n. 265 — pe” e “bnl Códice n. 265 — pe”, são mencionadas respectivamente nas pp. 33 e 50. No Arquivo Histórico Ultramarino contei com o precioso auxílio de Tiago C. P. dos Reis Miranda e Érika Simone de Almeida Carlos Dias; na Biblioteca Nacional de Portugal, com solida­ riedade de Maria Lêda Oliveira. Agradeço a eles a generosidade de terem partilhado comigo seus vastos conhecimentos sobre esses acervos. 11. Sermões e Poemas de Matéria Histórica e Religiosa, bnp-res, códice 6751. A cota antiga (U 2 23) foi men­ cionada pelo Barão de Studart em carta dirigida a Francisco Izidoro R. da Costa, publicada por este último em: “Apreciação Histórica. A República dos Palmares, a Propósito dos Palmares”, riaga, iv n. 1, p. 32, 1904. As funcionárias da Biblioteca Nacional de Portugal, Maria Tereza Monica (da Seção de Reservados) e Tereza Duarte Ferreira (da Seção de Manuscritos) conseguiram localizar a brochura. Agradeço mais uma vez a elas a valiosa ajuda.

II PALMARES & CUCAÚ

389

peças desse livrinho e na última frase do manuscrito que se encontra na Torre

do Tombo reforçam essa conclusão. O padre Antônio da Silva foi vigário colado da paroquial do Corpo Santo do Recife entre 1658 e 1697'2. Nascido na Bahia, estudou no Colégio dos Je­

suítas em Salvador e se licenciou em Cânones em Coimbra. Era um homem de letras, versado nas regras da retórica e da sermonística, destacando-se como

grande pregador13. No final dos anos 1670, já havia escrito uma memória sobre a vida do oitavo bispo do Brasil e publicado, em 1675, seis sermões proferidos durante a Quaresma de 1673’4. A batina não o impediu de participar de eventos importantes da vida

política de Pernambuco, ao contrário. Em 1666, envolveu-se no motim que expulsou o governador Jerônimo de Mendonça Furtado do governo de Per­

nambuco’5 e, em 1670, engrossou um movimento de moradores para evitar, que os mestres de navios acolhessem escravos fugitivos’6. Manteve-se sempre próximo das autoridades pernambucanas, como atestam algumas de suas obras posteriores. Em 1691, compôs uma oração fúnebre para as exéquias da princesa

portuguesa que foram celebradas em Olinda, que ofereceu à mulher do mar­ quês de Montebelo, governador de Pernambuco, e foi publicada no mesmo

ano'7. Em 1694, proferiu uma “Prática” durante a novena rezada na capela 12. Carta de apresentação ao licenciado Antônio da Silva de 17 fev. 1658. Antônio da Silva foi o se­ gundo vigário da matriz do Recife, sendo substituído em 1698, depois de sua morte, pelo padre Francisco da Fonseca Rego. Carta de apresentação de vigário na igreja ao dr. Francisco da Fonseca Rego de 15 fev. 1698. Respectivamente antt, Chancelaria da Ordem de Cristo, L. 51, fl 117V e L. 83, fl. 133V. Agradeço a Fernanda Olival as informações indispensáveis para localizar essas nomea­ ções. Ver também Arlindo Rubert, A Igreja no Brasil, 1981, vol. 2, pp. 96-97. 13. Sacramento Blake, apoiado em Barbosa Machado, classifica-o como um dos notáveis e eloquentes pregadores do Brasil seiscentista. Augusto Victorino Alves Sacramento Blake, Diccionario Bibliographico Brazileiro, 1883, vol. 1, pp. 315-316 e Diogo Barbosa Machado, Bibliotheca Lusitana, 1741, vol. 1, pp. 388-389. Ver também Innocencio Francisco da Silva. Diccionario Bibliographico Portuguez, 1858, vol. 1, pp. 268-269 c Rubens Borba de Moraes, Bibliografia Brasileira do Período Colonial, 1969, p. 351. 14. Sermoens das Tardes das Domingas da Quaresma Pregadas na Matris do Arrecife de Pernambuco no Anno de 1673, 1675.

15. Sobre a deposição de Jerônimo de Mendonça Furtado, “o Xumbergas”, ver Evaldo Cabral de Mello, A Fronda dos Mazombos, 1995, cap. 1 e Luciano Raposo de Almeida Figueiredo, “O Impé­ rio em Apuros. Notas para o Estudo das Alterações Ultramarinas e das Práticas Políticas no Império Colonial Português, Séculos xvn e xvni”, 2001. 16. Portaria de Bernardo de Miranda Henriques de 18 jun. 1670, doc. 18.

auc, cca,

vi-ni-1-1-31, fls. 240-241,

17. Padre Antonio da Silva, Oraçam Fúnebre [...] nas Exéquias da Sereníssima Princesa D. Isabel Luisa Jo-

390

NOTAS EXPLICATIVAS

r

da matriz do Recife pelo bom sucesso da expedição enviada aos Palmares, e

um sermão, na ação de graças que na mesma igreja se fez em comemoração à vitória alcançada'8. O padre Silva faleceu provavelmente em 1698, talvez de

desgosto por ter sido denunciado ao Santo Ofício, por conta de conflitos com irmandades abrigadas em sua igreja'9. A “Relação” foi escrita entre fevereiro e no máximo meados de julho de

1678, datas que correspondem ao retorno de Fernão Carrilho ao Recife, de­ pois das vitórias obtidas contra os Palmares, e a partida da frota para Lisboa. Dom Pedro de Almeida deixou o governo de Pernambuco em abril de 1678 e a narrativa está conectada ao contexto dos preparativos para seu retorno a

Lisboa. Por suas características textuais e retóricas, é uma obra engajada, que coloca dom Pedro de Almeida no centro dos acontecimentos e enaltece suas

habilidades como governante: a vitória sobre os Palmares é relatada como uma “fortuna” que devia ser registrada nos “perpétuos brados da fama”. Não é pos­

sível saber se a escrita foi encomendada ao padre Antônio da Silva ou realizada por sua iniciativa. Mas certamente é um texto redigido como um instrumento político em defesa do governador que, então, voltava a Portugal.

O processo de gênese dessa “Relação”, assim como das cópias manuscritas e impressas que dela foram produzidas e sua fortuna historiográfica são deta­

lhadamente analisadas no livro Guerra contra Palmares, que oferece uma trans­ crição modernizada e anotada dos originais guardados pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo e pela Biblioteca Pública de Évora20. É, portanto, a trans­ crição do manuscrito completo pertencente ao Arquivo Nacional da Torre do sepha, 1691. Há uma versão manuscrita dessa publicação em Sermões e Poemas de Matéria Histórica e Religiosa, bnp-res, códice 6751, fls. 28-46. Marina Massimi (Palavras, Almas e Corpos tio Braisl Colonial,

2005, pp. 181-182) comenta as operações retóricas dessa obra. 18. Prática feita na capela do Santíssimo Sacramento da Igreja matriz do Recife (...) e Sermão feito na matriz do Recife de Pernambuco [...] na ação de graças [...] pelo sucesso feliz que alcançou dos negros dos Palmares, em 6 de fevereiro do ano de 1694, bnp-res, Cod. 6751, respectivamente fls. 22-26 e 12-19.

19. Carta do familiar Lourenço Gomes Ferraz aos inquisidores de 22 maio 1697, antt, Tribunal do Santo Ofício, Cadernos do Promotor n. 69, fls. 418-419V. Os conflitos parecem ter feito parte da vida padre Silva, desde seu início: uma carta do governador do Estado do Brasil de 11 de abril de 1659 menciona que ele era “mal avaliado” pelos cônegos, que estavam “obstinados contra ele”. Ver dh, 5, p. 109, 1928. Agradeço a Aldair Rodrigues e a Evergton Sales Souza as indicações que me

permitiram localizar esses dois documentos. 20. Silvia Hunold Lara e Phablo Roberto Marchis Fachin (orgs.), Guerra contra Palmares, 2021. As trans­ crições estão, respectivamente, nas pp. 15-48 e 113-150.

PALMARES & CUCAÚ

391

Tombo, de autoria do padre Antônio da Silva, que utilizo preferencialmente neste livro. Menciono em nota de rodapé eventuais divergências entre ele e sua versão anterior, guardada pela Biblioteca Pública de Évora, quando forem significativas quanto ao conteúdo.

3. Sobre a Grafia de Nomes Próprios No português do século xvn não havia regras ortográficas precisas e era usual haver abreviatura de palavras. Além disso, os nomes de uma pessoa podiam variar ao longo do tempo, aparecendo registrados de modo diverso em vários documentos. Às vezes eram pequenas variações, um “de” no lugar de um “e”; mas havia casos em que um ou mais sobrenomes eram omitidos; assim, por exemplo, Matias Cardoso de Almeida era muitas vezes chamado apenas de Matias Cardoso. Quando se tratava de nomes estrangeiros, podia-se manter a

grafia original ou aportuguesá-los; como no caso de Sebald Linz que se trans­ forma em Sibaldo Lins. As abreviaturas também eram empregadas nos nomes próprios. Em alguns casos, por conta delas, é difícil identificar se um sobre­ nome é Alves ou Álvares, Martins ou Muniz, por exemplo. Só o cruzamento

de fontes pode confirmar se se trata ou não de uma mesma pessoa — e nem sempre há dados suficientes. Para maior facilidade, neste livro, todos os nomes

portugueses tiveram as abreviaturas desdobradas e foram escritos conforme a ortografia atual. Os nomes de indígenas e africanos, pertencentes a culturas eminentemen­ te orais, eram anotados de muitos modos, conforme ouvidos ou entendidos por quem os deitava no papel. A variedade podia derivar ainda da maior ou menor proximidade daquele que escreve com a situação, o contexto ou mes­ mo as pessoas mencionadas21.

21. É interessante lembrar, nesse sentido, uma carta de João do Rego Barros de lóago. 1679 (ahu_acl_

cu_oi5, Cx. 12, D. 1146) e o resumo dela em uma consulta do Conselho Ultramarino de 26 jan. 1680 (AHü_ACL_cu_Consultas de Pernambuco, Cod. 265, fls. 26-27V): a menção a Emganasona no primeiro documento torna-se “enganosamente” no segundo. A forma usual das abreviaturas no século xvii pode ajudar a compreender o mal-entendido. Mas o texto da consulta de 1680 mencio­ na Gana Zona outras duas vezes, grafando seu nome “Ganasotia” e “ Emganasona'.

392

NOTAS EXPLICATIVAS

Assim, não há como ter certeza sobre a grafia dos nomes dos habitantes dos Palmares. Gana Zona foi escrito Anganazona, Enganazona, Ganasona, Ganosona,

Ganazomba, Ganosona em muitos documentos administrativos. Mas também aparece como Gangasona em uma ocorrência no manuscrito de Évora da “Re­

lação” de 1678, por exemplo. Gana Zumba foi registrado de modos ainda mais diversos: Enganazumba, Ganazumbá, Ganazumbá, Gangusumba, Ganamzumbá, Ganamrubã, Ganga Zumba, Garizumba, Jarizumba. Zumbi aparece grafado como Lomby, Zombi, Zomby, Zombj, Zoniboy, Zutnbim, Zumboy, Zumby, Zom­ be, Zombim, Zutnbohy, Zunby, Zunbdhy. Desse modo, a decisão sobre como escrever os nomes das lideranças polí­ ticas e militares, assim como os dos mocambos dos Palmares, bem como os de outros centro-africanos que são mencionados na documentação é um tanto

arbitrária. Mas segue duas diretrizes, baseadas primeiramente no modo e na frequência com que aparecem nas fontes e, em seguida, interpretadas a partir da constatação de que a maior parte da população escravizada em Pernambuco era proveniente da África Central, falante do quimbundo. No caso dos nomes palmaristas, parto inicialmente do registro feito pelo manuscrito da “Relação” de 1678 pertencente à Biblioteca de Évora para de­

pois comparar a grafia com o que está na Torre do Tombo e com outras inci­ dências do nome na documentação administrativa, preferindo sempre a fonte produzida em Pernambuco àquela redigida na Bahia ou em Lisboa. Isso per­ mite ter como base um registro em que há maior proximidade entre aquele

que escreve e os eventos e pessoas descritos ou mencionados. Em seguida, sem­ pre que possível, comparo o termo com nomes similares em fontes referentes a Angola ou termos em quimbundo, que são anotados em itálico22.

Em Luanda, no início do século xvn, o quimbundo era a língua mais fre­ quente, ficando o português restrito às elites administrativas, militares e ecle­ siásticas, mesmo depois da instalação do Colégio dos Jesuítas, em 161o23. Ao longo do século, o uso do português cresceu, especialmente pelo fato de se

22. Depois da independência, o português tornou-se a língua oficial de Angola. Em 1987, o governo declarou o quimbundo uma das sete línguas nacionais, que ganharam normas ortográficas fixadas pelo Instituto de Línguas Nacionais de Angola. Ver Carolyn E. Vieira-Martinez, Building Kirnbundti, 2006, p. 32. 23. Jan Vansina, “Portuguese x Kimbundu: Language Use in the Colony of Angola (1575-Í.1845)”, 2001, pp. 269-270.

PALMARES & CUCAÚ

.41

393

tornar uma língua franca, que permitia a comunicação entre africanos e co­ lonizadores, mas também entre diferentes estrangeiros que ali permaneciam,

como no caso dos missionários. O quimbundo, entretanto, era uma língua

agrafa e, apesar de algumas tentativas de registro de sua gramática e da produ­ ção de alguns catecismos no século xvn24, bem como das preciosas “observa­

ções gramaticais sobre a língua bunda ou angolense” feitas pelo frei Bernardo Maria de Cannecattim no início do século xix25, não havia consenso ou regras

para sua escrita até pelo menos o final do xix, quando foram produzidos al­ guns dicionários e gramáticas importantes26. O quimbundo e esses registros

textuais são utilizados como referência para grafar e analisar os possíveis sig­ nificados dos nomes centro-africanos.

Seguindo esses procedimentos, adoto Gana ao invés de Ganga na compo­

sição de vários nomes palmaristas. Esta não é a forma predominante nas duas versões seiscentistas da “Relação” do padre Antônio da Silva, mas aparece

no papel do acordo de paz, nas cartas redigidas durante o governo de Aires de Sousa de Castro, que manteve contato direto com as lideranças dos Pal­ mares que foram ao Recife e desceram para Cucaú, e em relatos de soldados

que acompanharam as embaixadas e as negociações de 167827. Por se tratar de um título, mantenho a palavra separada do nome: Gana Zumba, Gana Zona,

Gana Muisa. Essa opção está baseada também no fato de a “Relação” indicar

a possibilidade de nomear o “irmão do rei” apenas por “o Zona” e seu filho como “o Gone”.

24. Francisco Pacconio e Antônio de Couto, Gentio de Angola Sufficientemente Instruído nos Mysterios de Nossa Sancta Fé, 1642; Pedro Dias, Arte da Lingua de Angola, 1697. 25. Frei Bernardo Maria de Cannecatttim, Collecção de Observações Grammaticaes sobre a Língua Bunda ou

Angolense, 1805. 26. Heli Chatelain, Crammatica Elementar do Kinbumdu ou Língua de Angola, 1888-1889 e Joaquim Dias Cordeiro da Matta, Ensaio de Diccionário Kimbundu-Portuguez, 1893. Ver também Antônio Assis Jú­ nior, Dicionário Kimbundu-Português, s.d. e J. Pereira do Nascimento, Diccionário Portuguez-Kimbundo, 1907. Um balanço aprofundado desse processo pode ser encontrado em C. E. Vieira-Martinez, op. cit., esp. cap. 3.

27. Além das fontes reproduzidas no Anexo Documental, ver, por exemplo, as consultas do Conselho Ultramarino de 28 jan. 1684 e de 6 maio 1699,

ahu_acl_cu_015,

cu_ooó, Cx. 001, D. 42 e a carta patente de 21 mar. 1687, anexo 30.

394

NOTAS EXPLICATIVAS

Cx. 013, D. 1273 e

ahu_acl_cu_0I5,

ahu_acl_

Cx. 019, D. 1863,

O Quadro 1 sintetiza o resultado do cotejo do modo como as duas versões

seiscentistas da Relação resgistraram os nomes de pessoas e mocambos dos Palmares. Quadro i. Grafia dos nomes próprios palmaristas na “Relação” de 1678 Nomes adotados no livro

Antônio da Silva, “Relação da Ruína dos Palmares” antt,

Aca Inene

Ms. da Livraria, Cod.

Cod. cxvi -2-13-3,

n.9

Aca Inene (fl. 149), Aqua

Aca Inene (fl. 51), Aca Inene (fl. 55), Aca Inene (fl. 5$v) e Aca Inene (fl. 55V)

Inene (fl. 152V) e Aca Inene (fl. 152V) Amaro

bpe,

1185

Amaro (fi.149), Amaro (fl. 153), Amaro (fl. 153), Amaro (fl. 153V), Amaro (fl. 153V), Amaro (fl. 153V)

Amaro (fl. 51), Amaro (fl. 56), Amaro (fl. 56), Amaro (fl. 56), Amaro (fl. 56), Amaro

Ambrósio

Ambrosia (fl. 153)

Ambrosia Negro (fl. 56)

Anajuba

Aca laba (fl.rjjv)

Anajubá (fl. 56)

Andalaquituxe

Andalaquituxe (fl. 149)

Andalaquituxe (fl. 51) Bangala (fl. 57v)

Bangala

Dambiabanga

Dambrabanga (fl. 149)

Gana Zona

Gangamuisa (fl. 153)

Gangamuisa (fl. 55v)

Gana Sona (fl.i$2v), Gana

Gana Sona (fl. 55), Gangasona (fl. 57), Gana Zoní (fl. 57v)

Sotnba (fl. 154) Gana Zumba

Dambia banga (fl. 51) Daúbi (fl. 56)

Daubi

Gana Muisa

(fl- 5