Páginas do Exílio - Volume 1


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. Recolha de textos e organização ~ de Jorge Reis ~ ·Ilustrações de Leal da·Câmara

Ao chegar a Paris, a 3 de Junho de 1908, o •moço bisonho , quase donzel, nada estreado no entrecasco das coisas do mundo, ainda com a envide de nístico• e que acabava de se vispar dos galfarros da bufaria de João Franco, não trazia na valise rJ.e •janota• senão uma muda de roupa, a navalha de barba; o pincel e uma pitada de sabão em põ. No bolso do colete, mal cantava a meia-dtízia de patacos que restavam dos 200 mil réis que o pai obtivera de um tal • Sebastião da Tabosa • a troco de 7% de juro, - ·o que, -podendo ser ·bastante para mandar cantar um cego , não lhe :daria para o passadio de duas ou três semanas. Turista sem cheta nem bagagem , transportava, porém, um· alforge de promessas de «irmãos• e •primos• que lhe haviam jurado com os pés em esqttadria - a ele, raposo beirão. que jamais se iludiu com empana-parvos - que nunca, _por nunca ser, a .família• o deixaria comer «O pão amargo do exflio», esse pão· que Dante aborrecera, chor,ando lágrimas de sangue, ao ver-se homiziado em Verona que ficava a um lance de pedra da. sua Florença natal (!) .e, ainda menos, o abandonaria no ruisseàu ou no -recanto de uma ponte sobre o Sena. .. Bastar-lhe-ia procurar o seu patrão da «Vanguarda•, esse Hiram da Fraternidade portuguesa , o qual, embora não tivesse levantado templo veramente lusitano no oriente parisino , mantinha loja aberta num restaurante dos Grands Boulevards reputado pelos ágapes que servia a uma iniciada clientela ciosa de Verdade e famélica de luz - e car.icato palco das limonadas (o te-rmo é de Leal da Ctlmara ) do ilustre comensal, • intrépido jornalista e notável orador• (A BEIRA de 9 / X / 1909) que continuava • no estrangeiro a sua missão de restaurar o crédito de Portugal! ... •. O que , na sua ·boa fé , a .família• lisboeta ignorava é que, ao fim e ao cabo , o •foragido do Caminho Novo •, para quem •a ob-ra essencial do homem independente consiste em viver por si, isto é, à custa do seu "trabalho• e que •teoricamente, estava em dia com o que havia de mais progressivo no seu século•, não tinha frio nos olhos e seria capaz de tudo suportar para pisar «terra firme• e formar-se no País que ele considerava •todo Direitos do Homem e Sete Dores de Nossa Senhora•, -tanto mais que ele conhecia a lfngua aprendida no Colégio Roseira, de Lamego, no Seminário de Be}.a e ao correr de uma ou outra tradução-sopa-dos-pobres. Por is~o , com o entusiasmo dos seus 23 anos, sentia-se com alma bastante ,· não para se empanizar na vida de ramboia, nem para se civilizar consoante os preceitos queirozianos, mas para vir a -s er aquilo que há muito decidira: escritor! Jorge Rei;

Ediçao patrocinada pelo

lnstitu_ to Português do Uvro e da Leitura

Preço -2500$00

COLECÇÃO OUTRAS OBRAS

Outras obras desta colecção: ANTOLOGIA PANORÂMICA DO CONTO AÇORIANO

V816001 8

ROMANCEIRO GERAL PORTUGUÊ S I VOL .

V816010�

Organização de João de Melo

Teófilo Braga

ROMANCEIRO GERAL PORTUGUÊ S II VOL. Teófilo Braga

ROMANCEIRO GERAL PORTUGUÊ S III VOL. Teótilo Braga

PORTUGAL PEQUENINO Maria Angelina Brandão e Raul Brandão

FERNANDO PESSOA- POETA DA HORA ABSURDA Mário Sacramento

PANTAGRUEL Rabelais (versão de Jorge Reis)

AQUILINO EM PARIS Jorge Reis

HISTÓ RIA DA POESIA POPULAR PORTUGUESA Teótilo Braga

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AQUILINO RIBEIRO

PÁGINAS DO EXÍLIO CARTAS E CRÓNICAS DE PARIS

PÁGINAS DO EXÍLIO CARTAS E CRÓNICAS DE PARIS 1.0 VOL. Autor: Aquilino Ribeiro

Colecção: Outras Obras Recolha de textos e organização, assim como CRONOLOGIA SUMÁRIA da H I STÓRIA DE FRANÇA E DE PORTUGAL de 1885 a 1934 e ÍNDICE ONOMÁSTICO

e NOTAS ADICIONAIS de Jorge Reis Il ustrações de Leal da Câmara

© Vega e Jorge Reis

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por Vega, Limitada

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1700 LIS BOA - Telef. 80 95 79

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Editor: Assírio Bacelar Capa: Luís Pinto e Panchita Fotocomposição: Graftronic I mpressão e acabamento:

ANTÓNIO COELHO DIAS, LDA. Depósito Legai

N. o 22 088/88

AQUILINO RIBEIRO

PÁGINAS DO EXÍLIO Cartas

e

Crónicas 1.0 Volume de 1908 a 1914

de

Paris

Findo o arrolamento destas Páginas do Exílio * do meu mestre de ofício e de coragem, cabe-me agradecer aos Senhores Conselheiro Aníbal Aquilino Fritz Tiedmann Ribeiro e Engenheiro Aquilino Ribeiro Machado a autorização de as pôr ao alcance de todos os aquilinianos e, em particular, daqueles que pela sua juventude só agora descobriram a obra mais importante da Literatura Portuguesa dos nossos tempos, segundo o meu modesto entender.

Jorge Reis

*

Ver Índice onomástico e notas adicionais no 2.0 volume.

ANTELÓQUIO

Ao chegar a Paris, a 3 de Junho de 1908, o «moço bisonho, quase donzel, nada estreado no entrecasco das coisas do mundo, ainda com a envide de rústico» e que acabava de se vispar dos galfarros da bufaria de João Franco, não trazia na valise de «)anota» senão uma muda de roupa, a navalha de barba , o pincel e uma pitada de sabão em pó . No bolso do colete, mal cantava a meia-dúzia de patacos que restavam dos 200 mil réis que o pai obtivera de um tal «Sebastião da Tabosa» a troco de 7% de juro, - o que, podendo ser bastante para mandar cantar um cego, não lhe daria para o passadio de duas ou três semanas . Turista sem cheta nem bagagem, transportava, porém, um alforge de promessas de "irmãos " e "primos" que lhe haviam jurado com os pés em esquadria - a ele, raposo beirão que jamais se iludiu com empana­ -parvos - que nunca, por nunca ser, a «família» o deixaria comer «O pão amargo do exílio», esse pão que Dante aborrecera, chorando lágrimas de sangue , ao ver-se homiziado em Verona que ficava a um lance de pedra da sua Florença natal (!) e, ainda menos, o abandonaria no ruisseau ou no recanto de uma ponte sobre o Sena . . . Bastar-lhe-ia procurar o seu patrão da "Van­ guarda», esse Hiram da Fraternidade portuguesa, o qual, embora não tivesse levantado templo veramente lusitano no oriente parisino, mantinha loja aberta num restaurante dos Grands Boulevards reputado pelos ágapes que servia a uma iniciada clientela ciosa de Verdade e famélica de luz - e caricato palco das limonadas (o termo é de Leal da Câmara) do ilustre comensal, «intrépido jornalista e notável orador" (A BEIRA de 9 I X I 1909) que continuava "no estrangeiro a sua missão de restaurar o crédito de Portugal! . . . ". O que, na sua boa fé, a «família» lisboeta ignorava é que, ao fim e ao cabo, o «foragido do Caminho Novo», para quem «a obra essencial do homem independente consiste em viver por si, isto é, à custa do seu trabalho» e que "teoricamente, estava em dia com o que havia de mais progressivo no seu século», não tinha frio nos olhos e seria capaz de tudo suportar para pisar II

«terra firme» e formar-se no País que ele considerava «todo Direitos do Ho­ mem e Sete Dores de Nossa Senhora», - tanto mais que lhe conhecia a língua aprendida no Colégio Roseira, de Lamego, no Seminário de Beja e ao correr de uma ou outra tradução-sopa-dos-pobres . Por isso, com o entusiasmo dos seus 23 anos, sentia-se com alma bastante, não para se empanizar na vida de ramboia , nem para se civilizar consoante os preceitos queirozianos, mas para vir a ser aquilo que há muito decidira: escritor! Ficaram-lhe na Pátria 2 contarecos, 18 «Casos do Dia», 3 ,,Coisas,, 1 artigo sobre as ,,campanhas de África» e o início de . Ele vai viajar à cata sobretudo de coisas pasmosas , portentosas , acampa de ordinário em Paris para que mais tarde possa exclamar como um Moisés: - Vi Paris , posso morrer! Ele conta topar coisas novas , inéditas , que exijam quase a criação de um sexto sentido . E vai dar com o que deixou cá em baixo, a mesma geometria das ruas , os homens com a mesma cara de asnos, as mulheres igualmente felinas , igualmente sérias . O português sebastianista, o brasileiro mestiçado da melan­ colia do negro e da fantasia lusitana, esperavam encontrar outras coisas, espa­ dachins , condes meroveus , actrizes de Balzac , alçapões na Rua Rivoli . E não encontrando isto , muito logicamente boceja: - Ora, estou farto de ver estas coisas ! Este valente viageiro foi procurar o Preste-João lá fora, esquecendo que o progresso rasou tudo , que a locomotiva leva por toda a parte as pernas das coristas francesas , a voz do Caruso e a mesa falante de Eusapia Paladino . Sempre lendário , sempre maluco da cabeça, ele não vê nada de interessante, muito mais se é honesto burguês , pai de filhos . Em Paris , em Berlim, em Roma, em relação ao Rio ou a Lisboa, não se vê nada de extraordinário, de inédito; encontram-se , sim, disposições novas das coisas , novas formas , e isto marca a diferença progressiva dos povos , ao primeiro lance de olhos . E como o bom português não ia disposto para isto, muito racionalmente aborrece-se . Uma revista modema teria que fazer obliterar todas estas pequenas noções erróneas de que resultam efeitos desastrosos como os grandes desenlaces nas poesias de Eugénio de Castro . · E ao mesmo tempo arquivar os casos do dia pela

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gravura, comentando-os pela nota leve de um lápis leve , iluminando os seres e os acontecimentos com quatro traços voluntariosos . Acima de tudo teria que não atentar à simplicidade e sentir emotivamente o hálito dos oprimidos . A revista em questão é uma necessidade . Tendo à testa Magalhães Lima e Leal da Câmara, embora dentro das linhas vastas do programa que se anuncia, se possa carpintejar à vontade é fácil prever o que a revista será: Será a válvula do espírito revolucionário português e a aliança do Portugal novo com os outros países novos e fortes . -

in VANGUARDA

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5 I VII I 1 909

NOTA DA REDACÇÃO DE A BEIRA 9/ 10/ 1 909

Escusado fora chamar para ela a atenção dos nossos leitores . Secção nova de colaborador novo , sem dúvida ela atrairia só por si um olhar de curiosidade: e tanto bastara: lidas , distraidamente que fosse , as primeiras linhas , todo esse belo trecho de prosa passará a ser lido atentamente , delicadamente apreciado, saboreado , ainda pelos mais refractários à elegância do estilo e à fulguração da ideia. Pode-se não concordar em tudo com os seus conceitos e juízos críticos; mas é-se forçado a confessar que está ali um homem que não quer tomar-nos o tempo com banalidades: pensa desassombradamente e diz-nos brilhantemente o que pensa. O seu juízo àcerca de Victor Hugo , a propósito das festas em sua homenagem ultimamente realizadas em Paris - festas a que o Governo da República se associou , proferindo por sinal , o ministro da Instrução Pública e das Belas-Artes , Gaston Doumergue , na inauguração da estátua do Palais Royal , um primoroso discurso , cuja tradução o Mundo há dias publicou pode não merecer, inteiro aplauso dos hugólatras; mas nós , que muito admira­ mos o poeta da Lenda dos Séculos, nem por isso deixamos de o considerar muito digno de ser ponderado . De resto , estamos persuadidos de que melhor ainda do que a abreviatura do nome que subscreve a Carta de Paris, o estilo lhe denunciará o autor para muitos que , em tempos que não vão longe , lhe apreciavam imenso os escritos: e para esses então a leitura destas duas colunas de prosa quantas e quantas saudades lhes não irá avivar! Somos nós um desses que ao nosso ilustre colabo­ rador, cá deste canto da Beira, onde ele , de tão longe , certo tem o pensamento, lhe enviamos , com o nosso agradecimento , um grande abraço de leal e afectuosa camaradagem .

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CARTAS DE PARIS Domingo, 2

Paris vai tomando a sua fisionomia de Inverno; é uma revolução dentro de portas , alvoroçada, radical . A atmosfera perdeu o tom brutal de zinco gelado ou de zinco em braza. Suavemente o céu de que Puvis de Chavannes banhou Santa Genoveva invade as alturas de Paris , afagando os galos dos campanários , a coroa de colunas do Panthéon , o bojo branco , divinal , do Sacré-Coeur. L' heure grise alastrou , é o dia todo , cheia de ternuras , de voluptuosidades , até que uma rajada do norte traga a neve que mata os homens nas mansardas e os velhos cavalos de fiacre pelas ruas . Os piemonteses passaram os Alpes com a sua sacola; e instalados às esqui­ nas , barbaçudos e negros , gritam sobre o brazeiro: Marrons chauds . . . chauds . . . Remoçam em contraste os muros velhos; como nas mágicas , eles aparecem de manhã com toilete nova, cartazes de mil tintas onde Steilen , Villete , Leal da Câmara, Sancha, M . 11• Dugan prenderam alacremente pedaços de vida. A parede é o grande jornal de Paris , o mais lido e o mais artisticamente colaborado . Aí se anunciam desde os manejos da Bolsa até às hissopadas brancas de Monse­ nhor Amette . E às vezes, bizarria do acaso, lado a lado, Hervé e o conde de Mun falam , um aos irmãos na Sociedade Futura, outro aos irmãos em Cristo . Talleyrand dizia: Não me falem em homens que não têm inimigos! Os ini­ migos desertaram diante de Hugo , aqueles inimigos que nascem sobre o cami­ nho das celebridades , da inveja, do choque de opiniões, de oposições de -

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escola. Hugo é um ídolo para todo o mundo . O Ministério foi de sobrecasaca inaugurar-lhe a estátua ao Palais-Royal . Rodin pô-lo deitado sobre uma fraga de mármore a aplacar o mar. Cheio daquela grandeza épica, sobre-humana, que o estatuário imprime às suas figuras , ali é um elemento em face de outro elemento . A sua cabeça parece que andou a viajar pelas cristas dos montes e as entranhas da terra há centenares de anos . Há nela a severidade dos monolitos e o crepitante fogo dos Sinai . Rodin moldou naqueles dois palmos de pedra o tamanho dum astro; é um homem e um caos , a confulguração do máximo de espírito e do máximo da matéria. A folhagem do Luxemburgo cai melancolicamente e os números do progra­ ma do Estio estão quase esgotados . Finda hoje a semana festiva a Victor Hugo, panegíricos , jantares , fogo de Bengala, apoteoses , como a qualquer orago muito amado . Hugo hoje é o padroeiro da França, fora de litígio, venerado em estampa no quarto de dormir do plebeu e em estatueta de bronze no salão do burguês. Já não se trocam bengaladas por causa dele e os seus livros em edição elzevir dão-se às meninas pelo ano-bom e nos aniversários . Isto é o apogeu da consagração , mas é também o vértice da montanha, donde fatalmente tem que se descer. Lá para a Étoile tem Hugo outro monumento; uma pirâmide de bronze com o apetrecho clássico de estatuária, deusas , ninfas , símbolos , emblemas, letras de oiro que se lêem a dez léguas . E em todas as cidades, em todas as vilas de França, Victor Hugo há-de ter necessariamente o seu boulevard, a sua praça, o seu carroussel, a sua impasse , o seu cabaret, a sua filarmónica. Como os deuses tinham os seus templos , Victor Hugo tem o seu museu. S ão cinco andares , de alto a baixo, cheios de si , onde religiosamente são guardadas desde as suas chinelas ao sofá onde o imperador do Brasil se sentou, destronado . Lá se vêem os seus desenhos, as suas cuecas , as encadernações caras dos seus livros , inchados e pomposos como um doutor bisantino que não acabou de falar. Hugo tem a sua Sociedade entre amadores , ministros , literatos , prudhom­ mes, como dizia singelamente S . Luiz . Há uma semana que esta sociedade está em pé de guerra, cantando, celebrando, bebendo a Victor Hugo. A Notre Dame foi posta em carne e osso , desceu ontem lentamente o Bairro Latino com Clopin Trouillefou e a Cour des miracles, o capitão Phébus e a sua escolta luzida, Esmeralda e a cabra, Quasimodo e a sua cúria de doidos, que o escritor encontrou ao ver as quimeras da catedral ladrando, sobre a cidade, uma impre­ cação gótica, para os espaços . Foi um cortejo de centenares de figuras medievais escorrendo variegada­ mente na lama das ruas , entre círios e couraceiros da República. Mas faltava­ -lhe aquela graça, aquela elegância francesa que doira a pobreza da mi-carême, 48

onde Cranquebille é rei e a vendedeira de hortaliça é de um dia para o outro rainha da formosura e das halles . Os halabardeiros de Phébus traziam cota, elmo, e botas do casão; o rei de Thunes era um turco passe-partout em Constantinopla, e Quasimodo , com a sua mitra ao alto, sobre uma padiola equilibrada, nem vesgo , nem corcunda, podia muito bem ser o amante de M. me Durand . No Parvis de Notre Dame , o cortejo fez romaria debaixo da inundação eléctrica dos reflectores aparecidos ali em plena Idade-Média, como a expecta­ tiva do Sol na batalha de Josué . Cinco minutos , e ribauds, ribaudes, truands, reis do argot, deslizaram com as suas charamelas , as suas bandas de pífaros, ao compasso da Gau.a Ladra das músicas regimentais . E m tudo isto havia u m aparato cansado , o cerimonial fastidiento , a cair de indiferença, das festas · do calendário . Da mesma forma que pelos arraiais não se fala das virtudes dos oragos , ontem ninguém se ocupava das qualidades de Victor Hugo . Abaixo das sensações traduzíveis do público parece que havia um estado subconsciente de espírito , desgostoso e . aborrecido . Figurou-se-me em sum� que o autor dos Travailleurs de la mer reinava apenas ao de cima. E desolador contemplar com os olhos com que se amam as mulheres boni­ tas e com a alma que se apaixona de outras almas , este fazer e desfazer das coisas . A evolução é para as coisas que o orgulho chama eternas o que a morte é para o orgulho . Ambas rolam desfeitas sob os pés que passam . Victor Hugo estendeu a mão e todo o mundo veio ao beija-mão . O seu funeral lembra esses cortejos formidáveis do Oriente, um povo inteiro indo sepultar um Faraó sob uma montanha. Em breve Victor Hugo ficou santificado , com livre curso as suas ideias , não repugnando nem a avançados nem a conser­ vadores . Mas se não repugnam, não satisfazem uns certos . E são estes que saíram do meio e formam atrás de si as grossas correntes que hão-de entrar nos tempos futuros . Hugo agradou muito depressa; e neste século de coteries isto é um sinal de declínio . Deixou muitas palavras , efeitos bizarros de contrastes , uma lanterna mágica de imagens cintilantes . Mas quando Proudhon e Fourier expunham a questão social em termos concretos , em algarismos , é que ele encontrava a sua fórmula da equidade social; devolver os detritos humanos aos batatais e empazinar as gentes ao úbero da terra. Nas Choses vues justifica o luxo e os banquetes faustosos como a sábia providência das classes que trabalham . Trouxe o Jean Valjean pelos canos e não tinha lançado um olhar sequer aos canos; canoniza-nos Valjean quando de gatuno o converte em burguês; divide os Châtiments como um responso cristão em lareira cristã; o Ruy Blas é o maior pastelão dramático do Planeta, feito com os ovos quebrados pela fantástica condessa d'Aulnaz. Hugo atravessou a Comuna, os fuzilamentos do Pere Lachaise, as cruelda·

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des inauditas do general Gallifet; e não teve um grito de revolta, uma palavra de cólera ou de julgamento sobre a Comuna. Os seus livros todos não traduziram uma generalização, não formaram uma escola, não deixaram uma ideia nova. Os seus personagens são tão falsos como o Rocambole . Foi uma sonora, uma argentina caixa de rufo dobando por uma montanha iluminada, acordando as cotovias , atemorizando a princípio os bur­ gueses , iludindo os cavadores . A atmosfera ficou a mesma, límpida onde estava límpida, suja onde estava suja. Aq. Rb.

in A BEIRA - N.0 238 - 9 I lO I 1 909

Terça-feira

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Abriram h á coisa de dias duas exposições no Grand-Palais: o Salão da Aeronáutica e o Salão de Inverno. No primeiro há desde o balão esférico , que , velado da névoa, saiu de Paris em 1 0 , até o monoplano frágil de Blériot que recentemente pinchou a Mancha. No outro há muita estátua que se não parece com as dos museus , uma aluvião de telas que ao lado da Gioconda justificam a pergunta: - Mas que arte é esta? Diante dos nedropteros artificiais do Salão de Aeronáutica, os rudes bipla­ nos , a bisarma quebradiça dos dirigíveis , há a sensação do imperfeito, seguida logo deste sentimento: é o progresso que passa, as suas asas são rudimentares, não têm a graça de voo da andorinha nem o cortante gume de asa da codorniz. Mas o progresso lá chegará; batendo no ar a velocidade do milhafre , a flexa despedida do atacar da águia. Assim como venceu na terra a abalada do avestruz, do cavalo selvagem , na atmosfera poderá caçar um dia o pombo correio , saudar mais alto que a cotovia a rosa do sol desabrochando das religio­ sas montanhas de Oriente . No Salon d' automne , em geral , os olhos vulgares passam indiferentes , como sobre um misterioso papiro, ou a rir, como sobre a actividade especula­ tiva dum misantropo. Há ali dentro uma arte muito nova, exilad� de todos os ciclos conhecidos , não tendo ainda um ideal , nem se precisando numa ideia sintética. É às vezes a dissonância e quase sempre a originalidade bizarra . Quadros há que parecem uma exumação tosca das artes indianas, outros que lembram a ociosa tarefa dum doido . 50

Mas esta arte irritante , louca, temível , tem a sua filosofia e procede dum sentimento bem elevado . Traduz a nossa época, esta fase ansiosa e pertinaz dum mundo que não acaba do passado e dum mundo que começou do futuro. A arte , tendo olhado os céus, consultado os espíritos e só descobrindo o caos , ficou desnorteada. Como a pomba de Noé , ela procura o ramo de oliveira, uma expressão nova que se coadune com as necessidades do espírito moderno . As ideias antigas de beleza não se adaptam já aos nossos tempos , caducaram . Hoje , já não há a consciência primitiva dos pastores que entre cânticos abstractos elevou as torres orientais para as estrelas: - Candeias de ouro , que sereis? que sereis? . . . O homem perdeu a sua vaidade antropocêntrica; é miserável; pratica a filosofia da luta; é um concurso de dínamos contra dínamos . Está assim fora dos espíritos o ideal do homem divindade em que os seres da Terra lutavam com os seres olímpicos e turbilhavam junto na mesma ronda sentimental e sofredora. Não há hoje rude oleiro que seja capaz de arrancar do barro as divinas figurinhas de Tanagra nem alma subconsciente de artista em que dormi­ tem as formas sobre-humanas da Vénus de Milo . Santo Agostinho e Schopenhauer amortalharam na sua capa, para sempre , este ideal pagão, dizendo, um , ao homem: Ajoelha-te ! , riscando outro com o seu espírito brutal e ponderado de alemão a legenda de Lucrécio: Hominum divumque voluptus, alma Venus . Já não há também o temor medieval que semeou areia nas almas e obteve florestas bizarras , imponentes de pedra, onde a insânia religiosa lia o livro de Ezequiel . Nós pusemos Deus fora de casa como uma alfaia velha, cultivamos os abraços , o amor, e damo-nos todos aos sentidos terrenos. Catedrais, orando, clamando , chorando , que povo as atira hoje para as nuvens espontaneamente? Os Flamengos desceram a beleza sobre o homem, espalharam-na às mãos cheias sobre o pópulo, o deita-gatos , o cavador, o belfurinheiro , o bebedor. Foi a consagração dessa boa patuleia que vem de Caim até o serrano a que hoje o Estado e o agiota levam o coiro e a camisa. Mas esta apoteose foi aos homens . Tais como eles eram, panteístas beatificamente, e não como eles deviam e têm a ânsia de ser, felizes , soberbos , iguais , sem fome nem opressões . Caducaram com o tempo as velhas concepções de arte como o s antigos sistemas filosóficos sobre o mundo. Hoje , há muita fórmula abstracta em curso quanto ao ser, mas nenhuma dogmaticamente aceite . O homem só não é céptico na dúvida. A mais fulminante instabilidade preside ao destino das coisas; a terra é bem a cidade da dor, da luta, das ânsias inqualificadas . A arte incarnou sempre o espírito avançado, reivindicador da época, rea­ gindo contra a estática aprazível das coisas como o ferro no ferro. Lucifer, o rebelde , o incitador aos gozos , é de crer que expulso da serpente se metamorfo­ seasse nela. 51

O Salon d' Automne está nestas circunstâncias; é o nosso tempo, cheio de ambições, sedento de um equilíbrio que acaba com o pedinte e com o burguês , com a prostituta e a mulher honesta. Nas suas 1 800 telas há a impregnação deste meio indeciso, furta-cores , onde se debate a teoria e a prática de mil ideias novas e de mil ideias desfeitas . Encontrando exaustas as expressões de beleza, os artistas procuram uma forma nova e são sondagens , torturas , descon­ certos , de que só a intenção os salva. Em Paris há muitos salões de arte na roda do ano; este é o coin des fauves, dos anarquistas em arte . Ao pé dele , certamente , os outros são a normalidade , o senso comum , cheios daquela pacatês linda que muito agrada a Deus e aos homens de boa fé . De resto , inaugura-os a marselhesa e a Légion d' honneur. Os artistas , porém, que expõem nestes salões , salvo raras excepções , pintam com um pincel que Van Dyck, Ticiano ou Fragonard deitaram fora há muitos anos . Pompiers, trabalham para as antecâmaras de Saint-Germain à razão de 100 000 francos cada quadro . São os mestres do chie , da elegância nervosa, e as suas telas podem datar­ -se pela moda que reinou em tal mês de tal ano . Antes de enlabusar a lona, vão primeiro certificar-se dos últimos padrões à Rue de la Paix . O Salon d' automne não tem o público das garden-party a visitá-lo, nem tem encomendas caras , nem pede a rnr. Fallieres para lhe ir deitar a bênção no dia do vernissage . A maior parte dos seus artistas andam desnorteados , mas à cata de uma forma que nem seja a grega, nem a florentina\ nem a espanhola. São pioneiros duma arte que há-de chegar; vão aplanando o caminho a um artista máximo , sendo os precursores dele como Fra Angelico e os primitivos foram precursores . O que se nota ali em cada quadro é o atentado contra um dogma seja na forma seja na ideia. Há muitos anos que os seus princípios novos foram estabelecidos , a abolição do tom local , uma teoria nova de valores , o absurdo da pose , a indispensabilidade dos efeitos da luz tão grande como o desejo. Foi uma renovação e se o impressionismo, se o Salon d' automne não tiverem um dia mais razão de ser, a sua obra ficará, bem . preenchido o seu papel de libertamento , de reacção contra o academismo. Indubitavelmente no Salon d' automne há muito de infantilidade, de risível , pouco do que se chama bom . Pondo muito ardor em fugir da técnica clássica, por exemplo , chegam a sintetisar as suas figuras como as bonecas de papelão dos bazares . As flores não são para eles , as delicadas jóias , animadas duma vida subtil , as ternuras rendadas de Fantin; não; eles representam organismos entregando-se gulosamente ao sol, deixando-se lamber por ele. Verhoven contra um fundo verde num só plano atirou um concerto amarelo. É novo , não tem nada da sábia técnica dos académicos, vê-se que os músicos 52

tocam gaita de foles e ocarinas . mas não têm cabeça ou , se a têm , não é humana , não é de primata, é uma abóbora, um balão de boxe . Fauconnier expõe no Portrait du Poete louve um exemplar abominável de homem , mandíbula de onanista. peito recto como uma tábua de má esquadria; as mãos rigidamente de pau . Não se sabe se isto é uma mistificação . uma farsa ou uma ironia. Mas a par destes outros artistas há sensatos , cheios de alma, traduzindo a impressão das coisas sem a adulterar, nem a ridicularizar. Entre outros são Van Dongen , Matisse . De Mouval . Francis Jourdain , Madeline , Steinlen . Stei len é o pintor dos gatos e das multidões que têm sede e fome de Justiça. É difícil encontrar nas outras artes um poder maior de compreensão que o de Steilen . Uma figura do povo sua é completa, sente-se nela ao mesmo tempo a revolta dormente , o sofrimento calejado , as paixões generosas . É igual a Zola com as multidões . Fá-Ias cantar, rugir, bater-se nas greves, alçar a perna nos bailes . Do povo , só ama este , cantando-lhe as alegrias , as ternuras , as revoltas , quase sempre o sofrimento . Steilen é um consagrado , mas por afinidade , por sol ida­ riedade , nunca deixa de expor no coin des fauves . Aq. Rb. in A BEIRA , n . 0 240 , Viseu , 1 6 I X : 1 909

Terça-feira

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Eu não deploro a morte de Ferrer. Da mesma maneira que se fosse cristão não amaldiçoaria Judas , Pilatos e os Rabinos . Estes consagraram as doutrinas de João Baptista, executando o humilde filho do carpinteiro; a cólera sagrada desta morte foi o semeador maldito que as espalhou pelo mundo . Militante de uma ideia, eu estou contente com o assassínio de Ferrer. Passou enchendo nossos olhos de luz , exaltando as nossas consciências , visto de todos como um cometa que , marchando à flor da terra, bebesse o ar, queimasse as florestas e as cidades . Foi sobretudo uma lição . O evolucionismo , tomando-se em filosofia do sentimento , amoleceu os homens confiados no desbanque gradual e voluntário do passado pelas ideias novas . Assim ende­ reçavam-se aos poderes constituídos deprecadas líricas , passava-se o tempo em platónicos arraiais , cantando o amor e a fraternidade . O individualismo revolu­ cionário tinha sido excomungado , banido da arena. E os sistemas mais avança­ dos desciam até aos sistemas mais retrógrados por nuances hábeis e bisantinas . 53

Pactuava-se até cair de joelhos e eis que um dia, empregados todos os meios da velha táctica, não se consegue arrancar um homem inocente aos algozes ! Perante isto , uma era incontemplativa tem de ser encetada dentro do prese nte incontemplativo , unha por unha , dente por dente - como aconselha o ri fão . A morte de Ferrer foi ao mesmo tempo uma renovação; a sua alma entrou dentro das almas , transida de dor, sequiosa de justiça . Voou sobre as cidades e parece que os tempos heróicos das ideias ressurgiram . Paris ergueu-se da comuna, as grandes capitais fremem, Berlim passou pela primeira vez sobre o respe i to atávico das suas lanças . Ferrer foi chorado . Há ainda nos espíritos mesmo mais avançados o medo , o horror, as nénias do preconceito católico quanto à morte . Nós não regressa­ mos ainda à concepção paganista antiga , da reintegração da matéria na matéria, i n d i ferente e natural . O estoicismo grego que atirava Codro para as fileiras i n i migas e se abria as veias entre Berenice e um claro copo de Falemo ficou atrás do barulho dos socos de S . Pedro . Filhos de monges e tarados religiosos , nós tememos e lamentamos a morte , mesmo quando ela traz consigo a germi­ nação espantosa que faz as primaveras nos campos e as primaveras nas almas . Eu não chorei Ferrer, que é uma renascença . Hoje estão acesos os ódios , as desigualdades das classes , o bom povo . Os nossos adversários cometeram uma cobardia e um erro ; e um deles é para nos rejubilar tanto como um acerto nosso . O fus i l amento de Ferrer foi uma emboscada a que o espírito do século atraiu Torquemada , vivendo à luz do dia, gordo e feroz nos reinos de Espanha . Fo i um falso entendimento de repressão que comandou o fogo em Montjuich . É a lógica dos tiranos esmagar, eliminar para viver. Para eles um pensamento pode sufocar-se com um penedo por cima e as ideias de um homem morrem com esse homem . Procuram o equil íbrio que lhes falta no arsenal da força. Extermi­ nam povoações , fusilam gente como alcateias de lobos , perseguem um princ í­ pio até os fundamentos a ferro e a fogo , como os camponeses fazem para com as palavras venenosas . Mas engano: os homens não brotaram ali acidental , esporadicamente; foram plantados no seu cantinho por uma ordem natural de coisas , mandatários de um esp írito que há-de subvertê-los . Verbo feito força, força traduzida em lei . Afonso XIII perdeu uma bonita hora de se enfeitar de virtudes aos olhos do mundo . A sua mão agrac iando traria a modorra, a détente . Mediavelmente i móvel - e tanto melhor - ela decretou a luta que de princ ípio lhe tirará o sono , o apetite e a alegria proverbial à sirene do seu automóvel em passeio . V ai pelo mundo um floreal imenso medrando sobre o sangue derramado de Ferrer. Na noite de 1 3 eu vi toda a turba do faubourg, que Carriere ungiu na névoa da sua ronde-bosse, gritar, chorar, morder. Ainda tenho nos nervos a i mpressão viva dessa jornada trágica e generosa de Paris . Das 2 h . da tarde às 54

8 h . da noite , violentos cartazes protestativos apareceram pelos muros , pelas pontes. edições especiais da Humanité. Guerre Soda/e e Presse alagaram a , cidade . As 9 h. da noite . uma coluna forte , profunda de mais de 30 000 pessoas avançou nos boulevards exteriores contra a Embaixada de Espanha. A lnternationale elevava-se na noite , entre os prédios bojudos , triste . plangente ,

uma mão em brasa a revolver o fundo da nossa consciência à procura do homem . do bem. das revoltas . Depois foi o choque com os couraceiros . com a guarda, o Paris antigo ressurgido alma de criança e coragem divina. atirando-se contra as cargas , despedaçando . matando . . Ostensivamente invocava-se a ameaça germânica como latente, mas à boca pequena o conflito era dado como certo para a Primavera de 1 9 14. Dir-se-ia, todavia, que o facto só do desequilíbrio de forças , resultante das reformas alemãs , bastaria para justificar a inquietação francesa. Certamente . Não está , contudo , averiguado que a prioridade , nos projectos militares , cou­ besse à Alemanha; esta precedeu a França na votação, mas não no debate; a imprensa francesa, no entanto , apoderou-se desde o primeiro instante deste argumento providencial; mas o poder de convicção que poderia encerrar não ultrapassou já o juízo antecipado , que , com fundamento ou sem fundamento , havia sobre o perigo germânico . Seja como for, uma vez que a Alemanha se propunha reforçar e acabar por reforçar a sua já poderosa máquina de guerra, o esforço francês justificava-se; a equivalência de forças aparecia como urgente aos olhos tanto de radicais e socialistas , como das direitas . Simplesmente aqueles optavam por medidas mais maneirinhas , ou a realizar-se , gradualmente , no tempo , mas cujas van­ tagens sob o aspecto militar ou social se antepunham às da lei dos três anos . Aos trois-anistes restava o argumento da velocidade , a pres�a em colocar o exército francês ao nível do exército alemão . Como? Semeando o pânico , aboyant - disse Sembat; mostrando o ariete alemão às marretadas aos bastiões de leste . Assim foi; com uma impudência que tocava as raias da agressão, o ministro brandiu - não obstante Georges Bourdon num inquérito cerrado à sociedade alemã (L' énigme allemande) o ter esfarrapado literalmente que, entre outros , o general Percin reduziu às proporções de uma facécia do Cabaret de l' enfer. Esta casuística pavorosa captou os tantos republicanos que, com a coalisão das direitas , forneceram número bastante para fazer triunfar a lei . Ora a medida tomada, estes dias , pelo governo vem pôr a descoberto ­ dissemos nós - a armação maquiavélica da lei de três anos . Com efeito, é fora de dúvida que a situação externa, desde o voto da lei à data de hoje, se modificasse . Subsiste ainda a questão de Dodecaneso, atingiu maior acuidade a

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concorrência franco-italiana no Mediterrâneo , despontou o problema albanês . Alemanha e França conservam-se na situação de duas pessoas que , havendo jogado o soco , quando se cruzam , palpam o revólver na algibeira. A razão mesmo de ser deste ministério é ter esposado a velha querela franco-alemã. Quando precisa de forças bebe-as nela como as rabaças bebem na água. Mr. Barthou é um homem que sabe agarrar a ocasião pelos cabelos , mesmo quando ela passa escandalosa como uma samaritana. A varinha mágica do seu sucesso está nisso . Se a situação externa se apresenta igualmente torva e a França vai desarmar a 8 de Novembro , data, diz o general Maitrot, em que a Alemanha terá acabado de forjar o formidável instrumento de guerra de 800 000 homens , uma de duas: ou a medida em questão dimana de uma inconsequência assustadora, uma incompreensão maciça de responsabilidades , ou os argumentos invocados no parlamento não passam de grosseiros e perigosos sofismas . Na primeira hipótese , a conclusão moral é fácil de tirar: os membros do ministério merecem alinhar ao lado de Emile Olivier na razão dos coeurs légers; na segunda, será preciso dar ouvidos ao comandante Fortunio que na Année et Démocratie escrevia: '' Nas manobras de 1 9 1 2 , o director de um jornal de grande tiragem conver­ sava numa roda de oficiais do estado-maior. Um deles disse : - Seria necessá­ rio voltar à lei de três anos , mas não é possível; a opinião pública opõe-se >> . O director do jornal de grande tiragem retorquiu: - Com alguns milhões e tempo é fácil preparar a opinião pública>> . Ora é certo que algumas gazetas , entre elas Le Matin - e mr. Stéphane Lausane encontrava-se , se bem me recordo nas manobras de 1 9 1 2 - se lanças­ sem abruptamente em ruidosa e activa campanha patriótica. Em todo o país se fez um alarde dos diabos com aeroplanos , fanfarras , marchas militares , boycot­ tage das mercadorias alemãs , renovamento da questão de Alsácia. O naciona­ lismo integral - a chocar há muitos anos nos limites estreitos do Bairro Latino - saiu a público emplumado e assomadiço . Mas se a lei dos três anos não é filha da vontade inconfessada do estado­ -maior, pode-se também perguntar se o deputado Félix Chautemps - que afinal votou a lei - não teria acertado , quando em Lyão , em presença de Paul Boncour, a dava como produto da indústria metalúrgica? Ou se será mais legítimo crer em Anatole France (The English Review, ag . 1 9 1 3): que a recente medida governamental veio desmentir, que só existe para quem não tomou o puiso directamente à opinião alemã, ao povo alemão concentrado como uma colmeia, na sua faina construtiva. Arma-se? Nada mais natural , uma vez que o pode fazer sem se prejudicar, que tanto os indivíduos como as nações são regidos pela lei de que só vivem e só vingam aqueles que têm unhas . Quanto à França, não tendo ficado de pé a para uma lei que custa 258 milhões de francos anuais, e cerca de 800 milhões de despesas não renováveis em desproporção com o seu número de almas , afora vários inconvenientes econó­ micos e sociais, a perspectiva é pouco , muito pouco risonha. in A CAPITAL - 4 / X / 1 9 1 3

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A LEI DOS TRÊS ANOS ACARRETARÁ DESASTROSAS REPERCUSSÕES em todos os ramos da actividade francesa e principalmente na agricultura O ensino primário ressente-se já da falta de professores retidos nas fileiras Paris, 9. A execução da lei de três anos , que só em aquartelamento importará no dobro da quantia consignada no orçamento , vai ter desastrosas repercussões na vida económica e social da França. Como as muralhas de Atenas , construídas , segundo o alvitre de Temísto­ cles , com pedras dos cemitérios e dos palácios , a lei de três anos será montada com elementos desviados das funções essenciais do país . Para pô-la em pé­ -direito será preciso fazer escombros . Uma das consequências mais perniciosas será a que diz respeito às popula­ ções . A França é um país que se fenece na infecundidade; em 1 9 1 2 , ano , segundo o dr. Bertillon , demograficamente favorável pelas condições climatéri­ cas , o aumento de população cifrou-se em 57 9 1 1 almas , quando o excedente médio na Alemanha é de 800 000 e em Itália de 400 000 . A brecha está, pois , aberta à invasão estrangeira. Não será preciso rasgá-la à baioneta. Esta crise , que factores imanentes, que se não sabe atalhar, acentuam dia a dia, há-de ainda agravar-se com a lei de três anos . É sabido que uma dás causas da baixa de natalidade em todos os países da Europa está na introdução do serviço militar obrigatório . Concorrem para isso , de uma parte , os anos perdi­ dos em estado de celibato e o recuo que sofre a idade do casamento; de outra, -

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os vícios e costumes adquiridos na tarimba, que contrariam ou amortecem as propriedades prolíficas do homem. Sendo assim, é fatal que a passagem de dois a três anos de serviço deve ir precipitar a queda da população francesa. O sis­ tema de milícias , que rouba o menos possível o homem à vida familiar, estava indicado; Jaures , mesmo , apresentou um projecto de milícias regionais , que foi rejeitado no Conselho Superior de Guerra, presidido por mr . Poincaré , a título de que a sua concepção, sob o ponto de vista militar, escapava ao exame e à

crítica .

Além deste grave inconveniente , a dilatação do serviço militar virá enfra­ quecer a produtividade industrial e agrícola de França. Centenas de mil braços serão tirados à fábrica e ao campo , onde a mão-de-obra era já escassa. À cata de um equilíbrio militar, face a face da Alemanha, a França terá de capitular no terreno económico . Se as guerras devessem reduzir-se a puros conflitos econó­ micos poder-se-ia afirmar que a Alemanha está ganhando batalhas prodigiosas sobre a França e que a lei de três anos é um segundo Sedan ao activo da Alemanha. O avanço desta sobre a França em indústria e agricultura é colossal . Nação militarista por uma necessidade lógica de expansão e conservação no meio dos rancores que a espreitam , a Alemanha é , sobretudo, uma terra de lavradores e comerciantes . O seu génio próprio vem mais da Liga Hanseática que do imperador Othão . Guilherme II ufana-se em ser o primeiro caixeiro­ -viajante do império . > . Aparelhando-se para a guerra, a Alemanha soube ao mesmo tempo não distrair das fontes produtivas os braços e os capitais necessários a fazerem dela o primeiro fornecedor do mercado mundial . Assim, o comércio exterior da Alemanha de 1 3 milhões de francos em 1 902 atingiu 22 milhares em 1 9 1 1 : seja u m ganho de 9 milhares contra 5 ,5 em França no mesmo lapso de tempo. ( 8 milhares , 642 mil francos em 1 902 , 1 4 milhares , 742 700 mil francos em 1 9 1 1 ) . Segundo a Dreadner Bank, a fortuna pública alemã monta a 330 milha­ res contra 250 em França, pelos cálculos mais optimistas . A pobreza fmanceira da Alemanha era uma lenda; a esterilidade do solo era outra; os areais da Pomerânia são hoje viçosos pomares , a agreste Westefália está coberta de arvoredos; basta atravessar a Alemanha, por essa teia de aranha de grandes linhas que se estende de Herbesthal a Berlim, para verificar que não existe um palmo de terra maninho , que onde o solo era ingrato para seara foi utilizado para floresta. O terreno alemão , que em 1 800 não produzia mais de 14,3 quintais e cereais por hectare , rendia 20 ,6 hectares em 19 1 1 , contra 17,4 em França , uma terra gorda como barbela de abade . Este esforço não tem paralelo nas idades modernas . É para cair de cócoras de admiração . Sob o ponto de vista industrial a comparação é inútil; a dianteira tomada pela Alemanha é conhecida de toda a gente . Ora é nesta hora de concorrência 2 12

brutal que a França vai despejar para os quartéis a classe activa dos campos e das cidades. O resultado imediato será de ter de socorrer-se de mão-de-obra estrangeira, que num país de fraca natalidade é sempre perigosa pelo carreto de elementos híbridos à raça que determina. A mão-de-obra estrangeira, porém, nem sempre se encontra a um aceno de olhos . É possível , daí, que o operariado francês tenha de suportar uma segunda sobrecarga, como se influi dos prog­ nósticos de Denain-Auzain . No relatório anual , este dizia: Foi um alvoroço em tomo desta frase; os sinos de Toledo não repicaram mais alto . Os jornais repetiram-na, masc aram-na. Pois claro , França e Espanha iam colaborar juntas na conquista de Marrocos , em batalhões mistos . Convidou-se o general Lyautey; o pacto ia ser assinado ali mesmo ,

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enquanto o povo , nas praças , clamava: Viva la Francia! A França , porém , que tem 80 000 homens em Marrocos , que ainda não chegou a Taza, que tem regado de sangue os quilómetros de terra moira que ocupa, no fundo rejubilada dos transes espanhóis numa região que disputaram azedamente , a ponto do Matin exclamar: e do general Amade propor, sem mais rodeios , a ocupação da zona alienada pelo tratado secreto de Delcassé , e de Caillaux ser acusado de fomentar uma revolução republicana na Catalunha, a França achou a estipula­ ção onerosa para um serviço muito problemático, de eficácia não menos pro­ blemática . Daí esse três vezes fino , cínico, maquiavélico artigo do Temps , Prudence espagnole , onde à malícia de um Voltaire se aliava todo o artifício de um Talleyrand . Dizia a grande gazeta oficiosa, em laia de resposta ao Imparcial, que procurava pôr freio ao zelo prematuro daqueles que iam até falar numa aliança com a França: « As mesmas palavras se podem aplicar a todos os que recomendam uma colaboração militar franco-espanhola no império cherifiano . Colaboração , sim , se com este termo se pretende designar o desejo dos dois governos de não erguerem embaraços um ao outro , de evitar uma aparência, sequer , de rivalidade ou de concorrência, de prosseguir solidariamente na obra de civilização . Mas , há pessoas que vão mais longe , que vêem já as tropas espanholas e francesas combinando operações , passando, segundo a necessidade das circunstâncias , de uma para outra zona. Aqui , é preciso , como sugere o Imparcial, ter cuidado em não ir muito depressa e originar contratempos de futuro . Admitamos a hipótese de que o problema se possa resolver militar­ mente , o que é mais que duvidoso em razão dos efectivos: - esta solução seria prenhe de dificuldades . Quando se diz: a França poderia dar à Espanha uma demão militar, esquece-se que , conforme o nosso método marroquino , a acção militar anda indissoluvelmente ligada à acção política. As nossas tropas , desde o general ao último soldado , são agentes políticos . Comandante algum dos nossos deixa de fazer política e de reunir na mão , de maneira inseparável , as duas espécies de poder. Resulta daqui que , se porventura as tropas francesas operassem em zona espanhola, fosse muito embora no espírito mais amistoso, a política francesa na dita zona. Já não seria o «residente>> espanhol , mas pela força das coisas , o « residente>> francês , que inspiraria a acção . Atritos derivariam ao encontro do interesse comum. O efeito seria idêntico se se invertessem os termos da hipótese, se a Espanha interviesse na zona francesa>> . Esta advertência explícita, mas dourada como a pílula mais dourada, teria sido escutada em Espanha? Devia ter sido . Não sei que considerações de gabinete os políticos espanhóis poderiam ter feito , mas a éconduite era muito industriosa para suportar um remoque, uma réplica à boca cheia. Depois , acima de tudo , os Espanhóis são cavalheiros, vão 2 16

até baixo como vão até alto , sob o sentimento da dignidade . Embora; estou em crer que , está trancada na garganta de muitos espanhóis de verdad. Em suma, a França não descalçará a bota de Marrocos à Espanha, e a Espanha não tomará parte no conluio contra a Alemanha. Pois que alvíçaras , senão estas, poderia a França dar à Espanha? Fechar os olhos sobre uma invasão de Portugal ou a entronisação dos Braganças , mercê de um apoio de armas? Não pode ser; ror. Poincaré é muito republicano para jogar uma república como os judeus jogaram a túnica de Cristo . A França radical é nossa amiga e a França inteira tem interesse em que a República Portuguesa vingue . Além disso , ror. Poincaré se foi o advogado de Reillac na negregada questão do empréstimo D . Miguel , é um amigo cordial de Afonso Costa e outros vultos portugueses . Não pode ser; e que assim fosse? Um povo pode conquistar outro , quando para ele está na propo�ção de 3 habitantes para I , mas não pode guardá-lo . Não poderá guardá-lo , a menos que nas veias desse povo corra água de flor de larangeira. De resto , o Espanhol , valente e incomparável na sua casa, é um péssimo soldado em terra alheia. O soldado de Marrocos e de Cuba não é o soldado de Saragoça, nem o guerrilheiro que sacudiu os franceses para lá dos Pirenéus. Ficou a esta raça de conquistadores por excelência um grande amargo das aventuras . Não podemos estar tranquilos desta feita; não fomos um valor de banco nessa aliança que havia de lançar latinos e eslavos contra germanos . Mas não será motivo para deixar apodrecer aeroplanos e que os pardais venham estercar na boca dos canhões . Levada pelo obstrucionismo à Alemanha, a França terá uma amiga; é pena que não tenha feito uma aliada. O caminho da França deve ser este: os países de língua latina. Em vez de ir pisar os pés à Alemanha, no Oriente , em vez de concentrar toda a solicitude no urso russo e no . bácoro sérvio , como diz Sembat , à cata de um lucro mesquinho e arriscado e difícil , tudo lá lhe ficará ao alcance da mão , ao molde do seu génio , do seu comércio e da sua iniciativa. Aquilino Ribeiro

in A CAPITAL

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A POLÍTICA ESTRANGEIRA DA FRANÇA NÃO É DIGNA DO SEU NOME baseando-se toda sobre a obsessão e o ódio ao alemão A França não buscava o que lhe convém, mas o que não convém à Alemanha Paris, 12 . - Por mais paradoxal que se afigure , é um facto a França ser governada pela Alemanha. Não que Guilherme II seja o imperador dos France­ ses , segundo a tese nacionalista de Charles Maurras , nem que a França esteja possessa do espírito de imitação por tudo o que se dá além-fronteiras , como insinuava um artigo recente de Arthur Meyer. Para isso seria preciso que a França tivesse chegado a um grau extremo de decadência - que os factos não autorizam a ajuizar - e que fosse planta murcha esse maravilhoso instinto francês em que florescem , entre outros extremos do pessoalismo , o orgulho e a rebe!dia . A França não é governada nem pelo poder, nem pelo génio , nem pelo senso prático da AJemanha; a França deixa-se governar pela obsessão que nutre pela Alemanha. E uma verdade que salta aos olhos de quem atentar na imprensa francesa. A primeira gazeta de informação , que consagre umas entrelinhas ao mundo , ver-se-á no compromisso de encher colunas com a Alemanha. Tudo o que seja força , exterioridade , equívoco na vida alemã será remexido , decom­ posto , esbandalhado . Em correlação , este povo, que desconhece os outros povos e faz timbre em desconhecê-los , é conduzido por uma sugestão impe­ riosa , independente da vontade , a vir à janela da sua torre de marfun considerar a vida alemã que passa. Imprensa e público tiram daí, pretexto , geralmente , ou 2 19

à mofa , ou à pateada, ou ao enfatuamento do que são e do que têm em casa. Parecem, todavia, fazê-lo com segurança e a sua expressão é