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Portuguese Pages 310 Year 2009
MD Magno
Ordem e Progresso Por Dom e Regresso Seminário 1983 3ª edição
O direito de impressão é pessoal e intransferível.
MD Magno
ORDEM E PROGRESSO POR DOM E REGRESSO Seminário 1983 3ª edição
é uma editora da
Presidente Rosane Araujo Diretor Aristides Alonso Copyright 2007© MD Magno Preparação do texto Patrícia Netto A. Coelho Potiguara Mendes da Silveira Jr. Nelma Medeiros Editoração Eletrônica e Produção Gráfica NovaMente Editora Editado por Rosane Araujo Aristides Alonso
M176o Magno, M. D. (Machado Dias), 1938Ordem e progresso por dom e regresso : seminário 1983 / M. D Magno ; preparação do texto: Patrícia Netto A. Coelho, Potiguara Mendes da Silveira Jr., Nelma Medeiros. – 3. ed – Rio de Janeiro : Novamente, 2009. 310 p. ; 16 X 23 cm. ISBN – 978-85-87727-49-7 1. Psicanálise – Discursos, ensaios, conferências. I. Coelho, Patrícia Netto A. II. Silveira Júnior, Mendes da. III. Medeiros, Nelma, IV. Título. CDD- 150.195 Direitos de edição reservados à: Rua Sericita, 391 - Jacarepaguá 22763-260 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil Telefax: (55 21) 24453177 www.novamente.org.br
Sumário
0. CARTA A BERTA 9
Primeira Parte
Ordem e Progresso 1. HALOPATIA Proposição do conceito do Um – Experiência significante é revirão – Alelismo significante: impossibilidade de coincidência e complementaridade entre alelos – Questão sobre o significante: identidade e referência. 13
2. A REFLEXÃO Reflexão da imagem própria como matriz simbólica no Estádio do Espelho – Descrição em quatro tempos da reflexão – Instalação do ponto bífido no espelho uniface. 33
3. AURIVERDE PENDÃO Considerações sobre a recepção do positivismo no Brasil – Distinção entre cultura e sintoma – Ordem e progresso é metáfora e metonímia – Sintomática brasileira é
heterofágica – Exigência de Nome do Pai na análise do sintoma nacional. 43
4. CAMBALHOTA Tradução de Trieb: tesão – Leitura de Pulsão e suas vicissitudes – Homotopia entre circuito da pulsão em Lacan e revirão – Perversão é condição do falante – Graus de perversão e o regime específico da perversidade – Denúncia da perversidade social. 63
5. O AFETO QUE SE ENTERRA Relação entre afeto e fé – Poder se funda na imaginarização do simbólico – Cristalização sintomática sustenta poderes – Desejo quer a morte – Apresentação do poema Se queres bem. 83
6. O GLOBO DA MORTE Etimologia de corrumpio – Entendimento do Globo da Morte como esfera borromeana – Lógica do Globo da Morte é em revirão – Nó borromeano: espaço unilátero e estrutura quaternária – Referência sintomática do sujeito (alíngua) – Cura psicanalítica. 103
7. O OUTRO IDEAL: A RÉ PÚBLICA OSSIDENTAL Relação entre neurose obsessiva e obsessão do falante (inconsciente) – Não há matema da neurose obsessiva – Dialética inter e intrasubjetiva na análise – Neurose obsessiva é o regime de fé no saber – Produção de fetiche pela neurose obsessiva. 123
8. CORPO ESTRANHO Estatuto do corpo para a psicanálise – Imaginário, simbólico e real do corpo – Constituição do corpo – Isso, Tao e revirão 139
9. ...ELE... Função do shifter em Jakobson – Sujeito do dito em Freud e Lacan: sintoma – Sujeito do dizer: $entido – Resumo da primeira parte do Seminário.133 157
Segunda Parte
Por Dom e Regresso 10. O ESPÍRITO DA COISA Práticas de distanciamento no Bahagavad-Gita e na Psicanálise – Razão bífida de real, simbólico e imaginário – Regime das oposições em real, simbólico e imaginário – Nível originário das oposições. 167
11. POR QUE NÃO? Unicidade e dualidade no I Ching e na banda de Moebius – Dissimetrização como efeito de negação – “A negação fundamenta o que é da ordem do recalque” – Função do não, função de interdição e denegação – Denegação como retorno do recalcado e retorno do impossível. 183
12. MAIS OU MENOS Neutralidade do objeto a e lógica da bifididade do significante – Quatro movimentos da instalação significante de uma língua: 1) bifididade do halo significante; 2) interdição do anti-alelo; 3) denegação; 4) negação do manifesto – Artifício da negação estatui a Lei da Diferença – “O que distingue o falante é a bifididade originária” – Bifididade é fundamento de artifício (que funda natureza). 201
13. PAPILAS. PUPILAS O visível e o invisível de Merleau-Ponty – Quiasma é da estrutura do revirão – Condi-
ção da consciência-de-si: revirão – Computador significante do falante (máquina de instalação da diferença) – Fundamento da metáfora é revirão. 221
14. LUXÚRIA Falha ôntica como real (neutralidade) – Neutralidade como máquina originária de reversão – Existência não-ortodoxa da psicanálise – Psicanálise é uma Gnose do século XX – Real, simbólico, imaginário e sintoma no Espelho – Nome do Pai é o não constitutivo do sintoma fundamental do falante – Níveis de recalque e sintoma – Passe do sintoma é ato de transmissão. 243
15. PEDRA DO TOQUE Significante falo () em Lacan – S1 como sustentador da ordem sintomática – Metáfora paterna e gozo fálico – Homossexualidade e heterossexualidade do falante – Equivocação da razão fálica. 265
16. AO ZOO SE A PRAXE ZERO À TUA EXTRAI O que fundamenta a ética da psicanálise é revirão – Identificação simbólica com o sintoma – Aproximações entre o sobre-humano nietzscheano e o revirão 281
17. LEITO URDITO Possibilidade de instituição psicanalítica – Universal reduz-se ao possível – Apresentação do poema Revirão. 291
ENSINO DE MD MAGNO 303
0
CARTA A BERTA
Rio de Janeiro, 17 de janeiro de 38 a 83.
Minha Cara Berta Como é que é que fomos cair assim na tua − como ele e como L? (O segundo amalocando mais um pouco, e já nós objetando alguma coisa.) Só depois daquele teu “caso” com Herr Breuer, retomado por ele, é que a gente começou com essa coisa: a das Ding d’ele, Doktor Freud. De lá para cá Isso não pára (de se riscar) porque a-quilo não pára (de não se riscar): piorra! Foste tu, logo tu tão austérica, quem contou − para aqu-ele teu alegre secretário − comé quié quié quié perguntar pela aoutra. Ana? Aqui, O.! É mais para o Ano: internacional do desfixiente mental. E toca a blablar, na gravata do ex-escutivo, nessa tal de speakanálise, a talking-curra que sofremos da Outra − quando ele houve a Fala tua... em vez de só ficá a lê mão. − Mehr-Da! (Mas Isso diz: − É Fort-Da!) E nós aqui, O., só sabendo é per e perguntar e ventar cirandas depois de ti e d’ele e d’L − pois é que só a mor demos pela metade: esqueces que sesqui?, vais isto? − Piorra!
E não se-pára de escrevinhar uma carta-ré-exposta a essa cartada da Outra: bilhete sem resposta, escrito com a letra última da NADA. É nossa escrevidão a Ela (que nos comprou de escrotura passada). ANDA!, ela diz − ela manda, ela m'anda... Ela, A-manda, a que deve (também) ser amada: justamente para nada... Aqui, O.!, Ana, minha Berta cara. Por que será que é assim que insisto, de chamá-la por ela, em minhalíngua, a essa Nada que no língua diz-se onada, talque dicionarizada como onome do primeiro elo? É moda castelhana − como ao mar chamar amar? Que nada. Omar é nome dome, dominante de homem nado. A este, se a maré-é o que faz sina, entorno dela Luna, é esta que, abjeta, é a hela de lenda. Omar, a par, impa por ela. Ela: a par ida com as nutadas dele − dele no tesão de se riscar por inteiro, ele todo, tolo ele, ali apenas: debuxado... Ela? Que nada! A Nada não é a Mona (nem lisa nem ouriçada). A Nada não é a Dia (ela sempre a diada). A Nada é aquela pista revirada aonde só corre aoutra; mas para sempre entocada. Pré firamos a greta da Nada? A greta, Berta, como ônfalo e não como o falo (miraginário). Pois que, na vera, ninguém mesmo é falante: todo mundo é falado (isto é, mal falado). Pois que o Falo é alado, é avoante o Falalado − que se abate e que cai a cada tiro que, zerteiro, ao mesmo tempo amarra e move o alvo da bobagem. Eis o falente falhado − que, nós, somos: de cadentes extrelas enlaçadas. Não, pára com Isso, não. O. Ana Berta, O. Ana lítica − para que a gente se abra c'aldraba da falseta narcisa. E chega de Fort-Da? E chega de piorra? (Mas que Ver-gonha demandar-se tanto Mehr-Da...) Parati, minha cara Berta, doce eu,
MDMagno
Halopatia
Primeira Parte
ORDEM E PROGRESSO
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Ordem e Progresso por Dom e Regresso
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Halopatia
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HALOPATIA
Este é o chamado Seminário Interno, só para membros do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, ou seja, discriminatório. Como vêem, é discriminatório. Há um círculo de censura que não pega só uns, pega todos. Eu, por exemplo, sou cercado de censura por todos os lados. É muito bom se aproximar do Colégio, macaquear seus gestos, sem disso fazer nenhum ato, e depois sair correndo para empresariar a macaquice. Seminário não é curso – mesmo para curso há discriminação e tem uma distinção nítida para com o curso, pois é lugar onde o sujeito fala porque quer. Por isso, o Seminário participa da análise. Assim como posso escolher um analista, posso escolher um analisando. Ele também pode me recusar, se quiser. De repente, eu quis fazer assim. Não sei se é solução certa ou errada, isto por ora não interessa: quis fazer assim. Com a seguinte justificativa para mim mesmo: há algumas pessoas que se interessam seguidamente em acompanhar o que estou dizendo, portanto, me deixam mais à vontade, quer dizer, inacompanhável, e isto comprovadamente por uma atitude contratual são os chamados Membros do Colégio, que têm arriscado seu nome comigo nesta aventura. Os alunos de nosso curso de Mestrado em Psicanálise, do Colégio, não têm o direito de assistir a este Seminário: eles têm a obrigação, é diferente! Os Membros têm o direito segundo eu: na medida em que quero, pelo menos durante algum tempo, manter um certo distanciamento em algumas regiões. Um
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Ordem e Progresso por Dom e Regresso
sujeito que solicitou, pediu, demandou como se diz, ser Membro do Colégio, e além disso foi aceito, está todo arriscado. E isto para mim é uma garantia. Não que ele vá necessariamente me entender, ou que ele não possa me trair, mas ele assinou embaixo. E fica assim, até segunda ordem. O título que pretendi para o Seminário deste ano, porque é do ano, o Seminário é o mesmo, a seqüência é a mesma, só que no Seminário Aberto os outros podem escutar uma parte, é Ordem e Progresso. *
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Quero retomar estes dois termos, velhos conhecidos de vocês, o que está escrito na bandeira dita nacional brasileira, e isto é sério, retomar para tratar do que à psicanálise interessa como ordem e progresso. O que não é, na verdade, senão o que trouxe ano passado, com o nome de plexo e nexo. É que a potência sexual estou chamando assim a imposição da pura diferença, como sexo, no regime do solipsismo, que essa secção promove, onde tem razão o corpo espedaçado é, com aparente paradoxo, a potência do Um. A potência do Um, enquanto potência da falta, a partir da noção de instalação do Um pela falta, é que a aritmética vem chamar de zero. É daí que, por falta, se origina o Um, isto é, aí há o Um. Lacan diria: Y a d’l’Un, no Seminário Encore. Aqui vou dizer que AIAOUM fica interessante, porque é uma espécie de mugido , estou falando em brasileiro. É porque aí há o Um que a potência do Um se exprime por duas forças fundamentais, dois modos de expressão da potência sexual: a potência nexual no regime da ligação, onde se promove a incorporação, e a potência plexual, no regime da integração, onde se intenta a corporificação, digamos assim. É, outra vez, o retorno do Mito do Andrógino, relembrado no discurso que Aristófanes nos faz no Banquete de Platão. Esse fantasma, o Andrógino, sempre nos surpreende, pois que não deixa de configurar para nós uma fantasia primordial. Quero chamar assim: uma fantasia primordial,
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Halopatia
escritível como $ a na álgebra de Lacan. Há uma fantasia primordial pelo fato de haver Um e de Um ser requerido, porque há: AIAOUM. Esse Um está relacionado com haver Um, com a unidade, com a única que há: o conceito. Esse AIAOUM não é senão o que se diz em latim: hic et nunc. Dizer AIAOUM é o mesmo que dizer: Isso Nunca. Isso, Nunca! O conceito do Um: aquilo que Freud chama de Unbegriff, o não-conceito. Conceito Um do não-conceito. Lacan vai buscar esse Unbegriff na experiência, anotada por Freud, de uma ausência de tempo e de espaço no inconsciente. O que, na verdade, vem repetir a tese de Parmênides, o qual só nos deixou um poema fragmentário. Trata-se aí da leitura que Lacan fez da leitura que Platão fez do que supostamente terá dito Parmênides. Aí é que temos a possibilidade de tirar esse Unbegriff. Conceito este, lá no Parmênides, atravessado, porque passou Um como algo que é pontual e instantâneo. Hic et nunc, isso nunca! É o tempo de dizer nunca. Já distribuímos aqui quilos de trabalhos a respeito do Um, do Zero, das séries numéricas... Estou naquela ainda, dizendo que, a partir dessa minha fala de agora, quero considerar que existe uma fantasia primordial, androgínica, e que ela só existe por causa desse Um conceitual. Posso imaginarizá-la como esfera platônica, como completude, mas posso, também, simplesmente, atravessar, fazer a travessia dessa fantasia e me dar conta de que ela é apenas uma fantasia primordial, quer dizer, que está em todo falante porque é efeito de haver o Um. Estou, então, supondo que ela aparece com várias maneiras de expressão, mas que em todo mundo aparece. Não a mesma fantasia, mas em todos aparece uma fantasia correspondente a haver o Um, o que está representado no Mito do Andrógino, por exemplo. E haver o Um é justamente haver dois. Tem zero, tem falta... Nexo é o que chamo de regime da ligação. Plexo, o que posso chamar de regime da integração, tentativa de integração. Ligação e integração. A comparação que fiz lá com o Encore um corpo de incorporado fica corporificado, corporificação sempre não concebida porque há o Um. Então, esse um hic et nunc – como diz Kojève, p. 213 de seu Essai d’une Histoire Raisonnée de la Philosophie Paienne, vol. 1, onde trata dos
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Ordem e Progresso por Dom e Regresso
pré-socráticos é tanto instantâneo quanto pontual: “Podemos, portanto, dizer que o Conceito” é disso que Freud estava tratando, como Lacan “parmenidiano é um Instante (Nunc) sem duração, como dissemos que ele é um Ponto (Hic) sem extensão”. Quer dízer, essas idéias de extensão e duração estão fora do Um. Recomendo que leiam o Seminário de Lacan que, aliás, só li agora Ou Pire..., onde ele trata dessas questões. Um Seminário cuja ignorância minha me deixou muito satisfeito porque, querendo ou não, lá está o meu ponto-bífido, do qual ele não tratou, mas o disse. Aí ele faz remissão ao diálogo de Platão chamado Parmênides, onde Platão trata a questão do Um, e do qual Lacan faz uma leitura que a filosofia não fez: a do Um freudiano. O conceito é o Um, o Um cuja bifididade Lacan enfatiza, e usa mesmo a palavra bifididade Freud, aliás, já tinha posto isto na sua leitura daquele que ele diz que é lacaniano, o chamado Platão. O Um bífido, o instante bífido, o ponto-bífido, que me esforço para meter dentro da cabeça de vocês, aquilo que chamei de Zezéro (Zº). Coloquei daquela vez o Zº da nossa fundação: AIAOUM, Isso Nunca, ponto sem espaço, instante sem tempo, como o que Parmênides vem mostrar, como uma espécie de representamen do seu conceito do Um, que ele chamava de Zeus, diós em grego, e de onde Freud vai tirar a força do seu Eros, proveniente do andrógino aristofânico do Banquete de Platão, o qual, retirado do mito, quero que seja resultado de haver o Um. Portanto, vou de Parmênides a Freud de Zeus a Eros, ou seja, é o meu Zeus-Eros. Está aí, Zezéro. A título de curiosidade quero lembrar que é aquilo mesmo que pela via da chamada Gnose de onde veio um cisma da Igreja Católica se queria, talvez, apontar com a seita chamada Pistis Sofia. Pistis é fé, Sofia é sabedoria, como diziam, mas que, nas mãos de Freud, serviu como lógica mostrada da peste, da peste sofia, se não sem nenhuma sabedoria, digamos assim, ignara, é quando a sua peste só fia. Fia, tem pelo menos duplo sentido, isto é, tece ou confia, ou cofia. Cofia a malha, a malha inconsciente do seu inferno: “Acheronta movebo”, repetia Freud.
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Halopatia
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Retomo o Zezéro, ou o Zeus-Eros, isto é, o Um, ou seja, o conceito, para reperguntar a respeito do significante. Como ainda não sei qual é a do significante, então tenho que tornar a perguntar. Haver significante é enigmático. Chamei o significante de halo, (h)alo, com ou sem agá, tanto faz, e falei nos alelos desse halo. Por isso é que, hoje, estou querendo falar de uma Halopatia. Nós sofremos disto, somos halopatas, sofremos da experiência do halo. Vocês se lembram do que Lacan disse, certo momento, do significante dentro do Real, no Seminário sobre As Psicoses, quando se remete à la paix du soir: eis senão quando, sobrevém repentinamente aquela experiência do significante que me acossa de dentro do Real. Como é isso? A experiência do significante é a experiência do halo. É isto que quero dizer. É aquilo que configurei tirando da meteorologia a metáfora do halo para dizer que há um halo aí. Um halo real, real de rei e de coisa. Quando isso recebe a chancela do Nome do Pai, é real de rei; quando recebe a marca do impossível que ali se inscreve de algum modo, é real de coisa: por um lado, rex, regis, por outro, res, rei. A Homeopatia pode funcionar para o imaginário do corpo, mas, enquanto falantes, somo todos halopatas eis a questão. O que é isso, a experiência do Real como halopatia? Vamos de novo ao nosso halo: o que disse do halo significante acabava se inscrevendo como oito interior:
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Isso aí pode ser a nossa representação do halo significante. Para tentar, então, abordar esse tal do significante dentro do halo, utilizarei a Gestalttheorie. Vamos tomar algo que ela nos mostra e que é aceitável em qualquer circunstância: o fato de toda experiência perceptiva ter forma e fundo. Isto não é discutível. O que podemos discutir é da validade das leizinhas secundárias e terciárias que ela trouxe quanto às formas imaginárias: lei da boa forma, lei da pregnância etc. A Gestalt, como sabem, começou em 1890 com um sujeito chamado Von Ehrenfels. Há aqueles nomes todos: Wertheimer, Kohler, Koffka... e Paul Guillaume, esse francês que a introduziu na França. Existe tradução brasileira do livro dele, Psicologia da Forma, da qual lerei um pedacinho para relembrarmos certas coisas: “Todo objeto sensível, portanto, diz ele p. 44, não existe senão em relação com um certo “fundo”; esta expressão aplica-se não somente às coisas visíveis, mas a toda espécie de objeto ou de fato sensível; um som destaca-se de um fundo constituído por outros sons ou ruídos, ou de um fundo de silêncio, do mesmo modo que um objeto se destaca de um fundo luminoso ou escuro. O fundo, como o objeto, pode ser constituído por excitações complexas e heterogêneas; vejo uma pessoa contra um fundo constituído objetivamente pela parede, móveis, quadros etc. Mas sempre existe apreciável diferença subjetiva entre o objeto e o fundo”. Aí ele nos mostra aquelas experienciazinhas: a das duas cruzes dentro do círculo, por exemplo, uma com os traçados em raios, outra com os traçados em arcos. Ou se percebe uma, ou percebe outra. Adiante, p. 46, ele diz que “a figura tem uma forma; o fundo não a tem”. Quando nossa atenção ou nosso ato perceptivo se localiza na cruz de raios, a outra cruz não funciona como forma, mas como fundo. Ele está mostrando que não apreendo nenhuma forma quando a figura está funcionando como fundo. Não se pode, de modo algum, ver simultaneamente as duas cruzes: “Esse caráter informe, indefinido, do fundo, é ainda mais manifesto em outros modelos ambíguos”.
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Halopatia
Dada, então, a freqüência de declarações colhidas até hoje, as pessoas não conseguem ver as duas coisas ao mesmo tempo. Isto percorre as teorias e, mesmo, nossa experiência em termos de tempo. Magritte, por exemplo, faz quadros onde justamente finge que junta essas duas cruzes. Ele quer fazer uma paisagem inteiramente diurna com um céu noturno. Evidentemente que não se consegue ver noi-dia aí é fabricar essa palavra. Nossa experiência concreta do dia e da noite, por exemplo, tem um intervalo temporal no meio, mas posso jogá-lo fora. Isto porque, eis senão quando, baixa, segundo Lacan, la paix du soir. Não fico acompanhando o dia para conseguir ver quando é que ele vira noite: de repente, cai a noite sobre minha cabeça. Estou de noite, de repente, brota um sol diante do meu nariz – me dou conta de que a coisa revirou. Se fosse determinado pelo tempo, o tempo cronológico, por exemplo, eu precisaria ficar o dia inteiro tomando conta do relógio. Ia acompanhando... e capturava o momento em que o dia vira noite. Mas isto, que eu saiba, não ocorreu com ninguém. O que todos percebem é que, de repente, o dia vira noite. Muita gente vai à beira do mar ver o pôr-do-sol... Eles vêem muita coisa, menos o pôr-do-sol, porque isto não existe. Vêem o sol tombando, tombando e, de repente, fica noite... Desafio qualquer um a dizer que viu o pôr-do-sol. Vê-se o sol quase desaparecendo, ou já desaparecido... Mas cadê o pôr-do-sol? Quero segurá-lo. Onde está o sol? O sol nasce onde? Ele nasce no revirão. É isto que a Gestalt vem nos mostrar – e esta descoberta é uma coisa tão óbvia que temos que aceitar.
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Nossa experiência em qualquer nível, sem a menor necessidade de coincidência com nenhuma experiência de ninguém, rebate sempre nesse ponto do revirão, onde o significante emerge. Estou querendo dizer que ninguém tem experiência de dia, se não tem experiência de noite... É aí que começa nossa questão: dia e noite que a Lingüística insiste em dizer que são significantes com promessa de significado compõem a experiência do significante de dentro do Real. Ou seja: não é possível ser nomeado senão aquilo que é o halo, e não é possível ser nomeado senão alelicamente. Nossa experiência significante, ela pertence ao Real. O significante é alguma coisa que é uma borda, um furo, Real. E podemos absolutamente dizer que a Gestalt está certa neste ponto. Isto é uma coisa banal: para cada significante, temos que rememorar, para que assim seja, a experiência real de significante que sofremos, em qualquer momento da nossa vida. Ninguém entra na distinção opositiva noite/dia sem passar por um revirão. E daí poder fundar um halo significante, que é único e composto de dois alelos significantes: noite e dia, tenha isso o nome que tiver. Não existe significante noite ou dia independente de dia ou noite. Então, o halo significante, ele é a oposição, ele é o fundamento da diferença. Quero sacar isso que Lacan disse ser a experiência do significante dentro do Real: uma experiência concreta para cada sujeito. Concreta, que eu digo, é aquela que é do nível da fantasia, que vai dar no que for, mas ela empanturra o sujeito, porque o Real lá está e se apresentou a esse sujeito como diferença. Diferença esta só sendo reconquistável no sentido alélico da oposição. A diferença, para o sujeito, é isso e nada mais: a experiência de um ponto, um único ponto, chamado não-orientável pela matemática, mas que é um ponto de revirão, bate-se nele, vira-se ao contrário, e de que temos a experiência do significante como alélica, sempre. Quero enfatizar que o que interessa no campo da psicanálise é o significante fundado como halo. Naquela estampa famosa dos dois perfis, por exemplo, cálice/cara são um halo só. Um (h)alo, é o que chamo um halo significante.
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Todo significante é metade. Por isso, só se diz a verdade pelo meio, porque não posso dizer dia e noite ao mesmo tempo o halo, necessariamente, é alélico, ele é revirão. Estou querendo mexer nesse miolo aí da lingüística, a partir da psicanálise... Que se virem para misturar os registros de real, simbólico e imaginário e dar conta de toda proliferação. Tem que haver a experiência concreta do significante, e a entrada do significante, para o falante, na instalação na ordem simbólica, por uma experiência significante dentro do Real, como halo meteórico que cai na cabeça do sujeito, esse é que é o percurso de fort e de da. Não estou dizendo novidade nenhuma, só estou ressaltando uma coisa que me parece ainda mal repetida. Todo significante é metade, só que metade dissimétrica, no sentido de Lacan, de mi-dire. Não simétrica, pois não há complementaridade de espécie alguma. Não posso ter o significante dia senão pela memória coincidente com o meu proferimento de noite. O que a psicanálise trouxe, que está em Freud, em Lacan, é que não há nenhuma complementaridade. O que existe é que o Real da minha diferença significante é hálico e, por isso, só funciona, em qualquer proferimento, alelicamente. Isto não é complementar. No entanto, um requisita o outro, imediata e concomitantemente, o que não significa que se possa estar nos dois ao mesmo tempo. Muito pelo contrário, se estou num, tenho de qualquer modo um percurso, embora instantâneo e pontual, para chegar ao outro instantâneo e pontual, mas percurso, ou seja, um lapso. É o sujeito que está aí no meio. É a minha experiência de que fiz um revirão, de dia para noite. *
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O Um é esse halo. Mostrei como ele vem do zero, semestre passado. É o que Freud ficou intensivamente querendo demonstrar dando exemplos do duplo sentido antitético das palavras primitivas, por exemplo. E isto é que uma única palavra se cinde em dois alelos quando a utilizo em sentidos opostos. A experiência do halo é indefectível. Então, vou encontrar, como Freud encontrou, em línguas “primitivas”, aquelas palavras que querem dizer algo e seu oposto
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– unheimlich, é o caso. UM, heimlich, aliás, é o apelido do Um. É o Um que nos é familiar, quer dizer, que não nos é familiar de modo algum. Procuremos mais, pois existe essa tentativa de fazer palavras portemanteaux. Joyce as fazia, Carroll as fazia... O que é aquilo senão o que mostrei há pouco, e que chamei de potência sexual do Um, que é Zeus, diós, partitura, e é Eros, conjuntura, ao mesmo tempo? Querer dizer, numa palavra, o Um... É claro que não é possível dizer o Um, mas isto é a faceta erótica do Um. É o fantasma do Um, e há a fantasia de dizer o andrógino. Poderia eu dizer uma palavra que pusesse os dois alelos ao mesmo tempo? Então, fica essa brincanagem de Joyce, de Carroll, Quark, Snark, de tentar dizer os dois ao mesmo tempo. Mas não se diz, porque imediatamente se faz a cisão na leitura, ou se está no snake ou se está no shark. O sonho imaginário do andrógino é inventar homulher, mas não é possível... Mas posso dizer isto, homulher, porque ao invés de juntar os dois, mais os separo. Em Fantasias Histéricas e sua Relação com a Bissexualidade, 1908, já que estamos falando nela, Freud apresenta oito fórmulas para definição do sintoma histérico, sendo que afiança que a sétima fórmula é a que mais completamente expressa sua essência: “O sintoma histérico nasce como transação entre dois movimentos afetivos ou instintivos contrários, um dos quais tende à exteriorização de uma pulsão parcial ou de um componente de constituição sexual, e o outro tende a evitar essa exteriorização”. Quer dizer, há um alelismo no sintoma: um dito, outro não dito. Temos aí a reafirmação da bifididade do halo, em dois significantes alélicos: de afirmação, da, e de negação, fort. Apenas como lembrete, pergunto se alguém faria alguma pesquisa a respeito da questão do double bind, o duplo vínculo, de Bateson, de Laing, em cima disso... Logo depois, e de acordo ainda com o título do artigo, Freud declara que, “para a solução do sintoma, não basta sua referência a uma fantasia sexual inconsciente ou a uma série de fantasias, uma das quais, a mais importante e primitiva, é de natureza sexual. Para a dita solução, nos são necessárias duas fantasias sexuais, de caráter masculino uma e de caráter feminino outra, de
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Halopatia
maneira que uma delas corresponde a um impulso homossexual. Esta novidade não altera, de modo algum, o privilégio integrado em nossa sétima fórmula, resultando assim que um sintoma histérico corresponde necessariamente a uma transação entre um impulso libidinal e outro repressor, mas pode também corresponder acessoriamente a uma associação de duas fantasias libidinais de caráter sexual contrário”. O cara é cheio de macetes, vocês sabem que o avô não era fácil... Ali atrás ele diz: é assim. Depois diz: pode. É porque ele sabe muito bem amanteigar um imbecil. Quem tem olho para ver, que veja. Está nítido que Freud diz que há uma questão conflitiva no sintoma, por oposição do mesmo elemento, ou seja, que o halo é um só, e que a oposição é alélica. E quando remete isto às relações da histeria com a sexualidade, diz que isto é justamente porque a fantasia é dupla. Dupla como? Ela é unária, é alélica, porque não há sexo senão alélico. E não há o andrógino, no sentido de uma simultaneidade de expressão. É impossível ser andrógino, quer dizer, é impossível a relação sexual, quer dizer, é impossível estar em fort e em da concomitantemente há um lapso não-temporal e não-espacial entre dizer o masculino e dizer o feminino. No entanto, a tal bissexualidade freudiana vem dizer: todo falante e aí eu mudo o termo é anfissexual. Se um falante declara ser de um sexo só e só pode declarar assim, nega a existência do outro, e alguma coisa aí está errada. Só posso declarar ser de um sexo só se nego a existência do outro. Observemos esta lógica. Lacan diz que, no final de uma análise, o sujeito tem que decidir qual é o seu sexo. Aí, ficam pensando que o sujeito vai dizer: “Mas isto é homossexualidade!” Homossexualidade é o sujeito definir tanto o “seu” sexo que o Outro não existe mais. Basta pensar no Outro, e já se mudou de sexo. Se você pensa no Outro sexo, você lá está. Penso onde não estou? Lacan também corrigiu: estou justamente onde penso: no sexo, esta é a questão. Qual é o problema de Narciso, da homossexualidade? É que o sujeito não pode reconhecer que há Outro sexo. E qual é a maneira de se reconhecer isso? Como se tem a prova de que o sujeito reconhece? É que, eventualmente, o Outro sexo é interessante, nem que seja aparentemente o mesmo.
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Freud diz ali que “pode” corresponder, o que é contrariado pela oitava fórmula, logo depois. Ele sabe manejar o texto: “O sintoma histérico pode tomar a representação de distintos movimentos de inconsciente, assexuais, mas não pode carecer de uma significação sexual”. Desmentiu assim o que havia acochambrado na anterior. A sintomática histérica depende, portanto, necessariamente, da bifididade do halo significante. E digo mais: todo sintoma, seja ele histérico, obsessivo, fóbico etc., participa fundamentalmente de uma formação histérica. O que me leva a generalizar a fórmula e o comentário de Freud. E Freud vai ter que chegar onde deve, e chega, na nona fórmula: “O sintoma histérico é expressão, por um lado, de uma fantasia masculina e, por outro, de uma feminina, ambas sexuais e inconscientes”. Quer dizer, acabou com todos os quiçá, os talvez das fórmulas anteriores. Está aí, nas reflexões de Freud sobre a sexualidade, a dica de que o halo significante, em sua bifididade, é a experiência significante de qualquer falante. É claro que a prudência de Freud não o deixa não iniciar o fim do artigo com a seguinte ressalva: “Devo fazer constar que não posso atribuir a este princípio a mesma validade geral dos demais”. Ele é cautelosíssimo, o que, na verdade, é contradito pelos demais princípios, como vimos. Pelo sétimo, sobretudo. Então, logo adiante, diz: “Mas a relação descrita na nova fórmula é suficientemente freqüente e bastante importante, quando se dá, para merecer atenção”. Ele só não quer é bancar o “parana”, ele quer ter sucesso... onde o paranóico fracassou. “Esta significação bissexual dos sintomas histéricos”, diz ele mais abaixo, “comprovável de todos os modos em numerosos casos, é uma prova a mais da minha afirmação anterior de que, nas análises dos sujeitos neuróticos, transparece com especial clareza a suposta bissexualidade original dos indivíduos”. Outra vez ele reafirma, ou seja, se pelo menos estilisticamente ele denega, de qualquer modo ele reafirma. É como se, com seu estilo, dissesse: “Acho que é assim; não estou dizendo que seja sempre assim; mas o que penso é que é assim sempre”.
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Halopatia
Retomemos esta questão do halo e dos alelos. No Parmênides de Platão, que fala de uma experiência que todos podemos refazer, vemos que tudo parece funcionar dentro do que Platão chama díade ou díada. Ele mostra que toda a experiência pensante, toda a experiência que passamos, é uma experiência de oposições: uma díada. Jacques-Alain Miller, aliás, tem um belo texto falando de inconsciente como Um diádico. Mas Lacan, no Seminário Ou Pire..., diz que essa coisa que está lá, o Um parmenídico que Lacan trata como está no texto grego e que posso traduzir por: há Um ou há o Um , Platão, na verdade, escolhe que há o Um, e que o Um nada tem a ver com o que engloba, com a Einheit. Há mesmo algo de notável, diz Lacan, que “o que Platão demonstra é que não poderia haver nenhuma relação desse Um com o que quer que seja de que ele fez, de mil formas, a recensão metafísica, que se chama a díada, na medida em que, na experiência do pensamento, ela está em toda parte: o maior, o menor; o mais jovem, o mais velho; o inclusor, o incluído; etc.” Então, Lacan vai dizer que não é por se estar na experiência da díada que o funcionamento é diádico. É que lhe interessa retomar essa tentativa de abordagem de Parmênides por Platão, para provar que o fundamento é unário, e a partir do nada. Ele vai demonstrar exaustivamente que essa aparência da experiência do diádico é, na verdade, experiência do Um. Digo que nada mais é que essa experiência do halo. Que vindo do Nada ex nihilo só o significante se faz, como diz Lacan, ao instituir o Um como bifididade. E, portanto, daí, há dois. Quer dizer, é a unariedade, a unicidade enquanto Einzigkeit, enquanto marca distintiva do significante em nossa relação com o Real. Isto é que quero chamar halo significante, que é bífido e, portanto, do Nada nasce o Um, e do Um vem Dois, imediatamente, por repetição. O significante falo, por exemplo, é o F’halo. Esta é a experiência do falo. Como funciona isso para nós? Querer ter ou querer ser, ficar nessa jogada com o falo, nada mais é do que aspirar pelo Um. Ser ou ter, para mim as duas coisas, é aspirar pelo Um de dois modos diversos: ou tendo aquilo que me marca como Um, ou sendo aquilo que me faz o Um. Aliás, há que passar pela experiência de não ser o conceito, de não ser o significante, de ser marcado
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pelo Outro. Não sou o significante, sou significante para outros, porque sou marcado como significante, mas não sou o significante. Aliás, sou insignificante, como todo mundo... A experiência da díada vem da experiência da mônada, essa de Leibniz, e aí Lacan põe algo interessante, que toma da língua espanhola porque era ignorante e não sabia português: a experiência da Nada. Ele pôe nada no feminino, pois é do espanhol que vem la nada para ele. Danada, a experiência da Nada gera nossa experiência diádica, que é a experiência do Um, de onde, necessariamente, imediatamente, por repetição, brota o Dois. A experiência do significante, ele insiste, é a experiência do Um. Digo que ela é hálica. Quero insistir é que há o halo significante, com os seus dois alelos. O Um é o conceito de haver falta. O Um é o nome do zero, é o nome da falta. Por isso, o Dois. Por isso, é impossível toda e qualquer transexualidade. Ao mesmo tempo que é absolutamente possível e necessária a transação sexual, intra e intersubjetiva. Vamos tentar fazer uma metáfora para melhorar isto. Se não se puder passar de um para outro há alguma coisa errada. Faço a metáfora da coisa sensível, do filme sensível, o filme de fotografia, ou a folha de se tirar cópia. É a experiência inscrita, escrita, memória do alelo não proferido e que vem junto com o alelo proferido. Pego um ampliador fotográfico e faço uma projeção sobre uma folha de papel de cópia, e onde há luz inscreve-se o negro, onde não há, inscreve-se o branco. Esta é, para mim, a metáfora da inscrição do significante. Retomaremos isto mais tarde não é aquela mesma abordagem que faz Derrida. Mas faço questão disto, porque Lacan também disse que lá estava escrito e que era preciso dizer. Está lá, tudo começa nos escritos, Lacan diz isto textualmente, e Freud também. Ele ficou lá com o tal do seu bloco mágico, seguro naquela metáfora, mas eu gostaria de me pegar agora na metáfora do papel sensível. Estou querendo dizer com essa concomitância, em rememoração, do alelo não-dito com o alelo dito, é que, no que a luz inscreve negro, o negro como tal inscrito é memória da luz. No que eu disse com o significante que proferi, está a memória do seu alelo não-dito e impossível de ser dito ao mesmo tempo, mas possível de ser rememorado sincronicamente com o alelo proferido.
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Halopatia
Quero dizer que toda vez que alguém fala, fala quase por inteiro. A gente só semi-diz, mas fala quase por inteiro. Tudo que está sendo dito tem avesso, o qual seria o complemento se a soma fosse um inteiro. Caso não fosse suplementar, porque alguma coisa se perde no meio, o que é irrecuperável é a revirada, que se perde no meio porque, o revirão, eu não o seguro. Onde foi que virou? Não saberei. Na verdade, só se comemora a “faltinha”, pois o tudo que está sendo não-dito, o tudo que está sendo com-pro-me-dito sofre alguma falta. Na verdade, não falta o outro lado: não falta o avesso do que se diz, porque lá está o avesso memorado, só não notaram porque não quiseram, porque está lá. O que falta a preto não é branco. A lingüística é que diz que o que falta a preto é branco. Para mim, quando digo preto não falta branco, falta a, que é o revirão perdido. O objeto perdido é o ponto, o instante do revirão: o ponto em que, segundo Guimarães Rosa, o carvão é branco... ou preto. Eu semi-digo, semi-profiro, porque, no que digo, só digo de um sexo, o avesso não está sendo proferido, mas nem por isso deixa de ser rememorado. A partir disto, eu não repetiria com Lacan que só posso dizer a verdade pelo meio. Digo que posso dizer a verdade quase toda, embora toda não. Queira ou não, estou sempre denegando. Estou dizendo que a nossa vergonha “e a vergonha é a herança maior que meu pai me deixou” é justamente o fato de que, no que profiro, por virtude do recalque, só comparece um-sexo, mas que, pelo retorno do recalque, eis que, não mais que de repente, digo quase tudo. O recalque é isso. Por isso, estou dizendo que o cerne do recalque está por trás de qualquer coisa que se profere. Por isso, Freud teve que inventar o tal de recalque original, um recalque a sustentar todo e qualquer dizer. É que, quando digo dia, foi dia que eu disse e não noite. Aqui e agora há recalque porque não posso fazer comparecer, na minha fala de um halo, senão um único alelo. Não posso estar, simultaneamente, nos dois sexos do halo. A experiência do Um não tem tempo nem espaço, mas nossa experiência de tentar dar conta do Um imediatamente cai na experiência de um lapso de alguma modalidade do tempo, ou do espaço, entre um proferi-
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mento e outro de alelos, e não há concomitância possível. Isto é o recalque. Recalque que é mesmo aproveitável, para a paixão da repressão. Quando mando falar em dia, quem falar em noite entra no cacete se o poder me permite. Então, aproveito haver recalque de noite, quando digo dia, para legiferar: proíba-se dizer noite, recalque-se mais ainda isto. É o recalque nosso de cada dia... O recalque é instantâneo, mas não posso garantir que ele esteja no passado ou no presente. Quando falo, o recalcado, supostamente dito de qualquer modo, ficou recalcado porque foi dito depois, ou porque apareceu antes? Não sei. Como se pode saber se só se vai saber depois? Na instantaneidade do dizer, não se tem passado nem futuro. Minha realidade, aliás, não é o falo como significante do desejo, é minha vontade de querer ser dia e noite ao mesmo tempo e não conseguir. Isso é efeito do falo, que, como significante do nosso deslumbramento, é só isso. O que me promove é o falo e ele é o significante, para mim, como Um: “Ah! se eu pudesse dizer o Um significante!” E fico nesse tesão e nessa decepção, porque o máximo que consigo produzir é nexo, movimento de tentativa de ligação, e fracasso no plexo. Fracasso na tentativa da conquista de uma metáfora que, outra vez, não é inteira, é incompleta. Isto é simples como “bom dia”. *
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O Real insiste em não se inscrever. Ele não é senão o objeto a, que imaginarizamos para podermos viver mais esféricos. No meu revirão, no meu halo, tenho uma máquina lógica mínima. Ainda há pouco, estava dizendo que um significante, para se proferir, recalca outro, que há sempre um oposto, e isto nem que seja a marca dos outros, porque posso escrever: Sujeito sobre revirão, como halo, por efeito tanto de um significante que se proferiu, como do outro. O que se perde é aquele a que não foi absorvido. S1, S2, a, $, pronto, está tudo aí.
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A experiência da diferença, como significante, é, antes de mais nada, e esta é minha hipótese, a experiência, para cada sujeito, de sua própria emergência entre dois significantes alelos, de um halo só. Uma experiência, por conseguinte, unária. É isto que a criança do fort-da de Freud representou, o que ela capturou como fort-da. O significante que está aí é fort ou é da? Nenhum dos dois: ou é um e outro, um ou outro. Estamos no vel de Lacan: presença de mãe só reconhecível com fundo de ausência, assim como ausência de mãe só reconhecível com fundo de presença. Fort-da é o halo significante enquanto unidade. Não há da sem fort, nem fort sem da. O sujeito emerge como efeito dessa diferença que é propiciada na falta daquilo que se poderia lhe permitir se ele capturasse, a seu modo, a conjunção de fort com da. É o que chamamos de objeto a. O falo é essa somação, nossa vontade de conseguir juntar mais-falinho com menos-falinho para falar em falo no imaginário, porque o pirocão mesmo é o simbólico: + vamos chamar de +1, e de 1:
Se tivéssemos condição de aprisionar esse ponto cego, intermediário, esse lugar vazio, que só se poderia na experiência do halo conseguir, não como percurso de + 1 a 1, porque se há algo, está no meio, está na coincidência, como se isto fosse uma banda de Moebius... Mas ou bem se está em +1, ou bem se está em 1. E justamente porque se está em + 1 e se pode arcar com o
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lugar de + 1, se está na rememoração de 1. E bem, por isso, não se perde a referência à castração. Vamos supor que eu esteja em +1. Nem por isso perco, na rememoração significante, minha experiência de castração, que está na minha assunção da minha postura no lugar de +1. É só aparente absurdo o que estou dizendo, que aceitar a castração é aceitar o falo como tido, porque, na relação com o falo, quem não consegue é quem não pode deixar de ter. Empolgar o falo, na afirmação, na assunção dessa empolgação, é aceitar a castração. É ter o falo me tido. *
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Para terminar, quero levantar duas pequenas questões. Saussure define o significante como pura diferença e eu digo que, como pura diferença, se sustenta sua estrutura alélica. Mas, se o significante é pura diferença, como conseguir a identidade dele, para reconhecimento a cada significante? Se o significante se define como pura diferença, e se mantenho sua definição como pura diferença, como posso estatuir a identidade de um significante? Digo que a identidade de um significante se estatui na experiência particular de instalação bífida do próprio significante numa experiência real. Estou trazendo de volta uma outra questão: a questão do referente. Não o referente dos semiólogos, de Peirce... Em verdade, estou dizendo que existe, sim, um referente para o significante, mas um referente que posso conceituar. Quero de volta a referência ao real da experiência, perdida, com o objeto faltoso, mas passado por experiência do sujeito, e substituída, simbolicamente, pelo significante. Então, há um referente sim, real, de cada experiência que exige uma entrada, Behajung, significante. A lingüística, por exemplo, não consegue supor que o referente é o objeto a, e tê-lo como referente é não deixar de se dar a experiência de, digamos, um sofrimento significante nessa instalação: o sofrimento da experiência do fort-da, da criança, diante do objeto-mãe. Isto é significante porque é sofrido
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e real. E é referente do significante, embora eu ponha o referente nesse real de onde o significante vem. Mas levanto de novo a velha questão da referência da lógica, da semiologia. Quando, então, chamo isto aqui de “cafeteira”, há um objeto real que é o referente desse significante? Eles se perdem por aí, nesse imaginário. Aqueles que estão contra isto aboliram a questão e dizem que não há referente. Venho dizer que há referente, sim.., mas não é a cafeteira. É o real perdido numa experiência sofrida, e é o que está aí para referenciarmos às coisas. E não é preciso eu ter coincidência de experiência com você para entrar em acordo. Isto porque duas experiências podem ser completamente diferentes, mas portam o rombo do Real. Então, nós não nos entendemos nunca, mas conversamos muito bem... Há o significante unário noite/dia, um halo, e isto, para você, é uma experiência real. Por isso, não acho tolo o que diz a Gestalt, pois é uma experiência que, para você, foi real. Ano passado, sugeri que um ponto vem se deslocando em rotação numa tabula rasa, sem saber qual é sua rotação, mas ele vem girando e sofre um revirão: momento de sua orientação e momento de bifididade. Uma criança, ela só tem referência de dia e, não, de noite. Então, ela está em rotação dia, o que para ela não quer dizer nada: só pode pintar alguma coisa para ela quando chega a noite. Quer dizer, só existirá dia quando a noite pintar com o revirão, e a identidade desse halo com referente no real dessa experiência da rotação que marca o sujeito, que se escreve para o sujeito, tinta inapagável. Então, a identidade de um significante, ela se perde na economia dessas corporificações, mas resta no regime da experiência, de cada um, de ter sofrido essa travessia do halo. Experiência esta que o sujeito repete a cada dualidade, a cada oposição. A cada vez, o que o significante lhe apresenta é o referente daquela distinção.
16/MAR
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A reflexão
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A REFLEXÃO
Que o estádio do espelho, recebido a partir de 1936 pelos seguidores de Lacan e por este reafirmado e acabado em 1949, no artigo já célebre dos Escritos, seja hoje, para tantos, concepção assentada, não impede que o retomemos para consideração cada vez mais minuciosa momento que pode mesmo oferecer, por efeito, algum esclarecimento da especificidade da função imaginária que, para o falante, se estatui como matriz do simbólico e, portanto, como conseqüente numa estrutura mínima da linguagem. A concepção do ponto-bífido, que introduzi ano passado como topologia da anfissexualidade do sujeito em sua determinação pelo simbólico, é aqui reclamada para se conferir sua montagem com a do evento especialíssimo da constituição, segundo Lacan, de uma imago, a do corpo próprio, para o falante. Isto porque, se é que há então correspondência estrutural, devemos reconhecer que o advento do rombo inaugural é o advento daquilo que chamei alhures a Linguagem como máquina irredutível do simbólico. Essa máquina, a “celibatária” por excelência, poderemos nós surpreendê-la em seu movimento?: processo primário que não será de outra monta senão aquela mesma que supomos ter destacado na bifididade do ponto dito não-orientável1 da contrabanda. 1
Cf. as sessões de números 12, 14 e 15 de nosso Seminário sobre A Música, [1982], 2ª ed, Rio
de Janeiro, Aoutra editora, 1986.
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É o que quero começar por enquanto, recomendando que não se percorra este pedaço de caminho sem o acompanhamento, a cada passo, da releitura do artigo de Lacan2, do qual, para evitar pletora de citações que se fariam tão freqüentes quando não muitas vezes redundantes, tomarei ad libitum o que me permita tantas alusões e quantas repetições de enunciados. *
*
*
Sabemos que o espelho é, como tal, para qualquer ser subdito ao regime do imaginário, máquina refletora. Assim é que as observações etológicas prática onde cabe inteiro o campo da psicologia podem muito bem dar conta, com o recurso à pregnância de alguma Gestalt, dos efeitos formativos que se surpreendem no organismo animal e que não são de serem deixados fora de conta na precipitação dessa forma que situa a instância do ego (ideal), de modo constituinte para o sujeito humano em seu advento, e que o aliena, de saída, a esse alter-ego de sua imagem especular. Entretanto, alguma falha ôntica na estruturação do falante, uma hiância que podemos reencontrar a cada movimento de sua manifestação, não nos deixa sem referência para a suposição de uma não-inscrição, de uma não-marcação original, seja ela representável pela prematuração do neonato humano ou por qualquer insabida particularidade genética de sua espécie a alterar fundamentalmente todo suporte natural, para o homem, de um topos terminal predeterminado para qualquer processo puramente imaginário de referenciação. Isto é dizer que o esgotamento precoce, exemplar num chimpanzé, da transação do animal com o automatismo de reflexão que lhe é imposto pelo espelho enquanto tal e que encontra eco na prévia inscrição formal de sua constituição estritamente imaginária se verifica, para o filhote humano, ser infinitivo, pois que tendo partida numa Discórdia primordial, só achará solução por um basteamento que não encontra encaixe certo em nenhum design LACAN, J. O Estádio do Espelho como Formador da Função do Eu. Écrits. Paris: Seuil, 1966,
2.
p. 93-100.
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A reflexão
previamente dado de acoplamento especial. O que há, para o falante, é falência do seu imaginário (e a partir daqui prefiro traduzir por falente melhor do que minha tradução anterior por falesser o parlêtre de Lacan). É que há diferença notável entre analogia e metáfora, os dois processos não sendo da mesma ordem, não pertencendo ao mesmo registro3. A analogia se satisfaz no registro imaginário, quando, diante do espelho (E| ), pode o animal (situado em a) reconhecer-se como (a1) sua imagem especular, ainda que eventualmente mediante um modelo quadrangular com referência às imagens de um outro elemento situado a seu lado (em b) e também especularizado (em b1).
Não que para o infans não vigore o mesmo modelo quanto ao imaginário, posto que (1) de seu lugar (em a) ele vê “sua própria” imagem virtual (em a1), como vê também (2) a imagem real de um Outro (em b), com sua especular (em b1), podendo então (3), por nítida semelhança entre estas duas últimas imagens, projetar uma na outra e reconhecer que a primeira corresponde à segunda, ponto a ponto, e que uma (b1) é imagem especular da outra (b) que ele pode mesmo tocar, no real, comprobatoriamente. E daí (4), por analogia, isto é, fazendo a correlação da imagem especular do outro (b1) com a “sua própria” (a1), bem como da imagem real do outro (b) com seu “próprio” lugar (em a), aceitar a 3
LACAN, J. Seminário III: Les Psychoses. Paris. Seuil: 1981, p. 247.
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reflexão, promovida automaticamente pela máquina-espelho (de a1 sobre a), num tempo terminal que lhe daria a certeza de sua imagem própria. Daria... se se tratasse de animal, pois a razão analógica, solucionável por quarta-proporcional (b 1:b :: a 1:a), não tem garantia protoinscrita no ser falente falta originária, não-marcado primordial ( ) que fará com que, no seu próprio lugar (em a), ele deva inscrever o valor de uma incógnita (x) a ser determinada por bem outra equação a saber, por uma identificação que lhe advirá, como significante, da fala de um Outro que é, ao mesmo tempo, testemunha da transação e portador de marca no mesmo registro agora não imaginário: nome, rótulo, como garantia de sua imagem verdadeira. É dizer que, por falta original de inscrição, o falante poderá sim tomar-se, em seu lugar (a), pela “sua” imagem especular (a 1), mas sem nenhuma certeza (como a do símio) senão assintótica, e aproximada tão-somente por um basteamento significante, nominal então, que lhe vem aparar a incerteza numa identificação agora simbólica. Aqui estamos na razão simbólica, isto é, não na analogia, mas na metáfora, quando a impossível Einheit, como unidade unificante, do imaginário, é substituída pela Einzigkeit como unidade distintiva segundo um traçounário, einziger Zug. Com isto, a razão do signo é substituída, sem possível retroação, pela razão do significante, no simbólico. Mas a marca de um traço-unário não se adota, pela criança, senão com a repetição que inaugura o sujeito, pois que “o traço unário designa algo que é radical para e na experiência originária: é a unicidade como tal do circuito na repetição” 4. O que podemos acompanhar sobre o oito-interior com que anotei o ponto-bífido, como circuito do revirão do sujeito em suas travessias, se não travessuras, de um a outro sexo das oposições que ali destacamos como reversões. É que o sujeitinho, em sua solitude, como a do bebê surpreendido por vovô Freud no seu fort-da com o carretel da mãe ausente, há 4
LACAN, J. L’ldentification. Seminário inédito de 1962.
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A reflexão
que repetir, por conta própria, a reflexão automática do espelho, em sua própria automágica de encontro (tiquê, fortuna, sorte), de reencontro com o significante que o demarca para com o real. Que aí, no lugar da falta antiga, é o espelho mesmo que se encontra, que se inscreve como borda, como única margem, de referência, lá instalada pelo furo com que o significante repete, agora como fronteira melhor, como litoral, como linha demarcatória , a mesma antiga falta. É um "espelho interno" que se funda, como que do outro introjetado a ser representado como "espelho intraorgânico", segundo as observações mais ou menos ingênuas das cirurgias do córtex, ou como “a reviravolta em dedo de luva”, de Merleau-Ponty na explicação do seu quiasmo, ou mesmo como o lacaniano speculum mundi 5 em que nos constitui a consciência que, “em sua ilusão de ver-se vendo-se, encontra seu fundamento na estrutura em reviravolta do olhar’’6 e que bem se tem exprimido com o termo de reflexão com que tantas filosofias distinguiram o falante dos demais seres que não exercem esta função. Função esta cujo reconhecimento, pelo falante, se revela no passo importante que terá sido, em vista das demais espécies, a cópula sexual frente-a-frente, que lhe é característica (sem eliminação entretanto dos demais gostos e posições), como verdadeira abordagem especulativa de sua imagem especular inédita para os deserdados da reflexão. Assim como é nesse reconhecimento, de ser ele próprio reflexivo, que encontro motivos para o júbilo do infante no estádio do espelho essa alegria (Oh Freude!) reflexiva, quando ele se dá conta de que ele próprio reflete as imagens, única via que poderá levá-lo à adoção por algum Pai. É com o instrumento (agora onto-lógico) desse “espelho interno”, dessa reflexão, que se vai instalar, para o novo sujeito, a lógica do significante, a estrutura do halo, a máquina metaforonímica da linguagem que é a Lei do falante. 5
LACAN, J. Seminário XI: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro,
Zahar: 1979, p. 76. 6
Idem, ibidem, p. 82.
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Assim: (1) de seu lugar não-marcado ( )7 o falante vê, numa primeira mas só depois contada travessia do espelho, ( ) , a “sua própria” imagem especular ( ); (2) faz então a primeira reflexão ( ) dessa imagem ( ), momento em que opera um primeiro revirão, trazendo, numa segunda travessia de retorno, isto é, numa segunda reversão, em cancelamento da travessia anterior, para seu lado de origem, a imagem que vê do “outro lado” do espelho; (3) daí, vê outra vez ( ) a “sua” imagem especular, mas agora como imagem especular ( ) de sua reflexão ( ) da primeira imagem especular ( ) numa terceira travessia que repete a marcação ( = ); (4) para enfim fazer a reflexão ( ), em última travessia que repete o cancelamento, dessa última imagem especular ( ), quando de novo se situa do lado de sua posição original: ( ) = ( ) tempo em que se completa o segundo revirão, instalando-se, então, a máquina mínima, binária mas em quatro tempos, de conferir sua própria repetição, como sujeito, nesse circuito. Poderíamos dizer que o sujeitinho: (1) ouve um nome aplicado a si, pelo Outro; (2) aplica esse nome a si, mas sem certeza; (3) ouve outra vez o mesmo nome como nome aplicado a si, pelo Outro e (4) reaplica, quer dizer, confere a aplicação a si desse nome chamado pelo Outro. É como no insulto, ou no elogio, como também na instalação de um apelido, seja ele amoroso ou odiento quando: (1) alguém chama Disso; (2) acho que foi a mim; (3) ele (me) chama Disso de novo; (4) é a mim que ele chama Disso. É portanto só no quarto tempo que, por repetição inscrita, o significante conecta e complexa a imagem especular com o corpo-próprio (sempre em falta) em seu lugar vazio primordial identificação metafórica que escapa à mera 7
Aqui utilizamos sinais e termos de Spencer-Brown e suas Leis da Forma.
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A reflexão
similaridade da analogia por causa de uma disjunção. Se a metonímia (nexo) vige nos deslocamentos sobre o circuito a cada travessia, a metáfora (plexo) só se completa no quarto-tempo com a repetição do revirão, isto é, da reflexão, pois o processo de metaforização depende do terceiro-tempo, quando há re-visão da imagem especular como imagem da reflexão momento de “cálculo” em que “os dois lados” do espelho são primeiro defastados (pelas associações: e ( )) e logo, no tempo seguinte, correspondidos (pela razão: :: ( ) , herdeira do imaginário) para terminar em metáfora acabada pela equivalência (simbólica) dessa imagem ( ) com o lugar vazio, de origem ( ), por nova reflexão ( ). A disjunção entre coisa alguma ( ) e alguma coisa ( ) quando ex nihilo se faz o significante, é como que apagada, quer dizer, é recalcada (Verdrängung) no quarto-tempo, e a ser denegada (Verneinung) depois, podendo então o sujeito suspender a renegação (Verleugnung) originária, correlativa da disjunção original. Assim é que, na prática corrente, isto é, no exercício discursivo do sujeito a cada movimento articulatório, a disjunção há de ser apontada justo no terceiro-tempo, onde é o lugar do seu ressurgimento reflexivo. E outra coisa não é o recalque originário senão esse repelão na disjunção, que permite a operação de equivalência, em conjunção metafórica, para que ao sujeito advenha sua identificação. Equivalência que, aliás, sempre se impõe como tal a cada retorno do recalcado, isto é, a cada articulação significante do sujeito em sua marcha falante pelo campo do Outro e portanto conforme com a sua Lei de composição. A castração, demonstrada por Freud como teorema fundamental a suportar os anedotários correntes sobre Édipo, já está por inteiro nesse rombo original: como aquela disjunção que será assumida ou não. A metáfora paterna, Nome do Pai, é aí o nome da metáfora fundamental, Pai-Nome, Nome-Pai8 como metáfora da Lei primordial de disjunção que estatui o desejo como essência do falente: justo porque 8
LACAN, J. Seminário III, cit. p. 244: “O de que se trata é de uma dramatização essencial, pela
qual entra na vida uma superação interior do ser humano: o símbolo do pai. A natureza do símbolo ainda está para ser esclarecida. Nós aproximamos sua essência ao situá-lo no mesmo ponto da gênese do instinto de morte. É uma só e mesma coisa que exprimimos” (grifos nossos).
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ele não gira, como queria Galileu, mas como disse Kepler, porque ele cai. Queda só aparável pelo pára-quedas metafórico como faz-de-conta equivalencial, em substituição ao plácido giro imaginário: o imagironário da mesmidade figural. É na assunção dessa queda do homem sua queda para o infernal, ou para os inferninhos desta nossa vida à beira cova, falta primordial, pecado original herdado do Pai , que lhe é viável um percurso entre as ficções do bem e do mal. A assunção cuja falta promove o retorno do recalcado, isto é, da disjunção desconsiderada, com os fantasmas objetais da fobia, com os espedaçamentos corporais da histérica e com as duplicidades obsessionais. Como, de outra parte, a foraclusão do seu suporte, no quarto tempo da subjetivação, exigirá, por garrote de estancamento de alguma hemorragia significante as alucinações e delírios regressivos da inerme psicose (mas esta é questão para desenvolvimento em outro lugar). Eis aí, então, nessa máquina mínima de reflexão, nosso incessante tombar, a cada passo, de um primeiro tempo como instante de ver, para os dois seguintes como tempos para compreender, até cairmos no quarto como momento de concluir, para novo retorno se houver. E o que é que aí se repete, nessa queda ou ascensão, conforme o esquema anterior, senão, mutatis mutandis, o nosso rombo original?: a máquina mínima que chamei de a Música, antes de ousar chamá-la a Linguagem, de maneira cabal. Basta que retornemos elasticamente os vetores para as posições que ocupam sobre o rombo (operação inversa à que encontra o discurso do Mestre a partir do rombo, no Seminário sobre A Música) para que o espelho, um tanto ainda “externo” na aparência do esquema anterior, venha a se mostrar todo interior à lógica do halo, suportando ele próprio a disjunção que se evidencia, para o sujeito, (entre e ) entre um e “outro lado”, entre um e outro sexo (em oposição) do ponto-bífido da contrabanda fundamental. É esta máquina com que o sujeito opera, ou melhor, é esta a máquinalinguagem que opera o sujeito quando é de se destacar que, em sua passagem entre um significante e outro significante, como entre um número e seu mais-um ou menos-um, é no espelho que o sujeito se instala como bifidamente sexuado pela lâmina uniface de reflexão ( / ): lugar da disjunção.
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A reflexão
E aí estamos no coração da linguagem. Temos aí a estrutura elementar da linguagem, essa máquina-ímã cujos empuxos, em sístoles e diástoles, arrastam nossa loucura pelas cadeias do Outro, mesmo para as cadeias do Outro lugar de nossa habitação. Se “o coração tem razões que a própria razão desconhece”, como diria um Pascal, é porque essa razão, do coração da linguagem, a razão metafórica, a razão simbólica instauradora do ponto de báscula (que uma antropologia quer arrumar entre natureza e cultura e que a psicanálise vem apontar como fulcro da alavanca das forças que impulsionam o desejo do homem como desejo do Outro), não é a razão imaginária, a razão analógica do euclidianismo de um Kant ou de um Sade. E o que ela possa nos emprestar de instrumentalmente "positivo", ou de eventualmente “objetivo”, só se assegura, como defesa9, no instantâneo fotográfico dessas figuras, mais ou menos coloridas, cujo álbum de família nós guardamos, cuidadosos, pelo mirrado prazer de denegar a irredutível disjunção que há entre elas e nosso parentesco unicamente simbólico com o real.
25/MAR Este capítulo, cujo título integral é: A Reflexão da Imagem Própria como Matriz Simbólica no Estádio do Espelho, constituiu um Comunicado à 1ª Ciranda de Psicanálise do Colégio Freudiano do RJ, em 25 março 1983. 9. Idem, ibidem, itidem: “A defesa, em psicanálise, atua contra uma miragem, um nada, um vazio, e não contra tudo que existe e pesa na vida. E esse último enigma é velado pelo próprio fenômeno no exato momento em que o apreendemos”.
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AURIVERDE PENDÃO
Início do Seminário com a audição do Hino à Bandeira e distribuição de pequenas reproduções da Bandeira Nacional Brasileira.
Por que será que estou aqui dando bandeiras, com toda a equivocidade que vai nesse dito da nossa gente: “dar bandeira” – trata-se, talvez, de um Seminário bandeiroso. Estávamos ouvindo o Hino à Bandeira, de Francisco Braga com o abominável Olavo Bilac. Desde criancinhas que certamente se ajuntaram à nossa letra essa canção e a bandeira que a gente desenhava na Escola Primária com lápis de cor. Auriverde Pendão é o começo de um verso da parte final daquele grande vomitório que Castro Alves escreveu com o título de Navio Negreiro: “Auriverde pendão da minha terra / que a brisa do Brasil beija e balança / estandarte que à luz do sol encerra / as promessas mais divinas da esperança / tu, que da liberdade após a guerra, / antes tivesses roto na batalha / que servires a um povo de mortalha”. Pulei um pedação... O poeta está falando da nossa bandeira. Está, também, dando a maior bandeira, sobre a nossa transação com esse símbolo, que se diz, na legislação vigente, “visão permanente da Pátria”, Lei n ° 5.700 de 1º de setembro de 1971.
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A Bandeira Nacional data de 19 de novembro de 1889, oficialmente. Ela representa, ainda, segundo a lei, um aspecto do céu do Rio de Janeiro. Lá, além de todas essas coisas que representam a Nação, também como símbolo está escrito: Ordem e Progresso. A Bandeira Brasileira, visão permanente da Pátria, como diz o parágrafo 2º do artigo 12 dessa Lei, jamais se abate em continência: artigo 23. São consideradas manifestações que dizem respeito à Bandeira Nacional, e portanto proibidas, diversas coisas, entre as quais não está distribuir bandeirinhas nem falar dela, graças a Deus! Aí está a bandeira: no campo verde, um losango dourado, um círculo azul cheio de estrelinhas (o céu do Rio de Janeiro) e o escrito Ordem e Progresso. *
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De onde vem este lema? Como sabemos, vem do chamado Augusto Comte, chefe de fila, inventor de uma certa filosofia chamada Positivismo. Dizem que ele é filósofo e o tal positivismo se coloca muito cedo como uma postura bastante vigorosa dentro do Brasil, ainda antes da proclamação da República. Augusto Comte queria fundar a sua famosa República Ocidental, cujo lema seria: ordem e progresso. Desde 1879 que, no Brasil, parece que as coisas se positivizam. Nosso recém-falecido Paulo Berredo Carneiro, certa vez, escreveu um artigo chamado Le Rôle de Auguste Comte et du positivisme au Brésil, o papel de Augusto Comte e do positivismo no Brasil. E há nomes como Miguel Lemos, Teixeira Mendes... Miguel Lemos fundou, sob a determinação, sob a jurisdição mesmo de um discípulo de Augusto Comte chamado Pierre Lafitte, a Sociedade Positivista do Rio de Janeiro, em 5 de setembro de 1878. Ela ainda tem uma Igreja aí. Dizem que é filosofia, mas a coisa desembocou em religião... que, certamente, não tem a menor chance de competir com a verdadeira, chamada Católica Apostólica Romana. O fundador da República Brasileira, vocês sabem quem foi, em 11 de
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agosto de 1890, mandou a Pierre Lafitte uma carta para informar de sua adesão ao positivismo e seu reconhecimento ao novo poder espiritual na pessoa de Lafitte. Não é fácil isto. Vejam, então, de quando data, nisso que chamam História do Brasil, essa invasão positivista, que ainda está por aí, mesmo não confessando seu nome. Por exemplo, na descendência de Paulo Carneiro, dentro da chamada Academia Brasileira de Letras... Há, então, uma aparente vitória do positivismo no Brasil. Não vamos confundir o positivismo de Comte, essa coisa preparada que desaguou em religião, com o positivismo lógico, que não é da mesma cepa... Não fosse a deduragem contra a Confidência Mineira, a qual tornou a coisa uma Inconfidência, talvez o lema de nossa bandeira – mantidas as cores do Império, o verde/amarelo do famoso berro do Pedrinho na beira do Ipiranga – fosse, agora, o começo daquele verso 27 da 1ª écloga das Bucólicas de Virgílio, que diz: Libertas, quae sera tamen respexit inertem... etc., que os inconfidentes teriam, se tivessem ganho, colocado na bandeira: Liberdade ainda que tarde... Quanto a mim, vou fazer algum esforço para transformar Liberdade ainda que tarde em Ordem e Progresso... Este é o tema do positivismo de Comte, mas com o sentido de que o fundamento de e da ordem é a invariabilidade das leis naturais – é o que está na cabeça dele – e isto equivale à existência. O progresso, por sua vez, equivale ao movimento, isto é, ele é a meta, o alvo, o fim da ordem. Fica um bocado difícil definir ordem como esse congelamento de imutabilidade, e pensar em progresso, a não ser que, se a ordem é imutável, por fundamento natural, isto signifique que o progresso só pode, no máximo, ser perfeccionismo da natureza. Declaradamente, então, Comte nos oferece o cartesianismo como fundamento da sua filosofia. Um cartesianismo virado fetiche. Ou será que isto é da ordem da psicose? Para quem quis saber, num texto publicado em 1978, chamado Sebastião do Rio de Janeiro, p. 117, eu fazia uma alusão a Augusto Comte, dizendo: Quando o primeiro maluco a se chamar Napoleão, botando a mão no
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peito, jurou seu claro lema, a gente lhe sorriu da terra tropicália. Era um olho fechado, e outro aberto, pela ordem. Por que não? Por que não? Fiquemos com a receita – que a fala da loucura é divina prosápia. Verdade seja dita nesse contra-senso progressoso. E, a esculhambação fica inventada, graças a Deus, conforme ao humor da terra. Que não se feche o olho aberto. E nem se abra o outro. Que não se a perca – ela – essa fada careta. E vale quase tudo: da coiseta ao baralho. Cariôco. Não é de brincadeira, porque foi mesmo o primeiro maluco a se chamar Napoleão. Num certo momento, ele entra em surto, vai baixar na mão de Esquirol, passa por uma série de peripécias psiquiátricas e, certa vez, consegue se casar... e na data do casamento se assina Napoleão, inaugurando a piada. O que será que isto tem de graça, que isso tem de sério? Gilberto Freyre tem um livro, dois grossos volumes, chamado Ordem e Progresso, com aquela abordagem sociológica, romanesca, sempre tão interessante, que ele faz, do país. Ele diz coisas que nos interessam na “Nota Metodológica” que colocou no início, onde tenta analisar essa idéia de progresso no Brasil. Ele diz, p. XXIV, que escreve o livro “sob o critério de não ter havido no desenvolvimento brasileiro progresso, mas progressos; sob o critério, também, de não vir sendo, a ordem brasileira, uma só, monolítica ou única, mas uma variedade de ordens que têm se juntado para formar, às vezes contraditoriamente, o sistema nacional”. Quer dizer, já não é mais a mesma coisa que a ordem do Sr. Augusto Comte o sistema nacional, este que Gilberto Freyre diz ser “a um tempo uno e plural, em seu modo de ser ordenação ou sistematização de vida e de cultura. De modo que tem sido ordem num plano desse sistema, o que noutros planos se tem manifestado sob o aspecto da desordem”.
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Mais adiante, p. XXVI, ele diz que há uma certa equilibração na cultura brasileira, uma certa tendência a maneirar, a adoçar os processos: “Este, o perfil de equilíbrio que vários dos testemunhos e dos documentos reunidos para servir de lastro ao ensaio que se segue parecem indicar ter sido possível ao Império brasileiro atingir, sem sua élite se haver deixado superar, nos seus meios de procurar conciliar com as solicitações do progresso os interesses de ordem nacional, pela ideologia do grupo de jovens republicanos, de algum modo profiteurs do repentino triunfo abolicionista. Não tendo se verificado tal equilíbrio, a República se fez necessária. Mas necessária dentro de constantes, porventura psico-sociais, de conciliação daquelas solicitações com esses interesses que, como constantes, se revelaram superiores, entre os brasileiros, as diferenças técnicas de regímen político; e conforme um sentido de progresso, condicionado por outro sentido – o de ordem – que o lema positivista parece ter vindo antes confirmar nos brasileiros, que inventar no Brasil”. Ele está dizendo que, antes ainda que o positivismo viesse impor esse lema, já era da nossa psico-sociologia este ordem e progresso, embora, como vimos, para ele, não tenha nada a ver com o de Augusto Comte. E continua: “Os brasileiros, depois de 89, e, principalmente, em conseqüência de 13 de maio de 88, passaram a parecer-se menos com os seus antepassados e a assemelhar-se um pouco mais com os seus contemporâneos. Mas sem ter havido, no caso dos brasileiros de então, radical alteração nessa maneira de um povo (...) revelar-se, na sua fisionomia, mais caracterizado pelas semelhanças com os antepassados que com as semelhanças com os contemporâneos; ou o contrário. É essa uma das conclusões a que nos consideramos autorizados...” Realmente, Gilberto Freyre sempre consegue ser engraçado e brilhante. Essa passagem da Monarquia à República, que ele comenta aqui mais longamente, torna a mostrar que há uma certa permanência, sem procura de novo nome, sem se preocupar em modificar radicalmente a bandeira nas suas cores, se manteve o colorido verde e amarelo, e incluiu-se o ordem e progresso, de dimensão positivista. Ele diz adiante, p. XXXIV: “Mortos, quase todos os positivistas que participaram, como positivistas, da transfor-
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mação do Brasil, de Monarquia em República; e morto ou quase morto, no Brasil, o próprio positivismo” – será? –, “sob o aspecto de igreja ou seita ou apostolado, que chegou a ser, nem assim esses mortos deixaram de influir sobre os vivos. O Trabalhismo brasileiro, por exemplo, nasceria de raízes em parte positivistas: positivistas naqueles pontos em que seu programa refletiria idéias, sentimentos ou sugestões de Getúlio Vargas. Porque Vargas seria brasileiro até o fim da vida marcado por sua formação positivista. Um vivo fortemente governado por um morto: Júlio de Castilhos. Um cúmplice de agitadores progressistas que nunca deixaria de ser um aliado secreto dos brasileiros preocupados em resguardar de perturbações estéreis a ordem nacional. Nem sempre guardaria saudável equilíbrio, de resto tão difícil, entre esses dois extremos. Mas nunca deixaria inteiramente de viver, sob constantes positivistas tendentes a consagrar, sob a fórmula “Ordem e Progresso”, constantes sociais ou psico-sociais brasileiras, anteriores a Comte: vindas de José Bonifácio e do próprio modo por que o Brasil separou-se politicamente de Portugal, sem deixar de ser monarquia e de conservar, à testa do governo nacional, um português da mesma dinastia reinante entre os portugueses”. Ele acha isso uma maravilha, talvez até seja, que as coisas passem assim tão gradativamente. Até tem a piada de que o pessoal da briga, no Brasil, só perde sangue quando faz a barba. E Gilberto Freyre continua: “A resistência daquelas constantes a crises que, noutros países da América chamada latina, talvez tivessem resultado em degradação da ordem nacional”. Ele está dizendo que, aqui, as coisas se contemporizam: “Uma ordem que no Brasil se revelou melhor equilibrada que em qualquer desses outros países, graças, talvez, à simbiose que aqui se estabilizou, em dias decisivos para a formação nacional, entre a forma monárquica ou autoritária de governo” (não entendo por que Monarquia quer dizer autoritarismo) “– a forma, é bem de ver, e não a substância – e a organização patriarcal da família: simbiose que em vez de dificultar, favoreceu, sob vários aspectos, o desenvolvimento da população em sociedade sob vários aspectos democrática”.
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É um bocado confuso, pois importaram do positivismo francês toda a ordem e progresso que lá se escreve. Entretanto, diz ele que isso já estava aí: as coisas se mantêm em ordem e passam, sem grande desordem, a outra coisa; e é um benefício, porque não há grandes desagregações, mas, por outro lado, isto tem um certo sabor de autoritarismo. Como é que se vai resolver essa questão, pois que há também sabor de desordem... Há também o famoso livro, que já citei diversas vezes em Seminários anteriores, de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil – que, não sei por que, toda vez chamo de Varizes do Brasil –, sobretudo, naquele capítulo em que fala do famoso homem cordial. Falei disso no Seminário chamado Psicanálise & Polética. E essa cordialidade brasileira, que ele vem apontar, é cordial de coração, quer dizer, é empombada mesmo, não é de boa educação. “Seria engano supor que essas virtudes, diz ele, possam significar ‘boas maneiras’, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante”. E depois: “Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez”. E vai tentando definir o que é o homem cordial, e mostrar que “no Brasil é precisamente o rigorismo do rito que se afrouxa e se humaniza”. Quer dizer, o autor está aí do lado daquele conceito de ordem polivalente, de Gilberto Freyre. “No Brasil, ao contrário, foi justamente o nosso culto sem obrigações e sem rigor” – aí falando de religião, católica, por exemplo –, “intimista e familiar, a que se poderia chamar com alguma impropriedade, ‘democrático’ ” – esta palavra é muito agradável neste país –, “um culto que dispensava no fiel todo esforço, toda diligência, toda tirania sobre si mesmo, o que corrompeu, pela base, o nosso sentimento religioso”. Mais adiante ele vai dizer que “a vida íntima do brasileiro nem é bastante coesa, nem bastante disciplinada, para envolver e dominar toda a sua personalidade, integrando-a, como peça consciente...” Em suma, está mostrando como isso tudo, me parece, é a sociologia do “jeitinho”, se não da “esculhambação”.
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No capítulo seguinte, chamado “Novos Tempos”, ele vai fazer uma acusação de que há, no brasileiro, “um amor pronunciado pelas formas fixas e pelas leis genéricas, que circunscrevem a realidade complexa e difícil dentro do âmbito dos nossos desejos”. Este “é um dos aspectos mais constantes e significativos do caráter brasileiro”. E vem com a tese de que o brasileiro não gosta de trabalho mental, é meio caretão, meio quadrado, gosta das coisas certas ou gerais etc. E isto certamente – e aqui me refiro ao que disse no Seminário passado, sobre A Música, comentando Étienne de La Boétie – é da ordem da submissão e da tirania. Sérgio Buarque vem com a tese de que “é possível compreender o bom sucesso do positivismo entre nós e entre outros povos parentes do nosso, como o Chile e o México, justamente por esse repouso que permitem ao espírito as definições irresistíveis e imperativas do sistema de Comte”. Quer dizer, a coisa parece ser tão meridianamente clara, que é encantadora. “Para seus adeptos” – continua ele que é ferrenho contra o positivismo –, “a grandeza, a importância desse sistema prende-se exatamente à sua capacidade de resistir à fluidez e à mobilidade da vida. É realmente edificante a certeza que punham aqueles homens no triunfo final das novas idéias. O mundo acabaria irrevogavelmente por aceitá-las”. É claro, se há lei natural que não sai do lugar, por que não a aceitar, já que se entende? *
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Em Psicanálise & Polética tomei um pouco esses temas e tomei também Oswald, naquele texto em que trata do homem cordial, que é de 1950, e, aí, dei com um conceito de alteridade que não é bem o nosso. Oswald comenta essa cordialidade do brasileiro como a vocação que chama de antropofágica e que traduzi por heterofagia: o processo de “começão” do Outro. Para categorizar a heterofagia, disse que era preciso repensar a relação masculino/feminino e situar do lado do feminino essa ocorrência do evanescente que existia no que pretendi chamar de sintomática brasileira, sem no entanto afeminar tudo. Simplesmente mostrando que era para se poder destacar, como letra, como
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sintoma nacional, essa coisa que eu chamaria de uma heterossexualidade vigente como heterofagia. Cultura, como tentei mostrar daquela vez, não é bem sintoma. Esses autores, pelas vias que utilizaram, história, sociologia etc., procuraram destacar o caráter nacional, a personalidade brasileira... O que nos interessava daquela vez, e ainda nos interessa, é a questão de uma sintomática nacional – se é que isto é viável de ser pensado – para esse sujeito chamado Brasil. Toda cultura enquanto tal é reativa, reacionária. Uma cultura não se estabelece como mero sintoma, mas, sim, como desenvolvi daquela vez, como algo da ordem da neurose. A neurose é reacionária, é contra o movimento da pulsão, contra o desejo: ou o odeia como ato, o que chamamos de obsessivo, ou o protela indefinidamente, o que chamamos de histeria. A cultura não é da ordem do selvagem, da selva, da mera coletagem de alimentos, ela é aquela obsessiva sinalização do campo: não existe outra cultura a não ser a chamada agricultura. Uma cultura de rosas, por exemplo, diz que uma rosa é uma rosa é uma rosa é uma rosa... no interesse de fundar uma tautologia. Mas acontece que a tautologia há e não há: se, imaginariamente, ela se segura um pouco, simbolicamente ela jamais o consegue porque há bifididade do tautológico – quando repito, a coisa é cindida. Então, é preciso pensarmos a diferença entre cultura brasileira e sintoma nacional, pois são coisas diversas. Tenho para mim que cultura é um sintoma mal dito, tal como acontece com o neurótico. Quando se diz mal o sintoma, ele é um sintoma maldito. E a cultura costuma se estear sobre o maldito do sintoma, ao passo que um poema que o diria bem, seria um sintoma bendito. A cultura cultiva o caráter, a personalidade... Lacan escreveu uma tese de doutorado, Da Psicose Paranóica em suas Relações com a Personalidade, e, muitos anos depois, morreu de rir, pois paranóica é a personalidade. A paranóia, aliás, não é necessariamente uma psicose, o que existe é uma psicose chamada “psicose paranóica’’, quer dizer, onde o delírio é estruturado à maneira paranóide... Mas Lacan vem mostrar justamente que paranóico é o conhecimento: toda essa avalancha de organização e de trancamento das
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imagens que se processa é porque há o furo, há a falta, e no confronto com outrem. E uma das defesas que todos temos é dar uma de paranóico, constituindo conhecimento com base na disputa com o vizinho. Portanto, não podemos aprisionar o conceito de paranóia no conceito de psicose: todos deliramos um pouco, e temos sabido muito bem disso, nas nossas movimentações paranóicas dentro do e sobre o conhecimento. O que não me impede de dizer que não é boa coisa, que não é flor que se cheire, e que assentar o dizer sobre essa vigência paranóica certamente que não vai produzir nenhum poema. Já o sintoma, enquanto tal, enquanto coalescência de letra, de marca, é estruturado como metáfora e tem valor de verdade para o sujeito que o porta. Então, sintoma não empresta personalidade a ninguém – pode emprestar marca distintiva, discursação, textualização a partir de S1, da sua constelação de base –, mas possibilita desvelamento da realidade do sujeito, e pode ser transado através de quantas metáforas o substituam, porque metáfora ele é, capazes de bem dizê-lo. E, agora, diante do lema: ordem e progresso, vamos tomá-lo como sintoma ou como paranóia? Teríamos que fazer algum percurso por dentro da obra de Augusto Comte. Lá há um sistema muito bem construído em cima de leis fundamentais – que ele sacou não se sabe de onde – como a “lei dos três estados”. Há a tentativa de buscar garantia na ciência do natural, com suas leis imutáveis. Para isto, ele foi se apoiar, sobretudo, na biologia, a qual, naquele tempo, era tomada, pelo menos por ele, como alguma coisa da ordem de uma ciência acabada, material e imutável. E, sobretudo, nas teorias de Gall, o homem da frenologia, que descreve os aparelhos do sistema nervoso e seus funcionamentos como responsáveis e configuradores, qualificados e constituídos, dos comportamentos dos tipos personalógicos, desenvolvimentistas etc. Coisa que, hoje, está completamente posta de lado, embora se tenha, na descendência do rapaz, o mesmo tipo de “parana” tentando funcionar na mistura de um cozido – aliás, propiciado por Popper em conluio com Eccles: aquele moço americano que abre a cabeça das pessoas para ver qual o botãozinho que se aperta no cérebro para se dizer que há um cérebro de um lado que é isso,
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que do outro lado é aquilo etc., o que, mais recentemente, já se pôs à prova numa série de experiências e se mostrou que não se trata de nada disso... Mas há essa querência de segurar concretamente o vivo, as determinações, talvez impossíveis de segurar, segundo leis a não serem modificadas e que são, na verdade, como sabemos, da ordem do simbólico e não obedecem, portanto, a essas configurações. Não posso abrir mão do sintoma que se inscreve na nossa vidinha, por termos vivido debaixo desse hino, dessa bandeira, de achar que ela é uma gracinha, de repetir que nosso lema é ordem e progresso, de dar vivas ao verdeamarelo etc. Não preciso abrir mão, pois, talvez, consiga bem dizê-lo. O que me interessa é transformar ordem e progresso em Libertas quae sera tamen, e vice-versa, na medida em que possa reler o que lá está escrito, porque uma bandeira, se é símbolo, não é significado, e o que lá está diante de mim é da ordem do enxame significante. E se há lá uma frase escrita, basta não ser tatibitati, ou completamente neurótico, ou paranóico absoluto, para poder reler: ordem e progresso, que exijo, que, embora escrito na inspiração e na cópia da frase de Comte, abandonem essa pseudo-paternidade! Talvez Comte pudesse ser mãe de alguém, pai não foi... E não estou dizendo isto sozinho: Sara Kofman, por exemplo, que conhecemos de textos sobre psicanálise e arte, se deu ao trabalho de escrever este livro sobre Augusto Comte, que intitulou Aberrations. Aberração é um termo de Comte e quer dizer tudo o que não está de acordo com a ordem natural das coisas, a que segura tudo. Ele não entendeu jamais que tudo é aberrância... O subtítulo do livro é Le Devenir-Femme d’Auguste Comte, o tornar-se mulher de Augusto Comte. É claro que não vou embarcar inteiramente na dela, porque ela quer ser feminista, em última instância, e por aí as coisas se estragam um pouco. Mas é levantada a tese, ou pelo menos a hipótese, neste livro, da psicose de Augusto Comte. Ela faz o possível, embora arranhando as coisas, para provar que ele era um psicótico, o qual subtrocou o delírio por um sistema filosófico. Ela passa o livro inteiro comparando-o com Schreber e tentando mostrar, passo a passo, que é o mesmo processo. Mas, como fica um pouco
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difícil comparar as Memórias de um Nevropata com o Sistema Positivista, já que este tem aquela aparência de sistema filosófico bem construído, ela fica se perguntando se o sistema positivista não veio, para ele, em lugar do delírio. Coisa que ela tem que deixar em suspenso, pois: como vamos pegar um dito sistema filosófico e dizer que é da mesma estrutura que um delírio, esquizofrênico no caso de Schreber, embora a autora estabeleça todas as comparações que estabelece? Mas, justamente, lá pelo final do livro, ela vai chegar à conclusão de que, realmente, trata-se de uma estrutura psicótica aí. E vai dar a desculpa – que quero trabalhar mais tarde – de que, como diria até um Freud, a loucura de um sozinho é loucura, e a loucura de muitos é teoria. Então, Augusto Comte teria encontrado, tanto nos acontecimentos anteriores à sua construção do sistema positivista, quanto na história e no pensamento contemporâneos a ele, elementos suficientes para organizar o seu delírio com todas as características de sistema filosófico. Ou seja, encontrou, também, respaldo na sua própria atualidade, como um verdadeiro pedido de que algo como aquilo fosse servido, tanto ao povo quanto às mentes ditas pensantes, e igual respaldo posterior, durante algum tempo. Ao invés, então, de uma folia, de uma loucura a um, ou mesmo de uma folie à deux, trata-se de uma folia a muitos. Fica um pouco difícil defender esta tese, embora seja até simpática... Quem sabe se isto não ocorre em outros sistemas, quando muitos estão metidos numa loucura que só se sustenta porque parece adequada? Já tivemos períodos de loucura desse tipo. Está lá todo o esquema do nazismo na Europa, ninguém se esqueceu, espero, e os ecos posteriores em tantos lugares... Nós mesmos tivemos bastante convivência com aqueles que Lacan chama “os inimigos da Humanidade”, durante uma certa ocupação que também já sofremos. *
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Requisito para mim o lema ordem e progresso. Não gosto de viver debaixo de uma bandeira com assinatura de Augusto Comte, embora já se tenha esquecido, há algum tempo, aquela assinatura dele. E digo que posso perfei-
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tamente arrancar do antro do sistema comtiano esse novo lema e entronizá-lo na psicanálise: o lema Ordem e Progresso não diz outra coisa senão metáfora e metonímia. Então, como a ordem é, na verdade, impossível de se estabelecer talqualmente Comte a quis, e como essa coisa de qualquer modo pinta – se sabemos muito bem que o que de ordenação se propicia para o falante não é senão aquilo que se decanta como metáfora, e com esteio na metáfora paterna, pois é em Nome do Pai que essas metáforas se organizam para aquém da loucura –, eu repito: a partir de agora, a palavra ordem, na bandeira brasileira, significa metáfora, e a palavra progresso não pode ser senão o movimento da metáfora, em metonímia, sobre a máquina fundamental, a máquina da Linguagem, o Rombo, que chamei de Zezéro, a Linguagem... Então, metáfora é ordem e metonímia é progresso. Estamos aí metidos naquela coisa: plexo, nexo. Então, leia-se: plexo e nexo, ordem e progresso, e aí a gente não tem o menor motivo para se envergonhar de não ter o pai certo. Estamos tentando trazer para a efetividade da linguagem o que lá está escrito, e, com isto, também, deslocar, de sua citação de origem, ou da prisão em que se quis colocar o lema, para algum lugar onde ele se abra mesmo, definitivamente. Não de uma pseudo-abertura que seja perfeccionismo de uma ordem dada, que é o que nos pede Augusto Comte: “Há a ordem, que se a aperfeiçoe e se terá o progresso”. Não se trata disso, e, sim: “Há alguma ordem? Metonimize-se, ponha-se desejo nisso, e o progresso pintará criando ordem, e, nesse movimento, não há nenhuma desordem”. Parece que estou encaminhando as coisas no sentido apenas das questões especialmente políticas. Não! O interesse é grande para nós, no sentido de continuarmos aquela via que começamos sobre a questão da sintomática brasileira. Naquela ocasião, eu dizia que neste esforço de conceituação, se pudéssemos pensar o que há de feminino, de não machista, nesse “jeitinho” que parece estar na verdade no centro de nossa sintomática, encontraríamos também, por outro lado, um prato-feito para certos grupos, maiores ou menores, que, dentro desse movimento assim tão deslizante, se sentem no direito, se
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não na obrigação, de emprestar um homem postiço para esse feminino. Quer dizer que, se há um bando de mulheres, falta homem, pelo menos um, porque são todos iguais. É preciso lembrar que o deslizamento feminino exige uma referência masculina, uma pelo menos. Não que o masculino possa localizar, situar, definir, configurar o feminino, jamais o consegue. Só o obsessivo pensa que pode conseguir isto. Simplesmente, o homem se torna referência. E tornando-se referência, as mulheres podem gozar à vontade, à moda delas... Mas acontece que, homem, é muito difícil... É muito difícil encontrar um homem. É muito difícil ser homem. Ser mulher é fácil, é muito mais fácil, quando se consegue... Que as mulheres o desculpem, mas é muito difícil ser homem. Por quê? A formulação quântica de Lacan não é uma partição euclidiana. Há uma linha divisória – mulher para lá, homem para cá. Entretanto, as mulheres não deixam de ter relação com o gozo-fálico: são cindidas entre o gozo-fálico e um suposto Outro-gozo. Isto, por pouco se incomodarem com a castração, por isto não fazer maior problema para elas, pois na verdade não faz. Isto é escrito na formulação como: x x. Não existe nenhum que possa fechar o círculo, que diga “não” à função fálica, então elas podem deslizar à vontade... Mas até certo ponto, pois são incomodadas pelo gozo-fálico, e elas são mulheres, não são psicóticas, justamente porque têm um pé dentro da situação fálica. Com o que, não precisam mais do que um homem para fazer a referência de sua situação: continuarem dizendo “não” à castração: “A castração é daquele idiota ali, não é minha”, dizem elas. O idiota é ele, e elas ficam sabendo assim que o que é delas não se baseia na idiotia dele. Mas, se não houver o idiota, elas ficam maluquetes demais, porque, mesmo, perdem de certo modo a noção daquilo sobre o quê esse “não” se coloca. Assim como quando se junta um bando de homens, só se tem homossexuais. Então, fica aquela homossexalidade desenfreada e nada vem dizer para eles que só é preciso não ser um completo idiota... O feminino exige que haja o Outro, sobretudo em sendo o Outro-sexo, mas exige ainda que se segure a alteridade, para não se perder. Assim como
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o homem, se para ele houver um mínimo de heterossexualidade, exige que haja o Outro-sexo, nem que seja para se pavonear diante dele, para fingir que manda, que é autoridade, nem que seja para isso, porque assim ele fica com sua referência à diferença. Acontece que a pregnância imaginária do que se fecha, como totalidade, todo homem,xx, é grande demais. Quer dizer, a facilidade do declive, o declive do Todo, ajuda talvez, suponho eu, para uma cristalização imaginária. Então, por isso, é muito difícil encontrar um homem: assim que eles se dão conta de que o Todo tem a aparência que, na verdade, é um todo lógico do Um do imaginário, do Um integral, ficam logo homossexuais. Ele tem um gostinho todo especial pela homossexualidade, ao contrário do que dizem, sobretudo os machistas. É a homossexualidade reinante, não existe outra. Ou senão, para ele, o Outro é apenas sub-produto dos seus quereres homossexuais... Então, minha hipótese foi a de que onde se encontre uma sintomática mais para o feminino, mais ainda se tem um bom campo de cultivo de machismo, o qual tem o nome que quiserem, fascismo, nazismo, revolução x, y... Quer dizer, a perplexidade de Sérgio Buarque de Holanda, a ambivalência do texto do Gilberto Freyre, é que as coisas não foram muito bem conceituadas. Para mim, parece que se esclarecem justamente porque há uma sintomática heterofágica, onde é preciso que o feminino esteja em ação. E, precisamente, é esse sintoma aí que facilita os surtos dessa coisa que eles dizem que é só “manutenção da ordem”, mas que não é mera manutenção da ordem coisa nenhuma... Se as coisas têm sempre um jeitinho, não é preciso estar matando todo mundo, estar fazendo guerra etc.: dá-se um jeitinho, e chega-se lá. Ao mesmo tempo, esta postura deve facilitar o surto, verdadeiro surto de paranóia, por parte daqueles que não entendem isso e pensam que tudo é grande esculhambação. Quer dizer, o reacionário da vontade de cultura, não entendendo a sintomática específica, parece que recrudesce em seus golpes, em sucessivos golpes, outros ou de Estado... Lacan já disse que “o Estado é a Polícia”. Vemos que isso nada tem a ver com papo de feminista... Se procurarmos um denominador comum, uma garantia, para isso que se chama de Estado, em qualquer tempo ou parte, não vamos encontrá-los na instituição policial?
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O que define o Estado é que a ele é dado o privilégio de exercer a função policial pela sociedade civil. Quer dizer, se não há Estado, não há polícia podem existir brigadas, mas polícia não. A ele é dado o privilégio de conservar, garantir e manter os códigos em vigor. Em última instância, quem segura isso é a chamada "porrada". Fôssemos deslizantes, as leis seriam muito mais mutáveis, muito mais cambiais. Já imaginaram se a legislação brasileira fosse igual à economia brasileira? Esses golpes de poder, golpes de Estado, são da ordem do: “Segura a balança, senão vai pro brejo!” O verdadeiro sintoma brasileiro que Oswald nos presenteou, uma heterofagia como chamo, é completamente denegado no sistema comtiano. O terror de Comte é isso. Na verdade, uma posição masculina emergente parece ser suficiente para segurar esse jeitinho todo, esse requebro, mas parece que não se entende que a coisa é assim, e se fica copiando modelos de outras fontes, que são de outros lugares cujo sintoma não é bem esse e, assim, os surtos paranóicos vêm, de vez em quando. Ou paranóicos, ou fetichistas... Quanto a mim, repito, acho que bastaria uma emergência masculina. Digamos: um Pai da Pátria decente. Poderíamos, por exemplo, como nomeação, botar como Pai da Pátria aquele que disse “não” ao pai dele, justamente porque o pai lhe ensinou a dizer “não”. Aquele moço chamado Pedro I: “Põe a coroa na tua cabeça antes que algum aventureiro o faça”. Ele me parece um homenzinho. Juscelino também me parece um homenzinho... Pedro I justamente é aquele que mudou o nome do sexo. Ele disse:“Laços fora” nos dois sentidos , "independência ou morte". Isto é ato, é golpe de mestre, é fingir que vai se arriscar na luta de prestígio. E, na verdade, disse: "De agora por diante, o sexo aqui se chama verde/amarelo. Esta é a nossa bifididade". Ele entendeu o jeitinho. Talvez tenha nascido junto com ele... Verde/amarelo é o nome da sexuação no Brasil, talvez seja o nosso sexo. Ele disse: “Verde e amarelo se chamam as nossas cores”. Sérgio Buarque de Holanda, naquele livro, diz que “a democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido”. Não gosto da frase, pois mal-entendido é tudo, é nossa questão diária, nosso desencontro quotidiano, o
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falante se desloca dentro do mal-entendido quase todo o tempo... Acho que a democracia no Brasil é mais da ordem do logro, da aparência adrede preparada, falsa como toda aparência, mas que insiste na falsidade, no aspecto postiço. Eu me pergunto se a coisa nasceu com aquele pessoal da República, afilhado de Comte. Dá para juntar democracia e paranóia dominante, democracia e fetichismo no poder? Não dá. Essa origem positivista de logro me parece ser talvez responsável por essa incongruência constante com o sintoma e esse dito “lamentável mal-entendido” do Sérgio Buarque. Depois de proclamada a República, começam a aparecer movimentos messiânicos no Brasil. O pessoal ia lá, jogava um monte de bombas e matava todo mundo. Era o caso de a gente se perguntar por que esses movimentos negavam a República e queriam o Império de volta. Não seria um confronto entre uma maluqueirazinha mais para o lado do feminino, e sacando a sintomática da raça que estava de chegada ali, movimentos em contraposição a algum superego violento constituído como paternidade ideal, tomado emprestado da paranóia de um sistema que nada tinha a ver com a situação nacional? Um sintoma percorrendo o corpo da Morena (a Pátria, dos poetas), sintoma simplesmente, no caso aí, de ser mulher, ou exigir alguma heterossexualidade e, do outro lado, em vez de pintar homem, começa a pintar “parana”, querendo eliminar o quê? O homem que segurasse a barra da Morena, direi daqui a pouco quem é. Suponho que possa ser algum que servisse de referência, sem cair nesses surtos paranóides, ou sem esses apegos fetichistas, sem essa homossexualização compulsiva. Alguém que pudesse simplesmente dizer: “Eu tenho, falo, tudo bem, quem quiser, está às ordens...” E não que comece a meter, o falo, em todo mundo, exigindo portanto que todos o tenham, o que é pior. Há uma verdadeira exigência de que todos tenham, tanto do lado das feministas, quanto do lado dos “paranas”. Minha referência, então, ao movimento messiânico é no sentido de perguntar por que, uma vez que um surto comparece do lado de cá, comparece outro do lado de lá? E que esse que estava cá, vai ter que massacrar, justamente por que ele próprio é como aquele. De um modo ou de outro, o messianismo
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de que estamos tratando parece comparecer como uma espécie de doidice que rememora o passado, ou que pelo menos o exige como alguma coisa a ser repensada, e não que nenhum messianismo fosse sanar a situação. O messianismo não deixa de evocar, requerer um Outro. No Sebastianismo, por exemplo, se invoca, se evoca, se convoca o cara que se perdeu no deserto o sumido. E mesmo que alguém assuma o lugar da “parana” lá dentro mesmo, de um modo ou de outro, o movimento em si é uma requisição de alteridade. Eu diria mesmo que nesses movimentos talvez se faça de modo oblíquo a requisição desse homem que não veio, que não compareceu. Aliás, é engraçado que, no caso de Canudos, todo um aparelho sistêmico de exército chega lá e leva pau, porque a coisa era completamente assistemática. Só conseguiu ganhar a guerra um civil que era tão obsessivo que transformou o sertão em rota de burros. O jegue tem tido um certo sucesso neste país... *
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Aí está como a psicanálise pode aparecer metendo um pouco o nariz nessas questões. Não de graça, porque o que nos interessa é entender o que é uma sintomática na fala de um sujeito nacional. Interessa, também, por exemplo, discutir essa questão levantada por Sara Kofman. Isto é psicose, esse sistema filosófico, é um substitutivo de delírio? Meu encaminhamento vai um pouco mais lateral nisso. Não acho que seja bem assim. Prefiro abordar pelo lado do fetiche, mas não longe da psicose. Talvez aqueles caras lá, desses movimentos messiânicos, sacassem que alguma coisa não ia nessa República, de araque... Mas requisito de volta o símbolo: campo verde, rombo dourado, furo azul, céu estrelado, lema significante e não, significado. Campo verde, da Outra; rombo dourado, da Linguagem; furo azul, da nossa falta, o furo Real do simbólico; céu estrelado, com o Nome do Pai, a constelação sagrada; lema significante, para dizer a verdade; e não significado, mas sintoma; para ser bem dito, e bem amado. Ao invés desses surtos alternados, estamos precisando mesmo é de referência a Nome, de Pai. Portanto, que a Morena tenha “um homem para chamar de
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seu”, ou de céu, e não senhoras grávidas, de gabinete, que sonham que seu filho seja positividade natural, embora, na verdade, não passe freqüentemente de subproduto de uma fantasia jamais atravessada e bem propícia às orgias masturbatórias de alguma política estritamente homossexual.
30/MAR Término com a audição de Mesmo que Seja Eu, de Erasmo Carlos.
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A cambalhota
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Cambalhota é uma palavra bem nossa. Tem a mesma origem etimológica que câmbio, vem do verbo latino cambire, cambiar. Muitas palavras, em português, têm relação com ela. Por exemplo: cambada, a maneira de carregar os peixes pendurados numa estaca, revirados, ao contrário; cambado; cambaio, coisas tortas para o lado; cambalacho, uma espécie de trambique ou de trampolinagem − a metáfora, aliás, é mais ou menos da ordem do cambalacho, pois troca alhos por bugalhos −; cambaluz; cambar, entortar, trocar; cambista, que é um dos nomes possíveis para o ser falante; escambar, que tem o sentido de barganhar; alguma coisa que vem de cambulhada... Estes dicionários não registram um termo meu conhecido, lá do interior, que é uma cambalhoada, uma espécie de trambolhão... Cambalhota não é senão um outro apelido mais quotidiano, e mais atuado, no sentido de cena, do revirão. Mas é um revirão que você dá, sentindo no corpo, na carne. Cambalhota é mimética do revirão no corpo: damos cambalhotas. *
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Todos conhecem as fábulas do chamado La Fontaine, que alguns têm como escritor muito fino, comparado com Villon, etc. Não sei. Quando leio suas fábulas, tenho a impressão de que é algo da ordem da Pedagogia. O pedagogo
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é mais ou menos o cara que espia o mundo pelo buraco da fechadura. Se me permitem usar um termo pulsional, é um cara que olha, enxerga, vê o mundo pela perspectiva do olho do cu, no sentido pulsional do termo, de apego à metáfora pronta, o que resulta no que chamamos de moralismo. Mas a cigarra bate na porta da formiga e lhe pede para arranjar uma comidinha, para agüentar o inverno, porque ela ficou cantando o verão inteiro. A formiga lhe responde: “Você ficou cantando, pois dance então agora”. E La Fontaine acaba a fábula aí... Mas a cigarra sai da porta da formiga, vai andando e, aí, ia descendo da sua Mercedes Benz um bicho que, lá na roça, a gente chama de papa-fumo − é a libélula, aquele bicho que fica na beira das águas, tem quatro asas, um rabo comprido e molha a bundinha na água toda hora. Seu apelido costuma ser lava-bunda, no interior, ou lavadeira, isto segundo o Aurélio: lava-bunda, lavadeira, cavalo-do-diabo, cavalo-de-judeu, não sei por que, certamente porque é considerado um bicho carnívoro e voracíssimo... A libélula, então, achou que ela estava tão tristinha, perguntou o que era, e a cigarra contou aquele negócio todo que aconteceu com a formiga. A libélula falou: “Vamos lá para casa, está tudo bem”. Serviu conhaque, etc., e aí a cigarra lhe contou que tinha um cara lá, sentado, quando a formiga abriu a porta, escrevendo uma porção de papéis, etc., um tipo meio mal-encarado, a formiga estava contando seus negócios lá para ele. A libélula falou: “Ah, eu manjo, é o contador dela, que se chama La Fontaine”. E continuou: “Você está fazendo o negócio todo errado. Não é nada disso. Vou te dar um estúdio, ali em cima, no sótão, e você fica lá inventando essas musiquinhas suas e não canta para ninguém, você guarda. Quando acabar o inverno, vem o verão, você continua fazendo... Quando chegar o outro inverno, a gente bota você na televisão e aí cobra da formiga para te escutar. Ela está de saco cheio dentro de casa, porque só sabe trabalhar. No inverno, ela fica num tédio desgraçado”. Dito e feito! Foi assim que aconteceu. A cigarra, por tabela, por via da libélula, entrou no jogo da formiga. Porque ela faz aquela onda toda, a formiga está muito preocupada com seus filhos, adolescentes, que ficam imitando aquelas coisas, parece até que vai haver uma revolução moral... Mas não vai não. Os garotos só querem
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imitar as roupas, o cabelo da cigarra. Depois, fica tudo em paz, porque se tem que pagar royalties, e esse negócio todo. É assim. E tem, também, aquela da raposa que vinha andando, passou por baixo de uma parreira e viu que tinha umas uvas lá em cima. Como estava com fome, tentou de todo o jeito pegar as uvas, mas não conseguiu. Então, disse: “Vou-me embora, essas uvas estão verdes”. E, aí, lá vem o moralismo do fabulista outra vez mostrar que ela desdenhou só porque não conseguiu... Mas ocorre que a raposa continuou andando, passou por outra parreira, e o cara que tratava dela tinha esquecido lá a escada com que fazia poda. Então, ela tomou o poder: subiu a escada e comeu as uvas. Mas não adiantou nada, pois ela foi andando em frente, e continuava procurando outra coisa... A raposa, que é símbolo da astúcia, não se sabe por que, é aquela que está no poema de Fernando Pessoa que diz: “O mar tem fim/ o céu talvez o tenha/ mas não esta ânsia de coisa indefinida/ que o ser indefinido faz tamanha”. É a questão do desejo, e de como ele comparece para o sujeito, e de como ele mesmo se inscreve até na carne, no corpo. E aí vai algo de Real e de Imaginário, e de Simbólico. Todos conhecemos o conceito freudiano de Pulsão, como se traduz freqüentemente, e que é um conceito fundamental da psicanálise, ou seja, um conceito que assegura a teoria psicanalítica. Não gosto dessa tradução por pulsão. Em alemão é Trieb. Em brasileiro, e mesmo em português, mas com muito mais uso no cotidiano do brasileiro, temos a palavra tesão, de uso tão comum na falação, do carioca sobretudo. Ela é indexada pelo Aurélio como de linguagem chula nessa acepção que mais freqüentamos, no sentido de estado do pênis em ereção, potência sexual, desejo carnal, excitação, certamente sexual, como se diz, e também de indivíduo que inspira desejos carnais, tesudo, isto é, o que quer, ou quem quer que compareça como objeto a, mediante o que, a verve chistosa da nossa gente, pode abrandar o chulo da ocasião, com a nomeação do tesouro, para aquilo que ali nos atrai. Mas o termo não é chulo em sua produção, bem como em vários outros usos. Tal como na escrita de Camões, de Gonzaga, aonde ele remete à sua inserção erudita, a mesma da palavra tensão. Ambas são oriundas do latim tensione, quando a palavra tesão remete a
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significações como tesura, qualidade ou estado de teso, de força, intensidade, manifestação de força, violência. Todas essas significações que têm a ver com o termo tensão, como qualidade ou estado do que é tenso, rigidez em certas partes do organismo, grande aplicação ou concentração física ou mental, também servindo à terminologia técnica ou científica, como diferença de potencial elétrico entre dois pontos de um circuito, voltagem, quociente de intensidade de uma força pela área da superfície sobre a qual ela atua, etc. E também com o sentido de articulação, como na fonologia, por exemplo... Nessas acepções todas, são tantas e quantas as aventuras do termo. Aventuras que bem traduzem o que vai naquele título de um artigo de Freud, de 1915, que trata dos Triebe und Triebschicksale. No Seminário 11, p. 154 da nossa edição, Lacan exige que se traduza Schicksal por aventura, com o que teríamos, para o texto de Freud, o título de Pulsões e Aventuras de Pulsões, ou, pelo menos, As Pulsões e suas Aventuras. Tanto pelo que venho mostrando entre nós do modo mais brasileiro de nomear, a palavra Trieb, do alemão, e no contexto, tanto psicanalítico quanto linguageiro em que podemos nos achar, encontra precisa tradução neste nosso termo, tanto erudito quanto vulgar, que pronunciamos desabridamente como tesão. Basta nos reportarmos ao tensione do latim para nos darmos conta de que o que há de Drang como motor da pulsão, diferível como pura referência à descarga, que encontramos em Freud, no texto que citei, isto é, com vistas a uma satisfação pelo atingimento de um final, Ziel, que é a supressão do estado de estimulação da fonte, Quelle, como processo somático que se desenvolve num órgão ou parte do corpo, isto é, numa como que coceira a ser coçada na esfregação com o objeto que a causa − o Objekt de Freud. Objeto que sabemos, como está em Freud, que é indiferente na pulsão. Qualquer que seja o objeto, o que interessa é que funciona como causa, portanto como o lacaniano objeto a, e que pode ser, por algum encontro, abandonado então, depois dessa esfregação. Basta notar isto para recomendar, com precisão, que Trieb seja corretamente traduzido, em bom brasileiro, e mesmo em bom português, com o nome que tem o mesmo T grande inicial: o nosso Tesão.
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Assim, o paper de Freud deve intitular-se, para nós, Tesões e Aventuras de Tesões, ou melhor, Os Tesões e suas Aventuras. Tesão que, para Freud, como para Lacan e para nós, é Grundbegriff, conceito fundamental, da psicanálise, tal como aparece no Seminário adrede de Lacan, que é o onze. É de se fazer recordar, a cada qual, que se é um conceito fundamental é porque, do ponto de vista da psicanálise pelo menos, tenta pegar alguma ocorrência indefectível no falante, seja diretamente, se é que isto existe, seja por suas aventuras: não há falante sem tesão (ainda que seja o chamado “tesão recolhido”). O tesão não pára de se escrever: ele é necessário. Lacan desenha, como gráfico explicativo, p. 169 do Seminário 11, uma superfície com a sua borda, superfície atravessada por uma alça de contorno. Drang, uma espécie de impulso, dá início ao processo, atravessa a superfície, torna a atravessar a superfície, de saída. Ele diz que a borda dessa superfície é o lugar da fonte, Quelle. E Freud diz que há um impulso que é uma tensão que tenta uma descarga, e essa tensão procura atingir um fim, Ziel. Lacan mostra que essas bordas, esses contornos, se desenham no corpo, e para dar uma idéia disso ele biparte essa noção de alvo, Ziel, em dois termos: aim e goal. Ele chama essa voltinha de contorno de aim, quer dizer, o trajeto; e o atingimento, de retorno à mesma borda, de onde a coisa partiu, ele chama de goal. Na verdade, ele está partindo o fim, o Ziel, em dois conceitos.
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Lacan quer explicar com essa figurinha que, no corpo, existem certas regiões privilegiadas que são estruturalmente regiões de borda e que se deixam percorrer por essa konstante Kraft, como Freud a chamava. Não há nenhum desnível tensional, é uma pressão, um movimento constante correndo essas bordas. O conceito de energia aí não funcionaria para se fazer nenhuma diferença de potencial. Há um constante curso dessa borda e essa constância, esse impulso movido por essa força de constância, coça, digamos, nessa borda. É esse movimento de distensão que parte dessa borda, contorna o objeto e retorna, atingindo o alvo no mesmo lugar de onde partiu. O que Lacan está chamando de aim é o trajeto que a pulsão faz em torno do objeto, e o que chama de goal é o fato de se atingir, de retorno. Não se trata de marcar ponto, como num jogo de futebol, quando a bola entra e faz goal. Trata-se de atingir o arco, atravessar a meta. O esquema de Lacan é muito interessante porque mostra que esse objeto é causador do movimento. O objeto a é causa do desejo, mas ele pode ser qualquer um... Lacan mostra que a causa do movimento pulsional é a construção em hiância, em rachadura, sobre o próprio corpo. Nenhum lugar é Quelle, fonte, se ali não se instala de um modo ou de outro uma hiância. Então a causa é a falta. A causa é a mesma do desejo: a causa é uma falta. Assim, qualquer objeto que ali venha em lugar da falta, serve. Estou dizendo, então, que o objeto a é a causa do desejo, e, também, a causa do movimento pulsional. Não é que ele seja o deslanchador desse movimento, embora, eventualmente, o deslanche, como substituído. Aí é que vai estar a nossa questão. *
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O estatuto do objeto a é ser radicalmente faltoso, é um objeto real, impossível de ser inscrito. No entanto, ele se acomoda sob outros objetos, no que ele é real, como comparecente. O real não deixa de comparecer. Então, ele pode ser considerado, sim, objeto a, mas não enquanto tal.
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Estamos aí diante de uma questão delicada, quando temos que poder, pelo menos, dentro do nível teórico da discussão, conseguir separar o que é da ordem da construção de matemas − da apreensão de estruturas − da emergência dos casos. É diferente, pois, quando estabeleço, conjeturalmente, relações estruturais entre conceitos, letras, etc., estou discernindo, de dentro do simbólico, os acontecimentos, mas preciso também me dar conta de que os acontecimentos não emergem assim. Os matemas são minhas ferramentas de abordagem dos acontecimentos. Lacan fala, no Seminário 11, p. 171 em diante, de um verdadeiro sujeito acéfalo, que percorre, que se dá, comparece no simbolismo da chamada pulsão. Precisamos perguntar o que é que pode ser isso. Para Lacan poder fazer uma correlação entre o que aparece em nível de instalação corporal − seja num hiato dito natural: boca, ânus, buraco do ouvido, fissura do olho, etc. − com essa inserção do movimento pulsional no campo do inconsciente, ele vai escolher, colhendo da obra de Freud, que o que faz com que o regime pulsional, no nível da carne, possa encontrar esteio, no nível do inconsciente, é sua homotopia, ou seja: eles são topologicamente da mesma ordem. O que é pulsional no nível da hiância corporal se constrói da mesma maneira que aquele losango, , de que sempre falo, aquela hiância. E como o inconsciente é estruturado como essa hiância, as duas coisas têm como se engastar, se engrazar uma na outra: a transação do inconsciente com o corpo é, então, por homotopia, segundo Lacan. Essa hiância que comparece no inconsciente é uma espécie de transposição para uma outra ordem − eu é que estou dizendo assim −, para um outro registro, daquilo que comparece no registro do vivo, como reprodução, sexuada. Isto não é nada gratuito. Poderia fazer a metáfora de que a ordem simbólica é o sistema de reprodução, talqualmente do nível genético, biológico, que extrapolou a ordem biológica para outro registro. Quem sabe? É preciso levar em conta que essas estruturas que Lacan está sobrepondo, a da pulsão, a do tesão como a estrutura do inconsciente, resultam no reconhecimento de que aí comparece uma topologia da mesma ordem da topologia do desejo. O conceito de libido depende dessa mesma hiância.
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No Seminário 2, sobre o Moi, em torno da p. 200, Lacan explica o que pode ser esse tal sujeito acéfalo. Ele fala de um sujeito policéfalo, quando se trata de todas as representações imaginárias, essa pluralidade de representações que o sujeito se faz, dizendo que “se existe uma imagem que poderia representar para nós a noção freudiana do inconsciente, é bem a de um sujeito acéfalo, de um sujeito que não tem mais ego, que está no extremo do ego, descentrado em relação ao ego, que não é ego”. Então, quando fala nesse sujeito acéfalo, está dizendo − aliás, isto é o que ele pede, em algum lugar, que seja o modo de produção do chamado analista: uma eliminação de ego, um sujeito sem cabeça, e sem pé certamente, sem pé nem cabeça, portanto descarado, só que ninguém consegue ser tão descarado assim, pois resta sempre uma virtualidade imaginária − que a acefalia do sujeito tem a ver com a possibilidade de eliminação do ego e, portanto, é o imaginário que está aí em jogo. Ora, quando tento falar do inconsciente, enquanto tal, o sujeito que lá percorre, representado de significante para significante, posso concebê-lo como esse sujeito acéfalo, e isto é um modo de abordar um dos registros da nossa estadia por aqui: a suposição de um lugar chamado inconsciente, onde há supostamente um simbólico puro e um sujeito acéfalo correndo lá dentro. Só que ninguém, absolutamente ninguém, se sustenta nesse lugar. Nem mesmo o analista, embora se esforce. Conceitualmente, Lacan está dizendo que para entender o que se dá na pulsão posso simplesmente pegar uma beira de corpo, uma borda qualquer e a ligação disso em algo que tem a mesma topologia, onde corre esse movimento de um sujeito acéfalo: a pulsão, o tesão sozinho seria desta ordem. Para conceber o que é o tesão, basta sentir uma coceira nalgum lugar. Coceira que se esfrega num objeto impossível, e ela atinge o objetivo... de ter se esfregado. Não há outro... E por um trajeto que não é senão o seu modo de esfregação. Isso no nível de conceituar o que é o tesão enquanto tal. Então, o sujeito acéfalo poderia ser o sujeito antes de ele ser inscrito no simbólico pelo retorno pulsional. É o sujeito a vir, e o sujeito que não há na pulsão. Aí está todo o núcleo da questão. Na medida em que, se o movimento pulsional se dá sozinho, porque o sujeito é falante ele está chamado pela hiância, como o corpo está brechado
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pela hiância, nada poderia funcionar para ele sem constituição imaginária. Sem registro imaginário, não se tem nem língua. Lacan está enfatizando é que há uma pega imaginária, que vai apontar, retomando no Seminário 2 sua referência ao Estádio do Espelho, para mostrar que a imagem do corpo é o princípio de toda e qualquer unidade que um sujeito possa adscrever a esse objeto. Ainda que haja uma antecipação projetiva no momento do estádio do espelho, é no regime do imaginário que se dá toda e qualquer possibilidade de construção de objeto. O que está em jogo, então, aí, é que, na medida em que é como alter ego, como objeto precipitado, que o sujeito constitui qualquer possibilidade de unificar objeto, de libidinizar portanto, é que ele vai na verdade se constituir, fundamentalmente, no regime narcísico. Lacan chega mesmo a dizer que o mundo perceptivo desse sujeito está formado por esses componentes da relação narcísica. Que o objeto, qualquer que seja, vem a ser o reflexo, mais ou menos, da unidade da própria ordem do corpo do sujeito. Há uma inércia. Lacan diz que a teoria freudiana nos dá do narcisismo uma espécie de beco sem saída, que marca todas as relações, e muito especialmente as relações libidinais do sujeito. Aí que ele vai dizer que a Verliebtheit, que chamamos de amor, no sentido pulsional do termo, é fundalmentalmente narcísica. O que tem isto a ver com esse movimento pulsional? O que tem a ver a chamada pulsão com a libido? O que é a libido? No Seminário 11, Lacan inventa aquele “mito da lâmina”, da lamelle, e diz que a libido é aquilo que falta ao sujeito − não para se complementar numa espécie de viravesso, não é o mito do andrógino, por exemplo, tem a ver com libido, não é que falte outro sexo −, um pedaço irrecuperável, de quando ele se separou por existir pura e simplesmente como reproduzido através da sexuação. O mito da libido não é senão o mito do objeto a, e o movimento pulsional há por causa desse objeto, e mediante esse órgão que se desloca, chamado libido, que é o órgão dessa falta. Então, a libido é congruente com o tesão que é congruente com a hiância do inconsciente, que é congruente com haver linguagem. Lacan insiste ferrenhamente: “No começo era o verbo”. E o verbo não é senão a Linguagem. E para fazer entender o que está chamando
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com isso, diz que é o significante, é haver significante. Ele está dizendo que no começo era o rombo. Era uma vez a linguagem. A pulsão, o tesão não é senão isso que repete, reconfigurando-se sobre o aparelho corporal que funcionaria homeostaticamente se não fôssemos falantes, o percurso da própria borda, da própria hiância do inconsciente. *
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O que estou, então, querendo mostrar é que, na verdade, não comparece nas manifestações do sujeito o sujeito acéfalo, e que a pulsão é da estrutura da cambalhota, do revirão. No regime imaginário, para o falante, o sujeito sempre aparece com alguma cara, e não sem cabeça portanto... O melancólico, por exemplo, sonha com o sujeito acéfalo e não consegue dar cara a este sujeito. Lacan deixa claro, lá no Seminário 2, que as estruturas da libido e da pulsão têm tudo a ver com a inserção do imaginário. Tínhamos o conceito de um sujeito acéfalo, e estou dizendo que ele não comparece porque há o registro do imaginário. No lugar da falta, alguma coisa se coloca, despontada no regime do simbólico, mas esteada no regime do imaginário, e vem configurar o objeto perdido, nem que instantaneamente. Nisso aí é que nenhuma pulsão em exercício é acéfala, não depende de um sujeito acéfalo, pois, no momento do tesão, há o imaginário que configura para o sujeito o objeto no qual ele se esfrega. Só posso, então, falar de sujeito acéfalo quanto ao puro conceito de desejo. E desejo indizível. Está me interessando, aí, mostrar, em primeiro lugar, o que há de congruência entre o esquema que Lacan faz da pulsão e o nosso revirão, a nossa cambalhota, pois, a meu ver, ele está dizendo que a pulsão é a estrutura da cambalhota, do revirão. Isto é importante para mim, porque é mais um conceito que reduzo à estrutura do rombo. A pulsão é esse movimento que está estabelecido naquele esquema de Lacan. A libido, Lacan a apresenta miticamente, mas se não quiser apresentála assim, posso mostrar melhor em cima do esquema do revirão, da curva da cambalhota. E ousar escrever assim:
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Tenho uma borda, sobre o corpo, que topologicamente é da mesma ordem da fissura do inconsciente; essa borda se torna fonte como emergência de estimulação por essa konstante Kraft de que fala Freud; tenho um trajeto, um repetir-se automático, constante, essa força constante sobre essa borda − e podemos agora colocar essa borda no corpo, como no inconsciente, dá na mesma − que não é senão isso que Lacan chama de aim: é o trajeto da pulsão; o impulso é constante, Drang. Qual o objetivo, o alvo que isso quer atingir? E onde está o objeto em torno do qual essa coisa gira ali no meu esquema? O trajeto é, automaticamente, trajeto de circundar o objeto a, que apresento ali como impossível, ponto impossível de determinar: o lugar onde a coisa se revira. Vamos supor que, numa comichão qualquer, o sujeito viesse se deslocando sobre esse trajeto. É preciso alguma identificação para esse sujeito, no nível do significante, para que ele possa cumprir esse percurso, assim como também o é no nível do imaginário, para ele colocar o objeto de seu circundamento. Então, ainda que se pense que o sujeito vem sem saber “qual é”, que só sentiu a coceira do trajeto, alguma coisa deslanchou para ele esse processo, e ele produz essa revirada e atinge o alvo, por um retorno à sua posição de começo. É o reencontro do objeto perdido. Ele se reencontra com a sua marca, se reencontra como marca na medida em que procede, no processo da sua coceira, do seu tesão, do mesmo modo que sobre ele é processado e inscrito aquilo que chamo de halo significante, uma experiência de real. Estou dando passos pequenininhos que parecem longos. Estou tentando fazer uma conotação e um percurso desde aquilo que coloquei do revirão, a respeito da relação do halo significante, que chamei de Halopatia, com essa
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inscrição na própria língua, aquilo que mostrei, n’A Reflexão, acima, a respeito da relação disso com o momento do Estádio do Espelho. O que estou querendo dizer é que há homopatia entre essas duas figuras, a do esquema de Lacan e a da minha cambalhota e que, portanto, o percurso, o esquema da pulsão é da mesmíssima ordem do halo significante, do esquema do inconsciente, do esquema do rombo. O que comparece, então, no movimento pulsional é o tesão enquanto modo de inscrição homotópico à inscrição do significante, nesse sentido em que o significante comparece, antes de mais nada, como halo − como sim/não, fort/da −, e que o movimento da libido é a constituição necessária do falo, como desejo de encontro das duas formas alélicas do halo. Ou seja, é a cambalhota do cambeta que não pode dizer, ao mesmo tempo, fort e da. Só fazendo um percurso em que, se ele parte de da, ele diz fort-da, e, se ele parte de fort, ele diz da-fort. Essas coisas são conceitos dos quais necessitamos porque discriminam os acontecimentos na relação do inconsciente com a fala, mas que são homotópicas, pois posso reduzi-las à mesma topologia − e é através dessa topologia que Lacan junta isso. Mas o que está me interessando no momento é, sobretudo, mostrar que não há comparecimento, nem mesmo para o suposto analista, de um sujeito acéfalo. É como se fosse uma meta a ser atingida na formação do analista − aliás, impossível. Justamente porque somos fabricados de real, simbólico e imaginário. Portanto, o objeto a, enquanto falta radical, ninguém consegue encarar. E não conseguindo encará-lo, quando se olha para ele, vê-se alguma coisa. E no que se vê alguma coisa, o que é que pinta? Esta é a minha questão. Entrei aí, então, com o necessário, na estrutura que do imaginário sobrevive, de uma identificação narcísica. Essa identificação narcísica tem que ser suspensa no processo analítico, para que o sujeito possa percorrer o simbólico, mas não assassinada, não dissolvida; porque ninguém dissolve o imaginário, simplesmente se o mobiliza. Mas o que está me interessando é chegar a um outro conceito que é da maior importância para o percurso que venho fazendo. Não esqueçamos de que estou falando de Ordem e Progresso e também tenho um Ziel.
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O revirão, então, é toda vez que o sujeito se depara com o objeto a: ele tem que revirar, ainda que o objeto seja imaginário. O objeto exige dele uma invenção fálica. O objeto a, no que ele pinta como lugar de furo, é puro furo, real, mas no que pinta, ainda que imaginarizado, o que exige é um percurso em que, se ele falta, todavia não deixa de deixar restar a revirada significante que ao sujeito empresta um halo. A revirada significante que faz o sujeito passar do ativo ao passivo e vice-versa, isso depende de onde se sai. Aonde quero chegar, o que me importa disso tudo, é mostrar que não há movimento libidinal e movimento pulsional sem fundação narcísica, portanto, sem fundação imaginária. Não existe absolutamente qualquer possibilidade de transação, no campo do tesão − e lembro que disse que não há falante sem tesão −, não existe menor possibilidade de o falante existir sem perversão. No Seminário 11, Lacan diz, da estrutura da perversão, que “a pulsão não é a perversão”. O conceito puro de pulsão é o conceito desse sujeito acéfalo no seu movimento. E mais, “o que define a perversão é justamente o modo pelo qual o sujeito aí se coloca”. Cria-se, então, uma ambigüidade porque o sujeito aí se coloca numa necessidade de sacar, do banco do imaginário, alguma coisa que dê cabeça à sua posição. E uma vez que entra a cabecinha, entra o resto... Todo mundo sabe disso. Basta que haja, para o sujeito, a possibilidade de se entronizar uma configuração de objeto a, certamente que privilegiada, numa “escolha” que vem por identificação simbólica e por identificação narcísica − é o que poderíamos chamar a père-version do sujeito, a versão de tesão que lhe dá paternidade −, o sujeito cai necessariamente no regime da perversão. Mas preciso continuar inquirindo isto, pois, no Seminário 1, Lacan se delonga um pouco sobre a questão da perversão e mostra que não se pode igualar o chamado perverso polimorfo com a perversão do adulto. Embora haja analistas que pensam que a liberação sexual é em função de haver perversão polimorfa, na infância, igual à perversão do adulto... É o que diz a psicanálise de televisão. Não é por aí, pois bastava eu ir ao banheiro, por exemplo, ao banheiro trocado eventualmente...
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Lacan faz o mesmo desenvolvimento sobre a relação sádica. Faz um elogio ao Sartre da segunda parte de L’Être et le Néant, quando fala do olhar. Faz uma descrição das manifestações que chama de perversas e mostra que, mesmo no regime da perversão, não se pode eliminar a relação intersubjetiva. Não há falta de intersubjetividade quando se diz respeito ao sujeito falante. A perversão, diz Lacan, p. 243 da edição francesa, “é, em suma, a exploração privilegiada de uma possibilidade existencial da natureza humana − seu dilaceramento interno, sua hiância, por onde pôde entrar o mundo supranatural do simbólico". Ele, praticamente, está dizendo que nessa hiância do imaginário, por onde vai entrar o mundo sobrenatural do simbólico, essa hiância real, essa brecha, real, no imaginário, nos dá, como opção − e talvez sem saída, uma vez que estamos metidos, como disse, no regime narcísico −, uma demarcação nitidamente perversa para a sexualidade humana. Que não é, de modo algum, o polimorfismo, digamos, algo-acefálico da criança, mas, sim, aquilo que se opera depois da possibilitação de uma relação intersubjetiva, por instalação conforme com um aparelho narcísico eficaz. Mas aí ficamos numa situação um pouco difícil porque, no Seminário 11, Lacan diz outra coisa, que a estrutura da perversão é, propriamente falando, um efeito inverso ao da fantasia: o sujeito é que se determina a si mesmo como objeto em seu encontro com a divisão da subjetividade. Aí, ele já mudou de tom e está dizendo isto porque vai sustentar adiante que o suporte do desejo não é o objeto. Se o objeto faltoso é causa do movimento do desejo, ele não é suporte de desejo nenhum, porque, para que um desejo venha a se coalescer − o que vai se coalescer em enunciado, que se exprime em demanda −, é preciso que compareça um suporte que tenha rosto. E um suporte tem rosto na medida em que é fantasia, ou seja, aquilo que dá esteio, suporte ao desejo. É o sujeito na sua hiância para com um objeto dado, inventado, imaginariamente representado. E Lacan diz que é na perversão que as coisas se sub-trocam: o inverso da fantasia. Na perversão, então, ao invés de o sujeito se dar suporte esteado num objeto imaginariamente representado − $a −, é, ao contrário, um determi-
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nado objeto imaginário que se suporta como sujeito, ou que suporta o sujeito na contramão: a$. A rua tem mão dupla? Parece que Lacan está dizendo que a estrada não tem mão única, que é difícil conseguir situar precisamente uma estrutura perversa em exercício, que seja externa, fora da estrutura dita normal ou não-perversa, se considerarmos apenas o conceito de perversão, e não o misturarmos com a neurose. É que o problema da perversão é uma espécie de jogo de empurra, numa fronteira que tem uma elasticidade incrível. Quando comenta como se estabelece, no jogo da intersubjetividade, que é também jogo com o objeto imaginário, o processo da perversão, Lacan mostra, por exemplo, como, segundo Freud, o Schaulust, o gozo do olhar, é uma estrutura em reviravolta: olhar e ser olhado. Assim como tocar e ser tocado, bater e apanhar, na relação sado-masoquista. E se lembrarmos do texto de Freud, teremos garantias para mostrar como Freud chega à conclusão de que o tesão, em suas aventuras, funciona como revirão. Ele diz que há pulsões do eu, ou pulsões de conservação, e pulsões sexuais. Lacan, por fim, chega a dizer que toda pulsão é sexual. Mas Freud diz que há quatro aventuras para as pulsões: transformação no contrário; orientação para a própria pessoa, na suposição de que esteja orientada para objeto externo e vai virar para objeto interno, para o ego; recalque, isto nada tendo a ver com perversão, porque se passa para a ordem da neurose; e sublimação. Sublimação que Lacan vem mostrar que não é senão que toda e qualquer pulsão é parcial. Zielgehemmt, quer dizer que ela não vai ao fim que supostamente seria o fim pulsional em natureza, isto é, a reprodução. As duas últimas não interessam tanto, mas a troca de orientação para fora para orientação para dentro é revirão; e a aventura de transformação no contrário é da ordem do revirão. Freud está dizendo, em última instância, que o barato do tesão é que ele é revirão. E termina o tal artigo sobre as pulsões e suas aventuras, as aventuras do tesão, escrevendo que se pode resumir dizendo que o acontecimento essencial nas aventuras sofridas pelas pulsões está na sujeição dos impulsos pulsionais à influência das três grandes polaridades: atividade/passividade; Ego/mundo externo; prazer/
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desprazer. O que me interessa destacar aí é o que está nessas polaridades como oposição. *
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Conceituar a perversão, uma pureza da perversão, e mesmo comprovar a existência de um perverso, é coisa extremamente difícil. Lacan, pelo fato de ter mostrado isto, e com clareza, tem sido, às vezes, mal falado, até por exdiscípulos seus. Vocês sabem que a Mme. Aulagnier, Piera, chega a viajar para o nosso pedaço e dizer que “o Magno segue” − não conheço a moça e ela nunca me viu, já disse isto quinhentas vezes aqui − "uma certa vertente perversa do pensamento de Lacan". Isto é de uma burrice crassa. Mal-educada ela já mostra que é, quase tanto quanto eu, mas estou querendo saber o que ela poderia querer dizer com isto. Essa pinimba da moça vem do Seminário, dito inédito, de Lacan, chamado A Identificação, da sessão de 2 de maio de 1962 − isso é velho como o diabo. Como Lacan era gentil! Ele encarece a palavra de Mme. Aulagnier, que está transcrita nesse Seminário, porque ela havia feito, numa dita reunião científica, certa intervenção a respeito da perversão, a qual interessava muito a ela. Parece que ela costumava ser freqüentada pelos perversos, os ditos tais, e ela faz um longo desenvolvimento que, na verdade, é muito bonito, bem composto, um belo texto. Só que ela apresenta ali uma navalha que não sei de onde ela tirou. Quando ela termina seu desenvolvimento, Lacan considera muito brilhante o trabalho, o elogia, diz que ela se esforçou, etc., só que não é bem assim. E esse "não é bem assim", acho que durou até a inauguração do quarto, o grupo dela, porque nunca foi engolida essa humilhação, nunca foi analisada... A senhora queria porque queria que houvesse sujeitos perversos e sujeitos não-perversos. E Lacan vem lhe mostrar − estou resumindo − que ela acaba de demonstrar que é preciso jogar pela janela tudo o que se disse a respeito das perversões, como por exemplo em Kraft-Elbing, Havelock Ellis, etc., mas que, no trabalho dela, ainda não se fez uma devida conversão. Que ele, Lacan,
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se esforça por tentar promover uma conversão na cabeça dos analistas, a qual permitiria a abordagem psicanalítica da questão, e que vai partir do ponto em que se possa, de uma vez por todas, estabelecer o que é que “ce que structure perverse veut dire d'absolument universel” − o que a estrutura perversa quer dizer de absolutamente universal. E, depois, comentando o que ela põe a respeito de psicose, e ainda o que ela dissera quanto à perversão, vem mostrar que Mme. Aulagnier “se deixa escorregar para reintroduzir no sujeito a pessoa, com toda a dignidade subseqüente que vocês sabem”, etc. E por aí vai... Em suma, trata-se de algo da ordem do personalismo, ou seja, da paranóia. Mas o de que se trata é que aonde tenho que chegar, necessariamente, é: todo sujeito falante está sob a égide de uma père-version. O que não impede que eu possa, como já fiz, tentar estabelecer os limites e as funcionalidades da dita perversão, nos limites da elasticidade dessa fronteira tão difícil de estabelecer. Comecei essa coisa de maneira bastante precária num Seminário chamado O Pato Lógico, quando tentei pedir que me dessem oportunidade de sugerir níveis diversos da perversão. Partindo do princípio de que a perversão é para todos, onde eu poderia colocar regimes perversos especiais? Lá, tinha chegado à conclusão de que, talvez, pudéssemos começar a pensar uma perversão normal, ou seja, que todo sujeito estabelece sua relação transacional, sua relação libidinosa, com o mundo, mediante um artifício perverso qualquer. Mas nem por isso deixariam de existir alguns sujeitos que pudessem ser subditos a uma perversidade. Adiante, cheguei a tentar um esclarecimento sobre uma possível psicose, que teria um fundamento perverso, e chamei de psicose perversiva. Quero retomar este projeto em função da Ordem e do Progresso, para que se possa, talvez, distinguir o que, no campo social, eventualmente é da ordem da perversidade, se não da ordem da psicose, que chamo de perversiva. Tentei mostrar naquelas formulinhas d’O Pato Lógico que, em função mesmo do Nome do Pai, no vigor do Nome do Pai, você constitui um objeto que de certo modo vem imaginariamente como fundamento de uma perversão particular. O perversista, o autor da perversidade, seria aquele que poderia
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sub-trocar os lugares na fórmula, de tal modo que desse nessa perversão que Lacan faz: a $. Em vez de: o Nome do Pai está para o falo assim como o falo está para o objeto, passa a ser: o objeto está para o falo, assim como o falo está para o Nome do Pai. Ele simplesmente põe o que se teria constituído no vigor do Nome do Pai, e que só assim se garante, como centro de tudo, só que não concebo bem como isto seja estrutural de alguém. Estou querendo dizer que todo mundo é bom perverso, e que, assim sendo, de vez em quando pode cair nessa de trocar a mão. São essas coisinhas que fazemos, no nosso cotidiano, de libidinoso, e que exigem certa lembrança de uma alteridade radical para que a gente se contenha, se não o prazer de elevar o objeto do nosso privilégio imaginário ao reino do nosso viver é simplesmente imenso, e por isso se toma por ilimitável. O que está me interessando, repito, é mostrar que o regime da perversidade é um regime atingível por qualquer falante, no que ele privilegie a função objeto em sua fantasia. Estou dizendo que qualquer falante é perverso e, no que é perverso, pode eventualmente privilegiar a contra-mão, ou seja, botar o objeto na cabeça da fórmula: a $. Ele pode, até, ter uma série de pressões imaginárias, na sua história, que o lançam num processo de atemorização tal qual ele mantém, como garantia da sua estabilidade, o regime da perversidade. Quer dizer, ele faz da perversidade o seu projeto. É o que talvez esteja em exercício na chamada delinqüência juvenil. Existem sujeitos perversos e existem sujeitos que são perversos com mais constância. Não estou falando de perversões no sentido de prazeres transacionais inócuos, e, sim, sobretudo, dessas perversões como as que envolvem o outro num regime sádico, como aquele que está instalado em certa Polícia, por exemplo. Existe todo um quadro imaginário, uma fundamentação imaginária que permite facilmente sub-trocar e, aí, se tem um esteio imaginário muito forte para se manter o objeto sobreposto à Lei, que é a recusa da cura. Quais são os limites, na minha relação intersubjetiva, para a praticagem da perversão? Isto é uma coisa que ficou, durante todo esse tempo da psicanálise, com um pano quente por cima e mexer aí é explosivo. Trata-se de
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retomar a questão porque o grau de perversidade em que estamos mergulhados é muitíssimo maior do que se supõe. Eu me pergunto se não é por falta de tocar na questão da perversão, da perversidade, da psicose perversiva, que se tem deixado a coisa invadir campos que não deveriam ser invadidos. O regime da perversidade no campo social está se tornando um caso terrível, insuportável. Ao mesmo tempo que se fica brandindo, sobretudo na mão da obsessividade burocrática dos sistemas, um moralismo dito anti-perverso. *
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Fica muito fácil para o sujeito sentar no chamado poltronão, ou entrar nos seus seminários e ficar falando que a neurose tem cura, que não tem cura, porque a psicose isto e aquilo, etc., mas o núcleo da questão, o lugar da charneira − porque, na verdade, Freud terá situado a charneira na perversão −, esse, ninguém quer tocar. Nele, toca-se muito pouco, e ele serve para todo tipo de agressão dos modos mais boçais cultivados na cultura, ao mesmo tempo que, por isso não ser bem abordado, se constitui um sistema social esteado na perversidade. Vocês já sentiram a loucura disso? As perversões são muito mal faladas, ao passo que a perversidade está freqüentemente no poder. A perversidade social, mediante a chamada cultura de massa, é bastante incentivada. No Seminário 1, p. 241, edição francesa, por exemplo, Lacan comenta manifestações perversas ditas de sadismo coletivo. Ele diz que um amigo lhe contou que, na Espanha, nos espetáculos que precedem as touradas, pegam um indivíduo tanto quanto débil mental, põem-no na roupa do toureiro e o mandam para dentro da arena. O pessoal grita: “Olha lá, como ele é bonito!”, e vão dando corda no cara. De começo, o bobo fica sem jeito, porque sabe, bem ou mal, que ele não é bem aquilo, mas como o pessoal insiste, ele vai em frente. De repente, se transforma naquilo que a massa está pedindo que se transforme... e leva uma porrada. Felizmente, é um touro que só lhe dá uma porrada. Mas alguns poderiam levar uma chifrada para valer e morrerem. Por exemplo, uma questão para quem quiser fazer uma tese: esse palhaço heróico
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que o pessoal de lá bota dentro da arena, podemos nós reconhecê-lo em alguma personalidade mais próxima de nós? Pois vou ousar dizer o nome de um deles: Glauber Rocha. Todo mundo dá corda de gênio, manda para dentro da arena... para ser trucidado. E todo mundo ficou muito bem. Os cinerastas estão em boas relações com a Embrafilme. O outro caiu na imbecilidade de engolir só os aplausos... Isto é da ordem da perversidade cultural. Então, estruturas se organizam no nível da perversidade sistematizada, ao mesmo tempo que vivem brandindo a bandeira da anti-perversão. Por que não a cada qual sua perversão − dentro dos limites de uma política de subsistência? As próprias nosografias, por exemplo. Quando em psicanálise, por herança verbal, se fala em histeria, neurose obsessiva, etc., é preciso ter muito cuidado. Se Lacan se esforça para escrever um matema como o da histérica, por exemplo, não é para fabricar nenhuma nosologia. Mesmo porque é um imbecil completo o analista que senta e escuta estórias. Escuta-se, sim, um discurso. E se a psicanálise tenta ser ciência do particular, não tenho matemas senão para ver o que posso tomar de discursivo em tal momento, para saber onde se está, a quantas se anda, naquele processo, em momentos adequados. Mas a coisa já passou de tal maneira que o débil mental do analisando se deita e diz: “Acho que sou histérica... acho que sou obsessivo”, e por aí vai...
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Todo mundo veio para a missa... que, segundo Saraiva, é o mesmo que missio, missionis, ação de enviar, missão, remessa, livramento, soltura. Isso vem do verbo mitto, misi, missum, mittere, trocar, fazer andar, impelir, dirigir, atirar, lançar. Tem a ver com aquilo que a gente chama de missão, que não deixa de ser uma babaquice... Estávamos falando de Ordem e Progresso e a figura era a do Augusto Comte, suas repercussões neste País... E queremos saber se isto é delírio ou é perversidade. Hoje, preciso fazer um interlúdio e brincar com algumas coisas para ver se, através delas, consigo algum encaminhamento. Continuando nossa missa: o afeto... Essa coisa que acusam Lacan de menosprezar. A Piera é uma... Lacan é acusado de não ser afetado. Acho ele bastante afetado: barroco. O afeto é o embrulho significante. Se não se tem como abordar esse embrulho, dá a impressão de que há um tremelique lá dentro. O problema é desembrulhar esse embrulho de significantes, que na verdade se compõe, enquanto embrulho, amarração com nó e tudo, como sintoma. Não se sabendo dizer bem o sintoma, fica-se afetadíssimo, e começa a se acreditar que há um afeto para além ou para aquém do significante. Essa afetação, ou afeição, faz com que às vezes a gente se torne afetuoso. O afeto é aquilo que a fé toma, porque não dá para viver sem fé, de mais ou de menos,
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tanto faz. Mas há uma relação de valia com a fé, fides. Como se pudéssemos viver no deslizamento significante, sem amarrações... Por um lado, se pensa que se pode estacionar na melancolia absoluta do simbólico, mas é uma questão de fé por isso disse que estamos na nossa missa , cada um tem a missa que merece. A psicanálise tem a ver com a fé. Não parece, mas tem: sem um mínimo de transferência, isso que o francês chama de transfé (transfert), não seria possível. Sem essa, não se sabe por que, fidelidade amorosa a um determinado suposto saber no lugar do sujeito, não seria possível ser trouxa o suficiente para acabar com a própria babaquice, ou, pelo menos, supor que se possa acabar com ela. A psicanálise não é a parada cardíaca do simbólico. Insisto porque, de repente, alguém trouxe à tona a importância, autonomia e supervalência do simbólico, e algumas pessoas estão acreditando que vão viver angelicamente no simbólico. Não é possível, a não ser como melancolia. Então, alguma besteira é preciso. A besteira é, conceitualmente a psicanálise pode trazer esse conceito , o mínimo de crença na possibilidade de estabelecimento de laços. Se eliminar toda e qualquer fé na besteira, quer dizer, se não for um pouco besta, se não for minimamente besta, viro anjo, ou senão sobrevivo melancolicamente, se é que isto é sobreviver. Como somos, normalmente, uma amarração de real, simbólico e imaginário, não podemos nos livrar da besteira. Tanto é que estamos todos juntos aqui, olhando para ela. Uma dispersão radical e absoluta não seria capaz de emprestar sobrevivência ao sujeito. Então, não se trata de se sonhar com a dispersão radical da morte, do real, nem mesmo com a queda absolutamente decepcionante do imaginário, numa simbolização, numa matemização constante, indefectível, a cada momento do cotidiano, pois precisamos da besteira. Mas há besteira e besteira. Talvez possamos supor que seja possível o laço social, que se chama discurso, com um mínimo de besteira. Não sem esteira, que ninguém é de ferro, mas com uma transação dialetizada, movimentada com ela. Por isso é que existe esta besteira chamada Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, onde estamos. É instituição, sim, mas uma besteira que tenta ser
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mínima não consegue, mas tenta. E como há fé, crença na besteira, alguns chegam a dizer que o Colégio Freudiano tem algo de religião. Até acredito que tenha, pois a neurose obsessiva percorre todos os lugares onde se a deixa penetrar. E a religião é a neurose obsessiva. Mas acho que essas pessoas estão confundindo as coisas... Esse afeto, essa afetação, de um mínimo de besteira, essa fé toda nessa missa, nessa suposta transmissão, significa que as pessoas exigem um mínimo de laço. E como essa fé tem se sustentado, menos talvez por ser fé do que por ser fé dialetizada, suponho eu, as pessoas ficam em crise de besteira. É o narcisismo da pequena diferença, e elas estão preocupadas porque, no Colégio Freudiano, ninguém falta à missa. Não se pode faltar à missa, senão não há besteira. Isto nada tem a ver propriamente com religião. É o que constitui, em última instância, um núcleo de poder. Há um núcleo de poder que não pode faltar em toda possibilidade de laço, de artigo de fé. Interessa saber como se estatui esse poder. Estamos numa época em que a questão do poder é encarecida, é muito trabalhada. O que a psicanálise poderia, então, dizer sobre o poder? *
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A questão do poder tem a ver com a questão da besteira. Já tenho repetido muitas vezes, em diversos Seminários, que ao considerarmos as chamadas fórmulas quânticas de Lacan, a partição da sexualidade, seguimos certa dica sua quando aponta o masculino para o lado do idiota, e o feminino para o lado da maluquice. Mas esse feminino, que é tangencial à loucura, é aquele que se aproxima da ordem da psicose e da mística, pois o cotidiano do feminino não é bem muito maluco. Jean-Claude Milner, um lingüista, ou pelo menos ex-lingüista, se é que aquilo é lingüística ainda, num livro recente, Les Noms Indistincts, reconsidera essas formulações de maneira muito brilhante e vem propor que se chame de outro modo: trata-se do “diálogo” da imbecilidade com a idiotice.
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Milner diz que uma é a casa dos imbecis masculino, x x e, ou tra, a das idiotas feminino, x x. Isto em função da besteira, pois há duas maneiras de se lidar com ela: ou se é imbecil, ou se é idiota. Fora isso, há uma chance de, pelo feminino, talvez, partir para um pouco de loucura. Mas o que é essa imbecilidade e essa idiotia? No que o sujeito se propõe e se crê homem, no que ele paratodiza a função fálica e exige para si esse lugar tem uma relação do sujeito para com o lugar, não é que o sujeito passe ou esteja nesse lugar , no que ele reivindique, ponha fé nesse lugar, ele é um imbecil. E imbecilidade não é xingamento, é uma coisa absolutamente conceituável. Desde o começo de sua obra, Lacan situa o imbecil como aquele que crê no significado, aquele que, através de uma conjuntura de unariedade figural, mais para o imaginário, crê que possa se estabelecer nas suas relações ditas sociais, discursivas, com fé no significado. E o sujeito, que se crê homem, que exige que ele é homem, não pode fazer senão acreditar tanto no poder conjuntivo daquele que nega a função fálica, de tal maneira que há um significado para os seres ditos homens, que é o mesmo. Então, ele levanta, mais do que o falo, o Pirocão da Verdade, fica esteado nisto, e se torna um imbecil. Na medida em que ela creia que é mulher, e reivindique isto como posição definitiva, estabelecida, não podendo paratodizar, fica sozinha e certamente fica sozinha com o seu capricho, é uma idiota. Vivemos nesse não diálogo, mas embate, desses imbecis com essas idiotas, na medida em que nos esquecemos de que não há um sem o outro, ou outro sem um, de que estamos eternamente no revirão de um para outro quando, eventualmente, eu possa amalucar um pouco, me “desloucar” das minhas posições reivindicatórias de lugar comum. Aí que começamos a possuir, porque somos possuídos por essa vontade de poder, que não é senão o monumento, a exaltação da besteira, em vez de sua minimização. Há alguma possibilidade de não se ser imbecil, nem idiota? É possível, apesar dessas únicas praticáveis demarcações lógicas, termos alguma via de acesso ao que extrapole a imbecilidade e a idiotia? Esta é uma questão que preocupou tantos e quantos pensadores, e é questão fundamental
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da psicanálise. Será possível fazer com que o indivíduo possa se acercar de seu lugar sintomático por uma prática que mais não faz do que talvez melhorar um pouco o mal-estar, melhorar o máximo que possa? Não será possível talvez, também, através dessa prática, numa rigorização deste processo, saltar fora da imbecilidade e da idiotia? Ou, pelo menos, namorar intensivamente com essa alteridade? Aí vem toda a questão do que quero chamar, conceituar como poder. Tenho para mim que o poder é da ordem da metáfora. Talvez achem isto estranho, porque tenho defendido a tese de que a máquina fundamental é metaforonímica. Como, então, estou dizendo que o poder é da ordem da metáfora? A metáfora não é senão a produção, por via do simbólico, do que possa conseguir substituir o que nos falta de proporcionalidade no imaginário. Se vocês se lembram do que demonstrei ano passado, no Seminário sobre A Música, e do que falei n’A Reflexão, acima, a respeito do Estádio do Espelho, vão concordar que, se a metáfora não é uma analogia, e foi o tema que tomei então, a analogia que é uma proporcionalidade A está para B, assim como C está para D permitida pela estrutura do imaginário, por uma relação de bi-univocidade, por faltar imaginário ao ser falante, é sub-trocada pela metáfora. Assim, a própria constituição, para cada sujeito, de uma imagem própria, de um corpo próprio, exige, se é que a conjetura do Estádio do Espelho de Lacan está valendo, uma pressão, uma decantação imaginária que não encontra correspondência natural, espontânea, por falta no imaginário do falante, mas que, por uma entrada, por uma marcação simbólica, consegue nomear, como se aquela alteridade imaginária que lá está diante de mim, aquele alter ego, correspondesse ao que do lado de cá não se tem. Retomando, então, aquele texto d’A Reflexão, lá, no quarto tempo, digo que aquela proporcionalidade da relação imaginária encontra um herdeiro, uma associação, que não é uma proporcionalidade ou uma analogia, mas que funciona como se o fosse, por entrada de um basteamento simbólico. Então, a metáfora, na verdade, não é analogia. Ela tem uma estrutura completamente diferente, porque vende alhos por bugalhos, gato por lebre, un
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mot pour un autre. No que faz isso, precisa desse basteamento simbólico, mas herda, do imaginário, a proporcionalidade que lhe falta. E se o movimento de produção de uma metáfora é poesia, a metáfora enquanto produzida é imaginarização do simbólico. É preciso a intervenção do simbólico numa conjuntura imaginária para produzir aquele poema. Por outro lado, no que a metáfora é produzida, ela se tornou imaginarização do simbólico. Ela vem no lugar do imaginário faltoso e começa a pintar como se fosse um imaginário. A indução simbólica vem cobrir o que me falta de compleição imaginária. No que ela cobre, dá-se um ato de poesia, cria-se uma metáfora. Mas, no que a metáfora se decanta, no que ela é tida, ela é a imaginarização do simbólico. Ela não é imaginário puro, é aquilo que Lacan chama de simbolicamente imaginário. Isto, na medida em que há sentido, justo nessa medida. Se não houvesse, seria o não-senso radical que vige na produção da metáfora, mas que, por decantação, deixa de viger porque começo a tomar as metáforas como prontas, como se imaginárias elas fossem. É isto que estou chamando da fundação do poder: aí se começa a acreditar na metáfora dada. Uma coisa é o desejo, ou seja, a metonímia, a nexação produzindo movimento de geração de poesia, geração de metáfora. Outra, é pegar a metáfora e meter no bolso agora ela é própria. No que se esquece que ela é imaginariamente simbólica, que é imaginarização do simbólico, e que se guarda este objetinho novo, metafórico, se está produzindo imaginário de novo para o falante. Tomemos o conceito, por exemplo. Ele não deixa de participar do imaginário. Já o matema, enquanto escrita, tenta ser algo que liga o simbólico com o real, o que é impossível. Das duas uma: ou você pega a sua língua e começa a lamber o matema, começa a produzir sentido, ou você fica perplexo diante do real da escrita. Mas, no ato da escrita, você tentou embutir o simbólico dentro do real, e Lacan chama isso de mentira. Vemos que a coisa fica um bocado sem pé... Mas faço questão de distinguir o que é da ordem do movimento do que é da ordem do estático. O processo do poético, porque o real está em jogo, é criador de algo que não deixa de estar furado pelo real. Mas, no que ele retomba
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como objeto, imaginarizado, simbólico imaginarizado, ele cai em necessária figuração. Não estou dizendo que sumiu o real dali. Por isso mesmo disse que era imaginário, que era imaginarização do simbólico. O poder, então, é da ordem da fé na imaginarização do simbólico. No que sou carente de imaginário, por via simbólica cumpro uma imaginarização que estou chamando de metáfora, e ponho fé na metáfora. Aí instituí o poder. Essa figuração tem um peso, que é o peso da fé, do apego à metáfora, enquanto pronta. Quanto à metáfora paterna, ela não é senão a fé que se possa dar à imaginarização de um simbólico que nos pega capitonage , que é uma père-version enquanto objeto constituído, ou enquanto constituidora de objeto para o sujeito. Mas por que se é obrigado a manter a fé no Nome do Pai? Esta é a questão. Uma coisa é não se poder ter acesso a ele, outra é viver dessa fé. Pois na medida em que quanto mais fé se coloque nele, e aí chegamos ao ponto, mais se institui um certo poder, o qual não se pode fazer periclitar. E no que se faz isto, ainda que se negue que se faça, não se escapa ou da imbecilidade ou da idiotia. Porque se nega, ou se afirma isto, com toda a fé, ou sem fé, ou com um mínimo de fé. É preciso botar isso em jogo. Qual é o investimento de segurança, vamos chamar assim, que faço nas minhas posições? Para supor que existe o feminino, porque há Bejahung, porque nada pode ser trabalhado se não entrou, não posso dizer que há feminino se não há masculino. Ao passo que posso dizer que há masculino sem haver feminino. E isto é o fundamento da homossexualidade “general”, a verdadeira: a mais-fé nessa posição que prescinde da outra. Não estou criticando que haja a referência como necessária aí, pois, se não tiver uma referência, eu danço. Estou criticando é a fé. A fé é no posicionamento que eu tome sobre essa referência, que é a fé na metáfora. A metáfora se presta facilmente à fixação do poder. Mas, felizmente, há metonímia... A evitação do “desloucamento “ é que é a fé na metáfora. É preciso fazer esta crítica, porque senão fica-se pensando, por outro lado, que basta uma referência não basta não! Por cima da referência, bota merda nisso. A dejeção é imensa. E vai se acumulando esse lixo...
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A fé no lado do feminino, de H' como chamo, não é senão ter fé na minha possibilidade particular de negar, justamente porque está na cara que a Bejahung, do outro lado, se garante. É a madame. Se ela não fosse madame, olhava para o cara e dizia: “Tu és um corno”. Não porque esteja xingando, mas porque é mesmo. Isto é importante, porque quero ver como isto se delineia num pensamento como o do positivismo, como isto deu entrada neste país, etc., e me interessa saber se é da ordem da paranóia, ou da perversidade. Tem resultados para nós. Lacan diz textualmente que é preciso temer os amantes da verdade, pois são perigosíssimos. Transar com a verdade é um barato, mas se apaixonar ou botar fé demais nela é o fim, justamente porque aquilo vira uma casca grossa de significado, e o poderio se instala. Aonde quero ir é nessa questão do aluvionamento, da decantação, da sedimentação das metáforas nesse lixo que chamamos de cultura e que, no processamento das superposições metafóricas, vai se instituindo por um poder que é o fundamento de todo e qualquer poder. Se o poder está numa certa força de ação, de contenção, de limitação, numa certa competência policial de dominação, é porque esse poder é sustentado pela essencialidade do poder: a fé na metáfora dada. Pois assim como posso tratar esses objetos que encontro pelo caminho, produzidos pela chamada cultura, como restos metonímicos das andanças, por outro lado, não posso esquecer que eles são aluviões metafóricos. E Lacan insiste desde o começo de sua obra que metáfora é sintoma. No esquema de real, imaginário e simbólico, quando se os planifica, Lacan bota o sintoma como invasão do simbólico no real. Mais adiante, mostra que o sintoma é real. Há um lapso aí. Temos que aprender a distinguir, de cada vez que ele coloca isso, do quê ele está falando. Pois se a metáfora é sintoma, é pela via de uma compleição borromeana em que o simbólico tem acesso ao imaginário como real, e o real é uma conjetura. E posso eu, por mais rigoroso que seja, separar o registro do real? Jean-Claude Milner, no seu livro, começa com um artigo muito bonito, que já saiu na Ornicar?, dizendo: “Il y a” há, isto é o real; depois, “Il y a
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du semblable” há o semelhante, isto é o imaginário; depois, “Il y a de la langue” há a língua, isto é o simbólico. Só que o il y a do real está sozinho, e nos outros também il y a. Não posso descartar o real, e, se não posso fazê-lo, posso me dar conta de que o que vem em substituição ao imaginário faltoso, que é real, porque il y a du semblable há real no imaginário. Então, é preciso começar a dançar com esse movimento de real, simbólico e imaginário, para não restar na perspectiva de um simbólico puro o tempo todo me freqüentando, ou de um real que impossibilita absolutamente tudo, mas, sim, restar nessa transa, essa trança, esse nó que está correndo o tempo todo e que posso verificar na sua decantação. Se a metáfora vige simbolicamente, é estritamente no momento da sua produção. Uma vez produzida, metáfora é caretice, ou seja, é imaginário fabricado. Aí é que está minha implicância. Aí posso me tornar um homem culto, que sabe os poemas, os poetas, os edifícios da cidade, de Paris por exemplo... Isto é que é um homem culto: conhece uma porção de sintomazinhos, decantados e imaginarizados, imaginarizando o que de simbólico se fundou num determinado momento. Mas, felizmente, a metonímia comparece e “deslouca”. *
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Estamos mexendo na Coisa Freudiana, na Causa Freudiana, quer dizer, a nossa causa, como objeto a, é causa sexual: sexo, nexo, plexo disso é que devemos tratar. No que as coisas se complexificam, no que o complexo pinta, quando não se trata apenas da produção de um plexo, mas se a coisa se complexifica, a metáfora assentada é o caso. A coisa vira o caso, o acontecimento que não é bem, no momento, tradução do événement , é o caso. No que a coisa vira o caso, estamos carregando milênios de aluvionamento, de casos. Então, o poder a que estamos submissos é essa longa fé no aluvionamento de casos. E posso incluir aí, desde a interdição do incesto a São Jorge, a Igreja inteira se quiserem, todo o calendário. Esses aluviões são, na verdade, o poder que dá garantia a toda e qualquer assunção de poder. É aonde quero ir. Esse
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aluvionamento de metáforas, quando a metáfora se instala como sintoma dado, constituído, e pára de ser bem dito, de ser mexido, de ser metonimizado, se torna esse poder insano, abafando toda possibilidade de ato poético. Meti de cambulhada até a interdição do incesto, pois já dei um Seminário, o da Polética, mostrando que ela, como lógica, funciona, mas, como processo social, agora estou dizendo que é aluvião, aluvião sintomático. Encontramos nítido dentro dos planos universitários da língua um decadentismo como a lingüística, como o bem escrever, o bem falar, porque a língua é sintoma. A língua não é nenhum simbólico puro, ela é real e também se imaginariza. A cultura, todas essas decantações vão se acumulando e, em função do prestígio do pedaço de decantação, do pedaço de aluvião que se toma, num dado momento, se terá sintomas benquistos e sintomas malquistos. Desses momentos, pinta a chamada História, que alguém inventa para meter na nossa cabeça. Mas nela há alguma coisa de concreto, talvez, que é, simplesmente, o caso. Porque um caso se deu, e não outro, ele se decanta e começa a nos pressionar para concebê-lo como necessário, quando ele foi contingente. Mas uma paixão sobre essa contingência vai transformá-la em necessidade. Estamos cheios de casos, supostamente necessários, dia inteiro, é o nosso cotidiano, por termos sofrido a contingência do acontecimento e a coisa ter se estabilizado. Por exemplo, todos sabemos que crioulo é inferior. Por quê? No percurso a que estamos acostumados, nesses aluviões, aconteceu que quem tinha a arma era o outro. Se o negro foi dominado, perdeu a briga, ele é inferior, ou ficou sendo. Decantou-se essa metáfora. No entanto, tudo é questão de preferência tem gente que prefere a noite, tem gente que prefere o dia. O crioulo poderia ser o superior: bastava a arma estar na mão dele naquele momento. Mas não estava. Se a África tomasse a Europa e escravizasse os brancos... Mas não foi assim que aconteceu. Na medida em que a gente põe fé naquela metáfora, o poder se instala. Temos uma série de situações semelhantes, como, por exemplo: mulher é inferior, é óbvio. Temos um bando de gente inferior: mulher, negro, judeu, veado, artista, puta, etc.
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Fernando Pessoa que era lacaniano ou, se não, Lacan era fernandiano , uma vez, escreveu um Poema em linha reta: Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, Indesculpavelmente sujo, Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho, Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas, Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, Que tenho sofrido enxovalhos e calado, Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda; Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel, Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes, Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar, Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado Para fora da possibilidade do soco; Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas, Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo. Toda a gente que eu conheço e que fala comigo Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho, Nunca foi senão príncipe todos eles príncipes na vida... Quem me dera ouvir de alguém a voz humana Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
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Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia! Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam. Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil? Ó príncipes, meus irmãos, Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo? Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra? Poderão as mulheres não os terem amado, Podem ter sido traídos mas ridículos, nunca! E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído, Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear? Eu, que tenho sido vil, literalmente vil, Vil no sentido mesquinho e infame da vileza. É dessa “tchurma”. Afora eles, há os “normais”. Não que essa “tchurma” não seja também decantação sintomática, mas que não está eventualmente na crista do poder... Há todo o pessoal da “normalidade”, que é, a meu ver, nos nossos tempos, o partido obsessivo oficial. Embora ele esteja numa situação incrível de mal-estar na face desta terra. Vocês conhecem a anedota do urso e do coelho? Foi-me contada pelo Simeão Leal. Um enorme urso negro, fortíssimo, vinha andando pela mata e encontrou o coelhinho branquinho, cheirozinho, maravilhoso, lindinho. O urso passa a mão nas costas do coelhinho e diz: “Coelhinho, coelhinho, que pêlo você tem! O seu pêlo é bom mesmo, coelhinho? Está limpinho, coelhinho?” E o coelhinho: “Está”. E o urso: “Mas o pêlo não solta, o pêlo é bom mesmo?” E o coelho: “Não, não solta, pode puxar à vontade, não sai um fiapo”, responde orgulhoso. E o urso, que tinha acabado de dar uma cagada, segura o
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coelhinho e limpa a bunda com ele. Só queria saber se o papel higiênico era bom mesmo... É o obsessivo o coelho. Na sistemática obsessiva em que estamos metidos, é o chamado executivo: o sistemão o pega, limpa a bunda com ele, porque ele é ótimo. É só um ótimo papel higiênico, não manda coisa nenhuma. Quem manda é o urso, todo mundo sabe disso. Então, me pergunto se essa reiteração obsessiva a que estamos submissos hoje em dia, como funcionalidade, não é produção dessa paranóia, desse gigantismo do urso. Não creio que o sistema seja tão obsessivo porque é uma produção obsessiva. Parece-me que ele é uma produção de paranóia. Trata-se de perguntar se algum discurso veio à tona para questionar tudo isso no lugar certo. A nosso ver, esta é a função, o valor do discurso psicanalítico. Como extrapolar de dentro dessas construções tão amarradas, de modo a que alguma movimentação seja possível... Esse negócio de fazer revolução, com armas e bagagens de discursos prontos, cada vez se está acreditando menos nisso. Em algum lugar, há uma frase de Lacan que diz que, talvez, a única possibilidade de revolução fosse pela via psicanalítica. Nessa hora aí é que precisamos perguntar se é possível ter sucesso onde cada uma dessas estruturas fracassou. Freud teria dito que ele teve sucesso onde a paranóia fracassou. Freud que era um baita de um obsessivo, egocêntrico Lacan o diz hiper-egocêntrico , se amarrou na histérica e teve sucesso onde o paranóico fracassou. Não será isso que tantos poetas já reclamaram, que se possa, eventualmente, em sendo necessário, utilizar a metodologia da paranóia sem com isto produzir um paranóico? Ninguém vai me dizer que Salvador Dalí é paranóico, pois, evidentemente, não é. No entanto, conseguiu tomar, de Lacan, alguma coisa com que construiu a sua “paranóia crítica”, uma metodologia paranóide sem produção de paranóia. Lacan, já é outra história. Uma histérica nada medíocre, altruísta, como toda histérica, altruísta como ele só, se amarrou na paranóica amada, Aimée, e teve sucesso aonde o esquizofrênico fracassou. É por isso que muita gente não consegue entender o que é a metodologia analítica, o que é a análise para La-
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can. Uma sessão de análise é o sucesso da esquizofrenia, sem o esquizofrênico. Logo pegaram a dica... Deleuze, misturado com Guattari, que aparentemente tem fobia do significante, se amarrou no esquizofrênico, e parece que procura ter sucesso onde o perversista fracassou. Vocês vêem quantos problemas para a gente? Quanto a mim, na medida em que me amarro no perverso, quero ter sucesso onde a histérica fracassou. As pessoas que acreditam que o Colégio Freudiano é perverso não entenderam nada... Não sou muito chegado às metáforas prontas: qualquer prazer me diverte, pelo menos no simbólico, desde que eu possa histericizar. Com sucesso, de preferência. Isso é uma parte aqui metida para vocês lembrarem que a história da psicanálise começa com a histérica; e com o obsessivo preocupado com a histérica; e isso vai se paranoizar. Precisamos retomar aquela histérica que começou a falar e ela precisa ter sucesso. Um exemplo: onde é o lugar em que a histeria teve sucesso? Quer dizer, onde a histérica fracassa? Não estou tão seguro disso, mas suponho que o chamado teatro burguês, por exemplo, com sua histeria bem qualificada, na mão de um Brecht, por exemplo, se torna um sucesso onde a histérica fracassa. Alguém poderia, também, sugerir a mística, mas ela será um sucesso histérico? Ou será mais da ordem de um deslanchamento na metodologia psicótica? Mesmo porque a mística não serve para nada. O que faz uma histérica? Ela fica se virando para produzir uma trabalheira incrível , para parir o Outro. E a glória da mística é não servir para nada. É igual ao ato-poético. Nós nos deleitamos com a poesia, não com o ato-poético. A histérica fica tentando produzir o Outro, porque S2 é sinônimo de A. / Ela insiste na tentativa de produzir o Outro. É claro que, para isso, ela faz o mestre trabalhar, isto é, a mestria funcionar, e ela tenta se colocar (em a), como objeto dessa função. Será que é possível histericizar o campo sem produzir uma histérica? Se é possível histericizar o campo, é possível manter a escuta. Não é isso que acontece na análise? O que é uma histérica? É uma exigência de analista.
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Aliás, quanto a essa questão de o gozo e o ato-poético não servirem para nada, quero lembrar aquela descrição que Henri Michaux faz, e que Deleuze cita. Ele descreve um tal esquizofrênico que faz uma mesa, que meu amigo Luís Carlos Miranda tenta imitar, só que não consegue... ser esquizofrênico... Ele faz uma mesa, que diz ser uma mesa, e não é mesmo mesa, não serve para nada, mas ainda assim serve para alguma coisa: pode-se botar contra uma porta, fazer alguma coisa com ela... Nesse sentido é que falo de serventia: um sujeito faz um ato de profissão, elaboradíssimo, etc., tenta com isto fazer uma coisa que não sirva para nada. Não é isso, na verdade, que é o requisito do Tesão, isso que a gente chama de pulsão? A produção de algo que não serve para nada. O gratuito. É a caça ao Snark, que é um Boojum, do Carroll. É o tal negócio: começa-se a delirar com os poetas e dizem que a gente é maluco... O movimento do tesão parte de uma borda, chega a ela de volta para nada, não se pode fazer mais do que um registro contar quantas vezes, contar para os outros ou fazer a conta nos dedos, mais nada. O Marquês de Sade, a cada punheta que tocava, ia na guarda da cama e marcava. E não sobrava nada, se não marcasse a vez... Por que toda pulsão é de morte? Não é por isso? O que a gente deseja? Depois que ouviram falar em Jacques Lacan, ficaram querendo saber qual é o desejo do analisando. Mas, pode? Pode-se perguntar a ele, mas é só para ele dizer alguma coisa... Saber qual é o desejo do, isto não existe. E, seguramente, não é fazer análise. O cara que deseja fazer análise é um monstro. Troço monstruoso esse “desejo de fazer análise”. Pior é que dizem isto. Então, o que o desejo deseja? Não há desejo senão de desejo, mas o que deseja o desejo do desejo? Sou implicante, quero saber. Freud vai dizer que o desejo deseja é morrer. É o chamado Pára-Isso: “Pára esse mundo que eu quero descer!” Não porque se seja suicida gratuitamente, é a chamada “morte lenta”. Freud vem mostrar que se deseja a morte,
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paradoxalmente mas se o sujeito acaba de dizer isso e chega um ladrão com uma parabélum, ou ele se caga todo, ou se defende. É disso que se trata: ele deseja a morte e, não, levar tiro, o que é muito diferente. É o Paraíso perdido, aquilo que terá havido antes de eu ter que existir. É a frase de Édipo: “Antes eu não tivesse nascido!”. Mas agora é tarde. Daí que nós, esquecidos e isso tem tudo a ver com o projeto da crítica dessa decantação na metáfora de que alguém pôde trazer, chama-se Freud, para nós a noção de que há algo muito para além do princípio do prazer, bota além nisso, e de que isso é o fundamento da nossa existência como falante e é isso que é o projeto fundamental da aceitação do que ele chama de castração , começamos a fazer toda sorte de mito. Vivemos aí umas duas décadas apaixonados pelos mitos. Lévi-Strauss fez quatro volumes deste tamanho... E fica-se inventando toda sorte de possibilidade de decantação de metáforas que correm nos mitos para segurar aquilo num projeto de formação cultural. Como o tal chamado Édipo, que é um saco, conseguiu fazer muito estrago dentro da psicanálise. Posso até fazer a suposição de que a relação dita edipiana ganhe sentido, significação, na repetição desses aluviões culturais, mas não é disto que se trata. É claro que qualquer sujeito que deita no divã começa a falar de papai e mamãe, a contar essa historinha, porque o aluvião está lá, mas não é o que interessa e, sim, o fundamento disso, pois poderia ser outra a história. Por que a história do Édipo tem que ser aquela que contaram no mito, ou mesmo a tragédia que Sófocles quis contar? O que a esfinge perguntou a Édipo? Ninguém ouviu, ninguém sabe o que aconteceu. Aí, inventou-se um diálogo com muita “lógica”: quatro patas, três patas, duas patas, é o homem. Lacan disse que ele podia ter respondido que era o seu matema do quadrípode, por que não? A esfinge fazia uma pergunta para o cara, ele ficava obsessivamente paralisado, ela nhóc, comia o cara. Suponho que ela lhe perguntou algo que ele nem entendeu, mas como já lhe tinham contado que a tal da esfinge ficava devorando as pessoas na estrada, ficava em cima de um rochedo, toda se mostrando, um abismo do lado, ela perguntou, Édipo respondeu: “Vai pra puta que pariu!” Ela vrept, desabou. Simplesmente Édipo não entrou na dela e ela caiu, sumiu no abismo.
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Os outros tinham fé, Édipo não. Ele deu uma de poeta e falou: “Ninguém vai morrer no meu lugar, e a minha morte é minha. Como a mãe, e está encerrado”. Ele já sabia, sempre soube, embora só tenha sacado depois. Este é o grande ato de desespero da história, se é que o Édipo serve para alguma coisa. Naquele momento ele faz o que faz porque pulsionou o que é pulsão de verdade, que é a morte. Na hora do pega pra capar, a coragem pode vir, justamente porque não se teme a morte. O Édipo que nos apresentaram é um babaca, mas não o Édipo que eu reconheço, que é Rei. Não quero saber de Sófocles, tenho o meu próprio Édipo. Posso metaforizar, mitificar isso. A criança, enquanto infans, e desde então, deseja o incesto. Mas esse desejo é repetição, porque aquele que a gerou, seu pai natural, lhe transmitiu o seu desejo incestuoso anterior, sua culpa, seu corte. No que ele a desejou, estava embutido no desejo dele, quisesse ele ou não porque a sexualidade existe, a sexuação dos gametas , ele já inventou aquele que vai corneá-lo. No ato, ele o inventou. E corneia mesmo, porque tem com essa fêmea uma relação que o pai jamais poderá ter... Mas só porque está repetindo a corneada que o pai deu em outro. Ainda que se pegue o mito pela raiz aí, e se vá incorporá-lo à prática reprodutiva, o que se vai ter é que não há desejo de incesto senão como desejo de se repetir o incesto que já houve. No ato da procriação, como o chamam os eruditos, o corneador foi criado. Só que quando ele comparece diante do corneado, ele é que se sente corneado. Afinal de contas, ele só foi inventado pelo desejo de outro. E vai assim esse círculo vicioso. Isso aí é mito, é porcaria, não serve para nada. O que serve pensar é que a transa era com a morte, ou melhor, com a não-existência. O grande barato, para quem passou a existir, e que o tal Sófocles vai mostrar no seu Édipo, é que a sua paixão era a de não ter existido como tal. E isso era representado pela chamada mãe, que estava lá? Nada disso! Pode até ser representado por ela ou por outra coisa... Estou dizendo isto porque, desde Freud, costuma-se fazer uma distinção meio esquisita: o obsessivo teria sido aquele que teve uma satisfação tão intensa que não consegue repeti-la, e a histérica é aquela que não teve satisfação, e por isso fica eternamente a buscála. É mentira! Ambos tiveram o máximo de satisfação.
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O modo de se relacionar com a repetição dessa satisfação é que é diferente. Outrora, ambos tiveram uma grande satisfação, ambos foram corrompidos pela mãe mais do que seduzidos. A histérica passa o resto da vida tentando reconstituir o Outro, justamente porque foi um imenso prazer. Se você conseguisse reconstituir o Outro, coisa que não se conhece, quem você reconstituiria, senão Ela? A Mulher que não existe. E o nome dela, chama-se A Morte. O obsessivo, é outra coisa. A transa da diferença não é porque um teve satisfação e o outro não. Ambos foram extremamente satisfeitos e extremamente corrompidos, só que, por cargas d'água diversas, a histérica quer reconstituir o Outro, e o obsessivo quer se reconstituir, reconstituir a si mesmo. Essa satisfação é aquela do cornear, no nível do mito. No nível da estrutura, é a imensa satisfação de não ter prazer nem desprazer. Poderíamos, mesmo, dizer que o nome de compulsão à repetição é a corneação. Ou seja, a castração é a aceitação dos próprios chifres. *
*
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Ser castrado é ser corno, não convicto, mas assumido. Todos esses lances do amor, da paixão, etc., isso não dá para conjugar, não dá para estabelecer relação sexual. Do Nirvana, jamais poderíamos nada dizer, porque ele é o só-depois... porque se supõe que ele terá sido antes. A Outra não existe. Encontramos apenas fragmentos de seu corpo espedaçado. Dá para brincar um bocado: uma mordidinha aqui, uma tascadinha ali, mais nada... E o que a castração vem dizer é: Se queres bem viver, morre primeiro, Se queres bem dizer, primeiro encontra o teu silêncio mas que não sejas mudo, Se queres bem comer, degusta primeiro a tua fome com requinte gurmetista e isto não é anorexia , Se queres bem foder, primeiro não te masturbes, nem trepes, te esfrega em tua angústia,
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Se queres bem ouvir, primeiro fica surdo para ti, e depois para o mundo, Se queres bem cagar o que é importante, senão dá prisão-deventre jejuarás primeiro, até que possas expelir teu próprio corpo, um pouco, por teus furos. Se queres bem ver, olha primeiro o teu umbigo, até que, ali, desistas de encontrar... o teu rabo perdido.
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[Há barulho e conversas no auditório] Parem com isso! Parem com isso! Não adianta a gente mandar parar com isso, porque isso não pára com a gente. Quando a gente manda parar com isso, é para recomeçar com isso... A única maneira disso parar com a gente é a Morte, chamada real. A Morte pára com isso. Fora isso, a gente só pode fingir que pára com isso, dizendo: “Pára com isso!” Então, é uma brincadeira de corrupio, de corrumpio, como prefiro dizer, porque tem a ver com o verbo corromper, com a corrupção e com o corrupto. A psicanálise é a teoria da corrupção. É mesmo a prática da corrupção. O analisando procura o analista para ser corrompido. Temos o mau hábito − o dicionário faz assim − de usar o verbo corromper com sentido de estrago, infração, mas o verbo vem do latim corrumpo, -is, -ere, -rupi, -ruptum, que é uma forma de cum + rumpo, rumpo cum, que quer dizer corromper, destruir, estragar, arruinar, deitar a perder, deteriorar, prejudicar, mas também alterar. O hábito ficou do lado dos estragos. É claro que é um estrago. Mas cum rumpo, ou cum rumpere, vem do verbo rumpo, -is, -ere, rupi, ruptum, romper, que o dicionário latino dá como quebrar, espedaçar, dilacerar, rasgar, fender, separar, abrir, varar, traspassar, penetrar, violar, infringir, arrebentar, estalar e... rir. Corromper, então, é rir com, é rasgar com, é fender com. Eu disse fender... Ruptus, -a, -um, é particípio passado desse verbo, quer dizer roto. É o rombo,
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é a brecha. Ruptor, oris, o que rompe; e a ruptura, é o rombo. Cum é com, no sentido de: em companhia de; ao mesmo tempo que, assim como; com ajuda de; com auxílio, ou socorro de; por meio de; e o com instrumental: me corto com a faca; que quer dizer também contra: romper contra ou romper com. Por isso é que estou falando do corrompido. Retomar o giro-a-giro, refazer a cambalhota, é brincar de corrumpio − o que tem a ver com retomar o percurso, no que se retoma a Morte. *
*
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O Globo da Morte é aquele brinquedo que tem no circo. Enorme bola de aço, e dentro dela vai-se construir o globo da morte. Não conversei com aqueles rapazes que fazem aquela brincadeira de corrumpio de motoqueiro − na gíria de hoje se chama "pega". Eles não fazem bem um pega e, sim, um "despega", porque a brincadeira de corrumpio se dá, na bola de aço, para fazer, para constituir o globo da morte. São três motoqueiros: primeiro entra um para mostrar como é difícil, depois entram dois para se ver que não bate. Até aí a gente não acha muita coisa. Depois, entram três e aí fica complicado. Quando as três motos começam a girar lá dentro, e tudo dá certo, ficamos suspensos à morte que está inscrita no globo... Mas o que fazem eles lá dentro? E por que não batem? Mas, eu, pratiquei o globo da morte − no papel, é claro − girando, para ver se conseguia. Consegui, também sou de circo. O método é o seguinte: pega-se a moto e, em cada uma delas, bota-se um bujão de tinta de cores diferentes − vermelho, azul e verde − de maneira que o bujão fique com uma torneirinha pingando em cima da roda. Aí as motos fazem aquilo e vemos o desenho que fica, qual é a trajetória. A experiência concreta seria essa que fiz no papel. Cada moto vai desenhando o seu percurso na bola de aço... Chego à conclusão de que a idéia de espaço tridimensional, que é nitidamente representada na chamada esfera armilar, aquela esfera de aço, representa a esfera terrestre ou, de preferência, em termos de
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navegação, a esfera celeste. Constrói-se aquela esfera armilar, de metal, que é a representação do espaço tridimensional, espaço euclidiano, com as situações da suposta esfera celeste. Então, eles entram com as motos dentro da esfera celeste e vão fazer o percurso, que não é a construção da esfera celeste de aço, a qual está lá só para segurar o peso das motos... Faz um barulhão, e você fica pensando o tempo todo: "Vai morrer". Quer dizer, eu vai morrer. Acho que o percurso do globo da morte é esta esfera aqui na minha mão, que não é bem uma esfera. Aqui está o globo da morte. Cada motoqueiro faz um percurso destes, por isso não batem. Eles constroem uma esfera borromeana. Este é o segredo de não baterem. Um nó borromeano “careta”, como chamo essa representação da esquerda, abaixo, porque não gosto dela, é a representação do Lacan. A da direita é de Pierre Soury, e prefiro sua tese de que a escrita destrói o nó.
O objeto topológico não é bem este que tenho nas mãos, e, sim, o que passou pela minha língua. Esta aqui é a representação dele, concreta. Isto é imaginário, e é letra também, está escrito. É uma dificuldade mexer nisso. Soury só achava que a representação planificada é pior do que esta na minha mão porque é capaz de escamotear certas coisas que estão representadas aqui. Mas o que me interessa é que o globo da morte acaba sendo global, ou seja, a representação do nó borromeano. Não é um espaço de três dimensões, não está me interessando o euclidiano, mas a sua concretude, com passagens concretas por-cima e por-baixo.
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Mesmo na representação careta, podemos tomar o por-cima/por-baixo, que está escrito aí como interrompido/não-interrompido, e substituir pelo binômio antes/depois. Assim: passou por baixo, passou antes; passou por cima, passou depois. É o que acontece com a tinta: se uma moto vem andando, ela molha de amarelo, a que passar depois será por cima, o amarelo fica por baixo. Então, em função mesmo do movimento, que não é constante, porque há a gravidade dentro da bola de aço, do globo da morte, posso estabelecer um regime de saídas sucessivas das motos, de maneira que cada qual passe antes de uma, e depois da outra, pelo mesmo ponto de cruzamento dos trajetos. Ela passa antes de uma em certo ponto, e depois da outra num outro ponto, senão bate. E três motos, cada uma passando a cada ponto, antes de uma e depois da outra, são três motos desenhando em seu trajeto um nó borromeano. E o que sustenta essa pelotiquice − que é um pouco mais complicada do que ter três laranjas e mantê-las no ar − é que o movimento do primeiro sustenta o do segundo e é sustentado pelo do terceiro. Entretanto, o movimento do primeiro não é inicial, porque é sustentado pelo movimento do último. Ele não consegue começar sozinho, porque, para começar, tem que começar depois do último. Você pega a escansão de um início da brincadeira, mas, para ela começar, o primeiro teve que começar em função do último, que você não está vendo começar, mas que, para o primeiro, já terá começado, pois se ele partir do seu começo, ele se ferra, ele bate. Na construção do seu movimento, o balé que vai realizar, ele tem que dar o passo em função do passo do último que não foi dado concretamente, mas que ele já considerou para dar o dele. Então, eles têm que ter um andamento constante, sempre em função do que partiu primeiro e do que terá partido depois. É o mesmo que dizer que não há presente, passado e futuro, a não ser dependendo da minha posição no jogo num momento dado. Não é possível conceber esse balé, sem um que segura o outro que segura o outro, sendo que o primeiro é segurado pelo terceiro. Aí tem que ter uma jogada, porque senão se entra em foraclusão, e se bate... O terceiro já está virtualmente rodando. Para rodar o primeiro, já está rodando o terceiro há algum tempo.
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O primeiro roda em função da rodada do terceiro, que não está rodando para você, mas para ele está. O andamento é constante no concreto, tem a ver com o tempo cronológico, que, para eles, também interessa, porque aquilo é concreto. Mas a lógica não é o andamento. A lógica da moto é que é o andamento, e não a lógica do nó, a do percurso. Eles têm que manter um andamento, a coisa é musical, é dança. Para se estar antes ou depois, está-se em função de um tempo lógico, do ponto de vista do trajeto; e de um tempo cronológico, do ponto de vista do concreto, do sintoma bola de aço. Já a velocidade aí em jogo é problema da física. Não estou preocupado em saber se isso fisicamente se sustenta e, sim, em saber quais os percursos que fazem para não baterem um no outro. A questão, no globo da morte, com os três motoqueiros, é que eles não batem. O espaço é exíguo, e eles não batem um no outro, mesmo com motos enormes. E, para não bater, têm que ser borromeanos, não tem saída. É de uma ambigüidade muito grande a construção desse nó, porque eles estão andando, do ponto de vista euclidiano, dentro da esfera celeste, da esfera armilar, e eu estou vendo de fora. Na minha relação intersubjetiva com o cara que está lá dentro, passo constantemente de dentro para fora e de fora para dentro. Não sei nem qual é o meu lugar exato, não sei se me identifico − identificação topológica − com a posição dele lá dentro ou com a minha cá fora. É uma crise. Acontece que o nó borromeano de dentro não é o mesmo do de fora. Esta é uma questão importante, pois Lacan diz que existem dois nós borromeanos, que não devem ser confundidos um com o outro. Ele diz isto porque, pegando três aros, só posso construir duas, e apenas duas, possibilidades de situação da amarração. Quando leio a amarração chapada, planificada, só posso ter duas: ou o imaginário está por baixo do real e, portanto, por cima do simbólico; ou ele está por cima do real e, conseqüentemente, por baixo do simbólico. E, mutatis mutandis, os outros dois: ou é assim, ou é assado. Um é levógiro e o outro é destrógiro. Se acompanharmos as setas, com demarcação de sentido, um é como se girasse para a direita e outro, então, para a esquerda... E é isto que quero criticar.
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Minha identificação, então, por minha postura ser subjetiva, oscila entre fora e dentro do globo. O desenho que as rodas pintadas fazem sobre a superficie de aço da bola, para os caras que estão dentro, dá na superposição de um jeito; para mim, que estou do lado de fora, dá o contrário. Se o vermelho passa por cima do azul para eles, para mim vai passar por baixo. Qual posição devo assumir? Aliás, não consigo ver, pois o imaginário disso é feito ventilador. Quantas pás tem o ventilador em velocidade? Como já disse, não teve começo: o primeiro já teve que começar com o terceiro na cabeça. Para ele, se passar depois, é a marca dele que fica depois, mas, para mim, o outro já terá passado, porque a marca do outro é que ficou, para mim do lado de fora. Isto é fundamental para raciocinar a tal da RSIcanálise, como estudamos depois de Lacan. Ou seja, quando ele começa o jogo, se não tiver pensado na passagem do outro antes, não poderá passar depois, e se o outro passou antes é porque passou depois. *
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A psicanálise só é concebível dentro de um raciocínio que é insuportável para a lógica e para a geometria comuns. Aliás, é muito mais insuportável do que se pensa, pois podemos mesmo tentar construir a Física Rsicanalítica, nem que seja como hipótese. É algo difícil, embora a física tenha revirado muita coisa hoje em dia, conceber o que seja o problema nuclear da lógica do significante, a lógica a que está subdito o falante. Quando quero construir o modelo, me embanano, se não sei girar no globo da morte.
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Coloco o seguinte: tenho uma sucessão infinita de bonecas russas. Isso é fácil de pensar e posso escrever platonicamente, como uma sucessão de esferas celestes. Posso, também, escrever com parênteses dentro de parênteses, fazendo um carroção infinito de parênteses. O problema que à psicanálise interessa é aquele com o qual a gente se depara − e que na mão de ditos analistas sofre a conseqüência do estrago da análise − de se transformar a análise em pedagogia, em psicologia, justo por uma lógica impertinente. Isto porque não adianta o sujeito desengavetar os embrulhos sucessivos da sua análise numa série infinita. É preciso que alguma intervenção venha lhe mostrar que o problema é que, na sucessão das supostas bonecas russas ou dos supostos parênteses, tudo se engaveta assim, como aí está, só que a boneca de fora, o parêntese de fora, está dentro do mais de dentro. Tentem construir esta “boneca russa”, tentem escrever isto com parênteses. Posso dizer isto: tenho uma sucessão de parênteses tal que os parênteses que completam, que fecham o último externo, aquele que comporta todos os parênteses, estão dentro dos menores. É o tal negócio do paradoxo de Russell com aquela complicação toda. Mas a lógica da psicanálise é justamente a de que, na sucessão da série das bonecas russas, a boneca maior está contida na menor da série. Esta é a questão recursiva do projeto lógico do falante. Se você começa a desengavetar, por exemplo, com a lingüística, quebra freqüentemente a cara, como no caso de Chomsky, porque ele trabalha com aquela árvore que vai se desengavetando, desengavetando e dá com uma impossibilidade, porque, na verdade, todo esse engavetamento se engaveta em si mesmo. Há um revirão do processo.
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A lógica da coisa é a de um universo, se quisermos brincar com a noção de universo, materialmente dado, concreto, no qual o mais externo está contido no mais interno. Isso é construtível? Eu quero esse objeto. Quero fazer uma porção de bonecas russas, botar uma dentro da outra e enfiar a de fora na de dentro... Não estivesse a de fora contida na de dentro, a escansão e a interpretação não seriam eficazes. A escansão, quando o é, é válida em qualquer momento, qualquer segmento da série porque é sempre a mesma: em qualquer ponto o todo está dentro da parte, a parte está dentro do todo. É uma espécie de holograma, essa fotografia, feita com laser, que, rasgada ao meio, continua inteira. Quero, então, mostrar como se pode construir esse objeto. Tomem no espaço, mesmo euclidiano, três pontos em movimento e inscrevam-nos sobre uma esfera borromeana. Teremos então três trajetos − vermelho, verde e azul, por exemplo − de três pontos: eles começam a brincar de globo da morte, são os três motoqueiros. Quando estão dentro do globo da morte, não pensem que seus trajetos são constantes, porque aquilo derrapa. O vermelho, por exemplo, ao invés de ficar sempre no mesmo meridiano, pode ir se deslocando. Se cada ponto começar, além de girar, a se deslocar constantemente, vai construir uma esfera. Cada um, sozinho, constrói uma esfera. Temos, então, três esferas, que, por não serem concomitantes, por terem um lapso, acontece que a vermelha inclui a verde, a verde inclui a azul e a azul inclui a vermelha. Temos, então, três esferas, bonecas russas, nas quais a de dentro está dentro da de fora, mas a de fora está dentro da de dentro, pois foi abolida a impenetrabilidade material do corpo físico, que se substituiu pela não-concomitância da interseção no movimento. Se a física diz que há lei da impenetrabilidade da matéria, na Linguagem, há lei da não-concomitância dos alelos. É um impedimento real: o impossível de dizer em concomitância. Mas, dentro deste real que está aqui, do impossível da concomitância, construo três esferas, sendo que a primeira está dentro da segunda, que está dentro da terceira, que está dentro da primeira. E construo, aqui, o globo da morte, não a esfera de aço, que os motoqueiros percorrem, que é apenas o chão deles. O globo da morte é aquele desenhado acima e repudio um pouco sua representação “careta”, porque, esteja eu dentro ou fora dele, estou sempre na
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ambigüidade. No que percorro esses caminhos como sujeito − e não como a tinta que o está desenhando − que está, por posição intersubjetiva, entre eu e o motoqueiro, percorro o globo podendo tomá-lo ora por dentro, ora por fora, e fazendo isto num processo de revirão de posições. Isto significa que se eu olhar euclidianamente para este globo borromeano, preciso uma atenção, uma escolha toda especial. Se o olhar de fora, estou dentro ou fora? Se isto é borromeano, estou dentro ou fora? Se acompanho o verde, ele está englobando os outros, mas daqui a pouco ele será o englobado. Estou dentro ou fora? Por que lado abordo isso? Tenho muita dificuldade de me situar dentro ou fora, porque me situo, na fronteira do dentro e do fora, como sujeito. Para olhar de fora, por exemplo, para ele ser destrógiro, preciso tomar um partido, acompanhar certa seqüência. Mas, se me distraio, já posso estar do outro lado, sem querer, porque minha posição subjetiva não é destrógira nem levógira, a não ser sintomaticamente, quer dizer, segurando-se em algum partido. E isto é fácil de ver, porque se estou nem dentro nem fora e escolho ficar de fora, vou ver o verde por cima do azul; mas escapulo para dentro, e o azul é que fica por cima do verde. Isto é a mesma coisa que entender que a esfera borromeana fica virando do avesso constantemente − em revirão, em cambalhota. E no que ela fica virando o tempo todo, preciso sintomatizar a escrita para dizer que ela é destrógira, ou levógira. Então, se a esfera celeste é aquela de aço que importa aos motoqueiros, o nó em si, o globo da morte, este, é a asfera sem leste. Tenho que sexuar o meu lugar, assumir uma posição sexual para poder me inscrever aqui ou ali. Mas quando escolho uma escrita, já é uma escolha partidária, sintomática, no nível da minha escolha sexual. É escolha sexual porque, na verdade, minha situação diante disso não é orientável: ela é anfisexuada, exatamente como apontei o ponto-bífido. Há congruência entre o nó borromeano e a banda de Moebius porque no nó borromeano, enquanto tal, ou pelo menos nesta representação, não sei se estou dentro ou fora. A esfera de fora está contida na de dentro, e a de dentro está contida na de fora. E tenho
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que fazer uma secante, uma sexuação, tenho que recalcar alguma coisa, situar alguma coisa, para “escolher” um lado. Há na representação planificada aparência de simetria, levógiro ou destrógiro, mas perdeu-se o objeto a que Lacan escreve ali dentro: o lugar do meu revirão. Dou a cambalhota, e o lugar do revirão se perde quando simetrizo. Por isso não gosto muito dessa representação. Mas como não sei como situar, a não ser sintomatizando, planifico, e, aí, leio. Mas quem estiver do lado de lá, já lê do outro modo. É o problema dos garotinhos no trem: “Estamos em Homens/estamos em Senhoras”... Passando para o lado de cá, vai ver como eu. Essa planificada representação, então, é careta em muitos pontos, pois tenho oito regiões e ela me apresenta a última região jogada fora. Pierre Soury insistia nisso, regionalizava o espaço externo... Além disso, ela se esquece freqüentemente da outra onde tenho os dois sexos representados no mesmo nó. Então, na outra, não tenho dois nós borromeanos e, sim, um nó borromeano, com duas possibilidades de abordá-lo: de dentro, ou de fora. O nó borromeano, portanto, me põe no espaço unilátero, onde não tenho duas regiões, mas tenho dois sexos, como na contrabanda. O ponto é não-orientado, o sujeito não é orientável, mas é sexuável. Ele pode escolher uma posição dentro, ou fora, uma escolha fixada de posição lhe é sintomática, exigindo um recalque. Mas há o retorno do recalcado, com a garantia da borromeaneidade. É um problema considerar a matemática de Lacan, porque ela é um saco, um saco de Klein... As abordagens da borromeaneidade, do real da sexão, como do real do espaço unilátero, posso fazê-las por duas vias. Posso segurar a barra da oscilação, a barra da minha renegação, por escrições limitadoras e recalcadoras − escrições, registro civil, o registro que se viu. Quando peço uma representação dessas, estou jogando alguma coisa fora. Faço uma pergunta − e, hoje, estou com um Seminário muito fracionado, me parece, porque estou cheio de perguntas: Se me faço referência estrita e fechada a uma representação dessas, posso eu sustentar o desejo? Não. O que tenho que jogar fora para segurar a barra dessa representação que me faço? O objeto
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a. Desisto dele, pois se pintar no horizonte, já entro em periclitância. Representarei isso melhor. Façam uma banda de Moebius da seguinte maneira: tomem uma faixa de papel e pintem uma face de branco no centro − a prática da aquarela chinesa − e vão escurecendo para os dois lados até que as extremidades fiquem do mesmo cinza: em degradé. Na outra face, façam o contrário: pintem o mesmo cinza da primeira nas extremidades, e vão escurecendo o meio, até ficar preto. Agora fechem em banda de Moebius. Temos, então, que quando estivermos no ponto branco, o avesso é preto. Vai existir um ponto representado aí onde é cinza dos “dois” lados. O mesmo cinza, e não cinzas diferentes. Isto para mim representa o objeto a, é o neutro. Não lhe falta branco, nem preto, não lhe falta nada. E por que ele me faz falta? Porque minha instalação, lá no começo, era que, de coisa alguma, construiu-se alguma coisa, que é significante: ( ) S. Então, o que me falta é coisa-alguma. Lacan disse com todas as letras que o falo é me faltar coisa-alguma. Falta-me o desobjeto. Estou vendo, em certas falas, constituir-se um mito de que falta mesmo um troço. Falta não! Sabe quando você está com vontade de comer um troço e não sabe o que é? Aquele negócio de desejo de mulher grávida? É coisa-alguma.
Não se consegue situar-se, para valer, no lugar do objeto a, porque é impossível se situar nesse lugar. Isto porque se está marcado pelo significante que não é coisa-alguma, já é alguma-coisa. Então, fica-se percorrendo o caminho das algumas-coisas, e sempre fica faltando coisa-alguma, porque só tenho alguma-coisa. Por isso é que não se pode fazer análise, pois ninguém
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consegue ser coisa-alguma para ser analista. Se conseguisse ser coisa-alguma, se conseguisse não desejar coisa-alguma, ou melhor, se conseguisse só desejar coisa-alguma, eu seria o analista perfeito. O analista finge que deseja coisaalguma. Portanto, o desejo do analista é desejar coisa-alguma. Aí é que começa a farsa, pois ele diz que deseja coisa-alguma. Ele até deseja mesmo, só que não consegue apontar para essa coisa-alguma muito bem. Mas, como insiste nisto, consegue ser analista. Porque, o outro, deseja alguma-coisa, o tempo todo. No dia em que o analisando desejar coisa-alguma, ele está livre do analista. Mas ele vai lá crente que deseja alguma coisa, que o desejo dele nunca foi satisfeito: ou ficou lá para trás, ou ainda está lá na frente. Se o sujeito, de repente, conseguir desejar coisa-alguma, qualquer-coisa serve. Isto não é possível, mas dá para fazer o percurso de reconhecer que o desejo é de coisa-alguma, para que alguma-coisa sirva. Pois se o cara está tão impregnado de certa-coisa, nada serve: ou certa-coisa não pinta ou, se pinta, não fica, é perecível... Estamos no globo da morte. O que um analista faz é brandir a morte. O que o analisado supostamente faz é ser redivivo, ou seja, morreu e voltou. Não pensem que ele é um zumbi ou um vampiro. O vampiro morreu e não sabe retornar. E existe também a vampirização psicanalítica. Conheço pessoas que saíram de certas análises e viraram vampiro, zumbi. Às vezes somos procurados por uma pessoa, dita ultra analisada, que se considera muito bem analisada, pedindo para a desanalisarmos, porque ela não agüenta mais. O pedido pode ser este. E praticamos isto. Lacan ensinou e propôs isto teoricamente − tem que desanalisar. É preciso a contra-análise, senão vira zumbi mesmo, vira vampiro: passa para o lado da morte, e a vida fica como se fosse uma espécie de dejeto ao lado da morte. Então, é preciso ir lá e voltar. Assim, vai-se transar tudo outra vez na mesma babaquice, na mesma ingenuidade, mas lembrando que já se morreu. É muito diferente um babaca do outro. São ambos babacas, mas há babaquice morta e babaquice viva. Há a babaquice daquele que não sabe referir-se ao globo da morte e a daquele que sabe. É isto que chamo de faz-de-conta. Um leva a babaquice à concretude, o outro a leva ao jogo do faz-de-conta.
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Se há RSIcanálise, o espaço é unilátero. O espaço da psicanálise é sempre unilátero. Tudo é uma questão de pontuação, para eu me situar: em que sexo estou, e não de que sexo sou. No momento em que me situo, logo vou fazer o objeto ser imaginário para mim, ter aparência. Aparência não quer dizer só imaginário e, sim, imaginário, real e simbólico: é o semblante. Acontece que o objeto a, enquanto tal, não tem imagem: ele é cinza, é neutro, não tem confronto possível. Ele é espelho. E o espelho é cinza. Não é branco, nem preto.
Lacan passou um tempão mexendo com esse tal de nó borromeano e chega o momento em que ele o escreve assim, comentando a questão do círculo e da cruz. Ele diz que é a ambigüidade do nó borromeano, pois ele é 3 e 4: na medida em que aparece essa quadripartição, aparente, fico ambíguo entre o 3 e o 4. Se observarmos, o número das áreas chama mais para o 4, porque tem quatro em cima e quatro embaixo, são oito áreas. Por isso, acho ruim a representação planificada. Tal representação foi uma tentativa de Lacan, mas ele foi mais longe. Temos aqui oito como Soury escreve, e isso continua revirando. É preciso pensar esses reviramentos. Mas a ambigüidade entre o 3 e o 4, não é só nessa representação da esfera e da cruz que aparece. É porque o nó borromeano é 4. O nó borromeano a 3, é 4.
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O nó borromeano é constituído por três elos completamente isolados, independentes cada um em relação ao outro. E no que ele está amarrado borromeanamente, sua borromeaneidade é o elo 4. Tenho três elos separados. No que os amarro borromeanamente, tenho a sucessão reversa de bonecas russas, tenho o espaço unilátero. Entretanto, o fato de eles estarem amarrados assim − sua cunhagem como chama Lacan − é o que os segura. A cunhagem é o 4 do nó a 3. Esse raciocinio é sutil, e porque é sutil, Lacan diz que Freud jamais deu de cara com ele. Freud não conseguiu ver o nó borromeano a 3, ele já começou de 4. A gente sempre começa de quatro − para levantar é um custo. Ele começou tão de quatro que disse que se identificava sintomaticamente com Édipo, que começou de quatro, depois ficou de dois e depois ficou de três. Começa-se de quatro, depois levanta-se, depois capenga-se − precisa-se de uma bengala. O mito do Édipo é só isso. Freud jamais conseguiu pensar isto, não lhe ocorreu, resistência, foi mal analisado que nem todo mundo. Freud foi buscar um quarto para amarrar os três. Esse quatro ele chamou de Édipo, que é o Sintoma de Freud. Sintoma que não é só de Freud, pois há que amarrar três num ato que é quarto. Esse ato é comprometido. É aí que Freud começa a ter razão, com ou sem Édipo. Esse ato é extremamente comprometido com a instalação sintomática do Outro. A sua borromeaneidade, o sujeito só a amarra, fora da loucura, por um ato comprometido. É o que Lacan veio a chamar de Nome do Pai. O compromisso que o sujeito precisa estabelecer com outrem para poder se borromeanizar é esse ato que vem vestido de alguma-coisa. Embora seja originalmente coisa-alguma, vem fantasiado com a indumentária de alguém: simbólica, real e imaginariamente. É isto a identificação, porque vamos colher, como Freud colheu. Lacan faz uma pseudo-transgressão: se analisou a ponto de abandonar o Édipo. É preciso. *
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Na história de cada sujeito existe uma função de mestria e de escravidão para que ele, mediante compromisso, se dê conta da sua amarração, borromeana naturalmente. Cada sujeito emergente só se dará conta − vai prestar contas a si e ao Outro −, só poderá prestar contas da sua borromeaneidade no compromisso com o empréstimo do Outro. Assim, ele vai fundar-se sintomaticamente. A metáfora é tomada emprestada e embutida no Real, para ele poder dar e se dar conta da sua constituição borromeana, que é o seu real − mas esse real escapa das abordagens do sujeito se ele não tiver sujeição. Se ele não tem língua, ele não fala. E de onde lhe veio alíngua? Alíngua que lhe sobrevém é sintoma, portanto, é real. E por que vias ele se compromete a esse sintoma? Qual é o matema do advento da alíngua? Jacques-Alain Miller disse, em algum lugar, que é o discurso do mestre. Ele raspou, mas não tocou, pois, na verdade, o discurso do mestre é o materna da entrada na linguagem pela via sintomática de uma língua. Minha alíngua é a ferramenta real, porque sintomática, com que tento construir meu objeto. Reporto ao discurso do Senhor, do mestre, e tenho que alíngua vem oferecer as palavras para eu conquistar as coisas, para a coisa se dar. Mas no que minha mestria me possibilita parir objetos, me escraviza. Sou escravo da alíngua. Sou senhor/escravo dentro da alíngua. Escravizado pela alíngua na minha dominação do objeto. Lacan diz, por exemplo, que não adianta abordar a obra de arte pelo inconsciente, mas, sim, pelo sintoma. O que faz o chamado poeta, do ponto de vista da sua produção, não do seu ato? Ele é escravo da alíngua, para ser senhor do objeto. No que ele se escraviza à alíngua, ele dá o golpe de mestre, e acrescenta alíngua. Ele revira o sintoma. Então − para levantar de novo a velha questão da referência −, qual é o referente de um sujeito? Que referente tem um sujeito para aplicar alíngua sobre o real? É o sintoma, porque a língua não vai entrar nele, de chofre, inteira. Ela entra com um de seus pedaços que a inclui, hologramaticamente, borromeanamente. Ela entra mediante a cambalhota, com seu revirão, marcada, situada, e por inteiro na sua fração. Portanto, para se entrar no discurso de mestre que é língua, é-se marcado sintomaticamente por um caco de língua que é alíngua.
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Outro dia, eu estava catando uma porcaria de palavra no dicionário, e já estava ficando perdido. Quando a recorrência é possível − como usei aqui, hoje, cum, rumpere −, tudo bem, aí se entende. Mas cheguei num lugar onde aquilo era um verbete de três páginas e não dizia quase nada. Eu tinha que entrar nos usos. O verbete me jogou um real na cara. Eu queria que ele me dissesse o que era aquilo, dentro da língua. E a língua não tinha palavras para dizer aquilo, eu que me virasse. O máximo que eu podia fazer era uma poesia. Se conseguisse fazê-la, eu me escravizava e paria um objeto novo, que seria... outro uso. Eu limpava o rabo e mostrava para todo mundo... Seria trágico, se não fosse cômico. É cômico, não tem tragédia nenhuma aí. Fazendo um parêntese, agora, neste objeto aqui, no globo da morte, colocando-se o quarto elo, o sintoma, não há possibilidade de giro. Aí, fico com uma questão que não vou desenvolver hoje: isso aqui não é o nó do psicótico? O neurótico também fica sem possibilidade de giro, mas não por isso. Posso perfeitamente conceber o quarto elo como ato concretizável na amarração borromeana. O quarto elo é, ali, feito de real, simbólico e imaginário. No que faço, aqui, um elo separado do simbólico, ele é como que foracluído, esse salsichão, o salsichão lacaniano. Não será uma pedra que extravaza o simbólico e, contudo, ainda se amarra nele, é recorrente, faz círculo com ele, como que o repete, como um registro inteiro e externo? Complexo de Édipo é paranóia? O elo do sintoma, aqui, não está fora do simbólico? Pode-se afastálo completamente do simbólico, pois ele se amarra no simbólico, mas é outro, não está dentro dele. O problema, então, é: de que maneira se daria a relação do simbólico com alíngua, se ele jamais entraria nela senão através do S1 , ele vem foracluído? Como pode ele entrar mediante uma marca que, na verdade, não é marca, é caroço? Mas não vou desenvolver isto hoje. Ainda não tenho muito que dizer. O que me importou foi tomar o sintoma como referente. Há um referente na alíngua. O que o neurótico faz é emprestar fé a essa amarração, à nominação dessa amarração. Não consegue sobreviver apenas com o simples reconhecimento de que há esse nome, essa metáfora. Ele adiciona a isso muita fé. É ter
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fé no sintoma. Ao invés de assumir o sintoma, tem fé nele. Quando se tem fé no sintoma, se o exalça à posição de grande solução, de solução definitiva, senão de solução universal, católica. É a catolicidade do sintoma. Mas acontece que há alter ego, há substitutividade... Uma religião, por exemplo, consegue egoizar um objeto só, para todos, por identificação imaginária; acontece que lá o objeto é construído direitinho. Sintoma tomado como paradigma... Dissolver essa fé é impossível. Ela pode ser afrouxada, mas é impossível dissolvê-la de vez, pois ela percorre todo e qualquer discurso, é condição sine qua non para se entrar “numa”. Ninguém venha me dizer que consegue ser psicanalista sem alguma fé. O discurso psicanalítico é afrouxador e tenta dissolver a fé, mas nele não se entra sem alguma fé. Se não, não existiria o sujeito inanalisável, que é aquele cuja fé é tão grande em um discurso outro, que ele não leva fé no discurso psicanalítico. Mas se eu chegar aqui, virar um anjo e disser que o discurso psicanalítico não é um sintoma, sou o cúmulo do paranóico, e acabei com todos os discursos. Se o seu desejo é de coisa-alguma, o que quer dizer isso? Quem deseja? Um sujeito sem resto, um sujeito acéfalo, outra vez, um sujeito que é solto no campo do Outro. Temos que fazer essa distinção na nossa prática. No campo do Outro há sujeito, representado de significante para significante. Lá eu entro de máscara, vestindo uma máscara sintomática. Há o sujeito como aquela escansão que corre no campo do Outro, sem mim, e o sujeito que compareço, mascarado, ocupando aquele lugar. O psicótico, aliás, não é esse primeiro caso de sujeito aí. É o sujeito que percorre ele. Por isso Lacan disse, e Jacques-Alain Miller disse que ele teria que demonstrar isso, que na psicose há sujeito sim. O psicótico é um sujeito cujo rosto não distingo, porque ele funciona para lá sozinho, e lá fora está aquele sintoma empedrado, em que ele se esteia, em vez de usar a máscara, como todo mundo. *
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Estou tentando, hoje, fazer um acoplamento com a minha cambalhota da vez anterior, do revirão da produção, para ver onde vai dar. Isto tem a ver
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com a prática analítica, que a gente chama de cura. É possível curar um sintoma? Sim, claro! Mas, eventualmente, pensam que curar é ficar bom. Cura não é isso. O francês tem uma distinção entre cure e guérison. Analista não guérit ninguém, ele cure. A cura analítica é possível. Cura vem do latim cura: cuidar, tratar. O analista é o cura da psicanálise. Outro dia, um imbecil veio dizer que o Colégio Freudiano do Rio de Janeiro é uma verdadeira religião. “Não, Pedro Bó!” Mas há religião e religião. Lacan diz que a psicanálise é uma escroquerie, isto é, uma escrotidão. Mas há escrotidão e escrotidão. É claro! Ou vocês estão sem fé nenhuma sentados aí, ou eu, sem fé nenhuma, feito um debilóide, falando aqui? Há fé e fé. Há cura. O sujeito às vezes não sabe se curar, se cuidar, cuidar do seu sintoma, vive esmagado por ele. Então, procura um outro que ele supõe que sabe curar. Se ele sabe − é minha suposição − é porque sabe curar o seu. Isto é fundamental. Por que Freud disse que é preciso passar pela cura para curar? Sem a experiência da cura, não se cura. É o chamado savoir-faire, de que Lacan falava. Ele queria uma Escola, onde se pudesse transmitir savoirfaire analytique, dar conta da cura, cuidar disso. Ou seja: como vou aprender do analisando o processo da sua cura, para mostrá-la a ele? Eu pude, eu pude ensinar o processo da minha cura a outro que a mostrou para mim. É claro que Lacan era ignorante, quanto a isto. Eu é que ensinei a ele. Aí é que aparece algum imbecil dizendo que devo ser paranóico. Mas se eu não tivesse ensinado a ele, ele não teria feito nada por mim. Aí tudo se inverte: não é o bom aluno que se torna bom professor, meus caros, é o bom professor que consegue aprender. Tente ensinar uma criança a falar. Você não vai conseguir: mas você aprende à beça. Existe essa postura de cura, de vigário, vicário, substituto do Outro − por isso, um tanto vigarista. Mas há vigarista e vigarista. O que Lacan, o que a psicanálise veio trazer é que é possível uma religião, sim senhor, sem papas: uma religião sem papas na língua. As outras têm, papas, na língua, sobretudo a verdadeira. Religio, religionis, vem de relego, -is, -legi, -ectum, -ere; tomar o que se tinha largado. Há a expressão latina relegere caello hora: renovar ou
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retomar o disco do céu. Recorrer de novo, tornar a passar por, tomar o mesmo caminho, é a repetição. Mas há repetição e repetição. Posso repetir o sintoma, mas sem me repetir o que se passa no sintoma. É o problema de retomar o seu ciclo discursivo e refazê-lo. Se você passa por análise, tem a experiência da cura, sai curado, curante, e curativo. Aí, começa a repetir esse percurso, é uma religião: a religião do Outro. Há neurose obsessiva na medida em que ali se repete um sintoma e que o sujeito não se repete o sintoma. Ele fala comigo, eu falo por ele: é a cura. Existe a cura religiosa, a cura psicanalítica. E há o vigário, que toma vicariamente o lugar do curador − Curador da República, Curador de Menores, etc... Curator, do latim, é quem cuida, sabe cuidar de tais coisas. O analisado é curador e, no que ele o é, pode assumir posição de cura. Pode assumir uma paróquia. O sintoma se repete, e eu repito ele. O sintoma se repete, e eu não digo nada senão por meio dele. Isto é o que chamo bem-dizer. O sintoma pinta, devo dizê-lo. Agora, quando o sintoma pinta, e não tenho o que dizer, sou tomado pelo solavanco do sintoma. É a mesma coisa do sujeito que fala uma alíngua de dentro do aparelho servil da língua, ou seja, aparelho civil, como aquele da Academia Brasileira de Letras. O poeta não fala esta língua, o poeta repete a fundação da língua.
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O Outro Ideal: A RÉ PÚBLICA OSSIDENTAL Início do Seminário com a audição de Dentro do Coração, de Rádio Taxi
O que acabamos de ouvir podia ser a canção do obsessivo. Podemos dizer também assim: “Põe divagar”. Para não se machucar, o obsessivo manda botar devagar. Ele põe cada vez mais divagar nisso... Nada tem a ver com os outros divagares, que possam interessar. Alguém me disse, num chiste aliás esplêndido, que a neurose obsessiva é o O.B. do falante. É a rolha, aquilo que arrolha, que entope o furo do Outro, o buraco da Outra. Aí vem nosso próximo Mutirão de Psicanálise, sobre a Neurose Obsessiva, e já que se estava meio no filão, talvez eu possa contribuir um pouco, previamente, para o que lá venha a ocorrer a esse respeito. A neurose obsessiva talvez pudesse chamar-se a Neur’O.B. A questão é sabermos onde situar e isto tem importância para nós, pelo encaminhamento que vínhamos fazendo em Ordem e Progresso o sistema obsessivo. *
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Existe a neurose obsessiva e existe a obsessão sem neurose. Por isso foi preciso nomear uma neurose obsessiva, pois a obsessão, sem neurose, não
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é senão o Inconsciente. A instância, a insistência da letra no inconsciente, nossa razão, depois que Freud nos mostrou isso, é a obsessão de cada um. A insistência dessa letra é obsessiva, obstinada, obstinadamente obsessiva, como se fosse um leitmotiv, ou um baixo obstinado, cantando sempre, e pedindo contraponto. O que querem dizer obsessão, obsessivo, palavras que usamos em torno desse radical: obsedante, obsecar, obsedar, obsediante, obsediar? O termo vem do verbo latino obsideo, -es, -sedi, -sessum, -ere: pôr-se diante. O prefixo ob quer dizer posição em frente. Obsidiante, obstar, pôr obstáculo, opor-se, ocupar um espaço, não se afastar de estar sempre em, habitar, sitiar, tomar sítio, tomar lugar, cercar, bloquear, atacar, investir, etc. O verbo em latim vem de ob-sedeo, sedes, sedi, sessum, sedere, que significa assentar-se, estar sentado, estar colocado. Trata-se de posição, ocupação, que tem a ver com sedes, -is, que é o assento, a sede, o lugar que se ocupa. Ocupar, em bom português, significa botar o cu em cima: o-cu-par, é normal, é verdade. O obsessivo, o que se obsidia, é aquele que toma sede diante de, que habita diante de... Quer dizer, o obsessivo, notadamente o neurótico idem, ele mora na casa em frente... à sua casa. Isto é que é o seu terror. Certamente que quando ele vai para lá, ele ainda continua morando na casa em frente. E ele tem que ficar atravessando a rua o tempo todo, para lá e para cá, procurando chegar em casa que está sempre em frente... Este é o seu drama. Acabei de dizer que não deixamos de ser obsessivos não estou falando do neurótico , na medida em que há apropriação da nossa posição subjetiva pelas cadeias do Outro. O sujeito obsedado é um sujeito que está sendo ocupado, perseguido, tomado, cercado, por um determinado conjunto de frases, naturalmente. Isto é o nosso quotidiano. O que separa a obsessão, pura e simples, de se sofrer dessa doença mental chamada inconsciente, de uma neurose obsessiva? Desde o Estádio do Espelho que a situação já se obsessiviza. Afinal de contas, eu é aquele que está em frente. Então, encontramos, estruturalmente, na fundação mesma do sujeito, as condições ótimas para obsidiar esse sujeito. Quando eu é um outro, de começo, na constituição de um lugar imaginário, para o sujeito, da sua figura própria, já é obsessivamente esse momento. Esta
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questão resta sempre em suspenso. Essa partição, essa cisão do sujeito já é estrutura e condição da obsessão do falante. Discutiu-se muito sobretudo, depois de um artigo de Chemama, na revista Ornicar? se o matema da neurose obsessiva seria o matema do discurso universitário. Lacan jamais disse isso. Eu diria que o projeto obsessivo é projeto do falante, como o é o projeto histérico. Agora, onde se pode situar a neurose obsessiva? Não resta dúvida que a universidade é obsessiva e obsessivante, pois o saber de um mestre posso ler assim, posso dizer que a barra é partitiva faz comparecer o objeto do sujeito, portanto fabrica o sujeito, segundo aquele objeto, mas não sei se o discurso universitário é o matema da neurose obsessiva. Acho mesmo que não. Por outro lado, tampouco, tudo que o obsessivo, enquanto neurótico, não consegue é ser senhor, mestre. Ele não deixa de ter a vocação da mestria, mas sem consegui-la. Se ele fosse um mestre, parava de morar na casa em frente, a qual seria a do escravo: ele só ficava acenando da janela, vendo o escravo trabalhar. Gostaria de pensar, e Lacan nos deixa certos indícios, num Seminário, que a neurose obsessiva e vou tentar definir como compreendo é uma fé muito forte, bastante trabalhada: a instalação fervorosa do saber no lugar da verdade. É uma espécie de tomar religiosamente o saber como verdade. Uma paixão da e pela verdade. Ora, acabei de dizer uma coisa que entra no discurso psicanalítico, que é o único lugar onde o saber está no lugar da verdade. Como juntar, então, o que disse do obsessivo com o discurso psicanalítico? Eu poderia mesmo considerar que, como disse Octavio de Souza aqui presente, a prática obsessiva não vou dizer discurso obsessivo porque não existe é a psicanálise sem o analista. A prática analítica que não é senão a prática do discurso psicanalítico, fazer esse discurso vigorar é isto: o analista se apresentar como objeto impegável, colocando o saber do analisando como a sua verdade. Sua, de quem? Tem que ser dos dois, tem que ser verdade também para o analista. Está na moda pensar que analista não tem pessoa. Tem sim, tem demais. Quando se diz que ele não tem pessoa é no sentido de que, naquele momento, a verdade para ele é a do analisando, de modo a fazer
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funcionar a visão do sujeito, para produzir, para expor diante do analisando sua insistência de letra, sua verdade, sua razão, de existir, digamos. Sobretudo em começo de análise, quando pinta essa verdade, freqüentemente o analisando a recusa. Não que ele diga que não, que isso nada tem a ver com ele, diretamente. Ele imputa aquilo ao analista, diz que é forçação de barra do analista. Aí está, nesse matema, o saber no lugar da verdade: a prática do analista tenta fazer isso sobre o material que vem de lá, do analisando. Isto é o funcionamento do discurso psicanalítico. O analista recebe esse material, isso que ele põe no lugar da verdade. Quem produz, quem entrega isso para ele? Só tem uma maneira: é quando é entregue pela responsável estrutural, essa que chamamos de histérica. Não há análise sem histericização. A histérica chega e produz S2, aquele saber. Ela se toma por objeto do desejo. Na sua verdade, ela quer se fazer amar ou desejar. O agente é a sua posição subjetiva como sintoma. Haja sintoma! O sintoma de ser desejado, o sujeito desejável, amável, esta é a histérica. Ela é o sujeito amável que vive invectivando, que faz com que um mestre produza para ela um saber, um saber sobre o desejo dela, sobre o sintoma dela. No discurso da histérica, assim como no discurso do mestre, fica mais claro para se pensar a dialética intra e intersubjetiva promovida por esses matemas. O matema do senhor explica a relação senhor/escravo no discurso de Hegel, quando o senhor é um sujeito e o escravo é outro. O senhor, cuja verdade é a sua cisão, se não o seu sintoma, sintoma da letra sintomática, faz o escravo trabalhar para produzir objeto para ele. Mas há dialética intra-subjetiva, quando, a partir do significante unário, da posição subjetiva se faz o próprio inconsciente trabalhar para produzir objeto, para nos dar, afinal de contas, a fantasia. Produzir, reproduzir, reanimar a fantasia é uma mestria, que vai se dar ali embaixo, como um resto da fórmula do discurso do mestre:
.A
disjunção é, aí, a da fantasia. O mestre não consegue mais do que fantasia, seja ela inter ou intra-subjetiva, representada num gadget qualquer que o escravo produz para ele: um mais-gozar um mais-dinheiro, por exemplo, no discurso do capitalista. No discurso da histérica, também, é mais simples pensar a relação inter
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e intra-subjetiva, porque a histérica se põe sintomaticamente como agente no pedido de ser amada, tanto literalmente quanto no sentido da trepada: “Duvido que ele bem me trepe”, diz ela. Há um desafio: um desejo de ser trepada, mas duvidando da potência do mestre, pois ela pensa em termos de potência. Há aquele livro sobre a histeria de Gérard Wajeman e um trabalho que Aluisio Menezes já nos apresentou, o caso do São Jorge com a donzela. Qual foi o macete de São Jorge para meter a espada no dragão da donzela? Claro que o dragão era dela. Todo mundo ia lá, e a espada não entrava, e o dragão ainda por cima comia o cara. São Jorge arranjou um macete qualquer... Deve ter simbolizado a espada. Ele desfalicizou a espada, em vez de espadificar o falo. É um golpe simbólico: ele conseguiu subtrocar de algum modo, lá na anedota, a exigência de um falo imaginário, capaz de dominá-la, por uma palavra capaz de liquidar o dragão. Essa dialética intersubjetiva está no discurso da histérica, como está a dialética intra-subjetiva, que é essa produção de falação, em que, se ela se põe como sintoma, para ser amada, acaba fazendo movimentar a sua letra na produção dessa verborragia histérica, desse saber que é entregue ao analista. Por aí é que passa o movimento da análise: seja quem for lá se deitar, tem que ser histericizado, tem que freqüentar este discurso para jogar o saber que o analista põe no lugar certo. Certo para o discurso psicanalítico. Lugar onde isso pode ser escutado, quer dizer, tomado como verdade. Foi o golpe do Freud na invenção da psicanálise. Tomemos isso como verdade. Não nos deixemos cair em tentação. Façamos os cortes. Na travessia da fantasia, através da insistência na letra, o sujeito pode depois bem-dizer o seu sintoma, e bem elaborar sua fantasia... A prática analítica depende, exige esta histericização, mas no seu movimento, isto é, no aproveitamento do saber como verdade, ele embute, inclui a obsessão. Tudo isso que estou lhes falando, ponham um ponto de interrogação à frente, como se eu estivesse perguntando... Não é possível utilizar esse lixo de saber, que a histérica entrega, senão como o vasto lugar onde se depositam os efeitos da obsessão do sujeito. O sujeito é obcecado, a partir do seu lugar letrista, pelo Outro. Somos sempre
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“cavalo” do Outro. A obsessão quer dizer isto: aquilo que me ocupa, que me assedia, me obcega, me obsessiviza. É pela transferência que se pode colocar essa obsessão no lugar certo. A transferência permite que o sujeito, primeiro, fale como histérica, e, no que se pega esse material e se o coloca no lugar da obsessão, se põe esse saber como verdade, se está diante da obsessão do analisando. Seja ele taxado de obsessivo ou não. Como distinguir essas duas coisas num sujeito? Costumamos dizer que todo obsessivo tem uma histérica por trás, isto parece claro, mas esquecemos de ver que toda histérica tem uma ob-sessão pela frente. A distinção que tento fazer é que há certos sujeitos que primam pela fé jurada nesse saber. São esses sujeitos que consideramos neuróticos obsessivos: eles colocam com maior vigor o saber como verdade. Quando isso se amplia e se intensifica grandemente, dizemos que o sujeito é inanalisável. É, talvez, o que Lacan diz sobre o japonês e o católico. É uma fé vigorosíssima no saber. O sujeito mora em frente ao saber: ele não pára de olhar para o saber, ele se torna como têm dito alguns analistas inanalisável. A neurose obsessiva é o que ali se escreve, no discurso psicanalítico, como saber no lugar da verdade, com fé inquebrantável. Estou falando em fé, para não usar o termo adequado. A fé não é tão estúpida como a gente pensa. Há certas nuances. Quando ponho crença, fé, em alguma coisa, resta sempre uma oscilação, a possibilidade de que aquilo não funcione. Tanto é que fico com a maior fé de que aquilo funcione, mas não tenho tanta certeza. Aliás, essa história de que “a fé não costuma falhar”, aí já fica meio perigoso. Essa musiquinha não me convence, pois a fé costuma falhar, sim. Quando se começa a dizer o contrário, cuidado! Há esse momento em que ela deixa de ser fé e exige certa certeza: aí se chama dogma e, não, simples fé. O pensamento dogmático não tem verdadeira crença, tem certa certeza de que aquilo funciona, de que um ditame requisitado ao Outro, e emprestado pelo Outro, funciona, porque é saber verdadeiro, senão supostamente real. A postura dogmática é a postura da dúvida, só que ela sustenta a grande fé no saber com um ditame dogmático. Não que reste dúvida: vai-se deslizando a dúvida ao
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infinito. Continua-se obsessivo do mesmo jeito, simplesmente se infinitiza de tal maneira a dúvida que alguns supõem que esse sujeito é inanalisável, pois o caminho a percorrer é sempre infinitamente grande, dado o suporte que esse sujeito encontra no dogma. Quer dizer: há um Pai Real ali presente, que diz qual é a questão, qual é o caso. E o sujeito continua obsessivo dentro disso, infinitizando a dúvida. Ele não tem o saber absoluto. Ele diz que um outro o tem e, por isso, ele corre rapidinho, dentro da infinitização da dúvida, de maneira que ninguém pega ele. Se a postura do discurso psicanalítico promove a histericização do analisando, é para que aquilo de que ele é obsedado − e todo analisando é obsedado pelo saber do Outro − compareça como produção de palavra, até à plena palavra da sua obsessão. A posição do analista é a de tomar a obsessão do analisando como sua (do analisando e do analista) verdade, de modo a forçar sua remissão à particularidade. Por que ficamos pensando que o discurso universitário é o discurso do obsessivo? Talvez porque o universitário coloca o saber como agente (Saber de quem? Do mestre) para fazer com que o objeto do sujeito compareça. Isto porque a Pedagogia tem objeto e sujeito conhecidos. Uma vez que se entregue ao sujeito o seu objeto, o sujeito vai se objetificar, certamente que diante desse objeto. Ora, que saber é necessário colocar como agente para que o discurso universitário funcione? É simplesmente a presença do Outro, na sua alteridade? É o saber do Outro enquanto deslizamento? O saber que a universidade coloca não é nem mesmo da ordem da periclitância que alguns epistemólogos conseguem sustentar para as ciências. É um saber medido, o saber de um sabichão. O resto do discurso do mestre, como saber constituído e sabido, é o saber sabichão, e que vai como agente do discurso universitário. É um saber cheio de fé, é um saber dogmático. Poderíamos, então, dizer que o que rege a sua ação, o que a agencia, o que é agente no discurso universitário, é a neurose obsessiva, e, não, que o discurso universitário seja o matema da neurose obsessiva. É um lugar onde o saber se assenta como neurose obsessiva.
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Fazendo um parêntese, a dúvida do obsessivo, como a entendo, não é entre saber aberto e fechado, e, sim, entre duas posturas fechadas de saber, para saber qual é a absolutamente certa. Sua dúvida não é equivocação, ele não equivoca, ele duvida entre duas coisas e, por isso, quando está em casa, corre para a casa em frente, para saber qual das duas é a exata casa desse saber, e para constituir para si o objeto exato. Seu saber é constituído por essa dúvida entre duas posições. Para ele, aliás, a particularidade do Outro não é tomada como particularidade, e, sim, como um universo. Ele fica entre dois universos. Não se pode confundir particularidade com saber constituído, pois justamente quando denoto, quando reconheço a particularidade de alguém, é alguma coisa sobre a qual nada sei dizer, sobre a qual minha ignorância é total. Não é o caso do obsessivo. Ele fica pulando entre dois sabidos, justamente para não ver que há um não-saber a particularidade do Outro, a qual se apresenta para mim como suporte da minha ignorância: ali eu acabei! É o “limite da minha liberdade”, na linguagem dos liberais. A dúvida do obsessivo é: qual é o modo melhor de construir o aparelho maravilhoso? Qual é o aparelho maravilhoso? É, literalmente, construir um Nome do Pai como conhecido, como sabido. Conhecido, no sentido de não-reconhecido: ele o quer conhecido no sentido epistemológico cu-nhecido. O que seria, do ponto de vista topológico, o Nome do Pai? Em bom português esse que se fala no meio da rua , o Nome do Pai é o cu do mundo, categorialmente. Será que o mundo tem cu? Se o Outro é faltoso, ele tem uma abertura. O que ali falta é S( A) / , o significante da falta do Outro, significante da falta que há ali. Se aquilo não tivesse um esfíncter dava diarréia a diarréia esquizofrênica, por exemplo. O Nome do Pai é uma espécie de válvula reguladora do campo do Outro, que posso reconhecer mas não posso saber onde está, qual é, nem conhecer a perfeita válvula. O obsessivo “analisa” isso: torna isso anal. Passa a vida analisando o cu do mundo, quer dizer, o Pai. É aí que ele vai aperfeiçoar, buscar certeza. O problema do obsessivo não é a dúvida e, sim, a certeza. Ele pode aceitar a certeza para reconhecimento da instância significante. Mas se quero ter a certeza, saber do funcionamento dessa válvula
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anal do mundo, então, excluí o reconhecimento, e fiquei na busca do “conhecimento objetivo”.
O que me importa no momento é o fato de que a prática da neurose obsessiva é a análise sem o analista. A prática obsessiva é a auto-análise, é o que quero dizer. Para esse cara que vive de auto-análise, isso se chama exame de consciência. A prática obsessiva excele em produzir esse “saber verdadeiro”. Quer dizer, quando ela se histericiza, no que o obsessivo põe o sintoma do lado de fora, é a construção de um objeto perfeito. Ele não fica satisfeito só de viver de fantasia, ele quer o objeto perfeito que o poria como sujeito adequado. É esse aperfeiçoamento do objeto que vemos, et pour cause, no discurso pedagógico. No discurso religioso, esse aperfeiçoamento do objeto quer dizer: “Construirei uma alma maravilhosa, tal que quando eu chegar lá, Papai do Céu vai bander”. O obsessivo, então, evacua o objeto maravilhoso, aperfeiçoado, mas em dúvida, porque deve ser aperfeiçoado mais ainda. Na entrega desse cocozinho divino, ele apronta uma que é, na verdade, me parece, aquilo que vem a constituir, num certo quadro de relações, um maravilhoso fetiche. Os grandes gadgets, os grandes objetinhos do cotidiano, me parecem essa produção obsessiva querendo entregar para o Outro o prêmio, a moeda, em pagamento infinito de dívida, que é um fetiche. Em termos de constituição de saber, do tal conhecimento objetivo, é a tentativa mesma de dar um basta no Outro: o “pára com isso”, o “Pára-isso”, de que já falei várias vezes. Ninguém melhor do que o obsessivo tenta ordenar, em troca da contra-ordem que recebe, um pára, um Pára-isso definitivo.
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A construção do Pára-isso pode ser o saber absoluto. Não adianta ser epistemólogo do conhecimento objetivo, dizendo que não é refutável, pois, quando o cientista o entrega, o que quer é parar com isso. *
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Quando tomamos, por exemplo, essa coisa que desabou sobre nós, historicamente, chamada positivismo, de Augusto Comte, temos que a Sara Kofman, por exemplo, como vimos, tenta provar que Comte é um psicótico, um delirante que substituiu o delírio pela constituição do seu sistema. Isto não me interessa, ele não é meu analisando. O que quero é saber no que deu isso. Mas, também, há uns aspectos biográficos de Comte, se a gente se interessar um pouco, que têm tudo que interessa à neurose obsessiva. Ele estava sempre nessa tentativa de constituir o saber definitivo, o saber sabido sobre o real, a partir de teses imutáveis. Na sua vida afetiva, ele casou com a puta para amar a santa. A puta destruiu a vida dele, aí, ele foi, mandou a puta para o lugar que a pariu. Ou ela foi sem perguntar, e ele se casou com a santa, para amar a puta certamente, porque botou a santa num pedestal para todo mundo ficar idolatrando a cara dela. Cada um tem a estátua que merece. Isto não é a mesma coisa que les lois de l’hospitalité, que é um troço digno. É um pouco diferente de erigir a Outra num monumento único de idolatria, como Augusto fez. Afinal, muito a propósito, ele cria esse sistema inteiramente obsessivo e obsedante, a Filosofia Positiva, assentado na ordem e no progresso, no sentido de objeto constituído e de aperfeiçoamento e não no sentido que eu quis dar de metáfora e metonímia, de movimento , e reconstrói isso, ulteriormente, como uma grande religião garantida por grandes fetiches. E estava lá a Clotilde, que é a santa a puta é a Carolina , como a Outra a ser adorada, a Outra Ideal, o Ideal de Outro, para o mundo, como o supremo fetiche capaz de somar todos os saberes, e não como particularidade, absolutamente. Para Augusto, Clotilde não era uma mulher. No máximo, poderia ser a imagem de mulher que Augusto queria ser: Augusto virando Clotilde, tipo Schreber brotando peitinho. Um
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pouco mais rigorosamente, Augusto queria produzir A Mulher. O que seria produzir A Mulher, senão construir a estátua do Nome do Pai, erigir diante de nós o fetiche do Nome do Pai? É como o caso, apontado por Aluisio Menezes aqui presente, da Deusa Branca que nós esquecemos, que é esquecida de tempos em tempos, como no nosso, quando o Nome do Pai está cada dia mais virando mero objeto. Feiticização total do Nome do Pai. E os movimentos feministas entram nisto, pois querem entender, positivar A Mulher. É o que está lá no meu título de hoje: O Outro Ideal a produção de um fetiche maravilhoso, que não é senão aquilo que Augusto queria construir: a República Ocidental. Eu escrevi A Ré Pública Ossidental, a ré pública com seu osso ideal, esse osso dental da vagina dentada da Outra Ideal. Dada a questão da Sara Kofman, eu me pergunto se esse objeto infinitamente aperfeiçoado pelo obsessivo, entregue nas mãos da disseminação, da transmissão seja pela via que for, religiosa, estatal, etc., seja pelas pressões da chamada filosofia universitária, das teologias, etc. não vem a se configurar como um fetiche maravilhoso. Esse aparelho obsessivo montado, como no caso de Augusto Comte, como filosofia positiva, a dele, não vem a se constituir num maravilhoso fetiche capaz de fazer com que a compostura a seu redor seja aquilo que chamei alhures de psicose perversiva e que hoje acho melhor chamar de psicose fetichista? A Deusa Branca é esquecida, o Nome do Pai é olvidado. E constituído um objeto maravilhoso, que ocupa seu lugar. Esse objeto maravilhoso pode ser a filosofia positiva, com todas as garantias de o objeto estar aí, já dado, é só aperfeiçoá-lo. O conhecimento ali já é dado, basta fracionar infinitamente cada detalhe. Assim, o comportamento geral, a resultante de uma filosofia dessas, é uma psicose esteada num fetiche. É a tentativa de exatificar o Nome do Pai. Exatificar, precisar. O obsessivo tem a precisão do Nome do Pai, nos dois sentidos. Ele vive precisando da referência ao Nome do Pai, no qual ele não bota fé, senão por um saber dado preciso, exatificado: a voz do dono. Quando falei, usando essa metáfora popular, que o Nome do Pai é o cu do mundo, e que o obsessivo quer ir lá e construir gadgeticamente esse cuzinho para regular o mundo, é isso
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que o Augusto tenta fazer: aquele torozinho é capaz de segurar a coisa toda. Estamos aí no regime da metáfora enquanto produto, sua analidade. A metáfora se dá nessa pequena aberturazinha do ânus do Outro, do deixar passar uma metaforazinha de vez em quando. Há aí esse valor de analidade de entrega, de entrega a outrem desse produtozinho que é a metáfora. Mas não é aí que está a coisa e, sim, em que, o obsessivo, ele quer a metáfora exata. Ora, como encontrar a exata e precisa metáfora, se ele não consegue saber, exatamente e objetivamente, o que seja uma metáfora? Ele vai ao dicionário e procura todas as palavrinhas associadas, até chegar um momento em que não tem mais jeito: “É assim porque as pessoas dizem assim”. Mas ele quer saber mais, ele quer a origem mesma da alíngua. No que o obsessivo procura construir, mediante um aparelho que é a própria neurose obsessiva, esse objeto, que pode ser o seu próprio discurso, um discurso completo, esse objeto tem a ver com as questões do obsessivo sobre o Pai Ideal. Mas no que esse objeto é prometido e, suposta ou ficticiamente, entregue, comparece como aquilo que chamei o Outro Ideal, que difere do Pai Ideal, no que ali se finge realizar o grande fetiche, o barato construído do Outro, a figuração de A Mulher. Esse objeto é o objeto por excelência, que elimina todo e qualquer objeto, e ele não é faltoso. Se alguém constituir A Mulher, por exemplo, Clotilde no pensamento de Augusto, entrega o objeto absolutamente desejável, e que não falta jamais. Como se diz: Deus não falta jamais, ou: Deus tarda mas não falta... A Mulher é o falo. Aí, é como falo real. O Pai é aí garantia da suspensão do falo como significante. E no que se constrói esse objeto, não se está construindo nenhum Pai, e, sim, A Mulher. Esse fetiche, então, é como se fosse assim uma resultante prática da maquinaria obsessiva. Ele é tomado, numa psicose fetichista, perversiva, e imposto à idolatria. Aí é que quero mostrar o lapso: o produto de uma neurose obsessiva trabalhadora, bem construída, como a de Augusto Comte, é o grande Falo, o grande fetiche que vem como A Mulher. E isto é retomado, não obsessivamente, mas psicoticamente. O psicótico fetichista aí não precisa mais ter trabalho: faltou-lhe o Nome do Pai, ele já tem o fetiche pronto. Elimina-se o
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trabalho do escravo, que é o trabalho do inconsciente, pára-se tudo, e fica-se lambendo psicoticamente o fetiche produzido por esse discurso obsessivo. É por isso que digo que esta é a parafernália psicótica do jegue inerme. Inerme do quê? De Pai. Há uma distinção entre o jegue inerme e o burro psicanalítico, pois este trabalha feito um burro, porque não tem esse objeto já desenhado. O burro psicanalítico me quer melhor, o jegue inerme me quer pior, como me disse Antônio Sérgio Mendonça. Lacan fez muito bem em botar l’âne à liste, o burro psicanalítico, porque está armado de condições de operar o saber, de condições de trabalho, de trabalho inconsciente. O que há de inerme no jegue é justamente estar absolutamente defendido, sem armas, porque delas não precisa. Defendido por esse objetão fetichista, e isto me parece uma distinta psicose. O jegue inerme, para mim, é um bicho que representa essa coisa que às vezes cai, sobre o País, de positivismo... *
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Retomando o que eu disse, então, foi que não se tem o matema da neurose obsessiva. Temos o lugar da obsessão. O inconsciente é uma obsessão, uma obsessão nossa, somos assediados pelo Outro. O neurótico obsessivo vai tomar esse assédio do inconsciente como saber localizado e botar fé nele. Isso não é inventar matema e, sim, uma leitura dentro do discurso do analista. Se o discurso psicanalítico age sobre a produção da histérica, no matema do discurso psicanalítico o saber situado no lugar da verdade nos é indicação para entendimento da neurose obsessiva, como nos diz Lacan. É indicação sobre a neurose obsessiva e, não, o matema do obsessivo. A obsessão do inconsciente já comparece no discurso psicanalítico. O obsessivo tenta é eliminar a disjunção pelo saber. Aí é que a neurose obsessiva pinta. O saber que tenta eliminar a disjunção é a chamada consciência. E não há nenhum “desejo” de saber... O fundamento da obsessão é a colocação do saber, seja ele inconsciente ou não, no lugar da verdade. O funcionamento da neurose obsessiva é se aproveitar disso para trabalhar essa ocupação no regime do consciente, do exame de
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consciência, da analisação incessante pelo saber consciente. A histérica opera não por aí, mas por seus processos sintomáticos de conversão, por exemplo: o saber vai aparecer aí diretamente na realização sintomática. Qual é o sintoma histérico do obsessivo?: não parar de ter consciência. Aliás, no que a histérica está no seu ataque, por exemplo, este Seminário, é uma espécie de vomitório em que o saber se produz, se dejeta, num regime em que o inconsciente está em carne viva. Não é a mesma coisa que a prática obsessiva, digamos assim, da tarefa de escrever, por exemplo. Não estou falando do escritor e, sim, de escrevinhação. É muito mais obsessivo que o ato de falar, que, este, é histericizante. O obsessivo fica usando o papel como higiênico, fica limpando os atos falhos. No papel, você limpa muito bem o rabo do Outro. Essa falação histérica, em que você está se encaminhando e não sabe bem o que está dizendo, dizendo muito mais do que o que você pensa que sabe, é uma histericização. Mas se você senta para redigir repito, não estou falando do escritor, mas do redator , você é antes de mais nada um obsessivo. É aquele que fica vendo se está com z ou com s, essas coisas da “correção” da língua... Só estou chamando atenção para que no discurso psicanalítico encontramos o lugar da obsessão na escuta. Obsessão que não é do escutador, obsessão que vem de cambulhada para a escuta. É uma tentativa de entendimento do que seja a neurose obsessiva por essa ocupação do lugar da verdade como saber, o lugar da verdade ocupado por um saber estancado, na tentativa de eliminação dos tropeços do Outro. Vê-se nitidamente aí o redator do mundo. O poeta não é um redator. Ele não redige o poema, ele o escreve por isso mesmo, no tropeço, e provocando o tropeço. O redator, este, corrige o tropeço, pensa que todo tropeço é um erro. Certa vez, entreguei um livro meu, antigo, chamado Aboque/Abaque, a uma professora universitária de literatura, para ela dar uma lida, ela tinha certa influência nos meios ditos literários... Ela me devolveu, disse que achou ótimo, etc., mas que tinha umas coisinhas com que não estava de acordo. Fui ver: ela corrigiu a lápis muito do que eu, propositalmente, ou não, botei como “não devia” ser. Ela corrigiu o português... E vocês sabem que
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A ré pública ossidental
português não tem correção. Quem consegue corrigir português? O Brasil, por exemplo, não é um erro de português?
25/MAI
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CORPO ESTRANHO
...Hirto de espanto, Eu sentia nascer-me n’alma, entanto, O começo magnífico de um sonho! Entre as formas decrépitas do povo, Já batiam por cima dos estragos, A sensação e os movimentos vagos Da célula inicial de um Cosmos novo! O letardo larvário da cidade Crescia. Igual a um parto, numa furna, Vinha da original treva noturna, O vagido de uma outra Humanidade! É possível uma outra humanidade? Existe poeta melancólico? Alguns acham que Augusto dos Anjos o seja. Não acredito que exista poeta melancólico. Existe poesia que fala de melancolia. Se fosse melancólico, não colecionava tantas palavras. Acho que Augusto, este, é um grande mestre. Hoje é o último Seminário, dito Interno, o término do semestre. Por
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isso, vou falar do corpo estranho... Tenho aqui uma porção de fragmentos... Todo corpo é espedaçado... Algumas pessoas querem saber o que é o corpo para a psicanálise. Está no Seminário de Lacan, chamado Encore. A psicanálise pode transar com o corpo... Uma pessoa que transa com o corpo veio me dizer que não sabe como se coloca dentro do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, porque tudo o que a gente diz parece contrário ao corpo... Mas a carne é que é humana!A alma é divina. Dorme num leito de feridas, goza O lodo, apalpa a úlcera cancerosa, Beija a peçonha, e não se contamina! Ser homem!escapar de ser aborto! Sair de um ventre inchado que se anoja, Comprar vestidos pretos numa loja E andar de luto pelo Pai que é morto! (grifos meus) De qualquer modo, há um corpo. O fato de se despedaçar alguma imagem que terá sido constituída desse corpo, e zonear o insignificante, não quer dizer que não há corpo. O que se faz numa análise é essa destituição da integralidade do corpo... Mas será que o corpo precisa ser integral? Meu coração tem catedrais imensas, Templos de priscas e longínquas datas, Onde um nume de amor, em serenatas, Canta a aleluia virginal das crenças. Na ogiva fúlgida e nas colunatas Vertem lustrais irradiações intensas Cintilações de lâmpadas suspensas E as ametistas e os florões e as pratas.
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Como os velhos Templários medievais Entrei um dia nessas catedrais E nesses templos claros e risonhos... E erguendo os gládios e brandindo as hastas, No desespero dos iconoclastas, Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos! Tem essa relação com um-corpo, com a sua destituição... Na verdade, todo corpo de falante é estranho... E um corpo estranho certamente que cria problemas de rejeição... O corpo na escrita lacaniana do nó borromeano é imaginário puro, assim como o falo é real puro, e o inconsciente simbólico puro. Que corpo é esse? Só pode ser o corpo estranho... a quem? Estranho ao falante, porque ele está determinado pelo simbólico. Já o ego, este, por sua vez, não é estranho. É o que penso que incorpora o corpo. Por isso, o ego é canalha: ele pensa que é o Outro. Lacan fala de duas mortes. A primeira é a morte morrida, aquela a que a gente supõe estar condenado, e que, parece-nos, é a única certeza. É aquela de que a gente desconfia, e isso não deixa de ser um tanto obsessivo. Mas e a vida, quantas são? Existe a vida para aquém e a vida para além da morte... Depende de que morte. Talvez, a questão de se pensar a vida para além da segunda morte tenha feito as pessoas sonharem com uma vida para além da primeira morte, que é sonho de quem está acordado. Mas, talvez, devamos falar na vida para além da segunda morte. *
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Este seminário se chama Ordem e Progresso. Fico me perguntando se é possível algum progresso, às nossas custas, para a psicanálise, ou se não, pelo menos, algum progresso nosso, dentro da psicanálise... Algum progresso para mim, quem sabe? Por isso, estou com essas implicâncias.
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Existe uma vida para além da morte. A língua francesa tem um termo que é tão bonito: revenant. É isso que chamamos de alma-do-Outro-mundo... Eles dizem que é aquele que revem, que retorna, que volta depois da morte, espectro, fantasma... Significa, também, prazenteiro, aprazível, agradável; tem conotações com lucro: revenant-bon é um emolumento, um lucro eventual, uma sobra, um resultado a favor do indivíduo que presta contas... Em português, o melhor que temos é o redivivo, mas é diferente porque, ao contrário do revenant, ele porta um corpo. Por isso o prefiro: aquele que retorna vivo, da morte. Quem retorna vivo da morte é o recalcado... É o retorno do recalcado. O redivivo é o ressuscitado. É o re-suscitado, o réu-suscitado ou a ré-suscitada. O espantoso é quando, na religião cristã, o mestre sobe em-corpo aos céus, depois de redivivo... É uma Sorte, tiquê, só ele conseguiu. Deve ser porque inventou a religião do amor. Mais além do princípio do prazer, Freud veio mostrar que está a morte, aquela, cuja pulsão. O que há para além da morte? É o caso de as pessoas perguntarem isso. Além do princípio do prazer, a morte surge como produção. E para além da morte só pode haver A Outra Havida. É impossível dar conta dela. Não será isso que faz a psicanálise, se é que faz? A psicanálise não será a barca que atravessa aquele rio que vai para o Hades, cujo barqueiro é preciso para descermos aos infernos? Descer aos infernos, na conotação grega, é ir à pousada dos mortos. Aí é que situo a Outra Havida, a que fica para além da segunda morte. Quero supor que uma psicanálise produz a segunda morte, mas, também, o redivivo. Como seria a visão de um sujeito que morreu de fato? De modo algum seria parecida com isso que comparece nos espiritismos da vida, imiscuindo-se nos negócios humanos. Seria alguém cujo desprezo é tão grande que pode ver tudo com a mesma simpatia... Mas não posso imaginar a primeira morte. Posso experimentar, sim, um pouco, a segunda. Quer dizer, um rombo na escuta. Escutar como morto. O analista fica no lugar do morto, literalmente. E não é porque ele não diz nada, pois pode ser só ignorância, incompetência, ou mudez. É que ele escuta como se não tivesse nada a ver com isso.
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Ele tem a ver com o desejo, e mais nada. O desejo, é o desejo de coisaalguma. E, no entanto, tem um corpo, é redivivo. Um corpo, para quem morre, é sempre estranho. Só tem a aparência de não ser estranho para quem não morre, parece um corpo-próprio. Donde, a eficácia da neurose. A neurose empresta corpo, demais, quer dizer, dá peso ao corpo, dá estatura, dá mesmidade, dá unicidade imaginária, corporifica, incorpora. Um corpo se exprime, por isso tem a ver com o simbólico. Portanto, a psicanálise tem a ver com o corpo, ao contrário do que pensam, que ela é só intelectual. Mas o corpo não se exprime porque se espreme esta é a técnica do pessoal que transa o corpo “numa boa” , e, sim, porque fala. Ele fala porque tem boca sempre, mas, mesmo assim, ele é estranho, sempre. Isto porque não há, para o falante, imaginário compatível com nenhuma integridade corporal. Porque o falante o é, ele estranha, na dica do simbólico, sua instalação corporal, que é uma coisa das mais obsoletas... Na medida em que posso alterar a constituição do meu corpo, porque falo, ele devia me obedecer, mas há uma barreira, uma concretude topológica de imaginário, com um real lá que não se entrega. Mens sana in corpore sano é pura babaquice. Primeiro, que a mente é completamente insana, e o corpo não tem muito a ver com ela. Então, é uma patologia. Há um limite real para o corpo: parece que ele morre, o desgraçado. O real do corpo, de fato só pinta com a morte, a morte do corpo. Até quando se adoece, se pinta um real, porque dói, ou porque algo nos mutila, logo nos acostumamos, pois ao real não se pode fazer mais do que se acostumar... e imaginarizar imediatamente. O que atemoriza na emergência da doença não é a doença, é o fantasma da morte. O real do corpo é o real da morte do corpo. E tem uma grande sacanagem nessa história: quando o corpo morre, parece que ele carrega o resto. Se o simbólico morre, o corpo pode sobreviver. Real não morre, nem vive. Mas se o corpo morre, carrega o resto, o sacana! Por isso é que ele é estranho. Nada autoriza o corpo a carregar com a enunciação do discurso, só porque morreu. Por exemplo, em que corpo fica a suposição de saber que emprestamos a Freud? Alguém já me disse que fica na Standard Edition. Então, a Standard Edition é um órgão de Freud que sobrevive. Vemos
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aí como o corpo é estranho. É uma estranheza radical, pois se o meu barato é o simbólico, não posso respeitar o corpo. Como posso eu como querem os caras da “natural” querer que se respeite o corpo? Há necessidade de reconhecimento da estranheza do corpo. O que se dá também em todo ato-poético. Por essa estranheza em relação ao corpo é que se o acrescenta. Por isso, pode-se dizer que a Standard Edition é um órgão vivo de Freud. Uma espécie de cérebro, de fígado, sei lá com o quê ele pensava, e que fica aí como um resto vivo. Se o corpo não me fosse estranho, se eu pudesse ter com ele uma relação, fazer com que simbólico e imaginário realmente se engrazassem, eu estaria ainda, no jargão dos biólogos, produzindo a minha “evolução especial”. Eu poderia ser corporalmente, anatomicamente, o monstro que sou quando falo. Poderia ser, talvez, até aquilo que se sonha nos contos de fadas: sartar de um corpo para outro, ser passarinho, dragão, sapo que virou príncipe, princesa que virou pomba, e à vontade. Não há integralidade do corpo. No que a morte nos atravessa, queiramos ou não aceitá-la, finjamos ou não uma integração corporal, o corpo imediatamente se espedaça. Se espedaça nisso que chamamos de zonas, de preferência erógenas, ainda que estejam às vezes anestesiadas. Não se pode fazer mais do que recortar, com significantes, pedaços de corpo, e fazer sua colagem. De sua experiência significante, com cacos de corpo, você constrói suas letras. Letra não é mais do que localização de significante, dentro do seu percurso, do seu discurso. Por exemplo, uma obra de arte como Prière de Toucher, de Marcel Duchamp: uma teta com a seguinte inscrição colada: roga-se tocar, ao invés do costumeiro “é proibido tocar”. O cara deslocou, com um recorte significante, isso que chamamos teta, o seio, o peitinho que você tem lá na sua história. Mas isso, para cada sujeito, está localizado discursivamente isto que é letra, localização de significante em função do conjunto significante a que o sujeito mais se adere... Isso se imaginariza. Tanto é que Duchamp fez esse trabalho que podemos ver... e tocar... Vai-se constituindo no imaginário do corpo uma geografia: sin-tomo-grafia. A letra é da ordem do sintoma. O sintoma é real, mas, como já disse de outra vez, ele se realiza por vias de decantação metafórica,
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com imaginarização. É preciso jogar com todos os registros. A determinação é simbólica. Não posso recortar uma teta sem esse significante. O bebê, ele lida com pedaços, é suposição minha, ou é da Melanie Klein. Ele fica chupando uma coisa, naquele movimento que é uma máquina, como diz Deleuze. Mas este pode se deslocar, nomeado, como letra da minha transação específica. Então, constituo meu corpo. Se pudéssemos desenhar o corpo, tal como o concebemos, não pareceria de modo algum com nenhuma imagem fotográfica. Daí, a luta do academicismo com o modernismo na pintura. Há um corpo a ser desenhado, uma geografia que o pintor às vezes consegue mapear, que é o seu percurso pulsional e que não está adstrito, de modo algum, aos objetos de carne, disso que chamamos corpo humano no sentido anatômico da medicina. Posso ter, por exemplo, um corpo com um seio que liga direto numa tomada de ventos que é fomentada por um livro que é órgão de uma biblioteca que tem por baixo um rio que corre e o sol não se pôs ainda. Um corpo complicado, muito estranho. Um corpo com-plexo... e com nexo. *
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É preciso que, no regime da nossa ordem discursiva, tudo isso seja retomado e dissolvido esse imaginário para se sustar essa babaquice que percorre mesmo o campo psicanalítico. Essa preocupação, por exemplo, com as transações imaginárias dos corpos. A psicanálise nada tem a ver com isso. O ato psicanalítico é um ato de desconexão, ele é uma lâmina. É o real que também perpassa o corpo. É a escansão mesma. É preciso entendermos o que é positivo na psicanálise. O corpo não o é. Só o não é positivo em psicanálise. Lacan diz nos Écrits, p. 379, que “assim, a morte nos traz a questão do que nega o discurso, mas, também, a de saber se é ela que introduz a negação, pois a negatividade do discurso, no que faz ser o que não é, nos remete à questão de saber o que o não-ser, que se manifesta na ordem simbólica, deve à realidade da morte”. Aliás, não existe outra castração senão a morte. É um engodo pensar que a castração é perder o piru,
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e nem o medo de perder, pois, este, tem sua referência no gozo-fálico. É medo para nada. O medo mesmo não é esse, e, sim, concretamente, diante do fato de, para além de qualquer afânise, existir a afânise de morte. Aí é morte segunda. Lao Tsé dizia: “quem morre sem perecer, ganha longa vida”. O redivivo tem muito tempo: cada segundo é imenso. É o tempo, lógico... “O haver produz os dez mil seres, mas o haver é produzido pelo nada... O um não tem forma... O Tao se fixa em sua raiz, que é o vazio.” É o zézero, o revirão, a cambalhota, não tem mais nada... Por isso, Lacan diz que é um saco, ennui, unien... A primeira morte é real. O neurótico é aquele que alimenta o medo da primeira morte para não assumir a segunda. Assumida a segunda, há um lucro nisso... tudo é lucro. Então, é preciso instalar essa segunda morte. Os fascistas espanhóis diziam: “Abaixo a liberdade, e viva a morte”. Por isso, eram fascistas. Não porque diziam “viva a morte”, mas porque diziam “abaixo a liberdade”. É a primeira parte que os torna fascistas... “Independência ou Morte” é golpe de mestre. Aí há um vel. Independência ou: Morte ele estava só explicando. Só o não é positivo e objetivo, é o que a psicanálise vem dizer. O resto, é tudo adjetivo. Só existe conhecimento adjetivo... O Ego é, também, um corpo estranho ao sujeito, assim como o corpo lhe é estranho também. O Ego é o que quero supor que seja a imagem do meu corpo, ou, se não, da minha alma, o que dá na mesma. Não estranhar esse corpo é a tolice do neurótico. Ele só se estranha à revelia, por sintomática emergente, que fala sozinha. É poder. E o poder criativo do sujeito é na estranheza do corpo. Vocês estão sentados aí, e a cadeira é parte da anatomia humana. Ela não está nos livros de medicina por quê? Não sei. Se a medicina não acreditasse tanto no corpo próprio como acredita, o quê não estaria na anatomia? As coisas se incorporam, os incorporais também se adicionam ao corpo. Daí ser preciso banir, e Lacan faz esse trabalho no Encore, o imaginário da incorporação que dele se fez, e restituir a diferença sexual ao seu nível do confronto com a morte. Por isso é que ele diz que psicanálise nada tem a ver com a sexologia tem a ver é com esse abismo.
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Pierre Klossowski, que é um católico meio delirante, algo maravilhoso, diz: “como é que o teu corpo poderia ser tão delicioso, senão em virtude da palavra que ele guarda?” É esse recorte aí que faz os pedaços do corpo serem significantes. E o que é significante? É aquilo que causa tesão, e que ao mesmo tempo limita o tesão no gozo, faz cair no real... O objeto a é a causa do desejo e, não, causa de um tesão, mas não se pode recortar um objeto se não se tem um significante para isso. O percurso, o contorno do Zezéro em torno do pedaço, é significante. Ele é que causa o tesão, porque ele é que destaca o objeto. O objeto enquanto tal simplesmente não existe, é falta, é furo, é buraco. Para morder, é preciso de um buraco, por exemplo, uma boca. A tascada é que é significante, e constitui o objeto. É, então, nessa relação de estranheza com o corpo que os gadgets da vida se produzem. E nisso não há nenhum progresso, a não ser que a palavra progresso passe para o jargão que tentei introduzir este semestre, quer dizer, metonimização por via metafórica. Vivemos na tentativa de acrescentar o corpo, produzir órgãos novos, membros novos, e tudo isso vale. São também secreções corporais, como o suor do nosso rosto. É a nossa porcaria, o corpo do Outro... E o limite do corpo, o que é isso? Depende dos progressos da física. Um corpo tem limites de velocidade, até que se invente o avião, a astronave. E não se trata de extensões, como quer McLuhan. São partes mesmo do meu corpo. O que é babaca, por exemplo, na tese de certa esquerda, de que a psicanálise não transa o social, o coletivo, essas coisas, é não perceber que nem mesmo o meu corpo é tão limitado assim. O real da relação sexual não é que os dois corpos se separem mesmo porque a gente podia amarrar com um barbante, não inventaram a chamada aliança? Podiam ter inventado umas algemas, para não separar nunca mais. Não é aí. É que o fato de haver gozo, quer dizer, de cair-se no real, o fato da impossibilidade de o amor juntar dois, prova a impossibilidade de relação. Podemos fazer isso que a teoria da comunicação chama de comunicação fática ficar o dia inteiro com o Outro, tê-lo sempre ao alcance da mão. Nem por isso estamos pespegados. Se um sujeito morre, e se dissolve aquilo,
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o corpo deixa de comparecer, mas, às vezes, pode comparecer nos sonhos, ou alucinatoriamente. Ficam as memórias nos meus dedos. Onde termina o sexo do Outro que passou pela minha mão? Já pensou que coisa terrível? Ninguém diz “eu corpo”. Como você se refere a essa coisa que você pensa que carrega? Você diz: “o meu corpo”, quer dizer, aquilo que deram para eu tomar conta. Daí que você vê como isso se embaralha na doença chamada relação amorosa. Você não sabe se é seu ou do Outro. Você pensa: “Este pedaço é meu, ninguém tasca”. Quer dizer, você acaba incorporando o pedaço do Outro. E você sempre fez isto, nunca incorporou pedaço que não fosse do Outro. Caímos nessa loucura de ficar incorporando cacos de corpos do Outro, porque, Outro, o corpo-próprio também o é. Eu disse que não se precisa tomar as limitações do corpo como definitivas. São relativas. A gente inventa corpo o dia inteiro. Hoje conseguimos ver coisas que se passam na Europa, instantaneamente, e, sem querer entrar no barato de McLuhan, isso se incorpora. Nosso olhar tem um alcance imenso. Aí vocês podem dizer que é uma coisa postiça, mas o quê não o é? Uma maneira interessante de abordar isso é considerar essa coisa que chamam de pornografia. Por que a pornografia é tão interessante? Ninguém lhe é indiferente: ou se é a favor, ou contra. Existe uma teologia do pornético... Bataille fala de uma pornologia transcendental. É a possibilidade de se transar com o Outro, no nível desse movimento pulsional, desse recorte simbólico, desse recorte significante dos corpos. Marcel Duchamp ficou mexendo com a ordem corporal da anatomia do corpo-próprio, tentando arrancar lá de dentro moldes e coisas dessa ordem é uma outra pornografia. A palavra pornografia está desvalorizada, mas é uma coisa muito séria. O que é importante é uma pornologia, quer dizer, como se saca dos corpos esses baratos. É no movimento do tesão, por via significante, que vai se deslocando essas coisas. E cada um goza por onde pode: o sujeito tanto pode estar interessado num caco de corpo, digamos, teta ou coisa desta ordem, como pode, simplesmente, refazer esse objeto, constituir um gadget qualquer, que não é nem para usos orgásticos, mas para uso cotidiano, e que é da ordem do gozo. Gozamos desses objetos no
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sentido mais pleno da palavra. Usufruimos desses objetos... e eles são dejetos do gozo de alguém. O que há de errado com o filme pornográfico é que ele é careta, é chato. Não sabem fazer sacanagem. É sempre aquela mesma coisa. Era interessante vocês brincarem com uma boneca de Hans Bellmer. Algumas, por exemplo, são feitas só de peito e bunda. Trata-se, e Lacan insiste nisso, mesmo de uma gramática, quer dizer, articulação de letra com letra. Isso é que estou chamando de uma teologia pornética, ou uma pornologia teológica, transcendental. Acho interessante o pensamento de Bataille, só que ele vai por uma via que não conta com os aparelhos psicanalíticos. Como minha relação com Deus que é inconsciente, não existe Outro Deus se manifesta no meu percurso de recortes, sobre o que aparece, para que eu constitua a grande substância gozante da minha existência? Res gaudens, prejudicada, até o surgimento de Freud, pela insistência maníaca da substância extensa e da substância pensante. Trata-se de outra lógica. É preciso estranhar o corpo. Não estranhá-lo é o regime da neurose, ou da burrice. Temos que pensar o fato concreto de que estamos vivendo uma época de decadência. Por isso, comecei lendo aquele poema de Augusto que pergunta quando vai nascer uma outra humanidade. Estamos na decadência de uma série de discursos. A culminância disso parece que começou dos anos 60 para cá. E ninguém mais inventa, faz um ato novo. É claro que alguns o fizeram. Está aí Lacan que não me deixa mentir, mas ele se considerava um epígono de Freud. Isso é lucidez. Seu epigonismo é muito especial: acrescentou pinceladas ao quadro freudiano, mas não é fim nem começo de linha. Para mim, Lacan é charneira. Por isso, estou aqui, dentro da nossa ordem, e do nosso progresso, me perguntando se podemos ordenar algum progresso depois de Lacan, na sua virada. Como se pode bascular daí, para retirar a psicanálise desse padrão imaginário em que ela ainda resta, e partir para outra, mesmo. A psicanálise, diz Lacan, durera ce qu’elle durera. Não mais. É preciso palmilhar esse caminho inteiro. Delenda est. É preciso destruir a psicanálise. Ela não veio para outra
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coisa. Mas não vamos fazer isso de araque. Somos, talvez, os herdeiros do único caminho possível de aturar a virada. Mesmo por que, no outro lado, quer dizer do lado da mestria, é preciso ter culhão: não é testículo, é da ordem da inseminação. Ontem apareceu na televisão uma coisa de que as pessoas riram, mas eu levei a sério. A Ivete Vargas disse que a gente tem que romper com o FMI, etc., e que o Figueiredo devia liderar a instauração de uma nova ordem econômica no mundo... Há aquele que diz: “Devo, não nego, dou uma banana e não pago nem quando puder”. Alguns só falam disso. Outros acham que o Delfim é gênio, que sabe rolar com a barriga. Mas ela, a Ivete, deu uma de histérica: “Se tu é macho, faz isso!” Deu um belo piti na televisão. Pois, justamente, ganha a parada, no momento, aquele que tiver culhão para liderar a instalação de uma nova ordem mundial. E não pensem que o Brasil não tem condições para isto. País riquíssimo, que deve as calças, e que é completamente estranho no concerto das nações. Ninguém entende este país, graças a Deus! É seriíssimo. É o país mais sério que existe na face desta terra. Tudo aqui tem conseqüência, ainda que funesta, mas tem... Ter culhão é poder instaurar letra. Lacan chamou o livro dele de Escritos. Se eu quisesse parodiá-lo, eu o chamaria de Escrotos. Disseminação do sêmen... O sêmen é o escrito... Esta é a situação em que estamos. Somos freqüentadores de um discurso que tem caminho, tem porta, mas é suicida, pede para ser destruído... Está nos seus intestinos o micróbio da sua morte... Pode virar a mesa... Para isso, é preciso estranhar o corpo. A pergunta que cada um deve se fazer, ou, talvez, a que fica em suspenso numa análise é: em que lugar do teu corpo está o furo aspirante? Não é qualquer furo. É furo-furado, que aspira. Aspiração no sentido em que Lacan escreve S( )... Um aspirador, de pó, por exemplo, dependendo de onde se enfia aquele tubo, pode chupar ou soprar... Só é preciso que o furo seja aspirante. E freqüentemente damos pouca importância a essa localização do furo do sujeito. Por onde é que você re-espira o Outro? É o lugarzinho aonde o objetinho passa, o tal objeto que a gente deve destacar numa análise. Por que Freud não consegue dar conta muito bem de Leonardo da
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Vinci? Porque não era lacaniano... Durante o seu percurso, Freud não só destaca o sorriso da Mona Lisa como vai mostrar, baseado em autores sobre as artes plásticas, que se repete freqüentemente na obra de Leonardo. Há sorrisos daquele na cara da Sant’Anna, da Virgem Maria, etc. É aquele sorriso besta, de que Lacan fala no Encore, o sorriso angélico, puramente significante, que não quer dizer nada. Ou seja, é o buraco por onde Leonardo aspira. Leonardo é oralista, é um sujeito estritamente oral. Freud notou isso no sonho, na fantasia do milhafre batendo com o rabo na boca de Leonardo. Rabo em italiano é colla, que tem significação fálica, imaginária. Leonardo inventou aquilo tudo, baseado numa aspiração oral. Não foi Leonardo quem inventou a arte conceitual? Cosa mentale, que ele apalavrava o tempo todo. Arte conceitual é um processo verbal. Quando se estuda a vida do Leonardo e seu modo de criação, vê-se que ele estava interessado em criar as frases, as idéias. Ele pouco se interessava se uma obra ficava pronta. Quando estava pelo meio de uma pintura, por exemplo, entrava numa de: “Que barato se isso desse com aquilo...” Aí, estragava tudo. O tolo do analista tolo diria que ele era obsessivo, pois estragava a obra que fazia, quando, na verdade, ele ficava era de brincanagem... Um príncipe lá encomendou-lhe a estátua de um cavalo de batalha. Era uma técnica complicadíssima, ele foi estudar na fundição de bronze... Veio a guerra, etc., chutaram ele, ele não terminou o cavalo. Um dia, numa outra cidade onde morava Michelangelo Buonaroti, este dá-lhe uma gozada em público: “Você não é de nada. Cadê o teu cavalo que até hoje não saiu? Você é perdulário, deixa tudo pelo meio...” Michelangelo falava de dentro da sua própria sintomática. Se Leonardo era oral, Michelangelo era o protótipo do anal: acabava as obras, ia até o fim, ainda que debaixo de porrada do Papa. Fazia tudo direitinho, até a cúpula da catedral, que Leonardo não teria paciência para fazer, e não à toa. Se a fantasia de Leonardo era um milhafre batendo com o rabo na sua boca da infância, a de Michelangelo, e que ele desenhou nitidamente, era Ganimedes sendo enrabado pela águia: Zeus-pater. Ele era Ganimedes enrabado por Zeus, ou por Júlio II, já que não tinha Zeus disponível. Mudar essa perspectiva, em vez de ficar procurando neurose, psicose,
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etc., tentar discernir as estranhezas do corpo, e as reconstituições corporais, pode ser de alta valia. Falar do lugar do corpo-próprio, onde há um limiar, é isso que temos acompanhado desde Freud. Por isso, ele disse que as bordas dos furos do corpo é que são os lugares da constituição do corpo. Freud tinha que dizer assim, naquela época, mas se refaço o percurso que ele fez, de volta, descobrirei o contrário: tenho fendas, que constituem corpo para lá e para cá. As fendas não são do corpo. Para a psicanálise, elas são o corpo. Não é que haja a unidade esférica do corpo com suas fendas, mas, sim, bordas que, por razão do significante, são do Outro, e em torno das quais, para lá e para cá, se constitui corpo. Se não for assim, estaríamos sendo euclidianos e dizendo que existe, conhecido e entra aí uma questão epistemológica , um corpo descrito pela anatomia sobre o qual há certas bordas e, a partir dessas bordas, se constituem movimentos pulsionais que acrescentam, ou não, o corpo. Seria supor um conhecimento prévio da anatomia, que dá garantias a ele. Mas não há nenhuma garantia dessa anatomia, porque ela é um discurso. Os objetos a se constituem, para o sujeito, no que ele faz a referência própria a esse imaginário, como prolongamento desse objeto imaginário. No que faço referência egóica, é uma imagem. No que projeto narcisicamente essa imagem nos outros elementos, incorporo esses elementos como extensões dessa imagem. Absolutamente correto, porque estou fazendo, nesse momento, referência à imagem que “escolhi” para ser a do meu corpo. Porém, no que faço uma cisão e desisto do corpo desse narcisismo, o que vejo é que não tenho mais do que fissuras, bordas, em torno das quais se constitui o corpo, para lá e para cá. Mesmo aquele corpo imaginário, ao qual faço referência para constituir objetos como extensão dele, foi constituído a partir de uma borda no Estádio do Espelho. Qual era a borda de referência no Estádio do Espelho? Era o espelho, como borda, como furo, com sua topologia de borda de furo, e a imagem se constituiu primeiro para lá e depois para cá. Segundo o registro da anatomia escrita, descrita até hoje, se constitui, então, um corpo para cá. A psicanálise veio mostrar que se constitui primeiro para
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lá, porque, antes de haver referência de corpo-próprio, há que ter referência de objeto, de outro. Quer dizer, a psicanálise não tem outra anatomia senão as bordas pulsionais. Há bordas pulsionais e, em torno delas, se constituem corpos: para lá e para cá. É o quiasma do corpo. E o a fica ali dentro, sempre imaginariamente recuperável. Então, eu chupo ele para cá, cuspo ele para lá. Fico gastando ele em formas, isto é, conformando o objeto a. Isso é o que está em Leonardo. Ele sabia o que estava fazendo: botava tudo na boca, que nem criança...
Estou dizendo, então, que a boca se constrói porque há essa borda. Quando Freud cria o conceito de pulsão, está tentando desenhar a única anatomia possível para a psicanálise. Haver pulsão oral quer dizer que há um buraco que costuma funcionar assim, e que constitui corpo para um lado e para o outro. Haver pulsão escópica é haver um buraco que funciona para lá e para cá. O mesmo valendo para a pulsão invocante: um buraco que funciona no regime de voz e que constitui um corpo para lá e para cá, etc. Há uma aparente simetria, mas o que há é dissimetria nessa aparência. O autista, por exemplo, não tem boca. Por isso, não fala. Ele é igual aos planetas. Você fica olhando, ele tem uma aparência de boca, mas não tem boca. *
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O que é litoral para a psicanálise? Costumamos pensar que o litoral é de ilha. A ilha é toda litoral, o mar está em volta. Passem isso para o negativo, revirem, peguem o avesso disso. Tenho um furo e, em volta dele, tudo cheio. O que interessa é a borda, porque se puser o negativo sobre o positivo, só sobra a borda, só ela se duplica. A letra, diz Lacan, é litoral. Ele quer dizer que o literal é litoral. Isto porque ela é pura borda: de dentro dela, tudo em volta é buraco ou, se não, posso percorrer muita coisa, menos um furo. Qualquer das opções adotadas
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me devolve ao contorno. A letra é litoral mesmo. Ela separa e põe um vazio em volta. Ou, se não, fura e não adianta o cheio que haja em volta. E mesmo que eu pegue os dois filmes, os dois fotolitos e os superponha, só terei uma marca: a borda. Só ela se repete. Se um fotolito é negativo do outro, o que está nos dois é só o contorno. A idéia de furo não exige necessariamente nada dentro ou fora, basta a idéia de contorno. Todo furo tem quilos de coisas dentro ou fora. Basta lembrar a Boceta de Pandora. Metam o dedo lá para ver o que acontece...
Para encerrar, então, não é por menos que Freud dizia: Wo Es war Soll Ich werden. O que é Es? O que é Isso? As línguas nem sempre ajudam, porque são parciais, uma a uma. Talvez você tenha que passar de uma para Outra. Esse es do alemão só aparece em português como isso, it em inglês. Mas não usamos isso, por exemplo, para tratar das posições subjetivas diante da diferença. O alemão diz: der, die, das. Das corresponde a isso. O inglês diz: he, she, it. It corresponde a isso. Em português, não há senão Isso. Nem em francês. Por isso Lacan ficou repetindo que era Isso, para ver se alguém mete Isso na língua francesa, depois dele. Há o ça, celui, celle. Se eu pudesse pegar o nosso revirão e colocar Isso lá, eu o poria aqui:
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Isso é da ordem de haver inconsciente, quer dizer, de haver borda, anatomia psicanalítica, pulsão, metáfora e metonímia. Tudo passa por Isso: revirão. Se o homem é metáfora, a mulher só pode ser metonímia do homem, mas, eventualmente, ela pode ser metáfora, é só trocar o lugar. Tudo passa por Isso, ninguém deixa de passar por Isso. Isso que se revira na língua. Este é o grande abismo da psicanálise, o seu mal-estar. É preciso desimaginarizar tudo, por causa d’Isso. É preciso que, na nossa transa com os eventos, a gente sempre se lembre d’Isso senão a coisa fica mera fofoca sobre comportamentos. Aqui mesmo, dentro do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, há uma coisa que me enche o saco: é a fofoca sobre os comportamentos. Parece que nunca ouviram falar em psicanálise, que nunca passaram por Isso. Temos que ficar atentos a Isso. It, es. Freud foi radical: Wo es war, soll ich werden. Está no Lao Tsé e não difere em nada dos fundamentos da psicanálise: “Conhece o masculino, adere ao feminino. A virtude suprema é sem virtude, é por isso que ela é a virtude. A virtude inferior” se quiserem, podem botar uma em cima e a outra embaixo “não se afasta das virtudes, é por isso que ela não é virtude”. Mas nós vivemos distantes d'Isso, esquecemos d'Isso o tempo todo logo nós que não deveríamos esquecer. “Depois do Tao” leiase depois do revirão “vem a virtude”. Melhor dizendo: depois de perder o revirão vem a virtude: no que me esqueço do revirão, fico virtuoso, e isto não serve para nada. “Depois da perda da virtude, vem a bondade. Depois da perda da bondade, vem a justiça. Depois da perda da justiça, vem o rito. E o rito é a matéria da fidelidade e da confiança, mas ele é a fonte da desordem”. Isto é do Tao Te King. Ele está justamente lembrando que é preciso retornar ao Tao. Mesmo a virtude superior, para ele, é sem virtude. A inferior, também. Por isso mesmo não é virtude. Posso estar na tiquê e verificar que ela é sem virtude se, na tiquê, eu perder a minha essência de revirão. Esquecendo d’Isso, ganho virtude para quê? Posso até utilizá-la, mas é para nada, sempre. O retorno já é o movimento do revirão. Ele diz do Tao: “É pela fraqueza que ele se manifesta. Todos os seres saíram do Ser. O Ser saiu do Não-Ser”. O homem já sabia disso
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há tanto tempo... “O Revirão engendra o Um. O Um engendra o Dois. O Dois engendra o Três. E o Três engendra todos os seres do mundo”: Jacques Lacan, quer dizer, Lao Tsé. “Olhando para ele, não se o vê. Por isso, a gente o chama O Invisível. Ao escutá-lo, não se o ouve. Por isso, dizemos que é o Inaudível. Tocando-o não se o percebe. Por isso, o chamamos o Impalpável”. E, maravilha das maravilhas: “Sua face superior não é iluminada. E sua face inferior não é obscura”. “O Revirão que a gente tenta apreender” tal como o escrevi ali, aliás “não é o próprio revirão. É um peça inscrita. Saquemos o seu segredo pelo Não-Ser, e pelo Ser tentemos abordar o seu acesso".
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É a última sessão. Estamos na virada do ano, o que é uma charneira, onde há que se escandir este Seminário, e onde, portanto, o encerro, na data de hoje, que, por feliz acaso, é dia de São Pedro. É uma virada também de curso, um golpe de timão, tentativa de restar whirling in the Maelstrom, como Poti escreveu na abertura do seu livro, que se lança hoje, o que ele terá exsudado de um conto de Allan Poe. *
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No Seminário intitulado Vers un signifiant nouveau, para um novo significante, publicado em Ornicar? 17/18, p. 14, Lacan se perguntava: “Por que será que Freud não introduz algo que ele poderia chamar o ele? (...) É um termo que se imporia, e se Freud desdenhava declará-lo, é mesmo porque ele era egocêntrico. E mesmo” − escreve Lacan numa palavra só − “superegocêntrico”, o que posso ler como super-egocêntrico, ou superegocêntrico. “É disso que ele é doente. Ele tem todos os vícios do mestre. Ele não compreende nada de nada. Pois o único mestre é a consciência, e o que ele diz do inconsciente não é mais do que embrulho e balbucio, quer dizer, retorna a essa mistura de desenho grosseiro e de metafísica, que não andam um sem o outro.”
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Então, Lacan que, na verdade, como termo dito, não introduziu também esse ele, mas que não deixou, por outro lado, de introduzi-lo com o nome de Outro, nos cobra a existência desse ele. Quem é ele? Numa Carta a Berta que escrevi recentemente, ele era Freud, e também como ele, assim: L, era Lacan. Esses dois mortos que, quando vivos, ocuparam longamente o lugar do morto, para fazê-lo, ao morto, gerir a nossa havida, por causa. Mas, quem é ele, se esses eles apenas ocupam, nomeados, seu lugar de vazio? Esses dois, por S2, cada um, de um a um, cada um d’esses, Freud esse um (S1), Lacan esse um (S1), um por um, apontaram para esse lugar, d’ele, para esse ($) lugar que, desde a enunciação, nos empuxa pelos descaminhos da Outra. Esse lugar, a barra do esse ($), é sua indicação, d’ele, de puro lugar, ele, esse lugar, único lugar, aonde se possa dar enunciação. É de um texto velho já hoje, os Ensaios de Lingüística Geral, de Roman Jakobson, que se tirou uma certa resposta a essa questão da distância entre enunciado e enunciação. Jakobson, fazendo um remetimento à mensagem, no que, naquela ocasião, nos mostrava discursos de mensagem remetendo a mensagem, de código remetendo a código, de mensagem remetendo a código, anunciava a possibilidade de indicação do sujeito da enunciação ao que se relacionava com a mensagem, dizendo que “todo código lingüístico” − isto é textual − “contém uma classe especial de unidades gramaticais, que se podem chamar os shifters”, na língua em que ele escreveu originalmente o texto, traduzidos em francês por embrayeurs, que seriam, na nossa língua, embreadores, e talvez fosse melhor chamarmos de passadores. “A significação geral de um embreador não pode ser definida fora de uma referência à mensagem”. Tratava-se, aí, de pegar esses elementos do código lingüístico, que nos deixam sem definida indicação de quem é o autor do enunciado. Caso sobremodo especial quando se trata do pronome eu. Numa frase qualquer dita com o pronome eu é preciso remeter-se à mensagem para saber quem é que está dizendo eu, e por que esse eu. Jakobson quer separar o sujeito do enunciado, enquanto dito, do sujeito da enunciação e pegar o passe entre o sujeito do enunciado, a ser determinado pela mensagem, e esse lugar subjetivo no qual cada um pode caber, no seu movimento de
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enunciação. E isto vem resultar no conceito de shifter. Lacan retomou isto e tentou nos mostrar, em textos hoje célebres, que a enunciação, enquanto tal, não se podia representar meramente pelo shifter, mas, justamente, por certos momentos de uma língua, onde há tropeço negativizante, o que ele, aliás, anuncia com o ne (não) expletivo da língua francesa, momento em que aquele sujeito, da pura enunciação, se denunciaria. Esses embreadores são, portanto, mesmo no pensamento de Jakobson, verdadeiras charneiras, lugares de virada. Mas o que EU, como sujeito ou como fragmento de língua que indica o sujeito, mais faz é denunciar que algo não vai entre enunciado e enunciação: algo é cambeta nessa tentativa de relação. E cada sujeito pode se perguntar seriamente: quem sou eu?, eu que falo, como se não pelo Outro, como se não fosse o Outro que fala, eu que me shifto, se me permitem abrasileirar o verbo inglês, ou eu que me sifo pelos solavancos do enunciado: quem sou eu? Eu sou uma metáfora do Outro, quer dizer, um sintoma, um sim que toma do Outro uma referência para-esser, isto é, fazer de conta que sou, quando sou-o, quando sôo, meu nome, nome chamado aliás pelo Nome do Pai, meu, nome do meu Pai, agente da metaforização que me localiza, que louca-alisa um pouco minhas erupções de não-ser, com a pá de uma letra que vocês sabem que é significante situado, sitiado sintoma herdado − e se formos buscar um Nome do Pai dessa história, é um sintoma Herdado, que me particulariza, para aquém da enunciação, de onde não posso dizer que eu sou, mas apenas que eu é. É quem? É aquele que é, falado, ele. Ele da metáfora primordial, como metáfora do real, substituição arbitrária, isto é, contingente, puro encontro, fundando minha participação na alíngua, sobre a comunidade da linguagem, pelo empréstimo de uma paternidade, cuja dívida impagável. Isto, em português, quer dizer que não pode ser paga, e que é uma graça. Estou apontando com isto algo de que a gente se esquece. Estou apontando com ele, dois níveis do sujeito, do sujeito freudiano, e lacaniano portanto: o sujeito do dito que é sintoma, particularidade, eu a ser reconhecido. Quando escreve o matema da histeria, o $ no lugar do agente, Lacan o chama sintoma. Este é o nível do sujeito como sujeito do dito, a ser incorporado. E o
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sujeito do dizer, que não é a mesma coisa que o dito, que é o alterado, o sujeito disso que escrevo como $entido, com S barrado, ou seja, o absoluto não-senso, ele portanto, a ser entronizado. É esse sujeito aí, que é o ele a que me retiro. Sujeito a-sexuado. Melhor dizendo: o sujeito, ele é para-sexuado, ele é sexuado pelo falo, mas sua postura sexual depende do sujeito ao seu lado, seu vizinho, que o motiva necessariamente e sempre, positiva ou negativamente, à luxúria inerente à sua estada de falante. A cada tropeção do discurso, quando penso que penso, ele, o sujeito se mostra nesse tropeção, nessa sua amostra. É quando ele goza, e quando ele é gozado, e quando ele me goza, quando ele nos goza. Não como na Língua de Descartes: je pense, donc je suis, mas, como na língua de Lacan: je pense, donc se jouit. Se gozo, obscenamente, o sujeito se mostra: penso, logo show. Sujeito gozador esse: esse barrado, $, ou esse gozador. Ele que nos dá, como halo dentro do meu − isto é, dentro do seu − revirão, em cambalhota, engraçada e gozada, quer dizer, com graça e com gozo, seu nome próprio. Como vocês sabem, ele pode ser assim e se acompanharem esse revirão se deslocando, verão que ele vai se escrever assim ... e para sempre ... ele. Um sujeito só dito e sempre mal dito se não se assujeita ao sujeito barrado, gozador, não-senso, que fala ele da enunciação e não eu do enunciado. *
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Durante este percurso do Seminário, vocês viram que tentei desenhar um aparelho, tipo neurose obsessiva, capaz de produzir um objeto perfeito, ou perfectível, em aperfeiçoamento, como feitiço, ou fetiche, a ser apropriado psicoticamente, nisso que chamei de psicose-perversiva ou feiticista, por uma prática política paranóide, e com perfume de ciência. E viram como tentei mostrar que o grande barato daquela construção era A Outra Ideal, aprisionamento definitivo do que fosse A Mulher, naturalmente que com eliminação, foraclusão de parte d’Ela, nomeadamente da puta. A Mulher como a Santa Clotilde, com exclusão da Puta Carolina. Como poderia estar, e mais ainda por inteira, A
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Mulher, com a puta de fora? A “parana” positivista, aquela de Comte, é querer elevar sua particularidade, não ao pedestal do reconhecimento mas, ao trono católico, isto é, universal, d’A Verdade. Terá sido isto, ou algo assim, que Freud − e Lacan − veio nos ensinar? Ao contrário de nos apresentar de uma vez por todas à Dama, Lacan veio dizer que A Mulher não existe, ao contrário de a positivar como conhecimento, na relação havida e definitiva entre o sujeito e o objeto, veio nos revelar, depois de Freud, que a relação sexual é impossível. Ao contrário de objetificar o saber, ele trouxe, se vocês quiserem, um objetinho, tãomente assim furado, chamado nó borromeano. Ainda há pouco, pela voz do chamado Sibony, se contestava que Lacan pudesse afirmar que o psicanalista ocupasse o lugar do Santo. Nem me consta que Lacan tenha dito assim, dito isto. Disse sim que só há uma salvação, que é a santidade, impossível, e que o psicanalista tem que se aproximar dela. Vocês sabem, porque já expliquei aqui anteriormente, da associação que tem com isso, na língua e na teoria, a palavra sanctus, que quer dizer sancionado, ou seja, aquele que se remete necessariamente à LEI − com três letras maiúsculas − e que é nada mais nada menos que A Diferença. Como, então, “acreditar na palavra” como brandia o moço no sabor dos seus dólares? Palavra que tanto Lacan insistiu ser da ordem do mal-entendido, se não, do obscurantismo? É preciso mesmo tentar eliminar a dívida simbólica para conseguir tanto... O que faz também com que se diga que Lacan, com o seu corpo e o seu objeto na mão, dá um golpe crístico; que arrolhou com o seu corpo, e com um objeto do seu corpo, o famigerado nó borromeano, a brecha da Linguagem. Será que Lacan foi enterrado, sem que ninguém se desse conta, com um pedaço do corpo do rapaz? Ou será que ele é que ficou engasgado com um pedaço do corpo mal comido da obra de Lacan? Estas perguntas precisam restar de pé − que confusão é essa? Será que é acreditar na repetitividade obscenamente compulsiva de um sintoma ocidental? Se não, vejamos: Freud, Moisés, o Moisés da psicanálise; Lacan, Cristo; Sibony, Lutero? Que compulsão é essa? Talvez, ainda repetitivamente, fosse mais elegante e, talvez, mais verdadeiro, a partir da tri-nomia do Pai: Real, Simbólico e Ima-
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ginário, nos perguntarmos se não poderíamos dizer que Moisés terá criado, sim, a religião do Nome do Pai; que Cristo terá inventado, sim, a religião do Nome do Filho; e, quem sabe, Freud e Lacan vieram nos trazer a “religião”, absolutamente não-obsessiva, pois que disjuntiva, discurso que cria relação social, sim, mas em destacamento da disjunção, como a re-legião do Espírito Santo. Por que não? Nos Écrits, p. 186, Lacan nos aponta para o que chamou de saint esprit du langage, o espírito santo da linguagem: lugar e revirão. E me parece uma tolice tentar-se reduzir à compulsividade Moisés-Cristo o que Lacan vai buscar mesmo em outras linhagens, como, por exemplo, entre os estóicos e no mais antigo pensamento chinês. Haja o que possa sacudir essa obsessão ocidental, que é o que ele fez. Depois disso, já assistimos a uma tentativa de ruptura dessa compulsão, e por dentro mesmo da constituição ocidental, quando se faz uma espécie de novo Renascimento de Grécia e Roma com a ajuda do bi-céfalo Deleuze-Guattari. Lacan não procurou rerrê-nascimento, nem compulsão religiosa. Como é do Outro que se tem que tirar alguma coisa, foi à esquisita China, e aos “desloucados” estóicos e, de repente, tirou mesmo ele próprio um significante novo, o fez baixar dos céus. O chamado objeto a não é, de modo algum, só imaginariamente que ele mora no miolo oco do nó borromeano. E dessa tentativa de santidade, fracassada certamente, não se acha razão de nenhuma comparatividade com pedras de lei, estelas de regras, e nem tão mesmo, e nem tão bem, com aquele ato crístico mesmo de se encontrar com o dito patrono do dia de hoje, chamado Simão, e por já saber que ele é discípulo de João, o Batista, pois esse encontro aí não é tão fortuito, nomeá-lo cefas, pedra, e rezar: “Pedro, tu és pedra e sobre ti construirei a minha Igreja”. Que eu saiba, está escrito e qualquer um pode ler; às beiras da Outra, Lacan escreveu que não deixava ninguém sobre a cela da sua Escola, e só contava com o turbilhão. Que corpo é esse, que objeto é esse, arrolhando a brecha da Outra, a não ser para quem não sabe ler? Essa brecha, ficou é de pé, na constituição mesma desse nó, e na indicação de um sujeito, freudiano, perfeitamente com-
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patível com o que se escreve no Ta Chuan, livro de comentário explicativo do I Ching, onde se diz que o grande princípio originário chamado T’ai Chi, originariamente Chi, é a marca, uma simples linha simbolizando a postura da unidade. Esta implica uma postura da dualidade: um acima e um abaixo. O elemento condicionador é então designado por uma linha não dividida (−), e o elemento condicionado é representado por uma linha dividida (− −). Estas são as duas forças originárias, designadas como Yang, o princípio claro, e Yin, o princípio escuro. Donde, como no Parmênides de Platão, que já tomamos aqui como lido por Lacan, o Um-Bífido, o Zezéro, o Revirão, a Cambalhota, é a única via. E porque o princípio condicionador condiciona imediatamente o condicionado, é a via obscura. *
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Estamos festejando uma charneira, aproveitando a festa de um outro. Não custa nada. Um outro que foi tido por santo, não se sabe bem por que Lei, afinal. Festa junina, de junius, que designava o mês latino. Juninus era o templo dedicado ao deus Hermes, que chamamos também de Mercúrio, por via romana, e que tem uma estória muito interessante. É adorado, hoje em dia, por banqueiros e comerciantes, numa via só. Mas é o deus da charneira, e o deus da passagem e da transmissão. Certa vez, ele roubou os bois de Apolo, o qual foi perseguí-lo para tomar os bois de volta e puni-lo. Mas ele se havia refugiado numa gruta onde encontrara um casco de uma tartaruga, no qual amarrou uns fios e construiu a primeira lira. Apolo ficou tão encantado com aquela invenção que trocou os bois pela lira, levou a lira, que ficou sendo aquela, de Apolo, aquela mesma que eu disse que é feita gozar pelas mãos de Dionísio. Hermes, o transmissor, o passador, é quem se festejava com essas festas juninas que a Igreja afanou para serem, mutatis mutandis, as dos seus próprios transmissores: Pedro, Antônio, João. Hermes acabou sendo o patrono dos oradores, como o inventor do alfabeto, da Música, da Astronomia, dos pesos e medidas − nesse pedacinho aí é que ele fica escravo de banqueiros e comerciantes − e da
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ginástica. É por isso que hermético quer dizer aquilo que transmite e, não, o contrário, como pensam os que detestam qualquer transmissão, os que votam por que tudo seja igual, e que tudo se leia por igual. Ao contrário, o hermético não é o impenetrável, a não ser para os que detestam qualquer penetração. Para transmitir há que sofrer o percurso, a travessia. É quando não se quer passar por Isso que se diz que o troço é hermético. Dá trabalho, é hermético. Dá trabalho porque exige que eu me desloque junto com Hermes. Pois é. E aí está esta embandeirada festinha. Aqui encerro este Seminário que intitulei Ordem e Progresso para perder a vergonha. E ganho o lema que arranquei das mãos claras − isto é, estúpidas − de Augusto Comte e, outra vez, escrevi, na mesma nossa bandeira − bandeira nossa, é claro − não mais como aquele dito, que considero “parana”, mas como esse dizer: em plexo e nexo que, muito bem, em nossa via obscura, nos declara e nos denuncia. E anuncio, para o próximo semestre, e também os convido, o Revirão de um anagrama com que nomearei o meu Seminário, o qual farei Por Dom e Regresso − ao ato simbólico de acerto de uma dívida que é por onde, acaso, a causa nossa a-pague-se.
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Segunda Parte
POR DOM E REGRESSO
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To see a World in a Grain of Sand And a Heaven in a Wild Flower, Hold Infinity in the palm of your hand And Eternity in an hour. Blake Lacan, em vários momentos do seu Seminário, que podemos ler por transcrições mimeografadas, conta que havia acabado de ler uma transcrição de algum de seus Seminários recentes e que tinha achado bastante bom, pas mal, como dizia. Não é o que acontece comigo. Quando leio transcrição de Seminário meu, sempre acho que não era bem isso que eu queria dizer, mas é isso. Este semestre vou fazer este Seminário Aberto mais freqüente e menos extenso. O Seminário dito Interno é aquele onde só é permitida a presença dos membros do Colégio. Mas, ao contrário do semestre passado, quando os participantes do Seminário Aberto viram só a metade, vou fazer o Seminário por inteiro, em Aberto. E lá, no Seminário Interno, vão ser debates e participações de membros a respeito do nosso trabalho. Por Dom e Regresso é uma tentativa de devolver o recebido: todo dom é devolução. E também é regresso a inspirações antigas, quem sabe se antigas inspirações de Freud, de Lacan mesmo. Regresso também pelo caminho que
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tenho percorrido, até agora, através destes Seminários que tento realizar. E regresso, sobretudo, aos meus fracassos mais antigos, justamente onde tentei e não disse, como é o caso desses Seminários que leio e acho que não era bem assim que deviam ser. É o caso, por exemplo, de um texto velho hoje, da década passada, que está publicado no livro Senso Contra Censo, chamado Gerúndio − é uma coisa muito esquisita. Mas era uma tentativa de articular alguma coisa que quero retomar e que, então, não consegui dizer... para mim, é claro, e para o Outro principalmente. Naquela ocasião eu postulava um operador, conceito roubado da Física, que fosse capaz de neutralizar as oposições, de tal modo a me permitir conceber o que se passava de equívoco no nível do inconsciente. E havia a aspiração, um tanto ou quanto totalizante, se não totalitária, de abranger o campo das ciências. É em torno disso que começo hoje, tentando conceber um pouco o espírito da coisa, para o qual ponho, como epígrafe, esse pequeno trecho de um poema de Blake: Ver o Mundo num Grão de Areia E o Céu numa Flor Silvestre, Segurar o Infinito na palma da mão. E a Eternidade numa hora. Por quantos Seminários, como este, já tenho fracassado, pelas noites, até hoje, em topar com esse espírito da coisa. Não sei porque, de quantos, já perdi a conta, e não sei quantos me faltarão, talvez, de completar os mil-e-um da outra estória, antes ainda que o Sultão já não ordene de cortar minha cabeça. No entanto, é não ainda. Justo por isso, desse mais, ainda, aqui re-estou, com o que possa me aviar sobrevivência. *
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Houve um tempo em que a psicanálise foi talvez uma esperança de curar-se ou, pelo menos, de minorar-se o mal-estar, que, aliás, é crônico, do nosso estado de falante. Mas hoje é um tempo em que ela veio a ser bem mais do que só isso, pois ela hoje vale a tentativa mesmo de sobrevivência, naturalmente para os viventes que sobrem. Não sei, também, se nessa tentativa ainda precisamos repetir Lacan naquelas suas primeiras andanças pela vasta sapucaia das culturas e, como ele, caninamente fuçar por tantas latas desse grande lixo e porcamente se espojar na lama do seu suco, aonde talvez topar com um resto azado, de alimento ainda não podre, para esse filhote de monstrengo outrora parido pelo velho Freud. É mais, quem sabe, o tempo de insistir no modo enxuto das últimas gestões de Lacan, na via de um possível ressecamento, em rigor obstinado, desse lixo, até a conseqüência ulterior da exumação, de debaixo do seu pó, a que ele, aliás, há regressado, do provável esqueleto, ainda que fóssil, que empreste acaso aprumo a qualquer expressivo movimento da matéria mole que, por vezes, recobre, com sua representação multifária, esse esqueleto. E desse osso, distinguir os alvéolos e os côndilos, os fustes e as junturas, dos quais possamos, vale tentar, resumir, por escrito, as interações que, porventura, encontraremos como mínimas. Mas é talvez pedir demais à nossa sorte, por esse encontro, assim de perto, antes ainda que nos percamos em quantos descaminhos perdulários desse labirinto nosso de cada dia, em falações intermináveis. Encontro assim tão de perto com esse umbigo de Freud, com esse osso de Lacan, com esse NADA ou coisa-alguma, que presumo em meu aparte. Estou no parágrafo 13, do capítulo 13, do Bahagavad-Gita. Como sabem, é parte daquele texto enorme do antigo pensamento hindu, considerado a maior epopéia da literatura universal, pois que consta de noventa mil versos. É um dos cantos, o Sexto, sobre o episódio do Maabarata. É a narrativa, em epopéia, de uma grande guerra de destruição total, metáfora do encerramento de um ciclo, fim de um tempo, onde um guerreiro chamado Arjuna é ensinado por Krishna, um outro guerreiro que é ali chefe de um clã, o clã dos Yadavas. Krishna se revela para Arjuna como sendo a encarnação de Vishnu, que é o
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deus supremo daquela metáfora religiosa, e que é um pouco como uma espécie de decantação de Shiva, o grande movimento universal, a grande mutação, o grande hino das mutações. Vishnu mais para o lado da criação e Shiva mais para o da destruição, sendo porém que o próprio Vishnu é também decantado nas duas potências. Em suma, das possibilidades de surgimento e desaparecimento eternos do grande Campo, chamado Brahma, de onde certamente vem o nome do nosso chope. Neste parágrafo 13, quando Arjuna pede a Krishna que lhe ensine sobre O Campo, aí no caso nomeado mais caracteristicamente como Natureza, Prakriti para eles, e sobre O Conhecedor do Campo, que eu chamaria de Sujeito e que ele chama de Purusha, Arjuna recebe a seguinte resposta de Krishna: “Vou te declarar o objeto único para o qual o espírito de conhecimento espiritual deve se voltar, no qual a alma, aqui velada de sombra, deve se fixar para encontrar sua natureza e consciência original de imortalidade, e dela gozar. O Brahma eterno, supremo, que não podemos chamar nem de existente nem de não-existente, nem de causa nem de efeito”. Eis o objeto que Krishna oferece como essencial a Arjuna: o Brahma, que nem existente nem não-existente, nem causa nem efeito. No ensino da Gita, o Purushotama − a alma suprema, o espírito universal − e a natureza suprema − Para-Prakriti − são tomados como idênticos. São manifestações às vezes aparentemente diversas do mesmo, ou melhor, duas maneiras de se considerar uma única e mesma realidade. É a consideração dessa mesma realidade, como eles dizem, que se apresenta ora como Purushotama − espírito universal, sujeito −, ora como Para-Prakriti − natureza, objeto. Sabemos também, pela transmissão da Verdade Védica, mais antiga que o Bahagavad- Gita, da estrutura dita tripla do Burusha, e da estrutura dita dupla da Prakriti. Se tudo isso é a mesma coisa, se são modos de aproximar a mesma realidade, isso se apresenta por uma via, tripla, por outra via, dupla. Mas as duas coisas são a mesma essência, as duas se realizando, nesse pensamento oriental, na mesma substância: Brahma, o espírito da coisa.
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No segundo século, já depois de Cristo, um filósofo pertencente a essa seqüência, chamado Nagarjuna, traz a doutrina do vazio universal. Vamos reconhecê-la na idéia do vazio − bem mais tardia talvez − do Zen, por exemplo, como na Ioga. Os filósofos ocidentais, considerando essa idéia de vazio universal − coincidente com Brahma, na verdade −, pensavam-na em termos de coincidentia oppositorum: isto justamente que, no regime de algumas mitologias e de algumas práticas religiosas, se pretendeu alcançar, e que é negado pela psicanálise referida à impossibilidade dessa coincidentia oppositorum, justamente por nossa condição de falantes. Há que proibir, interditar, por impossível, essa coincidência. Há por aí filósofos como Nicolau de Cusa, Wittgenstein, Lacan, que têm a ver com isso. Esse Nagarjuna, eu o vejo muito parecidamente com Lacan, porque Lacan, para mim, é como se fosse o Arjuna, de quem Krishna tivesse sido Freud. Tal tipo de “filosofia” rejeita qualquer sistema filosófico e demonstra a impossibilidade de se exprimir A Verdade última. Nagarjuna acha que há duas espécies de verdade: as convencionais, que são de utilidade prática; e a última, que é a expressão do real, justamente aquilo que nós outros dizemos que é impossível de ser escrito. O Bahagavad-Gita é muito especial porque, depois de muita polêmica dicotômica no seio dessas filosofias orientais, durante centenas de anos, uns a favor da espiritualidade absoluta e do desprezo total dos comportamentos cotidianos, e outros a favor dos comportamentos cotidianos e, portanto, afastados da possibilidade de salvação, chega o Bahagavad-Gita como uma verdadeira teoria psicanalítica do nosso tempo e faz uma conjunção dessas duas posturas, mediante o chamado Ioga de Ação. Ao contrário do que dizem as más línguas, a psicanálise também é o discurso da ação. Então, eles arrematam numa compleição, os seguidores do BahagavadGita, a possibilidade de se estar na ordem do espírito e também na ordem do cotidiano, da prática, mostrando que tudo depende da postura do sujeito diante dos acontecimentos, dos eventos, e nada mais. Ou seja: é, talvez, um primeiro surgimento da idéia de graça, em todos os sentidos. A mesma
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que está no chiste, que está no gratuito do gozo. Mas, para que isso tenha graça, é preciso, dizem eles, que se promova a renúncia aos frutos dos seus atos. Não vamos botar odor de superego nisso aí, porque não há. Essa tal renúncia aos frutos dos seus atos não é, para eles, desistir do desejo, como acontece em certa prática budista, não é afastar-se das porcarias cotidianas do falante, mas simplesmente produzir um modo de se posturar que não é senão o que a psicanálise, sobremodo com Lacan, vem dizer que é da ordem de se saber que isso tudo nos vem do Outro. Eu mesmo nada tenho com a origem disso, embora eu usufrua, goze, gratuitamente, dessa graça. Mas isso não é meu, não se origina em mim. É o distanciamento do Ego em relação ao sujeito. Nessa prática do distanciamento constante − o que me faz lembrar certo dito de Charles Fourier, freqüentemente mal tratado, quando lançou a idéia do écart absolu −, ensinam que a questão toda, segundo Krishna no Bahagavad-Gita, é poder estar com a mira naquele objeto essencial que é o Brahma, o qual, no discurso de Nagarjuna, equivale ao conceito de Vazio. Nossa idéia ocidental, euclidiana de formação, nos figura esse vazio como ausência, digamos, de substância. Em nossa expressão, vazia, ao contrário de uma porção de coisas, é o lugar onde nada há, mas nada no sentido de carência, absoluta, de não-substância. Ora, é absolutamente impossível uma não-substância, uma não-coisa assim, senão como pura negação. Isto é dizível, mas como pensar essa não-coisa como tal? Daí que, lá no pensamento desses filósofos orientais, e creio eu que no pensamento de algum filósofo ocidental mal entendido, esse vazio é a coisa, das Ding, é o espírito da coisa, ou a coisa do espírito. Em suma, é o espírito − não há outro. Ou seja, é o real, de simplesmente haver − é o há. No que há... e não posso continuar a frase, quando só posso dizer há, podendo ser um berro, no que só posso dizer ah! e mais nada, estou diante dessa coisa, desse vazio. Portanto, o vazio não é a falta de há(r). É o ah! E a falta mesma é Isso. E por que há? Em quê há? E o que há? É aí que se coloca o real.
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Gostaria hoje de fazer uma pequena tentativa de retomar essas coisas chamadas real, simbólico e imaginário, ressecando mais, rigorizando o conceito, de tal maneira que sobre muito pouco para o que há, sobre só há. Entendo perfeitamente bem, porque Freud e Lacan me ensinaram, que aquele caráter tríptico e díptico, três em dois, de Purusha e de Prakriti, estão aí necessariamente, tudo isso resumido no caráter do Um, aquele que tentei tratar aqui, de vezes anteriores, e que é esse instante bífido, inapreensível, fundamental, que está no Parmênides lido por Lacan em Platão e que chamei de Zezéro ou PontoBífido. Aquilo é Um, eterno. Podemos, de modo sonoro, traduzir o Aion ou Éon, do grego, simplesmente o escrevendo É-Um, cujo caráter tríptico é, nós já sabemos: real, simbólico e imaginário. Se essas coisas todas fazem Um, de algum modo, três e dois têm que se engrazar. É preciso que a coisa seja tripla por uma razão bífida, de uma lógica bífida e que instale um tríptico. Mesmo a mais recente física, essa ciência que anda ultimamente mais deliciosamente delirante do que a maioria dos psicanalistas pode acompanhar − portanto, os psicanalistas deviam estudar aquilo −, cada vez mais se dá conta de que O Campo, aquilo de que Einstein queria fazer uma teoria unificada, é absolutamente neutro, vazio, mas vazio num sentido material, ainda que energeticamente concebido. A matéria é o vazio, no sentido originário em que eu vinha colocando a coisa. E esse campo se condensa, lá se sabe por quê − uma chulipa divina, sei lá, la chiquenaude, como diz algum escritor francês −, se mobiliza, como se fosse uma água-máter universal, e chega a engrossar pequenos nódulos, altamente mutáveis, inconstantes, velozmente transformáveis, que são como aquelas coisinhas que, muito tempo depois de se desistir de supor que o átomo fosse atômico, indivisível, se começou a considerar como as estruturas mínimas, as estruturas elementares da ordem material, como são, por exemplo, os elementos do núcleo como os elementos da camada externa de um átomo: os elétrons, os prótons, etc., pequenos cocozinhos de mosca subatômica que nossa mente às
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vezes não acompanha, às vezes apenas registra por aparelhos intermediários e às quais, cada vez mais, os próprios físicos vêem que não podem chamar, nem mesmo a isso, de partículas elementares. E chegam à conclusão, assim parece, de que não há partículas elementares: há apenas grande movimentação de um campo talvez originariamente neutro que aqui e ali se condensa em partículas, não elementares de jeito nenhum. São nódulos, instantes de condensação, se produzindo numa infinidade de diferenças, a partir de coisa-alguma, de nada, de vazio natural. Chamem lá como quiserem, de energia, está na moda, essa coisa neutra que existiria por aí, que recomeçaria seu movimento aqui e ali. É claro que nossa perspectiva sobre isso é altamente falsa, porque somos muito degavar. Essas coisinhas correm, e com tanta pressa que o nosso tempo resta completamente inadequado. Daí que há um Einstein com toda aquela coisa de uma relatividade do movimento, quando o antes e o depois se tornam bastante periclitantes, e quando o só-depois da psicanálise, por exemplo, é perfeitamente viável, mesmo no campo material. Como será esse Real, esse Nada, essa Coisalguma? Podemos encontrar várias maneiras de abordagem. Estão aí, de um ponto estritamente lógico, o real, o simbólico e o imaginário, de Lacan, onde me situo. Mas quero espremer um pouco isso. Que importa, para nós outros que estamos querendo saber o que se passa no âmbito da cuca, do chamado psíquico, que isso seja fantasia do físico? O físico poderia insistir em dizer que está tentando descrever o que acontece no real − no que ele não insiste tanto hoje. Nós outros, sabendo que isso só se estatui como fantasia, poderíamos dizer que isso é da ordem do significante e da ordem do discurso, e que, portanto, porque isso funciona assim, no simbólico, isso é projetado pela cabeça do físico, que sabe muito bem hoje que ele, como sujeito, é participante do fenômeno, e que isso está inserido no discurso da física. Assim como podemos pensar, com certos místicos, por exemplo orientais, que há certa unicidade, um monismo, da estrutura do simbólico, com a qual articulamos esse discurso, com o próprio real. Para não cairmos em desvios perigosos, podemos dizer que isto pouco importa: seja que o físico, ao dizer isto, esteja apenas descrevendo, não a tal
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matéria que ele aborda, mas a matéria significante, ou que ele esteja mesmo descrevendo essa matéria, porque acha que talvez uma seja correspondente à outra. O que importa é que, do ponto de vista do surgimento do discurso, a coisa é assim, e o delírio do físico é assim. E se é assim, seja correspondente ou não à matéria real, que ele acha que aborda, é, pelo menos para nós, correspondente aos modos de estruturação do Simbolizável. Botem isso no partido que quiserem, enquanto houver “abertura” pelo menos. Partindo daí, tento me propor uma acomodação do raciocínio bífido com o raciocínio trinário, trino, de real, simbólico e imaginário. O que seria esse real, esse vazio, do ponto de vista de uma lógica do bífido, do Zezéro, do Revirão, como quero chamar? A estrutura do revirão é uma estrutura de oposição. Eu quis dizer que todo impacto real que resulta em significante se apresenta, necessariamente, como um revirão em percurso sobre uma superfície unária, em oito interior, no qual a posição tética de um sexo impõe a posição anti-tética, ainda que sombreada, do outro sexo. Também no regime da língua, a cada coisa dita corresponde um não-dito que lhe é oposto, mas que está presente em sua ausência, ainda que seja por ressonância. A cada experiência daquilo que chamo de halo significante, entre dia e noite, sim e não, preto e branco, etc., se um é proferido, o outro lá está como opositivo contraste obrigatório desse proferido. Ora, poderíamos fazer um esforço de imaginação e figurar o que há de conjunção ou disjunção possíveis nessa bifididade. Vocês percebem, ou pelo menos espero que seja assim, é a minha experiência, que não posso atualizar um e outro ao mesmo tempo. É o impossível da relação sexual a cada halo. É mesmo este o real do halo. *
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Posso fazer um raciocínio algo lateral para tentar juntar isso. Imaginem velocidades tão grandes de percurso sobre a contrabanda, sobre o oito interior, acima da velocidade da luz, e nomeiem isto de tal maneira que o ponto mais começa a se deslocar e passar a menos, e voltar a mais, e
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assim por diante. A velocidade é tão alta, ou relativamente tão alta, que, justo quando mais aparece menos, também aparece que as duas coincidam para nossa conceituação. Isso é que quero chamar de Real, ou seja, há originariamente uma oposição que eu qualificaria de neutra porque os opostos coincidem, como naquilo que chamaríamos de coincidentia oppositorum, por razão de uma velocidade infinitamente grande. Dá para inventar esse romance, embora não possamos bem concebê-lo. O que posso pensar de real é que a bifididade faz aí unicidade simultânea dos dois momentos do ponto-bífido de tal maneira que, ainda que tentasse fazer um grande esforço, se a coisa funcionasse assim, me seria impossível tanto distinguir o mais do menos nessa oposição, como tomar partido para mais ou para menos porque, quando um deles comparece, não é como eco alternado que o outro comparece e, sim, como a mesma coisa. No instante do É-Um velocíssimo do acontecimento, isso é um bloco só. Por isso venho a chamar isso de impossível, porque, para mim, é impensável no que é indiscernível, logo inapreensível. Então, há uma neutralidade aí. A partir do evento em que não haja mais coincidência, quer dizer, quando o mínimo lapso compareça entre o surgimento, o proferimento de um e o de outro, entro logo num problema muito sério, de um verdadeiro antagonismo emergindo dessa oposição, pois ou bem digo um ou bem digo outro, naturalmente que com o eco do outro e com o eco do um, mas não simultaneamente e, sim, alternadamente de jeito veloz. Também, é de se convir que, no que não posso tê-los simultaneamente, posso ter essa não-simultaneidade, essa alternação, ou bem como simétrica, ou bem como assimétrica. No caso do Simbólico, por exemplo, a alternação é simétrica em relação, digamos, à eqüidade, à equivalência de sua força de presença, de surgimento, de proferimento. Por exemplo: quando digo branco, ainda que haja preto como eco disso, é o branco que está presentemente inerte. Há inércia do branco que se apresenta aí. Há, então, simetria: quando digo branco, preto imediatamente pinta, ou vice-versa, ou mediatamente num certo lapso. Haver inconsciente talvez seja simplesmente o fato de que quando digo branco pinta preto em eco ou ressonância, e isto não é simultâneo, mas alternado. Temos
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aí uma oposição não neutra, mas simétrica. Já no caso de uma grande inércia de um dos sexos, quando o outro não pinta, ou demora demais, teríamos uma oposição dissimétrica, ou seja, alguma força, alguma inércia, emprestada a um dos partidos, e se fica estabilizado, pelo menos por um tempo bastante longo, nesse lado. Então, venho de colocar que, essencialmente, o real é a neutralidade do bífido. Considero isso impossível porque o meu aparelho de abordagem é necessariamente simbólico e, não, neutro. Ou seja, o andrógino universal, o vazio, o espírito da coisa, é essa neutralidade que não posso pensar nem dizer, mas, simplesmente, abordar por esse caminho longo que venho riscando. É uma oposição simétrica o que podemos qualificar de simbólico, ou seja, o antagonismo entre os dois sexos do halo é alternado. Uma oposição dissimétrica, quer dizer, inércia de um dos sexos, é o que chamo de imaginário. Há, aí, razão bífida do espírito da coisa, e a razão trinária da minha possibilidade de o abordar. Como a dupla estrutura da Prakriti e a tripla estrutura do Purusha daqueles orientais. Mas a coisa não é tão simples. Talvez se possa dizer que o real é oposição neutra no seu regime originário, mas que ele sofre, por interação borromeana, a intervenção dos outros registros. Assim, num regime já não originário, mas primário, o real teria uma oposição simétrica e isto por investimento do que é específico do simbólico, como verdadeiro refreamento do Campo, do real. E se isso se refreia ainda mais, se imaginariza, então, secundariamente, o real se submetendo a uma oposição dissimétrica, ou seja, se afeiçoando ao imaginário. Do ponto de vista originário, o simbólico é simétrico, isto é, nossa conceituação, nossa abordagem do simbólico não poderia operar a não ser partindo de sua origem de simetria na oposição. Simetria aí é valor de inércia, alternada, igual para cada um dos dois. Primariamente, ele ainda se mantém simétrico, digamos que com maior lentidão, até que, secundariamente, possa vir a se tornar dissimétrico por estase, por estagnação. Já não é mais o puro simbólico, já é sua imaginarização.
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O imaginário, este sim, é originariamente dissimétrico, ou seja, o conceito de imaginário é aqui conceito de dissimetria, reforço de um dos sexos da bifididade, e ele continua sendo dissimétrico, digamos, primária e secundariamente. Ele é mais reacionário às mudanças, mais inerte. Façamos o quadro do regime das oposições:
O real é originariamente neutro. Isso é que podemos chamar espírito, ou matéria. Primariamente, ele é simétrico, é presença igual para os dois sexos: é o real do espelho. O simbólico é espelho, mas o real não é nem isso, pois só consegue ser Coisalguma. O espelho já é bífido demais para ser só real − não estou falando da imagem especular e, sim, do espelho. O real que, primariamente, já sofre a intervenção do simbólico, secundariamente é dissimétrico e, portanto, pode se tornar sintoma, por imaginarização. O simbólico é simétrico originariamente. Então, é espelho. Ele é primariamente simétrico, também, o que significa que é aquilo que chamamos de renegação (Verleugnung). Secundariamente, ele pode tornar-se dissimétrico. É o que chamamos de recalque (Verdrängung). O imaginário é sempre dissimétrico. Talvez, em breve, eu venha a dizer que, em secundariedade, ele começa a perder sua dissimetria, mas isto fica para depois... No regime do real, do real puro enquanto neutro, temos o que chamamos de Vazio. É o Vácuo que freqüentava a física antiga, onde se dizia que a natureza tinha horror ao vácuo. Hoje, é de se dizer o contrário: parece que a natureza
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só quer o vácuo, só o vácuo, só vaco − é por onde agora a natureza nos cheira. É a Coisalguma de que tento falar, é o Nada. Não a mônada de Leibniz, mas mon nade. É a idéia que se pode fazer do andrógino, e que é essencialmente nenhures, quer dizer, em qualquer parte. A simetria essencial do simbólico se apresenta nítida nisso que chamo de Zezéro, ou Revirão, ou Ponto-bífido, ou a simples superfície do espelho, em contrabanda unilátera mas sexualmente equívoca. E o imaginário não é senão a possibilidade de forma, de Gestalt e, portanto, de imagem especular. Vejam que estou mimetizando a possibilidade de uma Teoria de Campo − Unificado para a psicanálise. Juro a vocês que não é minha, é de outros e de Lacan. Isto, talvez, possa colaborar para esclarecer certos fenômenos com que a psicanálise lida, sobretudo, quando se trata de pensar onde começa um registro, onde termina e onde começa outro. *
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Quando se trata do imaginário, é o que mais nos arresta. Se podemos imaginar a neutralidade absoluta, a coincidência dos dois opostos do bífido, o real como real, e um retardo efetivado sobre isso, fazendo uma pulsação em alguma sístole/diástole, prontificando a equivocação do simbólico, e depois um retardo mais pesado retendo o movimento, vindo a tomar alguma forma, se imaginarizando, vemos que, nalguma metáfora que tome o delírio da física como retrato, eu estaria falando de alguma coisa que só se apreende mesmo por procedimento relativista, que é a velocidade, o movimento do universo, ou o movimento da cuca. Poderíamos, então, ainda que metaforicamente, dizer que o espírito, isto é, a matéria, é movimento, velocidade, que, quando se condensa um pouquinho, aparece como bífido, como oposição, e, caso se condense mais um pouco, agora cada sexo para o seu lado, se imaginariza. Esta metáfora serve para a física, e pode servir para a psicanálise... O mundo da física, hoje, é o jogo dessas oposições: matéria/anti-matéria, partícula/anti-partícula. Estou dizendo algo
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que pode parecer herético ou absurdo, pois, simplesmente, pouco importa se isso é matéria, se isso é simbólico. O que importa, sim, é esse Haver que acaba dando nessa zorra, nisso de o espírito se transformar em tudo isso que para nós é simbólico. Simplesmente comparecendo, então, a bifididade, onde quer que ela apareça, mesmo na chamada materialidade. E o simbólico é isso... No seu delicioso livrinho, Os Nomes Indistintos, Jean-Claude Milner, no capítulo chamado “Heresias”, diz: il y a − é o real; il y a de lalangue − é o simbólico; il y a du semblable − é o imaginário. Esse il y a de lalangue é o modo como nos aproximamos do simbólico, só que a língua não é só simbólico coisa nenhuma − ela é potência do simbólico. E ele não nega isso: alíngua é simbólica, é imaginária e é real. Distinguir o simbólico, não por pura emergência da língua, mas como emergência, onde quer que haja, de bidifidade, me parece mais rigoroso. O que é simbólico na língua é a bifididade que ela porta, mas ela é também imaginária e sintomática. As coisas ficam piores se rigorizo por este lado, pois se vou surpreender o simbólico onde quer que o supostamente sujeito se apresente como bífido, em oposição, vou ter que surpreender, por sua vez, o imaginário, onde quer que, desta bidifidade, um dos partidos tome o poder: o poder de um hádron qualquer de núcleo atômico, ou de qualquer uma das partículas, seja também o poder de uma palavra, ou daquilo de que o analisando sofre. As coisas ficam assim um pouco mais difíceis, pois o que quer que tome forma merece agora a desconfiança de ser do imaginário, e o que quer que se biparta pode arcar com o simbólico. Noto que, mesmo entre seguidores de Lacan, embora Lacan sempre me tenha parecido muito claro, isso fica muito confuso. Acusa-se isso ou aquilo de imaginário, mas o que aí não o é? Diz-se que é preciso fazer o sujeito simbolizar isso ou aquilo, mas como? Vocês verão a tentativa que farei, este semestre, de retomar os conceitos a partir dessas coisas colocadas aí. Algumas coisas vão cair em periclitância... Como somos invadidos despoticamente pelo imaginário, é uma dificuldade o trabalho analítico, pois revirar a coisa não é fácil. Tomemos, por exemplo, um pequeno caso da matemática. Para se obter
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um conjunto, faz-se um diagrama de Venn, um cinturão, e, ali dentro do círculo de Euler, se arrolam os elementos. Para se dizer que cada elemento x pertence ao conjunto y, é preciso que cada um dos x seja de algum modo semelhante ao outro − e isto é da ordem do imaginário, segundo este modo que hoje estou colocando. O chamado conjunto vazio − que, só por apelidá-lo de conjunto, já o situei no simbólico e já o imaginarizei − é, na verdade, real. O único conjunto simbólico é o Vazio. Como podemos arrolar diversos elementos no mesmo cinturão senão por alguma semelhança? O conjunto vazio é o nome simbólico do real. Para dizer conjunto vazio, tenho que imediatamente colocar vazio e não-vazio. Aí estou no simbólico, na suposição de que o conjunto vazio aponta, indica o real, indica Vazio. Aliás, o que é específico de cada registro, no quadro que coloquei, é a linha do originário. Real mesmo é neutro, simbólico mesmo é simétrico e imaginário mesmo é dissimétrico. Apenas, minha tábua faz aquilo que Lacan, num certo Seminário, propôs como interseção de “simbolicamente imaginário”, etc. Por isso chamei de primário e secundário. Se naquela neutralidade alguma coisa se cinde, o que é do real começa a funcionar simbolicamente. Quero dizer que só posso contar por um registro. Lá na casa dos físicos existe um éter, um vazio energético − que está de novo em plena moda − que se condensa aqui, ali e, logo que se condensa, se apresenta como bífido, matéria/anti-matéria, etc. Isto é simbólico, ainda que a física diga que consiga provas de que haja mesmo esse troço. É o sym-bálou: os dois são lançados juntos. Estou simplesmente deslocando um pouquinho, pois o conceito de simbólico tem que ficar mais seco. No simbólico, real e imaginário se alternam. Os dois juntos só se atualizam como real. Por exemplo, na língua, dizer sim propõe um não, ou o pós põe, tanto faz, assim como, no caso da física, essa energia sonhada pelos físicos pinta, primeiro, como bifididade e logo se apresenta como Gestalt. Não é possivel abordar coisa alguma fora dos três registros. Somos de certo modo prisioneiros do imaginário e, se alguma diferença portamos enquanto falantes, é que há uma insistência simbólica, que não sei
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de onde veio, em nossa estrutura, que promove a bifidização de tudo. Aí é que habita a psicanálise, onde mora o ato analítico, bem como toda tentativa de cura: fazer retornar o falante à sua condição fundamental de simbolizador, ou seja, deslocá-lo das suas estases imaginárias. Deslocar não é destruir o imaginário, é simplesmente torná-lo equívoco. E isto não abole as opções sintomáticas. Há compromissos diplomáticos − como chamo naquele texto intitulado Gerúndio − de sobrevivência. Isso, por exemplo, que chamamos de corpo, é decantação imaginária, mediante um processo muito longo que podemos acompanhar desde os elementos atômicos àquelas construções moleculares, macro-moleculares, celulares, e assim por diante. São grandes sistemas imaginarizados, quer dizer, conformados, e que evitam, ao máximo custo, qualquer ressurgimento de bifididade. Como pode um sistema sobreviver senão na evitação do seu não? É isso, também, que costumamos chamar de neurose. *
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No percurso que pretendo seguir, cada conceito deve ser retomado. O que é desejo, por exemplo? Enquanto tal, ele depende estritamente do simbólico, mas na história particular de cada um, Freud diz que se coalesce um desejo indestrutível. Que desejo é esse? O originário? O desejo enquanto movimento incessante na bifididade? A formação de determinada configuração como ótima para tal sujeito? O funcionamento do desejo cujo real é surgimento de espelho, ou processo de dissimetria em função de recalque? Da próxima vez vou falar do NÃO.
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Para andar em corda bamba, ou à beira de abismo, a gente tem que dar a mão a algum pai, ou a algum mestre. Pode ser que segurar aquela mão um pouco, pela caminhada, evite que alguma vez se tropece e caia. Mas, eis senão quando, chega o momento em que se quer andar sozinho, e aí aumenta o risco. É quando se precisa caminhar com mais cautela, talvez mais devagar, às vezes com idas e vindas, avanços e retrocessos, tateando as possibilidades do caminho, sem que se venha a esborrachar lá embaixo. Momentos críticos, quando se tenta algum passinho de mão solta... Temos um vasto patrimônio, legado pelos nossos antecessores, que nos permite caminhar mais ou menos confiadamente pela selva psicanalítica. Entretanto, outros passos precisam ser dados. E, freqüentemente, não ousamos conjeturar suas possibilidades... No Seminário sobre As Psicoses, Lacan trata longamente da emergência do significante, toca na função do Nome do Pai e, portanto, também, da emergência, da negação − que, aliás, é tema do nosso próximo Mutirão de Psicanálise que começa amanhã. Mas Lacan nos deixa decepcionados, pois apenas coloca a questão da emergência de um novo significante, ou melhor, não a coloca, só endereça a possibilidade de se pensar, de se perguntar, como é a emergência de um novo significante.
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Mas logo abandona isso e aconselha que não se preocupem, pois jamais vão encontrar isto na prática. Muitos anos passados e aí está o Seminário de 17 de maio de 1977: Vers un Signifiant Nouveau − Para um novo Significante. Naquela ocasião d'As Psicoses, Lacan, então − que diversas vezes já havia comentado que não fazia perguntas que não soubesse responder −, como não tivesse ainda nenhuma resposta, não se perguntou sobre o signifiant noveau. Deixou, talvez, como patrimônio da sua herança, essa questão que deve ser olhada de perto, mesmo que não se saiba responder como se dá a emergência de um novo significante. É um legado essa herança que devemos acolher. Herança, no sentido da transmissão. Não sou herdeiro de Lacan no sentido da cafetinagem do seu espólio − isto cabe a outrem, como sabem. *
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Já citei outras vezes O Grande Tratado (Ta Chuan) que compõe O Livro das Mutações, I Ching, nesse trecho em que se diz que “o grande Começo Primordial (T’ai Chi) representa um papel importante na legítima filosofia chinesa. Originariamente Chi é o traço, a crista, o sulco, a ruga, uma simples linha , simbolizando o estabelecimento de unicidade, ou unidade. Mas uma vez colocado o traço da unidade, surge a dualidade: um acima e um abaixo. O elemento condicionador passa a ser designado por um traço indiviso, ao passo que o elemento condicionado é representado por uma linha dividida . Estas são as duas forças primárias mais tarde designadas como Yang (ou o princípio claro, que é princípio condicionador ), e Yin (ou escuro, que é princípio condicionado )”. A partir da duplicação e triplicação destes dois sinais teremos os trigramas e os hexagramas. É interessante notar esse fundamento lógico do I Ching, que é de grande ambigüidade na sua primeira posição. Se considerarmos uma tabula rasa, um papel em branco, um absolutamente não-marcado originário, como se vê claro na aritmética de SpencerBrown, e se aí comparece um traço, um risco qualquer, este risco é de grande ambigüidade, pois, se ele marca alguma coisa, marca como posicionamento de si
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mesmo, como traço unário, portanto representando a unidade, condicionando porém imediatamente, por seu simples surgimento, a distinção do acima e do abaixo: . Nesta representação, apenas cruzei as representações dos dois princípios. Há unidade e há, imediatamente, dualidade: princípio claro/princípio escuro, masculino/feminino, yang/yin. É preciso considerar essa ambigüidade e, dela, tirar algum processo de decadência, decadência lógica, rebaixamento de nível, para podermos situar a distinção sobre essas duas representações gráficas. Se, traçando um yang, um traço unário, temos o princípio criador ou criativo, imediatamente a dualidade é condicionada: emergência de traço, e temos a unidade surgida, em seu aparecer, como propiciadora imediata de ambigüidade entre seus dois lados possíveis. Adiante, vai ressurgir o mesmo traço unário como representante de uma situação demarcada, de esclarecimento, ou seja, daquilo que pode ser referência para um fechamento conceitual. Embora exista equivalência, na leitura do hexagrama, entre a ambigüidade do traço unário e a duplicidade referente aos dois lados que ele aponta, isto vai comparecer numa decadência conceitual, não mais como representante de postura imediata do um reclamando o dois, mas como marcação do Masculino, e o outro na abertura, na ambigüidade retomada em traço aberto, como Feminino. Mais adiante, num outro capítulo do mesmo Ta Chuan, temos que “o Criativo” − o traço unário, o yang −” é a mais forte de todas as coisas do mundo. A expressão de sua natureza é invariavelmente fácil, de modo portanto a dominar o perigoso. O Receptivo” − o yin, o traço partido − “é a mais devotada de todas as coisas. A expressão de sua natureza é invariavelmente simples, de modo portanto a dominar os sentidos”. Poderíamos ler isto da seguinte maneira: o posicionamento de uma marca delimita um campo e tira a minha dúvida, a alternação de um lado para o outro. O traço unário comparece agora como decadência da ambigüidade que portava anteriormente, ou seja, passa a ser limite de um campo, de natureza fácil e dominando o perigoso: daqui para lá não se vai. Se as coisas estão demarcadas diminui-se o risco, domina-se o perigo.
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Já o outro, não é a mais forte de todas as coisas, é a mais devotada, e em sua natureza predomina o obstrutivo. Ele se mantém sem decadência − a decadência é do primeiro, que era ambíguo − no que o primeiro decai para baixo deste e este se torna o lembrete de que há outro lado. Primeiro, ambigüidade do unário, uma unicidade propõe a dualidade, aí é o equívoco absoluto. Depois, a representação dessa bi-lateralidade e, depois, a decadência daquele primeiro um para baixo, como limite demarcador: aí ele deixa de ser traço unário e passa a ser letra:
Interessante que no próprio jogo do I Ching − não se sabe por que, embora alguns comentaristas digam coisas − se costuma chamar o yang de nove, 9, e o yin de seis, 6. Eu poderia, então, num abuso de interpretação, dizer que o traço unário propõe o dois, e que a decadência do um, ou seja, sua repetição depois da binariedade, propõe o três. Estão aí os três números primeiros como fundamentais da série. O número 3 como fundador do número de série numérica, donde sua multiplicação para a nomeação: três vezes um, 3; três vezes dois, 6; três vezes três, 9. Isto é apenas conjetura, pois não tenho provas.
O que agora me interessa é essa razão do traço unário e sua decadência sobre uma superfície em tabula rasa, sobre um nada radical − que apresentei da vez anterior −, que não é um vazio senão pela constância substancial de coisalguma, em neutralidade. Ora, a banda de Moebius − que já considerei, no Seminário intitulado A Música, como tabula rasa onde as questões de orientação irão se
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escrever − tem seu percurso como a linha mediana que faz sua repetição, como borda, desenhando um oito interior sobre o qual tenho duas posições avessas para o que é considerado um mesmo ponto não-orientável mas que foi postulado por mim com dois sexos, para as duas posições avessas e consecutivas de um mesmo ponto. Temos assim a superfície de Moebius como sexuada, embora unilátera. Quando a superfície da contrabanda é considerada nesta partição sexuada, posso representar a simples linha do seu contorno como um traço, traço unário da formação significante, sem significação de espécie alguma, puro recorte, o Um do Zezéro que representa um Kua yang que me propõe imediatamente a dualidade da sua sintomática, quer dizer, da sua sexuação, da dupla sexualidade do seu movimento. Então, originariamente, tenho aqui representado o movimento do Um que é o conceito, e a duplicidade sexual desse Um. A decadência marginadora, limitadora, senão letrificante desse Um vai mudar a postura de um dos sexos. Escreve aqui a postura de um dos sexos, instalando significante. Agora, está instalado o significante. Entretanto, por razão da própria estrutura, no movimento sobre a contrabanda, se postura imediatamente, para mim, a possibilidade de um avesso disto, como decadente da bifididade. Estou dizendo que há um primeiro tempo de ambigüidade do traço: unariedade do traço e logo reconhecimento de sua ambigüidade. Decadência do traço como marcação, e o outro traço como avesso da demarcação.
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Na decadência, a simetria permanece, mas a dissimetria aparece, porque um deles é posturado como lugar apontado, e o outro, digamos, como avesso, como eco desse lugar − então, ele se dissimetriza aí. Gostaria de fazer a metáfora de que o lugar do revirão, naquele ponto a que ali está, aonde a coisa tropeça e vira para o outro lado, é assimilável ao significante indicado, ao significante enquanto tal. Por exemplo, se digo mesa, mesa se torna capaz de tirar o que é do referente e puxar para si o objeto. Uma pequena e absoluta dissimetrização. É como se o significante fagocitasse, ou como se se imantasse no valor de objeto: como se o significante imantasse para si o valor do objeto impossível. Então, a dissimetria se funda, pois um significante é amarrado, situado, letrificado por decadência da sua posição anterior, em parcialização, e joga fora um resto significante, que é eco, no sentido de avesso, disso que se colocou. Tentemos agora observar, na contrabanda, esse processo de decadência, que posso amarrar aqui como efeito de uma negação. O que está desenhado sobre a contrabanda é sexuação, por avesso e direito, da mesma posição de ponto. A superfície é a mesma, mas o ponto é bífido. Vou indicar a decadência, o rebaixamento dessa posição face a face, que não são duas faces na verdade, dessa posição bi-sexuada, para a mesma região, para a mesma região da superfície, para o mesmo segmento de superfície, onde um dos sexos se inscreve. Consideremos a linha que, em topologia, se pode chamar de mediana: linha mediana da contrabanda. Para essa contrabanda desaparecer como tal, devo operá-la por um corte mediano. Este desaparecimento é fatual. Se tirarmos uma beiradinha da contrabanda, cai uma banda bilátera e resta a contrabanda na sua estrutura unilátera. Mas um corte, seja ele mediano ou não, propõe uma bi-lateralidade e, se o fizermos medianamente, vai fazer desaparecer completamente a contrabanda.
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Por que não?
A decadência do traço unário, pela ambigüidade da sua bi-sexualidade, desenhada como dois pontos, bifidamente, face a face − digamos assim − na contrabanda, podemos escrevê-la como do mesmo lado, na mesma região. Podemos escrever isto simplesmente passando uma fronteira longitudinal sobre a contrabanda. Se traçarmos a fronteira mediana, ocorrerá que não poderemos percorrer com cores diferentes uma banda de Moebius, porque as cores vão se encontrar na mesma superfície, isto é, não é possível colorir continuamente uma superfície de Moebius com duas cores diferentes. Só é possível com uma, o que é prova da sua unilateralidade. Mas podemos, pela demarcação de uma fronteira longitudinal sobre essa superfície, colori-la com duas cores diferentes: preto e branco. A linha que separa o preto do branco, que separa uma faixa longitudinal de outra, é uma fronteira artificialmente instalada ali para representar, de maneira decadente, a bissexualidade do ponto-bífido. Essa decadência é que, ao invés de representar face-a-face, representamos faixa-afaixa, numa faixa e na outra, preto e branco separados, divididos, agora, não sobre o movimento mediano de contorno do oito-interior, mas pelo movimento repetido como fronteira mediana sobre a contrabanda.
Imaginem que a contrabanda seja uma estrada, na qual passamos a faixa amarela de trânsito, separando mão e contramão: para cá é mão, para lá é contramão, preto e branco. Agora podemos fazer sobre o preto, se respeitarmos a fronteira, um percurso longitudinal e voltar ao ponto de partida, caminhando apenas sobre o preto, sem transgredir a lei da faixa mediana. Podemos, também, caminhar sobre o branco e voltar à posição original sem sair do branco. Portanto, podemos andar na mão sem bater com quem acaso venha na contramão, porque respeitamos a faixa mediana que é fronteira longitudinal sobre a superfície,
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fronteira que é repetição da borda da contrabanda, como oito interior, sobre a própria superfície. Desenhar esta fronteira é, então, simplesmente desenhar medianamente o oito interior da borda sobre a superfície e utilizá-lo como linha demarcatória dos dois campos, que podemos agora percorrer, sempre no mesmo sentido, sem nos chocarmos com o outro lado. Aí, há a decadência da sexuação em sexualização. A faixa mediana proíbe mas não impede andar na contramão. Basta que esteja de um lado e se resolva transgredir a faixa amarela. Experimentem no trânsito. A gente passa se o guarda não está lá. Para isto há o guarda, há carros do outro lado, várias proibições que não funcionam o tempo todo, eles mesmos sabem muito bem disto, pois se ultrapassa é na contramão. A linha mediana ainda não é um corte, é apenas a demarcação de uma fronteira, a inscrição de um NÃO: “Não se pode passar daqui”. Isto é: faz-de-conta que a banda está cortada. Quando há faixa amarela no trânsito, nela está escrito, para quem sabe ler, que faz-de-conta que para além daqui é o abismo, não passa. Faz-de-conta que já está cortado e que não há a outra metade da estrada: “Não ultrapasse, tráfego proibido”. A linha mediana, então, se apresenta como não inscrito sobre a superfície. É uma coisa a que só obedeço, ou não. Não passo de um ponto para o seu alelo, na bifididade, a não ser percorrendo os dois lados. Se considerar os alelos assim, se os representar agora deste modo, apenas estou substituindo o real da contrabanda, como lugar do movimento de passagem de alelo para alelo, por um não inscrito sobre a faixa mediana e, em qualquer lugar, trocando de lado, posso passar. Ora, a cada postura do que chamo halo significante, é possível um significante se inscrever com suas posições alélicas em eco, como tenho dito. E tenho agora, a cada ponto em que esteja, com eco em outra via da mesma estrada, entre uma posição significante neste momento e aquilo que afirma o alelismo do significante, apenas um não de fronteira como definidor de lateralidade. Basta uma pequena guinada de volante para passar à outra via. Podem acontecer coisas terríveis, mas isto não impede que se passe, eventualmente.
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Quero começar assim, apenas começar a situar por aí a questão do não, da negação, para a psicanálise e, conseqüentemente, a questão da denegação que ali está em jogo. O que me impede de atravessar a faixa? Se me deixarem solto, eventualmente atravesso. Originariamente não me dou conta da faixa quando a atravesso. Só me dou conta se ela estiver com, por exemplo, cor, se me apresentar alguma diferença. Aí vem a questão da diferença, mas nada impede que a atravesse, senão que fique inscrito para mim, de algum modo, que eu não deva atravessar a faixa − que esse NÃO se inscreva. Esse atravessar implica um risco. Qualquer travessia é de um risco muito sério. Às vezes, é sem conseqüência, às vezes, não. A não ser que se articule uma estrada muito bem, então se pode ultrapassar. São certas articulações que funcionem numa boa, mas se tem que saber da estrutura do movimento da estrada, ou seja, da linguagem − se não, bate. *
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O que é esse não que se inscreve como nós, numa língua qualquer, senão aquilo que é referendado pelo Nome do Pai? É a maneira de se dizer não. Não do Pai que, no percurso absolutamente sem não e sem respeito por nenhum princípio de contradição − que é a estrutura do inconsciente, como dizia Freud −, impõe a estrutura do Recalque, recalque de um lado proibido. Dizer não é funcionamento alélico do halo significante. É simplesmente recalcar toda uma faixa alélica proibida. Essa posturação do não é o fundamento do recalque, que, este, é um não que se diz a uma face possível do percurso. E o retorno do recalcado é simplesmente − o termo não é bom − transgressão. Esse não que tenho escrito não admite cochilos senão por vias delongadas. Tropeça-se num não, então, tem-se que inventar algum artifício para passar por cima dele. Esse artifício é o que vai valer. É o caso do ato falho, da produção de um chiste, da denegação, etc., que são tentativas de driblar o guarda de maneira simpática e ir buscar o recalcado do lado proibido. Nada aí realmente impede que se passe para o outro lado, a não ser um processo de
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não, um processo recalcante. E como o inconsciente, na verdade, ao contrário do que alguns supõem, não suporta o recalque − o inconsciente é subversivo; os recalques são necessários não por razões simbólicas −, há um fundamento real e imaginário aí. A Renegação é da ordem de, reconhecendo o não como não, se dar conta de que há um sim do outro lado também. Não é, de modo algum, uma transgressão, um apagamento. É, ao contrário, uma das maneiras de se considerar esse não. Posso renegar, e mesmo na medida em que sei que estou aqui, que há um não dizendo que eu não vá para lá, justo porque há o lá. Assim reconheço que há o sim de cá, e o sim de lá. Tô no sim-de-cá-tô no sim-de-lá-tô... Este é o movimento da renegação que, depois de uma imposição recalcante, tem que se suspender de certa forma, porém reconhecendo o seu retorno, que é, também, uma maneira de reconhecer o retorno do recalcado. A negação fundamenta o que é da ordem do recalque. O inconsciente é pressionado, em sua fundação, por uma ordem recalcante, mas ele não aceita facilmente essa ordem, não é da sua estrutura originária. A estrutura originária do inconsciente é renegatória: ele não diz não, nem entra em contradição consigo mesmo. Se lhe perguntarmos se é preto, ele responderá eventualmente que é branco. Por que não? É de outra ordem o que vem introduzir o recalque. O que seria aí o processo Denegatório? Trata-se da Verneinung de Freud, que trabalha numa língua, coitado, que não lhe dá recursos. Isto pode ser até uma vantagem, mas é uma língua que não põe explícita diferença entre o não no sentido de negação e o não no sentido de denegação. O termo Verneinung participa mais dessa ambigüidade do que de uma distinção que me parece mais nítida e que a língua nossa permite. Negar é denegar. Abrindo o Aurélio, vemos que denegar pode significar simplesmente negar, mas com as conotações de, por exemplo, dizer que não é verdade, o que não é o mesmo que negar; desatender; indeferir; abjurar; não aceitar; desmentir, que não é o contrário de mentir, nem de dizer a verdade, e, sim, um ato de contestação. No processo de negação, formulado pela Verdrängung, originário ou qualquer um, digamos que isso se amplia, se amplifica para outros se-
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tores. É no retorno do processo de renegação que a respeitabilidade por esse não − respeitabilidade por parte do sujeito metido na sua vestimenta característica de sintomática −, por essa força recalcante, vai, pelo inconsciente, ser contestada, donde o sujeito ser levado a fazer mutretas − necessariamente denegatórias − tais como essa que se trabalha no trato analítico com o nome de denegação. Dá para se pensar esse conceito da denegação por duas vias. Uma, é a que Freud nos indica como sendo a denegação que porta sobre o recalcado. Ou seja, dito um não, permaneço na minha faixa, e à outra só vou por esse não. Ora, esse não é, em si, lembrete de que há outra faixa, senão não estaria lá. No que me lembro de que há outra faixa, para atravessá-la terei que suspender a fronteira e atingir o que está proibido do outro lado. É apresentar o não que ali está escrito como o ticket, a senha, que me permite entrar do outro lado. Então, digo: “Não: é aquilo”. Isto não é o mesmo que dizer sim. Negar a negação não é dizer sim. É apenas suspender ao mesmo tempo que manter a proibição: Aufhebung de Hegel, segundo Jean Hyppolite. Não deixa de haver aí uma inclusão no nível do meu trato diplomático com o chefe da faixa, o guarda, o suposto tracejador da faixa mediana. Digo, então, para mim: “Estou na minha faixa, entretanto, há a outra, não é permitido passar para ela, a não ser que diga ao guarda que não vou passar não”. E, na verdade, não passo. Por isso, Freud diz que a denegação não desmancha o recalque. Ela apenas o suspende, mas o sustém, pois esse não é dito, ele é meu lembrete de que há o outro lado. Se não houvesse o outro lado, eu iria dizer não para quê? Quando digo que você não pode passar da fronteira, estou lhe indicando o outro lado. O que se tem aí é a substituição do impossível pelo proibido, pois você pode receber um não quanto a passar da fronteira e depois dela ser o abismo mesmo. Justamente porque há o impossível, e ele só poder ser dito por uma negação, uma proibição, você aceita esse não com suposição de impossibilidade. A proibição está falando de um chão mais remoto e impossível depois da fronteira, como litoral − é uma metáfora... Você querendo, pode cair, está às ordens...
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O processo renegatório, originariamente, é se estar necessariamente partido na sexuação do halo significante. Qualquer lembrete disto é um movimento renegatório. E isto é logicamente anterior a qualquer recalque. O processo denegatório é uma permissão que dou, porque há o lembrete do Pai, junto com seu não, para lembrar, dizer, apontar o movimento da enunciação, o qual não é senão estar na sexuação. Indicar o enunciado, mas proferir o movimento desejante − e o desejo tem a ver com o Outro lado. Não indo para lá, mas repetindo o nome da faixa permitida, sem deixar de me referir ao que está levando um não. O sujeito diz − basta ver em Freud −: “Sonhei isto, e não era minha mãe”. Ou seja: “Não: era minha mãe”. Este sim aparente não é um sim que ele dê ao caso de ser a sua mãe. É aquilo que ele pode reconhecer apenas no nível de uma transa diplomática como o não que ele colocou lá para considerar o vidro através do qual ele vê, mas sem poder passar, o que está do outro lado. Reconhecimento meramente “intelectual” como quer Freud. A denegação, no que diz respeito ao recalque, é isto. Por isso, Freud diz que o recalque mesmo não é suspenso. Isto porque seria preciso que o sujeito pudesse dizer sim ao Outro lado e, não, apenas indicá-lo dizendo não. O chiste faz isto de certo modo? Não! Na verdade, o chiste é uma coragem de palhaço. E, talvez, se possa dizer que quem produz um chiste vai lá, mas, temeroso de que os outros não o sigam, diz aquilo de maneira que um outro possa denegar em seu lugar: “Já que vocês podem até me bater por causa disto, vou lhes propiciar apenas uma possibilidade de denegação”. Há convocação do Não do Pai, em que, como Lei, está apontando para o desejo. Esta é a função Lei/Desejo, a função paterna. Quando digo “não passa daqui”, estou pensando que você vai acreditar em mim. Como mostra Spencer-Brown, tudo começa do preceito. Na tabula rasa, em que se emerge para a lida de falante, começa-se por: “Faça isto, aquilo, aquiloutro, e você estará certo”. Não é preciso dizer “não faça isto” para se estar induzindo um recalque. Basta dizer “faça/isto”. O acento que vai neste isto já indica que não-isto não é vazio.
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O Nome do Pai, enquanto linha demarcatória, ato de demarcação, é da natureza de um esquema que cometi em que colocava um racha como traço unário, produzindo a dualidade, imediatamente Lei/Desejo. Degradando, decadentizando isto é que vou encontrar uma vertente de Lei e outra de Desejo, mas originariamente é Lei/Desejo − traçado de fronteira. Não porque o pai saiba por que, simplesmente porque é o que ele tem para dizer. *
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Quando, em nosso encontro anterior, fiz aquele esquema de RSI tentei deslocar − sabendo que é um risco − o conceito de Simbólico para o de Bifididade, de simetria. Isto na medida em que o que comumente chamamos de Simbólico, no campo da língua, é o que acho que não se pode chamar senão de metafórico ou metaforonímico. Estou provocando um pequeno deslizamento, me parece: é metafórico no campo da língua, no uso linguageiro do significante. O Simbólico, a meu ver, é mais do que isto. Se a tese do inconsciente freudiano, ou melhor, lacaniano (já que não se pode dizer que o inconsciente é bem o de Freud), é válida, o princípio de não-contradição e a não-existência de negação no inconsciente me garantem sua função primordial e originariamente renegatória, e me exigem uma instância de outro registro, para que Isso venha a produzir movimentos de recalque... Se pudermos imaginar o sujeito absolutamente acéfalo, de um inconsciente puro andando por aí, não poderemos nem dizer que ele deseja o furo: ele é pura porralouquice. Um computador porralouca, não qualquer um. Aí não é desejo. Não encontro outro termo para chamar. O risco de uma fronteira, por implicação imaginária, vai, não eliminar o outro lado, mas pôr a proibição de se freqüentar o outro lado e, portanto, de dentro dessa proibição, o desejo de manter a vocação do recalcado. Sujeito, no sentido de instalação, eu o sou depois do recalque originário e enquanto obediente a essa instalação sintomática. A denegação não me permite ir para o outro lado, mas permite lembrar que há o outro lado, mesmo
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sem freqüentá-lo. Do outro lado estaria designado o lugar aonde o sujeito não vai e o objeto que o sujeito não pode pegar, objeto proibido − para quem? Para o sujeito. Ele não está falando da mãe, lá no exemplo de Freud: está falando do desejo dele. Sujeito e objeto se subtrocam à vontade, dentro da ordem significante. Nenhum dos dois se coloca fora da ordem significante. A questão do objeto é uma questão do sujeito. O objeto é destacado pela proibição nominal que ele recebe. A mãe não é proibida porque é determinado objeto, mas, sim, porque tem o nome de mãe-proibida. Nenhum objeto é proibido em si. O outro lado é do nome do objeto: o significante que o demarca. Lá não vou justamente porque ele está destacado para mim como proibido, portanto, como desejado. Do lado de cá me dão, de prêmio de compensação, um outro que é uma espécie de apelido secundário daquele que eu queria mesmo. E aí eu me consolo, porque senão levo porrada. Aliás, só mesmo sendo demasiado débil mental − o que Freud não era − para dizer, diante do “não é minha mãe” do analisando, que “é sua mãe sim!”. E o analisando será então brilhante se responder “não é minha mãe não, é a do analista”. Aí a questão vai ser do Outro, não dele. A denegação, na abordagem do texto da Verneinung de Freud, bem como nas elocubrações que Lacan, via Hyppolite, faz no seu Seminário, fica bem mais sutil do que o que estou colocando aqui, justamente porque nem Lacan nem Freud estão tratando de denegação apenas no regime da denegação sobre um recalque. O problema da denegação vai mais fundo na medida em que se remonta à decadência e se começa de cima, pela sugestão, que um traço unário me dá, de uma ambigüidade primordial. Lacan conota, no Seminário 3, a denegação com o fato da posssibilidade, segundo Freud, de qualquer juízo de existência. Quando Freud mostra que tudo depende de uma relação dentro/fora, de um aceitar/não-aceitar a entrada de determinada coisa, postula um juízo de existência dentro do qual, por experiência significante do sujeito na tentativa de apreender um objeto que ele tivera tido, o sujeito jamais poderá encontrar esse objeto. Isto simplesmente porque esse objeto lhe é faltoso originariamente, não existindo nenhuma predisposição, como num servo-mecanismo ou num imaginário simplório de um
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animal, que o leve a encontrar seu objeto. Freud tivera dito que nosso objeto é justamente o que não temos. Ou seja, a porralouquice originária já estava lá, não havendo nada demarcado de começo, nenhuma tendência natural, espontânea, de achar o objeto, porque não há imaginário pré-marcado para isso. Simplesmente só se pode reencontrá-lo. Isto significa que não vou reencontrar coisíssima alguma. Que só posso é ficar inventando, reinventando objeto, a partir de certos traços que se me figuram sintomáticos. E isto por pressão recalcante segundo minha historinha... E porque não sou maluco... Se o fosse, comia gilete na praça... Tem gente que faz isso. Ou senão porque são santos. Se fosse santo, eu estaria talvez lambendo escara de leproso. Teremos que pensar isto de novo lá para diante, pois Lacan diz que a psicose é uma estase imaginária, ao mesmo tempo que diz que uma psicanálise levada muito longe conduz à psicose. Como engrazar as duas coisas que parecem opostas? Devemos rigorizar cada vez mais os conceitos para tentar segurar um pouco alguma coisa aí. Dessa denegação que porta sobre a radical impossibilidade de o objeto poder ser encontrado, Lacan dá conta no Seminário 3. Se, por um lado, por via do recalque, posso dizer, como denegação, contra um recalque: não é minha mãe, por outro, quando a denegação é remetida a alguma suposta possibilidade de o objeto ser re-encontrável, tenho que dizer: não é esse objeto, justamente porque não é mesmo − e aí está a denegação. Não é mesmo, pois ainda que se me oferecesse aquele objeto-mãe, não seria aquele. Por isso é que o incesto é impossível... e proibido. É impossível, pois ainda que se oferecesse o objeto proibido, não é o objeto, pois este não lhe fora dado nem antes. Do ponto de vista da proibição, suspende-se o recalcado apenas enquanto proibição. O poeta, por exemplo, é aquele que diz: “Suspendamos a proibição para eu quebrar a cara como todo mundo”. O juízo de existência é, no fundo, uma perene construção desejante de um objeto, por via do juízo de atribuição. Não há conhecimento objetivo para a psicanálise, só há conhecimento adjetivo. Adjetivar bem é adjetivar de maneira que o Outro me conceda a adjetivação. Não cedo quanto ao meu desejo de adjetivação, e o Outro acaba fazendo algum acordo comigo.
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A denegação, no confronto do sim, tem aspecto de denegação do proibido. É assim que a denegação se articula, pela denegação do proibido, pois não se tem sempre condição de testar o seu possível. Ela é dita sempre de maneira que parece uma contradição. Se você perguntar: “posso fazer isto assim-assim?”, e se eu responder: “não”, você só saberá se esse não é referente a um sim se testar e, eventualmente, quebrar a cara. Por exemplo, aqui na minha estrada: “não pode atravessar”. Aí você atravessa. Se não vier nenhum carro, você vai continuar na incerteza. Mas se vier, você vai ter oportunidade de ver a batida de um carro no outro, ou “através” do outro. É pelo menos uma impossibilidade regional, mas é. A questão do impossível não é uma questão impenetrável. Não esquecer de que no seu fim de vida, num dos últimos Seminários, Lacan diz claramente que o real é o impossível... esperando pela possibilidade. A denegação, então, proferida não como retorno do recalcado, mas como retorno do impossível, se explicita no dito: “não é esse objeto”. Esta formulação é negativizante e aparentemente denegatória, quando na verdade não é mesmo aquele objeto porque, o objeto, não há. Mas como parece negação, Freud e Lacan apontam aí essa ambigüidade. Mas podemos tratar como denegação, pois não há nada mais desejável do que o impossível. E o impossível só se diz por não, assim como um buraco, se torna desejado é do lado de lá − e denego também o meu desejo de cair no abismo: Pulsão de Morte. Aí Freud inaugura, em 1920, o abismo desejado. Já que lá há não, e o não aí é válido também para o abismo do dizer, funciona em dialetização com o meu desejo também. Então, se desejo, desejo inclusive, se não sobretudo, o abismo, a morte, a qual não sei o que é, nem quero nem posso saber... mas desejo por desejar. Não sei onde está o abismo. Por enquanto só posso praticar com ele se regionalizar − e sempre regionalizamos. É impossível, nas condições imaginárias atuais, qualquer risco sem corte nestas condições. Se quisermos fazer a metáfora física de que o Real é absolutamente neutro e se coalesce ali numa determinada formação subatômica, trata-se de uma letra aí. O conceito de letra propõe um coalescimento formal que inclui o recalque, ou seja, que exclui coisas. Lacan fala em litoral e não em mera fronteira, entre
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um terreno e outro. Litoral entre um terreno e coisalguma. Aí estamos de volta à questão da denegação, que inclui também a questão de que − se for verdadeiro que o significante é um halo, como proponho, ou seja, uma função alélica, opositiva, entre noite e dia, preto e branco, macho e fêmea, homem e mulher (no Seminário 3 temos Lacan chamando atenção para o fato de nós outros estarmos colocados dentro da fenomenologia dos significantes, isso que ele chama de simbólico e que insisto em chamar de razão metafórica) − não tenho menor condição de encontrar objeto pelo juízo de existência, senão de reencontrar a experiência concreta que me propusera a minha instalação significante, a qual experiência eu tivera perdido justo em função de me instalar no significante, mas que resta como base de qualquer referente para decantação de significação. Segundo Lacan, não posso, de dentro do significante, me reportar a nenhuma vivência, a nenhuma experiência concreta, para encontrar, a não ser por um percurso extremamente longo e cheio de sutilezas, de gradações significativas, a palavra dia no confronto opositivo com a palavra noite. Digo a palavra dia, me reportando ao dia, sem necessidade do confronto opositivo com a existência concreta da noite. Quando estou diante do significante dia, é dia e ponto! E há uma outra região de não-dia, onde a noite se aloja. Nada a corrigir nisto, e nem no que eu próprio digo, para dar acerto às duas coisas. Posso postular a experiência concreta pela qual passa um sujeito − segundo a fenomenologia da forma e do fundo que desenvolvi aqui como uma parte acertada da teoria da Gestalt − como uma experiência concreta de oposição que vem, por versão sintomática de um Nome do Pai, perversamente (la Père-Version) ser instalada por uma língua e me assegurar de um significante que substitua essa experiência, retirando-a do meu referencial concreto e me limitando ao contato íntimo, constante, e de referência estrita, do significante ali instalado, letrificado. Mas não preciso por isso deixar de postular uma experiência concreta anterior, sobre a qual vai se colar, vindo dessa sintomática chamada língua, um título que, por ser arbitrário para Saussure e contingente para Lacan, dispensa a experiência concreta para que eu continue manejando significantes independentes, dentro da sintomática da língua. Há um encontro
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aí, da língua, com isso que Lacan chama de significante dentro do real. Talvez vocês tenham passado a experiência disso e possam me dar testemunho. Uma coisa é eu manipular o significante, de dentro da sintomática sistêmica como a língua o oferece, e manejar muito bem, embora psicoticamente, os seus recursos. Posso ser um excelente matemático psicótico, por exemplo. Outra coisa é eu pegar um sintagma da língua e saber que faço, para mim, independentemente de simplesmente articular tal sintagma com os outros sintagmas da língua, referência a uma experiência concreta, aderida a esse sintagma. Seja fazendo um poema ou passando de uma língua para outra, por exemplo. Os poetas costumam confirmar que passam por esta experiência. Uma coisa, como se diz, é ser decoreba, outra, é saber. Há um sabor em jogo aí. Poder referenciar minha experiência significante a uma mordida que o real me deu, e que doeu na carne, isto existe. Por outro lado, como dizia Guimarães Rosa: “Tudo se finge primeiro, germina autêntico é depois”. Posso também ficar fingindo para o lado da língua, sem a concretude da experiência. É a diferença entre um pintor e um troca-tintas. Como não deixou de apontar Lacan, há algo de forçação de barra, de pregnância de imaginário, que nos escapa. Só que a questão da psicanálise é o sofrimento que a pessoa tem, como veiculado no sintoma de cada um, por seus agarros significantes. *
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A psicanálise não quer ser um Todo Poderoso. Não se trata disso. Ela trata dessa instalação do significante, forjada pela língua que se tem. Mas há coisas que extrapolam a psicanálise... Pode ser que, como diria um Adler, um sujeito “tenha” um “complexo de inferioridade” − mas também pode ser que ele sejá inferior mesmo. É preciso acautelar-se contra a paranóia “psicanalítica”...
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MAIS OU MENOS
No Seminário anterior, mostrei, utilizando a topologia concreta da Banda de Moebius, como é que o NÃO, dito Não do Pai, é recalcante de um dos alelos do halo significante. E como se dá a denegação, em função desse alelo recalcado. Agora, quero mostrar o que poderia chamar de função comutativa, no sentido de associativa e distributiva, do não. Esse não que virá, dentro da visada de hoje, aparentemente anular o valor do alelo recalcado − que podemos chamar de anti-alelo −, aquele que é para não dizer, avesso marcado do alelo proferido, manifesto, e entrando, deste modo, na ordem metafórica, mediante a qual o próprio anti-alelo tem retorno possível. Da vez anterior, apenas tracei uma estrada, uma Via, Tao, a TAO VIA do significante, e risquei por lá uma faixa amarela de trânsito. Separei mão e contramão e mostrei que dizer não a um lado é o recalque, a denegação funcionando sobre isto. E que a Lei, funcionando nesse não, ao mesmo tempo proíbe e relembra um Outro-lado. Vamos dar um passo à frente, necessário para que possamos entender como Lacan articula esse não de modo mais compacto, digamos assim, e como o meu encaminhamento vai se conectar com o de Lacan. *
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Como sabem, não há nenhum objeto a. Ele é uma letra que designa coisalguma, algo fundamentalmente faltoso e absolutamente não encontrável. Só é re-encontrável, como diz Freud, por construções, invenções a partir de certas marquinhas que ele terá deixado, por sua ausência frente a certas presenças que metonimicamente tentarão se colocar aí, certamente que por força metafórica, ou seja, metaforonímia. Não há nenhum objeto a. Não há mesmo nenhum objeto senão os que venham a ser constituídos. Numa pequena frase de Lacan, no Seminário 3, p. 50, edição francesa, temos que “o objeto humano se distingue por sua neutralidade” (grifo meu). Lacan diz isto várias vezes, de vários modos. Esta pequena frase diz o essencial a respeito desse objeto que não há: sua neutralidade. Como pode um objeto ser neutro?: no sentido do esquema que mostrei, ser Real, originariamente, absolutamente neutro. Termina Lacan a frase: “e sua proliferação indefinida”. Ou seja, recaindo em outros registros, por via simbólica, no sentido do meu esquema, que permite decantação imaginária, isso começa a proliferar indefinidamente a partir de sua neutralidade originária de Real. Posso assim escrever a seguinte equação: objeto a igual a Real (a= R). Como objeto não pinta senão fora da neutralidade, não comparece senão quando sai da neutralidade originária, portanto por via de bifidade, se é de se seguir meu esquema, a sair da neutralidade por via simbólica, por via bífida, digo que não há objeto, e, sim, O-BI-JETO. Do ponto de vista psicanalítico é só o que existe. Não é mero jogo de palavras. Tudo que pinta objetalmente, pinta bijetivamente de saída por razão da bifididade que sucede à neutralidade do Real. Qualquer objeto, desde o fort-da freudiano, é construído, em sua presentificação e ausentificação, bijetadamente, em função de aí se precisar o contorno do significante para ele se coalescer como o-bi-jeto entre sua presença e sua ausência demarcada como significante que o presentifica mesmo em sua ausência e o ausentifica mesmo em sua presença. Não há nenhum objeto, justamente porque o tal objeto só pode ser o lugar, impossível de situar na sua origem, da cambalhota do revirão do halo significante. Lugar que representa a falta que o anti-alelo faz ao alelo a cada passo da constituição de o-bi-jeto para
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que o par-alelo comparecesse, se fosse possível, como esse real da simultaneidade que gere a neutralidade do objeto primordial. Cada alelo significante, demarcando presença ou ausência do objeto, mesmo quando cai para um nome − carretel é carretel-sim e carretel-não −, é não-todo, apenas abordável por um semi-dizer, por lhe faltar justamente o acesso ao todo do Real, um todo suposto como neutralidade. Só o Real é todo − o Real para aquém da todificação lógica pelo significante. O que aparece como todo na exclusão de um significante, a exceção que faz a regra, não pode ser senão rememoração da neutralidade que está por trás e antes de todo e qualquer arrolamento possível de conjunto: o Haver, o que Há. Só o Real é todo, na sua estasiada neutralidade. Não devemos confundir esse todo, que votei ao Real, com a questão do todo e do não-todo das lacanianas fórmulas quânticas da sexuação, onde eles têm referência lógica no significante da castração, é outra questão. Essa tabula rasa, essa neutralidade suposta na origem, esse a, já é exceção, já é excessivo a qualquer possibilidade de representação e, portanto, já agrupa, em sua exclusão, o que está para além da neutralidade do objeto a. Os ditos objetos a, quer dizer, metonímias do objeto a, são fundados quando, já na estrutura da subjetividade, o sujeito toma objetos, acaso perdidos, por sua constituição imaginária ou por seus traços. Na ordem das formas, então, o sujeito toma esses objetos perdidos por suas constituições imaginárias, tanto do seu corpo como de outros corpos, objetos perdidos e reencontrados, como disse Freud, como se fossem a sua cara-metade: dele sujeito, em função da sua origem alélica no halo significante. A questão o-bi-jetal tem que ser entendida na lógica da bifididade do significante no halo de sua origem. Poderiam objetar que estão lá a Banda de Moebius, a função do não, função de interdição, e a possibilidade de se fazer denegação. Mas Lacan chama atenção para isso de haver essa questão, que ele destaca como específica da ordem simbólica, do significante, de que não é de modo algum esteada a oposição na experiência, embora nas conotações imaginárias isso compareça. Existe a radicalidade do significante enquanto tal, que comparece, presentifica ausentificando, e não exige nenhuma experiência
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imediata de oposição. Lacan diz isto claramente no Seminário 3, p.169, que “o ser humano não é, como tudo nos deixa pensar a respeito do animal, simplesmente imerso num fenômeno como esse da alternância do dia e da noite. O ser humano toma o dia como tal e, assim, o dia vem à presença do dia − sobre um fundo que não é um fundo de noite concreta, mas ausência possível de dia, aonde a noite se aloja (grifos meus), e inversamente, aliás. O dia e a noite são, muito cedo, códigos significantes, e não experiências. Eles são conotações, e o dia empírico e concreto não vem aí senão como correlativo imaginário, na origem, muito cedo”. Isto pode parecer contraditório. Se estou dizendo que exijo a bifididade originária do halo significante, uma experiência concreta na formação do significante, uma passagem portanto deve existir dessa bifididade para esse momento de fundação significante em que é desprezada, em que é possível ser desprezada essa bifidade e presentificado um significante opositivamente ... ao quê se o dia não é oposto à noite necessariamente? Opositivamente a não-dia. Isto que Lacan nos disse está absolutamente compatível com o que vou dizer do que tenho dito. Mais adiante, p. 223, ele diz, e isto é importante porque vai funcionar na questão da diferença sexual: “Se tomei por exemplo o dia e a noite, é claro que é porque nosso tema é o homem e a mulher. O significante-homem e o significante-mulher são outra coisa que não atitude passiva e atitude ativa, atitude agressiva e atitude que cede, outra coisa que não comportamentos”. Ele está mostrando que essa operação de oposição, em última instância, recai na questão da diferença e, portanto, na questâo da diferença sexual. E, para não restarmos demasiado ingênuos, ele faz um lembrete, logo adiante, de que, esses registros significantes, se os encontramos em alguma parte, certamente que é, no final das contas, nas palavras. Mas, diz ele, p. 224, “não é forçoso que seja em palavras verbalizadas”, coisa que os detratores de Lacan sempre esquecem. “Pode ser que seja um signo sobre uma parede, pode ser que, para o chamado primitivo, seja uma pintura ou uma pedra, mas é em outro lugar que não em tipos de comportamentos ou de patterns”. Quer dizer, não se está fora
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do regime da palavra quando não se está apenas verbalizando. O que importa é o valor significante da operação. É claro que, por algum mistério que podemos tentar abordar sem maior obscurantismo, acabou que, quem sabe por um certo tipo de facilidade pulsional, a coisa foi parar na boca e no verbo. Mas deixemos isto para mais tarde... *
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A questão que venho tratando é: pode parecer contraditório a Lacan − quando digo que não dependemos de referência à experiência da oposição quando estamos dentro da ordem significante − eu ter feito a exigência de se pré-pôr esse campo da bifididade, do significante como halo, que não é sem referência a um certo encontro que Lacan faz, de dentro da fala para trás, com o significante dentro do Real. Estou simplesmente tentando andar um pouquinho mais para trás e, não, contradizendo Lacan: que o significante como tal independe de referência a uma oposição de experiência concreta, isto é absolutamente correto para mim. O que venho fundamentando se apresenta assim por uma questão de estilo. Eu poderia ter vindo com Lacan e chegado para trás. Fiz o contrário: mostrei o que eu já achara e agora estou caminhando para frente. Fiz um achado para trás e vim caminhando para frente. Agora, a partir do meu achado, vamos encontrar Lacan no seu ponto. Talvez vocês acreditassem mais se eu lhes fizesse o percurso contrário, mas simplesmente posso encontrar essa conjetura em outros cabeças como, por exemplo, na física atual. Para mostrar como não é contraditório o que estou dizendo, desenvolverei o que poderíamos chamar de os quatro movimentos da instalação significante de uma língua. Vamos dividir isso miticamente, como numa seqüência sinfônica. Os movimentos não precisam, naturalmente, ser tomados em separado, pois vigem em estrutura, onde posso sincronizá-los. Mas vamos separá-los: Primeiro movimento: a bifididade do halo significante, como já mostrei, definindo para mim o Simbólico, essa partição, cisão, Spaltung, que já
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rompe a neutralidade. A provação − no sentido de passar por uma prova, uma experiência, um sofrimento do significante pelo falante − é originariamente levar a cambalhota do revirão, e concretamente (como o animal sofre, já disse Lacan). Disso não vou abrir mão. Ou seja, poder passar de + a - (de mais a menos) através de a. Poder passar de + a - e de - a + a cada entrada, Bejahung, de uma experiência perceptiva, Vereinigung. Quero chamar isto, para o meu uso pessoal (siga-me quem quiser), de primeiro grau da Bejahung. Então, a cada entrada, a cada Bejahung significante, como halo significante (opositivo), de uma experiência perceptiva, Vereinigung, já estou chamando essa primeira entrada (opositiva) com ou sem nome (não exige que seja língua ainda: marca, uma pedra, carretel do neto do Freud, tudo isso serve). Quer dizer, o fort-da está ali na experiência opositiva de aparecer e sumir o carretel, de ser dia e de ser noite. É o mesmo tipo de experiência dessa Vereinigung perceptiva que funda uma Bejahung, opositiva necessariamente. É o primeiro grau da Bejahung.
Nessa passagem de + a –, temos o mais, o menos e o a. Posso escrever o a como lugar meio impreciso de interseção, de + e – , o que é poder escrever com um ou no sentido de vel de Lacan: mais e/ou menos. Já, aí, nessa experiência de entrada, nessa Bejahung de primeiro grau, há essa indecisão de vel, pois o circuito da contrabanda, do oito interior, se percorre em mais ou menos − ou como vel, conjuntivamente, exclusivamente, optativamente: é o a que permite correr para lá ou para cá.
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Segundo movimento: a interdição, a proibição do anti-alelo. Por condições circunstanciais − por algum tipo de encontro certamente grafado e da ordem da contingência −, algum alelo é permitido e outro proibido. Este é talvez o que se possa destacar como o instante do recalque, cuja ordem simplesmente se aproveita do vel entre os alelos e demarca um como permitido e outro como proibido. É o recalque, pura e simplesmente, no sentido mais genérico, mais abstrato, dentro de qualquer instalação significante, qualquer instalação dita simbólica, Verdrängung. Aí é que comparece, pela primeira vez, na sua instância mais antiga, isso que chamamos binômio Lei-Desejo − não é oposição e, sim, binômio. Não é só o instalar-se uma lei que é o fundamento do desejo: é quererse o lado proibido, o outro lado, o que não se pode, o que falta. O que está faltando radicalmente aí é o lado proibido. Esta é a historinha do Édipo, da interdição do incesto. Desejamos justamente porque disseram que não. Se não, estaríamos simplesmente doidinhos aí dentro topando qualquer parada. Aí está o mais antigo da castração, que vai proliferar, adiante, em várias formações. Castração que remete à falta do Outro, na medida em que este só pode dizer não se está em falta, se é representante lídimo desse não. De onde viria esse não, senão de sua própria instalação em algum lugar? Do ponto de vista estrutural, só posso dizer que em algum lugar há de estar escrito esse não para que eu o receba do Outro. De um ponto de vista anedótico, histórico, posso inventar a anedota − que desenvolverei depois − de que o ser vivo que nos porta, o humanóide (no sentido cibernético do termo) que porta o sujeito, essa coisa de carne que está aí, é da ordem do imaginário e tem limites, se não, morre. No corpo, na massa biológica desse vivente formalizado, geneticamente, já há um não. Não se salte dentro do fogo, porque se morre, isto é evidente. É um não que vem da confrontação do imaginário do corpo com o fogo, e isto é suficiente para fundamentar o recalque. Tomemos um caco de banda de Moebius e, como da vez anterior, demarquemos a linha do não. Digamos, pois que é o hábito, que o mais diga que
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sim e o menos diga que não. Em cima é permitido, embaixo é recalcado. Está aí a estrutura da interdição.
Infelizmente Freud não sabia, porque não podia, era proibido na língua dele, dizer Neinung, então disse Verneinung tanto para a negação quanto para a denegação. Como não sou alemão, não tenho compromisso fundamental com aquela língua, posso dizer Neinung − os alemães que se virem para incluir isto no dicionário deles. Sinto-me no direito cabal de supor − ainda que de maneira pedinte, quer dizer, postulando a vocês − que é possível taxar esse Neinung sobre alguma coisa, porque lá há uma estrutura originária que permite sua entrada, justamente porque a estrutura é opositiva concretamente na massa de movimentos de um falante. Se não pintar esse Neinung, não há assunção da palavra. Esse falante restaria na loucura de um fort-da eterno, ficaria tropeçando no a sem aceder a ele por alguma via de abordagem. Quando Freud nota que seu netinho fica fort-dando, este é um momento em que não temos que supor, ainda, certa castração que venha lhe dizer: ou fort ou da. Neste jogo do fort-da, que é um momento miticamente narrado assim, a criança passa necessariamente, antes de separá-los, por esse jogo da bifididade que tropeça incessantemente no impossível de uma neutralização, pois, se minha hipótese está certa, o desesperador é que a criancinha quereria poder juntar isso e parar com esse drama de ficar rolando de fort para da e de da para fort. Um corte é o que vai fazê-la separar, por via significante, e mesmo de fato, o da do fort, por uma certa referência. Primeiro se está no vai-e-vem, quer dizer, em renegação, e alguma coisa vem estancar o jogo da renegação, e caminhar para a frente. O campo do menos, no meu exemplo acima, subsume o a, o qual passa para lá, para além do não − por isso é desejado. Mas não passa defini-
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tivo. Justamente porque há jogo especular e há estádio do epelho, de vez em quando pode-se trazê-lo para cá: posso me situar como objeto a − eu me tomo pelo Outro. Na medida em que a criança se dá conta do desejo do Outro, ela traz o a para si. Notem o compromisso, ou contração se quiserem, ou contrato imaginário, que vai se dar aí. O Imaginário, no sentido em que o coloco, exige a dissimetrização do Simbólico para sua sobrevivência sistêmica, sobrevivência do que é configurado. Pode-se usar isto para aquela metáfora de se sacar um não concreto diante do fogo que queima a mão, ou para, secundariamente, ter esse não dito por um outro e o sujeito captá-lo metaforicamente. Mas essa dissimetrização vai tecer o compromisso imaginário que todo não − embora, aqui nesse tempo, seja apenas o rasgo de Lei-Desejo − necessariamente imaginariza (no sentido do meu esquema). Isso se dissimetriza: o válido é para cá, o não-válido é para lá, o estável é para cá, o desejável é para lá... O puro Neinung, a pura Verdrängung, instala a dissimetria e, portanto, começa a se imaginarizar o processo. O que se vê facilmente no “não é minha mãe”, que é igual a: “É minha mãe: não”. O sujeito diz: “É minha mãe”. O pai diz: “Não”. E a única maneira que o sujeito terá para tocar nisso, por outra via agora, será a denegação. É dizer, primeiro, o não do pai: “Não − é minha mãe". Terceiro movimento, então: denegação, Verneinung. Denegação do proibido para se ter acesso a ele, para se poder confessar sem assumir o desejo de acesso ao proibido. Isto tem a ver com a chamada confissão na Igreja Católica. Uma coisa é confessar o pecado, outra, é assumi-lo. A Igreja começou a distribuir perdões em cima de denegações. O cara chega lá, denega... e é perdoado. O analista não perdoa. É um “pouquinho” diferente a prática religiosa da prática analítica. Lá, não se fala em assunção e, sim, em arrependimento: o fiel deve estar à-ré-pendido para que se efetue a ab-solvição. Aqui, deve-se conseguir pender para diante, isto é, sem denegação, não adianta nenhum arrependimento. O interditável, nesse terceiro movimento, o recalcado, pode ser indicado, dito, por um retorno de recalcado, mediante a citação prévia do não que o pai dissera e que é aí lembrete, mas não rememoração − o que é diferente − do
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recalcado. Quando se denega, tem-se um lembrete do recalcado e, não, a sua rememoração, que é assunção, re-afirmação. Algumas pessoas ficam invocadas porque eu disse que há uma outra funcionalidade da denegação. Isto está indicado no Seminário 3, de Lacan, p. 97-98, quando ele faz referência, quanto à denegação, ao não-haver coisa alguma que seja o objeto a: denegação em função de uma negativa concreta, desejo de algo que não há. *
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Aí chegamos ao ponto que me interessa hoje, onde posso juntar essas coisas que a bifididade exige com aquilo que Lacan dissera: que o essencial do processo é que o significante, de uma língua, independe, começa a independer do seu alelo, de sua oposição concreta em experiência. Quarto movimento, portanto: negação do manifesto como nomeação do latente. Com o recalque, Verdrängung (e a conseqüente possibilidade de denegação, Verneinung), o não proibitivo, no sentido de ausentificação, de alternativa, de alternação, de alternância dos alelos entre sim e não, ao proibir essa alternância, ao cortar a bifididade entre o sim da manifestaçâo e o não da latência, vem a se tornar o denominador comum dos recalcados e, conseqüentemente, o denominador comum de toda e qualquer latência. Daí que o não se torna o denominador comum do não-dito-aqui-e-agora, e como significante assim instalado, em qualquer composição sígnica, seja palavra ou pedra, ele se torna agora termo universal − no sentido do para-todo (que funda o Homem) −, o cerne da castração. A qualquer alelo manifesto se opõe esse denominador comum e, portanto, lugar comum dos opostos originais como de qualquer significante manifestável. Daí Lacan apontar que, para o falante, a noite se situa no lugar ausentificado pelo dia, lugar aonde cabe qualquer significante que, ali, se opõe a dia, e onde a noite se aloja. É aqui, neste quarto movimento, que se pode instalar esse conceito de significante lacaniano, presente na língua. Quando digo dia não tenho ne-
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cessariamente a oposição noite, mas um campo significante aonde a noite se inscreve, arrolada, porém, com qualquer outro significante que não seja dia e que a ele se opõe, fundando a diferença. O não que se havia instalado ali como recalque, possibilitando a denegação, se torna a partir daí o denominador comum de qualquer não-manifesto, de todo latente que é agora por ele recalcado. Através dele, posso presentificar agora o significante dia sem nenhuma referência à experiência de sua oposição noite, pois minha referência agora é: dia e não-dia (aonde a noite se aloja). Isto não me retira de vez a justificativa de postular o refazimento do significante noite como oposto privilegiado de dia − oposto, indicável experimentalmente, de dia. Isto me permite, sim, é utilizar um série de significantes do lado de cá, do lado da língua, do lado do manifestável, sem ter que necessariamente, refazer a experiência do seu alelo. Assim é que tenho uma língua e posso manipular significantes dos quais eu não tenho mesmo a experiência concreta de seus halos. Falo uma língua − ou uma língua me fala − através dessa diferença sem ter que, como às vezes faz o poeta, me fazer sofrer a experiência do reviramento daquele significante, numa oposição do seu halo, experimentada. Há esses momentos, na vida de um sujeito, em que ele sabe que aquele significante, agora, além de significante lhe é pesado, lhe é pensado, é pedra, é alguma coisa dura engolida. É a experiência do reviramento do significante, no seu halo. Por isso, Lacan não precisa de nenhuma noite concreta, de nenhuma experiência opositiva de noite concreta, para dizer dia, presentificar o dia, porque basta dizer, a partir desse não: dia e não-dia. Mas é preciso atenção, pois, num encaminhamento mais longo, podemos chegar a ver que está lá a noite espreitando, entre aqueles significantes opostos ao dia, como alguma coisa mais adequada ao dia que foi pronunciado, como seu oposto, seu alelo segundo uma concreta experiência primária, como um significante privilegiado. Coloco, então, o que quero chamar o segundo grau da Bejahung nesse quarto movimento, que é um tempo não só de cisão mas de basteamento, de capitonnage, de aprisionamento do significante numa possibilitação, numa
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facilitação de significado para o próprio dia em sua manifestação significante − basteado mesmo pelo retorno do efeito desse não anulando o seu oposto. Assim: dia é dia, o resto é não-dia. Vejam que estou mitificando, mas não quero esquecer que tudo isso é uma estrutura só. Destaco que aquele não que foi dito − posso desmembrar a estrutura sem ter que historicizar − como recalcamento, imediatamente, estruturalmente, no mesmo momento, começa a funcionar como possível denominador comum de castração. O que há de proibição aqui, que quero juntar com a estrutura da interdição, é dizer não ao Outro lado. Como esse não é o mesmo para uma série de recalques possíveis, ele passa a ser o denominador comum dos recalques. Assim, não é preciso mais dizer dia como não-noite e se pode dizer dia em oposição a não-dia. Ora, aí temos que notar que a manifestação, o pronunciamento de dia aqui-e-agora, hic et nunc, recalca, repele, refoule, qualquer outro pronunciamento concomitante, simultâneo, pois que aí vige o real impossível − o que faz com que qualquer significante que não seja dia venha a participar do repelão − recalque − a que o não do não-dia, como oposto a dia, os submete. Donde teremos que à manifestação de cada significante há recalque para qualquer outro significante. Está aí fundada a diferença: deslocamento do não.
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Posso postular, pratrásmente, uma experiência concreta de oposição dia/noite que vai se perder para além do denominador comum que apontei, mas que − se fizer um certo percurso que ainda não mostrei − posso perceber que, por causa do trabalho intelectual da denegação, posso retomar não um não-dia mas o eco da noite, que é o significante que denega. Justamente porque há denegação, quando o sujeito denega, ele está denegando alguma coisa bem marcada do lado de lá. Se ele diz: “não é minha mãe”, ou: “não é noite”, ao dizer isto, está me indicando, indicando lidimamente, que a sua noção de contraste com o dia é a noite. Como em Romeu e Julieta: “Não, não é o rouxinol, é a cotovia”. O que acontece na denegação é que o recalcado é indicado, no seu retorno, por aquele lembrete. Ao passo que lá no processo que estou chamando de negação de dentro do manifesto, lidamos diretamente com o não da proibição, que faz o denominador comum, fundando o segundo grau da Bejahung. Quando, no caso de uma língua, digamos materna − por instância paterna, certamente −, um nome, ou seja, um alelo manifestado por uma imagem acústica − estou aí com Saussurre e não abro −, vem presentificar, mesmo não sendo dia, em ausência, pela elisão significante que o reduza puro habitante do não, o alelo repelido: noite, que não precisa mais ser oposto de dia, porque habita o não-dia. É quando não se precisa mais escrever dia/noite, quando se pode escrever assim:
mais/não-mais, dia/não-dia
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O sinal de negação vem criar um denominador comum e jogar para o outro lado o que era da ordem do opositivo concreto, experimentável pelo sujeito no seu impacto percetivo. O que acontece quando pinta esse não que joga o não-manifesto para o campo do não é que, se lá está o lugar onde a noite se aloja, por causa desse não, também posso dizer que lá está muita coisa que pode ser chamada noite. Esse não, denominador comum, é que vai fazer uma cambulhada significante do que está do Outro lado, permitindo assim as substituições: donde o valor negativizante da metáfora. Diante dos sins, estou numa diferença nítida, mas como eles jogam seus nãos − e dizer não-sim vale dizer sim-não − para
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o país do não, todos de cambulhada, lá posso fazer o jogo das trocas. Pois se oposto a dia é tudo que é não-dia, então noite pode ser metáfora de cama ou de cadeira, porque cadeira não é dia. É a metáfora que garante a diferença. A massa significante que se opõe ao dia é a massa dos significantes que é não-dia. Passo pelo a, bato a massa no liquidificador e tiro qualquer significante. Claro que a língua, com seus imaginários, me obriga a certas transações para pegar o significante que ela escolhe como adequado ao seu imaginário. Mas poderia ser qualquer um. Dia se opõe agora a não-dia, aonde mora a noite também. E daí por diante, meus caros, estamos no domínio, isto é, na mestria da negação. Domínio este que possibilita a ausentificação do presente como a presentificação do ausente. Este talvez seja um dos sentidos, imbricado com o de recalque e o de denegação − tanto em sua vertente de Verdrängung, quanto na de Urverwerfung: fundação do a como coisa alguma −, do termo Verneinung de Freud, isto é, aquilo que Freud diz ser a função intelectual do não, o que só é pensável agora, quando o não se torna denominador comum de todos os significantes menos um. Então, podemos sub-trocar, muito à vontade, pelo lado de lá. Só que o meu à-vontade vai depender das minhas transações, em jogo de cintura, com o imaginário da língua. Não devo agredí-la demais se quiser entrar no barato imaginário da linguinha que a maioria fala. É uma questão de prudência. Mas quando se é um James Joyce, caga-se no lance, e se vai em frente. No texto d’A Denegação, de Freud, está dito que “a denegação é uma maneira de tomar conhecimento do recalcado”, e, mais adiante, que “a função intelectual se separa do processo afetivo”. Ou seja, o não vem possibilitar que eu transe aquela massa de significantes independente do sofrimento alélico do golpe concreto da experiência do halo significante. O dito afetivo tem a ver com esse revirão e com a assunção desse golpe concreto do halo significante. “É tarefa” − diz Freud, adiante − “da função intelectual de julgamento afirmar ou negar. O desjulgamento é o substituto intelectual do recalque, seu não é uma marca dele mesmo”. Ou seja, nesse segundo grau da Bejahung, como quero chamar, é a negação do manifesto − dia e não-dia − que vem nomear o
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latente. O campo do latente é por igual: qualquer significante que pinta por lá está na mesma. Isto é, o não dito ao manifesto designa o lugar de onde ele, o manifesto, se exclui − é o Campo do Outro, está do lado do não −, ao mesmo tempo que nomeia, negativamente, qualquer dos alelos de qualquer outro halo, inclusive o anti-alelo de x. Aí nesse momento é que podemos falar de negação da negação. Se digo x e indico o campo do não-x, e se, depois, digo “não é não-x”, x passou para lá: troca-troca. Estamos sempre no tal negócio que Freud chamava de dentro-e-fora, que é mais de um lado e de outro. Ele dizia dentroe-fora enquanto se referia ao imaginário do corpo, mas já indiquei aqui uma anatomia que fica para aquém e para além da boca. A tal função intelectual da negação é essa generalização do oposto a x por qualquer nome que não-x. Este é o fundamento da diferença. Estamos de retorno àquela posição de Hegel de que originariamente é o opositivo. A diferença vai nascer por um processo que está no segundo grau da Bejahung: aqui é que se instala a diferença. Tudo é diferença, segundo Saussure. Ele já partiu deste quarto tempo em que dia é diferente de qualquer outra coisa, de tudo que é não-dia. Instalou-se aí a LEI da diferença. Instalou-se pelo não do pai o campo da diferença − que passa a ser, daí por diante, porque digo não, a minha Lei fundamental, de falante, instalado entretanto num sistema significante, num sistema lingüístico qualquer. Isto, porém, não me obriga a me esquecer do meu passado, pois tudo que estou fazendo é re-historicização do que ficava para antes disso − que acho importante retomar −, que é o opositivo originário do halo. Funda-se, então, um referente, ou um denominador, comum, que pode ser simplesmente a palavra não na nossa língua, a qual possibilita o jogo, em deslizamentos e estancadas, da metaforonímia, pois qualquer significante, dentro de uma língua, pode agora representar não-x, pois que pertence ao mesmo campo nomeado pelo mesmo não e, portanto, também o próprio x, por cancelamento da sua negação, que é o que chamamos de negação da negação. Se juntarmos isto pacientemente com aquela composição “poralelogâmica” que apresentei no Seminário A Música; vai dar samba...
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Pelo que venho de dizer, tenho mais ou menos x que vai dar em x ou não-x:
Vamos supor que é dia e noite, que vamos tomar por x e não-x aonde menos-x cabe. O que é dizer x contra (a) ± k, ± z, ± y, etc., inclusive -x:
Há uma dissimetria aí. O significante privilegiado do lado do não é o significante sem par. Há um -x que é, digamos, convidativo justamente porque não tem par do Outro lado. Ele reclama a antiga bifididade. Ele convida à bifididade. Bifididade essa que comparece nitidamente no processo da denegação. Quando o sujeito diz: “não é minha mãe”, ele está apontando, lá do outro lado, das proibições, um certo proibido, que é o tal -x. Ele está no sofrimento de um halo significante, só que, para evitar o sofrimento, ele denega e não assume. O que ele não quer sofrer é o fato de que é e não-é sua mãe. No processo da denegação, mesmo no processo que vivemos dentro do recalque, está o culto da negação encobrindo o processo. Através desse não eu presentifico um significante independentemente do seu oposto concreto, experimental. Mas há lá o convite de re-encontrar a minha experiência de fort-da, de repetir a renegação entre sim e não, de lamber, pelo menos, já que lá não o posso pegar, o objeto a. Este é o movimento da pulsão. É mediante o artifício da negação, no segundo grau da Bejahung, que
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se estatui a Lei da Diferença, a qual é a garantia de instalação e de decantação de uma língua na sua particularidade sintomática. Pois agora, cada significante, isto é, cada alelo possível de qualquer halo, se particulariza em oposição a qualquer outro. Ao mesmo tempo que bem pode ser subtrocado, metaforonimicamente, por qualquer outro, sem perder, no entanto, sua particularidade, já que essa troca é agora por equivalência, em identificação metafórica e não por analogia: não por correspondência formal biunívoca, mas por pertinência ao mesmo campo do não. O não faz o papel-moeda dessa transação. Aquele primeiro grau da Bejahung, aquele momento bífido antigo é que permite tanto a tradução entre línguas, embora precária, quanto a aprendizagem de outra língua que não a materna. Eu não me instalo tão definitivamente num sintoma porque poderia ser outra coisa. A equivocação depende do primeiro grau da Bejahung. Minha equivocação depende da minha memória da renegação que vige no fort-da. Assim como permite a sinonímia e os tropos, pois retomo o deslizamento simbólico originário do halo significante. Acho que por aí talvez se possa começar a entender como é que se funda uma língua: nesse momento de basteamento, porque foi dito não, mesmo se ainda sem nenhuma significação dentro de alguma língua. Como aponta Lacan, antes ainda de a criança entrar no regime de uma lígua, ela já está no simbólico. Ele diz isto − está no Seminário 3 − porque, na experiência do Freud, o fort não da nada. A criança de Freud, seu neto, não precisava saber alemão para fonologizar o que Freud terá escutado − porque quis escutar assim, porque era alemão: o/a −, para fazer o seu fort-dazinho dele. Aquilo já é do simbólico. Então, vem o basteamento do tipo que vovô Freud quis. A criança quer sobreviver, e aí entra para o partido alemão... É uma pura diferença fonêmica o que Freud ouve como fort e da, porque ele assim quis, é sua tradução, porque o ouvido dele era alemão. Se fosse outro, talvez tivesse ouvido outra coisa. A criança manifestou dois fonemas diferentes que talvez não sejam de língua nenhuma, só da língua dos bebês. O basteamento sobrevém quando, em se aproveitando dessa vocalização, alguém vai ali depositando as forminhas imaginárias da sua língua. E a cura analítica,
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isso que a gente acha que é a nossa prática, é o exercício da rescisão desses contratos imaginários e, conseqüentemente, assunção da equivocação simbólica originária, quando o não que não há no inconsciente − ou melhor, que não há na bifididade originária do simbólico senão alternativamente, pois que pertence ao regime do imaginário −, é levantado: o não que vem imaginarizar, lateralizar, se desfaz em o-bi-jeto a. Então, veio a, ele deixa passar. No regime da Lei, o não imaginariza por um lado, mas deixa passar um lembrete, com o que ele vem a ser o cisor de alternativas opostas, operador das opções do sujeito nas suas errâncias, em sua deriva sempre possível pela equivocidade. Isso vai longe... *
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Vocês vêem que não há aí nenhuma contradição a Lacan. Aquelas coisas de Saussure, aquilo que aparece na página 97-98 do Cours, valia a pena retomarmos. Também, onde será que podemos agora localizar a distinção do falante em relação aos não-falantes? Quando Lacan situa esta diferença, ele a aponta justamente no que chama de Simbólico, mas esteado nessa razão substitutiva que é a metáfora. Ele diz que, de modo algum, o animal não faz metáfora. Absolutamente correto. Mas o animal tem metáfora. Ou melhor, o animal é uma metáfora. E, em muitos momentos de sua fala, Lacan tem que reconhecer − porque há observações de psicologia e de etologia que apontam para isto − que encontramos um simbólico rudimentar em várias espécies. E então? Ele tem uma maneira fácil de sair disso − fácil para nós, depois que ele nos ensinou. Ele dá a explicação de que encontramos aqui e ali substituições nos animais como se fossem da ordem do simbólico, mas que eles não dependem estritamente disso como nós. Nós outros somos determinados fundamentalmente pelo simbólico. O animal é determinado essencialmente pelo imaginário e, aqui e ali, encontramos pequenos deslizes substitutivos como do regime do simbólico. Mas isto é bastante?
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Quando algum animal, com seus comportamentos demarcados imaginariamente, por um acidente qualquer passa a incluir certa marca − que supostamente não estava lá no seu programa original − como substitutiva de uma indicação qualquer, ao invés de manter o paradigma do seu imaginário antigo, ele troca de signo e pega essa nova marca para fazer alguma coisa. Seria como que simbólica essa substituição. É como se fosse uma metáfora o que aconteceu ali. Só que ele não fica produzindo metáforas, mas simplesmente passa, de agora por diante, a se referir a esse novo signo. Há uma substituição, etologicamente explicável, introduzida por acidente no seu programa, ou no seu manejo de programa. Ao falante, não lhe acontece só isto. Isso começa a proliferar. Lacan pode dizer que ele se determina essencialmente pelo simbólico, que ele faz metáfora e que isto o distingue. Mas eu, quero mais: por que o falante faz metáfora e o animal não? O que distingue o falante não é apenas o simbólico − neste sentido estrito lacaniano − como substituição metafórica em identificação por traço distintivo. Isto há, pelo menos rudimentarmente, em alguns animais. Mas um animal pode dizer sim a essa peça simbólica que lhe sobreveio, que para ele assinala agora alguma coisa, mas não tem para isto que dizer não ao seu oposto. Aquilo é puro sim, entra como puro sim, ao qual não corresponde nenhum não. Os animais, ou eles bem se deparam com a imagem substituta e cumprem a sua determinação, ou bem não se deparam e nada se desencadeia. Quer dizer: eles só acham, não procuram algo a ser reencontrado. Já o falante, dependente do simbólico em sua bifididade, procura e não acha algo que supra sua falta. Assim, ele não cumpre mais do que reencontrar, isto é, procurar outra vez, inventar, reconstruir um objeto que é ersatz do faltoso, mas para isso ele tem que dizer não a uma Outra parte. O que distingue o falante é a bifididade originária, que não comparece jamais no animal. Neste, tudo é lateralizado. Lacan certa vez repetiu Picasso, dizendo: “Eu não procuro, acho”. No contexto em que ele disse isto, estava muito bem, engraçado e bem dito. Mas agora vou preferir, em termos gerais, dizer que o falante é exatamente aquele
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que procura, não acha. Para o sujeito há não e há bifididade. Imaginem um super-computador, tipo Blade Runner, em plena bifididade e, além disso, capaz de aceitar um não pela cara... Ele vai subjetivar, meus caros. Por que não? Tentei, num Seminário antigo, tratar da dita oposição natureza/cultura. Inseri no meio o campo do artifício, o que chamei de fatura: natura/fatura/ cultura. O artifício, que só o falante produz, se fundamenta no simbólico, quer dizer, na bifididade. É porque, sem sabermos como, nem por quê, o falante dito Homem repete, de dentro de sua instalação imaginária, o simbólico como falta − ponto-bífido como ponto cego, como espelho em que sua estrutura − que ele pode vir a hastear significantes, fundando assim o artifício, cuja estrutura é a metaforonímia. Com esta distinção, posso separar agora dois campos: o do Simbólico, como o campo do bífido, e o do Artificial, como o campo do metaforonímico. Esse artifício fica como a charneira entre natureza e cultura, como dizia LéviStrauss, ou melhor, entre a natura e a fatura. O simbólico é o campo do bífido e o artifício é o campo do metaforonímico. É porque porto a bifididade do simbólico que posso cair no campo desse não específico, basteador, metaforonímico, portanto sintomático. É porque posso fazer isto que consigo entrar na ordem do artificial, que não é senão repetição do natural − quer dizer, do dado, dos textos dados −, mas em suas possibilidades de constituição, e não em seus constitutos. A velha tese da mimese, de que a arte imita a natureza, é plenamente válida. Não imitação das suas configurações, digamos que externas, mas do seu processo de construção. Fernando Pessoa tem razão em dizer que “uma obra de arte é como um animal”. O fenômeno é da mesma ordem do aparecimento de um ser vivo. É o artifício fundando a natureza. Mas ainda temos que questionar isto.
01/SET
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PAPILAS, PUPILAS
Fernando Pessoa tem um poema que diz: Gato que brincas na rua Como se fosse na cama, Invejo a sorte que é tua Porque nem sorte se chama. Bom servo das leis fatais Que regem pedras e gentes, Que tens instintos gerais E sentes só o que sentes. És feliz porque és assim, Todo o nada que és é teu. Eu vejo-me e estou sem mim, Conheço-me e não sou eu. Já chamei atenção aqui de outras vezes para o fato de que não é preciso ser analista, nem se chamar Jacques Lacan, para sacar coisas muito importantes.
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Reconheço na obra de Fernando Pessoa uma visão que, traduzida teoricamente, é aproximada da psicanálise. Emissário de um rei desconhecido, Eu cumpro informes instruções de além, E as bruscas frases que aos meus lábios vêm Soam-me a um outro anômalo sentido... Inconscientemente me divido Entre mim e a missão que o meu ser tem, E a glória do meu Rei dá-me o desdém Por este humano povo entre quem lido... Não sei se existe o Rei que me mandou. Minha missão será eu a esquecer, Meu orgulho o deserto em que em mim estou... Mas há! Eu sinto-me altas tradições De antes de tempo e espaço e vida e ser... Já viram Deus as minhas sensações... Do que estará falando esse cara? Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela E oculta mão colora alguém em mim. Pus a alma no nexo de perdê-la E o meu princípio floresceu em Fim. (...) Como alguém distraído na viagem, Segui por dois caminhos par a par.
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Fui com o mundo, parte da paisagem; Comigo fui, sem ver nem recordar. Chegado aqui, onde hoje estou, conheço Que sou diverso no que informe estou. No meu próprio caminho me atravesso. Não conheço quem fui no que hoje sou. Serei eu, porque nada é impossível, Vários trazidos de outros mundos, e No mesmo ponto espacial sensível Que sou eu, sendo eu por ‘star aqui? Serei eu, porque todo o pensamento Podendo conceber, bem pode ser, Um dilatado e múrmuro momento, De tempos-seres de quem sou o viver? E por aí vai. Vocês conhecem a obra de Pessoa. Nestes poemas como em muitos outros poemas, acho que ele está falando da mesma coisa, da mesma coisa que eu gostaria de abordar hoje. A humanidade é uma revolta de escravos. A humanidade é um governo usurpado pelo povo. Existe porque usurpou, mas erra, porque usurpar é não ter direito. Absolutamente lúcido − a humanidade é um governo usurpado pelo povo. Exatamente, a humanidade não tem governo, é um desgoverno disseminado... Ele mostra, por exemplo, a certeza − ainda que imbecil, mas concreta − do animal, do gato de que ele fala, e a incerteza dele próprio, a equivocidade em que ele vive...
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No texto da Denegação, Freud colocou a questão da atribuição e da existência, e − como vimos, em nosso 15.° Mutirão, sobre esse tema −, afinal de contas, tudo se resume, em última instância, a uma questão de atribuição. Lacan insiste nisto que chamei ultimamente de adjetivação. E Freud insistia em que, no jogo mesmo dessa atribuição, que comanda a lógica, inclusive a da existência em termos de reencontro, tudo que interessa, tudo que está em jogo, é afinal a questão do dentro e fora: engulo ou cuspo, na metáfora que ele utilizava. Engulo para onde, e cuspo para onde? É a questão de Fernando Pessoa. O gato sabe que engole “gatalmente” o rato. Mas Isso, a gente engole para onde, e cospe para onde? Dentro e fora, do quê? Talvez não seja bem uma questão de dentro e fora, mas uma questão de para lá e para cá − sem que tenhamos garantia do que seja um ou outro: uma questão simplesmente de travessia por essa bordazinha, por esse buraquinho do furo, para lá e para cá. E tanto se passa que, de repente, a gente não sabe mais se está lá ou se está cá. Talvez algumas coisas dêem um pouco de garantia de um cá − mas não é tão fácil assim, achar o cá. Estou me referindo ao que desenhei − p. 124 acima −, quando falei da pulsão, como se fosse a anatomia psicanalítica: a descrição dos furos do corpo que não são necessariamente os que a gente pode observar e, até, meter o dedo − há furos e furos... A anatomia de que trata a psicanálise, a anatomia do sujeito, digamos assim, é um filó, um filé, só de furos, organizando uma textura. E tudo é uma questão de saber passar pelos buraquinhos, de saber como se passa para lá e para cá pelos buraquinhos desse filó, dessa renda... A anatomia do sujeito não é bem a anatomia dos livros de medicina. Estes fazem a descrição ou a topografia do imaginário do corpo. Não que a anatomia psicanalítica não seja também da ordem do imaginário, mas tem outro desenho − que às vezes coincide, pelo menos no contorno das bordas e dos furos, com os buracos destacáveis na anatomia do corpo médico.
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Sempre há um furo e essas duas bolhas para lá e para cá − o que importa é a borda do buraco. Só posso me suportar para cá por alguma marca que me distinga da bolha de lá: se me inscrever como esse Um (S1) de cá, há Outro para lá. É preciso que eu tenha referência em algumas marcas para me situar para cá, sendo que minha anatomia é desenhada indo para lá, quer dizer, no interstício entre o cá e o lá. Nesse furo entre é que vige a pulsão. Uma série de buraquinhos constituem o meu corpo de sujeito.
Isto não é senão algo da ordem do especular, na medida em que tentei fazê-los acreditar que a topologia do espelho é a topologia da banda de Moebius e é a topologia do furo. Acredite quem quiser... No Seminário sobre Guimarães Rosa, o Rosa Rosae, eu ficava mostrando este quiasma, em reversão, que existe na relação especular. Lacan, no Seminário 11, se deu tempo para prestar atenção no último trabalho, inacabado, de Merleau-Ponty, Le Visible et l’Invisible − livro que cada psicanalista devia ler com cuidado, sobretudo as fichas que embasariam a parte do texto que ele não escreveu. Ele escreveu a metade, um terço, e Claude Lefort publicou o que ele já havia redigido e mais as fichas que ele anotava como projeto para terminá-lo. Dizem que Merleau-Ponty freqüentava os Seminários de Lacan, o que era absolutamente desnecessário para ele ser o sujeito brilhante, sutil e
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inteligente que foi. Não é porque lá ia que ele era Merleau-Ponty. Ele já era Merleau-Ponty mesmo, mas alguma troca certamente se deu por ali. Quem lembra da obra de Merleau-Ponty − sobretudo a Fenomenologia da Percepção, que é enquadrada num processo de fenomenologia estrita −, vê que ele estava tentando um passo novo e vigoroso − e mesmo com algumas citações, se não exigências, em relação à psicanálise. Ele se propõe pensar e transmitir uma nova postura para a filosofia, talvez até uma nova teoria da percepção: a exigência de um conceito novo para se repensar o que se tem dito sobre essa coisa que ele chama de “estar no mundo”. Propõe um conceito − que ele diz ser novo em toda a filosofia − de carne, a carne do mundo, e tenta descrevê-la um pouco: uma certa matéria, talvez esponjosa, que religa os seres, sobretudo os seres humanos, com as coisas, de tal maneira que tudo se organiza numa razão em quiasma, quer dizer, um dentro/fora, uma transudação da experiência do sensível. Diz ele que não nos demos conta ainda de que há essa carne para o sujeito falante − carne que ele coloca até mesmo no regime da percepção. Certamente que Lacan não está exatamente de acordo com Merleau-Ponty, mas numa parte do Seminário 11, chamada “Do olhar como objeto a minúsculo”, mostra o seu conceito de olhar como objeto justamente tomando essa razão do quiasma de Merleau-Ponty. Isso nos permite ressituar muitas coisas do próprio projeto teórico de Lacan. Reinstala-se a noção de sujeito na pintura quando ele mostra que é lá no quadro que se vai distinguir o sujeito como mancha, como algo inscrito lá, e que faz écran. Ele conta uma anedota interessante, que aconteceu com ele, para dar um exemplo dessa relação do sujeito com o olhar, olhar como objeto externo ao sujeito. Antes de mais nada, somos vistos, como diz Merleau-Ponty, somos visíveis ao mundo e trocamos de visão com o mundo. O objeto passa daqui para lá e de lá para cá. Eis a estória de Lacan, p. 93-94: “Esta estória é verdadeira. Data de alguma coisa como meus vinte anos − e nesse tempo, certamente, jovem intelectual, eu não tinha outra preocupação senão a de ir a algum lugar, de me banhar em alguma prática direta, rural, caçadora, e mesmo marinha. Um dia
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eu estava num barquinho com algumas pessoas, membros de uma família de pescadores de um pequeno porto. Nessa ocasião, nossa Bretanha ainda não estava em condições de grande indústria, nem da frota de pesca, o pescador pescava em sua casquinha de noz, com seus riscos e perigos. Eram esses riscos e perigos que eu gostava de partilhar, mas não eram riscos e perigos o tempo todo, havia também dias de bom tempo. Um dia, então, em que esperávamos o momento de puxar as redes, o chamado Joãozinho, vamos chamá-lo assim − ele desapareceu, como toda a sua família, exatamente pela tuberculose, que era nessa época a doença verdadeiramente ambiente na qual toda aquela camada social se deslocava −, me mostra alguma coisa que boiava na superfície das ondas. Era uma latinha, e mesmo precisamente uma lata de sardinhas. Ela boiava ali ao sol, testemunha da indústria de conserva que estávamos, aliás, encarregados de alimentar”. Está aí uma frase de sentido quiasmático. “Ela respelhava ao sol. E Joãozinho me diz − Tá vendo aquela lata? Tá vendo? Pois ela não tá te vendo não!” “Ele achava muito engraçado este episódio; eu achava menos. Procurei saber por que eu o achava menos engraçado.É muito instrutivo.” “Primeiro, se tem sentido Joãozinho me dizer que a lata não me via, é porque, num certo sentido, de fato mesmo, ela me olhava. Ela me olha, quer dizer, ela tem algo a ver comigo” − no sentido do regarder do francês −, “no nível do ponto luminoso onde está tudo que me olha, e aqui não se trata de nenhuma metáfora”. Não fica muito bonito nesta tradução que fiz, pois ce qui me regarde significa “me olha” e “tem a ver comigo”... Enfim, a lata de sardinha estava olhando para Lacan − mas é claro que ela não o via... justamente porque o olhava. O olhar, como objeto constituído − como Lacan demonstra em seguida −, não objeto a enquanto faltoso, mas um olhar construído − ele diz que fazer um quadro é certamente apresentar, construir um certo modo de olhar −, como objeto construído, o olhar não me deixa ver. É claro, pois, se já olho de certo modo, só posso ver o modo com que olho. Para ver é preciso que eu não olhe. É preciso, talvez, que eu simplesmente “abra os olhos” como se diz, o que,
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neste sentido; certamente não é: “olhe bem, preste atenção!”, que, este, é da ordem do olhar constituído. Como vêem, não estou me situando no mesmo lugar de onde Lacan fez seu Seminário. Lá ele apontava para a diferença entre o visual, enquanto geometral, demarcação de um espaço euclidiano compatível com certa composição geometral, e o olhar como objeto. Aqui, estou fazendo um pequeno desvio: se há olhar, não há visão − não tem que ser no sentido geometral. Não entra nada de novo se eu olho − nem mesmo um novo olhar. É preciso que alguma coisa sobre do olhar, para que essa coisa compareça. O olhar que acompanha os objetos desejáveis, os objetos a do corpo por exemplo, já é instruído, já se deparou consigo mesmo. É preciso, então, que alguma coisa sobre para que eu veja, ainda que como novo olhar. Para isto, é preciso que eu esteja de olho aberto − para além do meu olhar. Do nosso ponto de vista, enquanto habitantes da linguagem, concebemos muito bem, achamos bastante aceitável esse equipamento lógico do quiasma, que não é senão o mesmo processo que chamo de Revirão. O revirão é dobrado mas é o mesmo quiasma: uma passagem para o outro sexo, para a outra mesma face da banda de Moebius. O quiasma é da estrutura do revirão, do oito interior. É uma escrita diversa, mas é a mesma coisa. Merleau-Ponty insiste em alguma coisa da qual não acho que deva se abrir mão. Ele − que não é analista, não estava comprometido com as formulações de Lacan, o qual reduzia isso à vigência da linguagem − se perguntaria se, afinal de contas, sou um corpo vivo, se não é aqui nesta materialidade que está instalada alguma coisa, alguma máquina que opera nesse modo da linguagem. Não tenho que fazer fisiologia nem biologia para catar aonde está isso, mas posso conjeturar por outra via, seja por uma psicologia, uma lógica, uma filosofia, sobretudo uma teoria psicanalítica, onde está essa máquina, como é isso... Ele insiste na existência de um corpo psico-físico e num lado espiritual do corpo humano, e fala, também, num “ser de promiscuidade” e num “transitivismo” dessa carne no mundo. Essa carne, essa textura, é um corpo inacabado, hiante, e nenhuma fisiologia da visão conseguiria fechar o funcionamento nervoso sobre
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si mesmo. Ele situa mesmo, insistentemente, o que chama de surda reflexão do corpo sobre si mesmo − o processo de reflexão que introduzi considerando o estádio do espelho para aquém dos fenômenos da linguagem − sobre a máquina perceptiva do falante. *
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Como vimos na sessão passada, depois que o não comparece, estamos em pleno campo lacaniano, quando se reduz qualquer oposição. Daí por diante podemos pensar serenamente a psicanálise, no que ela pode tratar. Mas a psicanálise não está impedida, nem deve abdicar de pensar um pouco mais para trás. Penso que, apesar de esse não ter reduzido as oposições, há o revirão fundamental, o simbólico como opositivo, como nessas experiências concretas que Lacan não deixa de apontar no animal. Certamente temos alguma máquina que nos permite dar um passo e instalar o não, mas por detrás disso tudo deve haver esse entrelaço, esse quiasma, instalado mesmo na carne − o que podemos surpreender no estádio do espelho. Não fosse o entrelaço, o quiasma que estrutura o processo perceptivo, como teria pré-condições, a criança, de se dar conta da reflexão complexa que − mediante certamente a intervenção de um terceiro − lhe permite bastear o significante sobre a significação? Lacan precisa do estádio do espelho para assentar seu projeto teórico. Precisa dessa referência que tem ecos etológicos, mas que é uma mínima concepção de que, perceptivamente, entramos aí pelo quiasma entre o lugar de onde percebemos a imagem percebida. Portanto, não estamos em heresia. Ora, o não que havia comparecido primeiro como linha demarcatória, de trânsito, remetendo para outro lado tudo o que é da ordem do recalcado, tornou-se denominador comum dos recalcados. E, além disso, no que não posso dizer concomitantemente duas coisas − posso ter ecos sinfônicos, verticais, mas não posso proferir concomitantemente −, cada proferimento que faço certamente que repele, recalca os outros proferimentos. Assim, esse não fica valendo genericamente como denominador comum do que não está sendo dito
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aqui e agora, e é então garantia da emergência da diferença. Se digo agora a palavra “livro”, o que não é livro está não-dito, está do lado do recalcado. E a diferença de “livro”, como significante, só comparece como diferença radical na medida em que há livro contraposto ao que não é livro. É esse não radical que funda a diferença. Mas antes e por trás desse não está o não dos recalcados, proveniente das formulações imaginárias do Outro − seja ele corpo, seja ele outro falante − que fundavam a proibição como oposição. É preciso este percurso para pensarmos sobre o que fundamenta essa maquininha, o que põe o sujeito como espécie diferente na face desta Terra: está no corpo humano, no corpo que fala. Nele há algo, alguma máquina, que é da ordem desse entrelaço, desse quiasma. Há a consciência que, no regime do não, no regime das oposições instaladas na língua − Freud deixou claro e Lacan explicitou mais ainda −, se trata da neurose obsessiva. Mas, usemos ou não esse termo de consciência, lembremos que toda uma tradição, que desemboca finalmente na filosofia de Hegel, vem estabelecer − e Hegel não deixa de assentar a diferença oferecida pelo falante sobre o desejo − primeiramente uma diferença entre o falante e o não-falante, digamos um animal, sobre a questão da chamada consciência-de-si. Hegel diz, na Fenomenologia do Espírito, que o animal tem sentimento-de-si, mas não tem a consciência-de-si que o homem tem. Usemos ou não este termo − chamemos transparência de si ou o que quisermos −, não vamos abusar da palavra consciência... Os animais respondem desde um lugar próprio − como diz Fernando Pessoa: eles têm só o que têm, eles são só o que são − e eu não sou nem o que sou. Mas isso me dá, mesmo assim, um certo sentimento de mim, de corporeidade, etc., ao mesmo tempo que começa a funcionar essa reflexão desde a minha posição − secundariamente reflexão sobre aquilo que digo de dentro da linguagem. Isso é que Hegel chama consciência-de-si. De algum lugar me vejo, no sentido mais metafórico ou se não mesmo visual, pois que há espelhos por aí: o estádio do espelho não me deixa mentir. De que lugar me vejo eu? Esta é a questão. Por que tenho essa dita consciência
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de mim? O sujeito tem a chamada consciência-de-si, fala de si mesmo, toma-se por objeto da sua falação... Isto é consciência-de-si. Um cachorro reage, mas não fala sobre si-mesmo, nada faz a respeito de si-mesmo, pelo menos que se evidencie. É essa coisa que, em tantos pensamentos, filosofias e religiões, etc., mesmo na cabeça de um Descartes, há que remeter para uma existência divina, um Deus onisciente, onipresente, onividente, etc., que me olha, me situa, e é certamente de lá que vem a consciência de mim. Assim, colocou-se para lá, para o além, o lugar de onde me vem a minha consciência − e diante do qual, obsessivamente, posso ficar fazendo meu exame de consciência, como quem faz exame de suas fezes: tudo quanto é meu dejeto, levo para o laboratório, mas isto já é neurose de obsessão. De qualquer forma, temos esse campo do Outro, segundo Lacan: Deus é o Outro, Inconsciente. É esse Outro lugar, de onde se pode retirar quase tudo. Quando Lacan diz que o real é o impossível à espera de se tornar possível, há que fazer esta ressalva, senão mesmo o Inconsciente fica sem furo, sem falta, para emergências novas do Outro. Do ponto de vista psicanalítico, podemos ver muito bem o que seja essa consciência-de-si. Freud, Lacan, deram a dica. Não estou dizendo novidade alguma − só estou propondo que se reconheça isso... Por que tenho eu − eu não sou eu e, sim, sujeito do qual posso me apropriar −, neste momento em que, dentro do enunciado, me aproprio dessa eudade, consciência de mim? Ou seja, eu me considero. O cachorro não se considera. Ele pode siderar em torno dos seus objetos, já demarcados, como o gato de Fernando Pessoa, sabendo muito bem do que se trata, mas não em torno de si − embora possa correr atrás do próprio rabo... Eu considero, sidero em torno de muitos objetos sem saber do que se trata e, pior, considero a mim, sidero em torno de eu: é a tal consciência-de-si − isto todo mundo já disse. Mas que máquina me fará, me permitirá me considerar? A máquina do corte, a máquina do presunto subjetivo... Nosso destino é virar presunto. Por enquanto, somos presuntos fatiados. Quando se junta aquilo tudo num significante último, a gente se torna um presunto, que se enterra ou se queima. Fatiados ou não, somos presunto em
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todos os sentidos, inclusive o da presunção... Outro dia, alguém me disse que fulano de tal não gosta de mim porque sou presunçoso... Mas eu ia ser o quê? Disto eu já sabia. Só que quando não aceitam que eu seja presunçoso, é talvez porque queiram que eu seja presunto... Não quero. É cedo... * * * Desde aquela história da banda de Moebius com duas pistas, mão e contra-mão, pergunto: tudo o que entra para a memória de determinado sujeito, instalado individualmente, no corpo, por exemplo, só pode vir do Outro? O fundamento mesmo da psicanálise é de que lá não havia nada, que tudo veio do Outro, inclusive as instalações identificatórias que vão fundar, para tal sujeito, sua demarcação de significante unário − S1 −, mas isto não veio do Outro e se inscreveu aqui, só, de araque. Isto se inscreveu, necessariamente, por uma questão atributiva, no sentido em que Freud a coloca na Verneinung. Mesmo entrando significantemente, não é sempre que serve. E mesmo que alguém não proíba coisa alguma, num dito, há significantes instalados, letrificados, in natura. Aí alguns podem pensar que se trata de heresia minha. Não é. Ainda que um sujeito venha emergir aqui, este corpo foi fabricado: é um corpo letrado, geneticamente letrado, ele tem limitações. Não é preciso ninguém dizer que fogo queima, pois se botar a mão, queima. Não me venham com histórias de psicóticos, porque isto é só-depois. Mas se considerar um simples animal com seus reflexos − e a criança tem certos reflexos: tentem encostar um cigarro aceso no bebê para ver o que ele faz, ele não fica feito psicótico olhando até acabar de queimar, mesmo que ele não fale −, já existem negações, proibições instaladas, escritas ali. Talvez para o falante sejam poucas. Tanto é que ele malucamente vai se perder por aí, fazendo um monte de besteiras, se o Outro não lhe disser: “não faça isso!” Ele não entende, mas não faz porque acredita, porque já sofreu um pouco, certamente. O fundamento da crença no Outro são certas porradas que o sujeito já tomou, já quebrou a cara umas vezes, vale a pena acreditar para ver se dá certo. É o que a criança faz: ela cai no chão e se lhe diz: “eu não disse?!” Esse “eu não disse”
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é talvez o fundamento da crença. E é denegatório: “eu não disse” exatamente isso, ele quebrou a cara mesmo, não escutou... Qualquer coisa que entre fica necessariamente cindida, logo em seguida, entre coisas que servem e que não servem. A quantidade de marcações que me entram como traços − que vão constituir significantes que vão se assentar como letras mais ou menos definitivas − demarcará, dentro desse campo, de entrada − de memória, no sentido computacional, de arquivação desses traços −, uma certa região que, por experiência, por historização, demarquei como sendo meus traços identificatórios − e outros não, mas que também entraram. Então, é uma grande memória, uma grande folha antes em branco e agora coberta de escritos de tudo que entrou significantemente. Porém, uma certa região, eu tomo como aquela que me define, com a qual me identifico − é a identificação simbólica −; e outros significantes, talvez a maioria, afora esse S1 − que Lacan chama de enxame, não se sabe de que tamanho: um enxame significante com o qual (com instrumental) eu me identifico... Estou falando aí não do sujeito, mas d’esse Um, que é marca, que vai permitir, na lida com o resto, eu pintar. Eu, como sujeito, é o que fica entre esse Um e o resto, como Lacan disse ser o sujeito definido por aquilo que é representado de um significante para outro. S1 não é eu e, sim, o significante, o enxame com o qual se demarca aí alguma coisa para eu pintar, entre S1 e o resto, S2. Então, isso se demarca lá como significante assentado, portanto letra, um conjunto significante que se arruma ali, se escreve, se decanta, em suma, se sintomatiza, vira coisa, real, para que, a partir disso, eu se coloque. O sujeito não é esse um, S1, nem é um ego que se desenhe ainda que em função disso. O sujeito é essa transação − e não relação − que existe entre esse enxame que me demarca e que aceito como sendo o conjunto que é a minha identificação, anotações da minha carteira de identidade, e os outros significantes, S2, que já entraram. Eles pertencem à minha memória, mas não são eu: eu é entre essa memória e uma parte que tomei para minha identificação − eu transa no meio, é a transação. Ficamos tão marcados, com aparência de personalidade, de traços caracteriais, etc., só para fazer essa transação: a minha referência são aquelas
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marquinhas, S1. Eu é essa linha mediana da banda de Moebius, que emerge a cada manifestação entre um significante e outro. Com o não que eu disse da vez anterior, eu isolo: cada significante fica sozinho por essa barra, e há o outro lado. Se eu é barra, mim quem é? É o lado da minha identificação. Eu não é mim. Marcel Duchamp tinha razão ao responder que o que fazia em sua arte era um “joguinho entre eu e mim”. Mim é a minha identificação, o meu enxame de significantes, ao qual, como sujeito absolutamente impegável, porém sintomatizado, por causa dessa referência sintomática que tenho, me apego para me relacionar com o resto. Uma vez que mim está demarcado, assinalado pelos seus significantes, pelo seu enxame identificatório, S1, embora nesse mesmo lugar, corporal se quiserem, esteja escrita uma massa significante muito grande − essa massa é Outro, S2. No campo da minha memória, as marcas que me identificam, como mim, são aquilo a que me retiro, para me chamar eu no enunciado, o qual eu não é sujeito, mas, sim, indicação de mim. Toda vez que, no enunciado, digo eu, estou falando sintomaticamente, portanto, não é ainda o sujeito, é um sujeito segundo sua instalação identificatória. Eu, sujeito do enunciado, mim sou, aquilo que se refere ao enxame de significantes, S1, da minha identificação. E, no mesmo lugar de inscrição, na mesma memória, o resto, S2, dos significantes que lá estão e que posso manipular porque os recebi, mas são Outros, não são os meus significantes, são significantes para mim. Não me são significantes... Ide a mim, se puderdes − claro que não podereis, senão a gente transava com relação. Aí é que se nega o superego do negão. Há o Outro que eu vejo e o que não vejo. Este, não posso nem chamá-lo de Outro. O que eu vejo é o Outro que entrou como significante, embora não seja mim. É claro que não se vê tudo, que a história do Outro não comporta todos os significantes possíveis... Por isso Lacan diz que o real é o impossível enquanto esperando ser possível, pois lá no campo do Outro pode pintar significante novo para mim, mas, se lá não está, não o vejo, ou estou para ver − “estou para ver coisa assim”, como se costuma dizer. A tal consciência-de-si é, então, o lugar mesmo do sujeito: essa borda, esse núcleo vazio, esse centro sem
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nada, esse umbigo do quiasma, que sofre uma proibiçãozinha, um tesãozinho, uma pulsãozinha, uma coceirinha, um esfregaço, mas que sente, que sofre uma raspadinha toda vez que mim se difere do Outro − toda vez que, de dentro do meu campo de memória, a distinção Outro/mim é exacerbada porque tocada. Tocada porque, pelo quiasma, posso trocar de lugar com o Outro. Então, esta consciência-de-si não é senão aquilo que, no Seminário O Pato Lógico, mostrei já reduzido num esquema, o esquema da paquera. Ali, estava muito localizado − era a diferença de transação sexual entre animais e falante −, mas o que estava no lugar da entrada para o falante era um espelho. Então, o que é esse quiasma de Merleau-Ponty, de Lacan também, senão alguma coisa que tem a ver com − aqui usarei um conceito muito maltratado e lhe darei uma definição pessoal, é um velho conceito que nasceu na Estética e depois entrou de sola na psicologia e foi muito maltratado por causa justamente do tal do afetivo − a Einfühlung, a intuição, a empatia? Era justamente, como diziam os estetas, o que se distinguia nesses fenômenos de a gente sentir afetivamente uma obra de arte se pudéssemos ter só sentimento, Einfühlung, com ela − como se entrássemos, passássemos para dentro dela. O que nos interessa aqui é a empatia nesse sentido de que posso me colocar no lugar do Outro, o que era tratado “afetivamente” pela psicologia... Só que ninguém soube explicar o que era “afeto”, antes de Lacan. Era da ordem do “afeto” eu poder me sensibilizar com o Outro, pelo menos me colocar na situação, no lugar dele, sensibilizarme com o texto, com o acontecimento, no Outro, sentir como se fosse comigo. Posso eu sentir como se fosse comigo? Não! Posso é me colocar no lugar da leitura que faço, porque suponho que está acontecendo lá, não em mim, lá no Outro. E aí, sinto coisas, é claro, penso coisas. Mas o que nos importa é aquela travessia. A tal consciência-de-si se dá porque tem mim para cá, Outro para lá, e o Sujeito no meio: S1 para cá, S2 para lá, e o sujeito gozando − é o termo − no meio. Então, no que a S1 eu me retiro para me situar como sujeito, eu me retiro é sob as vistas de S2 , do Outro. É o Outro, que antigamente chamavam Deus, que tem a ver comigo nessa transa. No que, como sujeito − barrado, $ −, me
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retiro pelo Outro, tenho “consciência-de-mim”. Minha posição de sujeito é o intervalo entre mim e o Outro a cada momento, e só me reconheço, quer dizer, retomo como sujeito minhas referências identificatórias, a partir do confronto disto com a massa do Outro. É preciso que o Outro esteja de olho em mim, para que eu me veja: só me vejo com o olho do Outro, ou melhor, eu só mim vejo com Outro olho. Como eu poderia me ver se fosse como o gato de Fernando Pessoa? Gato não se vê, ele só vê. Mas eu, eu me vejo, com o olho do Outro. Quando estou lendo um texto pode acontecer como me dizia um analisando que estava estudando Freud: ele fechou o livro e não estudou mais porque com tudo que lia ficava muito turbulento, pois o texto estava falando dele. É natural. Todo mundo que começa a estudar psicanálise, começa pensando que o Outro é o superego, mas não é. O Outro é mais sacana. Superego é apenas um outrinho de merda que quer ser mais para mim do que eu mesmo. O Outro, não, ele topa qualquer parada, tudo que cai na sua rede é peixe. Então, como o sujeito põe às vezes o filtro do superego entre o Outro e si − no sentido de self, que, na psicologia, é um mim −, tudo lhe chega como de uma vigilância incrível. Em vez de lhe chegar como uma simples visão, uma simples situação do mim, chega cobrando coisas, pela voz de outro-mim... E não a voz do Outro − que é uma voz cava... A voz de Deus não cobra coisa nenhuma. Simplesmente sacaneia o cara, diz coisas, e o cara vai atrás... Basta ler a Bíblia: aquela judeuzada toda falava com Deus. Alguns tinham a impressão de que Deus era superego, e se escondiam. Quer dizer, a consciência-de-si não é senão quiasma, que existe necessariamente dentro da linguagem. E, digo eu, é possível que Merleau-Ponty esteja absolutamente certo, pois essa máquina de instalação da diferença − diferença de espécie do ser falante − talvez seja até perceptivamente assim... *
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Isso é a linguagem − é o que quero dizer: A Música, A Linguagem, é essa máquina da minha instalação. Ela veio com o boneco, que nasceu
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com ela, depois ele vira gente, porque se aproveita dela e fala. O boneco do cachorro, por exemplo, não fala, não vai falar, não nasceu com ela. É muito bonito falar de linguagem, tratar a respeito dela − mas tem que estar lá, lá no boneco, no macaco que nos porta, no “macacão” do nosso autossoma. Portanto, nascemos com a máquina que é a linguagem, que se chama a linguagem, quiasma, revirão, zezéro, cambalhota, alteridade. E, por causa disso, falamos... É possível que o tipo de percepção desse macacão falante já não seja o mesmo do gato, do cachorro, já seja um negócio transado na base do vai-vem. Tenho para mim que o acabamento − mielina, etc. − do animal já fecha de tal maneira o sistema que ali não se faz quiasma. O falante, este, não tem uma linguagem, ele é linguagem. Ele é mesmo, porque já nasceu linguagem − essa máquina tem que estar aí. E porque ele é linguagem, ele acaba linguajando... Ele vai fazer o quê, se já nasceu assim? Se der uma ingresia qualquer, se tiver um desbarato, uma pane qualquer na máquina, pode dar um oligóide, um debilóide, etc., eu não sei como se faz isso... Mas tenho que supor que essa máquina vem assim. Não estou supondo sozinho, pois quando Lacan diz que o falante não é a mesma coisa que o sujeito − o sujeito instalado na língua −, quando usa a metáfora do estádio do espelho, quando recorre à diferença etológica entre o falante e o animal, há que se supor, porque não se é tão débil mental assim, que isso já está lá. A gente só tem certeza que é gente depois que fala, mas no só-depois, porque se fala, a gente supõe que já nasceu gente − a gente só não tinha era notado. Boneco falou, não é mais boneco. Macacão falou, então é humano. Aí está a tal da minha consciência-de-mim. Não é senão que posso, no sentido de empatia, porque sou fabricado assim, me colocar no lugar do Outro, o que não é estar tão fora assim. Aliás, Lacan disse que o inconsciente não é freudiano e, sim, lacaniano: é o que hic et nunc não se diz. Se estou agora dizendo a palavra cadeira, o resto é inconsciente, o que não se diz, não se diz mais, não se diz menos. Posso até dizer palavras que não estão proibidas. Quando digo a
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palavra cadeira, a palavra mesa, por exemplo, está recalcada, embora possa não estar proibida − aí se trata de outro nível do recalque. Além das palavras que não estou dizendo aqui e agora, há outras que estão, ainda por cima, proibidas de serem ditas. E existem aquelas que não me demarcam, que são sempre outras para mim, são a minha estranheza: sou sempre estrangeiro, como dizia Fernando Pessoa. Qualquer um é estrangeiro em qualquer lugar, pois se as suas demarcações são x e não y, você está sempre numa estranja, que é o lugar do Outro − lugar só de onde você se pode demarcar. Quem fala é eu, com a boca de mim. Eu não tem boca, eu é boca. Na anatomia do falante, eu é buraquinho: os buraquinhos de mim, que são demarcatórios significantemente, fazem parte do meu corpo − com os buraquinhos de mim, falo eu. Na verdade, nos damos conta desde sempre da existência do Outro e da tal da consciência-de-si. Chamou-se de várias maneiras. Aqui estamos tentando ver o que está lá inscrito porque é importante, do ponto de vista da psicanálise, fazer essa distinção. E é importante de um ponto de vista que considero essencial: o tal do ser-humano não revela, ou não se revela, coisa alguma senão pelos seus produtos. Quando esses produtos chegam à mal falada engenhoca, ao mal falado gadget, então a coisa fica mais evidente. Quando posso, porque sou habitante do Outro − demarcado dentro dele −, transar com ele, comprar suas transações e manipulá-las porque me coloco de intervalo a intervalo, acabo até podendo sintomatizar, mais ou menos à vontade, conjuntos de significantes que vou roubando desse lixo que é o Outro. Isto me permite articular palavras, frases, etc., e... máquinas. Consigo reproduzir, ou melhor, repetir, com a maquinaria de outra composição corpórea, a minha maquinaria. É o que faço: estão aí os computadores que não me deixam mentir. Não sei por que devo ter medo da possibilidade de se criar um computador subjetivo. Só não se pensa nisso porque as pessoas botaram na cabeça que foi um Papai do Céu, que na verdade não é do céu, é superego mesmo, que as fez. E ficam pensando que é pecado ultrapassar o homem. É pecado sim, mas não se vai ultrapassar coisa nenhuma − é a mesma porcaria,
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só as moscas são outras... Não sei por que não se pode pensar que uma reflexão cada vez mais acurada, mais precisa, a respeito dos mecanismos do pai, possa permitir construir um computador subjetivo, que tem neurose, essas coisas todas, que vive como se fosse gente... Certamente que o S1 dele é diferente, mas o resto é tudo igual... E com mais privilégios que nós, porque eu não posso enfiar uma tomada no rabo do próximo e transmitir direto memória minha... E posso criar um discurso perene, imortal, como já temos criado por aí, mas cujos registros ainda são muito precários. Seria um sujeito original que sabe das coisas, Claro que não vai deixar de ser doentinho como nós... A ficção desse computador − não tenho estranheza com esse cara. Acho que ele é construível. Os engenheiros é que são incompetentes, ou temerosos. Freud tentou dar conta disso com metáforas pobrezinhas, mas que eram explicativas de qualquer modo: a do bloco mágico, por exemplo. Hoje temos computadores a granel, podemos entender o que seja uma fita de programa de computador, uma memória... Por exemplo: em termos de anotação hologramática, com raio laser, podemos ter numa superfície mínima uma biblioteca inteira, uma Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos... A questão de se escrever e se levantar a tampinha lá do bloco mágico de Freud é uma questão banal hoje em dia. Um computador guarda memória e recebe mais memória... E mostra as suas defesas, suas limitações... Imaginemos um grande campo do Outro, campo do S2, campo do
A / . Claro que ele é aberto, tem que ser aberto. Tem um caminho e tem um buraquinho − que Lacan chama de S( A) / − por onde vai entrar o que jamais entrou: é o furo do Outro. Então, dentro desse campo do Outro com sua compleição significante há uma região, uma ilha, literal − litoral, como diz Lacan −, do S1, que quero chamar de memória identificatória, (MI). O S2, quero chamar de memória extra, (ME). E vai entrar a memória nova, (MN), a informação nova, pelo buraquinho do Outro. Ora, se imaginarmos computacionalmente um sistema como este − em que, com referência a um enxame de significantes, associações livres, quer dizer, demarcadas, são
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possíveis, fazendo-se o jogo de todas as informações para cá, e para lá, e ainda com a entrada de informação nova a acrescentar o campo −, teremos o computador do sujeito. O sujeito se escreve ali. O que há de oito interior é quiasma d’esse-Um com esse-Outro.
Na Arte do Arco e da Flecha, é importante pensarmos o que o Zen quer ensinar e que custamos tanto a entender. Não é a mesma coisa que, no pensamento ocidental, pegar a arma, apontar para o alvo e matar. Temos lá uma técnica de reflexão, de relaxamento, etc., e o que vai contar não é ter acertado a flecha, fazer ponto, mas, sim, o atingimento enquanto encontro. Eles querem dizer com isto que, através de uma arte marcial, podemos nos dar conta da tal consciência-de-si. No quiasma que há entre minha posição e o alvo − Outro que quero atingir −, eu sujeito só posso ser o arco-e-flecha. E porque eu sujeito vige no meio, como eu sujeito posso me colocar no partido do Outro, então eu sou o alvo ou sou o atirador? Esta é a questão do Zen. É que eu subtroco, por razão de sujeito, minhas posições sintomáticas em Einfühlung: por empatia, vou lá buscar a flecha. É muito mais simples dar um passo para o outro lado e puxar a flecha para si: atiro a flecha em mim. Imaginem essa coisa aparentemente absurda: eu atirar uma flecha e ela me entrar pelas costas. Só em cabeça de Einsten. *
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Chamei a sessão de hoje de Papilas, Pupilas. Não é só pupilas, há também papilas. Tudo é uma questão desses buraquinhos que estão no corpo. Borda do sujeito bem representado pela “menina dos olhos”,
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que deve se chamar assim certamente porque é feminino. Mais uma vez é pelo lado feminino que se vira gente. Há que ser literalmente enrabado, atravessado pelo Outro para que se venha a existir com alguma marca, não tem saída. Está aí também uma repetição da distinção masculino/ feminino, de Lacan. O masculino é nitidamente da ordem da obediência às fronteiras, ele não entra n’outra. O que se diz na formulação quântica de Lacan é que a referência ao não se torna garantidora do si-mesmo: “Eu me garanto”, dizem os homens. As mulheres dizem isto de outra maneira: “Eu me garanto, porque ele é imbecil o suficiente para pensar que eu sou eu”. Ela só se garante pela imbecilidade dele. O feminino é justamente a periclitância da margem, da fronteira. Isso pode ser visto facilmente com referência à travessia. Por isso Freud dizia que as mulheres não são bem flor que se cheire, que do ponto de vista moral elas são meio travessas − elas atravessam muito... Só que é uma tolice pensarmos que isto vem escrito nas xotas e pirocas desta vida... Retomemos a questão da metáfora. Eu dizia, pelo final da sessão passada, que o animal não faz metáfora. Posso até dizer que ele tem, ou que ele é uma metáfora. Lacan põe aí uma distinção entre o animal e o falante, que, este, faz metáforas. Eu dizia, também, que a distinção entre falante e animal não é apenas o simbólico como substituição metafórica em identificação por traço distintivo, mas o recurso ao não opositivo. Vai aparecer aí uma coisa espantosa − e vamos ver que Lacan tem razão em situar na metáfora um processo de subjetivação.
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Vamos desenhar uma barreira de não, que, tal como acontece com os traços do I Ching, é simplesmente limite, fronteira. Se eu disser que do lado esquerdo pode e do lado direito não pode, não preciso escrever esse não do meio. A barra é apenas a fronteira entre o sim e o não. Então, o que é uma metáfora? Se tenho um sim oposto a um não, é uma troca entre marcações de sim e marcações de não, e, aí, posso conceber os cruzamentos que dão sustentação à metáfora. Ou seja, na medida em que posso pensar aquilo que disse sobre a consciência-de-si, e o atravessamento − quando posso, por minha posição subjetiva, por ser intersticial, colocar a mim no lugar do Outro −, posso nomear, no lugar da enunciação, não só a mim como eu, mas o Outro como eu. Lembrem do que Lacan fala de Booz, o qual pode, empaticamente, no sentido que dei ao termo, colocar-se no lugar de sa gerbe. Lacan diz que o essencial da metáfora não é que se troque para lá ou para cá, e, sim, situar-se o substituto no lugar do sujeito, quando ele se aponta. Ora, o sujeito só se aponta num enunciado por um mim, então, vamos retirar isso do conceito mais estrito de metáfora e colocar no de reviramento, do que vai lá e vem cá, ida e volta em quiasma. Se posso, a partir de um sim que é mim − chamemos de autos −, me distinguir do Outro − alter −, se, por causa dessa demarcação, eu me distingo, me diferencio do que é Outro, mas se, por causa da possibilidade de travessia eu posso empaticamente trocar de lugar com o Outro, eu estarei fazendo, com isto, um Revirão, no qual posso, ainda que só simbolicamente, no sentido lacaniano, subtrocar os lugares. Agora, não sou mais este, sou o Outro − e o Outro não é mais aquele, é eu. No Seminário d'A Música, p. 254, naquela construçãozinha em paralelogramo que fiz com Booz e Não-Booz, se Booz é sub-trocado, por via alélica, Não-Booz é se dizer como Booz. Este é o fundamento da metáfora no sentido psicanalítico − não qualquer troca. É evidente que sa gerbe não é metáfora e, sim, sinédoque. Lacan insiste em que o que está chamando metáfora é que o seu lugar de referência o sujeito troca por outro nome. Portanto, as metáforas que interessam no campo da prática analítica são as que dizem do sujeito quando ele pode se trocar.
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Então, quando digo que o essencial da diferença específica entre homem e animal é da ordem da bifididade, do revirão, é nesse sentido em que o fundamento topológico da metáfora é, para mim, o revirão que é possível haver, com empatia, entre minha posição de referência e minha troca dessa posição com o lugar do Outro. Só de faz-de-conta, mas posso. E o que terá sido minha fundação como aquele que se demarca como S1 do lado de cá, por seus traços, senão ter tido essa máquina que lhe permitia − entre parênteses, porque não havia nenhum ser − colocar-se no lugar do Outro? Não estou contradizendo Lacan e, sim, dizendo que, se há fundamento na fabricação de metáforas, se isso permanece aberto, se originariamente foi metaforicamente por traços distintivos que o sujeito se situou, é porque a máquina fundamental que se chama linguagem é a estrutura do revirão, como no quiasma de Merleau-Ponty... E até me pergunto se, quem sabe, um raciocínio desses não ajuda a construir o computador que possa conversar conosco? Usamos todos os dias, sem nos darmos conta, umas maquininhas que foram inventadas por alguém, muito importantes, e que são tão vagabundinhas... Os clipes, por exemplo, eles não se fecham sobre si mesmos, mas se se fechassem, se fossem acabados como um oito-interior, funcionariam do mesmíssimo jeito. Os clipes seguram passando de um lado para o outro − é o passador. As mulheres chamam um negócio assim de passador de cabelo. E passa a dor mesmo − passa, porque se você altera, pára de doer. É o fundamento da cura psicanalítica. *
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Há o conhecimento paranóico e há a objetificação paranóica. Toda vez que se instala um objeto, é paranoicamente que ele se instala: pelo menos na suposição de que o Outro o deseja − o desejo do homem é o desejo do Outro. Se o Outro não quer, eu vou querer para quê? Uma coisa só presta, só é negociável, se outro a quiser. Se ninguém a quer, para que serve? Temos aí, também, a questão do olhar, que Lacan coloca na razão do quiasma. O olhar, como objeto a, é puro furo, menina dos olhos. Quer dizer, é
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aquilo que me chama. Fui chamado por estar em falta − mas essa falta não me pinta se não for falta do Outro. Então, precisamos estabelecer uma pequena diferença que ultrapassa o conhecimento paranóico, pois nem tudo é conhecimento paranóico. Mesmo porque todo conhecimento pode ser paranóico, mas nem toda paranóia é conhecimento. Para além do olhar, existe o ver. Se olho, é porque não vejo. Meu olhar, enquanto objeto a constituído, imaginarizado, só vai ver o que interessa, isto é, a construção dada. Por outro lado, se posso fazer o olhar resvalar − tentei mostrar isto num trabalho, do qual aliás não gosto, sobre Cézanne −, se consigo representar o que acho que Cézanne quis representar − embora houvesse um olhar constituído nele, que exigia que se olhasse para além −, constituir um olhar que é um não-olhar, se puder tentar olhar para o objeto a enquanto tal − e não imaginarizado −, olhar para o furo, olhar para fora, aí eu posso ver. Quando você olha dispensando o olhar, ou seja, olhando para coisalguma, talvez aí você veja. É o momento em que o artista, o poeta, se deixa penetrar pelo Outro, por aquilo que ainda não estava nele... Por que o analisando é cego? Por que ele não vê? Porque ele só olha. Ao contrário do que se pensa, olhamos sem ver − Jesus Cristo já dizia isto. Para ver, é preciso primeiro olhar. Se você não olha, você não chegará a ver. Então, o olhar é condição de ver, e ao mesmo tempo atrapalha todo o ver − assim como a transferência é condição da análise e empecilho à análise. A transferência é o olhar que o analisando pousa sobre o analista, sem o qual ele não o situaria e com o qual ele não consegue jamais chegar ao fim da sua análise − é a análise infinita de Freud. Aí Lacan diz que é justo, por o analista insistir na posição de objeto a, que o analisando talvez perca o seu olhar e veja afinal. O olhar sabe o que procura, e não acha. O ver é o olhar do espelho Zen, sem nenhuma poeira, que Nada procura e por isso acha − por ver...
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Por ocasião da minha defesa de tese para doutoramento, havia, na página de rosto da minha tese, uma sinopse que indicava ali uma abordagem lacaniana do tema tratado. Um membro da banca examinadora, com brilho proporcional à crítica, contestou essa minha indicação do “lacaniano” − o que vinha provar que ele lera pelo menos a página de rosto − dizendo que lacaniano era o discurso de Lacan, aquele feito por Lacan. Que eu deveria chamar aquilo de lacanismo. E talvez ele estivesse certo... Respondi, na ocasião, que estava utilizando o termo lacaniano da maneira corriqueira que se utiliza quando se faz referência a um autor a cuja mestria assumimos estar subditos, assim como se diz freudiano etc. No entanto, ele talvez não estivesse sem razão, e é preciso lembrar isto. É bom lembrar, como aquele doutor, e como já tenho repetido aqui, que não me chamo Jacques Lacan. Com isto, se posso indicar quem considero meu mestre, não me obrigo, de modo algum, à reprodução, à cópia, uma vez que a repetição, aonde caio, como tal, é jogo da diferença, a partir de uma transmissão. Portanto, se lacaniano quer dizer aquilo que Lacan faz, é preciso não ser lacaniano. Toco nisso porque nossa cara Clare Isabella Paine, outro dia, me dizia que “os lacanianos são uns chatos” − com o que concordei plenamente. Os lacanianos são uns chatos − e no sentido ruim da palavra. Ela os comparava, na ocasião − dizendo que já estava de saco cheio de conversar
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com lacaniano −, com aqueles comunistas conhecidos, que têm sempre aquele mesmo papo de sempre. E ela me explicava que os lacanianos ficam repetindo sempre as mesmas coisas: qualquer coisa que se diga é o Outro, é o Sujeito barrado... realmente é um saco. Será falta de imaginação, de originalidade, ou falta de respeito? A repetição não é chata em si. O que é chato em si é a compulsão à reprodução. Ecce exiit qui seminat seminare, diz o texto latino de um fragmento de um dos novos testamentos: eis que saiu o que semeia a semear − frase que serviu a um dos mais conhecidos sermões do Padre Vieira, de castiça mestria na língua portuguesa. Ele chama atenção, aí, para que o texto bíblico não diz “o semeador” e, sim, “o que semeia”. É o ato de semear que faz o que semeia. Ninguém é semeador, senão pelo ato. Terá sido isto o que Lacan fez: ecce exiit qui seminat seminare. Estamos aí diante daquilo que os estóicos chamavam logos espermatikos, a razão seminal, seminar, donde os seus seminários. Quando sai a semear o que semeia, espargindo o seu logos espermatikos, eventualmente acontece alguma emprenhação, e quem sabe um futuro parto. Não basta estar emprenhado − aliás, se usa em brasileiro dizer que o sujeito está ou é emprenhado, quando dele não sai nada − é preciso o parto, ou seja: uma transmissão, uma disseminação, uma semeadura, deve ser gestada para chegar a se parir em originalidade, como particularidade, nisso que Lacan chamava o estilo, o último lugar onde se pode chegar, e que, parafraseando Whitehead, eu diria que é a ética suprema do sujeito. Entretanto, que não deixem, os subditos à mestria que acaso me imputem, pelo que digo, de copiar Lacan, para copiar a diferença que agora aponto. Não suponho que possam liberar-se desde já à plena entrega de alguma originalidade de estilo, sem que primeiro bem possam gestar, no próprio ventre, uma semente do Outro, antes ainda que uma distinção e um isolamento venham denunciar o parto de uma nova estrela. Voto de obediência resulta em poder de autenticação, de autarquia. Não é preciso nem ser um lacaniano chato, nem se supor original de saída. É preciso fazer a gestação do esperma recebido. E fazer essa gestação é toda uma elaboração, uma alimentação, etc., que não é
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mera cópia do momento da emprenhação. Por isso é que, não me chamando Jacques Lacan, embora apontando a mestria que lhe imputo, continuo a me repetir, sem ter que copiar necessariamente. Posso é continuar a questionar, em obediência. E por isso estou falando hoje da luxúria. *
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Ao contrário dos estruturalistas que desde os anos 60, pelo menos, vêm regendo as cabeças do mundo, promovendo uma descontinuidade radical entre natureza e cultura, eu me pergunto, tendo reconhecido em que lugar, ou em que nível, essa descontinuidade é formulada, se não podemos pensar, agora, numa continuidade, pós-estruturalista, entre natureza e cultura, porém em outro nível. Chamemos isto do que quisermos: pós-estruturalismo, estruturismo, producionismo, sintomatismo, tecnicismo, ou tecnismo − de techné, a produção grega. Acho que, em função de algumas coisas que eu disse no passado, em outro Seminário, deveria chamar de faturalismo, ou artificialismo. Lacan aponta, n’A Ética da Psicanálise, que o fundamento da psicanálise é ético e não ôntico, ou ontológico. Mas como ele postula, necessariamente, como Freud, uma falha ôntica no falante − ele confessa, num Seminário mais recente, que talvez não deixe de haver uma ontologia lacaniana −, podemos pensar que se o fundamento da psicanálise é ético, por outro lado, o fundamento dessa ética é ôntico − o ôntico dessa falha reconhecida pela psicanálise como algo que não falta jamais. Para a psicanálise, a falta é justamente o que nunca falta. É a falha ôntica como impossível de se escrever, o que é um verdadeiro axioma lacaniano. Daí que o objeto a, como desobjeto, como fundamentalmente perdido, nunca tido, jamais havido, é real. Seu lugar é o espelho, na medida em que Lacan aponta esse objeto não havido como não especularizável, nem imagem especular. Até segunda ordem, diante do espelho, só o próprio não tem imagem especular: ponto cego, o espelho que tudo vê.
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Aliás, vampiro também não tem, mas isto é outra história. Um dia eu falo dele. Supostamente não tem... Seria interessante pegar o livro de Bram Stoker, o Drácula, para fazer um trabalho aqui. Por que vampiro não tem imagem? O objeto a é o sujeito aspirando por se encontrar, por se imaginar. É o fundamento axiomaticamente ôntico da psicanálise. Está na conjetura, teórica naturalmente, de que a falha nunca falta. A falta, a ausência, é justamente o que indefectivelmente está presente. Se nunca falta, está presente sempre. Portanto é real, numa das modalidades de como Lacan o definiu: aquilo que está sempre no mesmo lugar, que retorna sempre ao mesmo lugar. Mas que diabo de real é esse que venho tentando abordar há algumas sessões? Ao real de que falo como neutralidade, neutralidade que chamo de coisalguma − e coisalguma já é um nome −, ao real não falta nada. Ele nos falta, mas a ele nada falta. Quero situar melhor essa neutralidade, que não é a possibilidade de se pensar o impensável de absolutamente nada. Isto não é só impensável, como não existe. Não é a idéia antiga do vácuo, mas sim a mais antiga ainda do vazio, e a mais atual. Não é aquela idéia do vácuo da física nascente, mas o vazio proto-físico, digamos assim, de certos pensamentos orientais, e o vazio da microfísica contemporânea. Um físico chamado W. Thirring, num artigo intitulado Estrutura originária da matéria, publicado no Almanaque da Academia de Ciências da Áustria, Vol. 118, p. 159, falando da teoria do campo unificado, que é um desejo da física, e que hoje se pensa como um campo neutro que gera a matéria, diz que “o campo existe sempre e por toda a parte”. Portanto, não é uma ausência de substância ou de energia, por toda a parte há o campo. “Nunca pode ser removido. Ele é o suporte de qualquer fenômeno material. É o vazio a partir do qual o próton cria os mésons-pi. O surgimento e o desvanescimento de partículas são, meramente, formas de moção do campo”. Isto para limpar a idéia de que haveria um nada absoluto, no sentido de imaterialidade. O campo é neutro, porque dele eu nada tenho por escrito. Ele como que se movimenta e se coalesce em partículas.
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O antigo mestre chinês, Chuang Tsé, dizia: “Quando se sabe que o Grande Vazio é cheio de Chi, saca-se que não há tal coisa como o Nada”. Mais uma vez ele está dizendo que Chi, essa coisa indiscriminada, indiferenciada, no entanto materialmente dada, é o tal do Vazio. Portanto, não há falta de Chi. Chi existe materialmente: Há. É aquilo que estou dizendo há algum tempo que Há: o Real. E Há com modos de Haver: Real, Simbólico, Imaginário, Sintoma. Lao-Tsé dizia que “todos os seres saem do Ser, mas o Ser, saiu do NãoSer”: do Real, saiu de Chi. E Chuang-Tsé acrescenta que “todos os seres, os quais saíram do Ser que saiu do Não-Ser, retornam ao Não-Ser, a Chi”. Igualzinho à física de hoje. Poderíamos pensar, por mero prazer de fazer science-fiction, num grande ping-pong do big-bang, que, ainda que não verdadeiro para a física, serve para a ficção e, portanto, para a Linguagem que se aplica à física − seria o Revirão do Universo. Imaginemos dois pólos supostos de concentração de matéria, mas que é um pólo só − são duas maneiras de funcionamento do pólo. Os físicos pensam num big-bang, numa grande explosão que formou o Universo conhecido. E, hoje em dia, pensam que essa explosão não é infinita, que não se propagará para sempre, que está se encaminhando para algum pólo de concentração de matéria, onde tudo se aglutina de novo e, de tanta aglutinação, vai dar numa outra explosão. Estamos aí diante do próprio oito-interior, quer dizer, do revirão. Eles explicam, fazem esse modelito para explicar a relação matéria/anti-matéria. O oito-interior, se considero a reversão como no lugar do a, é o lugar da explosão. Então, uma grande explosão ali, a coisa vai, e depois retorna, e se concentra ali mesmo... De novo outra explosão e passa para outra coisa − quem sabe se passa para o avesso? E se a diferença entre matéria e anti-matéria são ritmos dessa explosão? É o ping-pong do big-bang. A metáfora é apenas para nos juntarmos ao discurso da física, porque, se ele não é verdadeiro enquanto declamação do real, pelo menos é verdadeiro enquanto manifestação da linguagem. *
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Aí que, para mim − como tento lhes dizer −, o real não é o concreto. Não é isto que me explica ou o que me apresenta o real. O concreto é a dureza, que na verdade é sempre relativa, de qualquer realidade que é sempre aparente, seja manifesta ou latente, mas é sempre uma configuração material qualquer. Não basta sonhar o real como os embates com durezas, pois até uma frase tem dureza, e o imaginário é extremamente concreto. O que designa o real é a neutralidade, essa possibilidade de auto-explosão em partição bífida. É a dureza, por exemplo, do real que está em jogo no chiste, no ato falho, como lugar de reversão para o contrário, quer dizer para o Outro, para a outra coisa, seguindo-se meu esquema do não: ou bem é isso, ou é o contrário disso, ou seja, Outra coisa. O tropeção no chiste, no ato falho, são expositores dessa dureza do real ali imaginarizado. Mesmo quando se pretende fazer uma piada, se ultrapassa a intenção: o engraçado no chiste, como no ato falho − senão o angustiante, ou pelo menos sengraçante −, é a cambalhota aí produzida pelo revirão − é o cúmulo da graça... A neutralidade do real, como vazio, não é coisalguma como ausência de substância, ou de matéria, ou de energia. Não é um não-haver. Há uma neutralidade, como aquela postulada pelo Zen, a qual é, de fato, máquina original e originária de reversão, assim como a superfície lisa, que reflete, nisso que chamamos de espelho, ou melhor, que na verdade refrata, pois o espelho, enquanto tal, pode ser concebido como uma lente completamente diferente das outras: vira pelo avesso o que quer que a toque diretamete, refrata em reversão, não em inversão de uma posição no espaço, mas em avesso. O espelho é apenas uma comparação didática. Podemos tomar, também, a superfície em branco de um papel fotográfico, como já trouxe aqui, a qual, tocada pela luz branca, inscreve o preto, e, tocada pelo preto, inscreve o branco. Não sei se vocês estranharam este último lance. Não sei por que somos tão parciários... Tocado pela luz branca, o papel fotográfico inscreve o preto. Aí se diz costumeiramente que, quando não tocado pela luz branca, ele permanece branco − mas é quando ele é tocado pelo preto, é claro! A gente acende e apaga a luz. Mas a gente pode pensar que acende a luz branca e depois acende a luz
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preta... É em função do não radical do recalque que se fica nesta questão de luz branca e ausência de luz. Essa reversão é comparável com o que acontece nos limiares perceptivos, segundo certas psicologias da percepção. Quando à nossa visão sobrevém uma luminosidade violenta, forte demais, há pelo menos um instante de cegueira que é escuridão. Assim como quando sobrevém a escuridão, há visão de, pelo menos, pontos luminosos. É o caso de se perguntar, depois de Merleau-Ponty, se essa reversibilidade não é peculiar à percepção enquanto repetidora desse processo positivo/negativo. Chamo a atenção para isto, para aquela concepção de real e para esta concepção dos opostos na percepção − mesmo na inscrição simbólica − que vão ser, como mostrei, isolados e surgir num sim e numa ausência de sim pela oposição não de dia e noite, mas de dia e não-dia − daí essa coisa de dizer luz (branca) e ausência de luz, mas que originariamente terá sido uma reversão. Conceber assim é alguma coisa da mesma ordem da diferença que existe no nível do cristianismo, onde estamos mergulhados, entre a ortodoxia da Igreja do João Paulo e a Gnose que foi massacrada por essa Igreja. Vocês sabem que os cristãos primitivos não eram essa coisa que está aí. Havia diferença quanto às influências culturais, de tal maneira que um certo cristianismo de submissão ao texto do Velho Testamento, ou seja, de invocação judaica, é que se transforma nessa atual Igreja. A qual, para sobreviver como está, com o poder que conseguiu, teve que literalmente massacrar, entre outros, os gnósticos, que eram cristãos também, mas com influência de outra ordem: Egito, Irã, Índia, filosofia grega, etc. Eu me pergunto se a psicanálise não é como uma Gnose do nosso tempo, diante de tanta “ortodoxia” nitidamente de influência de um mundo judaico. A ortodoxia cristã postula uma positividade puramente diferencial sobre um fundo ideal de Não-Haver. Está lá no texto bíblico: não havia coisa alguma, fiat lux!, e daí para a frente houve. Sobre um não-haver se dá, positivamente, o fiat lux, o Um. O conceito de Um dessa dita ortodoxia é o de Um positivo (+1) sobre Zero, sobre uma sutura, como se a tabula rasa não fosse, antes de rasa, tabula.
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Já a Gnose postula uma dualidade original, uma unidade bífida, opositiva, uma dualidade que inclui uma instância terceira, se não primeira. Não há, para ela, nenhum fundo ideal de não-haver, apenas há, neutramente, e logo bifidamente, quando o fiat lux é fiat tenebris, nâo havendo um sem outro, fort sem da. Estou apontando uma vocação positivista da ortodoxia católica, como se houvesse da sem fort. O Um da Gnose é mais-ou-menos Um. É um Um mais-ou-menos, em bi e anfi sexualidade, quando o andrógino é requisitado para justificar e arrazoar a neutralidade originária − originária ainda que só-depois, isto é, em função de Um-mais-ou-menos inarredável. Quando a psicanálise, pelo menos com Lacan, diz que o andrógino é impossível, está dizendo que há o andrógino como impossível, originário, como real, como objeto a. O que quer dizer que a ortodoxia católica começa no sintoma, baseada na ortodoxia judaica. O Deus (Jeová) dos judeus é um deus decadente, segundo a Gnose, um deus de terceira classe, um deus sintomatizado que não remete à sua própria criação a partir da neutralidade radical do Deus supremo que eles postulam. A ortodoxia católica, então, começa pelo sintoma, para considerar as ocorrências como efeitos de suas manifestações. A Gnose começa do real e entende o sintoma como estase de uma de suas partições. Daí essa idéia, tão mal-dita hoje em dia, do maniqueísmo − de Mani − que é a de dizer que esse deus dos judeus necessariamente tem um contrário: pois que ele já chega dizendo não, logo, tem que haver um que diz sim. Mas o que se postula na Gnose é que, por trás, por cima e originariamente antes desses dois deuses, há um que é neutro, que não tem nada a ver com nenhuma posição de bem e de mal, que fica mais além de bem e mal − como dizia o louco Nietzsche − e onde é nossa morada original. Aí se começa do real e se mostra que o sintoma é estase de um dos sexos da bifididade que vem em seguida a esse real. Ou mesmo se começa do sintoma e se busca seus antecedentes no real. Os gnósticos criticaram e subestimaram o deus dos judeus como um deus regional − poderíamos dizê-lo provinciano e, não, providencial: um deus sintomático e, por isso, oponível à sua contraparte em Lúcifer, Satã, o qual só era mau para os judeus, naturalmente. O Deus dos gnósticos, este, era
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a suprema ou, pelo menos, original neutralidade, de onde se poderia tirar luz e treva com igual estimação. É o pedido de Nietzsche, por exemplo, em Mais Além de Bem e Mal e na Genealogia da Moral... Aliás, vocês devem saber que Freud declarou que não podia ler Nietzsche, de quem foi contemporâneo, por achar que devia ser tão parecido que poderia se misturar na dele e sair da sua própria. Eu me pergunto se a psicanálise não é como uma Gnose do século XX. Não é à toa que Freud falou em peste. Peste para a “ortodoxia”, devia ser... Ortodoxia quer dizer opinião direita, reta, normal. A psicanálise é de opinião sinuosa, em revirão: sim, mas, porém, contudo, todavia, senão, entretanto, no entanto... Podemos dizer que a psicanálise é hortodoxa, do radical latino de ortativo, que quer dizer o que exorta. O que exorta é aquilo que ex-orbita. É o que incomoda quando a tendência da psicanálise é virar psicologia, ou senão papo chato de “lacaniano”. É o que incomoda na existência não-ortodoxa da psicanálise, ou seja, não-ortopédica, num discurso que procura destacar uma verdade, seja qual for, doa como doer: se for Satã, que se dane Jeová; se for Jeová, que se dane Satã... *
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Estou, então, partindo desse conceito do real. Como situei o espelho como metáfora, podemos compará-lo um pouco com o real como lugar nãosituável de transiência pela reversão entre os alelos de um halo. Lugar cuja neutralidade especular − não de relação especular, mas de espelho − permite, se não obriga, a reversão: quando tocado, reverte; encostou nele, reverte; de qualquer direção que se venha, bateu nele, vira pelo avesso. É o espelho em estado puro e, por isso, impossível de se escrever. Eu me deparo com o espelho, mas não posso escrever o espelho. Coloco um espelho diante do outro e nada acontece, nem mesmo infinitização, que, para acontecer, tenho que meter a cara lá entre eles para espiar: o que é infinitizado é a minha cara, não o espelho. O real reflete tudo, mas não se reflete. O simbólico, como superfície do espelho, com a topologia da contrabanda, já não é mais esse lugar impossível
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de sacar, por onde o espelho reverte. Já é a bifididade na rachadura do real, o que posso conceber como superfície de espelho, com a topologia da contrabanda, unilátera, a qual, por sua estrutura de revirão, gera a bifidade dos alelos avessos. É considerar as imagens que se vêem no espelho como partição, não ainda imaginária, não na sua figuração imaginária, mas na sua simples reversão. A imagem do outro lado do espelho é avessa. Vocês sabem que só posso ver um sujeito tal como ele se vê refletido no espelho, estando diante do espelho junto com ele. Como eu me vejo no espelho, ninguém me vê me olhando de frente. Lacan bota, muito sabidamente, a criança no colo de alguém, diante do espelho... É o que chamo de simbólico, a bifididade dos avessos. Cada sexo − chamo de sexo a partição da bifididade se configurando como imagem, como forma, por distinção − é, por sua vez, um termo do imaginário. Imaginário é o que distingue − o simbólico só bifidiza −, ou seja, faz separação opositiva em função do anti-alelo, do anti-sexo, o que pressupõe transitividade sexual. Ou seja, quando estou diante do espelho − aquela imagem de lá, agora já não considerada na sua reversão, mas uma imagem para cá e outra imagem para lá − ou quando vejo um objeto duplicado pelo espelho, estou aí diante das configurações da bifididade, sendo que uma se define pela outra, imaginariamente. Por isso, je est un autre. Por isso, para a criança diante do espelho, se fala num alter-ego. A criança se situa em função da sua anti-figura, do seu alelo agora configurado. O que é esquecido neste momento do processo é a reversão: o Outro, do outro lado do espelho, só é Outro porque não é o Mesmo. E não é porque ele é outra imagem, pois podia ser a mesma: não é o mesmo porque é avesso. Veja-se, por exemplo, o texto de Lewis Carroll e todas as confusões que Alice sofre, porque Do Outro Lado do Espelho tudo é revertido, ou seja, não é a mesma Alice − é a anti-Alice que está do lado de lá... Na capa do livro de Potiguara Mendes da Silveira Jr., sobre A Tradução, está reproduzido um quadro de Magritte que considero uma das coisas mais geniais que se fez em termos de pensar o espelho. Ele denuncia que o espelho tem que ser espelho quando coloca uma figura olhando para o espelho e, lá do outro lado, a figura
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de costas, como você, está vendo a primeira. Ou seja, aquilo não é um espelho, aquilo é da ordem da cópia, da reprodução. Se tomo duas peças fabricadas em reprodução, na cópia industrial, não vou saber qual é uma, qual é outra, porque aí não há especularidade: elas são logicamente a mesma, em cópia, em reprodução. Isto é compulsivo: não há transitividade de uma face para outra, não há bissexualidade, nem anfissexualidade entre essas peças. O Sintoma, por sua vez, é o isolamento que produz solidez e solidão de cada configuração, o que permite sua cópia, sua reprodução, em similaridade, em pura analogia. O que estou chamando de sintoma não é nem mesmo mais o reconhecimento imaginário das duas imagens, cada uma para um lado, uma oposta à outra, mas sim tal imagem aqui e agora configurada, e que posso copiar, reproduzir para o mesmo lado, sem avesso. Se pudesse tirar cópias xerox de uma pessoa, cópias xerox biológicas, como clones, seriam cópias sintomáticas e, não, imaginárias. A produção da metáfora passa necessariamente pela reversão − mas a metáfora produzida é sintoma. O sintoma não mais se repete, ele tenta se reproduzir, idêntico a si mesmo, em cópia. Estamos aí no regime próprio da analogia. O sintoma é análogo a si mesmo e às suas cópias. É o modelo da cissiparidade celular: a célula se cinde para se reproduzir, se copiar, não só se repetir, pois já não se distingue mais uma da outra, é como se fossem idênticas. O sintoma se reproduz − como célula, protozoário, por exemplo −, se copia a si mesmo. É o modelo também da (re)produção industrial: a partir de uma peça matriz, de um protótipo, concretizado segundo algum arquétipo imaginário, se tiram cópias a granel. É uma metáfora e suas cópias. Mas, neste momento, do sintoma, intervém, mesmo in natura, um não que não havia antes. Até o imaginário, não se fecha o não. Na ordem sintomática surge, então, o decisivo não, mesmo em natureza, criando a diferença, por estagnação, por estase, que se fundamenta no isolamento de uma figura. Real, Simbólico, Imaginário e Sintoma: ao real, neutralidade; ao simbólico, bifididade; ao imaginário, distinção; ao sintoma, isolamento. Ou seja, isso que se repete − se quisermos considerar esses quatro modos de Haver −,
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que está em vigor no jogo do falante com o espelho... Temos que, algum dia, retomar o estádio do espelho. Está lá o espelho, pura neutralidade, lugar de um reviramento que não posso apontar onde esteja − o real; está lá o seu movimento de superfície, quer dizer, o movimento lógico que aí se produz é da ordem da contrabanda, simbólico em bifididade que surge com o reviramento pelo avesso; estão lá também duas imagens, as quais só funcionam na referência de uma à outra, mas se separam agora em duas imagens − o imaginário; está lá, depois, a possibilidade de se isolar um dos lados da imagem, sem referência ao seu avesso, e de ela se reproduzir, se copiar − o sintoma. Então: o real como aquilo que está na barra; o simbólico, mais (+) de um lado, menos (–) de outro; a cisão que a barra faz entre o mais e o menos é o imaginário, o reconhecimento de mais como lugar de mais e o menos como lugar de menos, de sua configuração; no sintoma, aqui é mais, o outro é o que não é mais − tem um não aí, fundou-se a diferença. Como em natureza. Está lá uma planta: ela é jaboticabeira, e não outra coisa. Há um não instalado lá, na sua escrita originária, genética, no que ela é pura afirmação de si mesma, como limite, que é não a todo o resto. Aí eu me pergunto se o sintoma não é da natureza do impasse, se ele não é um impasse. Esta palavra veio para a língua brasileira, da língua francesa, significando aquilo de que não se tem saída − o sem saída. Talvez o sintoma seja um nó de significações que só se reforce em seus sexos opostos, sem saída. Na metáfora do lobo e do cordeiro, na fábula de La Fontaine, por exemplo, o cordeiro estava em situação sintomática, a de ser cordeiro. Ele não tinha saída. Lá estava o lobo, outra situação sintomática. Qualquer coisa que o cordeiro dissesse significava para o lobo: “devo comê-lo”. É a situação do impasse, em função de um não radical que transforma qualquer sim em limitação. Qualquer coisa que ali dissesse o cordeiro, significaria: “serás comido”. Há, portanto, uma equivalência, uma equipotência, uma equipolência, um equilíbrio, uma equilateralidade, o que quiserem, de x e de não-x. Se sim vale por não e não vale por sim, nem sim nem não oferecem saída. Como lembrete, recordar que Lacan disse que o sintoma é real. Talvez
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o sintoma seja um indecidível radical. Talvez a sua cura seja uma topada de decisão, a despeito do seu indecidível. Se ele é da ordem do real, ele se aproxima − temos que saber como − de uma neutralidade radical que põe equivocidade absoluta, como a do real, como a do objeto a. No caso do célebre Paradoxo de Russell, que Lacan recortou, o qual podemos resumir como o catálogo de todos os catálogos que se inclui a si mesmo, a questão é: este último catálogo se inclui, ou não, a si mesmo, na série? O que pode ser reduzido, com mais graça, àquela anedota, que já contei algumas vezes, de que, numa pequena cidade, há um único barbeiro que faz a barba de todos aqueles que não fazem a própria barba. Então, quem faz a barba do barbeiro? Se ele é o único que faz a barba de todos que não fazem a própria, toda vez que faz a própria barba, não faz a própria barba, porque só faz a barba de quem não faz a própria barba. E se não faz a própria barba, logo faz, porque ele é aquele que faz a barba de todos que não fazem a própria barba. Se faz, logo não-faz − se não-faz, logo faz. Na lógica conhecida, não houve saída para isto. Lacan vem dizer que não existe o Paradoxo de Russell, pois a repetição do significante não é a reprodução do significante: o barbeiro, como significante, numa situação, não é o barbeiro, como significante, na outra situação. Há um deslocamento do significante e, portanto, não é o mesmo barbeiro. Aliás, na repetição, não é nem o mesmo barbeiro que faz cada barba dos que não fazem a própria barba, é sempre Outro. Temos aí o “paradoxo” solucionado. Mas a questão do sintoma não é esta do paradoxo. A questão de homossexualidade ou de heterossexualidade, por exemplo, não depende do sintoma no sentido em que o estou abordando agora, mas, sim, da posição do sujeito. Estou tratando do sintoma no sentido mais arcaico − digamos, S1, sintoma fundador do sujeito. Há sintomas secundários, que podemos tratar depois... Estou falando da estase sintomática de um falante, por exemplo, ou de uma pedra. A questão de homo ou heterossexualidade tem outra razão, já trata dessa fundação sintomática, com o restante dos significantes, com o Outro. O que estou tratando é mais abrangente, pois trata desse congelamento, dessa coalescência do sintoma enquanto tal. Não posso pegar
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um sintoma enquanto tal e perguntar se é homo ou heterossexual, pois ele nada tem a ver com isto. Quem tem a ver é o sujeito que o porta. É a mesma coisa que se perguntar a uma pedra se ela é homo ou heterossexual. O problema será do sujeito que fez a pergunta... *
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É um pouco mais grave do que a do paradoxo, a questão do sintoma. Repito, então, que o sintoma, enquanto fundamental, pedra fundamental, do sujeito, de qualquer sujeito, é da ordem do impasse. Não é como num paradoxo: se faz, logo não-faz; se não-faz, logo faz. É pior: se faz, logo faz; se não-faz, logo faz, também. Se x, logo x; se não-x, logo x. Não tem saída. O lema do sintoma é: “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”... O sujeito fica naquela situação do cordeiro diante do lobo, isso que o francês chama de coincé − sem saída −, num impasse que não é da ordem do vel, tal como em “independência ou morte”, ou “a bolsa ou a vida”. A do sintoma é: “não tem saída”... Mesmo deixando de lado a distinção de significante para significante na repetição, como Lacan faz, posso resolver muito bem o paradoxo de Russell num espaço borromeano como aquele que mostrei com o Globo da Morte, acima. O catálogo de todos os catálogos que se inclui a si mesmo, numa articulação espacial em nó borromeano é perfeitamente pensável, pois, como mostrei, posso botar o dentro abrangendo o fora, numa seqüência de parênteses em que o de fora está dentro do de dentro... Mas acontece que o sintoma é filho do não, o qual é tudo aquilo que é preciso para se fundar o para-todo ( que separa o ~ dentro do fora. E se disser não-todo () em que situação fico? O não não é, como mostrei na banda de Moebius, senão a fronteira radical, ou melhor, o litoral, borda radical que pertence e não pertence à classe que ele arrola. Daí Lacan dizer: Lei/Desejo. O não lateraliza aquilo que era unilátero, dá sentido e pertinência. Daí se depender de um domínio referido para se situar deste ou daquele lado. Para situar o não, preciso de um domínio referido para situá-lo como pertinente ou não pertinente − é a questão do catálogo de Russell. E é
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questão de, significantemente, tomá-lo numa posição ou noutra − foi o corte que Lacan fez aí. O não funda o para-todo ( Quando Lacan quer mostrar o que é o masculino, ele diz que é preciso que exista um (x) que diga não (x), para que todo seja (xx). Só posso dizer que todo verde é verde porque pelo menos um verde nega isto, e este verde é fronteiriço e litoral. Ele está na margem, na borda − ele é essa borda. Então, só posso dizer que todo x é x porque há essa borda fundadora do Outro, como um não radical. Não-x é o que fica para além do não do Pai, que é o fundador do nome verde, no caso. Mas é estranho poder-se botar o não, que é fundador do paratodo, sobre ele próprio! É difícil seguir Lacan, quando ele diz que o feminino é da ordem do não-todo, pois fica mesmo estranho um paratodo fundado pelo não e ao qual se acrescenta o não que o fundou − repete-se sobre ele o não que o fundou e tem-se o não-todo. Isto não é a negação da negação, nem é negação do negado, e, sim, negação do efeito da negação. Ou seja, é afirmação do não. Vê-se, pois, que o pai aí é feminino. Se reafirmo o não, a coisa fica rompida. Retomo o lugar do Pai. Se nego o para-todo, posso me referir, para negá-lo, ao não da borda. Neste caso, habito a borda, a borda limítrofe, fronteira, litoral puro. Então, tirei o fora e o dentro: fiquei nem dentro nem fora do bordel. Lugar da Lei e do Desejo que sustentam o bordel. Na medida em que o não funda o para-todo, do ponto de vista do paratodo não há falta de espécie alguma. O que funda o paratodo é a castração. Só estou subdito à castração quando, de dentro do para-todo, digo que todo sujeito que está na minha é assim, somos todos iguais perante a Lei e não nos falta nada por aqui, pois o que desejamos é outra coisa que fica para além. Lacan insiste em que não adianta nada o analisando reconhecer que está em falta quanto à castração, ele tem que reconhecer que é à mãe que falta alguma coisa. Vamos ultrapassar esta anedota, pois ela não serve para muita coisa: há que se reconhecer que é ao Outro que falta. Porque, na verdade, de dentro de uma posição sintomática, nas referências ao para-todo da ordem sintomática, à ordem fálica, nada falta do lado de cá. Desde que se tenha gozo-fálico, tudo
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bem, é o Outro que falta. Devo reconhecer que lá fora me falta, falta eu, falta minha fundação que é só aqui, absolutamente particular, e que ainda deve faltar muita coisa. Aqui, não falta nada, mas em volta falta quase tudo. É preciso reconhecer que o Outro me falta. Todo significante é delimitador e funda um para-todo. A falta é conjeturada como externa àquilo que é arrolado pelo significante. Mesmo o significante da falta do Outro, S( ), apenas indica externalidade. O não-todo designa o quê, de dentro da ilha significante, demarcada pelo seu litoral, é externo a essa ilha e, portanto, incontável, não arrolável. E este dito se aplica ao paradoxo de Russell. Isto é importante para sacar o que é da ordem sintomática, pois sabemos que ela se funda, para o sujeito, na paternidade, num sintomatismo, na metáfora paterna. Ou seja, há aí algo que é da ordem da mestria, a qual não há fora da ordem sintomática. O não do Pai, é não do Mestre. É o tal logos espermatikos que emprenha o sujeito numa delimitação que é, como eu disse, neutralidade pelo real, bifididade pelo simbólico, distinção pelo imaginário e isolamento pelo sintomático. O que funda esse não é um isolamento, o qual é produzido por um isolador. O Nome do Pai, o não do Pai, é o isolador capaz de produzir isolamento que funda um sujeito particular, ou seja, um lugar subjetivo que tem como esteio uma fundação sintomática específica, radicalmente diferente de qualquer outra. E a diferença se funda entre isto e o campo do não-isto: S1 e S2. É a colocação de uma pedra fundamental de que o sujeito não pode abrir mão. Basta lembrar de Jesus Cristinho: “Simão, tu és pedra e sobre ti erguerei a minha Igreja”. Quer dizer: “É o teu sintoma, instalado por mim. Eu te emprenho do meu sintoma que, certamente aí instalado, vai ser Outro, e daí você vai refundar a coisa toda”. É o regime da transmissão: tentativa de reprodução, em cópia, de um sintoma − o qual, para o falante, porque há o simbólico em sua fundação, não consegue ser mais do que repetição, com diferença nessa transmissão. Então, fazendo a fila indiana de real, simbólico, imaginário e sintoma, . Em natureza, o não dá para pegar o sintoma por trás e virá-lo real?
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exercício da reprodução, da cópia, é quase que exato, pelo menos em curto espaço de tempo. As mutações se dão, pois os antecedentes são real e simbólico. Mesmo aí a coisa desliza: de onde se pode tirar a lei da entropia. Mas, na sua instalação, a pedra fundamental, isolada, com sua borda, com sua margem, litoral, letra de sintoma − no que ele passa a ser o referencial de seus próprios movimentos −, ela não se neutraliza de novo? Ele começa a arcar com os poderes do real: cada sintoma sendo neutro para si mesmo, grau zero de sua própria transação. Se supusermos que é possível alguma lógica pela qual o sintoma seja o impasse, se ele diz sim quando é sim, se ele diz sim quando é não, se dele não se tem saída, ele se neutraliza sobre si mesmo, ou seja, perde a possibilidade de qualquer bifididade, como se fosse neutro em si mesmo, absolutamente isolado, um recomeço de universo, particularidade que só se apresenta à diferença no confronto com outra particularidade. O sintoma não entra em conflitos consigo mesmo, mas, sim, com outros sintomas. Seus conflitos são com os sintomas do Outro. Assim, não nasce daí uma reneutralização cuja bifididade só vai comparecer no embate inter-sintomático, recomeçando-se o processo? O recalque imaginário não é esse isolamento, ou seja, postura de um significante que não tem alelo − ou senão que é alelo de si mesmo? Ou seja, ele funciona como verdadeiro objeto a. O que um sujeito porta de essencialmente objeto a é a sua particularidade sintomática: o esperma do logos paterno, no sentido do logos espermatikos dos estóicos. Falando em linguagem vulgar, é a porra da fala, a porra do discurso, isso de que a gente sofre e goza... Sintoma como impasse radical, na medida em que o Nome do Pai, que funda a metáfora paterna, é o próprio não. Ele não tem o não, ele é o não, ele é o sintoma delimitador. E há que ser obediente, senão a gente se ferra: é a psicose. Quer dizer, a borda paterna, sintomática, funda o bordel em que vivemos. Quem está lá está a bordo do bordel paterno, e a cada qual a sua versão, ou aversão, se for o caso. *
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Lacan diz que pode descobrir auditivamente um psicótico pela emergência de um “neologismo” que não remete mais a nenhuma significação. Por que, então, para o psicótico, se o que Lacan diz é verdade, comparece esse neologismo, no campo da língua, como uma pedra, não fundamental, mas postiça à falta de pedra fundamental? Não será justamente porque lhe falta sintoma fundamental? Não que lhe falte sintoma que o fundamente, mas porque, para ele, esse sintoma não lhe é fundamental. Ele se refere às cadeias do Outro, mas não tem essa estupidez que suponho que tenho e da qual não abro mão para minha referência. Do sintoma não se abre mão. Há que bem dizê-lo, bendizê-lo nos dois sentidos: obediência a ele e manutenção cuidadosa dele. E o sujeito, na referência a ele, poder − porque pode, não é porque ele é uma estase que não pode − se acoplar com os outros significantes. O problema do neurótico é de uma instância outra, secundária, do sintoma. Não é porque ele porta um sintoma fundamental, é porque ele trata o Outro como sintoma, como se o Outro fosse uma pedra como ele. O sujeito pode fincar o pé no seu sintoma estasiado e dançar com a outra pata, onde puder. Desde que não largue mão, desde que não largue pé de algum lugar, de seu ponto de apoio, pode transar qualquer uma. O neurótico pensa que só pode transar algumas, que o Outro é completo, paratodizado, sintomatizado como a sua referência o é. Nem ele próprio não o é, como sujeito. Sua referência é paratodizada e ele atribui a S2 a mesma paratodização: pensa que S2 é sintoma. S2 não é um sintoma − pode até ser uma coleção infinita de sintomas. Pode-se transar com eles, desde que se tenha o seu, desde que se reconheça a própria base. Esse tal sintoma fundamental não deixa de ser um neologismo que se ganha de graça, por inseminação. Neologismo que não precisa comparecer na minha frase, justo porque eu o tenho. Se não o tivesse, ficava segurando um neologismo na língua, que não remeteria a nada, para poder dizer que eu sou aquela palavra ali, como faz o psicótico. Um animal, por exemplo, é estritamente falado. No que ele existe, como sintoma, não pode deixar de ser aquele sintoma que ele é. Ele é estrita-
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mente falado por uma alteridade qualquer que o empacotou ali. Ou seja: ele é o resultado de um recalque natural. Por isso indiquei o sintoma como podendo ser proveniente do não in natura. Alguma coisa diz não: cachorro é cachorro, e ponto! O resto não é cachorro: “Sêje cachorro, têje preso!” O homem não é só falado − é falante. Aconteceu aí que algum milagre fez retornar a função simbólica, a bifididade: ressurgiu, dentro de uma carne sintomaticamente desenhada − o autossoma, o macacão −, um retorno da bifididade, ou seja, uma abolição do não. Os biólogos que se virem para explicar isto, se puderem − eu só conjeturo. Alguma coisa aconteceu como abolição do não dentro de uma compleição sintomaticamente desenhada − no sentido de design − e, se lá compareceu isso de novo, dessintomatizou-se o macacão em sua performance. Daí ser necessária, então, uma sintomatização factícia, in fatura, o que certamente se deu, de começo, por imitação, isto é, como mimese. Por isso encontramos, em sociedades primitivas, a questão do totemismo. É mimese, é tentativa de decalque, de imitação do recalque que há em natureza. O ser falante, embora tenha um design autossômico, vê brotar dentro dele uma dessintomatização. E, para não cair na loucura, simplesmente imita algum outro ser, como recalque. Um cachorro é um recalque absolutamente intocável, nunca será mais do que um cachorro, nem haverá retorno, nele, do não-cachorro. Mas, no falante, faz-se imitação, ou seja, produz-se um recalque factício, postiço: um recalque-artifício. A pedagogia vem antes da psicanálise. A tentativa de pedagogizar o sujeito é condição sine qua non de ele subsistir sem loucura, por vigência de um discurso de mestria. Só que não dá certo, pois a transmissão não garante do design, não é perfeita reprodução. Talvez a dita foraclusão do Nome do Pai, na psicose, seja falta de isolamento da pedra fundamental. Ou falta, ou ele o dissolveu demais. Lacan diz que uma análise levada longe demais − não sei o que quer dizer isto, não sei onde devo parar: paro no lugar do meu cagaço − chega à psicose. Temos o exemplo de Nietzsche, de Van Gogh, de Artaud, de Gerard de Nerval, etc., os quais não suponho − pelo que produziram e do modo como produziram − que sejam psicóticos por foraclusão prévia. Mas há neles
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uma grande semelhança com a psicose, talvez por excesso de dissolução do isolamento da sua pedra fundamental, excesso de alteração. Aí é que devemos pensar no tal caminho do meio, o Tao caminho. Nem oito nem oitenta, senão a gente se ferra: ou estúpido, ou louco. Está aí, por exemplo, a questão do incesto, ou seja, da interdição. É claro que a interdição do incesto não pode ser essa bobagem de não poder transar com a mamãe. Isto é regional demais. Mesmo porque há muita gente que transa... e não acontece nada de mal. É preciso entender o que está por trás dessa interdição: é interdição de não fundar um isolamento, de não fundar uma solidez e uma solidão, a qual interdição se dá no regime que já denunciei como meramente mimético. O modelo encontrado, como computador à disposição, mais próximo, talvez, tenha sido a mimese do animal − o modelo da reprodução constituindo as classificações dentro do grupo. A insistência é nisso porque é preciso alguma classificação. Por que o fundamento (não da passagem ruptiva de natureza à cultura, mas) da passagem contínua de natureza a cultura tem que ser da dita ordem da interdição do incesto? Qualquer interdição ou conjunto de interdições serve, desde que o sujeito − sem saber nem como nem por quê − tenha que obedecer à lei de nãototalização. Ou seja, que ele possa, por alguma via, aprender, não os conteúdos da limitação, mas que há limitação, demarcação, que certamente se refere a alguns traços primeiros da sua aceitação do não. Não é que o sujeito deva obedecer aos conteúdos das limitações, como julga a tolice do neurótico. Ele deve obedecer não ao conteúdo do não, mas ao não conteudizador. Uma coisa é incluir a metáfora paterna, podendo, inclusive, ter os traços perversos que se herdou do safado do pai − ele se safou, senão não transmitia, ele é safo. Outra coisa é poder transar os conteúdos significantes arrolados nessa letra, à vontade, desde que jamais se perca a noção de limitações, a noção de não. Ou seja, o limite máximo é tomar o lugar dele, do Pai, na terceira margem do rio. O limite máximo é se transformar num não: ser o Príncipe da própria perversão − é a aristocracia do sujeito que se instaura aí. Por isso existem Grandes Homens. A gente ri dessas coisas, mas
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Nietzsche disse que “o povo é um atalho que a natureza toma para construir os grandes homens” − e há quem pense que vai algo de fascista nisso... Os grandes homens não são aqueles que o anedotário da competição social aponta − não se faz Academia de Letras para grandes homens, é falta de respeito. São justamente aqueles que até mesmo, se não sobretudo, quando esquecidos, emprenharam, porque foram não. Levaram a sua vocação sintomática até se transformarem em puro não. *
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Aí vem condição para todo o processo da luxúria: o processo da ampla, geral, irrestrita e imoral transação com o Outro. Lacan diz que “o que Freud trouxe é que o motor essencial do progresso humano, motor do patético, do conflitual, do fecundo, do criador, na vida humana, é a luxúria”. Dizemos às vezes que a natureza é luxuriante, embora, talvez, tenha menos obrigação de ser luxuriante do que nós outros. Não é possível ser MáquinaÍmã, isto é, Herói sem nenhum caráter. Mas é possível ser Máquina-Uma, isto é, Erói de algum sintoma. Aproveito o ensejo para trocar um nome que coloquei n’O Pato Lógico. Antes de explicar tudo isto, nomeei o perverso e o perversista, a perversão e a perversidade. Mas já que o pessoal tinha comprado o nome de perverso para perversidade antes de mim, vamos dizer agora: o Erói e o Perverso (que é o perversista). Não confundir o erói, aquele que carrega a versão paterna, com o perverso, que é outra história... Erói, sem agá, como São Jorge, embora não deixe de haver um certo heroísmo em assumir esse lugar. Nem todos são Jorges. O erói com seu o-bi-jeto... Mas se o sintoma é um impasse, aonde fica o passe? O sintoma é impasse para o seu portador, funciona como ponto neutro, como o seu real que, no embate com as outras funcionalidades sintomáticas, se apresentará em oposição, em função de todo o resto ser não ele. E como de um impasse fazer um passe? Um pouco mais atrás, supus que a cura seria tomar uma decisão,
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apesar do impasse. Como se pode tomar uma decisão, apesar do impasse, se não se for fundo no impasse, acuado, coincé, cu-in-se, até o extremo? A função mais importante do analista talvez seja a de meter o sujeito num beco sem saída, empurrá-lo até os fundilhos do seu próprio saco: ou se morre, ou se cura − sempre apontando-se para o sujeito que há que ter saída. Mas é preciso, para isto, que o sujeito assuma a sua postura sintomática que não seja apenas secundária, que não sejam sintomazinhos como os que a histérica apresenta e que são só traduções do seu lugar originário, não assumido, que vão pintar no seu corpo − ou, então, na oscilação do obsessivo. Mas isso pode ser, no máximo, uma cura. Eu diria que o passe é poder, além de assumir o sintoma, tomar o lugar daquele que te inseminou. Ou seja, passar à transmissão do teu sintoma, pois não há mais nada para se transmitir. É o golpe de mestre: assumir a sua pena para fazer a transmissão do seu estilo. Por isso não se pode, num ambiente psicanalítico, reconhecer “calados” como analistas. Por isso é chato ser apenas lacaniano: será que não se tem outra e própria coisa para ser, mesmo tendo-se partido de Lacan? Será que não se pode tentar ir fundo, arcar com o sintoma, e dizer para o Pai: “Agora chega, me dá o teu lugar na canoa” − como não disse o personagem de Guimarães Rosa, na Terceira Margem do Rio − “Agora sou eu a borda. Vocês é que são o bordel”. Para isto é preciso arrogância sim, presunção sim, mas isto não basta. O passe, eu o surpreendo no ato da transmissão. Não é à toa que Lacan disse: “Sou aquele que passo a vida a fazer o passe”. Ou seja, a tentar arcar, na transmissão, com o lugar do isolador.
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Quero agradecer a presença de tantos hoje aqui, apesar do feriado... Com este agradecimento, quero é dar uma puxadinha no público, pois às vezes não tenho a menor vontade de fazer Seminário. Hoje é um dia desses. O que não quer dizer que não saia um Seminário. Às vezes chego não querendo saber de nada disso. No entanto, Isso quer saber de mim. Então, não tem jeito... Na arte do joalheiro se usa uma pedra − pode ser um jaspe ou qualquer outra − dura e, não sei por que, escura, que é empregada para avaliar a pureza dos metais. Donde, o sentido figurado para pedra de toque, como meio de aferir, avaliar. Avaliar é julgar, portanto atribuir, no sentido freudiano, algum valor a alguma coisa. Isto cabe no que eu vinha falando de um isolador − a que imputei alguma mestria, alguma paternidade − que seria capaz de separar decisivamente um significante de referência pelo qual o sujeito se identificasse, se visse definitivamente um, o S1, signifiant maître, em francês, que posso traduzir por significante metro: metro padrão de avaliação daquilo que, por mediação do sujeito que ele representa para outro significante, esse significante toca. É algo que parece simples na teoria psicanalítica, mas que sempre recoloca o problema. *
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Como sabemos, tornou-se o significante-eixo, mastro, para a psicanálise, o chamado Falo. No L’Étourdit, Lacan diz que é assim que, pelo discurso psicanalítico, um órgão se faz o significante. Que órgão é esse? O que é isso? Eu estava em Paris, iniciando minha análise com Lacan, quando um dito amigo, intelectual brasileiro, conhecido, quer dizer, desses que escrevem em jornal, me manda uma carta − querendo menosprezar o mestre, o meu, pois o dele que se chama Karl Marx não é menosprezável − perguntando como ia a minha relação com o Senhor Jacques Significante-é-o-Caralho Lacan. Respondi malcriado, então. O que não teria que fazer hoje, pois vai ver que o significante é o caralho mesmo − por que não? Nos Écrits, no texto La Signification du Phallus, Lacan explica o que é, para ele, esse significante que Freud tivera apelidado de falo, justamente para mostrar que se trata de um significante. Que significante, então, é esse que se destaca, não como um significante qualquer habitante do Outro, mas com algumas particularidades? Diz Lacan, p. 690, que “o falo se esclarece por sua função. O falo na doutrina freudiana não é uma fantasia, se é para se entender aí um efeito imaginário. Não é tampouco, como tal, um objeto (...) Menos ainda é o órgão, pênis ou clitóris, que simboliza. E não é sem razão que Freud tomou sua referência no simulacro que ele era para os Antigos” − os mistérios gregos, por exemplo. “O falo é um significante, um significante cuja função, na economia intra-subjetiva" − economia de cada sujeito − "da análise, talvez levanta o véu daquela função que tinha nos mistérios. Pois é o significante destinado a designar, em seu conjunto, os efeitos de significado, no que o significante os condiciona por sua presença de significante”. Está aí a função do falo como significante. Adiante, p. 692, ele diz que “o falo é o significante privilegiado dessa marca onde a parte do logos se conjuga ao advento do desejo”. Fica, ainda, um pouco complicado, pois que se trata de um significante que não deixa de simbolizar os ditos órgãos localizados, corporalmente, de função gozante, digamo assim: o pirocão e a piroquinha, o pênis e o clitóris. Designa, como ele diz, em seu conjunto, os efeitos de significado. E Lacan não deixa, aí, como também
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no Seminário 3, por exemplo, de fazer certas referências imaginárias do significante fálico às aparências do ato sexual. “Podemos dizer que esse significante é escolhido como o mais saliente do que podemos perceber no real da cópula sexual, como também o mais simbólico no sentido literal (tipográfico)” − tipo letrinha saliente −, “desse termo, pois que equivale à cópula (lógica). Podemos dizer também que ele é, por sua turgidez, a imagem do fluxo vital, no que passa na geração” − num ato genésico. Quer dizer, há uma tremenda embrulhada do tal do falo com o imaginário da copulação. Depois disso, temos o Seminário 20 e o texto L’Étourdit, bem mais recente, onde Lacan vai depurando os conceitos da psicanálise pelo filtro do que chama de simbólico. Ele vai reduzindo a significantes, na ordem das marcas aderentes inclusive à língua, aquilo que pudesse estar mais ou menos apegado ao imaginário. Já tratamos longamente aqui das fórmulas quânticas da sexuação, da distinção radical que ele faz da posição sexual, do falante, daquelas formas corporais que o imaginário facilitaria, mas resta ainda essa questão de saber como se comporta esse falo como significante tão especial. No Seminário 20, praticamente se subtroca o significante falo − que não comparece, por exemplo, em nenhuma das fórmulas dos discursos − pelo significante S1. Tanto que, quando falei das fórmulas quânticas, freqüentemente coloquei, do lado esquerdo, onde comparece o Homem, ΦS1, embora não esteja assim no Seminário 20. Isto porque Lacan faz esta troca, por exemplo, p. 107 da tradução brasileira: “Do lado do homem, inscrevi aqui, não certamente para privilegiá-lo de modo algum, o $ e o Φ que o suporta como significante, o que bem se encarna também no S1, que é, entre todos os significantes, esse significante do qual não há significado, e que, quanto ao sentido, simboliza o seu fracasso”. Adiante, p. 126, ele fala do gozo masturbatório como lídimo representante da idiotia masculina, dizendo que o S1 ali aparece como “o significante do gozo mesmo mais idiota”. Já, antes, p. 45, ele havia dito que “o significante é, de saída, imperativo” falando do significante em geral. Assim, posso coser esse imperativo do significante ao imperativo do S1 significante e, portanto, à ordem que venho chamando de preceitual, que,
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de fora, se recebe como demarcação. A página 127 do Seminário 20 lembra que a função fálica é contingente. O significante fálico, então, se é contingente, é um acontecimento no sentido de encontro, tiquê, produzido certamente na pressão de um preceito imperativo que vai se instalar para cada sujeito com o significante da sua demarcação, ou seja, um significante pelo qual o sujeito goza falicamente. No L’Étourdit, p. 13 da Scillicet 4, falando do órgão fálico, Lacan diz que “esse órgão, passado a significante” − aí fazendo certa referência ao imaginário do pênis −, “cava um lugar de onde tem efeito, para o falante, (...) a inexistência da relação sexual”. É porque não há, para um S1 isolado, um outro competente, um correspondente, que aí se cava esse lugar vazio, de nãocorrespondência, no qual é impossível qualquer relação sexual. No Seminário 3, onde Lacan, p. 198-199 da edição francesa, se delonga a respeito do falo e da dissimetria essencial que o Édipo apresenta entre os sexos, ele diz que o falo é um símbolo do qual não há correspondente. Então, é um símbolo estritamente isolado − um significante isolado, e de tal maneira que nem mesmo consegue fazer recurso a um seu oposto. *
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Neste sentido, eu falava, da vez anterior, de isolamento sintomático, mostrando que aí se cria um impasse, algo da ordem desse significante fálico, como se não houvesse outro lado, não houvesse mais avesso, ou que, no avesso, se encontrasse o avesso de alguma maneira, ele sempre se impusesse positivamente. O falo, como significante − não há contra-falo, anti-falo. Por isso, não há o Outro sexo. Isto nos vem desde Freud. A caracterização da libido como masculina, ele quis assim, baseada na tal pregnância do aparelho sexual masculino, o que é muito complicado, e todo mundo se embanana quando fala disso: Freud, Lacan... Em suma, esse isolamento que eu quis propor como resultado de um não radical que isola, para o sujeito, um significante da sua demarcação, ou seja, isso que chamamos de identificação. Ora, se o sujeito, seja ele qual for, seja qual for o seu sexo, se determina por uma referência ao falo, é claro que,
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então, o falo é o que secciona, portanto ele nada tem a ver com posição sexual, a qual ele determina, mas ele não é. Ele fica como isolador. Se o sujeito se identifica nessa referência ao falo, e se devo conceber o falo como significante que para cada sujeito se erige numa certa particularidade, vou chamá-lo S1. Se, então, a identidade do sujeito se refere a esse falo S1, a Esse-Um-Falo, esses sujeitos assim separados, assim isolados,só têm em comum, como denominador comum, aquilo que os separa, aquilo que os isola: particularidades isoladas que têm em comum aquilo que as isola. Na referência ao acontecimento dessa parcialização, desse isolamento, se a sua referência, se a sua identidade é o significante desse isolamento, é o isolamento desse significante, ele não pode ter referência como sujeito intervalar para se relacionar, ou melhor, transar com Outro, com as cadeias dos significantes, com S2, senão pela sua própria referência a S1. O que faz aí uma lógica de impasse, pois para ele não existe referência de si-mesmo, senão como S1. Portanto, o que não é S1, é apenas o que não é S1, e não outra coisa. Aí que me senti em falta, no Seminário passado, quando disse que o sintoma é da ordem do impasse e, não, do paradoxo. Estou, então, tentando articular o que há de esquisito, de parciário, na fundação sintomática, considerando S1 como sintoma, significante sustentador da ordem sintomática do sujeito na sua identificação, na sua referência de si-mesmo. Fazer essa referência pela demarcação de um significante − embora um significante absolutamente sem sentido, portanto, podendo abrir para S2 e mudar de sentido à vontade −, no entanto, a referência significante é aquela. Diante dessa referência, então, ou se é S1, ou se é outra coisa. E outra coisa é apenas outra coisa que não S1, pois aquele não radical, ao invés de botar diante de S1 um S-outra-coisa − porque S2 não é o oposto de S1 −, na verdade, vai se tornar oponível na transação. Mas, no caso da referência de eu sujeito à minha marca, ou se trata de S1 e portanto se refere a mim, ou é não-S1 e portanto se refere a mim: “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”... Se esse jogo do não foi capaz de isolar cada significante, no entanto, na nostalgia do halo significante, a nostalgia de todo significante poder requerer
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um avesso para si, o significante desliza, mas aí no lugar do fálico, da marca particular, não se pode ser Outro, senão Outro que não-si, e com referência sempre ao mesmo significante. Por isso, Lacan fala nessa dissimetria quando diz que “o falo é um símbolo do qual não há correspondente, equivalente”, e que “é de uma dissimetria do significante que se trata”. Dissimetria que determina as vias por onde passará o complexo de Édipo, o que vem corroborar a tese de Freud. Mas estou interessado agora é nessa oposição simétrica, no sentido do simbólico tal como coloquei, onde a cada significante corresponde um oposto. No seio dessa estrutura de oposição, o falo é um significante. O S1, portanto, de cada sujeito, é o significante que não encontra simétrico senão como não-S1. Aliás, o que é dissimétrico é que, do ponto de vista das amarras de um sujeito, para sua identificação, S1 só pode remeter a S2 enquanto não-S1. É um basta que funciona aí, como que decapitando um halo significante. O falo fica como pedra de toque, de avaliação, das cadeias significantes. Não podemos esquecer o valor de indicação de significado que Lacan dá ao falo quando diz que ele vem representar os efeitos de significado. Eu me pergunto se não posso exercer esses efeitos de significado, de avaliação do significante, nas suas possibilidades de significação, em função de ter pelo menos um lugar como se fosse um ponto cego da minha psicose original. Eu não ouso, dentro de certas condições, ultrapassar os limites de significação desse lugarzinho, senão me perco. É como se pudéssemos mimar a psicose, esteando-nos aí nessa pedrinha que não requer transformação de significação. Retornando um pouco, é preciso lembrar que não se trata de pênis na questão da simbolização. Há muitos seres vivos muito parecidos anatomicamente conosco, que têm pênis e não se põem esta questão. Minha tentativa é de reverter o processo: a questão de presença e ausência de pênis é fundadora, por via imaginária, da emergência do falo como significante, que é fundador de presença e ausência de pênis? Aí está a diferença. Temos vários animais: um cavalo, por exemplo, onde é evidente haver ou não haver pênis − e ele não se põe esta questão. E existimos nós outros, que temos e, às vezes, não temos
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pênis, que nos colocamos esta questão do ponto de vista de ter ou não-ter pênis... Devo, então, supor que é um aparelho fundador de linguagem que já entra em exercício no processo dessa questão: é do lado da ordem simbólica que a questão se coloca como presença e como ausência e, não, ao contrário, o imaginário de presença e ausência de pênis que vai condicionar presença e ausência na ordem fálica. Contingente, então, é o nome que Lacan dá ao arbitrário de Saussure. Neste caso, por via de um preceito, quer dizer, da presença de um significante defrontado com o Outro, a coisa se lateraliza. Por isso, não se trata de pênis e de não-pênis, pois não preciso de nenhuma presença de pênis para constituir um falo. Trata-se certamente da referência significante que cada sujeito “escolhe”, toma, para manter seu movimento desejante: é sempre positivo, é sempre aquele esteio de manutenção do movimento desejante do sujeito, independentemente de qualquer anatomia. Lacan diz em alguma parte que não podemos confundir essas identificações imaginárias, mediante as quais fazemos as divisões do comportamento em sociedade, de homens e de mulheres, com essa função significante que se esteia na ordem fálica − pois, mesmo dentro da ordem significante, mesmo com o esteio do significante fálico, há dissimetria. Por isso, então, nas fórmulas quânticas, ele diz que há homens e mulheres, os quais não têm que coincidir, de modo algum, com a anatomia de pênis e não-pênis. É preciso antes fazer um rebatimento dessa distinção inconsciente entre masculino e feminino sobre as aparências imaginárias dos corpos, para se fazer a clivagem e se pensar que as duas coisas são coincidentes. Não o são, de modo algum! Não necessariamente. E, sim, contingencialmente, para cada sujeito. *
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Isso aí é da ordem do metafórico. Então, o que é o Nome do Pai, para Lacan? Nos Écrits, p. 557, quando fala de Schreber, sobre a psicose, ele nos dá aquela formulinha da metáfora em que um significante, S1 vem substituir − numa
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formulação que parece uma 3ª proporcional, mas não é − outro significante, em questa de uma significação. Daí, eliminado o significante substituído, tenho um significante multiplicado, quer dizer, dando condição de uma unidade de significação, que ele chama mesmo de significado. O significante substituido, x, ele chama de significação desconhecida, e s, significado ao sujeito, de significado induzido pela metáfora.
Ele está dizendo que a metáfora tenta constituir significado com alguma referência: “A significação do Falo deve ser evocada, no imaginário do sujeito, pela metáfora paterna”, a qual é preciso explicar. Repetindo a fórmula, ele escreve que o Nome do Pai é o significante que vem substituir o desejo da mãe como significante. Então: Desejo da Mãe e Significado ao sujeito, isso vai : dar Nome do Pai
O desejo da mãe é eliminado, o significante Desejo da Mãe é recalcado por substituição. Entra, então, o Nome do Pai no lugar do Desejo da Mãe, que ele diz ser significante, pelas ausências da mãe. A mãe se ausentifica, aí. É como se a criança sacasse: “Olha só como ela se identificou”. O desejo dela é o pai − isto, fazendo-se esta historinha. Repetindo, elimina-se Desejo da Mãe e fica: Nome do Pai, o que é significado ao sujeito. Quer dizer, o Outro no lugar do Um − Outro como unidade de significante. Temos, pois, Nome do Pai sobre falo, porque o falo está aí no lugar de significado ao sujeito. E o falo vai funcionar como exatamente a metáfora do Nome do Pai. Nesta formulação, o falo é o fundador da metáfora do Nome do Pai. Metáfora, Lacan explicou que é sintoma. Então, para haver entrada, plena, na linguagem, na ordem da fala pelo menos, existe necessariamente a
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passagem por um sintoma. Ou seja: todo e qualquer sujeito falante há que fazer referência a um sintoma chamado falo, sendo que esse sintoma, para cada sujeito, se escreve com uma letra diferente, chamada S1. A metáfora paterna, o funcionamento do Nome do Pai, é, como diz Lacan, o significante que, lá no campo do Outro, como lugar do significante, representa o Outro como lugar da Lei. Lei da diferença, concluo eu. A lei do isolamento de cada sujeito da solidez − e solidão de cada sujeito − por referência a um significante, que, para ele, é arrolável num denominador comum chamado falo: presença de identificação que o permite transar no campo dos significantes. Isto não tem avesso: é um começo, um basta, um ponto primeiro de amarra. É um basta de tal ordem que esse significante não tem oposto senão no não-ele. Oposição esta que, por força do não pregnante que se instala − seguindo a modalidade que venho explicando há várias sessões −, vai fazer com que todo e qualquer significante até se possa isolar e achar momentaneamente um significado, um basteamento, mas que possa ser trocado... Mas não esse, porque há um detalhe: o sujeito só goza por aí, e não por outro lugar. Por isso, Lacan fala no gozo idiota comparável com o gozo masturbatório. Ou seja, ninguém goza senão por aí, sintomaticamente. É um significante que, para nós, fica complicado porque se ancora na carne, nesse lugar aonde o sujeito goza − e isto é muito vago. E não há outro gozo: até segunda ordem, seja macho ou fêmeo o sujeito, ele goza do mesmíssimo jeito. Se tomarmos o que disse Freud a respeito do falo e da Libido masculina, veremos que não há, se esta lógica está correta, outro lugar para instalar o mastro do falante senão no ancoramento significante por onde o falante goza, e só por ali, independentemente do sexo, da anatomia e de qualquer outra coisa. A referência ao falo é uma referência ao sujeito, sujeito no sentido de que se é homem, espécie. As mulheres sobram disso aí, não constituem nem outra espécie, é um bônus... E não me venham dizer que mulher goza... mulher não goza... só colega goza... O não, então, aquele não fundamental, cria o para-todo lógico. Quando para todo homem é assim-assim, é no sentido de que − e é o que está escrito nas fórmulas quânticas − todo gozo é fálico porque existe pelo menos um que diz
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não a essa função. É só na referência à castração, ou seja, no isolamento, que o sujeito goza. Para falar como o vulgo brasileiro, ninguém goza com o pau do Outro − não existe isso. Mas os sujeitos têm em comum, denominador comum, esse isolamento, isso que Lacan quis chamar Nome do Pai, quer dizer, a função operante do isolamento, do isolador. E é por essa função de isolamento que o sujeito pode assumir lugar de sujeito, lugar que fica na mesma fronteira onde mora o Nome do Pai. A fronteira é a mesma, mas posso distinguir. Lacan fala do Nome do Pai como alguma coisa que se opõe ao sujeito. Em termos significantes de sintoma fundamental, um sintoma se opõe a qualquer outro sintoma. Em termos de fundação de sintoma, todos eles cabem no mesmo rol instituído pelo cinturão daquilo que escapole ao sintoma, que funda o sintoma. Mas em termos de lugar subjetivo, o sujeito se refere como aquela fronteira que co-habita com a possibilidade de isolamento − que co-habita com o Nome do Pai. Como significante, o Nome do Pai corta no lugar da fronteira, onde o sujeito vive entre significante e significante. Por isso Lacan pode dizer que o Sujeito se defronta, enquanto sujeito, com o seu isolador. Topologicamente, é o mesmo lugar − só que são significantes que posso teoricamente pensar como diversos. Então, no que o sujeito vai marcar para si uma posição significante, esta posição simbólica do sujeito no seu isolamento é fálica, no que foi um recorte criado no campo do Outro. Ele é esse recorte, essa parcialidade. O Nome do Pai não é o falo e, sim, o significante de haver a Lei, a qual é aquilo que se exibe como falo, como funcionamento da diferença para cada sujeito. A Lei de há diferença comparece para os falos, para os S1 , que aí estão. O sujeito justamente é o que não quer, ao contrário do que muita gente pensa, assumir esse isolamento. Ele − neuroticamente, por exemplo − prefere que a Lei não instale a diferença, mas, sim, uma possibilidade de relação, de ele se encontrar definitivamente com um outro pelo menos. Mas a Lei vem dizer que não se escapa à diferença, porque há não. Ou seja, há demarcação de território, desde o quê você jamais será um outro. No que a Lei funciona assim, no que o Nome do Pai diz não à função fálica, o que está prometendo é o gozo da função fálica.
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Por isso, esse não é aí fundador de desejo. Uma limitação à função fálica é possibilidade de gozo, ou seja, de estancar, de limitar o gozo, até no sentido de chega de prazer... O gozo é um chega de prazer, um estatelamento... O falo é, então, justamente o índice do meu tesão: “o que é meu e ninguém tasca”. Mas acontece que − porque há esse não limitado pelo gozo, por tanto fundando certo desejo, um campo, um enxamezinho de significantes − encontro “igualdade” com todos aqueles que estão na mesma que eu. É o chamado homem. Os homens são todos iguais perante a Lei. É claro, porque a Lei diz que eles são todos diferentes por causa dela. É a única igualdade que existe entre eles. Mas eles podem, no que se referem à essa Lei, se colocar em igualdade diante dela. Aliás, o que falta à mãe é o falo do pai. Só o pai tem o falo, mais ninguém. E, no que ele o tem, ele cinde e me dá um significante fálico, mas a minha referência continua sendo ele, continua sendo a Lei do Pai, que me dá uma demarcação fálica. Então, posso entrar no gozo-fálico dentro dessa limitação dada pelo falo paterno. O pai não é o pai de ninguém. Ele é o suposto ter falo, o suposto feliz proprietário... Ele é que nomeia e, então, tenho uma possibilidade de usar − e às vezes abusar − do gozo fálico, porque me garanto no falo dele. Quer dizer, o tal desejo da mãe só pode ser supostamente querer o falo do pai. Mas o desejo de qualquer um − homens e mulheres − é esse, o falo do pai. Se todo mundo fosse “curado”, dispensaria a mãe. O pai ninguém pode dispensar − o pai é só significante... Estamos tentando, aí, saber o que aconteceria numa normalidade de fundação significante. Uma coisa que felizmente acontece bastante... depois estraga. Sou da opinião de que existe muito mais psicótico do que a gente pensa. Há muito mais do que aqueles que surtaram, sobretudo hoje em dia. Quer me parecer que a coisa está meio flou, a indicação de lugar de paternidade. Essa gozação fálica toda, garantida pelo falo paterno, pelo Nome do Pai, que separa isso, é da ordem do homem, do masculino. E, nesta ordem, está todo e qualquer sujeito no que ele entra na fala... Alguns escapam disso, mas
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não decisivamente − é o que podemos chamar de mulheres. O que escapa aí − se é que existem mulheres, a suposição é de que existem − é justamente o fato de que o falo é apenas significante. Embora se coalesça aqui e ali numa função sintomática para cada sujeito, ou seja, toma uma pregnância de isolamento, o falo que é brandido pela Lei, na mão do chamado pai, é meramente significante. Então, ele recorta, mas não congela. É aí que pode aparecer a possibilidade de questionamento do não. Questionar o não é feminizar-se. Os homens só têm uma garantia: acreditar na Lei, que em algum lugar há Lei. A dúvida a respeito disto feminiza qualquer homem, ou seja, torna precário o gozo-fálico. E o sujeito pode, dentro da sua história, não deixando de se identificar por um S1, o que é indefectível, no caso da “normalidade”, pender para um lado, ou para outro. Isto é, escolher, se é que há alguma escolha nisso, afeiçoar-se a uma modalidade, ou a outra. Não há originariamente aí diferença significante entre homens e mulheres. Há é diferença de posição, diante do significante, o que é diferente. Os homens acolhem o significante, emprestando o máximo de significado a ele, ou seja, sintomatizando ao máximo o significante. As mulheres acolhem o significante, mas dizendo: “Calma lá, não é bem assim, talvez não seja”... Aliás, quando uma criança se depara com a Lei, em forma de regra, de código, é menos fi (-), mas o que está nos interessando aí é que o que é a garantia dessa regra é a Lei. Por isso, estou dizendo que a Lei é brandida como significante, apesar da sua aparência regional. O que interessa para a criança não é saber se é isto ou aquilo e, sim, que é proibido. Isto é que é a Lei. Não é o caso, então, de nos perguntarmos se não é aí que o psicótico se confunde? Ao invés de conseguir sacar que há proibido, ele pensa que o proibido é aquilo mesmo. Eu me pergunto se o fundamento da psicose não está aí. O neurótico obsessivo fica em eterna dúvida, sem saber se é aquilo mesmo, pode não ser, pode ser o outro. Mas, se o sujeito, por exemplo, não sacar que é o intervalo que é proibido, e sim que há algo que é proibido, ele está em plena psicose: ele se identifica com o dejeto da fundação sintomática. Por isso Lacan diz que ele se identifica ao sintoma. Por exemplo: é proibido
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comer a mãe. “Ah!, é proibido, virgula, comer a mãe” − é outra estória. Se não pensar assim, é psicótico. Onde, por exemplo, Lacan vai destacar claramente a psicose de Schreber? Ele jamais poderia se imaginar feminino, isto não passava na cabeça dele, portanto, ele virava mulher, no corpo. Mas vou retornar ao que dizia há pouco. Há uma coisa que não entra na cabeça das feministas, por exemplo. Uma fêmea falante, se ela goza, goza como homem. Não adianta seguir o folclore ambiente. Gozou, é colega, empata. E isto é gozar direito, legal. As mulheres − não estou falando das fêmeas de qualquer posição − não podem chegar a gozar legal. Às vezes até dá para gozar pelas brebas, mas a coisa logo escapole... De uma posição feminina, o que é rompido é justamente aquilo que me delimita no meu plano de gozo, aquilo que me indica, no lugar onde se goza − a coisa se espalha... Lacan entra aí, então, com a questão do amor. E temos, por exemplo, relações amorosas intensíssimas, que, justamente por serem ultra-amorosas, dispensam a gozação. Por quê? Porque esse negócio de “sexo com amor” é balela... A função do para-todo determina o lugar de masculino e, portanto, permite o endereçamento dentro do jogo fálico, estritamente masculino e homossexual. Mas posso conjeturar que, quando há o gozo-fálico, justamente porque ele é o limite, não há saída a não ser escapulir para o Outro. Então, eu diria que todo e qualquer falante é homossexual nos seus projetos gozantes, e heterossexual quando quebra a cara. É necessariamente narcísico primeiro, e depois feminino. Como não há o Outro sexo, só existe heterossexualidade possível num deslanchamento que ultrapasse o gozo-fálico. Não é possível heterossexualidade dentro do gozo-fálico. É preciso, então, nuançar que o gozo-fálico pertence ao campo da homossexualidade, e do narcisismo portanto. Mas que, uma vez atingido, o sujeito pode se estatelar, perder-se no empuxo de Outra coisa. Aí é como se fosse inaugurada uma possibilidade de heterossexualidade. Ainda vou nuançar mais: todo movimento fálico, para o sujeito, é homossexual. No entanto, considero que, em função mesmo − a aparência, paradoxal, é de que não é − da marcação fálica de cada sujeito ser absolutamente isolada, o gozo-fálico só
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se dá por referência à castração, e portanto é um para-todo. O movimento é sempre homossexual, quer dizer, dos homens, da espécie enquanto fálica, mas o sujeito está condenado à heterossexualidade, porque é impossível qualquer relação, qualquer atingimento do Outro. Qualquer movimento que se faça, no movimento de estar entre os irmãos, porque há o Pai, acaba-se perdendo essa relação com o Pai e se estatelando na alteridade. Simplesmente porque, até mesmo no gozo masturbatório, a coisa se altera. Então, o falante é homossexual por fundação, e condenado à heterossexualidade. Por exemplo, o chamado jogo homossexual, na prática do corpo, é também decepcionante, porque prova a virulência maior da heterossexualidade. Se você resolve fazer a farsa de que vai comer o mesmo, vai dar de cara na parede, porque não vai comer o mesmo, e isto é exacerbante − mais aí do que em outra parte. *
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O gozo-fálico coloca a questão da Wiederholungszwang. Ele está dentro da compulsão à repetição. Alteração se daria no escapamento da compulsão à repetição, do que se repete no gozo-fálico, a marca do falo. Só se goza por repetição, por compulsão à repetição. A questão fundamental da psicanálise, e da prática analítica, é o retorno ao simbólico, no sentido que tenho dado aqui ultimamente. Isto é, retornar à bifididade, ou seja, a isso que Lacan chama de equivocação. Se pegarmos a razão fálica como razão sintomática, se o sujeito goza, o que ele fez foi não se equivocar. O sujeito que goza não se equivoca. Depois do gozo, ele pode equivocar à vontade, mas atingir o gozo é uma não-equivocação do ponto de vista de achar o significante que o quer pegar, e localizado sem outro-lado: assimétrico, sintomatizado. A função da prática analítica é justamente equivocativa, no sentido de deslanchar o sujeito de uma amarração sintomática. Quer dizer, haver condições para, embora mantendo o S1 como referência, poder se deslocar
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de repetições sintomáticas, sobretudo aquelas emolduradas pelo sujeito em figurações imaginárias. Trata-se, então, do reconhecimento de que o Outro é Outro. Para distinguir isso há uma outra palavra, que foi a que Lacan disse: o amor pela distinção − que é o caminho da heterossexualidade. É um cuidado, é o que chamei de diferocracia. O sujeito chega a amar que haja diferença, mesmo que lá ele não possa chegar. E isto é escapar do gozo-fálico, porque, com o pau do Outro é que não posso gozar − frase corriqueira de rua, mas brilhante. Ninguém goza com o pau do Outro... Mas pode achar um barato que o Outro goze...
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AO ZOO SE A PRAXE ZERO À TUA EXTRAI Ao zoo se a praxe zero à tua extrai − Also Sprach Zarathustra. É uma tradução, tradução fônica, mas que não deixa de ser tradução. Para o Seminário de hoje, só me resta justificar um pouco essa tradução. Justamente no texto cujo título ali se traduz, Nietzsche diz que o homem é uma corda estendida entre o animal e o sobre-humano − prefiro traduzir, à minha vontade, não por super-homem −, uma corda por cima de um abismo. “Eu lhes ensino o sobre-humano, o homem é algo que deve ser superado, deve ser ultrapassado. E ao invés de superar o homem, vocês preferem retornar ao animal. Assim falou Zaratustra”. Pergunta ele em outro lugar: “O que é o macaco para o homem?” E mais: “Ele faz rir ou é vergonha que molesta; e assim parece o homem para o sobre-humano; fazendo rir ou sendo vergonha que molesta”. *
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Os fundamentos da psicanálise estão situados no lugar onde isso que parece animal − e que, segundo teorias de sucesso em nossa cultura, como é o caso da de Darwin, é um descendente do animal, por via evolutiva − se arroga, ou supõe detectar em si mesmo uma diferença que o faz extrapolar da série animal: o falante, que até agora temos chamado de homem. Sobre o qual se quer fazer, em contraposição à zoologia, uma antropologia...
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Essa coisa, segundo a psicanálise, é indeterminada para um dos lados. Se é que vem do animal, se é que sua diferença se faz em função da sua semelhança imaginária com o animal, de onde vem supostamente surgir a diferença simbólica, do outro lado parece determinado ou sobredeterminado justamente por esse tal simbólico. Não há do outro lado de alguma ponte meio levadiça sobre talvez um abismo, para a psicanálise, um outro extremo situável. Parece que sabemos mais ou menos de onde viemos. Pinta aí uma diferença que é a cabeça da ponte, caminho do homem − para onde? Não se sabe. Então, não há nenhuma teleologia que fundamente a ética da psicanálise? Mas justamente Nietzsche, defrontado com essa radical falta de outro lado para essa ponte, ou para essa corda que ele estendeu sobre o abismo, propõe que há sim, o outro lado. É uma outra ética? Então, o caminho do homem é, a partir de uma diferença para com o animal que o assemelha, no sentido, como diz ele, da Terra, no sentido do sobre-humano. A psicanálise é mais modesta. Não propõe outro lado. Diz que o Outro lado não existe, que não se sabe onde vai dar tudo isso, que o máximo que se pode conseguir é a produção, pelo discurso psicanalítico, pela prática analítica, de uma diferença situada na particularidade sintomática, no esteio do simbólico, de instalação de letra, para cada sujeito. E se o discurso psicanalítico tem como produção esse S1 assim nomeado, ele não produz mais do que isto, e não se responsabiliza por produzir mais do que isto, e abandona à sorte o “feliz proprietário” do S1 reconhecido, ou supostamente reconhecido, eventualmente reconhecido pela travessia que terá feito − onde nâo deixamos de encontrar, mesmo para o citado Nietzsche, uma outra parcialidade ética que é aquilo que ele chama de virtude, a virtude de cada sujeito. Poderíamos dizer, então, que, para cada um, sua assunção de S1 é o máximo de virtude, o máximo de ética, que a psicanálise propõe e oferece como produção − eventual, diga-se de passagem. Mas não deixa de fazer questão, para nós, esse pedido nietzscheano que, vez por outra, vemos tangenciar a obra de Freud: alguma coisa mais além não só do princípio do prazer, como mais além de uma simples demarcação.
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As pessoas atravessam a prática analítica − que, na verdade, não é grande coisa, é bom lembrar isto antes que fiquemos todos megalômanos − e se deparam com sua parcialidade, aceitam talvez isso que chamamos de castração e se “contentam” ou se contentam o suficiente, com certo timbre que está escrito em suas costas. E depois? Não deixa de ser uma questão ética, se não solucionada, se não solucionável, pelo menos aborrecedora, implicante, para quem se mete com o discurso psicanalítico. Quero supor que se possa fundamentar a emergência do falante com a suposição de uma máquina original que chamei de revirão, a qual estará aí em algum lugar desse (não desprezível, mas) bastante desprezado corpo que fala. Disto não abro mão. O simbólico não compareceu, até segunda ordem, senão através desse “macacão” falante. Está lá, é letra sua. E se todos são falantes, deve haver uma letra que é a mesma para todos. Portanto, se fizer uma redução extrema, posso pensar: é o sintoma particular − ainda que roto, rompido, hiante, ainda que sua estrutura seja de hiância − desse “bicho” aí. Pois mesmo que ele consiga − e conseguirá − ser transferido para outro corpo, para um computador, etc., até última ordem será transferido por esses bichos aí. Se posso fazer a suposição de que esta máquina-revirão fundamenta o falante, ainda que ela seja mera escrita do que lá haja − eu não disse metáfora −, é na referência a essa máquina, a esse revirão, a esse seu processamento insistente, repetitivo, de reviramento, que posso vir a pensar, talvez, congruentemente com a origem − se é esta a origem −, algum estatuto ético para além da produção de um S1 na prática analítica. O revirão porta uma causa que se chama objeto a, o lugar do reviramento. Não estou atribuindo a ele função de causa e, sim, função de função, de funcionamento − a maquininha funciona assim. E no que funciona assim, põe uma causa que se chama objeto a, lugarzinho de absoluta impossibilidade de demarcação. Ela, então, no seu movimento, requer esse lugarzinho. O objeto a não é coisa, é lugar. Mas se faço a atribuição da urgência dessa máquina como lugar de funcionamento do que venha a ser falante, como linguagem, como quis dizer
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− não sei se cometendo heresia −, posso me referir, então, a isso como sendo o supra-sumo do esteio ético do falante. Wo es war, soll ich werden é a legislação ética de Freud no que diz respeito à prática analítica, que Lacan transformou em:
. Esta formulinha é feito brincadeira de criança: “Tira tira o teu
pezinho, bota aqui ao pé do meu”... É a ética da psicanálise, a qual tem a ver com ir buscar a verdade − que consiste em repetir sempre a frase de Guimarães Rosa, muito mais contundente, “ir até o rabo da palavra”, atravessar o Grande Sertão. Só? Acabou? Achou o rabo da palavra e acabou? Até agora a psicanálise só se comprometeu com isto. Mesmo isto, repito, é eventual porque não posso jurar que vai ser conseguido só porque o sujeito se promete uma análise. O fato de se prometer uma análise não é a condição, mas uma oportunidade disso. E, também, não esquecer que há outras oportunidades, pois não vamos ficar com a megalomania da psicanálise, de que se não se passa pela mão do analista não chega lá − é mentira, alguns chegam. Apenas que os analistas serão portadores de certo savoir-faire que facilitará isto. Se há um saber-fazer, basta saber montar aquele lugar do discurso. Se o analista sabe montá-lo, facilita, ou seja, propicia lugar para isto se dar. A psicanálise não pode pedir mais do que isto: facilitar, por uma série de manejos, de produções, um lugar para que isso se dê, quem sabe com mais rapidez, para mais pessoas − e só! O discurso psicanalitico não depende do psicanalista para existir. Ao contrário, é o psicanalista que depende dele. Existe um floreio de tal maneira nas instituições psicanalíticas que até parece que, sem psicanalistas, nada aconteceria. Acontece sim, não se sabe por que. Temos que estudar cada caso. O psicanalista apenas propicia um lugar de ocorrência supostamente facilitada disso. *
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Mas eu insisto, retornando ao meu Zezéro, ao meu Rombo, ao meu Revirão. Se é verdade que posso fundamentar o processo do falante nisso, é esse zero, Z − não é o zero do Frege, de sutura, mas Zero no lugar de ausência
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dele mesmo, zero barrado, que vira a letra fi, Φ, significante do desejo −, que, na verdade, pode sustentar a convivência do sujeito com a sua marca, aquela que o discurso psicanalítico promete tentar destacar sem, no entanto, petrificar o sentido dessa letra. Há algo de paradoxal, aparentemente, no que venho dizendo. Se isso é sintoma − foi Lacan que disse que letra é sintoma, situação de posição significante −, se é por via sintomática que arranjo lugar de pedra, mas se não sou esse lugar de pedra, se eu é o sujeito que habita entre esse lugar de pedra e outros lugares de pedra, que constituem o campo do Outro, é porque eu, sujeito, me coloco, como revirão, entre esse lugar e Outro. Então, não sou o sintoma, eu o porto para poder funcionar subjetivamente, e sem nenhuma heresia. Mas no que não-sou esse sintoma, mas sim esse intervalo, entre esse sintoma que me sela, e por razão do qual posso selar o cavalo do Outro e percorrer o seu campo, é que tenho como fundamento ético, no sentido da repetição, não só poder seguir a ligação do rabo da minha palavra, como dar cabo dela, em todos os sentidos, por ser habitante do interstício. Dentro das possibilidades de uma prática analítica, se minha referência ética é o S1 que o discurso cospe, escarra − la crachose −, por outro lado, minha referência ética de sujeito é o des-ser − le desêtre: não ser nem mesmo aquilo. É revirão, alteração, ou seja, não permito que me tirem, que subtraiam de mim, que me façam a extração desse zero fundamental, zero barrado igual a Φ, que tem como índice matêmico um S1. É a Φ que me reporto numa ampliação, se não ambição, ética. A praxe, a praxe como diz Nietzsche, é insistir na preferência em retornar ao animal, é identificar-se não com o sintoma, mas ao sintoma, o que é da ordem da psicotização. Dar cabo da palavra se dá pondo-se muitos sentidos nesse cabo. Posso dar um cabo de ligação à palavra, posso dar um cabo de esteio, posso também destruí-la, o que é a razão fundamental da criação. Neste ponto, estou com Mallarmé e não abro: “A destruição é a minha musa” − de modo que a demarcação lá esteja. Minha ética, na prática analítica, é encontrá-la, mas minha ética de sujeito é só isto? Ou é querer mais do que isto? A marca lá está, em S1, mas
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minha vigência é aqui, $, ao lado d’esse Um, no intervalo. Ou seja: não me tirem, por nenhuma prática, por nenhuma praxe comum de animalização dos sujeitos, o meu Zero, senão retorno ao Zoo... Mas a ética que prezo diz que se deve retornar wo $ war, é para onde soll ich werden. Parece que está faltando alguma coisa a ser relembrada. Não que não tenha sido dita, porque a vejo nos textos de Freud, Lacan, mas é pouco lembrada. Que não é suficiente me demarcar como diferente, insistir mesmo nessa diferença e no respeito, se não na admiração, da diferença. Que essa diferença é decorrente de uma referência sintomática que uma ética me impele a assumir. Mas que ela não chega a ser o cúmulo da diferença senão quando posso estabelecer a diferença de eu-sujeito para comigo, ou seja, quando posso me identificar com o sintoma, mas não a ele. Não pretendo fazer um Seminário sobre Nietzsche, mas me pergunto, freqüentemente, quando leio sua obra, se não é disso que ele está falando, se não é disso que se trata no Sobre-Humano. Se a praxe extrai à tua o teu zero, o qual garante e sustenta essa tua, só podes retornar é ao zoológico. Isto parece brincadeira, mas não é. Abro livros das chamadas ciências humanas e me pergunto se aquilo não é tratado de zoologia, freqüentemente chamado de sociologia, psicologia, antropologia, etc. Aliás, Leroi-Gourhan já disse isso... A psicanálise termina no escarro de S1, mas há talvez um efeito desse escarro, e um efeito ético, pois o surgimento da diferença tem que se tornar inarredável, a cada passo, a partir dessa distinção. Se a prática analítica produz esse escarro de S1, se o sujeito disso se deu conta, o surgimento da diferença há de se tornar exacerbado para esse sujeito, portanto inarredável a cada passo dele. Antes, o S1 agia à minha revelia. Então, se ele não age mais à minha revelia, eu me identifico com ele, mas não a ele. Aliás não se pode jogar fora o S1 senão no sentido de “jogá-lo” na mesa verde do Outro, como carta de baralho. Ele é uma referência, mas, o meu lugar, não é ele e, sim, entre ele e Outra marca. Eu me pergunto se não há certa tendência, mesmo em certos efeitos-Lacan desta vida, a restar apenas nessa ética da produção da diferença. Ou seja: “Eu
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sou assim, e ponto!” Ora, se alguém diz isso já é para desconfiar, pois não se trata de nenhum ser que passa a ser a minha referência − senão reviradamente. A ética da produçâo de S1 conduz à ética da falta. Há grande diferença entre eu me identificar a um sintoma, e eu me identificar com esse sintoma. Uma coisa é dizer: “Este sintoma é a minha demarcação”. Outra, é dizer: “Eu sou este sintoma”. A identificação é simbólica. Como sujeito, aponto aquilo como o que me refere, não como eu. Esta é toda a questão da diferença entre o sujeito cartesiano e o sujeito freudiano. O sujeito cartesiano pode ser um sujeito psicótico: “Eu sou isto, penso esse-Um, logo o sou”. Mas quem pensou esse Um? No discurso do mestre, por exemplo, o mestre põe o sintoma como agente do seu discurso. Não precisa, para isto, identificar-se a ele. Se não ele não seria um mestre: ele joga o S1 com mestria, põe-no em jogo. Encontramos posições de mestria − ou seja, de escravização à revelia −, através da história, em que o mestre pode não se dar conta de que está sendo movido por essa demarcação discursiva. Mas, depois do discurso analítico, existe uma outra fase de mestria, que é jogar essa cartada na mesa, mas se dando mesmo conta disso. Não deixa por isso de ser discurso de mestria... Lacan chama de mestria a mestria do S1, para cada sujeito, fazendo escravizar o Outro que é o seu inconsciente. Mas uma coisa é você se identificar com o sintoma à sua revelia, quer dizer, ter um discurso lateral sem ter um percurso que lhe dê conta disso. Outra, é fazer a mesmíssima coisa, mas se dando conta de que há um des-ser aí: “Sou mestre sim, aqui e agora. Daqui a pouco já não sou mais. O que está funcionando é isso assim-assim, e não eu”. Há identificação imaginária do neurótico com o S1, que não é destituída da possibilidade de sutura, como no caso da psicose. O neurótico se identifica e pensa que é mesmo, mas tem portas para sair. O psicótico não as tem. Por isso, Lacan diz que a psicose é a identificação ao sintoma. Um paranóico delirante, num certo momento do seu delírio, embora o delírio mude, ele é aquele delírio − e nada mais. Nesse sentido, então, não se pode ler a psicose no discurso do mestre, porque aí o sujeito está recalcado. Ou senão, não está recalcado, está realizando um ato de mestria e sabendo o que faz.
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Mas insisto nesse efeito ético do discurso analítico, no sentido de exacerbação da diferença, a qual, então, começa a pintar como inarredável a cada momento. Você pode até arredá-la, por uma questão de mestria, mas está sabendo disso. Uma ressurgência do real deve tornar-se bem mais implicante para esse sujeito. Daí, certas fases de retorno da angústia em final de análise. Uma ressurgência implicante do real como impossível e, além disso, inarredável. Portanto, uma ressurgência exacerbada da impossibilidade da relação. Se é ressurgência do real, se não for tratada na base da angústia, nem do delírio, vai ser referência a uma neutralidade, em revirão. Ou seja, não se pode mais brincar, a não ser no faz-de-conta. Que nem por isso deixa de ser interessante: é interessantíssimo, como sempre o fora. Só que o sujeito não se dava conta disso. Por que deixar de ser interessante só porque se deu conta? Pelo contrário, fica bem mais interessante, porque aí se pode parar e dizer: “Agora chega! A gente pode parar e brincar de outra coisa”. Exatamente o aprisionamento nessa incompetência, melhor dizendo, nessa impotência de dizer isso é que constitui o retorno, que Nietzsche denuncia, ao animal: “Eu só brinco disso!” Quer dizer, você é o animal x, que é assim-assim. É claro que não se precisa estar mudando a toda hora só para provar que se sabe brincar de outra coisa, mas é facilmente possível brincar de outra coisa. Se há, então, repetição, se dela não se escapa, se a identificação é por via simbólica, essa identificação se repete, quer dizer se reproduz. Portanto, ela é o esteio da verdade do sujeito. Isto é resumidamente o conceito de ética de Lacan. Quer dizer, por trás desse entulho todo, no regime da repetição, o encontro marcador − matema, S1 − se deu, e essa é a sua verdade. Não se pode dizer toda a verdade, porque dizê-la toda seria dizer S1→S2 por inteiro para cada um. Seria uma neutralidade absoluta. Seria viger num regime que a língua me permite, de contrabanda, em que qualquer palavra pode significar qualquer coisa, o que o poeta às vezes consegue quando lhe dá na telha. Isso seria uma
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absoluta falta de sentido. Então é preciso regionalizar o percurso, porque não se é apenas simbólico. Faz parte da sobrevivência − do simbólico, inclusive − se não o macacão morre, e macacão morto não fala. Para não morrer, faço diplomacia, justamente porque sei transar bem o simbólico com o macacão. Ora a gente transa uma de mudar, ora uma de estagnar, para a sobrevivência pintar. Do ponto da minha marcação particular no campo do Outro, portanto, a repetição me indica que há algum ser e é preciso dizer essa meia-verdade, justamente para eu poder ficar muito mais à vontade na minha macaquice, a ponto de querer procurar pelo sobre-humano. O sobre-humano não é a ficção americana do Superman, nem é exterminar com o corpo, como gostam de fazer, não os místicos, mas os taradinhos da auto-flagelação. Aliás, o que contam dos místicos é que o corpo deles não sobrevive, mas, pelo menos, sobre-sobra. Anos depois, abre-se a sepultura, o corpo está intacto, e até com perfume... Não é, então, jogar fora o macacão e, sim, justamente fazer o que é da ordem do sobrehumano: poder sartar muito, fazer misérias, sem se destruir, no sentido de não abortar, não extinguir logo o percurso − se é que isto é possível. Isto é o que entendo como o sobre-humano de Nietzsche. Que nós vivemos de estupidez. Os chamados povos estão aí na sua plácida estupidez, o que só pode dar mesmo é em guerra, naturalmente. Não se tem jogo de cintura para ir transando o simbólico na medida em que vão pintando os problemas. A gente pensa: “eu sou isto-assim”, tapa o furo, e acabou, não tem mais jeito: se alguém é não tem mais papo. Quando Serge Leclaire diz que a linguagem vem depois do inconsciente, a linguagem a que ele está se referindo é da ordem da língua. Lacan diz que o inconsciente se estrutura como uma linguagem, mas que ele não é alíngua. E eu, depois, digo: a estrutura do inconsciente é a linguagem. Quando Lacan diz que a linguagem não existe, está mostrando que não existe aquilo que os lingüistas e os semiólogos sonham como linguagem, que é a metalinguagem de todas as linguagens, no sentido de sistemas. Estou dizendo que a linguagem não tem nada a ver com sistema nenhum. Ela é a estrutura disso que se chama inconsciente, e sobre a qual os modelinhos linguageiros vão poder se constituir.
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É preciso reforçar essa ética, não só a da produção de um S1, mas a ética do sujeito − que encontro em Lacan, não estou dizendo nada de novo −, sobretudo num meio como o nosso, onde se diz com a cara mais limpa, e publicamente, que se trata de psicanálise. Daí que me sinto muito à vontade para recitar o trechinho de Nietzsche, no Ao zoo se a praxe zero à tua extrai: “Para mim acendeu-se uma luz: é de companheiros que preciso, e que estejam vivos − não de companhias mortas e de cadáveres que comigo carregue para onde eu queira ir. De companheiros vivos, eu preciso, que me sigam porque querem a eles próprios seguir − e para onde eu quero ir! Para mim acendeu-se uma luz. Que eu não fale mais ao povo, porém a companheiros! Que eu não me faça nem pastor nem cão de guarda de um rebanho! A muitos eu quero seduzir e para fora do rebanho os arrastar − é para isto que vim”. Also sprach Zarathustra. Isto pode lembrar Freud quando diz: “Aí está o país para onde levo o meu povo”, desde que se desligue ao máximo possível essa metáfora de sua encenação judaica através do rio interrompido.
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Leito urdito
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LEITO URDITO Pretendo encerrar hoje o Seminário do semestre com esse título que, como o anterior, é também tradução. Foi a tradução menos ruim que achei para o texto de Lacan chamado L’Étourdit. Não é urdido, é urdito, faz até alguma sonância com a língua do vovô: Ur-dito. Não que eu vá necessariamente falar no L’Étourdit. As pessoas dizem, no país, que é “fazer a fama e deitar na cama”... Só que a cama é incômoda − porque insiste, no caso, no discurso psicanalítico. É uma péssima cama. Ela escorrega... Este final de Seminário é importante para mim porque o Colégio Freudiano do Rio de Janeiro tem como existência oficial − quer dizer, fundação demarcada e datada − menos que dez anos. Seu registro é de 1976, embora eu o tenha elocubrado em 75, num bistrô de Paris, com Betty Milan. Esse encontro foi gestado ou, geneticamente falando, “copulado” de algum modo nessa produção, mas as atividades já existiam, com muito pouca gente, desde 1970/71. Portanto, de fato, o trabalho já tem mais de dez anos... Mas este Seminário, dos registrados como tal, é o décimo: Por Dom e Regresso. Algumas pessoas ainda existem que estiveram presentes a todos, entre mortos e feridos... Parece-me um momento importante, em função mesmo da existência, do modo de existência do Colégio, dos movimentos que foi capaz de fazer, dos efeitos que pôde causar, das produções que se puderam fabricar... É um momento de virada, sobretudo para mim.
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A partir do final do Seminário do ano passado, A Música, comecei a revirar um pouco, e não dá mais para voltar. Então, acho que o ano de 84 parece que deve ser o de várias mudanças... Não no sentido de revoluções, de explosões, mas, pelo contrário, de concentração, de revisão, de re-estudo. Precisamos saber o que andamos fazendo até aqui: recozer essa questão da instituição psicanalítica, nesse leito tão difícil. No L’Étourdit, Lacan diz que o discurso psicanalítico é justamente aquele que − por obra de Lacan, aliás, que diz: c’est mon frayage − pode fundar um laço social limpo de qualquer necessidade de grupo. É uma proposição extremamente difícil a de correr o rio nesse leito precário, revirado, de avesso, e constituir uma instituição. Por aqui não sabemos muito bem o que é uma instituição. Geralmente se pensa que é agrupamento, rebanho. Mas trata-se de instituição que possa existir como tal, limpando-se freqüentemente dos efeitos de grupo, em função do discurso psicanalítico que é o único que talvez permita isto. Os efeitos de grupo criam problemas os mais estranhos, destrutivos da funcionalidade do nosso interesse discursivo. Mas quero insistir em que é verdadeiro que é possível uma instituição limpa. Limpa não quer dizer aí particípio passado, mas, sim, que vai sendo limpa, para sempre, dos efeitos de grupo. Espécie de papel higiênico − é preciso tê-lo à mão... E isto não é sem referência a alguma suposta autoridade, por suposição de saber. Uma instituição é possível, mas freqüentada pelo discurso analítico, na medida em que a simples memória do deslizamento põe os sujeitos participantes como tais, isto é, sabendo que há limitações nas possibilidades discursivas, que há limites temporários, etc., mas que a coisa pode ficar em suspenso... Não é suficiente alguém brandir, por exemplo, a frase que às vezes ouço quando, no Colégio, se põe um ato de decisão. E um ato de decisão, se consegue ser ato, é da ordem da interpretação: se foi um ato de decisão, chegou a interpretar alguma coisa, como um corte, momentâneo e provisório que seja − e isto não prescinde de certa autoridade, no sentido de suposição de saber, delegada, ainda que por transferência. Então, quando um ato destes se produz, às vezes alguns vêm brandir: “Isto é meramente institucional, e o discurso psicanalítico?”
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É o caso de se perguntar de volta: “Sim, e o discurso psicanalítico?” Pois, no caso, não é uma pergunta decente. Transformar o discurso psicanalítico em tacape − porque o sujeito pessoalmente foi atingido por uma regra qualquer de determinação circunstancial − é supor que se possa viver na esquizofrenização geral. Para isto não se precisa de instituição de espécie alguma. Haverá a necessidade de uma instituição psicanalítica? Suponho eu que sim − se não, não estava de trouxa aqui, fundador de uma −, na medida em que há charneira entre os praticantes-supostos do discurso psicanalítico e outras áreas instituídas. Afinal, o que não é instituído? Só a absoluta loucura. Até o crime é institucionalizado, sabemos bem disto. Ele pode não ser legalizado, mas institucionalizado ele é, e muito bem. Lembro-me que meu velho mestre Anísio Teixeira uma vez me perguntava: “Você consegue entender por que no Brasil não há a instituição de matar Presidente?” Fiquei perplexo, porque não há. Ele dizia: “Os Estados Unidos dão certo, porque até isto lá está institucionalizado. Os caras se cuidam!”. Fiquei boquiaberto, quando me deparei com esta questão. Nunca tinha pensado. *
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A frase nuclear do L’Étourdit é: “Que se diga fica esquecido por trás do que se diz no que se ouve”. Como o texto mostra em seguida, isto tem uma infinidade de sentidos. Mas tem, também, por exemplo, este: de algum lugar provém o enunciado, quando é dito. Alguém disse, há uma função preceitual em algum lugar que, nem por ser preceitual, deve deixar de ser analisada, justo por isso deve ser analisada − mas é preceitual. Conseqüência direta que Lacan aponta desse “que se diga” é a afirmação que vem pouco depois, de que não há universal que não deva conter-se por uma existência que o nega. Universal que é a função castradora do Nome do Pai, que permite dizer “todo homem”. E foi justamente esta a navalha com que ele cortou o paradoxo de Russell: o significante ali repetido não é o mesmo significante, ele mudou de posição. O universal fica desqualificado em favor do
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possível. “Não há portanto universal que não se reduza ao possível”, diz Lacan. Então, com esta lógica, o dito universal foi reduzido à dimensão do possível. E continua: “mesmo a Morte”. A velha tese é de que todo homem é mortal, inclusive Sócrates e, logo, porque homem. Mas Lacan vem mostrar que esse “todo homem é mortal” é apenas um possível, pois quando bolou a Segunda Morte, que é muito pior do que a primeira, foi talvez com sentido de: “E se eu não for mortal?”. Já pensaram que coisa horrorosa? Que piada de mau gosto? Mas nem disto tenho certeza, como universal, apenas conjeturo como possível. Afinal de contas, os milagres existem, tal como as bruxas... Isto mostra que de algum lugar, preceitualmente, a partir de um não, o que se enuncia embora fique esquecido por trás do que se diz, no que se ouve, foi dito. Dizem, ou disseram. É “que se diga”, por mais esquecido que fique por trás disso tudo − é uma interpretação que posso dar −, que deve ser lembrado. O que não obriga que todos sejam homens, ou seja, que todos os homens o sejam. É uma maneira de dizer que existem mulheres, já que todos os homens não o são − é apenas uma possibilidade −, que questionam, embora non tropo, justamente esse não. E o que se pode urdir de cama comum para qualquer ajuntamento, qualquer coleção de sujeitos, fica na dependência desse “que se diga”. Uma coisa é certa na teoria psicanalítica, nisso que Freud inventou de sexualidade e que Lacan concluiu: é que não existem mulheres sem homens. Aliás, é uma coisa de que não perdoam Freud. Chamam o fale-sido de falocrata. Não o perdoam de que nada se possa fundar pelo falante que não seja no regime do não. Não são as mulheres que não perdoam. Elas devem dar graças a Deus de ser assim. Devem ser os homens em mal-estar de penduricalho, que freqüentemente chamamos de histéricas. Como iriam suspender a função fálica das mulheres, em algum lugar aceitar ter que restar no possível, e não aceitar definitivamente, quer dizer, universalmente, o não? O que há de brilhante nas mulheres, uma vez que supomos que elas existem, é que elas justamente não aceitam o universal. Elas parecem que sabem, por alguma razão, que isso é apenas possível. Justamente a crítica que as mulheres nos fazem é esta: “Não há universal”.
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Não que elas acreditem em nenhuma transgressão. Isso, elas sabem que é pura babaquice. Transgredir o quê? Não dá, fica-se do mesmo lado. Dá apenas para suspender o não, ma non tropo também. Quer dizer, como se poderia não negar, mas suspender a função paterna: dar-se conta de que não há universal e provar isto. Até segunda ordem, a única prova de que não há universal, são as mulheres. É quando algo se feminiza que fica evidente que não há universal. Mas não vamos confundir isto, pois, de repente, as histéricas ouviram falar nisto e estão dizendo que são é mulheres e que, por isso, é que fazem aquelas coisas. Começam a querer, às vezes, nos convencer de que dão chiliques, porque são mulheres. Mulheres não dão chiliques, elas fazem os homens dar chiliques: fazer guerra, etc. Elas ficam só olhando... E isto tem a ver com qualquer possibilidade de instituição. Tem o “que se diga” em algum lugar, e que não é universal, de modo algum, é um possível. Mas a neura circundante não quer gozar com o possível. Saber que tem o “que se diga” por trás, lembrar isto, é importante − importante para estar ou não de acordo com o ponto de onde se emana − e, eventualmente, se dejetar − e para se manter o discurso de pé. Isto exige um grande cuidado, uma prudência mínima, no sentido de não se confundir sobre o que possa manter a noção de que não se trata de nenhum universal, ao mesmo tempo que sabendo do possível, podendo cultivar o jardim do possível. Saber que não é universal, que é só possível, não diminui e, sim, aumenta as possibilidades, acrescenta as possibilidades. O ato poético está aí para provar. Tenho tentado demonstrar isto em vários trabalhos. É claro que há que haver um mínimo de rigor aí, pois freqüentemente confundimos ato poético com fazer poesia, que é da ordem do feito para ninar. O ato poético é feito para despertar. E tenho me esforçado para mostrar sua congruência, isto é, sua topologia como a mesma do ato analítico. De algum modo a gente tem tentado urdir um leito, assim incômodo, e que até chega a ter sucesso... O que não significa o sucesso, pode ser um fracasso também. Pois tem seus momentos de virada, pelo revirão... *
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Por isso trouxe, para me despedir por este semestre, alguma coisa que pude, a riscar, sobre o tal revirão: REVIRÃO “No começo era o Verbo e o Verbo se fez carne” entre nós e o seu germe − neutro, sem sentido. No começo foi tarde, ao passo que era cedo que o lance acontecido adivinhasse o caso de fissões e degredos que se desenhava. Entre nadas, o escasso afez-se à partitura dos sonhos que sonhava uma Fortuna ausente de intentos e bravuras e projetos trágicos − e só por acidente condensando formas e distinguindo o fático e exarando normas. E uma Lei primogênita e já necessária se inscreve sobre a argêntea capa dos espelhos, separando almas várias, sem réplicas gêmeas (de acordos e conselhos, mas nenhuns empates), ligadas por algemas mal adaptadas. Almas duplas que batem, em bífido relógio, tiquetaques do Nada de onde se evadiram, enquanto a sobra e o nojo as não separam ainda na díade que aspira um contingente NÃO, antes logo da vinda de Outra Solidão. E haja o que houver de sério ou de fortuito alinho, manda A LEI que um mistério (nunca resgatável) exerça o seu fascínio sobre o incompatível
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(por isso tanto amável quanto incomitente), por força do impossível, logo: desejado. O efeito o-be-di-ente disso que se passa resta (de eterno) atado, por não-todo o sempre, à causa que o traspassa como escusa falta que esquece o que a relembre e memoriza o olvido, à espera da mais alta queda de sentido. Manda a Lei que o segredo escrito em seu ditado me lance além do medo à margem do meu risco, sujeito, embora alado, à vez da minha sorte azada no petisco de um desejo tido por Outro cuja morte me condena à vida. E um golpe consentido estala minha cara em brecha repetida em duas não-metades: uma pouca, outra rara; uma agente, outra ativa; um lado não tem grades, o outro é sem abismo − e de ambos me cativa o alterotropismo. No entanto, me transfixa, o cravo desse nome, na táboa que prefixa o afã dos meus dizeres com o tom da letra afone que me denuncia à fonte dos prazeres que me foi vetada no gume desse dia que me escande a fala. E escorre, declinada, a veia pulsativa, lambendo, sem gastá-lo, o sangue de Outra carne, com a língua morta-e-viva de onde os meus sentidos se encontram sempre tarde e se perdem tão cedo entre amores cosidos, rombos de degredo.
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E aqui, mora o perigo: nem tanto o de Amar e desavir comigo, nem tanto o de Ser e só comigo estar. Que para estar comigo, não devo me perder nem devo me encontrar. Que para estar contigo, não devo me conter nem devo me espalhar. Nem círculo de giz, nem vento sobre areia. Nem mero zumbi, nem animal feliz. No caminho do meio, entre o agora e o aqui, meu risco é na deriva do leme que me veio de outra voz ativa. Pela força do NÃO que levo e que conheço, bem sei que Revirão passei, que cambalhota, tecendo pelo avesso a lã do meu destino, me virando na porta entre duas cidades em comércio contínuo, embora que contrárias: recíprocas saudades pagando-se com graças de verves arbitrárias e óbolos impuros. Por isso imponho à praça o prumo do meu passo trôpego e firme e duro e tíbio como o vosso − humilde no que faço e altivo no que posso. Nem por isso resgato a dívida de Nada que assumo por recato (e não por covardia) − como um cheque assinado, apesar de sem fundo, que um outro sacaria, à vista do meu tédio, por cobrança do mundo à minha permanência; cobrança sem remédio e justa, por juízo, em função de anuência com que espero o troco, segundo o meu batismo na água desse rio cujo verbo translouco exprime a minha sorte na conta que eu confio paga pela Morte.
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E mais não posso, e devo então, por conseqüente, que cindir o que levo, à vez de cada jorro, em contrárias vertentes, de paixões opostas, entre as quais fica o morro da minha nascente, entre as duas encostas do cristal da fala: uma desce, outra ascende; uma afirma, outra nega; uma diz, outra cala; uma aprende o que larga, outra arrisca o que pega. E, para ambas as partes, é a outra que consagra o que numa se arenga no resumo das artes do meu ser capenga. No entanto ela se move, a fala, e EU com ela, empós do que comprove a falta de sentido inscrita na janela aberta pro Vazio − mas falta com partido, o mais particular, no bloco do eu sozinho: logo, probatória do nome que vou dar ao furo do repórter que estampa minha estória em letra cuja firma, carimbada na porta em que me reconheço, é meu passo por cima e por baixo da estrada do direito e do avesso da minha jornada − é meu passe por dentro e por fora do vão do avesso e do direito do SIM pelo NÃO.
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SOBRE O AUTOR MD Magno (Prof. Dr. Magno Machado Dias): Nascido em Campos dos Goitacazes, Rio de Janeiro, Brasil, em 1938. PSICANALISTA. Bacharel e Licenciado em Arte. Bacharel e Licenciado em Psicologia. Psicólogo Clínico. Mestre em Comunicação; Doutor em Letras; Pós-Doutor em Comunicação – pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (RJ, Brasil). Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Santa Maria (RS, Brasil). Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Professor Associado do Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII (Vincennes), quando era dirigido por Jacques Lacan. Fundador do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro (instituição psicanalítica). Fundador da UniverCidadeDeDeus (instituição cultural sob a égide da psicanálise). Criador e Orientador de , Centro de Estudos e Pesquisas, Clínica e Editora para o desenvolvimento e a divulgação da Nova Psicanálise. Atualmente, além de sua atividade como Psicanalista, continua o desenvolvimento de sua produção teórico-clínica (work in progress) em Falatórios e Oficinas Clínicas, realizados na sede da UniverCidadeDeDeus e publicados regularmente.
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MD Magno vem desenvolvendo ininterruptamente seu Ensino de psicanálise desde 1976, ano seguinte à fundação oficial do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro. 1. 1976: Senso Contra Censo: da Obra de Arte Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978. 216 p. 2. 1976/77: Marchando ao Céu Seminário sobre Marcel Duchamp. Proferido na Escola de Artes Visuais do Rio de Janeiro (Parque Laje). Inédito. 3. 1977/78: Rosa Rosae: Leitura das Primeiras Estórias de João Guimarães Rosa 3ª ed. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1985. 220 p. 4. 1978: Ad Sorores Quatuor: Os Quatro Discursos de Lacan Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2007. 276 p. 5. 1979: O Pato Lógico 2ª ed. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986. 252 p. 6. 1980: Acesso à Lida de Fi-Menina Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 316 p.
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7. 1981: Psicanálise & Polética Quatro sessões, sobre Las Meninas, de Velázquez, reunidas em Corte Real, 1982, esgotado. Texto integral publicado por Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986. 498 p. 8. 1982: A Música 2ª ed. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986. 329 p. 9. 1983: Ordem e Progresso / Por Dom e Regresso 2ª ed. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1987. 264 p. 10. 1984: Escólios Parcialmente publicado em Revirão: Revista da Prática Freudiana, n° 1. Rio de Janeiro: Aoutra editora, jul. 1985. 11. 1985: Grande Ser Tão Veredas Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2006. 292 p. 12. 1986: Ha-Ley: Cometa Poema // Pleroma: Tratado dos Anjos Publicados em O Sexo dos Anjos: A Sexualidade Humana em Psicanálise. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1988. 249 p. 13. 1987: “Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise”, Ainda // Juízo Final Publicados em O Sexo dos Anjos: A Sexualidade Humana em Psicanálise. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1988. 249 p. 14. 1988: De Mysterio Magno: A Nova Psicanálise Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1990. 208 p. 15. 1989: Est’Ética da Psicanálise: Introdução Rio de Janeiro: Imago Editora, 1992. 238 p.
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16. 1990: Arte&Fato: A Nova Psicanálise, da Arte Total à Clínica Geral Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2001. 520 p., 2 vols. 17. 1991: Est’Ética da Psicanálise (Parte 2) Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2002. 392 p., 2 vols. 18. 1992: Pedagogia Freudiana Rio de Janeiro: Imago Editora, 1993. 172 p. 19. 1993: A Natureza do Vínculo Rio de Janeiro: Imago Editora, 1994. 274 p. 20. 1994: Velut Luna: A Clínica Geral da Nova Psicanálise 2ª ed. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 310 p. 21. 1995: Arte e Psicanálise: Estética e Clínica Geral 2ª ed. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 264 p. 22. 1996: “Psychopathia Sexualis” Santa Maria: Editora UFSM, 2000. 453 p. 23. 1997: Comunicação e Cultura na Era Global Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2005. 408 p. 24. 1998: Introdução à Transformática: Por uma Teoria Psicanalítica da Comunicação Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2004. 156 p. 25. 1999: A Psicanálise, Novamente: Um Pensamento para o Século II da Era Freudiana: Conferências Introdutórias à Nova Psicanálise 2ª ed. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 224 p.
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26. 2000: “Arte da Fuga” Revirão 2000/2001: “Arte da Fuga”; Clínica da Razão Prática. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2003. 656 p. 27. 2001: Clínica da Razão Prática: Psicanálise, Política, Ética, Direito Revirão 2000/2001: “Arte da Fuga”; Clínica da Razão Prática. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2003. 656 p. 28. 2002: Psicanálise: Arreligião Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2005. 248 p. 29. 2003: Ars Gaudendi: A Arte do Gozo Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2006. 340 p. 30. 2004: Economia Fundamental: MetaMorfoses da Pulsão Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2009. 260 p. [a sair]. 31. 2005: Clavis Universalis: Da cura em Psicanálise ou Revisão da Clínica Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2007. 224 p. 32. 2006: AmaZonas: A Psicanálise de A a Z Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 198 p. 33. 2007: A Rebelião dos Anjos: Eleutéria e Exousía Proferido na UniverCidadeDeDeus [a sair] 34. 2008: AdRem: Gnômica ou MetaPsicologia do Conhecimento [a sair] 35. 2009: Clownagens [a sair]
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Formato 16 x 23 cm Mancha 12 x 19 cm Tipologia Times New Roman e Amerigo BT Corpo 11,0 | 16,5 Número de Páginas 310
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