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Portuguese Pages 258 [256] Year 1994
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Coordemadores: Maria Alice Nogueira e Léa Pinheiro Paixão
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O SUJEITO DA EDUCAÇÃO i ' • Tomaz Tadeu da Stiva (org.) H J * 1 ., # $ : ! ì . :V ? * SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO: DEZ ANOS DE PESQUISA Jean Claude Forquin (org.) NEOUBERAUSMO, QUALIDADE TOTAL E EDUCAÇÃO Tomaz Tadeu da Silva (org.) TEORIA CRÍTICA & EDUCAÇÃO Bruno Pucci (org . ) CURRÍCULO: TEORIA E HISTÓRIA /uor Goodson ETNOMETODOLOGIA E EDUCAÇÃO Alain Coulon
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil )
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O sujeito da educação : estudos foucaultianos / Tomaz Tadeu da Silva (org.). - Petrópolis , FU : Vozes , 1994. (Ciências sociais da educação)
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Vários autores. ISBN 85-326- 1317-9 :
1. Educação - Filosofia 2. Foucault., Michael, 1926-19841. Silva, Tomaz Tadeu da. II. Série.
94-3532
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CDD-370.1
índices para catálogo sistemático: 1. Educação : Filosofia 370.1 2. Foucault : Teorias educacionais 370.1
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Petrópolis 1995
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© 1994, Editora Vozes Ltda Rua Frei Luís, 100 25689-900 Petrópolis, RJ Brasil
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FICHA TÉCNICA
COORDENAÇÃO EDITORIAL:
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Avelino Grassi
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EDITOR: Antonio De Paulo
COORDENAÇÃO INDUSTRIAL: José Luiz Castro
EDITOR DE ARTE: Ornar Santos EDITORAÇÃO: Supervisão grá fica: Valderes Rodrigues
ISBN 85.326.1317-9 f
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Este livro foi impresso nas oficinas gráficas da Editora Vozes Ltda. Rua Frei Luís, 100. Petrópolis, RJ - Brasil - CEP 25689-900 - Tel.: (0242)43-5112 Fax: (0242)42-0692 - Caixa Postal 90023 - Endereço Telegráfico: VOZES Inscrição Estadual 80.647.050 - CGC 31.127.301/0001-04.
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Este é dedicado ao grupo do meu Seminá rio do Fim de Tarde de Segunda-Feira
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Sumário 1 Jennifer M . Gore Foucault e Educação: Fascinantes Desafios 9
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James Marshall
Governamentalidade e Educação Liberal 21
3 Jorge Lanosa Tecnologias do Eu e Educação 35
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Julia Varela
O Estatuto do Saber Pedagógico 87
5 Roger Deacon & Ben Parker Educação como Sujeição e como Recusa 97 6 David Martin Jones Foucault e a Possibilidade de uma Pedagogia sem Redenção 111
7 Frank Pignatelli Que Posso Fazer? Foucault e a Questão da Liberdade e da Agência Docente 127
8 David Blacker Foucault e a Responsabilidade Intelectual 155
9 Thomas S . Popkewitz História do Currículo, Regulação Social e Poder 173 10 Michael Peters Governamentalidade Neoliberal e Educação 211
11 Alfredo J . Veiga -Neto
Foucault e Educação: Outros Estudos Foucaultianos 225
12 Tomaz Tadeu da Silva O Adeus às Metanarrativas Educacionais 247
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1 Jennifer M. Gore
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Foucault e Educação: Fascinantes Desafios
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Nenhum discurso é inerentemente libertador ou opressivo. A condição libertadora de qualquer discurso teórico é uma questão de investigação histórica, não de proclamação téorica (Jana Sawicki, 1988a, p. 166).
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muitos, essa frase parecerá estranha ou simplesmente equivocaPdaara. Neste capítulo, meu objetivo é demonstrar como essa posição
pode ser defendida e por que ela é importante no campo da educação. Tanto a frase acima quanto este capítulo estão enquadrados pelo trabalho do filósofo social francês Michel Foucault. O trabalho de Foucault tem influenciado profundamente o pensamento em muitos campos da teoria social, incluindo, bastante recentemente, a educação. Em parte, a magnitude dessa influência advém do grau em que suas idéias embora contrá rias aos entendimentos existentes são con vincentes e persuasivas. A frase de Sawicki caracteriza os principais desafios foucaultianos que enfatizarei neste capítulo. Embora exista um corpo crescente e sofisticado de literatura, de debate e de análise do trabalho de Foucault, meu objetivo aqui é simplesmente o de explorar as conseqiiê ncias da visão de Foucault de que a verdade e o poder estão mutuamente interligados através de práticas contextualmente específicas. Inicio essa tarefa com um desenvolvimento das idéias de Foucault sobre poder e saber, centrando-me na sua noção de “ regimes de verdade” . A seguir, considero as aplicações das análises de Foucault à educação. Finalmen te, passo em revista as implicações dos desafios de Foucault. Antes de começar, faz-se necessá ria uma breve nota sobre o uso do termo “ discurso” . A noção de discurso usada aqui não é a da linguistica, na qual a preocupação principal é com a estrutura da linguagem. Em vez disso, o termo “ discurso” é usado aqui tal como o é por Foucault e pelo pós-estruturalismo: o foco está muito mais no conteúdo e no contexto da linguagem. Os discursos, no contexto de relações de poder específicas, historicamente constitu ídas, e invocando noções partícula-
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res de verdade, definem as ações e os eventos que são plausíveis, racionalizados ou justificados num dado campo. Portanto, ao fazer jrjpfef êpci disçurços* minha intenção é assinalar uma preocupação não Santo 'còni ò què ãs jf ãiàvras significam quanto com a forma como as de sentenças e - prá ticas , relacionadas funcionam p$l$vras* conjuntos " ' ' ( Bové, 1990).
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Regimes de verdade, poder-saber e poder disciplinar
A noção de “ regimes de verdade” de Foucault (1980) é central à parte de seu trabalho que quero expor aqui. O próprio termo evoca visões de “ verdade” , qsadas de formas que controlam e regulam. Exemplos ,dramáticos, nos quais versões da “ verdade ” tiveram horr íveis consequê ncias de opressão e violência, tais como as visões de uma raça ariana pura de Hitler ou a pol ítica do apartheid da Africa do Sul, nos vê m à mente. Na explicação que Foucault (1985 b) d á do termo: “ Á ‘verdade’ está circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e a apoiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem ” (p. 133). Dessá foTma, eu argumento que não é apenas em relação àqb discursos “ dominantes” ou “ dominadores” de qualquer sociedade que faz sentido falar de regimes dé verdade (Gore, 1990a, 1993) Se o poder e a ’ verdade estão “ ligados numa relação circular ” , se a verdade existe rumá relação de poder e o poder opera em conexão com a verdade, í então todos os discursos podem ser vistos funcionando como regimes r ; de verdade* . . . ' , . . Desenvolvendo essa noção, Foucault (1980) diz: ÿ
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Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “ pol ítica geral ” de verdáde: isto é, os tipos de discurso que aceita e faz funcionar como verdadeiiros; os mecanismos e instâ ncias que permitem distinguir entrèlsenten ças verdadeiras e falsas, òs meios pelos quais cada um deles é sancionado; as técnicas e procedimentos valorizados na aquisdÇão da verdade; o status daqueles que estão encarregados de dizer o que conta como verdadeiro (p. 131).
Consideremos a “ política de verdade” na educação. Dito de forma breve, os discursos baseados na disciplina da Psicologia e vinculados a noções particulares de ciê ncia têm sido mais prontamente aceitos que outros tipos de discursos; a razão científica tem sido o meio principal pelo qual esses discursos são sancionados; as técnicas empíricas tê m tido primazia na produ ção da verdade; tem-se concedido um status profissional, científico e intelectual àqueles que estão encarregados de dizer o que conta como verdade. Discursos alternativos ou competidores, embora tendo que funcionar no contexto dessa pol ítica geral de verdade na educação, constroem suas próprias versões de verdade, suas próprias 10
versões daquilo que conta, de quem está autorizado a falar. Isto é, eles também podem ser vistos como regimes de verdade. A fim de compreender mais pienamente a noção de “ regime de verdade” , quero chamar atenção para o uso que Foucault faz dos conceitos de poder e saber ( pouvour e savoir ). E ú til começar por tentar esclarecer aquilo que poder e saber, nessa utilização, não é. Em primeiro lugar, a despeito de seus argumentos sobre a conexão poder-saber, Foucault (1983a) é bastante enf ático ao afirmar que poder e saber não são id ê nticos: Quando leio — e eu sei que ela me tem sido atribuída — a tese de que “ saber é poder ” ou “ poder é saber ” , começo a dar risadas, uma vez que estudar sua relação é precisamente o meu problema. Se eles fossem id ê nticos, eu não teria que estud á-los e, como resultado, eu me teria poupado um bocado de cansaço. O pró prio fato de que eu coloco a questão de sua relação prova claramente que eu não os tenho como idê nticos (p. 210). Em segundo lugar, Foucault distancia-se das definições convencionais de poder e saber. Ele inverte a articulação convencional na qual o poder funciona apenas de forma negativa e na qual a verdade ou o saber podem inverter, apagar ou desafiar a dominação do poder repressivo ( Dreyfus & Rabinow, 1983; Keenan, 1987). Essa defini çã o convencional da relação entre poder e saber encontra-se em muitos dos discursos educacionais que se autoproclamam como radicais e nos quais, através do processo de conscientiza ção e de educação (em geral ), os poderes dominantes podem ser desmascarados para revelar a “ verdade” e, como resultado, aumentar o potencial para derrubar o sistema capitalista e/ou patriarcal. O saber, nessa perspectiva, serve de contra-ataque aos males do poder. Em vez disso, a noção de poder -saber de Foucault desafia a suposição de que alguma verdade não-distorcida pode ser alcançada ( Diamond &c Quinby, 1988 ); ela “ delimita os sonhos dos intelectuais em relação ao controle que a verdade pode ter sobre o poder ” ( Bové, 1988, p. xviii ). Devo enfatizar, neste ponto, que minha refer ê ncia aos discursos educacionais radicais não implica que esses discursos sejam, de alguma forma, mais perigosos que outros discursos educacionais simplesmente porque eles têm uma visão convencional de poder. De fato, essa concepção convencional de poder é partilhada com os discursos educacionais “ tradicionais” , quando eles se envolvem, por exemplo, com a estrutura organizacional ou o fortalecimento do poder da professora. Foucault expressa sua compreensão alternativa uma compreen são que, para mim, é altamente convincente — de poder e saber, e de sua relação, através da expressão “ poder-saber ” . Nessa visão, o poder não é necessariamente repressivo uma vez que incita, induz, seduz, torna mais f ácil ou mais dif ícil, amplia ou limita, torna mais provável
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ou menos provável (Foucault, 1983b). Alé m disso, o poder é exercido ou jy praticado em vez de possuído e, assim, circula, passando através de toda força a ele relacionada. Na educação, por exemplo, é claro que o poder não está apenas nas mãos das professoras. As estudantes (e as mães e os pais e as administradoras e o governo) també m exercem poder nas escolas. A fim de compreender o funcionamento do poder em qualquer contexto, precisamos compreender os pontos particulares através dos quais ele passa (Foucault, 1980 ). Nesse sentido, Foucault chama aten ção para a necessidade de reconsiderar alguns de nossos pressupostos sobre a escolarização e de olhar de forma renovada e mais atenta para as “ micropráticas” do poder nas instituições educacionais. Nas suas aná lises do poder, Foucault está especialmente preocupado com formas de “ governo” , baseando-se no significado que essa palavra tinha no século XVI, no qual “ se referia não apenas às estruturas pol íticas ou à administração dos estados; designava, em vez disso, a forma pela qual a conduta dos indivíduos ou grupos podia ser dirigida; o governo das crianças, das almas, das comunidades, das famílias, dos j doentes... Governar, nesse sentido, é estruturar o campo possível de ação de outros” (Foucault, 1983b, p. 221). Foucault argumenta que as formas modernas de governo revelam uma mudança, do poder soberano, que é aberto, visível e localizado na monarquia, para o poder “ disciplinar ” , que é exercido por meio de sua “ invisibilidade ” através das tecnologias normalizadoras do eu. Tradicionalmente, o poder é o que é visto, o que é mostrado e o que é manifestado:
O poder disciplinar, ao contr á rio, se exerce tornando-se invisível: em compensação impõe aos que submete um princípio de visibilidade obrigatória. Na disciplina, são os súditos que têm que ser vistos. Sua iluminação assegura a garra do poder que se exerce sobre eles. E o fato de ser visto sem cessar, de sempre poder ser visto, que manté m sujeitado o indivíduo disciplinar (Foucault, 1977b, p. 167). A noção de poder disciplinar é vividamente ilustrada na apresentação que Foucault faz do Panóptico de Bentham: uma estrutura arquitetônica, criada principalmente para as prisões, na qual células individuais na periferia do edif ício circundam uma torre central. A contra-iluminação criada por janelas internas e externas permite a observação de cada cela a partir da torre central, assegurando ao mesmo tempo que os prisioneiros não possam saber se estão sendo observados. “ Daí o efeito mais importante do Panóptico: induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegure o funcionamento automá tico do poder ” (Foucault, 1977b, p. 177). O poder disciplinar torna-se, assim, internalizado:
4 Quem
está submetido a um campo de visibilidade, e sabe disso, retoma por sua conta as limitações do poder ; f á-las funcionar
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r espontaneamente sobre si mesmo; inscreve em si a relação de poder na qual ele desempenha simultaneamente os dois papéis; torna-se o princípio de sua própria sujeição (Foucault, 1977b, p. 179).
Considerada no contexto da educação escolar, esta noção de poder disciplinar ajuda a explicar a auto-regulação dos estudantes, que mantê m seus comportamentos mesmo quando a professora deixa a sala de aula. Focalizarei agora mais de perto a educação, discutindo tanto o trabalho de Foucault nessa á rea quanto as implicações de seu trabalho mais geral. A educação Embora Foucault não faça uma análise detalhada das escolas, é claro que ele via as escolas e a educação formal como exercendo um papel no crescimento do poder disciplinar. Em Vigiar e Punir, num capítulo intitulado “ Corpos dóceis” , Foucault descreve inovações pedagógicas iniciais e o modelo que elas forneceram para a economia, a medicina e a teoria militar do século XVIII. Mais adiante no livro, ele pergunta: “ Devemos ainda nos admirar que a prisão se pareça com as f ábricas, com as escolas, com os quarté is, com os hospitais, e todos se pareçam com as prisões ? ” (Foucault, 1977b, p. 199). Essas semelhanças articuladas por Foucault emergiram do foco que seus estudos colocam sobre os mecanismos que constroem instituições e experiências institucionais, e não sobre as pessoas no interior dessas instituições: Diz-se, às vezes, muito apressadamente, que Foucault foi aquele que estudou o louco, o doente e os prisioneiros... Entretanto, ele escreveu O Nascimento da Clínica, Loucura e Civilização, Vigiar e Punir. Ele não coletou lamentos de pacientes, nem captou as confissões de prisioneiros ou tentou surpreender os loucos em suas tarefas; ele estudou os mecanismos da cura e os mecanismos da punição. Ele se voltou para as instituições, ele se baseou em seus edif ícios e em seus equipamentos, ele investigou suas doutrinas e disciplinas, ele enumerou e catalogou suas práticas e mostrou suas tecnologias...Como resultado disso, em vez de contemplar o insano, o prisioneiro ou a pessoa pobre como um vaso sobre uma mesa, ele preferiu estudar o confinamento, compreender o aprisionamento e analisar a instituição da assistê ncia social (Barret-Kriegel, 1992, pp. 193-4).
Os pr ó prios estudantes reconhecem esses mecanismos que Foucault estudou quando eles usam a expressão “ esta escola é como uma prisão” . Consideremos alguns desses mecanismos. O processo pedagógico corporifica relações de poder entre professores e aprendizes (definidos, seja de forma estreita, para se referir aos atores na educação institucionalizada, seja de forma ampla, para se
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referir a outras relações pedagógicas, tais como as que se dão entre pais e filhos, escritores e leitores e assim por diante) com respeito a questões de saber: qual saber é válido, qual saber é produzido, o saber de quem. A pedagogia se baseia em técnicas particulares de governo, cujo desenvolvimento pode ser traçado historicamente/arqueologicamente (veja, por exemplo, Hamilton, 1989; Hunter, 1988; Jones & Williamson, 1979; Meredyt &c Tyler, 1993; Luke, 1989), e produz e reproduz, em diferentes momentos, regras e pr áticas particulares. De forma crescente, a pedagogia tem enfatizado o autodisciplinamento, pelo qual os estudantes devem conservar a si e aos outros sob controle. Seguindo Foucault, as técnicas/ práticas que induzem esse comportamento podem ser chamadas de tecnologias do eu. Essas tecnologias agem sobre o corpo: olhos, mãos, boca, movimento. Por exemplo, em muitas salas de aula, os estudantes depressa aprendem a levantar suas mãos antes de falar em classe, a conservar seus olhos sobre seu trabalho durante um teste, a conservar seus olhos no professor, a dar a aparê ncia de estar escutando quando o professor está dando instruções, a permanecer em suas carteiras. Podemos dizer que as pedagogias produzem regimes corporais políticos particulares. Essas tecnologias do eu corporal podem também ser entendidas como manifestações do eu (mental ) interno, como a forma como as pessoas identificam a si mesmas. As pedagogias, nessa análise, funcionam como regimes de verdade. As relações disciplinares de poder-saber são fundamentais aos processos da pedagogia. Sejam elas auto-impostas, impostas pelos professores, ou impostas sobre os professores, como coloca Foucault (1977b): “ Uma relação de fiscalização, definida e regulada, está inserida na essência da prática do ensino: não como uma peça trazida ou adjacente, mas como um mecanismo que lhe é inerente e que multiplica sua eficiê ncia” ( p.
158 ). Mecanismos de podè r-saber funcionam não apenas em relação a pedagogias defendidas em discursos educacionais, isto é, em relação a visões sociais e práticas instrucionais particulares, promulgadas em nome da pedagogia, mas também em relação à pedagogia dos argumentos que caracterizam discursos educacionais específicos, isto é, aos pr óprios argumentos (Gore, 1993). Foucault (1985a) argumentou que “ é justamente no discurso que vêm a se articular poder e saber ” (p. 95).
Portanto:
não se deve imaginar um mundo do discurso dividido entre o discurso admitido e o discurso excluído, ou entre o discurso dominante e o dominado; mas, ao contrá rio, como uma multiplicidade de elementos discursivos que podem entrar em estratégias diferentes... Os discursos, como os silê ncios, nem são submetidos de uma vez por todas ao poder, nem opostos a ele. É preciso admitir um jogo complexo e instável em que o discurso pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e efeito de poder, e també m obstáculo, escora, ponto
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r de resistê ncia e ponto de partida deruma estratégia oposta. O discurso veicula e produz poder; reforça-o mas também , o mina, expõe, debilita e permite barrá-lo;.. Não existe um discurso do poder de um lado e, em face dele, um outro, contraposto (pp. 95-96). Os discursos radicais e emancipatórios não estão isentos dessa análise. Assim, quando os teóricos educacionais radicais se apoiam em FouCault para argumentar que podemos considerar os discursos educacionais dominantes (aqueles produzidos pela cultura dominante ) como “ regimes de verdade” ,1 eles deixam de enfatizar o argumento de Foucault (1983c) de que “ tudo é perigoso” (p. 231). Keenan (1987) argumenta que “ pelo fato de a articulação entre poder e saber ser discursiva , o vínculo nunca pode ser garantido... é impredizível... O discurso que torna o vínculo possível també m o mina, precisamente porque poder e saber são diferentes” (pp. 17-18 ). Sawicki (1988 b) també m apresenta esse argumento em sua análise orientada por Foucault da identidade entre pol ítica e liberdade sexual. Quando ela se refere à “ sexualidade” , eu coloquei no seu lugar “ pedagogia” , a fim de demonstrar a relevância do argumento para a minha pr ópria preocupação prá tica e intelectual com os discursos da pedagogia radical (veja Gore, 1990a, 1990b, 1990c, 1991, 1993): •
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O discurso é ambígiio... uma forma de poder que circuiamo campo social e pode ligar-se tanto a estragégias de dominação quanto a estratégias de resistência. Sem ser inteiramente uma fonte de dominação nem de resistê ncia, a pedagogia não está també m nem fora do poder nem inteiramente circunscrita por ele. Em vez disso, é ela pr ó pria uma arena de luta. Não existem práticas pedagógicas inerentemente libertadoras pu inerentemente repressivas, pois qualquer pr ática é cooptá vel e qualquer prá tica é capaz de tornar se uma fonte de resist ê ncia. Afinal, se as relações de poder são dispersas e fragmentadas ao longo do campo social, assim também o deve ser a resistê ncia ao poder. ,
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Alguns exemplos podem nos ajudar a compreender esse ponto. Consi deremos o costume de dispor as carteiras em círculo, tão comum nas pr áticas pedagógicas progressistas. O círculo é freqiientemente empregado para afastar a interação de sala de aula do controle direto da professora. O círculo contrapõe-se à sala de aula tradicional na qual “ a posição fixa é o resultado da ciê ncia da super-visão , um arranjo de pessoas em unidades coletivas acessíveis à vigil â ncia constante. Através do arranjo dos estudantes em fileiras, todos os olhos voltados para a
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1 Veja, por exemplo, McLaren (1989, p. 181).
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frente, confrontando diretamente a nuca do colega, encontrando ape nas o olhar da professora, a disciplina da sala de aula contemporânea coloca em ação o olhar (a observação) como uma estratégia de dominação” (Grumet, 1988, p. 111). O círculo abre a possibilidade de que todo estudante manifeste sua opinião e de que seja ouvido. Com as estudantes sentando no chão ou em cadeiras móveis, elas são libertadas dos limites restritivos de suas carteiras, onde ficam separadas entre si. Muitas de nós, que nos dedicamos ao ensino, usamos um arranjo circular alguma vez, com esse tipo de intenção. Foucault, Sawicki e outros (p. ex., Walderdine, 1985, 1986) nos ajudam a compreender que não existe nada inerentemente libertador nessa prática, mesmo quando localizada no interior de um discurso radical, e nada inerentemente opressivo em nossas tradicionais fileiras de carteiras. Por um lado, o círculo pode exigir das estudantes uma maior autodisciplina, pela qual elas assumem a responsabilidade por comportar-se “ apropriadamente” sem o “ olhar ” da professora. Por outro lado, a privacidade parcial permitida pela colocação tradicional de carteiras, na qual se está sob a vigilância ou supervisão principalmente da professora, pode desaparecer à medida que as estudantes ficam cada vez mais diretamente também sob a supervisão de suas colegas. A estudante que prefere não se manifestar fica menos evidente quando todas as carteiras estão voltadas para frente da sala de aula, assim como a estudante que não pode usar sapatos novos, que fica ruborizada, que está entediada e assim por diante. Não estou tentando argumentar em favor de um retorno às fileiras de carteiras eu continuo a usar o arranjo em círculo em minha própria prá tica. Estou argumentando que práticas educacionais supostamente libertadoras não tê m nenhum efeito garantido. Como outro exemplo, consideremos a prática (freq üentemente bem intencionada) de reconhecer as contribuições de grupos marginalizados através da adição de eventos tais como “ Mês da História da Mulher ” ou “ Mês da História dos Indígenas” ao curricula escolar. Os efeitos de tais práticas podem ser bastante conservadores em termos de continuar a colocar a experiência dos homens brancos no centro e manter todas as outras experiê ncias numa posição marginal. Mesmo currículos que objetivam transformar mais radicalmente a perspectiva a partir da qual a vida social é vista podem desconsiderar outros grupos marginalizados. Por exemplo, em esforços para lidar com a raça, a classe e o gênero, outras formações opressivas, tais como heterossexismo e preconceitos em relação à idade, podem prevalecer. Não existem efeitos garantidos.
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Conclusão
Tal como a vejo, esta análise de nossa localização no interior de relações de poder-saber, da sociedade disciplinar e de regimes de verdade nos 16
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permite começar a identificar as características de discursos e práticas particulares que têm efeitos perigosos, dominadores ou negativos. Olhar outra vez para os mecanismos de nossas instituições educacionais, questionar a “ verdade” de nossos próprios e cultivados discursos, examinar aquilo que faz com que sejamos o que somos, tudo isso abre possibilidades de mudança. De fato, um pouco antes de sua morte, Foucault disse: “ Todas as minhas análises são contra a idéia de necessidades universais na existência humana. Elas mostram a arbitrariedade das instituições e mostram quais espaços de liberdade podemos ainda desfrutar e como muitas mudanças podem ainda ser feitas” (Foucault, 1988, p. 153). Regimes de verdade não são necessariamente negativos mas, antes, necessários. O saber e o poder estão freq üentemente ligados de forma produtiva. Exatamente como o poder pode ser produtivo, assim também o pode o nexo poder-saber no qual e através do qual efetuamos nosso trabalho. A razão central para utilizar regimes de verdade com a finalidade de analisar discursos educacionais radicais, como fiz em outro local, não é a de envolver -se numa “ política de acusação” (Morris, 1988, p. 23). A falta de reflexividade dos discursos radicais não é nenhuma surpresa à luz de sua luta para se legitimarem no contexto dos discursos educacionais tradicionais. Em vez disso, utilizo o conceito de regime de verdade como uma tecnologia do eu, estimulando-nos a sermos mais humildes e reflexivos em nossas justificativas pedagógicas, reconhecendo que existe um trabalho desconstrutivo a ser feito tanto % no interior de nosso domínio quanto fora dele. Foucault contesta asserções de verdade e asserções de inocê ncia em todos os discursos educacionais. As análises de Foucault do nexo poder-saber levantam d ú vidas sobre a possibilidade ou desejabilidade de dar algum dia uma resposta final à questão: Que práticas e discursos pedagógicos são libertadores ? (Sawicki, 1988 b). Sua pol ítica, “ concebida para evitar o dogmatismo em nossas categorias e em nossa pol ítica, assim como para evitar que se silencie a diferença que pode ser um resultado desse dogmatismo é uma alternativa bem-vinda a um debate polarizado” (Sawicki, 1988 b, p. 187). Mas aonde nos leva esse tipo de análise ? Tem havido muitas cr íticas ao trabalho de Foucault, centradas na questão da precisão histórica, do rigor metodológico e das consequências políticas: é nessa última que quero me concentrar. Alguns cr íticos argumentam que Foucault não nos deixa nenhuma saída em relação ao poder disciplinar; que, com sua vinculação poder-saber, Foucault suprimiu a base para um vínculo político prático entre os dois (p. ex., Anderson, 1983; Habermas, 1986; Taylor, 1986). Alguns afirmam que a análise de Foucault nos deixa apenas com o pessimismo. Outros argumentam que seu trabalho é contrá rio aos projetos feministas ( p. ex. Balbus, 1988 ). Esses argumen -
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tòs advê m de leituras particulares de Foucault e de agendas intelectuais,
pol íticas e profissionais particulares ( Bové, 1988 ). Bové (1988 ) argumenta que muitos acad ê micos interpretam mal Foucault para “ anular Y as consequê ncias pol íticas de sua cr ítica das disciplinas e de seus próprios discursos e posições no interior do aparato pòder-saber” ( p
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Outros argumentam que “ a própria relutâ ncia de Foucault em ser explícito sobre suas posições éticas e políticas pode ser atribuída não ao niilismo, áo relativismo ou à irresponsabilidade política, mas, antes, à sua id é ia dos perigos de progràmas políticos baseados na grande teoria ” (Sawicki, 1988 b, p. 189). Minha visã o é que Foucault (1980 ) deixou as questões de táticas, estratégias, objetivos específicos àquelas pessoas diretamente envolvidas na luta e na resistência. Vem da í sua noção de intelectuais “ específicos” trabalhando no interior de setores específicos “ em pontos precisos nos quais suas pró prias condições de vida ou trabalho os situam” ( p. 126). Como Foucault (1983b) argumentou: ,
Uma sociedade sem relações de poder só pode ser uma abstração... Dizer que não pode haver uma sociedade sem relações de poder não é dizer que aquelas que são estabelecidas são necessárias ou, de qualquer forma, que o poder constitui uma fatalidade no centro das sociedades, de forma que ele não pode ser minado. Em vez disso, eu diria que a análise, a elaboração e o questionamento das relações de poder.v é uma tarefa política permanente, inerente em toda a existê ncia social" ( pp. 222-3). * . E para essa tarefa pol ítica, no setor no qual eu trabalho, que dirijo minhas energias de pesquisa e docê ncia atuais, na luta contínua para identificar regimes de verdade dos quais eu mesma faço parte. ,
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Este capítulo foi inicialmente publicado no livro: R.A. Martusewicz & W.M.Reynolds (Orgs.). Inside/ Out : Contemporary Critical Perspectives in Education. Nova York, St. Martin’s, 1994. Transcrito aqui com a autorização da autora e da editora. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva
Jennifer M. Gore é Professora do Departamento de Educação da Universidade de Newcastle, New South Wales, Austrália.
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2 James Marshall Governamentalidade e Educação Liberal
Pom algumas exceções ( p. ex., Burbules,1986 ), os fil ósofos educacionais, na tradição anglo-saxônica e liberal, vêem o poder como um mal necessário, como algo à parte e ao qual recorrer apenas quando as estruturas de autoridade se rompem. Para Peters (1966), por exemplo, a autoridade diz respeito a uma ordem normativa que regula o comportamento social devido à aceitação da autoridade por parte daqueles que se submetem aos valores do sistema da ordem. O poder, por outro lado, diz respeito a sujeitar os sujeitos individuais à vontade de uma outra pessoa através de coer ção f ísica ou psicológica. Nessa concepção geral, o poder pode ser necessá rio para dar sustentação à autoridade mas em educação ele é usualmente visto como um incomodo ou, na melhor das hipóteses, como um mal necessário. O poder é, então, repressivo e contrário aos interesses daqueles que são sujeitados negativo em vez de positivo e em geral tem efeitos contrá rios aos interesses daqueles que são sujeitados. Mas nesse paradigma liberal é a autoridade racional exercida no interesse da criança seu real interesse que carrega o peso conceituai, teórico e prá tico. E pelo exercício da autoridade, ela mesma racionalmente legitimada como sendo educacionalmente apropriada (e normalmente não pelo poder), que o comportamento acadêmico e social das crianças é mudado. O poder, coercivo e opressivo, permanece de prontidão nos bastidores, em caso de qualquer emergê ncia. Nesse quadro o poder é uma mercadoria, e uma mercadoria que pode ser possuída por algum Soberano seja ele individual ou o Estado de forma que aqueles sobre os quais o poder é imposto ou exercido são, de alguma forma, inferiores. O poder, essencialmente, proíbe através da opressão e as formas que suas proibições assumem são com freqíiê ncia não-racionais. Como diz Peters, elas podem envolver coerção f ísica ou psicológica e essa é exercida a partir de cima, de uma forma vertical. Em geral, essa proibição atua contrariamente aos interesses daqueles sobre os quais ela se impõe. Michel Foucault disse, em 1976, que em termos de análise política nós ainda não cortamos a cabeça do Rei. Com isso ele quis dizer que a
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linguagem, a análise e a prática política estão imersas numa narrativa que inclui coisas tais como opressão, legitimação, direitos, Estado, governo e autoridade. Ele certamente não estava dizendo que é um objetivo f ú til tentar restringir o papel do governo em suas sempre crescentes demandas para legitimar seu exercício de autoridade, mas, antes, que o governo é mais que isso, que ele é uma arte e uma atividade que atinge tudo, que ele não saiu simplesmente do nada, como uma coisa dada, mas teve que ser inventado ou gradualmente construído (Burchell et al., 1991, p. x ). Liberais e neoliberais tais como Nozick (1976 ) tê m argumentado que o papel do Estado deve ser m ínimo porque ele se opõe à liberdade e ao direito das pessoas de escolher seu pr ó prio projeto. Subjacentes a esse direito estão certos pressupostos sobre a capacidade da pessoa de fazer escolhas racionais, devido ao fato de que ela é um ser autónomo, não está sob o controle de outros, e é capaz de determinar seus pr ó prios desejos e as formas legítimas pelas quais eles podem ser satisfeitos. Foucault acreditava que no século XX isso é uma fachada, um mito, que obscurece as formas pelas quais a compreensão que temos de nós mesmos como pessoas capazes de efetuar escolhas livres e autónomas é, ela própria, uma construção que nos permite ser governados, tanto individual quanto coletivamente. De acordo com Foucault, a arte do governo (ou a governamentalidade [1979 b], ou a razão de Estado ) nos atinge a todos, de forma que não somos os formuladores e realizadores autónomos de projetos individuais que o quadro conceituai liberal e a educação liberal ( p. ex., Strike, 1982) pretende que sejamos. Em Vigiar e Punir, Foucault (1979a) formulou uma tese sobre a micropol ítica do poder tal como exemplificada pela aplicação das técnicas disciplinares em vá rias instituições, mas particularmente nas prisões. Elas dizem respeito essencialmente à forma como o eu (ou a identidade pessoal ) é constru ído por outras pessoas, por “ discursos oficiais” e pelo que Foucault chama de “ poder/saber ” . Esta tese é mais tarde corrigida e desenvolvida (Foucault, 1983). Na História da Sexualidade, v. 1 (Foucault, 1980), e em escritos posteriores, ele olha para a forma como começamos a aplicar isso a nós mesmos. Essas técnicas podem ser chamadas, respectivamente, de tecnologias de dominação e tecnologias do eu. I.Tecnologias de Dominação
Foucault não está interessado em questões centradas no “ quê” ou no “ quem ” quando se trata de poder. Sua questão em vez disso, está centrada no como. Ele está preocupado com as extremidades do sistema pol ítico, com o seu n ível micro e com aquilo que nós normalmente chamamos de exercício do poder nesses n íveis “ baixos” . De fato, o Estado só pode operar, de acordo com Foucault, “ na base de outras 22
relações de poder, já existentes... (isto é) uma série inteira de redes de poder que envolvem o corpo, a sexualidade, a família, o parentesco, o conhecimento, a tecnologia e assim por diante” (1976, p. 122). Mas isso coloca problemas consideráveis para Foucault (Poulantzas, 1978; Waltzer, 1983), pois, como Waltzer observa, é o Estado que estabelece os quadros conceituais que permitem a existê ncia de muitas das relações de poder com £s quais Fouçault está preocupado. De acordo com a estrita posição nominalista de Foucault, o poder existe apenas quando relações de poder entram em jogo. O poder não é algo que eu posso possuir ou reivindicar: apenas quando uma relação de poder existe, quando ela é “ exercida” , é que o poder existe. O poder neste sentido deve ser distinguido do poder/saber que envolve apenas certas relações de poder e um certo tipo de saber. Em suas primeiras obras, Foucault trata o poder como serido repressivo. Ele reverte a asserção de Clausewitz de que a guerra é a política continuada por outros meios e a transforma em “ o poder é guerra, uma guerra continuada por outros meios” (Foucault, 1976, p. 90); Embora também uma forma de dominação, o poder repressivo não é uma extensão ou abuso dos poderes legais, mas, em vez disso, é uma continuação de uma relação perpétua de dominação for çada, exercida no interior da sociedade num nível capilar e por todos e cada um dos membros daquela sociedade, às “ margens da lei ” , como ele diz. A repressão: não é uma extensão do poder legal, pois ela ou é exercida em áreas de justiça arbitrária ou é legitimada por um saber que foi, ele próprio, produzido por esse poder, isto é, por experts nas disciplinas apropriadas. Existe, portanto, uma afinidade muito estreita entre poder e saber (discursos verdadeiros) para Foucault. Ele desenvolve essa idéia da seguinte forma (1976, p. 93 e ss.): (
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...somos forçados a produzir a verdade do poder que a sociedade
exige...: nos devemos falar a verdade; somos constrangidos ou condenados a confessar ou descobrir a verdade. O poder nunca cessa sua interrogação, sua inquisição, seu registro da verdade: ele institucionaliza, profissionaliza e recompensa sua busca... é a verdade que faz as leis... somos destinados a um certo modo de viver ou morrer, como uma função dos discursos verdadeiros que são os portadores de efeitos específicos de poder.
Foucault está preocupado com um tipo particular de verdade. Ele está preocupado com os “ profundos” regimes de discurso/ prática, ou poder/saber, que permitem que afirmações tais como “ crianças com dificuldades de aprendizagem podem ser identificadas no período do primeiro ano de instrução formal ” sejam feitas e sejam legitimadas como verdade. Ian Hacking (1981) diz que Foucault formula questões kantianas sobre as condições do conhecimento em geral. Mas Foucault localiza essas condições não-transcendentais em contextos sócio-histó-
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ricos que são chamados de é pistémès. Se em As Palavras e as Coisas (Foucault, 1973; versão francesa original, 1966 ) seu espaço para a identificação dessas condições está restrito à linguagem, no livro posterior, A Arqueologia do Saber (Foucault, 1972), seu “ espaço” foi o que ele ampliado para cobrir condições técnicas e institucionais chama de discurso/prática. A preocupação é, então, com o poder/saber subjacente ou com o(s) conjunto (s) de condições que permitem e legitimam certas asserções particulares de verdade. Por exemplo, a noção de que para funcionar na sociedade moderna, isto é, ser governável, uma pessoa deve ser alfabetizada, poderia ser uma das condições subjacentes à legitimação da afirmação acima sobre a identificação precoce das dificuldades de aprendizagem. Esta proposição geral, claramente, carrega consigo conotações de poder. E verdade que as relações de poder podem fazer com que nos tornemos sujeitos , isto é, indivíduos com uma certa identidade, os quais, como sujeitos, podem ser sujeitados ? Como o poder vem a existir ? E nos blocos disciplinares que o poder/saber é desenvolvido e “ exercido” de acordo com o saber que é, ele próprio, o produto do exercício do poder. Isto é, as relações de poder vêm a existir por causa desse saber; sua própria existência, por sua vez, tem o saber como um de seus efeitos. Trata-se de um tipo particular de poder e de saber, no qual versões humanistas do Homem (sic) e das Ciê ncias Humanas estão profundamente envolvidas, e isso tem implicações educacionais importantíssimas. O pró prio uso que Foucault faz de termos como “ disciplina ” e “ bloco disciplinar ” é apenas mais um exemplo de sua linguagem pouco ortodoxa. Em Vigiar e Punir (1979a), por exemplo, ele fala sobre pessoas tais como médicos, professores, psiquiatras, psicanalistas, carcereiros e militares; sobre as práticas que essas pessoas desenvolvem; e sobre as instituições nas quais suas práticas são desenvolvidas. Normalmente usaríamos termos tais como “ profissional ” ou “ profissão” onde Foucault usa “ disciplina ” . Isso faz parte da estratégia de Foucault: desfamiliarizar e reconstruir nossas concepções e práticas cotidianas comuns. Em particular, o termo “ disciplina ” capta aspectos do poder e do conhecimento que são normalmente mascarados. (Aqui ele está seguindo o uso original que Lacan faz do termo “ ajutissement ” nesse duplo sentido). Na Educação, ao se falar de uma á rea de saber e de sua estrutura conceituai, ao se falar de disciplina, isto é, de sujeição e obediê ncia, há uma tendê ncia a se enfraquecer e a se esvaziar o conceito, assimilando-o ao de controle social. Em seus escritos posteriores, o conceito de repressão é retirado. A posição de Foucault (1983) é a de que o “ poder ” designa relações entre parceiros nas quais certas ações modificam as ações de outros. Este poder deve ser distinguido daquele poder que as pessoas têm em termos
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de habilidades ou capacidades para modificar, usar, consumir ou destruir coisas. Como uma relação, ele deve também ser distinguido das relações de comunicação que transmitem informações por meio de uma linguagem e de um meio simbólico, embora a produção e circulação de significados e conhecimento possam ter, como seus objetivos, certos resultados no campo do poder. Entretanto, isso não significa dizer que existam três domínios separados e diferentes, porque eles são estreitamente vinculados e não podem ser dissociados. Sua interconexão e dependê ncia mú tua podem ser vistas nas disciplinas. As disciplinas são blocos disciplinares nos quais o ajustamento das capaci“ blocos” dades e recursos das pessoas, das relações de comunicação, assim como as relações de poder, formam sistemas regulados. Para que o poder seja exercido num bloco disciplinar, uma série de condições deve ser satisfeita. Essas dizem respeito, essencialmente, à organização do espaço, do tempo e das capacidades. Em primeiro lugar, os indivíduos são distribuí dos por espaços, e ocupam espaços tais como celas monásticas, de acordo com seu grau hierárquico e seu progresso. Em segundo lugar, as atividades são planejadas para os indivíduos de acordo com um cronograma, que tem também origens monásticas. Aqui, os princípios são aqueles de prescrever atividades apropriadas à disciplina e estabelecer ritmos regulares fixos para essas atividades. Em terceiro lugar, as atividades são divididas em estágios, de forma que habilidades e capacidades particulares possam ser desenvolvidas em um período dado, através de exercícios constantes. As atividades ser ão designadas como apropriadas para os espaços (ou estágios), depen dendo do estágio anterior, exames, classificações e do próximo estágio. Os detalhes dependerão, essencialmente, do discurso “ verdadeiro” daquela disciplina, isto é, do conhecimento das pessoas, dos processos e atividades que foram estabelecidos através do exercício do poder no interior daquele bloco disciplinar. Exames, classificações, promoções e tratamentos de recuperação estabelecem padr ões “ normais” de expectativas. Esse saber desenvolvido através do exercício do poder é usado para produzir o que Foucault chama de indivíduos normalizados. As normas que são estabelecidas, os exames, as classificações e as punições disciplinares são todos parte dessa noção de governo. O exame ocupa um papel-chave também pelo fato de que expõe para o indivíduo sua pr ópria identidade, seu verdadeiro “ eu ” . Em Vigiar e Punir, Foucault localiza a escola, decididamente, no campo das disciplinas (1979a, p.
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147).
As tecnologias de dominação agem, pois, essencialmente, sobre o corpo, e como resultado dos exames, os indivíduos são classificados e objetificados. Mas os indivíduos também constroem seus “ eus” e suas identidades, na medida em que esses objetivos e classificações são adotados e aceitos por eles. A educação liberal pretende produzir “ eus” 25
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q üe sejam moralmente autónomos mas, de acorda corti Foucault, qualquer noção desse tipo é espúria. '
II.Tecnologias dò eu
No Vol. 1 de História da Sexualidade (Foucault,1980), a chave para a tecnologia do eu é a crença de que é possível dizer a verdade sobre o pró prio eu. De acordo com Foucault, tornou-se quase um lugar-comum a crença de que falar a profissionais, de uma forma similar à confissão, sobre o corpo e seus desejos, pode revelar as Verdades rrtais profundas sobre o próprio eu. Essas verdades estão imersas naquilo que Foucault chama de sexualidade. Ao dizer a verdade sobre a pró pria sexualidade, em que a verdade mais profunda está imersa no discurso e nas práticas discursivas da sexualidade, o indivíduo torna-se um objeto de saber, tanto para si quanto para os outros. Ao dizer a verdade, a péssoa conhece a si própria e torna-se conhecida para os outros num processo que é terapê utico, mas, também, controlador. Mas se a sexualidade estrutura ás verdades mais profundas, existem outras áreas nas quais dizemos a verdade. Esses discursos e o conjunto de práticas discursivas a eles associado são parte daquilo que Foucault chama de Ciências Humanas: eles penetram e “ informam” as profissões e as instituições que as acompanham, tais como a Medicina, a Psiquiatria, a Psicologia, o Direito e a Educação. : ; ^ O exame e a confissão são as principais tecnologias para a construção dò eu na História da Sexualidade, vol. 1 . Essas tecnologias desen volveram-se a “ partir de” modelos médicos, impl ícitos em métodos clínicos paralelos, no século XIX. Certos exames clínicos e psiquiátricos exigiam que o sujeito falasse e que uma autoridade treinada na observação e interpretação determinasse ou a verdade do que o sujeito dizia ou uma verdade subjacente da qual o sujeito podia nem mesmo estar consciente. Era necessá rio o desenvolvimento de técnicas “ apropriadas” para provocar e interpretar confissões a fim de que $e pudesse construir o sexo como a “ verdade” subjacente mais profunda sobre n ós mesmos e a sexualidade como um discurso e como uma pr ática discursiva! Mas há uma mudança em relação ao modelo clínico médico estrito. Naquele modelo o paciente se “ confessava” ao médico como parte do exame e da tentativa para classificar objetivamente o problema médico que exigia correção. No “ novo” modelo, a confissão e o exame são parte de um processo de construção terapê utica da sexualidade dos sujeitos, de forma que seu discurso seja controlado e eles se tornem indivíduos de um certo tipo. Foucault é fascinado pelo desejo existente na cultura moderna para dizer a verdade sobre o pr ó prio eu. De fato, ele diz com freqiiê ncia, por exemplo, que “ tem havido um incitamento muito forte para falar da sexualidade” . Ele acredita que parte da causa desse incitamento deve se ,
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aos efeitos negativos de poder de várias proibições sexuais. Ele argumenta que se o poder é concebido como meramente repressivo, então falar sobre a sexualidade seria, necessariamente, uma libertação. Nos períodos, no século XIX, em que houve proibições sexuais, houve também um discurso florescente sobre a sexualidade, causado, em parte, pela necessidade de se criar uma estrutura científica para explicar o sexo e para treinar “ cientistas” . Essa estrutura e esse discurso significavam que, ao final, o sujeito n ão podia mais compreender o que estava sendo dito e não podia mais, portanto, ser o á rbitro das “ verdades” mais profundas. Este papel transferiu-se para a autoridade, o “ cientista” : o papel não apenas de incitar a “ verdade” e de interpretar essas verdades profundas, mas também de reconstruir a experiência que o sujeito tem da sexualidade e do discurso, controlando, assim, o sujeito. Ao conhecer o verdadeiro eu, a pessoa tem não apenas que dizer a verdade na confissão mas também que falar a verdade nos conceitos do discurso sobre a sexualidade: ao falar essa verdade, ao conhecer o verdadeiro eu, a pessoa constr ói a experiê ncia do sexo e reconstrói o próprio eu ao adotar novas descrições e, “ espera-se” , novas práticas. O aspecto performativo do dizer faz com que assim seja. A terapia ocorre, assim, a partir do ato de falar a verdade, ação que pode, por si só, envolver efeitos prazeirosos vicá rios e libertadores; a partir, portanto, do ato de conhecer o pr óprio eu por meio da ação de falar a verdade, libertando, assim, o pr óprio eu dos aspectos repressivos através dos atos de falar e reconstruir o eu. Além de falar a verdade, a pessoa não apenas descreve meramente a si mesma, ela “ faz com que assim seja ” , por causa do aspecto performativo ou da função performativa da linguagem. Exatamente da mesma forma que o juiz torna a pessoa culpada por causa de uma performance declarativa de culpa, assim, também, ao falar a verdade sobre nós mesmos através dos novos e refinados conceitos das Ciê ncias Sociais, nós constru í mos a nós próprios, construí mos nossas próprias identidades naqueles atos de fala. Através da função performativa da fala, então, começamos a nos construira nós mesmos (Aqui há algumas similaridades independentes com a noção de “ performativo” de John Austin e John Searle Foucault posteriormente reconheceu isso em relação a Searle ). De acordo com Foucault (1982a), a máxima dèlfica “ conhece-te a ti mesmo” sucedeu à outra noção da antiguidade grega, “ cuida-te de ti mesmo” . Ele argumenta que a “ necessidade de cuidar de si colocou a máxima d èlfica em funcionamento” e que a segunda estava subordinada à primeira. Isso não ocorre na cultura ocidental moderna, ele argumenta, na medida em que a noção de cuidado de si passou a ser vista como uma imoralidade, um meio de escapar das regras e respeito pela lei. Dada ainda a herança cristã de que o caminho para a salvação passa pela auto- ren ú ncia, conhecer a si mesmo parece, paradoxalmente, ser o caminho para a auto- ren úncia e para a salvação. Em segundo lugar,
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ele argumenta, a filosofia teórica, desde Descartes, colocou uma importâ ncia sempre crescente no conhecimento do eu como o primeiro passo da epistemologia. Sua conclusão é que a ordem de prioridade dessas duas máximas foi revertida: “ conhece-te a ti mesmo” passou a ter prioridade. Mas qual é o motivo de se retornar à Antiguidade, aos gregos e aos romanos e à primeira Cristandade, além daquele de descrição do projeto histórico sobre o vínculo entre a obrigação de dizer a verdade e as proibições contra a sexualidade ? Além do óbvio recurso ao método genealógico, trata-se, para Foucault, de uma questão de moralidade e liberdade: “ ...pois que é a moralidade senão a prática da liberdade, a prática deliberada da liberdade ? ” (Foucault, 1984, p. 4). No mundo greco-romano, diz ele, o cuidado de si era a maneira pela qual o indivíduo considerava-se como ético. De Platão aos últimos estoicos, “ o tema do cuidado de si permeou verdadeiramente todo o pensamento ético” (ibid.). A fim de comportar-se apropriadamente, de praticar a liberdade apropriadamente, era necessá rio cuidar do eu, não meramen te para conhecer o pró prio eu, mas també m para melhorá-lo, ultraprassá-lo, dominá-lo. Cuidar do eu impediria que a pessoa se tornasse um escravo (de uma outra cidade, ou da autoridade, da família, dos amigos e colegas e das próprias paixões). Essa era uma noção muito importante não apenas para os gregos mas também para Foucault. O tema da dominação por parte de outros é um tema constante em Foucault. As Ciências Humanas, ao classificar e objetificar os indivíduos, transformam as pessoas em sujeitos { subjugados ). Se a mudança de ênfase, do “ cuida do teu próprio eu” para “ conhece-te a ti mesmo” , já era suficientemente ruim, trata-se agora de um eu que deve ser conhecido através das Ciências Humanas. Cuidar do próprio eu no século XX passou a significar ajustar-se ao exterior, oferecer-se, com um conjunto de “ verdades” que, ao serem aprendidas, memorizadas e progressivamente postas em prática, constroem um sujeito com um certo modo de ser e uma certa maneira visível de agir. Foucault acredita que esse eu moderno não é livre porque, na medida em que é produto das Ciências Humanas, o objetivo tem sido o controle político e não a
liberdade.
III. Governamentalidade
A construção de identidades ou de sujeitos é, para Foucault, um ato altamente politizado. Essas identidades são os efeitos daquilo que ele chama de poder/saber. Ele fala também de governamentalidade, de racionalidade governamental e de arte do governo. Por “ governo” Foucault quer dizer algo como “ a conduta da conduta” (Colin Gordon in Burchell et al., 1991, p. 2) ou uma forma de atividade dirigida a produzir sujeitos, a moldar, a guiar ou a afetar a conduta das pessoas 28
de maneira que elas se tornem pessoas de um certo tipo; a formar as próprias identidades das pessoas de maneira que elas possam ou devam ser sujeitos. Essa atividade diz respeito às relações privadas entre o eu e o eu, ou a relações privadas interpessoais com mentores profissionais, ou a relações com instituições e comunidade, ou com o exercício da soberania pol ítica. A arte do governo consistiria em fornecer uma forma de governo para cada um e para todos, mas uma forma que deve individualizar e normalizar. Em Vigiar e Punir, como vimos, ele argumentava que a microf ísica do poder, aplicada através das tecnologias de dominação, ao mesmo tempo individualiza e normaliza as pessoas como sujeitos. Na História da Sexualidade (Vol. 1 ) ele mostra como nós, em parte, ajudamos e encorajamos esses processos, ao construir a nós mesmos através das tecnologias do eu. Nesse último livro, ele introduziu o termo “ biopoder” para mostrar como a construção do eu através do conceito de sexualidade permite ao corpo agir como um ponto ou locus de aplicação ao mesmo tempo do controle do indivíduo e do controle da população. Se, nos seus primeiros trabalhos, ele soa fatalista e determinista, não havendo nenhum espaço para uma ação humana significativa, dirigida à obtenção da liberdade, em seus ú ltimos trabalhos ele “ corrige” essa posição quase niilista, para afirmar as possibilidades da liberdade através da resistê ncia, rejeitando o quadro possivelmente determinista no qual suas primeiras descrições do poder/saber tinham sido traçadas. Em vez disso, o poder pode apenas existir onde existe a possibilidade de resistê ncia e, portanto, a obten çã o de liberdade (Foucault, 1983 ). O poder não é mais uma presença onipresente e globalizante mas, em vez disso, um jogo aberto e estratégico. Mas essa liberdade não será obtida pelo fato de sermos seres racionalmente autonômos. Pelo contrário, é a pró pria afirmação de que somos livres porque somos racionalmente autonômos que faz com que nos tornemos sujeitos através dos efeitos do poder/saber. De fato, de acordo com Foucault, é em parte a noção pós-kantiana de autonomia racional que faz com que nos tornemos sujeitos. Na medida em que a noção de pessoa racionalmente autónoma “ orienta” boa parte da educação liberal ocidental, també m ela é parte daquilo que é referido como entorpecimento pós-kantiano. (Para uma crítica da autonomia pessoal como o objetivo da educação, ver Stefaan Cuypers, 1992). A governamentalidade está dirigida a assegurar a correta distribuição das “ coisas” , arranjadas de forma a levar a um fim conveniente para cada uma das coisas que devem ser governadas. Para o Pr íncipe de Maquiavel, as “ coisas” são o território e seus habitantes, com a ênfase no primeiro. Na nova forma de Estado, o governo não se aplica ao território per se, mas, em vez disso, à complexa unidade dos homens em todas as suas relações e em seus vínculos com a propriedade e a cultura em seus mais amplos sentidos, incluindo acidentes e desastres 29
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tais como a fome e a guerra (Foucault, 1979b, p. 11). Para isso, urna nova forma de racionalidade do Estado é exigida. Em primeiro lugar, se o Estado deve ser fortalecido, sua capacidade e os meios para ampliá-lo devem ser estabelecidos. Para isso uma forma de conhecimento político, diferente das teorias pol íticas sobre a natureza do Estado e sua legitimação, é exigida. A governaiíientalidade exige, pois, mais do que implementar princípios gerais de justiça, sabedoria e prudência. Um certo conhecimento concreto, preciso e específico torna-se necessário. Desde o in ício do século XVII os Estados começam a entrar em competição de forma que pontos fortes e fracos tornam-se importantes historicamente, na medida em que cada estado enfrentava um futuro indefinido, preso à luta e à competição com outros estados. O conhecimento pol ítico e a utilização dos indivíduos torna-se criticamente importante para preservar, senão para reforçar, o Estado. Deverá estar incluído nesse conhecimento político, se é que os indivíduos devam ser utilizados para reforçar o Estado, o conhecimento dos indivíduos, de suas inclinações, habilidades e capacidades para serem utilizados. Os indivíduos, nessa visão, tornam-se instrumentais aos fins do Estado. A justiça, o bem-estar e a saúde são importantes para os indivíduos, não porque eles são bons em si para os indivíduos, mas porque eles aumentam a força do Estado. Os investimentos na sa úde e na educação são agora investimentos instrumentais no indivíduo, a serem sacados mais tarde pela crescente força do Estado. Foucault também identifica uma tecnologia particular como a da polícia . Com esse termo, ele quer significar técnicas específicas pelas quais um governo, desde o início do século XVII, “ no quadro do Estado, era capaz de governar as pessoas como indivíduos significantemente ú teis para o mundo” ( Foucault, 1982c; p. 154). Ele identifica três formas gerais assumidas por essa tecnologia de policiamento: primeiramente, como ideal, sonho ou utopia; depois, como uma prá tica real ou um conjunto de prá ticas ou regras de alguma instituição real; finalmen te, como uma disciplina acad ê mica, talvez desenvolvida a partir das práticas e do conhecimento derivado dessas práticas, em instituições. Foucault vê essa sistematização aberta das práticas administrativas como importante, por vá rias razões. Em primeiro lugar, existe uma tentativa para classificar as necessidades não como nas tradições filosóficas mais antigas, mas em termos de escalas de utilidade para *%s indivíduos e o Estado. Lidar com as necessidades das pessoas e, portanto, com sua felicidade, não é mais visto como um efeito ou como um resultado da polícia do Estado, mas como uma condição ou exigência de sua sobrevivência e de seu desenvolvimento. Finalmente, policiar torna-se uma disciplina no significado acadêmico da palavra, ensinada em vá rias universidades, notavelmente em Goettingan. Foucault sugere que, por volta do final do século XVIII,
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nós temos uma racionalidade política vinculada a uma tecnologia política. ! Essa última envolve intervenções na vida dos indivíduos, através de observação, vigilância, exames, classificação e normalização. Esses processos estão profundamente imersos e implicados na emergência e desenvolvimento das Ciê ncias Humanas. Em uma de suas últimas entrevistas, Foucault disse (Foucault, 1982a, p. lOss):
Por um período bastante longo, as pessoas me pediam para lhes dizer o que aconteceria e para lhes dar um programa para o futuro,., os programas tornam-se uma ferramenta, um instrumento de opressão. Meu papel é mostrar às pessoas que elas são mais livres do que sentem... Todas as minhas análisçs sã o contra a idéia de necessidades universais na existê ncia humana. . Foucault, como uni “ homme de gauche” , estava preocupado com o fato de que o socialismo nunca teve nem nunca compreendeu uma arte do governo. Ele rejeitava a noção dé intelectual, seja em sua forma totalizante, o intelectual produzindo uma teoria universal da vida política ( contra Sartre), seja o intelectual cotno apoiando ideologicamente uma forma ou grupo preferido de oprimido (talvez Gramsci ). Foucault acreditava, juntamente com Gilles Deleuze, que os intelectuais n ão podiam e não deviam falar em nome do oprimido e dizer lhe como resistir. Em vez disso, eles deviam ficar ao lado, minai o « poder dos opressores e expor suas práticas. Fascinado como era pela revolução de 1968, ele sabia també m que, uma vez que a Esquerda não possuía uma arte do governo, ela não podia reter o poder, mesmo que o tivesse tomado em 1968. Foucault parece, às vezes, alinhar-se com os neoliberais em sua rejeição da intrusão do governo nas questões dos seres humanos, m s ele o faz por diferentes razões. Não porque os seres humanos são livres e autó nomos e devem ser deixados à vontade para perseguir seus pró prios projetos mas, em vez disso, porque eles foram construídos para pensar que são livres e autó nomos e porque essa mesma construção permitiu o avanço do poder/saber e a subjugação das pessoas como sujeitos a levarem vidas ú teis, d óceis e práticas. Em vá rias fontes, inicialmente no artigo “ Governamentalidade” ( Foucault, 1979 b) e depois em conferê ncias no Coll ège de France, Foucault desenvolveu a noção de governamentalidade. Ele via as tecnologias da dominação e do eu como técnicas usadas “ para fazer do indivíduo um elemento significativo para o Estado ” (ibid., p. 153).
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IV. Educação Liberal
A descrição que Foucault faz do poder/saber mina o projeto principal da educação liberal e tem implicações perturbadoras para nós como educadores e pesquisadores educacionais.
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(i) Com o conceito de poder/saber, Foucault dirige nossa atenção aprender a falar e a para uma sé rie de processos de moldagem
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escrever, por exemplo que o quadro conceituai da educação liberal não identificaria normalmente como sendo contrários aos interesses da criança porque mesmo nas recentes e desejáveis discussões liberais do poder em educação, considera-se que existe poder apenas quando ele é contrá rio aos interesses da criança (White, 1983; Burbules, 1986). (ii) Aqui, Foucault chama nossa atenção porque, ao perseguir objetivos educacionais liberais, colocamos em funcionamento o que ele chama de poder/saber, biopoder, ou poder moderno, que é uma forma de poder dirigida à governamentalidade e a formas de dominação política. Boa parte da narrativa da educação liberal ignora aquelas coisas sobre as quais Hobbes e Rousseau estavam bastante conscientes, a saber, disciplina e poder. E irónico encontrar na própria base da teoria liberal clássica, no Leviatã de Hobbes, o reconhecimento tanto da necessidade de assegurar a obediência ao contrato quanto a compreensão de que isso pode ser obtido através da educação (Marshall, 1981). Se combinamos isso com a visão tradicional da busca educacional da autonomia pessoal, então, Foucault argumenta, essas pessoas seriam governáveis, mas não “ livres” . (iii) O poder moderno permeia toda a sociedade, mas foi desenvolvido e refinado essencialmente nas disciplinas e ainda tem importante acolhida e fonte de legitimação nas disciplinas e nas Ciê ncias Humanas. E nas escolas e em outras instituições educacionais que devemos olhar para nossas práticas vividas de ensino e aprendizagem com respeito a relações de poder que podem ser subjugadoras e dominadoras. Certamente elas podem constituir as pessoas que acreditam que são pessoalmente autónomas. (iv ) Determinadas visões teóricas dos seres humanos como agentes morais, seres sexuais, aprendizes, ou seja lá o que for, subjazem às disciplinas. O objetivo da autonomia pessoal permeia a educação liberal. Mas nos procedimentos normalizadores do exame e da “ confissão” , as pessoas são classificadas como objetos e a verdade sobre si mesmas lhes é revelada. Ao constituir o sujeito dessa forma, ao construir a própria identidade dos indivíduos, o poder moderno produz indivíduos governáveis através de tecnologias de individualização e normalização. De acordo com Foucault, a busca pessoal de autonomia e identidade, quando imersa em noções humanistas do sujeito e na narrativa liberal da racionalidade e da emancipação, apenas ajudará e encorajará esses processos. (v) Como profissionais da Educação, devemos registrar as fortes descrições de Foucault e repensar conceitos educacionais como “ autoridade” , “ poder ” , “ disciplina” e “ pedagogia” . Isso não significa ridicularizar, suplantar ou tornar falsas outras abordagens dessas noções mas mostrar um outro aspecto, ou uma outra máscara da realidade. Na 32
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opinião de Foucault, não temos que ter uma visão de mundo total para resistirmos e nos opormos a formas de dominação e sujeição política; podemos fazê-lo em qualquer ponto do tempo, como os vá rios grupos de resistê ncia no mundo ocidental nos estão mostrando. Mas o problema consiste em reconhecer quando o poder moderno está sendo exercido e se a resistê ncia é uma resposta apropriada. Foucault nega que ele sustente qualquer posição normativa explícita, mas sem uma tal posição é mais dif ícil ver como proceder. Sobre essas questões alguns de seus cr íticos vêem-no como incoerente (ver Hoy ). Entretanto, essas objeções supõem que os princípios políticos liberais e a noção de educação liberal, que nós todos mais ou menos subscrevemos no mundo ocidental (em suas vertentes liberais e conservadoras), não sejam em si mesmas fundamentalmente equivocadas. Mas Foucault acredita que elas o são. Ou, no mínimo, uma vez que ele diz pouco, explicitamente, sobre educação, mas muito sobre o Iluminismo, estruturas de poder, disciplinas e sobre a constituição de sujeitos, seu pensamento permite que formulemos uma crítica da educação de inspiração humanista e liberal.
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Publicado inicialmente em Studies in Philosophy of Education , v. 13 , 1994. Transcrito aqui com a autorização do autor. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva.
James Marshall é Professor da Universidade de Auckland, Nova Zelândia.
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3 Jorge Larrosa Tecnologias do Eu e Educação
A Héctor Salinas, fraternalmente
A obsessão constante de Foucault é o tema do duplo. Mas o duplo nunca é uma projeção do interior, é, ao contrá rio, uma interiorização do lado de fora ( Deleuze, 1991, p. 105). não é um trabalho de arqueologia dos saberes pedagógicos nem Fste de genealogia da escola. Tampouco é um trabalho de historiador,
de psicólogo, de filósofo ou de sociólogo da educação. Talvez possa designar-se como um trabalho de “ teoria” , se por isso entendemos um gênero de pensamento e de escrita que pretende questionar e reorientar as formas dominantes de pensar e de escrever em um campo determinado. A etiqueta “ teoria” tem designado, às vezes, trabalhos de dif ícil atribuição disciplinar que tentam enriquecer ou modificar os aparatos conceituais de um campo, através da recontextualização das idéias formuladas em outro local e para outras finalidades. O que ocorreu com a psicanálise, o marxismo ou o estruturalismo nos últimos anos, quando foram utilizados como idéias novas e plenas de possibilidade em quase todos os campos do saber ou quando sua utilização redesenhou as relações disciplinares estabelecidas, pode ser um bom exemplo. “ Teoria” , nesses casos, é algo assim como reorganizar uma biblioteca, colocar alguns textos junto a outros, com os quais não têm aparentemente nada a ver, e produzir, assim, um novo efeito de sentido. Freud, Marx, Saussure ou, neste caso, Foucault, são selecionados porque “ dão o que pensar ” , porque permitem “ pensar de outro modo” , explorar novos sentidos, ensaiar novas metáforas. Em geral, esses exercícios de pensamento e de escrita supõem um duplo jogo. Por isso podem permitir, às vezes, um duplo benef ício, mas implicam, ao mesmo tempo, um duplo risco. E ocorre que se joga às vezes com dois baralhos: com o baralho da estratégia analítica, aqui a obra de Foucault, e com o baralho das convenções, dos interesses e das 35
possibilidades de um campo de estudo, a educação, neste caso. Este é um trabalho de “ teoria da educação” , se com isso designamos um exercício menor que consiste em colocar alguns livros de Foucault ao lado das formas convencionais de pensar algumas prá ticas educativas e em ensaiar a possível fecundidade de tal associação. Embora para isso tenhamos que fazer alguma violência tanto a Foucault quanto ao objeto “ empírico” que, em suas descrições usuais, se toma como material de trabalho. Mas esse é o duplo risco que sempre implica esse tipo de jogo. Vou jogar o segundo baralho, o da 'educação, de um modo ao mesmo tempo muito geral e muito específico. Muito geral, porque não estabelecerei nenhum corte temporal nem geográfico, nem farei nenhuma delimitação com respeito ao “ setor” educativo tomado como objeto de análise. A ú nica coisa que farei será estabelecer um viés em relação ao tipo de práticas pedagógicas que irei considerar. Em geral, considerarei aquelas nas quais se produz ou se transforma a experiê ncia que as pessoas tê m de si mesmas. Meu trabalho tenta oferecer ferramentas teóricas para “ pensar de outro modo” relações pedagógicas aparentemente tão d íspares quanto as que se dão em uma aula de educação moral, em uma aula de educação de adultos, em uma aula universitá ria de Filosofia da Educação, na elaboração de um trabalho de “ pesquisa sobre a prá tica ” em um curso universitá rio de Mestrado e, por que não ?, em um grupo de terapia, nas reuniões de um grupo pol ítico ou religioso, em uma conversa entre um pai e um filho, um educador de rua e um de seus “ meninos” , etc. A ú nica condição é que sejam práticas pedagógicas, nas quais o importante não é que se aprenda algo “ exterior ” , um corpo de conhecimentos, mas que se elabore ou reelabore alguma forma de relação reflexiva do “ educando” consigo mesmo. Minha tese a esse respeito é de que a forma básica dessas prá ticas, o que é comum a todas elas, é algo muito simples. Se deixamos de lado o conte údo concreto de cada uma delas, os objetivos particulares em cada caso (em termos de Bernstein, o “ quê” da transmissão), e nos fixamos apenas na forma do dispositivo ( no “ como” da pedagogia), a similaridade é surpreen dente. Mas, por outro lado, minha aproximação tentará também ser muito específica. Tentarei oferecer o arcabouço para algumas descrições relativamente minuciosas das distintas modalidades nas quais esse dispositivo geral pode se realizar. Porque, embora a similitude estrutural seja notável, a diversidade das realizações possíveis é quase infinita. Trata-se, pois, de mostrar a lógica geral dos dispositivos pedagógicos que constroem e medeiam a relação do sujeito consigo mesmo, como se fosse uma gramá tica suscetível de m últiplas realizações. No que diz respeito ao primeiro baralho, o da estratégia analítica foucaultiana, meu jogo será também, ao mesmo tempo, muito geral e muito específico. Tentarei, em primeiro lugar, elaborar a partir dessa obra um enfoque teórico que permita reconsiderar o que me parecem duas inércias fortemente encasteladas no campo pedagógico. A primeira é sua forte dependência de um modo de pensamento antropológico ou, 36
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o que é a mesma coisa, da crença arraigada de que é uma “ idéia de homem” e um projeto de “ realização humana” o que fundamenta a compreensão da idéia de educação e o planejamento das práticas educativas. A segunda é a ocultação da pró pria pedagogia como uma operação constitutiva, isto é, como produtora de pessoas, e a crença arraigada de que as práticas educativas são meras “ mediadoras” , onde se dispõem os “ recursos” para o “ desenvolvimento” dos indivíduos. Estamos lidando com inércias, nas quais o papel produtivo da pedagogia na fabricação ativa dos indivíduos neste caso, dos indivíduos enquanfica sistematicamente to dotados de uma certa experi ê ncia de si elidido. A leitura que farei de Foucault, portanto, é uma leitura bastante simplificada do Foucault antropólogo ou, melhor dito, do Foucault que pode ser colocado em relação com a antropologia. O Foucault que tentarei colocar em relação com as prá ticas pedagógicas nas quais se constr ói e modifica a experiê ncia que os indivíduos tê m de si mesmos é o que trabalhou numa “ ontologia histórica de nós mesmos” , justamente através do estudo dos mecanismos que “ transformam os seres humanos em sujeitos” . E nesse sentido que se pode utilizar a obra de Foucault para questionar as inércias teóricas das quais falava antes: não porque implique uma teoria diferente do que é a pessoa humana como sujeito, como capaz de certas relações reflexivas sobre si mesma, mas porque mostra como a pessoa humana se fabrica no interior de certos aparatos ( pedagógicos, terapê uticos,...) de subjetivação. A dimensão mais geral da educação que este trabalho pretende reconsiderar tem a ver com a antropologia da educação, isto é, com as teorias e práticas pedagógicas enquanto produtoras de pessoas. O jogo mais geral com a obra de Foucault será, portanto, um jogo antropológico. Em segundo lugar, e naquilo que se refere à utilização específica da obra de Foucault, o jogo consiste em elaborar as bases de um método, se por isso se entende uma certa forma de interrogação e um conjunto de estratégias analíticas de descrição. Nessa “ dimensão metodológica ” de meu trabalho, apresentarei exemplos pedagógicos concretos, tentando fazer com que o leitor imagine em detalhe sua realização prática. E tentarei explicitar o que significa focalizá-los com um olhar construído na clave foucaultiana, como poderiam ser descritos com as ferramentas conceituais de Foucault, e quais seriam as perguntas que essa estratégia analítica permitiria. Meu trabalho pretende ensaiar os limites e as possibilidades metodológicas de uma certa problematização foucaultiana da construção e da mediação pedagógica da experiê ncia de si. Avançando já o esquema do capítulo, o que me proponho é sugerir uma perspectiva teórica, numa clave foucaultiana, para a análise das práticas pedagógicas que constroem e medeiam a relação do sujeito consigo mesmo: essa relação na qual se estabelece, se regula e se modifica a experiê ncia que a pessoa tem de si mesma, a experiê ncia de si. Para isso, e depois de uma introdução sobre o modo como a obra de Foucault pode contribuir para elaborar uma posição teórica e um
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conjunto de regras metodológicas muito gerais, apresentarei brevemente certos exemplos extraídos de algumas de minhas pesquisas anteriores, com o objetivo de especificar tanto o objeto de análise quanto os princípios de descrição implícitos no enfoque teórico. Em continuação, explicitarei o conceito foucaultiano de “ tecnologias do eu” e o contextualizarei, ainda que superficialmente, em relação à totalidade da obra de Foucault. Em terceiro lugar, e naquilo que seria já uma elaboração dos dispositivos pedagógicos nos quais se constrói e se medeia a experiência de si, introduzirei um modelo teórico no qual a experiência de si pode ser analisada como resultado do entrecruzamento, em um dispositivo pedagógico, de tecnologias óticas de auto-reflexão, formas discursivas (basicamente narrativas) de auto-expressão, mecanismos jurídicos de auto-avaliação, e ações pr áticas de autocontrole e autotransformação. Minha aproximação tentará ser extremamente geral, sem ancoragens espaciais e temporais concretas, embora, obviamente, as modalidades concretas dos mecanismos óticos, discursivos, jurídicos e prá ticos que constituem os dispositivos pedagógicos particulares só possam ser entendidas no interior de uma configuração historicamente dada de saber, poder e subjetivação. Trata-se aqui de assentar as bases para uma metodologia, se por isso entendemos a elaboração de determinada forma de problematização das práticas pedagógicas orientadas para a construção e a transformação da subjetividade. Por último, e para concluir, farei uma sumária consideração sobre o modo como essa forma de problematização pode ter virtualidades críticas, se por isso entendemos uma orientação reflexiva do pensamento com propósitos práticos e no trabalho da liberdade.
A Contingência da Experiência de Si
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No vocabulá rio pedagógico esse conjunto de palavras amplo, indeterminado, heterogéneo e composto pela recontextualização e o entrecruzamento de regimes discursivos diversos utilizam-se muitos termos que implicam algum tipo de relação do sujeito consigo mesmo. Alguns exemplos poderiam ser “ autoconhecimento” , “ auto-estima” , “ autocontrole ” , “ autoconfiança ” , “ autonomia” , “ auto-regulação” e “ autodisciplina” . Essas formas de relação do sujeito consigo mesmo podem ser expressadas quase sempre em termos de ação, com um verbo reflexivo: conhecer-se, estimar-se, controlar-se, impor-se normas, regular-se, disciplinar-se, etc. Por outro lado, e deixando de lado os diferentes tipos de fenômenos que designam, todos esses termos se consideram como antropologicamente relevantes na medida em que designam componentes que estão mais ou menos impl ícitos naquilo que para nós significa ser humano: ser uma “ pessoa” , um “ sujeito” ou um “ eu” . Como se a possibilidade de algum tipo de relação reflexiva da pessoa consigo mesma, o poder ter uma certa consciência de si e o poder 38
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fazer certas coisas consigo mesma, definisse nada mais e nada menos que o ser mesmo do humano. í Todos esses termos, sobretudo quando são usados em um contexto pedagógico e/ou terapêutico, costumam articular-se normativamente. No discurso pedagógico atual , por exemplo, muito influenciado pela Psicologia Social do Desenvolvimento, é quase obrigatório falar de como se “ desenvolve” a auto-identidade , o autoconceito ou, em geral, a consciência de si, em um sentido cada vez mais “ diferenciado” , mais “ maduro” ou mais “ realista” , sempre que se dêem as condições adequadas. Em um contexto terapêutico, e com matizes distintos, segundo a orientação teórica e prática da terapia em questão, é freqiiente falar de formas não desejáveis ou inclusive patológicas da relação da pessoa consigo mesma como, por exemplo, a culpabilidade e a vergonha de si em alguma de suas modalidades extremas, a irresponsabilidade, a debilidade da vontade ou do caráter, a ausê ncia de autoconfiança, a perda ou o debilitamento da identidade, distintas formas de neurose ou de psicose tomadas como patologias do princípio de identidade, etc. Portanto, todos os termos dos quais falava antes podem ser elaborados também como sç fossem características normativas do sujeito formado ou maduro, ou do sujeito são ou equilibrado, que as práticas educativas
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1 A identificação do “ humano” com alguma modalidade de “ reflexividade” normativamente construída pode ser levada para tão atrás quanto se queira. Em alguns textos de Platão, na República, por exemplo, a pessoa é boa quando é dona de si mesma (literalmente, mais forte que si mesma, kreitto autou, 430 E). E essa curiosa expressão só é compreensível a partir de uma distinção entre, pelo menos, duas partes da pessoa. E a partir da idéia de que uma delas, a melhor, a mais alta, a mais “ humana ” , deve dominar a outra. Ser dono de si mesmo significa que a parte superior, a razão, domina a parte inferior, os apetites ( to logistikon domina to epithumetikon ). Se a alma está dominada pelos apetites, que são por natureza insaciáveis ( physei aplestotaton, 442 A) e estão em perpétuo conflito (literalmente, em guerra civil, stasis 444 B), só h á inquietude, agitação e excesso, literalmente caos. Mas a razão pode impor a ordem ( kosmos ) , a calma e a harmonia. Poae estabelecer prioridades entre os apetites necessários e os desnecessários (558-559), pode julgar como injustos os apetites que conduzem ao vício e resistir ao seu domínio, etc. Desse modo, a pessoa “ ordenada” pela razão mostra uma espécie de autopossessão, estabilidade e unidade consigo mesma. A razão, adquire, pois, um status moral, exerce a liderança da alma e constitui o que n ós chamaríamos uma subjetividade estável, unitária e centrada. Teríamos, pois, já em Platão, toda uma concepção da natureza humana baseada na reflexividade. Entretanto, por antigas e nobres que possam ser as idéias sobre a relação da pessoa consigo mesma, a reflexividade só obtém uma certa centralidade antropológica na filosofia moderna, de Descartes a Kant e Fichte, para colocar algumas referências temporais. Para uma história da ontologia moral da pessoa humana veja-se o excelente livro de Taylor, 1989. Uma revisão antropológica dos diferentes modos pelos quais se tem entendido a relação do sujeito consigo mesmo pode ver-se em Tugendnat, 1986. Em ambos os textos podem -se encontrar algumas das elaborações filosóficas mais importantes da idéia de que a pessoa humana não existe em um sentido meramente factual, sujeita a certas necessidades e desejos, colada a certo modo de vida, mas, antes, que existe de maneira que pode adotar uma relação cogniscitiva e prática com sua própria existência, de maneira que tenha uma determinada interpretação de quem é e do que pode fazer consigo mesma.
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e/ou as práticas terapê uticas deveriam contribuir para constituir, para melhorar, para desenvolver e, eventualmente, para modificar.2 Mas esse sujeito construído como o objeto teórico e prático tanto das pedagogias quanto das terapias, esse “ sujeito individual ” caracterizado por certas formas normativamente definidas de relação consigo mesmo, não é, em absoluto, uma evidência intemporal e acontextual. O “ sujeito individual ” descrito pelas diferentes psicologias da educação ou da cl ínica, esse sujeito que “ desenvolve de forma natural sua autoconsciê ncia ” nas prá ticas pedagógicas, ou que “ recupera sua verdadeira consciê ncia de si ” com a ajuda das práticas terapê uticas, não pode ser tomado como um “ dado” não- problemático. Mais ainda, não é algo que possa analisar-se independentemente desses discursos e dessas práticas, posto que é aí, na articulação complexa de discursos e práticas ( pedagógicos e/ou terapê uticos, entre outros ), que ele se constitui no que é. Antes, entretanto, de mostrar com certo detalhe como se define e se fabrica esse sujeito são e maduro, definido normativamente em termos de autoconsciê ncia e autodeterminação, e no qual temos certa tendê ncia a nos reconhecer, ao menos idealmente, talvez seja bom um certo exercício de desfamiliarização. E uma vez que se trata de nos desfamiliarizarmos de nós mesmos, nada melhor que aplicar, a isso que somos, o olhar assombrado do antropólogo, esse olhar etnológico, educado para ver, inclusive na idéia que ele tem de si mesmo, as curiosas e surpreendentes convenções de uma tribo particular. E podemos começar com essas expressivas palavras de Clifford Geertz:
a concepção ocidental da pessoa como um universo cognitivo e emocional delimitado, ú nico e mais ou menos integrado; como um centro dinâ mico de consci ê ncia, emoção, ju ízo e ação; organizado em uma totalidade distintiva que está conformada em contraste a outras totalidades como ela e em contraste també m a um fundo natural e social é, apesar de todo o incorrigível que nos possa parecer, uma id éia bastante peculiar no contexto das culturas do mundo (Geertz, 1979; veja també m Geertz, 1987).
Porque a idé ia do que é uma pessoa, ou um eu, ou um sujeito, é histórica e culturalmente contingente, embora a nós, nativos de uma determinada 2 O discurso pedagógico e o discurso terapêutico estão hoje intimamente relacionados. As prá ticas pedagógicas, sobretudo quando n ão são estritamente de ensino, isto é, de transmissão de conhecimentos ou de “ conteúdos” em sentido restrito, mostram importantes similitudes estruturais com as práticas terapêuticas. A educação se entende e se pratica cada vez mais como terapia, e a terapia se entende e se pratica cada vez mais como educação ou re-educação. E a antropologia contemporânea, ou melhor, o que hoje conta como antropologia, para alé m dos discursos sá bios que se abrigam sob esse r ótulo, na medida em que estabelece o que significa ser humano, não pode separar-se do modo como o dispositivo pedagógico/terapêutico define e constrói o que é ser uma pessoa formada e sã (e, no mesmo movimento, define e constrói também o que é uma pessoa ainda não formada ou insana ).
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cultura e nela constituídos, nos pareça evidente e quase “ natural” esse modo tão “ peculiar ” de entendermos a n ós mesmos. São muitas as tribos nas quais seus membros tendem a identificar a “ peculiar ” idé ia que tê m de si mesmos com o ser “ homem” em geral, embora não tenham desenvolvido, como nós, algo também tão “ peculiar ” histó rica e culturamente como toda uma tradição antropológica preocupada por definir, de uma forma universal e essencialista, uma “ id é ia de homem ” . Ademais, o que é histórica e culturalmente contingente não é apenas nossa concepção do que é uma pessoa humana, mas també m, e sobretudo, nosso modo de nos comportar. Ou, se quisermos, nosso modo de ser “ homens” . Não se trata apenas de que nossas idé ias acerca do que é uma pessoa difiram das idé ias que, a esse respeito, tê m, por exemplo, os azande ou os nativos de Bali. Ou que difiram das idéias que tinham os burgueses puritanos dos novos estados centro-europeus do século XVII ou os cavalheiros da Europa feudal na baixa Idade Média. O que é histó rico e contingente é algo que vai muito alé m das idéias ou das representações. O homem é, sem d ú vida, um animal que se auto-interpreta. A História ou a Antropologia mostram, pois, a diversidade dessas auto-interpretações. Mas o que fazemos, o modo como nos comportamos e, afinal, o como somos, na medida em que isso tem a ver com como interpretamos a n ós mesmos, també m pode ser posto em uma perspectiva hist ó rica e/ou antropológica. Outro antropólogo, Gehlen, dizia, em relação a esse ú ltimo ponto que quer se o interprete como “ possu ído” por demónios ou pulsões, como um ser “ controlado desde fora ” por mecanismos psicológicos ou sociais, ou como uma pessoa auto-responsável, como maté ria ou como sujeito ativo, como um “ modo desnudo que teve êxito” , provido de uma inteligê ncia técnica, ou como “ imagem e semelhança de Deus” , ... sua interpretação tem eventualmente conseq üê ncias que chegam até seu comportamento em relação a “ fatos reais” , até sua conduta cotidiana, por exemplo, frente a um semelhante, frente a um sócio comercial, frente a um adversá rio político ou a um subordinado, frente a um discípulo, ou frente a uma criança. E, natural mente, frente a si mesmo. Em cada um desses casos, ouvirá “ tipos muito distintos de mandatos” dentro de si mesmo.3 3 Gehlen, 1980. M. Morey (1987) comenta essa mesma citação em um texto de Antropologia Filosófica no qual revisa detalhadamente a posição de Foucault em relação a essa disciplina. Em um contexto diferente, e em relação a outros problemas, Scheuerl (1985) també m comenta a citação de Gehlen. Em ambos os casos insiste-se no car áter constitutivo, para além da questão puramente “ ideológica” , da construção e da transmissão de uma forma de experiê ncia de si. Tanto para Morey quanto para Scheuerl, a cita çã o de Gehlen implica que o contingente na auto-intepretação é o sujeito mesmo e não apenas as “ id éias” que se têm a propósito do que é uma pessoa.
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Geertz falava da contingência da idéia que temos de nós mesmos. Gehlen, dando um passo adiante, fala de como a contingência de nossa auto-interpretação implica a contingência dos comportamentos que temos tanto frente aos demais como frente a nós mesmos. Mas Foucault dá, entretanto, um passo a mais. O que estuda não são nem as idéias nem os comportamentos, mas algo que pode ser separado analiticamente de ambos e que, ao mesmo tempo, os torna possíveis: a experiê ncia de si. E isso, a experiência de si, também é algo histórica e culturalmente contingente, na medida em que sua produção adota formas “ singulares” . Na introdução ao Uso dos Prazeres, o segundo volume da História da Sexualidade, publicado em 1984, Foucault estabelece assim o domínio de seu trabalho:
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nem uma história dos comportamentos nem uma história das representações. Mas uma história da “ sexualidade” (...). Meu propósito não era o de reconstruir uma história das condutas e das práticas sexuais de acordo com suas formas sucessivas. Também não era minha intenção analisar as idéias (científicas, religiosas ou filosóficas) através das quais foram representados esses comportamentos (...). Tratava-se de ver de que maneira, nas sociedades ocidentais modernas, constituiu-se uma “ experiência” tal, que os indivíduos são levados a reconhecer-se como sujeitos de uma “ sexualidade” (...). O projeto era, portanto, o de uma história da sexualidade enquanto experiê ncia se entendemos por experiência a correlação, numa cultura, entre campos de saber, tipos de normatividade e formas de
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subjetividade.4
Ao estudar historicamente a sexualidade do ponto de vista da experiê ncia, Foucault aponta diretamente contra qualquer realismo ou essencialismo do eu, da pessoa humana ou do sujeito. Foucault estabelece um domínio e uma forma de análise com os quais se distancia de qualquer idéia do sujeito como uma substâ ncia real ou uma essência intemporal (o homem de desejo, nesse caso ) que se manteria estática ou imutável por cima ou por debaixo da variabilidade e da contingência tanto das idéias acerca da sexualidade quanto dos comportamentos sexuais. Por outro lado, se distancia també m de qualquer ilusão retrospectiva na qual a história das idéias ou das representações apareceria como uma história do progressivo êxito da verdade e na qual a história dos comportamen tos apareceria como uma história do progresso da liberdade. Não é que na natureza humana estejam implicadas certas formas de experiê ncia de si que se expressam historicamente mediante idéias distintas (cada vez mais verdadeiras ou, em todo caso, pensáveis desde os êxitos e dificuldades da verdade ) e se manifestam historicamente em 4
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Foucault, 1984a, pp. 9-10. Citação conforme a edição brasileira: Graal, 1985, p.9).
distintas condutas (cada vez mais livres ou possíveis desde o dif ícil caminho até a liberdade ), mas que a pr ópria experiência de si não é senão o resultado de um complexo processo histórico de fabricação no qual se entrecruzam os discursos que definem a verdade do sujeito, as práticas que regulam seu comportamento e as formas de subjetividade nas quais se constitui sua própria interioridade. E a própria experiê ncia de si que se constitui historicamente como aquilo que pode e deve ser pensado. A experiência de si, historicamente constitu ída, é aquilo a respeito do qual o sujeito se oferece seu próprio ser quando se observa, se decifra, se interpreta, se descreve, se julga, se narra, se domina, quando faz determinadas coisas consigo mesmo, etc. E esse ser próprio sempre se produz com relação a certas problematizações e no interior de certas práticas. Ao analisar a experiência de si, o objetivo é
... analisar, não os comportamentos, nem as idéias, não as socieda-
des, nem suas “ ideologias” , mas as problematizações através das quais o ser se dá como podendo e devendo ser pensado, e as práticas a partir das quais essas problematizações se formam.5
A experiência de si, em suma, pode ser analisada em sua constituição histórica, em sua singularidade e em sua contingê ncia, a partir de uma arqueologia das problematizações e de uma pedagogia das práticas de si. E o que aparece agora como “ peculiar ” , como histórico e contingente, não são já apenas as idéias e os comportamentos, mas o ser mesmo do sujeito, a ontologia mesma do eu ou da pessoa humana na qual nos reconhecemos no que somos. Se voltamos agora a todos esses termos em combinação com os que se descrevem nas formas de relação da pessoa consigo mesma e que, conforme vimos, atravessam os discursos e as práticas pedagógicas e terapêuticas, a pergunta foucaultiana mudaria algumas coisas na perspectiva de aná lise. Na perspectiva que conforma o sentido comum pedagógico e/ou terapê utico há, em primeiro lugar, um conjunto mais ou menos integrado de concepções do sujeito. Teríamos, primeiro, uma sé rie de teorias sobre a natureza humana. Nessas teorias, as formas da relação da pessoa consigo mesma são constru ídas, ao mesmo tempo, descritiva e normativamente. As formas de relação da pessoa consigo mesma que, como universais antropológicos, caracterizam a pessoa humana, nos dizem o que é o sujeito são ou pienamente desenvolvido. Portanto, impl ícita ou explicitamente, as teorias sobre a natureza humana definem sua própria sombra: definem patologias e forma de imaturidade no mesmo movimento no qual a natureza humana, o que é o homem, funciona como um crité rio do que deve ser a saúde ou a maturidade. A partir daí, as práticas pedagógicas e/ou terapêuticas podem tomar-se como lugares de mediação nos quais a pessoa simples5 Foucault, 1984a, p. 17. Citação conforme a ed. bras., Graal, 1985, p. 15.
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mente encontra os recursos para o pleno desenvolvimento de sua autoconsciê ncia e sua autodeterminação, ou para a restauração de uma relação distorcida consigo mesma. As práticas pedagógicas e/ou terapêuticas seriam espaços institucionalizados onde a verdadeira natureza
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pode da pessoa humana autoconsciente e dona de si mesma desenvolver-se e/ou recuperar-se. Assim, o sentido comum pedagógico e/ou terapê utico produz um esvaziamento das pr áticas mesmas como lugares de constituição da subjetividade. Não deixa de ser paradoxal que o primeiro efeito da elaboração pedagógica e/ou terapê utica da autoconsciê ncia e da autodeterminação consista em um ocultamento da pedagogia ou da terapia. Ambas aparecem como espaços de desenvolvimento ou de mediação, às vezes de conflito, mas nunca como espaços de produção. E como se as práticas pedagógicas e/ou terapê uticas fossem um mero espaço de possibilidades, um mero entorno favorável, delimitado e organizado para que as pessoas desenvolvam e/ou recuperem as formas de relação consigo mesmas que as caracterizam. A aproximação foucaultiana inverte essa perspectiva. E essa inversão se condensaria em duas regras metodológicas. A primeira seria interrogar os universais antropológicos em sua constituição histórica. Quanto ao que aqui nos interessa, isso significa não tomar como ponto de partida as concepções hoje dominantes da natureza humana, mas problematizar as idéias com respeito à autoconsciência, à autonomia ou à autodeterminação, analisando as condições históricas de sua formação na iman ê ncia de determinados campos de conhecimento. A segunda regra seria tomar as pr áticas concretas como domínio privilegiado de an álise. Não considerar as pr á ticas como espaço de possibilidades, entorno organizado ou oportunidades favoráveis para o desenvolvimento da autoconsciê ncia, da autonomia ou da autodeterminação, mas como mecanismos de produção da experiê ncia de si. Como dispositivos, em suma, nos quais se constitui uma vinculação entre certos domínios de atenção (que desenhariam o que é real de uma pessoa para si mesma) e certas modalidades de problematização (que estabeleceriam o modo como se estabelece a posição da pessoa consigo mesma). Em suma, prestar atenção às pr áticas pedagógicas nas quais se estabelecem, se regulam e se modificam as relações do sujeito consigo mesmo e nas quais se constitui a experiê ncia de si. A Transmissão e Aquisição da Experiência de Si. Três Exemplos
Temos até aqui a historicidade e a contingê ncia de nossas “ idéias” acerca de n ós mesmos. Temos també m que essas “ idéias” tê m que ver com nossas “ ações” , com como nos comportamos com relação a nós mesmos e com relação aos demais. E temos, por ú ltimo, que se pode isolar um domínio de análise, o da experiê ncia de si, no qual estaria o ser mesmo 44
do sujeito, sua ontologia enquanto que histórica e culturalmente contingente, enquanto que singularmente constituída. Avancemos agora um pouco mais. Se a experiência de si é histó rica e culturalmente contingente, é també m algo que deve ser transmitido e ser aprendido. Toda cultura deve transmitir um certo repertório de modos de experiência de si, e todo novo membro de uma cultura deve aprender a ser pessoa em alguma das modalidades incluídas nesse repertó rio. Uma cultura inclui os dispositivos para formação de seus membros como sujeitos ou, no sentido que vimos dando até aqui à palavra “ sujeito” , como seres dotados de certas modalidades de experiência de si.6 Em qualquer caso, é como se a educação, além de construir e transmitir uma experiê ncia “ objetiva” do mundo exterior, constru ísse e transmitisse também a experiê ncia que as pessoas tê m de si mesmas e dos outros como “ sujeitos” . Ou, em outras palavras, tanto o que é ser pessoa em geral como o que para cada uma é ser ela mesma em particular. Autoconhecimento e Auto-Avaliação em Educação Moral
Essa produção e mediação pedagógica da relação da pessoa consigo mesma tem especial importâ ncia em vá rios contextos educativos, três dos quais explorei em trabalhos anteriores. Em primeiro lugar, nas práticas educativas de “ educação moral ” ou de “ educação sócio-pessoal” (Larrosa, 1993, pp. 105-125; 1994c). Na literatura pedagógica contempor â nea, as atividades de educação moral tê m nomes como “ clarificação de valores” , “ atividades de auto-expressão” , “ discussão de dilemas” , “ estudos de caso” , “ técnicas de auto-regulação” , etc.7 Sem d ú vida, a educação moral tem a ver com elementos do domínio moral, com disposições ou atitudes, com normas e com valores, mas de uma forma muito particular. Não se trata de apresentar um conjunto de preceitos e normas de conduta que as crianças deveriam aprender e obedecer. Tampouco se trata de modelar disposições ou há bitos. Nem sequer de doutrinar em uma sé rie de valores. Uma vez que se trata de pr áticas centradas na aquisição, nelas não se ensina explicitamente nada. Entretanto, se aprendem muitas coisas. Na sua caracter ística de prá ticas sem um texto específico ou, às vezes, com textos cuja ú nica função é Esses recursos sã o muito mais amplos que os contidos nas instituições de ensino. Qualquer prática social implica que os participantes tratem os outros participantes e a si mesmos de um modo particular. Quem são os participantes para si mesmos e quem é cada um para os outros é essencial à natureza mesma de qualquer prática social. Portanto, aprender a participar em uma prática social qualquer (um jogo de futebol, uma assembléia, um ritual religioso, etc.) é, ao mesmo tempo, aprender o que significa ser um participante. Aprendendo as regras e o significado ao jogo, a pessoa aprende ao mesmo tempo a ser um jogador e o que ser um jogador significa. 7 Uma boa introdução às atividades pedagógicas de educação moral, com numerosos exemplos, pode-se encontrar em Martinez e Puig, 1991.
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“ fazer falar ” , provocar e mediar a fala, consistem basicamente na produção e na regulação dos próprios textos das crianças. Por outro lado, é essencial à realização dessas práticas a colocação em marcha de uma bateria interrogativa e de um conjunto de mecanismos para o controle do discurso. Apresentarei e comentarei brevemente um exemplo dessas pr áticas de “ educação moral ” na qual se trabalha explicitamente a experiê ncia de si. Trata-se de uma atividade pedagógica do tipo de “ clarificação de valores” . Ela é proposta para crianças de nove anos, tem uma duração prevista de setenta e cinco minutos, e tem como objetivo que as crianças reflitam sobre seu pr óprio modo de ser, que sejam capazes de comunicá-lo, e que possam descobrir aspectos desconhecidos das outras crian ças. A sequê ncia metodológica que se propõe para sua realização é a seguinte: 1) O professor apresenta a atividade e entrega a cada criança uma folha de papel com perguntas como: Que coisas crês que fazes bem ? Que coisas cr ês que fazes mal ? Que mudarias de ti mesmo se pudesses ? Que coisas te dão medo ? De que coisas gostas ? Se pudesses ser outra pessoa, quem gostarias de ser ? Por quê ? Qual é a pessoa que menos gostarias de ser ? Por quê ? As crianças devem responder individualmente às perguntas durante quinze minutos. 2) Formam-se pares ao acaso. Durante vinte minutos cada criança explica a seu par suas respostas e responde as perguntas do outro sobre o que não compreendeu bem e vice-versa. 3) Cada par faz um mural tentando expressar mediante desenhos, frases, etc., em que se parecem e em que se diferenciam entre si.
4 ) Os murais são expostos e toda a classe olha e comenta todos ou alguns deles.
Nessa atividade não há um texto anterior. O discurso pedagógico é basicamente interrogativo e regulativo. Há apenas um conjunto de perguntas dirigidas a fazer com que as crianças produzam seus pró prios textos de identidade. Mas não se pode dizer qualquer coisa, nem dizê-la de qualquer maneira. Esses textos não apenas têm que se construir de acordo com o que estabelece a bateria interrogativa, mas, além disso, e durante a realização da atividade, os textos são situados em uma espécie de dramatização global que lhes dá seu significado legítimo. O que as crianças aprendem aí é uma gramá tica para a auto-interpretação e para a expressão do eu e uma gramá tica para a interrogação pessoal do outro. Em geral, uma gramá tica para a interrogação e a expressão do eu. Aprendendo os princípios subjacentes e as regras dessa gramática, constr ói-se uma experiê ncia de si. A criança produz textos. Mas, ao mesmo tempo, os textos produzem a criança. O dispositivo pedagógico 46
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produz e regula, ao mesmo tempo, os textos de identidade e a identidade de seus autores. E aprendem também uma certa imagem das pessoas e das relações entre as pessoas: que cada um tem determinadas qualidades pessoais, que é possível conhecê-las e avaliá-las segundo certos crité rios, que é possível mudar coisas em si mesmo para ser melhor e conseguir o que a pessoa se propõe, que as outras pessoas têm qualidades diferentes, que é possível comunicar o próprio modo de ser, que é possível viver juntos, apesar das diferenças, dadas certas atitudes de compreensão, respeito e tolerâ ncia, etc. O que se aprende, em suma, é um significado específico da singularidade do eu e da compreensão m útua. Também um significado específico para coisas como “ autoconhecimento ” e “ auto-avaliação” , “ sinceridade” , “ comunicação” e “ compreensão” . As crianças aprendem a realizar certo tipo de jogo de acordo com certas regras. Aprendem o que significa o jogo e como jogar legitimamente. E aprendem quem são elas mesmas e os demais nesse jogo social enormemente complexo e submetido a formas muito estritas de regulação, no qual a pessoa se descreve a si mesma em contraste com as demais, no qual a pessoa define e elabora sua própria identidade.
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As Histórias de Vida na Educação de Adultos
Outro exemplo que explorei é o da mediação pedagógica das “ histórias de vida” ou “ narrativas pessoais” na educação de adultos.8 Trata-se aí de duas coisas: em primeiro lugar, de relacionar a aprendizagem com a própria experiência do aluno; em segundo lugar, de estimular algum tipo de reflexão crítica que modifique a imagem que os participantes tê m de si mesmos e de suas relações com o mundo, o que no vocabulário da educação de adultos se chama de “ tomada de consciência” . Gostaria aqui de comentar uma atividade pedagógica de alfabetização, dirigida a recé m-alfabetizados, numa escola de adultos, na qual é utilizado como material de leitura uma narração de um livrinho de histórias de vida muito comum nas escolas da Catalunha. 9 O texto, demasiado longo para ser transcrito, conta as recordações de uma pessoa sobre um professor de seu lugarejo, reprimido pelo franquismo, em cuja casa se reuniam alguns jovens para estudar. O texto descreve D. Tomás, suas qualidades, seu comportamento e suas idéias. Basicamente, sua conduta no lugarejo, sua honradez, sua amizade com os pobres, suas idéias sobre as pessoas e sobre a guerra, seu desprezo para com os setores dominantes após a vitória de Franco. Descreve algumas 8 A exploração foi feita num trabalho de pesquisa coordenado por mim e realizado por vá rios alunos do Mestrado em Educação de Pessoas Adultas, durante o período 91/92 e intitulado La production de textos autobiográ ficos en la education de adultos. Universidad de Barcelona, inédito. Veja-se també m Larrosa, 1994d. 9 Trata-se de um texto intitulado “ Don Tom ás” e incluído em um livro de histórias pessoais elaborado a partir de narrações produzidas por alunos de escolas de adultos. O livro se intitula Memórias y recuerdos. Barcelona, El Roure, 1991.
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arriscar, não arriscar a pr ópria verdade, as próprias crenças. Anteriormente, numa discussão sobre os presentes perigos ético-políticos, expressei essa questão da seguinte forma:
Foucault quer, sim, preservar a possibilidade da agência e de poder ser de outra forma, de ir contra uma vida construída através de (e regulada por ) um modo normalizador de prática-discurso. Mas, frente a uma forma de governo que continua presa no envoltório naturalista do cotidiano e do obstinadamente invisível, ele também quer que estejamos conscientes das conseqiiê ncias da nossa escolha de permanecermos silenciosos e desatentos (Pignatelli, no prelo). Para Foucault, a pr á tica da liberdade envolve tanto um engajamento crítico “ interno ” das pr áticas autoconstitutivas quanto um questionamento “ externo” das condições nas quais o eu é constitu ído,v um contínuo desafio individual e coletivo para construir alternativas. A luz dos compromissos epistemológicos, pol íticos e éticos que os professores assumem para moldar aquilo que eles fazem e a forma como eles pensam sobre o que eles fazem (e os efeitos bastante reais que aqueles compromissos tê m nas vidas de seus estudantes, das famílias de seus estudantes e nas de outras pessoas), um projeto vital de agê ncia docente não pode se dar ao luxo de permanecer desatento a essas preocupações. O Trabalho das Ciências Humanas
Sustentado pelas Ciências Humanas, o discurso- prática educacional está profundamente envolvido na administração de pessoas. Sintetizando alguns aspectos do pensamento de Foucault, Mark Selman expressa bem essa relação: As profissões e as Ciê ncias Humanas criam os conceitos e as normas que constituem aquilo que significa ser uma pessoa. Elas moldam e produzem “ humanidade” ... Os educadores, por exemplo, desenvolvem teorias sobre como ensinar e controlar melhor os estudantes, mas eles também desenvolvem instrumentos e justificações que são usados para determinar o que os estudantes podem fazer e, em última análise, o que eles pensam sobre si próprios. Os indivíduos acabam por ser definidos (e autodefinidos) em termos de sua “ distância” de normas definidoras (Selman, 1988, p. 319).
Atualmente, por exemplo, o r ótulo “ de risco” afixado a certos estudantes, pais e mesmo escolas (e de forma ainda mais importante, por eles internalizado) deve sua existência a um aparato de poder/saber/identi dade. O efeito de uma tal categorização vai bem além de sua utilidade como um meio para permitir que os profissionais consigam realizar suas tarefas cotidianas. Constituir a identidade numa forma “ profunda” e 136
estreitamente regulada coloca uma enorme pressão na prática, e até mesmo na possibilidade, da liberdade. Sugiro que aquilo que Selman indica a respeito dos estudantes é igualmente verdadeiro a respeito dos professores. Como Hugh G. Petrie observa, uma dentre duas suposições (ou ambas) sobre os professores subjazem, em geral, ao processo de ensino-aprendizagem: ou o professor como um t écnico ou o professor como um terapeuta (Petrie, 1990, p. 17). Em ambos os casos, uma estratégia estreitamente pr é-determinada de ações diagnóstico-prescritivas são legitimadas e expressadas na linguagem das Ciê ncias Humanas. Se o trabalho dos professores (e da pesquisa na qual eles se baseiam ) consistir na otimização de desempenhos eficientes e da restauração da sanidade daqueles sob sua responsabilidade, isso reduz significativamente o que é possível fazer com resultados que podem ser antecipados e calibrados. Isso corre o risco de fazer com que os professores sejam incapazes de examinar aquilo que eles fazem e a forma como eles falam sobre aquilo que eles fazem, tendo em vista o contexto sócio-pol ítico mais amplo. Para dizer de forma diferente, o privilegiamento do trabalho docente ao longo das linhas descritas por Petrie restringe seriamente qualquer idéia de agê ncia docente que argumente em favor de um curso de ação aberto, dinâ mico, engajado. A Escola como Regime Discursivo
Incisivamente, Foucault descreveu a escola como um “ bloco de capacidade-comunicação-poder ” (Foucault, 1983c). A escola é um local disciplinar, um locus de poder/saber num sentido positivo ou constitutivo. As escolas podem ser locais perigosos, não por causa da presença de formas grosseiras, brutais ou ilícitas de poder, mas porque instrumentalidades disciplinares, aparentemente benevolentes, eficientes e em busca da verdade sobre os professores, suas pr á ticas e seus estudantes ampliam o domínio autolimitador da normalidade e da marginalização/ reabilitação do desviante. Os professores podem perguntar: por que falamos tão facilmente sobre o fracasso escolar de um estudante, sobre seu desrespeito para com os professores, sobre seu baixo desempenho em testes padronizados, sua incapacidade em falar e compreender a l íngua padr ão, sobre estudantes “ de risco” , e assim por diante, como constituindo “ comportamentos desviantes” , e muito pouco sobre essas condições como formas de ação de resistência e como oportunidades para cultivar a agê ncia discente ? Por que damos tão pouca importâ ncia à “ recuperação” quando se trata de fazer nossa pró pria avaliação como professores ? Preocupações com o cuidado e com a busca da verdade são meios pelos quais relações não-examinadas de poder se imiscuem em aspectos cada vez mais min úsculos das relações sociais. Os professores devem evitar, portanto, prá ticas-discursos que essencializem categorias de desvio nas mentes dos estudantes, assim como nas suas pr ó prias, discursos- prá ticas que fazem com que os estudantes interna-
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lizem e monitorem seu status desviante pró prios por sua marginalidade.
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na verdade, culpando a si
Foucault e a Agência Docente
A liberdade, para Foucault, está situada numa contestação a formas de poder inerentes na busca imparcial da verdade sobre nós próprios, através da aplicação de um rigor científico. A liberdade emerge como um apelo para recusar identidades opressivas, enfraquecedoras, “ descobertas” através das Ciê ncias Humanas; como um ceticismo para com agendas progressistas, bem-intencionadas; como um imaginar incessante; como, de fato, um risco. Isso tem importantes conseq üê ncias para traçar uma concepção de agê ncia docente. Onde a agê ncia é guiada por preocupações tecnicistas ou terapê uticas, ela continua presa ao trabalho das Ciê ncias Humanas tal como as descrevi. Para dizer de outra forma, as verdades obtidas através de um método ordenado, de uma busca científica e de uma teorização presentiva presdispõem e limitam profundamente a forma como entendemos e praticamos a agê ncia docente. Assim, propor uma forma alternativa de pensar a agê ncia docente implica que os professores encontrem formas alternativas de conhecer a verdade sobre si pró prios. Essa busca de uma outra forma de conhecer a verdade sobre si pr ó prios está explicitamente tratada por Foucault na importante distinção que ele faz entre pesquisar e testar como meios de construir um tal verdade. Pesquisar envolve o pesquisador-da-verdade numa investigação sistemática ou coleta de informação. A pessoa descobre verdades objetivas, verificáveis, replicáveis. Enquanto, claramente, a pesquisa continua a ser a abordagem dominante em relação à verdade na sociedade moderna, Foucault está inclinado, em seus escritos, a enfatizar a importância do ato de testar. Existe, ele observa, “ toda uma tecnologia da verdade que a prática científica, passo a passo, desacreditou, encobriu e eliminou. A verdade aqui não pertence à ordem daquilo que é, mas antes daquilo que ocorre: é um evento” .8 Este evento, ele explica, é produzido através da luta. É o resultado de uma provação ou de uma luta, de um desafio seja ele assumido ou imposto que testa uma pessoa e, portanto, determina sua verdade. Naturalmente, esse é um sentido de “ testar ” bem diferente daquele normalmente usado em contextos científicos. Nesse sentido, a agê ncia docente é um empreendimento agonistico, audacioso, marcado por incerteza, resolu ção e tentativa, um esforço que pode agir às margens da verdade científica sobre nós próprios. Como Foucault repetidamente nos lembra e com freqiiê ncia demonstra 8
Foucault, 1980 b, tal como citado em Miller, 1993, p. 271. Essa discussão sobre a distinção que Foucault faz entre pesquisa e teste se baseia em Miller, especialmente, 269-72.
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vividamente, os professores não podem nem fugir, nem absolver-se da violê ncia do discurso sua “ pesada, aterradora materialidade... e seus vínculos com o desejo e o poder ” (Foucault, 1972, p. 216 ). Assim, o projeto de se tornar consciente, de praticar a liberdade, envolve um profundo e amplo julgamento das próprias posições discursivas e profissionais oficiais como nós ou loci de poder mantidos pela produção de conhecimento sobre si pr ó prio, sobre seus colegas e sobre seus estudantes. Seguindo Foucault, argumento que os professores exercem sua agê ncia presos num complexo paradoxo, tipicamente moderno, entre sujeito cognoscente e objeto manipulado. Ironicamente, se os professores testam os limites de “ regime(s) de verdade” 9 por exemplo, ao não perguntar “ E verdadeiro ? ” mas, antes, “ Quem quer que seja verdadeiro ? Quais são os efeitos de dizer que isto é verdadeiro e não aquilo ? ” eles minam o chão autorizado sobre cuja base falam. Fazer tais perguntas força os professores a reconhecer que eles estão não apenas envolvidos com esses regimes, eles são també m constituídos em seu interior. Eles não podem nem pretender ter uma posição fixa isenta das exigências do poder nem advogar em favor de uma tal posição. Isso nã o reduz tudo à intriga, ao cálculo, à vantagem. Naturalmente, normas podem e devem existir. Sugerir o oposto significaria reduzir a agê ncia a uma desorganização dispersa, enfraquecedora. Significaria reduzir a alteridade a um frágil e descorporificado voluntarismo. Tendo isso em mente (e levando em consideração o desconforto do pr ó prio Foucault em ser identificado como um pós-modernista), vale a pena registrar as observações de John W. Murphy sobre o pós-modernismo e a questão das normas. Elas se baseiam na noção de agê ncia docente sugerida por Foucault:
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Os pós-modernistas nunca afirmaram que estabelecer normas é impossível, mas apenas que elas se originam no uso da linguagem. Para alguns realistas, entretanto, esse an ú ncio equivale a proclamar o caos. A educação pós-modernista não encoraja a ausê ncia de normas, mas, de forma muito mais importante, exige que as pessoas assumam a responsabilidade por sua verdade (Murphy, 1988, p.
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A liberdade interpretativa permitida por esse movimento abre o caminho para uma discussão mais ampla, menos privilegiada e mais pú blica sobre o que é valorizado e quem deve ser ouvido. Não fecha a possibilidade de um acordo. Ao mesmo tempo, reconhecer a natureza localizada da própria participação na discussão serve como um lembrete aos participantes sobre seu posicionamento parcial, perspectivo. A liberdade de cada um, pois, não é assegurada através do vínculo entre práticas libertadoras e discursos totalizadores, vagos sentimentos utó-
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9 Veja, por exemplo, Foucault, 1980d, pp. 112 13 e 131-33.
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picos (tais como a liberdade como a realização humana mais alta) ou por leituras universalizantes da história. A análise de Foucault não é nem niilista nem desesperada. Não advoga a proliferação desconexa de incursões impensadas ou despropositadas, sem qualquer reconhecimento ou compreensão daquilo que ocorreu. E uma estratégia para professores que tentam diminuir qualquer justificação pr évia de toda forma de resistência e retardar a especulação sobre como e quando a liberdade é exercida ou se sua prá tica é legítima. Ela abre algum espaço para formas alternativas de pensar e agir em oposição ao presente regime de práticas tecnicistas nas quais os professores se encontram constitu ídos.10 Essas práticas muito freqiientemente passam como respostas necessárias, como movimentos óbvios em narrativas inquestionadas, dadas como certas, narrativas que se desenvolvem ao longo de temas como os seguintes: “ Fornecer a melhor educação para todos” ; “ Todas as crianças podem aprender ” ; “ A educação assegura o sucesso” , e assim por diante. Alternativamente, consideremos as implicações, por exemplo, da questão colocada por Michelle Fine em seu estudo de estudantes evadidos da escola: “ E se o problema da evasão fosse estudado na escola como uma cr ítica coletiva feita pelos consumidores da educação ? ” (Fine, 1987, p. 171). As prá ticas tecnicistas sustentam e exacerbam relações assimétricas de poder nas escolas. Ressuscitar o debate no interior do qual essas práticas normalizadoras ocorrem é um dos meios pelos quais a auto-evidê ncia de práticas educacionais potencialmente opressivas pode ser quebrada. O desafio colocado à questão da agê ncia docente o pensamento de Foucault parece sugerir consiste em perceber o quanto um projeto educacional formulado nos termos convencionais parece girar sempre e indefinidamente em torno dos mesmos e insol úveis problemas, consiste em compreender que os modelos prescritivos parecem formular apenas as questões que eles estão preparados para responder, limitando e restringindo, assim, as ações de quem faz essas questões.
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Indo Contra a Corrente Prescritiva
Embora a resistência docente ao poder disciplinar dependa de algo mais que simplesmente a capacidade do professor para definir e conduzir seus pr ó prios projetos de pesquisa, eu leio Foucault como estando muito mais preocupado com o poder e o potencial do trabalho intelectual para sustentar uma pr ática de liberdade e para contribuir para com a ação de resistê ncia em locais tais como a escola. E precisamente porque a produção de verdade e a produ ção de poder estão tão entrelaçadas 10 Baseio-me aqui no uso que Foucault faz do termo “ práticas” como “ lugares onde aquilo que é dito e aquilo que é feito, as regras impostas e as razões dadas, o planejado e o dado como implícito se encontram e se interconectam” . Foucault, 1987, p. 103.
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que os esforços daquele que ele chama de “ intelectual específico” são valorizados como atos pol íticos. Incisivamente (e, talvez, surpreendentemente), Foucault fala sobre o trabalho do intelectual (“ tornar-se permanentemente capaz de autodistanciamento” ) em termos éticos. Como ele diz: ’’Gostaria que este trabalho fosse uma elaboração do eu pelo eu, uma transformação esforçada através de um cuidado constante com a verdade" (Foucault, 1989, pp. 303-4). De forma similar, o valor de se introduzir o papel da pesquisa na questão da agê ncia docente supõe que qualquer noção sé ria de resistê ncia docente deve necessariamente enfrentar desafios é ticos e epistemológicos, assim como pol íticos. Maxine Greene sugere que as Ciê ncias Humanas devem atentar e responder à diferença, ao particular, ao contexto vivido (Greene, 1984, p. 292). O saber não-mediado, rigidamente disciplinar tende a restringir o significado e a fixar a ação correta. Ele também preserva a dicotomia entre concepção e execu ção, aumentando a deslegitimação e o enfraquecimento dos professores nas salas de aula. Uma forma de enfrentar isso é permitir que os professores façam seu próprio trabalho de campo, desorganizando tais conseq üê ncias e revigorando o desafio da agência docente. Embora a pesquisa possa ser valorizada pelos professores, é pouco comum, em minha experiência como educador de professores e como ex-professor de escola p ú blica, ver os professores se engajarem ativamente no processo de construir e administrar a pesquisa. E mais freq üente que os professores se vejam como consumidores de pesquisa. Ao mesmo tempo, a pesquisa é usada pelos superiores, consultores externos e distantes burocratas para justificar mudanças repentinas de pessoal e de política, as quais afetam os professores de forma muito real. Portanto, assumir a identidade e a posição de pesquisadores num local de trabalho com o qual eles estão, tipicamente, muito familiarizados, dá aos professores um acesso incomum à escola e, de forma igualmente importante, uma oportunidade para interrogar criticamente seus papéis, seu status e sua identidade. Minha experiência na pesquisa sobre o ensino sugere que existe um potencial de pesquisa prá tica, localmente definido e articulado para encorajar e continuamente nutrir a compreensão e a prá tica da agê ncia docente. Contudo, a fim de que surja um contexto mais amplo, sócio- político, de agê ncia, os professores precisam ver seu trabalho como parte de um projeto mais geral de construção de uma cultura democrá tica. Patti Lather fala sobre “ chegar à plena reciprocidade na pesquisa” e sugere os tipos de estratégias de pesquisa que se prestam e encorajam a “ auto- reflexão e a compreensão mais profunda por parte das pessoas que estãò sendo pesquisadas” . Vale a pena anotar sua recomendação:
Entrevistas conduzidas de uma forma interativa, dialógica, que exigia uma explicitação por parte da pesquisadora, entrevistas sequenciais... para facilitar a colaboração e uma investigação mais profunda das questões de pesquisa; negociação do significado, a qual 141 i.
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implica reapresentar as descrições, a análise em andamento e as conclusões a, pelo menos, uma sub-amostra das pessoas pesquisadas. Uma tentativa mais completa de reciprocidade envolveria os participantes da pesquisa num esforço cooperativo para construir empiricamente uma teoria enraizada (Lather, 1986, p. 266 ).
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que a pesquisa na verdade, exigem Essas estratégias implicam reflita e suporte compromissos tanto pol íticos quanto educativos. Michael Apple chama isso de “ estudo crítico” e o descreve como uma forma de pesquisa que deve ser mais que uma mercadoria que é “ comprada” e “ vendida ” no mercado acadêmico... Ela envolve ação no mundo real, sobre relações reais de poder. Não é apenas contemplativa, mas deveria levar a (e partir de) uma ação política em instituições reais... tais como as escolas (Apple, 1989, pp. 203-4).
Apple e outros sublinham a importância do conhecimento como tendo valor estratégico em oposição a valor prescritivo. No lugar da tirania potencial de esquemas administrados, prescritivos, Foucault oferece, para parafrasear A. Megill, uma espécie de libertação não-visioná ria, fundada na contestação da ordem existente (Megill, 1985, p. 197). A falta de um conte údo positivo é mais que uma submissão dionisiaca, um anseio niilista ou uma apologia em favor do status quo. Dado o projeto de liberdade de Foucault, eu o interpreto, a esse respeito, como tentando evitar o fechamento, testar a certeza e colocar diante de nossos olhos o problema de nossa contingência histó rica em torno de questões que exercem uma pressão sobre nós. Como responderemos a isso ? Não há um tratamento explícito dessa questão e isso de forma deliberada. Foucault nos fornece uma filosofia perturbadora, desorganizadora, uma “ filosofia de afirmação não-positiva... uma afirmação que nada afirma” (Foucault, 1977b, p. 36 ).
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Que Posso Fazer? A Política Docente num Clima de Reforma e Renovação
Qual deve ser o pensamento docente sobre a (e no interior da) arena mais ampla da reforma educacional e dos temas da renovação pessoal/profissional ? Ampliando Foucault, que significa para o professor ser politicamente engajado ? Em minha opinião, a política sobre o cuidado e o bem-estar do eu e dos outros tem, essencialmente, três características: ela deve ser reativa, não- programática e esteticamente informada. Todas as três características, alé m disso, devem estar baseadas numa contínua atenção para com a questão da eq ü idade. A intersecção da eqíiidade com apelos de reforma e de renovação desafia os professores a traçar alternativas, em cooperação com aqueles indivíduos que tê m sido sistematicamente 142
r marginalizados e cujas vozes têm sido emudecidas ou silenciadas por uma lógica da normalidade que reduz as diferenças a déficits. Mas saber como e quando questões de justiça social devem ser tratadas torna-se uma questão fundamentalmente importante. Como Daniel P. Liston e Kenneth M. Zeichner advertem, “ impor uma perspectiva crítica” , seja num programa de formação docente ou num programa de pós-graduação, pode, muito provavelmente, ser contraprodutivo ou grosseiramente distorcido. O que é necessário é um respeito pelas pessoas, pelas suas experiências e suas condições, juntamente com uma discussão oportuna e uma mediação crítica, à medida que as ocasiões se apresentam. Devemos aprender a viver na tensão entre a afirmação e a crítica. Tendo dito isso, gostaria de discutir as três características em maior detalhe. Uma política foucaultiana é reativa no sentido de que é instigada por alguma circunstâ ncia problemática que ameaça nosso bem-estar ético. Como Foucault diz: “ minha posição não leva à apatia nem a um hiper-ativismo ou a um ativismo pessimista. Penso que a escolha ético-política que temos que fazer todos os dias é determinar qual é o principal perigo” .11 Para mim, reagir àquilo que é mais perigoso supõe que essa ação seja dirigida por uma preocupação com a eqiiidade. Isso está próximo àquilo que Max Van Manen chama de reflexão crítica. Liston e Zeichner, baseando-se no trabalho de Van Manen, expressam isso da seguinte forma: A reflexão cr ítica incorpora critérios morais e éticos ao discurso sobre a ação prática. Aqui a preocupação principal está em saber se os objetivos, atividades e experiências educacionais levam a formas de vida que são caracterizadas por justiça, eqiiidade e felicidade concreta para todos e se a atividade docente e os contextos nos quais ela é levada a efeito servem a necessidades humanas importantes e satisfazem a propósitos humanos importantes (Liston & Zeichner, 1991, pp. 1678-68 ).
Uma política docente começa como uma orientação dentro das contin gências de um problema cuidadosamente delineado que age sobre nós mesmos como educadores. Entre tais possíveis problemas estarão aqueles que se agrupam em torno do ethos dominante do controle técnico dos professores e da gerência científica da educação. Especificamente, isso abrangeria temas enquadrados como questões de eqiiidade, tais como: isolamento docente, programação de classe inflexível, desqualificação e intensificação do trabalho docente, avaliações baseadas no desempenho dos estudantes em testes padronizados, a natureza presentiva do curr ículo, a falta de poder de decisão docente em questões de administração da escola, e assim por diante. Embora tal “ capacidade de 11 Foucault, 1983b, p. 232. Veia também Albert Camus, 1972, pp. 120-21, para uma interessante ilustração daquilo que Foucault chama de “ ativismo hiper e pessimista” .
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resposta” exija tomar uma posição nessas questões, respostas calcificadas ou respostas que desencorajam mais diálogo enfraqueceriam aquilo que acredito ser essencial a uma tal política, a saber, uma provisoriedade flexível, informada, que permaneça atenta às aberturas e possibilidades não-antecipadas, assim como consciente do potencial de sua própria pr ática para marginalizar e obscurecer outras vozes (e também outros possíveis perigos ). Uma política docente seria uma prática não- programática. Conseqiientemente, agir íamos com um conhecimento parcial daquilo que estamos fazendo, resistindo ao impulso de vincular nossas respostas a um plano-mestre dirigido a organizar e explicar uma infinidade de situações e movimentos. Mas em vez de “ ficarmos parados, olhando para as coisas inominadas... para aquilo que não pode ser conhecido” , tal como o personagem Ishmael de Herman Melville, na descrição de Greene, arriscamos agir, às vezes, armados apenas com a imaginação e a paixão (Greene, 1965, pp. 104-5 ). A indeterminação, em certo sentido, atormenta a ação; uma indeterminação que permanece alerta às preocupações expressadas por Simone de Beauvoir em sua discussão daquilo que ela chama de “ o aventureiro” . Ela explica:
Não esperando qualquer justificação, ele, não obstante, se gratifica em viver. Ele não virará as costas às coisas nas quais não acredita. Ele procurará nelas um pretexto para uma exibição gratuita de atividade... Ele gosta da ação pelo prazer da ação. Ele experimenta prazer em espalhar pelo mundo uma liberdade que permanece indiferente a seu conte údo (Beauvoir, 1976, p. 58 ). De Beauvoir ainda argumenta que o aventureiro erra em não ver que sua liberdade está ligada à liberdade de outros. Esse importante reconhecimento supõe tanto um futuro aberto quanto uma interdependência que “ impõe limites sobre a ação e ao mesmo tempo dá-lhe um conte údo” (Beauvoir, 1976, p.60 ). Esse ponto leva à terceira característica de uma política foucaultiana. Os professores precisam ver seu trabalho de uma forma estética. Ira Shor, por exemplo, situa a questão no contexto do fortalecimento de poder (
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cificidades dos exames escritos, concluindo que a prática de avaliações escritas e permanentes condensa as profundas modificações educacionais que ocorreram nos últimos duzentos anos, tanto em termos teóricos em que a educação se cientifizou ,- quanto em termos práticos o ã n só formatando vá rias outras práticas escolares (burocráticas e pedagógicas) como, també m, determinando novas tecnologias de dominação e subjetivação. Em resumo, a avaliação moderna “ funde a racionalidade e a autoridade da pr á tica educacional tradicional numa nova forma indivisível a autoridade racional, que se torna a característica que distingue a escolarização moderna” (Hoskin, 1979, p.146 ). Mas, bem ao contrá rio de tomar essas transformações como resultado de uma evolução cultural, à la um darwinismo social, ele as toma como construções a serem problematizadas. Para isso, vai buscar em Foucault (e especialmente em Vigiar e Punir ) a idéia de poder disciplinar , a fim de analisar aquelas continuidades e descontinuidades que ocorreram tanto nas prá ticas examinatórias quanto na educação em geral. A partir daí, Hoskin faz uma muito interessante interpretação sobre como atuaram as técnicas de observação hierarquizada e de julgamento normalizador que se instalaram primeiramente nas escolas lassalistas, a partir da segunda metade do século XVII. Vejamos isso com algum detalhe. Os exames escritos (periódicos ou até mesmo continuados) diferentemente das grandes provas orais, nas quais os alunos tinham de demonstrar ( provar...) sua competência foram exatamente os instrumentos que colocaram em marcha tanto as técnicas de vigilâ ncia ( permanente e hierarquizada) quanto as técnicas de julgamento normalizador. Os resultados disso são bem conhecidos: de anónimos, tornamo-nos indivíduos objetivados e submissos. Esse poder disciplinar “ coloca cada um de nós num lugar na sociedade e produz, como efeito, uma realidade social...” (Hoskin, 1979, p.137). Ao tomarmos essa forma moderna de exames como lógica e natural, enquanto instrumen to destinado a avaliar o conhecimento dos alunos, não percebemos que ela é, ao mesmo tempo, uma eficiente técnica de poder. Keith Hoskin nos mostra que as avaliações escritas tornam-se uma pr á tica escolar diá ria, na Inglaterra e outros países, por volta de 1800, e que isso se refletiu, necessariamente, em outros aspectos da vida nas e no próprio escolas em termos de tempos, espaços, rituais etc. fortalecimento dos curr ículos em termos de seleção e organização de conteúdos e procedimentos didáticos. Mas, além de continuados, os exames modernos são, praticamente no todo, escritos. Para Hoskin, isso reflete aquilo que Walter Ong, ao estudar os efeitos da difusão da imprensa e do alfabetismo, denominou de deslocamento do conhecimento retórico para um conhecimento topogr áfico. Mais recentemente, Hoskin (1993 ) fala-nos de umgramatocentrismo como resultado do deslocamento de um saber que privilegiava as operações mentais envol-
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vidas diretamente com a argumentação discursiva, para um saber que passa a privilegiar tanto a escrita sobre fatos e dados específicos quanto o conhecimento dos lugares em que esses fatos e dados poderiam ser obtidos. Mas reflete ainda mais: o aproveitamento que os reformistas educacionais fizeram, durante os setecentos, dessa reorganização do conhecimento em termos espaciais. Os saberes passaram a ser indexados por ordem alfabética ( pensemos nas enciclopédias criadas nesse per íodo ) e se tornaram mais acessíveis visualmente, graças aos cada vez mais amplos recursos tipogr áficos (como a paragrafação, a endentação, a italicização, as citações cruzadas, o uso de tipos com tamanhos e feitios variados etc.). Todos esses recursos, que hoje nos parecem tão naturais, se articulam com um poder que també m se espacializava. Uma “ mudan ça no saber torna pensável a mudança no poder ” (Hoskin, 1979, p.142). A questão da disciplinaridade do conhecimento é tratada, em termos históricos, com engenhosidade invulgar por Hoskin. Ele nos revela como o deslocamento qualitativo do sabe levou “ os homens (e de in ício eram apenas os homens) a inventarem as modernas disciplinas” (Hoskin, 1993, p.274 ). Essas novas disciplinas constitu íram-se como ecossistemas de conhecimentos, cuja estruturação aberta sempre permite um aumento pela proliferaçã o infinita de sub-disciplinas que, em princípio, poderiam dar conta de todas as indagações e de todas as verdades. Além disso, essas novas disciplinas e sub-disciplinas instituíram uma nova economia na “ dinâ mica ” do conhecimento: em primeiro lugar, em termos dos saberes tornamo- nos uma sociedade credencializada, isso é, cada vez se concedem mais credenciais para atender a proliferação acelerada de especialistas que devem povoar aquele ecossistema. Em segundo lugar, a proliferaçã o de saberes (e de seus correspondentes expertos) cria novas formas de poder, entre os quais está o de conceder valor a si pr ó prio. Tudo isso resultou no aparecimento de tr ês cená rios educacionais: o seminário (iniciado na universidade alemã, por volta de 1760), o laboratório (iniciado nas Grandes Écoles francesas, um pouco antes da Revolução) e a sala de aula (iniciada na Universidade de Glasgow, por volta de 1760). Cada uma dessas inven ções está associada a diferentes aspectos da disciplinaridade. Ao semi ná rio associam-se disciplinas como a Filosofia, a Filologia, a História, a Teoria Literária. Ao laboratório associam-se as disciplinas relacionadas com aquilo q úe se convencionou denominar saber científico, em especial aquelas que tratam da Natureza. A sala de aula associam-se os saberes não propriamente acad ê micos, de modo que é esse o cená rio que se torna mais disseminado na escola moderna. Num outro trabalho ( Hoskin, 1990 ), esse autor faz um apanhado geral das potencialidades do pensamento foucaultiano para a Educação. Partindo das raízes etmológicas de disciplina, ele discute algumas relações entre a obra de Foucault e as de Ariès e Derrida para, logo adiante, entrar em detalhes históricos muito interessantes, e ainda pouco explorados, sobre aquelas mudanças na avaliação escolar que 237
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comentei acima. A partir dai, Hoskin se ocupa em averiguar como poder e saber se conectam na relação poder saber, ou seja, qual elemento está representado pelo hífen, nessa relação. Isso tem importâ ncia na medida em que vai nos permitir comprender melhor como se articulam essas duas faces de uma mesma moeda. Mas certamente essa articulação varia de época para época, de cultura para cultura, ou, como diria Foucault, de episteme para episteme. Não importa se o h ífen representa a paideia ( num período grego clássico) ou a disciplina (na modernidade), ambas ocultadas na palavra, mas presentes na relação, cada uma na sua é poca; até outras poderão ser descobertas em outros contextos. O que me parece mais interessante, aí, é a idéia de que o elemento de conexão será sempre educacional. Para Hoskin, isso revela enfim que Foucault foi um cripto-pedagogo. Mas Keith Hoskin vai mais longe. Partindo de uma discussão sobre a posição marginal da Educação em relação àquelas que ele mesmo denomina disciplinas reais Psicologia, Sociologia, História e Filosofia , ele efetua um exercício de desfamiliarização e nos oferece uma interpretação que inverte a visão que se costuma ter dessa área (Hoskin, 1993). Sua tese é de que “ a Educação, longe de ser subordinada, é ‘supra-ordinada’, e que comprender a Educação e seu poder é a única maneira de comprender a gé nese da disciplinaridade e o resultante crescimento aparentemente inexorável do poder disciplinar ” (id., ib., p.272). Em outras palavras, isso significa que a disciplinaridade e o poder disciplinar tê m, na Educação, a sua gé nese e fixação. Portanto, dela emana a calculabilidade do mundo moderno: um mundo no qual todos nós reconhecemos e internalizamos os valores que cada um tem e as posições que cada um ocupa. É daí que decorre a governamentalidade. Assim entendido o papel da Educação, não há como discordar do status subordinado que lhe tê m a Filosofia moderna e, principalmente, as chamadas Ciê ncias Humanas. É daí també m que decorre a idéia de que a prá tica educacional é o elemento de conexão entre o poder e o saber, ocultado pelo hífen que liga os dois termos.
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Manuel Alvarado e Bob Ferguson: A Crítica ao Realismo
Nessa secção farei um breve comentá rio sobre um interessante artigo publicado no periódico Screen Education, em que seus autores (Alvarado & Ferguson, 1983) desenvolvem uma bem articulada crítica aos curr ículos escolares modernos, na medida em que eles se fundam em visões de mundo que são essencialmente realistas. Decorrem daí, segundo esses autores, os principais motivos pelos quais os sistemas educacionais funcionam para controlar a sociedade e reproduzir a estratificação social em termos de gê nero, raça, religião, idade de seus membros, etc. 238
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Como sabemos, em sua versão mais ampla, “ o realismo declara a existência de algumas classes discutidas de objetos ou coisas, por exemplo, universais, objetos materiais, leis científicas, proposições, n ú meros, probabilidades” (Bynum et al., 1986, p.484). No campo educacional, o realismo corresponde a uma consideração forte ao mundo empírico (fatos) ; na dimensão curricular, o realismo opera sustentando a crença segundo a qual é possível apresentar a realidade aos alunos, de modo direto e transparente. Essa interpretação está bastante ligada à idéia do conhecimento enquanto espelho: a mente humana seria “ um grande espelho, que contém várias representações umas precisas, outras não e qtfe pode ser estudado por meio de métodos puros, não empíricos” (Rorty, 1988, p.21). Abandonar essa idéia como fizeram, entre outros, Nietzsche, o segundo Wittgenstein, Foucault e o pós-estruturalismo significa abandonar a pretensão à melhor ou mais correta representação do real e isso coloca em xeque a fenomenologia e a teorização crítica. Manuel Alvarado e Bob Ferguson dedicam parte do artigo a discussões sobre a mídia, tendo em vista que ela “ já sabia” que nunca apresenta o real, mas apenas nos oferece uma representação dele. No entanto, ao nos oferecer uma representação do real, a m ídia o constitui enquanto um sistema simbólico. Isso é de há muito conhecido pela Estética; o que há de novo é trazer essa “ limitação” para dentro da Epistemologia. O sistema simbólico constituído pela mídia, por sua vez, constitui e conforma discursivamente o nosso entendimento sobre o mundo. Com isso, os autores direcionam sua argumentação na trilha foucaultiana da Teoria do Discurso. A noção de sistema simbólico, Alvarado e Ferguson associam conceitos tirados da obra de Foucault, de modo a agudizar a crítica educacional. Còrno sabemos, a questão sempre presente nas teorias educacionais críticas consiste em avaliar como a educação ( principalmente escolar ) produz e reproduz as desigualdades sociais. Tomemos, como exemplo, o caso da vertente inglesa que foi desenvolvida principalmente por Michael Young e que ficou conhecida como Nova Sociologia da Educação; nela, a ênfase recaiu no “ estudo dos processos de interação em sala de aula e dos processos pelos quais atores sociais, tais como professores e alunos vivem uma realidade social que é constru ída e negociada na interação social ” (Silva, 1992, p.20). Nesse caso, o conhecimento escolar não é tomado como tranq ü ilo e natural na medida em que esse tipo de conhecimento é produto de seleções intencionais e de transformações até chegar à sala de aula. Mas o conhecimento, de um modo geral e amplo, é tomado em si como tranq üilo, porque possível de espelhar o real. É por isso que tal perspectiva que, entre outras coisas, entende a agência humana, a rigor, de modo não problemático não vê que nós somos constituídos por m ú ltiplos discursos e que o real é instituído também por esses discursos. Young e toda essa vertente crítica ignoram que o nosso
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entendimento do mundo é, sempre e necessariamente, representacional e que daí decorre a impossibilidade de uma contra-ideologia suficiente. E ignoram, ainda, que aquilo que o professor ensina não são conhecimentos escolhidos ( por ele, pelos sistemas educacionais etc.) a partir de um universo mais amplo, mas são, sim, discursos preferenciais. Nessa nova perspectiva, ocorre um deslocamento com relação ao que mais deve nos interessar: não são mais “ os conhecimentos em si, mas como eçses conhecimentos se transmutam simbolicamente e como se arranjam para montar os discursos” (Veiga-Neto, 1994, p.18). Como conseqiiência, deveria haver um deslocamento també m no currículo escolar: “ do conhecimento de fatos e desenvolvimento de habilidades para o reconhecimento dos sistemas simbólicos e práticas discursivas em que estamos mergulhados” (id., ib.). Penso que ainda não está suficientemente explorada a produtividade dessa crítica ao realismo pedagógico, principalmente no que concerne à sua aplicação à teorização do currículo. Nesse sentido, os insights de Alvarado e Ferguson, apesar de não serem tão recentes, ainda são promissores. Foi baseado també m nesses autores que, numa parte do recente trabalho que acima citei (Veiga- Neto, 1994 ), desdobrei as discussões relativas ao realismo em Educação e, usando a aná lise foucaultiana sobre o papel da representação na episteme moderna em especial a instigante discussão que o fil ósofo faz no texto Las Meninas (Foucault, 1992) retomei a questão do estatuto das Ciê ncias Humanas no que se refere à sua cientificidade e à sua impossibilidade de constitu írem o homem moderno como objeto de seu conhecimento. Isso tem impor tâ ncia para n ós, educadores, por dois motivos. Em primeiro lugar, está a questão de busca de legitimidade científica para, por exemplo a Sociologia da Educação, para a Psicologia da aprendizagem e do desenvolvimento e para a pr ó pria Pedagogia. Em segundo lugar, mas igualmente importante, está a questão de nossa crença na possibilidade de a linguagem ser transparente. Em outras palavras, ao não reconhecermos que as Ciê ncias Humanas se estruturaram e operam a partir de elementos tomados da Matemá tica e das Ciê ncias Naturais, e ao não reconhecermos que, nesse processo, cada elemento, conceito ou idéia se transmuta, nã o percebemos que todos eles são sempre representações. E, ao mesmo tempo em que essas representações são o acesso que temos à realidade humana, elas a constituem. Como comentei em outras passagens deste capítulo, isso tudo torna extremamente problemática a possibilidade de escaparmos, via uma maior cientificidade em nossas análises, das ideologias que parecem nos cercar e dominar. Simplesmente porque tudo é representação.
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Valerie Walkerdine: A Razão Problematizada
Valerie Walkerdine tem trabalhado as questões referentes às relações desenvolvimento cognitivo infantil, classes sociais e gê nero, a
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partir da educação matemática. Exatamente por desenvolver seu trabalho numa perspectiva foucaultiana, suas pesquisas, na maior parte de natureza empírica, quase nada tê m a ver com aquilo que, comumente, no meio acadêmico, se costuma denomirtar Educação Matemática. Ela não trata nem de inventar/descobrir melhores tecnologias de ensino nessa área, nem de “ usar ” a Matemática para averiguar a epistemologia envolvida na gé nese e no desenvolvimento do raciocínio lógico na criança, nos jovens ou nos adultos. Ao contrá rio, boa parte da obra de Walkerdine pode ser comprendida como uma cr ítica às perspectivas que tomam a criança como ser biológico que, mediante um processo de adaptações sucessivas ao meio, desenvolveria uma racionalidade que parte de estágios concretos e alcança a abstração. Ao invés de tomar como dada uma natureza humana universal que seria, em cada um de nós, moldada pelo ambiente social, e ao contrá rio de conceder crédito à idéia realista de ser possível o acesso direto ao mundo material isso é, à idéia de “ mente como espelho da realidade” (Rorty, 1988 ) , Walkerdine dedica-se a analisar as prá ticas discursivas que estabeleceram esse regime de verdade e também as prá ticas discursivas nas quais as crianças estão mergulhadas desde o ambiente doméstico. Ela nos revela, então, que entendermos o desenvolvimento da inteligê ncia como uma seq üência de estágios inerentes à nossa espécie ^ exemplo, a epistemologia genética de como nos propõe, pbr Jean Piaget é resultado de um “ movimento” discursivo que se estabeleceu na Modernidade. Isso se deu em condições histó ricas específicas: um ambiente social europeu, branco, machista, colonizador e capitalista. E teve como objetivo produzir cidad ã os auto-regulados, capazes de viver de acordo com as novas tecnologias e aparatos que engendraram novas pr áticas de administração e governo. Ao argumento de que as pesquisas revelam que, mesmo em classes pobres, as crianças seguem (ainda que com atraso) aquela seqiienciação, Valerie nos responde que, se analisarmos a questão a partir de fora de tal enquadramento, poderemos compreender isso de outra forma. A pró pria idéia de atraso na seqíiência das fases nos revela a idéia de normalização sobre a qual Foucault tematizou tão bem em História da Loucura e Vigiar e Punir embutida na epistemologia genética de Piaget. Todo o programa de pesquisa de Walkerdine se movimenta no sentido pós-estruturalista. Isso significa n ão seguir qualquer noção iluminista de verdade, Ideologia, Ciência etc.; ela dá as costas igualmente a Hegel, Marx, Althusser, Piaget, Saussure, Lé vi-Strauss, Vygotsky e outros. E em Foucault que eia vai buscar a noção de pr á ticas discursivas enquanto produtoras de verdade. Num interessante artigo em que analisa as pedagogias construtivis, tas Walkerdine (1984 ) nos lembra que o movimento educacional progressivista que no Brasil denominou -se Escola Nova tinha, já
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na década de 1920, o ideal de fazer a escola funcionar no sentido de educar as crianças para a liberdade, para a auto iniciativa e para a independê ncia, de modo a se tornarem adyjtos racionais. Objetivos muito semelhantes a esses, senão iguais, sã o proclamados ainda hoje pelas pedagogias construtivistas. Frente a isso, ela nos pergunta: “ por que tantas crian ças não alcan çam esses objetivos e qual é o papel da Psicologia do desenvolvimento em tudo isso ? ” (id., ib., p.153). A resposta que ela nos propõe e em torno da qual ela vai argumentar ao longo de seu texto é que “ a questã o central da Psicologia do desenvolvimento, a ‘crian ça em desenvolvimento’, é um objeto tomado como premissa enquanto localização de certas capacidades dentro da ‘criança’ e, assim, dentro do domínio da Psicologia” (id., ib., p.154 ). Os aspectos daquilo que se costuma denominar o domínio social são entendidos como elementos que vêm de fora e que influenciam, dirigem, conduzem, afetam etc. o desenvolvimento infantil; nesses enquadramentos construtivistas, cabe à escola articular e montar, da melhor maneira, essas influê ncias, direções, condu ções etc. É exatamente contra essa bi-polaridade interno versus externo que se dirigem as investigações de Valerie. Ela nos propõe que (a) não só a Psicologia do desenvolvimento toma a si valores de verdade que são, como vimos, historicamente determinados e que não são, por isso mesmo, os ú nicos possíveis para compreendermos a inteligê ncia infantil como, ainda, (b) as prá ticas escolares colocadas em funcionamento pelas pedagogias construtivistas não são meras aplicações de conhecimentos científicos sobre o desenvolvimento da inteligê ncia na criança, mas devem ser entendidas como implicadas na produção e legitimação desses conhecimentos. O significado político dessas questões nã o é trivial. O construtivismo tem hoje, entre n ós, ampla aceitação na medida em que se escora numa Epistemologia e/ou numa Psicologia do desenvolvimento que têm status de conhecimento seguro e/ou de ciê ncia. A preocupação de Valerie Walkerdine, com a qual eu concordo inteiramente, se centra na questão de que, considerando que as práticas escolares, moldadas nesses pressupostos construtivistas, contribuem decisivamente para “ constituir indivíduos, nesse caso crian ças, enquanto objetos de seu olhar, elas os produzem como sujeitos. Na medida em que tal Psicologia cria um regime de verdade tomado como premissa sobre um indivíduo psicol ógico, ela proíbe outras formulações que não repitam o dualismo entre o indivíduo e a sociedade” (id., ib., p.197). Em Mastery of Reason , Walkerdine (1988 ) vê como particularmente interessante analisar a contribuição da educação matemática no estabelecimento desse “ movimento” discursivo, na medida em que o discurso educacional construiu a id éia, a partir do século XIX, segundo a qual o pensamento lógico- matemático promete evitar os desvios da criança para outras formas de pensamento e prazer menos racionais. Uma educação calcada na racionalidade controlaria a agressividade
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própria da natureza humana e contribuiria, assim, para diminuir o empobrecimento e a criminalidade na sociedade. Nessa obra, extremamente interessante tanto para professores que trabalham em Educação Matemática quanto para aqueles interessados em conhecer novos enfoques que ajudam a comprender como se dá a aprendizagem infantil, são exaustivamente analisadas práticas discursivas, nas famílias e nas salas de aula, de modo a nos revelar “ que a ‘verdade’ sobre o desenvolvimento matemático da criança é produzida nas salas de aula, e que toda a aprendizagem pode ser comprendida como ocorrendo dentro das pr áticas sociais nas quais a relação entre significante e significado é constantemente problemática” (Walkerdine, 1988, p.9). Entre as vá rias observações que faz, em situações concretas no ambiente familiar e em salas de aula, Valerie descreve e analisa meticulosamente as práticas discursivas de crianças, membros de suas famílias e professoras que envolvam conceitos ou entidades lógico-matemáticas ou apenas matemáticas , sempre evitando “ adaptar ” suas observações e interpretações a partir de um suposto desenvolvimento semâ ntico universal que seria inerente à inteligência humana. Dessa forma, ela explora, por exemplo, questões sobre a produção dos “ significados matemáticos” , sobre as relações entre tamanhos e proporções diferentes e sobre como as crianças transformam os discursos não-matemáticos em matemáticos.
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Conclusões
Chegado ao fim deste capítulo, espero ter contribuído tanto para a compreensão dos aportes que o pensamento de Michel Foucault pode trazer à pesquisa e à pratica educacionais, quanto para a divulgação de algumas possibilidades analíticas que foram desenvolvidas por autores que adotaram uma perspectiva foucaultiana em suas investigações. Tanto eles, em seus respectivos trabalhos, quanto certamente eu, em vá rios momentos oscilamos entre a fidelidade e a infidelidade ao filósofo, comentadas na Introdução deste texto. Penso que, até mesmo como decorrência da abertura naquele tipo de pensamento, a obra de Foucault pode ainda inspirar muito nossas idéias e nossas práticas pedagógicas. O objetivo deste meu texto e, é claro, deste livro é contribuir para isso. Não poderia concluir sem lembrar uma questão que atravessou toda a discussão, na maior parte das vezes de maneira não explícita. Trata-se daquilo que eu denomino postura foucaultiana e que, de resto, está de certa forma presente em todo o pensamento pós-estrutural ou pós-moderno. Uma postura que se caracteriza pela mais completa e permanente desconfiança sobre as verdades que se costuma tomar como dadas, tranq üilas e naturais. Uma postura que se manifesta pelas constantes
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tentativas de escapar de qualquer enquadramento que postule como não-problemáticas as idéias iluministas de um sujeito fondante, de uma razão transcendental e de um homem ou mulher natural e universal que habitaria dentro de cada um de nós. tí
Referências Bibliográficas
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Alfredo J. Veiga-Neto é Professor do Departamento de Ensino e Currículo da Faculdade de Educação da Universidade Federai do Rio Grande do Sul .
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12 Tomaz Ta d eu da Silva O Adeus às Metanarrativas Educacionais
\ teoria educacional e a pedagogia encontram-se sitiadas. Atacadas -* *pelo pós-modernismo, pelo pós-estruturalismo, pelo feminismo, suas fundações balançam e suas praticantes se sentem desestabilizadas. As ameaças e contestações partem de vá rios lados e atingem vá rios dos elementos que fundam a educação. Não escapam a essa implosão nem sequer as bases daquilo que se convencionou chamar de Teoria Educacional Crítica, atingida em seu n úcleo mesmo de teoria e prá tica
vanguardista. Em outro local (Silva, 1993), tratei de alguns dos aspectos das contestações feitas à Pedagogia Crítica, sobretudo daqueles ligados ao movimento pós- modernista. Neste capítulo, estarei focalizando especialmente a interação entre a Teoria Educacional Crítica e o pós-estruturalismo (com ê nfase nas contribuições de Foucault ), com alguma atenção também a certos elementos do questionamento pós-modernista.
Como se sabe, pós-estruturalismo e pós-modernismo são conceitos amplos e de definição pouco precisa. Eles tendem també m a se confun dir, ligados que estão a um mesmo conjunto de contestações aos fundamentos do pensamento, da filosofia, das ciê ncias sociais, das artes. E possível, entretanto, fazer algumas distinções, que podem ser úteis no contexto do presente trabalho. Em primeiro lugar, pode-se considerar pós-modernismo como um termo mais abrangente que pós-estruturalismo. Em seguida, é possível também distinguir o pós-estruturalismo como um conjunto de desenvolvimentos teóricos vinculados a uma determinada concepção do papel e da natureza da linguagem, uma concepção que modifica e estende aquela sustentada pelo estruturalismo. E possível també m distinguir o pós-estruturalismo a partir dos autores que o identificam. Estão claramente identificados com o pensamento pós-estruturalista: Foucault, Derrida, Barthes. Em contraposição, a figura que claramente identifica o pós-modernismo, ao menos em filosofia e ciê ncias sociais, é Lyotard. De qualquer forma, neste ensaio não estarei preocupado particularmente com essa distin ção, 247
embora aquelas questões especificamente pós-estruturalistas sejam assim identificadas. Mas, sem entrar numa descrição prévia dos elementos do pensamento pós-estruturalista, que será feita ao longo do trabalho, quais são seus impactos sobre a teoria e a pesquisa educacionais ? Que elementos do edif ício teó rico educacional são abalados pelas reconceptualizações do pós-estruturalismo e do pós-modernismo ? Quais desses elementos permanecem intactos após o vendaval pós-estruturalista ? O campo educacional é um campo privilegiado de confrontação para o pensamento pós-moderno e pós-estruturalista. Onde mais as metanarrativas sã o tão onipresentes e tão “ necessá rias” ? Em que outro local o sujeito e a consciê ncia são tão centrais e tão centrados ? Em que outro campo os aspectos regulativos e de governo ( no sentido foucaultiano) são tão evidentes ? Haverá uma outra á rea em que os princípios
humanistas da autonomia do sujeito e os essencialismos corresponden-
tes sejam tão caramente cultivados ? Existirá um outro campo, alé m do da educação, em que binarismos como opressão/libertação, opressores/oprimidos, tão castigados por uma certa ala do pós estruturalismo, circulem tão livremente e o definam tão claramente ? E onde mais a “ Razão” preside tão soberana e constitui um fundamento tão importante ? També m não haverá outro lugar em que o papel da intelectual ( professora ou acad ê mica) seja tão enfatizado, nem outro lugar em que a mudança (do educando, da escola, da sociedade ) seja tão ardentemen te buscada. Utopias, universalismos, grandiloq üências, narrativas mestras, vanguardismo: esse o terreno em que a educação e a teoria educacional se movimentam. Aqui o pós- modernismo e o pós-estruturalismo tê m muito a questionar.
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A Virada Lingüistica e a Filosofia Educacional da Consciência
A chamada “ virada lingüistica” na teorização social e em outros campos começa por desalojar o sujeito do humanismo e sua consciê ncia do centro do mundo social. A filosofia da consciê ncia, firmemente assentada na suposição da existê ncia de uma consciê ncia humana que seria a fonte de todo significado e toda ação, é deslocada em favor de uma visão que coloca em seu lugar o papel das categorizações e divisões estabelecidas pela linguagem e pelo discurso, entendido como o con junto dos dispositivos lingü isticos pelos quais a “ realidade” é definida. A autonomia do sujeito e de sua consciência cede lugar a um mundo social constituído em anterioridade e precedentemente àquele sujeito,
na linguagem e pela linguagem. Nesse movimento, a consciê ncia e o sujeito não apenas saem do centro da cena social : sã o eles pró prios descentrados. Alé m de não serem determinantes, auton ômos e soberanos, consciê ncia e sujeito tampouco são fixos e está veis, carecendo de um centro permanente e
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bem estabelecido. A pr ó pria natureza da linguagem é també m redefinida. Não mais vista como veículo neutro e transparente de representação da “ realidade” , mas como parte integrante e central da sua pr ópria definição e constituição, a linguagem também deixa de ser vista como fixa, estável e centrada na presença de um “ significado” que lhe seria externo e ao qual lhe corresponderia de forma un ívoca e inequ ívoca. Em vez disso, a linguagem é encarada como um movimento em constante fluxo, sempre indefinida, não conseguindo nunca capturar de forma definitiva qualquer significado que a precederia e ao qual estaria inequivocamente amarrada. Filosofia da consciê ncia e educação quase se confundem. É aqui, em toda a tradição do pensamento educacional, que a consciê ncia e o sujeito auto-centrado recebem um papel privilegiado. Esse papel central é-lhes concedido pelas vá rias “ pedagogias” que tê m atravessado o pensamento educacional. Ele é destacado no humanismo tradicional, com sua suposição de uma essê ncia humana a ser desenvolvida em todas as suas potencialidades. Ele é també m parte essencial dos fundamentos das vá rias psicologias que têm dado sustentação às justificativas da educação institucionalizada das psicologias humanistas (com seus apelos ao pleno desenvolvimento de todas as faculdades humanas) às psicologias desenvolvimentistas (com sua ê nfase no desenvolvimento das capacidades infantis). As suposições sobre consciê ncia e sujeito são comuns às pedagogias da repressão e às pedagogias libertadoras a oposição biná ria que lhes opõem apenas revela a existê ncia de uma essê ncia a ser reprimida ou liberada, conforme o caso. Não escapam a essa tradição nem mesmo as chamadas pedagogias críticas — a pr ó pria noção de conscientização, tão cara a algumas de suas importantes correntes, está integralmente vinculada à suposi ção da existê ncia de uma consciê ncia unitá ria e auto-centrada, embora momentaneamente alienada e mistificada, apenas à espera de ser despertada, desreprimida, desalienada, liberada, desmistificada. A concepção pós-estruturalista, inspirada, nesse ponto, sobretudo em Foucault, ao colocar em d ú vida a suposição dessa consciê ncia e desse sujeito soberano, ao desenvolvimento (ou à repressão ) do qual a educação estaria voltada, priva-lhe, evidentemente, da pró pria razão de sua existência e “ missão” . Que se coloca em seu lugar ? Talvez não seja o caso de tentar colocar alguma coisa em seu lugar operação que correria o risco de remontar precisamente aquilo que o pós-estruturalismo se pôs a desmontar , mas de enfatizar precisamente o cará ter transgressivo e subversivo de uma tal perspectiva. Uma perspectiva que reconhece o descentramento da consciê ncia e do sujeito, a instabilidade e provisoriedade das m ú ltiplas posições em que sã o colocados pelos m ú ltiplos e cambiantes discursos em que sã o constitu ídos, começa por questionar e interrogar esses discursos, desestabilizando-os em sua inclinação a fixá-los numa posição ú nica que, afinal, se mostrará ilusó ria. A posição pós-estruturalista, naquilo que se refere à chamada
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1 “ virada linguistica” , subverte todas as nossas mais queridas noções sobre educação, incluindo aquelas que tínhamos como mais cr íticas e transgressivas. Nisso reside sua força. Querer mais significará provavelmente voltar a operar precisamente no registro do qual se quer sair. Desconfiar de Todos os Saberes-Poderes A teoria educacional, em geral, baseia-se na noção de que o conhecimento e o saber constituem fonte de libertação, esclarecimento e autonomia. A teoria educacional crítica, em particular, acredita que os presentes arranjos educacionais, afetados por objetivos de interesse e poder, transmitem saberes e conhecimentos contaminados de ideologia, mas que é possível, através de uma crítica ideológica, penetrá-los e chegar a um conhecimento não- mistificado do mundo social. A posição pós-estruturalista vai contestar essas visões. Em primeiro lugar, ao reformular a oposição convencional entre ciê ncia e ideologia, entre saber e ignorâ ncia/ mistificação que vincula o segundo elemento desses pares a uma distorção que pode ser traçada ao poder (ideologia) e o primeiro a uma posição distanciada e desinteressada em relação ao poder (verdade ) todo saber/conhecimento torna-se igualmente suspeito de vínculo com poder. Em segundo lugar, a própria noção de poder sofre um deslocamento, não podendo mais ser referida a uma fonte ou a um centro ú nico, separando nitidamente o mundo social em opressores e oprimidos, assim identificados antecipadamente e de uma vez por todas. A natureza opressiva ou libertadora de um discurso não pode ser determinada teoricamente, deve ser investigada historicamente, em cada caso específico (Sawicki, citada por Gore,. 1994 ). Nesse deslocamento, muda o próprio foco de análise do poder: não mais simplesmente tentar identificar a fonte do poder, já que as relações de poder são onipresentes, mas principalmente como elas se exercem (Foucault, 1982). Mais uma vez, isso atinge o âmago da teorização educacional crítica. Em que outra coisa consiste o objetivo da pedagogia cr ítica senão em colocar a intelectual ( professor, acadê mica) numa posição privilegiada para identificar fontes e origens de poder que levam a mistificar o conhecimento do mundo social e, com isso, a perpetuar situações de opressão ? Não é a missão desse/a intelectual ajudar os/as estudantes a chegar a uma compreensão não-mistificada da vida social, uma compreensão supostamente isenta de interesses de poder ? A perspectiva pós-estruturalista, baseada na noção de poder-saber de Foucault, vai nos desalojar a todos dessa posição privilegiada, a partir da qual se pode analisar e criticar o poder sem estar envolvido com ele. Colòca-se sob suspeita tanto a relação da acadêmica frente aos professores ( “ práticos” ), quanto a desses últimos frente aos/às estudantes. Se não existe o exterior do poder, se não existe uma “ verdade” que
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seja o outro lado do poder, todas as relações são arriscadas. A conseqüê ncia disso não é necessariamente uma posição niilista, cínica ou desesperada, mas talvez uma posição mais realista, apesar de todo o desconforto que possa ser causado pela operação de desalojamento de uma posição de poder que deve seu prestígio precisamente à luta contra o poder e à sua suposta isenção em relação a ele. O objetivo já não será mais buscar uma situação de não-poder, mas sim um estado permanente de luta contra as posições e relações de poder, incluindo, talvez principalmente, aquelas nas quais, como educadores/as, nós próprios/as estamos envolvidos. O Pós-Estruturalismo e o Papel da Intelectual
É precisamente o papel privilegiado da intelectual que vai ser um dos elementos mais contestados pelo pós-estruturalismo e pelo pós-modernismo. Colocada sempre numa posição afastada, distanciada, isenta, em relação ao mundo social e político, a intelectual, na melhor tradição iluminista, vai contribuir com um saber/conhecimento desinteressado para o avanço e progresso da vida social. Numa perspectiva que vincula sempre saber e poder, essa posição torna-se insustentável. O saber da intelectual não paira acima e fora das lutas e relações de poder: é parte integrante e essencial delas. As pedagogias críticas dependem centralmente de uma perspectiva vanguardista do papel da intelectual, seja em relação aos movimentos sociais em geral, seja em relação ao espaço mais restritamente pedagógico. As noções pós-estruturalistas de poder vão conferir à intelectual um papel bem mais modesto, muito menos universal e muito mais local, que se expressa na noção de “ intelectual específica” de Foucault. Nessa perspectiva, a intelectual assume um papel muito mais simétrico em relação às outras participantes das lutas sociais nas quais está envolvida, no sentido de que seu saber, sua visão e seu discurso devem tanto aos interesses de poder quanto os de qualquer outra participante. Essa visão tem conseqiiê ncias tanto para as teóricas educacionais críticas quanto para os professores. Para as primeiras, fica dif ícil, a partir daí, manter uma posição de superioridade em relação aos segundos, uma superioridade que se deve à suposição da existê ncia de uma posição incontaminada pelo poder. Suas pedagogias críticas só o serão na medida em que aplicarem a si próprias os instrumentos de cr ítica que aplicam aos outros. Para os segundos, é sua própria relação com as estudantes que deve ser mantida constantemente em xeque, tendo em vista seu possível envolvimento em processos de regulação e controle. A intelectual, nessa perspectiva, não se reconhece tanto pelo grau de 251
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sua cr ítica em relação às posições de poder dos outros quanto pelo grau de sua auto-reflexividade.
Pedagogia Crítica e Regulação/Controle/Governo
O envolvimento da educação e da pedagogia em mecanismos de poder e controle não é nenhuma novidade para a teoria educacional crítica. Essa preocupação é mesmo uma caracter ística central da teorização educacional crítica. O que distingue a posição pós-estruturalista, nisso baseada novamente em Foucault, é a ê nfase no cará ter necessá rio e produtivo do poder. Enquanto para a teorização cr ítica de inspiração marxista, por exemplo, o poder distorce, reprime, mistifica, para a perspectiva pós-estruturalista, o poder constitui, produz, cria identidades e subjetividades. As identidades e subjetividades assim produzidas não representam nenhuma distorção, nenhum desvio em relaçã o a alguma essê ncia humana que, se deixada livre ou “ bem ” encaminhada, seguiria o seu “ verdadeiro” curso. A regulação e o governo dos sujeitos e das populações são mecanismos necessá rios para “ canalizar” suas capacidades para objetivos produtivos, no sentido de utilidade para o poder. Mas essa regulação e governo não estão necessariamente centralizados em qualquer instituição especifica, como o Estado, por exemplo. O que caracteriza a sociedade contemporâ nea é precisamente o caráter difuso desses mecanismos de regulação e controle, dispersos que estão em uma ampla sé rie de instituições e dispositivos da vida cotidiana. A educação é certamente um desses dispositivos, central na tarefa de normalização, disciplinarização, regulação e governo das pessoas e das populações. E verdade que tudo soa familiar às pessoas formadas na tradição educacional cr ítica. Entretanto, a diferença está em que nenhum dispositivo, nem mesmo os cr íticos, tal como as pedagogias críticas, estão absolvidos de envolvimento em relações de poder, regulação e governo. Para usar a terminologia de Foucault, também elas constituem “ tecnologias do eu ” , profundamente implicadas na produção de determinados tipos de personalidade. A operação convencional de desmontagem na teorização crítica de inspiração marxista consiste em examinar os dispositivos e prá ticas tradicionais como ligados ao interesse e ao poder. Supostamente, uma vez eliminados esses obstáculos, teríamos uma situação de “ libertação” , isto é, de não-poder. Na perspectiva pós-estruturalista de inspiração foucaultiana, apenas teria se instaurado um outro regime de regulação e controle, não necessariamente mais benéfico. Evidentemente não seriam apenas as pedagogias críticas que seriam , v ítimas da ilusão de transcender o cará ter necessariamente regulativo e 252
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de controle da educação e da pedagogia. A pedagogia construtivista é um outro exemplo, extremamente atual, dessa ilusão. Uma outra implicação dessa perspectiva para a educação é não separar regulação e saber. Embora análises como a de Althusser já tivessem chamado a atenção para o caráter ideológico até mesmo de disciplinas educacionais consideradas “ neutras” , havia a í sempre a suposição de uma separação entre conhecimento (científico ) e ideologia que permitia que o conhecimento “ verdadeiro ” pudesse emergir uma vez desenredado de seu cipoal ideológico. Na perspectiva que aqui estamos analisando, as disciplinas (mat é rias) escolares, estando situadas em dispositivos de governo e controle como a educação, contê m necessariamente aspectos regulativos dos quais n ão podem ser separase pudessem já não estar íamos falando de educação. Educadas ção/ pedagogia e regulação estã o sempre juntas.
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Os Binarismos Que Habitam a Educação e Sua Desconstrução
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Algumas pensadoras educacionais começam a extrair as conseq üê ncias do projeto de descontrução de Derrida para a educaçã o. Interessa- me aqui destacar apenas duas dessas implicações. Uma das tarefas a que se propôs Derrida foi a de desconstruir oposições biná rias caras à tradição do pensamento filosófico ocidental: teoria/ prá tica, sujeito/objeto, natureza/cultura... Derrida tenta demonstrar que nessas oposições um termo n ão representa a superação do outro, como se pode pretender a partir da posi çã o que argumenta em seu favor. Embora nessas oposições um termo sempre apareça como positivo, reprimindo o outro, na verdade elas supõem uma essê ncia que lhes está subjacente. Ocorre não apenas que essa essê ncia n ã o apenas n ã o existe, como a identidade que é definida pela oposição nã o é fixa, mas flutuante, cambiante. O campo da educação e da teoria educacional dificilmente pode ser compreendido fora desses binarismos: libertação/opressão, repressão/ libera ção, teoria/ prá tica, racional/irracional... Uma perspectiva pósestruturalista inspirada na desconstrução buscaria desmontar essas oposições naquilo que um de seus elementos apresenta de pretensão de superação do outro. Assim, por exemplo, para tomar um exemplo tão central à pró pria histó ria do pensamento educacional ocidental, se consideramos o par “ reprimir/ liberar ” em conjunto, como uma dessas oposições que remetem a uma essê ncia subjacente, veremos que “ liberar ” , por exemplo, n ã o representa o “ outro” de “ reprimir ” mas apenas um outro lado de uma identidade: a da essê ncia humana que deve ser reprimida ou liberada, conforme for o caso e a é poca. A oscilação histó rica entre reprimir e liberar é uma oscilação que volta ao mesmo ponto ( Lerena, 1983 ).
A cr ítica das oposições biná rias relaciona-se com a cr ítica dos significados transcendentais. Para Derrida, a filosofia ocidental tem-se 253
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caracterizado precisamente pela busca daquele significado último de todas as coisas, um significado que as fixaria de uma vez por todas, que permitiria sua compreensão final, um significado que serviria de referência para todos os outros, e que estaria na sua origem. Essa corrida em busca do significado transcendental é mais do que evidente no campo educacional. Certo tipo de questão, bastante corrente nesse campo, define bem essa busca: Que é verdadeiramente a educação ? Que conceito e teoria nos permitiria explicar, de uma vez por todas, esse ou aquele processo educacional ? Em que, exatamente, consistiria a pedagogia progressista ú ltima e definitiva ? A sucessão de teorias e concepções que se sucedem com certa rapidez na educa çã o é uma demonstração dessa incessante e interminável busca. Embora talvez seja necessário pensarmos os significados como transcendentais, um certo reconhecimento da ilusão que constitui sua busca desenfreada pode constituir um saudável elemento na constituição de uma teoria e uma prática mais modestas e realistas. O abandono dos significados transcendentais como o das metanarrativas não deve deixar saudades.
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Epistemologia Social, Epistemes e Educação
A tradição racionalista no pensamento social e educacional tende a pensar o conhecimento e a epistemologia como um processo lógico e ligado a esquemas mentais de raciocínio. Essa é uma das conseq üências de se conceber a linguagem como um meio transparente e neutro de representação da “ realidade” . Uma das implicações da “ virada linguistica ” é conceber o nosso conhecimento e compreensão do mundo social como necessariamente vinculado à pró pria forma como nomeamos esse mundo. Esse processo de nomeação não é o mero reflexo de uma realidade que existe l á fora; esse processo produz, constitui, forma a realidade. As categorias que usamos para definir e dividir o mundo social constituem verdadeiros sistemas que nos permitem ou impedem de pensar, ver e dizer certas coisas. Esses sistemas constituem, na terminologia de Foucault, “ epistemes” , ou ainda, para utilizar a sugestão de Popkewitz (1991), “ epistemologias sociais” . As epistemologias sociais ordenam, formulam, moldam o mundo para nós, um mundo que não tem sentido fora delas. Isso tem muitas e variadas implicações para o campo educacional e sua análise. Quero destacar aqui apenas uma delas, justamente uma das mais importantes. Como outros campos sociais, também o da educação é “ governado” pelas categorias que nos permitem nomeá-lo. Em geral, tendemos a ver essas categorias e nomes como resultado de um processo racional e lógico de significação da realidade, envolvendo atores també m racionais e razoá veis. Tendemos, por outro lado, a esquecer o quanto essas categorias, conceitos, nomes, taxonomias capacitam ou restringem aquilo que podemos pensar, sentir, dizer, fazer. Como atores sociais, vivemos dentro de verdadeiras epistemolo254
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gias sociais e educacionais que constituem para nós o campo do possível, nos permitindo pensar, dizer e fazer certas coisas e não outras. Essa perspectiva poderia ser aplicada a muitas outras epistemes e epistemologias sociais no campo da educação, mas me restringirei a apresentar aqui o exemplo das categorias e redefinições atualmente postas a circular pelo chamado neoliberalismo. Estamos atualmente presenciando um processo amplo de redefinição global das esferas social, política e pessoal, no qual complexos e eficazes mecanismos de significação e representação são utilizados para criar e recriar um clima favorável à visão social e política neoliberal. O que está em jogo não é apenas uma reestruturação neoliberal das esferas económica, social e política, mas uma reelaboração e redefinição das pr óprias formas de representação e significação social. O projeto neoconservador e neoliberal envolve, centralmente, a criação de um espaço em que se torne impossível pensar o económico, o político e o social fora das categorias que justificam o arranjo social capitalista. Nesse espaço hegemónico, visões alternativas e contrapostas à liberal/capitalista são reprimidas a ponto de desaparecer da imaginação e do pensamento até mesmo daqueles grupos mais vitimizados pelo presente sistema. Em seu conjunto, esse processo faz com que noções tais como igualdade e justiça social recuem no espaço de discussão p ú blica e cedam lugar às noções redefinidas de produtividade, eficiê ncia, “ qualidade ” , colocadas como condição de acesso a uma suposta “ modernidade” (outro termo, aliás, submetido a um processo de redefinição ). E preciso perguntar: quais questões e noções são reprimidas, suprimidas ou ignoradas quando um discurso desse tipo se torna hegemónico ? Que visões alternativas de sociedade deixam de circular no imaginário pessoal e social ? A redefinição da educação em termos de mercado insere-se nessa epistemologia social. A educação deixa de ser definida como um espaço público de discussão, como uma instituição pertencente à esfera política, e passa a ser redefinida como um bem de consumo, no qual estudantes e pais figuram como consumidores individuais e isolados em busca de seus supostos direitos de consumidores. Nesse processo, tendem a ser suprimidas categorias e conceitos com os quais tendíamos justiça, igualdade ,- desloa encarar a educação institucionalizada e cados em favor de outras categorias conceitos mercado, consumidor, qualidade total. Como resultado, temos uma nova “ realidade” lingiiisticamente definida, que, ao reprimir e tornar impossível qualquer forma alternativa de pensar e dizer, nos aprisiona na ú nica forma que parece possível.
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A Educação na Idade da Razão
É dif ícil pensar a educação fora do contexto do predomínio da Razão, tal como definida e elaborada pelo Iluminismo. A história da educação 255
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de massas e a do pensamento ilustrado quase se confundem. A educação institucionalizada é um dos mecanismos pelos quais a Razão se instala e se difunde, os currículos educacionais são baseados na concepção de Razão, o cultivo da Razão é um dos principais objetivos educacionais. Em muitos sentidos, educação significa produção da racionalidade. Para tomar um exemplo mais atual, pode-se dizer que o objetivo central das chamadas psicologias desenvolvimentistas é produzir a criança racional (Walkerdine ). Por isso, numa era em que o predom ínio da Razão iluminista é colocado em questão a partir de variadas perspectivas pós-estruturalismo, pós-modernismo, feminismo, pacifismo, ambientalismo é dif ícil deixar de repensá-la também no âmbito da educação. As perspectivas pós-modernista e pós-estruturalista, em conjunto, colocam em questão esse predomínio de uma Razão, universal e abstratamente definida. Nessa visão, a noção predominante de Razão é encarada como produto de uma construção histórica que deve suas características às condições da é poca em que foi desenvolvida e não a uma essência humana abstrata e universalizante. Essa Razão é eurocè n trica, masculina, branca, burguesa, setecentista e, portanto, particular, local, histórica, e não pode ser generalizada. Em termos mais educacionais, o desenvolvimento da criança pen sante e racional, como um objetivo abstrato, deixa de levar em conta exatamente o cará ter relacional, contextuai e histórico do pensamento. Ao ter como objetivo a produção desse “ pensador ” descontextualizado, a educação e, sobretudo, as psicologias desenvolvimentistas, tendem precisamente a universalizar e a abstrair a noção de razão, ocultando com isso seu caráter particular e histórico. Esse raciocínio, assim concebido e desenvolvido, separado da consideração de seu objeto, tende a despolitizar o processo de pensamento, na exata medida em que o concebe fora e acima de seu contexto pol ítico e histórico.
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As Metanarrativas: Como Viver Sem Elas
Possivelmente nenhum questionamento pós-modernista tenha atingido mais seriamente a educação que o desfechado contra as metanarrativas. O campo educacional é um campo minado de metanarrativas. Impossível andar nele sem esbarrar em uma. Usamos metanarrativas para construir teorias filosóficas da educação; utilizamos metanarrativas para analisar sociol ógica e politicamente a educaçã o; nossos currículos educacionais deixariam de existir sem as metanarrativas metanarrativas históricas, sociais, filosóficas, religiosas, científicas. O golpe contra as metanarrativas é, portanto, um golpe contra o edif ício teórico educacional, seja aquele tradicionalmente construído, seja o da teorização crítica. Parece que o abandono das metanarrativas é irreversível. As metanarrativas, em sua ambição universalizante, parecem ter falhado em
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fornecer explicações para os multifacetados e complexos processos sociais e pol íticos do mundo e da sociedade. A depend ê ncia em relação às metanarrativas pol íticas tem revelado uma tendência a produzir regimes totalitá rios e ditatoriais. O apego a certas metanarrativas tem servido apenas de justificação para que certos grupos conservem outros sob opressão. Em educação não é diferente. Temos presenciado com freq üência a busca cíclica da “ Grande Pedagogia ” que, finalmente, vai dar resposta a todas as nossas grandes questões educacionais e sociais. Em seu af ã universalizante, essas pedagogias têm chegado a formular conjuntos de princípios pelos quais se testaria a adesão a seu credo. Analiticamente, também se observa uma tendê ncia a adotar esquemas explicativos universalizantes para os processos educacionais. Em termos de teoria, as metanarrativas educacionais têm servido freqiientemente apenas para que certos grupos imponham suas visões particulares, disfar çadas como universais, às de outros grupos. As metanarrativas com freq üê ncia impedem a discussão pú blica e aberta ao suprimirem antecipadamente perspectivas que se lhes opõem. Por outro lado, em termos mais curriculares, as metanarrativas tê m servido apenas para justificar a exclusão do curr ículo de outras narrativas que não se encaixam nos pressupostos e dogmas da narrativa mestra que está no comando. Por tudo isso o adeus às metanarrativas não constitui necessariamente uma despedida dolorosa. Ela significa apenas que nossas teorizações precisam ser mais refinadas, mais atentas aos detalhes locais e específicos, enquanto que o conhecimento corporificado no currículo precisa estar mais atento às vozes e às narrativas de grupos até então excluídos de participar de sua produção e criação. As metanarrativas: é possível viver sem elas. E talvez melhor.
E Agora? Num campo atravessado por preocupações pr á ticas e pol íticas não há como evitar a pergunta: dados esses questionamentos, que fazer daqui pra frente ? Uma possível resposta é que esses questionamentos apenas estendem e ampliam o projeto educacional crítico de desestabilização dos poderes, certezas e dogmas estabelecidos. Que isso constitui em si uma prá tica, uma prá tica de cr ítica que tem objetivos e resultados pol íticos. E verdade que desta vez o pr óprio projeto cr ítico torna-se objeto da operação de cr ítica e questionamento e nisso está precisamen te uma de suas novidades. Mas a auto-reflexividade não significa niilismo ou cinismo, nem falta de compromisso e responsabilidade. Há talvez um aumento de responsabilidade, na medida em que nossas posições deixam de ter um ponto fixo e está vel e ficam constantemente submetidas à crítica e à d ú vida. Isso tampouco implica um abandono
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da política. Se existe abandono é apenas de uma política baseada em
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Os questionamentos colocados pelo pós-modernismo e pelo pósestruturalismo també m implicam uma posição de mais mod éstia por parte da intelectual e do professor. O pr ó prio alcance da teoria torna-se mais modesto e limitado. Não mais obrigada a dar conta de tudo, não mais obrigada a prescrever uma sé rie de receitas para todas as situações, a intelectual educacional pode talvez agora assumir sua tarefa política de participante coletiva no processo social: vulnerável, limitada, parcial, às vezes correta, às vezes errada, como todo mundo. A intelectual do modernismo e do estruturalismo está em crise. Talvez surja em seu lugar uma intelectual mais de acordo com o tempo em que vivemos. Mas a partir daqui vou ficar tentado a prescrever. Melhor terminar antes disso. Pós-estruturalmente. Referências FOUCAULT, M. Afterword. In : H. L. Dreyfus & P. Rabinow. Michael Foucault: Beyond Structuralism and Hermeneutics. Chicago, The University of Chicago Press, 1982. GORE, J. Foucault e Educação: Fascinantes Desafios. In: T.T. da Silva (Org.). O Sujeito da Educação: Estudos Foucaultianos. Rio, Vozes, 1994. LERENA, C. Reprimir y Liberar. Crítica sociológica de la educación y de la cultura contemporâneas. Madri, Akal, 1983. POPKEWITZ, T.S. A political sociology of educational reform. Power/ knowledge in teaching, teacher education, and research. Nova York, Teachers College Press, 1991. SILVA, T.T. da. Teoria Educational Crítica em Tempos Pós-Modemos. Porto Alegre, Artes Médicas, 1994. WALKERDINE, V. Reasoning in a post -modern age. Londres, Department of Media and Communication, Goldsmiths’ College. Mimeo.
Este ensaio foi apresentado em Painel no VII ENDIPE, 5 a 9 de junho de 1994, Goiâ nia.
Tomaz Tadeu da Silva é Professor do Departamento de Ensino e Curr ículo da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
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